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PARLAMENTO
CADERNOS DA
ESCOLA DO PARLAMENTO
V - Igualdade de Gênero II
O Curso Igualdade de Gênero II, assim como o Curso Igualdade de Gênero,
teve como objetivo geral abordar conceitos, retomar fatos históricos e discutir políticas
públicas relacionadas à temática da igualdade de gênero, só que, nesse caso, tendo como
norte as demandas do movimento LGBT. Estruturado em 10 palestras, o curso ocorreu
entre os meses de novembro e dezembro de 2013. A formatação do curso por parte da
Escola contou com a colaboração de dois militantes independentes, Marília Pacios e
Gean Gonçalves, os quais contribuíram com artigos para esse trabalho.
Este Caderno conta com oito artigos relativos a esse curso, os quais refletem
sobre temas como: perspectiva de gênero; trajetória histórica do movimento LGBT; a
laicidade do Estado; participação e representação política LGBT; os direitos LGBT;
mídia e diversidade; transexualidade e travestilidade; e, por fim, violência contra a
população LGBT.
1
Introdução
As discussões em torno da igualdade de Gênero têm deflagrado diversas
reflexões que nos permitem compreender e problematizar a cultura Ocidental fundada
no Patriarcado. Desse modo, o recente movimento LGBT, fruto das discussões dos
papéis sociais pré-definidos entre homens e mulheres que o movimento feminista há
mais de dois séculos acumulou, pôde desenvolver e alcançar uma emancipação
significativa, retomando diversos argumentos e reflexões das diferentes ondas
feministas que surgiram desde o final do século XVIII. Segundo relata Marsha Freeman
(2012), em sua obra “The UN Convention on the Elimination of All Forms of
Discrimination Against Women: a Commentary,” o termo perspectiva de gênero foi
cunhado pela primeira vez na IV Conferência sobre a Mulher, realizada em Pequim,
1995. Sua utilização torna-se instrumento estratégico para promover a igualdade entre
mulheres e homens. Como categoria analítica, permite-nos refletir sobre as construções
culturais e sociais, cujos valores determinam o que é ser masculino ou feminino. Tais
reflexões desnaturalizam essas categorias e evidenciam nelas as relações de poder que
fixam identidades e embasam relações de privilégios ao criar uma zona imensa de
exclusão não apenas nas relações entre homens e mulheres, mas também na definição de
normalidade que legitima a heterossexualidade, patologizando outras possibilidades de
vivência dos corpos.
Ao examinar o impacto do gênero nas diferentes oportunidades das pessoas, nos
papéis que desempenham socialmente, bem como as interações nos campos
econômicos, da sexualidade, do trabalho, da vida familiar, colocam-se em evidência as
1
Texto baseado na primeira aula do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do Parlamento.
A aula, ministrada pelo autor, ocorreu no dia 05 de dezembro de 2013, nas dependências da Câmara
Municipal de São Paulo.
2
Mestre em Literatura Brasileira pela USP e Doutorando no Programa de Literatura Brasileira da
FFLCH/USP e membro do Conselho Estadual LGBT de São Paulo.
2
definições do que seja crítica literária, ficção, literatura, narrativa, entre outros, sofrem
variações conforme as diferentes abordagens, o que, muitas vezes, exige do pesquisador
determinar no uso dos termos qual seja o campo teórico a que ele se refere para que se
faça compreensível o uso desses conceitos.
O que importa nessas variações da sigla é o fato de que, independente de seus
conflitos internos a motivarem seus surgimentos, elas evidenciam e desconstroem a
lógica naturalizante acima descrita dos afetos e das sexualidades. Atualmente, define-se
entre várias teorias a diferenciação entre orientação sexual e identidade de gênero.
Fernando Luiz Cardoso, em seu texto “O conceito de orientação sexual na encruzilhada
entre sexo, gênero e motricidade”, apresenta-nos uma interessante discussão a partir de
teóricos como John Money - um dos primeiros a determinar a diferenciação entre sexo,
gênero e orientação sexual -, M. Diamond, S. Le Vay e R. Stoller - cujos trabalhos, a
partir da definição de Money, revisam, alteram e/ou ampliam tais conceitos para
compreender outras possibilidades no campo dos desejos e afetos. Conforme Cardoso, o
conceito de orientação sexual está relacionado ao campo dos desejos do indivíduo,
considerando as suas fantasias sexuais como critério mais eficiente para detectar qual
seja: se para o sexo oposto (heterossexual), se para o mesmo sexo (homossexual), se
para ambos (bissexual) ou se para nenhum (assexual).
Miriam Grossi, em seu artigo “Identidade de Gênero e Sexualidade”, baseando-
se nos estudos de Stoller, da Antropologia Feminista, Joan Scott entre outros, nos
apresenta de modo simplificado e útil o conceito de identidade de gênero como sendo
uma categoria pertinente para pensar o lugar do indivíduo no interior de uma cultura
determinada interseccionada pelas categorias de sexo (que ilustra a diferença
biológica entre homens e mulheres), gênero, como conceito que remete à construção
cultural coletiva dos atributos de masculinidade e feminilidade e sexualidade como
conceito contemporâneo para se referir aos campos das práticas e sentimentos ligados
às atividades sexuais dos indivíduos. (GROSSI, 1998, p. 12).
1938, nos quais reflete sobre as conquistas realizadas pelas mulheres e faz indagações
de seus limites sociais nessas conquistas, introduzindo a temática das diferenças para
além da igualdade de direitos. A partir desses questionamentos, Woolf propõe a
necessidade de as mulheres reivindicarem a diferença entre seu sistema de valores
éticos, culturais e econômicos do sistema dos homens, o qual se mostrou desastroso.
Simone de Beauvoir, em 1949, publica sua obra O Segundo Sexo, cuja leitura
existencialista lança a tese provocatória do porquê de a mulher viver historicamente
subordinada ao homem em todos os planos de convivências social. Descartando com
fortes argumentos as respostas liberais, marxistas e psicanalista, Beauvoir afirma que a
mulher, na sua condição de subordinação ao homem, é vítima e cúmplice dessa
dominação. Sugere a saída dessa dominação parcialmente em termos individuais e
totalmente em termos coletivos, resultando de uma luta coletiva que estabeleça um novo
pacto, podendo, após, instaurar uma relação harmônica e igualitária com os homens.
A segunda onda feminista ressurge nas décadas de 1960 e 1970, em especial nos
Estados Unidos e na França. Conforme observa Narvaz:
O slogan famoso que marca essa segunda onda é "O pessoal é político", cunhada
pela autora feminista Carol Hanish. Na área anglo-estadunidense, o movimento é
marcado por uma significativa diversificação teórica do pensamento feminista com
recorte multirracial. Para além da equiparação de direitos, este movimento marca a
diferença tanto por um viés psicanalista, como alternativa às teses consideradas
antifeministas de Freud, como por um viés radical, apontando a necessidade de
separação em relação aos homens. É nesse contexto que se forja a diferença entre sexo e
gênero, entendendo o primeiro como diferença biológica entre homens e mulheres e o
segundo a indicar os papéis sociais impostos pelo domínio masculino ou patriarcal.
A terceira onda, mais recente, revisa várias categorias forjadas pelas teóricas da
fase anterior, consideradas fundamentais, e as articulam entre si para desconstruir as
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“Camp é também uma qualidade que pode ser encontrada nos objetos
e no comportamento das pessoas. Há filmes, roupas, móveis, canções
populares, romances, pessoas, edifícios campy... Essa distinção é
importante. É verdade que o gosto camp tem o poder de transformar a
experiência. Mas nem tudo pode ser visto como camp. Nem tudo está
nos olhos de quem vê” (Sontag, 1987, p. 320 apud Colling, 2007).
uma sociedade patriarcal e capitalista, estão sempre fora das terminologias forjadas. Na
medida em que a produção midiática, o mercado, o Governo, os Partidos e outras
instituições incorporam, por meio de políticas e representações, esses sujeitos
historicamente alijados de seus direitos, em resposta, os performatizam, naturalizando,
normalizando e, portanto, marginalizando outras que não se enquadram nesses moldes
modernos. Desse modo, o campo teórico de debate sobre gênero e sexualidade torna-se
um campo minado, no qual, cada passo que se dê, novas minas explodem, evidenciando
seus limites e suas práticas conformistas com a lógica normativa dominante. Para tanto,
refletir sobre a perspectiva de gênero é se colocar de forma aberta, reconhecendo que as
palavras operam de um lado as implosões das normas anteriores, mas também engessam
outras possibilidades que fogem aos substantivos e adjetivos. Debater e refletir sobre
perspectiva de gênero é se propor a um diálogo cada vez mais aberto, considerando que,
em cada avanço, novas possibilidades se abrem para repensar a constituição dos sujeitos
como seres dotados de direitos. Pois, do contrário, arrisca-se a se prender nas mesmas
armadilhas das quais se busca libertar.
Referências Bibliográficas
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Editora Martins Fontes,
2007.
BUTLER, Judith. Críticamente subversiva. In: JIMÉNEZ, Rafael M. Mérida.
Sexualidades transgresoras. Una antología de estudios queer. Barcelona: Icária
editorial, 2002, p. 55 a 81.
CARDOSO, Fernando Luiz. O conceito de orientação sexual na encruzilhada entre
sexo, gênero e motricidade. In: Interaramerican Journal Psichology. v.42, n.1, Porto
Alegre, abr. 2008.
COLLING, Leandro. “Teoria Queer”. In: Mais definições em trânsito. Maria Cândida
Ferreira de Almeida (org.). Salvador, 2007. Disponível em:
http://www.cult.ufba.br/maisdefinicoes/TEORIAQUEER.pdf
CRUZ, Paula Loureiro da. Alexandra Kollontai: Feminismo e Socialismo, uma
abordagem crítica do Direito. São Paulo: Editora Alfa e Ômega, 2012. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0034-
96902008000100008&script=sci_arttext
9
FREEMAN, Marsha A.; Chinkin, Christine; Rudolf, Beate. (orgs.). The UN Convention
on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women: A Commentary.
Oxford University Press. 2012. pp. 792
GROSSI, Miriam Pillar. “Identidade de Gênero e Sexualidade”. Antropologia em
Primeira Mão. Florianópolis, p. 1-18, 1998. (versão revisada - 2010). Disponível em:
http://www.miriamgrossi.cfh.prof.ufsc.br/pdf/identidade_genero_revisado.pdf
NARVAZ, Martha Giudice. Submissão e Resistência: explodindo o discurso patriarcal
da dominação masculina. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Instituto de
Psicologia - UFRGS, 2005.
SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics
of history. New York, Columbia University Press, 1989.
SIMÕES, Julio e FACHINI, Regina. Na Trilha do Arco Íris: Do Movimento
Homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2009.
1
Homossexualidade no Brasil
Vivemos em um país que recebe a maior Parada do Orgulho LGBT do mundo,
que tem grandes ídolos homossexuais, que lutou fervorosamente e venceu um Regime
Militar que durante anos suprimiu os direitos e as liberdades individuais. Tem-se direito
de greve garantido, direitos trabalhistas, um sem número de manifestações religiosas e
uma história maravilhosa de miscigenação de povos. O maior e mais copiado programa
de combate e prevenção à Aids, que já quebrou patentes e barateou diversos
medicamentos do coquetel. Um país enorme em tamanho e diversidade. Um país de
muitos, mas para nem tantos assim.
Para tratar dos temas indicados no título eu sugiro uma análise da resposta da
sociedade em relação a comportamentos não heterossexuais e a identidades de gênero
não binárias, pois seria demasiado cansativo e desnecessário estabelecer, por exemplo,
onde e quando a homossexualidade surgiu, sendo que é sabido que existe desde sempre.
Além disso, ao analisar o assunto através dessa perspectiva, fica mais fácil entender
qual o cenário que ascendeu o movimento LGBT enquanto instituição organizada, já
que muitas vezes esse mesmo movimento social nasce em resposta às demandas da
população.
Para falar das percepções que a sociedade teve em relação a comportamentos
não-heterossexuais no Brasil, proponho fazer uma pequena divisão da história em três
períodos em que foram usados diferentes argumentos para justificar a discriminação
contra os homossexuais, a saber: a época que a igreja e o Estado estavam intimamente
ligados; o período que a ciência médica teve seu auge, com os higienistas; e a
atualidade. É notório que o próprio conceito de homofobia foi se moldando ao longo do
tempo, bem como as manifestações de intolerância foram paulatinamente migrando de
uma agressividade irracional e pura para uma sutileza e cordialidade tolerantes. Não que
hoje estejamos livres das manifestações agressivas, mas, atualmente, a agressão homo-
transfóbica é antes uma manifestação de ódio baseada em argumentos moralizantes e
purificadores, do que uma agressão sem motivo nenhum.
1
O texto baseia-se na segunda palestra do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do
Parlamento. A aula, ministrada pela autora, ocorreu no dia 07 de novembro de 2013, nas dependências da
Câmara Municipal de São Paulo.
2
A Santa Inquisição foi, sim, uma das maiores responsáveis pelo julgamento e
execução dos “sodomitas” (palavra empregada para definir os praticantes de relações
homossexuais, que remete à cidade de Sodoma, que foi dizimada por Deus); porém, o
tribunal só podia agir com plenos poderes, pois foi durante esse período que Igreja e
Estado se misturavam, formando uma só força que comandava a ordem pública.
A tradição judaico-cristã esteve - e ainda está - baseada em diversos opostos, tais
como o bem e o mal, o homem e a mulher, o certo e o errado, o normal e o anormal. O
bom, o certo e o normal estão assentados no conceito bíblico de família que define que
esta é constituída pelo homem e pela mulher, tendo por trás a máxima de “frutificai e
multiplicai-vos” (Gênesis 9:7). Até aqui podemos concluir que a prática sexual entre
pessoas do mesmo sexo não somente era vista como algo errado e ruim como também o
“sodomita” não era capaz de seguir a regra básica: não se nasciam frutos de uma relação
3
Essa passagem ilustra bem o cenário que esteve por trás da fase em que a ciência
passou a entrar na cena e deu lugar a uma discriminação mais sutil, que visava, através
do processo de entendimento e cura, abraçar o homossexual e inseri-lo de uma forma
perversa e preconceituosa na sociedade, fazendo com que surgisse uma chamada
“subcidadania homossexual” (PRADO e MACHADO, 2008).
Este conceito está ligado, entre outras coisas, à criação de um spot homossexual
na sociedade, um lugar onde o cidadão LGBT não ofereceria perigo à ordem social, um
gueto para que os portadores desse desvio comportamental pudessem ficar sem que aos
cidadãos de bem fosse oferecido algum perigo de ordem moral, mas que também não
lhes fossem negados os acalentos do Estado. De criminoso, o homossexual passa aqui a
ser doente, novamente abrindo uma faca de dois gumes: por um lado, as práticas não-
heterossexuais são descriminalizadas, por outro, “a tendência homossexual passou então
a ser estudada a luz da ciência, verificando-se que se tratava de uma anomalia”
(TREVISAN, 2007).
Nota-se nesse ponto que, não só há uma mudança de abordagem das elites
dominantes em relação aos homossexuais, como há também uma série de outros passos
que foram dados, tais como o surgimento de uma nova identidade sexual, mesmo que
anômala: o “homossexualismo”. O sodomita dá lugar ao homossexual, o tratamento
substitui a punição e o clero abre espaço aos médicos. De certa forma, mesmo que de
um jeito preconceituoso, o cidadão LGBT está começando a se inserir na sociedade,
somente esperando uma janela de oportunidade para se lançar de vez no cenário
político, como veremos um pouco mais adiante.
Algo que podemos ressaltar, também, é que raros eram os elementos que
associavam as relações homossexuais ao carinho, afeto e bem querer, dado que se
tratava única e exclusivamente de uma anomalia e como tal, era uma prática desviante.
Daqui podemos tirar uma conclusão: a família bíblica nunca esteve sob nenhum
questionamento, só era possível construir amor e solidez dentro de um núcleo familiar
com um homem, uma mulher e seus filhos. Apesar de não se punirem os “seres
anômalos”, tal qual se fazia no período inquisitorial, quase todos os preceitos da
sociedade heterossexista, machista e falocêntrica estavam presentes e, de uma forma
mais indireta, ainda serviam para justificar e pautar o preconceito homofóbico.
5
Destaquei as expressões acima, pois julgo serem questões centrais para o melhor
entendimento e análise da sociedade atual, e de como se ela manifesta e reage ao
preconceito homofóbico.
A homofobia em sua expressão atual é muito mais sutil e acontece cada vez mais
dentro do campo político, nas casas legislativas e nos tribunais pelo país. Vivemos em
uma época em que não se justifica a discriminação somente baseada em argumentos
religiosos e médicos, e estamos diante de uma construção mais perversa e difícil: o jogo
político.
Falamos bastante sobre como o preconceito homofóbico pode ser um
mecanismo de manutenção e controle das elites sociais no poder, bem como dissemos
que grande parte dessa discriminação está assentada em uma moral que ainda apresenta
resquícios de patriarcalismo e machismo. Pois bem, analisemos que impacto esses
fatores ainda apresentam na construção da sociedade moderna.
7
Estamos inseridos em uma sociedade liberal que aceita a diversidade, mas que
não a respeita, na medida em que forma estereótipos para qualquer sorte de diferenças
que a pessoa possa ter em relação ao modelo do homem branco, heterossexual,
monogâmico e cristão. Sendo assim, temos a marginalização de um sem número de
práticas religiosas e sexuais, por exemplo, e, àqueles grupos sociais que praticam essas
características que saem do padrão, está reservado um lugar de submissão e vergonha.
Sobre isso, temos que “a lógica da superiorização e da inferiorização dos grupos sociais
se traduz em um conjunto de práticas sociais capaz de inserir pública e socialmente
determinadas categorias sociais de formas subalternas em nossa sociedade” (PRADO e
MACHADO, 2008). Ou seja, temos aqui uma lógica de tolerância, e não de respeito ao
próximo, que faz com que certos grupos sejam categorizados como inferiores ou
indignos de atenção e proteção pública.
Essa forma perversa de exclusão acaba por legitimar a manifestação
preconceituosa, já que ao se abster, o Estado abre uma brecha para que a sociedade civil
também o faça de diversas formas, desde as pacíficas, até as mais violentas. “À
semelhança de qualquer outra forma de intolerância, a homofobia articula-se em torno
de emoções (crenças, preconceitos, convicções, fantasmas...), de condutas (atos,
práticas, procedimentos, leis...) e de um dispositivo ideológico (teorias, mitos,
doutrinas, argumentos de autoridade...)” (BORRILLO, 2010).
A homofobia, como acima observado, manifesta-se de diversas formas na
sociedade moderna, e é muito importante que fiquemos atentos a todas elas, e não só às
mais graves e radicais, que acabam por ter mais repercussão nos meios de comunicação,
tais como as agressões e os assassinatos. A intolerância é muito mais do que isso; o
cidadão LGBT sofre em diversas áreas e de diversas formas, através de assédio moral,
ofensas psicológicas, discriminações no ambiente de trabalho, em instituições públicas,
dentro de sua própria casa e, especialmente, em ambientes públicos. Cair na armadilha
reducionista seria, de certo modo, justificar a não existência de ações do Estado que
tratem de vulnerabilidades que todas as homossexualidades e identidades de gênero
estão sujeitas, desde auxílio para jovens expulsos de suas casas até cirurgias de
readequação sexual.
Na atualidade, a diversidade sexual vem sendo tratada como moeda de troca nas
casas legislativas do país, servindo como objeto de barganha em casos de apoio político.
Um exemplo disso foi o recente veto presidencial ao kit anti-homofobia, que seria
distribuído nas escolas do país, objetivando conscientizar os adolescentes para o
8
registros mostram que o primeiro grupo lésbico organizado surgiu em 1980, a partir de
uma cisão no Somos, e os movimentos de transexuais e travestis só vão aparecer com
força durante a década de 1990.
Além do acima posto, é importante dizer que esse movimento nascente ainda
não discutia questões importantes, sejam elas dentro ou fora do movimento, a exemplo
do que ocorria com a visão da bissexualidade enquanto identidade ou subterfúgio para
não assumir a homossexualidade. Muitas vezes criticada, embora, em alguns momentos,
a prática bissexual fosse até mesmo glorificada como subversão de todas as regras,
mostrando, novamente, a necessidade gritante dessa população de ter suas liberdades
garantidas, nesse período ainda muito influenciado pelos militares.
Essa “primeira onda” do movimento teve um curto período de duração, mas
deixou frutos que colhemos até hoje, tal como o Grupo Gay da Bahia, fundado em 1980
e que ainda hoje é muito atuante, sendo a única fonte de dados da violência letal que
acomete LGBTs todos os dias. Nesse período, também, observa-se uma forte atuação do
chamado eixo Rio-São Paulo, sendo essas duas cidades as maiores forças de atuação do
movimento gay da época. Após o declínio dessa primeira onda, e com a dissolução do
Grupo Somos em São Paulo, em 1983, e um crescimento do grupo Triângulo Rosa no
Rio, esse eixo se deslocou para a rota Rio de Janeiro-Nordeste, como veremos adiante.
São muitos os motivos que podem ser apontados para o fim dessa primeira e o
suposto “adormecimento” da segunda. Entre eles, podemos citar: o crescimento da
inflação e do desemprego, que dificultou a organização de grupos; o aumento da
visibilidade na mídia fez crescer uma falsa sensação de igualdade e reconhecimento,
fato que sabemos não ser verdade até hoje; a ideia de que, em tempos de democracia, a
facilidade seria maior no processo de conquista de direitos. Esse último motivo foi um
importante fator que dificultou a organização do movimento na segunda onda. Vejamos
mais sobre isso.
Após a explosão observada no início das organizações sociais, alguns autores
dizem que o movimento LGBT “murchou”, ou “adormeceu”, durante o período
subsequente. Essa impressão - digo impressão pois pretendo mostrar que ele estava,
sim, ativo - deve-se em grande parte ao grande impacto negativo que a epidemia de
HIV/Aids teve sobre as práticas não heterossexuais, em especial no caso de homens que
fazem sexo com homens, ou HSH, como a medicina da época convencionou chamar.
Todos sabemos que, nessa época, a Aids ficou popularmente e erroneamente conhecida
como a “peste gay”, e que até hoje colhemos os frutos dessa mentira. Homossexuais
10
ainda na primeira metade dos anos 90, buscando uma maior atenção da saúde,
especialmente.
Em 1995 foi fundada a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis, a
ABGLT, a maior organização LGBT do Brasil e, na época, reuniu cerca de 200
organizações para sua fundação. Considera-se que esse foi um marco para o aumento de
instituições e organizações em formas nacionais de rede. Aqui, também, houve uma
multiplicação de organizações não governamentais e de setoriais LGBTs em partidos e
em organizações já existentes.
Além desses grandes avanços e da multiplicação dos esforços para que houvesse
uma integração entre todos os atores políticos LGBTs, na atualidade, há uma crescente
discussão dos papéis de gênero e da “gayzização” do movimento LGBT. Explico:
apesar da grande diversidade de demandas e de áreas de atuação, o movimento segue
sendo majoritariamente liderado e protagonizado por homens, brancos, cisgêneros e
homossexuais. Nessa linha, fala-se até que a sigla deveria ser representada por GGGG.
Exemplo disso é a forma como se fala e, especialmente, se divulgam na mídia eventos e
direitos LGBTs: Parada gay, Orgulho gay, Casamento gay, Beijo gay, Movimento gay,
Balada gay. Até quando o momento é ofensivo, a expressão usada engloba só uma das
letras: gayzistas. Acredito que não seja uma impressão errada pensar que há uma
superexposição da identidade de homossexuais masculinos em detrimento das outras
expressões da sigla.
Por fim, hoje temos um movimento consolidado como ator político, com força
para reivindicar e muito mais visível do que no começo de sua organização. Não faltam
organizações e esforços para que os direitos sejam estendidos a toda a população, sem
importar sua orientação sexual e sua identidade de gênero. Mas, ainda é possível
observar uma “crise de protagonismo”, pois ainda vemos uma grande misoginia e
transfobia dentro do movimento social. Esperamos que nós não passemos a nos tornar
sujeitos da opressão, contra quem tanto lutamos.
Referências Bibliográficas
BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2010.
PRADO, Marco Aurélio Máximo e MACHADO, Frederico Viana. Preconceito contra
homossexualidades: a hierarquia da invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2008.
12
1
Artigo preparado para a Escola do Parlamento, da Câmara de Vereadores de São Paulo, a partir da tese de
doutorado da autora (Zylbersztajn, 2012). Baseada no tema do presente artigo, a autora ministrou a terceira
palestra do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do Parlamento, no dia 12 de novembro de
2013, nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo.
2
Advogada de direitos humanos formada pela PUC-SP, Especialista em Comunicação Social pela PUC-SP,
Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da USP.
3
IBGE, Censo 2010.
2
Conceito
Tratar dos conceitos em torno da laicidade não é uma discussão meramente
terminológica, mas a tentativa de estabelecer padrões para aprofundar o debate. Com a
confusão conceitual, a terminologia relativa à laicidade é usada conforme a conveniência da
situação. Existem concepções estritas e até intolerantes, ou, por vezes, o conceito é entendido
de forma tão aberta e permissiva que perde sua função. A laicidade não deve ser uma coisa
nem outra. Estado laico é, em essência, “um instrumento jurídico-político para a gestão das
liberdades e direitos do conjunto de cidadãos”4.
Aqui não se pretende criar um conceito definitivo do que seja laicidade. Enquanto
alguns esclarecimentos são necessários, o que se espera é identificar diretrizes para a
construção de uma “moldura” referente ao conceito estudado. Assim, a ideia é ter uma
ferramenta analítica para abordar o princípio da laicidade no Brasil, considerando as suas
diferentes dimensões, formas e graus de concretização.
A necessidade de maior conceituação do tema decorre, em certa medida, da falta de
determinação expressa da Constituição Federal sobre a laicidade. András Sajó entende que a
maioria das democracias não tem uma normativa forte ou prática de laicidade constitucional,
deixando-a vulnerável a argumentos indistintos de livre exercício da fé ou pluralismo5.
Em diversos países essa lacuna foi suplantada pela edição de uma lei de religiões, que
traz as diretrizes básicas a respeito do tema. Roberto Blancarte ensina que esse é o caso do
México, em que a definição da laicidade do Estado e seu conteúdo estão estipulados na Lei de
Associações Religiosas e Cultos Públicos6.
Não é o caso do Brasil atualmente, que não dispõe de lei nesse sentido. De toda forma,
a existência do princípio da laicidade “não depende que seja explicitada através de normas
constitucionais, mas sim que permaneça implícita em todo o sistema jurídico”7. É a partir do
entendimento do que significa laicidade que conseguimos identificar a sua proteção jurídica,
tanto no âmbito constitucional quanto legal.
Laicidade é um neologismo francês do final do século XIX que defende a liberdade de
opinião, incluindo a liberdade e pluralismo religioso. De acordo com as referências da
4
Roberto Blancarte, 2008, p. 25.
5
András Sajó, 2008, p. 607.
6
Roberto Blancarte, op. cit, p. 25.
7
Marco Huaco, 2008. p. 45.
3
8
Declaração apresentada no senado francês em 9 de dezembro de 2005, por ocasião das comemorações do
centenário da separação entre Estado e Igreja na França.
9
Roberto Blancarte. Op. Cit. p. 19.
4
10
Daniel Sarmento, 2008. p. 191.
11
Roberto Blancarte. Op. Cit. p. 20.
12
José Afonso da Silva, 1999. p. 253.
5
13
Roberto Blancarte. Op. Cit. p. 30.
6
14
Marco Huaco. Op. Cit. p. 47.
15
Roberto Blancarte. Op. Cit. p. 31.
16
Cf. Marco Huaco. Op. Cit. p. 47.
7
Constituição
Considerando que a laicidade relaciona-se com a democracia, com a liberdade e com
a igualdade, conseguimos identificar o embasamento constitucional do princípio no Brasil.
Esses elementos estão previstos na própria determinação de democracia (art. 1º) e nas
diretrizes de garantia de direitos fundamentais (art. 5º), especialmente a igualdade e a
liberdade – incluída aí a liberdade religiosa. Por fim, a laicidade brasileira é fortalecida pela
determinação de separação entre Estado e Igreja (art. 19, I).
A laicidade é, portanto, um princípio constitucional implícito em função da previsão
dos princípios da democracia, da igualdade e da liberdade (religiosa) que, por força da
disposição do art. 5º, §2º da Constituição Federal17, constituem o princípio da laicidade
protegido constitucionalmente. A forma implícita da laicidade é a mais corrente nas
constituições democráticas contemporâneas.
Esses artigos garantem que o Estado não pode ter relações privilegiadas com
determinada religião, ao mesmo tempo em que tem o dever de garantir o pleno exercício
religioso de seus cidadãos.
Além dos elementos apontados como formadores da laicidade, a Constituição Federal
trata da questão religiosa em diversos outros dispositivos, a fim, especialmente, de garantir a
liberdade de crença. O arcabouço constitucional deve ser entendido em seu conjunto, para
determinar qual é o conteúdo de laicidade protegido, e como isso é previsto.
17
Art. 5º, §2º, CF. “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte”
8
A partir disso, o princípio da laicidade, ainda que não seja um valor absoluto e
superior a outros princípios, é um mandamento de otimização18 e deve ser concretizado o
máximo possível. Para isso, resta ainda mais relevante a atuação estatal positiva para a
garantia do direito.
A proteção constitucional é primária e fundamental para a efetivação do princípio da
laicidade, pois garante que a democracia não seja apenas “a vontade da maioria”, mas que
suas diretrizes respeitem as especificidades das minorias.
Conclusões
O caráter laico de um Estado relaciona-se, de início, com a afirmação da legitimação
democrática do poder, e não em fundamentos religiosos. A laicidade pressupõe o livre
exercício religioso pelos cidadãos, independentemente da confissão que professem,
garantindo-se a igualdade material de todos os credos na esfera pública. Do Estado laico
espera-se a imparcialidade em matéria de fé, o que não significa sua abstenção nesta arena.
Ao contrário, o Estado laico tem a responsabilidade de garantir que os elementos constituintes
da laicidade sejam respeitados e efetivados.
A partir desta moldura conceitual, entendo que a laicidade é prevista como princípio
implícito no texto constitucional, considerando a definição do caráter democrático do Estado e
da garantia da igualdade e da liberdade (especialmente religiosa). A determinação da
separação institucional entre Estado e Igreja compõe o contexto de proteção constitucional ao
princípio, mas com ele não se confunde.
A principal consequência decorrente do reconhecimento da laicidade como princípio é
a compreensão de que se trata de um mandamento de otimização, e por isso deve ser realizado
em sua maior extensão possível, dependendo de condições fáticas e jurídicas para sua
concretização. Este entendimento dialoga com a evolução histórica dos direitos humanos, que
não bastam ser declarados para existirem: o seu reconhecimento formal é apenas o primeiro
passo para sua realização.
A vontade da maioria é limitada pelos parâmetros de direitos fundamentais acolhidos
pelo Estado. Ainda que a sociedade brasileira professe uma concepção religiosa majoritária,
seus dogmas não podem impor-se sobre as ações públicas que atingem toda a população. Isso
decorre não apenas da concepção de constitucionalismo, mas dos próprios aspectos
18
Conforme definição de Robert Alexy, 2008. pp. 90-91.
9
Referências Bibliográficas
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
BLANCARTE, Roberto. “O porquê de um Estado laico”. In Roberto Arruda Lorea (org.) Em
defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
HUACO, Marco. “A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito”. In
Roberto Arruda Lorea (org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010.
SAJÓ, András. “Preliminaries to a concept of constitutional secularism”. I-CON 6 (2008),
pág. 607.
SARMENTO, Daniel. “O crucifixo nos Tribunais e a laicidade do Estado”. In Roberto Arruda
Lorea (org.) Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros,
1999.
ZYLBERSZTAJN, Joana. O princípio da laicidade na constituição federal de 1988. Tese de
Doutorado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2012.
1
Para falar em participação popular, não podemos nos entender como meros
expectadores, como folhas em branco, esperando que um terceiro portador do
conhecimento, nos diga o que deve ser feito. Assim, o protagonismo histórico deve ser
ensaiado dentro do espaço do curso.
Por meio da utilização de um rolo de barbante, é possível estabelecer dinâmica
que objetiva a construção de uma teia entre as pessoas participantes, enquanto elas se
apresentam ao grupo.3 Essa teia, resultado da participação de todas as pessoas presentes,
revela os motivos que impulsionaram cada indivíduo a compor o grupo. Assim, a
visualização concreta da teia permite a todos os presentes a construção da sensação de
que, apesar das diversas motivações para participação no curso, é possível gozar de
1
O texto baseia-se na quarta palestra do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do
Parlamento. A aula, ministrada pela autora, ocorreu no dia 14 de novembro de 2013, nas dependências da
Câmara Municipal de São Paulo.
2
Freire, 2011, p. 81.
3
A referida dinâmica foi desenvolvida com os alunos participantes do Curso Igualdade de Gênero II.
2
pontos em comum que os levem a ser reconhecidos por terceiros como um grupo.
Essa sensação de pertencimento a um grupo potencializa a discussão sobre quem
é o “outro”, alvo da opressão. A princípio, com este outro não há identificação, mas
logo se percebe que isso só depende de que lado da relação de poder nos encontramos,
se nos enquadramos entre os oprimidos ou entre os opressores.
A compreensão e a sensação de pertença a um grupo nesse contexto, tanto aos
próprios olhos quanto aos de terceiros, facilita a identificação de si também como o
“outro” e permite abordar a necessidade de senso de solidariedade entre os grupos,
principalmente entre os tidos como “minorias”, que são alvos de discriminação.
Embora o segmento LGBT esteja em foco dentro de um curso com essa
temática, é essencial, para a sensibilização e para a legitimidade de propostas de
solidariedade, não desconsiderar questões que abordem quaisquer outras minorias e
quaisquer outros grupos vítimas de opressão: mulheres, negros(as), pessoas em situação
de rua, indígenas, moradores da periferia, pessoas encarceradas, etc.
Como consequência dessa construção, torna-se necessário discutir as formas
coletivas de participarmos na superação das diversas opressões a que estão submetidas
as pessoas que compõem o grupo.
No caso do Brasil, portanto, podemos nos basear na Constituição Brasileira de
1988 que, ao apresentar os fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito,
definiu que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (Constituição Federal, artigo 1º,
parágrafo único).
Assim, além de escolher seus representantes, há a previsão de que os(as)
cidadãos(ãs) brasileiros(as) possam participar diretamente por meio dos chamados
institutos de democracia direta ou semidireta como o plebiscito, o referendo e a
iniciativa popular de lei, conforme o artigo 14 da Constituição Federal. Ademais desses
instrumentos, podemos citar outras práticas participativas como as tribunas populares,
os conselhos, as audiências públicas, as conferências, as ouvidorias, as mesas de
negociação e de diálogos, entre outros instrumentos institucionais de participação
popular.
Por outro lado, temos de destacar que há outros instrumentos de participação
popular como as mobilizações e os movimentos sociais que, de acordo com Maria do
Carmo A. A. Carvalho:
3
4
Carvalho, 1998, p. 1.
5
Brasil, 2010, p. 5.
6
Lorde, 1984, p. 37.
7
Santos, 2007, p. 84.
4
disso, a mídia utilizava termos como “vândalos” e “baderneiros” para identificar aqueles
que participaram dessas manifestações. Contudo, a partir do momento que uma
fotógrafa foi atingida por uma dessas balas de borracha, os participantes dos atos
passaram a ser chamados de “manifestantes” e as ruas foram tomadas por reivindicações
ufanistas “contra a corrupção” e “contra partidos políticos”. Isto representou a
apropriação desse movimento pela mídia hegemônica, o que permitiu sua pasteurização
e propiciou um revestimento de “legalidade” à tradicionalmente criminalizada
mobilização de rua.
Esse exemplo simboliza um modo de operar do poder hegemônico, ao se
apropriar das demandas populares e corrompê-las. Naquela ocasião, o aumento das
tarifas de transporte coletivo aparecia em primeiro plano como responsável pela
deflagração das manifestações populares, mesmo que o aumento das tarifas compusesse
apenas um caldo de direitos não concretizados e de promessas partidárias vazias
realizadas ao longo de campanhas, e que não foram cumpridas com a tomada do poder.
Para Boaventura de Sousa Santos, a perda do controle da agenda política leva à
descrença nos partidos políticos e os movimentos populares teriam a capacidade de
recuperá-la:
“Não me parece que possa ser de outra forma senão por meio de
pressão de baixo para cima, vinda dos movimentos, e com outra
característica: deve ser legal e ilegal. Não pode ser somente uma luta
institucional, tem de ser uma luta institucional e uma luta direta. Além
disso, em alguns contextos tem de ser cada vez mais direta, porque
com a criminalização da contestação está se reduzindo a
possibilidade de uma luta institucional, e se esta se reduz temos de
abrir espaços para a possibilidade de uma luta direta, ilegal e
pacífica. O que estou sugerindo é que temos de criar uma dialética
entre legalidade e ilegalidade, que de fato é a prática das classes
dominantes desde sempre: usam a legalidade e a ilegalidade quando
lhes convêm.
Por isso, não pode haver um fetichismo legal”.8
8
Santos, 2007, pp. 97-98.
5
pessoas LGBT que eram alvos de opressões a se unirem aos movimentos existentes à
época que reivindicavam transformações na sociedade. No entanto, as demandas
específicas do segmento LGBT sempre estiveram em segundo plano, dado o
preconceito, a discriminação e a violência com que era abordada a vivência de uma
sexualidade não heterossexual e de uma identidade de gênero não coincidente com o
sexo biológico.
Assim, embora essas pessoas endossassem outros movimentos sociais, havia
grande dificuldade em fazer reivindicações políticas específicas do segmento LGBT.
No Brasil, as mobilizações contra a ditadura militar permitiram a politização do
movimento LGBT, de acordo com Simões e Facchini:
9
O Lampião da Esquina foi um jornal homossexual que circulou entre 1978 e 1981. Tanto o jornal,
quanto o grupo Somos são consagrados como referências da primeira onda da mobilização política em
defesa da homossexualidade no Brasil (SIMÕES e FACCHINI, 2009, pp. 81-82).
10
Simões e Facchini, 2009, p. 80.
6
11
Simões e Facchini, 2009, pp. 104-105.
12
Santos, 2007, p. 99.
7
Referências Bibliográficas:
CARVALHO, Maria do Carmo A. A. “Participação social no Brasil hoje”. São Paulo:
Pólis, 1998. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/w3/fsmrn/fsm2002/participacao_polis.html . Acesso em 09
dez. 2013.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2011.
LORDE, Audre. “La hermana, la extranjera”. Artículos y Conferéncias, 1984.
Disponível em:
13
Vieira, 2013.
8
http://www.lifsperu.org/files/pdf/cendoc/lecturas%20lesbicas/Audre%20Lorde-
La%20Hermana%20la%20Extranjera.pdf . Acesso em 09 dez. 2013.
BRASIL – SECRETARIA DE ASSUNTOS LEGISLATIVOS. Série Pensando o
Direito. Conferências nacionais, participação social e processo legislativo. Brasília, n.
27, 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação
social. São Paulo: Boitempo, 2007.
SIMÕES, Júlio Assis; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris. Do movimento
Homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2009.
VIEIRA, André. Participação de mulheres e minorias poderá ser tema de reforma
política. Disponível em:
http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/07/18/participacao-de-mulheres-e-
minorias-podera-ser-tema-da-reforma-politica. Acesso em 09 dez. 2013.
1
A Constituição de 1988 e a
Evolução dos Direitos da População LGBT
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais)1
É ponto comum afirmar-se que a Constituição Federal de 1988 gerou uma verdadeira
revolução no Direito das Famílias de nosso país. Trata-se de afirmação absolutamente
verdadeira, pois foi somente com ela que se deixou de proteger apenas uma espécie de
família, a saber, aquela formalizada pelo casamento civil, para se protegerem outras entidades
familiares, acabando-se assim com histórica discriminação jurídica contra as famílias não-
matrimonializadas.
Não por outro motivo, fala-se hoje em Direito das Famílias, no plural, e não mais em
Direito de Família, no singular. Aprofundando o que se expôs acima, no Código Civil de
1916 só se reconhecia como “família legítima” aquela formalizada pelo casamento civil,
entendendo-se por “legítima” aquela protegida pelo Direito; qualquer outra união de pessoas,
mesmo não impedidas de se casar (mesmo entre pessoas de sexos opostos), era considerada
como uma “família ilegítima”, logo, não protegida pelo Direito. Ou seja, protegia-se apenas
um único modelo de família, deixando-se os demais desprotegidos, por isso que faz muito
mais sentido falar-se hoje em Direito de Família, no plural, para se destacar que não é (mais)
apenas um único modelo de família que é protegido pelo Estado.
Curioso notar que sempre se falava em “Direito de Família e das Sucessões”, o que
certamente era uma forma semântica de se mostrar que o Estado protegia apenas uma forma
de família e tratava de diversas espécies de sucessões hereditárias. Enfim, continuemos.
A família consagrada pelo Código Civil de 1916 é definida como “família hierárquico-
patriarcal”, pela qual o homem (pater) era colocado em posição hierarquicamente superior à
da mulher, já que o homem era o chefe da sociedade conjugal heteroafetiva segundo expressa
1
Texto baseado na quinta aula do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do Parlamento. O autor
ministrou palestra no dia 19 de novembro de 2013, nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo.
2
Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru, Especialista em Direito
Constitucional pela PUC/SP, Especialista em Direito da Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo, Advogado -
OAB/SP 242.668, autor do Livro "Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil,
da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos" (2ª Edição, São Paulo: Ed. Método, 2013), co-autor
dos Livros "Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo" (organizado por Maria Berenice Dias), "Minorias
Sexuais. Direitos e Preconceitos" (organizado por Tereza Rodrigues Vieira), "Manual do Direito
Homoafetivo" e "Manual dos Direitos da Mulher" (ambos organizados por Carolina Valença Ferraz, George
Salomão Leite, Glauber Salomão Leite e Glauco Salomão Leite) e membro do GADvS - Grupo de Advogados
pela Diversidade Sexual.
2
disposição legal (art. 233 do CC/16), ao passo que a mulher se tornava “relativamente
incapaz” com o casamento (art. 6º, II, do CC/16), ou seja, a mulher “virava adolescente”, já
que ficava em situação equiparável à deste por não poder assinar contrato nenhum sem a co-
assinatura do marido, para ficar nesse exemplo. Tal situação só deixou de ocorrer com o
Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62), que deixou expresso que a mulher era
colaboradora do marido na sociedade conjugal e acabou com essa absurda diminuição da
capacidade civil dela no casamento.
Embora, sociologicamente, tenhamos passado pela assim chamada “família fusional”,
que se forma e se mantém unida apenas enquanto houver afeto (romântico) na relação, o
divórcio era proibido pelo Código Civil de 1916, razão pela qual muitas famílias fusionais
formadas por pessoas anteriormente casadas não eram protegidas pelo Direito, já que a
separação judicial (na época identificada pelo termo “desquite”) encerrava apenas a
“sociedade conjugal”, findando os deveres do casamento, mas não o “vínculo matrimonial”, o
que mantinha as pessoas casadas.
Ainda no mundo dos fatos, na década de 1980, constata-se a existência da “família
pós-moderna”, valorizando-se menos as relações por si mesmas e mais as gratificações
pessoais que elas concedem a seus integrantes (F. Singly)3. Logo, consagrou-se a noção de
família eudemonista, ou seja, a que se forma e se mantém unida apenas enquanto isso trouxer
felicidade e realização individual a cada um dos seus integrantes.
O texto constitucional de 1988 possibilitou a proteção das diversas entidades
familiares. Como anota Paulo Lôbo4, ao deixar de mencionar que a proteção estatal se dava à
família “constituída pelo casamento”, como fazia o artigo 175 da Constituição de 1967-69,
para falar que a “família” (qualquer família) merece “especial proteção do Estado” (artigo 226
da Constituição de 1988), a cláusula de exclusão desapareceu, passando a serem protegidos
todos os vínculos familiares, identificando-se a família pela união de pessoas pautada pela
afetividade, durabilidade, continuidade e publicidade da relação, ao que Rodrigo da Cunha
Pereira acrescenta a estrutura psíquica familiar (Lacan), no sentido de as pessoas se
entenderem como integrantes de uma família. Por isso, afirmo que a família se forma pelo
amor familiar, o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura5.
3
Aqui, sobre os modelos institucional, fusional e pós-moderno de família, parafraseamos a lição de Rios (2001,
pp. 102-106) que explicita as lições de V. Poncar e P. Rofani e F. Singly acerca do tema.
4
Lôbo, 2008, pp. 57-58.
5
Vide Vecchiatti, 2013, capítulo 05, item 2.4.1.
3
6
Não é possível desenvolver aqui o tema pelos limites físicos deste artigo, mas vale dizer que o próprio conceito
ontológico de omissão inconstitucional supõe a supressão de tal inconstitucionalidade, o que só é possível
mediante a criação da normatização constitucionalmente imposta pelo Tribunal Constitucional caso o
Parlamento se recuse a fazê-lo.
4
7
Vide Dias, 2009, p. 204. “AÇÃO OBJETIVANDO O RECONHECIMENTO DE SOCIEDADE DE FATO E
DIVISÃO DOS BENS EM PARTES. Comprovada a conjugação de esforços para a formação do patrimônio que
se quer partilhar, reconhece-se a existência de uma sociedade de fato e determina-se a partilha. Isto, porém, não
implica, necessariamente, em atribuir ao postulante 50% dos bens que se encontram em nome do réu. A divisão
há de ser proporcional à contribuição de cada um. Assim, se os fatos e circunstâncias da causa evidenciam uma
participação societária menor de um dos ex-sócios, deve ser atribuído a ele um percentual condizente com a sua
contribuição. (TJ/RJ, Apelação Cível n.º 731/89, 5ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Mário Albiani,
julgada em 22/08/1989)”. Outro julgado citado nesse sentido é o seguinte: “ORDINÁRIA. DISSOLUÇÃO DE
SOCIEDADE DE FATO ENTRE MULHERES HOMOSSEXUAIS. EFETIVA PARTICIPAÇÃO NA
FORMAÇÃO DO PATRIMÔNIO. O enriquecimento ilícito emana da sistemática do CC (1916) e do pagamento
indevido. (TJ/RJ, Apelação Cível .º 1435/95, 4ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Fernando Whitaker,
julgada em 31/10/1995)”.
8
“SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. PARTILHA DO BEM COMUM. O parceiro tem o direito de
receber a metade do patrimônio adquirido pelo esforço comum, reconhecida a existência de sociedade de fato
com os requisitos previstos no art. 1.363 do CC (1916). Responsabilidade civil. Dano moral. Assistência ao
doente com Aids. Improcedência da pretensão de receber do pai do parceiro que morreu com Aids a indenização
pelo dano moral de ter suportado sozinho os encargos que resultaram da doença. Dano que resultou da opção de
vida assumida pelo autor e não da omissão do parente, faltando o nexo de causalidade. Art. 159 do CC (1916).
Ação possessória julgada improcedente. Demais questões prejudicadas. Recurso conhecido em parte e provido”
(STJ, REsp n.º 148.897/MG, 4ª Turma, Relator: Ministro Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 10/02/1998). Note-
se, apenas, a pré-compreensão dos julgadores, na questão relativa ao dano moral. Disseram que o dano oriundo
da contaminação pelo vírus do HIV teria decorrido da “opção de vida assumida pelo autor” (sic), o que deixa
clara a concepção dos ministros da AIDS como uma “peste gay”, preconceito absurdo que assolou a humanidade
por força de simplismo acrítico consagrado na década de 1980. Isso, seguramente, contribuiu para negar o status
jurídico-familiar da união homoafetiva neste julgado.
5
9
“RELAÇÕES HOMOSSEXUAIS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE SEPARAÇÃO DE
SOCIEDADE DE FATO DOS CASAIS FORMADOS POR PESSOAS DO MESMO SEXO. Em se tratando de
situações que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das varas de
família, à semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido” (TJRS, Agravo de
Instrumento n.º 599.075.496, 8ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Breno Moreira Mussi, julgado em
17/06/1999).
10
“UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. MEAÇÃO.
PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo
sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de
preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar mesmo em sua natural atividade retardatária.
Nelas remanescem consequências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a
aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevado sempre os princípios constitucionais da
dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser
partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação
provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros” (TJRS, Apelação Cível n.º
70001388982, 7ª Câmara Cível, Relator: Desembargador José Carlos Teixeira Giórgis, julgado em 14/03/2001).
11
“AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO CUMULADA COM
PARTILHA. DEMANDA JULGADA PROCEDENTE. RECURSO IMPROVIDO. Aplicando-se
analogicamente a Lei 9.278/1996, a recorrente e sua companheira têm direito assegurado de partilhar os bens
adquiridos durante a convivência, ainda que tratando-se de pessoas do mesmo sexo, desde que dissolvida a união
estável. O Judiciário não deve distanciar-se de questões pulsantes, revestidas de preconceitos só porque
desprovidas de norma legal. A relação homossexual deve ter a mesma atenção dispensada às outras relações.
Comprovado o esforço comum para a ampliação do patrimônio das conviventes, os bens devem ser partilhados.
Recurso improvido” (TJ/BA, Apelação Cível n.º 16313-9/99, 3ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Mário
Albiani, julgada em 04/04/2001).
12
“[...] A união homossexual merece proteção jurídica, porquanto traz em sua essência o afeto entre dois seres
humanos com o intuito relacional. [...]” (TJ/RS, Apelação Cível n.º 70006542377, 8ª Câmara Cível, Relator:
Desembargador Rui Portanova, julgado em 11/09/2003)
13
“[...] À união homoafetiva, que preenche os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser
conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena
de ofensa aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. [...] A lacuna existente na legislação não
pode servir como obstáculo para o reconhecimento de um direito” (TJ/MG, Processo n.º 21.0024.06.930324-6,
Relatora: Desembargadora Heloisa Combat, julgado em 22/05/2007).
14
“[...] À união homoafetiva que irradia pressupostos de união estável deve ser conferido o caráter de entidade
familiar, impondo reconhecer os direitos decorrentes destes vínculos, pena de ofensa aos princípios
6
já foi reconhecido em duas oportunidades, julgamentos nos quais, inclusive, se destacou essa
ausência de prejuízos mediante apontamento de estudos de órgãos especializados no tema
(STJ, REsp 1.281.093/SP, de 18.12.12, DJe de 04.02.13, e REsp 889.852/RS, de 27.04.10,
DJe de 10.08.10).
Ainda sobre a parentalidade por casais homoafetivos, temos a paradigmática decisão
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Caso Atalla y niñas vs. Chile (2012), na
qual o Chile foi condenado por ter retirado a guarda das filhas da Sra. Atalla apenas por conta
dela, após se separar de seu marido, ter passado a manter uma relação conjugal com outra
mulher (logo, por sua mera homoafetividade), sob o fundamento de que, embora a proteção de
crianças e adolescentes evidentemente seja um legítimo fim estatal, não se podem usar
estereótipos (preconceitos) contra a homossexualidade para se proibir a criação de crianças e
adolescentes por homossexuais e casais homoafetivos. Afinal, preconceito não é paradigma
jurídico - afinal, o art. 3º, IV, de nossa Constituição Federal veda preconceitos e
discriminações [arbitrárias] de qualquer natureza, algo absolutamente imanente a qualquer
noção do princípio da não discriminação.
Sobre os direitos da população transexual, tem-se como marco inicial o famoso
julgamento do extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo16 (absorvido pelo Tribunal
de Justiça de São Paulo após a Emenda Constitucional 45, de 2004), no qual, por maioria
(2x1), se absolveu o médico que realizou cirurgia de transgenitalização em um paciente
transexual da acusação de crime de “lesão corporal grave”, oriunda da retirada (ablação) do
pênis logicamente decorrente da cirurgia. Reformando a sentença condenatória de primeira
instância, afirmou corretamente o Tribunal que “Não age dolosamente o médico que, através
de uma cirurgia, procura curar o paciente ou reduzir o seu sofrimento físico ou mental”.
Segundo o Tribunal:
“[...] tal cirurgia tinha sido tomada por um grupo de médicos, psiquiatras e
psicólogos, todos amparados, como acima exposto, no parecer de um jurista
do mais alto gabarito moral e intelectual, o Prof. Washington de Barros
Monteiro, cabendo salientar que existe nos autos um parecer do E.
Jurisconsulto Prof. Heleno Claudio Fragoso, que não vislumbrou
antijuridicidade no ato do acusado, concluindo ‘não haver a menor dúvida
de que o Dr. Roberto Farina agiu de boa-fé, com o propósito curativo, tendo
presente a positiva e cuidadosa indicação médica que lhe foi feita pela
equipe de médicos que vinha atendendo ao paciente’ (fls)”.
16
TACRim/SP, Apelação Criminal n.º 201.999/Capital (In: RT 355/372 – que inclusive contém a íntegra da sentença condenatória
reformada por dita decisão).
9
Em outro julgado, afirmou-se que “Se a requerente, portanto, como na hipótese dos
autos, se sente homem sob o ponto de vista psíquico, procede como se do sexo masculino
fosse e comporta-se socialmente como tal, não há qualquer motivo para se negar a
pretendida alteração registral pleiteada. Entendimento semelhante, de resto, adota M.
BERENICE DIAS (Manual de Direito das Famílias, 5ª Ed., São Paulo, Revista dos Tribunais,
2009, p. 136) que, com apoio doutrinário nas lições de A. CHAVES e E. SZANIAWSKI
explica, com percuciência, que ‘a aparência externa não é a única circunstância para a
atribuição da identidade sexual, pois com o lado externo concorre o elemento psicológico.
Assim, o sexo civil ou jurídico deve espelhar e coincidir com o sexo vivido socialmente pela
pessoa’ (grifos meus). (...) Em suma, toda a interpretação jurídica, no entender deste
subscritor, deve propiciar o bem estar social do indivíduo, de modo a não causar-lhe
constrangimento público. Preserva-se, assim, o direito específico e palpável à intimidade da
autora, como decorrência do princípio da dignidade humana. Lembre-se que a
desconformidade entre o sexo jurídico e o sexo psicológico é, singelamente, o que constitui,
depuradas as tantas variáveis possíveis, o fundamento em que se esteia a pretensão
retificadora. Nesse passo, a singela virilização anômala notada, sem a realização da cirurgia
12
20
Vejamos outro aresto: “RETIFICAÇÃO DE ASSENTO. Portador de transexualismo que fundamenta sua
pretensão em situações vexatórias e humilhantes. Extinção da ação sob o fundamento de que não realizada a
cirurgia de transgenitalização. Descabimento - Informações prestadas pelo médico psiquiátrico, que identificam
incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade que a parte autora
relatou sentir. Cirurgia de transgenitalização que possui caráter secundário. Sexo psicológico é aquele que
dirige o comportamento social externo do indivíduo. Recurso provido com determinação” (TJSP, Apelação n.º
0082646-81.2011.8.26.0002, 08ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Hélio Faria, julgada em
30.10.13. Grifos nossos). No inteiro teor deste julgado destacou-se que “No mérito, a questão levantada se cinge
à necessidade ou não da cirurgia de transgenitalização para a retificação do nome. Assim, primeiramente, há que
ser considerado que conforme laudo médico-psiquiátrico, a desconformidade psíquica entre o sexo biológico e o
sexo psicológico decorre de transexualismo feminino (fl. 14). Importante não perder de vista que o sexo
psicológico é aquele que dirige o comportamento social externo do indivíduo. Nota-se que a parte recorrente
‘não considera aceitável viver de acordo com a identidade socialmente esperada devido à designação de gênero
ao nascimento e infância e/ou sua anatomia de nascimento’ (fl. 15). O fato é que se trata de caso de
transexualismo, não constituindo a cirurgia de transgenitalização requisito para a retificação de assento ante o
seu caráter secundário. Embora a parte apelante afirme a intenção da cirurgia, esta possui caráter
complementar, visando a conformação das características e anatomia ao sexo psicológico. Ressalta-se que
submeter-se ou não ao procedimento cirúrgico é opção do indivíduo e a exigência de tal procedimento como
requisito à retificação de seu nome afrontaria o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que se
busca preservar. Frise-se que não é o procedimento cirúrgico em si que definirá a sexualidade da pessoa e sim,
o sexo psicológico. Se vai se submeter ou não à cirurgia de transgenitalização é decisão que cabe somente ao
indivíduo. (...)” (grifos nossos).
13
casamentos religiosos que entendam contrariarem os seus dogmas – o Estado pode impor
coercitivamente a realização do casamento civil porque este é um regime jurídico que garante
direitos (e obrigações) na sociedade, cuja negativa gera efetiva discriminação, o que não
ocorre com o casamento religioso. Por outro lado, quando alguém deseja se hospedar em um
estabelecimento comercial, não está buscando a “benção” do mesmo, mas apenas se utilizar
de seus serviços, enquanto consumidor. No passado, pessoas racistas se recusavam a atender
pessoas negras em seus estabelecimentos por conta de seu preconceito negrofóbico, por vezes
com base em crenças religiosas. Por conta de tais situações, passou-se a se considerar como
inadmissível que empresários/comerciantes perpetrem discriminações, deixando de atender
determinadas pessoas. Quando alguém abre um estabelecimento comercial, adquire a
obrigação de atender a toda e qualquer pessoa, sem discriminações. O princípio da não-
discriminação se aplica às relações privadas, como os direitos fundamentais em geral: não é
somente o Estado que não pode discriminar, ninguém pode oprimir ou segregar outras pessoas
fora dos casos das leis vigentes, as quais só serão válidas se respeitarem os direitos
fundamentais e, portanto, o princípio da não-discriminação (art. 3º, IV, da CF/88). Logo, ônus
ao empresariado/comércio é o respeito a toda e qualquer pessoa, o que supõe o atendimento
de todos aqueles que tenham condições financeiras de frequentar o estabelecimento
comercial/empresarial em questão.
Por razões equivalentes, são inadmissíveis práticas de bullying em escolas e assédio
moral no ambiente de trabalho contra pessoas LGBT. Aliás, considerando que o bullying
transfóbico faz com que muitas travestis e transexuais abandonem as escolas e se vejam
forçadas a se tornarem profissionais do sexo para sobreviverem, são urgentes políticas
públicas e ações afirmativas para fornecer educação formal e empregos para tais populações
de sorte a lhes possibilitar uma escolha real, possibilitando àquelas que desejem abandonar a
prostituição e àquelas que não tenham mais condições de exercer tal atividade um emprego
formal. Inclusive com cotas para universidades, nos mesmos moldes das cotas raciais e
sociais, já que as cotas têm como um de seus principais fundamentos, além da reparação de
discriminação histórica, a garantia da diversidade social nas universidades, que teria muito a
se enriquecer com a presença de travestis e transexuais.
Outras decisões internacionais existem sobre o tema, afirmando que a liberdade de
expressão, ainda que com base em crenças religiosas, não garantem um pseudo “direito” a
ofender e discriminar, como decidido por Tribunais de Turquia e Canadá: no primeiro caso,
condenando quem afirmou que cartilhas que visavam ajudar professores a compreender as
16
profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo
gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas
pessoas”, ao passo que identidade de gênero é “a profundamente sentida experiência interna e
individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no
nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha,
modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e
outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos”. De forma
mais objetiva, pode-se dizer que a orientação sexual refere-se à homossexualidade,
heterossexualidade e à bissexualidade, por se referir ao sexo/gênero que atrai a pessoa de
forma erótico-afetiva, ao passo que a identidade de gênero refere-se à travestilidade, à
transexualidade e à transgeneridade em geral e à cisgeneridade por se referir ao gênero com o
qual a pessoa se identifica25. Fala-se em orientação sexual ou identidade de gênero real ou
atribuída no sentido de se caracterizar a homofobia/transfobia tanto quando as vítimas sejam
agredidas/discriminadas/ofendidas/ameaçadas por sua real orientação sexual ou identidade de
gênero não-heterossexual cisgênera e também quando as vítimas são heterossexuais mas são
confundidas com LGBT, ou seja, são agredidas por terem a si atribuída uma orientação
sexual ou identidade de gênero distinta da sua (adiante se trazem exemplos disso). Por sua
vez, a homofobia se refere ao preconceito e/ou a discriminação contra homossexuais e
bissexuais, ao passo que transfobia é o preconceito e/ou a discriminação contra travestis,
transexuais e transgêneros em geral26.
Como se percebe, como a proposta de criminalização (PLC 122/06) visa incluir
“orientação sexual” e “identidade de gênero” na lei e não “homofobia” e “transfobia”,
25
Homossexuais são pessoas que sentem atração erótico-afetiva por pessoas do mesmo sexo; heterossexuais, por
pessoas de sexo diverso; bissexuais, por pessoas de ambos os sexos. Transexual é a pessoa que se identifica com
o gênero oposto àquele socialmente atribuído ao seu sexo biológico, possui uma dissociação entre seu sexo físico
e seu sexo psíquico, que geralmente não sente prazer na utilização de seu órgão sexual e que não deseja que as
pessoas em geral saibam de sua condição transexual após a adequação de sua aparência a seu sexo psíquico.
Travesti é a pessoa que, apesar de possuir uma relativa dissociação entre seu sexo físico e seu sexo psíquico (ao
menos no que tange às normas de gênero socialmente impostas), sente prazer na utilização de seu órgão sexual e
não se importa que as pessoas em geral saibam de sua condição de travesti, embora socialmente também prefira
ser tratada como pessoa relativa à aparência que efetivamente ostenta. Trata-se, também aqui, de uma questão
puramente identitária (note-se que não consideramos correto o entendimento convencional que diferencia
travestis e transexuais por estes últimos supostamente sempre desejarem realizar a cirurgia de transgenitalização
e não sentirem nunca prazer com sua genitália biológica – consideramos este conceito ultrapassado, por
existirem transexuais que não desejam a cirurgia, embora se identifiquem com o gênero oposto àquele
socialmente atribuído a seu sexo biológico). Cisgêneros são aqueles que se identificam com o gênero
socialmente atribuído a seu sexo biológico. Sobre o tema: Vecchiatti, 2012, pp. 37-38 (nas notas n.º 14 a 18);
Vecchiatti, 2013, pp. 83-89.
26
Para maiores desenvolvimentos sobre o conceito de homofobia (e, por identidade de razões, de transfobia),
vide: Borrillo, 2000; Prado e Junqueira, 2011; e Rios, 2006.
18
percebe-se que a tal “heterofobia”, se algum dia existir, estará criminalizada pelo referido
projeto.
Vivemos verdadeira banalidade do mal homofóbico, já que muitas pessoas se sentem no
pseudo “direito” de ofender, agredir, discriminar e mesmo matar pessoas LGBT por sua mera
orientação sexual homoafetiva/biafetiva e identidade de gênero transgênera, o que não tem
sido coibido eficientemente nem mesmo nos poucos locais (Municípios e Estados) que
possuem leis administrativas antidiscriminatórias. Logo, mesmo a ideologia do Direito Penal
Mínimo demanda pela criminalização da homofobia e da transfobia, visto que temos bens
jurídicos relevantes (bens jurídico-penais), a saber, o direito à tolerância, à segurança, à livre
orientação sexual e à livre identidade de gênero, bem como pelos demais ramos do Direito
não estarem se mostrando suficientes para protegê-los, donde temos inconstitucionalidade por
proteção deficiente (princípio da proporcionalidade na acepção de proibição de proteção
deficiente, já reconhecido por doutrina27 e jurisprudência28).
Em sede de conclusão sobre o atual estágio dos direitos da população LGBT
brevemente tratados neste artigo:
(i) a união estável homoafetiva está garantida pela força de lei da decisão do STF na
ADPF 132 e da ADI 4277, ao passo que o casamento civil homoafetivo encontra-se garantido
pela Resolução CNJ 175/2013, a despeito da existência de ação judicial questionando dita
resolução (ADI 4966), a qual este autor já apresentou manifestação contrária em nome do
PSOL e da ARPEN-RJ como supracitado – e a despeito de persistir a necessidade de se alterar
o Código Civil e a Constituição Federal para que se acabem as discussões jurídicas acerca do
tema;
(ii) a adoção homoparental parece não questionada na jurisprudência, até pela
necessidade de parecer de assistente social e psicólogo para se deferir a adoção, pareceres
favoráveis estes que provam a juízes sobre a plena capacidade de homossexuais e casais
homoafetivos exercerem a parentalidade, juntamente com os diversos estudos que comprovam
a inexistência de prejuízos a crianças e adolescentes por sua mera criação por um casal
homoafetivo relativamente àquelas(es) criadas(os) por casais heteroafetivos;
(iii) pessoas transexuais têm hoje consolidado o direito à realização da cirurgia de
transgenitalização por força do artigo 13 do Código Civil e da Resolução CFM 1.955/2010 e,
27
V.g., STRECK, 2009, pp. 46, 50-51, 57-58, 92, 96, 101, 103-106; e GONÇALVES, 2007, pp. 158, 160 e 170-
171.
28
V.g., STF, ADI n.º 1.800 e ADI n.º 3.112, e TJSP, na Apelação Criminal n.º 0052878-39.2006.8.26.0050, ao
afirmar que o princípio da proporcionalidade abrange “a garantia de proteção eficiente” por parte do Estado.
19
uma vez tendo realizado a cirurgia, têm na jurisprudência garantido o direito à retificação de
seu prenome e sexo jurídico;
(iii.1) polêmica ainda há na jurisprudência sobre o direito de pessoas transexuais
alterarem seu prenome e seu sexo jurídico sem a realização da cirurgia, sendo minoritária a
jurisprudência que reconhece tal direito. Entendemos que é preciso evoluir neste ponto,
deixando-se de se genitalizar a pessoa humana e entendendo-se que uma pessoa é um homem
ou uma mulher por circunstâncias que vão muito além de sua genitália ou seus genes; se a
pessoa se entende como mulher, se veste como mulher, se porta como mulher e é tratada
como mulher, ela é uma mulher, independentemente de cirurgia, o mesmo valendo para o
caso de quem se entende/veste/porta/é tratado como homem: ele é um homem;
(iii.1.1) pelas mesmas razões, pessoas travestis devem ter a si reconhecido o direito de
alterar seu prenome e (quando desejem) seu sexo jurídico também independentemente de
cirurgia, a qual elas (travestis), ao que nos consta, não desejam realizar;
(iv) é desnecessária a alteração legislativa para se reconhecer o direito ao casamento
civil, à união estável e à adoção conjunta por casais homoafetivos, bem como à alteração do
prenome e do sexo jurídico de travestis e transexuais, mas tais leis são importantes para se
acabar com as divergências jurídicas sobre o tema e porque um país só é verdadeiramente
democrático quando sua legislação expressamente reconhece direitos das pessoas em geral,
logo, também de minorias e grupos vulneráveis, para que estas não tenham que ter longas
batalhas judiciais para terem seus direitos humanos/fundamentais respeitados;
(v) a jurisprudência internacional tem imposto limites à liberdade de expressão, mesmo
oriunda de crenças religiosas, afirmando que ela não garante um pseudo “direito” a discursos
homofóbicos/transfóbicos e, enfim, a discursos de ódio, ofensas e incitações ao preconceito
e/ou à discriminação. A jurisprudência brasileira ainda precisa amadurecer sobre este tema. A
liberdade de expressão precisa deixar de ser um grande mal entendido e amadurecer para que
não seja usada para legitimar discursos de ódio, ofensas e incitações ao preconceito e/ou à
discriminação em geral. Afinal, liberdade de expressão não é liberdade de opressão29;
(v.1) inadmissíveis práticas de bullying em escolas e assédio moral no ambiente de
trabalho contra pessoas LGBT, sendo urgentes políticas públicas e ações afirmativas para
fornecer educação formal e empregos às populações travesti e transexual, que em geral
abandonam as escolas em razão do bullying transfóbico e são forçadas a se tornarem
profissionais do sexo para sobreviverem, para assim lhes possibilitar uma escolha real,
29
Frase constante de cartaz da 3ª Marcha Nacional contra a Homofobia, de 16.08.12 (Brasília/DF).
20
possibilitando àquelas que desejem abandonar a prostituição e àquelas que não tenham mais
condições de exercer tal atividade um emprego formal;
(vi) a criminalização da discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero
visa unicamente tornar crime aquilo que já o é se praticado em razão da cor, etnia,
procedência nacional ou religião da pessoa, critérios da atual Lei de Racismo. Em síntese e
em linguagem informal, “se não pode contra pessoas negras/religiosas, não pode contra
pessoas LGBT”. Igual proteção penal: nada menos, nada mais.
Referências Bibliográficas
BENTO, Berenice. O que é a Transexualidade, 1a Edição, São Paulo: Editora Brasiliense,
2008.
BORRILLO, Daniel. Homofobia. História e crítica de um preconceito, Tradução de
Guilherme João de Freitas Teixeira, 1a Edição, Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2000.
GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a
Proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988, Belo Horizonte: Ed.
Forum, 2007.
DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O Preconceito & a Justiça, 4ª Edição, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2009.
LÔBO, Paulo. Famílias, 1a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
PRADO, Marco Aurélio Máximo e JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia,
hierarquização e humilhação social. In: VENTURI, Gustavo e BOKANY, Vilma.
Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil, 1ª Ed., São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 2011.
RIOS, Roger Raupp. O conceito de homofobia na perspectiva dos direitos humanos e no
contexto dos estudos sobre preconceito e discriminação, in RIOS, Roger Raupp (org.). Em
defesa dos DIREITOS SEXUAIS, 1a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado,
2006.
RIOS, Roger Raupp, A Homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora
Revista dos Tribunais, 2001.
STRECK, Maria Luiza Schäfer. Direito Penal e Constituição. A Dupla Face da Proteção dos
Direitos Fundamentais, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2009.
VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica
do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, 2ª Edição, São
Paulo: Editora Método, 2013.
21
VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Minorias Sexuais e Ações Afirmativas. In: VIEIRA,
Tereza Rodrigues (org.). Minorias Sexuais. Direitos e Preconceitos, São Paulo, Ed. Consulex,
2012.
O que é ser travesti no Brasil?1
Daniela Andrade, ativista transexual,
militante transfeminista, diretora do
Fórum da Juventude LGBT Paulista,
membro da Comissão da Diversidade Sexual
da OAB – Osasco e do coletivo
Feminismo Sem Demagogia
Referências Bibliográficas:3
BENTO, Berenice. O que é transexualidade?, Editora Brasiliense, 2ª edição, 2008.
FOUCAULT, Michel de. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber, Editora Graal,
13ª edição, 1999.
2
Para mais informações, vide: www.transexualidade.com.br e www.alegriafalhada.blogspot.com.
3
As referências elencadas tratam-se de bibliografia consultada, não necessariamente referidas ao longo
do texto.
FOUCAULT, Michel de. História da Sexualidade II: O Uso dos Prazeres, Editora
Graal, 8ª edição, 1998.
FOUCAULT, Michel de. História da Sexualidade III: O Cuidado de Si. Editora Graal,
8ª edição, 2005.
GREGERSEN, Edgar. Práticas Sexuais – A História da Sexualidade Humana. Editora
Roca, 1983.
KULLICK, Don. Travesti – Prostituição, Sexo, Gênero e Cultura no Brasil. Editora
Fiocruz, 2008.
LEITE JR, Jorge. Nossos corpos também mudam – A invenção das categorias
“travesti” e “transexual” no discurso científico. Tese de Doutorado: PUC/SP, 2008.
PELÚCIO, Larissa. Abjeção e Desejo – Uma etnografia travesti sobre o modelo
preventivo de Aids, Editora FAPESP, 2009.
PINTO, Maria Jaqueline Coelho; BRUNS, Maria Alves. Vivência Transexual – O corpo
desvela seu drama, Editora Atomo, 2003.
PRECIADO, Beatriz. Manifiesto Contrasexual, Editora Anagrama, 2011.
RAMSEY, Gerald. Transexuais – Perguntas e Respostas. Editora GLS, 1998.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: Homossexualidade no Brasil
Colônia à Atualidade, Editora Record, 1986.
1
Luiz Mott2
1
Texto baseado na nona palestra do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do Parlamento.
O autor ministrou a aula no dia 03 de dezembro de 2013, nas dependências da Câmara Municipal de São
Paulo.
2
Antropólogo da Universidade Federal da Bahia e Decano do Movimento Homossexual Brasileiro -
luizmott@oi.com.br.
3
Gregersen, 1983. Vide também Vieira, 2013.
4
Masters & Johnson, 1981; Hite, 1982; Mott, 2012.
5
Herek, 1998.
6
Mott, 2007.
7
Borrillo, 2010.
2
subculturas e ao seu estilo de vida. 8 Três são suas principais formas de manifestação: a
homotransfobia cultural, individual e institucional. 9
Há mais de quatro mil anos, na matriz das civilizações da cultura ocidental e da
cultura sexual brasileira, a homossexualidade vem sendo rotulada por diversos nomes
atrozes que refletem o alto grau de reprovação associado a esta performance erótica:
abominação, crime contra a natureza, pecado nefando, abominável pecado de sodomia,
velhacaria, descaração, desvio, doença, viadagem, frescura, etc. E os homossexuais –
mais os do sexo masculino do que as lésbicas – foram condenados a diferentes penas de
morte: apedrejados, segundo a Lei Judaica; decapitados, por ordem do Imperador
Constantino a partir de 342 d.C.; enforcados, afogados ou queimados nas fogueiras da
Inquisição, durante a Idade Média e até nos tempos modernos; despedaçados na boca de
um canhão, como ocorreu com um índio Tibira no Maranhão colonial; queimados pelos
nazistas nos campos de concentração. Atualmente, no Brasil, a cada 26 horas, um gay,
travesti, transexual ou lésbica é brutalmente assassinado, vítima da homotransfobia,
fazendo de nosso país o campeão mundial de crimes homofóbicos: mais de três mil
assassinatos nas duas últimas décadas.10
Se de um lado as “causas” da homossexualidade e transexualidade são
nebulosas, assim como ocorre com as heterossexualidades, a ciência etno-histórica
indica que a homofobia tem suas raízes fincadas na tradição abraâmica, já que Abraão é
o patriarca das três religiões mais homofóbicas da história humana (judaísmo,
cristianismo e islamismo). Há mais de quatro mil anos os donos do poder perceberam o
caráter ameaçador, político e revolucionário das relações unissexuais, daí transformar o
sexo e amor entre pessoas do mesmo gênero em crime abominável e o mais detestável
de todos os pecados. Hoje, quando se ouve de norte a sul do Brasil esta sentença de
morte “Viado tem mais é que morrer!”, inconscientemente, está-se repetindo o milenar
veredicto atribuído à própria vontade divina: “o homem que dormir com outro homem,
como se fosse mulher, deve ser apedrejado!”.11
O preconceito homofóbico tem como justificativa não apenas o desperdício do
sêmen, criminalizado como uma espécie de controle perverso da natalidade, mas teme-
se também, mais que a peste, a ameaça desestabilizadora representada pelos amantes do
8
Mott, 2001.
9
Rios, 2007.
10
Vide “Quem a homotransfobia matou hoje” em http://homofobiamata.wordpress.com/; e Mott, 2002.
11
Mott, 2003.
3
intolerância fazem-se sentir mais fortes. Pais e mães repetem o refrão popular “prefiro
um filho morto do que viado!”, ou “antes uma filha puta do que sapatão!”;
V. Conspiração do silêncio: as principais instituições donas do poder, da família
às igrejas, da escola à polícia, estão unidas para impedir que os praticantes do amor
proibido divulguem a verdade: que é bom ser gay, que é gostoso o erotismo entre
pessoas do mesmo sexo, que uma pessoa transexual tem o direito de adaptar sua
anatomia, genitália e estilo de vida à sua identidade de gênero;
VI. Luta menor: intelectuais e políticos de esquerda relegaram ao status de “luta
secundária” a militância e estudos em favor dos direitos humanos das minorias sexuais.
Gays e lésbicas foram taxados de agentes da burguesia e o homoerotismo como sintoma
da decadência capitalista. Recentemente, nossos partidos socialistas entregaram de mão
beijada a Comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional aos fundamentalistas
assumidamente homofóbicos;
VII. Homofobia acadêmica: o homoerotismo e transgeneridade continuam ainda
tema nefando no meio acadêmico: professores e pesquisadores LGBT se veem forçados
a permanecer na gaveta a fim de não sofrerem discriminações funcionais. Muitos são os
docentes que ainda usam a cátedra para divulgar opiniões negativas em relação à
homossexualidade. Alunos e alunas homossexuais e transgêneros são discriminados por
seus professores;
VIII. Omissão governamental: as ações oficiais em favor dos direitos humanos
dos LGBT são ainda tímidas, datando de 1996 o primeiro documento do governo
federal a mencionar o termo "homossexual”. O Programa “Brasil sem Homofobia”, de
2004, não saiu do papel. Recentemente um “kit anti-homofobia” foi vetado pela
Presidência da República, por pressão dos fundamentalistas, apesar de ter sido aprovado
pela UNESCO e pelo Conselho Federal de Psicologia;
IX. Homofobia entre os defensores dos direitos humanos: humanistas, como
Hélio Bicudo, D. Aloísio Lorschaider, Rabino Henry Sobel, entre outros, celebrados
defensores dos direitos humanos, várias vezes divulgaram na mídia opiniões
discriminatórias contra os homossexuais, opondo-se radicalmente ao reconhecimento
legal da união civil e casamento entre pessoas do mesmo sexo;
X. Alienação dos LGBT: gays, lésbicas e transgêneros devem representar
quando menos 10% da população brasileira, mas destes, avaliamos que 90% continuam
presos dentro do armário, vivendo clandestinamente o que para todo ser humano é
motivo de grande satisfação, reconhecimento público e orgulho: o amor. Urge substituir
5
O que fazer?
Para que gays, lésbicas e transgêneros brasileiros deixem de ser tratados como
marginais e cidadãos de segunda categoria, urge a adoção das seguintes medidas:
1. Descriminalizar de vez a homo/transexualidade no mau trato que a polícia e a
justiça dão às minorias sexuais, aprovando-se leis que condenem a discriminação sexual
com o mesmo rigor que condenam o crime de racismo, aprovando-se integralmente o
PLC 122/06;
2. Erradicar os tabus religiosos que demonizam o amor entre pessoas do mesmo
sexo, propondo às diferentes igrejas a tolerância e a promoção de pastorais específicas
voltadas para as minorias sexuais;
3. Tratar a homofobia cultural que impede à sociedade heterossexista reconhecer
os direitos humanos e a diversidade das minorias sexuais, criando sentimentos de
tolerância dentro das famílias para que respeitem a livre orientação de seus filhos e
parentes homossexuais;
4. Quebrar o complô do silêncio anti-homossexual e divulgar informações
corretas e positivas a respeito do “amor que não ousava dizer o nome”, desmascarando
as falsas teorias que patologizam a homo/transexualidade, ampliando na academia as
pesquisas que resgatem a história e a dignidade das minorias sexuais;
5. Substituir a homo/transfobia reinante nos partidos políticos que tratam a
cidadania LGBT como luta menor, erradicando das entidades que defendem os direitos
humanos qualquer tipo de manifestação de preconceito que viole a dignidade e a
cidadania plena das minorias sexuais;
6. Incentivar os gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais a assumirem
publicamente sua identidade homossexual, lutando pela construção de uma sociedade
onde todos tenhamos reconhecidos nossos direitos humanos e nossa cidadania plena.
Referências Bibliográficas
BORRILLO, Daniel. História e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2010.
6
Introdução
O presente artigo é voltado à reflexão sobre os modos como a visibilidade e a
publicidade midiáticas de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) são
construídas por comunicadores em sua atividade profissional.
Ao longo de sua história, o Movimento LGBT vem ganhando espaço na mídia
brasileira e internacional ao compreender que sua ação na arena pública, por meio de
lutas e manifestações discursivas, tem na imprensa uma aliada ao se garantir uma
transmissão de informações sobre a vulnerabilidade e os preconceitos que a população
LGBT está submetida na contemporaneidade.
Logo, as LGBT entendem que a comunicação social se faz mais rica e
democrática, bem como instrumento para o pleno acesso aos direitos humanos, quando
fontes especializadas, personagens e comunicadores debatem e refletem a sexualidade e
as identidades de gêneros como elementos da diversidade de cada cidadão numa
sociedade que se quer mais justa, solidária e humana.
A análise, a seguir, demonstrará o modo como a mídia e as representações das
LGBT no Brasil estão intrinsecamente ligadas desde o momento da constituição de um
movimento pela dignidade humana daqueles que se entendem fora da lógica da
heteronormatividade e cisnormatividade, tanto na chamada Grande Mídia em seus
diferentes meios de comunicação de massa, até a constituição de uma Imprensa LGBT -
isto é - cujos protagonistas, discursos e públicos-alvo são as pessoas gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e transexuais.
1
O texto baseia-se na sétima palestra do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do
Parlamento. A aula, ministrada pelo autor, ocorreu no dia 26 de novembro de 2013, nas dependências da
Câmara Municipal de São Paulo.
2
Graduado em Jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atua como repórter da Revista
Junior e como Assistente Técnico Previdenciário na Assessoria de Relacionamento Institucional da São
Paulo Previdência, autarquia de previdência do Governo do Estado de São Paulo. E-mail:
geanog@yahoo.com.br.
2
antes da história de seu nascimento, é necessário ter uma breve visão dos discursos e da
construção da identidade gay no Brasil.
A história da homossexualidade no Brasil nos apresenta a construção de
conceitos e pré-conceitos que vão permear os discursos em torno da identidade sexual
homoerótica. E que serão alvo da mídia gay com o objetivo de serem desconstruídos ou
transformados.
Os textos produzidos, ao longo da história, vão questionar e avaliar sob sua
perspectiva o ser homossexual no Brasil, em suma, a identidade social do gay brasileiro.
Em conjunto com a construção ideológica de Brasil, os primeiros imaginários sobre a
homossexualidade serão produzidos, como aponta TREVISAN (2004). O Brasil é
idealizado como uma Sodoma, o paraíso tropical sem pecados, localidade de corpos
atraentes, atmosfera sexualizada e calor sensual. Onde os nativos possuem o “vício
natural da pederastia”, os indígenas eram o povo gentil, enquanto os negros exalavam
erotismo e acabavam submetidos às práticas sexuais com seus senhores. Como fruto
desses acontecimentos ligados à colonização e à escravidão, três instituições de poder
produziram discursos de controle da homossexualidade. A Igreja, a justiça e as ciências
médicas.
As três construíram a prática da homossexualidade como conceito de
sexualidade desviante, de forma a estabelecer a heteronormatividade como prática
socialmente e culturalmente aceita. A base do discurso religioso é a visão de pecado e
de um deus punitivo que resultou nas prisões e castigos da Inquisição e seus Tribunais
do Santo Ofício. Já o discurso da justiça é o desvio sócio-moral que pelo desejo das
elites homofóbicas resulta nos crimes de pederastia e confinamentos como penas legais.
Os discursos das ciências médicas tinham como argumento o desvio psíquico, a
doença que foi combatida pelo Estado higienista e pelos estudos psiquiátricos. Essas
três fontes de preconceito vão impulsionar a mobilização de gays e lésbicas pelos seus
direitos, pela liberação sexual e pelo fim do assujeitamento na sociedade. Em última
instância, na criação de uma imprensa própria que carregue a voz dos homossexuais.
No Brasil, essa imprensa gay nasce como desdobramento do período de censura
imposta pela ditadura dos governos militares (1964-1984) e com publicações que
buscam o exercício do jornalismo e da liberdade de expressão, a chamada imprensa
alternativa. Anteriormente à mesma, a homossexualidade será centralizada
midiaticamente somente em eventos carnavalescos ou em fatos policiais.
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Considerações finais
Sobre a mídia LBT é possível dizer que a história das publicações lhe reservou
pouco espaço mercadológico e poucas iniciativas pioneiras. Externamente, a imprensa
gay é vista como abarcadora de um leitor LGBT. Contudo, é produzida por jornalistas
gays que majoritariamente tem como sujeito universal o homossexual masculino.
Lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros surgem nas páginas das
publicações em textos sobre comportamento, são o “excêntrico” da comunidade.
O conceito do dinheiro rosa (pink money) torna excludente, machista, misógina e
produtora de corpos abjetos, a nossa mídia LGBT, visto que ela adota como leitor um
homossexual masculino, branco, heteronormativo e com poder aquisitivo (da classe
média). Os traços de uma nova imprensa de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais inaugura uma onda de desafios com a Internet e a capacidade de todo
sujeito-receptor ser um produtor de conteúdo e informação. Cabe avaliar, de agora em
diante, se a representação e a visibilidade efetuada pelos próprios sujeitos minoritários
serão capazes de abarcar as críticas, demandas e necessidades de um movimento mais
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Referências Bibliográficas
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liberalismo”. In: CANELA, G. (org.). Políticas públicas sociais e os desafios para o
jornalismo. ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância. São Paulo: Cortez
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