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: Rodrigo Lucheta
(A distinguir aqui o caráter extático dessa experiência e a noção de Anel universal que já
persegue Nietzsche em sua juventude – período helenista)
Não há uma antinomia implícita à experiência vivida por Nietzsche, entre o conteúdo revelado
e o ensinamento desse conteúdo (na qualidade de doutrina ética) assim formulado: aja como
se devesses reviver inumeráveis vezes e querer reviver inumeráveis vezes – pois, de uma
maneira ou de outra, te será forçoso reviver e recomeçar?
Digressão:
O eterno retorno, necessidade que é preciso querer: apenas aquele que eu sou agora pode
querer essa necessidade do meu retorno e de todos os acontecimentos que resultaram neste
que eu sou – desde que a vontade aqui suponha um sujeito; porém, esse sujeito não pode
querer-se mais tal como ele foi até então, mas quer todas as possibilidades prévias; pois
abraçando num golpe de vista a necessidade do retorno como lei universal, eu desatualizo meu
eu atual para me querer em todos os outros eus dos quais a série deve ser percorrida para que,
seguindo o movimento circular, eu re-devenha o que eu sou no instante em que descubro a lei
do eterno retorno.
No instante em que me é revelado o eterno retorno eu deixo de ser eu mesmo hic e nunc e
estou suscetível a devir inumeráveis outros, sabendo que irei esquecer essa revelação uma vez
estando fora da memória de mim mesmo; esse esquecimento forma o objeto do meu presente
querer; pois semelhante esquecimento equivalerá a uma memória fora dos meus próprios
limites: e minha consciência atual somente será restabelecida no esquecimento de minhas
outras possíveis identidades.
Mas (re)querer-se como um momento fortuito é renunciar a ser si mesmo de uma vez por
todas: visto que não foi de uma vez por todas que renunciei e que é preciso querê-lo; e eu
mesmo não sou esse momento fortuito de uma vez por todas se é verdade que eu devo re-
querer esse momento... de uma vez por todas! A troco de nada? Quanto a mim mesmo. Nada
sendo aqui o Círculo de uma vez por todas. Seja um signo valendo para tudo o que aconteceu,
para tudo o que acontece, para tudo o que acontecerá no mundo.
Como o querer pode intervir sem o esquecimento do que agora deve ser re-querido?
Pois de fato, esse instante mesmo onde me foi revelada a necessidade do movimento circular
apresenta-se em minha vida como jamais tendo acontecido anteriormente! Foi necessária a
hohe Stimmung [do alemão: alta afetividade], a alta tonalidade da minha alma para que eu
saiba e sinta a necessidade de que todas as coisas revenham. Se eu medito essa alta tonalidade
onde se reflete repentinamente o círculo, desde que eu o admita não mais como obsessão
própria a mim, acabo por constatá-la como única apreensão válida do ser – como a única
realidade – não é possível que isso não me tenha sido revelado inumeráveis vezes sob outras
formas talvez: mas eu o esqueci, pois que está inscrito na própria essência do movimento
circular (a fim de aceder a um outro estado e ser precipitado fora de si, sob pena de que tudo
pare) que nos esqueçamos de um estado ao outro. E quando eu não esquecesse que estive
nesta vida aqui, todavia esqueci de ter sido precipitado fora de mim em uma outra vida – em
nada diferente desta aqui!
Sob pena de que tudo pare? Quer dizer que durante essa revelação brusca o movimento
pararia? O movimento circular está longe de parar, pois não pude eu mesmo, Nietzsche, me
subtrair a ele: essa revelação não me veio como uma reminiscência – nem uma experiência de
déjà-vu. Tudo pararia para mim se eu me lembrasse de uma precedente e idêntica revelação
que, no caso de eu proclamar continuamente essa necessidade do retorno, me manteria
dentro de mim mesmo como que fora da verdade que eu ensino. Por isso foi preciso que eu
esquecesse essa revelação para que ela seja verdadeira!
i (1) Cf. Carta à Burckhardt, de 06 de janeiro de 1889.