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ESCOLA DO

PARLAMENTO

CADERNOS DA
ESCOLA DO PARLAMENTO

V - Igualdade de Gênero II
O Curso Igualdade de Gênero II, assim como o Curso Igualdade de Gênero,
teve como objetivo geral abordar conceitos, retomar fatos históricos e discutir políticas
públicas relacionadas à temática da igualdade de gênero, só que, nesse caso, tendo como
norte as demandas do movimento LGBT. Estruturado em 10 palestras, o curso ocorreu
entre os meses de novembro e dezembro de 2013. A formatação do curso por parte da
Escola contou com a colaboração de dois militantes independentes, Marília Pacios e
Gean Gonçalves, os quais contribuíram com artigos para esse trabalho.
Este Caderno conta com oito artigos relativos a esse curso, os quais refletem
sobre temas como: perspectiva de gênero; trajetória histórica do movimento LGBT; a
laicidade do Estado; participação e representação política LGBT; os direitos LGBT;
mídia e diversidade; transexualidade e travestilidade; e, por fim, violência contra a
população LGBT.

 
1  

O que é Perspectiva de Gênero?1


Dário Ferreira Sousa Neto2

Eu não sou eu nem sou o outro,


Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro, 1914

Introdução
As discussões em torno da igualdade de Gênero têm deflagrado diversas
reflexões que nos permitem compreender e problematizar a cultura Ocidental fundada
no Patriarcado. Desse modo, o recente movimento LGBT, fruto das discussões dos
papéis sociais pré-definidos entre homens e mulheres que o movimento feminista há
mais de dois séculos acumulou, pôde desenvolver e alcançar uma emancipação
significativa, retomando diversos argumentos e reflexões das diferentes ondas
feministas que surgiram desde o final do século XVIII. Segundo relata Marsha Freeman
(2012), em sua obra “The UN Convention on the Elimination of All Forms of
Discrimination Against Women: a Commentary,” o termo perspectiva de gênero foi
cunhado pela primeira vez na IV Conferência sobre a Mulher, realizada em Pequim,
1995. Sua utilização torna-se instrumento estratégico para promover a igualdade entre
mulheres e homens. Como categoria analítica, permite-nos refletir sobre as construções
culturais e sociais, cujos valores determinam o que é ser masculino ou feminino. Tais
reflexões desnaturalizam essas categorias e evidenciam nelas as relações de poder que
fixam identidades e embasam relações de privilégios ao criar uma zona imensa de
exclusão não apenas nas relações entre homens e mulheres, mas também na definição de
normalidade que legitima a heterossexualidade, patologizando outras possibilidades de
vivência dos corpos.
Ao examinar o impacto do gênero nas diferentes oportunidades das pessoas, nos
papéis que desempenham socialmente, bem como as interações nos campos
econômicos, da sexualidade, do trabalho, da vida familiar, colocam-se em evidência as
                                                                                                                       
1
 Texto baseado na primeira aula do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do Parlamento.
A aula, ministrada pelo autor, ocorreu no dia 05 de dezembro de 2013, nas dependências da Câmara
Municipal de São Paulo.
2  
Mestre em Literatura Brasileira pela USP e Doutorando no Programa de Literatura Brasileira da
FFLCH/USP e membro do Conselho Estadual LGBT de São Paulo.
 
2  

relações hierárquicas marcadas nas performances corporais que privilegiam um modo


em detrimento de outras possibilidades presentes na sociedade. A normalização tem
como objetivo a homogeneidade e com ela, a construção da garantia de "direitos"
restritos aos que se adéquam a esse campo homogêneo. Para tanto, a partir do
homogêneo, investe-se no discurso da naturalização para fazer dessas diferenças
evidenciadas nesses investimentos categorias úteis nas relações de poder. É na
contramão desse discurso naturalizador que os movimentos feministas e, associado a
eles, os movimentos LGBT, se constroem e marcam seu lugar discursivo como
mecanismo de desnaturalização e de enfrentamento aos efeitos dessa cultura do
privilégio.

A Sigla e o Movimento LGBT


Em sua obra “Na trilha do Arco-Íris: Do Movimento Homossexual ao LGBT”,
2009, Julio Assis Simões e Regina Facchini apresentam-nos o surgimento e as
diferentes definições em siglas do Movimento LGBT Brasileiro. Identificando-se como
Movimento Homossexual Brasileiro - MHB -, o movimento utilizou-se dessa sigla até
meados de 1993, quando as mulheres lésbicas, por conta das práticas machistas
presentes no movimento, passou a se identificar não mais como homossexuais, mas
como lésbicas. No Encontro Nacional do Movimento, surgiu o termo travesti para
definir vivências corporais além das práticas do desejo. Em 2005, com o surgimento de
diferentes redes nacionais, cujo objetivo foi o de demandar novas compreensões e
determinar novas experiências, passa-se a utilizar os termos "bissexuais" e
"transexuais". Na I Conferência Nacional GLBT do Brasil, convocada pelo Governo
Federal em 2008, o movimento presente na Plenária Final definiu o uso da sigla como
LGBT, podendo incorporar outras letras na sequência destas. (SIMÕES, 2009, p. 14)
Para muitas pessoas, sobretudo jornalistas, a variação das siglas contribui para a
confusão e não compreensão do que seja o movimento. Vale ressaltar dois pontos:
primeiro, o fato de ser um movimento muito novo - não tem meio século de existência -
a sopa de letrinhas é comum à medida que novas demandas políticas e culturais
ressurgem e põem em cena novos sujeitos tratados até então como anormais. O segundo
ponto é que a crítica a essa variabilidade da sigla ignora que, em qualquer área do saber,
na medida em que se busca compreender e construir, as variações nominais de suas
terminologias tornam-se um processo comum. Por exemplo, no campo da Literatura,
3  

definições do que seja crítica literária, ficção, literatura, narrativa, entre outros, sofrem
variações conforme as diferentes abordagens, o que, muitas vezes, exige do pesquisador
determinar no uso dos termos qual seja o campo teórico a que ele se refere para que se
faça compreensível o uso desses conceitos.
O que importa nessas variações da sigla é o fato de que, independente de seus
conflitos internos a motivarem seus surgimentos, elas evidenciam e desconstroem a
lógica naturalizante acima descrita dos afetos e das sexualidades. Atualmente, define-se
entre várias teorias a diferenciação entre orientação sexual e identidade de gênero.
Fernando Luiz Cardoso, em seu texto “O conceito de orientação sexual na encruzilhada
entre sexo, gênero e motricidade”, apresenta-nos uma interessante discussão a partir de
teóricos como John Money - um dos primeiros a determinar a diferenciação entre sexo,
gênero e orientação sexual -, M. Diamond, S. Le Vay e R. Stoller - cujos trabalhos, a
partir da definição de Money, revisam, alteram e/ou ampliam tais conceitos para
compreender outras possibilidades no campo dos desejos e afetos. Conforme Cardoso, o
conceito de orientação sexual está relacionado ao campo dos desejos do indivíduo,
considerando as suas fantasias sexuais como critério mais eficiente para detectar qual
seja: se para o sexo oposto (heterossexual), se para o mesmo sexo (homossexual), se
para ambos (bissexual) ou se para nenhum (assexual).
Miriam Grossi, em seu artigo “Identidade de Gênero e Sexualidade”, baseando-
se nos estudos de Stoller, da Antropologia Feminista, Joan Scott entre outros, nos
apresenta de modo simplificado e útil o conceito de identidade de gênero como sendo
uma categoria pertinente para pensar o lugar do indivíduo no interior de uma cultura
determinada interseccionada pelas categorias de sexo (que ilustra a diferença
biológica entre homens e mulheres), gênero, como conceito que remete à construção
cultural coletiva dos atributos de masculinidade e feminilidade e sexualidade como
conceito contemporâneo para se referir aos campos das práticas e sentimentos ligados
às atividades sexuais dos indivíduos. (GROSSI, 1998, p. 12).

Breve Resumo dos Movimentos Feministas


Toda a discussão em torno dessas definições sobre orientação sexual e
identidade de gênero, bem como o surgimento do conceito perspectiva de gênero,
somente foi possível a partir do acúmulo teórico e prático de milhares de feministas, em
sua maioria mulheres, as quais se debruçaram sobre o tema, denunciaram as diversas
4  

formas da violência do Patriarcado e cuja herança nos chegou como instrumentos de


saber para desestabilizar o lugar de poder do modelo da masculinidade hegemônica.
Desse modo, importa-nos aqui fazer uma breve retomada desses movimentos a partir de
um resumo histórico para compreender o legado que nos deixou na reflexão sobre
gênero, identidade de gênero e orientação sexual.
Em sua dissertação, Martha Giudice Narvaz faz um apanhado histórico do que é
definido como as três ondas do movimento feminista. Segundo Narvaz, a primeira onda
é marcada como surgimento pela luta das mulheres em busca de igualdade de direitos
civis, políticos e educativos, tendo como uma das bandeiras centrais a luta pelo sufrágio
universal, sobretudo na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos. É nesse contexto
que dois nomes sobressaem historicamente como referência desta luta: Olympe de
Gouge na França, autora da Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne que,
por conta de seus escritos, foi guilhotinada pelos jacobinos em 1793; Mary
Wollstonecraft, na Inglaterra, autora de Uma Defesa dos Direitos da Mulher, escrito em
1790, cuja obra influenciou profundamente a primeira feminista brasileira, Nísia
Floresta Brasileira Augusta, que fez uma tradução livre da obra inglesa com o título
Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, publicada em 1832. Também na
Inglaterra, Harriet Taylor e seu marido John Stuart Mill tiveram relevante contribuição
no movimento sufragista e pela luta dos direitos relativos ao trabalho como forma de
garantir a independência política da mulher, por meio da independência econômica. Em
1869, Stuart Mill publica o livro A sujeição das mulheres, demolindo as teses correntes
sobre a inferioridade da mulher em relação ao homem. No contexto dessa primeira
onda, influenciadas fortemente pelo marxismo e mais especificamente pela obra de
Friederich Engels, A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, várias
feministas, entendendo a luta pelos direitos iguais entre homens e mulheres como um
reivindicação liberal-burguesa, aprofundaram o debate sobre a opressão a mulheres,
relacionando-a à origem da propriedade privada, entre elas Clara Zetkin e Alessandra
Kollontai.
Nos quarenta anos posteriores à I Guerra Mundial, isto é, entre os anos de 1920 e
1960, e como efeito dos regimes totalitários do Nazismo e do Comunismo Stalinista,
evidencia-se uma crise nos movimentos feministas. Nesse contexto, há uma busca
parcialmente crítica dessa primeira onda por duas grandes teóricas do século XX:
Virgínia Woolf, em dois artigos, “Um teto todo seu” de 1928 e “Os três Guinéus” de
5  

1938, nos quais reflete sobre as conquistas realizadas pelas mulheres e faz indagações
de seus limites sociais nessas conquistas, introduzindo a temática das diferenças para
além da igualdade de direitos. A partir desses questionamentos, Woolf propõe a
necessidade de as mulheres reivindicarem a diferença entre seu sistema de valores
éticos, culturais e econômicos do sistema dos homens, o qual se mostrou desastroso.
Simone de Beauvoir, em 1949, publica sua obra O Segundo Sexo, cuja leitura
existencialista lança a tese provocatória do porquê de a mulher viver historicamente
subordinada ao homem em todos os planos de convivências social. Descartando com
fortes argumentos as respostas liberais, marxistas e psicanalista, Beauvoir afirma que a
mulher, na sua condição de subordinação ao homem, é vítima e cúmplice dessa
dominação. Sugere a saída dessa dominação parcialmente em termos individuais e
totalmente em termos coletivos, resultando de uma luta coletiva que estabeleça um novo
pacto, podendo, após, instaurar uma relação harmônica e igualitária com os homens.
A segunda onda feminista ressurge nas décadas de 1960 e 1970, em especial nos
Estados Unidos e na França. Conforme observa Narvaz:

“As feministas americanas enfatizavam a denúncia da opressão


masculina e a busca da igualdade, enquanto as francesas postulavam
a necessidade de serem valorizadas as diferenças entre homens e
mulheres, dando visibilidade, principalmente, à especificidade da
experiência feminina, geralmente negligenciada. As feministas
francesas foram influenciadas pelo pensamento pós-estruturalista que
predominava na França, especialmente pelo pensamento de Michel
Foucault e de Jacques Derrida” (NARVAZ, 2005, p. 59).

O slogan famoso que marca essa segunda onda é "O pessoal é político", cunhada
pela autora feminista Carol Hanish. Na área anglo-estadunidense, o movimento é
marcado por uma significativa diversificação teórica do pensamento feminista com
recorte multirracial. Para além da equiparação de direitos, este movimento marca a
diferença tanto por um viés psicanalista, como alternativa às teses consideradas
antifeministas de Freud, como por um viés radical, apontando a necessidade de
separação em relação aos homens. É nesse contexto que se forja a diferença entre sexo e
gênero, entendendo o primeiro como diferença biológica entre homens e mulheres e o
segundo a indicar os papéis sociais impostos pelo domínio masculino ou patriarcal.
A terceira onda, mais recente, revisa várias categorias forjadas pelas teóricas da
fase anterior, consideradas fundamentais, e as articulam entre si para desconstruir as
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teorias essencialistas e totalizantes das fases anteriores. Iniciada na década de 1990


como resposta às diversas falhas conceituais apresentadas na anterior, tem também uma
função "retaliativa" a iniciativas e movimentos criados pela segunda onda. Visa,
portanto, desafiar ou evitar estas abordagens marcadas pelas experiências de mulheres
brancas e de classe média alta. Para tanto, desenvolvem uma interpretação pós-
estruturalista do gênero e da sexualidade como pano de fundo de sua ideologia.
Conforme registra Nicola Abbagnano em seu Dicionário de Filosofia, as
feministas da terceira onda frequentemente enfatizam a "micropolítica" e desafiam os
paradigmas da segunda onda sobre o que é e o que não é bom para as mulheres. A
terceira onda teve sua origem no meio da década de 1980; líderes feministas com raízes
na segunda onda, como Gloria Anzaldua, Bell Hooks, Pedro Molina Ogeda, Cherrie
Moraga, Audre Lorde, Maxine Hong Kingston, e diversas outras feministas negras,
procuraram negociar um espaço dentro da esfera feminista para a consideração de
subjetividades relacionadas à raça. A terceira onda do feminismo também apresenta
debates internos. O chamado feminismo da diferença, cujo importante expoente, a
psicóloga Carol Gillian, defende que há importantes diferenças entre os sexos, enquanto
outras vertentes creem não haver diferenças inerentes entre homens e mulheres,
defendendo que os papéis atribuídos a cada gênero instauram socialmente a diferença. É
nessa leva toda que surgem termos como identidade de gênero, relações de gênero,
orientação sexual, estudos culturais e teoria queer.

Para Concluir: A Teoria Queer


Em seu texto “Definições em Trânsito: A Teoria Queer”, Leandro Colling data
o surgimento desta teoria na década de 1980, sobretudo nos Estados Unidos, por uma
série de pesquisadores e ativistas. O termo queer é apropriado das práticas de
xingamento a homossexuais, sobretudo na Inglaterra, cuja tradução literal para o
português é estranho, excêntrico, ridículo. A melhor equivalência semântica para o
português brasileiro é bicha, baitola, veado, boiola, fresco, frango, dependendo da
região. Apropriar-se deste termo tem como objetivo positivá-lo, fazendo com que,
conforme definição de Butler, adquira "...todo o seu poder precisamente através da
invocação reiterada que o relaciona com acusações, patologias e insultos” (Butler,
2002, p. 58). Para Colling, o uso do termo tem como objetivo forjar discursivamente
uma prática de vida que se contraponha às normas socialmente aceitas. Para tanto, seu
7  

uso reside na crítica ao que se convencionou como heteronormatividade homofóbica,


isto é, o modelo naturalizante que determina a heterossexualidade como sendo a única
correta e saudável. Citando Butler, Colling desenvolve seu conceito de
performatividade, no qual o gênero resulta de um regime que regula as desigualdades
por meio da divisão e da hierarquização coerciva.
Judith Butler, filósofa pós-estruturalista e professora de Retórica e Literatura
Comparativa no Departamento de Crítica Literária, na Universidade da Califórnia em
Berkeley, utiliza-se do conceito de John Austin, filósofo da linguagem e precursor da
Pragmática, sobre performatividade, no qual, em sua obra “Quando Dizer é Fazer”,
mostra a função performativa (do inglês perform - ação), cujos enunciados, ao invés de
retratar uma pretensa realidade, tem função de criar realidade e determinar ações a partir
dos discursos. Para Butler, os discursos nas relações de gênero tem função performativa,
pois, ao enunciarem, forjam realidades sobre os corpos e, a partir delas, os naturalizam,
estabelecendo normas e engendrando relações de poder. Conforme Colling, quem ousa
se comportar fora dessas normas sofre pesadas consequências.
A partir disso, Colling, embora entenda que o movimento LGBT e a teoria queer
unem-se a partir de vários pontos em comum, indica que há sempre tensões entre eles,
sobretudo estratégicas, visto que diversos ativistas do movimento esforçam-se no
combate da homofobia por meio da equiparação de normalidade com a
heterossexualidade. Citando Joshua Gamson, ele afirma que a política queer toma
postura de não assimilação, opondo-se aos objetivos inclusivos do movimento por
direitos humanos gays dominantes. Nessa perspectiva, outro conceito importante é o de
camp, isto é, a predileção de indivíduos pelo artifício e o exagero, conforme define
Susan Sontag. A autora considera a androgenia como uma das melhores imagens deste
conceito. Segundo Sontag, citada por Colling:

“Camp é também uma qualidade que pode ser encontrada nos objetos
e no comportamento das pessoas. Há filmes, roupas, móveis, canções
populares, romances, pessoas, edifícios campy... Essa distinção é
importante. É verdade que o gosto camp tem o poder de transformar a
experiência. Mas nem tudo pode ser visto como camp. Nem tudo está
nos olhos de quem vê” (Sontag, 1987, p. 320 apud Colling, 2007).

Todas essas abordagens históricas, teóricas, conceituais e metodológicas, no


debate sobre perspectiva de gênero, servem para nos fazer pensar o lugar de sujeitos, os
quais, por mais que hajam esforços dos movimentos em garantir direitos equânimes em
8  

uma sociedade patriarcal e capitalista, estão sempre fora das terminologias forjadas. Na
medida em que a produção midiática, o mercado, o Governo, os Partidos e outras
instituições incorporam, por meio de políticas e representações, esses sujeitos
historicamente alijados de seus direitos, em resposta, os performatizam, naturalizando,
normalizando e, portanto, marginalizando outras que não se enquadram nesses moldes
modernos. Desse modo, o campo teórico de debate sobre gênero e sexualidade torna-se
um campo minado, no qual, cada passo que se dê, novas minas explodem, evidenciando
seus limites e suas práticas conformistas com a lógica normativa dominante. Para tanto,
refletir sobre a perspectiva de gênero é se colocar de forma aberta, reconhecendo que as
palavras operam de um lado as implosões das normas anteriores, mas também engessam
outras possibilidades que fogem aos substantivos e adjetivos. Debater e refletir sobre
perspectiva de gênero é se propor a um diálogo cada vez mais aberto, considerando que,
em cada avanço, novas possibilidades se abrem para repensar a constituição dos sujeitos
como seres dotados de direitos. Pois, do contrário, arrisca-se a se prender nas mesmas
armadilhas das quais se busca libertar.

Referências Bibliográficas
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Editora Martins Fontes,
2007.
BUTLER, Judith. Críticamente subversiva. In: JIMÉNEZ, Rafael M. Mérida.
Sexualidades transgresoras. Una antología de estudios queer. Barcelona: Icária
editorial, 2002, p. 55 a 81.
CARDOSO, Fernando Luiz. O conceito de orientação sexual na encruzilhada entre
sexo, gênero e motricidade. In: Interaramerican Journal Psichology. v.42, n.1, Porto
Alegre, abr. 2008.
COLLING, Leandro. “Teoria Queer”. In: Mais definições em trânsito. Maria Cândida
Ferreira de Almeida (org.). Salvador, 2007. Disponível em:
http://www.cult.ufba.br/maisdefinicoes/TEORIAQUEER.pdf
CRUZ, Paula Loureiro da. Alexandra Kollontai: Feminismo e Socialismo, uma
abordagem crítica do Direito. São Paulo: Editora Alfa e Ômega, 2012. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0034-
96902008000100008&script=sci_arttext
9  

FREEMAN, Marsha A.; Chinkin, Christine; Rudolf, Beate. (orgs.). The UN Convention
on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women: A Commentary.
Oxford University Press. 2012. pp. 792
GROSSI, Miriam Pillar. “Identidade de Gênero e Sexualidade”. Antropologia em
Primeira Mão. Florianópolis, p. 1-18, 1998. (versão revisada - 2010). Disponível em:
http://www.miriamgrossi.cfh.prof.ufsc.br/pdf/identidade_genero_revisado.pdf
NARVAZ, Martha Giudice. Submissão e Resistência: explodindo o discurso patriarcal
da dominação masculina. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Instituto de
Psicologia - UFRGS, 2005.
SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics
of history. New York, Columbia University Press, 1989.
SIMÕES, Julio e FACHINI, Regina. Na Trilha do Arco Íris: Do Movimento
Homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2009.
1

A homossexualidade e o Movimento LGBT no Brasil1


Marília Pacios

Homossexualidade no Brasil
Vivemos em um país que recebe a maior Parada do Orgulho LGBT do mundo,
que tem grandes ídolos homossexuais, que lutou fervorosamente e venceu um Regime
Militar que durante anos suprimiu os direitos e as liberdades individuais. Tem-se direito
de greve garantido, direitos trabalhistas, um sem número de manifestações religiosas e
uma história maravilhosa de miscigenação de povos. O maior e mais copiado programa
de combate e prevenção à Aids, que já quebrou patentes e barateou diversos
medicamentos do coquetel. Um país enorme em tamanho e diversidade. Um país de
muitos, mas para nem tantos assim.
Para tratar dos temas indicados no título eu sugiro uma análise da resposta da
sociedade em relação a comportamentos não heterossexuais e a identidades de gênero
não binárias, pois seria demasiado cansativo e desnecessário estabelecer, por exemplo,
onde e quando a homossexualidade surgiu, sendo que é sabido que existe desde sempre.
Além disso, ao analisar o assunto através dessa perspectiva, fica mais fácil entender
qual o cenário que ascendeu o movimento LGBT enquanto instituição organizada, já
que muitas vezes esse mesmo movimento social nasce em resposta às demandas da
população.
Para falar das percepções que a sociedade teve em relação a comportamentos
não-heterossexuais no Brasil, proponho fazer uma pequena divisão da história em três
períodos em que foram usados diferentes argumentos para justificar a discriminação
contra os homossexuais, a saber: a época que a igreja e o Estado estavam intimamente
ligados; o período que a ciência médica teve seu auge, com os higienistas; e a
atualidade. É notório que o próprio conceito de homofobia foi se moldando ao longo do
tempo, bem como as manifestações de intolerância foram paulatinamente migrando de
uma agressividade irracional e pura para uma sutileza e cordialidade tolerantes. Não que
hoje estejamos livres das manifestações agressivas, mas, atualmente, a agressão homo-
transfóbica é antes uma manifestação de ódio baseada em argumentos moralizantes e
purificadores, do que uma agressão sem motivo nenhum.

1
O texto baseia-se na segunda palestra do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do
Parlamento. A aula, ministrada pela autora, ocorreu no dia 07 de novembro de 2013, nas dependências da
Câmara Municipal de São Paulo.
2

Para ilustrar o espírito do primeiro período acima apontado começo citando um


trecho do livro de Daniel Borrillo, que diz “de acordo com o Código Teodosiano
(Teodósio II, 438), a atitude passiva, associada necessariamente à feminilidade,
implicava uma ameaça para o vigor e a sobrevivência de Roma” (BORRILLO, 2010).
Ou seja, é desde - e grande parte devido a ela - essa época que a noção de dever social
esteve associada a práticas heterossexuais, pois é só com esse tipo de relação que se
pode polarizar completamente os gêneros, associando virilidade e bravura aos homens
(ou àqueles que sentem-se atraídos por mulheres) e complacência e inferioridade às
mulheres (ou àqueles que se atraem por homens) e, com isso, garantir a perpetuação da
espécie humana.
Durante esse período, encontramos inúmeros relatos de tortura e morte de
homossexuais, especialmente durante o tempo em que o tribunal inquisitorial esteve
instaurado no Brasil. João Silvério Trevisan, em seu livro “Devassos no Paraíso”,
escreve sobre esse tema:

“Para os crimes de sodomia, geralmente bastava uma testemunha de


acusação – considerando-se que a punição desses casos era ‘de
primeira necessidade numa República Cristã’, como argumentava um
promotor inquisitorial. Caso ocorressem dúvidas frente ao processo,
o inquisidor podia apelar para tortura, a fim de definir os termos da
confissão. E também meter o réu na prisão, antes mesmo do
julgamento, se houvesse suspeita de fuga da cidade. Só após é que a
mesa Inquisitorial emitia a sentença, (...) As punições da Inquisição
brasileira foram as mais variadas.” (TREVISAN, 2007).

A Santa Inquisição foi, sim, uma das maiores responsáveis pelo julgamento e
execução dos “sodomitas” (palavra empregada para definir os praticantes de relações
homossexuais, que remete à cidade de Sodoma, que foi dizimada por Deus); porém, o
tribunal só podia agir com plenos poderes, pois foi durante esse período que Igreja e
Estado se misturavam, formando uma só força que comandava a ordem pública.
A tradição judaico-cristã esteve - e ainda está - baseada em diversos opostos, tais
como o bem e o mal, o homem e a mulher, o certo e o errado, o normal e o anormal. O
bom, o certo e o normal estão assentados no conceito bíblico de família que define que
esta é constituída pelo homem e pela mulher, tendo por trás a máxima de “frutificai e
multiplicai-vos” (Gênesis 9:7). Até aqui podemos concluir que a prática sexual entre
pessoas do mesmo sexo não somente era vista como algo errado e ruim como também o
“sodomita” não era capaz de seguir a regra básica: não se nasciam frutos de uma relação
3

entre dois homens, nem entre duas mulheres.


Além da perpetuação da espécie, o homossexual ainda oferecia outro risco:
representava uma ruptura da ordem social vigente, já que a Bíblia era o maior norte da
sociedade, bem como a Igreja era um braço do Estado e, dentro da doutrina eclesiástica,
a homossexualidade não é permitida. Sendo assim, o “sodomita” ameaçava o maior
instrumento de dominação daquela época, que era a verdade bíblica incontestável.
Borrillo exemplifica essa situação dizendo que “as dicotomias ‘macho/fêmea’,
‘ativo/passivo’ definiam os papéis sociais, o acesso ao poder e a posição de cada
indivíduo segundo seu gênero e sua classe.” (BORRILLO, 2010)
As relações sociais de dominação continuaram valendo mesmo após o término
do tribunal da Santa Inquisição e o abrandamento da íntima relação entre clero e poder
público. O que aconteceu foi que, com o advento de novas doutrinas, mais pragmáticas
e liberais, impulsionadas principalmente pela Revolução Francesa, o pensamento homo-
transfóbico também começou a migrar de uma total cegueira para um pensamento mais
cientificamente teorizado (TREVISAN, 2007). Entramos, aqui, no segundo período
inicialmente citado: a era liderada pelo pensamento discriminatório higienista.
Em linhas gerais, o movimento higienista no Brasil surgiu como uma reação à
enorme quantidade de doenças que emergiram em consequência da urbanização mal
planejada que causou superlotação dos centros das cidades e, assim, facilitou, e muito, a
proliferação de doenças entre os cidadãos. Com esse cenário, fez-se necessário adotar
medidas que visavam o bem estar da população, para que ela crescesse com saúde e,
ainda aqui, respeitando os ideais de moralidade e normalidade, que mesmo com o fim
do período de opressão católica inquisitorial, ainda estavam muito bem arraigados na
sociedade.
Se durante a dominação cristã a discriminação era quase toda baseada em noções
morais de certo e errado, com a ciência, essa dualidade foi paulatinamente migrando
para o que era considerado normal ou anormal, agora caminhando de acordo com uma
lógica científica que passou a impor um processo de patologização da
homossexualidade, tida como comportamento sexual desviante e que deveria ser
estudado para poder ser, então, tratado.

“A busca das causas da homossexualidade constitui, por si só, uma


forma de homofobia (Dorais, 1994), já que ela se baseia no
preconceito que pressupõe a existência de uma sexualidade normal,
acabada e completa, a saber: a heterossexualidade monogâmica em
4

função da qual se deve interpretar e julgar todas as outras


sexualidades.” (BORRILLO, 2010)

Essa passagem ilustra bem o cenário que esteve por trás da fase em que a ciência
passou a entrar na cena e deu lugar a uma discriminação mais sutil, que visava, através
do processo de entendimento e cura, abraçar o homossexual e inseri-lo de uma forma
perversa e preconceituosa na sociedade, fazendo com que surgisse uma chamada
“subcidadania homossexual” (PRADO e MACHADO, 2008).
Este conceito está ligado, entre outras coisas, à criação de um spot homossexual
na sociedade, um lugar onde o cidadão LGBT não ofereceria perigo à ordem social, um
gueto para que os portadores desse desvio comportamental pudessem ficar sem que aos
cidadãos de bem fosse oferecido algum perigo de ordem moral, mas que também não
lhes fossem negados os acalentos do Estado. De criminoso, o homossexual passa aqui a
ser doente, novamente abrindo uma faca de dois gumes: por um lado, as práticas não-
heterossexuais são descriminalizadas, por outro, “a tendência homossexual passou então
a ser estudada a luz da ciência, verificando-se que se tratava de uma anomalia”
(TREVISAN, 2007).
Nota-se nesse ponto que, não só há uma mudança de abordagem das elites
dominantes em relação aos homossexuais, como há também uma série de outros passos
que foram dados, tais como o surgimento de uma nova identidade sexual, mesmo que
anômala: o “homossexualismo”. O sodomita dá lugar ao homossexual, o tratamento
substitui a punição e o clero abre espaço aos médicos. De certa forma, mesmo que de
um jeito preconceituoso, o cidadão LGBT está começando a se inserir na sociedade,
somente esperando uma janela de oportunidade para se lançar de vez no cenário
político, como veremos um pouco mais adiante.
Algo que podemos ressaltar, também, é que raros eram os elementos que
associavam as relações homossexuais ao carinho, afeto e bem querer, dado que se
tratava única e exclusivamente de uma anomalia e como tal, era uma prática desviante.
Daqui podemos tirar uma conclusão: a família bíblica nunca esteve sob nenhum
questionamento, só era possível construir amor e solidez dentro de um núcleo familiar
com um homem, uma mulher e seus filhos. Apesar de não se punirem os “seres
anômalos”, tal qual se fazia no período inquisitorial, quase todos os preceitos da
sociedade heterossexista, machista e falocêntrica estavam presentes e, de uma forma
mais indireta, ainda serviam para justificar e pautar o preconceito homofóbico.
5

Seguimos o curso histórico e nos deparamos com o período do Regime Militar,


que representou, na história social brasileira, um grande combustível para a organização
da sociedade civil que, a priori, visava combater o regime de total desrespeito à
democracia e aos direitos humanos, mas que também serviu para que o movimento
LGBT surgisse como organização concreta, com propostas e questões políticas mais
consolidadas. Nesse ponto da análise, vou usar o conceito de “novos movimentos
sociais”, presente no livro de Prado e Machado, para enquadrar o movimento LGBT que
surgiu na década de 1970 no Brasil. Para os autores, “o conceito de movimentos sociais
toma força nos anos 1970, com o esgotamento da noção de classe social e da
insuficiência do marxismo tradicional em descrever o universo das lutas sociais por
justiça.” (PRADO e MACHADO, 2008).
Dentro desse contexto, temos ainda que “os novos movimentos sociais seriam
aqueles que se organizaram principalmente após a Segunda Guerra Mundial e que
estariam associados a demandas por reconhecimento ou contra opressões simbólicas.”
(PRADO e MACHADO, 2008). Entende-se aqui por opressões simbólicas, também, o
direito à diversidade, bem como o respeito e a proteção do Estado a essa mesma
diversidade que agora não mais surge no cenário político como um objeto de estudo e
tratamento, mas nasce como atriz política na conquista de direitos.
O cenário social mudou e, seguindo a lógica que pode ser observada até agora,
também muda a forma de se manifestar o preconceito homofóbico. Nesse ponto, não
temos mais uma briga para que haja uma aceitação por parte da sociedade de que o
cidadão homossexual existe independente de qual seja a causa dessa característica - e
que a mesma não é passível de tratamento; temos um embate institucional nascente, que
visa à inserção dessa parcela da população que está saindo definitivamente da sua
invisibilidade para entrar de vez no cenário político. O campo de luta se transfere para
que exista uma equiparação, uma igualdade de direitos, de acesso, de proteção, de
reconhecimento e de instrumentos jurídico-legais para essa parcela da população,
“transformando a opressão social que incidia sobre seus comportamentos sexuais em
tema de debate público.” (PRADO e MACHADO, 2008).
Estávamos em um cenário em que analisar as causas da homossexualidade era
mais importante do que buscar ferramentas para se combater o preconceito homofóbico
a que essa parte da população estava sujeita. Migramos para uma era em que a
invisibilidade não é mais uma condição sine qua non para o cidadão LGBT; uma era de
reconquista de direitos que foram tirados das pessoas durante o período do regime e de
6

conquista do movimento homossexual, que finalmente aparece como grupo organizado


e que passa a lutar para ser reconhecido e respeitado como tal.
Isso posto, temos que “gays, lésbicas, travestis, transexuais, entre outros (...)
passam a reivindicar equivalência de direitos sociais e/ou pela desconstrução de direitos
estabelecidos” (PRADO e MACHADO, 2008). Novas lógicas de discriminação são
construídas e muitos outros jogos políticos estabelecidos. Surge aqui, toda uma nova
forma de homofobia, mais sutil, porém não menos cruel do que as vistas até o momento.
Segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia, em 2012, foram noticiados 338
assassinatos cometidos contra LGBTs, isso dos casos documentados, pois sabemos que
grande parte deles não o são. Esse número é extremamente alarmante e rende ao Brasil
o primeiro lugar na listagem de países que mais matam LGBTs em seu território. O que
é curioso se pensarmos que a cidade do Rio de Janeiro foi escolhida como o destino gay
mais charmoso do mundo e a cidade de São Paulo sedia a maior Parada do Orgulho
Gay do planeta. Dois cenários completamente opostos dentro do nosso país.

“a homofobia constitui uma ameaça aos valores democráticos de


compreensão e respeito por outrem, no sentido em que ela promove a
desigualdade dos indivíduos em função dos seus simples desejos,
incentiva a rigidez dos gêneros e favorece a hostilidade contra o
outro. Enquanto problema social, a homofobia deve ser considerada
como um delito suscetível de sanção jurídica; todavia, a dimensão
repressora é destituída de sentido se ela não for acompanhada por
uma ação preventiva” (BORRILLO, 2010).

Destaquei as expressões acima, pois julgo serem questões centrais para o melhor
entendimento e análise da sociedade atual, e de como se ela manifesta e reage ao
preconceito homofóbico.
A homofobia em sua expressão atual é muito mais sutil e acontece cada vez mais
dentro do campo político, nas casas legislativas e nos tribunais pelo país. Vivemos em
uma época em que não se justifica a discriminação somente baseada em argumentos
religiosos e médicos, e estamos diante de uma construção mais perversa e difícil: o jogo
político.
Falamos bastante sobre como o preconceito homofóbico pode ser um
mecanismo de manutenção e controle das elites sociais no poder, bem como dissemos
que grande parte dessa discriminação está assentada em uma moral que ainda apresenta
resquícios de patriarcalismo e machismo. Pois bem, analisemos que impacto esses
fatores ainda apresentam na construção da sociedade moderna.
7

Estamos inseridos em uma sociedade liberal que aceita a diversidade, mas que
não a respeita, na medida em que forma estereótipos para qualquer sorte de diferenças
que a pessoa possa ter em relação ao modelo do homem branco, heterossexual,
monogâmico e cristão. Sendo assim, temos a marginalização de um sem número de
práticas religiosas e sexuais, por exemplo, e, àqueles grupos sociais que praticam essas
características que saem do padrão, está reservado um lugar de submissão e vergonha.
Sobre isso, temos que “a lógica da superiorização e da inferiorização dos grupos sociais
se traduz em um conjunto de práticas sociais capaz de inserir pública e socialmente
determinadas categorias sociais de formas subalternas em nossa sociedade” (PRADO e
MACHADO, 2008). Ou seja, temos aqui uma lógica de tolerância, e não de respeito ao
próximo, que faz com que certos grupos sejam categorizados como inferiores ou
indignos de atenção e proteção pública.
Essa forma perversa de exclusão acaba por legitimar a manifestação
preconceituosa, já que ao se abster, o Estado abre uma brecha para que a sociedade civil
também o faça de diversas formas, desde as pacíficas, até as mais violentas. “À
semelhança de qualquer outra forma de intolerância, a homofobia articula-se em torno
de emoções (crenças, preconceitos, convicções, fantasmas...), de condutas (atos,
práticas, procedimentos, leis...) e de um dispositivo ideológico (teorias, mitos,
doutrinas, argumentos de autoridade...)” (BORRILLO, 2010).
A homofobia, como acima observado, manifesta-se de diversas formas na
sociedade moderna, e é muito importante que fiquemos atentos a todas elas, e não só às
mais graves e radicais, que acabam por ter mais repercussão nos meios de comunicação,
tais como as agressões e os assassinatos. A intolerância é muito mais do que isso; o
cidadão LGBT sofre em diversas áreas e de diversas formas, através de assédio moral,
ofensas psicológicas, discriminações no ambiente de trabalho, em instituições públicas,
dentro de sua própria casa e, especialmente, em ambientes públicos. Cair na armadilha
reducionista seria, de certo modo, justificar a não existência de ações do Estado que
tratem de vulnerabilidades que todas as homossexualidades e identidades de gênero
estão sujeitas, desde auxílio para jovens expulsos de suas casas até cirurgias de
readequação sexual.
Na atualidade, a diversidade sexual vem sendo tratada como moeda de troca nas
casas legislativas do país, servindo como objeto de barganha em casos de apoio político.
Um exemplo disso foi o recente veto presidencial ao kit anti-homofobia, que seria
distribuído nas escolas do país, objetivando conscientizar os adolescentes para o
8

respeito à diversidade nas escolas.


Além desse fato, temos no cenário político atual a intensa presença de
vereadores, deputados e senadores que impõem as suas crenças religiosas para todos os
campos da vida pública, esquecendo que o Brasil, constitucionalmente, é um Estado
laico e, por isso, não se rege por ideal religioso algum. Sendo assim, os argumentos
usados para barrar ou não uma lei têm que ser baseados em fatos científicos ou legais, e
não em uma moral cristã ultrapassada, que é contra até o uso de preservativos. Não
precisamos ir longe para ter certeza disso; temos a lei que regulamenta o aborto e a lei
que criminaliza a homofobia paradas, e constantemente gerando discussões acaloradas e
embebidas em água benta.

Movimento LGBT no Brasil


Assim como foi feito no tópico anterior, também dividirei os períodos do
movimento LGBT no Brasil em três, a saber: o primeiro, quando do surgimento e da
expansão; o segundo, em que esteve “adormecido”; e o terceiro, que é o que vem
ocorrendo na atualidade. Assim como na homossexualidade, em todos os períodos
podemos identificar características semelhantes.
A primeira movimentação social teve um forte caráter antiautoritário e
comunitarista, e a ruptura com a família tradicional heterossexual acaba por se refletir
nas relações afetivo-sexual entre pessoas do mesmo sexo, pois questiona-se e renega-se
os papéis sociais de gênero e os papéis sexuais. Esse conjunto de fatores mostra
claramente que essa primeira onda surgiu em resposta, junto com outras demandas
sociais, aos anos do Regime, que criminalizou movimentos sociais, normatizou práticas
e comportamentos e, no caso da comunidade LGBT, “guetificou” as expressões
pessoais, de afeto e sexuais.
Esse aspecto agregador fez com que as primeiras associações homossexuais
fossem questionadas sobre sua validade política, pois eram especialmente voltadas para
questões de sociabilidade, a exemplo do Grupo Somos, fundado em 1978, em que a
vivência livre em comunidade era muito celebrada, como João Silvério Trevisan muito
cita em seu livro. Aqui vale uma observação: nessa época, ainda não se tinha a noção de
movimento social integrado, que lutasse pelas demandas de todas as populações
incluídas na sigla. As primeiras organizações eram majoritariamente compostas por
homens cisgêneros e homossexuais, daí o porquê de a literatura muitas vezes tratar
como “Movimento Homossexual” ou “Movimento Gay” durante esse período. Os
9

registros mostram que o primeiro grupo lésbico organizado surgiu em 1980, a partir de
uma cisão no Somos, e os movimentos de transexuais e travestis só vão aparecer com
força durante a década de 1990.
Além do acima posto, é importante dizer que esse movimento nascente ainda
não discutia questões importantes, sejam elas dentro ou fora do movimento, a exemplo
do que ocorria com a visão da bissexualidade enquanto identidade ou subterfúgio para
não assumir a homossexualidade. Muitas vezes criticada, embora, em alguns momentos,
a prática bissexual fosse até mesmo glorificada como subversão de todas as regras,
mostrando, novamente, a necessidade gritante dessa população de ter suas liberdades
garantidas, nesse período ainda muito influenciado pelos militares.
Essa “primeira onda” do movimento teve um curto período de duração, mas
deixou frutos que colhemos até hoje, tal como o Grupo Gay da Bahia, fundado em 1980
e que ainda hoje é muito atuante, sendo a única fonte de dados da violência letal que
acomete LGBTs todos os dias. Nesse período, também, observa-se uma forte atuação do
chamado eixo Rio-São Paulo, sendo essas duas cidades as maiores forças de atuação do
movimento gay da época. Após o declínio dessa primeira onda, e com a dissolução do
Grupo Somos em São Paulo, em 1983, e um crescimento do grupo Triângulo Rosa no
Rio, esse eixo se deslocou para a rota Rio de Janeiro-Nordeste, como veremos adiante.
São muitos os motivos que podem ser apontados para o fim dessa primeira e o
suposto “adormecimento” da segunda. Entre eles, podemos citar: o crescimento da
inflação e do desemprego, que dificultou a organização de grupos; o aumento da
visibilidade na mídia fez crescer uma falsa sensação de igualdade e reconhecimento,
fato que sabemos não ser verdade até hoje; a ideia de que, em tempos de democracia, a
facilidade seria maior no processo de conquista de direitos. Esse último motivo foi um
importante fator que dificultou a organização do movimento na segunda onda. Vejamos
mais sobre isso.
Após a explosão observada no início das organizações sociais, alguns autores
dizem que o movimento LGBT “murchou”, ou “adormeceu”, durante o período
subsequente. Essa impressão - digo impressão pois pretendo mostrar que ele estava,
sim, ativo - deve-se em grande parte ao grande impacto negativo que a epidemia de
HIV/Aids teve sobre as práticas não heterossexuais, em especial no caso de homens que
fazem sexo com homens, ou HSH, como a medicina da época convencionou chamar.
Todos sabemos que, nessa época, a Aids ficou popularmente e erroneamente conhecida
como a “peste gay”, e que até hoje colhemos os frutos dessa mentira. Homossexuais
10

masculinos, travestis e transexuais são sumariamente impedidos de doar sangue em


postos de saúde, mesmo nos dias da atualidade, em que se tem conhecimento de que não
existe um “grupo de risco” e, sim, uma “conduta de risco”, coisas que são muito
diferentes.
No parágrafo acima eu disse que o movimento LGBT estava organizado e
afirmei esse fato, pois o que se convencionou chamar de adormecimento ou de crise da
organização é exatamente isso: o movimento deixa de se concentrar em suas pautas
anteriores (e ainda atuais, como veremos mais para frente), para dar uma resposta rápida
à epidemia, dada a enorme demora governamental para o caso. Não se sabia muito sobre
a Aids, métodos de transmissão, medicação, métodos de prevenção e etc., e a população
homossexual acabou por apresentar casos midiáticos de contágio, como Cazuza, Renato
Russo e Freddie Mercury. Diante disso, a homossexualidade ficou inevitavelmente
associada com o vírus.
Essa associação compulsória gerou outra característica dessa segunda onda do
movimento: aquela que tentou desvincular a imagem da homossexualidade com práticas
ditas “marginais” ou “sexuais”. Em outras palavras, surgiu a necessidade de se
“higienizar” as identidades e orientações, para que o processo de reconhecimento fosse
facilitado e visto como “legítimo” aos olhos das autoridades e da sociedade. Foi nessa
época que substituiu-se o termo “opção sexual” por “orientação sexual”, objetivando
engrossar a luta pela despatologização do então homossexualismo.
Entramos aqui no terceiro momento do movimento e observamos que a maioria
das demandas de antes ainda estão presentes, a saber: em idos de 1980 já se falava da
inclusão do termo “orientação sexual” na Constituição Federal, na segunda onda falou-
se muito de uma educação sexual inclusiva e a preocupação com a violência vem de um
crescente desde a época que o movimento estava engatinhando. Mesmo aqui, com as
práticas e ações de controle da epidemia HIV/Aids, esse ainda é um importante fato
para o movimento, pois o caráter agregador que a resposta à doença teve permitiu que o
movimento conhecesse melhor seus próprios integrantes.
Essa terceira onda é marcada por grandes atividades em prol do protagonismo de
todos os atores políticos que, obviamente, tem demandas específicas, como no caso da
população trans*, muito mais vulnerável do que qualquer uma das outras letrinhas. O
movimento lésbico ganha mais força com a criação dos Seminários Nacionais e, prova
disso, é a mudança da sigla, que antes era GLBT, para reforçar a visibilidade da
comunidade lésbica. As organizações de travestis e transexuais tiveram sua ascensão
11

ainda na primeira metade dos anos 90, buscando uma maior atenção da saúde,
especialmente.
Em 1995 foi fundada a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis, a
ABGLT, a maior organização LGBT do Brasil e, na época, reuniu cerca de 200
organizações para sua fundação. Considera-se que esse foi um marco para o aumento de
instituições e organizações em formas nacionais de rede. Aqui, também, houve uma
multiplicação de organizações não governamentais e de setoriais LGBTs em partidos e
em organizações já existentes.
Além desses grandes avanços e da multiplicação dos esforços para que houvesse
uma integração entre todos os atores políticos LGBTs, na atualidade, há uma crescente
discussão dos papéis de gênero e da “gayzização” do movimento LGBT. Explico:
apesar da grande diversidade de demandas e de áreas de atuação, o movimento segue
sendo majoritariamente liderado e protagonizado por homens, brancos, cisgêneros e
homossexuais. Nessa linha, fala-se até que a sigla deveria ser representada por GGGG.
Exemplo disso é a forma como se fala e, especialmente, se divulgam na mídia eventos e
direitos LGBTs: Parada gay, Orgulho gay, Casamento gay, Beijo gay, Movimento gay,
Balada gay. Até quando o momento é ofensivo, a expressão usada engloba só uma das
letras: gayzistas. Acredito que não seja uma impressão errada pensar que há uma
superexposição da identidade de homossexuais masculinos em detrimento das outras
expressões da sigla.
Por fim, hoje temos um movimento consolidado como ator político, com força
para reivindicar e muito mais visível do que no começo de sua organização. Não faltam
organizações e esforços para que os direitos sejam estendidos a toda a população, sem
importar sua orientação sexual e sua identidade de gênero. Mas, ainda é possível
observar uma “crise de protagonismo”, pois ainda vemos uma grande misoginia e
transfobia dentro do movimento social. Esperamos que nós não passemos a nos tornar
sujeitos da opressão, contra quem tanto lutamos.

Referências Bibliográficas
BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2010.
PRADO, Marco Aurélio Máximo e MACHADO, Frederico Viana. Preconceito contra
homossexualidades: a hierarquia da invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2008.
12

TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da


colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2007.
1

O que é Estado Laico?1


Joana Zylbersztajn2
Introdução
Estamos acostumados a ouvir que o Brasil é um Estado laico. E é mesmo. Mas
precisamos entender um pouco melhor o que quer dizer isso, para que seja possível saber os
efeitos deste status brasileiro. A Constituição Federal não fala explicitamente “A República
Federativa Brasileira é laica”, ou algo assim. O que não quer dizer, absolutamente, que o
princípio da laicidade não esteja previsto no texto constitucional. A partir do estabelecimento
de alguns conceitos em torno do significado da laicidade é possível definir os elementos
constitucionais constitutivos deste princípio.
É importante fazer esta discussão, na perspectiva de aprimorar os elementos de defesa
da laicidade do Estado. Os debates em torno da religião são sempre muito apaixonados,
passando eventualmente por desrespeito às diversas religiosidades e não-religiosidades. O
inverso também é verdadeiro, e às vezes não se quer discutir o assunto porque, da forma que
está, já é confortável a grande parte das pessoas.
Ainda que tenha decrescido nas últimas duas décadas, a representação católica ainda é
majoritária no país. De acordo com o censo populacional de 20103, os católicos representam
quase 65% da população. Somados os protestantes (pentecostais e neopentecostais),
aproximadamente 87% da população brasileira exercem a religiosidade cristã. O mesmo
censo populacional identificou 40 religiões distintas no Brasil, aparte daquelas computadas de
forma conjunta, as pessoas sem religião ou de religiosidade indefinida.
Ou seja, ainda que haja predominância de uma orientação confessional e seja
imprescindível o entendimento de que a tradição religiosa está presente no país, é necessário
considerar o pluralismo religioso, os embasamentos da democracia e da própria laicidade no
Estado Democrático de Direito, prevista constitucionalmente.
A laicidade é um princípio e tem diferentes graus de efetivação. Assim como ocorre
com os direitos fundamentais, deve ser conquistada e reafirmada aos poucos, especialmente
por meio do esforço estatal. O embasamento constitucional é a sustentação para a sua
existência, mas é a prática que efetiva o princípio.

1
Artigo preparado para a Escola do Parlamento, da Câmara de Vereadores de São Paulo, a partir da tese de
doutorado da autora (Zylbersztajn, 2012). Baseada no tema do presente artigo, a autora ministrou a terceira
palestra do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do Parlamento, no dia 12 de novembro de
2013, nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo.
2
Advogada de direitos humanos formada pela PUC-SP, Especialista em Comunicação Social pela PUC-SP,
Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da USP.
3
IBGE, Censo 2010.
2

Conceito
Tratar dos conceitos em torno da laicidade não é uma discussão meramente
terminológica, mas a tentativa de estabelecer padrões para aprofundar o debate. Com a
confusão conceitual, a terminologia relativa à laicidade é usada conforme a conveniência da
situação. Existem concepções estritas e até intolerantes, ou, por vezes, o conceito é entendido
de forma tão aberta e permissiva que perde sua função. A laicidade não deve ser uma coisa
nem outra. Estado laico é, em essência, “um instrumento jurídico-político para a gestão das
liberdades e direitos do conjunto de cidadãos”4.
Aqui não se pretende criar um conceito definitivo do que seja laicidade. Enquanto
alguns esclarecimentos são necessários, o que se espera é identificar diretrizes para a
construção de uma “moldura” referente ao conceito estudado. Assim, a ideia é ter uma
ferramenta analítica para abordar o princípio da laicidade no Brasil, considerando as suas
diferentes dimensões, formas e graus de concretização.
A necessidade de maior conceituação do tema decorre, em certa medida, da falta de
determinação expressa da Constituição Federal sobre a laicidade. András Sajó entende que a
maioria das democracias não tem uma normativa forte ou prática de laicidade constitucional,
deixando-a vulnerável a argumentos indistintos de livre exercício da fé ou pluralismo5.
Em diversos países essa lacuna foi suplantada pela edição de uma lei de religiões, que
traz as diretrizes básicas a respeito do tema. Roberto Blancarte ensina que esse é o caso do
México, em que a definição da laicidade do Estado e seu conteúdo estão estipulados na Lei de
Associações Religiosas e Cultos Públicos6.
Não é o caso do Brasil atualmente, que não dispõe de lei nesse sentido. De toda forma,
a existência do princípio da laicidade “não depende que seja explicitada através de normas
constitucionais, mas sim que permaneça implícita em todo o sistema jurídico”7. É a partir do
entendimento do que significa laicidade que conseguimos identificar a sua proteção jurídica,
tanto no âmbito constitucional quanto legal.
Laicidade é um neologismo francês do final do século XIX que defende a liberdade de
opinião, incluindo a liberdade e pluralismo religioso. De acordo com as referências da

4
Roberto Blancarte, 2008, p. 25.
5
András Sajó, 2008, p. 607.
6
Roberto Blancarte, op. cit, p. 25.
7
Marco Huaco, 2008. p. 45.
3

Declaração Universal da Laicidade no Século XXI8, podemos organizar alguns elementos


formadores da laicidade. Este texto, ainda que sem efeitos jurídicos, é uma tentativa de
conceituar a laicidade no âmbito internacional. Isso porque os documentos internacionais
existentes tratam basicamente do direito à liberdade religiosa, e não da laicidade.

“Art. 4º. Definimos a laicidade como a harmonização, em diversas


conjunturas sócio-históricas e geopolíticas, dos três princípios já indicados:
respeito à liberdade de consciência e à sua prática individual e coletiva;
autonomia da política e da sociedade civil com relação às normas religiosas
e filosóficas particulares; nenhuma discriminação direta ou indireta contra
os seres humanos.
Art. 5º: Um processo laicizador emerge quando o Estado não está mais
legitimado por uma religião ou por uma corrente de pensamento específica,
e quando o conjunto de cidadãos puder deliberar pacificamente, com
igualdade de direitos e dignidade, para exercer sua soberania no exercício
do poder político. Respeitando os princípios indicados, este processo se dá
através de uma relação íntima com a formação de todo o Estado moderno,
que pretende garantir os direitos fundamentais de cada cidadão.

Ou seja, é possível entender que a laicidade consiste na garantia da liberdade religiosa


e da não submissão pública a normas religiosas e rejeição da discriminação, compreendida em
um contexto em que a legitimação do Estado não se encontra mais no divino, mas na
legitimação democrática constitucional, garantidora de direitos fundamentais. Ou seja, a
laicidade relaciona-se com a democracia, com a liberdade e com a igualdade.
O ponto de partida para a compreensão da laicidade, portanto, é o reconhecimento de
que a legitimidade do Estado passa a se fundamentar na concepção democrática, e não no
sagrado. Nas palavras de Blancarte, trata-se de “um regime social de convivência, cujas
instituições políticas estão legitimadas principalmente pela soberania popular e já não mais
por elementos religiosos”9. Ou seja, enquanto o “poder do monarca” funda-se no poder de
deus nos Estados religiosos, o Estado laico tem a base de seu poder no poder do povo –
modelo adotado nas democracias laicas contemporâneas.
Seria simplista, no entanto, reduzir a laicidade a este aspecto. Os contornos do
significado democrático precisam ser compreendidos dentro do contexto constitucionalista de
garantia de direitos fundamentais, em que se respeita a liberdade e igualdade de todos,
independentemente de sua representação majoritária.
Não é permitido ao Estado laico, então, impor normas de caráter religioso ou orientar
sua atuação por dogmas confessionais. Ao mesmo tempo, o Estado laico responsabiliza-se

8
Declaração apresentada no senado francês em 9 de dezembro de 2005, por ocasião das comemorações do
centenário da separação entre Estado e Igreja na França.
9
Roberto Blancarte. Op. Cit. p. 19.
4

pela garantia da liberdade religiosa de todos, de forma igualitária e independentemente de sua


confissão, protegendo os cidadãos contra eventuais discriminações decorrentes da fé. Ou seja,
o Estado laico deve ser imparcial em relação à religião, garantindo a liberdade religiosa.
No mesmo sentido, Daniel Sarmento entende que “a laicidade não significa a adoção
pelo Estado de uma perspectiva ateísta ou refratária à religiosidade (...) Pelo contrário, a
laicidade impõe que o Estado se mantenha neutro em relação às diferentes concepções
religiosas presentes na sociedade”10.
Esta concepção implica o reconhecimento de que alcançar a plena laicidade do Estado
requer o amadurecimento democrático e cultural, consolidando-se como um processo de
construção histórica e permanente. Nesse sentido, Blancarte afirma:

“a laicidade – como a democracia – é mais um processo do que uma forma


fixa ou acabada em forma definitiva. Da mesma maneira que não se pode
afirmar a existência de uma sociedade absolutamente democrática,
tampouco existe na realidade um sistema político que seja total e
definitivamente laico”11.

Avançando na compreensão sobre laicidade, é necessário avaliar alguns termos e


conceitos que são confundidos. É corrente o entendimento de que a laicidade identifica-se
com a determinação de separação orgânica das instâncias seculares e sagradas. Ainda que a
rejeição de uma confissão oficial do Estado seja quase intrínseca à realização da laicidade,
não se tratam de sinônimos. No Brasil, a separação entre Estado e Igreja é o conceito
plasmado no art. 19, I da Constituição Federal.
A evolução do conceito de Estado laico e sua relação com a separação institucional da
religiosidade passou por diversas etapas, e os múltiplos Estados adotaram seus modelos de
modos distintos. Além dos diferentes modelos, o contexto histórico e a realidade de cada país
definem a laicidade do respectivo Estado.
Há diversos sistemas de classificação da relação entre o Estado e as religiões. Para
José Afonso da Silva12, é possível destacar especialmente três sistemas de relação formal
entre Estado e religião. O primeiro deles é o da confusão, em que o Estado é teocrático e
confunde-se com a religião (como o Vaticano e certos países islâmicos). Há ainda o sistema
da união, em que existe relacionamento jurídico entre o Estado e determinada religião (caso
do Brasil Império, no exemplo de José Afonso). Por fim, há o sistema de separação, adotado
pela maior parte das democracias contemporâneas, ainda que de formas distintas.

10
Daniel Sarmento, 2008. p. 191.
11
Roberto Blancarte. Op. Cit. p. 20.
12
José Afonso da Silva, 1999. p. 253.
5

Os Estados confessionais declaram expressamente a vinculação do Estado a uma


determinada religião. Já os Estados que declaram a sua separação formal da Igreja (qualquer
que seja), dividem-se entre aqueles que admitem relações de cooperação com instituições
religiosas e aqueles que não admitem – ou não preveem – relações de cooperação. Por fim, os
Estados laicistas são aqueles que não reconhecem qualquer forma de religiosidade.
A adoção do sistema de separação – com ou sem cooperação – não significa
necessariamente que um Estado é realmente laico. O contrário também é verdadeiro, e
Estados que não adotam a separação oficial entre Estado e religião muitas vezes são “mais
laicos”. Não se trata de separar o plano conceitual da prática. Explico.
O Estado laico é aquele que, por meio de suas instituições, garante a todos os cidadãos
o tratamento livre e igualitário independente do exercício de uma fé específica. Isso não
ocorre plenamente em um Estado que adota uma religião oficial – pois já há reconhecimento
diferenciado entre a crença de uns ou outros. No entanto, este Estado confessional pode
garantir – na própria constituição – que é tolerante às demais religiões e garante-lhes o pleno
exercício, bem como escusa-se de impor características religiosas em suas ações destinadas a
todos. De outro lado, um Estado que adota a separação pode, ao mesmo tempo, prever
tratamento diferenciado a determinadas crenças – seja no âmbito legal, político ou judicial.
Assim, mesmo que a separação seja um elemento essencial para a laicidade plena, a
rejeição de uma confissão oficial não é suficiente para garantir que o Estado seja laico. De
todo modo, a separação institucional entre Estado e Igreja é um componente importante para a
construção da laicidade do Estado. Como conclui Blancarte, “definir a laicidade como um
processo de transição de formas de legitimidade sagradas e democráticas ou baseadas na
vontade popular, nos permite também compreender que esta (a laicidade) não é estritamente o
mesmo que a separação entre Estado-Igrejas”13, pois esta última definição é uma regra
acabada e não em construção – ainda que os limites de cooperação entre as instâncias possa
ser de difícil definição nos casos concretos.
Outro ponto a se destacar é a diferenciação do conceito de ‘laicidade’ para termos
como ‘secularismo’; ‘laicismo’; ‘ateísmo’ ou ‘aconfessionalismo’.
Enquanto laicidade refere-se ao processo institucional pelo qual o Estado passa ao
deixar de legitimar suas ações em concepções religiosas para ater-se aos princípios
democráticos, a secularização tem um significado mais amplo, envolvendo um contexto
cultural e social de entendimento de separação entre as esferas civis e religiosas. Para Marco

13
Roberto Blancarte. Op. Cit. p. 30.
6

Huaco, a “laicidade é a expressão política-institucional do processo de secularização (das


instituições estatais, de seu ordenamento, de suas políticas etc.) que acaba moldando-se
formalmente mediante normas, princípios e valores jurídicos” 14. Assim, a secularização seria
algo mais amplo e geral do que a laicidade – enquanto a primeira relaciona-se com
características sociais, a segunda é mais específica sobre a relação do Estado com a religião.
Já o laicismo, por sua vez, relaciona-se com a exclusão da religião da esfera pública de
forma mais enfática e generalizada. Em contextos laicistas, a religião não pode ter qualquer
penetração em ambientes estatais. Essa situação se aproxima do modelo adotado pela França,
por exemplo, que no intuito de ser um Estado laico, opta por não admitir qualquer expressão
religiosa na arena pública.
Esse pode ser um modelo válido, mas pelos parâmetros aqui discutidos, o laicismo não
representa o ideal de laicidade, por desconsiderar os aspectos democráticos da presença social
da religiosidade. A restrição absoluta à manifestação religiosa acaba tratando de forma
desigual as diversas confissões, pois apenas privilegia aquelas que não dependem de símbolos
externos ostensivos para sua expressão.
À primeira vista semelhante, o ateísmo não admite absolutamente a religiosidade – e
atua nesse sentido. É diferente do laicismo, que não aceita a expressão religiosa vinculada à
esfera pública, mas aceita a sua existência e prática no âmbito privado.
Essa concepção, por óbvio, não se relaciona com os padrões de laicidade até aqui
trabalhados. O Estado laico não é anticlerical ou antirreligioso. Ao contrário, trata-se de um
regime de convivência que garante a liberdade religiosa e a ela não se opõe15, pois estabelece
“a gestão com tolerância de uma realidade igualmente diversa, de uma crescente pluralidade
religiosa e de uma demanda crescente de liberdades religiosas ligadas aos direitos humanos ou
à diversidade e particularidades culturais” 16.
De todo modo, é importante destacar aqui que o Estado não ser ateu não significa ser
um Estado deísta. Isso é muito importante para definição dos contornos da laicidade.
Por fim, o aconfessionalismo é um termo mais simples, que significa apenas que o
Estado não estabelece uma religião como oficial. Considerando todos os demais aspectos
formadores da laicidade (democracia, liberdade e igualdade), não é possível entender que um
Estado ser aconfessional significa o mesmo que ser um Estado laico.

14
Marco Huaco. Op. Cit. p. 47.
15
Roberto Blancarte. Op. Cit. p. 31.
16
Cf. Marco Huaco. Op. Cit. p. 47.
7

Em suma, enquanto a laicidade é um conceito relacionado à imparcialidade


institucional do Estado perante o fenômeno religioso, considerando seus fundamentos
democráticos e garantia à liberdade e igualdade, o secularismo refere-se ao entendimento
social de distanciamento da religiosidade na arena pública. Já o laicismo rejeita de forma
extrema a expressão religiosa para além do campo privado. O ateísmo não admite a
religiosidade.
Observo que essa diferenciação terminológica não tem nenhuma reverberação em
países de língua anglo-saxônica. Considerando que o termo “laicidade” é um neologismo
francês inexistente nesses países, o seu uso terminológico aproxima-se de secularização ou
simplesmente a separação entre Estado e Igreja, independentemente dos aspectos políticos,
sociais ou institucionais.

Constituição
Considerando que a laicidade relaciona-se com a democracia, com a liberdade e com
a igualdade, conseguimos identificar o embasamento constitucional do princípio no Brasil.
Esses elementos estão previstos na própria determinação de democracia (art. 1º) e nas
diretrizes de garantia de direitos fundamentais (art. 5º), especialmente a igualdade e a
liberdade – incluída aí a liberdade religiosa. Por fim, a laicidade brasileira é fortalecida pela
determinação de separação entre Estado e Igreja (art. 19, I).
A laicidade é, portanto, um princípio constitucional implícito em função da previsão
dos princípios da democracia, da igualdade e da liberdade (religiosa) que, por força da
disposição do art. 5º, §2º da Constituição Federal17, constituem o princípio da laicidade
protegido constitucionalmente. A forma implícita da laicidade é a mais corrente nas
constituições democráticas contemporâneas.
Esses artigos garantem que o Estado não pode ter relações privilegiadas com
determinada religião, ao mesmo tempo em que tem o dever de garantir o pleno exercício
religioso de seus cidadãos.
Além dos elementos apontados como formadores da laicidade, a Constituição Federal
trata da questão religiosa em diversos outros dispositivos, a fim, especialmente, de garantir a
liberdade de crença. O arcabouço constitucional deve ser entendido em seu conjunto, para
determinar qual é o conteúdo de laicidade protegido, e como isso é previsto.

17
Art. 5º, §2º, CF. “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte”
8

A partir disso, o princípio da laicidade, ainda que não seja um valor absoluto e
superior a outros princípios, é um mandamento de otimização18 e deve ser concretizado o
máximo possível. Para isso, resta ainda mais relevante a atuação estatal positiva para a
garantia do direito.
A proteção constitucional é primária e fundamental para a efetivação do princípio da
laicidade, pois garante que a democracia não seja apenas “a vontade da maioria”, mas que
suas diretrizes respeitem as especificidades das minorias.

Conclusões
O caráter laico de um Estado relaciona-se, de início, com a afirmação da legitimação
democrática do poder, e não em fundamentos religiosos. A laicidade pressupõe o livre
exercício religioso pelos cidadãos, independentemente da confissão que professem,
garantindo-se a igualdade material de todos os credos na esfera pública. Do Estado laico
espera-se a imparcialidade em matéria de fé, o que não significa sua abstenção nesta arena.
Ao contrário, o Estado laico tem a responsabilidade de garantir que os elementos constituintes
da laicidade sejam respeitados e efetivados.
A partir desta moldura conceitual, entendo que a laicidade é prevista como princípio
implícito no texto constitucional, considerando a definição do caráter democrático do Estado e
da garantia da igualdade e da liberdade (especialmente religiosa). A determinação da
separação institucional entre Estado e Igreja compõe o contexto de proteção constitucional ao
princípio, mas com ele não se confunde.
A principal consequência decorrente do reconhecimento da laicidade como princípio é
a compreensão de que se trata de um mandamento de otimização, e por isso deve ser realizado
em sua maior extensão possível, dependendo de condições fáticas e jurídicas para sua
concretização. Este entendimento dialoga com a evolução histórica dos direitos humanos, que
não bastam ser declarados para existirem: o seu reconhecimento formal é apenas o primeiro
passo para sua realização.
A vontade da maioria é limitada pelos parâmetros de direitos fundamentais acolhidos
pelo Estado. Ainda que a sociedade brasileira professe uma concepção religiosa majoritária,
seus dogmas não podem impor-se sobre as ações públicas que atingem toda a população. Isso
decorre não apenas da concepção de constitucionalismo, mas dos próprios aspectos

18
Conforme definição de Robert Alexy, 2008. pp. 90-91.
9

orientadores do princípio da laicidade. Assim, a efetivação da laicidade estatal depende da


proteção jurídico-constitucional e do amadurecimento da democracia constitucional do país.
No Brasil, a Constituição Federal assegura todos os elementos formadores da
laicidade, no entanto, pela generalidade de parâmetros jurídicos acerca das possibilidades
democráticas de relação entre o Estado e a religião, pela fragilidade de compreensão do
significado e extensão do princípio da laicidade, e pela forte presença social e histórica da
religião no país, verifica-se que o espaço público pátrio permanece altamente permeável à
influência religiosa, deixando vulnerável a efetivação da laicidade no Brasil.
Ao invés de encerrar estas reflexões com uma perspectiva pessimista, creio que o
diagnóstico pode ter outro efeito, de mobilização e comprometimento pelo aprofundamento
da laicidade do Estado brasileiro, ainda em processo de construção e fortalecimento.

Referências Bibliográficas
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
BLANCARTE, Roberto. “O porquê de um Estado laico”. In Roberto Arruda Lorea (org.) Em
defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
HUACO, Marco. “A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito”. In
Roberto Arruda Lorea (org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010.
SAJÓ, András. “Preliminaries to a concept of constitutional secularism”. I-CON 6 (2008),
pág. 607.
SARMENTO, Daniel. “O crucifixo nos Tribunais e a laicidade do Estado”. In Roberto Arruda
Lorea (org.) Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros,
1999.
ZYLBERSZTAJN, Joana. O princípio da laicidade na constituição federal de 1988. Tese de
Doutorado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2012.
1

Participação e Representação Política de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e


Transexuais (LGBT)1
Rute Alonso da Silva

Abordar o tema de participação popular e representação política da população


LGBT, em um curso de Igualdade de Gênero, torna necessário empregar uma
metodologia que fuja dos moldes da escola tradicional, onde impera a concepção
“bancária” de educação, conforme Paulo Freire analisa:

“Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que


se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda
numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a
absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de
alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no
outro.
O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas,
invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão
sempre os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação
e o conhecimento como processos de busca.
O educador se põe frente aos educandos como sua antinomia
necessária. Reconhece na absolutização da ignorância daqueles a
razão de sua existência. O educandos alienados, por sua vez, à
maneira do escravo na dialética hegeliana, reconhecem em sua
ignorância a razão da existência do educador, mas não chegam, nem
sequer ao modo do escravo naquela dialética, a descobrir-se
educadores do educador”.2

Para falar em participação popular, não podemos nos entender como meros
expectadores, como folhas em branco, esperando que um terceiro portador do
conhecimento, nos diga o que deve ser feito. Assim, o protagonismo histórico deve ser
ensaiado dentro do espaço do curso.
Por meio da utilização de um rolo de barbante, é possível estabelecer dinâmica
que objetiva a construção de uma teia entre as pessoas participantes, enquanto elas se
apresentam ao grupo.3 Essa teia, resultado da participação de todas as pessoas presentes,
revela os motivos que impulsionaram cada indivíduo a compor o grupo. Assim, a
visualização concreta da teia permite a todos os presentes a construção da sensação de
que, apesar das diversas motivações para participação no curso, é possível gozar de

1
O texto baseia-se na quarta palestra do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do
Parlamento. A aula, ministrada pela autora, ocorreu no dia 14 de novembro de 2013, nas dependências da
Câmara Municipal de São Paulo.
2
Freire, 2011, p. 81.
3
A referida dinâmica foi desenvolvida com os alunos participantes do Curso Igualdade de Gênero II.
2

pontos em comum que os levem a ser reconhecidos por terceiros como um grupo.
Essa sensação de pertencimento a um grupo potencializa a discussão sobre quem
é o “outro”, alvo da opressão. A princípio, com este outro não há identificação, mas
logo se percebe que isso só depende de que lado da relação de poder nos encontramos,
se nos enquadramos entre os oprimidos ou entre os opressores.
A compreensão e a sensação de pertença a um grupo nesse contexto, tanto aos
próprios olhos quanto aos de terceiros, facilita a identificação de si também como o
“outro” e permite abordar a necessidade de senso de solidariedade entre os grupos,
principalmente entre os tidos como “minorias”, que são alvos de discriminação.
Embora o segmento LGBT esteja em foco dentro de um curso com essa
temática, é essencial, para a sensibilização e para a legitimidade de propostas de
solidariedade, não desconsiderar questões que abordem quaisquer outras minorias e
quaisquer outros grupos vítimas de opressão: mulheres, negros(as), pessoas em situação
de rua, indígenas, moradores da periferia, pessoas encarceradas, etc.
Como consequência dessa construção, torna-se necessário discutir as formas
coletivas de participarmos na superação das diversas opressões a que estão submetidas
as pessoas que compõem o grupo.
No caso do Brasil, portanto, podemos nos basear na Constituição Brasileira de
1988 que, ao apresentar os fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito,
definiu que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (Constituição Federal, artigo 1º,
parágrafo único).
Assim, além de escolher seus representantes, há a previsão de que os(as)
cidadãos(ãs) brasileiros(as) possam participar diretamente por meio dos chamados
institutos de democracia direta ou semidireta como o plebiscito, o referendo e a
iniciativa popular de lei, conforme o artigo 14 da Constituição Federal. Ademais desses
instrumentos, podemos citar outras práticas participativas como as tribunas populares,
os conselhos, as audiências públicas, as conferências, as ouvidorias, as mesas de
negociação e de diálogos, entre outros instrumentos institucionais de participação
popular.
Por outro lado, temos de destacar que há outros instrumentos de participação
popular como as mobilizações e os movimentos sociais que, de acordo com Maria do
Carmo A. A. Carvalho:
3

“se diferenciam segundo as questões reivindicadas, segundo as


formas possíveis, definidas tanto pelos usos e costumes de cada
época, pela experiência histórica e política dos atores protagonistas,
assim como pela maior ou menor abertura dos governantes ao
diálogo e à negociação”.4

A partir de 1988, o discurso de “participação” tornou-se muito mais presente.


Entre 1988 e 2009, foram realizadas 80 conferências nacionais com a finalidade de que
os cidadãos se envolvessem na gestão pública e, em particular, na formulação, execução
e controle de políticas públicas.5
Contudo, não podemos crer que a mera participação nos espaços institucionais
de participação popular promoverá a superação das opressões e, consequentemente, a
esperada transformação social.
A participação institucionalizada é a forma como o poder hegemônico permite a
participação popular e sustenta a legalidade desses espaços. Contudo, Audre Lorde,
feminista negra, utilizava-se de metáfora para explicar a potencial ineficiência desses
mesmos espaços, dizendo que a casa do amo não pode ser desmontada pelo escravo
com as ferramentas do próprio amo6. De forma similar, Boaventura de Sousa Santos diz
que:
“os instrumentos hegemônicos que temos são as semânticas legítimas
da convivência política e social: a legalidade, a democracia, os
direitos humanos. (…)
É um problema complicado porque, se são instrumentos hegemônicos,
por definição, não vão resolver nossas inquietações, nossas
aspirações, e não vão conseguir o que queremos alcançar, que é uma
sociedade mais justa e reinventar a emancipação social”.7

Se, por um lado, há previsão da ineficiência de instrumentos hegemônicos, como


a participação institucional, por outro lado, os instrumentos contra-hegemônicos são
criminalizados pela classe dominante, especialmente pela mídia que, via de regra, está a
serviço da classe detentora do poder. A criminalização dos movimentos sociais tem
ocorrido ao longo dos tempos e, mais recentemente, foi observada nas manifestações
populares que se intensificaram a partir do primeiro semestre de 2013.
Enquanto essas manifestações eram compostas por populares, esses eram
massacrados por balas de borracha e bombas utilizadas pelos agentes das polícias. Além

4
Carvalho, 1998, p. 1.
5
Brasil, 2010, p. 5.
6
Lorde, 1984, p. 37.
7
Santos, 2007, p. 84.
4

disso, a mídia utilizava termos como “vândalos” e “baderneiros” para identificar aqueles
que participaram dessas manifestações. Contudo, a partir do momento que uma
fotógrafa foi atingida por uma dessas balas de borracha, os participantes dos atos
passaram a ser chamados de “manifestantes” e as ruas foram tomadas por reivindicações
ufanistas “contra a corrupção” e “contra partidos políticos”. Isto representou a
apropriação desse movimento pela mídia hegemônica, o que permitiu sua pasteurização
e propiciou um revestimento de “legalidade” à tradicionalmente criminalizada
mobilização de rua.
Esse exemplo simboliza um modo de operar do poder hegemônico, ao se
apropriar das demandas populares e corrompê-las. Naquela ocasião, o aumento das
tarifas de transporte coletivo aparecia em primeiro plano como responsável pela
deflagração das manifestações populares, mesmo que o aumento das tarifas compusesse
apenas um caldo de direitos não concretizados e de promessas partidárias vazias
realizadas ao longo de campanhas, e que não foram cumpridas com a tomada do poder.
Para Boaventura de Sousa Santos, a perda do controle da agenda política leva à
descrença nos partidos políticos e os movimentos populares teriam a capacidade de
recuperá-la:
“Não me parece que possa ser de outra forma senão por meio de
pressão de baixo para cima, vinda dos movimentos, e com outra
característica: deve ser legal e ilegal. Não pode ser somente uma luta
institucional, tem de ser uma luta institucional e uma luta direta. Além
disso, em alguns contextos tem de ser cada vez mais direta, porque
com a criminalização da contestação está se reduzindo a
possibilidade de uma luta institucional, e se esta se reduz temos de
abrir espaços para a possibilidade de uma luta direta, ilegal e
pacífica. O que estou sugerindo é que temos de criar uma dialética
entre legalidade e ilegalidade, que de fato é a prática das classes
dominantes desde sempre: usam a legalidade e a ilegalidade quando
lhes convêm.
Por isso, não pode haver um fetichismo legal”.8

Assim, embora seja necessário compor os espaços institucionais de participação


popular, a atuação política não deve ser restrita a estes espaços, que distanciam o
indivíduo dos movimentos populares e das formas populares de reivindicar direitos.
Aproximando estas questões à luz do nosso tema central, devemos perguntar: o
que pode ser dito a respeito da participação e da representação política da população
LGBT?
Historicamente, o tabu que paira sobre a sexualidade humana impulsionou

8
Santos, 2007, pp. 97-98.
5

pessoas LGBT que eram alvos de opressões a se unirem aos movimentos existentes à
época que reivindicavam transformações na sociedade. No entanto, as demandas
específicas do segmento LGBT sempre estiveram em segundo plano, dado o
preconceito, a discriminação e a violência com que era abordada a vivência de uma
sexualidade não heterossexual e de uma identidade de gênero não coincidente com o
sexo biológico.
Assim, embora essas pessoas endossassem outros movimentos sociais, havia
grande dificuldade em fazer reivindicações políticas específicas do segmento LGBT.
No Brasil, as mobilizações contra a ditadura militar permitiram a politização do
movimento LGBT, de acordo com Simões e Facchini:

O arco de expressões e identificações de homossexualidades havia se


expandido e se diversificado em meio a um período fervilhante de
mudanças sociais e inovações culturais, que culminaram no grande
movimento de contestação do regime militar e abriram caminho,
também, para a expressão de um movimento político homossexual,
que entrava em cena, em 1978, com a publicação do jornal Lampião9
e a fundação do grupo Somos.10

As articulações entre o grupo Somos e o Lampião possibilitaram a organização


do movimento de gays e lésbicas. Contudo, tensões internas existentes no grupo Somos
impeliram as lésbicas do grupo a criarem um subgrupo cujo objetivo era a confecção de
matérias, para o Lampião, sobre a homossexualidade feminina e os espaços de
sociabilidade lésbica em São Paulo.
Apesar desse fato, a luta contra a ditadura militar uniu os movimentos sociais e
permitiu o exercício da solidariedade entre os grupos oprimidos com a finalidade de
engrossar as trincheiras de resistência contra a repressão. Nesse sentido, podem ser
citados dois momentos nos quais o movimento de gays e lésbicas se uniu ao movimento
negro e ao movimento de mulheres:

“O abaixo-assinado em defesa do Lampião e a participação


formal do Somos no ato público de comemoração do Dia de
Zumbi, promovido em novembro de 1979 pelo Movimento Negro
Unificado, foram as primeiras tomadas de posição política que
o grupo fazia em público.
(...)

9
O Lampião da Esquina foi um jornal homossexual que circulou entre 1978 e 1981. Tanto o jornal,
quanto o grupo Somos são consagrados como referências da primeira onda da mobilização política em
defesa da homossexualidade no Brasil (SIMÕES e FACCHINI, 2009, pp. 81-82).
10
Simões e Facchini, 2009, p. 80.
6

Homens participaram também (do II Congresso da Mulher


Paulista, realizado em março de 1980), incluindo ativistas do
Somos, e produziram documentos de apoio a reivindicações
feministas que incluíam a luta contra a discriminação sexual e a
dupla jornada no trabalho, defesa da equiparação salarial entre
homens e mulheres e descriminação do aborto”.11

Assim, apesar dos movimentos sociais terem suas bandeiras específicas, há


necessidade de articulação política entre si. Essa permite a sustentabilidade de
mobilização por meio da continuidade de ações contra-hegemônicas e,
consequentemente, amplia a capacidade de luta contra as opressões.
Essa capacidade de luta aumenta à medida que as frentes de reivindicação de
direitos são dilatadas por meio da transversalidade da relação entre as “minorias”
oprimidas, da participação popular nos espaços institucionais e das mobilizações
populares. Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos argumenta que:

“os movimentos em separado não veem as possibilidades que


têm a seu alcance: não aproveitam as oportunidades.
Isto é o que devemos analisar sobre a relação
movimentos/movimentos. Se os movimentos vão se manter
separados - feministas de um lado, operários, indígenas e
ecologistas de outro, direitos humanos aqui, sociedades de
bairros ali -, sem articulação, não iremos muito longe. Há um
excesso de teorias de separação e muito poucas teorias de
união, por uma tradição nefasta, a meu ver, na política de
esquerda: a crença de que politizar uma questão é polarizar
uma diferença. Para nossa tradição, politizar significa
polarizar. Dentro dos movimentos, das classes populares, é
preciso buscar outra cultura política, que tem de se basear no
que chamo de pluralidades despolarizadas”.12

Tais pluralidades despolarizadas resultam da somatória dos grupos oprimidos


diante de seus opressores. Vale ressaltar que, embora seja necessária a união entre os
movimentos, não se trata, aqui, de uma defesa da extinção dos movimentos específicos.
Ao contrário, o fortalecimento desses movimentos específicos permite uma articulação
mais consistente robustecendo a participação popular.
Assim, a utilização adequada dos instrumentos de participação social em uma
democracia deveria favorecer a representatividade política dos seguimentos. Contudo,
no Brasil, as minorias e os seguimentos socialmente excluídos têm baixíssima

11
Simões e Facchini, 2009, pp. 104-105.
12
Santos, 2007, p. 99.
7

representação política. Conforme dados apresentados no sítio eletrônico do Senado:

“Dos 81 senadores brasileiros, apenas oito são mulheres e dois


se declaram negros ou pardos. Na Câmara, dos 513 deputados,
46 são do sexo feminino, 43 são afrodescendentes e um é
assumidamente homossexual.
O quadro mostra um desequilíbrio de representatividade,
principalmente quando se leva em conta a presença destes
grupos no eleitorado nacional. Segundo o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), por exemplo, as mulheres representam 51,3%
do eleitorado. Todavia, nas últimas eleições para vereador, em
2012, dos 415 mil candidatos registrados, somente pouco mais
de 130 mil eram mulheres, o equivalente a 31%”.13

A baixa representação das “minorias” no cenário político também pode ser


apontada como resultado do difícil acesso ao financiamento de campanhas de
candidaturas de mulheres, de negros, de pessoas com deficiência, de LGBT, etc. Porém,
para reverter este quadro, além de uma reforma político-eleitoral, é necessário modificar
a perspectiva do eleitorado durante o exercício da participação indireta. Assim, aquele
que é identificado como o “outro” poderá ter a oportunidade de representar os interesses
de uma maioria invisível.
Portanto, as conquistas que resultaram na participação e representação política
da população LGBT decorreram de um processo histórico e coletivo que ainda está em
andamento ao lado das conquistas dos demais movimentos sociais. Dessa forma,
“ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens (e as mulheres) se
libertam em comunhão” (Freire, 2011, p.71).

Referências Bibliográficas:
CARVALHO, Maria do Carmo A. A. “Participação social no Brasil hoje”. São Paulo:
Pólis, 1998. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/w3/fsmrn/fsm2002/participacao_polis.html . Acesso em 09
dez. 2013.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2011.
LORDE, Audre. “La hermana, la extranjera”. Artículos y Conferéncias, 1984.
Disponível em:

13
Vieira, 2013.
8

http://www.lifsperu.org/files/pdf/cendoc/lecturas%20lesbicas/Audre%20Lorde-
La%20Hermana%20la%20Extranjera.pdf . Acesso em 09 dez. 2013.
BRASIL – SECRETARIA DE ASSUNTOS LEGISLATIVOS. Série Pensando o
Direito. Conferências nacionais, participação social e processo legislativo. Brasília, n.
27, 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação
social. São Paulo: Boitempo, 2007.
SIMÕES, Júlio Assis; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris. Do movimento
Homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2009.
VIEIRA, André. Participação de mulheres e minorias poderá ser tema de reforma
política. Disponível em:
http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/07/18/participacao-de-mulheres-e-
minorias-podera-ser-tema-da-reforma-politica. Acesso em 09 dez. 2013.
1  

A Constituição de 1988 e a
Evolução dos Direitos da População LGBT
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais)1

Paulo Roberto Iotti Vecchiatti2

É ponto comum afirmar-se que a Constituição Federal de 1988 gerou uma verdadeira
revolução no Direito das Famílias de nosso país. Trata-se de afirmação absolutamente
verdadeira, pois foi somente com ela que se deixou de proteger apenas uma espécie de
família, a saber, aquela formalizada pelo casamento civil, para se protegerem outras entidades
familiares, acabando-se assim com histórica discriminação jurídica contra as famílias não-
matrimonializadas.
Não por outro motivo, fala-se hoje em Direito das Famílias, no plural, e não mais em
Direito de Família, no singular. Aprofundando o que se expôs acima, no Código Civil de
1916 só se reconhecia como “família legítima” aquela formalizada pelo casamento civil,
entendendo-se por “legítima” aquela protegida pelo Direito; qualquer outra união de pessoas,
mesmo não impedidas de se casar (mesmo entre pessoas de sexos opostos), era considerada
como uma “família ilegítima”, logo, não protegida pelo Direito. Ou seja, protegia-se apenas
um único modelo de família, deixando-se os demais desprotegidos, por isso que faz muito
mais sentido falar-se hoje em Direito de Família, no plural, para se destacar que não é (mais)
apenas um único modelo de família que é protegido pelo Estado.
Curioso notar que sempre se falava em “Direito de Família e das Sucessões”, o que
certamente era uma forma semântica de se mostrar que o Estado protegia apenas uma forma
de família e tratava de diversas espécies de sucessões hereditárias. Enfim, continuemos.
A família consagrada pelo Código Civil de 1916 é definida como “família hierárquico-
patriarcal”, pela qual o homem (pater) era colocado em posição hierarquicamente superior à
da mulher, já que o homem era o chefe da sociedade conjugal heteroafetiva segundo expressa

                                                                                                                       
1
Texto baseado na quinta aula do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do Parlamento. O autor
ministrou palestra no dia 19 de novembro de 2013, nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo.
2
Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru, Especialista em Direito
Constitucional pela PUC/SP, Especialista em Direito da Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo, Advogado -
OAB/SP 242.668, autor do Livro "Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil,
da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos" (2ª Edição, São Paulo: Ed. Método, 2013), co-autor
dos Livros "Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo" (organizado por Maria Berenice Dias), "Minorias
Sexuais. Direitos e Preconceitos" (organizado por Tereza Rodrigues Vieira), "Manual do Direito
Homoafetivo" e "Manual dos Direitos da Mulher" (ambos organizados por Carolina Valença Ferraz, George
Salomão Leite, Glauber Salomão Leite e Glauco Salomão Leite) e membro do GADvS - Grupo de Advogados
pela Diversidade Sexual.
2  

disposição legal (art. 233 do CC/16), ao passo que a mulher se tornava “relativamente
incapaz” com o casamento (art. 6º, II, do CC/16), ou seja, a mulher “virava adolescente”, já
que ficava em situação equiparável à deste por não poder assinar contrato nenhum sem a co-
assinatura do marido, para ficar nesse exemplo. Tal situação só deixou de ocorrer com o
Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62), que deixou expresso que a mulher era
colaboradora do marido na sociedade conjugal e acabou com essa absurda diminuição da
capacidade civil dela no casamento.
Embora, sociologicamente, tenhamos passado pela assim chamada “família fusional”,
que se forma e se mantém unida apenas enquanto houver afeto (romântico) na relação, o
divórcio era proibido pelo Código Civil de 1916, razão pela qual muitas famílias fusionais
formadas por pessoas anteriormente casadas não eram protegidas pelo Direito, já que a
separação judicial (na época identificada pelo termo “desquite”) encerrava apenas a
“sociedade conjugal”, findando os deveres do casamento, mas não o “vínculo matrimonial”, o
que mantinha as pessoas casadas.
Ainda no mundo dos fatos, na década de 1980, constata-se a existência da “família
pós-moderna”, valorizando-se menos as relações por si mesmas e mais as gratificações
pessoais que elas concedem a seus integrantes (F. Singly)3. Logo, consagrou-se a noção de
família eudemonista, ou seja, a que se forma e se mantém unida apenas enquanto isso trouxer
felicidade e realização individual a cada um dos seus integrantes.
O texto constitucional de 1988 possibilitou a proteção das diversas entidades
familiares. Como anota Paulo Lôbo4, ao deixar de mencionar que a proteção estatal se dava à
família “constituída pelo casamento”, como fazia o artigo 175 da Constituição de 1967-69,
para falar que a “família” (qualquer família) merece “especial proteção do Estado” (artigo 226
da Constituição de 1988), a cláusula de exclusão desapareceu, passando a serem protegidos
todos os vínculos familiares, identificando-se a família pela união de pessoas pautada pela
afetividade, durabilidade, continuidade e publicidade da relação, ao que Rodrigo da Cunha
Pereira acrescenta a estrutura psíquica familiar (Lacan), no sentido de as pessoas se
entenderem como integrantes de uma família. Por isso, afirmo que a família se forma pelo
amor familiar, o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura5.

                                                                                                                       
3
Aqui, sobre os modelos institucional, fusional e pós-moderno de família, parafraseamos a lição de Rios (2001,
pp. 102-106) que explicita as lições de V. Poncar e P. Rofani e F. Singly acerca do tema.
4
Lôbo, 2008, pp. 57-58.
5
Vide Vecchiatti, 2013, capítulo 05, item 2.4.1.
3  

Relativamente à família conjugal homoafetiva, a polêmica jurídica se instaurou em


razão de o artigo 226, §3º, da Constituição Federal, afirmar que “Para efeito da proteção do
Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar,
devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”, o que faz muitos verem uma “proibição
implícita” a ela por força da expressão “entre o homem e a mulher” dele constante. Contudo,
como destaquei em sustentação oral perante o Supremo Tribunal Federal no julgamento da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 132 e da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) n.º 4277, no qual o STF reconheceu a união homoafetiva como
família conjugal que se enquadra no conceito constitucional de união estável da mesma forma
que a união heteroafetiva, dizer que é reconhecida a união estável “entre o homem e a
mulher” é diferente de dizer que ela é reconhecida “apenas entre o homem e a mulher”, donde
como o “apenas” não está escrito, não há “limites semânticos no texto” que impeçam a
inclusão da união homoafetiva no conceito constitucional de união estável – e, por identidade
de razões, no conceito legal de casamento civil.
É lição tradicional na doutrina a de que, no Direito Privado, aquilo que não está
(expressamente) proibido tem-se por permitido, daí decorrendo célebre lição de hermenêutica
jurídica segundo a qual restrições de direitos devem ser expressas na legislação para que se as
tenha como existentes; o juiz pode reconhecer direitos não expressamente citados na lei, mas
não pode restringir mais do que a lei restringe (daí outra máxima do Direito: aonde a lei não
discriminou, não cabe ao intérprete discriminar), pois restrições de direitos devem ser
decorrentes da expressa autorização do povo exteriorizada em textos normativos aprovados
pelo Parlamento ou, pelo menos, de ordem constitucional de legislar autorizativas, a nosso
ver, do Tribunal Constitucional elaborar a normatização não criada pelo legislador se este
persistir em sua omissão inconstitucional6. Tanto é verdade que restrições de direitos devem
ser expressas que o Superior Tribunal de Justiça admitiu a discussão sobre o casamento civil
homoafetivo com base na violação ao artigo 1.521 do Código Civil, que trata dos
impedimentos matrimoniais (situações nas quais o casamento é proibido), sob o fundamento
de não ser proibido o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo no Brasil, em julgamento
que reconheceu esse direito no Brasil (Recurso Especial n.º 1.183.378/RS), do qual também
tive o privilégio de participar também por sustentação oral em favor do casal recorrente.

                                                                                                                       
6
Não é possível desenvolver aqui o tema pelos limites físicos deste artigo, mas vale dizer que o próprio conceito
ontológico de omissão inconstitucional supõe a supressão de tal inconstitucionalidade, o que só é possível
mediante a criação da normatização constitucionalmente imposta pelo Tribunal Constitucional caso o
Parlamento se recuse a fazê-lo.
4  

No Brasil a discussão sobre o direito de casais homoafetivos ao regime jurídico da


união estável ganhou força nos anos 2000. Inicialmente, algumas decisões do final do século
XX reconheceram a união entre pessoas do mesmo sexo como “sociedade de fato”, uma
analogia com o Direito Comercial que se fazia para proteger a mulher não casada antes da
Constituição de 1988 para reconhecer a sua “família ilegítima” como uma “sociedade
comercial não registrada na Junta Comercial” para, com isso, possibilitar que cada qual
provasse, em “apuração de haveres”, quanto cada um havia contribuído para a construção do
patrimônio comum para que, com isso, fosse feita a divisão patrimonial (STF, Súmula 380).
Embora pareça justa, é notório que não se guardam notas fiscais ou comprovantes de
transferências bancárias (etc) ao longo de uma relação, donde se trata de prova
consideravelmente difícil de ser feita, donde essa “analogia” poucas vezes conseguiu fazer
verdadeira justiça (se é que conseguiu em alguma), além de equiparar uma sociedade de afeto
(Maria Berenice Dias) a uma sociedade irregular, algo absurdo, como reconhecido pelo
Ministro Marco Aurélio no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277. A analogia seria com a
família conjugal, não com uma sociedade de fato.
Exemplificativo desse entendimento paliativo, temos o caso de Jorge Guinle, em
1989 , e de decisão do Superior Tribunal de Justiça, em 19988, que classificaram a união
7

homoafetiva como mera “sociedade de fato”.

                                                                                                                       
7
Vide Dias, 2009, p. 204. “AÇÃO OBJETIVANDO O RECONHECIMENTO DE SOCIEDADE DE FATO E
DIVISÃO DOS BENS EM PARTES. Comprovada a conjugação de esforços para a formação do patrimônio que
se quer partilhar, reconhece-se a existência de uma sociedade de fato e determina-se a partilha. Isto, porém, não
implica, necessariamente, em atribuir ao postulante 50% dos bens que se encontram em nome do réu. A divisão
há de ser proporcional à contribuição de cada um. Assim, se os fatos e circunstâncias da causa evidenciam uma
participação societária menor de um dos ex-sócios, deve ser atribuído a ele um percentual condizente com a sua
contribuição. (TJ/RJ, Apelação Cível n.º 731/89, 5ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Mário Albiani,
julgada em 22/08/1989)”. Outro julgado citado nesse sentido é o seguinte: “ORDINÁRIA. DISSOLUÇÃO DE
SOCIEDADE DE FATO ENTRE MULHERES HOMOSSEXUAIS. EFETIVA PARTICIPAÇÃO NA
FORMAÇÃO DO PATRIMÔNIO. O enriquecimento ilícito emana da sistemática do CC (1916) e do pagamento
indevido. (TJ/RJ, Apelação Cível .º 1435/95, 4ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Fernando Whitaker,
julgada em 31/10/1995)”.
8
“SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. PARTILHA DO BEM COMUM. O parceiro tem o direito de
receber a metade do patrimônio adquirido pelo esforço comum, reconhecida a existência de sociedade de fato
com os requisitos previstos no art. 1.363 do CC (1916). Responsabilidade civil. Dano moral. Assistência ao
doente com Aids. Improcedência da pretensão de receber do pai do parceiro que morreu com Aids a indenização
pelo dano moral de ter suportado sozinho os encargos que resultaram da doença. Dano que resultou da opção de
vida assumida pelo autor e não da omissão do parente, faltando o nexo de causalidade. Art. 159 do CC (1916).
Ação possessória julgada improcedente. Demais questões prejudicadas. Recurso conhecido em parte e provido”
(STJ, REsp n.º 148.897/MG, 4ª Turma, Relator: Ministro Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 10/02/1998). Note-
se, apenas, a pré-compreensão dos julgadores, na questão relativa ao dano moral. Disseram que o dano oriundo
da contaminação pelo vírus do HIV teria decorrido da “opção de vida assumida pelo autor” (sic), o que deixa
clara a concepção dos ministros da AIDS como uma “peste gay”, preconceito absurdo que assolou a humanidade
por força de simplismo acrítico consagrado na década de 1980. Isso, seguramente, contribuiu para negar o status
jurídico-familiar da união homoafetiva neste julgado.
5  

A partir do final da década de 1990, decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do


Sul passaram a reconhecer a competência das varas de famílias para o julgamento de
dissoluções de relacionamentos homoafetivos por se tratarem de relações de afeto,
semelhantes às relações heteroafetivas9. Posteriormente, a jurisprudência (principalmente
gaúcha) passou a reconhecer a própria união estável entre casais homoafetivos, por não ser
mais admissível o farisaísmo que negue a existência das uniões amorosas entre pessoas do
mesmo sexo que se pautem pelos mesmos valores e princípios das uniões amorosas entre
pessoas de sexos diversos, como a fidelidade e a mútua assistência10, precedente este que “fez
escola”11 para que a analogia fosse usada para proteger as famílias homoafetivas, baseadas no
mesmo elemento constitutivo12, o afeto13, por força dos princípios da liberdade, da igualdade
e da dignidade da pessoa humana14, ao menos após o reconhecimento expresso da
possibilidade jurídica do pedido da união estável homoafetiva por parte do tribunal gaúcho15.

                                                                                                                       
9
“RELAÇÕES HOMOSSEXUAIS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE SEPARAÇÃO DE
SOCIEDADE DE FATO DOS CASAIS FORMADOS POR PESSOAS DO MESMO SEXO. Em se tratando de
situações que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das varas de
família, à semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido” (TJRS, Agravo de
Instrumento n.º 599.075.496, 8ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Breno Moreira Mussi, julgado em
17/06/1999).
10
“UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. MEAÇÃO.
PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo
sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de
preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar mesmo em sua natural atividade retardatária.
Nelas remanescem consequências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a
aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevado sempre os princípios constitucionais da
dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser
partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação
provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros” (TJRS, Apelação Cível n.º
70001388982, 7ª Câmara Cível, Relator: Desembargador José Carlos Teixeira Giórgis, julgado em 14/03/2001).
11
“AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO CUMULADA COM
PARTILHA. DEMANDA JULGADA PROCEDENTE. RECURSO IMPROVIDO. Aplicando-se
analogicamente a Lei 9.278/1996, a recorrente e sua companheira têm direito assegurado de partilhar os bens
adquiridos durante a convivência, ainda que tratando-se de pessoas do mesmo sexo, desde que dissolvida a união
estável. O Judiciário não deve distanciar-se de questões pulsantes, revestidas de preconceitos só porque
desprovidas de norma legal. A relação homossexual deve ter a mesma atenção dispensada às outras relações.
Comprovado o esforço comum para a ampliação do patrimônio das conviventes, os bens devem ser partilhados.
Recurso improvido” (TJ/BA, Apelação Cível n.º 16313-9/99, 3ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Mário
Albiani, julgada em 04/04/2001).
12
“[...] A união homossexual merece proteção jurídica, porquanto traz em sua essência o afeto entre dois seres
humanos com o intuito relacional. [...]” (TJ/RS, Apelação Cível n.º 70006542377, 8ª Câmara Cível, Relator:
Desembargador Rui Portanova, julgado em 11/09/2003)
13
“[...] À união homoafetiva, que preenche os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser
conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena
de ofensa aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. [...] A lacuna existente na legislação não
pode servir como obstáculo para o reconhecimento de um direito” (TJ/MG, Processo n.º 21.0024.06.930324-6,
Relatora: Desembargadora Heloisa Combat, julgado em 22/05/2007).
14
“[...] À união homoafetiva que irradia pressupostos de união estável deve ser conferido o caráter de entidade
familiar, impondo reconhecer os direitos decorrentes destes vínculos, pena de ofensa aos princípios
6  

Embora ainda fosse minoritária a jurisprudência que reconhecia a união homoafetiva


como união estável, estava fortemente consolidado tal entendimento, o que certamente foi um
contexto histórico positivo a possibilitar o histórico julgamento do Supremo Tribunal Federal
nos dias 4 e 5 de maio de 2011, no qual ele julgou procedentes a ADPF 132 e a ADI 4277
para reconhecer a união homoafetiva como união estável e, assim, como família conjugal com
igualdade de direitos à família conjugal heteroafetiva. O voto do Ministro Fux é
paradigmático no ponto: a união homoafetiva se enquadra no conceito ontológico de família
e, assim, merece a proteção do regime jurídico da união estável. Por igualdade de razões,
também do casamento civil, como posteriormente reconhecido pelo Superior Tribunal de
Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.183.378/RS, nos dias 20 e 25 de outubro de
2011.
O STF e o STJ acertaram em suas decisões. É lição do primeiro ano de Direito que o
legislador não consegue prever todas as situações possíveis, razão pela qual a situação de
ausência de permissão cumulada com ausência de proibição não gera uma “proibição
implícita”, mas uma “lacuna normativa”, um “buraco” na legislação, que não regulamenta,
mas, ao mesmo tempo, não proíbe determinado fato, o que possibilita o uso de interpretação
extensiva ou analogia para se estender o regime jurídico em questão à situação não
regulamentada se ela for idêntica (interpretação extensiva) ou equivalente (analogia) àquela
regulamentada. Tal decorre do princípio da igualdade, no sentido de se tratar igualmente
situações idênticas ou equivalentes (idênticas no essencial, como se diz sobre a analogia).
Assim, como a união homoafetiva é idêntica ou, no mínimo, equivalente à união
heteroafetiva, já que ambas formam uma família conjugal, e considerando que a família
conjugal constitui o objeto de proteção do casamento civil e da união estável, tem-se por
cabível interpretação extensiva ou analogia para se permitir o casamento civil e a união
estável entre casais homoafetivos. Como se vê, lições de Direito Civil Clássico justificam as
decisões do STF (ADPF 132 e ADI 4277) e do STJ (REsp 1.183.378/RS), donde a menos que
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
constitucionais da liberdade, da proibição de preconceitos, da igualdade e dignidade da pessoa humana” (TJ/MG,
Apelação Cível n.º 1.0024.05.750258-5, Relator: Desembargador Belizário de Lacerda, julgada em 04/09/2007).
15
“HOMOSSEXUAIS. UNIÃO ESTÁVEL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. É possível o
processamento e o reconhecimento de união estável entre homossexuais, ante princípios fundamentais
insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer discriminação, inclusive quanto ao sexo, sendo
descabida discriminação quanto à união homossexual. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se
estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preceitos arcaicos, modificando
conceitos e impondo a serenidade científica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições
devem ser marcadas e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocessos e para que as individualidades
e coletividades possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos.
Sentença desconstituída para que seja instruído o feito. Apelação provida” (TJ/RS, Apelação Cível n.º
598.362.655, 8ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Caetano Lagastra, julgado em 14/03/2001).
7  

se pretenda declarar a “inconstitucionalidade” da interpretação extensiva e da analogia por


suposta “afronta” ao princípio da “separação dos poderes” (logo, dos artigos 4º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro e 126 do Código de Processo Civil), o que seria
de um absurdo anacronismo contrário à isonomia, não se pode dizer que STF e STJ teriam
violado tal princípio.
Com base nestas decisões, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução
175/2013, obrigando os Cartórios de Registro Civil do Brasil a celebrarem o casamento civil
homoafetivo. Como a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277 tem “força de lei” (efeito
vinculante e eficácia erga omnes), considerando que tal decisão afirmou que o
reconhecimento da união estável homoafetiva é um “Reconhecimento que é de ser feito
segundo as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva” e considerando
que uma destas “consequências” é a possibilidade de conversão em casamento civil, então
tem-se que a força de lei da decisão do STF torna obrigatório o reconhecimento do casamento
civil homoafetivo por conversão de prévia união estável. Nesse sentido, resta reconhecido o
direito de casais homoafetivos ao casamento civil, donde seria um contrassenso não se
reconhecer o direito ao casamento civil homoafetivo “direto”, sem prévia união estável, sob
pena de se impor à união homoafetiva uma espécie de “estágio probatório” que não se exige
da união heteroafetiva para que possa ser consagrada pelo casamento civil, algo despido de
fundamento lógico-racional que lhe sustente, e que coloca as uniões homoafetivas como
“menos dignas” que as heteroafetivas por destas não se exigir a legitimação por prévia união
estável para acesso ao casamento civil, donde contrário à dignidade humana, donde tal
exegese afigura-se inconstitucional por contrariar tais princípios constitucionais. Assim,
absolutamente legítima e constitucional a Resolução 175/2013 do CNJ, como inclusive
defendemos em manifestação em nome do PSOL (Partido Socialismo com Liberdade) e da
ARPEN-RJ (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio de Janeiro) em ação
movida pelo PSC (Partido Social Cristão) contra dita resolução (ADI 4966), a qual ainda
aguarda julgamento pelo STF.
A adoção conjunta por casais homoafetivos parece estar se consolidando na
jurisprudência. Ela já era reconhecida antes de tais decisões do STF e do STJ por conta dos
laudos de assistente social e psicólogo apontando a capacidade das pessoas (homossexuais)
em questão para assumir a função parental e ante os diversos estudos psicológico-sociais que
atestam a inexistência de prejuízos a crianças e adolescentes por sua mera criação por um
casal homoafetivo relativamente àquelas(es) criadas(os) por casais heteroafetivos. No STJ, tal
8  

já foi reconhecido em duas oportunidades, julgamentos nos quais, inclusive, se destacou essa
ausência de prejuízos mediante apontamento de estudos de órgãos especializados no tema
(STJ, REsp 1.281.093/SP, de 18.12.12, DJe de 04.02.13, e REsp 889.852/RS, de 27.04.10,
DJe de 10.08.10).
Ainda sobre a parentalidade por casais homoafetivos, temos a paradigmática decisão
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Caso Atalla y niñas vs. Chile (2012), na
qual o Chile foi condenado por ter retirado a guarda das filhas da Sra. Atalla apenas por conta
dela, após se separar de seu marido, ter passado a manter uma relação conjugal com outra
mulher (logo, por sua mera homoafetividade), sob o fundamento de que, embora a proteção de
crianças e adolescentes evidentemente seja um legítimo fim estatal, não se podem usar
estereótipos (preconceitos) contra a homossexualidade para se proibir a criação de crianças e
adolescentes por homossexuais e casais homoafetivos. Afinal, preconceito não é paradigma
jurídico - afinal, o art. 3º, IV, de nossa Constituição Federal veda preconceitos e
discriminações [arbitrárias] de qualquer natureza, algo absolutamente imanente a qualquer
noção do princípio da não discriminação.
Sobre os direitos da população transexual, tem-se como marco inicial o famoso
julgamento do extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo16 (absorvido pelo Tribunal
de Justiça de São Paulo após a Emenda Constitucional 45, de 2004), no qual, por maioria
(2x1), se absolveu o médico que realizou cirurgia de transgenitalização em um paciente
transexual da acusação de crime de “lesão corporal grave”, oriunda da retirada (ablação) do
pênis logicamente decorrente da cirurgia. Reformando a sentença condenatória de primeira
instância, afirmou corretamente o Tribunal que “Não age dolosamente o médico que, através
de uma cirurgia, procura curar o paciente ou reduzir o seu sofrimento físico ou mental”.
Segundo o Tribunal:

“[...] tal cirurgia tinha sido tomada por um grupo de médicos, psiquiatras e
psicólogos, todos amparados, como acima exposto, no parecer de um jurista
do mais alto gabarito moral e intelectual, o Prof. Washington de Barros
Monteiro, cabendo salientar que existe nos autos um parecer do E.
Jurisconsulto Prof. Heleno Claudio Fragoso, que não vislumbrou
antijuridicidade no ato do acusado, concluindo ‘não haver a menor dúvida
de que o Dr. Roberto Farina agiu de boa-fé, com o propósito curativo, tendo
presente a positiva e cuidadosa indicação médica que lhe foi feita pela
equipe de médicos que vinha atendendo ao paciente’ (fls)”.

                                                                                                                       
16
TACRim/SP, Apelação Criminal n.º 201.999/Capital (In: RT 355/372 – que inclusive contém a íntegra da sentença condenatória
reformada por dita decisão).
9  

Aplaudimos a referida decisão, por se pautar no bem-estar da pessoa transexual em


questão, que solicitou a intervenção cirúrgica e restou bem integrada socialmente após a
mesma, assim como por sair de uma aplicação cega da lei penal, que visa punir aquele que faz
algo contrário à saúde física da pessoa, algo absolutamente inexistente no presente caso.
Desconhecemos alguma outra decisão criminal condenatória a médicos que realizaram
cirurgias de transgenitalização após aquela reformada por dito julgamento do extinto Tribunal
de Alçada Criminal de São Paulo. O direito à cirurgia de transgenitalização parece ter se
consolidado ou, ao menos, não ter sido questionado desde então, ao passo que, em 1997, o
Conselho Federal de Medicina aprovou a Resolução 1.482/97, na qual autorizou
expressamente a realização da cirurgia de transgenitalização para o tratamento de pessoas
transexuais, afirmando em seus “considerandos” justamente a ausência de crime por ausência
de dolo (intenção de machucar/lesionar), consoante fundamentação do citado julgado –
resolução esta posteriormente atualizada pela Resolução 1.652/2002, a qual foi também
substituída pela atual Resolução 1.955/2010. O artigo 13 do Código Civil de 2002 legaliza tal
cirurgia ao dizer (a contrario sensu) que é permitida a disposição do próprio corpo quando ela
for decorrente de exigência médica, que existe no caso das cirurgias de transgenitalização (cf.,
inclusive, o Enunciado 276 da IV Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da
Justiça Federal, em 2006), inclusive se considerarmos o conceito de saúde como completo
estado de bem estar físico, psicológico e social como diz a Organização Mundial de Saúde
(logo, a ser acolhida pela OMS, como entendemos que deve ser, a despatologização das
identidades trans, tal direito não será afetado17).
Atualmente, a jurisprudência parece ter consolidado o direito de pessoas transexuais
alterarem seu prenome (“primeiro nome”) e seu sexo jurídico após a realização da cirurgia de
transgenitalização (v.g., STJ, REsp 1.008.398/SP, DJe de 18.11.09, e REsp 737.993/MG, DJe
de 18.12.09). A polêmica atualmente existente encontra-se no direito a tais alterações
independentemente da realização da referida cirurgia, hipótese na qual ainda parece ser
minoritária a jurisprudência que isto possibilita.
Vejamos trecho fundamental de paradigmático julgado do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul18 19 que deferiu a mudança do prenome do autor da ação:
                                                                                                                       
17
Para desenvolvimentos da despatologização das identidades trans, vide (Bento, 2008), bem como a
paradigmática manifestação do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, que bem explica a tese no
seguinte link: Cf. http://www.crpsp.org.br/portal/midia/fiquedeolho_ver.aspx?id=365 (acesso em 26.04.12)
18
TJ/RS, Apelação Cível n.º 70030504070, 08ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Rui Portanova, julgada
em 29/10/2009. Grifos nossos. Anote-se que o termo “travestismo” é do original e, embora ainda seja
tecnicamente correto pela Organização Mundial de Saúde falar em travestismo, entendo que se deve falar em
10  

“O cerne do princípio da igualdade está na proibição do tratamento


discriminatório. Ou seja, são vedadas as que visem a prejudicar, restringir ou
mesmo acabar com o exercício de direitos e liberdades fundamentais, em
razão de sexo, raça, cor, idade, origem, religião. É inegável que, no exercício
da sua liberdade, JB tem o direito de buscar a qualidade de vida através da
satisfação dos seus anseios, concretizando assim o seu direito à liberdade e
à dignidade. E aqui a satisfação de JB está representada na alteração do seu
nome. Ele quer sentir-se bem e conformado com a sua condição social
expressada através do nome e tudo o que ele representa coletiva e
individualmente. Não há negar que a identidade social e psicológica é base
para essa busca. A insatisfação com a própria identidade, representada pelo
nome, o descompasso entre o que se é de fato e o que vem representado
através do nome, impede a pessoa de viver com dignidade e fomenta um
sentimento de total inadaptação. É por isso que ‘nessa perspectiva
jusfundamental, o que se tem que evitar é, para o fim de superar a disforia
sexual, afirmar que só é masculino e só é feminino quem atender a uma
determinada, rígida, fixa e excludente combinação de características,
impostas pelas convicções sociais da maioria ou pela pretensão de um saber
médico neutro e objetivo. Tal percepção, intransigente e inflexível, gera
violações de direitos fundamentais e é fruto do fechar dos olhos à realidade:
a sexualidade e a vida humana não se deixam enquadrar em padrões
historicamente definidos por profissionais da saúde ou por representantes
da opinião da maioria. A vida humana e suas manifestações são um
‘continuum’, que não se deixam aprisionar em polaridades opostas e
compartimentos estanques. No campo da sexualidade, a demonstração mais
famosa dessa realidade, com enorme impacto científico, social e cultural,
veio com o clássico Sexual Behavior in the Human Male, do biólogo Alfred
Kinsey, publicado em 1948 e baseado em exaustivo estudo estatístico’
(Roger Raupp Rios, apelação cível nº 2001.71.00.026279-9/RS). Logo,
desimporta aqui a apuração da verdade sobre a sexualidade ou o gênero ao
qual JB pertence. Não é necessário categorizá-lo como travesti ou
transexual para reconhecer a sua condição de ser humano e digno. É inútil,
e até indigna, a categorização das pessoas pelo sexo, como condição para
que se possa atribuir-lhe uma conformação social entre o nome e sua
aparência. As ações, modo de vida, e a própria opção pessoa de cada um são
os motivos suficientes para determinar a verdadeira identidade e não podem
servir para discriminar. [...] Com efeito, embora o nome apresente-se como
um elemento de diferenciação do indivíduo perante a coletividade, o seu
maior atributo não está no coletivo, mas no individual. É através do nome
que todo e qualquer indivíduo se identifica, se vê como um ser dotado das
características que aquele signo representa para si. É claro que a forma
como o indivíduo é visto socialmente também importa para a conformação
do nome. Mas a importância dessa visão social e coletiva do indivíduo volta-
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
travestilidade, por não considerar que as pessoas travestis sejam “doentes” pelo simples fato de serem travestis
(ismo é sufixo que significa doença, ao passo que dade é sufixo que significa modo de ser). Na verdade, a
patologização da travestilidade nada mais é do que uma naturalização das normas de gênero que visam atribuir
determinadas características às pessoas em razão de seu sexo biológico, mas esta discussão transcende os limites
deste artigo, mas trabalhada na manifestação do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo em prol da
despatologização das identidades trans, constante do link da nota anterior.
19
No mesmo sentido: TJ/RS, Apelação Cível n.º 70030772271, 08ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Rui
Portanova, julgada em 16/07/2009; Apelação Cível n.º 70022504849, 08ª Câmara Cível, Relator: Desembargador
Rui Portanova, julgada em 16/04/2009.
11  

se muito mais para o próprio indivíduo em respeito à sua dignidade, em


atenção à forma como esse indivíduo sente-se ao ser visto dessa ou daquela
forma pelo coletivo. Está certo que JB não só apresenta-se com
características físicas e psíquicas femininas, como também deixa certo que o
nome que melhor lhe identifica e que satisfaz os seus anseios é o nome com
tais características. Basta olhar as fotos de fls. 29/30 e 71 e se verá que JB se
apresenta como uma mulher. [...] Ao fim e ao cabo, desimporta se JB é um
transexual ou um travesti. Desimporta se ele fez ou fará cirurgia de
transgenitalização, se sua orientação sexual é pelo mesmo sexo ou pelo sexo
oposto, por homem ou por mulher. Todos esses fatores não modificam a
forma como JB se vê e é visto por todos. Como uma mulher. Tal como dito
por Berenice Bento ‘Os ‘normais’ negam-se a reconhecer a presença da
margem no centro como elemento estruturante e indispensável. Daí eliminá-
la obsessivamente pelos insultos, leis, castigos, no assassinato ritualizado de
uma transexual que precisa morrer cem vezes na ponta afiada de uma faca
que se nega a parar mesmo diante do corpo moribundo. Quem estava sendo
morto? A margem? Não seria o medo de o centro admitir que ela (a
transexual/a margem) me habita e me apavora? Antes de matá-la. Antes de
agir em nome da norma, da lei e fazer a assepsia que garantirá o bom
funcionamento e regulação das normas. Outra solução ‘mais eficaz’ é
confinar os ‘seres abjetos’ aos compêndios médicos e trazê-los à vida
humana por uma aguilhada que marca um código abrasado a cada relatório
médico que diagnostica um transtorno’ (BENTO, Berenice. O que é
transexualidade, p. 38-39. Ed. Brasiliense). Enfim, de qualquer forma que se
aborde o assunto, a solução não pode ser outra que não o atendimento do
pedido da autora”. (grifos nossos)

Em outro julgado, afirmou-se que “Se a requerente, portanto, como na hipótese dos
autos, se sente homem sob o ponto de vista psíquico, procede como se do sexo masculino
fosse e comporta-se socialmente como tal, não há qualquer motivo para se negar a
pretendida alteração registral pleiteada. Entendimento semelhante, de resto, adota M.
BERENICE DIAS (Manual de Direito das Famílias, 5ª Ed., São Paulo, Revista dos Tribunais,
2009, p. 136) que, com apoio doutrinário nas lições de A. CHAVES e E. SZANIAWSKI
explica, com percuciência, que ‘a aparência externa não é a única circunstância para a
atribuição da identidade sexual, pois com o lado externo concorre o elemento psicológico.
Assim, o sexo civil ou jurídico deve espelhar e coincidir com o sexo vivido socialmente pela
pessoa’ (grifos meus). (...) Em suma, toda a interpretação jurídica, no entender deste
subscritor, deve propiciar o bem estar social do indivíduo, de modo a não causar-lhe
constrangimento público. Preserva-se, assim, o direito específico e palpável à intimidade da
autora, como decorrência do princípio da dignidade humana. Lembre-se que a
desconformidade entre o sexo jurídico e o sexo psicológico é, singelamente, o que constitui,
depuradas as tantas variáveis possíveis, o fundamento em que se esteia a pretensão
retificadora. Nesse passo, a singela virilização anômala notada, sem a realização da cirurgia
12  

de transgenitalização seja a neocolpovulvoplastia, ou, no caso, a neofaloplastia e seus


procedimentos complementares, não impede, por seu caráter complementar de mera
conformação dos caracteres biológicos ao sexo psicológico notado, a alteração de nome e
sexo pretendida. É o que explica M. BERENICE DIAS (op. e loc. cit.) que afirma que ‘mesmo
antes da realização da cirurgia, possível a alteração do nome e da identidade sexual’” (TJSP,
Apelação n.º 0008539-56.2004.8.26.0505)20.
Logo, entendemos dever ser deferida também a modificação do sexo jurídico da pessoa
transexual independentemente da realização da cirurgia, para integral respeito à dignidade
humana da mesma. Com efeito, o sexo não se limita a uma questão puramente
genética/biológica, sendo igualmente determinado por aspectos psicológicos e sociais. É
preciso combater essa verdadeira genitalização da pessoa humana perpetrada pela
jurisprudência que nega o direito à retificação de registro civil à pessoa transexual não
operada, jurisprudência esta que afirma que uma pessoa só teria adequado seu sexo ao outro
após extirpar sua genitália. Não se pode afirmar a genitália como elemento preponderante na
definição do sexo da pessoa, já que o preponderante é o sexo psicológico e social, ou seja, a
forma como a pessoa se compreende e é conhecida socialmente. Dessa forma, “considerando
que o direito à personalidade da pessoa humana não se limita à anatomia dos órgãos genitais,
mas a um conjunto de favores biológicos, sociais e culturais, como sustenta o ilustre
Desembargador Rui Portanova no acórdão supra referido, deve prevalecer o sexo psicológico

                                                                                                                       
20
Vejamos outro aresto: “RETIFICAÇÃO DE ASSENTO. Portador de transexualismo que fundamenta sua
pretensão em situações vexatórias e humilhantes. Extinção da ação sob o fundamento de que não realizada a
cirurgia de transgenitalização. Descabimento - Informações prestadas pelo médico psiquiátrico, que identificam
incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade que a parte autora
relatou sentir. Cirurgia de transgenitalização que possui caráter secundário. Sexo psicológico é aquele que
dirige o comportamento social externo do indivíduo. Recurso provido com determinação” (TJSP, Apelação n.º
0082646-81.2011.8.26.0002, 08ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Hélio Faria, julgada em
30.10.13. Grifos nossos). No inteiro teor deste julgado destacou-se que “No mérito, a questão levantada se cinge
à necessidade ou não da cirurgia de transgenitalização para a retificação do nome. Assim, primeiramente, há que
ser considerado que conforme laudo médico-psiquiátrico, a desconformidade psíquica entre o sexo biológico e o
sexo psicológico decorre de transexualismo feminino (fl. 14). Importante não perder de vista que o sexo
psicológico é aquele que dirige o comportamento social externo do indivíduo. Nota-se que a parte recorrente
‘não considera aceitável viver de acordo com a identidade socialmente esperada devido à designação de gênero
ao nascimento e infância e/ou sua anatomia de nascimento’ (fl. 15). O fato é que se trata de caso de
transexualismo, não constituindo a cirurgia de transgenitalização requisito para a retificação de assento ante o
seu caráter secundário. Embora a parte apelante afirme a intenção da cirurgia, esta possui caráter
complementar, visando a conformação das características e anatomia ao sexo psicológico. Ressalta-se que
submeter-se ou não ao procedimento cirúrgico é opção do indivíduo e a exigência de tal procedimento como
requisito à retificação de seu nome afrontaria o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que se
busca preservar. Frise-se que não é o procedimento cirúrgico em si que definirá a sexualidade da pessoa e sim,
o sexo psicológico. Se vai se submeter ou não à cirurgia de transgenitalização é decisão que cabe somente ao
indivíduo. (...)” (grifos nossos).
13  

sobre a sexualidade meramente anatômica” (TJRS, Apelação Cível n.º 70019900513, 8ª


Câmara Cível, Relalor Desembargador Claudir Fidelis Faccenda, julgada em 13/12/2007).
Outros temas ainda carecem de evolução nos direitos da população LGBT. Há a questão
da absurda discriminação contra “homens que fazem sexo com outros homens” (HSH) na
medida em que são proibidos de doar sangue claramente por serem considerados como um
“grupo de risco”; a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) nega considerar os
HSH como um “grupo de risco” já que esta noção já foi superada pela de “práticas de risco”,
donde ela fala em “situações de risco acrescido” para denotar práticas sexuais passíveis de
contaminação por doenças sexualmente transmissíveis (DST), contudo, proibir
aprioristicamente todos os homens que fizeram sexo com outros homens nos últimos doze
meses de doar sangue, como a ANVISA insiste, implica em classificar todo e qualquer HSH
não celibatário como alguém com “alto risco” de ter alguma DST sem considerar sua conduta
sexual concreta. Com efeito, nas doações de sangue, é feito um questionário pela equipe
médica pelo qual se perguntam sobre diversas condutas consideradas de risco, não apenas
sexuais, entre elas se a pessoa pratica sexo seguro (com preservativo) por parte de HSM –
homens que fazem sexo [apenas] com mulheres, para excluir pessoas com “práticas de risco”
de contaminação por alguma doença transmissível pela doação de sangue, mas para HSH
pergunta-se apenas se eles praticaram sexo com outros homens para impedir a doação de
sangue, mesmo que a prática sexual em questão tenha sido com preservativo e com parceiro
fixo, o que demonstra tratar-se de puro preconceito que gera uma classificação apriorística de
HSH como um “grupo de risco”, em contraposição ao que se faz por HSM. Trata-se de
discriminação absurdamente inconstitucional por irrazoável (se o HSH não teve práticas de
risco, não faz sentido proibir sua doação de sangue), indignificante (por classificar HSH como
pessoas aprioristicamente irresponsáveis, sem considerar suas condutas concretas,
considerando-os assim como menos dignos), caracterizando assim uma diferenciação
arbitrária por não se perquirir a conduta sexual concreta de HSH para se considerá-los
aprioristicamente como “suspeitos” a terem alguma doença transmissível pela doação de
sangue. É medida inadequada, já que HSH que não tenham práticas de risco não são aptos a
contaminar o sangue dos hemocentros, desnecessária, porque há meio menos gravoso de se
promover a segurança do sangue dos hemocentros sem prejuízo dos direitos de HSH, a saber,
fazer-se a mesma pergunta que se faz a HSM (se praticou sexo seguro, com preservativo,
entre as demais perguntas), e, assim, desproporcional em sentido estrito, já que o direito à
14  

não-discriminação há de prevalecer sobre o preconceito apriorístico contra HSH que não


tenham práticas de risco.
Outra questão relevante é a dos limites à liberdade de expressão. Considerando que
desde a célebre “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” pós-Revolução Francesa
se entende a liberdade como o direito de se fazer o que se quiser desde que não se
prejudiquem terceiros, evidentemente não se encontram abarcados pelo âmbito de proteção da
liberdade de expressão os discursos de ódio, as ofensas (a indivíduos ou coletividades) e as
incitações ao preconceito e/ou à discriminação em geral, já que tais condutas evidentemente
prejudicam suas vítimas. Como diz o amigo e constitucionalista Alexandre Melo Franco
Bahia, Doutor em Direito Constitucional, os discursos de ódio configuram-se, no máximo,
como abuso de direito, jamais sendo protegidos pelo direito fundamental à liberdade de
expressão. É inadmissível considerar tais discursos e ofensas em geral como protegidos pela
liberdade de expressão.
A jurisprudência internacional tem isto reconhecido, inclusive quando se trata de
expressões de ideias motivadas na religião. Sobre o tema, anote-se que o Tribunal Europeu de
Direitos Humanos, no julgamento do caso Vejdeland e outros v. Suécia21, declarou que a
condenação criminal de indivíduos por distribuírem panfletos ofensivos a homossexuais não
viola a Convenção Europeia de Direitos Humanos, justamente no contexto de que a liberdade
de expressão não garante um pseudo “direito” a manifestações homofóbicas/transfóbicas,
reiterando seu posicionamento no sentido de que a discriminação por orientação sexual é tão
séria/grave quanto a discriminação por “raça, origem e cor”, donde, acrescentamos, merece
a mesma punição criminal. Em outro caso, a Suprema Corte da Inglaterra condenou um hotel
que se recusou a permitir que um casal homoafetivo se hospedasse em um quarto com cama
de casal por conta das crenças religiosas de seus donos, ensejando a condenação do hotel a
indenizar o casal homoafetivo em questão por conta da discriminação perpetrada, sob o
correto fundamento de que a liberdade religiosa não dá o direito a religiosos discriminarem
terceiros. Afinal, os direitos fundamentais, como o direito à não-discriminação, devem ser
respeitados nas relações privadas (STF, RE 201.819/RJ). Vale destacar que situação diferente
ocorre na questão do casamento religioso: quando um casal deseja se casar em determinada
igreja/instituição religiosa, ele está buscando a benção da mesma, logo, está basicamente
pedindo aceitação a ela, o que justifica a negativa de instituições religiosas celebrarem
                                                                                                                       
21
Para a íntegra da decisão, vide
http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action=html&documentId=900340&portal=hbkm&source=externalb
ydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649 (acesso em 29/04/12).
15  

casamentos religiosos que entendam contrariarem os seus dogmas – o Estado pode impor
coercitivamente a realização do casamento civil porque este é um regime jurídico que garante
direitos (e obrigações) na sociedade, cuja negativa gera efetiva discriminação, o que não
ocorre com o casamento religioso. Por outro lado, quando alguém deseja se hospedar em um
estabelecimento comercial, não está buscando a “benção” do mesmo, mas apenas se utilizar
de seus serviços, enquanto consumidor. No passado, pessoas racistas se recusavam a atender
pessoas negras em seus estabelecimentos por conta de seu preconceito negrofóbico, por vezes
com base em crenças religiosas. Por conta de tais situações, passou-se a se considerar como
inadmissível que empresários/comerciantes perpetrem discriminações, deixando de atender
determinadas pessoas. Quando alguém abre um estabelecimento comercial, adquire a
obrigação de atender a toda e qualquer pessoa, sem discriminações. O princípio da não-
discriminação se aplica às relações privadas, como os direitos fundamentais em geral: não é
somente o Estado que não pode discriminar, ninguém pode oprimir ou segregar outras pessoas
fora dos casos das leis vigentes, as quais só serão válidas se respeitarem os direitos
fundamentais e, portanto, o princípio da não-discriminação (art. 3º, IV, da CF/88). Logo, ônus
ao empresariado/comércio é o respeito a toda e qualquer pessoa, o que supõe o atendimento
de todos aqueles que tenham condições financeiras de frequentar o estabelecimento
comercial/empresarial em questão.
Por razões equivalentes, são inadmissíveis práticas de bullying em escolas e assédio
moral no ambiente de trabalho contra pessoas LGBT. Aliás, considerando que o bullying
transfóbico faz com que muitas travestis e transexuais abandonem as escolas e se vejam
forçadas a se tornarem profissionais do sexo para sobreviverem, são urgentes políticas
públicas e ações afirmativas para fornecer educação formal e empregos para tais populações
de sorte a lhes possibilitar uma escolha real, possibilitando àquelas que desejem abandonar a
prostituição e àquelas que não tenham mais condições de exercer tal atividade um emprego
formal. Inclusive com cotas para universidades, nos mesmos moldes das cotas raciais e
sociais, já que as cotas têm como um de seus principais fundamentos, além da reparação de
discriminação histórica, a garantia da diversidade social nas universidades, que teria muito a
se enriquecer com a presença de travestis e transexuais.
Outras decisões internacionais existem sobre o tema, afirmando que a liberdade de
expressão, ainda que com base em crenças religiosas, não garantem um pseudo “direito” a
ofender e discriminar, como decidido por Tribunais de Turquia e Canadá: no primeiro caso,
condenando quem afirmou que cartilhas que visavam ajudar professores a compreender as
16  

diferentes identidades da diversidade sexual e a combater a homofobia e a transfobia seriam


uma tentativa de “perverter” e “desviar” crianças e adolescentes (quando o que se queria era
apenas capacitar professores para respeitar alunos de diferentes orientações sexuais e
identidades de gênero e coibir a homofobia e a transfobia entre alunos)22; no segundo,
afirmando que mesmo trechos bíblicos, quando usados com o intuito de criar generalizações
(preconceituosas) contrárias a minorias e grupos vulneráveis (como homossexuais), não estão
protegidos pela liberdade de expressão pelo contexto discriminatório em que são usados,
como no caso, no qual um cartaz dizia “mantenha a homossexualidade fora das escolas
públicas” e insinuava que se estaria a querer afirmar que a homossexualidade seria “melhor”
que a heterossexualidade (parafraseamos)23.
No Brasil, o tema dos limites da liberdade de expressão ainda carece de
desenvolvimento e melhores compreensões. Não à toa, sempre dizemos que a liberdade de
expressão é um grande mal entendido nesse país (e no mundo), visto que há pessoas que se
acham no “direito” de ofender indivíduos ou coletividades mediante generalizações
preconceituosas e mesmo proferir discursos aptos a incitar ao preconceito e/ou à
discriminação.
Sobre a criminalização da homofobia e da transfobia (PLC 122/06), cabe mencionar
nestas breves linhas que ela visa unicamente acrescentar as expressões “orientação sexual” e
“identidade de gênero” na Lei de Racismo (Lei 7.716/89) para, assim, tornar crime tudo
aquilo que constitui crime se praticado em razão da “cor, etnia, procedência nacional e
religião”, critérios da referida lei. Aliás, tendo o STF afirmado que racismo é toda ideologia
que pregue a inferioridade de um grupo relativamente a outro (HC 82.424/RS), consagrado
assim o conceito de “racismo social” para que o racismo não se tornasse “crime impossível”
ante o Projeto Genoma ter acabado com a crença forte até então de que a humanidade seria
composta de “raças biologicamente distintas entre si”, percebe-se que a homofobia e a
transfobia são espécies do gênero racismo, donde devem ser criminalizadas da mesma forma.
Embora curiosamente na parte final deste artigo por conta da forma como ele se
desenvolveu, cabe conceituar orientação sexual e identidade de gênero. Consoante os
Princípios de Yogyakarta24, orientação sexual é a “capacidade de cada pessoa de ter uma
                                                                                                                       
22
Cf. (em inglês): http://www.lgbtqnation.com/2013/07/landmark-turkish-court-ruling-anti-gay-language-is-not-
freedom-of-speech/#.UqaAz_RDvT8 (último acesso: 09.12.13).
23
Cf. (em inglês): http://christiannews.net/2013/02/28/canadian-supreme-court-rules-biblical-speech-opposing-
homosexual-behavior-is-a-hate-crime/ (último acesso: 09.12.13).
24
Cf. Princípios de Yogyakarta, p. 5. Fonte: http://www.clam.org.br/pdf/principios_de_yogyakarta.pdf (último
acesso: 30/11/13).
17  

profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo
gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas
pessoas”, ao passo que identidade de gênero é “a profundamente sentida experiência interna e
individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no
nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha,
modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e
outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos”. De forma
mais objetiva, pode-se dizer que a orientação sexual refere-se à homossexualidade,
heterossexualidade e à bissexualidade, por se referir ao sexo/gênero que atrai a pessoa de
forma erótico-afetiva, ao passo que a identidade de gênero refere-se à travestilidade, à
transexualidade e à transgeneridade em geral e à cisgeneridade por se referir ao gênero com o
qual a pessoa se identifica25. Fala-se em orientação sexual ou identidade de gênero real ou
atribuída no sentido de se caracterizar a homofobia/transfobia tanto quando as vítimas sejam
agredidas/discriminadas/ofendidas/ameaçadas por sua real orientação sexual ou identidade de
gênero não-heterossexual cisgênera e também quando as vítimas são heterossexuais mas são
confundidas com LGBT, ou seja, são agredidas por terem a si atribuída uma orientação
sexual ou identidade de gênero distinta da sua (adiante se trazem exemplos disso). Por sua
vez, a homofobia se refere ao preconceito e/ou a discriminação contra homossexuais e
bissexuais, ao passo que transfobia é o preconceito e/ou a discriminação contra travestis,
transexuais e transgêneros em geral26.
Como se percebe, como a proposta de criminalização (PLC 122/06) visa incluir
“orientação sexual” e “identidade de gênero” na lei e não “homofobia” e “transfobia”,

                                                                                                                       
25
Homossexuais são pessoas que sentem atração erótico-afetiva por pessoas do mesmo sexo; heterossexuais, por
pessoas de sexo diverso; bissexuais, por pessoas de ambos os sexos. Transexual é a pessoa que se identifica com
o gênero oposto àquele socialmente atribuído ao seu sexo biológico, possui uma dissociação entre seu sexo físico
e seu sexo psíquico, que geralmente não sente prazer na utilização de seu órgão sexual e que não deseja que as
pessoas em geral saibam de sua condição transexual após a adequação de sua aparência a seu sexo psíquico.
Travesti é a pessoa que, apesar de possuir uma relativa dissociação entre seu sexo físico e seu sexo psíquico (ao
menos no que tange às normas de gênero socialmente impostas), sente prazer na utilização de seu órgão sexual e
não se importa que as pessoas em geral saibam de sua condição de travesti, embora socialmente também prefira
ser tratada como pessoa relativa à aparência que efetivamente ostenta. Trata-se, também aqui, de uma questão
puramente identitária (note-se que não consideramos correto o entendimento convencional que diferencia
travestis e transexuais por estes últimos supostamente sempre desejarem realizar a cirurgia de transgenitalização
e não sentirem nunca prazer com sua genitália biológica – consideramos este conceito ultrapassado, por
existirem transexuais que não desejam a cirurgia, embora se identifiquem com o gênero oposto àquele
socialmente atribuído a seu sexo biológico). Cisgêneros são aqueles que se identificam com o gênero
socialmente atribuído a seu sexo biológico. Sobre o tema: Vecchiatti, 2012, pp. 37-38 (nas notas n.º 14 a 18);
Vecchiatti, 2013, pp. 83-89.
26
Para maiores desenvolvimentos sobre o conceito de homofobia (e, por identidade de razões, de transfobia),
vide: Borrillo, 2000; Prado e Junqueira, 2011; e Rios, 2006.
18  

percebe-se que a tal “heterofobia”, se algum dia existir, estará criminalizada pelo referido
projeto.
Vivemos verdadeira banalidade do mal homofóbico, já que muitas pessoas se sentem no
pseudo “direito” de ofender, agredir, discriminar e mesmo matar pessoas LGBT por sua mera
orientação sexual homoafetiva/biafetiva e identidade de gênero transgênera, o que não tem
sido coibido eficientemente nem mesmo nos poucos locais (Municípios e Estados) que
possuem leis administrativas antidiscriminatórias. Logo, mesmo a ideologia do Direito Penal
Mínimo demanda pela criminalização da homofobia e da transfobia, visto que temos bens
jurídicos relevantes (bens jurídico-penais), a saber, o direito à tolerância, à segurança, à livre
orientação sexual e à livre identidade de gênero, bem como pelos demais ramos do Direito
não estarem se mostrando suficientes para protegê-los, donde temos inconstitucionalidade por
proteção deficiente (princípio da proporcionalidade na acepção de proibição de proteção
deficiente, já reconhecido por doutrina27 e jurisprudência28).
Em sede de conclusão sobre o atual estágio dos direitos da população LGBT
brevemente tratados neste artigo:
(i) a união estável homoafetiva está garantida pela força de lei da decisão do STF na
ADPF 132 e da ADI 4277, ao passo que o casamento civil homoafetivo encontra-se garantido
pela Resolução CNJ 175/2013, a despeito da existência de ação judicial questionando dita
resolução (ADI 4966), a qual este autor já apresentou manifestação contrária em nome do
PSOL e da ARPEN-RJ como supracitado – e a despeito de persistir a necessidade de se alterar
o Código Civil e a Constituição Federal para que se acabem as discussões jurídicas acerca do
tema;
(ii) a adoção homoparental parece não questionada na jurisprudência, até pela
necessidade de parecer de assistente social e psicólogo para se deferir a adoção, pareceres
favoráveis estes que provam a juízes sobre a plena capacidade de homossexuais e casais
homoafetivos exercerem a parentalidade, juntamente com os diversos estudos que comprovam
a inexistência de prejuízos a crianças e adolescentes por sua mera criação por um casal
homoafetivo relativamente àquelas(es) criadas(os) por casais heteroafetivos;
(iii) pessoas transexuais têm hoje consolidado o direito à realização da cirurgia de
transgenitalização por força do artigo 13 do Código Civil e da Resolução CFM 1.955/2010 e,

                                                                                                                       
27
V.g., STRECK, 2009, pp. 46, 50-51, 57-58, 92, 96, 101, 103-106; e GONÇALVES, 2007, pp. 158, 160 e 170-
171.
28
V.g., STF, ADI n.º 1.800 e ADI n.º 3.112, e TJSP, na Apelação Criminal n.º 0052878-39.2006.8.26.0050, ao
afirmar que o princípio da proporcionalidade abrange “a garantia de proteção eficiente” por parte do Estado.
19  

uma vez tendo realizado a cirurgia, têm na jurisprudência garantido o direito à retificação de
seu prenome e sexo jurídico;
(iii.1) polêmica ainda há na jurisprudência sobre o direito de pessoas transexuais
alterarem seu prenome e seu sexo jurídico sem a realização da cirurgia, sendo minoritária a
jurisprudência que reconhece tal direito. Entendemos que é preciso evoluir neste ponto,
deixando-se de se genitalizar a pessoa humana e entendendo-se que uma pessoa é um homem
ou uma mulher por circunstâncias que vão muito além de sua genitália ou seus genes; se a
pessoa se entende como mulher, se veste como mulher, se porta como mulher e é tratada
como mulher, ela é uma mulher, independentemente de cirurgia, o mesmo valendo para o
caso de quem se entende/veste/porta/é tratado como homem: ele é um homem;
(iii.1.1) pelas mesmas razões, pessoas travestis devem ter a si reconhecido o direito de
alterar seu prenome e (quando desejem) seu sexo jurídico também independentemente de
cirurgia, a qual elas (travestis), ao que nos consta, não desejam realizar;
(iv) é desnecessária a alteração legislativa para se reconhecer o direito ao casamento
civil, à união estável e à adoção conjunta por casais homoafetivos, bem como à alteração do
prenome e do sexo jurídico de travestis e transexuais, mas tais leis são importantes para se
acabar com as divergências jurídicas sobre o tema e porque um país só é verdadeiramente
democrático quando sua legislação expressamente reconhece direitos das pessoas em geral,
logo, também de minorias e grupos vulneráveis, para que estas não tenham que ter longas
batalhas judiciais para terem seus direitos humanos/fundamentais respeitados;
(v) a jurisprudência internacional tem imposto limites à liberdade de expressão, mesmo
oriunda de crenças religiosas, afirmando que ela não garante um pseudo “direito” a discursos
homofóbicos/transfóbicos e, enfim, a discursos de ódio, ofensas e incitações ao preconceito
e/ou à discriminação. A jurisprudência brasileira ainda precisa amadurecer sobre este tema. A
liberdade de expressão precisa deixar de ser um grande mal entendido e amadurecer para que
não seja usada para legitimar discursos de ódio, ofensas e incitações ao preconceito e/ou à
discriminação em geral. Afinal, liberdade de expressão não é liberdade de opressão29;
(v.1) inadmissíveis práticas de bullying em escolas e assédio moral no ambiente de
trabalho contra pessoas LGBT, sendo urgentes políticas públicas e ações afirmativas para
fornecer educação formal e empregos às populações travesti e transexual, que em geral
abandonam as escolas em razão do bullying transfóbico e são forçadas a se tornarem
profissionais do sexo para sobreviverem, para assim lhes possibilitar uma escolha real,
                                                                                                                       
29
Frase constante de cartaz da 3ª Marcha Nacional contra a Homofobia, de 16.08.12 (Brasília/DF).
20  

possibilitando àquelas que desejem abandonar a prostituição e àquelas que não tenham mais
condições de exercer tal atividade um emprego formal;
(vi) a criminalização da discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero
visa unicamente tornar crime aquilo que já o é se praticado em razão da cor, etnia,
procedência nacional ou religião da pessoa, critérios da atual Lei de Racismo. Em síntese e
em linguagem informal, “se não pode contra pessoas negras/religiosas, não pode contra
pessoas LGBT”. Igual proteção penal: nada menos, nada mais.

Referências Bibliográficas
BENTO, Berenice. O que é a Transexualidade, 1a Edição, São Paulo: Editora Brasiliense,
2008.
BORRILLO, Daniel. Homofobia. História e crítica de um preconceito, Tradução de
Guilherme João de Freitas Teixeira, 1a Edição, Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2000.
GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a
Proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988, Belo Horizonte: Ed.
Forum, 2007.
DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O Preconceito & a Justiça, 4ª Edição, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2009.
LÔBO, Paulo. Famílias, 1a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
PRADO, Marco Aurélio Máximo e JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia,
hierarquização e humilhação social. In: VENTURI, Gustavo e BOKANY, Vilma.
Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil, 1ª Ed., São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 2011.
RIOS, Roger Raupp. O conceito de homofobia na perspectiva dos direitos humanos e no
contexto dos estudos sobre preconceito e discriminação, in RIOS, Roger Raupp (org.). Em
defesa dos DIREITOS SEXUAIS, 1a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado,
2006.
RIOS, Roger Raupp, A Homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora
Revista dos Tribunais, 2001.
STRECK, Maria Luiza Schäfer. Direito Penal e Constituição. A Dupla Face da Proteção dos
Direitos Fundamentais, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2009.
VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica
do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, 2ª Edição, São
Paulo: Editora Método, 2013.
21  

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Minorias Sexuais e Ações Afirmativas. In: VIEIRA,
Tereza Rodrigues (org.). Minorias Sexuais. Direitos e Preconceitos, São Paulo, Ed. Consulex,
2012.
O que é ser travesti no Brasil?1
Daniela Andrade, ativista transexual,
militante transfeminista, diretora do
Fórum da Juventude LGBT Paulista,
membro da Comissão da Diversidade Sexual
da OAB – Osasco e do coletivo
Feminismo Sem Demagogia

No Brasil, o dia 29 de janeiro é dedicado à luta pelos direitos e visibilidade de


travestis e transexuais. Essa data histórica passou a ser considerada quando, em 2004, o
Ministério da Saúde lançou a campanha “Travesti e Respeito”, com a participação da
ANTRA – Articulação Nacional de Travestis e Transexuais que, dentro do Congresso
Nacional, inaugurou um novo ciclo na vida dessa minoria duramente rechaçada em todo
o Brasil. Aquele momento demonstrava que havia algum diálogo com o governo, ainda
que discreto.
Para falar sobre travestilidade no Brasil, é preciso, antes de mais nada, percorrer
conceitos básicos que serão aqui enunciados sem todo o rebuscado da academia. Se faço
essa escolha, é porque pretendo atingir o cidadão que não possui estudos de gênero
sedimentados, e peço desde já as minhas desculpas aos demais.
Dito isso, inauguro a conceituação com o significado da palavra gênero. Gênero
se refere à identidade adotada por uma pessoa de acordo com seus genitais e/ou
psiquismo e/ou papel exercido socialmente. Na sociedade binarista de gênero em que
vivemos, estamos falando de dois gêneros: masculino e feminino. Fazendo um breve
parêntese para lembrar que há pessoas que fogem ao binário.
A definição de que gênero deve partir sempre do pressuposto biológico (homem
-> pênis e mulher -> vagina) foi uma única e isolada concepção que se tinha do assunto
até que mais recentemente, sobretudo na última década, estudiosos da sexualidade
humana descobriram que a biologia sozinha não poderia mais explicar a totalidade das
complexas estruturas sociais e sexuais humanas. Estamos falando de um animal que,
uma vez dotado de aparelho mental superior, não vive apenas e tão somente atuante e
atuando em função do determinismo biológico. É por conta desse aparelho mental, tão
densamente estruturado, que conseguimos criar as mais complexas sociedades em
comparação com todos os outros. E também estamos o tempo todo contribuindo e
                                                                                                                       
1
O texto está baseado na oitava palestra do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do
Parlamento. A aula, ministrada pela autora, ocorreu no dia 28 de novembro de 2013, nas dependências da
Câmara Municipal de São Paulo.
recebendo contribuições do meio social em que vivemos e, biologicamente falando, é
também por conta dessas contribuições que, muitas vezes, modificamos propensões
genéticas, burlando muitas vezes o que foi inscrito como destino pelo DNA.
É preciso aqui esclarecer que o papel da biologia, no que tange à definição dos
gêneros, deve se configurar como meramente observador. Pode-se dizer que
fulano/fulana possui determinado aparelho genital, carga hormonal e componentes
cromossômicos e declarar que, por conta disso, há uma “propensão” a se identificar
socialmente como homem ou como mulher, por observação da maioria. Propensão não
significa declaração determinística e, logo, há de se pensar que nem todas as pessoas
que nasceram com pênis e que possuem grande carga de testosterona e cromossomos
sexuais XY são homens.
Já que, ser homem ou ser mulher são elementos aprendidos socialmente, estamos
autorizados a dizer que, dentro desse período histórico e nessa sociedade em que
vivemos, regramos como um homem deve se vestir, que aparência ele deve ter, quais
comportamentos deve demonstrar e, inclusive, quais sentimentos a ele são permitidos de
exibir socialmente. Se um bebê do sexo masculino não fosse “ensinado” que ser homem
significa seguir uma série de regras e rituais sociais, ele poderia ser taxado de qualquer
outra coisa. Além do regramento social, a forma como o nosso próprio aparelho mental
recebe, transforma e introjeta tanto o próprio corpo decodificado pelo seu dono, assim
como as imposições sociais no que diz respeito a como lidar com esse corpo, é um
componente salutar – nesse ponto, é importante notar a importância dos processos
psíquicos/psicológicos no que diz respeito à leitura de mundo que cada um de nós
fazemos: extremamente únicas e diferenciadas, ainda que grande parte esteja o tempo
todo tentando ajustar-se às regras sociais, algumas vezes lutando extraordinariamente
contra a sua própria identidade genuína.
Bom, sigamos pensando no seguinte: se uma pessoa que se vê como homem,
identifica-se socialmente como homem e está plenamente e saudavelmente ajustado à
sua posição social masculina perder o pênis em um acidente, ou por conta de uma
doença, ele deixa de ser homem?
Se um homem possuir menor carga de testosterona que aquela estabelecida
como “normal” para todos os demais, ele não pode mais ser considerado homem?
Não, assim como se uma pessoa identificada por si mesma e pelos demais como
mulher nascer sem útero ou tiver de removê-lo, ela não deixa de ser mulher. Se sofrer
mutilação genital, também não. Pois não é nos genitais, nos cromossomos, ou na carga
hormonal que está inscrito o que é homem ou mulher – todo esse aparato está composto
por equipamentos que, proporcionalmente, “tendem” a dar origem a um indivíduo que
se identifique assim ou assado, mas observar só e somente só a fisiologia a fim de
dirimir quem é homem e quem é mulher, é esquecer que tanto funções mentais quanto
sociedade, em maior ou menor grau, contribuem para guiar-nos nesse caminho na
construção do próprio eu.
Sim, realmente é um tanto quanto difícil, ou quase impossível, muitas pessoas
absorverem tudo isso, já que a maioria parece-nos “aceitar de bom grado” o que a
natureza lhes ofertou em forma de genital e o que a sociedade decidiu para o que aquilo
significava, muito antes da gravidez da mãe, em forma de expectativa dos pais e
familiares.
Dessa forma, começamos por dizer que não podemos afirmar que ser uma
mulher travesti ou uma mulher transexual é ser homem por conta de que possam
possuir, eventualmente, um pênis, cromossomos XY e grande carga de testosterona.
Pois bem, falando agora em minoria, afirmaremos que as travestis são mulheres
transgêneras. Um termo novo apareceu aqui: transgênera. Transgêneras são todas as
pessoas que, em detrimento do genital que possuem, não se identificam e não se
apresentam como aquilo que a sociedade decidiu que estaria de acordo para o
comportamento daquela pessoa e, também, os processos mentais estão configurados de
forma a se confortar de um modo distante daquele enunciado para alguém possuidor do
genital que ela possui.
Sim, transgêneras são pessoas subversivas, dado que aparecem no curso da
história para derrubar dogmas embasados em biologicismos: a ideia de que só a biologia
seria capaz de explicar a sexualidade humana. O oposto de transgênero é cisgênero.
Nesse ponto, podem me alertar que talvez eu esteja fazendo confusão com a
palavra transexual e fazendo com que travestilidade adentre o campo da
transexualidade.
E então, vou usar um pouco da história para explicar. O termo “travesti” aparece
na língua portuguesa, herdado do francês, como alguém “disfarçado sob trajes do outro
sexo”. O dicionário também nos diz que é termo masculino. Bem, em relação à língua
portuguesa é preciso lembrar que ela sempre foi machista, sexista, classicista e
preconceituosa. E que, a língua não é propriedade do dicionário ou dos acadêmicos do
assunto – a língua pertence ao povo que dela faz uso, modificando-a e adaptando-a a
novas circunstâncias e realidades, já que não se trata de organismo hermético. E, foi sob
a alcunha de “travestis”, que todas as pessoas designadas do sexo masculino quando do
nascimento, mas que se sentiam mulheres, identificando-se de forma feminina, viveram
(e sobreviveram) durante muito tempo no Brasil. Dado que essa minoria sempre foi
rechaçada e atacada de todas as formas no curso da história brasileira, primeiro pelo
cristianismo e depois, também pelo próprio governo, sobretudo durante o regime de
exceção, sempre estiveram impedidas de outra coisa que não fosse lutar pela própria
vida, protegendo-se de ataques vindos de todos os lados. É com o avanço dos estudos da
transexualidade na Europa, nas décadas de 80 e 90, que o termo “transexual” começa a
ganhar espaço por aqui. Agora, era preciso que os “cientistas” diferenciassem o que
seria travesti e o que seria transexual.
Dado que se evidenciou que algumas pessoas com desconforto em relação ao
próprio genital chegavam até mesmo ao suicídio, demonstrando uma enorme apatia para
consigo mesmas, uma vez que aquele corpo não lhes representava, foi para se precaver
de soluções tão drásticas que se iniciou a evolução das cirurgias de transgenitalização
(inadvertidamente conhecidas como “cirurgias de mudança de sexo”) em todo o mundo,
mais precisamente na Europa e nos EUA. Esses pacientes que “queriam” se adaptar às
convenções sociais – e biológicas – de que, uma vez que se sentiam mulheres,
necessitavam estar equipadas com uma vagina, são então anunciados como
“transexuais” e passam a ser vistos não como subversivos esporádicos, contestadores de
normas sociais sexuais assim como travestis o eram, mas sim, portadores de uma
patologia. Patologia essa que seria sanada por meio do processo cirúrgico da
transgenitalização.
A academia então decidiu que transexuais seriam todas as pessoas que
necessitavam de uma cirurgia e todos os demais que, apesar de possuírem os mesmos
sentimentos diferenciados no que tange à discordância entre genital e gênero, seriam
vistos como travestis. Enquanto a biologia parecia se debruçar com apreço às pessoas
transexuais, dando-lhes grande espaço, as pessoas que não necessitavam da
transgenitalização foram deixadas à margem de si mesmas, ignoradas pela ciência e
reconhecidas como mero “fetichismo transformista” de “alguns homens”. Não querer se
ajustar à rígida norma biológica de que uma mulher deveria possuir uma vagina era/é
uma audácia; só poderíamos estar falando de um fetiche, determinou a psiquiatria ao
incluir travesti como categoria da sexualidade patológico/desviante.
Bem, em vista do desconhecimento da transexualidade no Brasil, mesmo aquelas
que possuíam desconforto em relação ao genital se apresentavam e eram vistas como
travestis. Mas, com o passar do tempo, pouco a pouco, começa a surgir uma população
de travestis no Brasil que passam a se apresentar como transexuais. Algumas porque
realmente não sentiam qualquer conforto em relação aos genitais, e outras para fugir ao
estereótipo e à carga que a palavra travesti trazia: marginal – sobretudo as travestis mais
escolarizadas. E se dá assim, muitas vezes, até hoje.
Estudos mais recentes, sobretudo no campo da sociologia, passam a contestar o
fato de que ser transexual é necessariamente querer modificar o genital, dado que uma
série de pessoas que, apesar de terem nascido e sido registradas como homens,
identificavam-se como mulheres e estavam satisfeitas com o genital que possuíam,
passando a reclamar a classificação para si, em detrimento do que até então declarava-se
como travesti: “fetiche”.
Sabendo que as definições de travesti e transexual começaram a se embaralhar, a
ponto de, em muitos casos, não podermos saber se determinada identidade é travesti ou
transexual, muitos autores optaram por destruir as barreiras entre ambas e considerar
que não há importância se a pessoa se declara travesti ou transexual. O mais importante
é respeitá-la como ela gosta de ser vista/tratada/chamada, ao invés de querer força-lhe
dentro de uma camisa de força classificatória.
Outros autores seguiram na linha de diferenciar travesti como alguém que,
apesar de ter nascido e sido registrada como do sexo masculino, apresentava-se
socialmente de forma feminina e percebia-se nem como homem e nem como mulher,
mas de forma fluída, um amalgamento entre os dois gêneros, sem quaisquer prejuízos
no que se refere ao tratamento que sempre lhes pareceu mais respeitoso, vistas e tratadas
como qualquer outra mulher. Ao passo que transexual seria necessariamente alguém que
se percebe como gênero oposto ao exigido socialmente por conta do genital – pensando
aqui que homem seria oposto de mulher.
Em ambos os casos, o recurso biológico-patologizante desaparece de cena. Não
mais estamos falando de identidades que necessariamente exigiriam uma cirurgia, ou
que seria reduzida ao fator fetichista.
Pois bem, dados os rumos da história e demonstrado todo esse preâmbulo,
podemos afirmar que as mulheres travestis e as mulheres transexuais possuem
identidade feminina. Isso significa que são pessoas que mimetizam o comportamento e
a aparência que a sociedade exigiu para o que significa ser mulher, pois é como mulher
que elas querem ser reconhecidas e tratadas, uma vez que ser mulher é um dado
introjetado psiquicamente. E, por questão de respeito, não escolho como EU quero tratar
fulano, é fulano que me diz como ele se sente respeitado e é dessa forma que eu passo a
tratá-lo.
Mas você pode me trazer dados de travestis que são vistas e chamadas no
masculino e, não se preocupam com isso. Em primeiro lugar, realmente há poucas
exceções de travestis nesse rol e o que podemos dizer é que muitas delas simplesmente
cansaram de ter que a todo instante lutar, mostrar e demonstrar que respeito não deve
ser escolha do interlocutor, pois se assim for, não se estabelece um diálogo, estabelece-
se uma relação de opressão: “eu é que decido como vou te tratar e você que se contente
com isso”. Já outras poucas pessoas travestis possuem uma identidade realmente fluída,
não se importando para qual gênero, se masculino ou feminino, se usa ao tratá-las.
Ainda que haja essas exceções apontadas, nenhuma delas ficaria ofendida se
fosse tratada no feminino, mas a maioria esmagadora se ofende ao ser tratada no
masculino. Lembrando de grande parte que altera o próprio corpo com, por exemplo, o
uso de próteses mamárias – será mesmo que alguém coloca seios para ser vista e tratada
como homem? Não!
Assim, fica acordado desde já que ser travesti não tem absolutamente nenhuma
ligação direta com ser gay. Travestilidade (como transexualidade) dizem respeito ao
gênero exercido pela pessoa, em despeito da orientação sexual.
Há travestis que se atraem por homens, outras por mulheres, algumas por ambos
os gêneros e, em menor parte, as que não se atraem por nenhum – prova essa de que
orientação sexual não é fator classificatório para designar travestilidade (e
transexualidade).
Da mesma forma que a palavra travesti evolui lexicalmente, dentro dos estudos
linguísticos, para agora sustentar não mais um prazer fetichista, mas uma ampla e
complexa identidade. Não esquecer-se aqui de que a palavra transformista diz respeito a
uma profissão, alguém que faz uso de roupas e acessórios do gênero oposto como
ganha-pão, nada tendo a ver com a palavra travesti.
Pois bem, uma vez que a língua não deve continuar a ser usada como objeto de
esmagamento e opressão e, dado que as travestis se sentem respeitadas como mulheres,
elas passaram a exigir que o termo fosse sempre grafado com a flexão no feminino. De
forma que “o travesti” deixa de ser termo respeitoso e passa a ser termo opressor. Sim, o
termo é fartamente empregado pelos grandes meios midiáticos e por quase toda a
sociedade e isso se dá, pois, as próprias travestis, uma vez que minorias, estão proibidas
de mostrarem outra face em todos esses lugares se não forem para serem vistas/ligadas
como prostitutas, criminosas ou objeto de escárnio e riso: enfim, alguém que devemos
ignorar a própria humanização.
Travesti é, e sempre foi vista pela sociedade brasileira, de um modo geral, como
escória e, como minoria, violentadas de todas as formas – são como ilhas, rodeadas de
violência por todos os lados, dizia a ativista e advogada travesti Janaína Dutra.
Começam a sofrer desde logo quando começam a apresentar comportamentos
inadvertidos socialmente para o gênero que o registro de nascimento grafou.
Primeiramente pela família que as agride de forma constante e latente psicologicamente
e/ou fisicamente, sem falar no número expressivo das que são expulsas de suas casas.
Depois no ambiente escolar onde alunos e, inclusive, professores e gestores passam a
desrespeitá-las, ignorando o nome social (o nome pelo qual preferem ser tratadas, já que
o nome do RG é de forma geral vexatório e humilhante, uma vez que não exprime o
gênero que exercem) e o próprio gênero das mesmas, fazendo questão de frisar o tempo
todo que são (devem) ser homens. É um dado expressivo as agressões e humilhações
que sofrem de toda a sociedade, onde quer que estejam ou vão. Por conta disso, a
maioria não consegue arcar com o ônus do sofrimento diário e constante no ambiente
escolar e acabam por evadirem-se da escola. Sem estudo, e muitas vezes sem apoio
familiar, a fim de não morrerem de fome, encontram, na maioria das vezes, na
prostituição, uma escapatória para a fome. Mas, não de forma fácil. É também na
prostituição que encontrarão enormes obstáculos, também por serem travestis:
agredidas, roubadas, estupradas muitas vezes por clientes, e mesmo por policiais, que
não conseguem enxergar nenhuma humanidade em travesti e por estarem conscientes de
que esses crimes serão ignorados pela sociedade. Afinal de contas, era apenas travesti,
não é mesmo? E travesti não possui, socialmente, a presunção de inocência - a
sociedade acostumou-se a encarar travesti como um ser culpado por excelência. Se for
vítima de algum crime ou agressão, é ela, a vítima, que desde já passa a ocupar o papel
de ré e precisa fazer sua defesa.
Dado todo esse histórico de exclusões, não é difícil imaginar por que algumas
travestis acabam se envolvendo com drogas: a válvula de escape mais à mão. E, por que
possuem uma expectativa de vida tão baixa, em comparação com o restante da
sociedade; com direitos humanos dos mais desrespeitados possíveis.
É preciso também lembrar que, uma vez que a sociedade equalizou que, ser
travesti é ser errada, criminosa, delinquente; raramente veremos um empresário a fim de
empregar pessoas assim. De forma geral, nenhum quer associar o nome da própria
empresa a tal tipo de funcionária. Restam-lhes os subempregos, de modo geral,
sobretudo na área de beleza e estética – é impossível pensar em travesti em outro tipo de
trabalho, pois logo perguntariam: “Mas peraí, é mesmo UM travesti fazendo isso?”. Não
se esqueçam de que travesti já é encarada como erro por existir, de modo geral;
imagine-se aqui se pensariam que essa pessoa poderia desenvolver algum trabalho com
êxito.
Também nos lembraremos das agressões verbais. Aquelas que a todo o momento
transformam travesti em “traveco” - um termo extremamente pejorativo e ofensivo. Para
fazer uma analogia, seria o mesmo que transformar universalmente a palavra “macaco”
em sinônimo de negro e a palavra “vadia” em sinônimo de mulher que resolveu exercer
a própria liberdade sexual como a grande e maioria esmagadora dos homens.
Há muitos que criminalizarão o racismo na palavra “macaco”, e as mulheres
quase todas (e alguma parte dos homens) se revoltarão diante da denominação “vadia”.
Mas, e as travestis, quem as defenderá? Atualmente, raras pessoas. Pois a opressão,
inclusive verbal, contra travesti está naturalizada. Já foi pré-acordado socialmente que
se tivermos de ofender travesti, faremos de bom grado e sem sequelas, tendo a certeza
de não haver repreensão.
Dentro do campo dos esmagamentos verbais, também podemos lembrar a
naturalização, inclusive pelos grandes meios midiáticos, de que travesti NÃO DEVE ter
seu nome social respeitado – lembrar aqui que tanto o governo federal, quanto alguns
Estados e Municípios possuem leis que regem a necessidade do respeito ao nome social.
Nas reportagens, o mesmo será sempre esquecido e dar-se-á sempre preferência a usar o
nome completo, do RG, como se isso fosse dado significativo para que possamos
entender o assunto. Também está naturalizado o tratamento no masculino a elas.
Evidentemente que aqui a imprensa faz o jogo do lucro; quantos leitores reclamariam
quando vissem uma matéria tratando travesti o tempo todo no feminino? E, se travesti é
a minoria da minoria, continuaremos a aviltá-las, não lhes daremos vozes, ignoraremos
se elas se sentem respeitadas ou desrespeitadas, e faremos o que a grande maioria pede.
A claque exige, a imprensa obedece.
A travesti é o negro de antes de 1888, é a mulher medieval, é por natureza o
segmento da sociedade em que derrubaremos toda a sorte de impropérios, palavrões,
xingamentos, demonstrações de nojo e falta de apreço. De um modo geral, o que a
sociedade vê como função para travesti é enganar pobres rapazes que “pensam” se tratar
de mulher quando, tudo o que precisam é gozar, e resolvem procurá-las. Como se ser
travesti já fosse por si só um equívoco. E assim parte o humor brasileiro: sempre
retratará travesti como farsa e indutora de erros. Um humor pilantra, que só possui um
trabalho social no que tange a esse coletivo: continuar esmagando-as, forçando-as a
permanecerem no espaço diminuto da invisibilidade. Continuar demonstrando para
todos nós que devemos, sim, rir sempre quando há alguma travesti fazendo parte de
qualquer história.
Não podemos, aqui, deixar de lembrar-se de travestis que conseguiram escapar,
em um grau superior, do novelo de exclusões a que são submetidas, e demonstraram
socialmente que também é possível ser travesti e exercer qualquer função profissional e
social.
Lembraremos o caso de Luma Andrade, que em detrimento de todo o sofrimento
e agressões que sofreu, justamente por ser travesti, conseguiu doutorar-se em Educação,
no nordeste brasileiro, no ano passado. E aí, muitos hão de perguntar: “se essa
conseguiu, por que as outras não conseguem?”. Teremos também que lembrar que as
possibilidades psíquicas de cada indivíduo são únicas, e a forma como cada um
consegue lidar com o sofrimento e a resiliência que possuem também diferem. Seria o
mesmo que condenar uma mãe que levou anos para conseguir extrair algum fôlego do
sofrimento da perda de um filho, já que outra se recuperou em poucos meses. Não há
como regrar o sofrimento de “A” em função do sofrimento de “B” e não há como nos
deter achando que exatamente a mesma realidade de fulana é a de beltrana – apesar de
fazerem parte de um mesmo grupo social. Algumas sofrem um pouco mais, um pouco
menos, mas nenhuma deixará de sofrer.
Bem, espero, à luz dos conhecimentos trazidos, que a significação do que é
travesti, símbolo de minoria paulatinamente desrespeitada e agredida, sirva, de algum
modo, para que alguma coisa seja modificada no sentido de adentrar o mundo dessas
pessoas invisíveis. A quem ninguém parece querer ouvir e, sobretudo, acolher.2
 

Referências Bibliográficas:3
BENTO, Berenice. O que é transexualidade?, Editora Brasiliense, 2ª edição, 2008.
FOUCAULT, Michel de. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber, Editora Graal,
13ª edição, 1999.

                                                                                                                       
2
Para mais informações, vide: www.transexualidade.com.br e www.alegriafalhada.blogspot.com.
3
As referências elencadas tratam-se de bibliografia consultada, não necessariamente referidas ao longo
do texto.  
FOUCAULT, Michel de. História da Sexualidade II: O Uso dos Prazeres, Editora
Graal, 8ª edição, 1998.
FOUCAULT, Michel de. História da Sexualidade III: O Cuidado de Si. Editora Graal,
8ª edição, 2005.
GREGERSEN, Edgar. Práticas Sexuais – A História da Sexualidade Humana. Editora
Roca, 1983.
KULLICK, Don. Travesti – Prostituição, Sexo, Gênero e Cultura no Brasil. Editora
Fiocruz, 2008.
LEITE JR, Jorge. Nossos corpos também mudam – A invenção das categorias
“travesti” e “transexual” no discurso científico. Tese de Doutorado: PUC/SP, 2008.
PELÚCIO, Larissa. Abjeção e Desejo – Uma etnografia travesti sobre o modelo
preventivo de Aids, Editora FAPESP, 2009.
PINTO, Maria Jaqueline Coelho; BRUNS, Maria Alves. Vivência Transexual – O corpo
desvela seu drama, Editora Atomo, 2003.
PRECIADO, Beatriz. Manifiesto Contrasexual, Editora Anagrama, 2011.
RAMSEY, Gerald. Transexuais – Perguntas e Respostas. Editora GLS, 1998.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: Homossexualidade no Brasil
Colônia à Atualidade, Editora Record, 1986.
 
1

Violência Contra LGBT: Homotransfobia no Brasil1

Luiz Mott2

Ninguém nasce naturalmente heterossexual, garantem as pesquisas na área da


Antropologia, Sexologia e Psicologia. A sexualidade humana é culturalmente
construída, varia de sociedade para sociedade e se modifica ao longo das gerações.
Gênero (feminino e masculino), assim como a orientação sexual (heterossexual,
bissexual e homossexual) são moldados pela cultura, embora cada vez mais pesquisas
na área da Biologia Humana e Genética sinalizem a presença de componentes inatos
que, embora não determinantes, predispõem a espécie humana à diversidade sexual.3
Aproximadamente 60% dos humanos são heterossexuais, 30% bissexuais e 10%
predominantemente ou exclusivamente homossexuais. Os/as transgêneros (travestis e
transexuais) representam por volta de 0,3% da população mundial. 4
Grande parte das sociedades humanas são fortemente marcadas pelo
heterosexismo ou heteronormatividade: “sistema ideológico que nega, condena e
estigmatiza qualquer comportamento, identidade, relacionamento ou comunidade não
heterossexual.”5 Segundo pesquisas antropológicas, 64% dos povos aceitam os
homo/transexuais e 36% discriminam.6 A intolerância contra quem não é heterossexual
é genericamente chamada de homofobia, conceito guarda-chuva que, segundo
estudiosos do tem,a engloba todos os segmentos específicos da comunidade LGBT,
embora seja politicamente mais correto usar os termos lesbofobia, transfobia e bifobia
quando se trata de denunciar casos específicos de violação dos direitos humanos de
lésbicas, trans* ou bissexuais.7
LGBTfobia é definida como a intolerância e o medo irracional da
homo/transexualidade, manifestando-se através da aversão aos membros destas

1
Texto baseado na nona palestra do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do Parlamento.
O autor ministrou a aula no dia 03 de dezembro de 2013, nas dependências da Câmara Municipal de São
Paulo.
2
Antropólogo da Universidade Federal da Bahia e Decano do Movimento Homossexual Brasileiro -
luizmott@oi.com.br.
3
Gregersen, 1983. Vide também Vieira, 2013.
4
Masters & Johnson, 1981; Hite, 1982; Mott, 2012.
5
Herek, 1998.
6
Mott, 2007.
7
Borrillo, 2010.
2

subculturas e ao seu estilo de vida. 8 Três são suas principais formas de manifestação: a
homotransfobia cultural, individual e institucional. 9
Há mais de quatro mil anos, na matriz das civilizações da cultura ocidental e da
cultura sexual brasileira, a homossexualidade vem sendo rotulada por diversos nomes
atrozes que refletem o alto grau de reprovação associado a esta performance erótica:
abominação, crime contra a natureza, pecado nefando, abominável pecado de sodomia,
velhacaria, descaração, desvio, doença, viadagem, frescura, etc. E os homossexuais –
mais os do sexo masculino do que as lésbicas – foram condenados a diferentes penas de
morte: apedrejados, segundo a Lei Judaica; decapitados, por ordem do Imperador
Constantino a partir de 342 d.C.; enforcados, afogados ou queimados nas fogueiras da
Inquisição, durante a Idade Média e até nos tempos modernos; despedaçados na boca de
um canhão, como ocorreu com um índio Tibira no Maranhão colonial; queimados pelos
nazistas nos campos de concentração. Atualmente, no Brasil, a cada 26 horas, um gay,
travesti, transexual ou lésbica é brutalmente assassinado, vítima da homotransfobia,
fazendo de nosso país o campeão mundial de crimes homofóbicos: mais de três mil
assassinatos nas duas últimas décadas.10
Se de um lado as “causas” da homossexualidade e transexualidade são
nebulosas, assim como ocorre com as heterossexualidades, a ciência etno-histórica
indica que a homofobia tem suas raízes fincadas na tradição abraâmica, já que Abraão é
o patriarca das três religiões mais homofóbicas da história humana (judaísmo,
cristianismo e islamismo). Há mais de quatro mil anos os donos do poder perceberam o
caráter ameaçador, político e revolucionário das relações unissexuais, daí transformar o
sexo e amor entre pessoas do mesmo gênero em crime abominável e o mais detestável
de todos os pecados. Hoje, quando se ouve de norte a sul do Brasil esta sentença de
morte “Viado tem mais é que morrer!”, inconscientemente, está-se repetindo o milenar
veredicto atribuído à própria vontade divina: “o homem que dormir com outro homem,
como se fosse mulher, deve ser apedrejado!”.11
O preconceito homofóbico tem como justificativa não apenas o desperdício do
sêmen, criminalizado como uma espécie de controle perverso da natalidade, mas teme-
se também, mais que a peste, a ameaça desestabilizadora representada pelos amantes do

8
Mott, 2001.
9
Rios, 2007.
10
Vide “Quem a homotransfobia matou hoje” em http://homofobiamata.wordpress.com/; e Mott, 2002.
11
Mott, 2003.
3

mesmo sexo, na medida em que importantes costumes tradicionais são colocados em


xeque pelo revolucionário estilo de vida dos gays: o sexo-prazer desvinculado da
procriação, a tentação da androginia e da unissexualidade, o questionamento da
naturalidade da divisão sexual do trabalho e dos papéis de gênero, o amor livre, o safe
sex.
Quando se fala em discriminação, via de regra, cada minoria procura puxar o
quanto pode a brasa para mais perto de sua sardinha. Há, contudo, evidências sólidas
confirmando que os gays, as lésbicas, as travestis e transexuais são as principais
vítimas do preconceito e discriminação dentro de nossa sociedade. E, exatamente por
esta situação de maior vulnerabilidade, carecem os homossexuais de maior e mais
urgente atenção por parte do poder público e da sociedade em geral, especialmente no
que se refere à implementação de legislação defensiva e de ações afirmativas que
garantam a salvaguarda de seus direitos humanos e da plena cidadania da população
LGBT.
Dez explicações evidenciam e explicam porque que os LGBT representam a
minoria sexual mais discriminada em nossa sociedade:
I. Crime hediondo: o amor entre pessoas do mesmo sexo foi considerado e
tratado como crime dos mais graves, equiparado ao regicídio e à traição nacional, tendo
como punição a morte na fogueira. Desde 1821, com o fim da Inquisição, a sodomia
deixou de ser punida com a pena de morte;
II. Pecado abominável: “de todos os pecados, o mais sujo, torpe e desonesto é a
sodomia. Por causa dele, Deus envia à terra todas as calamidades: secas, inundações,
terremotos. Só em ter seu nome pronunciado, o ar já fica poluído.” Ainda no Século
XXI, os últimos Papas insistiram em dizer que “o homossexualismo é intrinsecamente
mau”;
III. Homotransfobia internalizada: durante centenas de gerações, nossos
antepassados ouviram nos púlpitos e confessionários que a homossexualidade era o
pecado que mais provoca a ira divina. A Psicologia chama de homofobia internalizada
este ódio mórbido contra a homossexualidade, o qual provoca neurose de frustração
sexual, suicídio e atos de violência contra homossexuais;
IV. Opressão familiar: enquanto para os membros das demais minorias sociais a
família constitui o principal grupo de apoio no enfrentamento da discriminação
praticada pela sociedade global, no caso dos LGBT, é no próprio lar onde a opressão e a
4

intolerância fazem-se sentir mais fortes. Pais e mães repetem o refrão popular “prefiro
um filho morto do que viado!”, ou “antes uma filha puta do que sapatão!”;
V. Conspiração do silêncio: as principais instituições donas do poder, da família
às igrejas, da escola à polícia, estão unidas para impedir que os praticantes do amor
proibido divulguem a verdade: que é bom ser gay, que é gostoso o erotismo entre
pessoas do mesmo sexo, que uma pessoa transexual tem o direito de adaptar sua
anatomia, genitália e estilo de vida à sua identidade de gênero;
VI. Luta menor: intelectuais e políticos de esquerda relegaram ao status de “luta
secundária” a militância e estudos em favor dos direitos humanos das minorias sexuais.
Gays e lésbicas foram taxados de agentes da burguesia e o homoerotismo como sintoma
da decadência capitalista. Recentemente, nossos partidos socialistas entregaram de mão
beijada a Comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional aos fundamentalistas
assumidamente homofóbicos;
VII. Homofobia acadêmica: o homoerotismo e transgeneridade continuam ainda
tema nefando no meio acadêmico: professores e pesquisadores LGBT se veem forçados
a permanecer na gaveta a fim de não sofrerem discriminações funcionais. Muitos são os
docentes que ainda usam a cátedra para divulgar opiniões negativas em relação à
homossexualidade. Alunos e alunas homossexuais e transgêneros são discriminados por
seus professores;
VIII. Omissão governamental: as ações oficiais em favor dos direitos humanos
dos LGBT são ainda tímidas, datando de 1996 o primeiro documento do governo
federal a mencionar o termo "homossexual”. O Programa “Brasil sem Homofobia”, de
2004, não saiu do papel. Recentemente um “kit anti-homofobia” foi vetado pela
Presidência da República, por pressão dos fundamentalistas, apesar de ter sido aprovado
pela UNESCO e pelo Conselho Federal de Psicologia;
IX. Homofobia entre os defensores dos direitos humanos: humanistas, como
Hélio Bicudo, D. Aloísio Lorschaider, Rabino Henry Sobel, entre outros, celebrados
defensores dos direitos humanos, várias vezes divulgaram na mídia opiniões
discriminatórias contra os homossexuais, opondo-se radicalmente ao reconhecimento
legal da união civil e casamento entre pessoas do mesmo sexo;
X. Alienação dos LGBT: gays, lésbicas e transgêneros devem representar
quando menos 10% da população brasileira, mas destes, avaliamos que 90% continuam
presos dentro do armário, vivendo clandestinamente o que para todo ser humano é
motivo de grande satisfação, reconhecimento público e orgulho: o amor. Urge substituir
5

a alienação pela afirmação da cidadania homo/transexual e mobilizar os milhões de


participantes das paradas do orgulho LGBT para que votem em candidatos
comprometidos com nossa cidadania plena.

O que fazer?
Para que gays, lésbicas e transgêneros brasileiros deixem de ser tratados como
marginais e cidadãos de segunda categoria, urge a adoção das seguintes medidas:
1. Descriminalizar de vez a homo/transexualidade no mau trato que a polícia e a
justiça dão às minorias sexuais, aprovando-se leis que condenem a discriminação sexual
com o mesmo rigor que condenam o crime de racismo, aprovando-se integralmente o
PLC 122/06;
2. Erradicar os tabus religiosos que demonizam o amor entre pessoas do mesmo
sexo, propondo às diferentes igrejas a tolerância e a promoção de pastorais específicas
voltadas para as minorias sexuais;
3. Tratar a homofobia cultural que impede à sociedade heterossexista reconhecer
os direitos humanos e a diversidade das minorias sexuais, criando sentimentos de
tolerância dentro das famílias para que respeitem a livre orientação de seus filhos e
parentes homossexuais;
4. Quebrar o complô do silêncio anti-homossexual e divulgar informações
corretas e positivas a respeito do “amor que não ousava dizer o nome”, desmascarando
as falsas teorias que patologizam a homo/transexualidade, ampliando na academia as
pesquisas que resgatem a história e a dignidade das minorias sexuais;
5. Substituir a homo/transfobia reinante nos partidos políticos que tratam a
cidadania LGBT como luta menor, erradicando das entidades que defendem os direitos
humanos qualquer tipo de manifestação de preconceito que viole a dignidade e a
cidadania plena das minorias sexuais;
6. Incentivar os gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais a assumirem
publicamente sua identidade homossexual, lutando pela construção de uma sociedade
onde todos tenhamos reconhecidos nossos direitos humanos e nossa cidadania plena.

Referências Bibliográficas
BORRILLO, Daniel. História e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2010.
6

GREGERSEN, Edgard. Práticas Sexuais. A História da Sexualidade Humana. São


Paulo: Editora Roca, 1983.
HEREK, Gregory M. Psychological perspective on lesbian and gay issues: stigma and
sexual orientation. California: Sage, 1998.
HITE, Shere. O Relatório Hite sobre a sexualidade masculina. São Paulo, Difel, 1982.
MASTERS, William & JOHNSON, Virginia. A Conduta Sexual Humana. São Paulo:
Ed. Civilização Brasileira, 1981.
MOTT, Luiz. “Teoria Antropológica e Sexualidade Humana”, 2013. Disponível em:
http://www.puabase.com/forum/teoria-antropologica-e-sexualidade-humana-luiz-mott-
t85336.html.
MOTT, Luiz. “Antropologia, teoria da sexualidade e direitos humanos dos
homoafetivos”. Bagoas: Estudos Gays – Gêneros e Sexualidades. Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, vol.1, nº1, Jul-
Dez. 2007.
MOTT, Luiz. O crime anti-homossexual no Brasil. Salvador: Editora Grupo Gay da
Bahia, 2002.
MOTT, Luiz. Assassinato de homossexuais: manual de coleta de informações,
sistematização e mobilização política contra crimes homofóbicos. Salvador: Editora
Grupo Gay da Bahia, 2001.
MOTT, Luiz; CERQUEIRA, Marcelo. Matei porque odeio gay. Salvador: Editora
Grupo Gay da Bahia, 2003. Disponível em:
http://www.asylumlaw.org/docs/sexualminorities/Brazil-
MATEI%20PORQUE%2036A05C.pdf
RIOS, Roger R. “O conceito de homofobia na perspectiva dos direitos humanos e no
contexto dos estudos sobre preconceito e discriminação.” In: POCAHY, F. Rompendo o
silêncio: homofobia e heterossexismo na sociedade contemporânea. Políticas, teoria e
atuação. Porto Alegre: Nuances, 2007.
VIEIRA, Eli. Entrevista: “O jovem biólogo que desafiou um dos senhores da fé”.
Disponível em: http://www.jornalorebate.com.br/site/canais/pais/11087-entrevista-eli-
vieira-o-jovem-biologo-que-desafiou-um-dos-senhores-da-fe.
1  
 

Mídia e Diversidade: Visibilidade e Construções das Representações LGBT1


Gean Oliveira Gonçalves2

Introdução
O presente artigo é voltado à reflexão sobre os modos como a visibilidade e a
publicidade midiáticas de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) são
construídas por comunicadores em sua atividade profissional.
Ao longo de sua história, o Movimento LGBT vem ganhando espaço na mídia
brasileira e internacional ao compreender que sua ação na arena pública, por meio de
lutas e manifestações discursivas, tem na imprensa uma aliada ao se garantir uma
transmissão de informações sobre a vulnerabilidade e os preconceitos que a população
LGBT está submetida na contemporaneidade.
Logo, as LGBT entendem que a comunicação social se faz mais rica e
democrática, bem como instrumento para o pleno acesso aos direitos humanos, quando
fontes especializadas, personagens e comunicadores debatem e refletem a sexualidade e
as identidades de gêneros como elementos da diversidade de cada cidadão numa
sociedade que se quer mais justa, solidária e humana.
A análise, a seguir, demonstrará o modo como a mídia e as representações das
LGBT no Brasil estão intrinsecamente ligadas desde o momento da constituição de um
movimento pela dignidade humana daqueles que se entendem fora da lógica da
heteronormatividade e cisnormatividade, tanto na chamada Grande Mídia em seus
diferentes meios de comunicação de massa, até a constituição de uma Imprensa LGBT -
isto é - cujos protagonistas, discursos e públicos-alvo são as pessoas gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e transexuais.

Mídia, opinião pública e participação política


Inicialmente, é preciso pensar a correlação entre mídia, opinião pública e
construção da cidadania e dignidade humana por meio da participação cidadã. A mídia e
seus meios devem ser considerados um importante campo do espaço público, que

                                                                                                                       
1
O texto baseia-se na sétima palestra do curso Igualdade de Gênero II, promovido pela Escola do
Parlamento. A aula, ministrada pelo autor, ocorreu no dia 26 de novembro de 2013, nas dependências da
Câmara Municipal de São Paulo.
2
Graduado em Jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atua como repórter da Revista
Junior e como Assistente Técnico Previdenciário na Assessoria de Relacionamento Institucional da São
Paulo Previdência, autarquia de previdência do Governo do Estado de São Paulo. E-mail:
geanog@yahoo.com.br.
2  
 

mostram a complexidade da sociedade atual, proporcionando, além de entendimento,


organização dos acontecimentos contemporâneos e o trabalho de
visibilidade/invisibilidade dos atos, das intenções e dos planos dos diferentes grupos
sociais.
Para os LGBT, essa arena se mostra relevante para o enfrentamento à homo-
lesbo-transfobia sócio-histórica, que passa frequentemente pela produção e reprodução
dos discursos midiáticos pelo uso de expressões genéricas e adjetivações
estigmatizadoras. Logo, não há como enfrentá-las sem também reconhecer a
necessidade de mudanças na comunicação de massa no Brasil, tradicionalmente branca,
burguesa, heternormativa, de natureza familiar e elitista.
No Brasil, pesquisadores da comunicação, mas especificamente do campo do
jornalismo, em suas abordagens distintas, já identificaram o fazer jornalístico como área
com certa autonomia político-cultural, atuante como ator social, no jogo democrático
das instituições e sujeitos sociais antagônicos ou de interesses em conflito. O lugar do
jornalismo nessa dinâmica está associado ao poder de dizer, de reportar, de construir
uma representação de fatos, fenômenos, discursos e identidades por meio da
visibilidade, publicidade e sociabilidade intrínsecas a sua função mediadora.
Contudo, o fazer jornalístico é uma atividade descendente da modernidade e do
capitalismo, pois, mesmo com um potencial contra-hegemônico, tal espaço reproduz as
lógicas e mentalidades de grupos sociais em posição majoritária e de poder.
A partir da leitura de Paulo Freire (2008) e da sua teoria do profissional
comprometido, é possível classificar o jornalista como o ser capaz de agir e refletir;
estar consciente de seu tempo, a ponto de ser um agente histórico por meio de seus
produtos significativos (notícias, reportagens, análises, crônicas, etc). Tal compromisso
profissional específico diz respeito à decisão lúcida de quem o assume de ser e agir
corajosamente, de forma decidida e consciente, portanto, distante da falsa neutralidade.
Isto é, com uma essência da atuação e responsabilidade com o real, de refletir e atuar no
mundo para transformá-lo no campo democrático e dos direitos humanos e não num
espaço “frio”, cômodo e imparcial de fragmentação, discriminação e estatização da
cidadania.
Sem o resgate dessas dimensões humanizadoras, a verdadeira comunicação não
ocorre. Sem o aprofundamento necessário das informações, o fazer jornalístico cai na
tendência do reducionismo simplista em que a essência humano-coletiva dá lugar ao
mero relato generalizador.
3  
 

De acordo com MEDINA (1996), em “Povo e Personagem”, a tendência de


supervalorizar a eficiência técnica da comunicação e suas mensagens acaba por resultar
no abandono da “essência humana da cosmovisão”, fazendo com que a dimensão
particular do ser humano não seja suficientemente considerada na mediação social.
Segundo a autora, “os horizontes da mediação social da informação necessitam,
na contemporaneidade, de um alargamento” (MEDINA, 1996, p. 12) para que se faça
uma mediação social pautada pela humanização. Essa mediação deve ser trialógica,
segundo a teórica, já que inclui a relação entre comunicador, fonte e receptor e deve
abarcar todo o repertório simbólico presente nessa relação.
A possibilidade dos públicos contestarem, reivindicarem novos direitos ou
diferentes modos de participação política são objetos-sujeitos interessantes para o
jornalismo e para as Ciências da Comunicação. Estudos teóricos sobre movimentos
sociais têm buscado evidenciar o modo pelo qual as diversas associações presentes na
sociedade civil podem promover um tratamento crítico de problemas sociais,
estabelecendo uma importante relação entre participação e argumentação pública. As
minorias são grupos fundamentais nessa dinâmica por necessitarem afirmar suas
diferenças e singularidades, a fim de solucionar desigualdades éticas, sociais, políticas e
econômicas (BARBALHO, 2008).
Segundo GOHN (2010), minorias são classificadas como grupos sociais que,
embora não sejam numericamente menores que o resto da população, possuem
características étnicas, sexuais, gênero, econômicas e linguística diferentes do restante
da sociedade e, por isso, apresentam um ideal civilizatório de construção de uma
democracia com novas culturas políticas de inclusão, contra a exclusão, pelo direito à
diversidade e à multiculturalidade, pela identidade dos novos movimentos sociais,
ressignificando e revalorizando os ideais modernizadores de igualdade, liberdade e
fraternidade. No Brasil, país com heranças de uma sociedade escravocrata,
patriarcalista, dogmática e machista, as minorias são fragilizadas juridicamente e estão
em constante estado de vulnerabilidade social e de soberania.
Portanto, tal cenário precisa de comunicadores com preocupação para as
questões de vulnerabilidade social e de formulação de políticas públicas, bem como
dispostos a criar espaços de vozes pluralistas em discussão a cerca do bem-estar da
coletividade ou de por fim à manutenção das estruturas sistemáticas e hierarquias de
poder. Tendo como pressuposto uma atuação de acordo com os três papéis sociais do
4  
 

jornalismo: a) de fiscal do poder e das liberdades, b) fórum de debate pluralista e c)


agente de mobilização para a participação cívica.

Desafios da cobertura midiática de direitos humanos e diversidade LGBT


Como visto anteriormente e de acordo com a professora MEDINA (2006), a
narrativa por princípio é o modo de expressão e organização das experiências humanas.
Narrar é uma necessidade vital de sociabilização e produção de sentidos com o objetivo
de transformar aqueles que participam do processo comunicativo.
Na cobertura jornalística e midiática de direitos humanos e diversidade LGBT,
os parâmetros norteadores para o desenvolvimento de reportagens e notícias, como
precisão e diagnóstico, tendem a ser fracos ou ignorados e, portanto, alvos de críticas da
sociedade civil, enquanto receptores, fontes e personagens interessados das temáticas.
A banalização das narrativas é um fenômeno conhecido devido ao
comprometimento da estrutura midiática com valores hegemônicos - causados pela voz
da linha editorial da empresa de comunicação e seus mantenedores financeiros - que
querem transmitir um pensamento coercitivo e regulador, reflexo de um sistema de
dominação, mas também é produto de um despreparo do jornalista.
Muitas vezes, a seleção da terminologia para se referir as LGBT configura uma
representação excludente e estigmatizadora, ou mesmo, de violência simbólica. Outros
principais desvios da cobertura midiática são a superficialidade da reflexão, a
perpetuação da alienação, a fragmentação, o uso de estereótipos, omissão de pontos de
vistas e o tratamento de interesses pelo viés moralista, patriarcalista e elitista.
Os profissionais de comunicação - sejam jornalistas, sejam publicitários - podem
moldar culturalmente o respeito à diversidade humana, já que exercem um papel
fundamental de informar e educar bem a população quanto às terminologias sobre
sexualidade, orientação sexual e identidade de gênero.
Contudo, muitas vezes na mídia impressa, televisiva e eletrônica (online) há atos
relacionados à discriminação e ridicularização das LGBT. O mais comum são
programas humorísticos e de ficção que baseiam seus personagens LGBT em papéis
caricatos e alvos de chacota. Outra ação comum, principalmente na teledramaturgia, é a
invisibilização do homoafeto, o que pressupõe no espaço público a naturalização dos
comportamentos heteroafetivos ou a heteronormatividade como única conduta aceitável
até mesmo para os casais homossexuais. Isto é, aos LGBT é permitido seguir suas
5  
 

identidades, comportamentos e culturas desde que se enquadrem numa lógica binária de


gênero – macho/fêmea; homem/mulher; ativo/passivo.
Em suma, são atitudes midiáticas como as citadas abaixo que incentivam o
sentimento de desprezo e incitam à homo-lesbo-transfobia:
a) Enfoque preconceituoso em situações adversas que envolvem a população
LGBT;
b) Editoriais e artigos de opinião nocivos desrespeitando à dignidade humana;
c) Fontes/personagens desqualificadas para abordar a realidade da comunidade
LGBT;
d) Uso de imagens negativas e deboches com a finalidade humorística ou
publicitária;
e) Uso de expressões e termos insensíveis ou com clara falta de conhecimento sobre
desejo, prática e identidade sexual.

Identidade LGBT e jornalismo: uma busca histórica por visibilidade e direitos


Na história brasileira das publicações, a temática do ativismo de homossexuais –
gays e lésbicas -, bissexuais, travestis e transexuais em sua capacidade agentiva, de
discursos e identitária, está intrinsicamente ligada à formulação de uma imprensa
alternativa LGBT. Entender como tais veículos formularam uma compreensão própria
do sujeito vulnerável não-heternormativo para a sociedade implica a construção de uma
visibilidade para a sociedade e os tratamentos estigmatizantes, e ainda excludentes, que
a conjuntura sócio-política, historicamente distante de direitos, ainda passa.
O tema das identidades homossexuais e transgêneras será tratado pioneiramente
na literatura, nas artes, na religião, nas ciências e na legislação antes de ser temática
específica no jornalismo. A obra literária “O Bom-Crioulo”, de Adolfo Caminha, é um
exemplo dessas publicações especializadas na temática gay antes dos periódicos da
imprensa. Neste romance naturalista, é narrada a história de Amaro e Aleixo,
marinheiros que vivem uma relação homoerótica. A publicação de 1895 foi recebida
pela crítica literária e pelo público como um escândalo. Caminha foi ousado ao abordar
temas polêmicos como o sexo inter-racial e a homossexualidade em um ambiente
militar. A mesma coragem desbravadora de Caminha só ocorreria no jornalismo
décadas depois com o início do que viria a ser tornar parte do fenômeno de segmentação
da imprensa: a mídia especializada no público e nas temáticas homossexuais. Porém,
6  
 

antes da história de seu nascimento, é necessário ter uma breve visão dos discursos e da
construção da identidade gay no Brasil.
A história da homossexualidade no Brasil nos apresenta a construção de
conceitos e pré-conceitos que vão permear os discursos em torno da identidade sexual
homoerótica. E que serão alvo da mídia gay com o objetivo de serem desconstruídos ou
transformados.
Os textos produzidos, ao longo da história, vão questionar e avaliar sob sua
perspectiva o ser homossexual no Brasil, em suma, a identidade social do gay brasileiro.
Em conjunto com a construção ideológica de Brasil, os primeiros imaginários sobre a
homossexualidade serão produzidos, como aponta TREVISAN (2004). O Brasil é
idealizado como uma Sodoma, o paraíso tropical sem pecados, localidade de corpos
atraentes, atmosfera sexualizada e calor sensual. Onde os nativos possuem o “vício
natural da pederastia”, os indígenas eram o povo gentil, enquanto os negros exalavam
erotismo e acabavam submetidos às práticas sexuais com seus senhores. Como fruto
desses acontecimentos ligados à colonização e à escravidão, três instituições de poder
produziram discursos de controle da homossexualidade. A Igreja, a justiça e as ciências
médicas.
As três construíram a prática da homossexualidade como conceito de
sexualidade desviante, de forma a estabelecer a heteronormatividade como prática
socialmente e culturalmente aceita. A base do discurso religioso é a visão de pecado e
de um deus punitivo que resultou nas prisões e castigos da Inquisição e seus Tribunais
do Santo Ofício. Já o discurso da justiça é o desvio sócio-moral que pelo desejo das
elites homofóbicas resulta nos crimes de pederastia e confinamentos como penas legais.
Os discursos das ciências médicas tinham como argumento o desvio psíquico, a
doença que foi combatida pelo Estado higienista e pelos estudos psiquiátricos. Essas
três fontes de preconceito vão impulsionar a mobilização de gays e lésbicas pelos seus
direitos, pela liberação sexual e pelo fim do assujeitamento na sociedade. Em última
instância, na criação de uma imprensa própria que carregue a voz dos homossexuais.
No Brasil, essa imprensa gay nasce como desdobramento do período de censura
imposta pela ditadura dos governos militares (1964-1984) e com publicações que
buscam o exercício do jornalismo e da liberdade de expressão, a chamada imprensa
alternativa. Anteriormente à mesma, a homossexualidade será centralizada
midiaticamente somente em eventos carnavalescos ou em fatos policiais.
7  
 

A mídia gay nasce no âmbito político das esquerdas de protagonizar


transformações sociais e da necessidade de oposição ao regime militar e de
contracultura, com a meta de estabelecer um debate sobre o prazer sexual e a liberdade
sexual, como forma de luta pelo fim da discriminação e pela visibilidade social dos
homossexuais. Com as mudanças dos anos 1950 e 1960 no país, como o fluxo de
migração de trabalhadores rurais para as grandes metrópoles, houve uma expansão da
indústria, provocando um aumento de empregos e produtos para consumo. Os
homossexuais são atraídos para as áreas urbanas, formando uma subcultura gay e
lésbica, segundo GREEN (2000).
A ditadura militar de 1964 pouco afeta esse grupo no início, com exceção
daqueles que possuem uma postura política de esquerda. Nesse cenário, surge uma
revista chamada Snob, que alcançou 100 edições entre 1963 e 1969. Tratava-se de um
boletim de fofocas e de imagens de homens vestidos de mulheres. A revista inspirou
uma série de publicações no Rio de Janeiro, mas a sua circulação foi interrompida pelo
temor da censura moralista do governo militar e de uma possível confusão com um
grupo de esquerda. Em 1969, chega ao Brasil a informação do nascimento de um grupo
de ativismo gay em Nova York, incentivando a formação de grupos semelhantes na
América Latina. Porém, novamente temendo a repressão militar, não houve o
nascimento de um grupo militante em nosso país, conta GREEN (2000).
Em 1974, a ditadura começa a sofrer oposições que levam ao enfraquecimento
dos sucessivos governos militares a partir da resistência de estudantes, de operários, do
movimento negro e das mulheres com ideias feministas. Em 1978, com essa oposição
mais unida, se inicia o processo de abertura gradual rumo à democracia. A organização
do ativismo gay surge nessa perspectiva política. E é dessa época a formação do
movimento “Somos: Grupo de Afirmação Homossexual”, considerado o primeiro grupo
organizado com temática gay do Brasil. A influência do jornal O Lampião da Esquina
(1978) contribui significativamente para esse processo de formação de uma organização
que lutou pela visibilidade e pelos direitos dos homossexuais, segundo GREEN (2000).
O jornal vai ser considerado de aqui em diante como pioneiro, símbolo da luta por
direitos igualitários e desafiador da saída do “gueto” por parte das LGBT.
Com a anistia, o retorno dessas pessoas mobiliza o início dessas lutas em nosso
país. A organização de “Somos: Grupo de Afirmação Homossexual” ocorre em São
Paulo, em 1979, no seio das questões estudantis e dos discursos de esquerda, no
Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, segundo GREEN
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(2000). Porém, com as divergências políticas sobre os rumos do movimento, houve um


declínio marcante das atividades do grupo no início dos anos 1980.
Outros grupos surgem em virtude do pioneirismo e do frenesi criado pelo
“Somos”. Luiz Mott funda o Grupo Gay da Bahia, o mais antigo em atividade no
Brasil, que foi capaz de conquistar reconhecimento jurídico e, em 1985, convenceu o
Conselho Nacional de Saúde a abolir a classificação da homossexualidade como desvio
ou doença passível de tratamento. Em virtude da AIDS e da violência contra gays,
lésbicas e travestis, ocorreu a reanimação e reorganização do grupo nos anos 90, fato
que resultou na criação da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis, que
veio a expandir a visibilidade internacional do movimento gay brasileiro e a inserção da
figura do homossexual na mídia nacional. GREEN (2000), analisando essa história, nos
fala sobre a atuação do movimento gay no Brasil, atualmente:

“Se no passado as atividades políticas eram realizadas por indivíduos


corajosos e grupos isolados, agora o movimento desenvolve
campanhas nacionais coordenadas contra a violência e a favor da
parceira civil e da legislação anti-discriminatória. A mídia tem dado
mais cobertura aos assuntos relacionados à comunidade gay e
lésbica; algumas novelas de televisão retratam de maneira positiva
figuras homossexuais” (Green, 2000, p. 294).

O nascimento dos movimentos gays e da imprensa gay no Brasil, logo, reflete o


contato com a mentalidade de liberação sexual e os estudos sobre sexualidade, prazer,
desejos da Europa e EUA, além da militância regional ao longo de cinco décadas.
Desse ponto em diante é possível segmentar a história dos impressos LGBT em
três ondas:
1. Jornalismo militante: em suma tal fase materializava os anseios de politização e
midiatização das questões gays. Dá força ao registro de uma subcultura gay
brasileira e viabiliza o comunicar dentro de um grupo que se mobilizou em prol
de sua liberdade sexual como expressão de identidade e de prazer. Lampião é o
maior exemplo desse momento e de uma nova imprensa que se caracterizava
como militante e em busca da retirada dos homossexuais da marginalização,
movida pelos movimentos igualitários e de liberdade de expressão pós-anos 50,
entre eles o feminismo e os que lutavam pelo direito ao livre exercício da
liberdade de expressão e da sexualidade. Em suma, foi um porta-voz de
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discursos inflamados sobre sexualidade, do ser aceito e da busca pelo


reconhecimento enquanto indivíduo.
2. Jornalismo de mercado: o mercado GLS representou uma expansão das
fronteiras do “gueto”. Uma efetiva maior circulação de informações. Tal
mercado especializado no público gay significou uma nova rede de
infraestrutura: um circuito de casas noturnas; a mídia segmentada; festivais de
cinema; agências de turismo; livrarias; programas de TV e canal a cabo; sites e
lojas de roupas. A imprensa de tal momento caminha na lógica do pink money.
As maiores expressões de tal estágio são as revistas Sui Generis e G Magazine
que vão privilegiar o registro, em suas páginas, de elementos da cultura gay
cosmopolita que se formava naquele contexto no Brasil.
3. Jornalismo plural: a pluralidade desse jornalismo caminha atrelada às
necessidades de uma sociedade consumidora que potencializa as
individualidades e a formação de estilos de identidades para cada situação. As
revistas DOM, Aimé e JUNIOR não são veículos de militância gay, nem
possuem tal pretensão. Mas por meio de seus discursos da pluralidade e respeito
às diferentes orientações sexuais realizam uma ação cidadã em suas páginas.
Consolida-se uma nova mídia gay muito similar à mídia feminina.

Considerações finais
Sobre a mídia LBT é possível dizer que a história das publicações lhe reservou
pouco espaço mercadológico e poucas iniciativas pioneiras. Externamente, a imprensa
gay é vista como abarcadora de um leitor LGBT. Contudo, é produzida por jornalistas
gays que majoritariamente tem como sujeito universal o homossexual masculino.
Lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros surgem nas páginas das
publicações em textos sobre comportamento, são o “excêntrico” da comunidade.
O conceito do dinheiro rosa (pink money) torna excludente, machista, misógina e
produtora de corpos abjetos, a nossa mídia LGBT, visto que ela adota como leitor um
homossexual masculino, branco, heteronormativo e com poder aquisitivo (da classe
média). Os traços de uma nova imprensa de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais inaugura uma onda de desafios com a Internet e a capacidade de todo
sujeito-receptor ser um produtor de conteúdo e informação. Cabe avaliar, de agora em
diante, se a representação e a visibilidade efetuada pelos próprios sujeitos minoritários
serão capazes de abarcar as críticas, demandas e necessidades de um movimento mais
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pluralista e respeitoso com as especificidades de cada sujeito de identidade ou


orientação sexual divergente da heteronormatividade e cisnormatividade.
O trabalho de militantes, de comunicadores e de outros profissionais ligados, de
alguma maneira, ao Movimento LGBT, é construção conjunta sobre as perspectivas
temáticas de orientação sexual, identidade de gênero e padrões não-heretornormativos.
Logo, serão alvos midiáticos e das narrativas da contemporaneidade constantemente,
visto que são sujeitos co-construtores das mediações e tensões sociais da nossa História
e de nossas políticas de Direitos Humanos.
Para isso, é sempre válido disseminar reflexões sobre a qualidade, o respeito e as
atitudes com que tanto a Grande Mídia - em suas faces de jornalismo social,
entretenimento e publicidade - quanto a Imprensa LGBT - em sua face pluralista,
desafiadora ou mercadológica - estão dando aos Direitos Humanos e constitucionais,
bem como aos papéis que expressa fatia significativa da população na luta pela
qualidade de vida de todas as pessoas e no esclarecimento de todos sobre o lugar da
dignidade e desenvolvimentos humanos.

Referências Bibliográficas
BARBALHO, A. “Cidadania, minorias e mídia: ou algumas questões postas ao
liberalismo”. In: CANELA, G. (org.). Políticas públicas sociais e os desafios para o
jornalismo. ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância. São Paulo: Cortez
Editora, 2008.
FREIRE, P. “O compromisso do profissional com a sociedade”. In: Educação e
mudança. 10 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.
GREEN, J. N. Além do Carnaval: a homossexualidade no Brasil do século XX. São
Paulo: Editora da UNESP, 2000.
GOHN, M. G. Movimentos sociais e redes de mobilizações civis no Brasil
contemporâneo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
MEDINA, C. A arte de tecer o presente: narrativa e cotidiano. São Paulo: Summus,
2006.
MEDINA, C. Povo e personagem. Editora da Ulbra, 1996.
TREVISAN, J. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à
atualidade. 6. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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