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A Produção Privada de Bens Públicos

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Escrito por Mateus Bernardino October 27, 2016

Como são produzidos exclusivamente pela


iniciativa privada os bens-econômicos
considerados públicos pela teoria econômica
ortodoxa? Quais os principais mecanismos e
incentivos regendo o funcionamento de um
esquema voluntário de organização da
produção de ruas, justiça e segurança? Este
artigo procura compartilhar alguns dos principais
elementos de argumentação buscando
responder a estas questões. Ele procura ajudar
a entender os mecanismos nos quais
fundamentam-se os posicionamentos políticos de alguns teóricos libertários, notadamente
Anarcocapitalistas. Trata-se fundamentalmente da tradução de um recolho de trabalhos de
Pierre Lemieux e acrescentados de considerações pessoais, comentários tirados das
contribuições de Murray Rothbard e David Friedman são os principais autores utilizados
como referência para o embasamento teórico.

A Privatização do Domínio Público

{1} Os bens-públicos constituem um conjunto de obstáculos teóricos e práticos ao


desenvolvimento e organização auto-sustentável da produção. No entanto, várias coisas
hoje em dia consideradas como bens-públicos devem esta particularidade ao fato de que o
estado impediu ou não favoreceu a criação de direitos privados de propriedade. Muitas
vezes, tudo que compõe o domínio público (estradas, ruas, praças públicas, ou mesmo a
pureza do ar) é público unicamente pois foi estatizado, e não raramente sua privatização
ajustaria boa parte dos problemas que a gestão do domínio público engendra e que,
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paradoxalmente, são apresentados como uma justificação definitiva para a intervenção
estatal. Na ausência de estado, as estradas nacionais e as autoestradas – que não
correspondem perfeitamente à definição técnica de bem-público (não-rivalidade e não-
exclusividade), seriam privadas e financiadas através de pedágios ou outros arranjos que
podem reduzir ou até mesmo abolir o ônus para o usuário, como o aluguel de espaços
para publicidade.

Vários métodos de arrecadação podem ser concebidos, da guarita usual ao abono


periódico passando pelos emissores telemétricos fornecidos aos abonados, e que
registram automaticamente o trânsito para uma faturação periódica. Quando um elemento
de bem-público representa um obstáculo importante (não rivalidade ou não exclusividade),
associações ou patrocinadores ou outros mecanismos de produção, como o
empreendedorismo, poderiam tomar a responsabilidade em um eventual fornecimento.

{2} Às ruas e às praças públicas prestam-se diversas fórmulas de produção privada e


através dos mecanismos de mercado. Uma construtora de um empreendimento imobiliário
poderia construir ruas privadas e vendê-las em copropriedade com as propriedades que as
entornam. O comprador de uma casa pagaria um aluguel periódico para o uso da rua, o
que seria previsto no contrato de compra exatamente como as outras partes de uma
copropriedade financiam atualmente os serviços comuns disponíveis – o caso mais
emblemático é o da gestão das ruas em condomínios. Os coproprietários das ruas
administrariam-nas segundo a fórmula e as condições previstas nestes contratos. Algumas
ruas poderiam também pertencer a um proprietário não-residente que alugaria o usufruto
aos moradores (ou a qualquer locatário interessado e aceitável), da mesma forma que
acontece com uma vaga de garagem, por exemplo. Ao construir ou comprar uma casa, o
futuro proprietário deveria assegurar-se contratualmente da disponibilidade da rua (ou das
ruas) dando então acesso a sua propriedade e à copropriedade. A propriedade de um
prédio incluiria normalmente o uso perpétuo, garantido por contrato, das ruas do entorno.
O aluguel do acesso à rua poderia ser constante, ou variar segundo uma fórmula
contratualmente determinada, por exemplo, em função do valor de mercado das
propriedades vizinhas, da evolução do poder de compra da moeda, das despesas em
manutenção e investimento e etc. Do ponto de vista estritamente econômico, quanto
melhor fosse a rua conservada e administrada, melhor ela responderia aos desejos da
clientela, maior seria o valor dos aluguéis que retirariam os proprietários, maior seria a
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renda associada às propriedades e à copropriedade. Se os gestores não administrassem a
rua de tal forma que não se maximizasse o valor das propriedades que ela desserve, seria
então do interesse dos próprios moradores de comprá-la por um preço mais elevado que
sua renda atuarial, afim de administrá-la eles mesmos ou revendê-la pelo lucro. Seria
também praticável que um morador possuísse, em propriedade indivisa, a parte da rua
situada nas bordas de sua propriedade. Este é um caso de figura que ilustraria bem as
vantagens da propriedade privada das ruas. Sob reserva das condições e das sujeições
contratuais originais, cada proprietário faria atenção a que seu pedaço de rua permitisse a
maximização do valor de sua propriedade.

{3} Suponhamos, por exemplo, que tu possuas um comércio, e


que prostitutas peçam-te que lhes venda o direito de “esperar
clientes” na frente da tua casa ou empreendimento. (Se elas ali
encontrassem-se contra tua vontade, tu as enxotaria dali como
qualquer outro intruso.) Tu aceitarias ou recusarias a oferta
desde que o montante que elas ofereçam-te seja ou não superior
às perdas comerciais causadas pela deserção de alguns de teus
clientes e amigos, e da consequente redução de valor de tua
propriedade (teus sentimentos morais e custos psicológicos
sendo também levados em consideração no processo de valoração social). Se as
profissionais do prazer – em função da natureza de teus clientes e da classe destas
garotas -, atraíssem, ao contrário, novos clientes para tua loja ou amigos, e que essa
frequentação fosse de tua apreciação, serias tu quem estaria pronto a pagar-lhes um
dinheirinho para que elas “rodem a bolsa” na calçada da tua casa. E se teu vizinho não
estivesse de acordo com tua decisão, seria ele quem teria de escolher uma propriedade
desservida de um direito de controle sobre o uso da calçada, ou agravada de
regulamentos interditando atividades indesejadas; ou ele poderia simplesmente oferecer
um preço mais elevado do que propuseram as garotas para convencer-te de ceder teu
direito de acolher este tipo de convidados sobre tua calçada. Se a rua pertence a um
proprietário estrangeiro, ele procurará, da mesma maneira, responder às demandas de
seus clientes e moradores. Desta forma, a propriedade privada das ruas resolveria
forçosamente todos os conflitos que surgissem entre os utilizadores das vias públicas
através da livre contratualização. Cada rua seria utilizada como desejam os seus
proprietários, sob reserva de contratos ou sujeições que os sobrecarregam e que
respondem às demandas dos consumidores. Existiriam várias ruas com um grande
número de proprietários diferentes, bairros, condomínios e ambientes diversos seriam
criados. Esta seria apenas uma das faces da diversidade e da eficácia do urbanismo
privado, que poderia vantajosamente substituir a regulamentação pública. A
concorrência dos proprietários das ruas ofereceria uma grande possibilidade de escolhas
aos usuários, proprietários de imóveis ou pedestres. O proprietário de uma rua poderia
evidentemente fixar segundo sua vontade as condições de usagem de sua propriedade,
discriminar como ele bem deseje, sob reserva dos contratos pelos quais ele está
previamente ligado.

{4} Para a teoria econômica ortodoxa, a segurança pública – polícia, tribunais e prisões, e
defesa nacional – representa o bem-público por excelência, e fornece a justificação última
ao estado. Mesmo que seja considerado um estado de natureza lockeano (o que fazem
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geralmente os Anarcocapitalistas), disputas honestas são inevitáveis; pior ainda, por mais
que a maioria das pessoas respeitam o direito natural, algumas violarão e passarão além.
Para evitar que a anarquia lockeana desestabilizada não degenere em um caos
hobbesiano, é necessário que existam mecanismos de proteção contra o ataque aos
direitos dos indivíduos. Assim como Gustave Molinari, os Anarcocapitalistas
contemporâneos defendem que a segurança seria produzida mais eficientemente pelo
mercado ao invés do estado. O coração da teoria Anarcocapitalista encontra-se nesta
demonstração. Em estado natural, cada indivíduo tem o direito de fazer respeitar seus
direitos, de executar ele mesmo a lei da natureza tal qual concebida pelas tradições
jusnaturalistas. A sociedade civil difere do estado natural no que ela substitui a execução
privada do direito por árbitros imparciais e leis universais que impõem-se a todos: “É
necessário estar de acordo com isto, afirmou John Locke (1690), a menos que prefiramos
dizer que o estado natural e a sociedade civil são uma única e mesma coisa; algo que eu
nunca vi, que eu nunca escutei dizer, e que ninguém jamais defendeu, mesmo que fosse
um grande defensor da anarquia”. Os teóricos Anarcocapitalistas como Murray Rothbard
(1962), David Friedman (1973) e Morris e Linda Tannehill (1970) transpõem esta barreira e
defendem que o estado natural forma uma sociedade eficiente.

Árbitros Privados

{5} “A justiça é um bem econômico, exatamente como a educação e a saúde”, escreviam


os Tannehill. Para demonstrar isto, os Anarcocapitalistas contemporâneos propõem uma
teoria da arbitragem privada que aperfeiçoe as geniais – embora rudimentares –
instituições que Gustave de Molinari (1849) havia concebido há pouco mais de um século.
A teoria de Murray Rothbard (1982) é a mais completa, a melhor argumentada e a mais
influente: são sobretudo às teses rothbardianas que tomamos emprestada a exposição
que segue logo mais. A privatização dos tribunais civis é, de fato, concebível e realista.
Existem no presente momento milhares de árbitros privados aos quais as partes de um
contrato podem livremente recorrer para que seja resolvido um litígio, e tal recurso é
frequentemente previamente estabelecido no próprio contrato que as partes
estabeleceram. Comparadas à ineficiência dos tribunais do estado, observou Rothbard, as
sociedades de arbitragem privadas seriam consideradas muito mais prósperas. A
American Arbitration Association (Associação Americana de Arbitragem) reagrupa milhares
de árbitros profissionais privados que resolvem a cada ano dezenas de milhares de litígios.
A maior parte dos litígios entre os corretores de ações e títulos imobiliários americanos e
seus clientes são resolvidos por um tribunal de arbitragem privado e através da
Associação Nacional dos Corretores de Títulos [1].

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{6} O direito internacional privado funciona
sem poder coercitivo supremo, sem
tribunal obrigatório em última instância,
sem monopólio último de uso da força. Os
estados-nação estão, uns relativamente
aos outros, e sempre estiveram, em uma
situação de anarquia, como em um estado
natural lockeano. Os indivíduos de países
diferentes estão então, uns relativamente
aos outros, em um estado de anarquia.
Ora, mesmo assim, e malgrado as guerras
que opuseram seus príncipes e governantes, os cidadãos individuais destes países
mantém todavia relações econômicas razoavelmente e racionalmente ordenadas, sem
maiores obstáculos legais. Um indivíduo lesado por um estrangeiro poderá, quase sempre,
obter justiça diante de um tribunal de outro país. E ainda, em diversas dessas ocasiões,
existem mecanismos privados de arbitragem. Por exemplo, mais de 5.000 casos foram
submetidos à Corte de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional desde sua
fundação, em 1923. Apenas em 1984, 296 novos casos foram registrados e 137 sentenças
foram estabelecidas. A maioria dos litígios compreendia montantes de 200 mil a
10 milhões de dólares US; 9% colocaram em causa montantes inferiores a 50 mil dólares
US; 14% representariam somas de mais de 10 milhões de dólares [2]. Visto que a
ausência de um monopólio estatal supranacional não impede a harmonia entre indivíduos
separados por uma fronteira nacional arbitrária e imaginária, o estado não é mais
necessário para assegurar relações livres e ordenadas entre indivíduos que, tão
arbitrariamente, as relações entre os que “pertencem” a um mesmo país. Rothbard
escreveu (1970, p. 4): “Se os cidadãos de Montana do Norte e estes de Saskatchewan do
outro lado da fronteira podem viver e comerciar em harmonia sem governo comum, assim
poderiam os cidadãos de Montana do Norte e Montana do Sul entre eles.” [3]

{7} Não somente a arbitragem privada existe no presente momento, mas a história
demonstra sua eficácia econômica. Se a lei americana faz útil render obrigatória a decisão
de um árbitro privado, este constrangimento é recente: antes do começo do século 20,
quando não obrigavam legalmente e oficialmente as partes, a arbitragem privada já tinha
feito provas de eficiência e mostrado resultados satisfatórios. Remontando à Idade Média,
constatamos que o essencial do direito comercial inglês foi elaborado e ajustado por
tribunais privados de comerciantes. Da mesma forma, segundo Rothbard, o “direito dos
mares” ou normas regendo a conduta em águas internacionais e mesmo boa parte da
Common Law (Direito Comum) foram “antes de tudo a obra de juízes privados e
concorrenciais aos quais as partes de um diferendo recorriam livremente, pois elas
reconheciam seu saber-fazer nos domínios jurídicos em questão”. Podemos então
facilmente imaginar o que aconteceria se os tribunais civis do estado não existissem. As
partes de um litígio tentariam primeiramente negociar entre elas uma possível solução,
como fazem frequentemente os homens de negócio nos dias de hoje. Em caso de
desacordo, as partes tentariam se entender para que o diferendo fosse encaminhado
diante de um árbitro e um tribunal privado mutualmente aceito. Frequentemente, o contrato
original sobre o qual houve o dito diferendo já teria previsto com antecedência as violações

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incorrendo em pena, os recursos legítimos, ou até mesmo o grupo de árbitros, o
procedimento de apelação e o tribunal responsável pelo processo em apelação. Recorrer
voluntariamente à arbitragem é do interesse das duas partes pois a “opção de uso da
força” é arriscada, custosa e ineficaz. Como escreveram Morris e Linda Tannehill, o
“princípio do interesse pessoal racional, sobre o qual todo o sistema de mercado é
fundamentado”, levaria naturalmente as partes a submeterem seus diferendos à
arbitragem. Respondendo à demanda do mercado, os tribunais privados concorrenciais
desenvolveriam-se, tentando conquistar e garantir uma clientela através da salvaguarda de
uma reputação de eficácia, imparcialidade e integridade.

{8} Morris e Linda Tannehill (1984) imaginaram um mecanismo engenhoso suscetível de


institucionalizar o recurso à arbitragem. Com o fim das garantias estatais de execução dos
contratos, as companhias de seguro, à espera de novas oportunidades de lucro,
ofereceriam seguros contra a não-execução dos contratos, o que estenderia ainda mais
um mercado que já existe neste domínio. A seguradora tendo indenizado seu assegurado
que foi vítima da quebra de um contrato, tem interesse em fazer-se reembolsar pela parte
responsável. O interesse daquela parte, ou de sua seguradora, por outro lado, é o de
demonstrar que não existiu tal quebra de contrato, o que incorreria numa redução de seus
custos, da mesma forma que o pleito por uma pena mais branda do que aquela prevista no
contrato privado por uma circunstância atenuante, por exemplo. Decorre disso o interesse
contínuo das companhias de seguro de recorrerem aos tribunais de arbitragem e exigirem
a inclusão de um procedimento de arbitragem ao qual elas possam se assegurar. Certas
companhias de seguro estabeleceriam mesmo seu próprio tribunal, para resolver litígios
entre assegurados da mesma companhia, por exemplo. E como seriam executadas
(enforce) sentenças de árbitros privados sem a força pública? No direito comercial da
Idade Média (como neste dos antigos irlandeses), surgiu a constatação de que o medo das
sanções sociais, não coercitivas mas fortemente restritivas e constrangedoras como o
ostracismo e o boicote comercial, seriam suficientes para assegurar o respeito dos
julgamentos. Um comerciante que não se submetesse às decisões do árbitro agregado
seria colocado a margem da comunidade de comerciantes. Um caloteiro isolado da
sociedade mercantil. Estas sanções parecem ter sido bastante eficientes para permitir o
desenvolvimento do direito no domínio complexo que é este do comércio. Em nossos dias,
uma boa parte das relações humanas e comerciais são fundadas sobre a confiança e
sobre a certeza que aquele que trair a confiança de outrem não poderá mais gozar dos
benefícios, prestígios e vantagens da cooperação social que decorrem daquela relação. A
teoria de Robert Axelrod (1984) mostrou como a colaboração dos outros indivíduos é
necessária para a eficiência da ação individual. Em suma, as possibilidades de ostracismo
social e de boicote comercial são hoje destacadas pelas cotas de crédito pessoal, pela
informática, pela numerização e automatização da informação comercial. Cada vez mais
as sociedades modernas encontram meios de controlar os cadastros de cliente, seu perfil
socioeconômico e seu histórico de capacidade de honrar seus compromissos. Na América
do Norte, as associações puramente privadas que são os “Better Business Bureaus” ou
escritórios de ética comercial já conduzem pesquisas e fornecem a seus membros
informações valiosas sobre a solvabilidade e a fiabilidade das companhias. Estas agências
combatem também as práticas comerciais suspeitas como a falsa publicidade, e sua
influência moral é suficiente para incentivar as empresas infratoras à indenizar seus
clientes que foram lesados [4]. Mais uma vez, apenas os incentivos de mercado, os custos
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atrelados à deterioração da imagem das firmas e pessoas atuam de forma espontânea
para autorregular a coordenação das relações interpessoais. Desta forma, os tribunais
civis dos estados atuais seriam vantajosamente substituídos por tribunais privados,
concorrenciais e não-coercitivos. A intervenção destes tribunais seria demandada pelas
partes envolvidas em litígios e seria frequentemente prevista previamente nos próprios
contratos privados. Os indivíduos e comunidades teriam interesse em se conformar aos
julgamentos, sob pena de perder a confiança ao longo de suas relações contratuais.

A Polícia como Bem Privado

{9} É necessário também proteger-se contra o crime, seja passivamente ou através de


cercas, fechaduras, guarda-costas, e dissuasões diversas, seja, mais ativamente,
combatendo os agressores (legítima defesa) e exercendo represálias contra culpados
(meios judiciários): perseguição e identificação de suspeitos, julgamentos dos acusados e
imposição da restituição e das penas aos culpados sentenciados. Uma proteção e
segurança eficaz exigem uma polícia e jurisdições penais. Na doutrina Anarcocapitalista,
estes serviços seriam também ofertados por empresas concorrenciais sobre os mercados.
Como a justiça, a segurança dos bens e das pessoas é um bem econômico, visto que ela
fornece utilidade e sua produção consome recursos raros, o que levanta os mesmos
problemas e dilemas que qualquer outra alocação de recursos econômicos. Trata-se de
fornecer a cada um uma segurança suficiente, e que corresponda ao que cada indivíduo
deseja realmente quando ele avalia e coloca na balança os custos e as vantagens dos
diversos níveis e formas de segurança. Ora, o mercado é um mecanismo mais eficaz que o
estado em descobrir e satisfazer as preferências dos indivíduos, seus anseios de
consumo, suas expectativas em termos de bens e serviços. A separação formal que existe
entre o pagamento confiscado e os serviços rendidos dá aos serviços estatais a aparência
de gratuidade: aquele sujeito que obtém patrulhas policiais mais regulares na sua rua não
vê seus impostos aumentarem na mesma intensidade que os desmunidos de prestações
de segurança. Temos então interesse em exagerar as necessidades de serviços públicos,
e por consequência, os novos custos associados à provisão daqueles serviços serão
repartidos entre a totalidade dos contribuintes. Decorre disso a situação de frequente e
cônica penúria de serviços estatais de segurança em diversas localidades ou de forma
geral, temos uma oferta que não satisfaz à demanda, e a consequência usual de que o
estado deve impor arbitrariamente o racionamento e alocar como prefira a oferta, segundo
as urgências que considerar prioritárias. Certas pessoas serão bem protegidas, outras mal-
defendidas, e poucos indivíduos recebem a segurança que cada um estaria preparado a
pagar livremente. Essa penúria e ineficiência explicaria o sucesso da segurança privada e
das prestações individualizadas nos mercados privados de segurança particular.

{10} No mais, como ocorre em qualquer monopólio, aquele que o estado exerce sobre a
segurança não é eficiente em sua produção. Por esta razão, os serviços de segurança
privada estendem-se em todos os lugares do mundo onde o estado permite. Rothbard
calcula que mais da metade das despesas de segurança nos Estados Unidos releva do
setor privado, o que cobre não somente os equipamentos de proteção (armas individuais,
sistemas de alarme, dispositivos de rastreamento e etc.), mas também, serviços de
guardas-costas, vigilância e polícia privada, detetives particulares, etc. Nos Estados
Unidos, os proprietários de locais “públicos” (que são na verdade lugares privados abertos
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ao público) como bares, boates, cinemas, centros de compra ou grandes conjuntos
residenciais recorrem frequentemente às companhias privadas de polícia (como é o caso
dos famosos Pinkerton, por exemplo) e agentes policiais que também geralmente estão
armados. Uma ilustração da possibilidade e eficácia da proteção policial privada vem de
São Francisco, onde os agentes privados de polícia, as “Patrol Special”, dão assistência à
polícia oficial a mais de um século. Enquanto agente oficial, um Patrol Special veste
uniforme, carrega um revólver, patrulha um setor qualquer da cidade e inicia
procedimentos de detenção de suspeitos. Mas os policiais da Patrol Special vendem seus
serviços aos clientes em função do seu setor, na medida em que lhes pagam por uma
proteção especial, além daquela que os serviços públicos de segurança oferecem
mediante recursos dos impostos. Por mais que aqueles policiais privados sejam também
solicitados a colaborar com os policiais públicos, suas obrigações primordiais estão
direcionadas à satisfação de seus clientes. Por algo entre 10 e 20 Dólares por mês, obtém-
se uma supervisão particular de sua casa, o que, durante as ausência prolongada dos
ocupantes, inclui aretirada das correspondências dos correios e a verificação da iluminação
no interior das casas. Por uma mensalidade de 30 Dólares, o agente faz regularmente uma
ronda nos jardins, e os serviços podem se estender até onde as demandas individuais e os
desejos dos consumidores possam ir. Empresas pagam até 1 000 dólares por mês para
uma proteção completa e contínua de suas propriedades. No entanto, o mercado privado
de proteção policial de São Francisco não é verdadeiramente livre pois, desde de 1899, os
policiais privados estão sob jurisdições de polícia local, seus setores são delimitados e eles
devem, para ter acesso aos mercados, comprar permissões e licenças dos
concessionários de algum dos 62 setores existentes. Restam portanto ao menos 142
policiais privados que patrulham estes setores, sendo bem-reconhecidos por sua
eficácia [5].

{11} Na Itália, o banditismo, o terrorismo e a ineficiência do estado provocaram um forte


crescimento das despesas com atividades privadas de segurança. As sociedades de vigias
privados declararam um volume de negócios de 950 bilhões de libras italianas no ano de
1985. As companhias de seguro exigem a presença de vigias em certas empresas, sob
pena de nulidade do contrato em caso de sinistro [6]. O Anarcocapitalismo apenas estende
este já próspero domínio de segurança privada a níveis da comunidade e das sociedades.
Segundo a crítica Anarcocapitalista, a polícia e os serviços de segurança não têm nada de
um “bem-público”. A não-rivalidade do consumo nela não se aplica: ninguém pode utilizar
ao mesmo tempo os serviços de um comissariado de polícia, nenhum policial pode atender
ao mesmo tempo diversas ocorrências, a cada unidade de segurança consumida diminui
uma disponível aos demais. Dito de outra forma, quanto mais indivíduos suplementares
consomem os serviços, menor o número que resta disponível para seus vizinhos próximos
ou distantes. Não existe nada na natureza da polícia que assegure automaticamente o uso
de todos os serviços, por todos os habitantes de um bairro. A segurança é um bem
passivo de exclusão (exclusivo): a polícia que é paga por mim não seria obrigada a
proteger meu vizinho ou um passageiro clandestino (free rider). É verdade que a presença
policial exerce um efeito dissuasivo, que integra a noção de bem público. Mas a mesma
dissuasão é produzida se os indivíduos se armam para defender suas casas ou deslocam-
se armados pelas ruas. As vantagens gerais da sociedade e da cooperação social, as
quais nós somos todos naturalmente e legitimamente beneficiários, não justifica a coerção
da parte daqueles que gostariam de obter muito mais do que lhes é fornecido como
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subproduto das ações dos outros. Lembremos que o argumento dos bens públicos é
incompatível com a abordagem praxeológica: fora das escolhas concretas de um indivíduo
(quando ele paga uma agência de polícia privada para vigiar sua casa), nós não podemos
afirmar nada sobre suas preferências. Não é possível conhecer efetivamente os gostos ou
disposições marginais a pagar dos indivíduos se eles não podem se manifestar livremente
nos mercados. Se a proteção policial apresenta-se ainda hoje com um bem público, é
sobretudo devido à estatização de boa parte desta “indústria” de segurança, que impede
que o indivíduo reconheça o quanto paga para obter o que ele quer ou o que tem (a
segurança), e que faz com que ele seja mais vulnerável às reduções e recaídas abstratas
da dissuasão.

{12} Como funcionaria concretamente o regime de segurança inteiramente concorrencial?


Se não poderemos jamais prever exatamente a configuração precisa das instituições e
características exatas dos bens que a cooperação livre e espontânea produzirá, nós
sabemos todavia que, sobre um livre mercado, um fornecedor ou produtor sempre
manifesta-se para oferecer o que alguém está determinado a pagar por um determinado
preço. Na ausência de estado, como dissemos mais acima, se desenvolverão
vantajosamente e ainda mais profundamente as agências de proteção, as seguradoras, os
tribunais penais e cortes de julgamento e arbitragem que oferecerão seus bens e serviços
sobre os mercados. Se os ganhos de escala e eficiência nos mercados apontarem para
determinados esquemas organizacionais, muitas companhias ofereceriam ao mesmo
tempo serviços policiais e serviços judiciários, outras se especializarão em determinados
segmentos. Podemos conjecturar e presumir que as companhias de seguros, que têm
interesses tangíveis na luta contra o crime, se lançariam na luta pela tomada destes
mercados. Morris e Linda Tannehill (1984) imaginam que elas comercializariam apólices
de seguro contra agressão, o que as incentivaria a perseguir os culpados para que
reembolsem os danos e atentados contra direitos contratuais assegurados aos seus
clientes. O interesse das companhias de seguro pela segurança privada ou coletiva é
ilustrado naquele caso dos vigias italianos citados mais acima, em que os contratos e
prestações geralmente envolvem serviços mais extensivos e garantias que os parceiros
comerciais solicitam no momento de firmamento de suas relações de cooperação.
Rothbard (1973) conjectura que, ofertados por empresas independentes ou por
companhias de seguros, os serviços de segurança se apresentariam geralmente sob a
forma de apólices de seguro associando prestações de segurança e proteção, ou seja,
uma garantia de serviços por um período de tempo determinado com qualquer
antecedência. Associado a determinados pacotes e cesto de serviços incluindo seus
respectivos preços, outros serviços de segurança poderiam ser comprados
separadamente. Indivíduos formariam também associações mútuas de proteção. Além
disso, evidentemente, todo indivíduo poderia decidir assegurar ele mesmo sua própria
segurança, embora a maior parte dos indivíduos escolha – sem sombra de dúvidas –
aproveitar das vantagens da divisão do trabalho e confiar este trabalho às agências de
segurança especializada.

{13} Sobre sua propriedade, um indivíduo ou grupo voluntário de indivíduos poderia se


proteger da forma como houvesse decidido, normalmente retendo os serviços da agência
policial de sua escolha. Sobre a propriedade de outrem, ele é protegido por seu anfitrião,
ou por sua agência. Na eventualidade de uma agressão da parte deste anfitrião, ele
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sempre poderá chamar sua própria companhia de segurança. Em lugares “públicos” como
as ruas ou os imóveis comerciais, o indivíduo estará sob proteção da agência empregada
pelo proprietário (privado) do lugar em questão, que aliás tem todo o interesse em garantir
isso, se ele pretende, de fato, conservar sua clientela e bem proteger seu estabelecimento.
Em suma, em sua casa, o indivíduo é coberto por seus próprios arranjos de proteção;
alhures, ele é protegido por seu anfitrião. Em certas situações de urgência, a agência de
polícia capaz de intervir não será esta que esteja sob responsabilidade contratual da
segurança da vítima de agressão. Os mecanismos de interesse individual continuam a
atuar nestes casos, da mesma forma como nos outros. Por exemplo: imagine que em tua
ausência, um bandido adentra em tua casa por arrombamento. Um agente da polícia “Z”,
ao serviço dos proprietários da rua que entorna tua propriedade, é testemunha do
arrombamento. Ele intervirá diretamente ou alertará tua agência, pois tal é o seu próprio
interesse, visto que ele se ocupa da segurança local e poderá ulteriormente reivindicar
eventuais custos suplementares associados aos serviços prestados em caráter de
urgência. Na verdade, o proprietário da rua procura assegurar um bom serviço de proteção
aos moradores pois, caso contrário, o valor das propriedades cairá e a rua será alugada
ulteriormente por preços menores. É bem provável que o próprio contrato de uso da rua
preveja que esse tipo de assistência seja fornecido. Certamente, nenhum problema
intervém se a rua pertence coletivamente aos moradores e proprietários, e a segurança já
está sob responsabilidade de uma empresa de seguros ou polícia.

{14} Compliquemos um pouco mais a situação com intuito de assimilar melhor os


mecanismos de raciocínio do fornecimento voluntário desses serviços. Se um indivíduo (ou
sua propriedade) vítima de agressão não é assegurado por nenhuma agência de proteção,
ou sua agência de proteção não seja reconhecida pelo policial que é testemunha do crime,
este policial encontrará, ainda assim, e da mesma forma, um interesse em intervir. Ele
pode querer preservar a paz nos bairros pois é para isto que estes serviços de seguro são
pagos, e é baseado na excelência dessas prestações que oscilam os valores das
cotizações. Além disso, ele fará da mesma forma que os médicos e hospitais em caso de
urgência: ele tomará o risco de atender e resolver o problema, enviando em seguida a
conta para que os valores sejam reembolsados. Isto é tão mais provável que o contrato
que estabelece com sua agência de segurança vai efetivamente prever o reembolso dos
serviços que lhe foram ofertados por outras agências, em tais circunstâncias. Quanto aos
mais pobres, eles não seriam necessariamente menos bem protegidos em uma anarquia
libertária. Pensemos um pouco. Hoje em dia, os habitantes dos bairros mais pobres
estariam verdadeiramente bem protegidos pela policia pública, que, ainda por cima, lhes
custa caro em impostos? A resposta para isso soa ainda mais óbvia em um país como o
Brasil. E se a maior parte dos pobres consegue hoje em dia oferecer a si próprios
automóveis e televisores, por quê não poderiam eles pagar privadamente por melhores
serviços de polícia com aqueles impostos que lhe são atualmente subtraídos para financiar
as despesas com a polícia pública? Não vedemos também esquecer que a caridade
privada e a publicidade comercial (tal qual uma agência de polícia oferecendo serviços
gratuitos em um bairro desfavorecido) teriam papel ainda mais importante em uma
sociedade de policiamento privado. Enfim, os próprios habitantes de um bairro pobre
poderiam reagrupar-se em associações de proteção, e bastaria que o direito natural de
autodefesa e o porte de armas não lhes fossem subtraídos.

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{15} Uma objeção a tal organização frequente enfatiza que a segurança pública é uma
condição de base para a realização do mercado, e que não poderia consequentemente ser
assegurada pelo mercado ele mesmo. Sem uma segurança eficiente, não temos liberdade,
não temos mercado. Não obstante, se considerados globalmente, e desta forma, todos os
tipos de bens produzidos pelo mercado adviriam condições sine qua non, ou seja, o
argumento configura uma falácia de princípio. A comida é essencial ao mercado: sem
comida, não temos a estrutura nutricional, não podemos ter mercados; do mesmo jeito o
papel, e hoje em dia, os computadores. A dificuldade aparente vem do fato que se esquece
que as divisões de consumo e as decisões em termos de preferência são feitas
marginalmente. Um indivíduo não decide consumir 100 kg de pão por ano, ele escolhe tal
baguete que ele compra em uma padaria. Da mesma forma ele faz com a segurança. Na
medida em que as ações e as escolhas humanas implicam unidades marginais de bens
consumidos, seria praxeologicamente absurdo colocar o problema em termos de conjunto
de produção ou em estoques de bens. Tal serviço policial comprado por alguém não é
mais indispensável ao funcionamento do mercado que tal cesto de comida roubado de um
empório.

{16} Ao contrário de Molinari, os Anarcocapitalistas contemporâneos não acreditam que a


proteção policial constitua um monopólio natural. Não existe nada que de fato permita
supor isto. A segurança é próxima da indústria de seguros, onde nenhum monopólio
territorial resiste à competição. Mesmo que uma agência de polícia tenha dominado uma
região ou bairro qualquer, nada impediria que outra agência vinda do exterior responda à
demanda de indivíduos estimando-se mal desservidos pela agência mais popular. A
concorrência entre as agências de polícia conduziria a uma melhora da segurança pública.
À objeção segundo a qual as agências de segurança concorrenciais estariam
constantemente em guerra, os Anarcocapitalistas propõem duas vias de resposta. De uma
parte, as guerras interestatais atuais são bem mais ameaçadoras e devastadoras que as
possíveis brigas e atritos que existiriam entre agências privadas. De outra parte, como não
é do interesse das agências de entrar em batalha por qualquer motivo irrelevante, elas
tentarão geralmente se entender, e fazer estabelecer seus direitos: seja através dos
tribunais civis supracitados, seja através das cortes penais, que serão consideradas e
estudadas brevemente logo a baixo.

Jurisdições Penais Privadas

{17} A segurança compreende também atividades judiciárias: identificar, perseguir e julgar


pessoas suspeitas de crimes, e impor uma pena satisfatoriamente ajustada aos culpados.
Em uma sociedade Anarcocapitalista – como dentro de um estado natural lockeano, todo
indivíduo possui ao mesmo tempo o direito de defender-se contra um agressor e também
de impor-lhe uma indenização, e puni-lo, ou delegar a alguém a responsabilidade de fazê-
lo. Todo indivíduo tem o direito de se fazer justiça (ou fazer justiça a outrem), ou adquirir
serviços de um terceiro que procurará fazê-lo. Apesar disso, o exercício deste direito
comporta certos riscos. Somos juízes ruins de nossas próprias causas, e a vítima de um
crime de sua própria agência de proteção tem interesse em remeter-se ao juiz de um
tribunal independente e imparcial. Este que faz-se justiça ou rende uma justiça expeditiva
arrisca de ser chamado a ter que justificar-se por sua vítima, ou àqueles tendo adquirido
os direitos desta vítima em outra instância. Se seu veredito revela-se errôneo, ou a pena
11/23
aplicada e imposta considerada desproporcional, o justiceiro privado seria ele mesmo
acusado de agressão criminal. Para qualquer um que preze e tenha apreço por seus
interesses privados, um processo tomado antes do ato é menos arriscado que uma
justificação post factum. A demanda por justiça ou demanda pelos serviços de tribunais
judiciários se manifestaria espontaneamente nos mercados, procura a qual responderiam
prontamente agências privadas, exatamente como no domínio de arbitragem civil e de
proteção policial que acabamos de apresentar. Jurisdições penais concorrenciais
ofereceriam a seus clientes a possibilidade de instruir processos contra seus agressores:
julgariam os suspeitos e pronunciariam penas merecidas aos culpados, e nos processos
incorreriam sua própria reputação. A concorrência entre tribunais penais imporia a cada
um a manutenção de uma reputação de imparcialidade, de justiça e de eficiência. Como
toda empresa privada, as agências judiciárias seriam, em teoria, financiada por seus
clientes (ou por patrocinadores); ela obrigaria sem dúvidas os suspeitos reconhecidos
culpados a pagar as despesas dos custos judiciários. Os próprios custos relativos ao
cumprimento das sentenças requereria o financiamento das agências dos envolvidos, ou
das indenizações versadas pelas próprias seguradoras dos tribunais, que normalmente
poderiam resguardar previamente seus clientes do risco e de situações onde os envolvidos
se encontrariam incapazes de cumprir com o devido relativo aos processos e aplicação da
sentença. Em última instância ele poderia incorrer na obrigação de prestações diretas em
caso de insuficiência geral de fundos. Certos tribunais privados ofereceriam seus serviços
aos afiliados regulares, dentre os quais figurariam agências de polícia preferindo relatar
automaticamente e imediatamente a um tribunal todo conflito implicando um de seus
clientes. Outras cortes se contentariam de vender seus serviços por unidade.

{18} Façamos um exercício intelectual. Imaginemos um indivíduo vítima de um crime,


roubo ou agressão. Depois da investigação, sua agência de polícia identifica um suspeito.
Temendo os riscos e custos econômicos de uma justiça parcial e expeditiva, o acusador
intenta um processo diante do tribunal ao qual ele é abonado – ou afiliado via intermediário
ou diretamente, ou a qualquer outro tribunal de sua escolha. Desses tribunais viria a
responsabilidade de realização e encaminhamento de eventuais perseguições penais
vindas das próprias vítimas ou agências de polícia, dependendo isto dos termos dos
contratos que estes tribunais têm com os demais agentes. Se a vítima morreu ou encontra-
se incapaz de agir, as pessoas tendo adquirido seus direitos ou suas próprias agências a
substituirão e poderão reivindicar os direitos. O acusado é avisado das perseguições
judiciárias engajadas contra ele, e é convidado a comparecer e apresentar defesa neste
processo. Ele não é, portanto, forçado a comparecer ao processo. Apenas é legítima a
coerção contra um indivíduo que é efetivamente culpado de ter cometido um crime. Como
o suspeito do crime não foi ainda reconhecido culpado, o acusador que o sequestrasse ou
raptasse, ou procurasse exercer qualquer outra coerção contra ele, seria ele mesmo
passivo de perseguições penais, notadamente se o acusado estivesse finalmente sido
declarado inocente ou que o período de detenção tivesse excedido o prazo previsto pela
pena a qual ele é condenado. O fato é que os crimes e delitos geram direitos
reivindicatórios. Excluídos os casos onde alguém está, de fato, pronto a correr este risco
que representa um julgamento antes do processo, ou de não exercer adequadamente seu
direito de defesa, o acusado seria realmente presumido inocente até que houvesse a
prova do contrário. Dai seguiria evidentemente que nenhum inocente, mesmo testemunha
de um crime, não poderia ser forçado a comparecer diante um tribunal, nem mesmo ser
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coagido a testemunhar contra sua vontade. Em decorrência desse primeiro processo, das
duas coisas uma. Ou bem o acusado é inocentado, e nenhum problema de execução
apresenta-se; como o acusador não pôde obter a condenação diante do tribunal que ele
mesmo escolheu, justiça é feita e o acusado é livre. Ou então o acusado é julgado culpado
e é condenado a submeter-se a uma pena que (salvo para os Anarcocapitalistas
utilitaristas) compreende a reparação do dano cometido e um devido castigo por ter
violado os direitos de outrem. Se o condenado aceita o julgamento e a pena imposta,
nenhum problema se apresenta. Justiça é feita.

{19} O que acontece nos casos onde o acusado não aceita o julgamento rendido por este
primeiro tribunal, que ele não escolheu ele mesmo? Para evitar a execução do julgamento,
ele levará em apelação diante de um outro tribunal, escolhido por ele mesmo desta vez.
Segundo o contrato de proteção subscrito pelo acusado, é possível que seja uma agência
de polícia que ocupe-se exclusivamente de receber a apelação, ou um tribunal de sua
escolha, eventualmente esse que está associado à sua agência de proteção ou
seguradora. Uma outra possibilidade é que a companhia de seguro de vida do acusado –
que deve eventualmente pagar uma parte da fatura, apresente e encaminhe o processo de
julgamento em apelação ao invés do próprio acusado. Independentemente disso, portanto,
o fato de escolher um juiz implica que o agente aceita e reconhece a legitimidade e com
antecedência seu julgamento. Neste caso, ou nessa fase do julgamento, em nossa
segunda instância, das duas coisas uma. Ou bem o acusado é condenado uma segunda
vez, desta vez pelo tribunal escolhido por ele mesmo (direta ou indiretamente), e mais
nada então poderá opor-se à execução da sentença e da pena associada. Ou então, desta
vez, a corte de apelação escolhe derrubar o julgamento em primeira instância, donde
emerge um desacordo entre dois tribunais. A nova sentença pode ser diferente ou oposta
ao que foi sugerido na primeira instância. Tal conflito poderia sobrevir de outra maneira:
por exemplo, um acusado reconhecido duas vezes culpado – ou n vezes culpado – decide
fazer novamente apelação a uma sentença dada em primeira instância. Nesse caso, e
dentro de uma sociedade onde nenhum tribunal de última instância participa a um
monopólio estatal de uso da força e coerção, como resolveríamos os conflitos entre
tribunais ? A resposta a esta questão é a mesma que esta procurando saber por que nós
tivemos recurso aos tribunais ao invés das armas em primeiro lugar: é simplesmente
devido ao interesse pessoal. Não é do interesse de nenhum dos protagonistas regular
seus conflitos sobre um campo de batalha. A luta armada custa caro a um indivíduo
solitário, mas também a uma firma privada, que deveria arcar com os custos e pagar seus
homens mais caro para lhes incentivar à luta e participação em um combate. Mais seus
custos aumentam menor a competitividade em termos de preços e prestações de nossas
agências. O combate significa ainda ver um material custoso destruído, ele riscaria
eventualmente a falência da empresa caso o conflito se degenerasse indefinidamente, e se
alongasse demasiadamente, ou ainda, se a batalha fosse perdida. Uma agência de polícia
que se engaje frequentemente em operações armadas iria observar o curso e valor de
suas ações cair com maior frequência na bolsa de valores, no mínimo, iria ver oscilar mais,
devido ao maior risco que representa seu comportamento. Seus clientes se inquietariam
mais e ela arriscaria de vê-los desertar em benefício de outras agências de polícia mais

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estáveis. Seguindo os exemplos dos indivíduos e das agências de polícia, os tribunais, e
sociedades comerciais tendo fins-lucrativos, teriam sempre maior interesse em regular
seus conflitos pacificamente.

{20} Faltando um regulamento prévio entre o querelador e o acusado, podemos então


prever que os dois tribunais em desacordo se entenderão para que o caso seja
encaminhado diante de uma corte de apelação, que se transformará, ao fim do conflito em
questão, em tribunal de última instância. É mesmo provável que as agências judiciárias
estipulem com antecedência tais recursos em seus contratos de serviço, ou seja, elas já
tenham um conjunto de juízes ou cortes que tenderiam a encaminhar seus diferendos em
jurisprudência e sentenças. Cada conflito encontraria assim, ao final das contas, sua
própria “corte suprema”, que variaria de um conflito a outro e dependeria, direta ou
indiretamente, das escolhas do acusador e do acusado e dos próprios tribunais e juízes
envolvidos. O julgamento do tribunal em última instância seria final e executório, porque
rendido por um tribunal escolhido ou aceito pelas duas partes da causa. Contudo, o que
aconteceria se as duas partes não chegassem a entender-se sobre um tribunal em última
instância? Qual seria, em uma sociedade sem estado, o ponto de ruptura a partir do qual
um julgamento rendido é final, executório e sem apelação? Rothbard resolve o problema
através do que pode parecer ser uma brincadeira. O ponto de ruptura racional e lógico,
que seria naturalmente adoptado pelo “código libertário fundamental”, é dado pela “regra
dos tribunais”: um julgamento se torna executório a partir do momento onde dois tribunais
diferentes fazem concorrência; ou, em outras palavras, a partir do momento em que um
segundo tribunal confirma um julgamento anterior. Como existem duas partes no processo,
o acusador e o acusado, cada um dispondo naturalmente do direito de escolher seu
tribunal, na eventualidade de um desacordo, um último tribunal é quem decide. No fundo,
esta regra vai ao encontro da regra explicitando o direito por um indivíduo de portar sua
causa diante de um tribunal ao qual ele mesmo escolheu (diretamente ou via seus
contratos anteriores) e então o julgamento, por esta razão mesmo, o associará ao
veredicto.

{21} Nós chegamos assim diante da corte de apelação escolhida diretamente ou


indiretamente pelos dois beligerantes. Agora ou bem o tribunal de apelação, em última
instância, inocenta o acusado que já foi reconhecido culpado uma vez e inocente uma
outra, o veredito inocente é então final e sem apelação, e o caso está encerrado. Ou então
ele rende um veredito de culpabilidade e impõe uma pena, e este julgamento, o segundo
no mesmo sentido, se torna final, sem apelação e executório. Justiça é feita.
Contrariamente aos julgamentos civis, todavia, as decisões das jurisdições penais
requerem geralmente uma execução forçada. De fato, os incentivos criados pelo temor do
ostracismo atuariam menos eficientemente ao encontro dos criminosos frequentemente
associais e condenados à pesadas penas redistributivas. As agências de polícia privada
seriam necessárias não somente para defender-se contra as agressões mas também para
executar os julgamentos dos tribunas contra os criminosos. A responsabilidade de
execução legal de um julgamento penal dependeria dos entendimentos contratuais
prévios, e os mercados e prestações se encarregariam de satisfazer as prestações e
demandas emanando dos diversos tribunais. A diversidade do mercado atuaria aí da
mesma forma. Em certas situações, esta responsabilidade incumbiria à polícia de quem
faz a queixa. Nos outros casos, uma agência de polícia afiliada ao tribunal tendo
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pronunciado a condenação final se encarregaria. Talvez, como imaginam os Tannehill, as
companhias de seguros, tendo indenizado um cliente assegurado contra agressões,
interviria nesta altura dos acontecimentos pois seu interesse evidente consiste em
recuperar sua perda. Enfim, certos indivíduos prefeririam executar eles mesmos os
julgamentos em seu favor, malgrado os riscos implicados.

{21} Nesta etapa final da aplicação do direito libertário, choques poderiam produzir-se
entre indivíduos ou companhias de segurança adversas, da mesma forma que batalhas se
produzem certas vezes entre a polícia do estado e outros grupos armados, entre grupos
militares e paramilitares, ou entre as forças armadas de diferentes estados. No entanto,
como sustenta a doutrina Anarcocapitalista, os afrontamentos entre polícias privadas
seriam raros por causa de seus interesses materiais, eles buscariam vantajosamente
resolver pacificamente seus conflitos. Os afrontamentos armados seriam necessariamente
mais localizados e menos destrutivos que as guerras inter-estatais, não tenderiam a durar
como guerras mundiais e nem mobilizar blocos inteiros de comunidades. Contrariamente
ao estado, uma agência de segurança privada não gozaria de nenhum direito reconhecido
permitindo encaminhar seus clientes, ou terceiros inocentes, em um conflito que lhe opõe a
uma outra agência. Sem o corte territorial dos estados e sem a identificação dos civis às
partes beligerantes, a destruição massiva produzida pelas guerras estatais é inconcebível.
Quanto às agências de segurança foras-da-lei, elas tenderiam a ser raras e não
sobreviveriam muito tempo. Para conservar sua clientela e assegurar a colaboração das
testemunhas em suas enquetes e processos, uma agência privada deveria manter uma
reputação acima de toda suspeita. Ninguém reconheceria as decisões de um juiz
notoriamente corrupto, isto retiraria toda utilidade que o juiz pode transmitir para seus
eventuais clientes. Ninguém aceitaria colaborar com uma agência de polícia fora-da-lei,
normalmente lhe impedindo mesmo de fazer conduzir eficientemente suas investigações e,
portanto, de servir apropriadamente seus clientes. De toda maneira, uma agência de
segurança fora-da-lei não poderia se abrigar na sociedade com a mesma facilidade do
monopólio estatal. Estando igualmente armados ou tendo capacidade de se defender de
uma agência usurpadora, os indivíduos e as outras agências estariam em medida de se
opor eficientemente. E mesmo que as agências fora-da-lei destruíssem todas as agências
legítimas reunidas, ou se várias se unissem em um cartel de foras-da-lei, este monopólio
de uso da força não gozaria da legitimidade que a história e a propaganda adornaram e
deram ao estado, notadamente em casos de regimes totalitários. Enfim, em uma
sociedade Anarcocapitalista, um bando de foras-da-lei não poderia “tomar o poder” como
se faz atualmente estes que se apropriam do aparelho estatal: a descentralização do poder
policial e judiciário ofereceria um verdadeiro sistema de controle e de contrapeso (“checks
and balances”). Apenas suponhamos, de toda forma, diz Rothbard, que uma agência de
segurança fora-da-lei termine por obter o monopólio de fato da força, e que ela advenha
um estado. Vejamos nós, este cenário considerado a pior das coisas que poderia
acontecer é apenas o que temos hoje em dia em nossas sociedades: um retorno do
estado, como na situação atual. Nós temos então tudo a ganhar e nada perder em tentar a
experiência Anarcocapitalista.

O Direito Privado

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{22} O regime de segurança privado idealizado pelo Anarcocapitalismo supõe um sistema
de leis que estabelece claramente o que é proibido, e que permite distinguir a agressão da
legítima defesa. Mesmo sem estado, e ainda mais sem estado, a ordem social e a proteção
dos direitos individuais requer leis. Qual é a natureza do processo de desenvolvimento
destas leis? Como se desenvolvem os processos de jurisprudência em uma sociedade
onde a organização do sistema judiciário se dá de maneira policêntrica? Como uma lei
justa persevera em uma sociedade de leis privadas? Como uma lei injusta desaparece? A
grande maioria dos Anarcocapitalistas acredita que um direito natural e objetivo serve de
fundamento às leis. (Nós falaremos logo mais abaixo de David Friedman, cuja teoria
comporta um forte componente utilitarista.) O direito natural pode ser entendido de duas
maneiras. Por um lado se trata de um produto da ordem espontânea, de uma lei natural
que é descoberta através de um processo de desenvolvimento espontâneo do direito, à
maneira da Common Law (Direito Comum) britânica e do processo racional de tentativas e
erros, da experimentação de normas e eliminação das normas insatisfatórias aos olhos da
ética natural. Por outro lado, o direito natural Anarcocapitalista faz também referência a um
conjunto de princípios fundamentais – os princípios lockeanos para Rothbard – acessíveis
à razão e sobre a base dos quais é possível em seguida se desenvolver o processo
espontâneo das regras de direito. Dito de outra forma, o desenvolvimento do direito
relevaria da jurisprudência dos tribunais privados que descobririam a lei e corrigiriam o
direito costumeiro às luzes dos princípios racionalistas do direito libertário, e dos resultados
das experimentações em processos legais. A partir daí, segundo Rothbard, resultaria um
“código de leis” derivado ao mesmo tempo do direito costumeiro e da ética racionalista
libertária.

{23} Para demonstrar a viabilidade do desenvolvimento espontâneo e anárquico de um


direito respeitoso dos princípios libertários da propriedade privada e de não-agressão, os
Anarcocapitalistas citam o caso da Irlanda Celta, uma sociedade que teria se passado de
estado durante mais ou menos mil anos, até a conquista da Inglaterra no século XVII. A
idéia do sistema policêntrico se inspira bastante de mecanismos de jurisprudência e
resolução de diferendos em períodos específicos de determinadas sociedades. A
sociedade irlandesa era dividida em uma centena de Tuathas, associações ou clãs
políticos voluntários aos quais os homens livres escolheriam livremente aderir. Era
possível, a seu bom grado, separar-se de um clã para reunir-se a um outro. O poder do
chefe do clã se limitava a presidir as assembléias e, em tempos de guerra, dirigir os
homens ao combate. Os princípios de direito incorporados na tradição e nos costumes
eram interpretados pelos juristas ou árbitros profissionais chamados Filids que, não
pertencendo a nenhum clã, não eram ligados a nenhuma autoridade política. Os indivíduos
recorreriam livremente ao árbitro de sua escolha para julgar seus diferendos. As decisões
e veredictos dos Filids, em direito penal como em matéria civil, eram executados pelas
próprias pessoas, que interligavam-se ou associavam-se livremente uns aos outros através
dos correspondentes que se apresentavam como garantia de suas obrigações. O
ostracismo da comunidade sancionaria estes que se recusassem a curvar-se diante dos
julgamentos rendidos: eles não poderiam mais recorrer aos Filids para encaminhar as
injustiças cometidas contra-eles.

Uma Defesa “Nacional” Privada

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{24} Em uma sociedade Anarcocapitalista, cada indivíduo é soberano, sua propriedade é
inviolável, e cada um deve proteger a si próprio: ele é soberano sobre seu território. Dentro
deste contexto, os problemas não se resolvem da mesma maneira que nos casos onde o
estado pretende ser ele próprio o soberano. Por exemplo, o problema da imigração
desaparece pois não existe mais território nacional protegido por algum soberano. O
mundo Anarcocapitalista se assemelharia a um aglomerado de co-propriedades ou
comunidades relativamente baseados localmente. Um estrangeiro, se este termo tem
ainda algum sentido, goza, tanto quanto um autóctone, do direito de ir onde ele quer,
desde que ele seja aceito pelos proprietários do lugar onde ele vai ou tenha autorização.
Todo indivíduo convidado a entrar em uma casa tem o direito de aí estar, assim como todo
indivíduo empregado por uma empresa tem o direito de aí se apresentar. Se os
proprietários de ruas, de praças públicas ou de refúgios aceitam a presença de mendigos
estrangeiros (ou “nacionais”), estes aí tem o direito de permanecer. Se, e somente se, eles
não são acolhidos voluntariamente por ninguém, os estrangeiros serão rechaçados para
fora das fronteiras pelas forças locais responsáveis da segurança. Neste caso como nos
outros, a propriedade privada regula todos os problemas que cria a comunidade. Assim é
tratado aparentemente o problema da defesa nacional, que seria conveniente rebatizar
“defesa territorial” pois se trataria de se defender contra agressões ao encontro de seus
moradores, ou agressões de estados estrangeiros. Trata-se da proteção de um território
definido e em justaposição puramente espacial, de propriedades privadas pertencendo a
indivíduos soberanos. A defesa nacional se inspira da proteção policial operada o nível de
co-propriedades: a agência cuja qual alguém tenha adquirido os serviços deverá
normalmente protegê-lo contra toda agressão, de onde quer que ela venha, aí incluso
bandidos internacionais organizados em estados. Possivelmente as co-propriedades
poderiam solicitar os serviços de grupos ou empresas “internacionais” especializadas na
gestão de conflitos ou ameaças de agressão.

{25} A objeção clássica é que a defesa nacional represente o caso típico de um bem
público. Quando defende teu vizinho contra agressão de um estrangeiro, o exército
nacional te protege também, sobretudo se esta defesa se exerce por via de dissuasão. O

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risco é generalizado e os custos coletivizados pois um ataque estrangeiro pode acontecer
em qualquer lugar. Contra os bandidos – individuais ou nativos, cuja ameaça é mais
precisa e localizada, a dissuasão pode ser melhor localizada, ao nível da co-propriedade e
de tal forma que o aspecto bem público da segurança interior pareça menos evidente. A
defesa nacional, ela, participaria mais nitidamente da natureza e característica de bem
público. Rothbard no entanto rejeita esta objeção. A supressão do espaço nacional, que é
comum simplesmente pois é estatizado, mudaria a natureza do problema. Cada
proprietário deveria defender ou fazer-defender sua propriedade, sob pena de a encontrar
completamente sem defesa. Em um mundo de co-propriedades a defesa de territórios
menos extensivos não requereria a mobilização das mesmas proporções de forças
militares, o papel da diplomacia e dos contratos por serviços de proteção em escala
internacional ou entre as co-propriedades teria lugar mais relevante. Em um regime de
propriedade privada, um exército privado fará esforços para defender a propriedade de um
não-cliente apenas se isto serve para manter inimigos à distância. Ou seja, a menos que a
defesa represente um interesse estratégico particular, nada garante que a propriedade
será efetivamente protegida. Sobretudo, ninguém garante que ela será protegida de uma
maneira que sirva os interesses do proprietário: a partir do momento que o combate seja
engajado entre o invasor e a agência de proteção do vizinho, um passageiro clandestino
(free rider) poderia muito bem constatar que sua propriedade é defendida exclusivamente
como campo de batalha servindo para expulsar os inimigos. Cada indivíduo deveria então
levar em consideração e colocar na balança os riscos de estar mal-protegido ou de não
estar protegido, cada co-propriedade estabeleceria suas diretivas de organização da
proteção e contrataria os serviços das empresas mais apropriadas para satisfazer sua
defesa, e relativamente ao custo de adesão (talvez por intermediário de sua agência de
polícia) a uma associação de defesa “nacional”.

{26} De forma mais estendida, a argumentação que apresenta a defesa nacional como um
bem público cai na crítica geral que Rothbard impõe a este conceito, e que
desenvolveremos melhor logo mais abaixo. O argumento é redutível aos falsos problemas
do passageiro clandestino (free rider) e da questão da emergência de um sistema de
apropriação para bens perfeitamente apropriáveis. Nós somos todos passageiros
clandestinos da civilização, e não existe nada de repreensível nisto. Na medida do possível
e do eficaz, um regime de propriedade privada assegura a exclusão dos passageiros
clandestinos que podem de fato serem excluídos. E nada nos garante que os passageiros
clandestinos beneficiam-se, efetivamente, segundo suas próprias preferências, desta
defesa nacional cuja qual eles não escolheram voluntariamente contribuir. Se isto é
verdade, nada se opõe a que, como os outros serviços de segurança, a defesa nacional
seja ofertada pelo mercado. Estes que temem as ameaças exteriores comprariam serviços
de defesa nacional, em função de suas próprias preferências, das necessidades das co-
propriedades, seja através de suas agências de polícia, seja através de suas agências
especializadas. Na medida em que a defesa territorial contém um elemento de bem
público, os mecanismos de produção privada dos bens públicos atuariam: associações,
pressões sociais, cooperação espontânea e empreendedorismo. Morris e Linda Tannehill
sustentam, por exemplo, que as companhias de seguros teriam interesse em organizar a
proteção dos bens assegurados por eles contra os agressores estrangeiros. Por outro
lado, de acordo com Murray Rothbard, uma sociedade Anarcocapitalista estaria menos
exposta à agressão de estados estrangeiros. Não sendo mais um estado-nação, ela não
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ameaçaria nenhum outro estado-nação, e não se submeteria aos problemas que uma
diplomacia não pudesse resolver. No mais, os habitantes soberanos não se identificariam
com nenhum estado. Por consequência, um estado estrangeiro não teria nenhum interesse
em invadir tal sociedade, nem ousaria atacar populações pacíficas. Como é o estado quem
faz que seja possível, e justifica, a guerra internacional, a abolição de um conduzirá ao
desaparecimento do outro. Enfim, um conquistador hipotético recuaria diante do trabalho
de dominar uma sociedade que não gratificasse seu ocupante de nenhuma estrutura
estabelecida de governo, e onde se oporiam a ele, em uma insustentável guerrilha, um
grande número de agências de polícia e indivíduos armados até os dentes, habituados a
se defender.

Diversos Sistemas de Direito

{27} Para os Anarcocapitalistas rothbardianos ou randianos (como os Tannehill), o direito


natural existe e fixa os parâmetros das decisões judiciárias. Algumas “leis objetivas
governando a natureza das relações humanas são necessárias para o manutenção da
ordem social”, escreveram Morris e Linda Tannehill. A jurisprudência desenvolve regras
legais eficientes a partir de um substrato jurídico meta-econômico. O direito não responde
ao mercado e às preferências subjetivas dos indivíduos, ele constitui seu fundamento. Mas
por que o direito natural não poderia ser produzido sobre um mercado, exatamente como
os outros bens, em função das demandas diversas dos indivíduos? Por que os tribunais
privados, respondendo demandas de seus numerosos clientes, não estabeleceria regras
legais diferentes para cada um deles? Por que não criariam eles sistemas jurídicos
diferentes, em função das preferências individuais? Em lugar de um direito libertário único
aplicável a todos, vários coexistiriam para satisfazer as demandas variadas de diversos
indivíduos. Tal é o Anarcocapitalismo utilitarista que propõe David Friedman.

{28} Não é verdade que Friedman não acredita em um direito natural anterior ao mercado.
Ele se identifica com a “idéia central do libertarianismo (…) de que deve ser permitido às
pessoas de viver suas próprias vidas como lhes parece conveniente”, e ele concebe esta
liberdade em termos de direitos de propriedade, a começar pela propriedade privada sobre
a própria pessoa. Remanesce portanto que, em The Machinery of Freedom (As
Engrenagens da Liberdade), seu “guia para um capitalismo radical” como diz o subtítulo,
ele reserva pouco lugar para os princípios éticos ou jurídicos transcendendo as
preferências individuais. Segundo Friedman, “os sistemas de direito poderiam ser
produzidos segundo objetivos lucrativos em um livre-mercado”. Ele continua descrevendo
que: “Em um regime Anarcocapitalista, desde que seja possível, cada um poderia obter
sua própria lei.” Apanhemos o exemplo da pena de morte. Estes que se opõem
comprariam seus serviços de segurança, desde que possível, junto aos tribunais que
partilham seu ponto de vista e junto às agências de polícia que fazem negócios com este
tipo de tribunal. Inversamente, para os partidários da pena de morte. A menos que uma
das duas opiniões seja praticamente universal, os dois tipos de agência coexistirão. Se um
conflito aparece entre as duas agências da mesma opinião, um tribunal compatível será
escolhido em comum acordo e sem problemas. Caso contrário, uma escolha deverá ser
feita entre as duas opiniões legais. Por definição, uma lei se impõe aos terceiros e certas
leis excluirão outras – contrariamente às marcas de carro ou tipos de escola. Todos os

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consumidores não podem obter exatamente a lei que preferem. Mas votando com seu
dinheiro, eles podem fazer atuar suas preferências e a intensidade de suas opiniões no
resultado final.

{29} Seja um indivíduo acusado de assassinato por um outro, os dois subscrevendo


agências de polícia entretendo opiniões contrárias sobre a pena de morte. As duas
agências negociariam para determinar se elas confiariam a resolução de seu conflito (o
cliente de uma acusado de assassinato e o cliente da outra vítima) a um tribunal favorável
ou oposto a pena de morte. A agência favorável a pena de morte calcula que ela pode
pedir a seus clientes no máximo 1 milhão de moedas de ouro suplementares em
honorários caso ela consiga fazer triunfar sua opinião obtendo a escolha do tribunal
favorável. A agência desfavorável à pena de morte avalia que 2 milhões de moedas de
ouro é o valor que seus clientes pagarão caso ela obtenha sucesso na escolha do tribunal
desfavorável. A agência contrária à pena de morte pode oferecer então 1,5 milhão de
moedas de ouro à agência favorável para lhe fazer aceitar um tribunal contrário a pena de
morte. Todo mundo estaria satisfeito: os clientes contrários, que estavam dispostos a
desembolsar ainda mais para fazer triunfar sua opinião; e os clientes favoráveis, que
obteriam tarifas reduzidas para os serviços de segurança, por um valor mais elevado do
que lhes valia o apoio da corte defendendo a sentença da pena de morte. Cada grupo de
indivíduos contribuiu, através de suas escolhas, para influenciar o desenvolvimento de
jurisprudência e do direito de determinar sob quais leis eles deveriam viver. Nos domínios
onde a jurisdição entre as diversas regras legais não é tão categórico, as preferências
legais dos indivíduos seriam ainda mais fáceis de serem satisfeitas. Por exemplo, várias
regras de direito comercial podem coexistir (como entre os diferentes estados americanos)
provido que saibamos sob qual sistema opera cada companhia.

{30} Para Rothbard e os libertários “ortodoxos”, os negócios privados como o consumo de


drogas relevam de decisões puramente pessoais e toda interferência coerciva contra estes
comportamentos constituiria um abuso criminal dos direitos individuais. Este não é
necessariamente o caso para David Friedman (1973, p. 127), que considera que “a
legalidade da heroína será determinada não pelo número destes que são contra, mas pelo
custo que cada lado está disposto a pagar para ter razão”. Se quase todos os habitantes
de uma comunidade se opõem ao consumo da heroína por qualquer que seja o preço,
eles conseguirão conduzir suas agências de polícia e seus tribunais a interditar esta droga
em seu território. Em um outra comunidade, as leis serão mais liberais porque os
consumidores de drogas serão mais numerosos ou mais dispostos, dada a intensidade de
suas preferências, a encorajar as agências de segurança que compartilham seu ponto de
vista: as leis são produzidas em função do que o mercado demanda. Mesmo se o direito é
produzido sobre o mercado, explica Friedman, os julgamentos injustos não serão vendidos
aos maiores ofertadores. Os juízes devem sua clientela à reputação de honestidade,
experiência e expertise em matéria jurídica. Se existem leis cuja a aplicação universal é
inseparável da natureza do homem e indispensável à cooperação interindividual (“tu não
matarás”), a concorrência dos tribunais lhes fará descobrir, da mesma forma que todos os
arquitetos terminam por aceitar as leis da física. Se a uniformidade das leis e a
simplicidade do sistema legal é um valor compartilhado pela maior parte dos indivíduos, o
mercado jurídico produzirá a estandardização desejada. Os criminosos não poderão

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remeter-se aos tribunais permissivos notadamente porque estas escolhas terão
frequentemente sido feitas antes da realização do crime, ou serão feitas pelas agências de
polícia implicadas ou pelos tribunais de primeira instância.

{31} Do ponto de vista libertário, a produção do direito pelo mercado coloca sobretudo um
problema de tirania da maioria. Friedman responde que mesmo o utilitarismo de mercado,
onde as pessoas votam com seus bilhetes de banco, faz que a coerção seja improvável. O
assassinato não é viável do ponto de vista econômico simplesmente porque as vítimas
estariam dispostas a pagar mais por leis que proibissem o assassinato do que os
assassinos por leis que o permitissem. Da mesma forma, os consumidores de heroína
“estão dispostos a pagar um preço bem mais elevado para que eles sejam deixados em
paz do que alguém está disposto a pagar para ter o direito de lhes enxotar. Por esta razão,
as leis de uma sociedade Anarcocapitalista seriam fortemente enviesadas em favor da
liberdade”. Se não podemos predizer em detalhe o funcionamento e as inovações do
mercado, nós podemos fazer conjecturas racionais sobre as grandes características da
ordem produzida pela liberdade. A análise dos Anarcocapitalistas mostra que o mercado
pode oferecer tudo o que o estado produz atualmente, incluindo os serviços de polícia e de
justiça. Assim, escrevem Morris e Linda Tannehill, “o estado não é um mal necessário, ele
é um mal inútil”.

A Irrealidade dos Bens Públicos segundo Rothbard

{32} A crítica radical de Murray Rothbard, que nega a existência do problema dos bens
públicos, prolonga as interrogações sobre o tema relacionado ao fornecimento da justiça,
defesa e estradas. Primeiramente, segundo Rothbard, o conjunto de bens públicos não é
definido. Ou os bens públicos são frouxamente definidos, e assim estão por todo lado,
desde a civilização até a beleza das paisagens, passando pelos efeitos da educação sobre
a civilidade ou o fato de dois irmãos terem uma mesma irmã. Ou eles são definidos
estreitamente, e então é difícil encontrar coisas que têm ao mesmo tempo a qualidade de
um bem privado – a raridade e utilidade, e a qualidade de um bem público – que consiste
no poder de ser consumido simultaneamente por todos sem que isto seja inconveniente
para ninguém. Neste caso, mesmo um fogo de artifício não é mais um bem público, desde
que os espectadores caminhem uns sobre os pés dos outros para a visualização do
espetáculo. “Na verdade, escreveu Rothbard, nós podemos (…) afirmar que nenhum bem
satisfaz a categoria samuelsoninana de ‘bens de consumo coletivo’ (…) Na realidade, se
um bem é verdadeiramente ‘coletivo’ ao sentido técnico de Samuelson, é por que ele não é
de forma alguma um bem, mas uma condição natural do bem estar humano”.

{33} A segunda linha de ataque ao argumento dos bens públicos reside no tratamento do
problema das externalidades e dos passageiros clandestinos (free riders). Ora, segundo
Rothbard, trata-se de um falso problema. As preferências individuais são essencialmente
subjetivas, e não podemos conhecer as preferências dos outros sem induzir-lhes em suas
ações, em suas escolhas concretas. Entre as preferências e as escolhas, a definição não é
circular: são desejos que determinam as ações, as ações são essencialmente definidas em
função dos desejos; mas, não conhecendo estes desejos e preferências dos outros, nós
apenas podemos induzir empiricamente desejos particulares a partir de ações particulares.
As escolhas são preferências demonstradas: “as escolhas concretas relevam ou
demonstram as preferências de uma pessoa”, escreveu Rothbard. Em terceiro lugar, na
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medida em que existem bens públicos e externalidades, eles representam simplesmente
um produto inseparável e um efeito benéfico da civilização. Nós somos todos passageiros
clandestinos do presente ou do passado. Nós lucramos sem cessar dos esforços de
educação e de civilidade de nossos semelhantes. A crítica e o ataque aos passageiros
clandestinos revelam postulados éticos indemonstrados e indemonstráveis: que nós
tenhamos ou não o direito de receber doações ou vantagens gratuitas, que tenhamos ou
não o direito de fornecê-las, ou ainda, que apenas alguns sejam obrigados a fornecê-las
aos outros. Na realidade, um grande número de bens, serviços e atividades privadas
comportam efeitos públicos, e estes que são verdadeiramente ‘bens’, por oposição às
coisas abundantes ou condições gerais da natureza humana, serão produzidos pela
cooperação livre e voluntária de indivíduos agindo em sociedade.

{34} Estendidas ao seu limite, as idéias austríacas de valor subjetivo, desequilíbrio criador
e empreendedorismo destroem a noção de bens públicos cuja produção ótima requereria a
coerção estatal. As preferências sendo subjetivas e exclusivamente reveladas pelas
escolhas concretas dos indivíduos, nada nos permite afirmar que um consumidor está
preparado a pagar por um bem que ele não financia efetivamente. O desequilíbrio criador
do mercado e a civilização geram todo tipo de externalidades cuja internalização, quando
possível, só poderia ser eficientemente realizada por indivíduos no mercado e por
empreendedores que apostam sobre as demandas insatisfeitas. Segundo Rothbard, os
bens públicos são ou impossíveis ou anódinos.

Notas

[1] Ver por exemplo, Scott McMurray e Bruce Ingersoll, “Arbitration Can Be Better Than
Litigation When Investors and Brokers Don’t Agree”, Wall Street Journal, 30 de Abril de
1986. Notemos que os corretores de títulos americanos, chamados “stockbrokers” ou
“corretores de valores imobiliários”, são profissionais privados empregados por firmas
concorrenciais.

[2] Câmara de Comércio Internacional, Relatório Anual 1984, Paris, 1985, p. 26.

[3] Montana do Norte e Montana do Sul são dois estados limítrofes dos Estados Unidos. A
Saskatchewan é uma província canadense que faz fronteira com a Montana do Norte do
outro lado da fronteira canado-americana. A propósito, este trecho é parte do primeiro
capítulo de Power and Market (1970):

“Although it is true that the separate nation-States have warred interminably against each
other, the private citizens of the various countries, despite widely differing legal systems,
have managed to live together in harmony without having a single government over them. If
the citizens of northern Montana and of Saskatchewan across the border can live and trade
together in harmony without a common government, so can the citizens of northern and of
southern Montana. In short, the present-day boundaries of nations are purely historical and
arbitrary, and there is no more need for a monopoly government over the citizens of one
country than there is for one between the citizens of two different nations.” (Ver website de
Lew Rockwell)

[4] Ver, por exemplo, Earl C. Gottschalk, “Some Mail Order Offers Sound Too Good To Be
True – These Three, for Example”, Wall Street Journal, 10 de Março de 1987.
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[5] Estes dados são de 1977. Ver Time Magazine, 24 de Janeiro de 1977; e San Francisco
Chronicle, 11 de Janeiro de 1977.

[6] Jacques Duplouich, “Italie: l’armée de polices privées”, Le Figaro, 23 de Novembro de


1986.

Referências

1. AXELROD, R., The Evolution of Cooperation, New York, Basic Books, 1984.
2. FRIEDMAN, D., The Machinery of Freedom. Guide to a Radical Capitalism, New
York, Harper & Row, 1973.
3. MOLINARI, G., “De la production de la sécurité”, Journal des Économistes, vol. 22, n.
95, (Février 1849), p. 277-290.
4. NOZICK, R., Anarchy, State and Utopia, New York, Basic Books, 1974.
5. ROTHBARD, M. N., For a New Liberty, New York, Macmillan, 1973.
6. ____. Man, Economy and the State, Los Angeles, Nash Publishing, 1962.
7. ____. The Ethics of Liberty, Atlantic Highlands (New Jersey), Humanities Press,
1982.
8. TANNEHILL, M., TANNEHILL L., The Market for Liberty (1970), New York, Laissez
Faire Books, 1984.

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