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2018 Ano 4 Número 8 Porto Alegre | RS

Revista da
Escola da Magistratura
do TRF da 4ª Região

2018 Ano 4 Número 8 Porto Alegre | RS


Revista da
Escola da Magistratura
do TRF da 4ª Região

VICTOR LUIZ DOS SANTOS LAUS


Des. Federal Diretor da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região
FICHA TÉCNICA
Diretor
Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus
Vice-Diretor
Des. Federal Márcio Antônio Rocha
Conselho Consultivo
Des. Federal Sebastião Ogê Muniz
Desa. Federal Vânia Hack de Almeida
Assessoria
Isabel Cristina Lima Selau
Direção da Divisão de Publicações
Arlete Hartmann
Revisão e Formatação
Carlos Campos Palmeiro
Leonardo Schneider
Marina Spadaro Jacques
Projeto Gráfico
Ricardo Lisboa Pegorini

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4. Região. – Vol. 1, n.


1 (out. 2014)- . – Porto Alegre: Tribunal Regional Federal da 4.
Região, 2014- .
v. ; 23 cm.

Quadrimestral.
Inicialmente semestral.
Repositório Oficial do TRF4 Região.
ISSN 2358-4602
1. Direito – Periódicos. I. Título. II. Brasil. Tribunal Regional Fede-
ral. 4. Região.
CDU 34(051)

Tribunal Regional Federal da 4ª Região


Rua Otávio Francisco Caruso da Rocha, 300
CEP 90.010-395 | Porto Alegre | RS
www.trf4.jus.br/emagis
e-mail: revista@trf4.jus.br
Tiragem: 600 exemplares
ARTIGOS......................................................................................... 9

Parecer: Defensoria Pública. Art. 22 do ADCT da Carta de


1988. Alcance.
Carlos Thompson Flores................................................... 11
O jurista Eloy José da Rocha
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz............................ 21
A Organização Mundial do Comércio e a propriedade
intelectual
André R. C. Fontes............................................................ 33
O valor da prova indiciária
Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira........................ 39
Orçamento público, ajuste fiscal e administração
consensual
Jessé Torres Pereira Junior e Thaís Boia Marçal............... 41
Reflexões a respeito do tema “precedentes” no Brasil do
século 21
Teresa Arruda Alvim......................................................... 67
Parecer jurídico: improbidade administrativa
Fábio Medina Osório....................................................... 77
Responsabilidade do Estado por danos tributários no
Direito italiano e no brasileiro
Sumário
Andreia Scapin............................................................... 101
Gênese do Código Penal brasileiro
Amadeu de Almeida Weinmann.................................... 129
Como a liberdade de expressão pode auxiliar na promoção
do desenvolvimento sustentável na Era das Mudanças
Climáticas?
Gabriel Wedy................................................................. 139
Ruy Cirne Lima: o jurista e o professor emérito
Paulo Alberto Pasqualini.................................................. 147
A judicialização da saúde no século XXI
Clenio Jair Schulze............................................................ 171
Transferências bancárias, propriedade criminosa e lavagem
de dinheiro
Danilo Knijnik................................................................... 181
O direito de superfície na Alemanha e o seu caráter social
Leonardo Estevam de Assis Zanini................................... 221
Saudação ao Juiz Eliézer Rosa
Oscar Maciel Trindade Netto........................................... 243
Humanismo no Direito
Eliézer Rosa...................................................................... 247
A inconstitucionalidade das alterações na pensão por
morte (decorrentes das modificações promovidas pela Lei
13.135/15 no art. 77 da Lei 8.213/91)
Marcus Orione................................................................. 257

JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA................................................. 269

Suspensão de Liminar ou Antecipação de Tutela


nº 5042672-90.2017.4.04.0000/RS
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz............................ 271
Suspensão de Liminar ou Antecipação de Tutela
nº 5051358-71.2017.4.04.0000/SC
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz............................ 275
Sumário
Artigos
10 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8
Parecer: Defensoria Pública. Art. 22 do ADCT da Carta
de 1988. Alcance.
Carlos Thompson Flores (1911-2001)
Ministro aposentado e ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal

Na qualidade de procurador judicial de diversos servidores públicos,


designados pelo Senhor Procurador-Geral do Estado para o Serviço de Assis-
tência Judiciária, solicitou-me o advogado Desembargador Hermann H. de
Carvalho Roenick o exame da possibilidade de emitir parecer jurídico sobre
o disposto no art. 22 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da
Carta de 1988, no pertinente a sua exegese e seu real alcance.
Justificou seu interesse na solução em virtude de haver proposto, em
nome dos citados servidores, perante a Justiça local, uma ação cautelar ino-
minada, com pedido de liminar, seguida de declaratória.
Inseriu cópias das respectivas petições iniciais, bem como daquela do
mandado de segurança impetrado pelo estado, com o propósito de invalidar
a concessão da liminar referida, ou, pelo menos, obter efeito suspensivo do
agravo por ele, estado, também interposto contra a mencionada liminar, e,
igualmente, da respectiva resposta.
Por fim, melhor objetivando seu interesse, oferece para solução longo
e detalhado questionário.
Examinei, cuidadosamente, o material enviado, bem assim os temas
jurídicos dele emergentes. E, do estudo que procedi, dispus-me a atender à
solicitação do consulente. Faço-o como, a seguir, passo a deduzir.
I Do direito
1. Os princípios jurídicos que regem a controvérsia suscitada pelo consu-
lente decorrem todos da Constituição vigente. Originam-se, predominantemen-
te, do art. 22 do ato de suas disposições transitórias. E aliam-se aos arts. 134,
parágrafo único, e 5º, LXXIV, das disposições permanentes da mesma Carta.

2. Para sua devida análise, impende, de logo, transcrevê-los. Dizem


eles, textualmente:
Art. 22 – É assegurado aos defensores públicos investidos na função até
a data de instalação da Assembleia Nacional Constituinte o direito de opção
pela carreira, com a observância das garantias e vedações previstas no art.
134, parágrafo único, da Constituição.

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Art. 134 – A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicio-
nal do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os
graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
Parágrafo único – Lei complementar organizará a Defensoria Pública da
União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para
sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial,
mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes
a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atri-
buições institucionais.

E, finalmente, o
Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer na-
tureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à pro-
priedade, nos termos seguintes:
[omissis]
LXXIV – O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos.

II Considerações necessárias
1. Impende, de logo, afirmar que nenhuma das sete Constituições que
vigeram no país ofereceu maior elenco de direitos e garantias individuais do
que a atual. É bastante cotejar seu Título II, Capítulos I e II (arts. 5º e 6º a 11),
com as disposições correspondentes das Constituições anteriores para, sem
a menor dúvida, certificar-se dessa verdade.

2. No que interessa à presente controvérsia, assistência jurídica aos ne-


cessitados, expressão mais ampla que assistência judiciária, para bem assegu-
rar-lhes os múltiplos direitos que lhes conferia (art. 5º, LXXIV), instituiu a nova
Constituição, sob o título “Das funções essenciais à justiça” (Capítulo IV do Tí-
tulo IV), ao lado do Ministério Público e da Advocacia-Geral da União, a “Ad-
vocacia e a Defensoria Pública”, a última disciplinada em seus arts. 133 a 135.

3. No pertinente à assistência jurídica aos necessitados, apenas a par-


tir da Constituição de 1934 passou ela a ser cogitada. Em princípio, para atri-
buir à União, privativamente, a prerrogativa de legislar a respeito, art. 5º,
XIX, c; e nas Constituições posteriores, 1946, 1967 e Emenda 1/69, figurando,
simplesmente, entre o elenco dos direitos e das garantias individuais, arts.
141, § 35; 150, § 32; e 153, § 32, respectivamente.

4. No Rio Grande do Sul, todavia, a própria Constituição do Estado vi-


gente, em seu art. 87, com a redação que lhe atribuiu a Emenda 10/79, foi

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além; no respectivo caput, atribuiu à Procuradoria-Geral do Estado, além de
incumbências outras, a “de centralizar o sistema de assistência jurídica do
Estado”, especificando, por meio de sua alínea c, verbis:
c) prestar, na forma da lei, diretamente ou através de órgão vinculado,
assistência jurídica e judiciária aos necessitados (...).
[omissis]

5. Humberto P. de Moraes e José Fontenelle T. da Silva, em sua bem ela-


borada monografia, já em 2ª edição, Assistência judiciária, sua gênese, sua his-
tória e a função protetiva do Estado, Liber-Juris, 1984, depois de referir-se às
mencionadas disposições da Constituição local, precisam as normas que, por
meio de leis, decretos e demais ordenações, regularam a matéria, p. 125 e 126.

6. Da leitura de tais normas legais, conclui-se que, no Rio Grande do


Sul, a partir da citada Emenda Constitucional 10/79, o serviço de assistên-
cia jurídica e judiciária transferiu-se da Consultoria-Geral do Estado para a
Procuradoria-Geral, a cuja chefia passou, no exercício de suas atribuições,
segundo a legislação ordinária, a organização do respectivo serviço, nela,
Procuradoria, “centralizado”, segundo expressão legal.

7. E teria sido no desempenho dessa atividade que, por designação do


Procurador-Geral, passaram os mandatários do nobre consulente ao exercí-
cio das funções de assistentes judiciários, na capital e no interior do estado,
nas quais se encontravam em 01 de fevereiro de 1987, data na qual se insta-
lava a Assembleia Nacional Constituinte.
III Dos temas controvertidos

A) Observações gerais
1. As considerações antes deduzidas visaram dar destaque a duas pre-
dominantes situações. A primeira, como já ficou referido, no que concerne
à amplitude dos direitos sociais e das garantias e dos direitos individuais,
explicitando que, como aos demais, eram extensivos aos necessitados, ou
seja, aos que não dispusessem de recursos para exigi-los; a segunda, com
igual valia e ainda instituindo como uma das funções essenciais à distribui-
ção de Justiça a Defensoria Pública, compreendendo a assistência jurídica e
judiciária aos referidos necessitados. A última, complementando a primeira,
para que ambas, em conjunto, pudessem tornar real, efetivo e eficaz o pleno
exercício dos direitos sociais e das garantias e dos direitos individuais, tal
como fez expresso, em seu preâmbulo, o estatuto em comentário.

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2. E foi além a Constituição. Não se conformou em elastecer o rol
dos direitos sociais e das garantias e dos direitos individuais que enume-
rou. Estatuiu mais, a que instituições poderiam recorrer ditos necessitados,
ou seja, aqueles que não dispusessem de recursos materiais adequados a
exercitá-los, como antes ficou considerado.

3. E cumpre, então, salientar que, afora as atribuições específicas que


mencionou para o desempenho dos mencionados órgãos que instituiu, para
todos os seus titulares, desde logo, assegurou também direitos e garantias.
Estabeleceu a carreira, lado a lado, com a do Ministério Público e a da Advo-
cacia da União, a todos estendendo o princípio da isonomia e prerrogativas
outras, como dispõem os arts. 37, XII, e 39, § 1º, e como decorrência do que
ficou assegurado pelo art. 135, todos do Estatuto Maior.

4. Não obstante a série de direitos e garantias que, desde logo, ins-


tituiu a Constituição, como antes ficou, minuciosamente, considerado – no
que aqui interessa, Defensoria Pública –, sua organização passou a depen-
der de lei complementar. No que respeita à União, cuidará ela de sua pró-
pria estruturação, bem como para a do Distrito Federal e dos territórios. To-
davia, quanto aos estados, como decorrência da própria Federação, dita lei
complementar prescreverá normas gerais para a organização da comentada
Defensoria Pública para eles, evidentemente, impondo também a carreira,
provida na classe inicial por meio de concurso público de provas e títulos, e
assegurada aos respectivos titulares a garantia igualmente da inamovibilida-
de, como tudo se fez expresso no parágrafo único do art. 134, inicialmente
transcrito.
B) Do direito transitório
1. Comentando o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias pro-
mulgado com a Constituição de 1946, afirmou Pontes de Miranda, depois de
recordar que os dispositivos permanentes das Constituições incidem desde
a sua promulgação.
Escreveu, então, textualmente:
Se o legislador constituinte prefere que se regule a transição, cabe-lhe di-
zê-lo explicitamente, ou, pelo menos, implicitamente.

E, referindo-se ao que antes comentara, consignou, verbis:


À Constituição têm de amoldar-se as leis, assim as leis a serem feitas, as
leis futuras, como as leis já promulgadas. Mas a noção de constitucionalidade
é, juridicamente, a partir do momento em que começa a ter vigor a Consti-

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tuição; (...). (Comentários à Constituição de 1946, IV, H. Cahen, p. 230 e 17,
respectivamente)

Esse, de resto, é o ensinamento dos doutrinadores.

2. Não encontrei, na Constituição vigente, disposição expressa afir-


mando o princípio da continuidade legislativa ordinária, ou seja, da ma-
nutenção das leis ordinárias preexistentes. Diversamente ocorreu com as
Constituições de 1891 e 1934, arts. 83 e 187, respectivamente, ambas se
tornando expressas.
Mas é evidente que perdura dita legislação, desde que não se oponha
às normas constitucionais que, após seu advento, passaram a viger.
Nesse sentido, preciosa a lição do Mestre A. Esmein, in Éléments de
Droit Constitutionnel, 7. ed., Recueil Sirey, Paris, 1921, Tomo 1º, p. 580, ver-
bis:
Mais si les Constitutions ont été alors considérées comme tombant en bloc
et de plein droit, la doctrine française a sauvé certaines de leurs dispositions
par un système ingénieux et fort raisonnable. Malgré les révolutions, malgré
les changements opérés dans la forme de l’Etat, les lois ordinaires subsistent,
nous le savons, tant qu’elles n’ont pas été explicitement ou implicitement
abrogées par des lois nouvelles.

3. Dessarte, existente o serviço de assistência judiciária nos estados,


segundo legislação e disciplina próprias, inclusive no Rio Grande do Sul, como
já ficou esclarecido, com a invocação da monografia específica, o certo é que
sobre tais instituições passaram a incidir as vigentes disposições constitucio-
nais permanentes, ou seja, as dos arts. 134 e 135.
É de convir, entretanto, que tais normas constitucionais não são de
eficácia plena, no sentido atribuído pela moderna linguagem doutrinária
(José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, RT, 1968,
p. 94), mas parcial.
E isso porque, em face do disposto no parágrafo único do citado art.
134, a organização da Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos
territórios, bem como as prescrições para a respectiva organização nos esta-
dos, ficou na dependência de lei complementar, para a qual nenhum prazo
foi fixado.
A eficácia, pois, das comentadas normas constitucionais teve sua ple-
nitude reduzida ou limitada aos direitos, às garantias, às vantagens e às ve-
dações que, desde logo, instituíram, os quais foram insertos nos já referidos
arts. 134, seu parágrafo único, e 135.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 15


5. O que importa, porém, e cumpre ser bem positivado, é que, porque
expressas as determinações para as leis complementares federal e estadual,
no que se refere à carreira, bem como às garantias, aos direitos, às vantagens
e às vedações de seus integrantes, elas jamais poderão afastar-se de tais
determinações, pois, se acaso em tais faltas incorressem, seriam elas, nas
partes violadas, de todo inconstitucionais, e, como tais, nulas, sem qualquer
eficácia.
É o que têm afirmado os doutrinadores (Geraldo Ataliba, Lei comple-
mentar na Constituição, RT, 1971, p. 8 e segs.).
C) Do vigente Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
1. As questões jurídicas até agora versadas consideraram, quase que
exclusivamente, temas pertinentes à controvérsia, mas emergentes de nor-
mas permanentes da Constituição.

2. Todavia, não poderiam os constituintes, como sucedeu a constituin-


tes que lhes precederam, deslembrar-se da ordem jurídica, seja constitucio-
nal, seja legal, seja mesmo de fato, que encontraram, regulando situações
concretas.
Por isso mesmo é que de tais situações cuidaram no respectivo ato, o
Das Disposições Constitucionais Transitórias.

3. O vigor jurídico de suas disposições é o mesmo que o da própria


Constituição.
A diversidade entre elas reside na sua própria denominação. Como
transitórias, exaurem-se, em regra, no tempo, ou satisfeitas as condições
que estatuíram.
As outras, porque permanentes, vigorarão até que, eventualmente,
venham a ser alteradas por terceiras, porém, da mesma índole.
Daí porque, entre normas diversas e variadas do ato em questão, ad-
veio a que consta de seu art. 22.

4. Posto que transcrito inicialmente, porque decisivo à solução da con-


sulta, é de conveniência repeti-lo.
Diz, verbis:
Art. 22 – É assegurado aos defensores públicos investidos na função até
a data de instalação da Assembleia Nacional Constituinte o direito de opção
pela carreira, com a observância das garantias e vedações previstas no art.
134, parágrafo único, da Constituição.

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5. Como já ficou esclarecido anteriormente, a Defensoria Pública, ins-
tituída pela Constituição, no art. 134, compreendeu o serviço de assistência
judiciária, ampliando-o, em face da invocação feita a seu art. 5º, LXXIV.

6. Assim, a denominação única de “defensores públicos” passou a ser


não somente a daqueles investidos em tais cargos ou funções e dos assisten-
tes judiciários, em conformidade com a legislação local preexistente, mas
de todos aqueles designados para o desempenho do serviço de assistência
judiciária, como assistentes.

7. Em tais condições, a designação dos mandatários do consulente,


posto tivessem sido eles designados para o serviço de assistência judiciária,
como assistentes, em verdade, pela nova denominação constitucional, são
eles os próprios defensores judiciais, e, como tais, compreendidos na ampli-
tude do citado art. 22.

8. Não precisou o preceito em questão a forma ou o título para a in-


vestidura, o que faz dispensar, no particular, quaisquer considerações, sendo
certo, evidentemente, que não seria ela ilícita, fraudulenta ou criminosa.
Duas, apenas, foram as condições que, expressamente, impôs àqueles
que se dispusessem a usufruir os direitos, as garantias e as vedações que
estatuiu. São elas, as condições: 1ª – investidura nas funções de defensor pú-
blico até a data da instalação da Assembleia Nacional Constituinte, ou seja,
01 de fevereiro de 1987; e 2ª – manifestarem opção pela carreira já instituída
e anteriormente comentada. A fixação da data aludida encontra justificativa
no disposto no art. 18 do ato em apreciação.

9. Do que ficou exposto, resulta que, satisfeitos pelos interessados os


requisitos já aludidos, a eles assegurado ficou o direito à carreira de defenso-
res públicos, com os demais direitos, garantias e vedações previstos no art.
134, parágrafo único, da Constituição, como expresso no já transcrito art. 22.

10. Considero que a “opção pela carreira”, na expressão da norma,


importou no direito de nela, carreira, ingressar, independentemente de con-
curso, ou exigência outra, na classe inicial.
Não fora assim, sem sentido ficariam a investidura, o prazo e a opção exi-
gidas, pois o concurso público imposto para o início de carreira se ofereceria
igual aos demais concorrentes (parágrafo único do art. 134), sem aqueles requi-
sitos. E não foi esse, claramente, o propósito consubstanciado no citado art. 22.

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11. De outra parte, posto que ainda não organizado segundo os parâ-
metros estatuídos na Constituição o serviço da Defensoria Pública nos esta-
dos, os quais ficaram na dependência de lei complementar federal, não me
parece curial possam os interessados que já tenham satisfeito os requisitos
comentados ser afastados ou distraídos do serviço em questão, tanto mais
que, a partir da sua organização, gozarão eles da própria inamovibilidade.

12. Disporiam eles, então, de certa estabilidade na função; uma es-


tabilidade especial ou extraordinária, pois foi o próprio Ato das Disposições
em estudo que, considerando a situação concreta que encontrou, procurou
afeiçoá-la à Defensoria Pública que instituíra segundo norma permanente,
art. 134, e por meio de seu art. 22.
E foi assim que procedeu, por intermédio de disposições outras do
mesmo ato, como se verifica ante o que se lê nos arts. 19, 21, 23, 29, §§, e
outros.

13. É conhecida a lição dos administrativistas, recolhida pelo mestre


Hely L. Meirelles, no pertinente à estabilidade no serviço público, com os
atributos que especifica (Direito Administrativo brasileiro, RT, 1977, p. 407).
Essa seria a estabilidade normal, decorrente de disposições constitu-
cionais permanentes ou leis esparsas.
Aquela assegurada aos mandatários do consulente é especial, extraor-
dinária, como se disse, porque emergente de norma constitucional também
excepcional, específica, transitória.

14. Outrossim, considero, como o nobre consulente, que existe algu-


ma afinidade entre o disposto no comentado art. 22 e no art. 208 da Consti-
tuição precedente, com a redação que lhe foi atribuída pela Emenda 22/82.

15. Buscaram ambas, por meio de normas transitórias, dar solução ju-
rídica e justa a situações funcionais concretas, surpreendidas pela nova or-
dem constitucional instituída.

16. Estatuíram elas, igualmente, condições ou requisitos que se casam


perfeitamente: a investidura dos beneficiários e a circunstância do tempo.
Todavia, diferem no tocante aos direitos que conferiram. Aos ajudan-
tes referidos no citado art. 208, proporcionou a efetivação no cargo de titu-
lar da serventia vaga; enquanto que, aos defensores públicos, ensejou não
somente o direito de ingresso na carreira instituída, independentemente de

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concurso, mas, por força de compreensão, a estabilidade especial ou extra-
ordinária.

17. A primeira justifica o direito do ajudante de ser nomeado em cará-


ter efetivo para a serventia, porque existia o cargo e ocorrera a vaga.
Quanto à segunda, não há falar em efetividade ou efetivação, porque
inexistentes os próprios cargos, mas apenas respectivas funções.
É de crer que, ao ensejo da organização do serviço, venham a ser cria-
dos, no mínimo, tantos cargos quantos sejam os defensores na situação dos
interessados, ou seja, cargos iniciais da carreira.
Ao adaptar-se a Constituição do Estado de Pernambuco à Carta Fede-
ral de 1967, no pertinente a seu art. 177, § 2º, assim se procedeu, por meio
de seu art. 229, § 2º, como consta do voto que proferi, perante o Plenário do
STF, ao ser julgado o RE 67.377, daquele estado (RTJ 53, p. 548-9).

18. Por último, considero de absoluta correção jurídica o uso da ação


declaratória positiva para assegurar o direito dos mandatários do consulen-
te. Tem ela seguro arrimo no art. 4º do CPC vigente, como, de resto, já dispu-
nha o Estatuto Processual de 1939.
Versadas que foram todas as questões emergentes do comentado art.
22, pela exegese e pelo alcance que se lhe atribuíram, cabe, apenas, encerrar
este parecer respondendo, objetivamente, os numerosos quesitos propostos.
É o que passo a fazer.
IV Respostas às questões propostas
1ª) Sim, o art. 22 do ADCT garante o ingresso na carreira de Defensor
Público, independentemente de concurso, a todo servidor investido na fun-
ção respectiva, desde que tal haja ocorrido anteriormente à instalação da
Assembleia Nacional Constituinte e por dita carreira tenha optado.
2ª) Não, esse direito de ingresso assegurado pela CF deverá ser obriga-
toriamente respeitado pelas leis complementares a serem editadas.
3ª) Não, não poderá o estado, enquanto não editada a lei complemen-
tar regulamentando a carreira, dispensar o servidor do exercício das funções
de Assistente Judiciário.
4ª) Sim, os servidores cedidos à Procuradoria-Geral do Estado, com
vínculo estatutário ou celetista, que foram designados para exercerem as
funções de Assistente Judiciário (Defensor Público), mediante portaria, pelo
Procurador-Geral do Estado estão abrangidos pela disposição constitucional
(art. 22 do ADCT).

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 19


5ª) Sim, os servidores detentores de cargo em comissão do quadro
da Procuradoria-Geral do Estado, mas que, desde a posse, foram expressa-
mente designados pelo Procurador-Geral para terem exercício na assistência
judiciária também estão abrangidos pelo aludido dispositivo constitucional,
desde que tenham satisfeito as exigências do quesito primeiro.
5ª-A) Sim, a exoneração de tal servidor, após a promulgação da Carta,
constitui-se em ato arbitrário e ilegal da autoridade.
6ª) Sim, pode o Judiciário, na ação competente, e mesmo antes que
seja editada a legislação complementar reguladora da carreira de Defensor
Público, declarar que todo e qualquer servidor que tiver sido investido nas
funções de Assistente Judiciário anteriormente à instalação da Assembleia
Nacional Constituinte tem direito de ingressar na aludida carreira, bastando
para isso a sua opção.
7ª) Sim, o art. 22 do ADCT teve por escopo regularizar uma situação
funcional existente e reconhecida, como é o caso do desvio de função.
8ª) Não, o art. 22 do ADCT não pressupõe, para o ingresso dos servido-
res a que ele se refere, a prévia realização de concurso público.
8ª-A) Não, não poderá a lei complementar, federal ou estadual, exigir
para tais servidores a prestação de dito concurso para ingressar na carreira.
9ª) Não, o art. 22 do ADCT não estabelece a efetividade no cargo a ser
criado de Defensor Público para todos os que foram investidos na função
até a data da instalação da Assembleia Nacional Constituinte, uma vez que
tenham optado pela carreira; dependerá ela, a efetividade, da organização
da carreira, quando então serão criados os respectivos cargos.
9ª-A) Sim, há certa similitude entre tal dispositivo e o art. 208 da Cons-
tituição anterior.
10ª) Sim, é de presumir que a lei complementar estadual deva criar,
no mínimo, tantos cargos quantos forem os servidores que tiverem optado
pelo ingresso na carreira, desde que investidos na função de Assistentes Ju-
diciários antes da instalação da Assembleia Nacional Constituinte.
11ª) Sim, sendo a Unidade de Assistência Judiciária, no Estado do Rio
Grande do Sul, setor integrante da Procuradoria-Geral do Estado, é o Procu-
rador-Geral a autoridade competente para designar, mediante portaria, os
servidores pertencentes ao órgão e os cedidos para exercerem as funções de
Assistente Judiciário.
É o parecer.
Porto Alegre, 27 de março de 1989.

20 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


O jurista Eloy José da Rocha*1*
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz
Desembargador Federal e Presidente do TRF da 4ª Região

“Gosto de repetir que a justiça é valor eterno, de que, em relação às coisas


da terra, o juiz é depositário e administrador privilegiado, por vontade do
Juiz Justo, o Senhor de todos os bens. Acredito que essa é, no fundo, a expli-
cação da vocação e da missão do juiz.
Condição essencial do progresso e do bem-estar social, e, assim, de vida
humana digna, é o respeito desse valor. Deve ser por isso que se lê, nas
­Escrituras, que a justiça exalta as nações.”
Ministro Eloy José da Rocha
Cabe-me, inicialmente, agradecer ao ilustre Professor José Felipe Le-
dur, Diretor da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho – 4ª Região, e
o faço com profundo desvanecimento, a honra deste convite para participar
das homenagens ao insigne Ministro Eloy José da Rocha, que tanto dignificou
o Poder Judiciário e as letras jurídicas da nação brasileira.
No dia 03 de junho de 1907, na cidade de São Leopoldo, no Estado do
Rio Grande do Sul, nasceu Eloy José da Rocha.
Na capital de seu Estado, Porto Alegre, realizou os seus estudos, tendo
concluído o curso de Direito na tradicional Faculdade de Direito de Porto
Alegre, em dezembro de 1928.
Desde fevereiro de 1928, como permitia a legislação então em vigor,
desempenhou as funções de Juiz Distrital, já naquela época revelando a sua
vocação à magistratura.
A partir de 1930, devotou-se, com notável êxito, à advocacia, tendo,
inclusive, sido membro do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Se-
ção do Rio Grande do Sul, no período compreendido entre março de 1939 e
março de 1943.
Desde cedo, dedicou-se ao magistério superior, primeiramente na
Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas de Porto Alegre, da Pontifícia
Universidade Católica, onde, nos anos de 1931 e 1932, regeu as cadeiras de
Direito Comercial, Direito Civil e Direito Constitucional e, a partir de 1933,
fixou-se na cadeira de Legislação Operária e Direito Industrial, atualmente,

*1
Conferência proferida na Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho – 4ª Região, em
Porto Alegre, na data de 12.11.2015.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 21


Direito do Trabalho.
Em maio de 1939, mediante concurso de provas e títulos, conquistou
a cátedra de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito de Porto Alegre,
integrante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo apresenta-
do como tese a clássica monografia A extinção do contrato de trabalho no
Direito brasileiro.
Na mesma Faculdade de Direito, no ano de 1942, regeu, em substitui-
ção, a cadeira de Direito Comercial.
Nos anos de 1952 a 1957, foi professor da disciplina de Direito do
Trabalho na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul.
Em outubro de 1952, indicado em lista tríplice, foi nomeado pelo Pre-
sidente da República Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul, obtendo a sua consagração no âmbito acadêmico,
pois o seu renome extravasara as fronteiras do seu Estado.
Trabalhador infatigável, dedicou-se intensamente à advocacia e ao es-
tudo do Direito, sendo raras as causas intrincadas no foro de Porto Alegre
que não contaram com parecer seu, tendo por vezes sem conta frequentado
a tribuna do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, deixando sempre regis-
tradas suas magistrais qualidades de expositor e mestre do Direito.
Com o fim do Estado Novo, foi eleito Deputado Federal na legislatura
iniciada em 1946, participando da Assembleia Nacional Constituinte destina-
da a elaborar a nova Carta Política, oferecendo, nessa ocasião, numerosas
emendas ao projeto de Constituição, em especial aquelas destinadas ao apri-
moramento do capítulo do Poder Judiciário e aos princípios sobre o trabalho.
Em março de 1947, foi convidado a ocupar o cargo de Secretário da
Educação e da Cultura do Rio Grande do Sul, sendo marcante a sua atuação,
em face da larga experiência no magistério superior.
Em abril de 1953, foi nomeado Desembargador do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, na vaga destinada a advogado, trazendo para essa
Corte a experiência do professor, do advogado, do jurista, não lhe faltando
sequer a vivência política, pois fora Deputado Federal e Secretário de Estado.
A respeito dessa rica trajetória do Ministro Eloy da Rocha, melhor
e mais autorizadamente a destacou o saudoso Ministro Carlos Thompson
Flores, no discurso que proferiu em nome do Supremo Tribunal Federal por
ocasião da posse do nosso homenageado na presidência da Corte Suprema,
verbis:
Antes de terminar o curso na Faculdade de Direito, exercia as fun-
ções de Juiz Distrital. Já naquela época revelava a sua dedicação à

22 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Justiça, a preocupação pelo respeito à ordem jurídica, destacando-se
a sua atuação na defesa dos menores, lutando pela aplicação da lei,
que os amparava e defendia. Mostrou, então, a sua bravura cívica e o
destemor com que defendia a justiça. Embora tivesse nítida vocação
para a magistratura, as circunstâncias o conduziram por outros cami-
nhos. Advogado de reputação firmada, resolveu candidatar-se a uma
cátedra na Faculdade de Direito, tendo escolhido Direito do Trabalho,
que conquistou em concurso. Nas aulas manifestou, logo, a sua inco-
mum aptidão para a análise, sendo um exegeta nato, e a habilidade na
construção jurídica, revelando as riquezas, imperceptíveis ao primeiro
exame, da disciplina que versava. No juízo dos alunos, em sucessivas
gerações de estudantes é considerado como dos maiores professores
que têm lecionado na Faculdade de Direito da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, tão pródiga em grandes mestres. A experiência
do professor de Direito não se limitou à cátedra e à advocacia. Foi
constituinte em 1946, colaborando ativamente na confecção da Mag-
na Carta. A passagem pelo Parlamento ampliou-lhe a visão sobre os
problemas nacionais, permitiu-lhe contato com representantes de
outras regiões do país, de outras idéias, e examinar os problemas ju-
rídicos sob o ponto de vista do legislador. Isso deve ter-lhe revelado a
necessidade da colaboração dos três poderes para a solução dos pro-
blemas nacionais, sobretudo depois que exerceu funções executivas
como Secretário de Estado e as judicantes, como juiz deste Tribunal.
Cada um dos poderes tem um modo de considerar o que interessa à
nação e ao povo, e a maneira de encarar e focar as questões à luz de
outra experiência e de outro ângulo faz imprescindível a colaboração
dos três, para a retificação dos caminhos desgarrados e a descoberta
das soluções acertadas. Visando todos ao bem comum, respeitando
a ordem jurídica, tendo presentes os interesses da nação e o bem do
povo, naquela harmonia determinada na Constituição, cumprirão o
papel que a ordem jurídica lhes atribui e concorrerão para que o país,
dentro da democracia, construa um Estado onde impere a Justiça, e a
felicidade dos brasileiros seja o objetivo comum.
Com essa vivência da coisa pública, foi Vossa Excelência convocado
para servir neste Tribunal.1
O alto conceito que granjeou como magistrado concorreu para que
fosse nomeado, em 22 de agosto de 1966, pelo Presidente Castello Branco,
Ministro do Supremo Tribunal Federal, na vaga decorrente da aposentadoria
do Ministro Carlos Medeiros Silva, que acabara de ser nomeado Ministro da
Justiça, com a finalidade de elaborar o projeto da Constituição de 1967.

1
In Supremo Tribunal Federal. Posses presidenciais: 1962 – 2004. Brasília, 2004. p. 115.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 23


No Supremo Tribunal Federal, o eminente Ministro Eloy da Rocha con-
firmou o alto conceito que trazia de sua província natal, projetando-se como
magistrado e mestre do Direito em todo o Brasil.
Acerca de seus atributos como julgador, rememorou o eminente Mi-
nistro Adalício Nogueira, em suas conhecidas memórias, verbis:
Todos quantos o conheceram neste último Tribunal ou foram
testemunhas do correto desempenho com que ele preencheu a sua
árdua missão de magistrado atestam a austeridade e o escrúpulo
refletidos na seriedade das suas decisões. Minucioso, metódico e
cuidadoso, quando as proferia, ele nos infundia a todos a convicção
de que elas eram o fruto amadurecido de um estudo acurado e de
uma elaboração conscienciosa. Eloy da Rocha buscou sempre pau-
tar o seu comportamento dentro dos estritos limites da decência e
da compostura. Participando, em certo período, da 2ª Turma, a que
eu então presidia, pude presenciar, de perto, esses nobres atribu-
tos, que lhe ataviam a inteligência e o caráter. Figura exponencial da
cultura jurídica do Rio Grande do Sul, que tantos exemplares desse
jaez tem oferecido ao país, ele soube guardar fidelidade a essa bela
tradição da sua terra natal, para onde, dentro em breve, volverá,
envolto na tranqüilidade de espírito, que é o justo prêmio dos que,
no decorrer da vida privada e profissional, se consubstanciam com os
ditames imperecíveis do dever.2
Para o Ministro Eloy da Rocha, homem profundamente religioso,
toda e qualquer ofensa a um direito perturba a ordem ideal que o le-
gislador pretendeu implantar nas relações humanas, constituindo uma
dissonância, uma quebra do ritmo da ordem jurídica que ao juiz incumbe
restabelecer o mais depressa possível, consoante o magistério clássico de
João Monteiro.
Esse é o drama judiciário, cabendo ao magistrado proceder não como
insensível e frio aplicador mecânico de dispositivos legais, mas como órgão
de aperfeiçoamento desses, verdadeiro intermediário entre a letra morta
dos códigos e a realidade do quotidiano que se projeta naquela, incumbindo
ao juiz a função quase divina de adaptar os textos legais às espécies ocorren-
tes, tornando efetivas as garantias insculpidas nas constituições e nos textos
legais para que se possa realizar a verdadeira Justiça.

2
NOGUEIRA, Adalício C., in Caminhos de um magistrado. Rio de Janeiro: José Olympo/MEC,
1978. p. 129.

24 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Nesse sentido, os reclamos de Gustav Radbruch,3 Rupert Schreiber,4
Theodor Viehweg5 e Gaston Morin.6
A propósito, Antoine Garapon, Julie Allard e Frédéric Gross, em obra já
consagrada, após o cuidadoso exame das qualidades necessárias à formação
do magistrado, anotam, verbis:
Le juge doit exercer une fonction qui fut longtemps réservée aux
dieux, une tâche surhumaine en quelque sorte, puisqu’il doit distinguer
le faux du vrai, le juste de l’injuste et surtout administrer une souffran-
ce rédemptrice sous la figure de la peine (ce qui le rendait encore hier
maître de la vie, em raison de la persistance très tardive de la peine de
mort). Le juge doit non seulement pacifier les rapports d’ici-bas mais
aussi entretenir l’ordre du monde, nous réconcilier avec l’au-delà, ce
qui explique que la justice humaine se soit longtemps adossée à une
justice supra-humaine.7
Desde a sua passagem pelo Parlamento, como deputado constituinte
em 1946, o Ministro Eloy da Rocha empenhou-se pelo aperfeiçoamento do
Poder Judiciário, reivindicando um papel de liderança do Supremo Tribunal
Federal nesse processo, inclusive o de ser ouvido na reforma judiciária.
Em seu discurso de posse na presidência do Supremo Tribunal Federal,
em 09 de fevereiro de 1973, enfatizou, verbis:
Tem começo, entre nós, a revisão da legislação, de que são exem-
plos os novos Códigos. No esforço do Ministério da Justiça em promo-
ver essa elaboração legislativa, não se descobre só a capacidade téc-
nica do departamento governamental, mas uma tomada de posição,
em face do ceticismo jurídico reinante. Certo, há muito que fazer, mas
vale, sobretudo, desde já, e por si, o ato de fé do direito.
A par das regras do progresso, que estão sendo modificadas, pro-
põem-se relevantes problemas de reestruturação dos órgãos judici-
ários. Diante deles não se podem omitir os que detenham qualquer
parcela de responsabilidade.
Ao lado dos outros poderes, na tarefa de reforma, na renovação
nacional, precisa e quer inserir-se, no que lhe diz respeito, o Poder
Judiciário, como um dos três poderes da União, independentes e har-

3
RADBRUCH, Gustav, in Introduzione alla scienza del Diritto. Traduzido por Dino Pisani.
Torino: G. Giappichelli. p. 362-3.
4
SCHREIBER, Rupert, in Logic des Rechts. Berlin: Springer-Verlag, 1962. p. 92-5.
5
VIEHWEG, Theodor, in Topik und Jurisprudenz. München: Verlag C. H. Beck, 1953. p. 22-5 e
32-6.
6
MORIN, Gaston, in La Revolte du Droit contre le Code. Paris: Recueil Sirey, 1945. p. 114-5.
7
GARAPON, Antoine, in Les vertus du juge. Paris: Dalloz, 2008. p. 12.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 25


mônicos. Desafia a capacidade dos reformadores a complexidade da
organização e das funções do Poder, que abrange, além do Supremo
Tribunal Federal, o Tribunal Federal de Recursos e os juízes federais, os
Tribunais Superiores e os diferentes órgãos das justiças especializadas,
Militar, Eleitoral e do Trabalho, os tribunais e juízes estaduais.
Desde a Constituinte de 1891, clama-se pelo aperfeiçoamento do
Poder Judiciário, que é condição de sobrevivência dos direitos e das
instituições. Não há originalidade no registro da necessidade de mo-
dificar a estrutura do Poder Judiciário. No que se relaciona, particular-
mente, com esta Corte, guarda da Constituição e da uniformidade de
interpretação do direito federal, magistrados, advogados, professores
e homens de governo têm tratado, nos últimos trinta anos, do que se
chamou a crise do Supremo Tribunal Federal, isto é, o aumento in-
vencível da quantidade de processos submetidos a seu julgamento.
Merecem citação, dentre outros preciosos estudos, os recentes, de
dois mestres de Direito Processual: o do eminente Ministro e Profes-
sor Amaral Santos, em conferência realizada a 12 de agosto de 1969, e
o do eminente Ministro da Justiça, Professor Alfredo Buzaid, em Estu-
dos de Direito. Não tem havido, sempre, coincidência das sugestões,
mas em um ponto parece que não há discrepância: a necessidade de
reforma, para dotar a Justiça de instrumentos eficazes. A sobrecarga
dos processos verifica-se na generalidade dos tribunais e em todos os
graus de jurisdição.
Sem dúvida, o aperfeiçoamento do Poder Judiciário vem sendo
procurado, com relação tanto à competência como à organização do
Poder, nas Constituições de 1946, 1967 e 1969. Assim, criou-se, na
Constituição de 1946, o Tribunal Federal de Recursos. Restabeleceu-
se, pelo Ato Institucional nº 2, de 1965, a Justiça Federal de primeira
instância. A Constituição de 1967 conferiu ao Supremo Tribunal Fe-
deral o poder de regular, em seu regimento interno, o processo e o
julgamento dos feitos de sua competência originária ou de recurso. A
essa competência, a Constituição de 1969 acrescentou a de indicar, no
mesmo regimento, atendendo à sua natureza, espécie ou valor pecu-
niário, as causas em que é admissível recurso extraordinário pelas le-
tras a e d. A mesma Constituição de 1969 deu aos Tribunais de Justiça
dos Estados o poder de dispor, em resolução, pela maioria absoluta de
seus membros, sobre a divisão e a organização judiciárias.
São objetivos vitais a reestruturação dos órgãos judiciários, como a
regulação do status do juiz, em complementação a princípios constitu-
cionais. Deverão ser aprimoradas ou instituídas regras que atendam,
a um tempo, à independência como à aptidão e à responsabilidade do
magistrado, e em que se lhe assegure posição moral e material con-
digna.

26 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Nos grandes Estados, e assim nos pequenos, por motivos que po-
dem variar, angustiante problema é o do recrutamento dos juízes, em
número suficiente e com aptidão adequada. O mesmo progresso atrai
os juristas para outras áreas profissionais. É preciso pensar no recru-
tamento e na formação de juízes, quando se avolumam e se tornam
mais difíceis as suas funções, de cujo bom desempenho tanto depen-
dem os direitos dos homens e os interesses do Estado.
Os mesmos serviços administrativos dos órgãos judiciários preci-
sam atualizar-se, mediante adoção de novos métodos e técnicas de
trabalho, com aproveitamento de recursos da automatização, espe-
cialmente, com referência à informação.
Certamente, não estou esboçando um plano objetivo de reforma
do Poder Judiciário, que não teria oportunidade neste pronunciamen-
to. Estou, apenas, fazendo referências gerais sobre aspectos que ilus-
tram a urgência da reforma, para acudir às solicitações de ajustamen-
to dos órgãos judiciários às novas realidades.
Se o Poder Judiciário não tem, sempre, a iniciativa, ele terá, ainda
assim, condições, que lhe são próprias, para representação ou suges-
tão aos outros poderes, e tanto mais que existe, na realidade, entre
eles e o Poder Judiciário a harmonia, de que cuida a Constituição.
Acentuo, não sou pessimista. Seria erro minimizar o que há de po-
sitivo na nossa Justiça, na sua organização e no seu funcionamento.
Nem se pense que, no confronto com o Poder Judiciário de outras
nações, mesmo daquelas que se têm por mais adiantadas, feitas as
compensações, o resultado nos seja desfavorável. Em maior ou me-
nor grau, e não esquecidas as peculiaridades locais, os problemas são
universais.8
Com vasta experiência na vida pública, consagrou-se a um verdadeiro
sacerdócio judicial e, ademais, era o saudoso Ministro Eloy da Rocha dotado
de admirável talento analítico, dissecando e interpretando a Constituição e
os textos normativos, esquadrinhando os fatos da causa com minúcia, reco-
nhecendo a comunidade jurídica as suas altas virtudes de magistrado, culto,
justo, exegeta sem igual, merecedor do respeito dos jurisdicionados e do
orgulho de todos os rio-grandenses.
Nos quase 11 anos em que pontificou no Supremo, legou-nos uma ju-
risprudência que versou, com mão de mestre, todos os problemas de direito
público e privado.
Nesse sentido, impõe-se destacar alguns de seus votos que espelham
essas qualidades do notável juiz.

In Op. cit., p. 128-130.


8

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 27


Ao julgar o RE nº 67.653-GB, o Supremo Tribunal Federal deparou-se,
pela primeira vez, com o exame da constitucionalidade da cláusula de não
concorrência no momento da extinção do contrato de trabalho.
Em seu precioso voto, disse, verbis:
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: – Mas o problema é velho. Carvalho
de Mendonça, no Direito Comercial, estudou a chamada cláusula de
concorrência, ou de não concorrência.
Cuida-se, aqui, de comportamento após o contrato de trabalho.
A conduta do empregado, durante o contrato, a respeito de questão
análoga, é prevista na Consolidação das Leis do Trabalho, art. 482, le-
tras c e g. Na letra c, veda-se atividade do empregado que possa im-
portar ato de concorrência ao empregador. Na letra g, inclui-se como
uma das faltas graves do empregado a violação de segrêdo da em-
prêsa. A cláusula ou pacto de não concorrência refere-se a período
posterior.
Merece ser considerada, a propósito, a lição de Carvalho de Men-
donça (Tratado de Direito Comercial brasileiro, v. II, edição de 1911,
n. 462, p. 462-463):
“Dissemos que podiam ser estipuladas no contrato de emprêgo no
comércio obrigações de natureza particular.
A êsse respeito aparece a questão: é lícito o pacto pelo qual o pre-
posto se obriga a, quando despedido, não se empregar em outra casa,
que explore indústria idêntica ou a não exercer a profissão comercial?
Êsse pacto é de ordinário chamado cláusula de concorrência.
Conforme a opinião radical êste pacto é nulo por ofender a liber-
dade de trabalho e de comércio, garantida constitucionalmente. Êle
obrigaria o preposto a trabalhar forçadamente na casa do preponen-
te, pois o privaria dos meios de prover honestamente a subsistência.
A ordem pública repeliria êsse pacto, que importa na condenação à
ociosidade.
Outra opinião, porém, conciliando os interêsses do preposto com
os do preponente, é pela validade do pacto, desde que limitado no
tempo e no espaço.
O que se não pode admitir em absoluto é a restrição perpétua,
que evitaria o livre progresso e o melhoramento individual e privaria
o direito à existência. O direito ao trabalho não é outra coisa que o
direito à vida.
O pacto pode ser tolerado uma vez que não inutilize o futuro do
preposto. Para a sua validade são essenciais as limitações de lugar e
de tempo, sendo, quanto a êste, bom critério não exceder o período
da duração efetiva do contrato.”

28 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Em atenção ao princípio constitucional de liberdade de trabalho,
ou ao direito ao trabalho, não será admissível cláusula de não concor-
rência, sem tais limitações. Não será lícito impedir o empregado de
exercer determinada atividade, sem limitação de tempo e espaço. É
claro que a limitação se restringirá, igualmente, ao objeto de atividade
do empregado.
E, mais adiante, concluiu, verbis:
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: – No caso, a discutida cláusula atende
a alguns dos requisitos para validade. Assim, restringe a proibição a
cinco anos e ao mesmo ramo de atividade da empregadora. Mas não
escapa à censura, no tocante ao espaço. O empregado “obriga-se a
não trabalhar, nem no Brasil, nem no estrangeiro (...)”. Quer dizer, em
parte alguma. Naturalmente, a questão do espaço deve ser apreciada,
hoje, em face das comunicações modernas, diferentemente do que
acontecia à época de Carvalho de Mendonça.
O Projeto de Código do Trabalho, de 1965, inscreve preceito sôbre
“pacto de exclusão de concorrência” – art. 642. O pacto, celebrado
por escrito, deverá estipular indenização ou compensação mensal, du-
rante o prazo de sua vigência, a favor do empregado e estabelecerá
limites de objeto, tempo e lugar.
O Tribunal Superior do Trabalho não contrariou a Constituição, ao
julgar inválida a cláusula, como estipulada, por incompatível com a li-
berdade de trabalho.9
Certa vez, em que veio à tona o problema dos pressupostos da re-
trocessão na desapropriação, proferiu, no RE nº 64.559-SP, erudito voto em
aresto que possui a seguinte ementa, verbis:
Desapropriação. Pretensão do expropriado à requisição do imóvel,
ou ao pagamento de perdas e danos.
– Contróversia sobre o direito de retrocessão, no sentido de direito
de reaquisição, ou de preempção legal. Aplicação do art. 1.150 do Có-
digo Civil. Natureza do direito regulado nesse dispositivo.
– Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre inexistência
do direito de retrocessão, ou de preempção legal, quando, modificada
a destinação primitiva, declarada no ato expropriatório, a coisa desa-
propriada ainda for empregada para fim de utilidade pública, isto é,
quando a destinação não perder a característica de utilidade pública.
– Desvio da finalidade da desapropriação. Não pode o expropriante
transferir a particular, sob qualquer título, o domínio ou uso do bem,

9
In DJ de 03.11.1970, p. 5.294. Nesse sentido é a melhor doutrina: Y. Serra, in L’obligation de
non concurrence. Paris: Sirey, 1970. p. 159. n. 175.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 29


com prejuízo da desapropriação fundada na necessidade ou utilidade
pública.
– O fato da não utilização da coisa expropriada não caracteriza, só
por si, independentemente das circunstâncias, desvio do fim da desa-
propriação.
– O disposto no art. 1.157 do Código Civil não se aplica ao direito
regulado no art. 1.150.
– Intervenção dos herdeiros, como litisconsortes, em ação propos-
ta pela viúva meeira e inventariante da herança do expropriado.
– Recurso conhecido e provido parcialmente.10
Ao julgar o RE nº 82.881-SP, firmou importante precedente a respeito
do direito adquirido à qualificação jurídica do tempo de serviço.
Nessa ocasião, disse, verbis:
O meu entendimento é antigo. Quando Desembargador do Tri-
bunal de Justiça do Rio Grande do Sul, examinei questão idêntica, no
Mandado de Segurança 126, concedido, por maioria de votos, em ses-
são plenária de 17.08.1953 (Revista Jurídica do Rio Grande do Sul,
11/128-131). A impetrante teve exercício, como professora de escola
de nacionalização, no período de 27.03.1939 a 15.12.1944. O tempo
de serviço nas escolas de nacionalização considerava-se prestado no
magistério público e era “computado em dobro, para todos os efei-
tos legais”, segundo disposição legal então vigente, somente revoga-
da por Dl. de 31.12.1942, data da revogação da lei que lhe conferira
aquele direito.
O princípio é este: realizado, completamente, o fato que a lei man-
da computar como tempo de serviço público, o direito dele resultante
incorpora-se, desde logo, no patrimônio do servidor público, indepen-
dentemente da atualidade de outros direitos. Lei posterior não pode-
rá dar como inexistente o fato, ou tirar-lhe a qualificação de serviço
público.
Regras constitucionais poderão ilustrar a discussão. A Constituição
Federal dispõe: “Art. 104 – O funcionário público investido em man-
dato eletivo federal ou estadual ficará afastado do exercício do car-
go e somente por antiguidade será promovido. § 1º – O período do
exercício de mandato federal ou estadual será contado como tempo
de serviço apenas para efeito de promoção por antiguidade e apo-
sentadoria”. Será possível que, revogada essa regra constitucional, se
despreze, no tempo de serviço público, atividade exercida de acordo
com a norma então vigente? Conforme o art. 102, § 3º, da Constitui-
ção, o tempo de serviço público federal, estadual ou municipal será

In RTJ 57/46.
10

30 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


computado integralmente para os efeitos de aposentadoria e dispo-
nibilidade, na forma da lei. Magistrado federal, que foi juiz estadual,
averba o tempo de serviço prestado neste cargo, para disponibilidade
ou aposentadoria naquele. Reforma constitucional, que suprima essa
contagem, não atingirá a qualificação do tempo de serviço já prestado.
Poderão ser alterados os requisitos de aposentadoria, inclusive
quanto ao tempo de serviço: ao invés de trinta e cinco anos de ser-
viço, se o funcionário for do sexo masculino, poderão ser exigidos
quarenta ou cinqüenta. Mas a lei não poderá dispor que não é mais
tempo de serviço público, para todos os efeitos ou para determina-
do efeito, o que, segundo a lei, o era, na época em que o serviço foi
prestado.11
Quem se detiver no exame e no estudo dos seus arestos verificará o
cuidado que dispensava às questões submetidas a seu julgamento.
Em estilo sóbrio, com síntese e objetividade, redigia os seus votos com
limpidez e clareza, seguindo os ensinamentos de Renan, para quem “la règle
du bon style scientifique, c’est la clarté, la parfaite adaptation au sujet (...)”.12
Foi agraciado com inúmeras condecorações nacionais e estrangeiras,
como, entre outras, Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Educativo, Grã-
Cruz da Ordem do Rio Branco, Comendador da Ordem de São Silvestre Papa,
Professor Insigne, Comenda do Instituto dos Advogados do Rio Grande do
Sul e Professor Emérito, homenagem que lhe foi conferida pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
Aposentado por implemento de idade, em 3 de junho de 1977, retor-
nou ao seu Estado natal, o Rio Grande do Sul, porém, jamais se afastando do
apostolado do Direito.
Por ocasião do julgamento do RE nº 92.347-RJ, oportunidade em que
o Supremo Tribunal Federal examinou o célebre caso da falência da Panair
do Brasil S/A, o desfecho da causa contou com o auxílio de luminoso parecer
de sua lavra, acolhido pela unanimidade do Tribunal, consoante destacou o
relator, o eminente Ministro Xavier de Albuquerque, verbis:
Convencera-me dessa impossibilidade, no exame ponderado deste
volumoso processo, antes de receber, em data bem recente, o esplên-
dido parecer que sobre ele emitiu o eminente Ministro Eloy da Rocha
e no qual encontrei, melhor desenvolvido, certamente, o raciocínio
que me acudira. Empenho-me em reproduzir, por isso, o que S. Exa.
escreveu às fls. 39-41 do referido trabalho.

In RTJ 79/272-3.
11

RENAN, E., in Discours et conferences. Paris: Calmann-Lévy. p. 13.


12

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 31


“O art. 213 é regra especial, para a falência, ou para a concordata
preventiva. A conversão não se regula pelo vencimento ou pelo paga-
mento da dívida, senão, exclusiva e exatamente, pelo dia em que for
declarada a falência, ou mandada processar a concordata preventi-
va.”13
Faleceu na cidade de Porto Alegre, em 29 de abril de 1999, cercado do
carinho e da estima de seus familiares e amigos.
A sua trajetória se perfez por todos os setores da vida pública, propi-
ciando-lhe profícua experiência nos três poderes da República, culminando
com a cátedra do Supremo Tribunal Federal, consagrando-se como juriscon-
sulto, cuja estatura moral e intelectual o coloca entre os mais notáveis vultos
que honraram e dignificaram o Pretório Excelso.
Eminente Professor José Felipe Ledur:
A presente sessão, que Vossa Excelência promoveu e preside com a
costumeira dignidade, permitirá que a extensa obra do jurista Eloy José da
Rocha, hoje reverenciada, seja transmitida aos seus contemporâneos e à
posteridade, conservando viva a sua memória em todos quantos se ocupem
ou venham a ocupar-se do Direito, recordando-se, por fim, o célebre pensa-
mento do filósofo Thomas Carlyle: “L’Histoire du Monde, c’est la Biographie
des Grands Hommes”.14
Muito obrigado pela atenção.

In RTJ 96/431.
13

CARLYLE, Thomas, in Les héros. Traduzido por Jean Izoulet. 10. ed. Paris: Armand Colin,
14

1914. p. 23.

32 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


A Organização Mundial do Comércio e a
propriedade intelectual
André R. C. Fontes
Desembargador no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Doutor em Direito pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com estágio pós-doutoral na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Professor na Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (Uni-Rio)

Em sua formulação clássica, a propriedade intelectual toma como pa-


radigma a noção de propriedade. E isso ocorre porque as formas jurídicas,
nas quais se assentava o Direito, à época de sua formação, eram a proprie-
dade e o contrato. Coube à propriedade servir para estabelecer as condições
materiais para a realização da chamada, ainda que impropriamente, proprie-
dade intelectual.
O significado mais característico da propriedade é a ideia de apropria-
ção e, mais especificamente, de apropriação exclusiva. É ela, a apropriação
exclusiva, que possibilita a titularização, assim como força toda a previsão
conhecida pelos interessados mais imediatos e permite ver as perspectivas e
diretrizes que toma seu desenvolvimento, justamente porque a propriedade
tradicional serve-lhe de base de compreensão.
O pensamento da propriedade intelectual em todo o mundo se ocupa
muito com os problemas legislativos internos de cada país e, mesmo que seu
pleno reconhecimento e vigência estejam fora de questão, desde o século
XIX, os direitos de propriedade intelectual respondem a uma constante dinâ-
mica derivada da aparição de novas tecnologias que amenizam e requerem a
devida proteção, independentemente do ramo do direito que venha estudar
propriedade intelectual.
Se foi no direito do autor que possivelmente tenham nascido primei-
ramente tais direitos de proteção, aos poucos novas modalidades de formas
protegidas tomaram lugar. Essa verdadeira evolução de tutela acelerou seus
instrumentos em tempos recentes, de modo que, se comparada com a legis-
lação desde a época da Revolução Industrial, quando as primeiras invenções
mecânicas começaram a ocupar cada vez mais os espaços dos direitos auto-
rais, os direitos de restrição assumiram lugares nunca antes imaginados, que
hoje margeiam a ética e a vida humana.
A criação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, conhe-
cida pelo acrônimo OMPI, constitui a demonstração clara da sua importân-

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 33


cia, que, muito mais do que se limitar aos próprios campos da OMPI, assume
hoje como temática principal matérias relacionadas às questões de comércio
e justifica fundamentalmente a importância de outra entidade internacional:
a Organização Mundial do Comércio, a conhecida OMC.
Deve-se levar em consideração que a OMC é uma organização inter-
nacional, com personalidade jurídica de Direito Internacional, que não está
subordinada à ONU. A OMC é a segunda tentativa, mas vencedora, depois
da malfadada Organização Internacional do Comércio (OIC), e foi criada no
dia 1º de janeiro de 1995, a partir de negociações internacionais conhecidas
por Rodada Uruguai, do GATT – acordo geral sobre direitos alfandegários e
comércio. Ele resulta da necessidade mundial de administrar o sistema de
comércio. A despeito de ser um acordo de direitos aduaneiros e comércio,
passou a incluir a propriedade intelectual mediante princípios, regras e pro-
cedimentos.
A OMPI atua em uma conjuntura extraordinária e em constante apri-
moramento das suas atividades. Ela concentra um leque de assuntos relacio-
nados à propriedade intelectual. São assuntos vastos que abrangem interes-
ses econômicos, políticos e sociais que variaram muito nas diversas épocas.
Deve-se advertir que a problemática de países desenvolvidos e em desen-
volvimento passa a ser o grande divisor de águas. Uma análise fundamental
das suas tarefas nos leva a concluir que os interesses entre essas posições
antagônicas do mundo desenvolvido e do não desenvolvido dominam boa
parte das tarefas da OMPI, como também se estendem nas rodadas de ne-
gociações da Organização Mundial do Comércio, a OMC.
A OMPI, do outro lado, é uma criação da Convenção de Estocolmo, de-
vido à necessidade de oferecer uma proteção mais eficiente aos direitos de
propriedade intelectual e de modernizar a administração das Uniões. Data
de 14 de julho de 1967 e tem sede em Genebra. Adquiriu a OMPI, em 17 de
dezembro de 1974, o status de Organismo Especializado da Organização das
Nações Unidas (ONU). Em unidade com as ideias gerais nos estudos de Direi-
to Internacional, a OMPI tem capacidade jurídica para concluir acordos bila-
terais e multilaterais com Estados-membros, atuando como órgão de apoio
às secretarias das Uniões de Berna e de Paris.
Em certa forma, tem a OMPI por objetivo favorecer a assinatura de
acordos de proteção da propriedade intelectual, adotar medidas para me-
lhorar a prestação de serviços em matéria de propriedade intelectual, pres-
tar assistência técnica aos Estados que a solicitarem e promover estudos e
publicações sobre a proteção da propriedade intelectual. Promove também

34 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


a unificação dos temas de propriedade intelectual, protegendo igualmente
os direitos do autor e os direitos de propriedade industrial. O art. 2º do Esta-
tuto da OMPI inclui os direitos relativos às obras literárias, artísticas e cien-
tíficas; às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas
executantes aos fonogramas e às emissões de radiofusão; às invenções de
todos os domínios da atividade humana; às descobertas científicas; aos de-
senhos e modelos industriais; às marcas industriais, comerciais e de serviços;
bem como às firmas comerciais e denominações.
Partindo de seus objetivos institucionais e programáticos, a OMPI é
composta por quatro órgãos principais: (1) a Assembleia Geral, órgão má-
ximo, composto unicamente dos Estados-partes da OMPI; (2) a Conferên-
cia, órgão que desempenha assistência técnica e jurídica; (3) a Comissão de
Coordenação, responsável por aconselhar sobre questões administrativas e
financeiras de interesse comum; e (4) a Secretaria Internacional, desempe-
nhando funções administrativas, análogas às realizadas pelos escritórios in-
ternacionais das Uniões.
A OMPI nasceu da necessidade e transformou-se pela experiência. A
clara demonstração da verdade é que se tornou uma instituição tão grande e
complexa que, desde a sua fundação, vem desempenhando um papel-chave
na temática da propriedade intelectual, de modo que, muito além de valori-
zar a temática da propriedade intelectual, ampliou inegavelmente os limites
possíveis de sua atuação. Um exemplo disso é que o desenvolvimento das
suas atividades tem conduzido a outras discussões e possíveis funções da
OMPI. A que mais se destaca hoje é a necessidade de um órgão de solução
de controvérsias. Como a elaboração do ADPIC (TRIPS) coube à OMC, esse
intento foi alcançado.
A criação da OMC resulta da insistência dos Estados Unidos da América
(EUA) e de outros países desenvolvidos, e o tema da propriedade intelectual
foi incluído no contexto do sistema internacional de comércio, mais especifi-
camente do GATT. O assunto da propriedade intelectual já estava em pauta
entre os grandes temas do mundo desenvolvido e em desenvolvimento. E,
de certa forma, toda a estrutura, já assentada nos países desenvolvidos, foi
transplantada para a nova organização, de maneira que as discrepâncias en-
tre os desenvolvidos e os em desenvolvimento, a consolidação da tecnologia
avançada e a sua forma de desenvolvimento tornaram a situação mundial
marcada por dois níveis estanques e desequilibrados, em um evidente favo-
recimento dos países ricos.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 35


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38 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


O valor da prova indiciária
Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira
Desembargador aposentado, ex-Presidente do TRE-RS, Professor de
Direito Penal da Ufrgs

A sempre discutida prova indiciária serve, com outras espécies de pro-


va, para estabelecer certeza processual sobre elementos componentes de
fato juridicamente relevante.
Principalmente, em casos de grande repercussão, com desvio de re-
cursos públicos e obstrução do aparelhamento judicial, há de se partir de
elementos positivados ou de circunstâncias induvidosas, estas como base
indutora de conclusões absolutamente lógicas. Estas se denominam elemen-
tos indutores do fato.
Tais circunstâncias não são componentes estruturais do fato tipica-
mente criminal. São elementos que se situam ao redor do tipo, servindo,
processualmente, para comprovar pontos periféricos do fato e, dessa forma,
concorrerem para formar a própria comprovação da tipicidade. As circuns-
tâncias, embora situadas ao redor do tipo, serão válidas para a demonstra-
ção, em operação lógica e conclusiva, do fato central criminal.
Como ocorre nas acusações em geral, inclusive nos casos de delação
ou colaboração premiada, segundo o artigo 239 do CPP, os indícios são cir-
cunstâncias provadas e relacionadas ao fato propriamente dito. A norma
processual exige que circunstância, relativa ao fato, para ser usada na con-
vicção judicial, deva, por um processo lógico, levar certeza quanto a outras
circunstâncias, também presentes. Isto é, uma só circunstância, por si só,
não serve como prova sobre o fato típico. O que se entende necessário é a
existência de uma coroa de alguns elementos circunstanciais, em que cada
uma dessas circunstâncias liga-se a outra ou outras que comprovem o fato
central, por indução ou dedução (isto é, o citado elemento lógico indutor).
O certo é que o Código de Processo Penal estabelece espécies de pro-
vas, algumas essenciais, das quais depende o reconhecimento do fato cen-
tral, e outras corroboradoras de elementos dentro da cadeia necessária para
formar convicção sobre o fato e a sua tipicidade criminal.
A par do exame de corpo de delito e das perícias sobre elementos
típicos, a lei processual (art. 239) admite provas secundárias válidas e de-
monstradoras do fato, como o interrogatório, a confissão do réu, a palavra
do ofendido, as inquirições testemunhais, o reconhecimento de coisas ou

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 39


pessoas, a acareação, as interceptações telefônicas e a busca e apreensão,
tanto domiciliar como pessoal. A lei (12.850) admite também cooperação
de entidades públicas na obtenção de provas. No título próprio do CPP, vêm
ainda citados claramente como provas aceitáveis os denominados indícios,
acima referidos, juntamente com outras espécies de provas.
Demonstrada a atividade ilícita, pelo encadeamento das circunstân-
cias ligadas ao fato, impõe-se haver certeza sobre as condutas em exame,
como consta da lição universalmente aceita, afirmada de modo claro e in-
discutível, assim expressa: “A responsabilidade criminal há de ser provada
acima de qualquer dúvida razoável” (art. 66, item 3, Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional – citado em precedente do STF na AP 521 – DJe
05.02.15).
Certos elementos indutores podem comparecer e formar a cadeia de
indícios de modo induvidoso. Nela, servem depoimentos de coautores, uns e
outros admitindo o modus operandi comum em que se incluem suas próprias
atividades em reciprocidade com outras. Servem também como circunstân-
cias válidas tanto a existência de estalão de vida dos agentes, superior a seus
ganhos, como a realização de atos com aportes materiais suntuosos; as co-
municações associativas entre colaboradores ou coautores; a continuidade
de comportamentos similares; quaisquer outras condutas e seus resultados
ligados a circunstâncias já provadas; assim como ingressos monetários sem
explicações plausíveis sobre sua causa. Para a lei processual, muito impor-
tantes são as provas obtidas em procedimentos cautelares antecipados e as
não repetíveis no processo principal.
Ao arrolar todas as espécies de prova, incluindo as indiciárias, o código
estabelece que a convicção judicial poderá se formar com elementos auxilia-
res e até informativos da investigação.
Diante da constelação probatória, a ordem processual penal é clara
ao dispor que a convicção judicial dependerá da livre apreciação das provas,
não havendo hierarquia entre elas, salvo as do corpo de delito e as confor-
madoras da tipicidade. Daí a validade de todas essas espécies probatórias
como acima se referiu e como as leis processuais estabeleceram, voltadas
à finalidade de proporcionar a prolação de sentença certa que faça a verda-
deira justiça.

40 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Orçamento público, ajuste fiscal e administração
consensual
Jessé Torres Pereira Junior
Desembargador do TJRJ, Professor Coordenador dos cursos de pós-graduação em
Direito Administrativo da Escola da Magistratura e da Escola de Administração
Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, Professor Visitante da Escola de Direito-Rio,
da Fundação Getúlio Vargas

Thaís Boia Marçal


Advogada, Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes, pós-
graduada pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

Resumo
O Estado pós-moderno compromete-se a efetivar os direitos funda-
mentais que a Constituição assegura aos cidadãos, sem exclusão, entre eles,
do direito à boa administração pública. É instrumento de conformação des-
ta, no direito público contemporâneo brasileiro, a Lei de Responsabilidade
Fiscal, cuja edição completa 15 anos e em face da qual se promovem ajus-
tes conciliadores das leis orçamentárias com a realidade socioeconômica em
permanente mutação. Ajustes que devem resultar do diálogo entre as ins-
tituições representativas da sociedade, de sorte a conduzir a escolhas que
serão tanto mais eficientes quanto pautadas na consensualidade.
Palavras-chave: Orçamento público. Ajuste fiscal. Administração pú-
blica dialógica. Lei de Responsabilidade Fiscal.
Abstract
The postmodern state is guided to achieve fundamental rights, including
the right to a good public administration. In such purpose, and to enable respect
for fiscal responsibility law, it is imperative to carry out fiscal adjustments that
allow the adequacy of budget laws to contemporary unstable socioeconomic
contexts. These adjustments ought to be based on dialogue among institutions,
in order to improve efficient choices grounded on consensualism.
Keywords: Public budget. Fiscal adjustment. Dialogic public adminis-
tration. Fiscal responsibility law.
Sumário: Introdução. 1 Orçamento público. 1.1 Conceito. 1.2 Despesa
pública: implementação de direitos fundamentais. 2 Lei de Responsabilidade

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 41


Fiscal. 2.1 Concretização do direito fundamental à boa gestão pública. 2.2
Ajuste fiscal como forma de planejamento e de respeito à gestão consequen-
te. 3 Administração pública dialógica. 3.1 Conceito. 3.2 O compromisso inter-
geracional do ajuste fiscal. Síntese conclusiva. Referências.
Introdução
Exsurge, nos últimos trinta anos, o Estado pós-moderno, gerencial,
mediador e garantidor. Estado jungido ao respeito pela dignidade da pessoa
humana,1 tangido pela efetivação dos direitos fundamentais,2 entre os quais
o direito à boa administração pública.3
No cenário da pós-modernidade, cumprem nodal importância a dis-
cussão, a elaboração e o cumprimento das leis orçamentárias, na qualidade
de instrumento destinado a viabilizar o desempenho das funções estatais.
Sobrevindo retração econômica, reclama-se da gestão estatal a pro-
moção de ajustes fiscais, com o fim de viabilizar o manejo do orçamento de

1
Dignidade da pessoa humana, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, é a qualidade intrínseca e
distintiva reconhecida em cada ser humano, que o faz merecedor do mesmo respeito e da mesma
consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de
direitos e deveres fundamentais que tanto protejam a pessoa contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas
para uma vida saudável. Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos
fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008. p. 62. Ana Paula de Barcellos ressalta, ainda, que “o efeito pretendido pela dignidade da
pessoa humana consiste, em termos gerais, em que as pessoas tenham uma vida digna. Como
é corriqueiro acontecer com os princípios, embora esse efeito seja indeterminado a partir de
um ponto (variando em função de opiniões políticas, filosóficas, religiosas etc.), há também
um conteúdo básico, sem o qual se poderá afirmar que o princípio foi violado, e que assume
caráter de regra, e não mais de princípio. Esse núcleo, no tocante aos elementos materiais da
dignidade, é composto pelo mínimo existencial, que consiste em um conjunto de prestações
materiais mínimas, sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo encontra-se em situação de
indignidade”. Cf. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o
princípio da dignidade da pessoa humana. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 368.
2
A expressão “direitos fundamentais” é desenvolvida na cultura juspolítica alemã, que de-
monstra a intenção de conferir a tal categoria de direitos fundamentação transcendente. A
doutrina francesa denomina tais direitos como liberdades públicas, na busca de enaltecer o
caráter limitador da potestade estatal. A doutrina anglo-saxônica prefere direitos civis (civil
rights), com o fim de reforçar a sua vinculação com a temática da cidadania e de seu reconhe-
cimento no âmbito da esfera pública (civitas). Cf.: GOUVÊA, Marcos Maseli. O direito ao forne-
cimento estatal de medicamentos. In: GARCIA, Emerson (coord.). A efetividade dos direitos
sociais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 220.
3
PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Presença da administração consensual no direito positivo
brasileiro. In: FREITAS, Daniela Bandeira de; VALLE, Vanice Regina Lírio do (coords.). Direito
Administrativo e democracia econômica. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 293.

42 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


molde a atender à conjuntura, sem extrapolação dos limites da Lei de Res-
ponsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000).
O desafio desses ajustes estará em identificar escolhas que satisfaçam
a lógica da boa governança, o que demanda diálogo institucional entre os
Poderes Executivo e Legislativo em busca de soluções pautadas pela con-
sensualidade, cuja origem estará, porém, na sociedade, e não, apenas, na
interpretação que dela fazem os agentes políticos, segundo suas próprias
conveniências.
1 Orçamento público

1.1 Conceito
Nos estágios do Estado liberal (gendarme) e do Estado do bem-estar
(welfare), o orçamento público relacionava receitas4 e despesas, ou seja, es-
timativa das primeiras e fixação das segundas,5 a cada ano, constituindo o
marco delimitador da atividade financeira do Estado no período de sua res-
pectiva vigência.6
A concepção persiste como conceito básico, mas deve ser coadunada
com a noção de que se trata de instrumento utilizado pelo governo para
atingir metas traçadas em plano de gestão,7 inferido como instrumento de
controle político das atividades governamentais.8
Com o crescimento do Welfare State, no pós-guerra do século XX, a
preocupação estrita com o equilíbrio contábil anual das contas públicas dá
lugar a considerações mais amplas9 a respeito da função social do orçamen-
to público. Nasce o chamado “orçamento-programa”, por meio do qual se
expressa, se aprova, se executa e se avalia o nível de cumprimento do pro-
grama de governo para cada período orçamentário, levando-se em conta as

4
Para Eduardo Mendonça, “soa razoável que o Estado, em princípio, só arrecade coativa-
mente aquilo que for necessário” – Alguns pressupostos para um orçamento público confor-
me a Constituição. In: BARROSO, Luís Roberto (org.). A reconstrução democrática do direito
público no Brasil. Livro comemorativo dos 25 anos de magistério do professor Luís Roberto
Barroso. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 644.
5
GONÇALVES, Hermes Laranja. Uma visão crítica do orçamento participativo. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2005. p. 40.
6
NASCIMENTO, Carlos Valder do. O orçamento público na ótica de responsabilidade fiscal:
autorizativo ou impositivo. Revista Ibero-Americana de Direito Público, n. 6, p. 16, 2001.
7
GONÇALVES, op. cit., p. 34.
8
Ibidem, p. 41.
9
CORREIA NETO, Celso de Barros. Orçamento público: uma visão analítica. Disponível em:
<http://www.esaf.fazenda.gov.br/esafsite/premios/sof/sof_2010/monografias/tema_2_3%-
C2%BA _monografia_celso_de_barros.pdf>. Acesso em: 28 set. 2011. p. 12.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 43


perspectivas de médio e longo prazos, a constituir um instrumento de pla-
nejamento.10
Élida Graziane Pinto11 dá um passo adiante e pondera que
falar em controle das contas públicas é tratar – pela interface da pre-
visão orçamentária e da efetiva alocação de recursos financeiros – do
custeio de políticas públicas (...) cumpre não perder de vista que o
orçamento é, além de instrumento de controle, uma peça imprescin-
dível de planejamento e definição das prioridades do Estado. As políti-
cas públicas integram o núcleo normativo definidor das atividades-fim
do Estado. São, em última instância, a representação – organizada em
diretrizes gerais e dentro de projetos e atividades – das funções cons-
titucionalmente atribuídas à administração pública. Exemplo disso são
os deveres de segurança pública, de saúde, de educação, de proteção
ao meio ambiente, de tutela à criança e ao adolescente, de garantia
da estabilidade da moeda e das relações econômicas etc. Certo é que
o Estado se desincumbe de tais deveres por meio de estruturados
planos de ação governamental, aos quais podemos individualmente
chamar, grosso modo, de política pública. Em se considerando que o
regime de orçamentação adotado no Brasil é o de orçamento-progra-
ma (de acordo com o art. 22, IV, da Lei nº 4.320/1964), tem-se que o
conceito de política pública envolve o desempenho de programas de
trabalho nas mais diversas funções sob incumbência do Estado (como
são a função de acesso à justiça, a legislativa, a de educação, a de saú-
de etc.). Os programas de trabalho, por seu turno, pressupõem a inte-
ração dinâmica de meios de que o Estado dispõe (no que se incluem
pessoal, bens, verbas, prerrogativas e processos) para o cumprimento
de determinadas finalidades públicas. Não se trata apenas de planejar
a ação estatal, mas de assegurar a sua consecução, dentro das metas
físicas e financeiras inscritas na lei de orçamento.
O orçamento-programa, como instrumento de planejamento,12 permi-
te identificar o rol de projetos e atividades que o governo pretende realizar e,

10
GIACOMONI, James. Orçamento público. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 33.
11
PINTO, Élida Graziane. Financiamento de direitos fundamentais. Belo Horizonte: O Lutador,
2010. p. 83-84.
12
O planejamento deve ser compreendido como uma aglomeração de múltiplas atividades,
incluindo análises socioeconômicas, definição de metas, apresentação de premissas, estudos,
seleção e escolha final de cursos de ação, orçamento, programação de trabalhos, instituição
de normas e métodos, medidas dos resultados, em quantidade e qualidade, e revisão contínua
dos planos. Cf. NASCIMENTO, João Alcides do. O papel do orçamento público no processo de
planejamento da ação política. Energia, entropia e informação, fatores a considerar. Revista da
ESG, v. IX, n. 25, p. 24, 1993.

44 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


em alguns casos, identificar os objetos, as metas e os resultados esperados,13
gerando influência direta na economia do país na medida em que traduz a
execução de planos e projetos voltados para o desenvolvimento14 da comu-
nidade.15
Programa é o instrumento de organização da ação governamental, daí
o orçamento público passar a instrumento de programação da ação governa-
mental16 ao articular um conjunto de ações para cumprir objetivos predeter-
minados, mensurados por indicadores estabelecidos em plano plurianual com-
prometido com o atendimento a necessidades ou demandas da sociedade.
Assim, o desafio atual das nações soberanas é o da persecução mais
eficaz de domar os gastos públicos, redirecionando-os à execução das polí-
ticas públicas legitimadas no texto das constituições e de leis a elas comple-
mentares.17
1.2 Despesa pública: implementação de direitos fundamentais
A despesa pública é o mecanismo pelo qual o Estado, além de sus-
tentar sua própria estrutura de funcionamento, cumpre finalidades e atin-
ge objetivos. Do ponto de vista formal, as despesas públicas deverão estar
previstas no orçamento, nos termos constitucionais e legais, devendo o seu
conteúdo vincular-se, juridicamente, às prioridades eleitas pelo constituinte
originário.18
A cidadania fiscal abrange, em seu sentido amplo, além da problemáti-
ca da receita, os aspectos mais largos da cidadania financeira, que, vertente
da despesa pública, envolve as prestações positivas de proteção aos direitos
fundamentais e aos direitos sociais, segundo as escolhas orçamentárias.19

13
NASCIMENTO, Carlos Valder do. Op. cit., p. 12.
14
Ao incorporar o sistema de planejamento, o orçamento deve definir a política econômica, e
não o contrário. Cf. SABBAG, César. Orçamento e desenvolvimento. Recurso público e dignidade
humana: o desafio das políticas desenvolvimentistas. São Paulo: Millennium, 2006. p. 264.
15
GONÇALVES, op. cit., p. 41.
16
SILVA, Guilherme Amorim Campos da; TAVARES, André Ramos. Extensão da ação popular
enquanto direito político de berço constitucional elencado no título dos direitos e garantias
fundamentais dentro de um sistema de democracia participativa. Cadernos de Direito
Constitucional e Ciência Política, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, Rio de Janeiro,
n. 3, p. 119-120, 1995.
17
Adota-se o conceito de políticas públicas proposto por Maria Paula Dallari Bucci, de modo
a entendê-las como “programas de ação governamental que visam a coordenar os meios
à disposição do Estado e as atividades privadas, para realização de objetivos socialmente e
politicamente relevantes”. Cf. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e políticas
públicas. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 241.
18
MENDONÇA, op. cit., p. 647.
19
Ibidem, p. 646.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 45


A efetivação dos direitos fundamentais sociais pressupõe a definição,
pelos Poderes Executivo e Legislativo, dos instrumentos de deliberação sobre
verbas necessárias e suficientes para a consecução das políticas públicas.20
A escassez de recursos em face de necessidades complexas e de gran-
de porte reclama eficiência na avaliação da tormentosa conciliação entre
resultados a alcançar e recursos finitos, relação instigante das chamadas “es-
colhas trágicas” com que se defrontam os poderes públicos, inclusive o Judi-
ciário, quando chamados a estabelecer prioridades, definir deveres jurídicos,
configurar inadimplementos e ordenar investimentos. Em outras palavras,
trata-se de representar as realizações em índices e indicadores, para possi-
bilitar comparação com parâmetros técnicos de desempenho e com padrões
já alcançados anteriormente.21
Com a avaliação da eficiência do ato aperfeiçoado ou da política pú-
blica implementada, procura-se analisar o grau com que os objetivos e as
finalidades do governo (e de suas unidades) foram alcançados. Trata-se, en-
tão, de medir o progresso alcançado, se é que o foi, dentro da programação
governamental.22
Tal eficiência deve ser entendida de forma ampla,23 a orientar toda e
qualquer atuação da pública administração, não se limitando à sua função
administrativa.
2 Lei de Responsabilidade Fiscal
O art. 165, § 9º, da Constituição remete a lei complementar a matéria
versada nos incisos I e II: “dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os
prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes
orçamentárias e da lei orçamentária anual” e “estabelecer normas de gestão
financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como condi-
ções para a instituição e o funcionamento de fundos”.
Eis a raiz da Lei Complementar nº 101. Houve demora dos Poderes
Legislativo e Executivo na elaboração do projeto que cumpriria o que a Cons-
tituição de 88 prometia, ainda que abreviado por força, como notório, de
pressão internacional para que Estados em dificuldades no equilíbrio entre
20
MACHADO, Clara Cardoso. Direitos fundamentais sociais, custos e escolhas orçamentárias:
em busca de parâmetros constitucionais. Disponível em: <http://www.oab.org.br/ena/pdf/
ClaraCardosoMachado_ DireitosFundamentaisSociais.pdf>. Acesso em: 25 maio 2015.
21
GIACOMONI, James. Op. cit., p. 309.
22
Ibidem, p. 310.
23
CALIENDO, Paulo. Reserva do possível, direitos fundamentais e tributação. In: SARLET, Ingo
Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (orgs.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do
possível”. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 179.

46 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


receita e despesa de seus orçamentos nacionais se ajustassem à responsa-
bilidade fiscal, proposta que circulava no cenário financeiro internacional
desde o início da década de 1990, tanto que a Nova Zelândia inaugurou o
ciclo ao aprovar a sua lei de responsabilidade fiscal em 1994.24 O modelo
neozelandês foi instituído por incentivo da OCDE e importado pelo Brasil em
suas linhas gerais.25
Segundo José Maurício Conti,26 a Lei de Responsabilidade Fiscal foi um
marco para o Direito Financeiro, pois regulamentou o artigo 163 da CR/88,
que exige lei complementar para estabelecer normas gerais de finanças pú-
blicas. É “divisor de águas” entre o período que a antecedeu, marcado por
forte inflação e descontrole de contas públicas, e o que a sucedeu, quando
esses problemas foram submetidos a controle.
Para Ives Gandra Martins, a Lei Complementar nº 101/2000 represen-
ta o mais avançado instrumento legislativo da história brasileira para contro-
le dos orçamentos.27
2.1 Concretização do direito fundamental à boa gestão pública
A gestão pública transforma-se ao longo dos últimos anos. Deve pas-
sar a pautar-se pelo efetivo atendimento às demandas da sociedade, em per-
feita consonância com as premissas da Constituição da República.28 Daí a exi-
gência de paradigmas mais gerenciais e transparentes.29 Surge a proposta de
governança pública, na qual a sociedade possa ter conhecimento e cobrar as
definições das despesas governamentais, assegurando-se de que a entrega

24
PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Aspectos constitucionais da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Revista da Emerj, v. 4, n. 15, p. 63, 2001.
25
TORRES, Ricardo Lobo. Alguns problemas econômicos e políticos da Lei de Responsabilidade
Fiscal. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Aspectos relevantes da Lei de Responsabilidade
Fiscal. São Paulo: Dialética, 2001. p. 281-283.
26
CONTI, José Maurício. Irresponsabilidade fiscal ainda persiste, 15 anos após a publicação da
lei. Revista Consultor Jurídico, 7 abr. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-
abr-07/contas-vista-irresponsabilidade-fiscal-persiste-15-anos-publicacao-lei>. Acesso em: 10
jun. 2015.
27
MARTINS, Ives Gandra. Os fundamentos constitucionais da Lei de Responsabilidade
Fiscal n. 101/2000. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Aspectos relevantes da Lei de
Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Dialética, 2001. p. 165.
28
CAMARGO, Guilherme Bueno de. Governança republicana e orçamento: as finanças
públicas a serviço da sociedade. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury (coords.).
Orçamentos públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 783.
29
SLOMSKI, Valmor; PERES, Úrsula Dias. As despesas públicas no orçamento: gasto público
eficiente e a modernização da gestão pública. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando
Facury (coords.). Orçamentos públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011. p. 930.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 47


do serviço ou do bem público desejado se faz segundo parâmetros aferíveis,
eficientes e eficazes.30
A adoção de práticas de governança corporativa pela administração
pública se recomenda como ferramenta capaz de aproximar o cidadão do
Estado, democratizando a sua participação nas questões que o afetam.31
Ou seja, a gestão financeira do Estado deve conciliar eficiência econômica e
exercício da democracia.32
Outro ângulo sob o qual se deve entender o planejamento “determi-
nante para o setor público” (CR/88, art. 174) é o de sua utilidade para o
manejo da administração responsiva e de resultados, no Estado democrático
de direito. Traduzindo este, como traduz, a contemporânea versão do Es-
tado servidor e regulador, é de exigir-se que todos os seus poderes, órgãos
e agentes estejam persuadidos de que devem respostas e satisfações à so-
ciedade civil. Ou seja, esta é a titular do poder político de decidir sobre os
seus próprios destinos, incumbindo àqueles realizá-los na conformidade das
opções da sociedade, na medida em que harmonizadas com a ordem jurídica
constitucional e os direitos fundamentais que prescreve.
Em outras palavras, os planos de ação governamental não são conce-
bidos, como outrora, para atender aos desígnios das autoridades estatais.
Estas devem colher os reclamos legítimos da sociedade e atendê-los. Daí a
visceral importância de elos permanentes e hábeis de comunicação entre a
sociedade e o Estado, de sorte que este absorva os comandos daquela e os
implemente no que consensuais. O Estado democrático de direito é o garan-
te da efetivação dos direitos consagrados na Constituição, sejam os indivi-
duais, sejam os econômicos, os políticos ou os sociais. Ser-lhe fiel é o dever
jurídico indeclinável do Estado.
Essa fidelidade há de estar presente em todos os níveis do planeja-
mento. Cada plano de ação governamental deve ser uma resposta à efeti-
vação dos direitos fundamentais e do respeito à dignidade humana que os
inspira. Se assim não for, não haverá Estado democrático de direito, nem a
administração responsiva e de resultados que lhe deve corresponder.

30
SLOMSKI, Valmor; PERES, Úrsula Dias. As despesas públicas no orçamento: gasto público
eficiente e a modernização da gestão pública. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando
Facury (coords.). Orçamentos públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011. p. 930.
31
CAMARGO, Guilherme Bueno de. Governança republicana e orçamento: as finanças
públicas a serviço da sociedade. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury (coords.).
Orçamentos públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 769.
32
Ibidem, p. 770.

48 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Nada obstante, há uma condição cultural, em seu sentido sociológico,
para que assim ocorra: a sociedade brasileira há de emancipar-se da polari-
zada relação entre tutores e tutelados, que caracteriza nossa cultura desde o
seu berço colonial, entendendo-se por tutor todo aquele que ocupe posição
de prestígio e poder na hierarquia social – seja qual for a natureza dessa
hierarquia – e por tutelado todo aquele que se sirva do tutor para obter van-
tagem ou proteção de qualquer sorte.
Não seria necessária maior digressão para perceber-se como essa re-
lação compromete a emancipação da sociedade brasileira; basta lembrar os
critérios segundo os quais grande número de candidatos se elege, por pro-
meter vantagens e ganhos pessoais a seus eleitores (material de construção,
empréstimos, empregos, cargos, apadrinhamentos, atendimentos pelos servi-
ços públicos etc.). O socialmente patológico dessa relação está em que o tutor
compraz-se em ser tutor e o tutelado anseia por encontrar o seu tutor e per-
manecer como tutelado. Em outras palavras: não há espaço para o mérito nes-
sa relação, só para o interesse egoístico. Logo, tampouco há real preocupação
em controlar e avaliar resultados, com o fim de dar-se início a novo ciclo virtuo­
so de gestão mediante a correção de erros, caso cometidos no planejamento
da ação anterior, na medida em que esses erros refletem aqueles interesses
personalistas e partidários, além de transferir ou elidir responsabilidades.
De modo a atender ao planejamento e à execução orçamentária, a LRF
estabeleceu para o administrador público e para o cidadão um novo marco
de governança republicana, exigindo transparência e ampla divulgação de
informações e relatórios, inclusive em meio eletrônico de acesso público,
incentivo à participação popular e adoção de sistema integrado de adminis-
tração financeira e controle.33
2.2 Ajuste fiscal como forma de planejamento e de respeito à gestão
consequente
A ação do poder público vincula-se ao conjunto de instrumentos que
norteia o planejamento governamental, delineada em normas jurídicas
estruturadas em sintonia com o texto constitucional. São eles o plano plu-
rianual, a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual. Nesta
estão compreendidos o orçamento fiscal, o da seguridade social e o de
investimentos. Com isso, o Estado ordena suas atividades, bem como es-
tabelece prioridades na persecução de seus objetivos primordiais.34

33
Ibidem, p. 773.
34
NASCIMENTO, Carlos Valder do. Arts. 1º a 17 da Lei Complementar n. 101. In: MARTINS,
Ives Gandra; NASCIMENTO, Carlos Valder do. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal.
5. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 51.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 49


Na sistemática da LRF, ressalta Moacir Marques da Silva,35 o plane-
jamento governamental compreende o plano plurianual, as diretrizes orça-
mentárias e o orçamento anual, como forma, respectivamente, de planeja-
mento estratégico,36 tático37 e operacional.38
Os desequilíbrios da gestão estatal – prioridades indefinidas ou mal
definidas, decisões açodadas, desconsideração dos riscos inerentes à ativi-
dade, comprometimento de recursos para finalidades pouco ou nada estru-
turadas, ensejando desvios e malversações –, lesivos àquela consecução dos
planos orçados, são o autorretrato da sociedade brasileira,39 que, ao encami-
nhar cidadãos a cargos e funções públicos, deles não exige preparo para bem
planejar antes de decidir, nem para identificar as causas antes de contentar-
se em atacar os efeitos. Produzem respostas paliativas e inconsistentes, que
se esmaecem no curto ou médio prazo, tornando crônicos os problemas e
insuficientes ou desbaratados os meios orçamentários disponíveis ou mobi-
lizáveis.
Nesse panorama, surge a chamada crise fiscal, definível como o dese-
quilíbrio administrativo-orçamentário causado pela desproporção entre os
valores recolhidos pelos cofres públicos e os desembolsados.40 A crise fiscal

35
SILVA, Moacir Marques da. A lógica do planejamento público à luz da Lei de Responsabilidade
Fiscal. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury (coords.). Orçamentos públicos e
Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 764.
36
Nas palavras de Osvaldo Maldonado Sanches, planejamento estratégico significa “aquilo
que é relativo à estratégia, ou seja, à criação de condições favoráveis para realização dos
grandes objetivos da instituição”. Cf. SANCHES, Oswaldo Maldonado. Dicionário de orçamento,
planejamento e áreas afins. Brasília: Prisma, 1997. p. 190.
37
Significa o “processo de detalhamento das ações e dos meios necessários para a
implementação das ações que levem ao atingimento das metas atribuídas às unidades
funcionais de um órgão ou instituição, dentro de um prazo determinado”. Cf. SANCHES, op.
cit., p. 190.
38
Traduz-se na “modalidade de planejamento voltada para assegurar a viabilização dos
objetivos e das metas dos planos a longo prazo e para a otimização do emprego de recursos
em um período determinado de tempo”. Cf. SANCHES, op. cit., p. 190.
39
Tal realidade não pode ser imputada tão somente ao Brasil, constituindo tendência
internacional, conforme se pode depreender da leitura do seguinte pensamento de Zygmunt
Bauman: “Vivemos a crédito: nenhuma geração passada foi tão endividada quanto a nossa –
individual e coletivamente (a tarefa dos orçamentos públicos era o equilíbrio entre receita e
despesa; hoje em dia, os ‘bons orçamentos’ são os que mantêm o excesso de despesas em
relação a receitas no nível do ano anterior)”. Cf. BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 16.
40
Não se desconhece a incidência de outros fatores, tais como crises internacionais, juros dos
empréstimos internacionais, corrupção, desvios, entre outros.

50 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


mantém íntima relação com a dimensão do Estado em si41 e de suas ativida-
des.42
O desequilíbrio fiscal experimentado pelos entes da federação brasi-
leira radica nas deficiências do planejamento governamental e prossegue
pela via das más práticas orçamentárias, quadro que não é desconhecido
da experiência europeia, na qual, em certa medida, o quadro da qualida-
de das finanças públicas apresenta, conforme ressaltado por João Ricardo
Catarino,43 os seguintes pontos nodais: (i) composição e eficiência das des-
pesas públicas; (ii) estrutura e eficiência do sistema de receitas; (iii) gestão
orçamental; (iv) dimensão das administrações públicas; (v) políticas públicas
financeiras que influenciam o funcionamento dos mercados; (vi) ambiente
empresarial global.
Reconhece-se que, mesmo em casos de orçamentos bem elaborados,
o surgimento de despesas imprevistas provoca desequilíbrios nas contas pú-
blicas, prejudicando a consistência fiscal. É nesse contexto que a LRF obriga
a elaboração de anexos de riscos fiscais, nos quais devem ser avaliados e
quantificados os passivos contingentes e outros riscos capazes de afetar as
contas públicas. Daí a relevância de providências a serem adotadas, em caso
de materialização desses riscos.44
Orçamento realista e efetivo será, antes de tudo, um instrumento de
concretização e harmonização das escolhas políticas, além de constituir fó-
rum privilegiado para a fiscalização social do Estado.45
O planejamento deve abrir e racionalizar a rota de realização das polí-
ticas públicas, na medida em que estas visualizam objetivos, preveem com-
portamentos e definem metas,46 o que se conjuga com o principal objetivo do
planejamento, que é a concretização máxima dos objetivos constitucionais.
A efetividade financeira da cidadania e dos direitos sociais cumpre
processo gradual e contínuo de planejamento, alocação e gestão de recursos

41
Faz-se menção ao item deste estudo dedicado ao aumento das funções estatais.
42
MOREIRA, Egon Bockmann. O princípio da transparência e a responsabilidade fiscal. In:
ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Aspectos relevantes da Lei de Responsabilidade Fiscal.
São Paulo: Dialética, 2001. p. 137.
43
CATARINO, João Ricardo. Processo orçamental e sustentabilidade das finanças públicas:
o caso europeu. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury (coords.). Orçamentos
públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 787.
44
FIGUEIRÊDO, Carlos Maurício C. Lei de Responsabilidade Fiscal: o resgate do planejamento
governamental. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Aspectos relevantes da Lei de
Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Dialética, 2001. p. 40.
45
MENDONÇA, op. cit., p. 640-641.
46
TIMM, op. cit., p. 59.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 51


para o financiamento de políticas públicas. Estas, desde a agenda de seus
temas até a sua avaliação, circulam pelo espaço público democrático, onde a
autonomia privada e os deveres públicos podem e devem ser compatibiliza-
dos mediante ações e decisões coletivas em busca da “sociedade bem orde-
nada”. Esta se mostra compatível com os objetivos republicanos, em especial
a solidariedade, nos termos do artigo 3º, I, da CR/88, que prevê a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária.47
O planejamento foi introduzido na legislação brasileira, inicialmente,
com a Lei nº 4.320/1964, que instrumentalizou os denominados orçamentos
-programa48 da administração.49
Na presente quadra, diante do cenário admitido pelo governo brasilei-
ro, mostra-se imperiosa a necessidade de um ajuste fiscal. Contudo, há que
se destacar, nas palavras de José Marcos Domingues,50 que a necessidade de
adequação de prioridades consoante os valores constitucionais deve induzir,
também, o planejamento de investimentos indutores do desenvolvimento
socioeconômico da população, a ensejar: mais geração e recirculação de
bens e serviços; otimização da estrutura e do custeio da administração públi-
ca para servir; eficiente gestão do gasto público, que deve ser equitativo para
ser profícuo; consequente redução e redistribuição da carga tributária, que
não pode beirar o confisco e se realimentar da regressividade fiscal.
O planejamento deve apresentar-se como o primeiro passo do ci-
clo da gestão, em sua acepção técnico-administrativa de gerir meios para
a consecução de resultados do interesse da organização, seja esta uma
sociedade empresarial privada (movida pelo lucro que a mantenha), seja
uma entidade pública (impulsionada pelo interesse público que lhe cum-
pre atender). Lançando olhar prospectivo sobre o conceito, Peter Drucker51
descortinava que:
O centro de uma sociedade, uma economia e uma comunidade
modernas não é a tecnologia, nem a informação, tampouco a produti-

47
MACEDO, Marco Antônio Ferreira. A reconstrução republicana do orçamento: uma análise
crítico-deliberativa das instituições democráticas no processo orçamentário. Tese (Doutorado
em Direito Público), Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2007. p. 56-57.
48
Acerca do tema “orçamento-programa”, confira-se o item 1.1 deste estudo.
49
DIAS, Francisco Mauro. Visão global da Lei de Responsabilidade Fiscal. Revista da Emerj, v.
5, a. 17, p. 112, 2002.
50
DOMINGUES, José Marcos. Ajuste fiscal deve se adequar às prioridades previstas na
Constituição. Revista Consultor Jurídico, 20 maio 2015.
51
DRUCKER, Peter. Desafios gerenciais para o século XXI. Traduzido por Nivaldo Montingelli
Jr. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2001. p. 41.

52 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


vidade. É a instituição gerenciada como órgão da sociedade para pro-
duzir resultados. E a gerência é a ferramenta específica, a função espe-
cífica, o instrumento específico para tornar as instituições capazes de
produzir resultados. Isto, porém, requer um novo paradigma gerencial
final: a preocupação da gerência e sua responsabilidade é tudo o que
afeta o desempenho da instituição e seus resultados, dentro ou fora,
sob o controle da instituição ou totalmente além dele.
No caso brasileiro, é preciso aperfeiçoar o planejamento da ação go-
vernamental, a fim de que os recursos necessários ao êxito na execução dos
objetivos do Estado sejam despendidos em plena atenção à accountability.
Em outras palavras, significa a necessidade de gastar da melhor forma possí-
vel52 e prestar contas de forma ampla e aberta, a induzir a redução de frau-
des e corrupção de agentes públicos e privados.53
3 Administração pública dialógica
3.1 Conceito
A relação entre a administração pública e o cidadão ganha peculiares
contornos no Estado democrático de direito, para além do modelo de refor-
ma administrativa gerencial.54
O Estado-dirigente, comprometido com a gestão de resultados bali-
zada por constituições que traçam políticas públicas vinculantes, substitui a
imperatividade55 da clássica teoria da tripartição de poderes, que se desen-
volveu entre os séculos XVII e XX como dogma central do exercício republi-
cano do poder político, pela busca do consensualismo diante do pluralismo

52
A esse respeito, vale menção à teoria da moralidade incompleta, que destaca a eficiência
estatal quando se trata de arrecadação tributária, sem a necessária parcimônia na realização
das despesas públicas. Cf. FIGUEIRÊDO, Carlos Maurício C. Lei de Responsabilidade Fiscal: o
resgate do planejamento governamental. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Aspectos
relevantes da Lei de Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Dialética, 2001. p. 27.
53
ALMEIDA, Carlos Otávio Ferreira de. O planejamento financeiro responsável: boa
governança e desenvolvimento no Estado contemporâneo. In: CONTI, José Maurício; SCAFF,
Fernando Facury (coords.). Orçamentos públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011. p. 597.
54
DIAS, Maria Tereza Fonseca. Reforma administrativa brasileira sob o impacto da
globalização: uma (re)construção da distinção entre o público e o privado no âmbito da
reforma administrativa gerencial. In: TELLES, Vera da Silva; HENRY, Etienne (orgs.). Serviços
urbanos, cidade e cidadania. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 282.
55
Por imperatividade entende-se “que os atos administrativos são cogentes, obrigando a
todos quantos se encontrem em seu círculo de incidência”. Cf. CARVALHO FILHO, José dos
Santos. Manual de Direito Administrativo. 20. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 116.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 53


de ideias e interesses que se devem igualmente respeitar no Estado demo-
crático de direito.56
A democracia implica, além da atribuição do poder decisório às maio-
rias, a instauração de um contexto de diálogo, de respeito pela posição do
outro e de garantia dos direitos fundamentais,57 sem exclusão.
Por isso que a administração pública dialógica contrasta com a admi-
nistração pública monológica, refratária à instituição e ao desenvolvimento
de procedimentos comunicacionais com a sociedade.
É possível identificar, nos modelos dialógicos, o princípio da separa-
ção de poderes com o sistema de freios e contrapesos, que, “embora seja
relativamente recente na Europa Continental, não é propriamente novo nos
Estados Unidos”. Atualmente, vem se verificando a globalização do modelo
concebido pelos founding fathers, em que nenhum dos “poderes” assume
a função de exclusivo produtor de normas jurídicas e de políticas públicas
– police-maker; antes, os “poderes” constituem fóruns políticos superpos-
tos e diversamente representativos, cuja interação e disputa pela escolha da
norma que regulará determinada situação tende a produzir um processo de-
liberativo mais qualificado do que a mítica associação de um departamento
estatal à vontade constituinte do povo.58
No universo doutrinário anglo-saxão, há grande número de estudos
salientando as vantagens dos modelos teóricos que valorizam diálogos entre
órgãos e instituições, como se pode depreender das pesquisas de Laurence
G. Sager,59 Christine Bateup,60 Mark Tushnet,61 Mark C. Miller e Jeb Barnes.62

56
PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marinês Restolatti. Convênios e outros instrumentos
de “administração consensual” na gestão pública do século XXI: restrições em ano eleitoral.
3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 259. Nesse sentido, confira-se ainda: PEREIRA JUNIOR,
Jessé Torres. Presença da administração consensual no direito positivo brasileiro. In: FREITAS,
Daniela Bandeira de; VALLE, Vanice Regina Lírio do (coords.). Direito Administrativo e
democracia econômica. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 293-317.
57
SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um
estudo sobre o papel do Direito na garantia das condições para cooperação na deliberação
democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 302-303.
58
BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a
última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 221.
59
SAGER, Laurence G. Justice in plainclothes: a theory of American constitutional practice.
New Haven: Yale University Press, 2004.
60
BATEUP, Christine. The dialogical promise: assessing normative potential of theories of
constitutional dialogue. Brooklyn Law Review, v. 71, 2006.
61
TUSHNET, Mark. Weak Courts, strong rights: judicial review and social welfare right in
comparative constitutional law. Princeton: University Press, 2008.
62
MILLER, Mark C.; BARNES, Jeb (eds.). Making police, making law: an interbranch
perspective. Washington D.C.: Georgetown University Press, 2004.

54 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Tal tendência é acompanhada pela doutrina canadense (Peter W. Hogg e Alli-
son A. Bushell).63
Janet Hiebert64 sugere uma compreensão da teoria dialógica segundo
a qual deve ocorrer interação horizontal entre as instituições. Assim também
Carol Harlow e Richard Rawling,65 ao ressaltarem o desenvolvimento de um
processo administrativo por eles definido como “um curso de ação, ou pas-
sos na implementação de uma política”, de modo a permitir a concretização
da governação em rede,66 instrumento permanente da dialética em busca
dos melhores resultados nas escolhas administrativas.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto alerta que
essas posturas indicam a busca incessante das soluções negociadas, nas
quais a consensualidade aplaina as dificuldades, maximiza os benefícios
e minimiza as inconveniências para todas as partes, pois a aceitação de
ideias e de propostas livremente discutidas é o melhor reforço que pode
existir para um cumprimento espontâneo e frutuoso das decisões to-
madas. O Estado que substituir paulatinamente a imperatividade pela
consensualidade na condução da sociedade será, indubitavelmente, o
que garantirá a plena eficiência de sua governança pública e, como con-
sequência, da governança privada de todos os seus setores.67
Dessa releitura do papel do Estado, ainda nas palavras de Moreira
Neto, resultam “características distintas das que habitualmente lhe são co-
notadas, e tudo indica que terá como marcas a instrumentalidade, a abertu-
ra democrática substantiva, o diálogo, a argumentação, a consensualidade e
a motivação”.68
Ou, como pondera Egon Bockmann Moreira,69 a participação ou a in-
fluência que o cidadão possa verdadeiramente ter na formação da decisão
63
HOGG, Peter W.; BUSHELL, Allison A. The charter dialogue between Courts and legislatures
(or perhaps the Charter of Rights isn’t such a bad thing after all). Osgood Hall Law Journal, v.
35, n. 1, p. 105, 1997.
64
HIEBERT, Janet. New constitutional ideas. But can new parliamentary models resist judicial
dominance when interpreting rights? Texas Law Review, v. 82:7, p. 1963-1987, 2004.
65
HARLOW, Carol; RAWLINGS, Richard. Process and procedure in EU Administration. London:
Hart, 2014.
66
Governação em rede é o conceito que permite concentrar a atenção sobre a pluralidade
de temas, distintos, mas interdependentes, que participam interativamente na administração
europeia.
67
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Poder, Direito e Estado: o Direito Administrativo em
tempos de globalização. Belo Horizonte: Forum, 2011. p. 142-143.
68
Ibidem, p. 141.
69
MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo: princípios constitucionais e a Lei
9.784/1999. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 73.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 55


administrativa tende a gerar decisão quase consensual, provida, por isso
mesmo, de maiores chances de ser espontaneamente cumprida; o dever de
obediência transmuda-se em espontânea aceitação devido à uniformidade
de opiniões (ou ao menos devido à participação e ao convencimento recí-
proco).
3.2 O compromisso intergeracional do ajuste fiscal
Há sinais de que o governo federal brasileiro propõe-se a dialogar
sobre o processo de ajuste fiscal em curso,70 mas importa que as partes
dialogantes reconheçam ser o diálogo inerente ao Estado democrático de
direito, e não um disfarce para o prevalecimento de posições ou para cor-
reções unilaterais de erros pretéritos que não se podem admitir aberta-
mente. Nem, muito menos, que desse diálogo participem apenas agentes
dos poderes constituídos, resultando excluídas instâncias representativas
da sociedade civil.
Os Poderes Legislativo e Executivo possuem capacidades institucio-
nais71 que lhes são próprias. A simbiose entre seus integrantes beneficia o
processo democrático pautado nas razões públicas,72 que cumpre papel fun-
damental em um modelo presidencialista de coalizão.73
O sistema orçamentário decorrente da Constituição de 1988 pressu-
põe coparticipação equilibrada de Legislativo e Executivo, bem como a exis-
tência de um sistema de planejamento econômico a orientar a criação e a
execução das normas orçamentárias, a cada ano.74

70
AQUINO, Yara. Governo quer diálogo com Congresso para aprovar ajuste fiscal. Agência
Brasil, Brasília, 4 maio 2015. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/noticias/politica/2015/05/
governo-quer-dialogo-com-congresso-para-aprovar-ajuste-fiscal>. Acesso em­: 1 ­ 4 jun. 2015.
71
Acerca do tema capacidades institucionais, confira-se: SARMENTO, Daniel. Interpretação
constitucional, pré-compreensão e capacidades do intérprete. In: ______. Por um
constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e
direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 217-232.
72
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Deliberação pública, constitucionalismo e cooperação
democrática. In: ______. Constitucionalismo democrático e governo das razões. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 3-32.
73
Sobre presidencialismo de coalizão, merecem destaque os estudos desenvolvidos por
Paulo Ricardo Schier, principalmente: SCHIER, Paulo Ricardo. Vice-presidente da República
no contexto do presidencialismo de coalizão. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin (org.). Direito
Constitucional brasileiro. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 519-522.
74
ROCHA, Francisco Sérgio Silva. Orçamento e planejamento: a relação de necessidade
entre as normas do sistema orçamentário. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury
(coords.). Orçamentos públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
p. 741.

56 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Tal dialeticidade pode ser extraída das correlações estabelecidas no
Texto Fundamental entre plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias e
orçamento anual (art. 166, CF/88), constitutivas de mecanismos de planeja-
mento, aplicação e controle sobre os recursos públicos, de sorte que Execu-
tivo e Legislativo interajam na efetivação das políticas públicas.75
A flexibilidade é inerente à execução orçamentária, mas isso não signi-
fica que possa descumprir o estabelecido na legislação orçamentária, o que
também vincula os ajustes fiscais que se venham a mostrar imprescindíveis
para adaptar o orçamento às imprevisibilidades surgidas ou aos desvios em-
butidos no decorrer do exercício financeiro.76 O equilíbrio das contas públicas
nada mais é, ou deve ser, do que o cumprimento de metas e resultados entre
receitas e despesas, bem como a observância de certos limites e condições
impostos pela Constituição Federal e pela Lei de Responsabilidade Fiscal.77
Assim visto e praticado, o planejamento torna-se referencial seguro
e politicamente consensual,78 sobretudo quando se está a tratar de finan-
ças públicas, ao mesmo tempo que se revela instrumento essencial para o
desenvolvimento da atividade administrativa estatal de fomento público.79
Segue-se que o planejamento fiscal é um dos subsistemas mais importantes
da Lei de Responsabilidade Fiscal, nos termos de seu art. 4º, § 1º.80
A LRF quer que os resultados buscados sejam claros, devendo haver
a prefixação transparente de metas fiscais, tomando a feição de compro-
missos públicos exigíveis, por isso que juridicizáveis; basta frisar que os seus
artigos 15 e 16 cominam a sanção de nulidade para os atos de ação gover-
namental que, implicando despesas de capital não previstas no orçamento
(investimentos em equipamentos e imóveis que se acrescerão ao patrimô-

75
ROCHA, Francisco Sérgio Silva. Orçamento e planejamento: a relação de necessidade
entre as normas do sistema orçamentário. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury
(coords.). Orçamentos públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
p. 730.
76
CONTI, José Maurício. Aprovação do orçamento impositivo não dá credibilidade à lei
orçamentária. Revista Consultor Jurídico, 10 mar. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.
com.br/2015-mar-10/paradoxo-corte-aprovacao-orcamento-impositivo-nao-credibilidade-
lei-orcamentaria>. Acesso em: 10 jun. 2015.
77
SILVA, Francis Waleska Esteves da. A Lei de Responsabilidade Fiscal e os seus princípios
informadores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 45.
78
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Considerações sobre a Lei de Responsabilidade
Fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 105.
79
SOUTO, Marco Juruena Villela. Aspectos jurídicos do planejamento econômico. 2. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, passim.
80
OLIVEIRA, Weder de. Curso de Responsabilidade Fiscal: Direito, orçamento e finanças
públicas. v. 1. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 55.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 57


nio público), desatendam aos requisitos ali estatuídos. O Estado deve definir
suas finalidades fiscais, tornando-as transparentes, e envidar esforços para o
seu atendimento e o seu controle, este demandando, como preliminar pre-
judicial de sua efetivação, a prévia definição do escopo visado em cada ação
política administrativa, sem o que não se viabiliza o controle por falta de
parâmetros.81
Subjaz na edição da LRF o seu caráter intergeracional, do qual se extrai
o cuidado de evitar que se transfira à geração futura peso financeiro exces-
sivo, formado por despesas (especialmente correntes) iniciadas hoje e por
dívidas contraídas no presente que repercutirão negativamente no porvir.82
O orçamento é instrumento do planejamento, mas não é o planeja-
mento em si.83 Daí a necessidade da criação de mecanismos institucionais
viabilizadores de uma nova forma de atuação da administração pública fi-
nanceira. Exemplifique-se com o performance budget (em livre tradução, or-
çamento de desempenho), que significa redefinir o modelo de administração
pública, substituindo o modelo burocrático (vertical) por mecanismos de to-
mada de decisão horizontal, com maior envolvimento de funcionários e diri-
gentes, além de maior responsabilização de todos os atores, indispensável à
maturação de uma cultura de accountability,84 cultura essa que conduzirá à
entronização, nas práticas orçamentárias, da avaliação permanente de pro-
gramas de governo com vistas à eficiência dos gastos públicos.85
Em outras palavras, o modelo deve ser integrativo dos fundos provi-
dos pelo setor público e dos respectivos resultados (outputs e outcomes) al-
cançados, considerando as informações sobre o desempenho dos programas
de governo e a utilização dessas informações pelos tomadores de decisão,

81
MOREIRA, Egon Bockmann. O princípio da transparência e a responsabilidade fiscal. In:
ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Aspectos relevantes da Lei de Responsabilidade Fiscal.
São Paulo: Dialética, 2001. p. 142.
82
SANTOS, Ricart César Coelho dos. Debutante, Lei de Responsabilidade Fiscal tem novos
desafios. Revista Consultor Jurídico, 24 maio 2015.
83
ROCHA, Francisco Sérgio Silva. Orçamento e planejamento: a relação de necessidade
entre as normas do sistema orçamentário. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury
(coords.). Orçamentos públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
p. 742.
84
CABRAL, Nazaré. Orçamentação pública e programação: tendências internacionais e
implicações sobre o caso português. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury
(coords.). Orçamentos públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
p. 653.
85
NÓBREGA, Marcos. Orçamento, eficiência e performance budget. In: CONTI, José Maurício;
SCAFF, Fernando Facury (coords.). Orçamentos públicos e Direito Financeiro. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011. p. 717.

58 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


gerentes, políticos e sociedade. O principal objetivo é o de aprimorar a alo-
cação e a eficiência dos recursos públicos.86
A preocupação com a melhoria na qualidade do processo orçamentá-
rio retrata a experiência europeia, ao que sublinha João Ricardo Catarino,87
verbis:
Os Estados europeus têm ainda vindo, em paralelo, a alterar
substancialmente os respectivos processos orçamentais, tendo em
vista melhorar a disciplina orçamental e a eficiência e a eficácia da
despesa pública. A OCDE tem salientado que os Estados europeus
ainda se apegam a uma concepção do processo orçamental predo-
minantemente centrada no respeito pelos limites legais e em mo-
delos de controle detalhado da despesa pública e menos orientada
para um controle mais flexível, mais focado na execução orçamental.
Alguns Estados, sobretudo os de matriz anglo-saxônica ou do norte
da Europa, estão, tradicionalmente, mais habituados a este segundo
modelo e possuem hoje, em resultado disso, processos orçamentais
mais em linha com as modernas necessidades de controle, mais in-
clinados para as questões da eficiência do que para as de estrita e
rígida observância da lei.
Ainda assim, sendo a evolução do processo orçamental uma ques-
tão transversal na Europa, têm-se verificado sucessivas reformas do
processo orçamental, em especial no que respeita ao modo como se
processa a prestação de contas, envolvendo ou não a criação de no-
vos órgãos de controle ou o robustecimento dos poderes dos órgãos
existentes.
A União Europeia tem defendido uma abordagem global em ma-
téria de política orçamental tendo em vista o aumento da qualidade
das finanças públicas e a promoção do crescimento econômico a longo
prazo. E reconhece que o processo requer uma ação política concer-
tada que favoreça o crescimento e promova a competitividade com
recurso a medidas que permitam aumentar a eficiência dos regimes
de despesas e de receitas.
Seja no desenho de novos modelos orçamentários, seja no cenário de
adequação das alocações orçamentárias, imperioso se apresenta o diálogo
entre os poderes na busca da solução mais eficiente diante das conjunturas
econômicas e sociais, a que se deve acrescentar a perspectiva da sustentabi-
lidade (não apenas ambiental, mas, também, social, econômica e gerencial).
Ajustes serão sempre necessários em face da constante mudança das reali-

Ibidem, p. 719.
86

CATARINO, op. cit., p. 789.


87

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 59


dades socioeconômicas. A mudança é inerente a essas realidades, e o poder
público deve estar preparado para com ela lidar de forma eficiente e eficaz,
criando e mantendo espaços de debate de ideias, qualificado pelo norte do
interesse público.
Síntese conclusiva
1. Nos Estados modernos dos séculos XIX e XX, o orçamento público
se limitava a relacionar as receitas com as despesas, ou seja, um ato de es-
timativa das receitas e de fixação das despesas, sendo este o repositório da
essência da atividade financeira do Estado a cada período de vigência orça-
mentária.
2. A partir de meados do século XX, a preocupação estrita com o equi-
líbrio contábil anual das contas públicas cede lugar a considerações mais
amplas a respeito da função social do orçamento público, o que faz surgir
o “orçamento-programa”, definível como um processo por meio do qual se
expressa, se aprova, se executa e se avalia o nível de cumprimento do pro-
grama de governo para cada período orçamentário, levando em conta as
perspectivas de médio e longo prazos, uma vez que, ao refletir os recursos
financeiros a serem aplicados no exercício, haveria de constituir um instru-
mento de planejamento.
3. A Lei Complementar nº 101/2000, a chamada Lei de Responsabili-
dade Fiscal (LRF) – em curso, destarte, o seu 15º aniversário –, representa o
mais avançado instrumento legislativo da história da administração pública
brasileira para o controle dos orçamentos, na pós-modernidade do Estado
democrático de direito. Mercê dela, a gestão da despesa pública no Brasil
passa a pautar-se por critérios mais gerenciais e transparentes, seguindo-se
uma proposta de governança pública na qual a sociedade possa acompanhar
criticamente as despesas governamentais, com o fim de assegurar que a en-
trega do serviço ou do bem público desejado ocorrerá segundo parâmetros
aferíveis, eficientes e eficazes.
4. Dentre outros fatores, o desequilíbrio fiscal experimentado pelos
entes da federação brasileira tem origem nas deficiências do planejamento
governamental, associadas a más práticas orçamentárias.
5. Ajustes fiscais devem resultar de diálogo entre os poderes constituí-
dos e a sociedade que os constituiu, de modo a adequar as finanças públicas
à realidade socioeconômica, sempre mutante, e balizá-las pela qualidade de
vida e pelo mínimo existencial que se deve garantir a toda a população, sem
exclusão e sem retóricas fantasiosas.

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66 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Reflexões a respeito do tema “precedentes” no Brasil
do século 21*1*
Teresa Arruda Alvim
Advogada, Livre-Docente e Doutora em Direito pela PUC-SP, Professora na PUC-SP,
Professora Visitante na Universidade de Cambridge (Inglaterra) e na Universi-
dade de Lisboa, Diretora de Relações Internacionais do IBDP, Coordenadora da
Revista de Processo

Sumário: 1 Importância do tema no Brasil é recente: causas. 2 O papel


do NCPC. 3 Observância a precedentes: dever do juiz, que não existe só no
common law. 4 O que é um precedente? 5 O art. 927 e sua desajeitada re-
dação: os juízes e tribunais “observarão” (...). 6 A jurisprudência estável vai
“engessar” o direito brasileiro? 7 A modulação. 8 Da improcedência liminar
do pedido. 9 Da tutela da evidência. Conclusão.
1 Importância do tema no Brasil é recente: causas
A importância do tema precedentes no Brasil é relativamente recente.
Muito provavelmente vem decorrendo de que, frequentemente, nos últimos
tempos, a mesma questão jurídica vem sendo decidida de formas diferentes
por diversos tribunais brasileiros.
Esse fenômeno tem várias causas: a quantidade imensa de tribunais
que há no país, as profundas diferenças culturais que existem entre as re-
giões e, last but not least, o fato de o número de processos em curso ter
aumentado significativamente nas últimas décadas.
Acontece, também, de a mesma questão ser decidida de modos dife-
rentes por um mesmo tribunal. Não raramente, são os próprios tribunais de
cúpula, cujo sentido e cuja razão de ser é dar a última palavra sobre o senti-
do da lei e da CF/1988 (em temas a respeito dos quais há repercussão geral),
que proferem decisões diferentes acerca da mesma questão de direito. E,
ademais, alteram sua jurisprudência muito rapidamente.
A preocupação com as decisões conflitantes dos tribunais superiores
e, por conseguinte, dos demais órgãos do Judiciário extrapolou a academia
e atingiu o próprio operador do direito, por três razões: a) o fenômeno pas-
sou a ser excessivamente frequente, somado a muitas bruscas mudanças de
“opinião” dos tribunais; b) muitas dessas decisões conflitantes são proferi-
das para resolver controvérsias que envolvem questões de massa. Nesse

Todos os artigos citados no texto sem referência são do NCPC.


*1

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 67


caso, a ofensa à isonomia é mais gritante e, portanto, intolerável; c) passou
a ser escancaradamente visível o fato de que os princípios da legalidade e da
isonomia ficam inteiramente comprometidos, e a necessidade de que haja
segurança jurídica e certa dose saudável de previsibilidade tornam-se irreali-
záveis no plano empírico, nesse contexto.
Vem-se tornando cada vez mais evidente que a máxima no sentido
de que, em países de civil law, o juiz deve decidir de acordo com sua própria
convicção não pode ser levada às últimas consequências.
Desde a primeira reforma do art. 557 do CPC/1973, em 1998, com a
Lei 9.756, de 17.12.1998, percebeu-se que o legislador já tinha sentido a ne-
cessidade de usar a jurisprudência como forma de agilizar o procedimento,
dando-lhe, simultaneamente, mais prestígio.
Foram muitos os passos, e este não é o espaço apropriado para se
fazer um retrospecto.
Basta, apenas, recordar que a valorização da jurisprudência, no sen-
tido lato, leva: a) à possibilidade de se criarem institutos que levam à ace-
leração do procedimento; b) a que haja mais credibilidade em relação ao
Poder Judiciário; c) a uma progressiva diminuição da carga de trabalho do
Judiciário, já que a desuniformidade da jurisprudência e a possibilidade, que
existe sempre, de que haja uma “virada” estimulam não só o ato de recorrer,
como também a própria propositura de novas ações.
2 O papel do NCPC
Uma das principais características do NCPC é extrair todas as possíveis
consequências positivas de se prestigiar a jurisprudência, não só, mas, prin-
cipalmente, a dos tribunais superiores.
O art. 926 é sinal evidente dessa tendência: trata-se de um artigo de
natureza principiológica, em que se recomenda aos tribunais, em geral, que
uniformizem a sua jurisprudência, mantenham-na estável, íntegra e coeren-
te. Pensamos que se inclui nesse dispositivo também a intenção de que não
haja desuniformidade interna nos tribunais. Essa situação – de estabilidade,
integridade e coerência – com certeza tende a diminuir a carga de recursos
que seriam destinados a este tribunal, que passa a ser mais respeitado e a
cumprir adequadamente com o dever de gerar segurança jurídica. Caso, é
claro, deem atenção a esse dispositivo.
Recomenda-se, também, a edição de súmulas, e que essas súmulas
contenham, na medida do possível, referências aos casos em que as decisões
foram no sentido da tese jurídica adotada no verbete, para evitar que seja
usada para resolver casos diferentes.

68 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


O NCPC age em todas as possíveis dimensões e direções: a) estimula
a criação de jurisprudência uniforme e estável, com toda uma parte princi-
piológica que está contida nos arts. 926 e 927. Assim, concretiza-se o princí-
pio constitucional da isonomia, gera-se mais previsibilidade, criando-se uma
dose mais elevada de segurança jurídica; b) usa esse parâmetro para empre-
gar técnicas de aceleração do julgamento, como, por exemplo, se faz no art.
933, que trata dos poderes do relator; c) usa como parâmetro para especifi-
car casos de cabimento ou de não cabimento de recursos (art. 1.035, § 3º);
d) usa a conformidade com precedentes para resolver questões de direito
idênticas, de massa, como ocorre no IRDR e nos recursos repetitivos.
3 Observância a precedentes: dever do juiz, que não existe só no
common law
O Brasil é um país de civil law, ou seja, daqueles em que o juiz decide com
base na lei. O natural, no nosso sistema, é que a força de orientação da jurispru-
dência apareça, na medida em que essa jurisprudência é reiterada e uniforme.
Também é típico do nosso sistema que precedentes dos tribunais su-
periores, mesmo que seja um só, tenham autoridade diferenciada. Por isso é
tão grave e indesejável que os tribunais superiores alterem frequentemente
as suas posições.
Aliás, a própria estrutura do Poder Judiciário sugere que esse respeito
deva, naturalmente, ocorrer. Órgãos que estão no vértice superior do triân­
gulo devem proferir decisões que sejam paradigmáticas em relação aos de-
mais órgãos do Poder Judiciário e a toda a sociedade: são, na verdade, nor-
mas de conduta.
A função normativa exercida pelo Judiciário, em maior ou menor in-
tensidade, torna imperativo tanto o respeito a precedentes quanto o empre-
go de meios de resolução de conflitos de massa, por exemplo, o Incidente
de Resolução de Demandas Repetitivas e os repetitivos, sob pena de haver
intolerável desrespeito à isonomia.
O NCPC vai além dessas características típicas dos sistemas como o
nosso e faz com que certas decisões, proferidas em certos contextos abaixo
mencionados (item 4), já nasçam com força de precedentes que devem ser
necessariamente respeitados, sob pena de estarem sujeitas à reclamação.
4 O que é um precedente?
É uma decisão (na verdade, a ratio dessa decisão) sobre um conflito
existente entre Maria e João, que é seguida, obedecida e respeitada, no con-
flito posterior, igual, entre Silvio e Josefa, porque:

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 69


a) a posteriori, se percebe que a decisão é densa, bem fundamentada,
tem valor intrínseco. Pode ser até mesmo uma sentença, uma decisão de um
tribunal de segundo grau, mas o mais natural (o que habitualmente aconte-
ce) é que se trate de uma decisão de um tribunal superior;
b) a priori, nos países de common law, quando se trata de temas que
são regidos por essa via (direito criado pelos tribunais), as decisões sobre o
caso entre Maria e João já nascem como precedentes para outros casos e
terão sido tomadas com base em outros precedentes.
É imprescindível observar que os precedentes, na Inglaterra e em ou-
tros países de common law, devem ser obedecidos e são utilizados para re-
solver casos subsequentes, ainda que não se trate de casos idênticos. Os
fatos podem ser diferentes, mas as razões jurídicas fundamentais podem ser
as mesmas (ratio decidendi, core, holding ou essência jurídica da decisão).
Aqui no Brasil, os precedentes ainda são utilizados quase que exclusivamen-
te quando os casos subsequentes são idênticos;
c) o NCPC elegeu alguns casos em que a decisão judicial, em certas
circunstâncias (art. 927, III), já nasce como sendo precedente, em que se
devem basear decisões posteriores em casos iguais, sob pena de reclamação.
São precedentes de obrigatoriedade forte, já que o sistema concebeu um
remédio cujo específico objetivo é levar à correção das decisões que deixam
de se basear no que foi decidido anteriormente: a reclamação.
Isso é excepcional nos países de civil law. Tradicionalmente, o que
acontece nesses países é que acaba se tornando naturalmente obrigatória a
jurisprudência remansosa, pacificada, a respeito de certa questão de direito.
No Brasil, infelizmente, os tribunais superiores têm encontrado certa
dificuldade, provavelmente como consequência do número elevadíssimo de
processos e de recursos que julgam, para uniformizar sua jurisprudência in-
terna e estabilizá-la. Justamente por isso é que, por exemplo, o NCPC abriu
consideravelmente as hipóteses de cabimento dos embargos de divergência,
que são um recurso cuja função é uniformizar a jurisprudência dos tribunais
superiores.
São, portanto, um recurso que legitima esses tribunais, fazendo com
que estes exerçam a função que lhes foi constitucionalmente atribuída, de-
vendo, assim, ser vistos com bons olhos.
Institutos como o IRDR, absolutamente novo, bem como os recursos
repetitivos (RESP e RE), cujo regime foi aprimorado, mas que já existiam no
CPC/1973, têm por objetivo gerar uniformização das decisões do Judiciário
sobre a mesma tese jurídica, a partir de uma decisão do STJ ou do STF, quan-
do se tratar de casos idênticos (normalmente, direitos individuais homogê-

70 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


neos ou situação equivalente), sendo reforçados pela obrigatoriedade “à
brasileira”, que, a nosso ver, consiste na necessidade de que haja algum tipo
de consequência específica e indesejável: cabimento da reclamação.
Os precedentes devem ser respeitados nos casos posteriores ao en-
cerramento do incidente, e há obrigatoriedade que chamamos, como já ob-
servamos, de forte.
Em tempo: súmulas não são precedentes, é evidente. Mas sua presen-
ça constante no NCPC não deixa de ser um sintoma claro da relevância que
se deve dar, à luz do novo código, à jurisprudência. As súmulas são uma es-
pécie de resumo da essência da tese aplicada pelo tribunal reiteradamente
para resolver casos semelhantes.
A assunção de competência pode ter lugar quando houver questões
que se repitam país afora e que possam ser decididas (prevenir ou corrigir
divergências) ou já tenham sido decididas diferentemente, mas o instituto
não se destina a resolver questões de massa, como ocorre com o IRDR ou
com os RESP e RE repetitivos.
São questões que têm um núcleo idêntico e se repetem (a ratio, a hol-
ding, o core), embora não sejam necessariamente questões de massa.
Nesses casos, faz sentido se procurar a ratio decidendi, já que os casos
não necessariamente são relativos a direitos individuais homogêneos. Nos
outros, essa preocupação, de regra, não precisa existir, já que o precedente
que deve servir de base à decisão é absolutamente idêntico ao caso que vai
ser julgado, só variando as partes. E, às vezes, só uma delas.
5 O art. 927 e sua desajeitada redação: juízes e tribunais “observarão” (...)
Foi, a nosso ver, infeliz a expressão encontrada pelo legislador, para
reunir, em um só artigo (art. 927), situações diferentes. A necessidade de
respeito a decisões proferidas em ADIn, em AdeConst e em ADPF, bem como
às súmulas vinculantes, nada tem que ver com respeitar precedentes. Sú-
mulas não são decisões judiciais e decisões em controle concentrado não são
precedentes. Obviamente têm de ser respeitadas, sob pena de reclamação!
Levando-se em conta o tipo de consequência que pode decorrer do
afastamento do precedente, pode-se dizer que haverá, no Brasil, estando em
vigor o NCPC, vários “graus” de obrigatoriedade. Certamente, aquele que a
lei não pode resolver é o respeito que um tribunal tenha aos seus próprios
precedentes. Isso é imperioso (jurisprudência estável) para que o que se
“propõe” no NCPC gere resultados satisfatórios.
Precedentes vinculantes em sentido forte estão no art. 927, III. Fortes,
porque ensejam reclamação.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 71


A Lei 13.256/2016, que modifica o NCPC mesmo antes de este entrar
em vigor, retira parte da força dissuasiva (desestímulo) do cabimento da re-
clamação, pois no art. 988, § 5º, II, exige que, caso a reclamação seja propos-
ta com o objetivo de levar à correção da decisão que desrespeita acórdão
proferido em recurso especial ou extraordinário repetitivo, devem esgotar-
se, preliminarmente, as instâncias ordinárias. A nova lei menciona também
“recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida”: supõe-se que
não se poderá decidir contrariamente ao reconhecimento de que há reper-
cussão geral quando a questão for idêntica, tampouco contra decisão pro-
priamente do recurso (= mérito do recurso) que, agora, tem vinculação forte.
Nos incs. IV e V estão as situações em que a obrigatoriedade é média.
É normal e desejável que esses parâmetros sejam respeitados, e, se houver
afastamento deles, a decisão pode ser corrigida (ou não) pela via recursal. No
que atine a precedentes, pode-se pensar na obrigatoriedade média gerada
por um precedente da Corte Especial do STJ, cujo desrespeito só pode ser
corrigido por meio de recurso, e não de reclamação. Há parâmetros, que não
são precedentes, mas também devem ser respeitados. Súmulas, por exem-
plo. A correção se faz pela via recursal e pode nem mesmo ser feita! É que há
súmulas antigas, contraditórias, superadas... Quanto às decisões do plenário
e do órgão especial, de fato, desrespeitá-las é não entender o sentido da
estrutura de um tribunal.
Assim, o código, quando usa a expressão “observar”, que não tem sen-
tido técnico, trata de situações diferentes, extremamente heterogêneas.
Pode-se, ainda, falar de um grau que, no Brasil, é fraco de obrigatorie-
dade: a “vinculatividade” de um juiz às suas próprias decisões. Essa vincula-
ção é suave: mas é evidente que se espera coerência dos agentes do poder
público, que devem inspirar confiabilidade na sociedade, gerando previsibili-
dade. Não há, todavia, remédio algum que sirva para veicular inconformismo
em relação a um juiz ou tribunal ter desrespeitado suas próprias orientações.
Mas um tribunal que desrespeita permanentemente seus precedentes pres-
ta um desserviço ao país.
6 A jurisprudência estável vai “engessar” o direito brasileiro?
Se os objetivos visados pelo NCPC forem alcançados, podem alguns
levantar essa questão.
A resposta é negativa. A jurisprudência deve, sim, se alterar, porque
é o termômetro mais sensível das mudanças que ocorrem na sociedade, e o
direito serve a ela. Mas mudanças na sociedade ocorrem em décadas, sécu-
los, e não em dias ou meses ou mesmo anos.

72 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Se há certos campos do direito que sofrem diretamente efeitos gera-
dos pelas mudanças sociais, como, por exemplo, o direito de família, outros
campos há em que essas mudanças não podem ser levadas em consideração
pelo juiz, como, v.g., o direito tributário. É preferível que a mudança da regra
se faça pela alteração da lei, por causa de regras de direito intertemporal e
do prestigio que se dá, no direito tributário, a valores como segurança jurídi-
ca e previsibilidade.
O NCPC trata de demonstrar que a mudança da jurisprudência é algo
que deve ser visto, sentido, como fenômeno excepcional e ocorrer de forma
mais solene. Deve haver consciência de que se está mudando a regra, a pau-
ta de conduta considerada correta, e isso não pode se alterar a cada semana
nem a cada mês. A essa mudança consciente e lenta é que se chama overru-
ling, que não é o que normalmente ocorre no Brasil.
O código novo deixa claro que essa mudança deve ser algo excepcional.
Prevê, por exemplo, que a mudança da orientação quanto à tese ado-
tada em recurso repetitivo ou em IRDR poderá ser precedida de audiências
públicas e da participação de amici curiae. Essa mudança deve ser bem fun-
damentada e só ocorrer quando for mesmo necessária: diz a lei nova que
devem ser levados em conta os princípios da confiança, da segurança jurí-
dica e da proteção. O legislador mostra reconhecer que a estabilidade e a
segurança são valores que devem ser levados em conta na hora de se decidir
mudar uma orientação (art. 927, §§ 2º e 4º).
7 A modulação
Esta é uma novidade do NCPC que já vinha sendo feita no STF,1 mas
que, de rigor, só era prevista em lei para o caso da ADIn.
O fato de ter o legislador posto no NCPC, expressamente, a possibili-
dade de haver modulação (art. 927, § 3º) decorre da consciência de que as
decisões judiciais realmente criam normas jurídicas, que orientam a conduta
das pessoas.
A interpretação da norma posta, em diversas medidas, acrescenta
sentido à pauta de conduta lá prevista. Interpretar é compreender, e quem
1
“Recurso extraordinário. Direito do Trabalho. Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
(FGTS). Cobrança de valores não pagos. Prazo prescricional. Prescrição quinquenal. Art. 7º,
XXIX, da Constituição. Superação de entendimento anterior sobre prescrição trintenária.
Inconstitucionalidade dos arts. 23, § 5º, da Lei 8.036/1990 e 55 do Regulamento do FGTS, aprovado
pelo Decreto 99.684/1990. Segurança jurídica. Necessidade de modulação dos efeitos da decisão.
Art. 27 da Lei 9.868/1999. Declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex nunc. Recurso
extraordinário a que se nega provimento.” (STF, ARE 709.212/DF, Tribunal Pleno, j. 13.11.2014,
rel. Min. Gilmar Mendes, acórdão eletrônico, repercussão geral – mérito, DJe 19.02.2015)

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 73


compreende o faz a seu modo.
Por isso, a incidência imediata da mudança pode gerar tumulto inde-
sejável e, em atenção a razões de segurança jurídica e interesse social, pode
o tribunal modular os efeitos dessa mudança.
Assim como a lei, uma vez alterada, atinge situações a partir do mo-
mento em que entra em vigor e para o futuro, se se reconhece que a mu-
dança de orientação de um tribunal tem um peso e uma função muito se-
melhante à mudança da lei, é natural que também essa alteração deva valer
dali para frente.
Mas a modulação é mais do que isso: pode ser temporal, espacial,
gradativa, escalonada, enfim, é uma porta aberta para, em função da situa-
ção concreta, se estabelecerem regras quanto ao alcance da mudança.
A possibilidade de modulação existe quando houver alteração de tese
jurídica adotada pela jurisprudência dominante do STF ou de tribunal supe-
rior (e aqui se vê a tradição do nosso direito, é a jurisprudência dominante
que deve ser – e é mesmo – acatada pelos demais tribunais e pela própria
sociedade como pauta de conduta), de IRDR e de decisão proferida em re-
petitivos. Tem sido feita também em recursos extraordinários avulsos, que,
por causa da última alteração do CPC (antes de entrar em vigor), também
vinculam, sob pena de reclamação.
8 Da improcedência liminar do pedido
Decisões de tribunais e súmulas também são usadas em técnicas para
acelerar o procedimento, como, por exemplo, o julgamento de mérito (im-
procedência) liminar do pedido, mesmo antes da citação do réu (art. 332).
Os parâmetros que permitem que o juiz julgue liminarmente o pedido,
em causas em que seja desnecessária a fase instrutória, são a existência de:
a) enunciados de súmula do STF ou do STJ; b) acórdão proferido em recurso
repetitivo, em IRDR ou em assunção de competência; e c) súmula de Tribunal
de Justiça sobre direito local.
Trata-se, no art. 322, I e IV, de casos de obrigatoriedade média. Já nos
casos do art. 322, II e III, ao juiz não é dado outro caminho.
Sim, o respeito a precedentes envolve a necessidade de se abrir mão
da própria convicção em nome de outras necessidades, de caráter público.
9 Da tutela da evidência
Outro momento em que se percebe a força da jurisprudência no NCPC
é no art. 311, II, que diz poder ser concedida a tutela de urgência, indepen-
dentemente da demonstração de qualquer espécie de periculum, quando as

74 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


alegações do autor puderem ser comprovadas só por prova documental e o
pedido for baseado em tese adotada em solução de IRDR, em repetitivos ou
em súmula vinculante.
Conclusão
Vê-se, pois, que a força que se vem dando no Brasil à jurisprudência
e a precedentes, mesmo considerados individualmente, nada mais é do que
fruto da consciência de que o juiz cria direito e de que a isonomia tem que
ser respeitada. Por bem ou por mal.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 75


76 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8
Parecer jurídico: improbidade administrativa
Fábio Medina Osório
Advogado, Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de
Madri, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Sumário: Consulta. Considerações preliminares. Primeira pergunta.


Segunda pergunta. Conclusão.
Consulta
Trata-se de consulta formulada pela Deputada Federal Cristiane Brasil
a respeito da suspensão judicial de sua posse em cargo de Ministra de Estado
do Trabalho.
Para tanto, relata que, após ter sido nomeada no cargo, em 03 de
janeiro de 2018, pelo Exmº Presidente da República Michel Temer, foi ajui-
zada a Ação Popular nº 001786-77.2018.4.02.5102, por advogados traba-
lhistas pertencentes ao Movimento dos Advogados Trabalhistas Indepen-
dentes, o que acarretou a suspensão do respectivo ato de posse pelo d.
Juízo da 4ª Vara Federal de Niterói/RJ e a manutenção da decisão pelo
Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF 2), apesar dos recursos (agravo
de instrumento e embargos declaratórios) interpostos pela Advocacia-Ge-
ral da União.
Acertadamente, o Exmo. Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
Humberto Martins, após constatar a presença de fumus boni iuris e pericu-
lum in mora e a indevida interferência no funcionamento regular da Admi-
nistração Pública, deferiu liminarmente o pedido da União de suspensão dos
efeitos da liminar prolatada pela 4ª Vara Federal de Niterói e mantida pelo
vice-presidente no exercício da Presidência do TRF da 2ª Região, para deter-
minar o retorno da eficácia do decreto de nomeação ao cargo de Ministra
de Estado do Trabalho, possibilitando a posse imediata da Deputada Federal
Cristiane Brasil, até o trânsito em julgado da ação originária.
Contudo, a Exmª Ministra do STF Cármen Lúcia Antunes Rocha, no úl-
timo dia 21 de janeiro de 2018, após a Reclamação Constitucional nº 29.508
ajuizada pelos advogados trabalhistas autores da AP originária, deferiu limi-
nar suspendendo novamente o ato de posse, sob o entendimento de risco de
usurpação de competência do STF e como medida geral de cautela.
Dito isso, a Deputada Federal Cristiane Brasil apresenta os seguintes
questionamentos para a emissão do parecer jurídico ora solicitado:

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 77


a) Cabe ação popular neste caso, considerando as premissas des-
critas, para invalidar o ato do Exmo. Presidente da República Michel
Miguel Elias Temer Lulia que determinou minha nomeação ao cargo
de Ministra do Estado do Trabalho?
b) O fato de responder ou haver respondido às ações trabalhistas
descritas nesta consulta ofende o princípio da moralidade administra-
tiva inscrito no caput do art. 37 da CRFB/88 ou na Lei nº 4.717/1965
(Ação Popular)?
Passo à resposta da consulta, de modo sucinto.
Considerações preliminares 
A consulta exige a compreensão do alcance e do conteúdo do princí-
pio da moralidade administrativa, hoje inscrito no inciso LXXIII do art. 5º e
no caput do art. 37 da Carta Constitucional de 1988, que é objeto da inicial,
base da demanda. Por isso, indiscutivelmente, tais dispositivos são objeto da
controvérsia.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto,1 em célebre trabalho, enunciou,
certa feita, numerosos dispositivos que tratavam do conceito “moralidade
administrativa”, como os preceitos dos arts. 5º, LXVIII, LXIX e LXXIII, 37, caput,
§ 4º, 142, VI, 72, § 2º, 85, V, e 52, I, todos da CRFB/88.
Mas os textos que interessam ao debate desta consulta são os que
acabo de mencionar e que transcrevo explicitamente adiante:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popu-
lar que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade
de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio am-
biente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo com-
provada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)

1
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Moralidade administrativa: do conceito à efetivação.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 190, p. 1-44, out./dez. 1992.

78 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Para um histórico do conceito de moralidade administrativa, é impe-
rioso recordar que foi Maurice Hauriou,2 célebre administrativista francês,
quem formulou esse princípio jurídico, ao comentar a jurisprudência do Con-
selho de Estado francês e perceber a existência de regras não escritas. Diga-
se que são uma peculiaridade do direito administrativo romano-germânico,
de matriz francesa, sua origem e sua formação jurisprudencial. Hauriou per-
cebeu que, pelo controle do Conselho de Estado, muitas regras formaram
uma espécie de moralidade institucional, gerando deveres imanentes ao di-
reito administrativo, que se poderia reconhecer nesse princípio da moralida-
de administrativa.
A moralidade administrativa, entretanto, tem suas dimensões muito
peculiares.3 A moral administrativa cria, tanto aqui quanto no sistema fran-
cês, um ambiente de ética institucionalizada para a estruturação jurídica dos
deveres públicos e para a valoração dos deveres explícitos e implícitos, não
sendo uma norma oposta ou que se contraponha à legalidade. Devemos exa-
minar os deveres públicos no marco de uma escala de valores, isso é o que
deriva, em última instância, da moralidade administrativa, que relativiza, ain-
da, o valor dos dispositivos e antecipa uma distinção contemporânea entre
texto e norma.4
O conceito de desonestidade, no terreno jurídico, é mais restrito que o
peculiar do universo moral. Neste, a desonestidade pode englobar falhas de
caráter ou distorções morais bastante polêmicas, como aquelas relativas a
deveres de fidelidade matrimonial ou nos relacionamentos de amizade e de
amor, sem falar nas questões puramente patrimoniais, como dívidas e prefe-
rências por jogos de azar. Na honestidade profissional, ao contrário, homens
com vícios morais podem encaixar-se tranquilamente, desde que observem
as regras de bom exercício de suas atividades funcionais.5
Em outras palavras, o sujeito que é mau marido ou péssimo amigo nas
relações pessoais, mau pai, mau filho, jogador contumaz, poderá cumprir
com todas as suas obrigações profissionais, satisfazendo os pressupostos da
honestidade funcional. Veja-se que, no serviço, tal pessoa poderia ser apon-
tada como carreirista ou mau caráter e na vida pessoal ser considerada, no

2
HAURIOU, Maurice. Précis élementaire de droit administratif. 4. ed. Paris: Sirley, 1938. p.
232 e ss.
3
OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública,
corrupção e eficiência. 3. ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 77-78.
4
OSÓRIO, Fábio Medina. Op. cit., p. 80-81.
5
OSÓRIO, Fábio Medina. Op. cit., p. 126.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 79


mínimo, desregrada ou fora dos padrões tidos como normais.6 Nada disso
será considerado ofensivo ao princípio da moralidade administrativa. Basta
imaginar o que é a vida de traições na própria esfera da política ou de muitas
carreiras públicas.
Enfim, cabe reconhecer que há características que, mesmo no interior
da vida profissional, na empresa ou no órgão público, são pejorativas e de-
nunciam falhas morais na pessoa, quando não indiciam traços subjetivos in-
fensos à normalidade social predominante. Todavia, tais fatores podem não
ingressar na órbita mais estreita da desonestidade profissional.7
Seria aceitável, por exemplo, a utilização ostensiva das redes sociais
pelos magistrados, emitindo opiniões e ideias pessoais polêmicas? Antiga-
mente não o faziam. Hoje exibem suas vidas privadas e íntimas nas redes
sociais. Não se consegue pacificação ou controle da moral privada de modo
muito rígido.8
A propósito, o atual cenário pós-moderno indica a presença de concei-
tos fluidos, elásticos, capazes de serem aplicáveis, em graus variados de vin-
culação, às diferentes relações humanas estabelecidas ora no ambiente pú-
blico, ora na esfera privada. Trata-se de uma “modernidade líquida”, volátil,
dinâmica e diluída impulsionando, a todo momento e instante, a revisitação
e a redefinição de dogmas e conceitos tidos como tradicionais.9
No direito brasileiro, a Constituição da República de 1988 erigiu a mo-
ralidade ao status de princípio constitucional.10 Bem antes, porém, a doutri-
na administrativista, capitaneada por Caio Tácito e Antônio José Brandão,11
já apresentava a moralidade administrativa como sinônimo de “boa adminis-
tração”, “boa-fé objetiva” e “proteção da confiança legítima”12 nas relações

6
OSÓRIO, Fábio Medina. Op. cit., p. 126.
7
OSÓRIO, Fábio Medina. Op. cit., p. 126.
8
BAUMAN, Zygmunt. A vida fragmentada: ensaios sobre a moral pós-moderna. Lisboa:
Relógio D’Água, 2007.
9
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Zahar, 1999.
10
A respeito do caráter ético-normativo da moralidade administrativa, vale conferir ANTUNES
ROCHA, Cármen Lúcia. Princípios constitucionais do processo administrativo no Direito
brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 209, p. 189-222, jul./set. 1997.
11
Acerca das origens históricas da moralidade administrativa no Brasil, vale ler, por todos:
TÁCITO, Caio. Moralidade administrativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n.
218, p. 1-10, out./dez. 1999 e BRANDÃO, Antônio José. Moralidade administrativa. Boletim do
Ministério da Justiça, Lisboa, v. I, p. 50 e ss.
12
Nesse mesmo sentido, Cármen Lúcia Antunes Rocha em voto proferido no RE nº 598.099,
em julgamento de 10 de agosto de 2011 no STF: “A administração tem que ser moral, ética em
todos os seus comportamentos, e não acredito em uma democracia que não viva do princípio
da confiança do cidadão na administração”.

80 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


de Direito Público; significando, já naquela altura, uma espécie de proibição
ao abuso e ao desvio do poder institucionalizado.
Com efeito, cabe aduzir, ainda, a ambiguidade do conceito de morali-
dade administrativa cunhado pelo administrativista português Antônio José
Brandão:13
Desagrada ao homem de leis em geral ouvir falar em “moralidade
administrativa”. Porque deseje uma Administração Pública imoral ou
amoral, sem rei nem roque, de costas voltadas para o honesto e o jus-
to? Nada disso; mas a fórmula, enquanto se pretende nomear com ela
conceito jurídico, ou princípio relevante para o mundo jurídico-norma-
tivo, inspira-lhe franca desconfiança: porque não lhe descobre sentido
assim tão imediato como concreto, parece-lhe vaga e oca. Por outro
lado, imprudente – pois, como Renard já o notou com fina ironia, cuida
entrever, por detrás dela, o espantalho da Ordem moral, ou, recém-de-
sembarcado da América do Norte, o espectro do Governo dos Juízes.
Não deixa de vir a propósito comentar: é o mesmo homem de leis,
tão cauteloso e tão cético perante esta fórmula, o primeiro a pedir,
nas petições e minutas, em nome conjunto da Moral e da Justiça, uma
decisão favorável. Nunca vacila, então, a sua pena, nem geme a sua
sensibilidade jurídica: faz dupla invocação em letras bem gordas, a que
acrescenta ponto de exclamação bem visível!
Em sede jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal delimitou, em
caso paradigmático no qual se discutia a validade de nomeação de filha de
Presidente da República frente ao princípio da moralidade administrativa, o
conceito e os limites interpretativos dessa norma nos seguintes termos:
(...) não considero pertinente invocar o princípio da moralidade
como parâmetro único para a aferição da constitucionalidade ou não
de uma norma, de um ato normativo, ou mesmo de um ato adminis-
trativo lícito.
A definição do que é ou não moralmente correto, para efeito de
incidência do referido princípio, deve ser obtida dentro do próprio sis-
tema do direito.
E não poderia ser diferente, sob pena de se permitir a substituição
da moralidade do legislador pela moralidade individual do aplicador
do direito.
(...)
A respeito do tema, foram esclarecedoras as ponderações do Mi-
nistro Eros Grau no julgamento da ADI nº 3.853/MS:

13
BRANDÃO, Antônio José. Moralidade administrativa. Boletim do Ministério da Justiça,
Lisboa, v. I, p. 50 e ss.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 81


“20. – Insisto em que o conteúdo do princípio da moralidade há de
ser encontrado no interior do próprio direito. A sua contemplação não
pode conduzir à substituição da ética da legalidade por qualquer outra.
Vale dizer, não significa uma abertura do sistema jurídico para a introdu-
ção, nele, de preceitos morais. (...) Nessa medida, o sistema jurídico tem
de recusar a invasão de si próprio por regras estranhas a sua eticidade
própria, regras advindas das várias concepções morais ou religiosas pre-
sentes na sociedade civil, ainda que isto não signifique o sacrifício de
valorações éticas. Ocorre que a ética do sistema jurídico é a ética da
legalidade. E não pode ser outra, senão esta, de modo que a afirmação,
pela Constituição e pela legislação infraconstitucional, do princípio da
moralidade o situa, necessariamente, no âmbito desta ética, ética da
legalidade, que não pode ser ultrapassada, sob pena de dissolução do
próprio sistema. Isso é imperioso afirmarmos. A admissão de que esta
Corte possa decidir com fundamento na moralidade entroniza o arbí-
trio, nega o direito positivo, sacrifica a legitimidade de que deveríamos
nos nutrir enquanto defensores da Constituição. Instalaria a desordem.
21. Isso bem ponderado, compreenderemos perfeitamente este-
ja confinado o questionamento da moralidade da Administração – e
dos atos legislativos – nos lindes do desvio de poder ou de finalida-
de. Qualquer questionamento para além desses limites estará sendo
postulado no quadro da legalidade pura e simples. Essa circunstância
é que explica e justifica a menção, a um e a outro princípio, na Cons-
tituição e na legislação infraconstitucional. Permitam-me que insista
neste ponto: a moralidade da Administração – e da atividade legislati-
va, se a tanto chegarmos – apenas pode ser concebida por referência
à legalidade.
(...) E, como não seria exigível a demonstração, pelo legislador, da
moralidade de sua ação – ao contrário, a quem impugna o texto nor-
mativo incumbiria demonstrar que o texto consubstancia desvio de
poder ou de finalidade –, não vejo como, também desde essa perspec-
tiva, sustentar-se a inconstitucionalidade dos preceitos impugnados.”
Pelas mesmas razões, mostra-se problemática a utilização do prin-
cípio da moralidade como único fundamento para a declaração de in-
constitucionalidade no controle abstrato, conforme observou o Minis-
tro Gilmar Mendes no julgamento da ADI nº 3.853/MS:
“De toda forma, creio que o ponto que merece uma reflexão por-
menorizada do Tribunal diz respeito à alegada violação ao princípio
da moralidade. Isso porque, como já deixei consignado em voto pro-
ferido na ADI 1.231/DF, o princípio da moralidade não pode servir,
isoladamente, de parâmetro de controle em abstrato da constitu-
cionalidade dos atos normativos emanados do legislador democrá-

82 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


tico. Alio-me, neste ponto, ao entendimento de Sepúlveda Pertence,
também já declarado em outras ocasiões neste Tribunal, de que a
moralidade pura e simples não pode ser condição determinante da
inconstitucionalidade de uma lei. Certamente, o Tribunal não pode
ater-se unicamente à fluidez do conceito de moralidade para anular
atos do Poder Legislativo.
Seguindo esse mesmo entendimento, o Ministro Eros Grau, em seu
voto, bem acentuou que ‘o conteúdo do princípio da moralidade há
de ser encontrado no interior do próprio direito’.
Deixe-se claro, todavia, que não quero com isto defender uma rí-
gida separação entre Direito e Moral, própria de um positivismo for-
malista. Desde seu primeiro incurso na doutrina administrativista de
Maurice HAURIOU (Précis de Droit Administratif et de Droit Public.
Paris: Sociétè Anonyme du Recueil Sirey, 1927), o princípio da morali-
dade traduz a ideia de que sob o ato jurídico-administrativo deve exis-
tir um substrato moral, que se torna essência de sua legitimidade e,
em certa medida, condição de sua validade.
Intento apenas alertar o Tribunal para o problema da declaração
de nulidade de uma norma sob o único argumento de que é imoral
ou, melhor dizendo, de que afronta uma indefinida moral pública. En-
tendo que, nesse caso, estaríamos a penetrar indevidamente no juí-
zo político e ético do legislador e, consequentemente, a estabelecer
uma indesejável vinculação do Direito à Moral, que seria muito cara
à própria democracia, cuja essência está no pluralismo de valores éti-
cos; pluralismo esse declarado como ‘valor supremo’ no preâmbulo
da Carta de 1988.
É evidente, por outro lado, que o tema pode ser devidamente den-
sificado, tendo em vista outros parâmetros, como o princípio da pro-
porcionalidade, o princípio da não arbitrariedade da lei e o próprio
princípio da isonomia. O princípio da moralidade, portanto, para fun-
cionar como parâmetro de controle abstrato de constitucionalidade,
deve vir aliado a outros princípios fundamentais, dentre os quais assu-
mem relevância aqueles que funcionam como diretriz para a atuação
da Administração Pública.” (fls. 93-95)
O fato é que não há justificativa para se aplicar na espécie uma san-
ção cuja natureza seria unicamente moral, visto que, aproximando-se
de quase duas décadas da data da concessão da liminar que suspen-
deu os efeitos da referida nomeação (20.11.1995), nada mais restaria,
com a manutenção da decisão objurgada, senão a imposição de uma
sanção de fundo moral, sem que tenha ocorrido, contudo, a declara-
ção de ilicitude do ato administrativo atacado.
Aliás, sob o ponto de vista da estrita subjetividade de decisão fun-
dada apenas na tese da imoralidade administrativa, tomo a liberdade
Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 83
de citar o pensamento do Ministro Sepúlveda Pertence, manifesto no
RE nº 255.245, vide:
“De logo, a Constituição da República só alude à moralidade, no
art. 37, entre os princípios regentes da administração pública, não da
legislação, menos ainda do poder constituinte instituído dos Estados
federados.
32. Certo, critérios similares quiçá sejam oponíveis à lei ou à regra
constitucional local, à guisa de desvio ou abuso da competência legis-
lativa ou constituinte derivada, de irrazoabilidade ou desproporciona-
lidade do preceito normativo: aí, porém, o parâmetro da inconstitu-
cionalidade já não estaria sediado no princípio da moralidade adminis-
trativa, mas sim no inciso LIV do art. 5º CF, que impõe – ao legislador,
inclusive – o do ‘substantive due process of law’.
33. De toda sorte, ainda quando invocado o cânon constitucional
pertinente, a increpação não se me afigura de acolher.
34. Para elidi-la – afora as razões expendidas pelo acórdão recorri-
do –, não hesito em subscrever a réplica bem fundada do parecer do
Dr. João Batista de Almeida, pela PGR – f. 161:
‘‘(...) no tocante à alegada contrariedade ao princípio da morali-
dade, também não se mostra exitoso o recurso. Anota Celso Ribeiro
Bastos que, ‘embora seja louvável o intuito do Texto Constitucional,
no seu art. 37, em coibir ao máximo os abusos que ocorrem em mui-
tos setores da atuação administrativa, o mérito da iniciativa sofre o
risco de esvaziamento diante de eventuais consequências da falta de
objetivação do conceito do que seja a moralidade administrativa.’ (O
princípio da moralidade no direito público. Cadernos de direito cons-
titucional e ciência política, v. 6, n. 22, p. 46)
Não obstante essa indeterminação, o mesmo autor salienta que
‘é fácil identificar pelo menos aquelas situações extremas em que, in-
dubitavelmente, se pode afirmar que a conduta é moral ou imoral,
segundo a ética da instituição’ (ob. cit., p. 45).
O Exmo. Sr. Min. Néri da Silveira, quando do julgamento da RP
nº 1.039/RS (in DJ de 14.08.87), afirmou que ‘conhecida é a origem
do dispositivo do artigo 184, que se inseriu na Carta Magna, como
forma de amparo à pessoa do ex-presidente e em virtude da hono-
rabilidade do cargo’. No mesmo sentido, confira-se o entendimento
do saudoso Min. Aliomar Baleeiro, ao ensejo do julgamento da RP nº
893/AL (...).’”
O receio de que, diante da referida subjetividade desse princípio,
se estabeleça um governo de magistrados também foi objeto de per-
cuciente manifestação do eminente Ministro Sepúlveda Pertence no
voto apresentado no julgamento da ADI nº 3.290, a saber:

84 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


“A alegação de ofensa ao princípio da moralidade, quero dei-
xar claro também que não acolho no caso. Confesso meu temor do
uso, sem muita discrição, desse princípio constitucional, porque, por
meio dele, podemos estabelecer o governo dos juízes, que não é,
por ser de juízes, menos arbitrário que outros governos arbitrários.
Já se questionou, aqui – salvo engano, o em. Ministro Moreira Alves
–, se esse princípio da moralidade, previsto no art. 37, seria oponí-
vel a atos de natureza legislativa. O argumento dogmático não me
impressiona porque, se não for com base no art. 37, esse princípio
da moralidade, afinal de contas, estaria compreendido na cláusula
do ‘due process of law’ substantivo, de forma que, em tese, poderia
ser examinado.”
(...)
Diante do exposto, conheço em parte do agravo e, porque pre-
sentes todos os elementos necessários para o julgamento do recurso
extraordinário, a ele dou provimento, julgando improcedente a ação
popular.14
O referido leading case é categórico ao indicar a necessidade de se
apartar a moralidade administrativa daquela moralidade inerente ao senso
comum, visando afastar interpretações subjetivistas e arbitrárias decorren-
tes da exigência de uma moral alheia, estranha ao objeto de interesse dos
intérpretes e aplicadores do direito.
Em outro precedente importante firmado pelo STF, debatia-se a even-
tual violação ao princípio da moralidade decorrente de concessão de pensão
por morte a dependente de mandatário de cargo eletivo falecido, ocasião
em que se estabeleceu a necessidade de se aferir o conceito de moralidade
administrativa à luz do princípio da razoabilidade:
1. Não há empecilho constitucional à edição de leis sem caráter
geral e abstrato, providas apenas de efeitos concretos e individuali-
zados. Há matérias a cujo respeito a disciplina não pode ser confe-
rida por ato administrativo, demandando a edição de lei, ainda que
em sentido meramente formal. É o caso da concessão de pensões es-
peciais. 2. O tratamento privilegiado a certas pessoas somente pode
ser considerado ofensivo ao princípio da igualdade ou da moralida-
de quando não decorrer de uma causa razoavelmente justificada. 3.
A moralidade, como princípio da Administração Pública (art. 37) e
como requisito de validade dos atos administrativos (art. 5º, LXXIII),
tem a sua fonte por excelência no sistema de direito, sobretudo no

14
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). AI 790.148/DF. Relator(a): Min. Dias Toffoli.
Julgamento: 22.04.2015.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 85


ordenamento jurídico-constitucional, sendo certo que os valores hu-
manos que inspiram e subjazem a esse ordenamento constituem, em
muitos casos, a concretização normativa de valores retirados da pau-
ta dos direitos naturais, ou do patrimônio ético e moral consagrado
pelo senso comum da sociedade. A quebra da moralidade adminis-
trativa se caracteriza pela desarmonia entre a expressão formal (= a
aparência) do ato e a sua expressão real (= a sua substância), criada
e derivada de impulsos subjetivos viciados quanto aos motivos, ou à
causa, ou à finalidade da atuação administrativa. 4. No caso, tanto a
petição inicial quanto os atos decisórios das instâncias ordinárias se
limitaram a considerar “imoral” a lei que concedeu pensão especial
a viúva de prefeito falecido no exercício do cargo por ter ela conferi-
do tratamento privilegiado a uma pessoa, sem, contudo, fazer juízo
algum, por mínimo que fosse, sobre a razoabilidade ou não, em face
das circunstâncias de fato e de direito, da concessão do privilégio.
5. Com maior razão se mostrava indispensável um juízo sobre o ele-
mento subjetivo da conduta, para fins de atribuir responsabilidade
civil, relativamente aos demandados que exerciam o cargo de ve-
reador, investidos, constitucionalmente, da proteção de imunidade
material (= inviolabilidade) pelos votos proferidos no exercício do
mandato (CF, art. 29, VIII). Se é certo que tal imunidade, inclusive
para efeitos civis, é assegurada até mesmo em caso de cometimen-
to de crime, não se há de afastá-la em casos como o da espécie, em
que de crime não se trata e sequer a intenção dolosa foi aventada. 6.
Recursos extraordinários providos.15
Em nossa obra já referenciada Teoria da improbidade administrativa,
conceituamos a moralidade administrativa como valor qualificado e especí-
fico, ligado à ideia de probidade e a ser aferido no espaço público, afastando
sua imposição no ambiente privado acolhedor da moralidade comum de me-
nor grau e intensidade diferenciada.
Diante dessas considerações preliminares, passamos à consulta pro-
priamente dita.
Primeira pergunta

Cabe ação popular neste caso, considerando as premissas descri-


tas, para invalidar o ato do Exmo. Presidente da República Michel Mi-
guel Elias Temer Lulia que determinou minha nomeação ao cargo de
Ministra do Estado do Trabalho?

15
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Recurso Extraordinário (RE) 405.386/RJ, Min. Teori
Zavascki, julgamento 26.02.2013.

86 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Como referido ao início, se a indagação girar em torno ao cabimento
da ação popular, e seu fundamento é a própria lesividade do ato em face de
suposta violação ao princípio da moralidade administrativa, é evidente que a
resposta será negativa.
Não há sequer aparência de violação à moralidade administrativa no
ato de nomeação da Deputada Cristiane Brasil ao cargo de Ministra de Esta-
do do Trabalho, cargo integrante da estrutura funcional da Administração
Pública federal, pelo fato de a nomeada ter respondido a 2 (duas) ações tra-
balhistas perante a Justiça do Trabalho.
Trata-se, evidentemente, de uma ação judicial cuja inicial é manifesta-
mente inepta, pois lhe falta a causa de pedir, na forma do inciso I do parágra-
fo 1º do art. 330 do CPC. É patente a teratologia jurídica, pois a nomeação da
Deputada Federal Cristiane Brasil, pelo Presidente da República, obedeceu
aos requisitos constitucionais, e o autor da ação pretendeu ingressar no mé-
rito do ato administrativo, criando requisitos de índole subjetiva prescindí-
veis à referida nomeação.
O que consta da causa de pedir da Ação Popular nº 0001786-
77.2018.4.02.5102 é o seguinte:
4. Com efeito, a Exma. Deputada Federal CRISTIANE BRASIL FRAN-
CISCO, indicada ao Ministério do Trabalho, ora indicada como ré, pra-
ticou pessoalmente graves violações das leis trabalhistas flagradas e
comprovadas em pelo menos 2 (duas) demandas judiciais. Por isso
mesmo, s.m.j., parece ofender ao juízo médio de razoabilidade dar-lhe
atribuições próprias de autoridade cuja incumbência será fiscalizar o
cumprimento de normas que ela própria demonstrou não respeitar.
(...)
12. É por todo o exposto que, s.m.j., parece estar claro que o ato
administrativo que nomeia a Deputada Federal CRISTIANE BRASIL
FRANCISCO ao Ministério do Trabalho e Emprego é nulo por violar o
art. 37, caput, da CRFB/88, o art. 2º, c, d, e e parágrafo único, c, d e e,
c/c art. 4º, I, da Lei 4.717/65, vejamos:
13. A Constituição da República Federativa do Brasil elevou a mora-
lidade administrativa a uma alçada especial. Deu um comando cogen-
te à administração pública em seu art. 37, caput, obrigando-a a fazer
um juízo de moral.
(...)
15. E é nesse cenário que se pode afirmar com absoluta segurança
que a nomeação de alguém que evidentemente ostenta característi-
cas impróprias para determinado cargo da administração pública não
é honesto com a sociedade brasileira.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 87


Como se não bastasse, a alegada violação à moralidade administra-
tiva, nos termos da inicial da ação popular ajuizada, estaria circunscrita aos
arts. 1º e 4º da Lei 4.717, de 1965, normas de natureza eminentemente ma-
terial, atraindo ao feito a competência privativa do Superior Tribunal Justiça
e afastando a competência do STF, de natureza restritiva e excepcional:
Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação
ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do
Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas,
de sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de so-
ciedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados
ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de insti-
tuições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja
concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio
ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União,
do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pes­
soas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos.
(...)
Art. 4º São também nulos os seguintes atos ou contratos, pratica-
dos ou celebrados por quaisquer das pessoas ou entidades referidas
no art. 1º:
I – A admissão ao serviço público remunerado, com desobediência,
quanto às condições de habilitação, das normas legais, regulamenta-
res ou constantes de instruções gerais.
Note-se, ainda, uma indevida ingerência no mérito administrativo que
caracteriza a liberdade de escolha conferida ao administrador para que, den-
tro de opções naturalmente lícitas, realize o “juízo de conveniência e oportu-
nidade” no caso concreto, insindicável pelo Poder Judíciário.
Cabe ao Presidente da República analisar a pertinência dos requisitos
técnicos, subjetivos, emocionais, políticos e pessoais da indicada para a posi-
ção de Ministra do Estado do Trabalho. O que o Judiciário poderia controlar
seria eventual desvio de poder ou de finalidade, de acordo com precedentes
da própria Corte, sendo, ainda, imprescindível demonstrar o vício de tal ele-
mento ínsito ao ato administrativo atacado.
Nesse sentido, é pertinente apreciar dois precedentes relativamente
recentes do Supremo Tribunal Federal, envolvendo a identificação do desvio
de finalidade apto a ensejar a declaração de nulidade do ato de nomeação
editado pela autoridade administrativa.
O primeiro julgado refere-se à nomeação do Sr. Luiz Inácio Lula da
Silva, pela ex-Presidente da República Dilma Vana Rousseff, ao cargo de Mi-
nistro Chefe da Casa Civil:

88 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Decido. (...) Se os motivos forem apenas aparentes, porque o fim
desejado é outro, ocorrerá desvio de finalidade. (...) A consequência
dessa deturpação do objetivo, que na realidade administrativa brasi-
leira não é rara, é a nulidade do ato. (...) Para arrematar, a Lei da Ação
Popular, 4.717, de 1965, afirma que é nulo o ato administrativo prati-
cado com desvio de finalidade e no artigo 2º, parágrafo único, alínea e,
explicita que: “e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente
pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou impli-
citamente, na regra de competência”. Se assim é, conforme ensina-
mento uniforme da melhor doutrina, resta apenas saber como, no
caso concreto, se concluirá pela existência ou não de dissimulação.
Evidentemente, o ato sempre será editado com base em premissas
falsas, aparentemente verdadeiras. A resposta está na análise das cir-
cunstâncias. Por exemplo, imagine-se que um médico renomado, por-
tador de títulos acadêmicos, seja convidado para assumir a Secretaria
de Saúde do Estado e que responda, no Juizado Especial Criminal, pelo
crime de lesões corporais leves, em virtude de um soco desferido em
seu vizinho em meio a uma acalorada discussão em assembleia de
condomínio. Seria ridículo imaginar que a indicação de seu nome visa-
va subtrair do JEC a competência para processá-lo, passando-a ao Tri-
bunal de Justiça. No entanto, diversa será a situação se a indicação for
feita a um dentista envolvido em graves acusações de estupro de pa-
cientes para ocupar o cargo de ministro dos Transportes, no momento
exato em que o Tribunal de Justiça julgará apelação contra sentença
que o condenou a 20 anos de reclusão. Aí o objetivo será flagrante-
mente o de evitar o julgamento pelo TJ, a manutenção da sentença
condenatória e a sua execução imediata, transferindo o caso para o
Supremo Tribunal Federal. O ato administrativo será nulo por evidente
desvio de finalidade. A ocorrência desse tipo de desvio de conduta
sujeitará a autoridade administrativa, seja ela membro do Poder Legis-
lativo, seja prefeito, governador, presidente da República ou outra do
segundo escalão do Executivo, a ação popular e, ainda, ação ordinária
de nulidade do ato, junto com a União, que poderá ser proposta no
foro federal do domicílio do autor. Na verdade, as práticas administra-
tivas passam, no Brasil, por um flagrante processo de mudança. Basta
ver a obrigatoriedade atual da transparência dos atos administrativos,
inimaginável há duas ou três décadas. (...) Nenhum chefe do Poder
Executivo, em qualquer de suas esferas, é dono da condução dos des-
tinos do país; na verdade, ostenta papel de simples mandatário da
vontade popular, a qual deve ser seguida em consonância com os prin-
cípios constitucionais explícitos e implícitos, entre eles a probidade e a
moralidade no trato do interesse público lato sensu. O princípio da
moralidade pauta qualquer ato administrativo, inclusive a nomeação

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 89


de ministro de Estado, de maneira a impedir que sejam conspurcados
os predicados da honestidade, da probidade e da boa-fé no trato da
res publica. (...) Apesar de ser atribuição privativa do presidente da
República a nomeação de ministro de Estado (art. 84, inciso I, da CF), o
ato que visa ao preenchimento de tal cargo deve passar pelo crivo dos
princípios constitucionais, mais notadamente os da moralidade e da
impessoalidade (interpretação sistemática do art. 87 c/c art. 37, II, da
CF). A propósito, parece especialmente ilustrativa a lição de Manuel
Atienza e Juan Ruiz Manero, na obra Ilícitos atípicos. Dizem os auto-
res, a propósito dessa categoria: “Os ilícitos atípicos são ações que,
prima facie, estão permitidas por uma regra, mas que, uma vez consi-
deradas todas as circunstâncias, devem considerar-se proibidas”
(ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Rui. Ilícitos atípicos. 2. ed. Madrid:
Trotta, 2006. p. 12). E por que devem ser consideradas proibidas? Por-
que, a despeito de sua aparência de legalidade, porque, a despeito de
estarem, à primeira vista, em conformidade com uma regra, destoam
da razão que as justifica, escapam ao princípio e ao interesse que lhes
são subjacentes. Trata-se simplesmente de garantir coerência valora-
tiva ou justificativa ao sistema jurídico e de apartar, com clareza, dis-
cricionariedade de arbitrariedade. O mesmo raciocínio abarca os três
institutos bem conhecidos da nossa doutrina: abuso de direito, fraude
à lei e desvio de finalidade/poder. Todos são ilícitos atípicos e têm em
comum os seguintes elementos: 1) a existência de ação que, prima
facie, estaria em conformidade com uma regra jurídica; 2) a produção
de um resultado danoso como consequência, intencional ou não, da
ação; 3) o caráter injustificado do resultado danoso, à luz dos princí-
pios jurídicos aplicáveis ao caso; e 4) o estabelecimento de uma segun-
da regra que limita o alcance da primeira para qualificar como proibi-
dos os comportamentos que antes se apresentavam travestidos de
legalidade. Especificamente nos casos de desvio de finalidade, o que
se tem é a adoção de uma conduta que aparenta estar em conformi-
dade com uma certa regra que confere poder à autoridade (regra de
competência), mas que, ao fim, conduz a resultados absolutamente
incompatíveis com o escopo constitucional desse mandamento e, por
isso, é tida como ilícita. Aplicando essas noções ao caso em tela, tem-
se que a Presidente da República praticou conduta que, a priori, esta-
ria em conformidade com a atribuição que lhe confere o art. 84, inciso
I, da Constituição – nomear ministros de Estado. Mas, ao fazê-lo, pro-
duziu resultado concreto de todo incompatível com a ordem constitu-
cional em vigor: conferir ao investigado foro no Supremo Tribunal Fe-
deral. Não importam os motivos subjetivos de quem pratica o ato ilíci-
to. O vício, o ilícito, tem natureza objetiva. A bem dizer, a comprova-
ção dos motivos subjetivos que impeliram a mandatária à prática, no

90 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


caso em tela, configura elemento a mais a indicar a presença do vício
em questão, isto é, do desvio de finalidade. A rigor, não cabe investi-
gar aqui o dolo, a intenção de fraudar a lei. Não está em questão saber
se a Presidente praticou crime, comum ou de responsabilidade. Não é
disso que se cuida. É exatamente esse pano de fundo que deve nortear
a análise de eventual desvio de finalidade na nomeação de ministro de
Estado. Nesse contexto, o argumento do desvio de finalidade é perfei-
tamente aplicável para demonstrar a nulidade da nomeação de pes-
soa criminalmente implicada, quando prepondera a finalidade de con-
ferir-lhe foro privilegiado. No caso concreto, a alegação é de que o ex­-
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria sido empossado justamente
para deslocar-se o foro para o STF e salvaguardá-lo contra eventual
ação penal sem a autorização parlamentar prevista no art. 51, I, da CF.
Havia investigações em andamento, que ficariam paralisadas pela mu-
dança de foro, uma delas que ensejou medidas de busca e apreensão
contra Luiz Inácio Lula da Silva – Operação Aletheia, desdobramento
da Lava-Jato. (...) Não há aqui pedido de nomeação para o cargo, mas
há uma clara indicação da crença de que seria conveniente retirar a
acusação da 13ª Vara Federal de Curitiba – a “República de Curitiba” –,
transferindo o caso para uma “Suprema Corte acovardada”. (...) Ou
seja, a conduta demonstra não apenas os elementos objetivos do des-
vio de finalidade, mas também a intenção de fraudar. Assim, é rele-
vante o fundamento da impetração. É urgente tutelar o interesse de-
fendido. Como mencionado, há investigações em andamento, para
apuração de crimes graves, que podem ser tumultuadas pelo ato
questionado. Há, inclusive, pedido de prisão preventiva e de admissi-
bilidade de ação penal, que necessitam de definição de foro para pros-
seguimento. (...) Ante o exposto, defiro a medida liminar, para suspen-
der a eficácia da nomeação de Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo de
Ministro Chefe da Casa Civil, determinando a manutenção da compe-
tência da justiça em primeira instância dos procedimentos criminais
em seu desfavor. Comunique-se à 13ª Vara Federal de Curitiba. Notifi-
que-se a autoridade impetrada. Dê-se ciência ao Advogado-Geral da
União. Inclua-se Luiz Inácio Lula da Silva na autuação. Cite-se como li-
tisconsorte passivo necessário. Apensem-se os autos dos Mandados
de Segurança 34.070 e 34.071, para tramitação e julgamento conjun-
to. Com as respostas, dê-se vista ao Procurador-Geral da República.
Publique-se. Int. Brasília, 18 de março de 2016. Ministro Gilmar Men-
des, Relator. Documento assinado digitalmente.16

16
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). MANDADO DE SEGURANÇA 34.069 MC, Min. Gilmar
Mendes, julgado em 21.03.2016.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 91


Tal caso específico, levado à apreciação do Supremo Tribunal Federal,
envolvia a edição de ato administrativo eivado de nulidade, uma vez que
gravações realizadas evidenciaram o nítido interesse da então Presidente da
República Dilma Rousseff de editar o ato de nomeação visando conferir prer-
rogativa de foro ao nomeado, tudo com propósito evidente de afastá-lo da
jurisdição do Juiz Sérgio Moro e do foco direto da Operação Lava-Jato, a fim
de favorecê-lo.
Definitivamente, este caso não guarda qualquer similitude com a
situa­ção posta sob análise. A Deputada Federal Cristiane Brasil reúne todos
os requisitos constitucionais e legais exigíveis à investidura em cargo de Mi-
nistro de Estado, e os motivos de sua nomeação envolvem questões de con-
veniência e oportunidade políticas aferidas pelo atual Presidente da Repúbli-
ca Michel Temer.
De outro lado, em outro precedente judicial, conduzido também pelo
Supremo Tribunal Federal, questionamentos envolvendo a validade da no-
meação do Ministro Moreira Franco não encontraram abrigo na tese de
desvio de finalidade do ato, uma vez que naquele caso concreto não se de-
monstrou qualquer abuso de poder da autoridade nomeante ou desvio de
finalidade do ato, respeitando-se a presunção de legitimidade dos atos admi-
nistrativos e o próprio mérito administrativo. A conclusão de tal precedente
também é cabível ao caso da nomeação da Deputada Cristiane Brasil, que,
além de não afrontar a moralidade administrativa, não é fruto de arbitrarie-
dade ou autoritarismo, tampouco se presta a favorecer interesses alheios,
particulares e estranhos ao interesse público:
(...) A controvérsia suscitada na presente causa mandamental cin-
ge-se a uma questão específica que pode ser resumida na seguinte
indagação: a nomeação de alguém para o cargo de Ministro de Estado,
mesmo preenchidos os requisitos previstos no art. 87 da Constituição
da República, configuraria hipótese de desvio de finalidade pelo fato
de importar – segundo sustenta o impetrante – em obstrução aos atos
de investigação criminal supostamente provocada em razão de o Mi-
nistro de Estado dispor de prerrogativa de foro perante o Supremo
Tribunal Federal? (...)
6. A alegada configuração de desvio de finalidade no ato de no-
meação do Senhor Wellington Moreira Franco para exercer o cargo
de Ministro de Estado. Aparente controvérsia objetiva e iliquidez dos
fatos.
Não questiono a afirmação de que o desvio de finalidade qualifica-
se como vício apto a contaminar a validade jurídica do ato administra-

92 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


tivo, inquinando-o de nulidade (...). A configuração desse grave vício
jurídico, no entanto, que recai sobre um dos elementos constitutivos
do ato administrativo, pressupõe a intenção deliberada, por parte do
administrador público, de atingir objetivo vedado pela ordem jurídica
ou divorciado do interesse público (...), desígnio esse que não se pre-
sume, sob pena de subversão dos postulados referentes à presunção
de legalidade, de veracidade e de legitimidade de que se reveste todo
e qualquer ato emanado da Administração Pública. Nessa linha de en-
tendimento, incumbe a quem imputa ao administrador público a práti-
ca desviante de conduta ilegítima a prova inequívoca de que o agente
público, não obstante editando ato revestido de aparente legalidade,
ter-se-ia valido desse comportamento administrativo para perseguir
fins completamente desvinculados do interesse público. (...) Não cons-
titui demasia assinalar, neste ponto, que o decreto presidencial ora
impugnado, à semelhança de qualquer outro ato estatal, reveste-se
de presunção juris tantum de legitimidade, devendo prevalecer, por
tal razão, sobre as afirmações em sentido contrário, quando feitas sem
qualquer apoio em base documental idônea que possa infirmar aque-
la presunção jurídica. (...) A jurisprudência desta Suprema Corte, por
sua vez, tem enfatizado, em sucessivas decisões, que, em decorrência
do atributo da presunção de legitimidade e de veracidade que quali-
fica os atos da Administração Pública, impõe-se a quem os questio-
na em juízo o ônus processual de infirmar a veracidade dos fatos que
motivaram sua edição, não lhes sendo oponíveis, por insuficientes,
meras alegações ou juízos conjecturais deduzidos em sentido contrá-
rio (ADI 1.935/RO, rel. Min. CARLOS VELLOSO – RE 158.543/RS, rel.
Min. MARCO AURÉLIO – SL 610-AgR/SC, rel. Min. RICARDO LEWAN-
DOWSKI – SS 3.717-AgR/RJ, rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, v.g.):
“4. Diante da presunção de legalidade dos atos administrativos,
não é possível, na estreita via do habeas corpus, que reclama prova
pré-constituída, atestar eventual artificialidade da investigação do
crime de lavagem de dinheiro, supostamente empregada como fal-
sa justificativa dirigida a propiciar o alcance de meio probatório inad-
mitido no ordenamento jurídico. Ausência de teratologia a motivar a
concessão da ordem de ofício. 5. Agravo regimental desprovido.” (HC
118.985-AgR/MG, rel. Min. EDSON FACHIN)
Observo, no entanto, que a demonstração exigível ao impetrante,
embora necessária e imprescindível, não se fez produzir, aparente-
mente, na espécie, o que torna pertinente, no caso, em face da alega-
ção deduzida pelo autor deste writ, a asserção de que faleceria a indis-
pensável liquidez aos fatos subjacentes a esta impetração mandamen-
tal, que não se pode apoiar em meras afirmações ou em simples con-

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 93


jecturas, uma vez que – não constitui demasia relembrar – o mandado
de segurança qualifica-se como processo de caráter essencialmente
documental, que supõe a produção liminar, pelo impetrante, das pro-
vas literais pré-constituídas destinadas a evidenciar a incontestabili-
dade do direito público subjetivo por ele invocado, tal como adverte
o magistério da doutrina (...). Assinale-se, neste ponto, desde logo,
que a nomeação de alguém para o cargo de Ministro de Estado, desde
que preenchidos os requisitos previstos no art. 87 da Constituição da
República, não configura, por si só, hipótese de desvio de finalidade
(que jamais se presume), visto que a prerrogativa de foro – que traduz
consequência natural e necessária decorrente da investidura no cargo
de Ministro de Estado (CF, art. 102, I, c) – não importa em obstrução
e, muito menos, em paralisação dos atos de investigação criminal ou
de persecução penal. (...) apoiando-me em juízo de sumária cognição,
sem prejuízo, no entanto, de ulterior reexame da controvérsia, indefi-
ro o pedido de medida liminar.17
Portanto, o desvio de finalidade consiste em desvirtuamento, delibe-
rado e comprovado, do elemento finalístico do ato administrativo (voltado
à satisfação do interesse público) pela autoridade nomeante. Caso tal evi-
dência não seja cabalmente demonstrada, deve-se privilegiar a presunção
de legalidade e legitimidade do ato administrativo editado pela autoridade
competente.
Na hipótese ora examinada, não se observa nenhum indício de inte-
resse pessoal do Sr. Presidente da República no ato de nomeação da Deputa-
da Federal Cristiane Brasil ou favorecimento pessoal à deputada capazes de
viciar a finalidade do ato. Tampouco há alegações nesse sentido descritas na
causa de pedir. Portanto, não há que se falar em abuso de poder ou desvio
de finalidade do ato administrativo.
Segunda pergunta

O fato de responder ou haver respondido às ações trabalhistas


descritas nesta consulta ofende o princípio da moralidade administra-
tiva inscrito no caput do art. 37 da CRFB/88 ou na Lei nº 4.717/1965
(Ação Popular)?
A resposta a este questionamento é uma decorrência lógica da respos-
ta anterior. Porém, ganha um caráter mais geral e tem um efeito sistêmico
relevante.

17
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Mandado de Segurança – MS 34.609 MC, Min. Celso
de Mello, julgado em 14.02.2017.

94 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Inicialmente, é imperioso descrever, ainda que de modo sucinto, as
reclamatórias trabalhistas enfrentadas pela consulente.
A primeira é a Reclamação Trabalhista nº 0010538-31.2015.5.01.0044,
objeto de condenação da consulente, pelo Tribunal Regional do Trabalho da
1ª Região, no valor de R$ 60.476,89 (sessenta mil, quatrocentos e setenta e
seis reais e oitenta e nove centavos).
A sentença judicial de 1º grau julgou procedente o pedido autoral,
reconhecendo a existência de vínculo empregatício entre a reclamada, ora
consulente, e motorista que lhe prestava serviços à época dos fatos, tendo
sido confirmada por acórdão do Tribunal Regional do Trabalho.
Ressalte-se que a Deputada Federal Cristiane Brasil cumpriu a deter-
minação constante da decisão judicial. Em 11 de janeiro de 2018, a consu-
lente quitou o valor estipulado pelo juízo ao reclamante, extinguindo toda e
qualquer controvérsia.
Quanto à segunda Reclamação Trabalhista nº 0101817-52.2016.5.01.0048,
trata-se de caso em que o reclamante alega que foi admitido pela reclamada, ora
consulente, também para exercer a função de motorista, e, ao ser supostamente
dispensado, não recebeu suas verbas trabalhistas nem houve a assinatura em
sua CTPS.
Tal ação tramitou na 48ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, envolveu a
quantia de R$ 14.000,00 (quatorze mil reais) e foi objeto de acordo judicial en-
tre as partes, também sendo cumprida pela então reclamada em 12 de janeiro
de 2018, momento em que pagou a última parcela do acordado em audiência.
Indaga-se: essas duas reclamatórias implicariam malferimento ao
princípio da “moralidade administrativa”?
Eventual controvérsia judicial ou dívida civil devidamente quitada se-
quer teriam o condão de macular a moralidade privada, tampouco a morali-
dade administrativa, de natureza pública.
Já delineamos os contornos da moral administrativa, que servem tan-
to aos efeitos de preencher o conteúdo do inciso LXXIII do art. 5º e do caput
do art. 37 da CRFB de 1988 como da Lei 4.717, de 1965.
É forçoso lembrar que o STF separa, claramente, moral comum de mo-
ral administrativa, sendo apenas esta última imprescindível ao desempenho
de determinado cargo público e que deve despertar a apreciação do Poder
Judiciário no caso concreto.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto,18 saudoso jurista pátrio, recorda-
nos o que a moralidade administrativa seria:

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. Forense,
18

2014. p. 102.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 95


A moralidade administrativa, entendida como espécie diferenciada
da moral comum, também atua como uma peculiar derivação dos con-
ceitos de legitimidade política e de finalidade pública, tal como acima
estudadas, pois é a partir da finalidade, sempre legislada, que ela é
prevista em abstrato, e a partir da legitimidade, como o resultado da
aplicação, que ela se define em concreto.
A autonomia deste princípio, que, como se alertou, não deve ser
confundido com a moralidade tout court, tampouco com o conceito
de moralidade média, decorre de seu sentido rigorosamente técnico,
correlacionado aos conceitos administrativos. Com efeito, enquanto a
moral comum é orientada por uma distinção puramente ética, entre
o bem e o mal, distintamente, a moral administrativa é orientada por
uma diferença prática entre a boa e a má administração.
Além do mais, a Lei da Ficha Limpa, rigorosa Lei Complementar nº
64/1990, que contempla causas de inelegibilidade, prevê, em seu art. 1º, rol
taxativo que impossibilita pessoas de assumirem cargos públicos diante das
seguintes hipóteses de condenação judicial, inexistindo menção à condena-
ção trabalhista:
Art. 1º São inelegíveis:
I – para qualquer cargo:
(...)
d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada pro-
cedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou
proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do
poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou te-
nham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8
(oito) anos seguintes; (Redação dada pela Lei Complementar nº 135,
de 2010)
e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado
ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o
transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena,
pelos crimes: (Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010)
1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública
e o patrimônio público; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de
2010)
2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado
de capitais e os previstos na lei que regula a falência; (Incluído pela Lei
Complementar nº 135, de 2010)
3. contra o meio ambiente e a saúde pública; (Incluído pela Lei
Complementar nº 135, de 2010)
4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;
(Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

96 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação
à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;
(Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)
6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; (Incluído
pela Lei Complementar nº 135, de 2010)
7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura,
terrorismo e hediondos; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de
2010)
8. de redução a condição análoga à de escravo; (Incluído pela Lei
Complementar nº 135, de 2010)
9. contra a vida e a dignidade sexual; e (Incluído pela Lei Comple-
mentar nº 135, de 2010)
10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando; (In-
cluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)
(...)
g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou
funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure
ato doloso de improbidade administrativa e por decisão irrecorrível
do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada
pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito)
anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o
disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal a todos os or-
denadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem
agido nessa condição; (Redação dada pela Lei Complementar nº 135,
de 2010)
h) os detentores de cargo na administração pública direta, indi-
reta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso
do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão
transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para
a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como
para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes; (Redação dada
pela Lei Complementar nº 135, de 2010)
i) os que, em estabelecimentos de crédito, financiamento ou se-
guro, que tenham sido ou estejam sendo objeto de processo de liqui-
dação judicial ou extrajudicial, hajam exercido, nos 12 (doze) meses
anteriores à respectiva decretação, cargo ou função de direção, ad-
ministração ou representação, enquanto não forem exonerados de
qualquer responsabilidade;
j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou
proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção elei-
toral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos
ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes
públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 97


ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição; (Incluí-
do pela Lei Complementar nº 135, de 2010)
(...)
l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em
decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegia-
do, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão
ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação
ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos
após o cumprimento da pena; (Incluído pela Lei Complementar nº 135,
de 2010)
m) os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão
sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de
infração ético-profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato
houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário; (Incluído pela
Lei Complementar nº 135, de 2010)
n) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado
ou proferida por órgão judicial colegiado, em razão de terem desfeito
ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar
caracterização de inelegibilidade, pelo prazo de 8 (oito) anos após a
decisão que reconhecer a fraude; (Incluído pela Lei Complementar nº
135, de 2010)
o) os que forem demitidos do serviço público em decorrência
de processo administrativo ou judicial, pelo prazo de 8 (oito) anos,
contado da decisão, salvo se o ato houver sido suspenso ou anula-
do pelo Poder Judiciário; (Incluído pela Lei Complementar nº 135,
de 2010)
p) a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis
por doações eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em jul-
gado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo
de 8 (oito) anos após a decisão, observando-se o procedimento previs-
to no art. 22; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)
q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem
aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que te-
nham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exonera-
ção ou aposentadoria voluntária na pendência de processo adminis-
trativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos; (Incluído pela Lei Com-
plementar nº 135, de 2010)
É curioso imaginar que se pudesse criar, a partir dessas duas reclama-
tórias trabalhistas, um óbice arbitrário à posse da Deputada Federal Cristiane
Brasil, oriundo de um imbróglio jurídico totalmente infundado.
A prevalecer esse precedente, imagine-se o absurdo que seria se ma-
gistrados da Justiça do Trabalho, figurando como reclamados em ações tra-

98 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


balhistas ou sendo condenados na Justiça do Trabalho, fossem exonerados
de seus cargos públicos! Valores morais precisam ser amadurecidos e trans-
formados em princípios jurídicos adotados pelo Direito para se incorpora-
rem à moralidade administrativa. Desde quando as condenações trabalhistas
passaram a integrar a moralidade administrativa no sistema jurídico pátrio?
Não se tem conhecimento de que reclamatórias trabalhistas sejam causas
para exoneração do serviço público.
Em relação aos magistrados, há inclusive maior rigor e controle sobre
a moralidade de suas condutas, tanto na vida pública como na esfera parti-
cular, tal como se verifica do inciso VIII do art. 35 da Lei Orgânica da Magis-
tratura Nacional (LC nº 35/1979).
Artificialmente, será criado mais um obstáculo, sem respaldo consti-
tucional ou legal, para que as pessoas ocupem cargos públicos. À evidência,
o Judiciário não tem a prerrogativa de criar regras autoritárias para nomear
Ministros de Estado.
Conclusão
Por todo o exposto, é absolutamente legítimo e válido o ato de no-
meação da Deputada Federal Cristiane Brasil pelo Presidente da República
Federativa do Brasil Michel Temer para investidura em cargo de Ministra de
Estado do Trabalho, não merecendo qualquer reprimenda judicial.
A moralidade administrativa detém caráter ético-normativo e deve
ser aplicada ao ordenamento jurídico nacional, assegurando o desempenho
da boa administração e evitando a prática de abuso de poder ou desvio de
finalidade pelas autoridades competentes. Contudo, como qualquer norma,
deve submeter-se ao crivo da razoabilidade e da proporcionalidade aferíveis
no caso concreto.
A moralidade do senso comum não tem o condão de definir e alterar
o conteúdo normativo da moralidade administrativa a ser aferida exclusiva-
mente no âmbito da esfera pública, tal como indicam os precedentes do STF
e a doutrina abalizada sobre o tema.
O referido ato administrativo não foi editado com abuso de poder
ou desvio de finalidade pelo Presidente da República, estando dotado de
presunção de legalidade e nitidamente inserido no âmbito do mérito admi-
nistrativo, sendo este insindicável pelo Poder Judiciário neste caso concreto
posto à nossa apreciação.
Brasília-DF, 05 de fevereiro de 2018.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 99


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100 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Responsabilidade do Estado por danos tributários no
Direito italiano e no brasileiro
Andreia Scapin
Advogada, Doutora em Direito Tributário (USP), Mestre em Direito Penal (USP),
Professora convidada da Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Constitucionalismo Internacionalização
e Cooperação (Constinter) e do Centro Didático Euro-Americano sobre Políticas
­Constitucionais (Cedeuam) da Università del Salento, Itália/Furb, Brasil

Resumo
O propósito deste artigo é investigar a responsabilidade da adminis-
tração tributária no Direito brasileiro a partir da interpretação do conjunto
de enunciados prescritivos que versam sobre o exercício da função fiscal e o
dever de reparar danos estabelecidos na CF/88, no CTN e no CC. Pretende-se
responder à pergunta: as normas jurídicas brasileiras atualmente vigentes
permitem imputar ao Estado o dever de reparar danos causados ao sujeito
passivo da obrigação tributária em decorrência da conduta do agente públi-
co no exercício da função fiscal? Este estudo permite compreender algumas
particularidades do Direito Tributário brasileiro, que, em sua origem e em
seu processo de consolidação, foi fortemente influenciado por doutrinado-
res italianos.
Palavras-chave: Norma jurídica. Sanção. Responsabilidade do Estado.
Dano. Função fiscal.
Abstract
This paper aims to verify State civil liability regarding law relationship in
the context of tax matters. Such liability raises from the taxpayer’s obligation of
paying taxes based upon the understanding of some Brazilian Law prescriptive
statements related to tax administrative activity and also to the duty to pay
damages stated in CF/88, CTN and CC. The target is to answer the following
question: concerning government tax activity and based upon Brazilian Law,
may the State be liable to pay moral and material damages to taxpayers? This
study reveals some Brazilian Tax Law details heavily affected by Italian legal
scholars regarding its source and following consolidation process.
Keywords: Rule of law. Sanction. Government liability. Damage. Tax
power.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 101


Introdução: a afinidade do Direito brasileiro com o Direito italiano,
especialmente em âmbito tributário
Este texto decorre dos estudos sobre a “Responsabilidade civil do Esta-
do por dano tributário” efetuados na Università La Sapienza di Roma (2015-
2016) como parte das pesquisas desenvolvidas na pós-graduação stricto sen-
su em nível de doutorado da Universidade de São Paulo (USP) pelo Programa
de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Dentre as perspectivas de análise que o tema propicia, destaca-se a investi-
gação da positivação da norma geral neminem laedere no Direito brasileiro
e da sua aplicação ao Estado em âmbito tributário, tal como ocorre na Itália.
Esse tema foi apreciado pela Corte de Cassação italiana, que declarou,
por meio do acórdão nº 722, de 15 de outubro de 1999, a submissão do
Estado à norma neminem laedere (não causar dano a outrem) no exercício
das atividades fiscais, reconhecendo seu dever jurídico de ressarcir os danos
causados pelos agentes públicos vinculados à administração tributária se vio-
lado algum direito subjetivo ou interesse legítimo do contribuinte.
Tal acórdão será utilizado como base para a construção normativa do-
méstica sobre o assunto, já que revela uma solução específica em âmbito
jurisprudencial consolidada há mais de 15 anos e porque sua fundamentação
jurídica mostra-se compatível com o Direito brasileiro, sobretudo com prin-
cípios e valores albergados na Constituição Federal de 1988, vale dizer, com
os fundamentos do art. 1º, os objetivos do art. 3º, os direitos e as garantias
fundamentais do art. 5º, a disciplina do modus operandi da administração
pública e o exercício do poder de tributar, bem como com seu Preâmbulo.
A questão da responsabilidade civil da administração tributária des-
perta interesse não apenas porque foi pouco explorada pela doutrina e pela
jurisprudência brasileiras em um momento em que já foi discutida por vários
países, a exemplo da Itália, devido à delicada correlação entre a imposição
de tributos e os direitos fundamentais, mas por propor um intrigante diálogo
entre dois relevantes ramos do Direito que, à primeira vista, parecem tão
opostos, porém, na verdade, estão mais próximos do que se pode imaginar:
o Direito Civil e o Direito Tributário.
No Brasil, a matéria só carece de sistematização, pois não é algo novo
que necessita ser criado pelo legislador, mas precisa emergir da interpreta-
ção dos enunciados prescritivos já presentes no Direito posto. Portanto, o
uso do método comparatístico de forma complementar aos métodos dedu-
tivo e indutivo se mostra útil para a pesquisa, sem que isso signifique impor-
tar regras prontas de um país para outro, senão conhecê-las, compará-las e

102 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


adequá-las, sempre que possível, efetuando-se as alterações normativas ne-
cessárias para que o raciocínio faça sentido na realidade jurídica comparada.
A partir de 1822, ano da proclamação da independência de Portugal, até
os dias de hoje, modelos jurídicos estrangeiros têm influenciado a formação ju-
rídica brasileira. A própria história do Brasil justifica uma tendência dos juristas
brasileiros à comparação, os quais, desde o início, foram atraídos pela cultura
europeia, principalmente em razão de a primeira experiência jurídica brasileira
ter sido baseada no modelo português. Na época, os juristas brasileiros foram
solitários comparatistas, dada a ausência de literatura jurídica nacional.1
A Constituição de 1824 foi elaborada com notória influência europeia,
com base no estudo das leis e de autores estrangeiros, prevalentemente fran-
ceses e alemães. Ressalte-se que o legislador brasileiro sempre demonstrou
a capacidade de adequar as fontes estrangeiras a sua própria realidade.2
Especificamente em relação à Itália, a afinidade do Direito brasileiro
com o Direito italiano decorre principalmente da existência de uma sólida
base romanística comum, já que o Direito Romano influenciou o Direito ita-
liano e o português, sendo o último aplicado no Brasil na época do descobri-
mento, o qual serviu como alicerce para as sucessivas modificações.
A tradição romano-germânica do Direito europeu continental intitula-
da civil law constituiu o sustentáculo do Direito brasileiro, embora seja ex-
perimentada em um modo diverso por considerar as próprias características
da tradição jurídica brasileira que refletem a realidade dessa sociedade.3
1
CALDERALE, Alfredo. La circolazione del modelo italiano nelle codificazioni brasiliane del
diritto privato. In: LANNI, Sabrina; SIRENA, Pietro. Il modello giuridico – scientifico e legislativo
– italiano fuori dell’Europa: atti del secondo Congresso Nazionale della SIRD, Siena. 20-21-22
settembre 2012. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2013. p. 199.
2
WALD, Arnoldo. Le droit comparé au Brésil. Rev. inter. droit comp., 1999. p. 814.
3
“La tradizione romano-germanica del diritto europeo continentale, la civil law, resta base
dello stile brasiliano del diritto. Ma questa tradizione è vissuta oggi in modo diverso. La
concezioni e gli istituti del continente europeo non sono più recepiti come un ideale modello
di diritto colto che si trasporta in modo meccanico nelle istituzioni e spesso resta solo una
vernice esteriore del diritto vivente. Lo sviluppo economico sociale del paese nel contesto geo-
politico mondiale ha comportato il superamento del dualismo un pò schizofrenico tra cultura
giuridica e pratica quotidiana del diritto. Da un lato la riflessione su norme e istituti trae
sempre più spunto dall´esperienza della legislazione e giurisprudenza nazionale, d´altro lato
assume maggiore rilevanza anche in questa esperienza la circolazione di modelli dell´economia
globalizzata. Il Brasile, insomma, presenta oggi un ordinamento di sicuro impianto romanistico,
ma con proprie caratteristiche che rispecchiano la realtà di una società con specifici problemi di
superamento del dualismo tra regioni sviluppate e regioni sottosviluppate e di intensificazione
dei rapporti con altri ordinamenti nel contesto internazionale.” CORAPI, Diogo. Il diritto
brasiliano: nuovo terreno di indagine per la comparazione. Rivista di Diritto Civile, fasc. 3, pt.
1, 2007. p. 376.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 103


Constata-se também que houve uma profunda difusão do modelo
científico italiano na América Latina, mormente no Brasil, em razão dos pro-
blemas que surgiram a partir das duas guerras mundiais, que geraram a emi-
gração de muitos italianos para países da América, inclusive de juristas que
passaram a ensinar Direito em universidades brasileiras.
Portanto, a comparação ganhou maior destaque não só com a visi-
ta, mas sobretudo com a permanência de notáveis juristas estrangeiros no
Brasil que ensinaram em universidades brasileiras, contribuindo para a for-
mação e a consolidação do Direito em solo pátrio, tais como Tullio Ascarelli,
Enrico Tullio Liebman, Gian Antonio Michelli, Emilio Betti, Victor Uckmar, en-
tre outros, o que propiciou que a comparação se tornasse um método muito
utilizado também na atualidade.
Enrico Tullio Liebman e Tullio Ascarelli foram professores da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo em 1940, permanecendo no Brasil
por alguns anos. Destacam-se a passagem de Emilio Betti pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, para ministrar aulas sobre Contratos, em 1958,
e a de Victor Uckmar na pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, em 1970.
Liebman teve notória atuação em relação à disciplina processual, sen-
do inclusive o fundador da Escola Paulista de Direito Processual Civil, ao pas-
so que Ascarelli foi o primeiro a propiciar tratamento jurídico e científico
às questões fiscais brasileiras, que, até então, eram estudadas somente por
advogados na solução imediata de casos concretos. Embora não fosse rigo-
rosamente um tributarista, passou a tratar de Direito Tributário não apenas
por sua imensa curiosidade, mas também por necessidade profissional.
Além de vários trabalhos elaborados por solicitação da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo, Ascarelli proferiu curso sobre “Princípios
básicos do imposto de renda e o sistema brasileiro” em 1947, que foi o pri-
meiro curso monográfico de cunho científico sobre a matéria tributária rea-
lizado no Brasil. Com Rubens Gomes de Sousa e João Baptista Pereira de Al-
meida Filho, publicou um livro sob o título Lucros extraordinários e imposto
de renda.4
Seus ensinamentos tiveram grande repercussão, já que foi professor
de importantes tributaristas brasileiros, como Ruy Barbosa Nogueira, primei-
ro professor de Direito Tributário da Faculdade de Direito da USP e fundador
do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, e Rubens Gomes de Sousa, pro-
4
COSTA, Alcides Jorge. A doutrina tributária italiana e a sua influência no Direito Tributário
brasileiro. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Princípios tributários no Direito
brasileiro: estudos em homenagem a Gilberto de Ullhôa Canto. Rio de Janeiro, 1988. p. 27.

104 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


fessor de Legislação Tributária dos cursos de Contabilidade e de Economia da
USP que idealizou o Código Tributário Nacional.
Declarou Rubens Gomes de Sousa que “dele [Ascarelli] tive desde a
indicação da bibliografia antes desconhecida no Brasil até a orientação dou-
trinária e o alargamento dos horizontes, muito além do campo estritamente
tributário, que me permitiram fazer algo mais do que o simples trato empíri-
co de problemas fiscais e arrazoados forenses”. Ascarelli também influenciou
juristas de outros campos do saber jurídico, a exemplo de Miguel Reale.5
Contudo, de acordo com Alcides Jorge Costa, a aproximação entre o
Direito Tributário brasileiro e o Direito Tributário italiano é anterior à perma-
nência de Tullio Ascarelli no Brasil, pois várias obras de juristas italianos já
circulavam no país.6
Isso porque Veiga Filho já havia mostrado familiaridade com a dou-
trina financeira italiana em sua obra Manual de Ciências das Finanças, cuja
primeira edição foi publicada em 1898, principalmente a de Luigi Cossa
(Primi elementi di scienza delle finanze), Ricca Salerno (Scienza delle fi-
nanze), Federico Flora (Manuale di scienza delle finanze) e Francesco Nitti
(Scienze delle finanze).7 Além disso, Ruy Barbosa tratou do imposto so-
bre a renda com base na obra L’imposta sul reddito, de Ricca Salerno, em
1891.8
Outra importante coincidência que ensejou a aproximação entre o Di-
reito brasileiro e o Direito italiano no âmbito tributário foi a influência da Es-
cola de Pavia sobre Rubens Gomes de Sousa e Amilcar de Araújo Falcão. Vin-
culada à Università degli Studi di Pavia, a escola foi responsável pela gênese
da sistematização do Direito Tributário e por sua autonomia como disciplina
jurídica na Itália. Foi instituída por Benvenuto Griziotti em 1929 e obteve
grande notoriedade no país e no exterior, ficando conhecida como Scuola
Pavese.
Com prestígio na pesquisa sobre os tributos, essa escola transformou-
se, em curto espaço de tempo, em um centro intelectual e cultural de nível
internacional que atraiu diversos juristas e estudiosos do mundo todo, rece-
bendo o timbre de “Escola da Liberdade Intelectual”.

5
Essa declaração foi publicada por Osvaldo de Moraes na Revista de Direito Administrativo,
v. 66, p. 425. Apud COSTA, Alcides Jorge. Op. cit., p. 28.
6
TORRES, Heleno Taveira. Contribuições da doutrina italiana para a formação do Direito
Tributário brasileiro. Diritto e pratica tributaria, fasc. 4, 2002. p. 390.
7
Ibidem, p. 24.
8
TORRES, Ricardo Lobo. As influências italianas no Direito Tributário brasileiro. Revista de
Direito Tributário, São Paulo, v. 84, p. 70-82, 2002.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 105


Atribui-se a Griziotti o mérito de ter suscitado na Itália o grande inte-
resse pelos estudos de Direito Tributário.9 Foram intensas as relações en-
tre os pesquisadores da Escola de Pavia e os mais importantes tributaristas
estrangeiros, como Enno Becker, Otto Bühler, P.J.A. Adriani, Louis Trotabas,
P.B. Dertilis, Ernest e Irene Blumenstein e Albert Hensel, os quais influencia-
ram os estudos da referida escola.
Grandes estudiosos como Pugliese, Vanoni, Jarach, Maggezzini, Pomi-
ni, Forte, Di Paolo, Micheli – com formação em Economia e Direito – parti-
ciparam com Griziotti da Escola Pavese e influenciaram a formação e a evo-
lução do Direito Tributário na Itália. Suas obras estão constantemente men-
cionadas nos textos de Rubens Gomes de Sousa, e suas teorias, refletidas na
elaboração do Código Tributário Nacional.10
Afirma Heleno Taveira Torres que foi por necessidade técnica e pela
ausência quase absoluta de obras jurídicas de caráter geral sobre a matéria
tributária no Brasil que se deu a busca pela bibliografia estrangeira, especial-
mente a italiana, dada a aproximação cultural com o Direito Romano, mas
também porque era a melhor doutrina que se afirmava:
Essa aproximação revela-se em muitas passagens do Código Tribu-
tário Nacional, no qual é evidente a influência das concepções italia-
nas, como no caso da definição de tributo (art. 3º do CTN), que teve
inspiração nas obras de Tesoro, Giannini e especialmente Berlini, para
quem o tributo não poderia constituir-se como sanção de um ato ilíci-
to. As normas sobre a interpretação e a aplicação da legislação tributá-
ria (arts. 108 a 112) são nitidamente informadas pelas concepções de
Vanoni. Nos conceitos de obrigação tributária (art. 113), de orientação
tipicamente italiana (Giannini), e sujeição passiva tributária (arts. 128
a 135), quanto às formas de responsabilidade e substituição (Cocivera,
Bodda), também preponderam elementos típicos do Direito italiano.11
A partir de 1960, intensificou-se o contato dos brasileiros com o Direi-
to Tributário italiano, principalmente com as obras de Giannini e Berlini, as
quais influenciaram o tributarista Geraldo Ataliba a elaborar a classificação
dos tributos em vinculados e não vinculados a uma atividade estatal. O mes-
9
GRIZIOTTI, Benvenuto. Diritto finanziario, scienza delle finanze, ecc. Riv. dir. fin. sc. fin.,
1939, I. p. 3.
10
Os alunos de Benvenuto Griziotti foram: Mario Pugliese, Ezio Vanoni, Antonio Pesenti,
Sergio Steve, Frank Tamagna, Dino Jarach, Giannino Parravicini, Federico Maffezznoni, Ernesto
d´Albergo, Gian Antonio Micheli e Francesco Forte. Além desses, frequentaram a Escola de
Pavia, embora de modo esporádico: Enrico Allorio, Pietro Nuvolone, Máximo Severo Giannini
e Dino Jarach.
11
TORRES, Heleno Taveira. Op. cit., p. 394.

106 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


mo se verificou nas obras de outros autores, a exemplo da Teoria Geral do
Direito Tributário de Alfredo Augusto Becker, publicada em 1965.
Foi intensa a relação acadêmica de Geraldo Ataliba com Gian Antonio
Micheli, que foi professor da primeira Cátedra de Direito Tributário na Itá-
lia, instituída em 1963 na Faculdade de Direito da Universidade La Sapienza
em Roma, por meio da qual se proclamou a autonomia do Direito Tributário
como disciplina jurídica e como ramo do Direito no referido país.
Esse contato aconteceu em 1970, inclusive com intercâmbio de pro-
fessores, já que Micheli veio algumas vezes ao Brasil e recebeu juristas bra-
sileiros na Itália. Disso resultou a tradução de sua obra Curso de Direito
Tributário para o português feita por Marco Aurélio Greco. Também houve
repercussão da obra de Francesco Moschetti Il principio della capacità con-
tributiva, publicada em 1973, a qual, por muito tempo, foi a única a tratar
do tema.
Igualmente relevante foi a passagem de Victor Uckmar pelo Brasil, na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, atraído pelas obras de Aliomar
Baleeiro e Geraldo Ataliba por indicação de Tullio Ascarelli. Permaneceu seis
meses para desenvolver uma pesquisa sobre o constitucionalismo brasileiro.
De acordo com Torres, Uckmar foi um dos grandes colaboradores da
construção da doutrina tributária brasileira. Além de ensinar em cursos de
pós-graduação, foi autor da obra Principi comuni di diritto costituzionale
tributario, considerada a mais completa sobre Direito Comparado Tributário
de que se tem conhecimento, a qual foi traduzida para o português por ini-
ciativa de Geraldo Ataliba.12
Ainda no que se refere à proximidade do Direito brasileiro com o Direi-
to italiano, não podem ficar de fora a unificação do Direito Civil e Comercial
pelo Código Civil de 2002 e a construção da disciplina de empresa, em linha
com a orientação italiana. No cenário proposto pelo Código, verifica-se a in-
fluência italiana em vários aspectos, mesmo que, em alguns casos, apenas
em parte, fundindo-se com as regras da tradição brasileira.
No primeiro livro da parte geral, o art. 2º do CC estipula que a persona-
lidade civil começa com o nascimento com vida, idêntico ao art. 1º do Código
Civil italiano. Porém, convém destacar que o Código Civil brasileiro possui
regras que coincidem com vários outros sistemas jurídicos estrangeiros, não

12
Victor Uckmar presta um decisivo apoio à intensificação das relações culturais entre Brasil
e Itália no campo do Direito Tributário, intermediando a concessão de bolsa de estudos a
estudantes e professores, apresentando outros autores ao Brasil, difundindo publicações e
apoiando projetos de congressos internacionais, obras coletivas e outras iniciativas. TORRES,
Heleno Taveira. Op. cit., p. 397.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 107


somente com o italiano.13 Em relação ao Direito Civil, é importante registrar
a permanência de Miguel Reale, que inspirou o Código Civil de 2002, na Itália,
como aluno de Giorgio Del Vecchio, na década de 1940.
Em relação à responsabilidade civil, esclarece Sabrina Lanni que, com
o novo Código Civil brasileiro, efetuou-se uma releitura do conceito tradi-
cional a partir de uma visão solidarista e humanista que remete à noção de
dano injusto, a qual serviu para fornecer respostas a todas aquelas perguntas
referentes à lesão de bens não expressamente protegidos em nível normati-
vo, mas que também eram merecedores de tutela.14
No que tange à chave comparativa entre a Itália e o Brasil, é relevante
a centralidade do dano na disciplina da responsabilidade, que corresponde
a uma tendência moderna resultante do deslocamento do foco do ato ilícito
ao resultado danoso como consequência das profundas transformações so-
ciais e jurídicas em razão do progresso tecnológico que ampliou largamente
as possibilidades de dano. Dito de outra maneira, ambos os países coloca-
ram a ênfase sobre o dano, concebendo a norma neminem laedere como
um dever geral de não causar dano a outrem sem que exista uma causa de
justificação idônea.15
Especificamente sobre o objeto deste artigo, a responsabilidade do
Estado por dano tributário, constatou-se a presença de traços comuns, re-
velando a afinidade entre esses sistemas, o que tornou viável e profícua a
comparação a fim de adotar como paradigma para a construção normativa
doméstica a disciplina jurídica conferida na Itália pela Corte de Cassação a
partir do julgamento do acórdão nº 722, de 15 de outubro de 1999.
Verificou-se a correspondência nos seguintes aspectos: i) a relevân-
cia que o papel da jurisprudência assumiu nos últimos tempos, embora
sejam sistemas jurídicos alicerçados na tradição romano-germânica, cuja
referência são leis escritas e elaboradas a partir da experiência e da história
da sociedade em certo período; ii) são ordens jurídicas que funcionam por
meio de conceitos previamente estabelecidos, que se adequam à situa-
ção apresentada, ou seja, não são um direito que se forma empiricamente
13
ZANETTI, Cristiano de Souza. Il modelo giuridico italiano in Brasile: obbligazioni e contratti.
In: LANNI, Sabrina; SIRENA, Pietro. Il modello giuridico – scientifico e legislativo – italiano
fuori dell’Europa: atti del secondo Congresso Nazionale della SIRD, Siena, 20-21-22 settembre
2012. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2013. p. 180.
14
LANNI, Sabrina. La obrigação de indenizar nel decennale del codice civile. In: LANNI, Sabrina;
SIRENA, Pietro. Il modello giuridico – scientifico e legislativo – italiano fuori dell’Europa: atti
del secondo Congresso Nazionale della SIRD, Siena, 20-21-22 settembre 2012. Napoli: Edizioni
Scientifiche Italiane, 2013. p. 179.
15
Idem.

108 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


com base no caso concreto; iii) são sistemas jurídicos com ampla tutela
aos direitos fundamentais e à proteção da situação jurídica subjetiva de
cada membro da sociedade, inclusive em face do Estado; iv) a existência de
princípios constitucionais e infraconstitucionais equivalentes entre si que
regulam o modus operandi da administração tributária na relação estabe-
lecida com o contribuinte (ou responsável) e limitam o poder de tributar; v)
procedimento administrativo constitutivo do crédito tributário de natureza
vinculada passível de anulação em autotutela pela administração pública
ou por provocação do Poder Judiciário; vi) a exequibilidade do crédito tri-
butário pela execução forçada de bens; vii) foco da responsabilidade do
Estado no dano, deslocando-se a atenção da ação causadora do dano para
o resultado danoso, fazendo emergir a valoração do dano antijurídico (in-
justo ou ilícito).
1 A positivação da norma neminem laedere no Direito italiano
No Digesto 1.1.10.1, que é uma parte do Corpus Juris Civilis, Código
Justinianeu, do Imperador Justiniano, de 526 d.C., existem três normas des-
critas por Ulpiano, dentre as quais a norma neminem laedere, que constitui
o alicerce da teoria da responsabilidade civil, ao lado de dois preceitos: viver
honestamente e dar a cada um o que lhe é devido – iuris praecepta sunt
haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere.16
Na maior parte dos ordenamentos jurídicos, há sempre um preceito
inspirado nessas normas que dão a exata dimensão do sentido da responsa-
bilidade civil, que significa: a ninguém é permitido lesar outrem sem a con-
sequência da imposição de uma sanção correspondente ao ressarcimento
de danos.
Na Itália, tanto em âmbito doutrinário quanto jurisprudencial, reco-
nheceu-se que a norma neminem laedere se depreende da cláusula geral de
responsabilidade estabelecida no art. 2.043 do Código Civil italiano, que dis-
põe: “qualquer fato doloso ou culposo que causa a outrem um dano injusto
obriga aquele que cometeu o fato a ressarcir o dano”.
No final da década de 1990, diversas adaptações foram efetuadas no
instituto da responsabilidade civil, especificamente aplicada ao Estado, na
Itália, de forma que o modelo atual é resultado de uma paciente construção
jurisprudencial ocorrida em razão das inúmeras discussões e divergências
doutrinárias que acabaram permitindo a adequação desse instituto às exi-
gências da sociedade, especialmente no que tange à necessidade de manter
16
PETIT, Eugène. Tratado elementar de Direito Romano. Traduzido por Jorge Luís Custódio
Porto. Campinas: Russel, 2003. p. 87-88.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 109


o equilíbrio na relação jurídica estabelecida entre o Estado e o cidadão no
referido país.
Na verdade, houve uma redefinição da situação jurídica do cidadão
em face do agir administrativo, pois o sistema jurídico italiano passou por
um período de importantes reformas, as quais culminaram com a elaboração
de leis e com a inovação da jurisprudência, reforçando a exigência de uma
reflexão específica a respeito da responsabilidade do Estado, inclusive no
âmbito tributário.
O acórdão nº 500, de 22 de julho de 1999, proferido pelas Seções Uni-
das da Corte de Cassação italiana, foi considerado um marco no percurso
evolutivo da responsabilidade do Estado porque redefiniu a situação jurídica
do particular em relação ao agir administrativo por admitir a responsabili-
dade do Estado pelo ressarcimento do dano causado pelo agente público
no exercício das atividades administrativas também na hipótese de lesão de
interesse legítimo, e não apenas no caso da lesão de direito subjetivo, como
ocorria antes.
Trata-se de uma decisão histórica e inovadora, pois tal reconhecimen-
to deu-se pela primeira vez, possibilitando a tutela plena no tema da respon-
sabilidade do Estado, já que essa espécie de lesão foi incluída pela jurispru-
dência na noção de dano injusto do art. 2.043 do CC.17
Dessa forma, houve a ampliação da abrangência das normas de res-
ponsabilidade do Estado, pois os atos administrativos relacionados ao exercí-
cio da função administrativa – atos ius imperii – foram incluídos na categoria
de fatos geradores do dever de reparar danos. A partir disso, superou-se de-
finitivamente a ideia de que o Estado é um ente infalível e incapaz de errar,
já que foram alargados os mecanismos para possibilitar a responsabilização
do Estado em todas as hipóteses de atuação administrativa.
Até então, negava-se o ressarcimento de danos que resultassem da
lesão de interesse legítimo por se entender que a cláusula do dano injusto
contida no art. 2.043 do CC contemplava exclusivamente os danos por lesão
de uma posição jurídica qualificável como direito subjetivo. Logo, negar o
ressarcimento de danos por lesão de interesse legítimo era um modo de con-
ferir imunidade à atividade estatal, pois, se ocorresse um dano em virtude do
exercício do poder e da função administrativa, o Estado jamais seria respon-
sabilizado. Tal fato reforçou a exigência de uma reflexão específica sobre a
responsabilidade do Estado por dano tributário.

17
ITÁLIA. Corte de Cassação. Acórdão n. 500, de 22 de julho de 1999. Relator: Preden Pm
Dettori.

110 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


A destruição da concepção do Estado como um ente infalível propor-
cionou uma aproximação maior do direito aplicado italiano com a experiên-
cia jurídica dos demais países pertencentes à União Europeia, já que a ideia
da infalibilidade do Estado era incompatível com a visão dos demais países
europeus. Isso distanciava a Itália da realidade comunitária, sendo impres-
cindível tal mudança.
As Seções Unidas da Corte de Cassação reconheceram, portanto, a ir-
relevância da qualificação da situação jurídica do particular para afirmar o
direito ao ressarcimento de danos pelo Estado. Em outras palavras, deixou
de importar se o dano ocorrido era consequência da lesão de direitos subjeti-
vos, sendo suficiente que a conduta resultasse de atividade pública ilegítima
e que o interesse ao bem da vida fosse tutelado pela ordem jurídica.
Dessa forma, a Suprema Corte afirmou expressamente que também o
Estado, e não apenas o particular, submete-se à norma neminem laedere, já
que a previsão dos princípios de legalidade, imparcialidade e boa administra-
ção, estabelecidos nos arts. 23 e 97 da Constituição italiana, destinados a disci-
plinar a ação administrativa e a limitar o poder discricionário da administração
pública, age como um parâmetro para a atuação do poder público e conduz,
logicamente, à conclusão de que ao Estado também se aplicam as consequên­
cias do art. 2.043 do CC, por isso os danos resultantes do descumprimento
desses princípios constituem fonte de responsabilidade, pois significa que a
atividade pública foi desenvolvida fora das determinações constitucionais.
Em outros termos, impõe-se ao Estado o dever de agir de acordo com
a legalidade, a imparcialidade, a boa-fé, a transparência, a razoabilidade
etc., pois a presença de tais princípios no ordenamento jurídico indica que
a vontade do legislador é regular a atividade do Estado em um modo que
evite lesão à esfera jurídica do cidadão, inclusive em matéria fiscal. Por isso,
conclui-se que tais princípios são uma confirmação não apenas da existência
da norma neminem laedere prevista no art. 2.043 do CC, porque dela consti-
tuem parte integrante, mas de sua aplicação às atividades do Estado.
Portanto, a Corte de Cassação declarou que a atividade da adminis-
tração pública deve se desenvolver nos limites estabelecidos não só pela lei,
mas também pela norma neminem laedere. Afirmou, ainda, que é consenti-
do ao juiz ordinário apurar se o comportamento culposo do agente público
em violação à referida norma determinou a lesão de direito subjetivo ou de
interesse legítimo do administrado, causando-lhe danos, os quais deverão
ser ressarcidos.
Passou-se a exigir que a função administrativa se desenvolvesse em
conformidade com os princípios de correção e boa-fé. Antes disso, a dou-

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 111


trina afirmava que não era possível impor aos órgãos do Estado a observân-
cia de tais princípios por se tratar de algo incompatível com a obrigação de
perseguir o interesse público. Logo, se o agente público violar os deveres
de diligência, correção e boa-fé, os quais devem ser interpretados à luz da
imparcialidade e da boa administração, é possível imputar ao Estado o dever
de ressarcir os danos suportados pelo administrado, desde que injustos, por
ato do agente vinculado à administração pública.
Consequentemente, houve uma queda dos privilégios da administração
tributária na relação com o contribuinte, pois, após o acórdão nº 500/99, decla-
rou-se expressamente, em âmbito fiscal, por meio do acórdão nº 722, de 15 de
outubro de 1999, que toda atividade exercida de forma indevida que gera dano
injusto ao contribuinte é considerada fonte de ressarcimento de danos devido à
aplicação do art. 2.043 do CC ao Estado também em matéria tributária.
Reforçou-se que, inclusive no que concerne também à atividade tri-
butária, aplica-se a norma neminem laedere, de modo que o Estado tem o
dever de reparar os danos resultantes de atos praticados por seus agentes,
em matéria fiscal, quando violarem interesse legítimo ou direito subjetivo
dos contribuintes.
Tal como no acórdão nº 500/99, a Corte de Cassação declarou que a
possibilidade de imputar a responsabilidade à administração tributária por
danos que resultam do exercício da função fiscal também resulta da previ-
são dos princípios de legalidade, imparcialidade e boa administração – bem
como dos princípios a eles associados, ainda que estabelecidos em âmbi-
to infraconstitucional –, os quais regulam a ação administrativa e limitam o
exercício do poder de tributar pelo Fisco, dispostos, respectivamente, nos
artigos 23 e 97 da Constituição.
Igualmente, a Lei de Procedimentos Administrativos (Lei nº 241, de
07 de agosto de 1990) e o Estatuto dos Direitos do Contribuinte (Lei nº 212,
de 27 de julho de 2000), que complementam as normas constitucionais, im-
põem ao Estado o dever jurídico de respeitar, no exercício da função fiscal,
os princípios de economicidade, eficácia, publicidade, transparência, razoa-
bilidade, proporcionalidade e adequação.
Destaca-se que o art. 10 desse estatuto impõe a ambas as partes da
relação jurídica tributária (Fisco e contribuinte) o dever de se comportar de
forma correta e segundo os ditames de boa-fé, o que caracteriza o princípio
de colaboração e a tutela da confiança.18
18
CHINDEMI, Domenico. Comportamento illecito dei dipendenti degli uffici finanziari e
risarcimento del danno a favore del contribuente. Responsabilità Civile e Previdenza, fasc. 9,
p. 1763-1764, 2011.

112 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Em síntese, a Corte de Cassação italiana entendeu que a previsão
constitucional e infraconstitucional dos princípios instituídos para regular o
modus operandi da administração tributária no exercício de suas atividades,
ainda que no campo da discricionariedade, revela: i) não é permitido ao Esta-
do lesar a esfera jurídica de outrem no exercício das atividades fiscais, pois se
submete à norma neminem laedere, aplicando-se as consequências impostas
no art. 2.043 do CC em caso de violação; ii) tais normas jurídicas atuam como
um indicador da injustiça do dano; e iii) constituem um limite ao exercício da
discricionariedade.
Tomando como paradigma a experiência italiana, é possível consta-
tar que no Brasil a norma neminem laedere também se encontra positivada,
aplicando-se igualmente ao Estado no exercício das atividades no setor tri-
butário.
2 A positivação da norma neminem laedere no Direito brasileiro
No Direito brasileiro, apesar de a prescrição do dever de não causar
dano a outrem, que se revela na norma neminem laedere, resultar da inter-
pretação do conjunto de princípios estabelecidos nos arts. 1º, 5º e 170 da CF,
dos objetivos dispostos no art. 3º da CF e dos valores perseguidos pela Repú-
blica brasileira enunciados no Preâmbulo da Constituição, ela foi estampada
nos arts. 186 e 927 do CC e no art. 37, § 6º, da CF, sendo que o último regula
expressamente a responsabilidade do Estado pelos danos decorrentes de
condutas praticadas por seus agentes, nessa qualidade, porém, diversamen-
te da Itália, é desnecessário demonstrar a culpa lato sensu, conforme será
melhor esclarecido a seguir.
O traço distintivo entre tais dispositivos é o seguinte: nos arts. 186 e
927, caput, do CC, o foco da responsabilidade recai sobre o sujeito que cau-
sou o dano, pois se aplica a teoria subjetiva, que requer a prova da culpa lato
sensu para que exista o dever de ressarcir. Portanto, o objeto de interesse
versa sobre as características do ilícito, isto é, sobre a valoração da conduta
praticada, sendo nítida a função sancionatória.
No parágrafo único do art. 927 do CC e no § 6º do art. 37 da CF, o eixo
de interesse da responsabilidade altera-se, já que o legislador não voltou
as atenções ao sujeito causador do dano, mas à vítima, atribuindo função
compensatória à sanção, pois dispensou a prova da culpa lato sensu, esten-
dendo o ressarcimento aos danos decorrentes também de condutas lícitas,
não apenas de ilícitas.
A partir da análise de tais dispositivos, constata-se que a norma ne-
minem laedere assume, no Direito brasileiro, papel não só de princípio, mas

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 113


também de regra jurídica. Sem a pretensão de iniciar uma discussão a res-
peito do tema, pois fugiria do objeto deste estudo, serão feitas breves obser-
vações baseadas nos ensinamentos de Humberto Ávila, fundamentadas no
raciocínio a seguir:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente
retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para
cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre cen-
trada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são
axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da des-
crição normativa e a construção conceitual dos fatos. Princípios são
normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com
pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplica-
ção se demanda uma avaliação entre o estado das coisas a ser promo-
vido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua
promoção.19
Segundo Ávila, os princípios são normas imediatamente finalísticas,
ou seja, que estabelecem um fim a ser atingido exprimindo uma orienta-
ção prática. Por isso, afirma-se que representam uma função diretiva para
a determinação da conduta. Instituem o dever de adotar comportamentos
necessários à realização de um estado de coisas ou, inversamente, instituem
o dever de efetivação de estado de coisas pela adoção de comportamentos
a ele necessários. Em relação às regras, seus elementos caracterizadores ge-
rais são o caráter descritivo e a exigência de avaliação de correspondência
entre descrição factual e normativa.
A norma geral neminem laedere pode ser aplicada como regra quando
visualizar o aspecto imediatamente comportamental, isto é, se for enten-
dida como mera exigência da ordem jurídica de não lesar outrem. Todavia,
pode ser aplicada como princípio, quando se desvincular do comportamento
para enfocar o aspecto teleológico e concretizá-lo como um instrumento de
realização de outras normas estabelecidas na Constituição Federal de 1988,
como legalidade, solidariedade, igualdade, liberdade, propriedade, seguran-
ça, vida etc.
Vários doutrinadores classificam a norma neminem laedere como prin-
cípio geral de direito, visto que: i) identifica a manutenção da incolumidade
da esfera jurídica alheia; ii) fundamenta as normas positivas de responsabi-
lização; iii) auxilia a interpretação de normas jurídicas; iv) serve ao equilíbrio
social, mantendo-o ou restituindo-o; e v) é considerada uma das normas es-
19
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
10. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 78.

114 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


truturais do ordenamento jurídico por desempenhar um papel fundamental
na realização da vocação do Direito, que é a pacificação social.20
Dessa forma, a norma geral neminem laedere poderá ser considerada
uma regra, se o intérprete efetuar uma leitura restrita à exigência de não
causar dano a outrem; ou, ainda, um princípio, se utilizá-la como instrumen-
to hermenêutico dirigido a iluminar as letras do texto de lei, auxiliando na
interpretação ou na aplicação da norma jurídica, além de guiar o legislador
na elaboração de novas leis e de atuar como mecanismo para a realização de
estado de coisas, tal como acima mencionado.21
Verifica-se que a norma neminem laedere provém do art. 1º, inciso III,
e do art. 5º, incisos X e XXXV, da CF, que constituem o alicerce para o art. 37,
§ 6º, da CF e para as normas da legislação ordinária dispostas sobretudo nos
arts. 186, 187 e 927 do CC.
Contudo, há diversos artigos, sobretudo na Constituição Federal de
1988, a partir dos quais se infere que o preceito neminem laedere exerce fun-
ção normativa na ordem jurídica brasileira, tais como: i) art. 5º, inciso V, que
prevê o direito de resposta e a indenização por dano material, moral e à ima-
gem; ii) art. 5º, inciso X, que protege os direitos da personalidade e assegura o
direito à indenização por danos materiais e morais resultantes de sua violação;
iii) art. 5º, caput, que impõe a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade; iv) art. 1º, inciso III, que estipula como
princípio superior a dignidade da pessoa humana; e v) art. 6º, caput, que pres-
creve a vida com educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previ-
dência, proteção à maternidade, à infância e aos desamparados.22
Entretanto, o dispositivo constitucional de maior relevância para a de-
terminação da presença da norma neminem laedere no Direito brasileiro é o
art. 5º, inciso XXXV, o qual dispõe: “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Trata-se da previsão expressa no Direito brasileiro da atuação do Es-
tado-juiz por atos de coação, ou seja, da adoção de providências sancionató-
rias na hipótese de lesão à esfera jurídica de outrem e do não ressarcimento
espontâneo dos danos pelo sujeito que agiu em desconformidade com a lei.
Verifica-se que a leitura inversa (contrario sensu) do dispositivo determina

20
SILVA, Roberto de Abreu. Hermenêutica constitucional da responsabilidade civil. Revista da
Emerj – Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, v. 6, n. 23, 2003. Disponível em:
<http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista23/revista23_217.pdf>.
Acesso em: 19 maio 2016.
21
ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 42.
22
DONNINI, Rogério. Op.cit., p. 492.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 115


como dever jurídico “não lesar ou ameaçar direito de outrem”, por ser a
conduta oposta àquela que o legislador pretendeu evitar ao estabelecer a
sanção a ser aplicada pelo Poder Judiciário, constituindo uma prova a mais
de que a Constituição Federal de 1988 dispôs como norma primária o dever
de “não causar dano a outrem”.
Sabe-se que, para a Teoria Pura do Direito de Kelsen, determinada
conduta pode ser considerada juridicamente prescrita precisamente pelo
fato de a ordem jurídica conectar à conduta oposta uma desvantagem, isto
é, uma sanção, a exemplo da privação da liberdade e da execução forçada de
bens, sendo esta última a sanção aplicável ao presente estudo, por se tratar
de sanção civil relacionada ao ressarcimento de danos.23
Quando a ordem jurídica prescreve certa conduta pelo simples fato de
estipular uma sanção à conduta oposta, é possível descrever a situação da se-
guinte forma: praticada a conduta, impõe-se a sanção, sendo a conduta condi-
cionante da sanção denominada “conduta proibida”, e a conduta oposta, “con-
duta prescrita”. O “ser-devida” da sanção inclui dentro de si o “ser-proibida”
da conduta, que é seu pressuposto, e o “ser-prescrita” da conduta oposta.24
Logo, uma das maneiras de se constatar que o ordenamento jurídico
agrega a norma neminem laedere como um dever jurídico decorre do fato de
que estipula uma sanção – aplicada pelo Poder Judiciário por meio de atos
coativos – como consequência para a hipótese “se causar dano a outrem”,
como se verifica nos arts. 186 e 927 do Código Civil e no art. 37, § 6º, da CF.
A Constituição Federal de 1988 também regulou a reparação de danos
em outros artigos, tais como: i) art. 21, inciso XXIII, c, que regula a responsa-
bilidade objetiva por danos nucleares; ii) art. 136, § 1º, inciso II, que dispõe
sobre a responsabilidade civil da União pela ocupação temporária de bens
e de serviços públicos na hipótese de calamidade pública; iii) art. 225, § 3º,
que disciplina a responsabilidade pelos danos causados ao meio ambiente.
Em síntese: com base nesse arcabouço normativo, conclui-se que a
Constituição de 1988 acolheu a norma neminem laedere, a qual constitui
parte integrante da ordem jurídica.
3 A submissão do Estado à norma neminem laedere no Direito
brasileiro, inclusive em âmbito tributário
O termo Estado é considerado em sentido amplo para abranger todas
as entidades estatais, como a União, os estados-membros, o Distrito Federal
e os municípios, bem como seus respectivos prolongamentos administrati-

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 26.
23

Ibidem, p. 27.
24

116 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


vos, no que se inclui a administração tributária. Na conceituação do inciso
I do art. 41 do Código Civil, o Estado é pessoa jurídica de direito público in-
terno, por isso se insere entre os sujeitos destinatários da norma do § 6º do
art. 37 da CF.
Para Regina Helena Costa, o conceito de administração tributária
pode ser compreendido em dupla acepção: i) em sentido subjetivo: com-
preendendo o aparelhamento burocrático dos entes autorizados a tributar,
composto por múltiplos órgãos incumbidos da arrecadação e da fiscalização
dos tributos; e ii) em sentido objetivo: a atividade administrativa destinada
à função fiscal, visando a atender às finalidades de interesse público con-
substanciadas na proteção dos direitos dos contribuintes e na arrecadação
tributária.25
A existência da administração tributária é mencionada no texto cons-
titucional em diversos dispositivos, quais sejam: i) art. 37, inciso XVIII, que
trata da precedência da atuação da administração tributária sobre os demais
setores administrativos, na forma da lei; ii) art. 37, inciso XXII, que dispõe so-
bre a essencialidade da atividade desenvolvida pela administração tributária
da União, dos estados-membros, do Distrito Federal e dos municípios, justi-
ficando a prioridade na alocação de recursos, inclusive o compartilhamento
de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou de convênio; iii)
art. 167, inciso IV, que contempla o princípio da não afetação da receita de
impostos a órgãos, fundo ou despesas, estipulando a destinação de recursos
para a realização de atividades da administração tributária; iv) art. 145, § 1º,
que faculta à administração tributária identificar o patrimônio, os rendimen-
tos e as atividades econômicas do contribuinte, respeitados os direitos in-
dividuais, que permitem a apreciação da efetiva capacidade contributiva.26
Segundo se pode verificar, nos dois primeiros casos, a administração
tributária é tratada no art. 37 da CF, que dispõe no caput sobre princípios
da administração pública, o que confirma que a administração tributária é
um setor especializado dentro da administração pública. Conforme Luciano
Amaro, é a administração pública no exercício da função administrativa rela-
cionada à arrecadação e à fiscalização de tributo.27
Desse modo, a administração tributária sujeita-se ao regime jurídico
próprio da administração pública, devendo observar os princípios a ela per-
tinentes, especialmente os de legalidade e finalidade pública, nos termos do
caput do art. 37 da CF.
25
COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 323.
26
Ibidem, p. 324.
27
AMARO, Luciano. Direito Tributário brasileiro. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 507.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 117


Embora a interpretação realizada a partir do entrelaçamento de di-
versos artigos da Constituição Federal de 1988, os quais foram acima men-
cionados, fosse suficiente para imputar ao Estado a responsabilidade pelos
danos decorrentes da conduta de seus agentes no exercício das atividades
administrativas, de forma geral e especificamente no setor tributário, o le-
gislador optou por estampá-la no § 6º do art. 37 da CF para não dar margem
a qualquer dúvida.
Ao imputar a responsabilidade ao Estado pelo ressarcimento dos da-
nos decorrentes da conduta do agente público, que é uma sanção, o § 6º do
art. 37 da CF classifica-se como uma norma sancionadora, a partir da qual
é possível inferir, segundo a teoria de Kelsen, que está implícita no próprio
§ 6º do art. 37 da CF a proibição de o agente público causar dano a outrem
no exercício da atividade administrativa, já que, ao ligar expressamente de-
terminada conduta a uma sanção, o legislador prescreve a conduta oposta
como um dever jurídico.
Dito de outro modo: se é dever jurídico prescrito pelo Direito a con-
duta oposta àquela prevista no antecedente da norma sancionadora, então
está subjacente no § 6º do art. 37 da CF a norma dispositiva “deve ser o
dever do agente público não causar danos a outrem no exercício da função
administrativa”, confirmando a positivação da norma neminem laedere e a
sua aplicação ao Estado no ordenamento jurídico brasileiro, o que abrange a
administração tributária.
Além de o § 6º do art. 37 da CF ligar a conduta oposta (causar dano)
a uma sanção (ressarcir o dano), o que é o bastante para demonstrar que o
legislador reconheceu expressamente que não só o particular, mas também
o Estado se submete à norma neminem laedere, sendo-lhe vedado lesar a
esfera jurídica de outrem, no caput desse artigo, o legislador estabeleceu
princípios para regular o modus operandi da administração pública (legalida-
de, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência), tal como ocorre
na Itália, confirmando sua vontade de fixar um parâmetro para o desenvolvi-
mento das atividades administrativas exatamente com o propósito de impe-
dir a ocorrência de danos.
Portanto, ao se analisar a composição do art. 37 da CF, constata-se
que: i) no caput do artigo, estão previstos os princípios que regulam a ação
administrativa, isto é, o modus operandi da administração pública, demons-
trando que o legislador disciplinou seu comportamento para evitar a ocor-
rência de danos como consequência da atuação de seus agentes, já que afir-
mou que a administração direta e indireta deve obedecer aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência; e ii) no § 6º

118 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


do artigo, foi estipulado o dever de recompor os danos eventualmente cau-
sados e a responsabilidade direta do Estado pelos atos dos agentes públicos,
praticados nessa qualidade, como um mecanismo para estimular o cumpri-
mento dos princípios que vinculam a atuação administrativa estabelecidos
no caput. Portanto, existe uma estreita ligação entre o caput e o § 6º no que
tange à interpretação da norma neminem laedere.
A submissão do Estado à norma neminem laedere também se confir-
ma com base em normas infraconstitucionais que especificam a cautela do
legislador em disciplinar a atuação da administração pública, como a Lei nº
9.784, de 29 de janeiro de 1999, que estabelece normas básicas de proteção
aos direitos do cidadão para melhor cumprimento dos fins administrativos,
sobretudo na realização do processo administrativo, por exemplo: finalida-
de, motivação, ampla defesa, razoabilidade, proporcionalidade, contraditó-
rio, segurança jurídica, interesse público e eficiência, além da atuação segun-
do padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé.
Nesse sentido também se posicionou a Corte de Cassação italiana ao
afirmar que a função do art. 2.043 do CC é visivelmente sancionatória, pois
prevê uma sanção que resulta da lesão de uma posição jurídica subjetiva,
porém deixa implícita a norma primária alicerçada no princípio neminem
­laedere, que limita a atividade desenvolvida por particulares e pelo Estado.
Portanto, entende-se aplicável, no Brasil, uma interpretação seme-
lhante à efetuada pela Corte de Cassação italiana no sentido de que o dever
jurídico do Estado de ressarcir os danos decorrentes do exercício da função
pública resulta da existência de normas jurídicas que regulam o modus ope-
randi da administração pública, estabelecidas em âmbito constitucional e in-
fraconstitucional, além da norma prevista no § 6º do art. 37 da CF.
Atuação da administração pública, no que se inclui a administração
tributária, em conformidade com esses princípios é um direito subjetivo do
administrado (contribuinte), razão pela qual, além de ser um indicador da
culpa (lato sensu) do agente público, o descumprimento de tais princípios é
determinante da ilicitude dos danos eventualmente suportados, ensejando
o dever do poder público de repará-los.
Especificamente no que se refere ao setor tributário, essas conclusões
também se aplicam, pois a administração tributária, que atua diretamente
na execução de atividades de arrecadação e fiscalização de tributos, isto é,
no exercício da função fiscal, é parte integrante da administração pública,
caracterizando-se como um dos seus setores especializados.
Ao transportar a ideia para o cenário das relações fiscais, o agente que
causou o dano é credenciado da administração tributária federal, estadual ou

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 119


municipal; e o lesado é o sujeito passivo da obrigação tributária, isto é, o con-
tribuinte ou o responsável, nos termos do art. 121 do CTN. Todavia, há normas
tributárias específicas, que serão brevemente analisadas a seguir, as quais com-
provam que também na relação entre Fisco e contribuinte (ou responsável) pai-
ra o dever de não causar danos e, na sua ocorrência, o dever de ressarcimento.
Ao introduzir na Constituição Federal de 1988 uma seção que trata das
“Limitações ao poder de tributar” (arts. 150 a 152 da CF), o legislador brasi-
leiro demonstrou ter reconhecido o alto potencial destrutivo da imposição
tributária e, consequentemente, a necessidade de prever garantias constitu-
cionais para a proteção do contribuinte, já que os fatos tributáveis se atrelam
a comportamentos que se conectam às liberdades fundamentais, atingindo
obrigatoriamente a propriedade e a liberdade. Logo, são suscetíveis de cau-
sar lesão a direitos subjetivos do sujeito passivo da obrigação tributária se
exercidos fora dos parâmetros legais estabelecidos por meio de princípios e
regras que constituem o limite para o exercício da atividade fiscal.28
As limitações ao poder de tributar abrangem um conjunto de normas
jurídicas – tais como legalidade, anterioridade, irretroatividade, igualdade,
capacidade contributiva, vedação do tributo com efeitos confiscatórios, não
cumulatividade – que se caracterizam como vedações constitucionais às enti-
dades tributantes, cujo fundamento é a ideia de que “o poder de tributar im-
plica o poder de destruir”. Isso porque, nas relações tributárias, há dois valores
em constante tensão, a autoridade do poder público e a liberdade individual
do contribuinte, pois a imposição de tributos consente obter recursos financei-
ros destinados à manutenção do aparelho estatal, mas permite que o direito
fundamental à propriedade e à liberdade do contribuinte sejam legitimamente
atingidos com a absorção compulsória de parcela de seu patrimônio.
O fenômeno tributário toca diretamente os direitos fundamentais,
não apenas como consequência da eleição dos fatos que o legislador consti-
tuinte apreende nas regras-matrizes de incidência tributária, mas principal-
mente pela forma como a atividade tributante é exercida, que pode causar
danos de extrema gravidade e até irreversíveis ao contribuinte, tais como: i)
a indisponibilidade de recursos financeiros devido aos depósitos destinados
a suspender a exigibilidade do crédito tributário, ao bloqueio de bens e à
penhora do faturamento da empresa; ii) a inscrição no cadastro informativo
de créditos não quitados (Cadin), que pode restringir o suprimento de ma-
téria-prima por fornecedores, impedindo o cumprimento dos contratos com
28
Conforme as palavras de John Marshall no caso McCulloch v. Maryland, 1819: “that the power
to tax involves the power to destroy”, cuja tradução pode ser: “o poder de tributar implica o
poder de destruir”. JURINSKI, James John. Tax reform. California: ABC-CLIO, 2000. p. 257.

120 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


os clientes, além do acesso ao crédito junto às instituições financeiras, o que
inviabiliza o negócio; iii) o indeferimento da certidão negativa de débito fiscal
(CND) ou da certidão positiva com efeitos negativos (CPD-EN), que obstrui
atividades e negócios com o setor público e o privado, dada a exigência de
apresentação, em vários casos, da certificação de regularidade fiscal que im-
pede a participação em procedimentos licitatórios e em concursos públicos;
iv) a limitação da alienação de bens, entre outros.
Em relação ao contribuinte pessoa física, graves danos podem ocorrer,
por exemplo: a impossibilidade de admissão em concursos públicos e em-
pregos no setor privado, a frustração de negócios jurídicos e complicações
financeiras capazes de violar o direito fundamental à vida digna, provocando
o esgotamento físico e mental que abala a moral e o psicológico.
Logo, além dos princípios dispostos no caput do art. 37 da CF, os quais
já seriam suficientes para submeter a administração tributária aos efeitos
da norma neminem laedere, os princípios e regras específicos do setor tribu-
tário acima mencionados confirmam a vontade do legislador de proteger o
sujeito passivo da relação tributária dos possíveis danos resultantes do exer-
cício da função fiscal.
É importante destacar que a atuação da administração tributária em
conformidade com as referidas normas constitui direito subjetivo do contri-
buinte (ou responsável).
Portanto, na hipótese de o contribuinte sofrer danos em virtude do
exercício da função fiscal, é possível que se verifique a lesão de duas catego-
rias de direitos subjetivos: i) de regras e princípios tributários de cumprimen-
to obrigatório pelo Fisco para realizar atos dirigidos à imposição do tributo; e
ii) dos direitos à propriedade e à liberdade.
Isso é suficiente para que o dano seja qualificado como ilícito – injus-
to, conforme a terminologia adotada pelo legislador italiano –, ensejando
o dever de ressarcimento pelo Estado. A ilicitude do dano é resultado da
violação do direito subjetivo do contribuinte de ser submetido à exigência
de tributo com base em princípios e regras constitucionais tributários e da
lesão ao direito subjetivo à propriedade e à liberdade que a violação desses
princípios produz.29

29
O legislador italiano adota a terminologia “dano injusto” no art. 2.043 do CC para qualificar
o dano passível de ressarcimento. Optou-se pelo termo ilícito em vez de injusto em relação
ao Direito brasileiro, não por acreditar-se na sua inadequação, mas para seguir o padrão que
começou a ser defendido, sobretudo, por Fernando Dias Menezes de Almeida, apesar de ser
algo incipiente, porém com o mesmo significado, ou seja, para se referir ao denominado “dano
evento”, que corresponde à lesão de direitos subjetivos e de interesses juridicamente relevantes.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 121


Nessa lógica, ao introduzir tais princípios como limitação à imposição
tributária por reconhecer seus efeitos nocivos se exercida fora dos parâme-
tros estipulados, o legislador não só assegura e defende direitos fundamen-
tais e valores como segurança, justiça, igualdade etc., mas torna evidente a
existência de uma obrigação do poder público de adotar comportamentos
corretos também em matéria tributária para não causar lesão ao contribuin-
te (neminem laedere), sob pena de se submeter às consequências previstas
no art. 37, § 6º, da CF, ou seja, ao dever de ressarcir os prejuízos causados.
4 A culpa (lato sensu) na responsabilidade da administração tributária
no Direito brasileiro e no Direito italiano
Apesar da grande afinidade que existe entre o Direito brasileiro e o ita-
liano, segundo se pretendeu demonstrar ao longo deste artigo, em matéria de
responsabilidade do Estado, no que se insere a administração tributária, há
uma diferença relevante entre os dois sistemas que, a meu ver, confere vanta-
gens ao Brasil em relação à Itália. Trata-se da necessidade de efetuar a prova
da presença do elemento culpa lato sensu na conduta que causou o dano.
A Constituição Federal de 1988 deu um importante passo para o de-
senvolvimento da responsabilidade do Estado ao tornar desnecessária a pro-
va da culpa lato sensu pela vítima, estendendo sua aplicação às condutas líci-
tas, ao dispor: “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes,
nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso con-
tra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Ao aplicar-se a teoria objetiva ao Estado, que dispensa a averiguação
da subjetividade do sujeito que praticou a conduta que causou o dano (dolo
ou culpa), eleva-se o risco à condição de fato gerador da obrigação de inde-
nizar, retirando-se o foco da responsabilidade do ato ilícito, isto é, da valora-
ção da conduta, e transferindo-o à reparação dos sofrimentos da vítima, em
um nítido solidarismo, com uma preocupação cada vez maior em preservar
a essência da dignidade da pessoa humana em detrimento das práticas em
relação às quais estamos todos expostos.30
A responsabilidade objetiva do Estado por atos de seus agentes ao
exercer a função pública está cristalizada no Direito brasileiro, fundamentan-
do-se no princípio da igualdade na distribuição dos encargos públicos entre
os cidadãos e, consequentemente, na repartição entre todos dos prejuízos
causados na forma de ressarcimento pelo Estado.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op.cit., p. 401.


30

122 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


O dever do Estado de ressarcir esses danos é um modo de proteger os
interesses dos particulares quando há lesão de direitos subjetivos na tentati-
va de recompor a situação, dentro do possível, ao estado em que se encon-
trava antes da ofensa patrimonial ou moral. Não sendo possível restabelecê­-
la­, admite-se a indenização em valor pago em dinheiro. A desnecessidade de
efetuar a prova da culpa lato sensu do agente causador do dano facilita tal
reparação, evitando que o cidadão suporte sozinho os prejuízos decorrentes
de atividades exercidas em benefício de todos em razão das dificuldades ine-
rentes à sua realização.
Para deflagrar a responsabilidade do Estado, requer-se a presença dos
elementos estabelecidos em lei (art. 37, § 6º, da CF e arts. 927 e 186 do CC),
considerados essenciais, sem os quais não existe dever de ressarcir. Tais ele-
mentos são: i) conduta (lícita ou ilícita) do agente público; ii) dano ilícito; e iii)
nexo de causalidade entre a conduta do agente público e o dano.
No Direito italiano, com o título Risarcimento per fatto illecito, o art.
2.043 do CC é considerado cláusula geral da responsabilidade extracontratu-
al e dispõe: “qualquer fato doloso ou culposo que causar a outrem um dano
injusto obriga aquele que cometeu o fato a ressarcir o dano”. Trata-se da
previsão normativa que fundamenta o dever de qualquer pessoa, inclusive
do Estado, no que se insere a administração pública e seus setores espe-
cializados, de ressarcir os danos resultantes da violação da norma neminem
laedere. Basta uma rápida leitura do artigo para constatar a imprescindibi-
lidade do dolo e da culpa na qualificação e na imputação dessa espécie de
responsabilidade.31
A administração tributária é obrigada a ressarcir os danos causados
ao cidadão em consequência do exercício das atividades de natureza fiscal
desde que presentes os elementos da fattispecie da responsabilidade extra-
contratual determinados pelo art. 2.043 do CC, ou seja: i) conduta ilícita, ii)
evento danoso, iii) nexo de causalidade entre o evento danoso e a conduta
ilícita e iv) culpa (lato sensu).
A Corte de Cassação enfrentou o tema dos pressupostos para o reco-
nhecimento, em concreto, da tutela de ressarcimento de danos pela admi-
nistração pública, inclusive em matéria fiscal, declarando que o raciocínio
do juiz deve observar a seguinte sequência: i) verificar se existe um evento
danoso; ii) estabelecer se o dano pode ser qualificado como injusto em rela-
ção à sua incidência sobre um interesse relevante para a ordem jurídica; iii)

31
Art. 2.043 do CC: “qualunque fatto doloso o colposo, che cagiona ad altri un danno ingiusto,
obbliga colui che ha commesso il fatto a risarcire il danno”.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 123


examinar, com base no aspecto causal, se o evento danoso decorre de uma
conduta positiva ou negativa praticada pela administração pública; e iv) por
fim, indagar se o evento danoso pode ser imputado a título de dolo ou culpa
à administração.32
Segundo o entendimento já pacificado da Corte de Cassação, a respon-
sabilidade do Estado não é in re ipsa, ou seja, não decorre automaticamen-
te da prática do ato ilegítimo pelo agente público, mas requer a presença
de outros requisitos, os quais, conjuntamente, conferem o caráter ilícito ao
comportamento da administração tributária, na qualidade de organização,
constituindo fonte de ressarcimento de danos. Esses requisitos são: injustiça
do dano e elemento psicológico (dolo ou culpa).
Substancialmente, na Itália, o dolo e a culpa constituem uma quali-
dade da conduta ilícita que irá condicionar o dever do Estado de ressarcir
danos quando estiverem presentes os demais elementos da fattispecie do
art. 2.043 do CC. Conforme anteriormente mencionado, em matéria de res-
ponsabilidade extracontratual, não basta o ato ilegítimo, é necessário um
quid pluris que se verifica na comprovação da culpa e na existência de um
dano que revele a lesão de direitos subjetivos ou de interesses legítimos do
administrado, sendo, portanto, injusto.
Como se trata do Estado, o elemento psicológico que se manifesta por
dolo ou culpa associa-se ao comportamento da administração pública en-
tendida como organização funcional e qualificada, o que se denomina, em
italiano, culpa do apparato amministrativo, e não apenas a culpa lato sensu
do agente público cuja conduta causou o dano.33
A particularidade é que a Corte de Cassação excluiu a necessidade de
provar a culpa lato sensu do agente público que fisicamente praticou o ato
ilegítimo por reconhecer como suficiente a prova da culpa da organização
administrativa, a qual resulta da violação de normas comuns de prudência.

32
CHIEPPA, Roberto; GIOVAGNOLI, Roberto. Manuale di diritto amministrativo. 2. ed. Milano:
Giuffrè, 2012. p. 890.
33
“L´imputazione non potrà quindi avvenire sulla base del mero dato obbiettivo dell´illegittimità
dell´azione amministrativa, ma il giudice ordinario dovrà svolgere una più penetrante indagine,
non limitata al solo accertamento dell´illegittimità del provvedimento in relazione alla normativa
ad esso applicabile, bensì estesa anche alla valutazione della colpa, non del funzionario agente
(da riferire ai parametri nella negligenza o imperizia), ma della Pubblica Amministrazione intesa
come apparato che sarà configurabile nel caso in cui l´adozione e l´esecuzione dell´atto illegittimo
(lesivo dell´interesse del danneggiato) sia avvenuta in violazione delle regole di imparzialità, di
correttezza e di buona amministrazione alle quali l´esercizio della funzione amministrativa deve
ispirarsi e che il giudice ordinario può valutare in quanto si pongono come limiti esterni alla
discrezionalità.” (Cass. SS.UU, 22 luglio 1999, n. 500 – negritei)

124 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Isso ocorre, por exemplo, se a atividade administrativa é desenvolvida de
forma negligente e imprudente, com o descumprimento da imparcialidade
e da boa administração e com a violação de leis e de regulamentos de ob-
servância obrigatória, vinculantes para a atividade administrativa, inclusive
tributária.
Conforme Michele Corradino, a culpa da administração pública coin-
cide com a disfunção no exercício da função administrativa – que é determi-
nada pela desorganização da gestão do pessoal, dos meios e dos recursos
dos entes administrativos –, ao que se imputa a adoção e a execução do ato
ilegítimo. Por isso, a avaliação da culpa do Estado deve ser efetuada a partir
da comparação entre o comportamento efetivamente adotado na situação
concreta pela administração tributária e o comportamento estabelecido pela
ordem jurídica, analisando-se eventuais desvios e a sua motivação.34
Sobre o assunto, esclarece Domenico Chindemi que a verificação em
concreto da culpa da administração pública, também em âmbito tributário,
configura-se sempre que o ato ilegítimo for praticado com a violação das
normas que regulam o exercício da atividade administrativa, a exemplo dos
princípios de imparcialidade e bom andamento, previstos em âmbito consti-
tucional pelo art. 97; dos princípios de celeridade, eficiência, transparência e
eficácia, em âmbito da legislação ordinária; e dos critérios de razoabilidade,
proporcionalidade e adequação.35
Conclusão
Tanto na Itália quanto no Brasil, a interpretação decorrente do entre-
laçamento dos enunciados prescritivos gerais e abstratos que compõem o
Direito posto permite concluir que a norma neminem laedere, que estabele-
ce o dever de não lesar outrem, encontra-se positivada na ordem jurídica e
aplica-se à administração tributária no exercício das atividades relacionadas
à imposição de tributos.
Isso porque os sistemas jurídicos de ambos os países são dotados de
princípios que regulam a ação administrativa, isto é, o modus operandi da
administração pública, o que inclui a administração tributária, disciplinados
nos arts. 23 e 97 da Constituição italiana de 1948 e 37 e 150 da Constituição
brasileira de 1988, por meio dos quais o legislador deixou implícita a proibi-
ção de causar danos ao cidadão no exercício da função pública.

34
CORRADINO, Michele. Diritto amministrativo. 2. ed. Padova: Cedam, 2009. p. 1001.
35
CHINDEMI, Domenico. Comportamento illecito dei dipendenti degli uffici finanziari e
risarcimento del danno a favore del contribuente. Rivista Responsabilità Civile e Previdenza,
n. 9, 2011. p. 1763.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 125


Portanto, se violado tal dever, os danos ocorridos devem ser repara-
dos pelo Estado, cujo dever é recompor a situação do lesado ao status quo
ante, inclusive na forma de reparação pecuniária, a fim de restabelecer o
equilíbrio rompido pela lesão, pois o prejuízo não reparado é um fator de
inquietação social.
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Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 127


128 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8
Gênese do Código Penal brasileiro
Amadeu de Almeida Weinmann
Advogado, Professor de Direito Penal, Membro do Instituto dos Advogados
­Brasileiros, do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul e da ­Associação
­Brasileira de Advogados Criminais, Sócio Fundador da Comunidade de
Juristas de Língua Portuguesa

“Pois não vês que morremos todo dia


Debaixo do chicote que não cansa?
Enquanto do assassino a fronte calma
Não revela um remorso de sua alma?”
Castro Alves
Pouco se tem falado sobre as origens do CPB. Fazem-se necessários al-
guns registros sobre a sua verdadeira etiologia, a fim de que se possam en-
tender as próprias causas de sua ineficácia, hoje, no combate à criminalidade.
Desde algum tempo após o descobrimento, e até mesmo depois da In-
dependência, a nossa legislação penal foi regida pelo livro V das Ordenações
Filipinas de 1603, reformadas por D. João IV em 1643.
Experimentamos, no início de nossa vida jurídica, a vigência de uma
legislação verdadeiramente iníqua, tanto que ficou conhecida como a fami-
gerada lei, tal a sua inconsequência e ilegalidade. Apenas para exemplificar,
ela determinava que o delinquente deveria ser julgado conforme a gravidade
do caso e a qualidade do ofendido.
Permitia privilégios aos potentados e pena de morte aos humildes.
Mandava que se executasse o réu pelo fogo, nos crimes de adultério e de
incesto, e, como bem nos reporta Ary Franco, fazia distinção entre o nobre
e o peão, sendo que, para aquele, geralmente a pena era a de multa e, para
este, quase sempre a de morte.
Com a proclamação da independência a 07.09.1822, o livro V das Or-
denações Filipinas continuou vigendo até o evento da lei de 23.11.1823, que
abrandava um pouco a legislação anterior.
O advento da Constituição de 25.03.1824 obrigou o surgimento de dis-
posições mais liberais, ainda que não satisfizessem as ambições nacionais.
Depois da outorga constitucional que expressamente trazia em seu
bojo a semente de uma nova legislação, surgiu, a 03.06.1826, o que restou
conhecido como projeto José Clemente Pereira, primeiro esboço do que po-
deria servir de base para um código criminal.
Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 129
Quase um ano após, em 16.05.1827, Bernardo Pereira de Vascon-
cellos apresentava outro projeto que, apreciado pelas Câmaras de Represen-
tantes, foi transformado em lei, que passou a ser conhecida como o Código
Criminal do Império.
Referendado pelo Visconde de Alcântara, foi sancionado pelo Impe-
rador D. Pedro I, no dia 16.12.1830. Quatro partes compunham a legislação
que passaria a vigorar:
– a primeira, tratando dos crimes e das penas;
– a segunda, dos crimes públicos;
– a terceira, dos crimes particulares; e, por fim,
– a quarta, que tratava dos chamados crimes policiais.
Foi aí que, pela primeira vez, se fez a separação entre os crimes e as
contravenções.
Segundo todos os comentadores da época, tratava-se de uma elabora-
ção de erudição jurídica invulgar e de uma pureza gramatical a causar inveja
a qualquer outra legislação contemporânea, ainda que nela se mantivessem
as penas de galés e a pena de morte.
Ao longo do tempo, veio a sofrer algumas modificações, umas a me-
lhorar-lhe o conteúdo, outras, para piorar-lhe, como, por exemplo, a lei de
10.06.1835, que mandava punir os escravos com a pena de açoite, medida
essa revogada somente em 1886.
Não tratava nem do homicídio, nem das lesões culposas. Tais tipos pe-
nais somente passaram a existir com a lei de 20.09.1871. As penas de galés e
as de prisão perpétua foram substituídas pela pena de 30 anos de prisão, por
meio do D. 774, de 20.09.1890.
Com a lei de 13.05.1888, que extinguia a escravidão, iniciou Joaquim Na-
buco um trabalho visando à adaptação do Código Criminal do Império às novas
situações políticas e sociais que o momento impunha. E coube a João Vieira de
Araújo a apresentação do novo projeto, reformando o código até então vigente.
Uma comissão revisora foi nomeada pelo Imperador. Seu parecer foi
pela reforma total do código. Para isso, em julho de 1889, o Ministro da Jus-
tiça do Império, Conselheiro Cândido de Oliveira, encarregou o Conselheiro
Baptista Pereira da missão de elaborar o projeto de reforma do código im-
perial, o que efetivamente se realizou.
Poucos meses após, a 15.11.1889, sobrevindo a Proclamação da Re-
pública, o projeto foi relegado a um segundo plano, até que o novo Ministro
da Justiça, Dr. Manoel Ferraz de Campos Sales, entregou ao mesmo Conse-
lheiro Baptista Pereira a incumbência da apresentação de um novo projeto
de código penal.

130 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


O projeto definitivo, apresentado em 20.09.1890, foi revisado por uma
comissão formada pelos Srs. Barão de Sobral e Antônio Luiz dos Santos Wer-
neck e pelo jurista Belford Duarte.
Sancionado, transformou-se no D. 847, de 11.10.1890, não mais como
Código Criminal, e sim como o “Código Penal da República”.
Com 412 artigos, abrangendo quatro partes distintas, o código se dividia
em uma primeira parte, a geral, com seis títulos, que ia do art. 1º ao 86; a segun-
da, com o capítulo dos crimes em espécie, contendo 13 títulos, indo do art. 87
ao 363; a terceira, o título das contravenções penais, com também 13 capítulos,
do art. 304 ao 404; e, por fim, as disposições gerais, que iam do art. 405 ao 412.
Ora, tendo surgido quatro meses antes da CF de 1891, tornou-se anacrô-
nico ante os novos dispositivos constitucionais. Tanto é verdade que, ao longo de
sua existência, sofreu com mais de trinta leis que o modificaram grandemente.
Só para termos uma ideia, entre tantas, tivemos a L. 30, de 08.01.1892,
que estabelecia os crimes de responsabilidade do Presidente da República; a
L. 38, de 30.01.1892, que regulava a extradição de delinquentes; a L. 628, de
24.10.1899, que ampliava a ação penal e estabelecia que os crimes de furto
de valores superiores a 200$000 passavam a ser inafiançáveis; a L. 2.210, de
30.10.1899, criando o crime de peculato; a L. 2.992, de 25.09.1915, regulando
os crimes de corrupção de menores e lenocínio, com o fim de terminar com o
tráfico de mulheres brancas, citando-se aqui apenas as mais conhecidas.
A L. 4.294, de 06.06.1921, e o D. 20.930, de 11.01.1932, já visavam à
repressão ao uso de tóxicos e entorpecentes. Nesse período foi criado, pelo
D. 17.974-A, o Código de Menores.
Como última medida, surgiu o D. 22.213, de 14.12.1932, da lavra do
Desembargador Vicente Piragibe, que se tornou conhecido como a Consoli-
dação das Leis Penais Brasileiras. Era o resultado de um estudo iniciado por
aquele consagrado mestre em 1926. Resumindo: além da série de leis e de-
cretos que se multiplicavam no sentido de atualizar o CP, tivemos o surgi-
mento de vários anteprojetos, entre eles, o de Galdino Siqueira, em 1913, e
o de Virgílio de Sá Pereira, em 1928.
A legalidade e as nossas leis penais
Há que se conhecer qual o âmbito filosófico e em quais momentos
políticos foram geradas as nossas leis penais. Quais os estágios políticos que
vivia o nosso país, a cada momento de sua proliferação legislativa penal.
Por questões didáticas, há de se abstrair o período que vai do Brasil
Colônia, ou seja, aquele da vigência do Livro V das Ordenações Filipinas, até
1830, quando do sancionamento do Código Penal Imperial.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 131


Sem dúvida, no período do Vice-Reinado, as leis penais eram tidas
como de inspiração divina, reveladas ao soberano, cuja agressão constituía
crime maior, qual seja, o de lesa à majestade.
A legitimidade dessas leis era da origem divina, nada tendo de demo-
cráticas, muito menos de humanas.
O Código Criminal do Império, a seu lado, teve origens espúrias, pois
que, ainda que o Imperador D. Pedro I tivesse convocado uma Assembleia
Constituinte, com poderes para elaborar a Constituição, foi ela dissolvida,
restando-lhe, então, lavrar e outorgar a nossa primeira Lei Magna.
O Código Criminal do Império surgiu de um período de obscurantismo,
em que o Imperador, fechado o Congresso, governou ditatorialmente, sem-
pre por meio de decretos.
De outro lado, o nosso código republicano não fugiu à regra, nascen-
do no ventre da primeira ditadura militar republicana. É que, dado o golpe
militar que alijou a família real do país, instituiu-se, sem a outorga popular, o
governo provisório, liderado por Deodoro da Fonseca.
Para que se tenha um perfeito entendimento da identidade de linhas de
posicionamentos vindo desde o Império, basta que se saiba que tinha o nosso
primeiro código republicano aqueles mesmos ranços do código anterior.
Como pórtico, trazia as mesuras e reverências:
O Generalíssimo MANUEL DEODORO DA FONSECA, chefe do Go-
verno Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, constituí-
do pelo Exército e Armada em nome da Nação, tendo ouvido o Minis-
tro dos Negócios da Justiça e reconhecendo a urgente necessidade de
reformar o regime penal, decreta o seguinte Código Penal da Repúbli-
ca dos Estados Unidos do Brasil.
A renúncia do generalíssimo trouxe ao poder o Marechal Floriano Pei-
xoto, ao qual, não deve ter sido por nada, se atribuiu o epíteto de “O Mare-
chal de Ferro”.
Durante o seu governo, imperou o estado de sítio, e muitos foram
os brasileiros ilustres que morreram pela democracia, ou que tiveram que
amargar as dores do exílio. Entre os políticos que foram vítimas desse perío-
do, destaquem-se o conselheiro Ruy Barbosa, Carlos de Laet, José do Patro-
cínio, o poeta Olavo Bilac e outros.
O Rio Grande do Sul viveu essa época com verdadeiro estoicismo,
tendo como a máxima da reação democrática a Revolução Federalista de
fevereiro de 1893, na qual lutou pelo fim do “governicho” e pelo restabele-
cimento da legalidade.
O Código Penal tornou-se inerte e inútil ante as arbitrariedades do

132 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


poder, em que a degola campeava, especialmente no nosso estado. Entre
tantos mortos que caíram por terra vítimas das degolas, pode-se lembrar a
figura magnífica do Almirante Saldanha da Gama, perseguido e morto com
crueldade pelas gentes do famoso Coronel João Francisco Pereira de Souza.
Durante os períodos de governo de Epitácio Pessoa, Wenceslau Braz
e Arthur Bernardes, eram comuns os períodos de estado de sítio, deles ex-
plodindo vários movimentos revolucionários como o de 1922, com os 18 do
Forte de Copacabana, o de 1923 no Rio Grande do Sul, o de 1924 em São
Paulo, a Coluna Prestes em 1926, períodos esses em que o Código Penal era
substituído por senhas, recados, ordens ou bilhetes, partidos dos donos do
poder e cegamente obedecidos.
O que se poderia dizer até aqui do então CP é que era usado, especial-
mente no Norte e no Nordeste, somente quando representasse a vontade
dos coronéis. Aqui no Sul, a situação não era muito diferente, pois não era
raro que os nossos coronéis mantivessem tropas muito mais bem armadas
do que o próprio exército e a polícia militar.
Enfim, sobreveio a Revolução de 1930, e com ela a onda de esperan-
ças de legalização nacional que satisfizesse os anseios do povo brasileiro.
O gosto pelo poder, entretanto, foi retardando a realização das promessas
feitas durante a campanha da Aliança Liberal, na campanha sucessória, e a
não legalização do país acabou por gerar a Revolução Constitucionalista de
São Paulo, em 1932.1

1
“Revolução Constitucionalista de 1932, também conhecida como Revolução de 1932 ou
Guerra Paulista, foi o movimento armado ocorrido no estado de São Paulo, entre julho e
outubro de 1932, que tinha por objetivo derrubar o governo provisório de Getúlio Vargas e
convocar uma Assembleia Nacional Constituinte. O levante começou de fato em 9 de julho
de 1932 e foi precipitado após a morte de quatro jovens por tropas getulistas em 23 de maio
de 1932 durante um protesto contra o Governo Federal. Após a morte desses jovens, foi
organizado um movimento clandestino denominado MMDC (iniciais dos nomes dos quatro
jovens mortos: Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo), que começou a conspirar contra o
governo provisório de Getúlio Vargas, articulando junto com outros movimentos políticos uma
revolta substancial. Houve também uma quinta vítima, Orlando de Oliveira Alvarenga, que
também foi baleado naquele dia no mesmo local, mas veio a falecer meses depois. Nos meses
precedentes ao movimento, o ressentimento contra o presidente Getúlio Vargas ganhava
força, indicando uma possível revolta armada, e o governo provisório passou a especular a
hipótese de o objetivo dos revoltosos ser a secessão de São Paulo do Brasil. No entanto, o
argumento separatista jamais foi comprovado fidedigno, porém, ainda assim esse argumento
foi utilizado na propaganda do governo provisório ao longo do conflito para instigar a opinião
pública do restante do país contra os paulistas, obter voluntários na ofensiva contra as tropas
constitucionalistas e ganhar aliados políticos nos demais estados contra o movimento de São
Paulo.” (<https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolução_Constitucionalista_de_1932>)

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 133


Pressionado, o ditador faz realizar eleições à Assembleia Geral Consti-
tuinte em 1934 e, pela via indireta, elege-se Presidente da República.
Nesse período, é nomeada pelo Senado Nacional a comissão revisora
do código de 1890.
Nomes ilustres a compunham: Virgílio de Sá Pereira, Bulhões Pedreira
e Evaristo de Morais. Surgiu daí o Projeto nº 118-A, de 1935, que foi pos-
to à apreciação do Sr. Ministro da Justiça. Mobilizou-se o mundo jurídico
brasileiro para debater o projeto elaborado pela comissão governamental e,
em sessão instalada às 21 horas do dia 18.06.1936, na sede do Instituto da
Ordem dos Advogados do Brasil, situado na Rua Teixeira de Freitas, deu-se a
abertura da Primeira Conferência Brasileira de Criminologia, promovida pela
Sociedade Brasileira de Criminologia, cuja finalidade única fora o estudo do
projeto do novo Código Penal brasileiro.
Eis alguns dos tantos que lá compareceram e que, com o seu saber
jurídico, tanto enriqueceram aquela que poderia ter sido a nossa maior legis-
lação penal. Além dos autores do projeto, Drs. Virgílio de Sá Pereira, Bulhões
de Carvalho e Evaristo de Morais, assinaram a ata os professores Vicente
Piragibe, Mário Bulhões Pedreira, Lemos de Brito, Jorge Severiano, Hei-
tor Carrilho, Astolpho Rezende, Narcélio de Queiroz, o Ministro Carvalho
Mourão, Cândido Mendes de Almeida, Xavier do Prado, Joaquim Werneck,
Otto Gil, Philadelpho de Azevedo, Macedo Soares, Eduardo Espíndola Filho,
Roberto Lyra, Antônio Eugênio Magarino Torres, Lúcio Bittencourt, Nélson
Hungria, Oscar Tenório, Santiago Dantas, Yolanda de Mendonça (a única
mulher a debater o projeto), Luiz Vianna Filho, Gualter Lutz, Vieira Braga e
muitos outros.
Durante quinze sessões se debateu, profundamente, o projeto, tendo
ele, sem dúvidas, saído de lá muito mais enriquecido. A 08.07.1936, com
todas as teses debatidas e bem examinadas, foi o projeto, com sua redação
final, enviado ao Congresso Nacional.
Mas, lamentavelmente, os ventos universais não anunciavam bom
tempo para as democracias. A Rússia desde 1917 a banira de seus planos. A
Alemanha, com a social-democracia de Hitler, seduzia muitos líderes brasilei-
ros, o mesmo acontecendo com a Itália fascista de Mussolini.
A 10.11.1937, o Presidente Getúlio Vargas fechou o Congresso, de-
cretando o Estado Novo, e, com isso, as garantias constitucionais desapare-
ceram. Foi de imediato outorgada uma Constituição que se espelhou na da
Polônia, e o projeto de CP se perdeu no esquecimento e nas proibições do
Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP.

134 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


O mesmo Ministro da Justiça que fora o autor da “Polaca”, apelido
dado à Carta de 1937, com força no seu art. 180, delegou ao Prof. Alcântara
Machado a responsabilidade de revisar o Código Penal então vigente desde
11.10.1890.
Por certo que, admirador das ideias da época, Alcântara Machado, ao
apresentar ao Ministro da Justiça Francisco Campos o anteprojeto da Parte
Geral do Código Criminal Brasileiro, o fez citando Adolfo Zerboglio:
Tutto il Codice Penale, in funzione del regime político, dal quale
deriva, è, come reazione a precedenti eccessi di indulgenza – river-
bero anch’esso di conformi condizioni sociali – intonato a severità
coll’obbietto di difendere lo Stato da quele forze dissolvitrici che sono
assai diffuse e profonde nel mondo moderno, per la sua struttura,
por il numero di coloro che partecipano consapevolmente alla vita
pubblica, e per la complessità degli interessi che si contendono in
campo (...).
O modelo escolhido, como se viu, deveria ser em função do regime po-
lítico, e o código, ao invés de representar uma garantia ao cidadão, falava na
severità coll’obbietto di difendere lo Stato. Passamos a viver, de 1937 a 1945,
um período de plena ditadura, em que os direitos primordiais do cidadão
foram totalmente subtraídos.
E desse ventre viria a surgir, mais tarde, o nosso Código Penal.
Note-se que, ainda que o ditador governasse o tempo todo por decre-
to, os crimes maiores, como o de lesa à majestade, foram regidos por uma lei
superior a todas as demais leis: Lei de Segurança Nacional.
Nosso Código veio ao mundo em dezembro de 1940, tendo sido gera-
do no mesmo ventre e parido na mesma maternidade nos quais nasceram o
Código Penal do Império e o da Primeira República: os das exceções demo-
cráticas.
Em resumo, todos os nossos códigos penais foram filhos das ditaduras.
Nenhum deles floresceu em regime democrático. E mais, a reforma da
parte geral do atual código traz a assinatura de um ministro que se vinculou
a notícias nada enaltecedoras, relacionadas aos negócios de pedras semipre-
ciosas.
Por fim, a etiologia de nossa legislação penal está intimamente liga-
da aos períodos de obscurantismo democrático. Mantém ela os cacoetes do
despotismo, pensando em combater a violência com a própria violência. (O
grande temor é o de que possamos terminar inexoravelmente caindo, e inu-
tilmente, na consagração da pena de morte, e, mesmo assim, a criminalidade
aumentará em proporções geométricas.)

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 135


Editou-se uma lei qualificando alguns crimes como hediondos, como a
se dizer que os demais não seriam tão reprováveis, visto que não hediondos.
Parece hedionda a lei, por manietar o juiz. Montesquieu dizia que toda pena
que não derivasse da absoluta necessidade seria tirânica. Beccaria afirmava
que todo ato de autoridade de homem para homem que não derivasse da
absoluta necessidade seria tirânico.
Estaria na hora de se constituir uma nova comissão composta de pes-
soas experientes, aos moldes daquela plêiade de sábios reunidos, em 1936,
no Instituto da OAB, para se fazer um aprofundado estudo sobre a nossa
legislação penal, caso contrário, estaremos lotando presídios sem combater-
mos as verdadeiras causas da criminalidade.
A atual legislação penal mantém todos os vícios do despotismo. E, por
isso, ao caso desta doença brasileira, de péssimo prognóstico, tem sido ad-
ministrada uma terapêutica equivocada, simplesmente, por erro de diagnós-
tico.
Desobedecem-se, com a maior naturalidade, todos os princípios que
humanizaram o direito penal, desde a própria definição do crime, com a cria-
ção específica de tipos penais esdrúxulos e extravagantes, como o de bando
e quadrilha (nullum crimen sine lege), criam-se punições indesejáveis, es-
quece-se da proporcionalidade da pena (nulla poena commensurari debet
delicto), restringe-se o direito de defesa (nemo potest inauditus damnari),
desobedece-se o princípio da dúvida (in dubiis reus est absolventus), dá-se
interpretação desfavorável ao réu (favorabilia sunt amplianda, odiosa res-
tringenda) e, o pior de tudo, desobedece-se o princípio da presunção da ino-
cência (innocentia praesumitur ante condemnationem), sem falar no modo
como a legislação e a jurisprudência se comportam, no que diz respeito aos
crimes contra o erário público, que, em vez de cobrar os débitos, mata a
possibilidade de reavê-los.
A criminalidade continua crescendo assustadoramente, sem que se
possa ter a esperança de vê-la reprimida, pois que não mais se termina com
a criminalidade simplesmente com a cadeia. Resta-nos, concluindo, meditar
sobre a eterna lição que nos ensinou Beccaria: “Tanto mais justas são as pe-
nas quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e maior a liberdade que
o soberano dá aos súditos”. E alertava:
Consultemos o coração humano e nele encontraremos os princí-
pios fundamentais do verdadeiro direito do soberano de punir os de-
litos, pois não se pode esperar nenhuma vantagem durável da política
moral, se ela não se fundamentar nos sentimentos indeléveis do ho-
mem.

136 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Bibliografia
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: RT, 1996.
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São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1930.
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1915.
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LYRA, Roberto. Direito penal científico. Rio de Janeiro: José Konfino, 1974.
______. Expressão mais simples do direito penal. Rio de Janeiro: José
Konfino, 1953.
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do Brasil. Rio de Janeiro: Garnier, 1910.
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1938.
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1933.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 137


O NOVO Código Penal. Conferências pronunciadas na Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo por iniciativa das Secretarias de Estado
da Educação e da Justiça. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
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PONTES, Ribeiro. CPB. 6. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos.
PRIMEIRA Conferência Brasileira de Criminologia/1935. O Projeto nº 118-A –
1935. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1937.
RIBEIRO, Jorge Severiano. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil. Rio de
Janeiro: Jacinto, 1941.
SILVA, Josino do Nascimento. Código Criminal do Império brasileiro. Rio de
Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1863.
SIQUEIRA, Galdino. Tratado de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: José
Konfino, 1950.
TEIXEIRA, Paulo Rodrigues. Direito penal. São Paulo: Saraiva & Cia., 1928.

138 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Como a liberdade de expressão pode auxiliar na
promoção do desenvolvimento sustentável na Era das
Mudanças Climáticas?*1
Gabriel Wedy
Juiz Federal, Doutor em Direito, Visiting Scholar pelo Sabin Center for Climate
Change Law da Columbia Law School (Nova Iorque), Professor de Direito Ambiental
Coordenador da Esmafe-RS, Ex-Presidente da Ajufe

Agradeço aos promotores do evento, em especial ao Certal, na pessoa


do seu presidente do Diretório, Dr. Carmelo Ruggilo, e do seu presidente
executivo, Dr. Pablo Scotellaro, pelo gentil e honroso convite para fazer a
palestra de encerramento para importantes autoridades e amigos de tantas
pátrias de nossas Américas, em especial colegas juízes uruguaios e também
aqueles que assistem ao televisionamento ao vivo pelo Canal U. Dedico mi-
nha fala de hoje a um amigo muito querido que por certo aqui está em espíri-
to, Dr. Ramon Banguezes, ex-presidente da Associação dos Juízes Argentinos,
que nos deixou subitamente no final do ano de 2014. Valoroso companheiro
de tantas lutas pela independência do Poder Judiciário na América Latina, o
conheci quando eu presidia a Associação dos Juízes Federais do Brasil.
Deus quis que minha fala de hoje se desse neste país irmão, de gente
querida e valorosa, gaúchos como eu, e estes não têm pátria. Aqui na Repú-
blica Oriental do Uruguai, terra de grandes líderes como José Gervasio Arti-
gas e Juan Antonio Lavalleja, líder dos Trinta e Três Orientais. Terra da música
de Don Alfredo Zitarrosa e de Gerardo Matos Rodríguez, autor do célebre
tango La cumparsita. Na literatura, destacam-se, entre muitos outros, José
Enrique Rodó, Juan Zorrilla de San Martín e o grande Eduardo Galeano, autor
do clássico As veias abertas da América Latina. Nas artes visuais, destaco os
uruguaios Carlos Páez Vilaró e o pintor Juan Manuel Blanes. Nos esportes, a
brava Celeste Olímpica, bicampeã mundial de futebol heroicamente no ano
de 1950 no Estádio do Maracanã, no nosso Rio de Janeiro.
Entre tantas riquezas, o Uruguai tem no povo valoroso, culto e gentil
o seu maior capital. É um dos países economicamente mais desenvolvidos

Conferência proferida pelo autor em língua espanhola (o texto das notas está traduzido
*1

para o português), em Montevidéu, Uruguai, no Centro de Estudios para el Desarrollo de las


Telecomunicaciones y el Acceso a la Sociedad de la Información en América Latina – Certal, em
18.10.2016.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 139


da América do Sul, com um dos maiores PIB per capita, está em 48º lugar no
índice de qualidade de vida no mundo e em 1º no índice de qualidade de vida
combinada com desenvolvimento humano na América Latina.
É país pioneiro na defesa dos direitos civis e da democracia. Em 1907,
foi o primeiro país a legalizar o divórcio e, em 1932, o segundo país da Améri-
ca a conceder às mulheres o direito ao voto. Em 2007, foi o primeiro país sul­-
americano a legalizar uniões civis entre pessoas do mesmo sexo e a permitir
a adoção homoparental. Em 2013, o país se tornou a segunda nação sul-ame-
ricana a aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e o primeiro do
mundo a legalizar o cultivo, a venda e o consumo de cannabis, o que levou
a revista britânica The Economist a classificar o Uruguai como o país do ano
de 2013, pela promoção de “reformas inovadoras que não se limitam apenas
a melhorar um país, mas que, se imitadas, poderiam beneficiar o mundo”.
Muito mais poderia ser dito sobre este país e este povo amigo, mas me
limito, em face do tempo, ao que aqui foi dito.
Falo nesta pátria irmã e vizinha de meu Estado para pessoas que estão
preocupadas com um mundo melhor e mais justo para as nossas futuras ge-
rações, para que estas tenham o direito de acesso à informação e direito ao
futuro em sentido amplo.
O planeta sofre com a exploração acelerada e não planejada de recur-
sos não renováveis e escassos, em uma autêntica Tragédia dos comuns.1
Existem hoje mais de 7,2 bilhões de pessoas na Terra, nove vezes mais do
que os 800 milhões dos tempos da Revolução Industrial, em 1750. A cada
ano, nascem mais de 75 milhões de seres humanos. Até 2040, a população
mundial estará entre 8 e 9 bilhões de pessoas; no final do século, serão 10,08
bilhões de homo sapiens, disputando entre si, e com os demais seres vivos,
os recursos naturais e o espaço limitado de que dispomos.2
Esses bilhões de pessoas buscam o seu espaço na economia mundial.
Os pobres lutam para encontrar comida, água potável, acesso à saúde e mo-
radia. Aqueles que estão acima da linha da pobreza buscam o aumento da
prosperidade e um futuro melhor para os seus filhos. Os que vivem nos paí­
ses ricos esperam novos avanços tecnológicos que possam oferecer-lhes, e
também às suas famílias, níveis de bem-estar ainda maiores. Os ricos, por

1
Ver: HARDIN, Garret. The tragedy of the commons. Science, v. 162, p. 1243-1248, 1968.
2
SUSTAINABLE DEVELOPMENT SOLUTIONS NETWORK THEMATIC GROUP ON CHALLENGES
OF SOCIAL INCLUSION. Achieving gender equality, social inclusion, and human rights for
all: challenges and priorities for the sustainable development agenda. New York: Sustainable
Development Solutions Network, 2013.

140 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


sua vez, buscam o seu espaço no ranking mundial dos mais ricos3 ainda; ou
seja, pretendem acumular mais e mais riquezas.
Essa população busca, de modo consciente ou inconsciente politica-
mente, a melhoria da própria qualidade de vida ou o mero acúmulo de for-
tunas. O evidente crescimento da economia moderna está interconectado
com o incremento do comércio, das finanças, da tecnologia, dos fluxos de
produção e da migração e com o desenvolvimento das redes sociais.
O produto mundial bruto anual é de US$ 90 trilhões,4 200 vezes maior
que no início da Revolução Industrial. A economia mundial está crescendo
rapidamente, de 3% a 4% ao ano, com uma desigual distribuição de renda
dentro dos países e entre as nações. O mundo passa a ser, ao mesmo tempo,
de fabulosa riqueza e de extrema pobreza. De um lado, bilhões de pessoas
gozam de longevidade e de boa saúde, com índices inimagináveis para as
gerações pretéritas. De outro, pelo menos um bilhão de pessoas vive na mais
absoluta pobreza, lutando diariamente apenas para sobreviver.5
A renda per capita anual média mundial é de US$ 12 mil, mas nos paí-
ses ricos ela triplica e alcança o patamar de US$ 36 mil.6 Para que a renda per
capita mundial dos países em desenvolvimento atingisse a dos países ricos
até o ano de 2050, o produto mundial bruto deveria aumentar para US$ 346
trilhões, com todas as externalidades, positivas e negativas, inerentes a esse
crescimento.
A esse contexto econômico e social, adiciona-se a grave crise ambien-
tal em que a humanidade está inserida pela vulnerabilização e pela extinção
da biodiversidade e pelos nefastos efeitos das mudanças climáticas provoca-
das em grande parte pela ação humana. Entre 1750 e 2013, após as grandes
ondas de mudanças tecnológicas,7 o aumento das emissões de dióxido de
carbono foi de 280 partes por milhão para 397 partes por milhão; de metano,
o aumento foi de 700 partes por bilhão para cerca de 1758 partes por bilhão;

3
SACHS, Jeffrey. The age of sustainable development. New York: Columbia University Press,
2015. p. 1-2.
4
SUSTAINABLE DEVELOPMENT SOLUTIONS NETWORK THEMATIC GROUP ON CHALLENGES
OF SOCIAL INCLUSION. Achieving gender equality, social inclusion, and human rights for
all: challenges and priorities for the sustainable development agenda. New York: Sustainable
Development Solutions Network, 2013.
5
SACHS, Jeffrey. The age of sustainable development. New York: Columbia University Press,
2015. p. 2.
6
INTERNATIONAL MONETARY FUND. World Economic Outlook Database. April 2014.
Disponível em: <www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2014/01/weodata/index.aspx>. Acesso
em: 10 out. 2015.
7
SHILLER, Robert J. Irrational exuberance. Princeton: Princeton University Press, 2010.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 141


e de óxido nitroso, foi de 270 partes por bilhão para 323 partes por bilhão.8
O aquecimento global causa impactos e danos à saúde humana, à infraes-
trutura, às reservas de água potável, aos ecossistemas e aos oceanos.9 Tais
danos, muitas vezes, além de prejuízos econômicos públicos e privados bi-
lionários, podem atingir dimensões catastróficas. Os anos de 2014 e 2015
foram os anos mais quentes desde o início das medições de temperaturas,
em 1880, e o mês de julho de 2016, o mês mais quente de todo esse período.
O Brasil, por exemplo, embora seja a nona economia do mundo, em
termos de Produto Interno Bruto,10 está como 79º colocado no ranking glo-
bal de desenvolvimento humano;11 é o 60º colocado no ranking mundial da
educação;12 possui a 71ª posição em matéria de igualdade de gênero;13 é o
17º país mais desigual do G-20 e o 14º país mais pobre do mundo se for con-
siderada a desigualdade como aspecto principal, de acordo com o ranking
mundial da pobreza medido pelo índice Gini;14 o 77º no ranking mundial da
sustentabilidade geral; e o 115º colocado no quesito de proteção de flores-
tas e desmatamento.15
O desenvolvimento sustentável, de acordo com Jeffrey Sachs, meu
professor na Columbia Law School e principal consultor de Ban-Kin Moon,
secretário-geral da ONU, nessa matéria, está estruturado em quatro pilares
básicos: desenvolvimento econômico, inclusão social (com profundo respei-
to ao princípio da dignidade da pessoa humana), responsabilidade ambiental
e governança.
Nesse sentido, é mister bem fixar o princípio do desenvolvimento sus-

8
GERRARD, Michael. Introduction and overview. In: ______; FREEMAN, Jody (ed.). Global
climate change and U.S. law. New York: American Bar Association, 2014. p. 7.
9
UNITED STATES. U.S. Global Change Research Program. Nat’l Climate Assessment Dev.
Advisory. Comm., Third National Climate Assessment Report (Jan. 2013 draft).
10
INTERNATIONAL MONETARY FUND. World Economic Outlook Database. 2016. Disponível
em: <http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2016/01/weodata/weorept.aspx>. Acesso
em: 20 abr. 2016.
11
UNITED NATIONS. Human Development Report. Disponível em: <http://www.hdr.undp.
org>. Acesso em: 20 nov. 2015.
12
ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Disponível em:
<http://www.oecd.org>. Acesso em: 20 set. 2015.
13
UNITED NATIONS. Human Development Report. Disponível em: <http://www.hdr.undp.
org>. Acesso em: 20 nov. 2015.
14
THE WORLD BANK. Disponível em: <http://www.data.worldbank.org>. Acesso em: 20 set.
2015.
15
YALE CENTER FOR ENVIRONMENTAL LAW AND POLICY, YALE UNIVERSITY. Full report and
analysis. 2014. Disponível em: <http://issuu.com/yaleepi/docs/2014_epi_report>. Acesso
em: 01 jul. 2015.

142 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


tentável como útil e manejável na esfera jurídica, consentâneo com os dias
atuais, considerando os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável elei-
tos pela Assembleia Geral das Nações Unidas no mesmo ano em que o Vati-
cano, por obra do Papa Francisco, publicou a encíclica Laudato Si’, alertando
a humanidade para a necessidade do respeito à natureza e da observância da
sustentabilidade em tempos de crise ambiental. Também no ano de 2015, as
nações estiveram reunidas na Assembleia de Paris, na COP21, a fim de ado-
tar metas de controle das emissões de gases de efeito estufa e medidas de
resiliên­cia mais abrangentes que as adotadas no Protocolo de Quioto. Am-
pliou-se o consenso político, no sentido de que o desenvolvimento apenas
pode ser sustentável se estiver imbuído do objetivo de combate às causas
humanas do aquecimento global.
A Constituição brasileira é um rico documento, elaborado após longa
ditadura militar, e dela se pode extrair o conceito de direito fundamental ao
desenvolvimento sustentável que atenda ao enfrentamento dos múltiplos e
complexos desafios antes traçados. Desenvolvimento sustentável como um
direito e um dever fundamental que vincula as pessoas físicas e jurídicas, de
direito público e privado, e norteia a administração pública.
Para que o direito fundamental ao desenvolvimento sustentável pos-
sua concretude, precisa ser financiado pelo Estado por meio do orçamento.
Não há dúvida, também, de que o desenvolvimento sustentável deve
estar imbuído do ideário do combate à desigualdade em sentido amplo e
deve buscar não desconsiderar a economia, visto que o Direito é um fenôme-
no social. Por conseguinte, são importantes as lições de economistas atuais
como Thomas Piketty, Joseph Stiglitz, Paul Krugman e Jeffrey Sachs a respei-
to da desigualdade social e da necessidade de tutela do meio ambiente.
Governos, ao longo da história brasileira e mundial, oscilam, ora re-
gulando, ora desregulando a economia para fazer frente às crises cíclicas do
capitalismo. É bom que exista tal mobilidade regulatória no direito adminis-
trativo e que ela esteja à disposição do Estado regulador e não burocrata.
Administrações acertam, assim como erram, na elaboração de planos e pla-
nejamentos, mas os princípios fundantes de uma Constituição democrática
e os direitos fundamentais devem prevalecer sempre, não apenas nos casos
de sucesso, mas também naqueles de derrocadas causadas por equívocos
administrativos.
O direito fundamental ao desenvolvimento sustentável no Brasil está
relacionado diretamente com a observância e a execução da Política Nacio-
nal da Mudança do Clima prevista em lei. Portanto, é preciso levar a sério os
mecanismos jurídicos que permitam a limitação das emissões dos gases de

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 143


efeito estufa, a promoção da energia limpa, o combate ao desmatamento
das florestas (por exemplo, o desmatamento na Amazônia brasileira aumen-
tou, apenas no ano passado, 16% em relação ao ano anterior) e, também, as
medidas anticatástrofe calcadas no princípio da precaução.
Adaptação e resiliência são necessárias para enfrentar o aumento das
temperaturas e as suas consequências nefastas nos aspectos social, ambien-
tal e econômico. É evidente o aumento do nível dos oceanos e dos eventos
climáticos extremos, como secas, inundações, tempestades, ciclones, fura-
cões (afetando o estoque de água e a produção de alimentos), além da extin-
ção de espécies e da diminuição da biodiversidade.
Nesse cenário, urge a aplicação combinada da tributação sobre o car-
bono e a criação do mercado cap-and-trade, para permitir a comercialização
das licenças de emissões de gases de efeito estufa. Esses são os dois meios
mais eficazes para o combate às mudanças climáticas, segundo os experts.
Aliás, o cap-and-trade tem sido utilizado em regiões nos Estados Unidos, no
Canadá, na União Europeia e na China. Faz poucos dias, o primeiro-ministro
do Canadá anunciou ao mundo a precificação e a tributação do carbono na-
quele país.
Por fim, é possível invocar, como tanto se observa, o direito ao desen-
volvimento econômico sem que este seja sustentável? Parece-nos que não.
O futuro está nas energias renováveis: eólica, solar, biomassa, marítima e
talvez nuclear. É errôneo achar que são energias caras.
O petróleo e o carvão parecem baratos porque, na maioria dos países,
as suas externalidades negativas não são precificadas. Os efeitos negativos
causados pelos combustíveis fósseis ao meio ambiente e à saúde pública
causam prejuízos bilionários todos os anos às nações.
Nesse cenário, para garantir os pilares do desenvolvimento sustentá-
vel (governança, tutela ambiental, desenvolvimento econômico e inclusão
social), é fundamental a garantia da liberdade de expressão, como meio de
educar as presentes e as futuras gerações ambientalmente. Liberdade de
expressão é fundamental para corrigir os rumos da má governança.
Liberdade de imprensa e de expressão, em conformidade com Amar-
tya Sen, podem auxiliar no combate às fomes coletivas16 ou, acrescento,
para prevenir catástrofes ambientais ou reduzir os seus efeitos. Imprensa
livre e cidadania com liberdade de expressão podem denunciar governos
corruptos, que não praticam políticas distributivas e que agem com desca-
so em questões ambientais. Nações com liberdade de expressão garantida

SEN, Amartya. Development as freedom. New York: Random House, 1999. p. 236.
16

144 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


permitem que a imprensa e a cidadania denunciem governos perdulários,
que gastam demais, sem prestar contas à sociedade. Afinal, governança é
fundamental.
As redes de televisão aberta e a cabo, o rádio, a mídia impressa e digi-
tal e as redes sociais são veículos de informação que podem fazer a diferença
na promoção do desenvolvimento sustentável como um direito e um dever
fundamental na América Latina, inserido na atual era das mudanças climáti-
cas. A liberdade de expressão eticamente comprometida com a sustentabi-
lidade e com matrizes energéticas livres de carbono é essencial para que as
nações alcancem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável inseridos na
Agenda 2030 da ONU e, em especial, as metas da COP21, eleitas em Paris no
último ano, que pretendem limitar o aumento das temperaturas em no má-
ximo 2ºC e preferencialmente 1,5ºC até o ano de 2100, tendo como marco
inicial a era pré-industrial. Metas essenciais para garantir uma vida qualita-
tivamente digna para toda a humanidade em um futuro próximo. É hora de
pensarmos não apenas nas gerações atuais, mas nas gerações futuras, com
liberdade de expressão, vivendo em um meio ambiente equilibrado.
Muito obrigado a todos pela atenção!

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146 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8
Ruy Cirne Lima: o jurista e o professor emérito
Paulo Alberto Pasqualini
Advogado, Professor aposentado de Direito Administrativo da Faculdade de Direito
da Ufrgs

Retorno à velha Faculdade de Direito, nas comemorações do seu cen-


tenário, para falar-vos daquele que foi o maior de todos nós: Ruy Cirne Lima,
insigne professor de Direito Administrativo desta escola. Venho com minhas
recordações, longínquas no tempo, que é irreversível e jamais retorna sobre
os seus passos, as quais permanecem, entretanto, vivas na memória. Recor-
dações das aulas magistrais, das aulas dadas de improviso em resposta a per-
guntas momentâneas, formuladas pelos alunos, das prolongadas conversa-
ções na antiga sala dos professores desta escola, que manteve viva com sua
presença constante, da passagem pela direção da Faculdade, da firmeza com
que sempre defendeu seus ideais, da luta pela preservação desta Faculdade,
da extrema lealdade para com os amigos e da benevolência para com os ini-
migos. A lembrança que conservo indelével em meu espírito evoca sempre,
em mim, a ideia de amizade, tão rara em nossos dias, mas tão indispensável
ao nosso desenvolvimento interior e à sobrevivência da criatura humana,
que é o dom mais precioso a que o homem poderia aspirar.
Como dizia Cícero, graças à amizade, os ausentes estão próximos de
nós, os fracos se tornam fortes e, o que é sua maior realização, os mortos
vivem; vivem na piedade, na saudade e nas lembranças de seus amigos. A re-
cordação de Ruy Cirne Lima me acompanha por todos os dias de minha vida,
nas horas boas e nos momentos difíceis, sobretudo quando me defronto com
este imenso deserto de homens e de ideias que é o Brasil dos nossos dias.
Lembro-me de sua visão ampla do direito, da enunciação correta dos conceitos
do direito público, do seu amor à pátria, da sua defesa intransigente dos valo-
res da nacionalidade e da sua enorme bondade intelectual para com os insi-
pientes. O tempo passou celeremente, e com o seu decurso constatamos obra
de destruição da maioria dos valores que para nossa geração desfrutavam de
certeza apodíctica. O saber foi substituído pela improvisação, a verdade, pela
incerteza, o espírito público e o civismo, pelo cinismo e pela falsidade, e os
valores da nacionalidade se perderam ou estão desgarrados diante dessa onda
de modernidade ignara, que se apossou de tudo e de todos.
Mas a lembrança imarcescível daqueles que já se foram continua a nos
indicar o caminho seguro da retidão e dos verdadeiros valores que fazem do

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 147


homem um ser que tende à solidariedade e à superação de suas deficiências,
pois, como dizia Maurice Blondel, eles são solidários na sua deficiência e
parecem ligar-se uns aos outros para se elevarem ao alto (L’Être et les êtres,
p. 147, ed. 1935, Paris).
Essa visão do apelo à transcendência, Ruy Cirne Lima a conservou por
toda a sua existência, inclusive nos momentos iniciais de uma longa agonia,
que se prolongaria por anos a fio, até que seu espírito tivesse abandonado
definitivamente seu corpo, que ainda permanecia vivo. Esse é um dos pa-
radoxos desta vida, como muito bem sentiu Marco Aurélio, nas suas Medi-
tações, quando nos advertia de que, mesmo que o homem viva uma longa
vida, nada nos garante que o pensamento e a lucidez nos acompanharão até
o final dos nossos dias.
Em página memorável, escrita no seu Sistema de Direito Administra-
tivo brasileiro, Ruy Cirne Lima nos legou, na essência, a ideia que dominou
toda a sua existência, a ideia do apelo irresistível do Absoluto, presença
constante e inarredável na vida humana. Dizia ele:
Só Deus é absoluto. Mas, de outra parte, em tudo que é relativo,
ressoa o apelo do Absoluto, o arrebatador apelo da perfeição essen-
cial. Ao toque desse estímulo transcendente, o universo se transfigura:
das profundezas da matéria aos altiplanos do espírito, todas as finitu-
des da Criação, todas as deficiências dos seres relativos parece que se
articulam e se entreamparam, num gigantesco esforço solidário, para
se aproximarem, os seres relativos, do Ser Absoluto, a Criação finita,
do Criador infinito. Quando compreendemos que a matéria é o que é
vitalizável; a vida, o que é espiritualizável; o espírito, o que, nalguma
medida e por obra da graça, é deificável, compreendemos, também,
ao mesmo tempo, todo o mistério e toda a grandeza desse esforço
ascensional, em resposta ao apelo da perfeição. O apelo vem-nos do
alto, o irresistível apelo da causa final. Porque a finitude é um limite, e
não um convite a ultrapassar todos os limites; a relatividade, uma defi-
ciência, e não um transbordamento, de inesgotável superabundância.
Só o apelo do Absoluto, só o chamamento do Infinito poderia arreba-
tar o universo todo, nesse maravilhoso surto, da matéria para a vida,
da vida para o espírito, do espírito para Deus.
Na vasta estrutura da Criação, que tende, com todas as suas forças,
a elevar-se a Deus, em nenhum ponto, contudo, a tensão desse esfor-
ço, para o alto, é mais forte e contínua do que nas relações, que ligam
os seres entre si, unindo-se como sustentáculos, uns dos outros, nessa
incessante progressão solidária.
O direito é uma dessas relações: e, por isso, vibra constantemente
ao influxo dessa tensão, que revela, ao mesmo tempo, a existência de

148 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Deus, distinta das criaturas, e o élan universal, com que, em resposta
ao apelo divino, toda a Criação se lança, por sobre o vácuo desse du-
alismo, ao encontro de Deus. O direito é uma relação num universo
relativo: uma relação de justiça. (Sistema de Direito Administrativo
brasileiro, ed. 1953, p. 215-6)
Transcrevo propositalmente essas palavras de imensa beleza literária
para demostrar, em uma síntese perfeita, sua concepção filosófica e jurídica
fundamental, que domina todo seu imenso trabalho como pensador e juris-
consulto: visão dualista do universo, em que Deus está no centro, com seu
apelo fundamental a todas as criaturas; criação divina; solidariedade entre as
criaturas; apelo essencial da transcendência; direito como relação de justiça
em um universo relativo; justiça que eleva o direito até o conspecto de Deus.
Impossibilidade de considerar o direito de outra forma. Ou ele representa uma
relação de justiça em um universo relativo, que aspira à transcendência, ou
deixará de ser direito, tornando-se instrumento da força, dos eventuais de-
tentores do poder ou de minorias espertas, que o utilizam como forma de
opressão dos semelhantes. Ou o direito é uma relação de justiça, ou perderá
seu élan fundamental, tornando-se instrumento da força e de desumanidade.
Segundo Cirne Lima, Deus é o arquétipo absoluto da justiça. Com justa razão,
enxerga na norma jurídica de direito objetivo mandamento de razão e de von-
tade, que se dirige à razão e à vontade do homem. O ser humano não vive,
entretanto, só nesse universo. Acompanham-no todas as formas de vida e os
seus semelhantes. Por essa razão, todas as ações e reações humanas ligam-se
ao fim último do homem. Há uma ligação moral do ser humano com o universo
inteiro, que dele exige comportamentos solidários, atitudes de desprendimen-
to e ação informada permanentemente por um imperativo categórico.
Poderá parecer paradoxal, mas Ruy Cirne Lima, que professava pen-
samento tomista, profundamente atraído pelas reflexões transcendentais de
Maurice Blondel, tinha especial admiração por Kant, sobretudo pela Crítica
da Razão Prática, em que o filósofo das três Críticas estabelece como postu-
lados fundamentais da razão prática, primeiro, a existência de Deus; segun-
do, a imortalidade da alma; terceiro, a liberdade do homem.
Retornando sobre os passos até agora seguidos, posso, em um retros-
pecto do que passou, visualizar a extraordinária coerência entre o pensa-
mento e a ação de Ruy Cirne Lima. Talvez o destino me tenha colocado em
uma posição singular para contemplar a perfeita sintonia entre sua conduta
de homem e de jurisconsulto e as ideias que professava.
Fui seu aluno no ano de 1959, 5º ano letivo de acordo com o antigo
currículo da Faculdade de Direito. Já o conhecia há tempo, devido a estreitas

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 149


relações familiares. Tinha sido colega de meu tio, Alberto Pasqualini, nesta
Faculdade, pertencendo ambos, juntamente com Vicente Marques Santiago,
Elói José da Rocha, Elpídio Ferreira Paes, Eli Costa e Mem de Sá, à turma de
bacharéis de 1928, que colou grau em 20 de abril de 1929. Menciono apenas
esses, porque todos foram professores desta Faculdade. Recordo-me, ainda
hoje, da esplêndida aula que proferiu em 20 de abril de 1959, data em que
completava 30 anos de formatura. Inicia indagando sobre o que era verda-
deiramente o direito. Mero conjunto de palavras, algumas vazias, outras de
expressão apenas formal? Relembra as palavras de Paul Valéry, o grande po-
eta francês, e a sua desilusão do direito, embora fizesse apologia da Justiça:
Je te soutiens, admirable justice
De la lumière aux armes sans pitié!
(Le Cimitière Marin)
Faz um excurso sobre as diferentes concepções, que procuram um
fundamento último para a ordem jurídica. Enquanto as palavras fluíam, nós,
estudantes que recém chegávamos ao último ano do curso, com as naturais
limitações doutrinárias que nos caracterizavam, contemplávamos, em um
silêncio quase reverente, as disquisições filosóficas daquele nosso profes-
sor que despertava em todos, a um tempo só, admiração, respeito e temor
pela distância que o separava de nós, pela imensa erudição jurídico-filosófi-
ca. Mais para o fim daquela brilhante exposição sobre o sentido último do
direito, nosso professor relembra a figura de José de Arimateia, o justo juiz,
que se negou, juntamente com Nicodemos, a condenar Cristo no Sinédrio, a
quem São Lucas denomina de “homem bom e justo” (Lucas, 23, 50-51), por
não ter concordado com a condenação de Jesus e por ter pedido o corpo
para o Governador Pôncio Pilatos, comprando o campo de um oleiro para lhe
dar sepultura. Depois desses fatos, narra-nos a lenda, segundo a qual José
de Arimateia teria partido de Jerusalém, de posse do cálice da última ceia,
percorrera toda a África do Norte até o estreito de Gibraltar, ali atravessara o
mar Mediterrâneo, passara do continente europeu em direção à Britannia e
terminara a sua peregrinação em um lugarejo ao sul da Inglaterra, hoje cha-
mado de Glastonbury, onde teria fincado seu cajado, que se transformou no
Holy Thorn, o espinheiro santo, que até hoje existe junto às ruínas da abadia
de Glastonbury.
Ao final da aula, dava-nos a mensagem fundamental de que o direito
só tem sentido se for um instrumento para realizar a justiça e de que todo
homem deve ter essa vocação, revelada por José de Arimateia, de perseguir,
sem desfalecimento e sem vacilações, a justiça. O direito nada seria se não

150 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


houvesse o homem bom e justo a que S. Lucas faz referência em seu evan-
gelho.
Ao terminar a preleção, justifica o porquê daquela belíssima disqui-
sição histórico-filosófica sobre o direito e a justiça, afirmando que, naquele
dia, completava 30 anos de colação de grau, em que prometera solenemente
patrocinar a justiça e jamais faltar à causa da humanidade (humanitatis cau-
sae nunquam defuturus). Por que naquele dia? Explicava que a formatura
tinha sido adiada porque o orador da turma, Alberto Pasqualini, estava aca-
mado em dezembro de 1928, e só pôde estar restabelecido em abril de 1929.
Fez menção a que, naquela ocasião, como agora – estávamos em 1959 –, o
seu querido colega padecia do mesmo sofrimento que o acabaria levando
deste mundo em 1960.
Lembrei-me, então, da edição dos Princípios de Direito Administrati-
vo brasileiro, de 1954, que tinha em meu poder e que pertencia a Alberto
Pasqualini, na qual tinha aposto dedicatória afetuosa, acompanhada de uma
carta, que, entre outras coisas, dizia o seguinte:
Caro Pasqualini.
Recebi tua carta, em que te congratulas com os pequenos êxitos
deste professor de província, teu colega.
Justo orgulho temos nós, teus colegas de turma, de ti, pela fideli-
dade que tens demostrado ao ideal de uma sociedade mais justa e hu-
mana e pela serenidade com que tens enfrentado as incompreensões
inevitáveis e as lutas estrênuas em favor desse ideal.
A carta era de fins de outubro de 1954, mês em que Alberto Pasqualini
acabara de perder, pela segunda vez, a eleição para o governo do Rio Grande
do Sul. Somente a generosidade e a extrema sensibilidade moral de Ruy Cirne
Lima é que poderiam, de forma sintética e lapidar, expressar a solidariedade e
a compreensão de que o amigo e colega tanto necessitava naquele momento,
em que sofria mais uma derrota eleitoral. Era a manifestação do homem bom
e justo, a que se referia São Lucas, ao falar de José de Arimateia.
Essa conduta do homem bom e justo foi a expressão invariável da atu-
ação de Ruy Cirne Lima neste mundo. Bastaria relembrar sua veneração pelo
Professor Walter Jellinek, tão bem expressa em nota ao § 5º dos Princípios
de Direito Administrativo brasileiro, ed. 1954, nota 6, em que afirma: “(6)
Walter Jellinek, professor em Heidelberg, herdou de Georg Jellinek, com o
sangue e o nome, o gênio da jurisprudência. Mestre insigne, de suas lições
largamente aproveitamos”.
Subjaz a esse curto elogio todo um relacionamento, que perdurou por
anos, entre o Prof. Ruy Cirne Lima e o Prof. Walter Jellinek. Jellinek foi per-
Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 151
seguido terrivelmente pelo nazismo. Nos últimos tempos da guerra, foi redu-
zido à condição de fiscal de quarteirão, já que lhe haviam proibido lecionar
na Faculdade de Direito de Heidelberg. Durante a fase mais dura da guerra,
o professor Ruy Cirne Lima lhe fez chegar, por intermédio da Cruz Vermelha
internacional, toda a sorte de ajuda material. Ao findar o conflito, Walter
Jellinek lhe escreveu agradecendo a generosidade do auxílio, dizendo que
sem ele não poderia ter sobrevivido à guerra. Pouquíssimas pessoas sabem
desse fato, mas é chegada a hora de proclamá-lo, para demostrar que o sen-
timento de solidariedade e de justiça, que o Prof. Ruy Cirne Lima professava,
não se resumia ao simples enunciado de palavras, mas se traduzia em uma
constante ação em prol de amigos que necessitavam de seus préstimos e em
uma generosidade permanente, que se endereçava a todos os seres huma-
nos.
Em um mundo em que os bons caracteres estão progressivamente de-
saparecendo, Ruy Cirne Lima desponta como homem de caráter exemplar.
Sua disposição permanente de alma para praticar o bem, para defender as
causas justas e combater o bom combate, nos recorda a afirmação perene,
feita por Kant, segundo a qual nada possivelmente pode ser concebido, no
mundo ou fora dele, tão bom quanto um bom caráter. Bom caráter supõe le-
aldade para com seus amigos, discípulos e colegas de profissão e magistério.
Bom caráter significa firmeza na defesa de um ideal. Bom caráter significa
ação inabalável em defesa das instituições e das tradições mais caras da pá-
tria. Bom caráter representa abertura permanente de alma para a humani-
dade.
Esta Faculdade de Direito muito deve ao bom caráter do Professor Ruy
Cirne Lima. Tive a oportunidade de acompanhar a luta estrênua que travou
com a burocracia acadêmica para preservar a Faculdade, seu currículo, seu
prédio, suas tradições, seu passado e seu futuro. Não foi tarefa fácil digladiar-
se, em meio às intrigas que medravam como erva daninha em um governo
de exceção, com adversários impenitentes, intrigantes e mal-intencionados.
Providências eram tomadas que só tinham em seu favor a vesânia e a mais
absoluta falta de bom senso. Como dizia René Descartes, o bom senso é a
coisa mais bem dividida que há no mundo, pois cada qual pensa estar dele
tão bem provido que mesmo aqueles mais difíceis de contentar em qual-
quer coisa não têm por hábito desejar mais bom senso do que já possuem.
O bom senso tentou fazer e chegou a produzir estragos consideráveis nesta
Universidade, sob o pretexto de operar a reforma do ensino. Nosso país, des-
graçadamente, se alimenta, permanentemente, de reformas. Dir-se-ia que
somos filoneístas por vocação perpétua. Sempre se está reformando alguma

152 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


coisa, ou operando a reforma da reforma. A reforma da universidade, contra
a qual tanto lutou o Professor Cirne Lima, no que concerne à Faculdade de
Direito, trouxe absurdos que até hoje produzem resultados duvidosos. Como
sempre, a tendência reformista dominante granjeou adeptos em quantida-
de, principalmente entre os que cortejam o poder e não sabem ter uma pos-
tura vertical em sua vida. Contra esses homens e contra essas falsas ideias o
Prof. Cirne Lima lutou bravamente. Não pôde vencer uma onda avassaladora
que se formou, mas conseguiu, pelo menos, refrear certos ímpetos refor-
mistas, que visavam à destruição completa dos cursos jurídicos. Esse é, na
verdade, o destino dos grandes jurisconsultos, desde a Roma antiga, de se
defrontarem com os donos momentâneos do poder, de lutar pela justiça,
de propugnar pela compreensão racional do direito e de terminar, não raro,
oferecendo sua saúde e sua vida em defesa de suas convicções. A história
revela o exemplo inolvidável de amor ao direito e às causas justas de Aemi-
lius Papinianus. Buckland refere que foi Praefectus Praetorio de Septimius
Severus. Foi Praefectus, ainda, na cidade de York, a antiga Eburacum dos
romanos, ao tempo em que o futuro Princeps comandava a Britannia e se
caracterizava por sua aversão mais completa a todas as formas de falsidade,
de astúcias e de sutilezas capciosas dentro do direito. Terminou morto por
ordem de Caracalla, filho de Septimius Severus, por se negar a justificar a
morte do irmão do mesmo Caracalla, de nome Geta, fiel à memória do pai
de ambos, que lhe recomendara especialmente, antes de morrer, a proteção
dos dois irmãos. Foi um dos grandes jurisconsultos romanos, assim como
Ulpiano, que também morreu nas mãos dos pretorianos, e como o maior
de todos, Salvio Juliano, que teve a fortuna de viver durante os reinados de
Adriano, Antonino Pio e de Marco Aurélio.
O destino dos jurisconsultos de absoluta integridade moral nem sem-
pre é lisonjeiro. Não raro, a fidelidade às convicções, o amor à justiça e o
confronto inevitável com os eventuais e passageiros detentores do poder, ou
de algum poder, lhes acarreta o ostracismo e muitas vezes, no curso da his-
tória, o último sacrifício, que é a entrega da própria vida. Se as formas mais
violentas de reação à independência, ao destemor e à defesa do ideal da jus-
tiça foram progressivamente sendo eliminadas pela evolução da civilização,
isso não significa que a repulsa aos juristas independentes e fiéis aos seus
princípios morais seja menor em nossos dias. As formas de condenação, de
remoção e de oblívio são mais sutis, mas não menos eficientes do que as de
outrora. Se é verdade que sempre haverá um jurisconsulto áulico para justi-
ficar os abusos do poder, também é verdade que um número incontável será
perseguido e abandonado à margem do caminho trilhado pela prepotência,

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 153


pela ignorância e pela sede insaciável de poder e de riqueza, que caracteriza
o tempo em que vivemos.
Não foi apenas na administração da vida acadêmica que Ruy Cirne
Lima se defrontou com o irracionalismo que se desenvolveu na segunda me-
tade deste século e que atinge seu zênite na atualidade em que vivemos.
Suas lutas como membro do Conselho Universitário e como diretor desta
Faculdade constituem, sem dúvida alguma, página gloriosa de um jurista que
soube ser fiel às suas convicções e não se submeter, como tantos outros,
às imposições de governos autoritários, manobrados por intrigantes áulicos,
dominados pela subserviência. Coube-lhe, também, a tarefa difícil de reali-
zar passagem breve pela vida pública, primeiro como secretário da Fazenda
do Estado do Rio Grande do Sul, com brilhante gestão das finanças estadu-
ais, depois como candidato das oposições ao Governo do Estado, no ano de
1966. Sua candidatura, vitoriosa que seria segundo as regras legais estipula-
das para a efetivação do pleito eleitoral, foi ceifada pela arbitrariedade de
um presidente da República, que aparentara convicções democráticas para
promover a derrubada de um presidente eleito, mas que revelou sua verda-
deira face ao assumir o poder, cedendo sempre às injunções das figuras ex-
tremadas do movimento revolucionário para ficar com o poder e rejeitar as
ideias que professara. Pela ação violenta desse presidente, que cassou man-
datos, suspendeu direitos políticos e removeu todos os obstáculos que se
antepunham aos seus desígnios mesquinhos, Ruy Cirne Lima deixou de ser
governador do estado. Mas ficou em boa companhia no conspecto da histó-
ria, pois está na galeria dos rejeitados, onde convive com algumas das maio-
res inteligências que o Rio Grande do Sul produziu neste século: Joaquim
Francisco de Assis Brasil, João Neves da Fontoura, Maurício Cardoso, Alberto
Pasqualini e Oswaldo Aranha. Certamente a companhia é bem superior à de
alguns dos que foram eleitos, não raro por manobras ardilosas, em conúbio
com interesses duvidosos, ora provenientes das imposições castrenses, ora
decorrentes de inspirações piores, emanadas de interesses econômicos su-
balternos. Melhor ficar com suas convicções do que, no governo, atuar como
empregado de grupos econômicos ou como figura servil, que não tem olhos
para o interesse público, mas só para os interesses duvidosos, às vezes incon-
fessáveis, de facções espúrias.
O Prof. Ruy Cirne Lima representa o exemplo inequívoco de como o
Rio Grande, neste século, virou as costas às suas melhores inteligências e
recorreu à insciência, à subserviência e à falsidade para reger seus destinos.
João Neves da Fontoura, aluno laureado desta escola, nas suas Memórias,
vol. 2º, registra essa peculiaridade infeliz não só do Rio Grande, mas do Bra-

154 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


sil, e manifesta otimismo com o futuro. Assim se expressa: “O Brasil terá de
sair desta era obscura. Todos os povos a atravessaram, e poucos como o
nosso dispõem de tantas e de tão maravilhosas possibilidades”. Não compar-
tilho do otimismo de João Neves, embora lhe reconheça méritos extraordi-
nários como estadista, jurista e escritor. O que se tem visto é a deterioração
constante e progressiva dos valores da cultura e do espírito, em proveito do
oportunismo, do cinismo e de uma falta de cultura e de honradez que a to-
dos deixa perplexos. Talvez João Neves tenha razão, mas sua razão não será
vista em nossos dias, tampouco nos dias de nossos filhos. Trata-se, aparen-
temente, de visão milenar, que transcenderá em muito a vida das próximas
gerações.
O Prof. Ruy Cirne Lima, por sua vida e suas obras, nos faz recordar
o pensamento desenvolvido por Henri Bergson naquela que talvez seja a
principal de suas obras: Les deux sources de la morale et de la religion. À
visão restritiva de uma sociedade baseada no instinto, a sociedade fecha-
da, Bergson opõe a de uma sociedade aberta, em que desponta o amor à
humanidade e a solidariedade fundamental que deverá unir todo o gênero
humano. Embora não fosse religioso, reconhecia que é somente por inter-
médio de Deus, e em Deus, que a religião convida o homem a amar o gênero
humano. Da mesma forma, é somente por intermédio da razão, na razão
pela qual nos comunicamos com todos, que os filósofos nos fazem contem-
plar a humanidade para nos demonstrar a eminente dignidade da pessoa
humana e o direito de todos ao mais profundo respeito. Para a realização
dessa sociedade aberta são necessários os homens excepcionais, nos quais a
moral da solidariedade e do imperativo categórico se encarna. A inteligência
deverá estar subordinada a preceitos altruístas e ao amor da humanidade
para que se realize a obra de abertura da sociedade. Um ser inteligente, à
procura daquilo que representa exclusivamente o seu interesse pessoal, ter-
minará fazendo, sempre, o oposto do que reclamaria o interesse geral. Se o
ideal da humanidade, para sobreviver, é o de uma sociedade aberta, não no
sentido dessa globalização mesquinha que abastarda nossos dias, mas no
sentido de uma sociedade que envolva em um gesto de fraternidade toda
a humanidade, é indispensável a atitude da alma aberta, que é o oposto da
alma fechada nos seus interesses e restrita no seu horizonte. A alma aberta
abraça no seu élan toda a humanidade e fundamenta sua ação no amor. Di-
zia Bergson, com profunda acuidade, que “La charité subsisterait chez celui
qui la possède, lors même qu’il n’y aurait plus d’autre vivant sur la terre” (ob.
cit., ed. 1961, p. 34). Mesmo que sobrevivesse um só homem nesta terra, em
uma alma aberta, proveniente de uma sociedade aberta, a caridade e o amor

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 155


deveriam subsistir, por imperativo divino ou de razão, para que a reconstru-
ção do mundo fosse viável.
Essa visão do mundo dominou o pensamento e a ação de Ruy Cirne
Lima. Alma de escol, aberta à humanidade, inspirado sempre na caridade
que tanto acalentava em seu íntimo, trouxe essa concepção, em parte reli-
giosa, em parte filosófica, para seus estudos jurídicos, que se caracterizam
por uma visão abrangente do mundo, por erudição invulgar em nossa vida
acadêmica, por uma unidade de pensamento, que vai dos fundamentos até
as consequências últimas do direito. Por isso, vale o esforço de reviver os di-
ferentes temas, por ele repensados, com a modéstia dos verdadeiros sábios
e com a compreensão de que, na verdade, pouco poderemos acrescentar
aos conhecimentos já acumulados no decorrer das gerações. O que podemos
é reelaborar o que já foi pensado, pois, como dizia Goethe, embora todo o
inteligente já tenha sido pensado, deve-se procurar pensá-lo ainda uma vez
(Máximas e reflexões, n. 441).
O pensamento jurídico-filosófico de Ruy Cirne Lima forma um todo,
que vai de largas incursões no campo da filosofia do direito e da epistemolo-
gia jurídica e no das províncias do direito objetivo, vizinhas ao Direito Admi-
nistrativo, até o âmago dessa disciplina. Mas sua investigação tinha caráter
nitidamente heterodoxo, pois se apoiava, em larga medida, no Direito Roma-
no, de forma preferencial. No prefácio do Sistema de Direito Administrativo
brasileiro, Cirne Lima confessa que essa orientação foi
imposta pela necessidade de libertar-nos do preconceito, segundo o
qual, no limiar do direito público, cessam, como por ablação, as cate-
gorias jurídicas, comuns a todas as partições e subdivisões do direito
positivo. [...] Aceita, porém, a noção oposta, nenhum terreno de ex-
perimentação e contraste poderia ser-nos mais adequado do que o
Direito Romano, ao qual a imprecisão dos lindes, entre as divisões do
direito positivo, confere uma unilateralidade orgânica, alhures difícil
de se nos deparar.
Ouve-se, nas palavras de Ruy Cirne Lima, a reprodução das afirmações
dos romanistas, que viam no direito sobretudo a expressão do direito priva-
do, em que se sobressaía o Jus Civile. W.W. Buckland, ao referir-se à divisão
do direito privado, adotada por Justiniano, cita as Institutas, em que é dito
que “Omne ius quo utimur vel ad personas pertinet vel ad res vel ad actio-
nes” (Inst. 1,2,12). O mesmo se pode afirmar das palavras de Herbert Felix
Jolowicz ao referir-se ao “jus civile” como sendo a única lei dos romanos (His-
torical introduction to the study of Roman Law, ed. 1978, p. 102). Dois gran-
des romanistas – Buckland, no livro intitulado A text book of Roman Law

156 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


from Augustus to Justinian, ed. 1966, p. 56, e H.F. Jolowicz – confirmam a
tese defendida por Ruy Cirne Lima. Em oposição a sua tese, situa-se o pensa-
mento de Fritz Schulz, nos Principles of Roman Law, em que sustenta que o
princípio da “Isolation” funcionou, no Direito Romano, para estabelecer uma
separação nítida entre o direito público e o direito privado (ob. cit., p. 27) (D.
1.1.I. 2 – “Publicum ius est quod ad statum Rei Romanae spectat, privatum
quod ad singulorum utilitatem”). O direito público, segundo Schulz, era o
direito que regulava as relações legais do “Populus Romanus”; sempre que o
Estado romano fosse o sujeito de uma relação de direito, ela era retirada da
esfera do direito privado e submetida ao direito público. Embora Fritz Schulz
reconheça a pobreza da literatura sobre o direito público em Roma, não lhe
nega autonomia e estabelece rígida separação e isolamento entre o público
e o privado. Mas reconhece que a tendência romana de esvaziar o direito
de conteúdos políticos, econômicos, sociais, éticos e religiosos dominou o
direito por milênios, vindo, na Alemanha do século passado, a alcançar gran-
de triunfo com a obra do Dr. Paul Laband, intitulada Staatsrecht – O direito
público do Império Alemão –, em que o método do isolamento, praticado
pelos romanos, foi largamente utilizado.
Feita essa breve digressão, retorno à linha axial da exposição, para de-
monstrar o caráter lógico e sistemático do pensamento do nosso homenage-
ado, que parte do conceito de Estado para fundamentar toda a estrutura de
sua obra. Vai buscar nos gregos a ideia básica, que é a de que o Estado repre-
senta uma exigência lógica do ordenamento jurídico. Não é o Estado quem
cria o direito, mas o direito que chama o Estado à existência. Em Aristóteles
encontra a afirmação de que o ordenamento jurídico dispõe-se segundo o
desenvolvimento lógico do conceito de justiça, comutativa quanto às rela-
ções dos indivíduos entre si, distributiva quanto às relações da coletividade
para com os indivíduos e legal quanto às relações dos indivíduos para com a
coletividade. O Estado, chamado à existência pelo direito, é essencial ao con-
ceito de Justiça, porque somente o Estado, como pessoa, consegue elevar
o indivíduo à condição de pessoa, com a dignidade que o conceito encerra.
Concedido que o Estado seja uma exigência lógica do ordenamento jurídico,
o que seria o Estado? Um “ens rationis”? Não, responde Cirne Lima. O Estado
é uma entidade real: é uma relação que, com ser jurídica, domina e governa
propósitos e atividades não jurídicas dos indivíduos. Ao procurar a definição
do Estado, Ruy Cirne Lima vai encontrar na filosofia estoica, particularmente
em Cícero, a definição perfeita e acabada, reconhecida pelos tempos afora
por todos os filósofos e jurisconsultos: “Coetus multitudinis juris consensu
(...) sociatus” (Multidão de homens [...] estabelecida debaixo do império

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 157


da lei). Essa definição é a mesma nos tempos seguintes, de Santo Tomás
a Immanuel Kant, e representa ponto pacífico na história das ideias sobre
o Estado. Neste século, Francesco Ferrara, por quem o professor Ruy Cir-
ne Lima nutria especial admiração, manifestou juízo idêntico, visualizando,
porém, a questão em sentido inverso, ao afirmar: “Certo la forza d’impero
dello stato riposa in ultima analisi sull’acquiescenza del popolo soggetto”
(Trattato di Diritto Civile Italiano, Roma, ed. 1921, p. 7). Ninguém nega que
o Estado seja uma reunião de homens, estabelecida debaixo do império da
lei. Houve quem negasse a existência do Estado, quem tivesse previsto o seu
desaparecimento, como Friedrich Engels, no seu livro Anti-Dühring, mas a
diferença específica do império da lei não é contestada, uma vez admitida a
sua existência, distinta do direito, pois há aqueles que, como Kelsen, identi-
ficam o direito com o Estado.
O segundo tema de sua reflexão é o da divisão do direito em público e
privado. Nessa questão, aparece a primeira contribuição original de Ruy Cir-
ne Lima, que, baseado nas disquisições romanas, propõe nova definição para
o direito público, assim expressada: “Normação jurídica específica, cujo con-
teúdo há de dizer respeito, simultaneamente, e de modo imediato, à essên-
cia do direito e à essência do Estado”. O direito público é constituído pelas
normas reputadas por estruturais da ordem jurídica, que, ao mesmo tempo,
se referem à essência do Estado. De outra parte, as normas que constituem
expressão da essência do direito são orgânicas do Estado e se relacionam
com sua essência. Cirne Lima, com essa nova definição do direito público,
prolonga o seu ensinamento sobre a íntima relação entre o direito e o Esta-
do, para demonstrar que tudo quanto disser respeito, de modo imediato, à
essência do direito e à essência do Estado é público, e as normas respectivas
constituem direito público.
O terceiro tema não constitui concepção original, mas representa o apro-
veitamento atual de uma velha ideia, de autoria do glosador Rogério, cujos tra-
balhos foram descobertos no Museu de Londres por um jurista alemão, Herman
Kantorowicz, em que Rogério postulava que o costume não revoga a lei escrita,
pois antes a coloca no exílio. As palavras são inequívocas: “(...) sed ipsam legem
potius in desuetudinem et quasi in exilium mittit (...)”. A consequência é a de
que, desaparecido o costume, a lei escrita volta a ser aplicada em plenitude. Ao
predomínio material do costume não se ligaria também um predomínio formal.
Formalmente, o costume jamais poderia revogar a lei escrita, embora, material-
mente, pudesse prevalecer sobre ela no seu conteúdo.
O quarto tema relevante de sua disquisição é constituído pela relação
de administração, que é uma construção original e genuína do grande mes-

158 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


tre do Direito Administrativo. A ideia de uma relação jurídica que se cons-
titui ao influxo de uma finalidade cogente, embora o direito já conhecesse
relações desse tipo, estruturadas “more objectivo”, é original na medida em
que o Prof. Cirne Lima a colocou como centro de sua concepção do Direi-
to Administrativo. Toda a elaboração doutrinária do Direito Administrativo
está estruturada tendo como fundamento a relação de administração. Nos
Princípios de Direito Administrativo, afirma peremptoriamente que a “base
última da construção sistemática de nossa disciplina não é a noção de direito
subjetivo, senão a de relação de administração” (§ 6º, p. 55). A inspiração
finalística remonta, manifestamente, a Aristóteles.
A partir dessa observação fundamental, surgem outras contribuições
originais, que o tempo não apagou e que constituem, para os estudiosos do
Direito Administrativo, pontos de referência obrigatórios no exame da his-
tória dos conceitos dessa disciplina jurídica, na sua parte geral. A separação
dos Princípios de Direito Administrativo em duas partes, uma geral e outra
especial, encontra sua inspiração fundamental em Otto Mayer, no livro que
escreveu em francês sobre o Direito Administrativo alemão: Le Droit Admi-
nistratif allemand.
Na Parte Geral, a primeira ideia que brota do exame dos elementos que
constituem a relação jurídica administrativa é a da pessoa jurídica como rela-
ção de direito. Original é a conceituação de pessoa jurídica formulada por Ruy
Cirne Lima: “É uma relação de direito, estabelecida entre duas ou mais pessoas,
para a unificação e, não raro, para a perpetuação em unidade, quanto a bens
comuns e atos determinados, das virtualidades jurídicas ínsitas na capacidade
de agir de cada uma” (ob. cit., § 8º, n. 4, p. 63). Original também é a denomi-
nação das pessoas administrativas e sua conceituação como pessoas jurídicas
de direito público, prepostas, de modo imediato, à atividade de administração
pública. As três formas estruturais da personalidade jurídica, compreendendo
as corporações, as fundações e os estabelecimentos públicos, Cirne Lima as
buscou no Direito Administrativo alemão, em que desde Otto Mayer a E. Fors-
thoff e Hans Julius Wolff é noção pacífica e indiscutível.
Já na etimologia da palavra “persona”, que provém do verbo latino
“personare”, que significa ressoar, e, primitivamente, a máscara com que os
atores cobriam o rosto, cuja boca era disposta para aumentar a voz, a fim de
poder ser distintamente ouvida em todos os pontos dos vastos anfiteatros,
aparece a investigação sugestiva e original. Da máscara, a palavra “persona”
passa a significar o caráter representado pelo ator, depois o papel que cada
um de nós representa na grande cena do mundo; finalmente, vem a repre-
sentar a significação técnica que lhe emprestam os jurisconsultos.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 159


Mas a máscara, que se chamava de “persona”, significava primitiva-
mente a plenitude e a perfeição do homem, medidas segundo a sua seme-
lhança com Deus. A dupla asserção, segundo Cirne Lima, que aí se formula,
da individualidade humana e da sua essencial afinidade com o Criador, tra-
duz-se, entre os povos primitivos, pela máscara sagrada, tão viva e expressi-
vamente como, hoje, pela noção de pessoa.
Tal é o sentido profundo do símbolo que informa, pela definição no-
minal, a noção de pessoa. Pessoa é a plenitude, a perfeição do homem, com-
parado a Deus. Mas as ideias de plenitude e de perfeição são aplicadas não
apenas ao homem, mas referidas à própria sociedade, mais do que ao indiví-
duo. A noção de pessoa começa a denotar, em seu conteúdo, o predomínio
das posições sociais do homem sobre a simples postulação de sua indivi-
dualidade. Cícero afirmava que: “tres personas unus sustineo summa animi
aequitate, meam, adversarii, judicis” (De Oratore, Lib. II, cap. XXIV).
A noção de pessoa, segundo Cirne Lima, estende-se, através do indiví-
duo, para além do indivíduo; ao lado da “singularis persona”, surge a entida-
de transindividual a que chamamos de pessoa jurídica.
Pessoa, segundo Cirne Lima, é um modo de ser em face dos outros.
A personalidade não esgota o ser, antes é uma das manifestações do ser.
Por isso, Cirne Lima vai buscar nos teólogos, que investigavam a questão da
Santíssima Trindade, o fundamento para explicar a noção de pessoa e, mais
particularmente, a de pessoa jurídica. Na teologia cristã, Deus é, ao mesmo
tempo, uno e trino, porque as três pessoas, que são manifestações do seu
ser, não lhe esgotam o ser divino. Daí o conceito teológico, segundo o qual
“Personae divinae relationibus constituuntur”. As pessoas divinas são cons-
tituídas por relações. Ainda no sentido teológico, a relação é a disposição de
dois termos, segundo uma ordem determinada. Há uma relação entre o Pai
e o Filho e o Pai e o Espírito Santo. O Filho e o Espírito Santo, respectivamen-
te, nasce e procede de Deus. A teoria da personalidade jurídica, na visão de
Cirne Lima e na de Pietro Bonfante, tem sua origem nos sutis e engenhosos
teólogos que investigaram a Santíssima Trindade. Assim, à semelhança das
Pessoas divinas, que não esgotam o ser de Deus, a entidade transindividual,
dentro do direito, é definida como relação. A pessoa jurídica é uma relação
de direito, estabelecida entre duas ou mais pessoas, para a unificação e, não
raro, para a perpetuação em unidade, quanto a bens comuns e atos determi-
nados, das virtualidades jurídicas, ínsitas na capacidade de agir de cada uma.
Transpondo a noção de pessoa jurídica para o Estado moderno, Cirne
Lima observa, com notável pertinência, que ele “continua a tradição romana
da pluralização da autoridade, pelas personificações. Ao lado do Estado pro-

160 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


priamente dito, ressurgiu o Fisco; e se a personalidade jurídica do populus ro-
manus desapareceu, a personalidade jurídica da Nação tomou-lhe o lugar”.
Todas essas inúmeras pessoas administrativas que compõem o Estado entre
nós, desde a União Federal, passando pelos estados-membros, por milhares
de municípios e de autarquias, constituem manifestações da personalidade
jurídica, da entidade transindividual de direito público, tanto as de natureza
política e existência necessária quanto as de natureza meramente adminis-
trativa e existência contingente.
A pessoa jurídica é uma relação, uma relação de direito. Como relação,
novamente se socorrendo dos ensinamentos de um grande teólogo – Duns
Scot –, nosso homenageado nos diz que já aquele notável filósofo e teólogo
nos dizia que “Non videtur inconveniens procedere in infinitum in relationi-
bus; dictum est (...) quod relatio fundatur super relationem sicut proportiona-
litas super proportionem”.
Como relação, a pessoa jurídica se presta à multiplicidade, de que o Di-
reito Administrativo nos dá testemunho, ora criando, ora extinguindo pesso-
as administrativas. O certo é que, se algumas são extintas, novas são criadas,
adaptadas às exigências e às necessidades dos novos tempos.
Um fato é incontestável, no dizer de Cirne Lima: “Nunca uma só per-
sonalidade bastou à comunidade política, nem à mais unitariamente organi-
zada. Valha como exemplo o Estado romano (...)”. Estado romano que tinha
nos “Municipia”, nos “vici” e nas “societates publicanorum”, reguladas pelo
direito público, segundo Fritz Schulz, pessoas jurídicas equivalentes às inu-
meráveis pessoas que compõem o nosso controvertido e complicado Estado
brasileiro da atualidade.
Sua contribuição ao estudo do direito subjetivo é, também, original
e relevante. Nesse, como em outros temas, sua concepção filosófica, que o
liga ao tomismo, está presente. O direito é uma relação de justiça, em um
universo relativo. Em Deus, porém, a justiça é uma pessoa. Ele é a Justiça. O
direito, enquanto referido ao Absoluto, é sempre subjetivo, essencialmente
subjetivo, pois é uma pessoa. No próprio direito objetivo está a marca dessa
subjetividade essencial. A lei, que lhe é a expressão genérica, traz, na própria
etimologia da palavra, o sinal indelével da subjetividade essencial do direi-
to. “Lex” provém do sânscrito “lag”, que significa “pôr”. A lei é a ordenação
posta por alguém. Também o qualificativo “positivo”, pelo qual se precisa a
natureza da lei, traduz a mesma ideia: “positivum” vem de “positum”, posto.
O direito é sempre posto por alguém; supõe um sujeito capaz dessa ação.
E o sujeito, por excelência, de todo o direito é Deus. A lei é manifesta-
ção de razão e vontade, divinas no caso do Absoluto.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 161


Mandamento de razão e vontade, no ensinamento de Santo Tomás,
a norma de direito objetivo tem a razão e a vontade do homem como des-
tinatários. Mas a ordenação de justiça, contida na norma, supõe, além do
homem, os fatos e as coisas do mundo exterior. Somente o homem poderá
exercer uma ação ordenadora sobre os fatos e as coisas do mundo que o
cerca. Daí, Cirne Lima formula sua definição de direito subjetivo: “O poder,
reconhecido ao homem, de exercer uma ação ordenadora, segundo a jus-
tiça, dos elementos objetivos do mundo exterior”. O direito objetivo, para
Cirne Lima, é a ordem, posta por Deus, para a ordenação, segundo a justiça,
dos homens entre si. O direito objetivo seria uma ponte entre o homem e
Deus. O direito subjetivo, a ponte entre o universo e o homem. Por isso sus-
tenta que, “Sem uma concepção teísta e dualista do universo, a realidade
do direito subjetivo seria um contrassenso”. No campo do direito positivo,
reconhece que
Foi, fora de dúvida, Georg Jellinek o autor que mais aprofundou a
noção de direito subjetivo. E a Georg Jellinek deve-se a concepção do
direito subjetivo, na qual este se estrutura como uma interpretação
da vontade e do interesse, a primeira, elemento formal, o último, ele-
mento material de subjetivação jurídica.
Que é, entretanto, esse interesse que, na concepção de Georg
Jellinek, constitui a matéria do direito subjetivo? Ihering sinalou o
dado fundamental da questão: “em latim, ‘inter esse’, ‘interest mea’,
quer dizer: uma parte de mim está contida numa cousa estranha; tra-
ta-se, aí, quanto a mim, de uma parte de mim mesmo”. Esse interesse,
que é a matéria mesma do direito subjetivo, não mais é, pois, senão
a expressão psicológica da dependência moral das cousas e dos fatos,
em face do homem. Na medida em que estes dependem moralmente
do homem, tende o homem a tê-los por partes de si próprio, amplia-
ções de sua personalidade. Nessa acepção, Savigny definiu o patrimô-
nio como uma extensão da personalidade.
À sua vez, a vontade tem, na concepção de Georg Jellinek, aquela
mesma função essencial, que já lhe reconhecemos, de ordenadora,
segundo a ordem da justiça, das cousas e dos fatos do mundo exterior.
Somente, escreveu ele, como conteúdo possível da vontade torna-se
um objeto do mundo exterior, ou uma relação do homem a homem,
parte integrante do mundo humano dos bens e dos interesses.
Conclui Cirne Lima:
Nada obsta, portanto, a que, em estruturas jurídicas, como a erigi-
da por Georg Jellinek, se infunda o conteúdo novo que a investigação

162 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


filosófico-teológica impõe se lhes atribua. Essa mudança de conteúdo
será, na doutrina do direito subjetivo, certamente uma renovação;
porque antigas as aquisições teológicas a lhe serem infundidas, uma
renovação fora do tempo – uma renovação pelo eterno.
Novamente, na disquisição sobre o direito subjetivo, aparece a preo-
cupação permanente de Cirne Lima, de ligar a relação de justiça ao Absoluto
e a sua aspiração profunda à eviternidade, sempre presente em todo o seu
pensamento. Dizia ele, a esse propósito: “Em todas as manifestações do es-
pírito humano, desde as mais corriqueiras às mais singulares, nota constante
é a aspiração à eviternidade ou, reversamente, a tendência à libertação do
tempo”. “Grau intermédio entre o tempo e a eternidade, o eviterno marca o
lugar do espírito na hierarquia da Criação”.
Contribuição não menos notável de Cirne Lima ao direito é seu bem
elaborado estudo sobre O tempo e a ordem jurídica.
Dizia Cirne Lima que, “Diante do tempo, a nota que sinala a superiori-
dade do espírito sobre a vida e a matéria é a da eviternidade”.
À sucessividade que corresponde ao movimento, à dispersão dos
instantes que se multiplicam irretornavelmente, como ondas rolando
para a praia, o espírito opõe a imutabilidade e a concentração; aquela,
o avesso do movimento; esta, o avesso da dispersão. Certo, a eviter-
nidade não é a eternidade, “interminabilis vitae tota simul et perfecta
possessio”, segundo a bela definição de Boetius. Mas não é também
meramente o tempo, do qual a tradição aristotélica nos fixou o concei-
to clássico: “numerus motus secundum prius et posterius”.
À ideia de eternidade repugnam as noções de começo e de fim; à
ideia de tempo, uma e outra são naturais.
A eviternidade, que se situa entre a eternidade e o tempo, não
depende, como este, das noções de começo e fim; mas, diversamen-
te da eternidade, não é incompatível nem com uma, nem com outra
dessas duas noções. Grau intermédio entre o tempo e a eternidade, o
eviterno marca o lugar do espírito na hierarquia da Criação. A matéria
e o fenômeno biológico pertencem ao tempo; somente o espírito é
eviterno.
Considerando a pessoa humana dentro do tempo, Cirne Lima, em pá-
gina memorável, demostra que
A superioridade da pessoa sobre o tempo (...) penetra e invade
toda a ordem jurídica. Nos recantos mais remotos da vida jurídica,
podemos descobrir manifestações, aliás despercebidas, dessa supe-
rioridade que é, afinal, a marca do triunfo do espírito contra o tempo.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 163


Afirma que, “Entre as conotações conceituais do tempo, a mais signi-
ficativa é, fora de dúvida, a da irreversibilidade. O tempo não retorna sobre
si mesmo”.
Cita Lamartine, quando, no Le Lac, afirma:
Ce temps qui les donna, ce temps qui les efface,
Ne nous les rendra plus!

Éternité, néant, passé, sombres abîmes,


Que faites-vous des jours que vous engloutissez?
Mas, diante da voracidade do tempo e de seu decurso inexorável, Cir-
ne Lima relembra que o direito lhe opõe inumeráveis reações. E menciona as
mais notórias: primeiro, a prescrição extintiva e aquisitiva; segundo, a nulida-
de dos atos jurídicos; terceiro, a condição suspensiva. A prescrição, do ponto
de vista do prescribente, enquanto não se consuma, supõe uma reversão do
tempo por obra do direito, que se realizará ao arbítrio do credor ou do pro-
prietário do imóvel, quer se trate da prescrição extintiva, quer da aquisitiva.
Na nulidade dos atos jurídicos, há reversão do tempo, também por obra do
direito. Diz o art. 158 do Código Civil que, “Anulado o ato, restituir-se-ão as
partes ao estado em que, antes dele, se achavam (...)”. O tempo retorna
sobre si mesmo, nesse caso, para delir no passado o ato jurídico, atacado de
nulidade, ou simplesmente anulável. Igualmente, expressivo é o efeito da
chamada retroatividade da condição suspensiva, que nada mais é do que o
reconhecimento, pela ordem jurídica, da eficácia da vontade que se determi-
nou a si própria, fora e acima do tempo.
Cirne Lima assim conclui o seu estudo sobre O tempo e a ordem jurídica:
Na luta do espírito contra o tempo, o direito é, pois, um teatro de
vitórias. Não admira, porém. Somente a eviternidade, que nos assegu-
ra a superação do tempo, leva-nos a aspirar a contemplação da eter-
nidade. O direito, entretanto, de si próprio, leva-nos a aspirar a essa
contemplação beatífica: a jurisprudência, na definição de Ulpiano, é
o conhecimento das cousas divinas e humanas, “divinarum atque hu-
manarum rerum notitia”. Porque o direito não indica ao homem outro
caminho, senão aquele que só o espírito pode e sabe trilhar.
Outra concepção notável é a dos bens públicos, cujo “sinal distintivo
(...) é o fato de participarem da atividade administrativa da União, dos esta-
dos, dos municípios, ou das entidades autárquicas” (ob. cit., § 9º, n. 3, p. 75).
Nesse particular, ouve-se o eco das palavras do administrativista alemão Dr.
Paul Schoen, que foi o primeiro a se opor à teoria do grande Otto Mayer, que

164 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


defendia a noção de propriedade pública, hodiernamente não mais conside-
rada como correta para a definição dos bens públicos. Além da influência do
Dr. Paul Schoen, há a de Fritz Fleiner, que via na afetação dos bens a uma
finalidade pública o traço distintivo desses bens.
A elaboração do conceito de ato administrativo, também, é da mais
alta relevância para todo o estudo da nossa disciplina. Ruy Cirne Lima ade-
re, nesse particular, mais à posição do Dr. Walter Jellinek, que admitia a
existência de dois tipos de ato administrativo, o ato administrativo unilateral
(Einseitiger Verwaltungsakt) e o bilateral (Zweiseitiger Verwaltungsakt), em
oposição à concepção de Otto Mayer, que via no ato administrativo exclusi-
vamente “um ato de autoridade, emanando da administração, ato que de-
termina, diante do sujeito, aquilo que, para ele, deve ser de direito no caso
individual”, muito embora Mayer admitisse a existência de um ato adminis-
trativo que, para produzir seus efeitos, deveria ter a submissão do particular
declarada, que denominava de “Verwaltungsakt auf Unterwerfung” (ato
administrativo por submissão), e Ernst Forsthoff considerasse que somente
poderia ser denominado ato administrativo “uma medida autoritária unilate-
ral”, não se compreendendo, no âmbito dos atos administrativos, o contrato
de direito público (öffentlich-rechtlicher Vertrag). Mas E. Forsthoff também
admitia a existência de um ato administrativo com a colaboração do des-
tinatário (Mitwirkungsbedürftiger Verwaltungsakt). Ruy Cirne Lima adota,
porém, posição mais abrangente do que a dos administrativistas alemães e
sustenta serem atos administrativos não apenas os atos unilaterais, tampou-
co somente os atos administrativos por submissão, ou, progredindo mais, os
atos administrativos bilaterais, que exigem a manifestação de vontade do
destinatário, mas inclusive o contrato administrativo.
Todos os atos jurídicos praticados, segundo o Direito Administrativo,
pelas pessoas administrativas são atos administrativos. A definição é abran-
gente e envolve, simultaneamente, os típicos atos administrativos unilate-
rais e os contratos de direito público, que Cirne Lima considerava como ver-
dadeiros atos administrativos. A posição doutrinária é polêmica e até hoje
se admite uma ou outra solução, muito embora a lei tenha caminhado na
direção da opinião de Cirne Lima, ao estipular que todo procedimento lici-
tatório, abrangendo inclusive os contratos decorrentes, é ato administrativo
formal (art. 4º, parágrafo único, Lei nº 8.666/93).
Ainda na Parte Geral, a contribuição mais significativa de Cirne Lima, a
par da relação de administração, consiste na sua bem elaborada disquisição
doutrinária sobre o serviço público, colocado na parte geral porque consisti-
ria, a seu ver, uma categoria jurídica, indecisa em seus caracteres, que envol-

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 165


veria, simultaneamente, os sinais distintivos da individualidade pessoa e da
individualidade coisa. Sabe-se que o direito distingue perfeitamente pessoa
de coisa. Pessoa jamais poderá ser considerada coisa, e coisa não poderá
ser pessoa. Mas, no serviço público, as duas categorias se misturam e se
confundem, para formar um tipo novo, criação peculiar do Direito Adminis-
trativo. Trata-se, sem dúvida, de uma das grandes contribuições de Cirne
Lima ao Direito Administrativo pátrio, ainda não suficientemente estudada e
desenvolvida. Original também é a definição de serviço público como “todo
serviço existencial, relativamente à sociedade, ou, pelo menos, assim havi-
do em um momento dado, que, por isso mesmo, tem de ser prestado aos
componentes daquela, direta ou indiretamente, pelo Estado ou outra pessoa
administrativa” (Princípios de Direito Administrativo, ed. 1987, § 10, n. 3,
p. 82). O conceito de serviço público o vincula à noção de utilidade pública,
largamente desenvolvida por Cirne Lima como fundamento último de todo
o Direito Administrativo. Afirma ele que esse conceito não tem conteúdo
jurídico, cabendo a outras ciências, como a Política, a Sociologia e a da Admi-
nistração, a determinação do largo e variável conteúdo desse princípio fun-
damental do Direito Administrativo. Por trás dessa relatividade, própria das
mutações constantes da vida, paira a noção tomista do bem comum. “Que
é a utilidade pública?” Responde: “Tal como a concebemos, é a expressão
orgânica do bem comum, a definição deste, quanto aos meios e processos,
capazes de realizá-lo”. “O bem comum é mais do que a simples multiplica-
ção aritmética, pelo número de indivíduos na coletividade, do bem de cada
qual”. “Bonum commune civium – adverte Santo Tomás – et bonum singulare
unius personae non differunt solum secundum multum et parvum, sed secun-
dum formalem differentiam”. Nenhuma dúvida, pois, poderia haver quanto à
inspiração nitidamente tomista do conceito que Cirne Lima formula de utili-
dade pública, que se moldaria sobre a noção de utilidade social, que, por sua
vez, estaria intimamente vinculada ao conceito de bem comum. Cirne Lima
conclui dizendo que “A utilidade pública representa o conjunto dessas con-
dições, indispensáveis ao bem comum” (Sistema de Direito Administrativo
brasileiro, ed. 1953, p. 43-45).
Mas, retornando à exposição sobre o serviço público, nela aparece a
posição patriótica e nacionalista de Cirne Lima sobre o tema, que certamente
não teria mudado, ao influxo das toleimas propaladas pelo liberalismo eco-
nômico, que pode seduzir os fracos de vontade e parcos de conhecimento,
mas jamais os que possuem visão profunda e verdadeira da realidade. Afirma
Cirne Lima que a primeira garantia que deveria cercar o serviço público seria
a do patriotismo dos agentes, que estava inscrita na Constituição Federal de

166 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


1937. Da lei ordinária sobre as concessões de serviço público, dizia, deveria
se esperar disposição análoga.
Na Parte Especial dos seus Princípios de Direito Administrativo, Cirne
Lima oferece contribuição notável ao direito público brasileiro, no capítu-
lo referente à competência. Trata-se de exposição original, pois os demais
autores não tratam do tema, à exceção do notável Pontes de Miranda, que
discorreu sobre tudo em nosso direito. Mas eu ousaria dizer que Cirne Lima,
nessa passagem, supera o próprio Pontes de Miranda e oferece contribui-
ção definitiva ao pensamento jurídico nacional. O capítulo da Competência
está no § 16 dos Princípios e deveria constituir leitura obrigatória, sobretudo
para os políticos mal informados, destituídos de conhecimentos elementa-
res, que, ao serem eleitos para um cargo do Poder Executivo, passam a se
considerar como donos do poder, com direito de cometer toda a sorte de
desatinos. A exposição de Cirne Lima sobre a Competência, uma vez lida por
quem assume esses cargos, talvez servisse para mitigar a ignorância do eleito
e a petulância e presunção, que são as consectárias naturais daquela. Cirne
Lima, ao discorrer sobre a competência, atinge os páramos mais elevados do
pensamento e realiza obra perene, que o tempo jamais apagará.
Ainda na Parte Especial, duas contribuições de Cirne Lima merecem
referência. A primeira, consistente no desenvolvimento do conceito de ser-
vidão administrativa, que havia sido criado por Otto Mayer. Cirne Lima o
adapta com maestria ao nosso direito, não tendo sido superado, nesse par-
ticular, por ninguém. A segunda é a noção de sanção administrativa, que Cir-
ne Lima, em visão original, compara com a sanção do direito canônico, cujo
sinal distintivo está sinalado, naquele direito, nas “Leges mere poenales”, em
que a quantia da pena cumula a reparação com a punição propriamente dita
(Princípios de Direito Administrativo, §§ 23 e 26).
Na obra do Prof. Ruy Cirne Lima observa-se a influência marcante
da ciência jurídica alemã e dos seus jurisconsultos, em que sobressaem, no
campo do Direito Administrativo e no direito público, em primeiro lugar, a
figura notabilíssima de Otto Mayer, bem como as de Walter Jellinek, Paulo
Schoen, Paul Laband, Ernst Rudolf Huber, Hans Julius Wolff e Ernst Forstho-
ff, embora Cirne Lima fizesse restrições ao último por seu comportamento
moral e político durante o nazismo.
Nesta exposição, procurei demonstrar a originalidade do pensamento
de Ruy Cirne Lima, que dele fez o jurista mais notável nascido no Rio Grande
do Sul neste século. Talvez os próximos tempos possam oferecer novos valo-
res, que venham a preencher o enorme vazio que sua morte deixou. O certo
é que, como disse meu pai,

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 167


Alguns mortos levaram consigo um pouco de nós. Deixaram atrás
de si um deserto que nem o progresso, nem a multiplicação da vida
conseguem povoar. Na série dos acontecimentos cósmicos, a morte
é um mistério como a própria vida. Entre o nada e o ser existe uma
extensão que ninguém conhece, talvez um pequeno véu que o homem
ronda há séculos, sem que consiga transpor. Seja como for, há deste
lado do véu uma realidade sensível: o espaço vazio que alguns deixam
é bem maior que o de outros.
Ruy Cirne Lima está nesse caso, que Arlindo Pasqualini descreveu
com tanto sentimento e profundidade. O espaço que ele deixou até hoje não
foi preenchido por ninguém e dificilmente será.
Ruy Cirne Lima herdou dos romanos duas ideias que foram funda-
mentais em sua vida de jurisconsulto e de professor de direito. A primei-
ra, de “humanitas”, que foi criação original dos romanos, desconhecida dos
gregos, que não possuíam palavra para expressá-la com precisão. A palavra
romana significava a dignidade e a grandeza da personalidade do homem,
aquilo que o distingue de todos os demais seres vivos. Esse peculiar valor da
personalidade humana obriga o homem a cultivar sua personalidade, edu-
car-se, e também respeitar e apoiar a personalidade de seus semelhantes.
Todos os que reconhecem e cumprem esse dever são humanos. O conceito
de “humanitas” compreendia a educação moral e intelectual, assim como
a gentileza, a bondade e a simpatia, o autocontrole e a consideração pelos
semelhantes. A segunda, a de “fides”, que era definida nos tempos antigos
como fidelidade à palavra empenhada, certeza e firmeza de propósitos. Cí-
cero nos falava da “fides”, afirmando “Fit quod dicitur” – faz aquilo que diz,
mantém a palavra empenhada. Segundo ele, a fidelidade era a coisa mais
sagrada na vida (“fidem sanctissimam in vita”). O professor Ruy Cirne Lima
soube honrar, durante toda sua existência, esses dois conceitos romanos, de
forma exemplar. Sua vida constitui exemplo de humanidade e de fidelidade
aos seus ideais. Sua benevolência, sua bondade intelectual, sua fidelidade às
promessas, a si mesmo e aos outros estão sempre presentes na visão que
tenho de sua figura de jurisconsulto, de professor e de amigo de todas as
horas. Sua consciência lhe dizia que é preciso ser daqueles que não decep-
cionam jamais. E a fidelidade não é uma virtude fácil. Somente os homens
de exceção conseguem permanecer pela vida afora fiéis às suas convicções.
Ruy Cirne Lima foi atingido em 5 de março de 1975 por uma enfermi-
dade que o levaria definitivamente desta vida no ano de 1984. Seu sofrimen-
to, sua dor, ao pressentir que o pensamento e a reflexão progressivamente
o abandonavam, não podem ser avaliados. Quem melhor descreveu o seu

168 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


longo padecimento foi nosso poeta maior: Mário Quintana. Em soneto que
Guilhermino César me afirmou pessoalmente ser o melhor de tantos escri-
tos pelo grande poeta, ele descreveu, em termos de profunda sensibilidade,
o que deve ter sido a lenta e progressiva agonia de nosso homenageado:
ESTE QUARTO...
Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto...

que me importa este quarto, em que desperto


como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,


tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte deveria ser assim:


um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...
Os últimos nove anos do que restou da vida do Prof. Ruy Cirne Lima fo-
ram passados em um quarto de enfermo, em que, pouco a pouco, viu a razão
e o espírito o abandonarem, permanecendo, tão somente, um olhar fixo no
infinito, até que, em um determinado dia, chegou a noite e tudo terminou...

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 169


170 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8
A judicialização da saúde no século XXI
Clenio Jair Schulze
Juiz Federal

Resumo
O artigo tem por objeto temas que serão apontados futuramente na
judicialização da saúde. Destacam-se a influência da inteligência artificial e
seus impactos; o fenômeno dos médicos sem marcas, que se declaram ex-
pressamente desvinculados de qualquer interesse, especialmente da indús-
tria farmacêutica; e o autocuidado, que se apresenta como outro ponto de
importância que também deverá ser objeto de reflexão no porvir do direito
à saúde e da sua judicialização.
Palavras-chave: Direito à saúde. Judicialização da saúde. Futuro.

Sumário: Introdução. 1 O futuro da judicialização da saúde. 2 A judicia-


lização da saúde e a inteligência artificial. 3 Médicos sem marca. 4 Autocuida-
do na saúde. Considerações finais. Referências bibliográficas.
Introdução
Um dos grandes desafios é saber como serão os conflitos judiciais do
futuro. Ou seja, a descrição das características dos temas levados à avaliação
do Poder Judiciário.
No âmbito da judicialização da saúde, tal perspectiva já pode ser pre-
vista, mesmo que inexista certeza sobre tal confirmação.
É essa a proposta do presente artigo.
Assim, no primeiro item é abordado o futuro da judicialização da saú-
de. No segundo momento, avalia-se a influência da inteligência artificial na
judicialização da saúde.
Posteriormente, avalia-se o fenômeno dos médicos sem marcas, que
se declaram expressamente desvinculados de qualquer interesse, especial-
mente da indústria farmacêutica.
Por fim, aponta-se outro ponto de importância, o autocuidado, que
também deverá ser objeto de reflexão no porvir do direito à saúde e da sua
judicialização.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 171


1 O futuro da judicialização da saúde
Como será a judicialização da saúde nos próximos cinco, dez ou quinze
anos?
Trata-se de reflexão que precisa ser enfrentada, especialmente na
perspectiva preventiva, daquilo que pode ser feito para evitar o excesso de
judicialização da saúde.
Nesse sentido, é necessário reconhecer que a Medicina, a Farmácia e a in-
dústria de tecnologias em saúde serão muito diferentes dos tempos hodiernos.
Klaus Schwab aponta que a impressão 3D vai impactar sensivelmente
na saúde humana:
Um dia, as impressoras 3D não irão criar somente coisas, mas tam-
bém órgãos humanos – um processo chamado bioimpressão. De for-
ma bastante semelhante à impressão de objetos, um órgão é impresso
camada por camada a partir de um modelo digital em 3D. O material
usado para imprimir um órgão será, obviamente, diferente daquele
utilizado para uma bicicleta; os experimentos são feitos para fazer os-
sos. A impressão 3D tem um grande potencial para servir às necessi-
dades personalizadas dos projetos; e não há nada mais personalizado
que um corpo humano.1
Conforme noticiado na Popular Science, não é novidade o uso de im-
plante de coluna impressa em 3D:
[Em 2014], os médicos do Terceiro Hospital da Universidade de
Pequim conseguiram implantar a primeira seção de uma vértebra
impressa em 3D em um paciente jovem para substituir uma vértebra
cancerosa de seu pescoço. A vértebra substituída foi modelada a partir
da vértebra existente no menino, facilitando sua integração.2
São várias as vantagens dessa evolução tecnológica (impressão 3D),
tais como3: (1) reduzir a escassez de órgãos humanos; (2) permitir a impres-
são de próteses; (3) personalização da Medicina, com a impressão de partes
específicas do corpo; (4) impressão de equipamentos e instrumentos difíceis
de encontrar.

1
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Traduzido por Daniel Moreira Miranda. São
Paulo: Edipro, 2016. Tradução de: The fourth industrial revolution. p. 151.
2
GRUSH, Loren. Boy given a 3-D printed spine implant. Popular Science, 26 ago. 2014.
Disponível em: <www.popsci.com/article/science/boy-given-3-dprinted-spine-implant>.
3
Os exemplos foram extraídos de SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Traduzido
por Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016. Tradução de: The fourth industrial
revolution. p. 151-152.

172 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


De outro lado, também existirão aparentes desvantagens, por exem-
plo4: (1) produção não controlada de partes do corpo humano, de alimen-
tos ou de equipamentos médicos; (2) desvalorização do corpo humano, já
que tudo poderá ser recriado; (3) danos ambientais, decorrentes do excesso
de impressão 3D; (4) eventual ausência de regulamentação de atividades;
(5) definição dos limites éticos; (6) definição dos limites de responsabilidade
sobre a qualidade do equipamento impresso.
Como se observa, tais questões serão enfrentadas pelas ciências da
saúde. E também pelo sistema jurídico, diante das inúmeras consequências
para a vida humana.
Dessa forma, a diversidade decorrente do avanço tecnológico exigirá
atenção dos juristas para as consequências jurídicas. Por exemplo, um cida-
dão vai imprimir – na sua residência – um órgão humano a partir de uma im-
pressora 3D. É preciso definir se isso será possível, qual será a consequência
jurídica desse procedimento, qual a responsabilidade do cidadão, qual a do
Estado ou da operadora do plano de saúde, ou seja, qual será o impacto da
aludida conduta no fenômeno da vida e no aspecto jurídico.
Além disso, qual será o custo para a saúde humana das novas tecnolo-
gias em saúde? Quais são os limites éticos?
Todas essas questões são importantes especialmente para saber qual
a posição jurídica e, principalmente, para definir a conduta dos magistrados
na eventual judicialização do tema, de modo a permitir a aplicação de uma
teoria adequada da decisão judicial.
2 A judicialização da saúde e a inteligência artificial
A inteligência artificial trouxe uma revolução no conhecimento e na
forma de obtenção de informações, de modo a gerir e a conduzir a atuação
dos seres humanos.
Big data, Internet das coisas e trabalho de robôs no cruzamento de
dados são poderosos instrumentos que auxiliam no planejamento do futuro
das pessoas e das instituições públicas e privadas.
A IBM, por exemplo, criou um robô – Watson5 – que permite ex-
plorar e mapear milhares de informações disponíveis em todo o mundo.
É o exemplo de instrumento que poderá substituir vários empregos no
futuro.

4
Os exemplos foram extraídos de SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Traduzido
por Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016. Tradução de: The fourth industrial
revolution. p. 152.
5
Disponível em: <http://news-explorer.mybluemix.net/>. Acesso em: 02 jul. 2017.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 173


Há hospitais que já utilizam o trabalho do robô Watson, da IBM, para
definir os melhores tratamentos a seus pacientes, a partir da computação
cognitiva, em que são mapeados dados e confrontados com as melhores evi-
dências científicas.6
Em relação à judicialização da saúde, a era digital permitirá o controle
de várias situações, por exemplo:
1 – identificar o perfil dos juízes que julgam com maior frequência os
pedidos improcedentes ou procedentes;
2 – identificar os advogados que mais judicializam;
3 – identificar as tecnologias em saúde (medicamentos, próteses, etc.)
mais judicializadas;
4 – identificar eventual repetição de procedimentos aparentemente
duvidosos;
5 – controlar as demandas predatórias (desnecessárias).
Os benefícios das ferramentas de inteligência artificial podem ser:
1 – planejamentos do Judiciário na área da judicialização da saúde;
2 – planejamento do SUS e das operadoras de planos de saúde;
3 – controle dos litigantes de má-fé;
4 – identificação dos locais com problemas na qualidade na prestação
dos serviços de saúde;
5 – previsibilidade quanto à posição dos juízes, em razão do mapea-
mento de todas as suas decisões.
Ainda há muito amadorismo e falta de exploração adequada dos ins-
trumentos tecnológicos no Brasil.
Com a evolução do tema, a inteligência artificial certamente propiciará
melhoria e auxílio na concretização do direito à saúde.
3 Médicos sem marca
Além dos aspectos que tratam da inteligência artificial, outro ponto
extremamente importante é a atuação dos médicos. Esses profissionais são
grandes fomentadores da judicialização da saúde.
É que só existe instauração de um processo judicial quando há uma
prescrição indicando tratamento ou tecnologia não incorporada no Sistema
Único de Saúde – SUS ou não contemplada nos contratos ou no rol de proce-
dimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS.

6
Computador vai recomendar melhor tratamento para pacientes com câncer. Estado de São
Paulo, 08 jun. 2017. Disponível em: <http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,computador-
vai-recomendar-melhor-tratamento-para-pacientes-com-cancer,70001830660>. Acesso em:
31 jul. 2017.

174 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Dessa forma, tema que merece importante atenção da sociedade é a
forma como atuam os profissionais da área médica, principalmente no que
toca à influência das suas prescrições com a atuação dos laboratórios farma-
cêuticos.
Por isso, interessante iniciativa foi desenvolvida no Chile por um gru-
po de médicos que declara expressamente não possuir nenhuma influência
externa para exercer a profissão. São os médicos sem marca, que trabalham
responsavelmente a partir das melhores evidências científicas e sem apoio
financeiro, intelectual, acadêmico ou de qualquer outra natureza. São livres
da pressão da indústria farmacêutica e, por isso, atuam com imparcialidade
e sem conflito de interesses.7
O ingresso a esse grupo de médicos é livre e pode ser feito direta-
mente pelo portal da rede mundial de computadores (<http://www.medi-
cossinmarca.cl/>).8
Analisando a relação dos médicos sem marca, há apenas dois com
atuação no Brasil.9 Infelizmente, o movimento é pouco divulgado, razão
pela qual é urgente a importação com maior ênfase da experiência para o
território nacional.
Tal medida contribuiria sensivelmente para o controle ético e respon-
sável dos profissionais e reduziria, certamente, a judicialização da saúde,
quando decorrente de prescrições médicas desmaterializadas de evidência
científica e com forte indicação de influência de algum laboratório farma-
cêutico.
Além disso, a prática das propostas dos médicos sem marca produziria
sensível aumento da qualidade das decisões clínicas e da avaliação de riscos

7
“MÉDICOS SIN MARCA es una agrupación chilena de médicos que busca promover un
ejercicio clínico responsable, basado en evidencia y libre de las influencias de la propaganda y
los incentivos provenientes de la industria farmacéutica y de dispositivos médicos. Buscamos
fomentar un distanciamiento de la profesión médica respecto de las estrategias de promoción
de las compañías productoras de tratamientos, con miras a proteger la imparcialidad e
independencia del juicio clínico de los efectos distorsionadores del marketing y los conflictos
de interés. Te invitamos a conocer nuestra iniciativa y las diversas aristas de este urgente
problema. Revisa nuestra propuesta, y si estás de acuerdo con sus contenidos firma aquí para
sumarte a nuestro listado de adherentes.” Disponível em: <http://www.medicossinmarca.cl/>.
Acesso em: 08 jul. 2017.
8
“Te invitamos a conocer nuestra iniciativa y las diversas aristas de este urgente problema.
Revisa nuestra propuesta, y si estás de acuerdo con sus contenidos firma aquí para sumarte
a nuestro listado de adherentes.” Disponível em: <http://www.medicossinmarca.cl/>. Acesso
em: 08 jul. 2017.
9
Nomes disponíveis em <http://www.medicossinmarca.cl/quienes-somos/>. Acesso em: 08
jul. 2017.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 175


e consequências dos tratamentos prescritos, sem contar a potencial redução
dos custos econômicos.
Ou seja, quanto maiores a transparência e a independência dos médi-
cos, maior será, em tese, a qualidade do trabalho.
Portanto, os médicos sem marca contribuem significativamente para
a melhoria do atendimento às pessoas e fomentam a concretização do direi-
to à saúde.
4 Autocuidado na saúde
Além da inteligência artificial e da conduta ética dos médicos, há tam-
bém um tema pouco abordado, mas que vai merecer atento olhar ao longo
do tempo: o Estado pode exigir que as pessoas pratiquem o autocuidado?
Trata-se de questão muito importante na área da saúde, pois a falta de
um estilo de vida adequado e hábitos não saudáveis relacionados à alimen-
tação e à ausência de atividade física podem exigir gastos desnecessários. A
questão se agrava quando a pessoa não pratica o autocuidado e ainda pos-
tula judicialmente a condenação dos entes públicos ou do plano de saúde ao
fornecimento de tratamento que não está padronizado.
Segundo pesquisa,10 a ausência de autocuidado já trouxe os seguintes
danos à sociedade:
1) Contados os gastos dos sistemas de saúde e os anos perdidos de
trabalho por morte precoce, a inatividade física custou para o mundo
US$ 67,5 bilhões (cerca de R$ 217,5 bi). O número é igual ao PIB da
Costa Rica e maior do que o PIB de 80 dos 142 países estudados.
2) O mundo perdeu 13,4 milhões de anos de trabalho com as mor-
tes prematuras.
3) Quanto mais pobre o país, menor o suporte financeiro governa-
mental e maior a despesa das famílias com o tratamento das doenças
estudadas.
4) A inatividade física é uma pandemia que provoca não apenas mor-
bidade e mortalidade, mas grandes perdas econômicas. Os problemas
gerados por ela são mais graves nos países em desenvolvimento.
No plano jurídico, a Constituição tutela a dignidade da pessoa huma-
na,11 que contempla a autonomia da vontade, razão pela qual as pessoas

10
VARELLA, Dráuzio. A inatividade física custou para o mundo US$ 67,5 bilhões. Folha de São
Paulo, 01 out. 2016, Caderno Ilustrada, C6.
11
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana.”

176 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


possuem liberdade de autodeterminação, para definir os rumos da sua vida,
sem nenhuma intervenção externa. Por isso, é possível fumar vários maços
de cigarro por dia, ficar obeso voluntariamente e não se exercitar física e
mentalmente.
De outro lado, a dignidade da pessoa humana também possui um va-
lor comunitário, de modo que os “contornos da dignidade humana são mol-
dados pelas relações do indivíduo com os outros, assim como com o mundo
ao seu redor”.12
Segundo essa posição, que consagra a heteronomia e reconhece que
as pessoas não vivem isoladas, seria possível estabelecer algum tipo de res-
trição à autonomia da vontade. Para tanto, devem ser preenchidos os se-
guintes requisitos: “a) a existência ou não de um direito fundamental sendo
atingido; b) o dano potencial para os outros e para a própria pessoa; e c) o
grau de consenso social sobre a matéria”.13
Assim, para Barroso, o valor comunitário, “como uma restrição sobre
a autonomia pessoal, busca sua legitimidade na realização de três objetivos:
1. a proteção dos direitos e da dignidade de terceiros; 2. a proteção dos di-
reitos e da dignidade do próprio indivíduo; e 3. a proteção dos valores sociais
compartilhados”.14
Segundo essa perspectiva, não seria abusiva a possibilidade de res-
trição da autonomia da vontade daqueles indivíduos que são pródigos em
maltratar sua saúde. E tal posição seria adotada em prol de toda a comu-
nidade!
Por outras palavras, inexistiria ilicitude na restrição de determinados
benefícios. O Ministro Marco Aurélio, por exemplo, no julgamento conjunto
dos Recursos Extraordinários 566.471 e 657.718, afirmou que o cidadão deve
comprovar a hipossuficiência financeira para obter medicamento ainda não
incorporado no SUS.15 Idêntica posição foi fixada pelo Tribunal de Justiça de

12
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional
contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. p. 87.
13
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional
contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. p. 95-96.
14
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional
contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. p. 88.
15
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pedido de vista adia julgamento sobre acesso a
medicamentos de alto custo por via judicial. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/
cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326275>. Acesso em: 29 jan. 2017.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 177


Santa Catarina – TJSC, no julgamento de incidente de resolução de deman-
das repetitivas.16
Como se observa, o tema é polêmico e merece reflexão da sociedade,
principalmente para avaliar se é papel do Estado tutelar aquele que não ado-
ta o autocuidado.
Este texto, portanto, fomenta o debate sobre o papel do Estado e a
sua relação com os indivíduos.
A restrição da autonomia da vontade e de direitos sociais somente
seria viável, obviamente, se existisse incentivo estatal à prática do autocuida-
do, diante da necessária aplicação dos princípios da proteção de confiança,
da segurança jurídica e da máxima proteção dos direitos fundamentais.
Considerações finais
A discussão da judicialização da saúde não pode ficar limitada apenas
à avaliação dos critérios de decisão e da adoção da Saúde Baseada em Evi-
dências.
É preciso qualificar o âmbito de ação dos atores que operam na ju-
dicialização da saúde para permitir antecipar problemas e, principalmente,
encontrar a solução mais eficiente e menos onerosa aos entes públicos e às
operadoras de planos de saúde.
Nessa perspectiva, este texto demonstrou que vários aspectos influen-
ciarão o futuro da judicialização da saúde.
E cabe aos profissionais do sistema de justiça e do sistema de saúde
atentar para este novo cenário.
Referências bibliográficas
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito
constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à
luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro
de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 30 jul. 2017.
BRASIL. Lei 12.401, de 28 de abril de 2011. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12401.htm>.
Acesso em: 30 jul. 2017.

16
SANTA CATARINA. TJSC. IRDR n. 0302355-11.2014.8.24.0054, rel. Des. Ronei Danielli, Grupo
de Câmaras de Direito Público, julgado em 09.11.2016.

178 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pedido de vista adia julgamento
sobre acesso a medicamentos de alto custo por via judicial.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=326275>. Acesso em: 29 jul. 2017.
GRUSH, Loren. Boy given a 3-D printed spine implant. Popular Science, 26
ago. 2014. Disponível em: <www.popsci.com/article/science/boy-given-
3-dprinted-spine-implant>. Acesso em: 30 jul. 2017.
SANTA CATARINA. TJSC. IRDR n. 0302355-11.2014.8.24.0054, rel. Des. Ronei
Danielli, Grupo de Câmaras de Direito Público, julgado em 09.11.2016.
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Traduzido por Daniel Moreira
Miranda. São Paulo: Edipro, 2016. Tradução de: The fourth industrial
revolution.
VARELLA, Dráuzio. A inatividade física custou para o mundo US$ 67,5 bilhões.
Folha de São Paulo, 01 out. 2016, Caderno Ilustrada, C6.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 179


180 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8
Transferências bancárias, propriedade criminosa e
lavagem de dinheiro
Danilo Knijnik
Mestre (Ufrgs), Doutor (USP), Professor Associado e Diretor da Faculdade de Direi-
to da Ufrgs, Advogado

Sumário: Introdução. 1 A noção de propriedade criminosa. 2 Procedên-


cia e proveniência: mecanismos para identificar e circunscrever uma proprieda-
de criminosa. 3 Fluxos financeiros: da comprovação do vínculo entre o produto
do crime e o depósito do valor em conta corrente. 4 Saldo bancário: métodos
contábeis para isolar a propriedade criminosa; da contaminação à desconta-
minação qualitativa e quantitativa, por diluição e obsolescência. 5 Transações
com propriedades criminosas que não caracterizam lavagem. Conclusões: eta-
pas necessárias à verificação e ao isolamento da propriedade criminosa.
Introdução
Em acusações de lavagem, especialmente quando materializadas em
transferências bancárias entre contas correntes, impõe-se demonstrar que
os valores objeto de transferências constituem “propriedade criminosa” ou,
na dicção da Lei nº 9.613/98, fundos “provenientes, direta ou indiretamente,
de infração penal”.
À primeira vista, pareceria suficiente evidenciar, de um lado, o come-
timento de um crime, em momento cronologicamente anterior à transação
bancária investigada. Essa é, aliás, prática narrativa de certa forma disse-
minada em denúncias por crime de lavagem de dinheiro, que, de um lado,
descrevem o delito antecedente e, de outro, relacionam aquisições de bens
posteriormente ocorridas. Segundo esse modelo narrativo, bastaria à acusa-
ção evidenciar suficientemente o crime antecedente e documentar créditos
e débitos posteriores, alcançando, assim, os elementos nucleares do delito
com suas sub-rogações nos bens em que se transformaram.
Essa representação da fenomenologia da lavagem de dinheiro, contu-
do, somente em aparência responde à complexidade do delito. Com efeito,
a invocação de uma relação cronológica entre um crime antecedente e uma
mutação patrimonial assimila, a rigor, dois conceitos ontologicamente diver-
sos, a saber, precedência (de natureza cronológica) e proveniência (de na-
tureza substancial). Se, no mais das vezes, os fatos criminosos descritos em
relação de precedência atendem também à relação material de proveniên-

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 181


cia – no sentido de que os fundos empregados em uma transação posterior
provêm dos resultados daquela pretérita empreitada delitiva –, cuida-se de
um achado circunstancial, que necessariamente não tem de ocorrer. De fato,
o que se impõe é a demonstração da proveniência ilícita dos fundos mobili-
zados em certas transações; e pode muito bem ocorrer que o crime preceda
a uma dada transação, sem que os fundos empregados dele provenham. A
simplicidade dessa configuração habitual, então, transforma-se em perigosa
simplificação, capaz de redundar em equívocos.
Simplificação tanto maior quando as transações em análise redundem
de lançamentos modificativos de um saldo bancário, não sendo poucos os
autores que atentam para esse fenômeno, chamando a atenção para a ne-
cessária comprovação da proveniência em oposição à precedência.1
Posta a matéria então sob o pálio da proveniência – que, para além
da precedência, contém elementos de maior sofisticação –, o processo
dogmático exibe sua real complexidade. Daí deriva, por exemplo, a neces-
sidade de examinar o grau de conexão entre o crime antecedente e a tran-
sação subsequente2 tendo por objeto o fruto do primeiro. Surge, também,
a necessidade de identificar “bens, direitos e valores relacionados, direta
ou indiretamente, à prática dos crimes previstos nesta lei”3 sujeitos a per-

1
BARTON, Stephan. Das Tatobjekt der Geldwäsche: Wann rührt ein Gegenstand aus einer
der im Katalog des § 261 Nr. 1-3 StGB bezeichneten Straftaten her?; CORDERO, Blanco. El delito
de blanqueo de capitales. 4. ed. Thomson Reuters Aranzadi, 2015. p. 340. Na jurisprudência
americana, esp. US v. Mankarious, 151 F. 3d. 694, 705 (7th Cir. 1998) e US v. Blackman, 904 F.
2d 1250 (8th Circ. 1990), que serão examinados no curso deste trabalho.
2
US v. Edgmon, 952 F. 2d 1206 (10th Cir. 1991) examinou a temporalidade entre o crime
antecedente e a lavagem, entendendo que, havendo simultaneidade entre ambos, a lavagem
não ocorreria, exatamente por faltar o elemento anterioridade. Segundo o acórdão, “o
Parlamento mirou com o crime de lavagem de dinheiro uma conduta que se segue no tempo ao
crime subjacente, não a criação de uma forma alternativa de punição do crime antecedente”.
Essa é uma perspectiva importante quando se tem de examinar casos em que a consumação
do delito acaba se confundindo com uma operação financeira.
3
Art. 7º, inc. I, da Lei nº 9.613/98. A questão longe está da facilidade: o prêmio de loteria
recebido pelo traficante que adquirira o bilhete com produto da venda de cocaína pode ser
objeto do delito de lavagem? E os lucros distribuídos por uma sociedade, cuja participação
social tenha sido adquirida com dinheiro obtido da corrupção? E o que dizer do saldo bancário
utilizado por um corruptor para vencer uma licitação? Os exemplos poderiam ser multiplicados.
Barton, em seu seminal artigo, Das Tatobjekt der Geldwäsche (...), p. 163, procura resolver
essas questões a partir da teoria da adequação, por oposição à teoria do equivalente dos
antecedentes. Diz ele: “um traficante compra um bilhete de loteria e ganha $ 100.000. Aqui,
não se poderá dizer que esse ganho resulta de uma violação do BtMG (...). Nem o dinheiro vem
das drogas, nem o acaso – fator ‘sorte’ – delas decorre. O ganho de loteria, portanto, não é
proveniente de um dos crimes do catálogo legal”.

182 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


dimento; ergue-se, por fim, como tema capital, o arco compreendido entre
um processo que se inicia com a contaminação e se conclui com a descon-
taminação (qualitativa ou quantitativa), desgarrando os patrimônios de sua
mácula originária.4 Para todas essas imperiosas necessidades que o sistema
financeiro e o ciclo econômico acabam por impor, o critério de precedência
(cronológica) mostra-se flagrantemente insuficiente, e a simplificação con-
fortavelmente instalada na teoria e na prática da lavagem vê-se forçada a
dar passagem a um instrumental mais apurado, baseado na ideia de pro-
veniência (substancial), com enfoque à chamada propriedade criminosa.5
1 A noção de propriedade criminosa
Historicamente, a noção de uma propriedade ou bem criminoso re-
monta a julgamentos ocorridos entre os séculos XVII e XVIII perante cortes
de common law.
Com efeito, a ficção de um “bem sujo” ou de uma “propriedade cul-
pada” foi construída a partir do direito marítimo nos casos de pirataria, des-
tacando-se, a propósito, Harmony v. USA e Palmira v. USA,6 ambos sobre o
confisco de navios e respectiva carga envolvidos em atos de pirataria.
De acordo com a lei então vigente, lícito seria promover o sequestro

4
V. item 4, infra, sobre processos de descontaminação.
5
A perspectiva deste trabalho é, declaradamente, de direito comparado, na linha
metodológica assentada por CRUZ, Rogério Schietti. A proibição de dupla persecução penal.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 226.
6
O navio Palmyra ou Panchita navegava sob comissão do rei da Espanha, sendo capturado
pelo navio americano Grampus em 15 de agosto de 1822, após ter praticado atos de pirataria,
sendo levado para o porto de Charleston, na Carolina do Norte. Em primeiro grau, o navio foi
liberado e restituído à Espanha, subindo a causa à Suprema Corte em 1825, que manteve o
decisum, acrescentando, porém, que “encontra-se solidificado na common law que, em casos
de crimes, a parte é confiscada em seus bens e imóveis para a coroa. O confisco, estritamente
falando, não se prende na coisa, mas é uma parte ou uma consequência do julgamento
condenatório. (...) Mas essa doutrina nunca foi aplicada a confiscos criados pela lei, in rem
(...). A coisa é considerada primariamente como a ofensora, ou melhor, a ofensa se prende
primariamente à coisa; e isto [ocorre] seja o ilícito um malum prohibitum ou malum in se. O
mesmo princípio se aplica a procedimentos im rem ou em apreensões do direito marítimo.
Muitos casos existem nos quais o confisco por atos cometidos se pretende apenas na coisa,
e não existe qualquer penalidade in personam. Muitos casos existem nos quais há tanto
o confisco da coisa quanto uma penalidade pessoal. Mas em nenhuma classe de casos foi
alguma vez decidido que os processos dependeriam uns dos outros. A prática tem sido, e
assim esta corte entende que é o direito, de que os procedimentos im rem são independentes
e totalmente alheios a qualquer procedimento criminal in personam (...). Tanto na Inglaterra
quanto na América, a jurisdição in rem é usualmente competência de cortes diversas daquelas
que exercem jurisdição criminal”.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 183


dessas embarcações, apresentando-as a um porto americano para serem jul-
gadas e submetidas a confisco. Nesse contexto, os proprietários do navio
e das cargas passaram a reclamar pela restituição dos bens, na medida em
que não haviam participado ou mesmo desconheciam o ato do mestre e da
tripulação.
Diante disso, os acórdãos recorreram à figura da propriedade crimi-
nosa, afirmando que a apreensão das embarcações envolvidas em pirataria
decorreria da necessidade de “erradicar o navio que, em si mesmo, repre-
sentava um crime, pelo fato de lhe estar intimamente ligado e servir a atos
de pirataria”.7 Em Harmony, por exemplo, uma embarcação de bandeira
americana, após praticar atos de pirataria, aportou na Bahia. Por denúncia
dos tripulantes ao cônsul americano no Brasil, fora inspecionada por um na-
vio de guerra dos Estados Unidos, sendo aí apreendida, levada ao Rio de Ja-
neiro e, posteriormente, a Baltimore, para confisco. Os proprietários, então,
invocaram sua inocência, defendendo que estavam engajados em comércio
legítimo, não sendo responsáveis pelo desvio de finalidade praticado pelo
mestre no curso da viagem. Diziam eles: “os ilícitos do mestre não podem
hipotecar o navio” e “não há exceção para confiscar exceto no caso de uma
responsabilidade presumida do proprietário. A moderna doutrina é que o
contrabando não afeta o navio, ou mesmo a carga, se ela é colocada a bordo
sem o conhecimento do proprietário, ainda que pelo capitão”.8
O Justice Story, como relator, escreveu que
a embarcação que comete a agressão é tratada como a ofensora,
como um instrumento culpado ou uma coisa a que se prende o con-
fisco, sem qualquer referência, de qualquer natureza que seja, à con-
duta do proprietário (...). E assim se procede por força das necessi-
dades do caso como o único meio adequado de erradicar a ofensa
ou o ilícito (...). Em suma, os atos do mestre ou da tripulação, em
casos desse tipo, vinculam o dono do navio, seja ele inocente ou cul-
pado (...). Conforme já afirmara o Justice Marshal, “não se trata de
procedimento contra o proprietário; é um procedimento contra o
navio, pela ofensa que o próprio navio perpetrou” (...). É verdade
que coisas inanimadas não podem praticar um ilícito. Mas seu corpo
é animado e posto em ação pela tripulação, guiada pelo mestre. O
navio age e fala pelo mestre. Não é, portanto, desarrazoado que o
navio seja afetado por isso.
Já quanto à carga, solução diversa acabou se impondo, pois “o ato do

Harmony, 43 US 233 (1844).


7

Harmony, 43 US 210 (1844).


8

184 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


mestre não vincula o proprietário inocente da carga; sendo o navio e a car-
ga pertencentes à mesma pessoa, uma distinção deve ser contemplada nos
princípios da decisão”, de modo que “a carga não é de forma geral reputada
envolvida no mesmo confisco, a menos que seu proprietário tenha coope-
rado ou tenha autorizado o ato ilegal”.9 Enfim, nesses casos, “o bem é de
considerar-se o ofensor”.10
Essas noções acabariam transpostas, mercê de longa evolução, para o
delito de lavagem de dinheiro, de modo a fundamentar o confisco do valor
criminoso.11 Nesse sentido, Alan Fine, ao tratar do perdimento dos bens,
igualmente afirma que a “característica distintiva desse procedimento é a de
que ele é ‘in rem’. O ‘réu’ é a propriedade a ser confiscada; e a propriedade,
a parte ‘culpada’”.12 Daí alertar Gordon para a necessidade de que o bem
confiscado seja estritamente vinculado ao crime, a fim de reputar-se como
“o ofensor”. E antecipa:
Há muita controvérsia com relação ao grau de conexão que deve
haver entre a propriedade sequestrada, a ser objeto de confisco, e o
crime subjacente. Alguns tribunais exigem que a acusação demonstre
o fumus boni juris de que a propriedade tem uma ligação substancial
com um dos crimes definidos no art. 881 a fim de que se admita o con-
fisco. Outros tribunais adotaram um requisito mais simples, exigindo
apenas a demonstração de um nexo entre a propriedade e a atividade
ilegal. Afirma-se que a distinção é mais semântica que substantiva (...)
e os acórdãos convergem em que estará sujeita a perdimento somen-
te a propriedade que tenha conexão mais que acidental ou fortuita
com a atividade criminal.13
Com a maior complexidade e dinâmica do ciclo econômico, também a
doutrina da propriedade criminosa acabou sendo em parte relativizada.
Nesse sentido, em Austin v. US,14 a Suprema Corte americana passou
em revista a tese de que,
à diferença de multas, o confisco “in rem” é tradicionalmente fixado

9
Harmony, 43 US 210 (1844).
10
JW Goldsmith Jr.-Grant Co. v. US. 254 US 505 (1921).
11
A lei brasileira determina, no art. 7º, “a perda (...) de todos os bens, direitos e valores
relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes previstos nesta lei (...) ressalvado
o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé”.
12
FINE, Alan S. Of forfeiture, facilitation and foreign innocent owner: is a bank account
containing parallel market funds fair game? Nova Law Review, v. 16, p. 1125, 1991-1992.
13
GORDON, Jon E. Prosecutors who seize too much and the theories they love; money
laundering, facilitation and forfeiture. Duke Law Journal, v. 44, p. 744, 1994-95.
14
Austin v. US. 509 U.S. 602 (1993).

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 185


não segundo critério da pena a ser imposta pelo crime cometido, mas
a partir da determinação de qual propriedade fora maculada pelo uso
ilegal, sendo irrelevante o valor do bem. Balanças utilizadas na pesa-
gem de drogas, por exemplo, são tão confiscáveis quanto sejam feitas
do mais puro ouro, ou do mais básico metal (...).
Na decisão, reafirmou-se que “a nota distintiva desses procedimentos
é de que eles são in rem. O réu é a propriedade a ser sequestrada, a pro-
priedade é a parte culpada”;15 “são ações in rem, contra a propriedade ofen-
sora; a propriedade é a ré e, por meio de ficção legal, considera-se culpada
como se fosse uma pessoa”.16 Isso, porém, não seria incompatível com certas
limitações em torno da razoabilidade: também o confisco não poderia ser
desproporcional à ofensa, sendo-lhe aplicável a 8ª Emenda – que proíbe pe-
nalidades excessivas. Para tanto, o tribunal adotou o entendimento de que o
confisco como uma punição pode ser encontrado nos casos em que a
alegação de inocência do proprietário foi rejeitada pela common law
(v.g., Calero-Toledo 416 US at 683; J.W. Goldsmith, Jr-Grant Co. v. US,
96 US 395 (1978); Harmony v. US, 2 How. 210 (1844); The Palmyra,
12 Wheat. 1 (1827)). Nesses casos, o confisco foi justificado com base
em duas teses: de que a propriedade, ela própria, é culpada pelo ilíci-
to; e de que o proprietário pode ser responsabilizado pelos ilícitos de
outros aos quais confia a propriedade. Ambas as teorias assentam, no
limite, na noção de que o proprietário foi negligente ao permitir que
sua propriedade fosse utilizada, sendo adequadamente punido por
tal negligência.
Destarte, possuindo caráter punitivo, seria legítimo verificar sua razo-
abilidade e sua proporcionalidade.
Comentando o acórdão Austin, Davis assinalou que “o confisco de pro-
priedade é uma penalidade que não tem correlação alguma com danos cau-
sados à sociedade ou com os custos envolvidos na aplicação da lei; qualquer
alegação no sentido de que o confisco proveja alguma compensação pela
aplicação da lei é afastada pela dramática variabilidade dos valores das pro-
priedades e dos bens que podem ser confiscados”, devendo guardar, assim,
um mínimo de razoabilidade.17
A ideia de “propriedade criminosa”, já com seus devidos temperamen-

15
FINE, Allan. Of forfeiture, facilitation and foreign innocent owner, p. 1125.
16
STRAFFER, Richard. Protecting the innocent owner. University of Florida Law Review, v. 37,
p. 842-3, 1985.
17
BROOK, Davis. Bennis v. Michigan: does the innocent owner have a defense to civil
forfeiture? Nova Law Review, v. 21, p. 695, 1996-1997.

186 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


tos, tornar-se-ia categoria dogmática central na configuração do tipo objeti-
vo da lavagem, vinculando-se primariamente não a uma punição pecuniária,
mas à necessidade maior de extirpar da economia um ativo ilícito, punindo
quem, para além do crime antecedente, viesse a envolver-se no grave ato de
lavagem, visando ocultar sua natureza impura, razão pela qual a identificação
desse elemento torna-se crucial para a boa aplicação da legislação no caso
concreto.
2 Procedência e proveniência: mecanismos para identificar e
circunscrever uma propriedade criminosa
Quando aludimos a saldos e transferências entre contas correntes –
objeto principal deste estudo –, logo surge a questão de saber se estamos ou
não em presença de uma propriedade criminosa e, em caso afirmativo, em
que medida e extensão um saldo bancário pode qualificar-se como contami-
nado ou descontaminado.
Como já visto, o navio utilizado no ato de pirataria era considerado,
por ficção, propriedade ofensora como um todo, devendo ser erradicado
mediante confisco, diferentemente da carga, não utilizada no ato de pirata-
ria sequer por ficção. Em seu desenvolvimento histórico, contudo, a própria
Suprema Corte americana acabaria por mitigar o elastério da doutrina da
propriedade criminosa, afastando um confisco irrestrito e generalizado, de
modo a evitar o regresso ad infinitum com sério prejuízo à segurança jurídi-
ca.18
Pois bem, cuidando-se de saldos bancários, uma aplicação exagerada
dessa mesma doutrina, a rigor, redundaria em uma “contaminação radioati-
va, como em uma doença contagiosa”,19 gerando “metástase sobre todos os
bens da pessoa”,20 mas não só isso: a ampliação da ideia de contágio – como

18
Em US v. One Tintoreto Painting entitled The Holy Family with saint Catherine and honored
donor, 691 F. 2d 603 (2nd Circ. 1982), um cidadão israelense, Silberberg, impugnou o confisco
de um valioso quadro contrabandeado para os EUA por Vinokur, pessoa dedicada ao mercado
de artes que gozava de excelente reputação na comunidade israelense, a quem confiara a
venda do quadro. Concluiu o Tribunal que “um proprietário de um bem que não suspeita que
a sua propriedade esteja sendo indevidamente utilizada não tem dever de prevenir o uso
indevido (...), devendo ser-lhe devolvida a propriedade”. A decisão assentou que “o mesmo
deve ser dito com relação ao proprietário que provou não apenas que não estar envolvido e
não ter ciência da atividade ilícita, mas, também, ter tomado todas as cautelas que dele se
esperaria, para prevenir um uso proscrito de sua propriedade; pois, em tal circunstância, seria
difícil concluir que o confisco serviria a propósitos legítimos sem ser arbitrário”.
19
Certain Accounts, 795 F. Supp. 391 (S.D. Fla. 1992).
20
Id., p. 398.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 187


inicialmente ocorreu à doutrina do bem culpado – acabaria acarretando que,
“em um curto espaço de tempo, grandes segmentos da economia transfor-
mar-se-iam em objeto de lavagem de dinheiro com responsabilidade penal
para todos os participantes do ciclo econômico”.21 Some-se a isso a circuns-
tância óbvia de que determinados bens podem ser apenas parcialmente22
constituídos por uma propriedade criminosa.23
Nesse contexto, resta identificar então o que constitui uma pro-
priedade criminosa quando se trate de saldos bancários. E, de início, essa
identificação, quando examinadas transferências entre contas correntes,
envolve investigação eminentemente objetiva, sendo irrelevante a boa
ou má intenção de seu ordenante: pode perfeitamente existir intenção
de esconder a origem do bem, ou mesmo de cometer crimes e, ainda
assim, não se configurar lavagem, porque a propriedade, objetivamente
falando, ainda não se tornou criminosa nas mãos do agente. Além disso,
trata-se de uma análise bem demarcada no tempo: a propriedade deve
ter essa característica no momento da transferência, sendo esse o status
que interessa, de modo que, se descontaminada antes da transação, ou
contaminada somente após ou em virtude dela, o requisito objetivo não
estará atendido.
Portanto, somente demonstrando-se que o saldo bancário envolvido
em uma transação já está contaminado com depósitos vinculados ao ato
criminoso antecedente é que se torna possível reputar provado esse ele-
mento objetivo do tipo, sem prejuízo dos demais.
No ponto, não há falar propriamente de presunção de criminalidade
do bem, porquanto a única presunção admissível refere-se ao procedimen-
to cautelar previsto no art. 4º, § 2º, da lei brasileira, segundo o qual “o juiz
determinará a liberação dos bens, direitos e valores apreendidos ou seques-
trados quando comprovada a licitude de sua origem”,24 inversão que, conso-
ante os itens 66 e 67 da Exposição de Motivos da Lei de Lavagem, não tem
aplicação quanto à demonstração do próprio objeto material do crime: “essa

21
Marko Voß, Die Tatobjekte (...), p. 31.
22
A rigor, a mistura de bens inocentes e “culpados”, sem dúvida, é uma das principais
maneiras de ocultar a origem ilícita destes, conforme já destacou a jurisprudência brasileira:
“um dos expedientes utilizados pelos autores do crime de lavagem de dinheiro é a mescla de
atividades lícitas com as ilícitas (fusão de técnicas) a fim de dificultar a investigação” (TRF3,
ACR 00012769820054036005, relator Des. Federal Henrique Herkenhoff, 2ª Turma, DJU
11.09.2008).
23
Marko Voß, Die Tatobjekte (...), p. 30.
24
Cuida-se de previsão idêntica à da Convenção de Viena (art. 5º, VII).

188 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


inversão do ônus da prova circunscreve-se à apreensão ou ao sequestro de
bens, direitos ou valores”.25
Cuidando-se de um elemento objetivo do tipo, como dito, é irrele-
vante a intenção com que a transação financeira seja ordenada, reclaman-
do-se que o bem já seja propriedade criminosa ao tempo da transação, não
bastando que assuma tal condição por força da operação mesma.
Tais aspectos são bem retratados por uma sequência de decisões pro-
feridas pelas cortes inglesas, cujo entendimento encontra-se consolidado.
Nesse sentido, em Regina v. Loizou,26 o tribunal afirmou categoricamente
que um bem não se torna propriedade criminosa com base na intenção de
se praticar o crime. Ao contrário, “o dinheiro deve ser propriedade criminosa
no momento em que é transferido, não sendo suficiente que se torne uma
propriedade criminosa como resultado da transação envolvendo a trans-
ferência”. Assim, “no caso de uma transferência, se a propriedade não era
criminosa no momento desta, não é cometido o crime [de lavagem]”. Em
outras palavras, não basta que a propriedade se transforme em criminosa

25
Assim consta da Exposição de Motivos da Lei de Lavagem de Dinheiro: “§ 66. Na orientação
do projeto, tais medidas cautelares se justificam para muito além das hipóteses rotineiras já
previstas pelo sistema processual em vigor. Sendo assim, além de ampliar o prazo para o início da
ação penal, o projeto inverte o ônus da prova relativamente à licitude de bens, direitos ou valores
que tenham sido objeto da busca e apreensão ou do sequestro (art. 4º). Essa inversão encontra-
se prevista na Convenção de Viena (art. 5º, nº 7) e foi objeto de previsão no direito argentino
(art. 25, Lei 23.737/89). § 67. Observe-se que essa inversão do ônus da prova circunscreve-se
à apreensão ou ao sequestro de bens, direitos ou valores. Não se estende ela ao perdimento
destes, que somente se dará com a condenação (art. 7º, I). Na medida em que fosse exigida, para
só a apreensão ou o sequestro, a prova da origem ilícita de bens, direitos ou valores, estariam
inviabilizadas as providências, em face da virtual impossibilidade, nessa fase, de tal prova”.
26
R. v. Loizou [2005] EWCA Crim 1579, [2005] 2 Cr. App. R. 37. Cuidava-se da entrega de
dinheiro em cash por um passageiro de um veículo a passageiros de outro veículo, ambos
estacionados. A acusação fora de lavagem do respectivo valor, mas a promotoria não
conseguiu identificar a natureza do crime antecedente. Segundo afirmou a Corte, “é lei clara
que o dinheiro deve ser propriedade criminosa no momento em que é transferido, não sendo
suficiente que se torne uma propriedade criminosa como resultado da transação envolvendo
a transferência”. O acórdão reproduz a instrução do juiz aos jurados: “primeiramente, deve
existir uma propriedade criminosa, e isso significa uma propriedade obtida como resultado
de uma conduta criminosa. Eu faço um simples exemplo. É o fruto do roubo de um banco;
outro exemplo, os frutos de uma fraude. (...) O segundo ingrediente é que deve existir uma
transferência; isso simplesmente significa que a propriedade criminosa tem que passar de uma
pessoa a outra. Em terceiro lugar, o réu que está sendo julgado tinha que ter conhecimento da
transferência, desejando dela participar. Se a pessoa não sabe o que está acontecendo, então
ela não pode ser culpada de nada, de modo que eles têm que saber o que estava acontecendo;
e, em segundo lugar, essa pessoa deve saber ou ter a suspeita de que era uma transferência de
propriedade criminosa. Esses são os três ingredientes que a acusação deve provar”.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 189


durante ou por força da transferência financeira, o que, no mais das vezes, é
situação frequente.
Em Kensington Intl. Ltd. v. Republic of Congo,27 a Suprema Corte do
Reino Unido reafirmou que o bem – dinheiro ou qualquer outro – deve qua-
lificar-se como propriedade criminosa já ao tempo da realização da transfe-
rência financeira, não depois, nem por força dela. Cuidava-se do pagamento
de uma propina: “aquele que dá uma propina sabe que o dinheiro consti-
tuirá, nas mãos de quem a receber, uma propriedade criminosa, mas isso
não torna o primeiro culpado de participar de uma transação que facilita a
aquisição de algo que já seja uma propriedade criminal”.
Idêntica temática foi examinada em Regina v. Geary,28 no qual se bus-
cava saber “se é necessário que a propriedade objeto da transação já seja cri-
minosa ao tempo em que a transação a ela se vincula”. Particularmente, ques-
tionou-se se era “admissível, para esses fins, separar diferentes aspectos de
um ajuste, de modo que sua implementação possa ser tratada como transfor-
mando em criminosa a propriedade [até então não criminosa]”. A questão era
especialmente sensível, porque os fundos de uma conta haviam sido desviados
para um terceiro, circulando por algumas contas, mas sempre com desígnio
único de fazer um percurso até retornar à origem. Entendeu-se, porém, que
um acerto relativo a uma propriedade não criminosa pode, quando
levado a efeito, tornar essa propriedade criminosa, mas não pode
exatamente dizer-se que o acerto incidiu sobre uma propriedade
que já era criminosa ao tempo em que operou sobre ela. Rejeita-se
um certo tipo de compreensão, em que cada um dos componentes do
caso possa ser tomado como se fosse um ajuste em separado. Aqui,
existiu um só acerto, pelo qual o apelante receberia o dinheiro, o con-
servaria por algum período e, depois, o restituiria. Tratar a retenção
e a devolução como acertos separados, relativamente à propriedade,
que teria sido previamente recebida, é artificial.
Também em Regina v. Amir e Akhtar,29 a Corte de Apelação Criminal
27
Kensington Intl. Ltd. v. Republic of Congo [2008] 1 WLR 1144.
28
Geary, R. v. Regina [2010] EWCA Crim 1925.
29
Regina v. Amir e Akhtar [2011] EWCA Crim 146. Semelhante argumentação foi recentemente
adotada no HC nº 0014358-23.2015.4.03.0000/SP, 1ª Turma, rel. Des. Federal José Lunardelli, j.
30.05.2017, segundo o qual, “no caso da corrupção, os recursos só passam a ser passíveis de uma
tal classificação quando ocorre seu recebimento pelo corrupto (...). A materialização dos recursos
como ‘produto’ (lato sensu) de crime de corrupção só passa a haver quando de seu recebimento
pelo agente corrupto. O caminho até esse ato não traz em si ilicitude dos recursos que serão
utilizados. Seja qual for o iter, pode o corruptor interrompê-lo a qualquer momento, sem que o
numerário seja em si ilícito. Ele será ilícito apenas quando efetivamente completar seu destino;
só então será ele ‘propina’, ou, na dicção técnica e legal, vantagem indevida materializada”.

190 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


de Londres lançou mão de uma esclarecedora analogia:
Suponhamos que eu receba o pagamento, como juiz, em cash. Esse
dinheiro não é uma propriedade criminosa. Suponhamos, agora, que
eu utilize esse dinheiro para pagar Hughes, por um carro que eu sei
que ele furtou. Nessa hipótese, claro que cometi crime de receptação,
pois sabia que o bem era furtado. No entanto, não pratiquei o crime
de transferir propriedade criminosa, porque a propriedade, que eu es-
tou transferindo, nomeadamente o dinheiro por mim recebido como
pagamento de meu salário de juiz, não é uma propriedade criminosa.
Claro, nas mãos de Hughes, o vendedor do carro furtado, o dinheiro
será uma propriedade criminosa.
Essa mesma construção foi acolhida pela jurisprudência americana,
que a elaborou a partir de inúmeros casos julgados pelos circuitos federais e
pelas cortes distritais, tomando como referência temporal o momento con-
sumativo do crime antecedente quanto à geração de fundos e sua eventual
proximidade com a transação financeira incriminada, em casos verdadeira-
mente paradigmáticos bastante esclarecedores.
Nesse sentido, um dos mais notáveis precedentes versava sobre a re-
alização de uma transferência bancária com propósito explícito e incontro-
verso de perpetrar crime de corrupção (pagamento de propina), realizada
com disfarce e aparência de licitude. De fato, em US v. La Brunerie,30 uma
corte distrital do Missouri decidiu que nem o § 1956, nem o § 1957 (da lei
de lavagem de dinheiro americana) criminalizam transações financeiras rea-
lizadas com “dinheiro que ainda não foi recebido pela pessoa que comete
o crime antecedente”, distinguindo-se, então, precedência e proveniência.
A acusação, in casu, não conseguira demonstrar a proveniência dos recursos
transferidos do corruptor ao corrupto, salientando que

30
US v. La Brunerie, 914 F. Supp. 340 (W.D. Mo. 1995). Em síntese, os acusados haviam
pago propina a um servidor municipal sob promessa de que este apoiaria uma proposição
legislativo-administrativa que geraria grandes vantagens em operações imobiliárias naquela
municipalidade. Em sua defesa, alegaram os réus que “o dinheiro [objeto da transferência
bancária] teria de ser derivado de uma atividade ilegal, à luz da legislação de lavagem de
dinheiro. O fato de que um esquema de propina tenha sido estabelecido, antes que os cheques
fossem emitidos, não estabelece que os fundos tenham fonte imprópria. O principal foco do
legislador, ao editar a lei, era a lavagem de dinheiro sujo e sua transformação em dinheiro
limpo. (...) Os alegados atos, neste caso, são exatamente o oposto: tomar dinheiro limpo e
fazê-lo sujo. Uma vez que a denúncia neste caso é silente quanto à fonte de onde provém
o dinheiro, tanto quanto a respeito de se tratar de uma fonte ilícita ou originária de uma
atividade ilegal, a denúncia não descreve propriamente um crime de lavagem de dinheiro”.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 191


o dinheiro tem que derivar de uma atividade criminosa nos termos da
lei de lavagem de dinheiro. O fato de que um esquema de propina fora
estabelecido, antes de os cheques terem sido emitidos, não configura
fonte imprópria dos fundos. (...) Desde a acusação, este caso silencia
sobre de onde veio o dinheiro, tampouco apontando para uma fonte
ilegal ou uma atividade ilegal, razão pela qual a denúncia não apresen-
ta uma imputação viável de lavagem de dinheiro.
O decisum ainda consigna que “nem o § 1956, nem o § 1957 [leis de
lavagem de dinheiro nos EUA] criminaliza transações financeiras realizadas
com dinheiro que ainda não foi recebido pela pessoa que comete o crime
antecedente”, constando do acórdão que a hipótese cuidava de “tomar di-
nheiro limpo e fazê-lo sujo”, distinguindo-se precedência do crime e prove-
niência de seus resultados.31
Outra importante referência é US v. Mankarious.32 Aqui, o 7º Circui-
31
A decisão invoca US v. Kennedy, 64 F. 3d 1465 (10th Cir. 1995). Kennedy atuava como
presidente de uma empresa que comercializava metais preciosos e moedas, enviando pelo
correio prospectos louvando as vantagens do investimento. Em dado momento, malgrado
tenha recebido recursos dos investidores, a empresa de Kennedy não conseguiu mais efetuar
a compra do metal, apresentando defasagem de quase US$ 13 milhões quando declarou
falência, listando 600 clientes credores, que adiantaram o valor dos metais, que não haviam
sido adquiridos. A acusação, basicamente, consistira na montagem de um esquema Ponzi,
defraudando investidores, pois deles recebia recursos para a compra de metais sem dar-lhes
o destino ajustado, pois empregara os recursos para atender despesas de custeio ordinárias,
capital de giro de outros empreendimentos e até despesas pessoais. Também aqui o réu
sustentou que a legislação só incrimina “transações que tenham ocorrido depois que o réu
logrou ter a posse completa dos fundos derivados do crime antecedente”. Para o tribunal,
contudo, desde que “a transação tenha lugar depois que o crime subjacente tenha se
completado”, poderia configurar-se lavagem; nesse contexto específico, compreendeu que
a fraude postal já se tinha completado quando as transações financeiras entre os clientes
e a empresa de Kennedy, apontadas pela acusação, haviam ocorrido. O distinguishing feito
pelo 7º Circuito foi construído assim: “em Johnson, as transferências que provavam os
crimes antecedentes eram as próprias operações que foram incriminadas como lavagem de
dinheiro. Em Kennedy, o governo invoca várias correspondências prévias, para provar o crime
antecedente de fraude postal, as quais ocorreram antes das transferências monetárias base
da acusação de lavagem de dinheiro. Assim, diferentemente de Johnson, as correspondências
ilegais neste caso envolvem correspondências anteriores de Kennedy, e não o recebimento
dos fundos das vítimas por parte de Kennedy. As transferências subsequentes e distintas
desses fundos é que foram incriminadas como infrações separadas, envolvendo produtos
de atividades criminosas que constituíram os alegados crimes de lavagem de dinheiro”,
sendo incontroverso, por estipulação das partes, que “as transações financeiras contidas
na denúncia ocorreram após as correspondências postadas pela WMC Inc. (empresa de
Kennedy) a pessoas que não receberam seus metais preciosos”.
32
US v. Mankarious, 151 F. 3d. 694, 705 (7th Cir. 1998). O ponto nodal dessa decisão consiste
no fato de que o crime antecedente consistia, à semelhança de Kennedy, na fraude postal.

192 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


to debruçou-se especificamente sobre a relação temporal entre o objeto
da lavagem e a consumação do crime antecedente, para melhor visualizar
o conceito de proveniência. A propósito, administradores de uma empresa
envolveram-se em um esquema de contabilização de falsas faturas de servi-
ços, cujo objetivo era retirar dinheiro da empresa faturada, em seu benefício
pessoal, sendo as faturas enviadas pelo correio, pelo que o crime antece-
dente seria fraude postal. A defesa, de outro lado, sustentava que, quando
da emissão da fatura falsa, geradora dos recursos, o delito apontado como
antecedente, fraude postal, não se havia consumado, prejudicando a carac-
terização da lavagem, porquanto, ao tempo da remessa, os fundos ainda não
seriam resultado de crime.
O tribunal, a esse propósito, assentou que “assiste razão aos acusa-
dos quanto ao fato de que vários casos, incluindo Kennedy, usam de uma
linguagem temporal para descrever a relação entre a lavagem e o crime an-
tecedente”, pois
o que as leis de lavagem de dinheiro punem é a transação com os
produtos, não as transações que criam os produtos. Desse modo, o
tempo é importante (...). Um agente de lavagem de dinheiro precisa
antes obter produtos para que a lavagem tenha lugar (...). Esses casos
estabelecem a regra de que o crime precedente deve gerar produtos
antes que qualquer um possa lavá-los.
Novamente, puseram-se em causa o momento consumativo do delito
antecedente e o preciso ponto no qual os fundos haviam sido gerados, situ-
ando-o em relação ao momentum da própria transação financeira, como se
estivessem em um continuum do iter criminis geral.
A propósito, em US v. Johnson,33 o acusado havia concebido um esque-
ma pelo qual atraía interessados em converter dólares em pesos mexicanos,

Segundo a acusação, os réus haviam enviado pelo correio as falsas faturas que geraram as
transações financeiras de resgate dos cheques junto a um estabelecimento comercial, bem
como entre as companhias envolvidas. Os réus arguiram que a acusação não havia conseguido
vincular fraudes postais específicas com as operações financeiras discutidas. Porém, o tribunal
rejeitou a arguição, consignando que “fraude bancária gera frutos apenas após sua execução;
fraude em transferências bancárias só gera frutos depois da transferência. A fraude postal,
todavia, pode criar frutos muito antes de as cartas serem enviadas. Mankarious e Murphy
desejam que o Tribunal suspenda a ocorrência da lavagem de dinheiro entre o momento
do esquema fraudulento e o momento em que esse mesmo esquema utilizou o correio (...).
Christo, Johnson e todos os outros casos exigem-nos manter separados o crime antecedente
e a lavagem. (...) O crime antecedente tem de ter produzido frutos em atos distintos da
conduta que constitui lavagem de dinheiro”.
33
US v. L. Johnson, 971 F2d 562 (10th Circ., 1992).

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 193


para a seguir fazer o caminho inverso, auferindo grandes lucros na arbitra-
gem dessas moedas, à ordem de 15%. Em síntese, tudo começava com os
investidores fazendo uma operação bancária de remessa, creditando-se a
conta corrente do réu. Posteriormente, o acusado realizava uma transfe-
rência reversa, creditando a conta dos investidores com o suposto lucro da
operação, que, todavia, acabou se revelando um esquema Ponzi, pois a ope-
ração de compra de pesos e recompra de dólares não existia de fato, vindo o
acusado a adquirir vários bens com os recursos daí advindos. A defesa, a seu
turno, sustentou que os valores depositados pelos investidores na conta do
requerido não seriam, ao tempo de sua realização, uma propriedade crimi-
nosa, pois ainda não eram “fundos originados de um crime prévio e comple-
to”, do qual só se poderia falar “após a ocorrência do depósito”, enquanto
a acusação afirmava que “não era necessário que esses fundos já tivessem
sido recebidos pelo acusado para que fossem qualificados como propriedade
criminosa”.
Julgando a espécie, o 10º Circuito concluiu que os valores creditados
na conta do réu efetivamente ainda não configuravam propriedade crimino-
sa, porque
a atividade criminal subjacente, neste caso, consistia em transferên-
cias bancárias fraudulentas, determinadas pelo acusado, por meio
das quais os investidores creditaram em sua conta tais fundos. Se os
fundos assim transferidos para o acusado eram ou não propriedade
derivada de crime é questão que depende de qualificá-los como frutos
obtidos de um crime ao tempo em que ocorrida a transferência finan-
ceira. Nós entendemos que não eram.
Especificamente, o acórdão fixa a seguinte máxima:
O art. 1957 foi redigido para proscrever certas transações com fru-
tos que já tinham sido obtidos de um crime antecedente pelo agente.
O agente não tinha a posse dos fundos, nem eles estavam a sua dis-
posição antes de os investidores transferirem-nos. Dessarte, não pode
ser dito que o acusado obteve os frutos da transação fraudulenta
antes que esses mesmos fundos lhe tivessem sido transferidos. En-
tão, as alegadas 31 transferências à sua conta bancária não envolviam
propriedade criminosa, devendo a condenação ser afastada.
Ainda nessa mesma direção, pode-se mencionar US v. Christo,34 deci-

34
US v. Christo, 129 F. 3d 578 (11th Circ., 1997). Christo era o presidente da instituição
financeira, sendo que Maulden era membro do conselho de administração. O último emitia os
cheques sem provisão, sendo que o primeiro autorizava o pagamento sem cobrança de juros.

194 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


dido pelo 11º Circuito, cujo acórdão assim isolou a quaestio juris: “a questão
principal em uma acusação de lavagem de dinheiro é, portanto, determi-
nar quando o crime antecedente se torna um delito completo, após o que
pode ocorrer lavagem de dinheiro”. In casu, gestores de uma instituição
financeira, mediante administração fraudulenta, cobriam cheques de parte
relacionada (membro do conselho de administração) emitindo outro cheque
sem fundos e sem cobrar juros ou formalizar o registro de uma operação
de crédito. O tribunal reformou a condenação, entendendo que, como não
houvera qualquer outra transferência bancária após a liberação dos fundos
pelo banco, não haveria como falar de lavagem.
A razão apresentada para a reforma da condenação, nesse caso pon-
tual, consistiu no seguinte: “o banco não perdeu nada com a fraude, até o
momento em que pagou os cheques a descoberto”. Examinando objetiva-
mente os fundos envolvidos nas únicas transferências financeiras incrimina-
das, assentou-se que ainda não poderiam ser caracterizados como proprie-
dades criminosas, pois “os fundos depositados no South Trust [instituição
financeira à qual os cheques foram apresentados e pagos] não foram usados
novamente pelos réus (o que seria imperioso para caracterizar lavagem de
dinheiro)”. Assim, “a perda dos fundos em favor do South Trust era um pas-
so necessário para completar a fraude bancária, com o desvio dos fundos
bancários. Especificamente, os crimes de gestão fraudulenta eram, até en-
tão, incompletos e não haviam produzido fundos passíveis de lavagem”.
Pesou fortemente na decisão da corte a noção de que haveria, em
tese, uma simultaneidade entre a fraude bancária e o ato de lavagem, não
sendo intenção do legislador agravar a punibilidade do crime antecedente
com a legislação antilavagem, senão punir os atos posteriores à consumação
do delito antecedente com objetivo de dissimular sua origem.35

A acusação caracterizava como lavagem de dinheiro a transferência bancária da instituição


financeira pagadora para a instituição financeira recebedora, como uma operação bancária
derivada de fraude bancária. Consta do acórdão que “a fraude com os cheques não privou
o banco de nada, nem Maulden obteve alguma coisa do banco senão após o Bay Bank ter
liberado seus fundos em pagamento dos cheques para o SouthTrust Bank. Assim, a retirada de
fundos, incriminada a título de lavagem de dinheiro, foi uma e a mesma atividade criminosa
subjacente à fraude bancária e ao desvio de fundos bancários”.
35
Nesse sentido, vale mencionar a “order and recommendation” do magistrate judge em US
v. Finn, 919 F. Supp. 1305 (E. Minn. 1995): “embora este preciso assunto ainda necessite ser
examinado neste Circuito, outras cortes concluíram que a legislação federal de lavagem de
dinheiro e os crimes antecedentes não estão em concurso. Em US v. Smith, 46 F. 3d 1223
(1st Cir. 1995), cert. negado, ___ U.S. ___, 116 S. Ct. 176, 133 L. Ed. 2d 116 (1995), o Tribunal
concluiu que as acusações de lavagem de dinheiro não estão em concurso com as acusações
do crime subjacente de fraude bancária. O Congresso pretendeu que a lavagem de dinheiro

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 195


Assim também se colhe da jurisprudência brasileira, porquanto, “não
demonstrando a acusação a procedência das verbas evadidas, não há como
lhe conferir origem ilícita, impondo-se a absolvição quanto ao delito inserto
no art. 1º da Lei nº 9.613/98”.36 Na hipótese, o 4º Regional examinava lan-
çamentos de contas correntes, para verificar se ali teria ocorrido ingresso de
valores oriundos de crime. Segundo o voto condutor, “o crime de lavagem
de dinheiro pode ser reconhecido somente quando há, nas contas, entrada
de valores de origem comprovadamente ilícita, não servindo como crime
antecedente a própria remessa de dinheiro ao exterior objeto de evasão de
divisas”, em caso muito semelhante ao precitado Mankarious.37 Após rejei-
tar expressamente tese em sentido contrário,38 assentou que “os bens, direi-
tos ou valores precisam, efetivamente, ter origem no crime antecedente,
não bastando o simples cometimento deste”, consignando que, na espécie,
“não há demonstração inequívoca nestes autos da procedência ilícita dos
valores supostamente evadidos, razão pela qual não ficou caracterizada a
figura típica do art. 1º da Lei nº 9.613/98 em relação à conta [...], não obstan-
te as inúmeras transações na conta”, e, “considerando inexistir elementos
suficientes a permitir auferir-se a origem ilícita dos valores constantes e mo-
vimentados da conta [...], entendo que deva ser afastada a condenação do
réu Marcelo Farias pelo crime do art. 1º, IV, da Lei nº 9.613/98”.39

seja um crime distinto do crime antecedente gerador do dinheiro. Id., p. 1234, citando US
v. LeBlanc, 24 F. 3d 340, 346 (1st Cir. 1994), cert. negado, ___ U.S. ___, 115 S. Ct. 250, 130
L. Ed. 2d 172 (1994). Assim também em US v. Edgmon, 952 F. 2d 1206 (10th Cir. 1991), cert.
negado, 505 U.S. 1223, 112 S. Ct. 3037, 120 L. Ed. 2d 906 (1992), a Corte entendeu que o
legislador concebeu a lavagem de dinheiro como crime distinto da conduta ilegal, que vem a
ser a ofensa predicada (...)”.
36
TRF4, ACR 5037102-80.2014.404.7000, 7ª Turma, relatora Desa. Federal Claudia Cristofani,
j. 18.11.2015.
37
US v. Mankarious, 151 F. 3d. 694, 705 (7th Cir. 1998).
38
No caso, o Ministério Público Federal sustentava que o crime de evasão de divisas e de
manutenção de depósitos não declarados à repartição competente poderia ser o próprio
antecedente do delito de lavagem de dinheiro por conta do respectivo crédito na conta corrente,
sendo que os valores indiretamente provenientes dessa prática bastariam à consumação do
crime, situação muito assemelhada à dos casos Mankarious, Christo e Johnson, já examinados.
39
É didática, nesse sentido, a sentença proferida nos autos nº 5037102-80.2014.4.04.7000
pelo juiz federal Sérgio Moro, in verbis: “A prova em relação à natureza e à origem dos recursos
movimentados por uma das contas é, no contexto, relevante para determinar a natureza e a
origem dos recursos movimentados por outra conta. (...) 126. Para a caracterização do crime
de lavagem de dinheiro, é necessário, porém, não só condutas de ocultação e dissimulação,
mas também que os valores envolvidos tenham procedência criminosa. (...) 128. Quanto à
procedência criminosa dos valores, embora seja provável que todos os créditos havidos nas
contas do [...] sejam de valores previamente evadidos e, portanto, de origem criminosa,

196 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Em 2017, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região debruçou-se sobre
a mesma temática, assentando que a transferência bancária ou financeira
movida pelo objetivo de praticar um crime não configura, ainda, lavagem de
dinheiro, tampouco servindo para tanto a antecedência meramente cronoló-
gica. Segundo a ementa desse recente julgado, “sem a existência de recursos
cuja proveniência (e não destinação de acordo com planos de seus possuido-
res, os corruptores) seja criminosa, não pode haver lavagem”, pois “lavagem
só há de recursos cuja origem seja crime, de acordo com a expressa dicção
do art. 1º da Lei 9.613/98”, de modo que,
conquanto sejam várias as espécies de valores que se amolduram ao
conceito de valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime,
há um fio condutor claro: a razão de eles existirem na esfera patri-
monial de um agente é uma prática delitiva anterior. (...) Portanto,
deve-se ter, necessariamente, um crime anterior que propicie (ao
agente ou a terceiro) os recursos a serem objeto de posterior lava-
gem.40

3 Fluxos financeiros: da comprovação do vínculo entre o produto do


crime e o depósito de valor em conta corrente
Uma vez identificada a plena consumação e produção dos resultados
por parte do crime antecedente, em momento anterior à transação financei-
ra, pareceria resolvida a demonstração desse elemento objetivo do tipo, mas
assim não é. Analiticamente, abre-se ensejo, então, a uma segunda e nova
verificação, de elevada complexidade quando a lavagem esteja materializada
em transferências bancárias.
Chegamos, aqui, a um dos pontos a nosso ver mais sensíveis da ma-
téria: a demonstração objetiva de que os saldos formados por lançamentos
a crédito caracterizam propriedade criminosa já não sob o aspecto de sua
produção por um crime antecedente, mas sob o aspecto de sua detecção
em contas correntes, em um arco dinâmico que se inicia com a contamina-

considerarei provada a origem e a natureza criminosa dos valores apenas quando os créditos
sejam provenientes de outras contas de operadores do mercado de câmbio negro mantidas
no próprio [...] ou já identificadas no Caso Banestado. 129. Assim, por exemplo, o recebimento
pela conta [...] de créditos da conta [...], ambas controladas por operadores do mercado negro
de câmbio, caracteriza crime de lavagem de dinheiro, já que os valores que eram mantidos
na conta [...] tinham natureza criminosa, uma vez que produto de prévia evasão de divisas, e
foram transferidos para conta secreta em nome de offshore, visando à sua disponibilização,
em transferência fraudulenta, em reais para cliente do controlador da conta [...]”.
40
HC nº 0014358-23.2015.4.03.0000/SP, 1ª Turma, rel. Des. Federal José Lunardelli, j.
30.05.2017.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 197


ção da conta debitada e finda com sua descontaminação quantitativa, por
diluição.41
No Brasil, importantes julgados ressaltam a necessidade de demons-
tração, a parte objecti, da proveniência criminosa dos bens, apelando para a
necessidade do “follow the money”. Em acórdão da relatoria do Des. Federal
João Pedro Gebran Neto, do 4º Regional, ficou assentado que,
em crimes de lavagem de dinheiro, a quebra dos sigilos bancário e
fiscal é fundamental para demonstrar a cadeia delitiva e o caminho
marcado pelo dinheiro até o clareamento. Dada a natureza dos cri-
mes, mostra-se imprescindível o rastreamento dos ativos ocultados
ou clareados (follow money) para identificar a cadeia delitiva e todos
os seus partícipes.42
Mas, embora necessária, essa não é uma tarefa fácil. Com efeito, é
mister ab initio consignar, ainda uma vez com acórdão da relatoria do Des.
Federal João Pedro Gebran Neto, que, “para a configuração do delito de
lavagem de dinheiro, não basta a mera incompatibilidade entre a movi-
mentação financeira e a renda do agente. Não estando suficientemente
evidenciado que os recursos movimentados sejam provenientes de um dos
crimes arrolados nos incisos do artigo 1º da Lei nº 9.613/98 (...) impõe-se
a absolvição”.43 Também o 8º Circuito prestigiou essa linha argumentativa
em US v. Blackman,44 no qual se analisavam quatro remessas e uma trans-
41
Os conceitos de “descontaminação qualitativa” e “quantitativa” serão examinados no
próximo item.
42
TRF4, ACR 5010007-89.2015.404.0000, 8ª Turma, relator Des. Federal João Pedro Gebran
Neto, j. 08.05.2015.
43
TRF4, ACR 0042105-10.2005.404.7100, 8ª Turma, relator Des. Federal João Pedro Gebran
Neto, j. 22.01.2015.
44
US v. Blackman, 904 F. 2d 1250 (8th Circ. 1990). Embora tenha rejeitado a presunção de
lavagem com base na mera falta de fontes legítimas de renda, o acórdão assim desenvolveu a
questão relativa à prova ou não de uma operação específica vinculada à transação financeira
incriminada: “como o 3º Circuito observou em US v. Massac, 867 F. 2d 174 (3rd Cir. 1989), a
prova de que o réu usou um serviço de transferência monetária para o Haiti, associada à prova
de que ele comercializava drogas, é suficiente para sustentar uma condenação de lavagem de
dinheiro (...). Devemos lembrar que o ônus da acusação sobre um elemento do crime pode
ser satisfeito por indícios, desde que suficientes para prová-lo além da dúvida razoável. Em
US v. Matra, 841 F. 2d 837, 841 (8º Cir. 1988), por exemplo, observou-se que grandes somas
inexplicáveis de dinheiro são prova indiciária da intenção de comercializar cocaína (...)”.
Existem vários casos em que tal circunstância – somas inexplicadas de dinheiro – permite o
apelo à totalidade das circunstâncias. A propósito, cfr. MORO, Sérgio. Crime de lavagem de
dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 88, “para a condenação, será necessária prova categórica
do crime de lavagem, o que inclui prova convincente de que o objeto do crime de lavagem é
produto de delito antecedente”.

198 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


ferência patrimonial realizada por um traficante desprovido de fontes legí-
timas de renda. Pontualmente, o circuito declarou que “concordamos com
Blackman [no sentido de] que a Acusação não pode basear-se exclusiva-
mente na prova de que um réu acusado de traficância não tenha outra
fonte de rendas”.
Daí não se extraia, porém, que, em hipóteses como essas, o rastre-
amento deveria conduzir a uma venda específica de drogas, ou a um lance
pontual em um conjunto de operações criminosas apresentadas a título de
crime antecedente. Toda vez que exista uma multiplicidade de circunstâncias
igualmente contundentes, associada à ausência de explicação para a posse
de grandes somas de dinheiro, o critério da totalidade das circunstâncias
poderá ser admitido,45 mas sempre com muita cautela, para não incidir na
presunção de criminalidade da propriedade de que se falou anteriormente.
De fato, como também se decidiu em Blackman, “não compreende-
mos a lei como exigindo que a acusação trace as origens do dinheiro até
uma venda pontual [de cocaína]”, podendo esse elemento, associado à tota-
lidade das circunstâncias, nos casos em que o acusado não disponha de fon-
tes lícitas de dinheiro, fornecer suficiente material à condenação, guardada
a máxima objetividade dos elementos de prova apontados.46

45
Com relação ao exame probatório, é valiosa a perspectiva de DALLAGNOL, Deltan. As
lógicas das provas no processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, com relevo para a
abordagem da inferência para melhor explicação. O autor explica a inexistência de diferença
ontológica entre prova direta e prova indiciária, perspectiva com a qual estamos inteiramente
de acordo e que também defendemos em A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de
Janeiro: Forense, 2007.
46
US v. Blackman, 904 F. 2d 1250 (8th Circ. 1990) debateu “se a prova apresentada pela
acusação era suficiente para sustentar a condenação por lavagem de dinheiro”, formada, in
casu, pelos seguintes elementos: (i) livro-razão contabilizando a venda de drogas; (ii) posse de
significativas quantidades de cocaína; (iii) uso de sistema de pagamentos usualmente adotado
por traficantes; (iv) perícia correlacionando quantidade de drogas e atividade comercial de
larga escala. Já as operações financeiras consistiam em quatro remessas bancárias, no valor
total de US$ 11.000,00, e uma transferência simulada da propriedade de veículo mediante
pagamento de US$ 4.000,00. Sustentava-se que a acusação não havia rastreado os recursos
utilizados nessas transferências até uma operação específica de venda de drogas, afirmando-
se insuficiente o argumento de que o réu não dispunha de fontes legítimas de renda. O 8º
Circuito, no ponto, reafirmou a premissa de que a falta de fontes legítimas de renda não
suporta uma condenação por lavagem: “concordamos com a alegação de que a acusação não
pode basear-se exclusivamente na prova de que o réu, acusado de usar produtos de um crime,
carece de uma fonte legítima de renda” – perspectiva, entre nós, constante de acórdão de
relatoria do Des. Federal João Pedro Gebran Neto (TRF4, ACR 0042105-10.2005.404.7100,
8ª Turma, D.E. 22.01.2015). Ainda assim, a acusação não teria propriamente o ônus de
comprovar, em casos tais, a vinculação entre as transferências realizadas por Blackman e “uma

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 199


Todas essas observações são relevantes, igualmente, quando se parti-
culariza o exame da obtenção de contratos mediante pagamento de propi-
nas. Com efeito, via de regra, será nítida a realização de uma operação finan-
ceira com desígnios manifestamente ilícitos, como, por exemplo, a obtenção
de um contrato público. Com efeito, para além do já citado US v. La Brunerie,
em Anderson v. SmithField Foods, Inc. assentou-se que
o dinheiro ilegal que os réus alegadamente obtiveram para violar a
Lei Rico e as leis ambientais e para cometer fraude postal e financeira
era dinheiro que os réus obtiveram legalmente, por meio da operação

venda [de drogas] pontual”, sendo o requisito probatório satisfeito à luz da “totalidade das
circunstâncias”, mediante prova indiciária, cuidando-se de réu sem fontes lícitas de renda.
A decisão invoca US v. Matra, 841 F. 2d 837 (8th Circ. 1988), segundo o qual “largas somas
de dinheiro sem explicação” podem ser utilizadas como prova indiciária no conjunto das
circunstâncias. Matra, a rigor, não discutiu propriamente a prova da origem de fundos, mas
da intenção de traficar, a partir de um conjunto muito robusto de provas indiciárias (o réu
era o proprietário de uma casa dedicada à mercancia de narcóticos, em lugar de um simples
visitante). Consta em Matra: “a intenção de comercializar drogas pode ser inferida a partir da
posse de uma grande quantidade de substâncias controladas, de seu elevado teor de pureza,
da presença de parafernália usada para distribuir drogas, das largas somas de dinheiro não
explicadas e da presença de armas de fogo”. US v. Massac, 867 F. 2d 174 (3rd Circ. 1989),
também invocado, percorreu o mesmo iter decisório, destacando várias circunstâncias
objetivas, todas igualmente eloquentes, para a seguir dispensar a acusação de estabelecer
uma relação direta entre operação de venda de drogas e recursos utilizados em certas
transferências: “(...) O acusado afirma que não havia prova de que ele utilizou os serviços
de Haitelex Transfer Data Exchange com o propósito de disfarçar a natureza, a localização,
a propriedade e o controle do dinheiro que ele havia ganho por meio da venda de crack. O
uso do Haitelex pelo réu para transferir $ 22.000 em dinheiro para o Haiti, por um período de
cinco meses, por meio dos serviços de seu conterrâneo Deslaurier, em lugar de usar um banco,
associado à prova de seu envolvimento com a venda de narcóticos, era suficiente, sem mais,
para que o júri razoavelmente inferisse que ele possuía o requisito da ciência, justificando sua
condenação”. Todos são casos em que o acusado não tinha ocupação lícita, fora surpreendido
com somas elevadas de dinheiro sem explicação e comprovadamente estavam engajados
na comercialização de narcóticos de significativa escala. Entre nós, raciocínio semelhante já
foi aplicado, firmando-se a convicção de que a “grande quantidade da droga apreendida, a
estrutura ostentada pela organização criminosa, tal como o arrendamento de fazendas no
Brasil e a propriedade de fazendas no Paraguai utilizadas para o preparo e a distribuição da
droga, as declarações das testemunhas no sentido de que os apelantes adquiriram veículos
que também utilizavam no tráfico, bem como uma aeronave e implementos agrícolas,
e, principalmente, a ausência de provas quanto à origem lícita de recursos para adquirir
tais bens e a utilização de ‘laranjas’ para figurarem como seus proprietários e as tentativas
infrutíferas das testemunhas arroladas pela defesa no sentido de comprovar a origem lícita
do dinheiro para a aquisição desses bens demonstram claramente que os valores eram
provenientes do crime de tráfico” (TRF3, ACR 00012769820054036005, relator Des. Federal
Henrique Herkenhoff, 2ª Turma, DJU 11.09.2008).

200 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


do seu negócio. Obter dinheiro como resultado da violação de leis
ambientais não torna o dinheiro ganho pelo réu em um negócio lícito
em dinheiro produto de atividade ilegal antecedente.47
A rigor, embora por outros fundamentos, pode-se afirmar que o Su-
premo Tribunal Federal incidentalmente também abordou a matéria, quan-
do do julgamento dos 16os Embargos Infringentes na AP nº 470/MG, ao fixar
o entendimento de que a entrega de dinheiro para pagamento do crime de
corrupção não configurava lavagem, haja vista que os fundos ainda não eram
ilícitos ao tempo dessa operação. Consta da decisão que “o recebimento de
propina constitui o marco consumativo do delito de corrupção passiva, na
forma objetiva receber, sendo indiferente que seja praticada com elemento
de dissimulação; a autolavagem pressupõe a prática de atos de ocultação
autônomos do produto do crime antecedente (já consumado), não verifi-
cados na hipótese”.48 Ao assim decidir, a Suprema Corte colocou-se na linha
da abalizada jurisprudência internacional, incorporando a ratio consagrada
nos já mencionados paradigmas Mankarious,49 Johnson50 e Christo,51 entre
outros. No ponto, com a exatidão e a profundidade que lhe são próprias, o
saudoso Ministro Teori Zavascki consignou:
(...) o recebimento dos valores referentes ao crime de corrupção
passiva (...) não pode produzir a consequência de incorporar um cri-
me autônomo, até porque o recebimento indireto da vantagem inde-
vida integra o próprio tipo penal do art. 317 do Código Penal. (...) [N]
ão há (...) ações independentes entre o crime de corrupção passiva
e o delito de lavagem (...) porque o fato (...) de o réu tê-lo recebido
clandestinamente não é ação distinta e autônoma do ato de receber

47
Anderson v. Smithfield Foods, Inc., 209 F. Supp. 2d 1270 (M.D. Fla. 2002).
48
Ementa do julgado: “Embargos infringentes na AP 470. Lavagem de dinheiro. 1. Lavagem
de valores oriundos de corrupção passiva praticada pelo próprio agente: 1.1. O recebimento
de propina constitui o marco consumativo do delito de corrupção passiva, na forma objetiva
‘receber’, sendo indiferente que seja praticada com elemento de dissimulação. 1.2. A
autolavagem pressupõe a prática de atos de ocultação autônomos do produto do crime
antecedente (já consumado), não verificados na hipótese. 1.3. Absolvição por atipicidade da
conduta. 2. Lavagem de dinheiro oriundo de crimes contra a Administração Pública e o Sistema
Financeiro Nacional. 2.1. A condenação pelo delito de lavagem de dinheiro depende da
comprovação de que o acusado tinha ciência da origem ilícita dos valores. 2.2. Absolvição por
falta de provas. 3. Embargos acolhidos para absolver o embargante da imputação de lavagem
de dinheiro” (AP 470 EI-décimos sextos, relator(a) p/ acórdão: Min. Roberto Barroso, Tribunal
Pleno, julgado em 13.03.2014).
49
US v. Mankarious, 151 F. 3d. 694, 705 (7th Cir. 1998).
50
US v. L. Johnson, 971 F2d 562 (10th Circ. 1992).
51
US v. Christo, 129 F. 3d 578 (11th Circ. 1997).

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 201


(...). [N]ão se deve confundir o ato de “ocultar” a natureza ilícita dos
recursos (...) com os atos tendentes a evitar-lhe o confisco ainda du-
rante o iter criminis do delito antecedente.52
Portanto, à caracterização da lavagem, exige-se a demonstração de
que o objeto da transação configura, em seu sentido objetivo, uma proprie-
dade criminosa, em um contexto compatível com as exigências típicas desse
delito autônomo,53 ainda que a retrospectiva entre o depósito e os produtos
do crime antecedente resulte do apelo à totalidade das circunstâncias.
4 Saldo bancário: métodos contábeis para isolar a propriedade
criminosa; da contaminação à descontaminação qualitativa e quantitativa,
por diluição e obsolescência
Quando se ache comprovado que uma propriedade criminosa, mate-
rializada em dinheiro, foi creditada em determinada conta bancária, estando
devidamente estabelecido o respectivo elo, segue-se a tormentosa questão
de sua eventual – e quase sempre inevitável – confusão com recursos lícitos

52
Voto proferido nos Sextos Emb. Infr. na AP 470/MG, Plenário do STF, j. 13.03.2014. O
eminente Ministro Teori Zavascki ainda invoca manifestação do Ministro Ricardo Lewandowski,
no sentido de que “o fato de alguém ter recebido vantagem indevida, sob a forma de dinheiro,
por interposta pessoa, dissimuladamente, pode, sim, caracterizar o crime de corrupção
passiva. Mas este único fato, qual seja, o recebimento de propina de maneira camuflada,
não pode gerar duas punições distintas, a saber, uma a título de corrupção passiva e ainda
outra de lavagem de dinheiro, sob pena de ferir-se de morte o princípio do ne bis in idem”.
Essa perspectiva, aliás, está à base da punição da lavagem de dinheiro, na medida em que
depende de uma cadeia causal nova, não se destinando a incrementar a punibilidade do delito
antecedente.
53
Não se deve confundir o implemento desse requisito objetivo com as características da
relação entre os produtos do crime antecedente e a operação financeira subsequente.
A esse propósito, v. BARTON, Stephan. Das Tatobjekt der Geldwäsche (…) e CORDERO,
Blanco. El delito de blanqueo de capitales, p. 340. Este último, aliás, desenvolve hipóteses
esclarecedoras sobre tal relação: se o delinquente adquire com o dinheiro ilegalmente obtido
participação acionária de uma empresa, os bens produzidos pela empresa não procedem do
delito prévio, assim como também não procede o prêmio auferido por um traficante com o
bilhete de loteria (op. cit., p. 345-6). Na jurisprudência americana, v., especialmente, os já
citados US v. Mankarious, 151 F. 3d. 694, 705 (7th Cir. 1998) e US v. Blackman, 904 F. 2d 1250
(8th Circ. 1990). De outra parte, Sedemund, em Der Verfall von Unternehmensvermögen bei
Schmiergeldzahlungen durch die Geschäftsleitung von Organgesellschaften, DB 2003, p. 323-
329, no contexto de um caso julgado pelo BGH em 02.02.2015 envolvendo pagamento de
propina em licitação conduzida pelo Estado de Köln, sustentou que seria exigível uma relação
de “unmittelbarkeitbeziehung” entre o fato criminoso e o resultado, ou seja, uma relação sem
intermediações, de absoluta imediatidade e causalidade. Restaria saber, então, se, havendo
interferência de novos fatores causais, como, v.g., o trabalho humano lícito, poderia quebrar-
se a cadeia delitiva, mas essa questão não constitui objeto do presente trabalho.

202 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


que ali já se encontrem ou venham a ser creditados, fenômeno internacio-
nalmente conhecido por “commingled funds”, mistura ou mescla de fundos.
Em tese, uma propriedade criminosa não se mistura com outra, ex-
ceto quando se cuide de bens fungíveis, dos quais o exemplo máximo é o
próprio dinheiro. Nesse caso, nada mais natural que a propriedade criminosa
se misturar com a lícita, formando juntamente com aquela o saldo bancário,
que poderá resultar de vários lançamentos quantitativa e cronologicamente
diversos.54
Com efeito,
quando um cliente deposita fundos em uma conta bancária, o ban-
co credita na conta um valor igual ao do depósito. Em um dado mo-
mento, o saldo credor da conta é o resultado cumulativo de todas as
transações que afetam essa conta. Os bancos não são guardadores do
dinheiro de seus depositantes; um depositante não pode pretender
reivindicar seu dinheiro como res específica ou segui-lo nas mãos de
outro cliente do banco.55
Em outros termos, toda lavagem bancária é sempre substitutiva, por-
que o direito de crédito aberto pelo banco, sacável contra a mera apresenta-
ção de cheque, ordem de transferência ou documento equivalente, já repre-
senta uma primeira transformação.56 Logo, em linha de princípio, “fundos
criminosos podem misturar-se com fundos não criminosos, resultando sim-
plesmente em um saldo líquido credor em favor do depositante”,57 também
contaminado.
Os ciclos de transformação são próprios da economia, de modo que,
como já referido, uma incriminação ilimitada, a propagar-se, poderia causar
54
Aquele que recebe dinheiro ilícito com uma mão e utiliza dinheiro limpo para alguma
transação não comete, nessa transação, lavagem de dinheiro, à míngua do elemento objetivo
propriedade criminosa. Tal situação, porém, é bastante rara, porquanto, cuidando-se de
dinheiro, a mistura é quase sempre inevitável.
55
US v. Banco Cafetero Panama 797, F. 2d 1154 (2nd Cir. 1986).
56
Nem toda transformação, porém, constitui lavagem. Nesse sentido, o precitado US v.
Olaniyi-Oke, 199 F. 3d 767 (5th Cir. 1999), segundo o qual “a aquisição de qualquer ativo com o
produto de atividades ilegais esconde tais recursos, convertendo-os em uma forma diferente e
com uma aparência de maior legitimidade. Mas a exigência de que a transação seja concebida
para ocultar implica que mais do que tal motivação trivial seja provada [para evidenciar o
crime]”.
57
Conforme salientado no caso Johnson, 971 F2d 562 (10th Circ., 1992) at 7, “uma vez que
os frutos da atividade criminosa tenham sido depositados em uma instituição financeira
e tenham sido creditados para uma conta corrente, esses fundos não podem ser traçados
para alguma particular transação e não podem ser diferenciados de quaisquer outros fundos
depositados na conta”.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 203


sérios embaraços inclusive à atividade bancária. Nesse sentido, tome-se o
exemplo de quatro transformações, formulado por Barton: um criminoso
ganha $ 1.000. A seguir, mistura na conta corrente esse dinheiro ($ 1.000)
com o resto de seu dinheiro, chegando a um saldo bancário de $ 10.000
(primeira transformação). Esse novo objeto, certamente, provém do crime,
pois ao menos contém $ 1.000. Suponha-se, agora, que o criminoso adquira
um veículo por $ 10.000. O novo objeto passa a ser, desta feita, o veículo,
pois uma parte do seu preço certamente deriva do crime (segunda trans-
formação). Mais adiante, o criminoso vende esse veículo por $ 50.000 e,
tanto quanto no preço estejam contidos aqueles $ 10.000, que por sua vez
continham os $ 1.000, também essa transformação acabaria se incluindo no
conceito de bem proveniente do crime (terceira transformação).58 Derradei-
ramente, o novo adquirente, após longo tempo, vende o veículo para um
ferro-velho após tornar-se imprestável, recebendo $ 50 (quarta transforma-
ção). Em tese, como no veículo estão contidos os valores originários, tam-
bém esse bem, recebido pela transação envolvendo o veículo, seria derivado
do crime antecedente. Como assinala Barton, a utilização de um mecanismo
de equivalência dos antecedentes (conditio sine qua non) – como na espécie
exemplificada – redundaria no fato de que, “enquanto o objeto circular na
economia, existiria contínua contaminação”,59 o que acabaria por contradi-
zer o sentido da própria legislação contra lavagem. Então, do ponto de vista
quantitativo, em que medida e extensão o contágio pode ocorrer e propa-
gar-se?60
Em linha de princípio, tal como pretendia a “teoria da facilitação”,
fundos inocentes são necessariamente um pré-requisito para a rea-
lização bem sucedida da lavagem de dinheiro, cuja essência é a mis-
tura preordenada de dinheiro ilícito com fundos que, de outro modo,
levantariam suspeição. Quanto mais inocentes parecerem os fundos,
mais difícil será para que os crimes possam ser detectados.61
Mas uma tal contaminação ilimitada redundaria na conclusão de que,
depositado qualquer valor, por menor que fosse, em conta de movimenta-
ção lícita, todas as outras contas que, em operações subsequentes, com ela
entrassem em contato, ativa ou passivamente, se transformariam também
58
BARTON, Stephan. Das Tatobjekt der Geldwäsche (...), p. 162.
59
Id., p. 162. A solução proposta pelo autor é o apelo à teoria da adequação.
60
Neste ponto, referimo-nos apenas à descontaminação quantitativa (ou diluição), deixando-
se para outro momento a descontaminação qualitativa.
61
US v. Certain Accounts. 795 F. Supp. 391 (1992). 91-1018-CIV. US District Court, S.D. Florida.
Feb. 21, 1992.

204 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


elas em propriedades contaminadas, criando ônus excessivamente pesado
para a própria economia.
Por isso, em que pese a natureza in rem do confisco, semelhante resul-
tado acabou por ser mitigado. Nesse sentido, em United States v. All funds
on deposit,62 buscava-se confiscar a integralidade do saldo existente em de-
terminada conta bancária, ao argumento de que, “se qualquer porção da
propriedade é utilizada para facilitar a violação, então toda a propriedade
é passível de confisco”. A Corte Distrital, no ponto, entendeu que “não seria
compreensível que um dinheiro legítimo, já existente na conta corrente,
pudesse facilitar o depósito de valores ilegais”, sendo que “a acusação não
demonstrou qualquer nexo entre as alegadas violações e a totalidade dos
fundos depositados na conta bloqueada”. Ainda conforme esse julgado, “se
qualquer bem da propriedade de quem foi acusado de lavagem de dinheiro
é infectado (...), então a ele negou-se direito de propriedade (...). O proprie-
tário de bens inocentes [da lavagem de dinheiro] seria privado do uso de
sua propriedade até que tivesse oportunidade de demonstrar sua inocência,
incorrendo em prejuízo substancial (...)”,63 semelhantemente ao perdimento
de bens em flagrante desproporcionalidade.64
Todavia, ainda que se pudesse afirmar que, de fato, o saldo de uma
conta corrente possa efetivamente contaminar-se, restaria saber a respecti-
va extensão desse contágio. A propósito, tratativa mais elaborada pode ser
encontrada em US v. Certain Accounts,65 no qual se pretendia confiscar não
62
804 F. Supp. 444 (E.D.N.Y. 1992). In casu, o governo pretendia o confisco de todo o saldo
de uma conta corrente sob o fundamento de que constituiria propriedade relacionada com
lavagem de dinheiro, mediante invocação da teoria da facilitação, segundo a qual esta ocorre
“quando a propriedade em questão torna menos difícil a atividade criminal subjacente ou
mais ou menos livre de barreiras”. O tribunal registrou que, “quando dinheiro de fontes ilegais
é misturado com dinheiro limpo, os fundos ilegais são lavados e abrigados contra a detecção.
Um método muito comum de lavar dinheiro é a mistura de dinheiro legítimo com ilegítimo.
Os fundos limpos são usados para remover a mácula do dinheiro derivado de fontes ilegais” e
“por isso os fundos legítimos ficam sujeitos ao confisco, uma vez que eles facilitam a ocultação
dos produtos de fontes ilícitas”, mas esse não seria o caso concreto.
63
GORDON, Jon E. Prosecutors who seize too much and the theories they love; money
laundering, facilitation and forfeiture. Duke Law Journal, v. 44, p. 768, 1994-95, em tradução
livre.
64
Nesse sentido, é “inaplicável a pena de perdimento de bens quando há flagrante
desproporcionalidade entre o valor do veículo e o das mercadorias nele transportadas
irregularmente importadas. 2. Agravo regimental não provido” (AgRg AREsp 465.652/PR, rel.
Min. Arnaldo Esteves Lima, 1ª Turma, DJe 25.04.2014).
65
US v. Certain Accounts, 795 F. Supp 391 (S.D. Fla. 1992). Em síntese, buscava-se o confisco
dos saldos de 31 contas correntes, sob o argumento de que consistiriam na estruturação de
operações para evitar o dever de reportar operações financeiras. Além disso, pretendia-se o

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 205


apenas saldos de contas em que os fundos criminosos haviam sido deposi-
tados, mas, também, saldo de outras contas – ditas indiretas – que haviam
transacionado com as primeiras – ditas diretas.
Ao julgar a matéria, o tribunal consignou que, não havendo limites
para a contaminação, a propriedade criminosa seria “como uma doença
contagiosa” em que “cada conta direta poderia contaminar uma conta que
com ela manteve negócios. A conta indireta poderia então passar a infec-
ção para outras contas, e assim ad infinitum. O limite externo dessa teo-
ria seria confinado apenas pela imaginação do autor” e “implicaria uma
metástase sobre todos os bens da pessoa”. “Levando ao extremo a ficção
de que a demanda é contra a propriedade qua propriedade, e não contra
o reclamante, a demanda poderia prosseguir por meses, talvez anos, sem
que se tivesse demonstrado que o correntista tinha qualquer conhecimen-
to da lavagem de dinheiro”. A corte equacionou a matéria afirmando que,
“à medida que a conta em questão se torna mais distante da transação ilegal
inicial, também a causa provável para o confisco passa a ficar atenuada. Este
tribunal entende que o governo deve alegar outros fatos que não apenas o
rastreamento dos cheques emitidos contra uma conta suspeita”.
A propósito, uma das decisões mais esclarecedoras e paradigmáticas
sobre o tema é, sem dúvida alguma, US v. Banco Cafetero Panamá,66 envol-
vendo contas mantidas pelo Banco Cafetero em território americano, recep-
toras de fundos provindos de um banco panamenho, cujos controladores
estavam engajados na mercancia de drogas. Nesse acórdão, alguns métodos
contábeis foram consagrados, sem exclusão de outros, distinguindo-se (i)
contas utilizadas exclusivamente para a venda de drogas e (ii) contas utiliza-
das para venda de drogas juntamente com transações lícitas, ou seja, contas
mescladas.

confisco de outras 27 contas, indiretamente favorecidas com depósitos oriundos das primeiras.
Em sua decisão, consignou o juiz que “o governo pretende o confisco dos fundos em contas nas
quais fundos ilícitos foram negociados sem nada dizer com relação aos saldos dessas contas”.
Ao fundamentar o indeferimento, o tribunal também registrou que “existe uma possibilidade
real de que correntistas inocentes, que tenham recebido depósitos maculados, sejam privados
do uso desses fundos até que possam demonstrar a inocência dos recursos”. O pedido foi
rejeitado “quanto à totalidade dos saldos de todas as contas indiretas; o governo terá o direito
de emendar o pedido (...) para alegar fatos adicionais contra os fundos requeridos, capazes de
dar lugar a uma suspeita razoável de que sejam passíveis de confisco”.
66
US v. Banco Cafetero Panama 797, F. 2d 1154 (2nd Cir. 1986). Sinteticamente, um banco
panamenho, cujos controladores estavam envolvidos no tráfico de drogas, transferiu, pouco
antes de ser dissolvido pela autoridade local, US$ 46.000.000,00 para contas mantidas pelo
Banco Cafetero Panama em uma instituição de Nova Iorque, por meio de cinco outras contas.
O governo pretendia confiscar a íntegra dos respectivos saldos misturados com outros valores.

206 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Com relação às primeiras, afirma o acórdão que se trata da
situação em que um vendedor de narcóticos abre conta bancária e nela
deposita somente dinheiro recebido da venda de drogas. O dinheiro
depositado é substituído por um crédito. Esse crédito, claramente, é
um fruto rastreável (...). Se o vendedor de drogas usa o dinheiro que
recebe para comprar uma barra de ouro ou um carro, o ativo é fruto
rastreável e assim também o é um crédito no banco.
Quanto às segundas, “um contexto mais problemático surge quando
a conta do traficante não é utilizada apenas para depositar o resultado da
venda das drogas, mas tem uma finalidade geral, na qual fundos de transa-
ções legítimas também são depositados e da qual dinheiro é retirado”, justa-
mente o caso de fundos mistos.
Em linha de princípio, à acusação deveria ser permitido comprovar a
mistura por meio das mais diversas técnicas contábeis disponíveis ou de ou-
tros meios dotados de suficiente racionalidade, que determinem as várias
percentagens nos lançamentos a débito de uma conta atribuíveis a recursos
de origem criminosa anteriormente lançados a crédito. Para tanto, foram
concebidas ao menos três técnicas67 que US v. Banco Cafetero Panama aca-
bou por endossar como critérios alternativos, consignando que “o uso das
técnicas contábeis para determinar os vários porcentuais de remessas atri-
buíveis a cada fonte de fundos entrantes apresenta dificuldades conceituais,
haja vista a natureza fungível do dinheiro (...)”,68 pelo que é inatingível a cer-
teza matemática, salvo no seguinte caso: um traficante deposita $ 50.000,00
de fontes ilegítimas e $ 50.000,00 de fontes legítimas em uma conta corren-
te. Somente um saque superior a $ 60.000,00 permitiria garantir, com certe-
za matemática, que $ 10.000,00 necessariamente seriam fundos ilegítimos.
Mas tais situações de laboratório não são as da vida real.
Feito o registro, a primeira técnica é conhecida por (i) “drugs-in,
last-out­” (originário do método last in, first out, LIFO, ou seja, o primeiro
a entrar será o último a sair da conta). Nesse caso, “se $ 100 resultan-
tes da venda de drogas são depositados em uma conta, um dos enfo-
ques consiste em considerar que o fruto está ligado ao crime enquanto
o saldo bancário não ficar abaixo de $ 100”; (ii) “pro rata” (originário
da imputação proporcional de acordo com as frações em cotejo): o bem
criminoso, aqui, seria apurado a partir da razão entre os $ 100 contami-

67
JOHNSON, D. Randall. The criminally derived property statute: constitutional and
interpretive issues raised by 18 U.S.C. § 1957. 34 Wm. & Mary L. Rev. 1291 (1993), p. 1330.
68
Id., p. 1330.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 207


nados na conta corrente e o saldo gerado imediatamente após seu lan-
çamento. Assim, se, com depósito de $ 100 oriundo de fontes ilícitas, o
saldo imediatamente posterior a esse lançamento ascende a $ 1.000,00,
chega-se à conclusão de que 10% de cada débito estarão contaminados
[100x100/1.000=10%], método também conhecido pela regra do saldo
médio; (iii) finalmente, existe o critério “drugs-in, first-out” (originário
do método first-in, first out, FIFO, ou seja, o primeiro a entrar é o primei-
ro a sair da conta). Nesse mesmo exemplo, tão logo se completem débi-
tos totais de $ 100, não remanescerá propriedade criminosa no saldo em
conta corrente, a qual poderá ter então se transferido para outros bens.69
Parece-nos difícil, senão impossível, definir abstratamente situação
que melhor se aplica ao caso concreto, dependendo muito das circunstân-
cias, especialmente a dinâmica dos lançamentos, assim como dos objetivos a
serem considerados.70 Nesse sentido,
o rastreamento de dinheiro ou outros bens fungíveis é problemático,
uma vez que identificar fundos particulares até sua origem criminosa é
praticamente impossível. Para ajudar a resolver esses casos, o Segun-
do Circuito sancionou determinados pressupostos contábeis que a
Acusação pode usar para rastrear fundos de origem ilícita. Um deles,
o “first in, last out”, também designado como “menor saldo interme-
diário”,71 preconiza que, conquanto o saldo de uma conta nas quais
fundos ilícitos tenham sido creditados permaneça mais elevado que
o total desses fundos, a Acusação pode dar por rastreados fundos

69
Para uma maior explicitação, US v. Banco Cafetero Panama 797, F. 2d 1154 (2nd Cir.
1986), que permitiu ao governo adotar, prima facie, o primeiro método. Em artigo ainda em
fase de publicação, examinaremos cada um desses métodos, além de outras construções
assemelhadas, mediante exercícios de aplicação a extratos bancários e movimentações
bancárias hipotéticas.
70
Nesse sentido, em US v. Cosme, 13 Cr. 43 (HB) (S.D.N.Y. Apr. 21, 2014), o réu suscitou
justamente a questão de saber se fundos precedentes às acusações criminais poderiam ser
derivados de atividade criminal. A Corte Distrital valeu-se da abertura concedida em Cafetero:
“Quando alguns fundos em uma conta bancária são ligados à atividade criminosa e outros
não, consultamos Banco Cafetero (...). Todos os fundos reivindicados pelo réu antecedentes à
atividade criminosa foram posteriormente misturados com fundos supostamente derivados
de atividade criminosa e transferidos para outras contas em valores mais baixos do que os
frutos criminalmente derivados. Assim, esses fundos são considerados rastreáveis ​​à suposta
atividade criminosa”. Também em US v. Walsh, 712 F. 3d 119 (2nd Cir. 2013), afirmou-se que
“relevante, aqui, é o critério drugs-in, first-out, que considera como um fruto procedente do
crime qualquer saque, ou qualquer ativo adquirido com esse saque, até o limite do total de
fundos ilícitos depositados”.
71
A rigor, existem diferenças conceituais entre o LIFO e o menor saldo intermediário ou LIBR,
que excedem o objeto deste trabalho.

208 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


iguais a esse montante. Outro, o first in, first out, considera receitas
rastreáveis quaisquer saques, ou quaisquer bens adquiridos com es-
ses saques, até o limite dos valores ilícitos depositados.72
Seja como for, uma teoria da contaminação total – segundo método
do saldo médio (razão entre depósito inquinado e saldo formado) – levaria à
criminalidade do bem ad infinitum – revelando-se desproporcional e pondo
em risco o próprio sistema econômico.73 Conforme justifica Barton em semi-
nal artigo, seria de rigor, antes de mais nada, atentar para o chamado nível
de significação do valor creditado em conta corrente na sua relação com o
saldo bancário imediatamente consolidado: “o caso mais problemático abor-
dado pela doutrina é aquele em que a parte manchada de um bem é insignifi-
cante em relação com a parte limpa”.74 Segundo Barton, haveria ausência de
relevância ou de significação jurídica, chegando-se à descontaminação.75 Es-
pecificamente, para o tratadista, se pode haver a mistura, também pode ha-
ver a diluição – o que parece correto dizer-se – justamente nos casos em que
a propriedade criminosa foi originada em fração não superior a 5% do saldo
ou valor resultante.76 Então, se a relação pro rata (entre o saldo da conta e
o depósito inquinado) revelar-se insignificante, não haveria como sustentar,
validamente, que ainda se está em presença de propriedade criminosa. Bar-
ton, na sua reconstrução, alude a três hipóteses em que a propriedade deixa-
ria de apresentar-se como criminosa77: (a) perda da significância jurídica por

72
US v. Prevezon Holdings Ltd. 122 F. Supp. 3d 57.
73
A propósito, versando sobre o delito de utilizar recursos derivados de crime, tipificado
na seção 1957 da lei americana, D. Randhall Johnson, The criminally derived (...), p. 1291,
destaca o quão pernicioso pode ser aplicar tais dispositivos incriminadores de uma forma
excessivamente ampla – note-se, quando o acusado não seja o mesmo agente da atividade
criminosa precedente –, citando a primeira condenação a esse título, revertida pelos tribunais
superiores, porquanto baseada na aparência de que se tratava de um criminoso.
74
CORDERO, Blanco. El delito de blanqueo de capitales (...), p. 449.
75
Suponha-se que R$ 1.000,00 sejam depositados em uma conta corrente, agregando-
se a um saldo de R$ 100.000,00. Não sendo a lavagem de dinheiro um mecanismo de
reforço à punibilidade do crime antecedente, ressalvada a hipótese de smurfing, ofenderia
a proporcionalidade qualquer tentativa de sustentar a contaminação, ainda que parcial, da
conta receptora e, portanto, do respectivo saldo formado.
76
Marko Voß, Die Tatobjekte der Geldwäsche (...), p. 37.
77
BARTON, Stephan. Das Tatobjekt der Geldwäsche (...), p. 164, afirma: “sempre que o valor
da parte ilícita de um objeto (...) diminui substancialmente, como resultado do valor de seu
processamento, segue-se que o objeto processado não mais pode manter sua significação
como sendo proveniente do crime”. Como exemplo, Barton cita o caso do metal comprado
com produto de crime, empregado na confecção de relógios, em cujo contexto acaba por se
perder.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 209


força da baixa relação entre valor criminoso e não criminoso, (b) perda da
significação jurídica por conta de transformações sucessivas substanciais
da propriedade criminosa e (c) perda da significância jurídica por conta de
depreciação da propriedade criminosa.
A nosso ver, porém, mais apropriado seria aludir à categoria mais geral
da descontaminação, que se subdividiria em (i) descontaminação qualitati-
va – consistente no distanciamento, no ciclo econômico, entre o bem origi-
nariamente derivado da atividade criminosa antecedente e o bem atualmen-
te em consideração, a ser resolvida no plano do nexo de causalidade;78 e em
(ii) descontaminação quantitativa, subdividida em (a) diluição, derivada da
baixa razão, em determinado momento em consideração, entre o montante
da propriedade incriminada e o saldo bancário formado imediatamente após
o lançamento, e em (b) descontaminação por obsolescência,79 derivada da
perda de valor econômico da propriedade criminosa.80
A tese de uma diluição absoluta – sempre que se aluda à mescla de
fundos – não é aceitável, pois o crime redundaria, ao fim e ao cabo, impu-
nível mercê desse habitual recurso. Nos casos de mescla, o acerto parece
estar justamente com a teoria da contaminação parcial, isso por conta das
convenções de que o Brasil é signatário: art. 12.4 de Palermo (incorporada
pelo Decreto nº 5.015/04), art. 31.5 de Mérida (incorporada pelo Decreto
5.678/2006) e art. 5.6.b de Viena (incorporada pelo Decreto 154/91). Todos
esses diplomas, de uma forma geral, determinam que, em se tratando de
transferências bancárias, cabe à acusação demonstrar que a conta de onde
originadas esteja contaminada por depósitos de dinheiro provindos de ati-
vidade criminosa antecedente, ficando a lavagem restrita ao valor crimino-

78
O presente trabalho não cuida do que chamamos de descontaminação qualitativa. Cfr.
BARTON, Stephan. Das Tatobjekt der Geldwäsche (...), p. 160, problematizando a terminologia
da lei penal alemã – “herrürhen”: “surge especialmente a pergunta, quais mecanismos fazem
com que um objeto não mais seja considerado como proveniente de um crime”, impondo-se
definir os limites desse critério de proveniência. Em outras palavras, ainda segundo Barton,
tem-se de perguntar quais transformações sucessivas podem eventualmente depurar esse
caráter criminoso, do contrário a contaminação sempre se propagaria. Tem lugar, neste ponto,
a diferenciação entre precedência e proveniência, sendo a primeira um juízo meramente
cronológico, enquanto a segunda é um juízo essencialmente jurídico, dos quais, todavia, este
trabalho não cuida, concentrando-se mais propriamente na descontaminação quantitativa ou
simplesmente diluição.
79
Id., p. 164, ainda acrescenta a hipótese de perda de significância jurídica do próprio crime
antecedente que gerou a propriedade criminosa.
80
Vale registrar que, nesta sede, nos ocupamos, exclusivamente, da descontaminação
qualitativa por diluição.

210 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


so posto na conta após sua mistura com recursos limpos.81 Assim deve ser
porque não teria cabimento condenação com base em presunção de lava-
gem de dinheiro. Somente se demonstrando que um saldo bancário esteja
previamente contaminado por frutos vinculados a ato criminoso completo
torna-se possível declarar provado o elemento objetivo do tipo, sendo que
a única presunção admitida pela lei aplica-se ao procedimento cível previsto
no art. 4º, § 2º, tendo em vista previsão idêntica da Convenção de Viena (art.
5º, VII),82 limitada aos domínios patrimoniais, como expressamente consta
da Exposição de Motivos.83 Consequentemente, cabe operar com os vários
métodos (first-in, last-out e first-in, first-out) sempre à luz das circunstâncias
do caso concreto,84 com recurso à proporcionalidade, observando-se que
baixas razões poderão significar diluição.

81
Eis a dicção das citadas convenções: Convenção de Palermo: “Art. 12.4. Se o produto do
crime tiver sido misturado com bens adquiridos legalmente, estes bens poderão, sem prejuízo
das competências de embargo ou apreensão, ser confiscados até o valor calculado do produto
com que foram misturados”; Convenção de Mérida: “Art. 31.5. Quando esse produto de delito
se houver mesclado com bens adquiridos de fontes lícitas, esses bens serão objeto de confisco
até o valor estimado do produto mesclado, sem menosprezo de qualquer outra faculdade
de embargo preventivo ou apreensão”; Convenção de Viena: “Art. 5.6 (b) Quando o produto
houver sido misturado com bens adquiridos de fontes lícitas, sem prejuízo de qualquer outra
medida de apreensão ou confisco preventivo aplicável, esses bens poderão ser confiscados até
o valor estimativo do produto misturado”.
82
“Art. 4º (...). § 2º O juiz determinará a liberação dos bens, direitos e valores apreendidos ou
sequestrados quando comprovada a licitude de sua origem”.
83
Reza a Exposição de Motivos da Lei de Lavagem: “66. Na orientação do projeto, tais medidas
cautelares se justificam para muito além das hipóteses rotineiras já previstas pelo sistema
processual em vigor. Sendo assim, além de ampliar o prazo para o início da ação penal, o
projeto inverte o ônus da prova relativamente à licitude de bens, direitos ou valores que
tenham sido objeto da busca e apreensão ou do sequestro (art. 40). Essa inversão encontra-
se prevista na Convenção de Viena (art. 5º, nº 7) e foi objeto de previsão no direito argentino
(art. 25, Lei 23.737/89). 67. Observe-se que essa inversão do ônus da prova circunscreve-se
à apreensão ou ao sequestro de bens, direitos ou valores. Não se estende ela ao perdimento
destes, que somente se dará com a condenação (art. 7º, I). Na medida em que fosse exigida,
para só a apreensão ou o sequestro, a prova da origem ilícita de bens, direitos ou valores,
estariam inviabilizadas as providências, em face da virtual impossibilidade, nessa fase, de tal
prova”.
84
A propósito, conforme se trate de analisar a conta ou os bens em que o saldo se tenha
transposto, um método e outro levarão a consequências muito diferentes. Se os recursos
permanecem mesclados no saldo da conta, o primeiro método potencializa o quantum
contaminado. O último, diferentemente, considera que a parcela criminosa imediatamente
deixou a conta para transformar-se no bem adquirido com o redutor do saldo, descontaminando
a conta, mas contaminando o bem.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 211


5 Transações com propriedades criminosas que não caracterizam
lavagem
Definida a existência de propriedade criminosa, nem por isso toda e
qualquer transação financeira poderá ser caracterizada como lavagem de di-
nheiro, malgrado assim venha ocorrendo no Brasil.
Nesse sentido, manual elaborado pelo Departamento de Justiça
Americano – DoJ consigna, em se cuidando de transações bancárias, que,
nos casos em que as condutas a serem incriminadas como lavagem
de dinheiro ou no caso de perdimento (...) consistam em depósitos
de frutos de crimes antecedentes em uma instituição financeira do-
méstica, cuja conta seja claramente identificável como pertencente
à pessoa que cometeu a atividade criminosa antecedente, nenhu-
ma acusação deverá ser apresentada sem uma consulta prévia com
a seção de Confiscos e Lavagem de Dinheiro. Explicação: uma das
maiores preocupações sobre o uso das leis de lavagem de dinheiro
envolve uma classe de casos normalmente envolvidos como recebi-
mento e depósito. São os casos em que uma pessoa obtém valores de
um crime antecedente especificado que a própria pessoa cometeu e
então deposita esses resultados em uma conta bancária claramente
identificada como pertencendo àquela mesma pessoa. Nesse tipo de
transação, geralmente não concorre o elemento de dissimulação, e a
transação é conduzida de modo que a pessoa possa usar ou desfrutar
dos frutos da atividade criminal antecedente.85
Inúmeros casos seguem essa orientação, consignando que
a aplicação das leis de lavagem de dinheiro em tais situações as trans-
formaria em legislação contra o gasto do dinheiro (United States v.
Sanders, 928 F.2d 940, 946 (10th Cir.), cert. negado, 502 U.S. 845, 112
S.Ct. 142, 116 L.Ed.2d 109 (1991)). O propósito da legislação é alcançar
transações comerciais concebidas, ao menos em parte, para dissimu-
lar a relação do bem adquirido com o agente que fornece os frutos,
bem como que os frutos usados nessa compra foram obtidos de ati-
vidades ilegais. (...) A clara relação entre a transação imobiliária e a
ligação de Rockelman [o acusado] com a propriedade adquirida com
fundos havidos do tráfico nos convence de que a prova não pode
sustentar uma conclusão de que Rockelman tinha a intenção de dis-
simular nos termos exigidos pela lei.86
85
Office of The United States Attorneys, USAM 9-105.000, Money Laundering, 9-105.330, 5, §
Prosecutions in receipt and deposit cases, p. 4.
86
US v. Rockelman, 49 F. 3d 418 (8th Cir. 1995). O acusado adquiriu um bem, colocando-o
diretamente em nome da empresa por ele titulada; no mesmo sentido, US v. Scialabba, 282

212 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Trata-se de uma orientação, aliás, já bem contemplada na jurisprudên-
cia brasileira, segundo a qual são elementos típicos da lavagem de dinheiro
a ocultação e a dissimulação, o que não ocorre em tais circunstâncias, de
modo que a utilização de dinheiro supostamente ilícito, sem intento de dis-
farçá-lo ou ocultá-lo, não preenche os requisitos legais para a imputação,
mas mera consequência lógica e natural da anterior ação criminosa.87
A propósito, o saudoso Ministro Teori Zavascki88 igualmente ensi-

F. 3d 475 (7th Circ. 2002), ao afastar a caracterização do delito em transações inerentes ao


próprio crime subjacente, consignou que, a não ser assim, concluir-se-ia que “cada traficante
de drogas realiza a lavagem de dinheiro utilizando as receitas das vendas para comprar mais
drogas no comércio; que um ladrão de banco perpetra lavagem de dinheiro utilizando uma
parte do resultado do assalto para alugar o carro de fuga a ser usado na próxima empreitada
e assim por diante. Um estelionatário, ao gastar parte do produto do crime para morar e
alimentar-se, a fim de permanecer vivo, também teria praticado lavagem de dinheiro.
Contudo, nenhuma dessas operações envolve transações financeiras para ocultar ou investir
lucros, a fim de evitar a persecução, objetivo normal da lavagem”. Ainda, em US v. Olaniyi-
Oke, 199 F. 3d 767 (5th Cir. 1999), “a aquisição de qualquer ativo com o produto de atividades
ilegais esconde tais recursos, convertendo-os em uma forma diferente e com uma aparência
de maior legitimidade. Mas a exigência de que a transação seja concebida para ocultar
implica que mais do que tal motivação trivial seja provada [para demonstrar o crime]”.
87
A propósito, decidiu o 4º Regional, em acórdão relatado pelo hoje Ministro Néfi Cordeiro:
“(...) 7. No delito de lavagem de dinheiro, tendo o legislador classificado como condutas típicas
o ocultar ou o transformar (dando ao dinheiro ilícito a aparência de lícito pela dissimulação
de sua natureza, origem ou movimentação), a conversão de ativos ilícitos em lícitos não se dá
com a mera aquisição de bens com o produto do crime anterior, mas por sua transformação
falseada em dinheiro lícito. 8. A conduta de pagar contas diretamente, usando dinheiro ilícito,
mas de forma aberta, e não camuflando ou transmudando a natureza do numerário, não se
subsume a qualquer das figuras típicas do crime de lavagem de dinheiro, sendo, no máximo,
pós-fato impunível e natural ao agir desde o início planejado pelo criminoso” (TRF4, ACR
1999.70.00.013518-3, 7ª Turma, D.E. 04.07.2007). Também a Corte Especial do STJ assentou
que o “mero proveito econômico do produto do crime não configura lavagem de dinheiro, que
requer a prática das condutas de ocultar ou dissimular. Assim, não há que se falar em lavagem
de dinheiro se, com o produto do crime, o agente se limita a depositar o dinheiro em conta de
sua própria titularidade, paga contas ou consome os valores em viagens ou restaurantes” (STJ,
APn 458/SP, rel. p/ acórdão Ministro Gilson Dipp, DJE 18.12.2009).
88
Consta do voto do eminente Ministro Teori Zavascki na AP 470-EDI-SEXTOS/MG que o “crime
de ‘lavagem’ ou ocultação de valores (...) se compõe ainda pelo elemento subjetivo, consistente
na especial finalidade do agente de (...) ocultar ou dissimular. (...) Embora seja dispensável
que o agente venha a atingir tais resultados, relacionados à facilitação do aproveitamento
(‘utilização’) de produtos de crimes, é inerente ao tipo que sua conduta esteja direcionada e
apta a alcançá-los. Portanto, as ações de, simplesmente, receber ou ter em depósito valores
que sejam produtos dos crimes antecedentes não são suficientes para a configuração dessa
figura típica. É essencial que tais ações constituam não um fim em si próprias, mas um meio
pelo qual possa o agente lograr êxito em ocultar ou dissimular o aproveitamento dos referidos
bens”.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 213


nou que “as ações de, simplesmente, receber ou ter em depósito valores
que sejam produtos dos crimes antecedentes não são suficientes para a
configuração dessa figura típica”, consignando igualmente o Ministro Néfi
Cordeiro que “[não] se pune o gastar dinheiro do crime, pós-fato impunível
e natural ao agir desde o início planejado pelo criminoso. Pune-se a condu-
ta de lavagem, a transformação dissimulada do ilícito dinheiro em lícito”,
de modo que “gastar dinheiro do crime não configura lavagem de dinheiro,
que exige escondimento do dinheiro ou de sua origem”,89 podendo encon-
trar-se idêntica solução em precedentes da relatoria do Desembargador
Federal João Pedro Gebran Neto, segundo o qual, na “aquisição de bens
duráveis e de fácil liquidez, como relógios, obras de arte e veículos auto-
motores, em que pese poderem caracterizar o crime de lavagem de ativos,
exigem-se elementos outros complementares, como a clara intenção de
dissimular”.90
Nesses casos, malgrado operações possam ser realizadas envolvendo
propriedades criminosas, a redução do saldo bancário ou mesmo o bem em
que este se venha a sub-rogar não consumará o crime de lavagem.

89
TRF4, ACR 1999.70.00.013518-3, 7ª Turma, D.E. 04.07.2007.
90
In verbis: “A aquisição de bens duráveis e de fácil liquidez, como relógios, obras de arte e
veículos automotores, em que pese poder caracterizar o crime de lavagem de ativos, exige
elementos outros complementares, como a clara intenção de dissimular a origem dos recursos
ou a aquisição de bens em nome de terceiros ou nome falso. Hipótese em que o conjunto
probatório não atesta cabalmente o cometimento do delito. (...)” (TRF4, ACR 0011147-
95.2006.404.7200, 8ª Turma, relator João Pedro Gebran Neto, D.E. 22.01.2015). Ainda,
afastando a lavagem, à míngua da ocultação: “Apelação. Lavagem de capitais. Provas suficientes
da origem ilícita do dinheiro apreendido. Ausência de elementos a demonstrar a finalidade
de ocultar ou dissimular o emprego do dinheiro. Mera posse do valor que não caracteriza o
crime de branqueamento ou ocultação de dinheiro. Apelo provido” (TJSP, Ap. Cr. nº 0006785-
79.2008.8.26.020, relator Guilherme de Souza Nucci, 16ª Câmara de Direito Criminal, j.
14.10.2014); “Apelação. Lavagem de dinheiro. Compras realizadas de forma aparentemente
normal, que, ao que tudo indica, nem sequer procuraram dissimular a origem espúria do
dinheiro utilizado. Inexistência de comprovação do dolo necessário à caracterização do delito.
Absolvição. Recurso provido” (TJSP, Ap. Cr. nº 0016112-87.2008.8.26.0576, relator Francisco
Bruno, 10ª Câmara de Direito Criminal, j. 13.09.2012); “(...) 5. A simples prática de negócios
jurídicos que envolvam a disposição de bens e valores do patrimônio do agente, ainda que
parcialmente constituído por proveito da prática de infrações penais, ou o seu investimento
em outras atividades com o intuito exclusivo de gerar mais lucros, não caracteriza o crime do
art. 1º da Lei 9.613/98, sendo imprescindível à configuração da infração penal a demonstração
do elemento subjetivo do tipo de ocultar, dissimular a origem do dinheiro, o que não ocorre
na hipótese dos autos (...)” (TRF3, ACR 00048423120004036102, rel. Des. Federal Cotrim
Guimarães, 2ª Turma, e-DJF3 07.08.2014).

214 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Conclusões: etapas necessárias à verificação e ao isolamento da
propriedade criminosa
Do que acaba de ser examinado, algumas conclusões práticas podem
ser extraídas, notadamente quando se cuide de examinar a incriminação de
transferências bancárias sob a perspectiva do crime de lavagem de dinheiro.
Em primeiro lugar, parte-se da identificação de uma propriedade cri-
minosa, cuja ideia remonta aos navios envolvidos em atos de pirataria, con-
siderados como propriedades culpadas (Harmony v. USA e Palmira v. USA91).
Trata-se de uma determinação jurídica92 que ainda não envolve o exame de
elementos subjetivos, como a intenção ou o desígnio de praticar ou não um
crime (Regina v. Loizou,93 Kensington Intl. Ltd. v. Republic of Congo,94 Regi-
na v. Geary,95 Regina v. Amir e Akhtar96), caso em que já se estaria avaliando
o tipo subjetivo da lavagem.
Em segundo lugar, especial atenção deve ser dada à verificação do
momentum a partir do qual os produtos de um crime foram gerados, vis-à-vis
da operação bancária incriminada. Em outros termos, compete ao intérpre-
te, uma vez identificada uma propriedade criminosa como objeto da transa-
ção em exame, definir o ponto em que o bem passou a revestir essa qualifi-
cação jurídica. Passa-se, pois, a um segundo momento de verificação, a ser
realizado no interior de uma propriedade já definida como criminosa. Porém,
como se trata da res enquanto tal, e não do desígnio do agente ao empregá
-la em uma transação financeira, devem-se manter tais questões (objetivas e
subjetivas) em planos distintos. Nesse ponto, uma plêiade de combinações,
nem todas criminosas do ponto de vista da lavagem, pode suceder.
Nesse sentido, é perfeitamente possível a ocorrência de (i) transferência
de propriedade não criminosa com procedimentos de ocultação ou dissimula-
ção (US v. La Brunerie,97 Anderson v. Smith Field Foods, Inc.,98 AP nº 470/MG99); (ii)
transferência de propriedade criminosa sem procedimentos de ocultação ou

91
Harmony, 43 US at 233-34 (1844); Palmyra, 12 Wheat. 1 (1827).
92
A rigor, entendemos que se trata de uma questão de direito ou, dependendo das
circunstâncias, de uma questão mista. Sobre as questões mistas, discorremos em KNIJNIK,
Danilo. O recurso especial e a revisão da questão de fato pelo Superior Tribunal de Justiça.
Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 151.
93
R. v. Loizou [2005] EWCA Crim 1579, [2005] 2 Cr. App. R. 37.
94
Kensington Intl Ltd. v. Republic of Congo [2008] 1 WLR 1144.
95
Geary, R. v. Regina [2010] EWCA Crim 1925.
96
Regina v. Amir e Akhtar [2011] EWCA Crim 146.
97
US v. LaBrunerie, 914 F. Supp. 340 (W.D. Mo. 1995).
98
Anderson v. Smithfield Foods, Inc., 209 F. Supp. 2d 1270 (M.D. Fla. 2002).
99
AP 470 EI-décimos sextos, relator p/ acórdão Min. Roberto Barroso, Pleno, j. 13.03.2014.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 215


dissimulação (US v. Olaniyi-Oke,100 US v. Scialabba,101 US v. Rockelman, 49 F. 3d
418,102 Ação Penal 458/SP,103 ACR nº 1999.70.00.013518-3, 1999.70.00.013518-
3,104 0011147-95.2006.404.7200, 0006785-79.2008.8.26.020,105 0016112-
87.2008.8.26.0576,106 00048423120004036102107); (iii) transferência de pro-
priedade ainda não tornada criminosa no patrimônio do ordenante, mas que
no patrimônio do destinatário poderá assumir essa condição (US v. Manka-
rious,108 US v. Johnson,109 US v. Christo,110 HC nº 0014358-23.2015.4.03.0000/
SP111). Em todas as hipóteses aqui mencionadas, não se poderá aludir à lava-
gem de dinheiro pelo ordenante ou mesmo pelo destinatário, impondo-se
nova e idêntica análise quanto ao último, a partir do saldo formado em seu
patrimônio ou conta corrente.
Em terceiro lugar, nessa atividade de rastreamento, eventual inexis-
tência de fontes legítimas de renda como suporte de uma transação bancária
ou da formação do saldo respectivo não autoriza, por si só, o estabelecimen-
to de uma presunção de criminalidade dos valores transacionados. Se é reco-
mendável seu rastreamento completo (ACR 0042105-10.2005.404.7100112),
também não é imprescindível a vinculação da propriedade criminosa a uma
receita derivada de específica operação criminosa no contexto do crime an-
tecedente (US v. Blackman,113 US v. Massac114). A criminalidade dos fundos
poderá, eventualmente, ser inferida a partir da totalidade das circunstân-

100
US v. Olaniyi-Oke, 199 F. 3d 767 (5th Cir. 1999).
101
US v. Scialabba, 282 F. 3d 475 (7th Circ. 2002).
102
US v. Rockelman, 49 F. 3d 418 (8th Cir. 1995).
103
STJ, APn 458/SP, rel. p/ acórdão Ministro Gilson Dipp, Corte Especial, DJE 18.12.2009.
104
TRF4, ACR 1999.70.00.013518-3, 7ª Turma, relator Ministro Néfi Cordeiro, D.E. 04.07.2007.
105
TJSP, ACR nº 0006785-79.2008.8.26.0201, relator Guilherme de Souza Nucci, 16ª Câmara de
Direito Criminal, j. 14.10.2014.
106
TJSP, ACR nº 0016112-87.2008.8.26.0576, relator Francisco Bruno, 10ª Câmara de Direito
Criminal, j. 13.09.2012.
107
TRF3, ACR 00048423120004036102, rel. Des. Federal Cotrim Guimaraes, 2ª Turma, e-DJF3
07.08.2014.
108
US v. Mankarious, 151 F. 3d. 694, 705 (7th Cir. 1998).
109
US v. L. Johnson, 971 F. 2d 562 (10th Circ. 1992).
110
US v. Christo, 129 F. 3d 578 (11th Circ. 1997).
111
HC nº 0014358-23.2015.4.03.0000/SP, 1ª Turma, rel. Des. Federal José Lunardelli, j.
30.05.2017.
112
TRF4, ACR 0042105-10.2005.404.7100, Oitava Turma, relator João Pedro Gebran Neto, D.E.
22.01.2015.
113
US v. Blackman, 904 F. 2d 1250 (8th Circ. 1990); United States v. Massac, 867 F. 2d 174 (3rd
Cir. 1989); US v. Matra, 841 F. 2d 837, 841 (8th Cir. 1988).
114
US v. Massac, 867 F. 2d 174 (3rd Cir. 1989).

216 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


cias, com associação da ausência de explicação plausível para a detenção de
grandes somas monetárias, de forma geral, com fatos muito contundentes,
de forma específica, acerca do delito antecedente e de sua potencialidade
geradora de recursos (US v. Blackman,115 US v. Matra,116 US v. Massac,117 ACR
5037102-80.2014.404.7000,118 ACR 00012769820054036005119).
Em quarto lugar, cuidando-se de bens infungíveis, a verificação não
reclamará grandes sofisticações. Porém, não é o que sucede em se tratan-
do de dinheiro e, mais ainda, de dinheiro representado por saldo bancário.
Aqui vêm ter lugar operações adicionais bastante delicadas. Com efeito, o
saldo bancário nada mais significa que o resultado cumulativo e dinâmico
de todas as transações que afetam uma conta corrente em um dado mo-
mento cronológico considerado (US v. Banco Cafetero Panama120). A rigor,
a própria movimentação bancária já representaria uma primeira camada de
sub-rogação, pois não mais se trata de encontrar as cédulas que o criminoso
transferiu ao banco, senão que um direito de crédito contra a instituição
depositária, não havendo, evidentemente, direito de sequela em relação ao
papel-moeda entregue ao caixa (US v. Johnson121).
Como o saldo bancário já representa forma de sub-rogação, pode-se
compreendê-lo como a primeira fase de um longo processo entre conta-
minação e descontaminação. Porém, no momento em que fundos limpos
e sujos se encontram no saldo – ambos compondo o montante disponível
–, a localização da propriedade criminosa dependerá de verificações cada
vez mais complexas, atinentes à dinâmica da mescla nos diversos estágios
de desenvolvimento de saldo em operações interbancárias, cujo limite final

115
US v. Blackman, 904 F. 2d 1250 (8th Circ. 1990); US v. Massac, 867 F. 2d 174 (3rd Cir.
1989); US v. Matra, 841 F. 2d 837, 841 (8th Cir. 1988). Para maiores detalhes, v. supra, com
associações entre falta de justificativa para detenção de valores e apreensão de volume de
drogas compatível com mercancia ou apreensão de livro-razão contabilizando venda de
drogas. Em qualquer caso, entendemos que o apelo à totalidade das circunstâncias deve partir
de bases bastante sólidas a demonstrar que o crime antecedente tem caráter tal que compila
à inferência de que os fundos se originaram de sua prática. A prova, nesse sentido, deve impor
uma tal conclusão.
116
US v. Matra, 841 F. 2d 837 (8th Circ. 1988).
117
US v. Massac, 867 F. 2d 174 (3rd Cir. 1989).
118
TRF4, ACR 5037102-80.2014.404.7000, 7ª Turma, relatora Claudia Cristina Cristofani, j.
18.11.2015.
119
TRF3, ACR 00012769820054036005, 2ª Turma, relator Des. Federal Henrique Herkenhoff,
DJU 11.09.2008.
120
US v. Banco Cafetero Panama 797, F. 2d 1154 (2nd Cir. 1986).
121
US v. Johnson, 971 F2d 562 (10th Circ. 1992).

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 217


será a descontaminação total por diluição (US v. Certain Accounts;122 US v. All
funds on deposit123).
Em quinto lugar, confirmada a mistura de fundos, o intérprete terá
de verificar que fundos ilícitos remanescem na conta e se, eventualmente,
já não pode ter ocorrido diluição. Em outras palavras, deve detectar o mo-
mentum em que a contaminação ocorreu, até encontrar seu epílogo com a
descontaminação, deixando de ter relevância jurídico-penal, caso já imple-
mentada.
A propósito, a teoria da descontaminação é uma necessidade imposta
pelo ciclo econômico e, para efeitos didáticos, propomos sistematizá-la em
(a) descontaminação qualitativa e (b) descontaminação quantitativa, esta
última (b.1.) por obsolescência ou (b.2.) diluição.124 De fato, não sendo viável
a adoção de uma teoria da contaminação total e irrestrita, torna-se neces-
sário operar com limites, não raro dotados de alguma subjetividade (p. ex.,
Barton sugere que uma razão inferior a 5% indique a descontaminação da
conta125). Ademais, mesmo que o julgamento de um caso concreto não exija
maior precisão sobre a ocorrência ou não desse fenômeno, tal determinação
terá relevo quando menos na dosimetria da pena e, certamente, quanto ao
objeto do perdimento.
Nesse sentido, são três os principais métodos financeiros propos-
tos para detectar o momentum em que uma conta bancária poderá ter
alcançado a descontaminação, bem como para quantificar os saldos impu-
ros existentes em uma conta mista, a saber: last-in, first-out (LIFO) ou firs-
t-in, first-out (FIFO), tratando-se de aquisições ou de manutenção de saldos
bancários; e pro rata, sem prejuízo, porém, de outras metodologias que se
apresentem dotadas de racionalidade e consistência (US v. Banco Cafetero

122
US v. Certain Accounts, 795 F. Supp. 391 (1992).
123
804 F. Supp. 444 (E.D.N.Y. 1992).
124
Neste artigo, cuidamos apenas da descontaminação quantitativa ou diluição.
125
BARTON, Stephan. Das Tatobjekt der Geldwäsche (...), p. 164, alude à diluição nos casos
de baixa relação entre os fundos limpos e aqueles maculados, pois nesse caso os objetivos
da legislação não seriam atingidos. Empregando o conceito de nível de significância, sustenta
que 5% seria o limite abaixo do qual a diluição ocorre: “então, se um objeto não ultrapassa
esse nível”, careceria de significância e já não se poderia aludir a uma propriedade criminosa.
Porém, ao fazer aplicação da tese, verifica-se que na verdade Barton inclui uma espécie de
juízo de valor: supondo-se a aquisição de um veículo familiar por $ 30.000, em cujo pagamento
o produto da droga representa $ 500, ou seja, 1,66%, esse bem não seria uma propriedade
criminosa. Porém, supondo-se a aquisição de um carro esportivo de luxo, a $ 300.000, em cujo
pagamento o produto da droga representa $ 5.000, a despeito de ambos significarem 1,66%
do preço, afirma Barton que, neste último caso, “apesar de em ambos os casos a relação entre
dinheiro limpo e sujo ser igual”, o bem seria uma propriedade criminosa.

218 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Panama,126 US v. Cosme,127 US v. Prevezon Holdings Ltd.128), cuja adoção de-
penderá das circunstâncias de cada caso concreto, haja vista que esse apa-
rato conceitual objetiva, ao fim e ao cabo, determinar se o bem ou o saldo
já não terá alcançado o estado da descontaminação em ciclos mais distantes
do processo econômico.
Como conclusão, portanto, afirma-se que a demonstração da lavagem
de dinheiro, a parte objecti, depende (i) de uma verificação que se inicia, pro-
cessualmente e de forma objetiva, com a identificação de uma propriedade
criminosa, (ii) passando pela definição do momentum inicial e final em que
a res assumiu ou perdeu essa qualificação, desde que (iii) constatado o de-
sígnio de dissimulação ou ocultação, (iv) correlacionando a propriedade cri-
minosa com o momentum da operação financeira incriminada e finalmente
(v) verificando-se, sempre que necessário, os limites iniciais e finais dos pro-
cessos de contaminação e descontaminação de saldos bancários, mediante o
emprego de técnicas razoavelmente sustentáveis do ponto de vista contábil
– dentre as quais as metodologias first-in, first out (FIFO), last-in, first-out
(LIFO) e pro rata – sob pena de esse delito, ao fim e ao cabo, transformar-se
em via transversa de recrudescimento da punibilidade do próprio crime an-
tecedente (US v. Edgmon129), o que não se mostra adequado.

126
US v. Banco Cafetero Panama 797, F. 2d 1154 (2nd Cir. 1986).
127
US v. Cosme, 13 Cr. 43 (HB) (S.D.N.Y. Apr. 21, 2014).
128
US v. Prevezon Holdings Ltd. 122 F. Supp. 3d 57.
129
US v. Edgmon, 952 F. 2d 1206 (10th Cir. 1991).

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 219


220 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8
O direito de superfície na Alemanha e o seu
caráter social*1
Leonardo Estevam de Assis Zanini
Juiz Federal, Professor Universitário, Pós-Doutor em Direito Civil pelo Max-Planck
-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Alemanha), Pós-Doutor
em Direito Penal pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales
Strafrecht (Alemanha), Doutor em Direito Civil pela USP, com estágio de doutorado
na Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha)

Resumo
O artigo aborda os aspectos mais relevantes do direito de superfície
na Alemanha, dando enfoque à sua função social. Inicia as investigações com
um breve estudo histórico, no qual são destacadas as particularidades do seu
desenvolvimento. Realiza um exame da matéria na Alemanha, com destaque
para alguns pontos, como natureza jurídica, utilidade prática, áreas de utili-
zação, caráter social, constituição, transferência e extinção desse direito. Por
fim, o trabalho questiona a não utilização do instituto no Brasil, o que pode
ser repensado se considerarmos o exemplo alemão, em especial no que toca
ao seu possível aspecto social.
Palavras-chave: Direito de superfície. Direitos reais. Direito alemão.
Função social.
Abstract
The article discusses the most important aspects of the above-ground ri-
ghts in Germany by focusing its social function. It initiates the investigations with
a brief historical study, in which are highlighted the peculiarities of its develop-
ment. The work conducts an examination of the matter in Germany, highlighting
some points such as: legal nature, practical use, areas of use, social character,
establishment, transfer and extinction of that right. Finally, the work questions
the non-use of the institute in Brazil, which can be rethought if we consider the
German example, especially with regard to its possible social aspect.
Keywords: Above-ground rights. Real rights. German law. Social func-
tion.

*1
O presente trabalho foi elaborado durante pesquisa de pós-doutorado no Max-Planck-
Institut für ausländisches und internationales Privatrecht e revisado pelos Drs. Jan Peter
Schmidt e Anton Geier.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 221


Sumário: Introdução. 1 Histórico. 1.1 Das origens romanas ao final do
século XIX. 1.2 Da entrada em vigor do Código Civil alemão à Lei do Direito de
Superfície. 2 Caráter social. 3 Outras áreas de utilização. 4 Significação práti-
ca. 5 Natureza jurídica. 6 Conceito. 7 Definição de construção e de edifício. 8
A superfície e outros institutos similares. 9 Objeto (Belastungsgegenstand).
10 Conteúdo legal (Gesetzlicher Inhalt). 11 Conteúdo contratual (Vertragli-
cher Inhalt). 12 Surgimento e transferência (Entstehung und Übertragung).
13 Tratamento semelhante ao do direito de propriedade. 14 Renda do direito
de superfície (Erbbauzins). 15 Término do direito de superfície (Beendigung
des Erbbaurechts). 15.1 Rescisão (Aufhebung). 15.2 Extinção por decurso de
prazo (Zeitablauf). 15.3 Reversão (Heimfallrecht). 15.4 Destruição da edifica-
ção (Untergang des Bauwerks). Considerações finais. Bibliografia.
Introdução
O presente artigo objetiva apresentar breves considerações sobre o
direito de superfície na Alemanha, examinando seus aspectos mais relevan-
tes. Não se trata, obviamente, de uma análise exaustiva ou minuciosa do
tema, o que é feito pela doutrina alemã em trabalhos que consomem, muitas
vezes, mais de quinhentas páginas. De qualquer forma, nosso estudo dará ao
leitor uma visão geral desse instituto, permitindo também sua comparação
com a legislação brasileira.
A proposta decorre da curiosidade de se saber como o direito de su-
perfície é regulado e utilizado em um ordenamento jurídico que já o conhece
há muito tempo. Tal curiosidade deve-se ao fato de que, em nosso país, dada
a sua recente reintrodução na legislação civil, a utilidade prática do instituto
ainda não se revelou.
A falta de relevância prática pode decorrer de diversos fatores,
como o seu desconhecimento pela população, a ausência de tradição na
sua utilização, ou mesmo por desconfiança, pelo fato de criar um direito
real sobre um terreno alheio, que certamente dá muitas garantias ao su-
perficiário.
Diferentemente do Brasil, na Alemanha, como veremos, a superfície
não é um instituto sem utilização, existindo um número considerável de imó-
veis construídos sobre terrenos de terceiros. Além disso, é de se notar que
ela foi um instrumento fundamental para a organização de espaços urbanos,
para a reconstrução do país após as duas grandes guerras, bem como para o
cumprimento da função social da propriedade.
Desse modo, acreditamos que algumas considerações a respeito do
direito de superfície na Alemanha podem permitir reflexões acerca do papel

222 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


desse instituto não somente no âmbito jurídico brasileiro, mas também no
que toca à sua possível utilização socioeconômica.
1 Histórico

1.1 Das origens romanas ao final do século XIX


O direito de superfície, presente no Código Civil brasileiro de 2002
(arts. 1.369 a 1.377) e no ordenamento jurídico de muitos países ocidentais,
não é nenhuma novidade. Suas origens remontam ao Direito Romano, que
previa o instituto da superfícies.
Originariamente, a superfícies não era um direito real, mas sim uma
espécie de contrato de locação por longo prazo, que tinha como partes
Roma e um particular (perpetuarius), objetivando a regulação das relações
decorrentes de construções que esse particular havia erigido em solo público
(superficiariae aedes), o que incluía o pagamento de uma contraprestação,
chamada de solarium. Para imóveis rurais também havia um instituto corres-
pondente, denominado ager vectigalis.1
Entretanto, com o passar do tempo, o instituto, concebido inicialmen-
te como um contrato integrante dos direitos obrigacionais (pessoais), passou
a receber, por obra pretoriana, proteção dos interditos, tornando-se, paula-
tinamente, um direito real.
Na Idade Média, a superfície, apesar de conhecida, não foi muito uti-
lizada, dando espaço ao desenvolvimento de outros institutos muito próxi-
mos, como é o caso da chamada “städtische Bauleihe” (ou Bodenleihe).2 Tal
instituto jurídico foi bastante importante para o desenvolvimento de muitas
cidades alemãs, possibilitando a concessão de um direito real sobre um ter-
reno, uma espécie de propriedade útil (dominium utile) sobre a construção
nele realizada, surgindo como contrapartida o pagamento de uma prestação,
normalmente anual. Esse direito era transmissível por herança, mas não po-
dia ser alienado.3
A despeito da semelhança com a superfície, assevera-se que a Bau-
leihe surgiu pelo fato de que as casas na Alemanha eram consideradas como
propriedade distinta do solo, como bens móveis. E isso se explica porque,
na maioria das vezes, eram construídas em madeira e tinham poucas fun-
dações, o que permitia que fossem desmontadas e construídas em outros

1
BALLIF, Alban. Le droit de superfície: eléments réels, obligations propter rem et droits
personnels annotés. Zürich: Schulthess, 2004. p. 1.
2
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8.
ed. Düsseldorf: Werner, 2001. p. XXI.
3
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts. p. 13.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 223


lugares. Por consequência, dada a facilidade de retirada da casa, o instituto
da superfície perdia a razão de existir.4
Mais tarde, com o processo de recepção do direito romano na Alema-
nha (Rezeption des römischen Rechts), o princípio da acessão, que tinha se
perdido, passou a ser aplicado a tudo aquilo que se ligava ao solo de maneira
durável (superfícies solo cedit), particularmente às plantações, e não somen-
te às construções.5
Em função da mudança, foi incorporada a superfícies romana ao direi-
to vigente, mas houve uma parcial mistura do instituto romano com a “städ-
tische Bauleihe”.6 Assim, a partir da fusão entre o instituto romano e o ger-
mânico, surgiram direitos (híbridos) que receberam várias denominações,
como Superfiziarrecht, Platzrecht, Baurecht ou Kellerrecht.7, 8
Com a Revolução Francesa, as raízes romanas da propriedade foram
recobradas, passando-se a uma concepção individualista. Em virtude des-
sa concepção, o direito de superfície foi visto como um corpo estranho e
colocado em segundo plano, uma vez que as ideias revolucionárias não se
adaptavam a qualquer instituto que remetesse ao período medieval: ao di-
reito feudal e aos seus privilégios. A dogmática da época era contra institutos
jurídicos que desmembrassem o direito de propriedade,9 como era feito
na Idade Média, o que levou à utilização bastante reduzida da superfície no
século XIX.10, 11

4
BALLIF, Alban. Le droit de superfície. p. 2.
5
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8.
ed. Düsseldorf: Werner, 2001. p. XXI.
6
DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB:
Sachenrecht. Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004. v. 3. p. 1.394.
7
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht.
Berlin: Sellier, 2009. p. 4.
8
Vale notar que, no âmbito dos países de língua alemã, o instituto da superfície não tem
denominação uniforme, diferentemente do que ocorre nos países de língua neolatina. Na
Áustria, por exemplo, o instituto é denominado Baurecht (IRO, Gert. Bürgerliches Recht.
Sachenrecht. Wien: Springer, 2000. v. IV. p. 173).
9
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts. p. 14.
10
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht.
Berlin: Sellier, 2009. p. 4.
11
O mesmo não ocorreu, por exemplo, na Inglaterra, onde houve a expansão de instituto com
raízes semelhantes, a chamada “building lease” (OEFELE, Helmut Freiherr von. Gesetz über
das Erbbaurecht. In: Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 5. ed. München:
C.H. Beck, 2009. v. 6. p. 1.505).

224 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


1.2 Da entrada em vigor do Código Civil alemão à Lei do Direito de
Superfície
A despeito da orientação francesa pregando sua abolição, o Código
Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB), em vigor desde 01.01.1900,
não chegou a excluir a superfície de suas disposições. Entretanto, a matéria
foi tida pela codificação como sem importância, sobretudo como um corpo
estranho no âmbito da propriedade, tendo sido regulamentada de forma in-
completa nos §§ 1.012 a 1.017 do BGB.12
Contudo, após a entrada em vigor do BGB, houve, no início do século XX,
um grande aumento da população, o que conduziu, consequentemente, a uma
elevação na demanda por moradias e a uma valorização do preço dos imóveis.
Em função dessas mudanças socioeconômicas, viu-se a necessidade da utiliza-
ção do instituto da superfície (Erbbaurecht), que na prática não vinha encontran-
do uso, para o combate à especulação dos preços dos imóveis, bem como para
dar oportunidade à população mais carente de adquirir uma propriedade.13
Assim sendo, como a regulamentação pelo BGB era insuficiente, prati-
camente não permitindo o uso do instituto, a única solução encontrada para
resolver o problema foi a elaboração de uma nova legislação para cuidar
de toda a matéria atinente ao direito de superfície. Com isso, os §§ 1.012 a
1.017 do BGB foram substituídos pela Ordenança sobre o Direito de Superfí-
cie (Verordnung über das Erbbaurecht – ErbbauVO), que entrou em vigor em
22.01.1919 e regulou a matéria de forma detalhada.14
De qualquer forma, conforme o § 38 da referida legislação, os §§ 1.012
a 1.017 do BGB continuaram em vigor, particularmente no que toca às super-
fícies constituídas até a entrada em vigor da ErbbauVO. Posteriormente, com
uma Lei de 23.11.2007, houve a alteração da denominação da ErbbauVO,
que passou a ser chamada de Lei do Direito de Superfície (Erbbaurechtsge-
setz – ErbbauRG). Contudo, a alteração promovida foi apenas no nome do
instituto, não sendo realizada nenhuma reforma no conteúdo propriamente
dito da legislação.15
2 Caráter social
O direito de superfície foi estabelecido na Alemanha com a finalidade
de promover a construção de moradias, particularmente para as classes so-

12
OEFELE, Helmut Freiherr von. Gesetz über das Erbbaurecht. In: Münchener Kommentar
zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 5. ed. München: C.H. Beck, 2009. v. 6. p. 1.505.
13
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts. p. 14.
14
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015. p. 599.
15
BREHM, Wolfgang; BERGER, Christian. Sachenrecht. p. 382.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 225


ciais menos favorecidas, e também como instrumento de combate à especu-
lação imobiliária.16
Nessa linha, o direito de superfície tem considerável importância so-
cial, uma vez que permite a construção de casas para moradia, sem que haja
necessidade de dispêndio de dinheiro para a aquisição do terreno. Assim, a
pessoa pode deixar de empregar o capital na aquisição do terreno e, em con-
trapartida, simplesmente paga uma espécie de remuneração (Erbbauzins)
correspondente apenas ao valor da utilização do terreno.17 Logicamente
referida remuneração também não pode ter caráter especulativo, devendo
estar ao alcance daqueles que pretendem construir seu imóvel.
Com isso, há uma redução no custo total que seria empregado na
aquisição de uma casa, visto que aquele que pretende realizar a construção
não precisará se privar de suas economias com a compra do terreno, neces-
sitando se preocupar apenas com a construção de sua moradia.18 E, mesmo
no que toca à construção, é interessante observar que na Alemanha, como
regra, é possível a obtenção de financiamento com taxas de juros bem redu-
zidas, muito diferentes das cobradas no Brasil.
Vale ainda notar que a propriedade da edificação não está ligada, pelo
menos do ponto de vista jurídico, à propriedade do terreno. Assim sendo,
tanto o proprietário do terreno onerado como o superficiário participam da
valorização imobiliária proporcionada pela construção.19
Ademais, em razão de eventual contratação por um prazo bastante
amplo, o superficiário chega mesmo a ter a impressão de que é o proprietá-
rio não somente da edificação, mas também do terreno, já que muitas vezes
o acordo pode vigorar por duas ou três gerações.20
Outrossim, na hipótese de concessão estatal do direito de superfície,
com o decurso do prazo da contratação, é possível que o terreno venha a ter
outra finalidade pública, isto é, a construção que lá ficou pode ser posterior-
mente utilizada pelo ente estatal, por exemplo, para ser sede de um órgão
público. Ainda, a superfície pode ser renovada em condições favoráveis, sem
ser considerada a sua valorização.
Por outro lado, é de se notar que, na Alemanha, os governos locais
também passam por dificuldades orçamentárias, de modo que não é tarefa
fácil a aquisição de grandes áreas, relativamente caras, para o posterior es-

16
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts. p. 15.
17
BREHM, Wolfgang; BERGER, Christian. Sachenrecht. p. 382.
18
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 379.
19
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015. p. 599.
20
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 379.

226 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


tabelecimento do direito de superfície em favor daqueles que estão incluídos
na política habitacional. Isso sem falar na necessidade do estabelecimento
de remuneração razoável pelo direito de superfície.21
Por conseguinte, ainda que existam dificuldades, não se pode deixar
de apontar a importância da superfície na facilitação do acesso à moradia,
bem como na organização da política urbana, em função do loteamento de
imóveis para tal finalidade. Desse modo, a concessão do direito de superfí-
cie continua, na atualidade, tendo significação social na Alemanha, havendo,
nesse sentido, especial atenção dos governos locais e das instituições reli-
giosas.22
3 Outras áreas de utilização
Como foi visto, após a entrada em vigor da Ordenança sobre o Direito
de Superfície (ErbbauVO), iniciou-se a concessão desse direito, principalmen-
te por parte dos entes estatais e de instituições religiosas, que, em razão de
considerações de ordem social, procuraram auxiliar famílias carentes a ter
um imóvel para moradia.23
Vale notar, entretanto, que o instituto não ficou limitado à construção
de moradias, sendo possível sua instituição para construção de áreas, por
exemplo, para prática de esportes, com fins comerciais ou industriais, bem
como para instituições científicas ou de ensino.24
Aliás, nos casos em que normalmente o poder público brasileiro reali-
za uma contratação por um longo prazo, cedendo um terreno em comodato
para determinada instituição, na Alemanha temos, na mesma situação, a uti-
lização do direito de superfície, que dá maior proteção para aquele que irá
realizar a construção no terreno, isto é, há maiores garantias por se tratar de
um direito real, e não meramente obrigacional.25
Ademais, a superfície também é utilizada por particulares que querem
aproveitar economicamente seus terrenos, permitindo, assim, a realização
de construções para fins não somente residenciais, mas também comerciais
ou industriais,26 como é o caso da utilização de um terreno para construção

21
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts. p. 15.
22
DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB:
Sachenrecht. Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004. v. 3. p. 1.394.
23
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015. p. 599.
24
BREHM, Wolfgang; BERGER, Christian. Sachenrecht. p. 383.
25
Nesse ponto, podemos citar, por exemplo, o caso do Max-Planck-Institut für ausländisches
und internationales Privatrecht, que recebeu o direito de superfície sobre um terreno da
municipalidade de Hamburgo para a edificação de sua sede.
26
BAUR, Fritz; STÜRNER, Rolf. Sachenrecht. 18. ed. München: C.H. Beck, 2015. p. 387.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 227


de usinas de energia eólica ou para a edificação de um centro de compras.
Dessarte, a superfície pode ser utilizada não somente para construção
de moradias, mas para todo tipo de edificação a ser realizada em terreno
alheio, tendo relevância tanto pelo seu aspecto social como pelo econômico.
4 Significação prática
O direito de superfície é um instituto que encontra reflexo no tráfego
jurídico alemão. Em um primeiro momento, houve o aumento de sua utiliza-
ção no início do século XX, em função da demanda por moradias. Posterior-
mente, houve forte expansão da sua utilização no período que se seguiu ao
término da Segunda Guerra Mundial, em virtude dos trabalhos de reconstru-
ção do país.27
De fato, conforme dados oficiais relativos a pesquisas realizadas nos
registros imobiliários dos estados da Baviera e de Hessen, em 1970 existiam
39.278 direitos de superfície na Baviera, enquanto que Hessen contava com
19.556. As pesquisas ainda apontaram que, nos livros de registro de imóveis,
o volume do direito de superfície correspondia a 1,7% das propriedades na
Baviera e a 1,41% em Hessen. Ademais, em outra pesquisa, realizada em
bancos hipotecários (Hypothekenbanken), foi verificado que 3% do total dos
empréstimos foram realizados para fins de superfície.28
Outrossim, a importância do instituto fica ainda mais evidente quando
nos deparamos com um estudo da “Initiative Erbbaurecht”, de 2008, o qual
apontou que cerca de 5% das áreas de moradia na Alemanha foram consti-
tuídas com a existência do direito de superfície. E a expansão tem contado
mais recentemente com áreas cada vez maiores e com a concessão não ape-
nas pela Igreja e por entes estatais ou ligados ao Estado, mas também por
proprietários particulares.29
Por conseguinte, o direito de superfície na Alemanha não é um insti-
tuto sem utilidade, meramente previsto no BGB e na legislação. Trata-se de
instituto que realmente tem aproveitamento prático.
5 Natureza jurídica
A natureza jurídica do direito de superfície no Direito alemão apresen-
ta discussão doutrinária. Em realidade, o debate decorre da própria forma de
estruturação desse direito, que difere da existente no Código Civil brasileiro,

27
OEFELE, Helmut Freiherr von. Gesetz über das Erbbaurecht. In: Münchener Kommentar
zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 5. ed. München: C.H. Beck, 2009. v. 6. p. 1.506.
28
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts. p. 18.
29
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts. p. 19.

228 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


em que, até pela localização da matéria, está claro se tratar de um direito
real sobre coisa alheia.
Inicialmente, deve-se observar que, conforme o disposto no § 12 da
ErbbauRG, não vigora em face do direito de superfície o princípio de que
toda edificação que se liga ao solo passa a ser componente integrante do
imóvel (superfícies solo cedit) e, por conseguinte, propriedade de seu titular.
Nesse contexto, segundo parte da doutrina, como a legislação alemã
considera que o superficiário se torna proprietário da edificação, a superfície
não consistiria em um desdobramento da propriedade nem em um regime
de copropriedade.
Desse modo, asseveram os estudiosos que a superfície concede a
possibilidade de alguém ser proprietário de um edifício sem ser, ao mes-
mo tempo, proprietário do imóvel onde foi erigida a construção, de maneira
que, não somente no aspecto econômico, mas também no âmbito jurídico,
o proprietário do imóvel e o proprietário da construção estão separados, são
titulares de direitos não idênticos.30
Assim, conforme tal linha de raciocínio, a superfície pode ser tratada
como um direito de propriedade, de forma que pode ser transferida, onera-
da e registrada em livro próprio no registro de imóveis, denominado Erbbau-
grundbuch (§ 14 ErbbauRG).31
Aliás, como se concede não somente a propriedade sobre a constru-
ção, mas também um direito real à utilização de um terreno pertencente a
outra pessoa, não estaríamos, conforme entendimento de parte da doutrina,
diante de um direito real limitado. Tratar-se-ia, então, de um direito sui ge-
neris, situado entre as servidões pessoais e a propriedade fundiária.
Por outro lado, há estudiosos que afirmam ser um direito real sobre
um terreno alheio, que, com determinadas exceções, é tratado como o direi-
to de propriedade, sobretudo pelo fato de poder ser onerado.32 Argumentam
que a concepção da superfície como um direito real sobre coisa alheia deflui
do texto legal, o qual menciona que “um terreno pode ser onerado do modo
(...)” (§ 1 ErbbauRG). Ora, tal expressão seria a mesma utilizada nos direitos
reais limitados, ou seja, nos §§ 1.018, 1.090, 1.094, 1.105, 1.113 e 1.191 do
BGB, o que levaria à conclusão de se tratar de um direito real limitado.33

30
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8.
ed. Düsseldorf: Werner, 2001. p. XXI.
31
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015. p. 600.
32
STÜRNER, Rolf. Verordnung über das Erbbaurecht. In: Soergel Kommentar zum Bürgerlichen
Gesetzbuch. 13. ed. Stuttgart: Kohlhammer, 2007. v. 15-1. p. 302.
33
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts. p. 23.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 229


De qualquer modo, não obstante a existência dos mencionados en-
tendimentos, não há dúvida de que, do ponto de vista do proprietário do
terreno, o direito de superfície é um direito real limitado, que onera sua pro-
priedade. Ademais, é certo que tal direito real limitado é tratado de forma
assemelhada a uma propriedade imobiliária.34 Por isso, a maioria da dou-
trina considera que esse direito tem dupla natureza jurídica (Doppelnatur).
6 Conceito
O direito de superfície é um direito real de utilização e edificação em
um terreno alheio.35 A concessão desse direito é, do ponto de vista jurídi-
co, uma forma de onerar a propriedade de um terreno com um direito real
limitado.36
Conforme a definição extraída do § 1 da ErbbauRG,37 o direito de su-
perfície é um direito concedido a uma pessoa, alienável e transmissível por
sucessão,38 que grava um terreno, permitindo a realização de construções
sobre a sua superfície e no seu subsolo. Possibilita, assim, a edificação em
um terreno de propriedade de outra pessoa, bem como sua utilização por
determinado prazo.39
Dessarte, trata-se de um direito que, salvo exceções previstas pelo §
11, está submetido às disposições concernentes aos imóveis. Assemelha-se
ainda à propriedade pelo fato de possuir registro próprio no registro imo-
biliário, bem como por poder ser cedida e gravada independentemente da
propriedade do terreno.
34
BAUR, Fritz; STÜRNER, Rolf. Sachenrecht. 18. ed. München: C.H. Beck, 2015. p. 385.
35
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht.
Berlin: Sellier, 2009. p. 3.
36
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8.
ed. Düsseldorf: Werner, 2001. p. 231.
37
Como já foi mencionado, a matéria não encontra atualmente regulação no BGB, mas
eventuais superfícies constituídas até 22 de janeiro de 1919 continuam sendo tratadas apenas
pelos §§ 1.012 a 1.017 do BGB. Também vale notar que a ErbbauVO recebeu importante
complementação pela Lei de Alteração do Direito das Coisas, de 21.09.1994 (SachenRÄndG).
Ademais, pelo art. 25 da Lei de 23.11.2007, houve a alteração do nome da legislação, que
passou a ser Erbbaurechtsgesetz (PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H.
Beck, 2014. p. 372).
38
O nome do instituto no idioma alemão decorre justamente do fato de se tratar de uma
construção (ou edificação) transmissível por herança, daí a expressão Erbbaurecht, que seria,
em uma tradução literal para o português, um direito de construção herdável (RAPP, Manfred.
Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch
mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009. p. 3).
39
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015. p. 599.

230 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


7 Definição de construção e de edifício
A legislação faz uso dos conceitos de construção (Bauwerk) e edifício
(Gebäude), no entanto, não apresenta uma definição legal. Com isso, esses
preceitos necessitaram ser extraídos da linguagem geral e dos usos do tráfe-
go jurídico.40
No que toca à expressão construção (Bauwerk), podemos encontrar
várias definições na doutrina, mas ainda é usual a utilização da concepção
apresentada pelo antigo Tribunal do Império (Reichsgericht), que a consi-
derava como a coisa imóvel (ligada ao solo) e produzida com a utilização de
trabalho e materiais estranhos ao solo. Tal concepção é ainda hoje adotada
pela doutrina majoritária.41
O conceito de edifício (Gebäude) dado pelo Bundesgerichtshof –
BGH, por seu turno, considera se tratar de uma construção delimitada es-
42

pacialmente e protegida contra a influência exterior, cuja entrada de pessoas


demanda autorização.43
Por conseguinte, no âmbito do direito de superfície estão incluídas to-
das as espécies de edificação, localizadas na superfície ou no subsolo (auf
oder unter der Oberfläche).44 Como exemplos, extraídos da prática, pode-
mos citar moradias, garagens subterrâneas, instalações portuárias e ferro-
viárias, prédios, postos de gasolina, quadras esportivas, playgrounds, mo-
numentos e instalações relacionadas ao tráfego, como pontes e viadutos.
Nessas hipóteses, a edificação é considerada um componente do direito de
superfície, fazendo parte da propriedade do superficiário, e não da do dono
do terreno.45

40
DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB:
Sachenrecht. Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004. v. 3. p. 1.398.
41
Transcrevemos a definição no original: “eine unbewegliche, durch Verwendung von Arbeit
und Material in Verbindung mit dem Erdboden hergestellte Sache” (DAUNER-LIEB, Barbara;
HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB: Sachenrecht. Bonn: Deutscher
Anwaltverlag, 2004. v. 3. p. 1.398).
42
O BGH é um tribunal alemão que corresponderia, no Brasil, ao STJ.
43
Transcrevemos a definição no original: “eine unbewegliche, durch Verwendung von Arbeit
und Material in Verbindung mit dem Erdboden hergestellte Sache” (DAUNER-LIEB, Barbara;
HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB: Sachenrecht. Bonn: Deutscher
Anwaltverlag, 2004. v. 3. p. 1.398).
44
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht.
Berlin: Sellier, 2009. p. 23.
45
WEBER, Ralph. Sachenrecht. Grundstücksrecht. 4. ed. Baden-Baden: Nomos, 2015. p. 35.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 231


8 A superfície e outros institutos similares
No âmbito dos direitos reais, o usufruto (Nieβbrauch) não se conforma
às mesmas finalidades da superfície. De fato, conforme o § 1.061, 1 do BGB,
o usufruto se extingue com a morte do usufrutuário, sendo intransferível
(§ 1.059). Também é intransferível o direito de habitação (Wohnungsrecht),
conforme estabelecem os §§ 1.092 e 1.093 do BGB.46
O direito alemão igualmente distingue a superfície do contrato de loca-
ção (Mietvertrag) ou do arrendamento (Pachtvertrag). Realmente, enquan-
to a superfície cria um direito real, a locação ou o arredamento constituem
apenas um direito obrigacional. Além disso, o superficiário pode alienar ou
onerar seu direito, o que não é admitido na locação ou no arrendamento.
Outro ponto de divergência é o prazo de duração, pois a superfície pode ser
concedida por longo prazo; já no contrato de locação, os prazos são, em ge-
ral, mais reduzidos, podendo ser admitida a contratação por até 30 anos ou
pelo tempo de vida do locatário (§ 544 do BGB).47
9 Objeto (Belastungsgegenstand)
O objeto a ser onerado é o imóvel em sua integralidade, isto é, um
terreno (Grundstück). Não pode se tratar apenas de uma parte do terreno ou
de uma parte de uma copropriedade, visto que é necessário que uma parte
real (e não ideal) seja objeto de registro imobiliário.48 Todavia, o exercício
da superfície pode ser limitado a uma parte do imóvel. Ademais, também se
admite a constituição de um direito de superfície sobre mais de um terreno
(Gesamterbbaurecht).49
Não é permitido onerar um condomínio edilício com a superfície, pois,
no caso, não se trata de um terreno para edificação. Além disso, sobre o ter-
reno do condomínio igualmente não seria possível, visto que não se permite
o estabelecimento de superfície quando haja uma propriedade especial ou
uma utilização especial dessa propriedade decorrente da regulamentação do
condomínio. Todavia, essa última questão é discutível.50
46
BREHM, Wolfgang; BERGER, Christian. Sachenrecht. p. 382.
47
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht.
Berlin: Sellier, 2009. p. 3-4.
48
STÜRNER, Rolf. Verordnung über das Erbbaurecht. In: Soergel Kommentar zum Bürgerlichen
Gesetzbuch. 13. ed. Stuttgart: Kohlhammer, 2007. v. 15-1. p. 302.
49
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 375.
50
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht.
Berlin: Sellier, 2009. p. 24.

232 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Outrossim, a doutrina alemã divide-se quanto à admissão de uma so-
brelevação ou subsuperfície (Untererbbaurecht).51 Nesse caso, não seria one-
rado propriamente um terreno, mas sim uma outra superfície. Entretanto, a
legislação sobre registro de imóveis (Grundbuchordnung – GBO) reconhece a
possibilidade em seu § 6, 2, mencionando-a expressamente.
Diferentemente do que ocorre no Brasil, não cabe na Alemanha o di-
reito de superfície para fins de plantação.52 Para remediar essa impossibili-
dade, as partes do imóvel que não forem necessárias para a construção da
edificação podem ser usadas para tal finalidade, como é o caso de jardins de
ornamentação. Em todo caso, a edificação continua sendo o objeto princi-
pal.53
10 Conteúdo legal (Gesetzlicher Inhalt)
O conteúdo legal da superfície deve existir, pois, caso contrário, não
haverá o surgimento desse direito. A matéria é definida pelo § 1 da ErbbauRG,
que inclui como conteúdo obrigatório a existência de um direito real sobre
a superfície de um terreno ou o seu subsolo, permitindo-se a realização de
edificações. Consequentemente, o titular do direito de superfície torna-se
proprietário das obras realizadas no imóvel.54
A superfície constitui, no Direito alemão, o maior ônus que pode ser
imposto sobre uma propriedade, visto que o proprietário do terreno perde
a sua posse direta, e o superficiário pode erigir uma construção, ocupá-la,
utilizá-la, destruí-la e substituí-la. De qualquer forma, vale observar que, na
concessão do direito de superfície, deve ser prevista, de forma mais ou me-
nos clara, como a edificação será realizada.55
De fato, o gênero da construção e a sua extensão devem necessaria-
mente ser definidos, visto que um direito real deve ser suficientemente de-
terminado (Bestimmtheitsprinzip). Aliás, é esse conteúdo determinado que
levará à aquisição, por parte do superficiário, da propriedade sobre a cons-
trução.
Outrossim, a cessibilidade (Veräuβerlichkeit) e a transmissibilidade
por herança (Vererblichkeit) fazem parte dos elementos característicos obri-
51
Vale notar que o BGH reconhece a subsuperfície (BGHZ 62, 179 = NJW 1974, 1.137).
52
No Direito brasileiro, a constituição de superfície para fins de plantação está expressamente
prevista no art. 1.369 do Código Civil.
53
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht.
Berlin: Sellier, 2009. p. 26.
54
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015. p. 601.
55
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015. p. 601.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 233


gatórios do direito de superfície. Por fim, além do direito de edificação como
elemento principal, também se garante eventual direito acessório de uso so-
bre áreas não edificadas.
11 Conteúdo contratual (Vertraglicher Inhalt)
O conteúdo legal do direito de superfície não é suficiente para regu-
lar as relações entre o superficiário e o proprietário do terreno. Ao lado do
conteúdo legal, o § 2 da ErbbauRG dispõe que as partes podem, contratual-
mente, criar outros direitos e obrigações, o que na prática é muito comum.56
Como regra, tal contratação deveria ter efeito meramente obrigacio-
nal, não valendo contra qualquer sucessor, particularmente se este não teve
conhecimento do vínculo obrigacional. Contudo, no que toca ao conteúdo do
direito de superfície, a legislação protege a contratação com eficácia real. As-
sim sendo, ficam vinculados ao estabelecido tanto os atuais como os futuros
proprietários do terreno e superficiários.57
O possível conteúdo contratual é enumerado, de forma não taxativa,
pelo § 2 da ErbbauRG, podendo abranger disposições sobre: 1) a construção,
a manutenção e a utilização da edificação; 2) o seguro da edificação e a sua
reconstrução em caso de destruição; 3) a responsabilidade por encargos pú-
blicos e privados; 4) a obrigação do superficiário, se preenchidas determina-
das condições, de transferir a superfície ao proprietário do terreno (reversão
– Heimfall); 5) responsabilidade do superficiário pelo pagamento de multas
contratuais; 6) concessão de direito de preferência ao superficiário para a
renovação da superfície depois de decorrido seu prazo; e 7) a obrigação do
proprietário do terreno de vendê-lo ao superfíciário.58
Além disso, pode ser também estabelecida, como conteúdo contratu-
al, a necessidade do consentimento do proprietário do terreno para a alie-
nação da superfície pelo superficiário, bem como para o estabelecimento de

56
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 373.
57
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 373.
58
§ 2 da ErbbauRG: “Zum Inhalt des Erbbaurechts gehören auch Vereinbarungen des
Grundstückseigentümers und des Erbbauberechtigten über: 1. die Errichtung, die Instandhaltung
und die Verwendung des Bauwerks; 2. die Versicherung des Bauwerks und seinen Wiederaufbau
im Falle der Zerstörung; 3. die Tragung der öffentlichen und privatrechtlichen Lasten und
Abgaben; 4. eine Verpflichtung des Erbbauberechtigten, das Erbbaurecht beim Eintreten
bestimmter Voraussetzungen auf den Grundstückseigentümer zu übertragen (Heimfall); 5.
eine Verpflichtung des Erbbauberechtigten zur Zahlung von Vertragsstrafen; 6. die Einräumung
eines Vorrechts für den Erbbauberechtigten auf Erneuerung des Erbbaurechts nach dessen
Ablauf; 7. eine Verpflichtung des Grundstückseigentümers, das Grundstück an den jeweiligen
Erbbauberechtigten zu verkaufen”.

234 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


hipoteca (Hypothek), de dívida imobiliária (Grundschuld), de dívida imobili-
ária em forma de renda (Rentenschuld) ou de ônus reais (§ 5 da ErbbauRG).
Ficam sem validade eventuais obrigações estabelecidas sem a observância
do necessário consentimento do proprietário do terreno (§ 6 da ErbbauRG).
Portanto, pode-se notar que vários elementos previstos legalmente
como integrantes do direito de superfície no Brasil, como é o caso do direito
de preempção, não são concedidos pela legislação alemã, sendo necessário
seu estabelecimento pela via contratual. Há então uma maior autonomia no
Direito alemão no que toca à constituição de direitos e obrigações das partes.
12 Surgimento e transferência (Entstehung und Übertragung)
A concessão e a transmissão do direito de superfície seguem os prin-
cípios gerais atinentes à propriedade imobiliária (§§ 873 e ss do BGB). O
surgimento da surperfície não segue, entretanto, a forma estabelecida para
alienação da propriedade imobiliária, mas sim as disposições atinentes à sua
oneração.59
Pressupõe a existência de dois contratos. O primeiro negócio jurídico,
um contrato no qual alguém se obriga a fazer a concessão (ou transmissão)
do direito de superfície, deve seguir a forma estabelecida no § 311b 1 BGB
e deve ser realizado perante o notário. Trata-se de um contrato regido pelo
direito obrigacional, que cria obrigações para as partes, semelhante ao con-
trato de compra e venda.60
Contudo, é necessário, conforme o § 873 do BGB, um segundo negócio
jurídico, que constitui um acordo real de cumprimento (dingliches Erfüllun-
gsgeschäft). Até a entrada em vigor da ErbbauVO, tal acordo tinha a forma
da Auflassung (§ 925 do BGB),61 mas essa forma não é mais prescrita (§ 11,
1 ErbbauRG). Por fim, há o registro imobiliário (Eintragung im Grundbuch),
surgindo então o direito de superfície.62
Outrossim, também existem outras formas de surgimento, como a de-
sapropriação (Enteignung), que sucede em função da legislação federal ou

59
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht.
Berlin: Sellier, 2009. p. 41.
60
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 374.
61
No Direito brasileiro, não há um tipo de negócio jurídico como a Auflassung. Ela constitui
um acordo de transferência da propriedade relativa a um imóvel, que segue a forma prevista
no § 925 do BGB (JAYME, Erik; NEUSS, Jobst-Joachim. Wörterbuch Recht und Wirtschaft.
Deutsch-Portugiesisch. 2. ed. München: C.H. Beck, 2013. Tomo 2. p. 20).
62
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8.
ed. Düsseldorf: Werner, 2001. p. 231.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 235


dos estados;63 e a usucapião tabular (Tabularersitzung), conforme o § 900,
2 do BGB, que ocorre se a superfície ficou durante 30 anos erroneamente
registrada no registro imobiliário e aquele que a registrou a possuiu durante
esse tempo como se fosse sua, não se fazendo necessária a prova de boa-
fé.64
A superfície é duplamente registrada no registro de imóveis, o que é
feito no livro referente à propriedade do terreno e em um livro específico,
atinente ao direito de superfície.65 No registro imobiliário do imóvel grava-
do, é feito o registro acerca da sua criação, extinção ou alteração de conte-
údo, o que tem efeito constitutivo.66 Tais atos devem ser realizados no local
onde foi registrada a propriedade do terreno a ser onerado, sendo então
evidente ser a circunscrição imobiliária do local do terreno a competente
para o registro.67
Além disso, o conteúdo, a transferência e eventuais ônus sobre a su-
perfície devem ser registrados em um livro específico, chamado Erbbaugrun-
dbuch, conforme dispõe o § 14 da ErbbauRG. Seja como for, esse último re-
gistro não é constitutivo do direito, mas tão somente uma formalidade do
registro imobiliário.68
13 Tratamento semelhante ao do direito de propriedade
O direito de superfície é um direito real (dingliches Recht) ao qual é
dado um tratamento semelhante ao direito de propriedade imóvel,69 com
exceção das normas atinentes à Auflassung (§ 11, 1 da ErbbauRG). Assim
sendo, vigoram para a superfície, por exemplo, as regras sobre o regime pa-
trimonial de bens entre os cônjuges (ehelichen Güterrecht) e as regras do
direito das sucessões.70

63
DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB:
Sachenrecht. Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004. v. 3. p. 1.401.
64
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht.
Berlin: Sellier, 2009. p. 42.
65
STÜRNER, Rolf. Verordnung über das Erbbaurecht. In: Soergel Kommentar zum Bürgerlichen
Gesetzbuch. 13. ed. Stuttgart: Kohlhammer, 2007. v. 15-1. p. 345.
66
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 375.
67
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015. p. 600.
68
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015. p. 600.
69
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht.
Berlin: Sellier, 2009. p. 18.
70
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 375.

236 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


O tratamento assemelhado ao direito de propriedade também leva à
constrição da superfície, da mesma maneira que a propriedade, no decorrer
de um processo judicial de execução (Zwangsvollstreckung). E não poderia
ser diferente no que toca aos ônus, sendo admissível sua instituição sobre
a superfície, ainda que se trate, conforme entendem parte da doutrina e
o BGH, da constituição de outra superfície (superfície de segundo grau ou
subsuperfície), ou seja, uma superfície onerando uma superfície (Unterer-
bbaurecht).71
Por fim, em caso de esbulho ou turbação, o superficiário, tal qual o
proprietário, dispõe de pretenções para a proteção de seu direito, previstas
nos §§ 985 e 1.004 do BGB (direitos de restituição e de abstenção de distúr-
bios).
14 Renda do direito de superfície (Erbbauzins)
O proprietário do imóvel gravado obtém uma contraprestação em
dinheiro, relativamente moderada, conhecida como Erbbauzins (solarium),
que é paga pelo superficiário. Tal remuneração é devida pelo fato de ter sido
concedido o direito de superfície pelo proprietário do imóvel, que abriu mão
de sua posse direta e da possibilidade de sua utilização (§ 9 ErbbauRG).72
De acordo com a legislação alemã, tanto o montante como o prazo
da Erbbauzins devem ser fixados antecipadamente, para toda a duração da
superfície, o que certamente representa um risco para o proprietário do imó-
vel. Realmente, a necessidade de projeção dos valores a serem pagos (§ 9
ErbbauRG) pode ser um fator bastante complicado se houver instabilidade
econômica, mesmo porque não existe na Alemanha o instituto da correção
monetária.73
Na prática, no entanto, desenvolveram-se cláusulas obrigacionais de
adequação, as quais possibilitaram o aumento e a redução da Erbbauzins,
o que, por outro lado, passou a ameaçar o caráter social da superfície. Para
contornar a situação, procurando-se assegurar o caráter social do instituto,
foi introduzido o § 9a da ErbbauRG, que previu ser possível que se estabele-
ça, obrigacionalmente, a modificação da Erbbauzins para a sua adequação à
alteração de circunstâncias. Aliás, no caso de elevação, o § 9a da ErbbauRG
prevê restrições para a proteção do caráter social da superfície.74

71
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 376.
72
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015. p. 601.
73
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 373.
74
OEFELE, Helmut Freiherr von. Gesetz über das Erbbaurecht. In: Münchener Kommentar
zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 5. ed. München: C.H. Beck, 2009. v. 6. p. 1.506.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 237


Por derradeiro, vale observar que a obrigação de pagamento do Er-
bbauzins não é propriamente conteúdo do direito de superfície, mas um
ônus em favor do proprietário do imóvel que a concedeu. Para que seja asse-
gurada eficácia absoluta à remuneração a ser paga, é necessário seu registro
como um ônus real (§§ 1.105 e ss do BGB).75
15 Término do direito de superfície (Beendigung des Erbbaurechts)

15.1 Rescisão (Aufhebung)


O direito de superfície pode ser rescindido, conforme estabelece o §
875 do BGB, mas é necessária a declaração do superficiário no sentido de
que está renunciando a seu direito, bem como o consentimento do proprie-
tário do terreno (§ 26 da ErbbauRG).76
O § 26 da ErbbauRG trata então de uma forma de extinção do direito
de superfície por meio de um negócio jurídico, que depende da declaração
de vontade do superficiário e do proprietário do terreno. Isso significa que
a superfície, nessa hipótese, somente se extinguirá com a manifestação do
proprietário do terreno, não tendo efeito jurídico uma renúncia apenas por
parte do superficiário.77
Deve-se notar ainda que a rescisão não se confunde com uma condi-
ção resolutiva, mesmo porque, conforme o § 1, 4 da ErbbauRG, não é permi-
tida a constituição de superfície na qual se estabeleça que o superficiário re-
nunciará ao seu direito caso haja a ocorrência de determinadas condições.78
Em todo caso, deve-se observar que a declaração do superficiário
pode ser emitida diante do registro imobiliário ou do proprietário do terre-
no. O consentimento do proprietário, que é irrevogável, é provado por meio
de documento público ou com fé pública. Ademais, eventualmente também
será necessário o consentimento de terceiros que tiverem outros direito re-
ais sobre a superfície, como um direito real de garantia (e.g. hipoteca).79

75
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015. p. 601.
76
WEBER, Ralph. Sachenrecht. Grundstücksrecht. 4. ed. Baden-Baden: Nomos, 2015. p. 42.
77
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht.
Berlin: Sellier, 2009. p. 171-172.
78
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht.
Berlin: Sellier, 2009. p. 171-172.
79
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht.
Berlin: Sellier, 2009. p. 171-172.

238 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Por fim, a extinção demanda seu registro no registro imobiliário, o que
é feito tanto no livro em que está registrado o terreno (Grundbuch) como no
livro especial de registro da superfície (Erbbaugrundbuch).
15.2 Extinção por decurso de prazo (Zeitablauf)
A superfície se extingue normalmente com o decurso de determinado
prazo estabelecido no negócio jurídico,80 matéria que é regulada pelos §§
27 a 30 da ErbbauRG. Na prática, os prazos de contratação variam entre 30
e 100 anos, sendo muito comum a fixação do prazo de 99 anos.81 Contudo,
como não há um prazo limite estabelecido pela legislação,82 entende-se que
é possível sua contratação por prazo indeterminado (ewiges Erbbaurecht).83
Decorrido o prazo, encerra-se a superfície automaticamente, sem ne-
cessidade de uma declaração de vontade específica. Com isso, a propriedade
sobre a construção passa também automaticamente ao proprietário do ter-
reno.84
Nesse contexto, em função do decurso do prazo, fica o registro imobi-
liário incorreto, sendo necessária a sua retificação (Grundbuchberichtigung).
O proprietário do imóvel pode, conforme o § 894 do BGB, exigir o consen-
timento do superficiário para a regularização do registro imobiliário, caso o
próprio superficiário não tenha já tomado tal medida (§ 22, 2 da Ordenança
de Registro Imobiliário – Grundbuchordnung – GBO).85
Extinta a superfície pelo decurso de prazo, cabe ao titular do direito
de superfície, contra o proprietário do imóvel, uma pretensão legal ao pa-
gamento de indenização (§ 27 I ErbbauRG).86 As partes podem deliberar,
como conteúdo da superfície, acerca do valor da indenização ou sobre sua
exclusão, o que terá eficácia real sobre o imóvel e sobre a superfície (§ 27, I, 2
da ErbbaRG). Na falta de referida disposição em sentido contrário, a própria
obrigação legal de indenizar também terá a mesma eficácia.87

80
WEBER, Ralph. Sachenrecht. Grundstücksrecht. 4. ed. Baden-Baden: Nomos, 2015. p. 42.
81
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 377.
82
No Brasil, o direito de superfície, regulado pelo Código Civil, deve ser concedido por prazo
determinado (art. 1.369 do CC). No Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), por outro lado, a
concessão do direito de superfície poderá ser por tempo determinado ou indeterminado (art. 21).
83
DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB:
Sachenrecht. Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004. v. 3. p. 1.400.
84
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8.
ed. Düsseldorf: Werner, 2001. p. 309.
85
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8.
ed. Düsseldorf: Werner, 2001. p. 309.
86
WIELING, Hans Josef. Sachenrecht. 5. ed. Berlin: Springer, 2007. p. 383.
87
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 377.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 239


Ademais, para evitar o pagamento de indenização, o proprietário do
terreno pode oferecer ao superficiário, antes do decurso do prazo, a pos-
sibilidade de prorrogação de seu direito pelo tempo de vida previsível da
edificação. Em caso de recusa do superficiário, há então a extinção do dever
de pagamento da indenização.88
Por derradeiro, o § 29 da ErbbauRG prevê ainda que o credor titular
de um direito de garantia sobre a superfície, mesmo com o decurso do prazo
da superfície, ainda se beneficia dessa garantia no que toca ao valor da inde-
nização paga.
15.3 Reversão (Heimfallrecht)
A chamada reversão se distingue da extinção da superfície, pois nes-
se caso o superficiário está obrigado a transferir seu direito ao proprietário
do terreno. Assim, não há propriamente extinção da superfície, cabendo ao
proprietário do terreno decidir se depois irá extinguir ou transferir a super-
fície a um terceiro.89 Também não há extinção dos direitos reais de garantia
(Grundpfandrechte) que oneram a superfície, permanecendo sua existência,
desde que eles não caibam ao proprietário do terreno (§ 33 da ErbbauRG).
A reversão é acordada pelo proprietário do terreno e pelo superficiá-
rio (§ 2, 4 da ErbbauRG), como regra, já no momento em que a superfície é
constituída. Trata-se de uma espécie de direito real de aquisição (dingliches
Erwerbsrecht), que onera o direito de superfície e se liga inseparavelmente à
propriedade do terreno (§ 3 da ErbbauRG).90
As razões para a ocorrência da reversão podem ser acordadas livre-
mente pelas partes, mas devem ter relação objetiva com o direito de super-
fície.91 Nessa linha, o principal caso é o atraso no pagamento do solarium
(Erbbauzins), mas a pretensão à reversão somente será cabível se pelo me-
nos dois anos de solarium estiverem em atraso (§ 9 IV ErbbauRG).92 Outras
hipóteses normalmente acordadas são o atraso na construção, a alteração
não autorizada do uso, a negligência na manutenção, a insolvência do super-
ficiário, bem como a morte do proprietário do terreno ou do superficiário.93
Com o preenchimento da pretensão de reversão, há a transferência da
superfície e o superficiário perde a propriedade sobre a construção, que em
regra ele mesmo construiu. Não é permitido ao superficiário, com a reversão

88
WIELING, Hans Josef. Sachenrecht. 5. ed. Berlin: Springer, 2007. p. 383.
89
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 377.
90
WIELING, Hans Josef. Sachenrecht. 5. ed. Berlin: Springer, 2007. p. 384.
91
WEBER, Ralph. Sachenrecht. Grundstücksrecht. 4. ed. Baden-Baden: Nomos, 2015. p. 43.
92
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 378.
93
WIELING, Hans Josef. Sachenrecht. 5. ed. Berlin: Springer, 2007. p. 384.

240 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


ou com a extinção da superfície, a retirada da construção ou a apropriação
de parte dela (§ 34 ErbbauRG). Em contrapartida, o superficiário tem uma
pretensão de reembolso, senão o proprietário do terreno se enriqueceria às
suas custas (§ 32 ErbbauRG).94
Os valores são, como regra, fixados antecipadamente na contratação
feita entre as partes (§ 32 I 2 ErbbauRG). É possível a exclusão da pretensão
de reembolso em favor do superficiário, mas é raro isso ocorrer.95
15.4 Destruição da edificação (Untergang des Bauwerks)
A destruição da edificação não causa a extinção do direito de super-
fície, matéria expressamente regulamentada pelo § 13 da ErbbauRG.96 De
fato, como se considera que o direito de superfície possibilita a construção
de um edifício, não seria nenhuma condição jurídica a existência da edifica-
ção para o surgimento do direito de superfície.97
Por conseguinte, não existindo vinculação entre a existência da edifi-
cação e o direito de superfície, a destruição da primeira não leva à extinção
do segundo.
Considerações finais
A superfície é um importante instrumento de política do solo, que in-
felizmente não tem encontrado grande utilização no Direito brasileiro. Os
entes públicos podem, por meio dela, promover a urbanização e o aproveita-
mento de bens públicos dominicais (terras estatais sem uso), mesmo porque
muitas vezes o poder público, apesar de possuir patrimônio, não tem recur-
sos para a sua utilização, em especial quando se trata de edificação.
Nesse contexto, a superfície, ao lado dos tradicionais contratos de
concessão ou de comodato, muito difundidos quando um ente público auto-
riza outro ente público a edificar em terreno de sua propriedade, bem como
a utilizá-lo por determinado prazo, poderia ser uma opção à disposição da-
queles que pretendem uma contratação com maior segurança, cujos efeitos
jurídicos não são meramente obrigacionais, mas reais.
Ademais, na mesma senda, também é possível seu uso em empre-
endimentos particulares, nos quais aqueles que vão realizar edificações em
propriedade alheia não pretendem estar garantidos por mera contratação,
sendo muito mais segura a constituição de um direito real de superfície.
Por conseguinte, considerando essa análise do Direito alemão, parece-
94
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 378.
95
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014. p. 378.
96
§ 13 ErbbauRG: “Das Erbbaurecht erlischt nicht dadurch, daß das Bauwerk untergeht”.
97
WEBER, Ralph. Sachenrecht. Grundstücksrecht. 4. ed. Baden-Baden: Nomos, 2015. p. 44.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 241


nos que no Brasil esse direito real precisa ser melhor utilizado, o que permi-
tirá, retomando mesmo suas origens romanas, seu emprego para uma mais
adequada realização do princípio da função social da propriedade.
Bibliografia
BALLIF, Alban. Le droit de superfície: eléments réels, obligations propter rem
et droits personnels annotés. Zürich: Schulthess, 2004.
BAUR, Fritz; STÜRNER, Rolf. Sachenrecht. 18. ed. München: C.H. Beck, 2015.
BREHM, Wolfgang; BERGER, Christian. Sachenrecht. 3. ed. Tübingen: Mohr
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DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar
BGB: Sachenrecht. Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004. v. 3.
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum
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JAYME, Erik; NEUSS, Jobst-Joachim. Wöterbuch Recht und Wirtschaft.
Deutsch-Portugiesisch. 2. ed. München: C.H. Beck, 2013. Tomo 2.
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts.
5. ed. München: C.H. Beck, 2012.
OEFELE, Helmut Freiherr von. Gesetz über das Erbbaurecht. In: Münchener
Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 5. ed. München: C.H. Beck,
2009. v. 6. p. 1.504-1.647.
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014.
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers
Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und
Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009. p. 1-210.
STÜRNER, Rolf. Verordnung über das Erbbaurecht. In: Soergel Kommentar
zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 13. ed. Stuttgart: Kohlhammer, 2007. v.
15-1.
WEBER, Ralph. Sachenrecht. Grundstücksrecht. 4. ed. Baden-Baden: Nomos,
2015.
WIELING, Hans Josef. Sachenrecht. 5. ed. Berlin: Springer, 2007.
WOLF, Manfred; WELLENHOFER, Marina. Sachenrecht. 30. ed. München:
C.H. Beck, 2015.

242 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Saudação ao Juiz Eliézer Rosa*1
Oscar Maciel Trindade Netto
Advogado, membro do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul desde 1974,
especialista em Processo Civil pela Ufrgs

Quis o destino e a bondade do presidente deste egrégio sodalício


agraciar este simples advogado com a máxima honraria, saudar o emérito
magistrado Eliézer Rosa no pórtico da Semana do Instituto dos Advogados
do RGS.
Entre as inúmeras razões que levaram à feliz iniciativa de trazer V. Exa.
ao nosso convívio, sobressai a perfeita identificação existente com a classe
que hoje vos recebe em solo rio-grandense. Com que alegria, há poucos dias,
ouvia de V. Exa. a expressão altamente dignificante: 24 (vinte e quatro) anos
de magistratura, mas com alma de advogado.
Falar das obras de Eliézer Rosa, quer jurídicas, quer literárias, seria
exaltar um grande poeta, resplendente na imensidade do seu coração.
Obras que se complementam por meio de sentenças e votos proferi-
dos nos tribunais, oferendas de verdades que correspondem a uma forma de
elevada aproximação com Deus.
O humanismo constante no curso de vossa vida reflete a pureza de
uma trajetória percorrida sem máculas, em que o homem nunca foi perdido
de vista, mesmo aqueles que teimavam em desgarrar-se do rebanho.
Essa a grandiosa missão que V. Exa. cumpre, serena e belamente.
De Eliézer Rosa se pode dizer: conseguiu o supremo esforço a que se
referiu Proudhom, e chegou à beira de Deus, aquele que vê o invisível, co­
nhece o incognoscível, mede o imensurável, delimita o próprio infinito e de
cuja sabedoria onisciente jorra, por meio do ínclito magistrado, a réstia de
luz que ilu­mina e conduz muitas criaturas no caminho da melhor justiça hu-
mana e no encontro sublime com o amor, fonte do bem todo, desde o sorri-
so, a esmola, a lágrima e a prece, o castigo e o perdão.
A ventura de um dia conhecê-lo, os episódios singulares de vossa vida,
deu-nos a certeza de que os humildes e aflitos eram tratados com o bálsamo
da palavra franca e sempre esperançosa, muito embora não pudesse evitar o

O autor proferiu este discurso de saudação no dia em que o Juiz Eliézer Rosa foi conferencista
*1

na sede do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (Iargs), em Porto Alegre, em
setembro de 1974. A conferência do magistrado também é reproduzida na presente edição,
na sequência deste texto.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 243


olhar entristecido, ante a visão de infelicidade do moço ou do velho, de alma
ajoelha­da, vergastado pelos reveses da existência.
Guardo, como tesouro inestimável, o livro ofertado por V. Exa., em
passado recente, do emi­nente criminalista e posteriormente Juiz Romeiro
Neto – Fora do júri em outras tribunas. As palavras ditas sobre o advogado
criminal, no livro citado, teriam o endereço certo se ditas igualmente a V.
Exa., pois as pratica com fervor sacerdotal.
Justiça sem humanidade seria qualquer coisa de imperfeito; como
imperfeitos seriam a virgem que não guardasse no seu corpo intacto a
pureza de sua alma; o mar sem a palpitação das vagas; o campo flori-
do na primavera sem que nele se sentisse o perfume de uma flor; e a
prece balbuciada sem o calor da fé.
Na história judiciária francesa, no alvorecer do século que vivemos,
surgiu, pela pena de Clemenceau, a expressão bom juiz ao célebre e discuti­
do magistrado gaulês Magnaud, que subverteu o conceito clássico da aplica-
ção da lei na feitura da justiça.
Magnaud, como agente do Estado na realização cotidiana do Direi-
to, foi, sem dúvida alguma, um revolucionário. Suas armas provinham do
conhecimen­to da vida e da observação psicológica das relações humanas.
Seu objetivo era a compreensão e a bondade. Foi, acima de tudo, um bravo.
O fenômeno do juiz francês não foi simples meteoro, senão perene
luz a iluminar os magistrados de todos os tempos. Nem poderia ser outra
a influência de quem – como Anatole France acentuou –, em cada linha, se
encontram pensamentos de um espírito li­vre e sentimentos de um coração
generoso.
Foi ele quem deu forma e sentido à humanização da lei. Foi ele quem
chefiou a revolta contra as aplicações simétricas do texto. Foi ele quem criou
o princípio que não pode fugir do comportamento de todos os magistrados
dignos desse nome, segundo o qual, para bem compreender o drama das
partes, deve o juiz descer ou subir até o nível de suas condições. Ou, em suas
próprias palavras:
(...) para equitativamente apreciar o deli­to do indigente, o juiz
deve, por um instante, esquecer o bem-estar que desfruta, a fim de
identificar-se, tanto quanto possível, com a situação lamentável da
criatura abandonada de todos.
Não sei se a conduta e a bondade de Eliézer Rosa projetaram-se em
sua condição de magistrado por inspiração das qualidades positivas de Mag-
naud. É possível que não, porque o jurista que engalana esta sessão não pre-

244 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


cisava de nenhum mestre para guiar-se pelos bons sentimentos. A bondade
é atributo inseparável de seu pró­prio ser.
É porém exato que, como Magnaud, não faz V. Exa. outra coisa se-
não humanizar a lei, en­contrando sempre, com sua inteligência penetrante,
a maneira de conduzir as decisões pelo maior respeito à dignidade humana,
onde quer que exista um remanescente de valor e de recuperação.
Por derradeiro, como homenagem, em nome dos advogados rio-gran-
denses, permita V. Exa. que repitamos uma das maiores belezas já escritas
por qual­quer jurista pátrio. É verso, é poema, é a mais bela canção de amor
ao direito e à justiça humana.
O velho testamento jurisdicional e seus profetas passarão com a
velha ordem e a velha dispensação. Um novo e esplêndido dia virá
para os homens que têm fome e sede de Jus­tiça, e eles serão bem
-aventurados e satisfeitos. Um novo “sermão da montanha” se está
preparando pela filosofia do Direito. E nele se pregará: “Bem-aventu-
rado o juiz que já não tem a concepção mecâni­ca da jurisprudência.
Bem-aventurado o juiz que já não tem carência de sindérese para a
obra da Justi­ça. Bem-aventurado o juiz que já não se interessa pelo
racional, mas quer nas suas decisões o razoável. Bem-aventurado o
juiz que tiver seu pensamento guiado pela lógica do humano e já tiver
ultrapassado a lógica de tipo matemática nos julgamentos do homem
e para o homem. Bem-aventurado o juiz que se deixar governar, na
interpretação jurídica, pelo ‘logos do humano’, abandonando a razão
matemática na interpretação dos conteúdos jurídicos. Bem-aventura-
do o povo que tiver juízes assim. Bem-aventurado o homem que for
julgado por juízes assim. Bendita será nesse dia a obra da Justiça, por-
que não haverá choro nem ranger de den­tes, quando soarem as derra-
deiras palavras da sentença do juiz. Quan­do esse dia vier, o juiz estará
de­finitivamente convencido de que o Direito foi feito para o homem e
seus problemas”.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 245


246 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8
Humanismo no Direito*1
Eliézer Rosa (1909-2002)
Juiz de Direito Criminal no Rio de Janeiro, nascido em Campos/RJ em 14.11.1909 e
falecido em 11.08.2002

Do juiz

“(...) não há outra garantia de justiça que a personalidade do juiz.”


Ehrlich, in B. Cardozo

“Há em cada um de nós um impulso ou tendência – chamemos-lhe filosofia


ou não – que dá coerência e direção ao pensamento e à ação.
O juiz, como qualquer outra pessoa, não pode escapar a essa tendência.”
B. Cardozo
Nunca poderá ser um grande juiz aquele que produz dentro de um
sistema fechado, de plenitude hermética do direito. Grande só pode ser
o juiz que disponha de liberdade para criar a solução que lhe pareça mais
acertada e mais justa para o caso que tem de julgar. Toda atividade vincu-
lada perde sua grandeza. Só mesmo o poder discricionário dá magnitude à
tarefa do juiz, porque ele pode escolher, entre várias solu­ções, aquela que
lhe parecer a melhor. Pense-se em Da Vinci criando o sorriso da Gioconda
segundo o molde pessoal que trazia dentro de sua alma. E agora pense-
se em Miguel Ângelo restaurando o sorriso criado por Da Vinci. Miguel
Ângelo seria a imagem do juiz de po­der vinculado. Da Vinci, o juiz de po-
deres discricioná­rios. Sinta-se a liberdade de um e o constrangimento do
outro. Um, com as potências de sua alma em liberda­de, cria segundo os
modelos imperecíveis na beleza que traz impressos em sua alma de artista.
O outro segue preso às linhas originárias de que não pode escapar, sob
pena de falsear a obra e misturar a sua inspiração à do artista precedente.
Um seria grandioso e pessoal. O outro humilhado e contrafeito, agrilhoado
ao traço alheio, na tarefa sem grandeza do que copia e não pode criar.
Ambos artistas, ambos capazes de uma criação original e portentosa, mas
um vinculado ao modelo que encontrou feito; o outro em plena liberdade
discricio­nária de eleger o traço e a linha que lhe sugere sua arrebatada
imaginação. Não há grandeza possível para um juiz que trabalha sobre o
*1
Conferência proferida na sede do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (Iargs), em
Porto Alegre, em setembro de 1974.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 247


direito positivo, e dele não se pode afastar, sem dar em costa naufragosa. É
uma pobre viagem ao longo das margens de que não pode afastar-se: uma
grande nau, um destro piloto, em nave­gação de cabotagem. Vê a sugestiva
beleza do mar alto, mas com ele não pode atrever-se, porque a ordem é
na­vegar beirando a costa. Somos fotógrafos, ou nem isso. Somos homens
de laboratório fotográfico, encarregados de apenas revelar filmes. Daudet
conta de um pintor de retratos que pintou o da mulher velha e feia do
padei­ro, fazendo-a bela, de rosto espiritual, pleno de viço da mocidade.
E o marido, ao receber o retrato, opôs-se, dizendo não ser o da sua mu-
lher, ao que o artista res­pondeu que aquela do retrato, sim, é que era a
mulher que o marido não via, mas era aquela e assim como ele pintara a
esposa do padeiro. E convenceu o marido da beleza verdadeira, mas não
vista pelo homem do cotidiano, materialão e grosseiro. Assim deveria po-
der ser o juiz, como aquele pintor que via não os traços apaga­dos de uma
beleza perdida, mas a própria beleza escon­dida na idade e nas lutas da
vida, fazendo-a reaparecer e esplender. Não somos nem podemos ser artis-
tas. Somos simplesmente artesãos. E a nossa carta de arte­são está redigida
em termos muito claros: “o primeiro dever do juiz é respeitar o direito
positivo”. Nenhum poder criador; nenhuma liberdade artística; nenhuma
crispação de alma; nenhuma emoção. Aquele augusto momento de pura
irracionalidade criadora é-nos vedado. Só conhecemos os pobres momen-
tos lógicos, acorrentados, como outros Prometeus, ao silogismo fácil, de
um raciocínio sem originalidade. Nossa desgraça está em nunca podermos
ser originais. A originalidade está-nos proibi­da. Um novo e estranho Adão,
vagando fora do Éden, em cuja porta está posto o anjo armado que nos
impede de por ela entrarmos e ver suas belezas. Sentimos o ritmo cantante
dos versos que vivem em nós; trazemos em nossa alma todo um poema
escrito, mas não o podemos publicar, porque temos de fazer, dia a dia,
nossa prosa vil e desgraciosa, pois, embora seja o Direito Poesia, só o juiz
não pode ser Poeta, porque a multidão apedreja os Poetas, onde quer que
os encontre. Entre o Cris­to e Barrabás, temos de preferir Barrabás, porque
a multidão quer, e nada podemos contra a vontade simbólica do povo, já
que se pensa que a lei exprime a vonta­de coletiva, é a expressão do senti-
mento nacional a que temos de obedecer. Nossa liberdade é semelhante à
de um homem em uma ilha. Poderá o ilhado fugir para onde entender, mas
sempre limitado pelas águas que circun­dam a ilha em que vive. Nossa ilha
são os Códigos, é o direito positivo. Há um superior momento na vida do
juiz: é quando encontramos as situações de encruzilhada, quando temos,
diante de nós, dois ou mais textos aplicáveis igualmente à hipótese que

248 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


nos toca decidir. Então, podemos eleger aquele que entendemos melhor
e mais justo para o caso concreto sobre que vamos sentenciar. Quando
podemos optar entre várias soluções permitidas pelo direito, então nos
sentimos donos de nossa vontade, e soberbamente cremos na livre eleição
da norma, e que tivemos um momento de liberdade criadora. E nossa alma
de artista vibra e libera as dolorosas e infecundas ânsias de produzir obra
pessoal. Os juízes não devíamos ser uma orquestra sinfônica, regida por
um maestro implacável, preso à partitura a que ele e nós temos de cingir-
nos e obedecer. Deveríamos ser muito mais a imagem de um Jazz, em que
cada músico usa de seu instrumento e improvisa, segundo sua inspiração.
E, quando parecesse que cada um estaria desligado do con­junto, solando
a seu talante, sentiria o ouvinte aten­to que havia uma harmonia no todo,
uma melodia a que todos estariam catando respeito, e produzindo um re-
sultado agradável, espantosamente agradável. Haveria um todo naquele
complexo em que, aparentemente, cada um parecia livre dos demais. O
espírito nacional, a ordem pública, os interesses coletivos, o bem-estar do
maior número, as aspirações da alma do povo são a nossa ro­sa dos ven-
tos, nossos pontos cardeais, e por eles, só por eles, deveríamos guiar-nos,
mas com liberdade de buscar o direito do caso concreto, onde quer que
pen­sássemos achá-lo. Tem o povo sua Língua, cada Língua, sua gramática.
Entretanto, cada escritor maneja a Lín­gua como quer, criando sua obra de
arte, trabalhando na formação de uma literatura, que, apesar da liberda­de
de cada um, aparece, em seu todo, com fisionomia própria e inconfundível.
Tomem-se dois poetas ou dois prosadores, de qualquer tempo, e, apesar
da diversidade de cada obra, o sentimento da Língua, o espírito nacional
estarão presentes, sensivelmente presentes. Tome-se um tema qualquer,
e deixe-se que escritores de vá­rias nacionalidades o versem, cada qual em
sua Língua vernácula. O resultado artístico surgirá inevitavelmente, mas
cada um refletirá a alma do seu povo. Depois, ainda sobre o mesmo tema,
os mesmos escritores produzirão em uma mesma Língua. E o leitor desco-
brirá a nacionalidade de cada um, debaixo de cada um, debaixo da apa­
rência uniforme da mesma Língua. É que cada escritor trará na sua alma
os modelos imperecíveis de beleza que tem impressos no fundo de sua
personalidade, refletindo o sentimento do seu povo. A obra de arte revela
a origem e a educação do artista. Onde quer que ele se encontre, sempre
criará segundo as linhas originárias de sua educação artística. Nosso meio,
nosso tempo, nossos ideais comuns modelam-nos definitivamente. O artis-
ta confunde-se com a sua criação. Toda obra criada é um alter ego do seu
criador. É a liberdade criadora na Arte que faz a originalidade das obras,

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 249


mas, em um museu, reunidas as obras, o espectador reconhecerá, debaixo
de cada obra, um traço comum que as identifica.
É a alma nacional que está ali, dando um ar de família que une os artis-
tas e lhes dá unidade na diversidade.
O que importa é a educação do artista. Se o homem é realmente ar-
tista, sua obra sempre explicará seu meio e seu tempo. Pode classificar-se
e agrupar-se todo o acervo criado pela Arte, em Escolas, e descobrir-se um
mestre para cada Escola. Mas, no conjunto, as obras todas se identificarão
como sendo a arte de um determinado povo. Um quê misterioso as aduna e
irmana, surgindo um fundo comum na variedade e diversidade das criações.
Ora, a Justiça é o juiz. O que importa é a educação do juiz, a formação do
jurista, nutrido por um sentimento comum de nacionalidade, um sentimento
comum de amor a seu povo, seu meio, seu tempo, e ao espírito do seu Di-
reito. Cada povo tem seus padrões de Justiça, que se formam lentamente e
se imprimem na alma do homem. No dia em que o homem assume a terrível
e dolorosa fun­ção de julgar, ele julgará segundo aqueles padrões de Justiça
que traz em si e consigo. Mas é necessário que tal homem se tenha educado
para a função. Ponham-se lado a lado dois homens – um jurista, educado
para a função de julgar; outro leigo, mas homem de senso comum, tipo nor-
mal, um bom varão. Dê-se-lhes a ambos o mesmo caso, para que decidam.
E ver-se-á que um usará de uma linguagem técnica, apropriada; outro usará
sua linguagem pessoal, sem propriedade, nem técnica. O re­sultado porém
será o mesmo, em termos de Justiça. Tudo na produção de ambos poderá
variar, menos a conclusão, porque ela se nutrirá de um fundo comum de
inspiração – o sentimento nacional de Justiça, que cada povo tem, e de que
cada alma se embebe naturalmente. É que há um Direito Natural que reside
e demora no fundo do nosso ser. Vem conosco desde o nascimento. Sempre
houve Justiça, antes de haver os Códigos. Cada povo tem seus Códigos de
Leis. Cada Código trará codificada a alma da nação e do povo. Cada povo tem
seus juízes. Cada povo tem suas demandas postas perante seus juízes. E, por
mais diversos que possam ser tais Códigos, os resulta­dos dos julgamentos
serão sempre os mesmos, em termos de Justiça. A Justiça está na alma do
juiz. Não está nos Códigos. A Justiça é o juiz.
Não chego a pensar no juiz sem instrução, sem formação jurídica. E
por vezes tenho a tentação de pensar em uma Escola de juízes. Mas, quando
en­tro a meditar no espantoso fenômeno dos artistas populares, que nun-
ca aprenderam em uma escola, e todavia sua arte impressiona e por vezes
até sobrevive à obra dos artistas que cursaram Academias, e frequentaram
Mestres afamados, recaio na crença de que o bom juiz é o que tem em si e

250 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


consigo mais vivos os sentimentos de justiça que ele captou com a sensibi-
lidade pura de sua alma. A História da Arte está plena de nomes de homens
que em nenhum tempo cursaram aulas, nem ouviram Mestres. Se se fizesse
a milenar História da Justiça, é possível que nela se lessem nomes de ho-
mens que nunca estiveram em nenhum curso e, contudo, fizeram sua obra
de Justi­ça. Em que texto legal foi Salomão buscar a solução para o litígio das
duas mulheres que pleiteavam a mesma criança, cada qual alegando ser a
mãe? E nenhuma sentença terá sido tão rigorosamente justa. Partiu Salo­
mão de um princípio geral, de uma, por assim dizer, máxima de experiência,
a saber: mãe nenhuma que ver mor­to seu filho. Ora, esta quer a morte da
criança, logo ela não é a mãe. Entregue-se a criança àquela que quis poupar-
lhe a vida, porque ela é a mãe. Pura obra de bom senso, de lógica trivial, de
uso cotidiano.
Creio na Justiça, porque creio no Juiz; creio na obra edificante da Jus-
tiça, porque creio na virtude e na pureza de sentimento do juiz que a realiza,
entre agonias e dores de alma; creio na Justiça, porque ela, embora sendo
feita por homens, esses homens têm seus olhos postos em Deus e acreditam
esta­rem servindo-o, nas horas insones do seu dignificante trabalho; creio na
Justiça, porque creio que os juízes não exercemos uma profissão, mas um
sacerdócio, e reza­mos antes de pôr no papel a conclusão do nosso exame e
atento estudo; creio na Justiça, porque, antes da sentença, entramos em diá-
logo com Deus, buscando nele a inspiração para os nossos julgamentos; creio
na Justi­ça, porque creio na humildade do juiz, submisso aos ideais jurídicos
do seu tempo e do seu povo, criando para a eternidade, embora operando
sobre casos parti­culares; creio na Justiça, porque creio no Direito Na­tural
impresso na alma do juiz. Creio na Justiça, por­que creio nas Catedrais inaca-
badas, obra de muitos e estranhos arquitetos-construtores, sempre continu-
ada por diversa mão, todavia, dentro da traça e das linhas originárias, apesar
dos séculos gastos em seu acabamento. Creio no Homem, creio na Justiça,
como creio nas Catedrais feitas por mãos humanas, mas em louvor e pa­ra
maior glória de Deus. Do plástico e impuro barro de que fomos feitos, os
juízes trazemos em nós o sopro divino que vivifica e espiritualiza a obra que
realizamos por destino e vocação do nosso ser. Creio na Justiça porque creio
em Deus, e, porque creio em Deus, creio no Homem feito à sua imagem e se-
melhança. Somos filhos mimosos da graça divina que nos impele e nos ajuda
no realizar a imperecível obra da Justiça. Somos operários não apenas de um
povo ou de uma Nação, mas operários da Humanidade, para ela produzindo
e para ela contribuindo, mesmo que seja com a mais humilde e pequenina
sentença, contando que nela haja uma resposta às angústias da dolorida pes-

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 251


soa humana. Como no paralelo que fez Castilho entre os dois grandes Padres
Vieira e Bernardes, pode também dizer-se aqui o que do segundo lá disse o
clássico: os juízes ainda falando e senten­ciando para homens, temos os olhos
postos em Deus. Ao lado e junto aos Códigos, está aberta nossa Bíblia, que
lemos antes de começar, com trêmula mão, a sentença que decidirá para
sempre do destino de um homem.
Servimos ao construído, mas sem perder de vista o dado, porque
aquele é transitório, cadivo e mutável, segundo o tempo, o lugar e as ideias
de uma época; este, porém, é imutável, eterno, porque se nutre de ideais
que estão fora do tempo e das contingências efêmeras. Não somos rebela-
dos, nem insubmissos, e, pois, servimos e catamos respeito ao Direito Positi-
vo. Todas as potências de nossa alma de juízes estão todavia voltadas para o
intemporal, para o que permane­ce. Temos o tropismo de Deus. Estamos dia-
riamente no monte da transfiguração. Construímos nossa casa na montanha,
longe do cotidiano efêmero, a mais trágica de todas as realidades. A nossa é
uma tarefa de “apesares”. Apesar de tudo, fazemos nossa obra, e, no mais
soberbo de todos os “apesares”, fazemos Justiça, até mesmo apesar da Lei. É
aqui, nesse trágico momento, que subimos, entre amarguras, ao cimo sagra-
do da nossa Arte. É a divina rebeldia do espírito que, por um momento, nos
ca­noniza, embora apedrejados. Este é o instante supremo do juiz, porque
sentiu o Direito, e, pois, sentiu a sentença. Na beleza originária da semântica
das duas palavras, elas são gêmeas, nasceram juntas. E só é boa a sentença
que foi sentida, antes de ser proferida.
Somos jardineiros de almas. Somos operários de Catedrais, e, pois,
temos de ter aquilo a que Sauer chamou a “visão gótica” da vida e dos ho-
mens. Se a Justiça tivesse de ter sua Bandeira, seu símbolo significativo, te-
ria de tê-la em vermelho, negro e ou­ro. No vermelho, estaria a ação, a luta
dos interesses humanos; no negro, a dor e a angústia da tormentosa espera,
durante o processo. No ouro estaria o resultado da ação e do processo por
obra da sentença. Quando penso na Justiça, só vejo Catedrais. Quando pen-
so em Catedrais, só vejo juízes trabalhando anonimamente. Nunca ninguém
perguntou, na hora do culto, quem fez a Cate­dral. Nossa glória reside no
anonimato. Nossa grandeza está na humildade. Pobres de bens temporais.
Ricos de valores eternos guardados na intimidade agônica da nossa vida sa-
cerdotal. De dia, na pompa simbólica de nos­sa Toga, cigarras que cantam,
tornando amáveis as ho­ras dos homens; ao entardecer e dentro da noite,
formigas que, incansáveis, trabalhamos no negro trigal das dores alheias.
E aqui cabe aquilo da Bíblia: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão
se têm posto ao trabalho os que a edificam; (...) Em vão vos levantais vós

252 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


antes de amanhecer; levantai-vos depois que houverdes repousado, vós que
comeis o pão de dor”.
“Aquele que leva a preciosa semente, andando e chorando, voltará,
sem dúvida, com alegria, trazendo consigo os seus molhos.”
Assim, nós, os juízes.
Do advogado
Desde antigo se disse que o Juízo se compõe de três pessoas, a saber:
juiz que julga; autor que pede; e réu que se defende. Realmente são as três
pessoas infaltáveis no Juízo. É certo que o réu não tem de estar efetivamente
presente, bastando que tenha sido, pela citação, posto em condições de es-
tar presente. A revelia é uma dimensão de sua liberdade.
Atenderá ao chamamento judicial se quiser. Não é uma obrigação: é um
ônus estar presente e fazer sua defesa. Mas no trium personarum, que entrava
na definição an­tiga do Juízo, não se encerra toda a verdade, porque falta, sem
dúvida possível, uma quarta pessoa de total indispensabilidade. Essa quarta e
encantadora persona­gem do Juízo traz o egrégio nome de Advogado. Disse o
maior dos advogados que teve o Brasil que não há Justiça sem Deus. Mas, de
minha parte, acrescento ao imortal dito do Rui que também sem a presença
do Advogado não há Justiça. É ele quem ilumina os escuros caminhos do juiz;
ele escolhe e elege os materiais para a cognição do julgador; ele neutraliza os
ódios do litigante, retirando da ganga impura da fabulação dos fatos desneces-
sários apenas aqueles que serão úteis à causa, minorando a tarefa do que há
de julgar: ele pacifica, mediante sua palavra austera, os arrebatamentos da-
quele que vai a litigar, depurando a massa informe dos acon­tecimentos, para
só deixar, sobrenadando à escória dos elementos impertinentes, aqueles que
realmente interessam ao mérito da causa. É ele quem, na severa eloquência
do seu disciplinado raciocínio, seleciona os argumentos adequados e que guar-
dam relação com a matéria a ser debatida. É ele que adoça, com sua delicadeza
verbal, as asperezas da linguagem da parte, cujos interesses patrocina. Ele, só
ele, sabe dizer, em poucas palavras, tudo que importa dizer na defesa de seu
constituinte. Digam os que passaram a mais bela porção de sua vida julgando,
quanto esforço inútil é poupado ao juiz pelo trabalho honesto do Advogado,
expondo com clareza e precisão, mas sereno, as tumultuárias razões que o
cliente, na exasperação do conflito, quer fazer chegar até o Juiz. É ele quem
afasta do Foro as demandas infundadas, no conselho justo, dissuadindo o liti-
gante de ajuizar causa sem êxito provável. É ele quem, no silêncio de seu gabi-
nete, recolhendo os informes do cliente, promove a conciliação, apaziguando
almas desavindas. Ele, o sacerdote, o missionário do culto da Justiça, é quem

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 253


afasta com as energias de sua severidade a testemunha perversa, apostada
em desviar o curso da verdade, não aceitando a imposição da parte que lhe
apresenta a testemunha inidônea, para depoimento de favor. É ele que, com
seu acurado estudo e saber, concorda as discrepantes doutrinas, e apresenta
ao juiz aquela que melhor convém ao caso. É ele que, nas longas vigílias de seu
gabinete, procura e acha, com diligente mão, os precedentes jurisprudenciais
que se ajustam à hipótese ajuizada, facilitando o trabalho do juiz. É ele ain-
da que, na amargura de sua derrota, cansado da luta da causa perdida, entre
horas de quase desânimo, arrazoa, em linguagem polida, embora enérgica, o
recurso que leva e reapresenta a causa em segunda instância, a buscar a jus-
tiça que lhe pareceu faltar na decisão do juiz singular. E, na solene tribuna do
segundo grau, expõe, argumenta, analisa, e, mal a seu grado, critica a sentença
recorrida, pedindo com as forças de sua convicção, mas com as delicadezas de
sua educação profissional, a reforma da decisão. Se alcan­ça vitória, volta-se
para seu lugar, na discreta ale­gria de quem soube vencer; se perde, volta a
seu lugar, e de lá contempla, sem rancor nem desprezo, a figura dos juízes que
decidiram contra seu pedido de reforma. E, da sala dos tribunais, sai fortale-
cido na confiança de que os que julgaram fizeram a justiça que lhes pareceu.
Muitas vezes leva consigo, dentro da alma em cha­gas, o desespero da derrota,
mas sem uma palavra de amargura, sem um gesto de descortesia, porque crê
na Justiça e crê nos juízes e sabe de certeza que o Direito é, por sua própria
essência, como obra dos homens, eternamente polêmico. E resigna-se.
Por quatro décadas de anos tenho vivido neste mundo encantado do
Foro. Vi e ouvi os gran­des Advogados do meu tempo. Antes da hora da tri-
buna, intranquilos, agitados, pensativos, e sempre delicados; vi-os, na subli-
midade do seu momento de explanação oral, solenes e graves, deduzindo
perante o tribunal, silente e atento, as razões de seu recurso. Vi-os aguarda-
rem o desenrolar dos votos, de juiz a juiz, passando a palavra de provimento
ou não provimento, em uma expectação dolorosa, contando os pronuncia-
mentos, sem­pre com o mesmo semblante amável. Vi-os vitoriosos, mas hu-
mildes, deixando a sala em reverente e discreta curvatura à deusa da Justiça
e à Toga dos Juízes. Vi-os derrotados, deixando a mesma sala, lado a lado
com o colega vencedor, menos e mistos, sem uma contração no rosto can-
sado, sem uma palavra de desabafo, lentamente deixando o seu jardim de
tormentas, lançando um derra­deiro olhar, sem dureza nem mágoa, àqueles
que, com seus votos, não lhes acolheram o recurso. É que ambos, vencedor
e vencido, sabiam que a Justiça não foi feita para agradar, mas para julgar,
mesmo contra aqueles a quem se daria um pouco de nossa vida para vê-los
felizes na sua profissão. Não vi, mas sei de um nobre e glorioso advogado

254 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


que, acabada a sessão de julgamento, perdida a causa, saía, cordial e amisto-
so, de bra­ços com o impecável juiz que acabara de votar contrariamente ao
recurso do amigo. Indiferença pela causa, desamor ao problema do cliente,
desinteresse pela de­manda que lhe foi confiada? Não. Confiança na Justi-
ça, confiança nos juízes, convicção de que o Direito é e será para sempre
essencialmente polêmico. Desgraçada a Justiça que não tivesse, nas salas
das audiências, a voz intemerata e intimorata do advogado, pleiteando sua
realização. Pobres de nós, juízes, se não tivéssemos a nosso lado, enérgi-
co e solícito, o advogado apontando-nos o rumo de nossas decisões. Fico a
imaginar como seriam nossas sentenças se a vigilante e incansável operosi-
dade do advogado não carreasse para os autos o rico material de que elas
se nutrem e se substanciam. Toda sentença é obra de dor, que só não é um
maior e constante exercício de angústia porque confiamos na sincera e leal
cooperação do advogado, que, nas peças de seu contraditório, nos oferecem
os múltiplos elementos da convicção em que nos apoiamos e de que nos
servimos confiadamente. Nas palavras derradeiras com que, desvestindo-se
da impoluta Toga que enobreceu, se despediu do Tribunal a que deu toda
majestade de sua vida de juiz, o egrégio Ministro Laudo de Camargo, em um
conciso e lapidar panegírico, exaltou o advogado, com estas palavras de fino
e acabado lavor de alma: “o nome de certos advogados em uma petição é já
meia prova feita”. E todos que envelhecemos no jardim de Júpi­ter repetimos
com abundância de coração o formoso e justo elogio do encanecido lidador.
Advogados e juízes, operários do Direito, construímos juntos a obra
imperecível da Justi­ça. Trabalhando com os impuros materiais dos conflitos
humanos, vamos lentamente criando belezas, edificando a paz, tornando
mais amável a vida dos homens, até que o Amor substitua as perecíveis e
caducas soluções en­gendradas pela técnica a serviço do Direito.
Não penso na canonização do advoga­do, mas penso na santificação
de sua vida posta a serviço da Justiça, servindo o cliente, é certo, mas, so­
bretudo, com os olhos voltados para a realização do Direito. Enquanto o
mundo necessitar do Direito, será a nós, juízes e advogados, que ele terá de
o encomendar. Do nosso lento labor sairão os moldes em que o legislador
fundirá o bronze das leis do futuro.
O julgamento da causa envolvia a atenção de quantos assistiam àque-
la movimentada sessão do Tribunal. E, quando o derradeiro juiz acabava
de proferir seu luzido voto, fez uma pausa e, solene, na austeridade de sua
Toga, afirmou esta espetacular e consagradora verdade que iluminou com
esplêndido cla­rão a vida já de si esplendente de êxito profissional do imenso
advogado que foi Jorge Fontanelle: “não teria hoje este Tribunal um dia me-

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 255


morável na sua história, nem haveria esta nunca vista ação, se não houves­se
entre nós um advogado como este, que a criou com as galas do seu saber e
do seu brio profissional”. É as­sim que entendo o advogado. É assim que sinto
e amo a advocacia, sem a qual não haveria Justiça possível. O juiz sozinho,
ainda que seja um Marshall ou um Holmes, ou um Cardoso, ou um Edmun-
do Lins, ou um Pedro Lessa, ou um José Antônio Nogueira, e sei lá quantos
outros iluminados do Direito houve e haverá na vida dos Tri­bunais, o juiz
sozinho nunca faria Justiça, mesmo que entrasse em diálogo com os deuses
antes de julgar, se não tivesse junto a si, na beleza imaculada da Beca, a figu-
ra incorruptível do advogado.
Quanto mais tempo despendermos os juízes, ouvindo e lendo os ad-
vogados, mais fácil se tornará nossa tarefa de julgar. A Toga é irmã gêmea
da Beca. E, coberta por ambas, e do calor de ambas, nasce, envolvida na
pulcritude de suas formas, a sentença justa, a olorosa flor dos julgamentos
humanos.
Depois do púlpito sagrado do Sacerdote que evangeliza, com a unção
de sua palavra, só a sublimidade da tribuna forense com ele rivaliza, na pala-
vra ungida do Advogado.
Sem a presença augusta do advogado, as salas das audiências corre-
riam o risco de se converterem em reino do arbítrio, onde, possivelmente,
se instalaria a pior e mais danosa de todas as ditaduras – a ditadura judici-
ária. E, quando escrevo isso, de uma coisa só me lembro: daquilo que disse
o advogado perante o tribunal – “depois que me ouvirdes, eu vos darei a
minha cabeça”. Só me vem à lembrança outra figura inesquecível, a de Zola,
consentido e glorioso patrono do inocente convertido em réprobo, todavia
reabilitado e purificado pela voz da defesa.
Se é verdade, e é, que sem Deus não pode haver Justiça, também é
verdade que sem advogado nunca poderá haver uma boa Justiça.
E fica o homem que fez do Foro seu segundo e respeitável lar pensa-
tivo e saudoso de um tempo em que, antes dos julgamentos, juízes, advoga-
dos e partes, contritos, ouviam a missa celebrada por um sa­cerdote de Deus.
E depois, acabada a oração, todos iam a julgar os homens e seus problemas.
Todo Foro é um Templo, uma pequenina e emocionante Catedral.
E, finalizando este mofino capítulo, dou-lhe magnificência, vestindo-o
com a pompa desta página do imortal Couture. Meditem-na aqueles que
um dia assentaram, de si consigo, serem Advogados, só Advoga­dos, na mais
amável doação que o homem pode fazer de sua vida. Vai o texto na pulcra
e sonorosa beleza da Língua em que foi pensado e escrito o Decálogo do
Advogado.

256 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


A inconstitucionalidade das alterações na pensão por
morte (decorrentes das modificações promovidas pela
Lei 13.135/15 no art. 77 da Lei 8.213/91)
Marcus Orione
Juiz Federal, Professor Livre-Docente da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo

I) Uma advertência necessária


Não pretendemos, aqui, fazer uma análise do tema a partir do referencial
teórico a que estamos nos dedicando mais recentemente e que se insere nos
marcos da crítica marxista do direito em geral e dos direitos sociais em particular.
Chamamos atenção, portanto, para as advertências que fizemos no
artigo “A legalização da classe trabalhadora – uma leitura a partir do recorte
da luta de classes”, que escrevemos em obra comemorativa dos 40 anos da
Anamatra (In: ARIANO, Silvana Abramo; FELICIANO, Guilherme Guimarães;
GRILLO, Sayonara; SANTOS, José Aparecido dos [orgs.]. Direito do trabalho:
releitura, resistência. São Paulo: LTr, 2017. p. 139-154). Ali, estabelecemos
em que perspectiva deve atuar o jurista marxista em matéria de direitos fun-
damentais dos trabalhadores, atuação que será sempre tímida em relação à
leitura de classe que envolve a crítica marxista do direito.
Portanto, para que se esteja atento às armadilhas contidas em qual-
quer texto positivista, como o presente, convidamos o leitor à necessária lei-
tura do mencionado artigo. Nessa linha, quando falarmos em igualdade, por
exemplo, não estaremos realizando a crítica marxista, mas admitindo, para
fins de uma análise meramente positivista, os pressupostos que deveriam
minimamente ser respeitados em uma democracia liberal.
Fizemos essa concessão de leitura positivista a que procederemos em
vista da necessidade da busca, no campo limitado e específico do direito, do
afastamento de uma das disposições que reputamos mais prejudiciais, nos
últimos anos, aos trabalhadores individualmente considerados – no caso, a
coletividade dos segurados. Não se trata, portanto, de uma análise de classe,
intrínseca à crítica marxista.
II) Sobre o tema
Partindo dessa análise exclusivamente positivista, como é de conhe-
cimento vulgar, encontra-se assentado na jurisprudência dos tribunais su-

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 257


periores que a pensão por morte é regida pela legislação do instante do
óbito do segurado. Ainda que se discorde dessa premissa, não há como
afastá-la, em vista de se tratar de remansoso entendimento jurispruden-
cial.
Portanto, diante de óbitos posteriores ao advento da Lei nº 13.135/15,
há que se considerar as importantes (e restritivas) alterações que promoveu
no art. 77 da Lei 8.213/91, com destaque para a disposição abaixo:
Artigo 77.
[...]
§ 2º O direito à percepção de cada cota individual cessará:
[...]
V – para cônjuge ou companheiro:
a) se inválido ou com deficiência, pela cessação da invalidez ou
pelo afastamento da deficiência, respeitados os períodos mínimos de-
correntes da aplicação das alíneas b e c;
b) em 4 (quatro) meses, se o óbito ocorrer sem que o segurado
tenha vertido 18 (dezoito) contribuições mensais ou se o casamento
ou a união estável tiverem sido iniciados em menos de 2 (dois) anos
antes do óbito do segurado;
c) transcorridos os seguintes períodos, estabelecidos de acordo
com a idade do beneficiário na data de óbito do segurado, se o óbito
ocorrer depois de vertidas 18 (dezoito) contribuições mensais e pelo
menos 2 (dois) anos após o início do casamento ou da união estável:
1) 3 (três) anos, com menos de 21 (vinte e um) anos de idade;
2) 6 (seis) anos, entre 21 (vinte e um) e 26 (vinte e seis) anos de
idade;
3) 10 (dez) anos, entre 27 (vinte e sete) e 29 (vinte e nove) anos
de idade;
4) 15 (quinze) anos, entre 30 (trinta) e 40 (quarenta) anos de idade;
5) 20 (vinte) anos, entre 41 (quarenta e um) e 43 (quarenta e três)
anos de idade;
6) vitalícia, com 44 (quarenta e quatro) ou mais anos de idade.
[...]
Como veremos a seguir, os requisitos exigidos pelo parágrafo 2º do
art. 77 da nova legislação não resistem a uma análise constitucional mais
acurada.
No entanto, para que possamos proceder à verificação da constitucio-
nalidade das disposições anteriores, urge que façamos uma tabela compara-
tiva da mudança legislativa, a saber:

258 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Direito à pensão por morte do cônjuge ou companheiro(a):
Lei 8.213/91 MP 664/2014, de 30.12.2014 Lei nº 13.135/15, de 17.06.2015
C o m p r o v a r Art. 74, § 2º: O cônjuge, companhei- Comprovar o casamento ou a
o casamento ro ou companheira não terá direito união na data do óbito.
ou a união na ao benefício da pensão por morte
data do óbito. se o casamento ou o início da união
estável tiver ocorrido há menos de
dois anos da data do óbito do insti-
tuidor do benefício, salvo nos casos
em que:    
Do prazo de recebimento do benefício pelo cônjuge ou companheiro(a):
Lei 8.213/91 MP 664/2014, de 30.12.2014, art. Lei nº 13.135/15, de 17.06.2015,
77, § 5o art. 77, V, b e c:
Vitalício O tempo de duração da pensão por b) em 4 (quatro) meses, se o óbito
morte devida ao cônjuge, compa- ocorrer sem que o segurado tenha
nheiro ou companheira, inclusive na vertido 18 (dezoito) contribuições
hipótese de que trata o § 2º do art. mensais ou se o casamento ou a
76, será calculado de acordo com união estável tiverem sido inicia-
sua expectativa de sobrevida no mo- dos em menos de 2 (dois) anos
mento do óbito do instituidor segu- antes do óbito do segurado;
rado, conforme tabela abaixo:   c) transcorridos os seguintes pe-
Expectativa de sobrevida à idade x ríodos, estabelecidos de acordo
do cônjuge, companheiro ou com- com a idade do beneficiário na
panheira, em anos (E(x)) data de óbito do segurado, se o
Duração do benefício de pensão por óbito ocorrer depois de vertidas
morte (em anos) 18 (dezoito) contribuições men-
sais e pelo menos 2 (dois) anos
55 < E(x) após o início do casamento ou da
3 união estável:
1) 3 (três) anos, com menos de 21
50 < E(x) ≤ 55 (vinte e um) anos de idade;
6 2) 6 (seis) anos, entre 21 (vinte
e um) e 26 (vinte e seis) anos de
45 < E(x) ≤ 50 idade;           
9 3) 10 (dez) anos, entre 27 (vinte e
sete) e 29 (vinte e nove) anos de
40 < E(x) ≤ 45 idade;          
12 4) 15 (quinze) anos, entre 30 (trin-
ta) e 40 (quarenta) anos de idade;          
35 < E(x) ≤ 40 5) 20 (vinte) anos, entre 41 (qua-
15 renta e um) e 43 (quarenta e três)
anos de idade;
E(x) ≤ 35 6) vitalícia, com 44 (quarenta e
vitalícia quatro) ou mais anos de idade.

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 259


Há que se ressaltar, por fim, o disposto no art. 5º da Lei nº 13.135/15,
segundo o qual “os atos praticados com base em dispositivos da Medida
Provisória no 664, de 30 de dezembro de 2014, serão revistos e adaptados ao
disposto nesta lei”.
Feitas essas observações preliminares, há que se constatar que a de-
limitação de tempo de duração da pensão (que passaria a ser provisória,
observadas as faixas etárias) e a necessidade de um lapso prévio de contri-
buição ou de existência do casamento ou de união estável, constantes das
disposições legais destacadas, não resistem a uma análise constitucional
mais minuciosa. Vejamos.
O ato de interpretar, a partir da Constituição, implica a adequação do
ordenamento jurídico aos princípios constitucionais e, no plano dos direitos
humanos, até mesmo a postulados supranacionais do direito. Aqui estamos,
obviamente, diante de terreno extremamente fértil à investigação, pois nos
remete à questão dos princípios constitucionais e da elaboração de um sis-
tema normativo, em especial um sistema normativo voltado para os direitos
sociais e, em particular, para a segurança social.
Passemos, portanto, a discorrer de forma mais minuciosa a respeito
desta metodologia que deve ser perseguida para a compreensão diária do
direito da segurança social.
Na verdade, parte-se de uma constatação óbvia de que a Constituição
é que rege o sistema. A leitura, portanto, deve ser a partir da Constituição,
e não a partir dos atos normativos infraconstitucionais ou mesmo dos atos
administrativos que, aparentemente, possuem efeito normativo. Estamos a
afirmar que, em especial em matéria previdenciária, não é possível ceder
à primeira tentação de dizer o direito apenas a partir daquilo que dizem as
instruções normativas, as portarias e os demais atos administrativos. Em di-
reito de segurança social, especialmente previdência e saúde, há uma proli-
feração enorme de atos administrativos, o que é compreensível, na medida
em que essas duas áreas de atuação do direito estão ligadas essencialmente
ao Direito Administrativo. Nesse contexto, temos que a administração públi-
ca, regendo situações envolvendo previdência e saúde, normalmente edita
portarias, instruções normativas e ordens de serviço. É claro que a primeira
tentação do Poder, enquanto detentor de certas prerrogativas, é, por meio
de atos administrativos, limitar, cercear a liberdade individual e, também, a
liberdade social. Certo é que, dentro de um contexto maior, se fizéssemos
uma dicção do sistema apenas a partir desses atos de natureza administra-
tiva, teríamos sérios problemas na construção do direito. O que se sugere é
que façamos a leitura a partir da Constituição.

260 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Aqui, obviamente, há que se adiantar o seguinte: o sistema de segu-
rança social é um sistema que se encontra, a partir de 1988, originariamente
em sede constitucional. A segurança social passou a ser segurança normativa
e, mais, segurança normativo-constitucional. Obviamente, o melhor ambien-
te para o estudo de um conceito de segurança social é o âmbito da Constitui-
ção. Portanto, deve-se partir do pressuposto da necessidade da análise dos
termos constitucionais e dos princípios constitucionais.
Os termos constitucionais seriam aqueles que estão na Constituição
e que, por meio do ato interpretativo, emergem do sistema. Os princípios
são elementos indispensáveis para a própria construção do conceito. Por-
tanto, a leitura sugere uma conjugação dos princípios que informam o ter-
mo constitucional. Em algumas oportunidades, tendo em vista que esta-
mos diante de regras constitucionais, ainda aqui será possível o recurso aos
princípios, não para afastar o caráter explícito da regra, mas para reafirmar
o seu conteúdo ou aumentar a sua efetividade.
Ora, se existe um termo como previdência em matéria constitucional,
ou mesmo saúde, é da Constituição que emergirão os conceitos inerentes
aos sistemas de previdência e de saúde. Esses conceitos, por sua vez, so-
mente serão revelados na medida em que constatarmos quais os princípios
fundantes da previdência ou de saúde em dado modelo de Estado. É óbvio
que, dentro desse contexto, estamos buscando a unidade política por meio
dos princípios, e essa unidade política somente encontra conforto na própria
Constituição, que é o pacto maior, o pacto que deve ser preservado, o pacto
sob o qual convivemos. Sugerimos uma interpretação em que a descoberta
do termo constitucional se faz por meio de um modelo de interpretação
constitucional.
Nesse sentido, existem vários exemplos. No caso de uma pensão de
uma filha que vive com um médico rico e que tem uma mãe pobre. Essa filha
sustenta a mãe. Morrendo a filha, subsiste o direito à pensão. Essa pensão, se
usarmos o artigo 16, I, combinado com o seu parágrafo 1º, da Lei 8.213/91,
iria para o marido. No entanto, o marido é rico, e a mãe, que poderia postu-
lar essa pensão também, é pobre. Em um contexto de mera legalidade de-
corrente da combinação das disposições legais supra, teríamos uma solução
propensa ao marido. Só que essa solução perverte o conceito de previdência
e o conceito de dependência previsto no artigo 201 da Constituição Federal.
Não há dependência do marido, a dependente é a mãe. Então, na verdade,
há que se possibilitar, no mínimo e em vista da própria redação do art. 201 e
do conceito de dependência, a divisão do valor do benefício. A solução não
é “contra legem”, a despeito da redação do art. 16 da Lei 8.213/91, já que se

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 261


preserva o princípio constitucional. Diante do fato concreto, temos a ideia de
que quem deve ser contemplado com essa pensão é a própria mãe, mesmo
porque, se lermos o artigo constitucional, há uma possibilidade de que ela
seja contemplada. O art. 201 dá essa possibilidade. Então, na Lei 8.213/91,
teremos uma solução. Já ao lermos a Constituição, teremos outra solução.
Mas a Lei 8.213/91 deixou de existir? Não, ela está lá, aquele é um patamar
a partir do qual nos guiamos para grande parte das situações. Mas, na hi-
pótese concreta, um cotejo dos princípios e da ideia de dignidade humana
sugeriria uma solução que, embora diferente do artigo ali exposto, do art.
16, I, II e § 1º, na verdade assegura o conceito constitucional de segurança
social. Só é possível esse tipo de ilação dentro de uma construção concei-
tual da Constituição: da ideia do termo, da busca do termo, da busca do
que seja a segurança social. Não é segurança social, certamente, o amparo
ao marido rico. O amparo à mãe, nesse caso, está dentro da própria ideia de
previdência, da própria noção de pensão, do próprio conceito constitucional
de pensão, que está ligado à ideia de dependência.
Apliquemos essa mesma dinâmica de interpretação ao disposto no
art. 77, parágrafo 2º, da Lei 8.213/91 e a solução implicará o seu imediato
afastamento, com a preservação das pensões de forma vitalícia e sem qual-
quer requisito prévio de pagamento de contribuições por parte do segurado
ou de determinado lapso de existência do casamento ou da união estável.
As hipóteses acima afrontam diretamente o que a Constituição pre-
tende por pensão por morte como elemento componente de um sistema de
segurança social. Ora, quando a Constituição indica a expressão “nos termos
da lei”, não deseja permitir jamais que exista redução no seu conceito posto
constitucionalmente.
Na forma do art. 201, inciso IV, da Constituição, cônjuges e compa-
nheiros são dependentes necessários, que sequer precisam demonstrar
dependência (o que deflui da simples leitura dessa disposição, que fala em
concessão do benefício pensão por morte, nos termos da lei, ao cônjuge e ao
companheiro ou dependente). Da literalidade, pelo uso da expressão “ou”,
houve uma nítida diferenciação constitucional entre as figuras do cônjuge
ou companheiro, que não se confundem com aqueles que são dependen-
tes do segurado no instante do falecimento. Assim, o art. 16 da Lei de Be-
nefícios deveria, necessariamente, observar a literalidade da Constituição e
não tratar de forma diversa o que ali vem previsto – concebendo cônjuge e
companheiro como se fossem dependentes, o que, no entanto, apenas viria
mitigado pelo fato de que a “dependência” ali prevista decorreria de presun-
ção absoluta.

262 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Logo, nos casos de casamento e união estável, estamos diante de hi-
pótese constitucional em que a pensão deverá se dar imediatamente, não
havendo como se impor limites temporais relativos ao casamento ou à união
estável ou de qualquer outra natureza. Não há sentido constitucional, por-
tanto, em se conceber o benefício apenas após alguns anos de casamento ou
concubinato ou de contribuição do segurado. Da mesma forma, pressupon-
do uma dependência, não há consistência em vincular a existência do bene-
fício a certo lapso de tempo, segundo faixas etárias. Perceba-se ainda que,
além de afrontar o conceito de segurança social, a introdução de requisitos
prévios de duração de casamento e união estável conspira também contra os
dispositivos constitucionais que regulam a família. Ora, a família constituída
pelo casamento ou pela estabilidade da união estável é protegida como cer-
ne das disposições constitucionais sobre o tema.
Assim, nada obsta que a lei verse sobre pensão, mas não pode fazê-lo
de forma a modificar ou dificultar o acesso ao benefício na forma como pre-
visto, pelo poder constituinte originário, no texto constitucional.
Repetindo, se fizermos uma interpretação literal do art. 201, inciso V,
da Constituição, a pensão é garantida ao cônjuge e ao companheiro ou de-
pendente. Há uma expressão alternativa que, mais do que tudo, indica que
cônjuge e companheiro sequer devem ser considerados, para fins da pensão
por morte, como dependentes. Trata-se, na realidade, de espécies de benefi-
ciários necessários, indicados constitucionalmente como tais, o que decorre
imediatamente do matrimônio ou da união estável, não podendo ser desfeito
por disposição infraconstitucional que, partindo de um pressuposto equivo-
cado (em todos os sentidos) de dependência, os coloca sob a proteção social
somente após o cumprimento de certas exigências e apenas por certo lapso
de tempo (observadas faixas etárias). Frisando, não há sequer que se falar
aqui em dependência, já que a Constituição distinguiu as coisas, mas sim de
beneficiários legais necessários diante de um fato imediato (casamento ou
união estável). Disso decorre que a condição de cônjuge ou de companheiro
somente é aferível até o instante da morte, não podendo ser delimitado pos-
teriormente o período de percepção do benefício, com base em pressupos-
tos equivocados de dependência. Veja-se que este é exatamente o exemplo
“ótimo” de tudo que falamos anteriormente: há um termo constitucional,
decorrente aqui não apenas da conjugação dos princípios de proteção do
sistema de segurança social, mas de uma regra constitucional informada por
tais princípios e que não pode ser alterada pela norma infraconstitucional.
O cônjuge e o companheiro, na medida em que são beneficiários, sem-
pre, da pensão por morte, não podem ser analisados a partir da noção de

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 263


dependência. Assim, presumir-se que, até certa faixa etária, o cônjuge terá,
por exemplo, mais facilidade de deixar de ser dependente, uma vez que,
quanto mais jovem, mais fácil a sua absorção pelo mercado, conspira con-
tra a própria literalidade do texto constitucional, já que não estamos diante
de caso de dependência, como exaustivamente mencionado. Portanto, essa
presunção legal não resiste à análise do conceito constitucional de pensão
por morte para cônjuges e companheiros. Da mesma forma, requerer, para
certas hipóteses, algum tempo de contribuição ou de casamento ou de união
estável não tem sentido à luz do texto constitucional. Veja-se que, no caso da
união estável, para fins de direito de família, a própria jurisprudência afas-
tou qualquer necessidade de tempo de duração da união para fins de seu
reconhecimento. Se isto se deu em relação ao direito de família, a partir do
que diz a Constituição na parte específica, com muito mais razão há que se
determinar o seu afastamento para fins de direito previdenciário, em que o
princípio da solidariedade demanda maior cobertura da proteção social.
Diante de tudo que foi exposto, justifica-se que não se peça qualquer
prova da dependência econômica de cônjuges e companheiros – aliás, a pre-
sunção absoluta de dependência, construída jurisprudencialmente, corrobo-
ra essa tese. Já nas demais hipóteses elencadas a partir do inciso II do art. 16
da Lei 8.213/91, deve-se demonstrar a dependência. Por outro lado, se a pró-
pria lei trabalhou com uma dependência presumida – jurisprudencialmen-
te presumida de forma absoluta – para os filhos, tanto melhor, já que esse
entendimento se encontra em consonância com os objetivos do sistema de
segurança social (conclusão a que se chega pela interpretação teleológica).
Os cônjuges são necessariamente beneficiários de pensões, por razões inclu-
sive de natureza histórica, já que, na gênese do instituto, são aqueles para
quem a pensão sempre foi destinada (interpretação histórica). No entanto,
em relação às demais classes, a lei poderia até criar presunções (em especial
se mais favoráveis). O que a lei não pode fazer é diminuir a dimensão consti-
tucional do conceito de dependente ou criar restrições para a percepção do
benefício pelo cônjuge ou companheiro. Caso contrário, estaríamos conspi-
rando contra o conceito (o termo) constitucional. Portanto, a expressão “nos
termos da lei” do art. 201 da Constituição deve ser lida com cuidado, já que
esta não pode dispor de forma a infirmar o próprio texto da Constituição.
Por fim, ressalte-se o retrocesso histórico decorrente das disposições
aqui consideradas inconstitucionais, já que estamos retornando ao modelo
previdenciário dos anos 60/80, de antes das conquistas da Constituição de
1988, que veio exatamente para retirar do sistema os desvios que possuía,
atingindo a proteção social. Frise-se: um modelo previdenciário distorcido

264 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


quanto à proteção do segurado, típico do Brasil dos tempos da ditadura mi-
litar, em que tanto direitos e liberdades individuais quanto direitos e liber-
dades sociais eram amplamente desconsiderados. Constate-se que a Consti-
tuição de 1988 consertou um desacerto teórico da legislação previdenciária
anterior à sua edição.
Ainda que se considerasse, a nosso ver, incorretamente, à luz mes-
mo da literalidade do texto constante do art. 201, inciso IV, da Constituição,
que esposa e companheiro sejam considerados dependentes, a solução dada
pelo novel art. 77, parágrafo 2º, da Lei de Benefícios não resistiria à análise
de outro aspecto concernente a sua constitucionalidade.
A dependência decorrente da morte não poderia existir por certo lap-
so, mas deflui da própria ideia de que o dependente será, desde a morte, co-
berto pela hipótese constitucional, mantendo-se nessa condição enquanto
durar a situação de dependência (o máximo que se admitiria, ainda de forma
excepcional, seria a derrocada dessa presunção por meio de exaustiva prova
produzida pela entidade seguradora social).
Veja-se que, além disso, não há qualquer fator constitucional de dife-
renciação que permita a subsistência da provisoriedade da pensão por conta
de certas faixas etárias ou imposição de elementos prévios relativos ao ca-
samento ou à união estável, como promovido pelo malfadado art. 77, pará-
grafo 2º, da Lei de Benefícios, com a sua nova redação. Ora, o simples fato
de se tratar de uma pessoa jovem ou mais idosa, com mais ou menos tempo
de convivência com o segurado falecido, não é elemento que autoriza quais-
quer distinções a partir de referenciais constitucionais. Aliás, nas hipóteses
previstas em lei, parte-se de dados exteriores à própria pessoa, ou de uma
presunção forjada em fatos de que a pessoa mais jovem irá obter emprego
com mais facilidade do que a outra mais idosa (aliás, mesmo se atentarmos
para tal dado de natureza meramente econômica, o critério etário é extre-
mamente perigoso, na medida em que o acesso ao mercado de trabalho está
cada vez mais restritivo, dependendo muito mais da qualificação do que do
fator idade).
A redação dada ao art. 77, parágrafo 2º, da Lei nº 8.213/91 (admitin-
do-se, é claro, a noção de dependência) é completamente incongruente com
a finalidade do benefício e com a contingência por ele atendida, atingindo
o próprio princípio da isonomia e, também nesse caso, o próprio conceito
constitucional de dependente.
A limitação imposta jamais poderia se dirigir ao tempo de existência
da pensão por morte, já que o destinatário da norma é o dependente, cuja
matriz conceitual se encontra na Constituição. A contingência atinge, para

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 265


fins previdenciários, diretamente a situação de dependência – na qual se fica
privado da fonte de subsistência, que era o trabalho do segurado antes do
seu falecimento. Portanto, ao considerar a dependência circunscrita a certa
durabilidade, para fins de limitação na concessão do benefício, a nova dispo-
sição teria conspirado contra a própria finalidade constitucional do instituto
e, portanto, também contra o conceito constitucional de dependência.
Veja-se, ainda, que tal limitação introduz critérios como tempo de ca-
samento, tempo de contribuição do segurado e idades distintas dos benefi-
ciários, para fins de concessão ou duração do benefício, que não traduzem
fatores de discrímen constitucionais suficientes a autorizar distinções entre
os dependentes.
Defende Konrad Hesse1 que “o princípio da igualdade proíbe uma
regulamentação desigual de fatos iguais; casos iguais devem encontrar regra
igual. A questão é quais fatos são iguais e, por isso, não devem ser regulados
desigualmente”. Por outro lado, deve-se ter em mente que “os conceitos de
igualdade e de desigualdade são relativos, impõem a confrontação e o con-
traste entre duas ou várias situações”.2
Por outro lado, como bem acentua Celso Antônio Bandeira de Mello,
“é agredida a igualdade quando fator diferencial adotado para qualificar os
atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão
ou a exclusão do benefício deferido ou com a inserção ou o arredamento do
gravame imposto”.3
No caso em apreço, os fatores elencados residem em elementos ex-
ternos à pessoa que seria contemplada com o direito (tempo de casamento,
contribuição do segurado e idade do dependente), que não traduzem qual-
quer razão para a distinção realizada, se considerarmos a Constituição.
Além de atingida, com a alteração normativa, a contingência prevista
constitucionalmente (a dependência), ter-se-ia afrontado o próprio princípio
da isonomia (art. 5º da Constituição Federal), já que houve distinção insufi-
ciente e inadequada para o atendimento dos propósitos constitucionais de
previdência social.

1
Apud BECKAUSEN, Marcelo Veiga; LEIVAS, Paulo Gilberto Congo. Eficácia dos direitos
fundamentais – direito à igualdade: ação civil pública proposta com objetivo de equiparar, para
fins previdenciários, as relações heterossexuais às homossexuais. Boletim dos Procuradores
da República, Brasília, p. 17, maio 2000.
2
Seabra Fagundes, citado por SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional positivo.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.
3
Cfr. a obra Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
p. 38.

266 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Em face das colocações anteriores, devem-se ter sempre em mente as
sempre sábias palavras de Konrad Hesse, segundo as quais
Não é, portanto, em tempos tranquilos e felizes que a Constituição
normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, essa
prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade.
Em determinada medida, reside aqui a relativa verdade da conhecida
tese de Carl Schmitt segundo a qual o estado de necessidade configu-
ra ponto essencial para a caracterização da força normativa da Cons-
tituição. Importante, todavia, não é verificar, exatamente durante o
estado de necessidade, a superioridade dos fatos sobre o significado
secundário do elemento normativo, mas, sim, constatar, nesse mo-
mento, a superioridade da norma sobre as circunstâncias fáticas (...).
A Constituição não está desvinculada da realidade histórica concreta
do seu tempo. Todavia, ela não está condicionada, simplesmente, por
essa realidade. Em cada eventual conflito, a Constituição não deve ser
considerada, necessariamente, a parte mais fraca.4
Portanto, ainda que haja necessidade de acomodação dos valores ini-
cialmente dispostos à realidade, não há como se desejar que a Constituição
seja revista sempre, no ato de interpretação e mesmo de atuação de poder
constituinte (ainda que derivado), para modificá-la pelo sabor contingencial
de fatos econômicos. Aliás, pensar de forma diversa implica a consagração
da perda da própria força normativa da Constituição e o fim da análise cons-
titucional em si, centrada no vetor de interpretação dicotômico dignidade da
pessoa humana/democracia. Em matéria de direitos sociais – em especial os
trabalhistas e os previdenciários –, isto fica bem nítido. Não é qualquer difi-
culdade orçamentária ou econômica que deve representar a diminuição dos
direitos sociais, sob pena de se enfraquecerem os princípios da dignidade
humana e da democracia liberal.
Assim, se há necessidade de constante reafirmação do pacto constitu-
cional firmado originariamente, esse exercício é ainda mais intenso quando
se fala em direitos sociais, em vista da própria mobilidade das contingências
sociojurídicas que os envolvem. A dinâmica e a prática dos direitos sociais es-
tão a confirmar a necessidade de que estes sejam reafirmados sempre den-
tro da parte do direito constitucional que é ciência normativa, sem esquecer,
no entanto, aquele cadinho de ciência da realidade. Não obstante, ainda ali
e acima de tudo aqui, não há como se viabilizar que incertezas econômicas e
financeiras alterem o pacto originariamente firmado de defesa dos direitos
sociais – caso contrário, jamais será possível a consolidação de uma teoria e

Idem, p. 25.
4

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 267


prática dos direitos fundamentais da pessoa humana.
Logo, entende-se que, no concernente aos direitos sociais – em es-
pecial direitos trabalhistas e da seguridade social, que são os grandes direi-
tos sociais insculpidos nas modernas Constituições –, deva existir, de forma
ainda mais acentuada, uma postura do ordenamento jurídico de concretiza-
ção democrática, em especial a partir da harmonia de ambos os contextos
normativos (o constitucional e o infraconstitucional). A razão é nítida: é na
efetividade da promoção dos direitos sociais que um dos maiores desejos
da democracia – o de igualdade – se concretiza de forma plena. Do mesmo
modo, somente assim os objetivos inscritos constitucionalmente nesse mo-
delo de Estado alcançarão a sua plenitude.
Devem, assim, ser afastadas as disposições inconstitucionais constan-
tes da nova redação do art. 77, parágrafo 2º, da Lei 8.213/91. Dessa forma,
a pensão por morte deverá ser concedida sem a imposição de tais limitações
inconstitucionais, observadas as demais regras que se encontram intangíveis
no ordenamento jurídico. Logo, qualquer sentença, inclusive as de primeira
instância em controle difuso de constitucionalidade, pode afastar, por in-
constitucionalidade, as novas disposições introduzidas no art. 77, parágrafo
2º, da Lei de Benefícios, devendo fazer constar que as pensões por morte
devem ser concedidas sem qualquer limitação temporal para a sua duração,
portanto, em respeito à Constituição da República Federativa do Brasil, sen-
do sempre vitalícias.

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Jurisprudência Selecionada

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SUSPENSÃO DE LIMINAR OU ANTECIPAÇÃO DE
TUTELA Nº 5042672-90.2017.4.04.0000/RS
Autora: União – Advocacia-Geral da União
Réu: Tarciso dos Santos
Advogado: Dr. Marcos Mazzotti (DPU)
MPF: Ministério Público Federal
Interessado: Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Interessado: Estado do Rio Grande do Sul

DESPACHO/DECISÃO
O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Tra-
ta-se de pedido de suspensão de tutela de urgência formulado pela União
em face da decisão do MM. Juízo da 5ª Vara Federal de Porto Alegre/RS,
proferida nos autos nº 5007957-62.2017.4.04.7100/RS, que determinou “o
sequestro do montante de R$ 15.244,88 da verba da União constante do
processo administrativo mensal de estorno de precatórios e RPVs, a ser efe-
tuado por meio de requisição ao presidente do TRF da 4ª Região”.
A decisão hostilizada deu-se em substituição à tutela de urgência pre-
cedentemente deferida na origem, que determinara o fornecimento à parte
-autora, “no prazo de quinze dias, do medicamento CLADRIBINA (Leustatin)
8 mg, devendo ser injetados 10 mg/dia do fármaco durante 5 dias, repe-
tindo-se o ciclo a cada mês pelo período de 8 meses”, ou, “em caso do não
fornecimento do medicamento, que deverá ser entregue no hospital onde o
autor realiza o tratamento, deverá ser efetuado o depósito dos valores para
que essa aquisição seja feita pelo próprio hospital”, sendo que “o eventual
depósito dos valores, no lugar do fornecimento da medicação, é de respon-
sabilidade solidária de ambos os réus”.
Em síntese, a União afirma a conjugação dos pressupostos legais à aco-
lhida do pleito.
Assevera que a decisão guerreada “subverte a ordem pública, nela
compreendida a ordem administrativa, na medida em que espelha interfe-
rência na gestão, atribuída à Presidência desse Tribunal, da sistemática de pa-
gamento de precatórios e RPVs, bem como nas providências que passaram a
ser impostas em decorrência da promulgação da Lei 13.463, de 06.07.2017”,
e mostra-se tendente “a provocar sensível efeito multiplicador em deman-
das de saúde e em quaisquer outras demandas nas quais porventura não se

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 271


mostre efetivo o cumprimento de tutelas de urgência e em que não se opte
pelo bloqueio judicial de valores”.
Sustenta que “a proliferação de decisões com conteúdo idêntico à pre-
sente – dado o expressivo volume de ações judiciais que envolvem prestações
de saúde no âmbito desse Judiciário Federal – pode acarretar a ineficácia das
providências contidas na Lei 13.463/2017, bem como eventual descontrole
na administração dos recursos à disposição dessa Presidência”; que o “im-
pacto financeiro total das decisões judiciais que determinam o sequestro dos
valores a que se refere a Lei nº 13.463, de 6 de julho de 2017, pode atingir
a totalidade dos valores hoje estimados para arrecadação dessa receita no
ano fiscal de 2017 (R$ 10.197.394.091,00 – dez bilhões, cento e noventa e
sete milhões, trezentos e noventa e quatro mil e noventa e um reais). Com a
retirada desse montante da arrecadação federal, haverá fatalmente a neces-
sidade de reprogramação orçamentária”, e tal reprogramação orçamentária
“poderá ensejar prejuízos adicionais para prestação de serviços públicos e a
outros programas governamentais, uma vez que já se encontram submeti-
dos à limitação acima mencionada, devido a outras frustrações de receitas”;
também “outra consequência no âmbito do orçamento da União ocorre em
função da consequente queda na arrecadação de sua receita corrente líquida
– RCL, de que os recursos em comento fazem parte. A queda na RCL reflete
no valor mínimo constitucional para aplicação em ações e serviços públicos
de saúde, a que se refere o art. 198, § 2º, I, da Constituição”; “a decisão obje-
to de suspensão, portanto, mostra-se capaz de ensejar verdadeiro paradoxo:
se de um lado tem como finalidade atender a um caso concreto, por outro
poderá acarretar risco de reduzir valores destinados constitucionalmente
para atendimento público no próprio âmbito da saúde pública”.
Decido.
Inicialmente, cumpre anotar que a pretensão deduzida pela União é
regulada pela Lei nº 8.437/92, que, em seu art. 4º, dispõe:
Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimen-
to do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a
execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus
agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica
de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público
ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saú-
de, à segurança e à economia públicas.
Seguindo, cumpre gizar que o instituto da suspensão de liminar não
consubstancia sucedâneo recursal. Nesse sentido é a iterativa jurisprudência
dos Tribunais Superiores, que assevera que “não se admite a utilização do

272 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


pedido de suspensão exclusivamente no intuito de reformar a decisão ata-
cada, pois não cabe o presente incidente para discutir o acerto ou desacerto
da decisão impugnada, olvidando-se de demonstrar o grave dano que ela
poderia causar à saúde, à segurança, à economia ou à ordem públicas” (AgRg
na SS nº 2.702, DF, relator o Ministro Felix Fischer, DJe de 19.08.2014).
A excepcionalidade da medida exige a cabal demonstração da poten-
cialidade lesiva à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas pela
decisão combatida; e essa conjugação de requisitos legais eu verifico no caso
em exame. Confiro.
O cabimento ou não de sequestro/bloqueio de verbas públicas à satis-
fação de obrigação de fazer consistente na entrega de medicamento à par-
te-autora é questão jurídica sobre a qual os Tribunais Superiores há muito se
debruçam. Assim, o acerto ou desacerto da decisão hostilizada – que promo-
veu a alteração do modo pelo qual a tutela de urgência precedente deve ser
cumprida – é questionamento que cabe ser analisado na via recursal própria.
À suspensão pretendida, cabe verificar se o cumprimento da decisão
hostilizada – independentemente do seu acerto ou desacerto jurídico – pro-
duz em face do interesse público e tem aptidão para lesar a ordem, a saúde,
a segurança e a economia públicas. É ao que passo.
O bloqueio/sequestro de verbas públicas destinadas ao pagamento de
precatórios/RPVs produz sim em face do interesse público. É do interesse
público que seja observada a ordem cronológica de apresentação dos preca-
tórios/RPVs quando do seu pagamento; que seja observada a competência
constitucionalmente atribuída ao presidente do tribunal ao qual se vincula
o título judicial em execução de gerenciamento dos recursos orçamentários
destinados ao pagamento de pracatórios/RPVs; que os credores dos preca-
tórios/RPVs recebam os valores a si devidos sem serem surpreendidos por
uma decisão judicial que, sem observância ao contraditório e à ampla defesa,
afete a sua esfera jurídica e faça preponderar interesses de terceiro em seu
detrimento na percepção da verba pública.
A preterição na ordem cronológica de apresentação do precatório/
RPV é medida excepcional que se admite apenas entre credores de preca-
tórios/RPVs e à prevalência de crédito alimentar sobre crédito de natureza
diversa. Não é essa a hipótese em exame.
A titulação de direito fundamental pelo credor de medicamento não
é motivação suficiente à preponderância da sua pretensão sobre aquela do
credor de precatórios/RPVs, notadamente crédito de natureza alimentar. A
ponderação de direitos não se faz a modo apriorístico; faz-se caso a caso.
Então, ausente fundamentação na decisão hostilizada a justificar a

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 273


prevalência, no caso concreto, do direito do credor de medicamento sobre
aquele credor de precatório/RPV que será preterido pelo cumprimento da
ordem judicial, restam abaladas a ordem e a segurança públicas. A decisão
do presidente do tribunal que ordena o pagamento de precatório/RPV não
garantirá mais per se a satisfação desse crédito, na medida em que qualquer
magistrado poderá sobrepor essa decisão administrativa com uma ordem de
bloqueio/sequestro de tais valores à satisfação de crédito diverso da Fazen-
da Pública.
É consabida a crescente procura do Poder Judiciário à concretização
de políticas públicas, fato que desencadeou o tão estudado “ativismo judi-
cial”. Esse caso, contudo, não se me afigura mero “ativismo judicial”.
Com efeito, na medida em que o próprio constituinte originário erigiu
como princípio constitucional sensível o pagamento de precatórios/RPVs, a
utilização desses recursos à satisfação de débitos diversos da Fazenda Públi-
ca – aos quais socorrem outras rubricas orçamentárias – é medida extrema-
mente temerária, de consequências imprevisíveis – notadamente à vista da
multiplicidade de lides símiles –, com aptidão para malferir a ordem consti-
tucional.
A lesão econômica, por sua vez, é imanente na espécie, na medida em
que a multiplicidade de ordens judiciais símiles tem aptidão à produção de
desordem orçamentária do Estado.
Assim, em sede de juízo “delibatório mínimo”, é força reconhecer que
as razões deduzidas pelo ente político comprovam a existência de interesse
público e risco de lesão à ordem, à saúde e à economia públicas na espécie.
A higidez jurídica da decisão hostilizada, como já dito, cabe ser ana-
lisada na via recursal própria. A cognição política própria deste incidente,
contudo, aponta à suspensão dos efeitos do julgado, certo que a adoção de
meios outros ao cumprimento da tutela de urgência não resta obstaculizada.
Ante o exposto, defiro o pedido de suspensão dos efeitos da antecipa-
ção da tutela deferida nos autos nº 5007957-62.2017.4.04.7100/RS.
Intimem-se.
Porto Alegre, 10 de agosto de 2017.

274 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


SUSPENSÃO DE LIMINAR OU ANTECIPAÇÃO DE
TUTELA Nº 5051358-71.2017.4.04.0000/SC
Autora: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT
Ré: On Time Express Logística e Transportes S/A
Advogado: Dr. Marco André Katz

DESPACHO/DECISÃO
O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Tra-
ta-se de pedido de suspensão de liminar formulado pela Empresa Brasilei-
ra de Correios e Telégrafos – ECT em face da decisão do MM. Juízo da 4ª
Vara Federal de Florianópolis/SC que, nos autos do processo nº 5026404-
60.2015.4.04.7200/SC, deferiu a medida de urgência antecipada
para determinar à ECT que mantenha em plena execução o Contrato
Múltiplo de Prestação de Serviços e Venda de Produtos nº 9912346734
e seu aditivo, nos termos em que pactuados, suspendendo os efeitos
da notificação datada de 30.10.2015, até a prolação da sentença, sob
pena de fixação de multa diária pelo descumprimento da presente
medida antecipatória.
Em síntese, a ECT afirma a conjugação dos pressupostos legais à aco-
lhida do pleito. Em preliminar, afirma a sua legitimidade ao manejo deste
incidente de suspensão de liminar.
No mérito, noticia que a “A ON TIME celebrou, em 01.04.2014, o Con-
trato Múltiplo de Prestação de Serviços e Venda de Produtos nº 9912346734
(fls. 231-240 do processo nº 5026404-60.2015.4.04.7200), com vigência de
um ano, podendo ser prorrogado por interesse mútuo das partes por mais
120 meses, ou seja, 10 anos”; que o “contrato múltiplo é uma modalidade
de contrato ofertado pela ECT, na qual se oportuniza a contratação por clien-
tes desta empresa pública de uma vasta variedade de serviços atrelados ao
serviço postal público”; que as partes “celebraram contrato dessa espécie,
contrato múltiplo, no qual consta como objeto da contratação, nos termos
da Cláusula Primeira – Do Objeto, ‘a prestação, pela ECT, de serviços e ven-
da de produtos que atendam às necessidades da CONTRATANTE, mediante
adesão ao(s) ANEXOS(S) deste instrumento contratual que, individualmente,
caracteriza(m) cada modalidade envolvida’; que, por ocasião da assinatura
do contrato, “não se verificou que a ON TIME estaria apta a fazer uso do
serviço de ‘repostagem’, o que lhe possibilitou uma tabela de descontos dos

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 275


serviços prestados pela ECT, isto é, não houve a contratação como se fosse
empresa repostadora”; que foram realizados estudos pelos quais se verificou
que “a carga postada pela ON TIME se enquadra no serviço de repostagem, o
que repercutiria no necessário enquadramento nessa modalidade de serviço
e, pois, na adequação à utilização da tabela inerente a essa categoria e, por
consequência, na exclusão do serviço de encomendas”.
Aponta que, à vista da obrigatoriedade da manutenção dos serviços
postais em todo o território nacional, “esses serviços são submetidos a um
peculiar regime jurídico constitucional, que tem a finalidade de possibilitar
o financiamento da manutenção do serviço postal, bem como a prestação
da atividade fim da ECT, a qual deve ser entendida como aquela sujeita ao
privilégio postal (art. 7º da Lei 6.538/78)”; que esses recursos “decorrentes
da prestação dos serviços postais não objeto de privilégio postal, como é o
caso da entrega de encomendas, servem para possibilitar e manter a presta-
ção de outros menos demandados, como, por exemplo, a entrega de corres-
pondências em regiões de difícil acesso do país, possibilitando a integração
nacional”; que “a aprovação da Nova Política Comercial advém da tentativa
da ECT de manter-se com capacidade concorrencial, bem assim de preservar
sua sustentabilidade, haja vista que o modelo anterior não permitia a via-
bilização do serviço postal praticado por esta empresa pública, isso porque
impunha a prestação de serviço mediante contraprestação de preço que não
cobria seus custos”; que o “cumprimento da r. decisão que obrigou a ECT a
manter uma tabela de cobrança de serviços ultrapassados, e agora extintos,
causa iminente lesão grave à ordem”; que, com a manutenção dos mesmos
termos em que celebrado o contrato da ON TIME, “embora sequer haja ba-
ses normativas e razões fáticas para tanto, todo o plexo de atividades opera-
cionais inerentes ao serviço público postal restará prejudicado, em especial
na região sul do país, apenas porque uma única contratante desta empresa
pública pretende vulnerar toda a sistemática contratual e respectiva forma
de prestação do serviço postal”; que, sem lograr “um mínimo de vantajosi-
dade econômica com os contratos que oferta no mercado a seus clientes,
não se vê hábil a prestar o múnus público e constitucional (art. 21, inc. V,
da CF/88) de garantir a manutenção do serviço público postal, exclusivo, em
todo o território nacional”; que a vantajosidade nessa situação dá-se pela
sistemática do subsídio cruzado.
Alega que são os seguintes
os motivos do presente pedido de suspensão de segurança: lesão à
ordem e à economia pública, perpetrada pela vultuosidade dos recur-
sos despendidos para cumprimento da r. decisão sobredita, ou seja,

276 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


manutenção de um contrato à margem de qualquer viabilidade eco-
nômica, em detrimento de todos os demais clientes e usuários do ser-
viço público postal, além da possibilidade de multa diária em caso de
descumprimento.
Sustenta que a decisão combatida
causa grave lesão ao interesse púbico (à ordem e à economia públi-
ca), uma vez que impôs obrigação a empresa pública ao total arrepio
dos interesses inerentes à prestação do serviço público postal, pois
determinou a manutenção de contrato em absoluta dissonância com
a viabilidade econômica de sua manutenção, gerando, assim, conse-
quente ônus a toda a sociedade, que terá de arcar inevitavelmente
com a majoração das tarifas do serviço público postal prestado por
esta empresa pública.
Também afirma que o interesse público evidencia-se na espécie, haja
vista a pretendida alteração contratual visar à preservação da competência
constitucional privativa da União à manutenção do serviço postal e à elabo-
ração de legislação sobre o tema (CF, arts. 21, X, e 22, V); que serviços da es-
pécie, “mesmo quando caracterizam exercício de atividade econômica, não
perdem a natureza de serviço postal e classificam-se como serviços públicos,
pois se destinam à concretização da finalidade essencial da ECT: prestação e
manutenção do serviço postal em todo o território nacional”.
Assevera que “hodiernamente a ECT possui nova política comercial,
que repercutiu imediatamente no contrato firmado com a ON TIME, por-
quanto se instituíram, para todos os clientes desta empresa pública, novas
tabelas de serviço e respectivos preços, além da extinção do serviço e-Se-
dex”.
Aduz que a cláusula segunda do contrato, de forma expressa, possi-
bilita “a alteração contratual dos serviços executados”; que “notificou a ON
TIME, nos termos previstos contratualmente, dando-lhe o respectivo aviso
prévio, sobre a exclusão dos serviços que estavam sendo prestados, para
proceder-se ao enquadramento na política de repostagem”; que a ON TIME,
ao questionamento da higidez dessa alteração contratual, deduziu ação or-
dinária na qual foi proferida a decisão combatida.
Afirma que a decisão combatida, ainda, tem “efeito multiplicador da
causa em voga, tendo em vista a possibilidade de outras empresas em todos
os demais estados da Federação provocarem o Poder Judiciário para tentar
imputar a mesma obrigação à ECT”; que a ECT “tem recebido notificações
de parceiros que não compreendem o injustificado privilégio deferido à ON
TIME, o que poderá ensejar que estes também busquem judicialmente, caso
Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 277
a medida não seja suspensa”; que a “ON TIME está tendo tratamento dife-
renciado, sem qualquer razão, mesmo porque o contrato que firmou com a
ECT é de idêntico teor aos dos demais clientes desta empresa pública”; que
esse “tratamento discriminatório, com a respectiva concessão de descontos
injustificados, compreende inequívoca permissão para praticar concorrência
desleal com a ECT e com os respectivos interessados no mesmo serviço”.
A empresa ON TIME atravessou petição (evento 02) pela qual, em sín-
tese, arguiu a ausência dos pressupostos legais ao manejo deste incidente; e
a litigância de má-fé da ECT no manejo desta SEL após “quase dois anos” da
data em que proferida a decisão que deferiu a medida de urgência antecipa-
da nos autos da ação ordinária nº 5026404-60.2015.4.04.7200/SC.
Decido.
Preliminarmente, à vista da atual orientação dos Tribunais Superiores
sobre o tema, reconheço a legitimidade da Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos – ECT ao manejo deste incidente de suspensão de liminar. Assim
o faço porque o objeto do incidente versa sobre prestação de serviço postal
que, prima facie, realiza o conceito de serviço público.
Nessa esteira, bastante exemplificativos são os precedentes que se-
guem:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SUSPENSÃO DE LIMINAR. LEGITIMI-
DADE DE PESSOA JURÍDICA DE INTERESSE PRIVADO PRESTADORA DE
SERVIÇO PÚBLICO. INTERESSE PATRIMONIAL SUBJACENTE. TUTELA DO
INTERESSE PÚBLICO. CONFIGURAÇÃO. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE.
ÓBICE DA SÚMULA 7/STJ.
1.  Há legitimidade ativa das pessoas jurídicas de direito privado
prestadoras de serviço público (empresas públicas, sociedades de
economia mista, concessionárias e permissionárias de serviço públi-
co) para a propositura de pedido de suspensão, quando na defesa do
interesse público primário. Precedentes: AgRg no AREsp 784.604/MG,
rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 25.05.2016; AgRg no
AREsp 50.887/AM, rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma,
DJe 12.02.2016.
2. No caso concreto, a corte de origem concluiu que o interesse
patrimonial subjacente da companhia não obsta a tutela do interesse
público. Portanto, rever tal entendimento demandaria o revolvimento
de matéria fático-probatória, óbice da Súmula 7/STJ.
3. Agravo interno não provido. (AgInt no AREsp 916.084/BA, rel.
Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 15.12.2016,
DJe 03.02.2017)

278 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


AGRAVO REGIMENTAL NO PEDIDO SUSPENSIVO. LEGITIMIDADE
DAS SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA PARA FORMULAREM PEDI-
DO SUSPENSIVO QUE OBJETIVE A TUTELA DE INTERESSE PÚBLICO,
NOS TERMOS DA LEGISLAÇÃO DE REGÊNCIA. PRELIMINAR DE ILEGI-
TIMIDADE ATIVA REJEITADA. POSSIBILIDADE DE GRAVE LESÃO À OR-
DEM E À ECONOMIA PÚBLICAS DEMONSTRADA. DECISÃO JUDICIAL
CUJOS EFEITOS PODEM ACARRETAR A INTERRUPÇÃO NA PRESTAÇÃO
DO SERVIÇO PÚBLICO DE FORNECIMENTO DE GÁS NATURAL, COM A
CONSEQUENTE DESESTRUTURAÇÃO DE TODA A CADEIA PRODUTIVA
DO POLO PETROQUÍMICO DE CAMAÇARI, NA BAHIA. AGRAVO REGI-
MENTAL DESPROVIDO.
1.  Conforme entendimento pacificado neste Corte, as empresas
públicas ou privadas e as sociedades de economia mista que prestam
serviços públicos podem formular pedido suspensivo que  objetive  a
salvaguarda dos valores tutelados na legislação de regência.
2. Hipótese na qual se demonstrou que o cumprimento da decisão
judicial pode acarretar a interrupção na prestação do serviço público
de fornecimento de gás natural, pela complexidade da atividade, com
a possibilidade de impacto direto na produção de vários insumos (v.g.,
ureia, amônia, gás carbônico, aditivo redutor líquido automotivo), e a
consequente desestruturação de toda a cadeia produtiva de impor-
tantíssimo polo petroquímico, qual seja, Camaçari, na Bahia. Risco de
grave ofensa à ordem e à economia públicas configurado.
3. Agravo regimental desprovido. (AgRg na SLS 2.123/BA, rel.
Ministra Laurita Vaz, Corte Especial, julgado em 19.10.2016, DJe
26.10.2016)
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE
LIMINAR E DE SENTENÇA. RECONSIDERAÇÃO. PEDIDO SUSPENSIVO
ACOLHIDO. TEMPESTIVIDADE RECURSAL. ENTE PÚBLICO. ART. 188 DO
CPC. APLICAÇÃO. FALTA DE INTERESSE. NÃO CONHECIMENTO.
I – A jurisprudência já assentou entendimento no sentido de reco-
nhecer legitimidade para a propositura de pedido suspensivo também
às empresas públicas, às sociedades de economia mista, às concessio-
nárias e às permissionárias de serviço público, quando na defesa do
interesse público primário. Dessa forma, o poder público legitimado
tem um sentido lato sensu.
II – É aplicável, portanto, o disposto no art. 188 do CPC no tocante
ao prazo em dobro para recorrer, quando a parte for a Fazenda Públi-
ca ou o Ministério Público, no que o presente agravo, interposto pelo
Estado de Goiás, é tempestivo.
III – O agravante, juntamente com a TERRACAP, é réu na ação ori-
ginária, e a decisão agravada, ao deferir o efeito suspensivo requerido
pela TERRACAP, manteve a decisão de indeferimento da tutela reque-
Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 279
rida pelas autoras, negando o bloqueio nas matrículas dos imóveis por
elas pretendido. Ausência de interferência negativa na esfera dos in-
teresses jurídicos do agravante. Inexistente, assim, interesse recursal
do Estado de Goiás.
Agravo regimental não conhecido. (AgRg no AgRg na SLS 1.955/DF,
rel. Ministro Francisco Falcão, Corte Especial, julgado em 18.03.2015,
DJe 29.04.2015)
Seguindo, anoto que a arguição de litigância de má-fé da empresa pú-
blica, à sua elucidação, não prescinde de uma análise acurada da equação
fática/jurídica subjacente à ação ordinária nº  5026404-60.2015.4.04.7200/
SC. O questionamento exige a análise da conduta perpetrada pela ECT no
bojo do processo de origem, e essa cognição extrapola a delibação mínima
permitida neste incidente de suspensão de liminar, de natureza eminente-
mente política.
Também, presente a natureza eminentemente política da cognição
deste incidente, cumpre gizar que ao seu julgamento afigura-se irrelevante a
existência de recurso na ação de origem ao questionamento da higidez jurí-
dica da decisão combatida (Lei nº 8.437/92, art. 4º, § 6º).
Ainda, é força anotar que o termo ad quem ao manejo deste inciden-
te é o trânsito em julgado da decisão de mérito da ação principal (Lei nº
8.437/92, art. 4º, § 1º). Nesse sentido, bastante elucidativo é o acórdão que
segue:
AGRAVO INTERNO. SUSPENSÃO DE LIMINAR. TELEFONIA FIXA RE-
SIDENCIAL. BRASIL TELECOM. TARIFA DE ASSINATURA BÁSICA. LESÃO
À ECONOMIA PÚBLICA.
– Enquanto não ocorrer o trânsito em julgado da decisão de méri-
to, é cabível o pedido de suspensão, nos termos do art. 4º, § 9º, da Lei
nº 8.437/1992.
– As pessoas jurídicas de direito privado no exercício de função
delegada do poder público têm legitimidade para requerer a suspen-
são de execução de liminar ou de sentença, desde que em defesa do
interesse público. Precedente.
– O impedimento, em juízo de cognição sumária, da cobrança da
tarifa de assinatura básica residencial é suscetível de ocasionar o de-
sequilíbrio econômico-financeiro do contrato firmado entre o usuário
e a concessionária e entre esta e o poder concedente.
Precedente da Corte Especial.
Agravo não provido. (AgRg na SLS 765/PR, rel. Ministro Barros
Monteiro, Corte Especial, julgado em 21.11.2007, DJ 10.12.2007, p.
254)

280 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


De consequência, a dedução do pedido de suspensão de liminar pela
ECT neste momento, quando dista a decisão combatida – quase dois anos de
sua prolação –, é fato que não obstaculiza o manejo deste incidente, tam-
pouco produz, per se, em desfavor da pretensão política da empresa pública.
Prossigo.
A pretensão deduzida pela Empresa Brasileira de Correios e Telégra-
fos – ECT é regulada pela Lei nº 8.437/92, que, em seu art. 4º, dispõe:
Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimen-
to do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a
execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus
agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica
de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público
ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saú-
de, à segurança e à economia públicas.
O instituto da suspensão de liminar não consubstancia sucedâneo re-
cursal. Nesse sentido é a iterativa jurisprudência dos Tribunais Superiores,
que assevera que “não se admite a utilização do pedido de suspensão ex-
clusivamente no intuito de reformar a decisão atacada, pois não cabe o pre-
sente incidente para discutir o acerto ou desacerto da decisão impugnada,
olvidando-se de demonstrar o grave dano que ela poderia causar à saúde, à
segurança, à economia ou à ordem públicas” (AgRg na SS nº 2.702, DF, rela-
tor o Ministro Felix Fischer, DJe de 19.08.2014).
À acolhida da suspensão demandada, incumbe verificar se o cumpri-
mento da decisão guerreada – independentemente do seu acerto ou desa-
certo jurídico – produz em face do interesse público e tem aptidão para lesar
a ordem, a saúde, a segurança e a economia públicas. A excepcionalidade
da medida, pois, não prescinde da conjugação de todos esses pressupostos
legais.
In casu, verifico a conjugação dos pressupostos necessários à acolhida
do pleito.
Com efeito, a discussão acerca da possibilidade ou não de manutenção
dos termos de um contrato celebrado entre empresa pública federal presta-
dora de serviço público (serviço postal) e empresa privada é questionamento
que realiza o pressuposto de “manifesto interesse público” na espécie. É do
interesse social que o serviço postal seja prestado a modo satisfatório, sem
eventual comprometimento da auferição de recursos pela ECT que lhe pos-
sibilitem satisfazer demandas outras que se afiguram “desinteressantes” à
iniciativa privada.
O prejuízo à ordem e à economia públicas é imanente na espécie por-
Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 281
que a decisão combatida – ausente cognição exauriente à verificação da higi-
dez da conduta perpetrada pela autarquia federal – produz óbice à auferição
de recursos pela ECT destinados à concretização de políticas em prol da so-
ciedade. Vale gizar que o eventual direito de repetição pela ECT dos valores
auferidos pela empresa ON TIME, no caso de improcedência da lide, afigura-
se ordinariamente demorado, distanciando ainda mais no tempo o alcance
de serviço público às localidades “desinteressantes” para a iniciativa privada.
Sobre o tema – pressupostos legais da SEL –, mutatis mutandis, vale
citar a decisão do Supremo Tribunal Federal proferida na SS 253-8, da lavra
do ilustre Min. Rafael Mayer, que consigna:
(...)
DESPACHO: – Em parecer do eminente Procurador-Geral Sepúlve-
da Pertence, têm-se a exposição da matéria e o entendimento jurídi-
co, in verbis:
“O Estado do Maranhão requer sejam suspensas três decisões pro-
feridas pelo Tribunal de Justiça do Estado em mandados de seguran-
ça ajuizados por servidores públicos estaduais aposentados. Todos os
impetrantes dos aludidos feitos pertenciam aos quadros funcionais da
Secretaria da Fazenda daquela unidade federada, pelo que percebiam,
na atividade, a gratificação de produtividade instituída pela L.D. est.
145/84, verba que, com a passagem para a inatividade, incorporaram
aos seus proventos.
A percepção do ‘chamado adicional de produtividade’ está condi-
cionada à ocorrência de um aumento da arrecadação mensal superior
a 10% do montante previsto pelo Executivo para o período (L.D. est.
145/84, art. 79, I). O critério para o seu cálculo foi assim estabelecido:
‘a cada 1% (um por cento) do incremento da arrecadação, a partir do
limite estabelecido (...), corresponderão 3% (três por cento) de adicio-
nal aplicados sobre gratificação de produtividade a que efetivamente
fizer jus o funcionário’ (art. 79, II).
Atendendo provocação do Estado do Maranhão, a Procuradoria-
Geral da República ofereceu ao Supremo Tribunal Federal representa-
ção por inconstitucionalidade da L.D. est. 145/84, que instituiu o be-
nefício citado, e da L. 4.645/85, que alterou os parâmetros para a sua
concessão. Ambos os diplomas legais violariam o art. 196 da Carta de
1969, que vedava ‘a participação de servidores públicos no produto da
arrecadação de tributos e multas’.
Em 12.08.1987, o Supremo Tribunal Federal deferiu o pedido cau-
telar na Rp 1.450, vigente até a presente data. O acórdão da liminar,
publicado no DJ de 18.12.1987, tem a seguinte ementa, lavrada pelo
em. Ministro Néri da Silveira:

282 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


‘Representação. Medida cautelar. Arguição de inconstitucionalida-
de dos arts. 6º a 9º da Lei Delegada nº 145, de 17.04.1984, e dos arts.
49 e 59, este último, em parte, da Lei nº 4.645, de 03.07.1985, ambas
do Estado do Maranhão. Relevância dos fundamentos da represen-
tação e ameaça de grave dano ao Tesouro Estadual, se prosseguirem
incidindo as leis em referência, até que se julgue, definitivamente, a
representação. Medida cautelar deferida, suspendendo-se os efeitos
dos dispositivos mencionados das leis referidas, até o julgamento de-
finitivo da presente representação.’
Aplicando a decisão cautelar proferida no controle abstrato de
normas, o Secretário de Administração e o Tribunal de Contas do Es-
tado do Maranhão tomaram providências visando à sustação do paga-
mento do benefício citado. Alguns funcionários aposentados do Fisco
impetraram mandado de segurança junto ao Tribunal de Justiça do
Estado do Maranhão impugnando os atos que lhes diminuíram os pro-
ventos.
As três seguranças a que se reporta a inicial foram concedidas. Em-
bora a existência de todas esteja satisfatoriamente documentada, dos
autos consta somente um acórdão (fls. 11-16).
Os fundamentos da decisão estão concentrados no seguinte tre-
cho do julgado (fls. 15-16):
‘Para assim procederem, esclareça-se, por oportuno, o Tribunal
de Contas, assim como a Secretaria de Administração, cada um a seu
modo, firmam-se no pressuposto da existência de uma liminar do Su-
premo Tribunal Federal, expedida em arguição de inconstitucionalida-
de de lei em tese, a qual, no entender das autoridades coatoras, teria
o poder de atingir a situação dos impetrantes, ainda que vigente esta
antes da decisão por eles apontada da mais Alta Corte de Justiça do
País.
Parece-nos, data venia, inteiramente destituído de qualquer su-
porte legal tal raciocínio.
Primeiro, porque, ainda que declaradas inconstitucionais, pelo cri-
vo do Supremo Tribunal Federal, as LDs nos 145/84 e 158/84, bem as-
sim a Lei nº 4.645, todas do Estado do Maranhão, instituidoras dos fa-
vores legais ora defendidos, mesmo assim, é certo que os impetrantes
já detinham uma situação jurídica perfeita e acabada, logo, possuíam
direito adquirido, nos precisos termos do art. 153, § 39, da Constitui-
ção Federal.
Ora, os efeitos produzidos pela desconstituição da lei, no caso,
se porventura vierem a ocorrer, é claro, aplicam-se para o futuro (ex
nunc), respeitado o direito adquirido.
Nesse sentido, aliás, é o que se depreende da inteligência do ver-

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 283


bete da Súmula nº 359 do Supremo Tribunal Federal (...).’
Não há dúvida, assim, de que hão de prevalecer, para todos os efei-
tos legais, os proventos dos impetrantes, que são, na verdade, fixados
na época de suas aposentadorias.
Argumentar-se-ia, ademais, que, tendo o Supremo Tribunal Fede-
ral, conforme advertem os impetrantes, ‘concedido suspensão liminar
dos dispositivos que embasaram os proventos dos impetrantes, os
efeitos dessa decisão retroagiram para alcançar aquelas aposentado-
rias’. Não procederia, data venia, tal raciocínio, uma vez que, como
expressivamente demonstram os impetrantes, inclusive apoiados em
lição de consagrado publicista, qual seja, LUCIO BITTENCOURT, segun-
do a qual ‘a suspensão liminar sempre tem efeitos ex nunc, ou seja, a
partir da concessão da medida. Não retroage. Nem poderia fazê-lo,
sob pena de ofender o princípio constitucional (implícito) de seguran-
ça das relações jurídicas’.
Como lembrado pelo requerente (fl. 7), entendemos que a suspen-
são de segurança não é meio processual substitutivo dos recursos, do
qual se deva lançar mão com a finalidade de obter uma apreciação
mais célere do cabimento ou mesmo da validade da sua concessão.
Em verdade, trata-se de mecanismo de índole cautelar, instituído para
preservar relevantes interesses públicos, que, de outro modo, esta-
riam sujeitos, ainda que transitoriamente, aos gravames da execução
provisória da decisão judicial.
Acentuamos, todavia, que, em se tratando de decisões patente-
mente equivocadas, a sua eficácia natural mesma, por ofender prin-
cípios jurídicos fundamentais, notadamente de cunho constitucional,
causa dano considerável à ordem pública, na medida em que gera um
quadro de insegurança jurídica. Para obviar tais consequências, sem-
pre temos defendido a utilização da suspensão de segurança.
O caso dos presentes autos se enquadra nesta ordem de conside-
rações. Dos trechos do acórdão acima transcritos, percebe-se que três
são os fundamentos.
A tese central do julgado está ligada à proteção do direito adqui-
rido. Dado que os atos de concessão da aposentadoria obedeceram
à legislação vigente à época da sua edição, inclusive no que tange ao
pagamento da aludida gratificação, e são juridicamente perfeitos,
concluiu-se que não seria lícito reduzir os proventos dos impetrantes
mediante a subtração da gratificação impugnada. Essas vantagens es-
tariam definitivamente incorporadas ao patrimônio dos impetrantes.
Ainda que julgadas inconstitucionais as leis arguidas – argumen-
tou-se no acórdão –, os efeitos da decisão proferida, em representa-
ção, pelo Supremo Tribunal Federal operariam ex nunc, ressalvados os
atos pretéritos.

284 Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8


Por fim, aventou o tribunal maranhense que a medida cautelar
concedida no controle abstrato de normas também seria dotada de
efeitos ex nunc, de sorte que os atos praticados pelas autoridades im-
petradas teriam extrapolado os limites do julgado da liminar.
Data venia, são equivocadas todas as três premissas resumidas.
Em primeiro lugar, é óbvio que o princípio do respeito ao direito
adquirido pressupõe que este tenha se aperfeiçoado de acordo com
a Constituição. Esta só resguarda, em nome da segurança jurídica, os
atos que não lhe sejam contrários. Assim, se a norma legal que ser-
ve de suporte à pretensão dos impetrantes for inconstitucional, não
se pode falar em aquisição de qualquer direito. Trata-se de um dos
muitos desdobramentos possíveis da teoria adotada pelo Supremo
Tribunal Federal de que não há direito adquirido contra a Constitui-
ção. Portanto, a existência de um tal direito implica a necessidade de
exame da validade das citadas leis a que o tribunal maranhense, em
princípio, estaria, de ofício, obrigado, mas não realizou. O problema
da aplicação de dispositivos legais suspensos por liminares em ação
direta de inconstitucionalidade será adiante analisado.
Igualmente, errôneo se nos afigura o argumento adicional e estrei-
tamente conexo com o precedente de que ‘os efeitos produzidos pela
desconstituição da lei, no caso, se porventura viessem a ocorrer, é claro,
aplicam-se para o futuro (ex nunc), respeitado o direito adquirido’ (f. 16).
Como acentua Jörn Ipsen, ‘o par de conceitos ex tunc/ex nunc, as-
sim como a aceitação de uma eficácia constitutiva da decisão do Tri-
bunal Constitucional, estão inseparavelmente ligados à teoria de uma
simples anulabilidade das leis inconstitucionais’ (Rechts folgen der
Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt. Baden Baden: Nomos
Verlagsgsellschaft, 1980. p. 152, trad. da nossa assessoria).
A jurisprudência e a doutrina brasileiras, contudo – com a exceção
respeitável, mas solitária, de Pontes de Miranda (Comentários, ed.
1987, IV/44) –, sempre se alinharam à teoria da nulidade, quando não
à da inexistência da lei inconstitucional.
A ementa da Rp 971, RTJ 87/758, bem reflete a orientação domi-
nante no Supremo Tribunal Federal. O relator, em. Min. Djaci Falcão,
consignou: ‘a decisão que, em ação direta de inconstitucionalidade de
lei, tem efeito ex tunc’. Em seu voto-vista, rememorou o em. Ministro
Soares Muñoz (p. 764):
‘O Prof. Alfredo Buzaid, na monografia que escreveu sob o título
Da ação direta, preleciona:
‘A sentença, que decreta a inconstitucionalidade, é predominante-
mente declaratória, não predominantemente constitutiva. A nulidade
fere-a ab initio. Embora executória até o pronunciamento definitivo do

Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 8 285


Poder Judiciário, a sentença retroage os seus efeitos até o berço da lei,
valendo, pois, ex tunc. O Poder Judiciário não modifica o estado da lei,
considerando nulo o que inicialmente era válido. Limita-se a declarar a
invalidade da lei, isto é, declara-a natimorta.’ (ob. cit., p. 132, ed. 1958)’
O em. Ministro Leitão de Abreu, sem sucesso, opôs-se ao entendi-
mento adotado pela Corte. O resultado das discussões foi exposto pelo
próprio magistrado, em voto proferido no RE 93.356, RTJ 97/136 (1972):
‘Sustentei então (RE 79.343, RTJ 82/791), longamente, que a de-
claração de inconstitucionalidade de lei comporta, quanto aos efei-
tos ex tunc, que se lhe atribuem, certos temperamentos (...). Tenho
mantido essa opinião, a de que a regra da retroatividade da decla-
ração de inconstitucionalidade comporta temperamentos. Mantive-a,
expressamente, perante o Tribunal Pleno, no julgamento de proces-
so, proveniente de Goiás, onde se cuidava de saber se a declaração
de inconstitucionalidade de lei, sob a qual certos funcionários haviam
concorrido a determinados cargos e nele sido providos, privava de
efeito a investidura, obtida de boa-fé, dos nomeados. Entretanto, fi-
quei vencido, porque, por maioria, o Plenário da Corte entendeu que
a retroatividade, proveniente da declaração de inconstitucionalidade,
em tese, da lei de que então se cuidava, se operava integralmente, não
respeitando as mencionadas situações jurídicas.’
Finalmente, o argumento de que a medida liminar em representa-
ção opera ex nunc há de ser recebido com reservas.
No presente caso, é preciso distinguir problemas envolvidos pela
cautelar deferida. Um se refere aos atos praticados pelas autoridades
impetradas, enquanto o outro diz respeito à própria decisão que ora
se deseja ver suspensa.
Como se afirmou no acórdão, a jurisprudência do Supremo Tribu-
nal Federal se fixou no sentido de que a suspensão cautelar tem eficá-
cia para o futuro. Entretanto, os atos objeto do mandado de segurança
foram praticados após a concessão da liminar. Não se pode, ademais,
aventar o fato de as aposentadorias serem concedidas por um ato
individual, anterior à liminar, pois, em se tratando do pagamento de
proventos – prestações que se renovam –, a cada período é necessário
um ato de execução dos diplomas suspensos. Essa é a orientação do
Supremo Tribunal Federal, adotada na RPMC 1431, relator o em. Mi-
nistro Carlos Madeira, DJ 24.06.88:
‘REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. Medida caute-
lar. Eficácia. A medida cautelar suspende a execução da lei, mas não
o que se aperfeiçoou durante a sua vigência. Os reajustamentos de
vencimentos e salários vencidos antes da medida não estão por ela
alcançados.’

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Ademais, não nos parece que a decisão concessiva da segurança
poderia ter aplicado os diplomas legais suspensos por liminar. Como
observa Jörn Ipsen, tal tipo de providência cautelar é ‘uma proibição
de aplicação dirigida a todos os órgãos estatais’ (ob. cit., p. 299). Ao
analisar a extensão da eficácia da cautelar concedida no controle de
normas e a sua relação com o § 31, nº 1, da Lei do Tribunal Constitu-
cional Alemão, que atribui força de lei às suas decisões, escreveu (ob.
cit., p. 229):
‘Se, no processo de controle de normas, uma medida cautelar
‘é, urgentemente, exigida pelo bem comum’, pois violência ou gra-
ves prejuízos o ameaçam, parece paradoxal que somente os sujeitos
processuais estejam a ela ligados, enquanto autoridades públicas e
tribunais não precisem dela tomar conhecimento. (...) Em aplicação
imediata do § 31, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, o Tribunal
Constitucional está em condições de, provisoriamente, vedar aos ór-
gãos constitucionais a aplicação de uma norma, e, assim, suspender a
sua vigência fática.’
Demonstrados os equívocos manifestos em que incidiu o acórdão e
a incerteza jurídica gerada, com o consequente dano à ordem pública,
o parecer é pelo deferimento da suspensão de segurança.” (f. 62-67)
Tenho como insuscetível de objeção a douta e erudita fundamen-
tação desse alto pronunciamento. Responde, decerto, ao conceito de
grave dano à ordem pública, pressuposto para o exercício da medida
ora reclamada, a desatenção flagrante a postulados constitucionais.
A suspensão imediata dos efeitos de segurança que evidencie tal
grau de comprometimento, até que se tenha a decisão final da Corte
sobre a controvérsia, se impõe mesmo como providência precípua
pertinente à guarda da Constituição. Assim, acolho por inteiro o pre-
claro parecer e em seus termos defiro o pedido. (STF, SS nº 253-8,
Ministro Rafael Mayer, Presidente, DJU 10.03.89 – destaquei)
Nessa equação, presente a cognição política própria deste incidente
(SEL), verifico a conjugação dos pressupostos legais ao deferimento do pedido.
Ante o exposto, defiro o pedido e determino a suspensão dos efei-
tos da medida de urgência antecipada deferida pelo MM. Juízo Federal da
4ª Vara Federal de Florianópolis/SC nos autos do processo nº 5026404-
60.2015.4.04.7200/SC.
Comunique-se via expedita ao MM. Juízo Federal da 4ª Vara Federal
de Florianópolis/SC.
Intimem-se.
Porto Alegre, 21 de setembro de 2017.

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