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ESPECIAL: THEODOR W.

ADORNO FD9 (2005)

“ABAIXO A BATIDA!”
TRANSFORMAÇÕES DA FIGURA DO BATER NOS
ESCRITOS DE EXÍLIO DE THEODOR W. ADORNO1

Yoshikazu Takemine (Universidade de Tóquio)

I. Schlager e propaganda
Depois da tomada do poder por Hitler em 1933, Theodor W.
Adorno teve que abandonar, devido à sua origem “não-ariana,” todas
as suas atividades docentes na Universidade de Frankfurt, e com a
retirada de sua venia legendi em setembro do mesmo ano, sua curta
carreira acadêmica, de apenas quatro semestres, foi oficialmente
terminada. Porém, apesar de toda inquietação política, parecia-lhe
questionável “que o Estado Nazista fosse perdurar por muito tempo”.2
Por isso, decidiu-se “a ficar a qualquer preço na Alemanha”,3 até o
esperado fim do regime Nacional Socialista, estabelecendo-se em
Berlim, onde morava sua futura esposa, Gretel Karplus. Durante este
período, trabalhou intensamente em vários escritos sobre música, pois
alimentava a esperaça de obter uma posição como crítico de música no
Vossische Zeitung.4 Mas como mesmo este jornal liberal teve sua
edição de 31 de março de 1934 suprimida, Adorno deixa seu país natal
em abril, sem ter noção de que começava um período de quinze anos
de exílio – primeiro na Inglaterra, posteriormente nos EUA.5
Estes anos de hibernação de Adorno na Alemanha nazista,
1933/34 despertaram a atenção pública de forma não desejada, devido
aos pequenos escritos musicais redescobertos nos anos sessenta, ou seja
por volta de trinta anos após seu aparecimento: um jornal estudantil
descobriu o fato escandaloso de que Adorno, em uma resenha, não
apenas aprovava uma obra coral apesar e por causa de seu texto
“conscientemente marcado pelo nacional-socialismo”,6 mas também
mencionava o nome de Goebbels lisonjeiramente. Em uma carta-
resposta aberta, Adorno expressa, em primeiro lugar, seu profundo

1
“Bater” é schlagen, que dá origem ao substantivo Schlager, a canção comercial ou de sucesso, e
que corresponde ao hit em inglês (nota do tradutor).
2
Carta de Adorno a Walter Benjamin, 21 de abril de 1934. In Adorno/Benjamin, Briefwechsel
1928-1940, von Henri Lonitz (ed.), Frankfurt a.M. 1994, p. 64.
3
Carta de Adorno a Ernst Křenek, 7 de outubro de 1934. In Adorno/ Křenek, Briefwechsel,
Wolfgang Rogge (ed.), Frankfurt a.M. 1974, p. 43.
4
cf.ibid.
5
Adorno voltou para a Alemanha em 2 de novembro de 1949.
6
Adorno, Rezension von “Herbert Müntzel, Die Fahne der Verfolgten. Ein Zyklus für Männerchor
nach dem gleichnamigen Gedichtband von Baldur von Schirach”, in Die Musik 9, Junho 1934, p.
712; agora em Theodor W. Adorno Gesammelte Schriften, Rolf Tiedemann (ed.), Frankfurt a.M.
1970ff. (doravante AGS), Bd. 19, p. 331.

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pesar por “ter escrito essa crítica à época”,7 e assume a


responsabilidade por suas palavras, mas ao mesmo tempo procura se
justificar, como foi freqüentemente notado por seus críticos, com a
“intenção” subjacente “de defender a nova música, auxiliar sua
hibernação no Terceiro Reich”.8 Mesmo a referência ao nome de
Goebbels, seria apenas algo que “na situação de 1934 deveria aparecer
claramente para qualquer leitor atento como uma captationes
benevolentiae.”9 Se tais justificativas podem soar-nos menos
convincentes do que esquivantes, não se deve simplesmente equiparar
este caso com o de Heidegger.10 Pois trata-se em Adorno, sem dúvida,
de um erro na escolha de palavras, que pode ser ao menos
parcialmente atribuído a condições extraordinárias, uma vez que
aparentemente não é fruto de uma opção política, mas
primordialmente de seu “falso julgamento da conjuntura”.11
No entanto, a história da descoberta de uma mácula na biografia
do filósofo reconhecidamente antifascista não acaba aqui. Em 2001, foi
publicado no Frankfurter Adorno Blätter, a revista oficial do Arquivo
Adorno, de Frankfurt, um texto com o título “Autoridade Radiofônica
e a Transmissão de Músicas de Sucesso”,12 que aparentemente foi
escrito em 1933, mas permaneceu desde então ignorado, embora
satisfaça “sem dúvida” os “critérios de inclusão”13 editoriais das Obras
Completas, de acordo com as palavras de Rolf Tiedemann, o editor dos
Gesammelten Schriften (1972ff.), assim como dos Adorno Blätter
(1992ff.). Seu temor de que “o texto desde então preservado por ele
[Adorno – Y.T.]” levasse a um “triunfante desentendimento”,14 é
completamente compreensível, pois este artigo, que trata
principalmente dos males da transmissão radiofônica da música ligeira
e neste sentido está próximo de “Adeus ao Jazz”,15 contém várias
expressões, que inevitavelmente podem causar a impressão de que
Adorno aceitava, na época, a política de propaganda nacional-

7
Carta de Adorno ao Senhor S. [Schroeder, Klaus Chr.], 3 de janeiro de 1963, in Diskus, Janeiro
1963; agora em AGS 19, p. 637f.
8
op.cit.p. 637.
9
op.cit.p. 638.
10
Em tal carta aberta, o próprio Adorno recusou veementemente uma comparação de si com
Heidegger: “Quem tem uma visão geral da continuidade da minha obra, não pode me comparar a
Heidegger, cuja filosofia é fascista até em suas menores partículas.” (carta de Adorno ao Sr. S., 3 de
janeiro de 1963, op.cit.p. 638).
11
ibid.
12
Adorno, “Rundfunkautorität und Schlagersendung”, in: Frankfurter Adorno Blätter VII/2001,
Rolf Tiedemann (ed.), p. 90-93. Cf. Também o comentário do editor sobre este texto, p. 94-95.
13
op.cit.p. 94.
14
ibid.p. 95.
15
Adorno, “Abschied vom Jazz” in AGS 18, p. 795-799.

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socialista como um todo, ou até mesmo que a teria aprovado sem


reservas:

O rádio atual é um instrumento de Estado e demonstrou possuir em


meses decisivos uma eficácia [Schlagkraft] político-pública a seu
serviço, que ninguém acreditaria ser capaz para os acompanhamentos
estridentes [quäkenden] da vida caseira, e que soterra todas as esferas
privadas sob si. O interesse de lucro não é mais válido aqui: um sinal
drástico disso é o fim de todos os reclames radiofônicos de firmas
privadas.16

A manipulação política do rádio como “instrumento de Estado” fica


assim aceita com a justificativa da inesperada descoberta de sua
“eficácia [Schlagkraft] político-pública” e pelo desejado declínio de
toda “esfera privada” a que se tivesse objeção. A crítica veemente de
Adorno ao pensamento das empresas capitalistas, voltadas para o
lucro, está de acordo com sua crítica da cultura de massa, um objeto
coerentemente perseguido em todos seus escritos. Porém,
diferentemente de suas outras análises da cultura de massa, nas quais
os métodos de “engodo das massas” do sistema empresarial da cultura
são diretamente comparados aos dos estados totalitários,17 o “interesse
de lucro” privado é aqui oposto pura e simplesmente ao interesse
público-estatal, este último devendo ser incondicionalmente favorecido.
Todavia, o autor não pode dar-se por satisfeito com o estado dos
programas radiofônicos alemães da época, pois, como
amarguradamente escreve, a canção de sucesso, o Schlager, ainda
sobrevive:

Porém a música ligeira, ou, para usar o termo mais preciso e menos
amigável: os Schlager permaneceram. O inferno da estupidez, no qual
os fazedores dos Schlager ficam se exibindo, zombou da autoridade, e
além disso demonstra uma consideração para com as maiorias, que
dificilmente poderia acontecer na política.18

O que particularmente o irrita é o comportamento inconseqüente da


política cultural nacional-socialista para com o Schlager: apesar da
completa proibição do jazz na Berliner Sender Funkstunde, em março

16
Adorno, “Rundfunkautorität e Schlagersendung” op.cit.p. 90.
17
Cf. Adorno/Horkheimer, Dialética do Esclarecimento (Rio de Janeiro, Zahar, 1985, tradução de
Guido Antonio de Almeida, doravante DdE), p. 150ff.
18
Adorno, “Rundfunkautorität und Schlagersendung”, op.cit.p. 90f.

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de 1933,19 ainda era permitido que o “inferno da estupidez” – uma


categoria que antes da mais nada se dirigia ao jazz – fosse ao ar e fosse
difundido por meio de “uma nova produção de falsas canções
populares do tipo da ‘Loura Catarina na Grama Dourada’” e dos
“Schlager ‘preferidos’ tirados de fimes e seus respectivos discos”20,
desconsiderando suas qualidades viciantes para as maiorias. Tal
laissez-faire não apenas ultrajava os individuos autônomos, para quem
isto assemelhava-se “às síncopes dos negros batendo uma depois da
outra [aufeinanderschlagen]”21, mas também servia, e não pouco, para
a “indústria do filme sonoro”, que “abolia os últimos vestígios de livre
escolha no consumo de música,” “impondo ao público sob a forma do
Schlager, o que pensa ser bom (leia-se: ruim) o suficiente.”22 Por causa
disso, continua Adorno, tratar-se-ia agora de adotar medidas
coercitivas contra este estado de coisas:

Já estaria na hora de se dar um fim a isso e se varrer as mercadorias


musicais, espectralmente alienadas, das transmissoras de rádio. Na
hora: porque isto é agora possível; [...] porque é suficiente uma palavra
de uma instância de autoridade para mandar a forma do jazz, a
Catarina loura e a criança a chegar, para o diabo, que as criou.23

Justamente a situação política da época deveria fornecer a


oportunidade propícia para espantar o Schlager “assombradamente
alienado” e seus similares, “porque uma palavra de uma instância de
autoridade” – ou seja, uma palavra do Ministro do Esclarecimento
Público e Propaganda, Joseph Goebbels – seria suficiente. Como
observou acertadamente Rolf Tiedemann a respeito deste texto de
Adorno, posteriormente rejeitado, fica patente aqui o “oportunismo
que procura utilizar os meios do inimigo para seus próprios fins”24:
para silenciar uma invenção diabólica como o Schlager, Adorno não se
furta de apelar para a instância não menos diabólica da autoridade
fascista. O problema não se resume mais meramente a uma expressão
descuidada como “captationes benevolentiae”, mas relaciona-se ao
argumento como um todo, com o qual Adorno, ao menos na superfície
do texto, endossa o interesse do Estado e sob cujo nome autoritário
exige a punição de todos os fenômenos que ferem seus ouvidos. Por

19
cf. Michael H. Kater, Gewagtes Spiel: Jazz im Nationalsozialismus. München, 1998. p. 95.
20
Adorno “Rundfunkautorität” op.cit.p. 90f.
21
ibid.p. 90.
22
ibid.p. 90f.
23
ibid.p. 91, ênfase de Adorno.
24
Comentário do Editor, op.cit.p. 95.

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assim dizer, tratar-se-ia aqui de um apelo para um pogrom musical


por meio do poder estatal. Este discurso de agitação tampouco pode
ser explicado por uma “falsa avaliação da conjuntura”; ao invés disso,
Adorno exibe uma visão na época inesperadamente congruente com a
política cultural nacional-socialista. Pois o que esperava, neste caso, foi
realizado pelo Ministério da Propaganda em 12 de outubro de 1935,
quando o então coordenador de emissões radiofônicas do Reich, Eugen
Hadamovsky, decretou “uma proibição definitiva do jazz negro para o
sistema radiofônico alemão”.25
No decorrer do artigo, Adorno pensa ser necessário refutar
completamente “algumas objeções estereotipadas,”26 com as quais o
direito à existência do Schlager era defendido e contra as quais novas
evidências deveriam ser fornecidas. Em sua contra-argumentação, que
forma a maior parte do ensaio, Adorno parte do princípio de que os
Schlager são nocivos: eles tornam os homens “mais burros” seduzindo
os ouvintes “na lenga-lenga [Nachleiern] de melodias incessantemente
repetidas” a confundir a realidade “através da representação
constante de um horizonte de fantasia entre palmas da Riviera, Rolls-
Royces, Grand Hotels e imensos escritórios de diretores gerais” com a
“burrice sistemática e socialmente produzida e reproduzida”.27
Igualmente insuportáveis são os produtores de Schlager e seus
simpatizantes, que desavergonhadamente legitimam o provimento de
músicas de sucesso ao dizer que a necessidade das massas por música
leve corresponderia à livre vontade do povo, embora uma tal vontade
na verdade não seja mais do que um sintoma do envenenamento dos
consumidores ludibriados.28 Ao invés de aceitar esta estultificação das
massas, Adorno procura partir para a ofensiva tomando como modelo
práticas políticas do período.

O que não se poderia alcançar com uma propaganda política que


concebesse o grau de consciência de seu público como constante e se
dirigesse a ele, e não a partir de si, [...] para intervir e transformá-lo?
Porém, na propaganda musical – e a música no rádio não é nada mais
do que propaganda musical – ainda não se vai tão longe.29

25
Citado de: Anônimo, Nationalsozialistische Rundfunkpolitik 1942-1945. Organisation, Programm
und die Hörer. Baden Baden, 1983, p. 306. No entanto, como já foi freqüentemente observado, até o
colapso do regime nacional-socialista esta prescrição não foi estritamente observada (cf. Kater,
Gewagtes Spiel, op.cit.p. 93-109.
26
Adorno “Rundfunkautorität”, op.cit.p. 91.
27
ibid.
28
cf.ibid.p. 92.
29
ibid.p. 92. Ênfase de Adorno.

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O exercício de uma “propaganda musical” é indiretamente


incentivado, uma propaganda que objetivasse, exatamente como a
propaganda política, influir sobre “o grau de consciência de seu
público” e se livrar de toda a “peste”. No final do texto, Adorno
fornece como exemplo concreto para tal “propaganda musical” uma
indicação de encenação para futuros programas propagandísticos de
rádio, que deveria, com sua força paródica, desacostumar
espontaneamente o público de ouvir música ligeira:

Ao invés disso, uma sugestão: a difusão do Schlager [...] no sistema


radiofônico do povo alemão será proibido e a proibição – para usar
uma expressão da propaganda política – de um só golpe [schlagartig]
posta em prática. A partir de um determinado ponto, num domingo,
numa hora da manhã, o espectro deve desaparecer. Tudo isso deveria
estar conectado a uma propaganda centralmente organizada. Esta
teria [...] que expor drasticamente o ridículo do kitsch e de seu texto.
Músicos e radialistas transmitiriam o que há de mais tolo e trival, não
apenas uma vez, mas impiedosamente, repetidamente, interrompendo
nos lugares mais cômicos, estúpidos e humilhantes, mostrando a
miserável regularidade da música; programas seriam montados a
partir de citações dos Schlager; será mostrado o quanto de bom e
sólido é estragado neles, o que de falso emerge neles. Em poucas
palavras, o Schlager será, com os irresistíveis meios oferecidos
atualmente pela centralização da propaganda, desfamiliarizado
[verfremt]. [...] Poder-se-ia certamente organizar uma semana de
propaganda com o título “ABAIXO A BATIDA” [SCHLAGT DEN
SCHLAGER] entre outros: a imaginação do apresentador de rádio
encontraria na polêmica uma tarefa frutífera e positiva. Que tudo vá
para o inferno, se dentro de quatro semanas já não se pudesse respirar
ar fresco.30

Digno de nota aqui é antes de mais nada o fato de que o esboço da


“semana da propaganda” apresenta de novo uma antecipação
profética da realidade: como se as instâncias superiores da
administração radiofônica do Reich houvessem lido este texto, um
programa anti-jazz foi subseqüentemente produzido com o título Do
Cakewalk para o Hot e por anos transmitido por todas as emissoras de
rádio do Reich.31 No entanto, tal procedimento propagandístico – a

30
ibid.p. 93. Ênfase de Adorno.
31
Cf. Bernd Polster. “Es zittern die morschen Knochen: Orchestrierung der Macht” in B.Polster
(ed.), “Swing Heil“: Jazz in Nationalsozialismus. Berlin: 1989, p. 9-30, aqui p. 25.

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exposição malévola do “ridículo” do inimigo por meio de repetição e


exagero – faz parte ele mesmo de um dos métodos preferidos da
política cultural do regime nacional-socialista, voltada em especial
para o boicote de toda música “não-alemã”, como o “bolshevismo
musical judeu”, ou o “jazz de negro”, para o qual encontrou variados
usos na exposição Música Degenerada (1938), e na qual o próprio
Adorno, como escreveu com orgulho na carta aberta citada acima, teve
um “lugar de destaque”.32 Não resta dúvida de que a zombaria pública
com fins propagandísticos tem sua origem naquele impulso mimético
que, de acordo com a Dialética do Esclarecimento, sardonicamente
deveria imitar os gestos e tom de voz dos judeus: “Todos os pretextos
combinados pelos chefes e seus seguidores servem para ceder à
sedução mimética sem violar abertamente o princípio de realidade –
por assim dizer, com todas as suas honras. Eles não suportam o judeu e
imitam-no continuamente. Não há anti-semita que não seja levado
instintivamente a imitar o que ele considera judeu.”33 Esta “tentação
mimética” aparententemente também atingiu por um momento o
jovem Adorno, na medida em que, habilmente imitando o falar
fascista, exortava que se executasse aquilo que o Schlager significava.
Uma característica especial confere à citação acima seu efeito
agressivo. O verbo “bater” [schlagen] surge várias vezes no texto de
forma ostensiva, por vezes marcado por aspas: Adorno sugere [schlägt
vor] que se leve a cabo de um só golpe [schlagartig] a proibição do
Schlager, organizando o programa “Abaixo a batida” [“Schlagt den
Schlager”] para suprimir toda a música ligeira, cuja repugnância
havia sido anteriormente comparada às síncopes batendo uma depois
da outra [aufeinadergeschlagenen] da música negra, com a “eficácia”
[Schlagkraft] do rádio. Este uso freqüente de palavras com a raiz
Schlag- não deve ser desprezado como um mero gosto por homônimos,
pois, como veremos adiante, apontam para um denominador comum
sob o qual a propaganda política e a música comercial podem ser
reunidos: para ambos a batida representa um meio imprescindível
para a manipulação de massa. As músicas comerciais, os Schlager, que
até então habilmente batiam para os ouvintes, deveriam agora receber
a batida, “impiedosamente repetida” do punho da propaganda

32
Carta de Adorno de 3 de janeiro de 1963 ao Sr. S. op.cit.p. 638.
33
DdE, p. 171. Esta imitação está todavia diametralmente oposta à “da mimese genuína”, pois “[o]
anti-semitismo baseia-se numa falsa projeção. Ele é o reverso da mimese genuína, profundamente
aparentada à mimese que foi recalcada, talvez o berço caracterial patológico em que esta se
sedimenta. Se a mimese se torna semelhante ao mundo ambiente, a falsa projeção torna o mundo
ambiente semelhante a ela.” (p. 174.)

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centralmente organizada, como se um mal pudesse ser violentamente


extinguido com um outro, que lhe fosse substancialmente homogêneo.
As páginas abaixo investigam a figura do bater [Schlagen] em outros
escritos de Adorno, de forma a explicitar que, conquanto aparecendo
com significados diferentes, apontam para uma determinada
constelação de pensamento e para uma problemática comum ao
pensamento de Adorno acerca da coisificação dos homens, do domínio
da natureza e da mímesis. Na seção seguinte, lidamos ainda com o
Schlager em relação à teoria da indústria cultural de forma a mais
precisamente designar que realmente está envolvido na insistente
crítica de Adorno à cultura de massa, e, mais especificamente, à
música ligeira e ao jazz.

II. Indústria cultural: bater na semelhança


Dentre as numerosas e abrangentes atividades de seu período de
exílio, está o trabalho continuado de Adorno no desenvolvimento da
teoria da indústria cultural, que se faz presente, de uma maneira ou de
outra, em quase todos escritos da época, e cuja forma final pode ser
encontrada no capítulo dedicado ao tema na Dialética do
Esclarecimento (1940-1944). No origem destas análises da indústria
cultural está o “Sobre o Jazz,” um texto que Adorno completou em
maio de 1936 em Oxford e que foi publicado sob pseudônimo no
Zeitschrift für Sozialforschung no ano seguinte.34 Posteriormente,
Adorno atribuiu um significado especial ao ensaio – apesar de suas
insuficiências, relacionadas à época de sua composição e a questões de
método – pois ele marcaria “um salto” [Durchbruch] a respeito da
“relação entre a reflexão artístico-tecnológica e a social.”35
Corroborando este orgulhoso pronunciamento, encontra-se aqui uma
notável mistura de diversos aspectos científicos – musicológicos,
sociológicos e psicoanalíticos – com os quais Adorno procura
ultrapassar a mera polêmica para atingir a essência do “Jazz como
fenômeno histórico-social”.36 Porém, lado a lado dos novos momentos,
que desde então caracterizariam não apenas sua teoria da indústria
cultural, mas também a análise da cultura de massa da Escola de
Frankfurt como um todo, há em “Sobre o Jazz” passagens que fazem
lembrar “Autoridade Radiofônica”, como por exemplo:

34
Adorno, Über Jazz, in AGS 17, p. 74-108.
35
Adorno, Vorrede zu Moments musicaux, ibid.p. 10f.
36
Adorno, Über Jazz op.cit.p. 76.

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A força do capital das editoras, da difusão por rádio e, acima de tudo,


do filme sonoro, constituem um tendência para a centralização que
limita a liberdade de escolha e, em grande medida, praticamente não
permite a concorrência; o aparato irresistível da propaganda martela
tanto os Schlager nas massas, que os acham bons, quando em sua
maioria são ruins, até que sua memória cansada sem defesa lhes é
entregue [...].37

É possível verificar à primeira vista, que esta passagem repete a frase


citada de “Autoridade Radiofônica” praticamente sem alterações –
“ela [a indústria do filme sonoro] aboliu os últimos vestígios de escolha
livre no consumo de música,” “impondo ao público sob a forma do
Schlager, o que pensa ser bom (leia-se: ruim) o suficiente.” Isto mostra
que os traços básicos da teoria adorniana da indústria cultural devem
ser procurados, não no ensaio sobre o jazz, mas já nos seus escritos do
começo dos anos trinta. No entanto, o texto posterior apresenta uma
diferença decisiva, que sem dúvida pode ser chamada de “um salto”:
agora não existe mais um antagonismo entre a propaganda e o
Schlager, mas sim um parentesco tanto de espírito quanto de método,
que a expressão “aparato de propaganda” resume. Exatamente da
mesma forma que a propaganda política e musical centralmente
organizada no ensaio “Autoridade Radiofônica”, a “força do capital”
centralizado desempenha o papel de disciplinador do público,
mobilizando os media de massa como “aparato de propaganda”.
Propagandistas políticos e produtores privados de Schlager dividem o
interesse de saturar as massas, por meio da manipulação, com suas
próprias mensagens fortemente carregadas ideologicamente. Não se
pode ignorar com isso, que a indústria cultural igualmente usa o bater
como meio de propaganda: as marteladas do Schlager anestesiam a
faculdade da memória de seus ouvintes de tal maneira que estes
gradualmente perdem sua capacidade de resistência e por fim acabam
engolindo tudo que lhes é prescrito.38
No capítulo sobre a indústria cultural a característica de batida não é
apenas específica à música ligeira, mas aplica-se ao sistema da

37
ibid.p. 80.
38
O verbo “martelar” [einhämmern] já pode ser encontrado em “Zur gesellschaftlichen Lage der
Musik” (1932), em relação ao filme sonoro e ao Schlager: “[O]s ouvintes devem cantá-las [Schlager
dos filmes sonoros] em repetição, não apenas porque a mais precisa maquinaria martela-os sem
descanso, mas antes de mais nada porque o monopólio do filme sonoro impede que outros bens
muscais sejam-lhe apresentados, que pudessem ser escolhidos.” (AGS 18, p. 773, ênfase de Y.T.)
Esta função de martelar do Schlager foi posteriormente mais elaborada por Adorno em sua análise
da música pop como técnica de “plugging” (cf. Adorno, “On Popular Music”, in Studies in
Philosophy and Social Sciences vol.9/1941, p.17-48, esp.p. 27).

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ESPECIAL: THEODOR W. ADORNO FD9 (2005)

indústria cultural como um todo: “Pois a cultura contemporânea


confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas
constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o
são em conjunto.”39 Apesar da aparente multiplicidade dos bens
culturais, que são entregues aos consumidores através dos media,
impera na sociedade capitalista avançada um mecanismo monolítico,
que tudo estandardiza e no qual a produção de Schlager é componente
parcial. E esta tendência à homogeneidade é dividida pela indústria
cultural com o Estado fascista; representa algo em comum que vem à
tona particularmente nos métodos de proganda comercial e política de
ambos, onde a figura do bater se faz freqüentemente presente como
elemento de ligação: “Tanto lá como cá, a mesma coisa aparece em
inúmeros lugares, e a repetição mecânica do mesmo produto cultural
já é a repetição do mesmo slogan propagandístico.”40; “A difusão das
popular songs ocorre de um só golpe [schlagartig]. [...] A repetição cega
e rapidamente difundida de palavras designadas liga a publicidade à
palavra de ordem totalitária. O tipo de experiência que personalizava
as palavras ligando-as às pessoas que as pronunciavam foi esvaziado
[...].”41 Tudo aquilo que cai no círculo da propaganda, econômica ou
política, do sistema totalitário perde qualquer vestígio de “experiência”
e degenera em mero signo, e quanto mais os homens são martelados de
forma a repetir mecanicamente palavras de ordem [Schlagwörter]
estereotipadas ou músicas de sucesso, tanto mais facilmente serão
manipuláveis arbitrariamente. Mas a eficácia [Schlagkraft] da
insdústria cultural vai ainda mais longe: ensina às massas não apenas a
papagaiar, mas também a resignar-se. Nos filmes de Walt Disney, por
exemplo, Adorno vislumbra um incentivo ao derrotismo:

As primeiras sequências do filme de animação ainda esboçam uma


ação temática, porém, a ser demolida no curso do filme: sob a gritaria
do público, o protagonista é jogado para cá e para lá como um farrapo.
Assim a quantidade da diversão organizada converte-se na qualidade
da crueldade organizada. [...] Na medida me que os filmes de animação
fazem mais do que habituar os sentidos ao novo ritmo, eles inculcam
[hämmern] em todas as cabeças a antiga verdade de que a condição de
vida nesta sociedade é o desgaste contínuo, o esmagamento de toda
resistência individual. Assim como o Pato Donald nos cartoons, assim

39
DdE, p. 113, ênfase de Y.T.
40
DdE, p. 187, ênfase de Y.T.
41
DdE, p. 189, ênfase de Y.T.

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também os desgraçados na vida real recebem a sua sova para que os


espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem.42

O que o desenho animado silenciosamente “inculca” ou martela nos


espectadores com cenas de pastelão aparentemente inofensivas, é em
primeiro lugar a tolerância como “condição de vida nesta sociedade”:
ilustram, como um aviso, que toda tentativa temerária de se opor de
alguma forma ao sistema está de antemão fadada ao fracasso, e será
castigada com pancadas. Porém, como na vida real os obedientes
cidadãos não podem sempre se furtar a tal infortúnio, devem
acostumar-se, em vista das batidas dos personagens do desenho
animado, a receber sem reclamar suas próprias pauladas. A indústria
do cinema seduz assim seus clientes com um desejo sádico43, cuja
agressividade, segundo a análise psicoanalítica de Adorno, muito
facilmente converte-se em masoquismo.44 Em oposição à tese de Walter
Benjamin no ensaio da “Obra de Arte”, segundo a qual os filmes de
Walt Disney “podem impedir o desenvolvimento intensificado de
representações masoquistas ou sadistas delirantes e seu
amadurecimento natural e perigoso nas massas”,45 Adorno vê no
desenho animado um incentivo à sua perversidade. Em uma passagem
mais adiante no capítulo sobre a indústria cultural tais características
masoquistas são criticamente mencionadas em relação à inserção em
um bando:

O comportamento do indivíduo com relação ao crime organizado [...]


assume traços peculiarmente masoquistas. A postura que todos são
forçados a assumir, para comprovar continuamente sua aptidão moral
a integrar essa sociedade, faz lembrar aqueles rapazinhos que, ao
serem recebidos na tribo sob as pancadas [Schlagen] dos sacerdotes,

42
DdA, p. 160, ênfase de Y.T.
43
“O riso do freqüentador de cinema é [...] repleto do pior sadismo burguês.” (Carta de Adorno a
Benjamin, 18 de março de 1936, in Adorno/Benjamin, Briefwechsel op.cit.p. 172f.).
44
cf. Adorno, Studies in the Authoritarian Personality, in: AGS 9.1, p. 474ff.
45
Walter Benjamin. “Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit” (1a.
Versão, 1935), em Walter Benjamin Gesammelte Schriften, Rolf Tiedemann (ed.), Frankfurt a.M.,
1972ff. (doravante abreviado como BGS), Vol. I-2, p. 462; segunda versão (1935f.), in BGS VII-1, p.
377. Na terceira e última versão (1936-1939) não contém esta frase. Apenas na segunda versão
encontra-se o comentário de que “alguns dos mais novos filmes de Mickey Mouse”, mostrariam a
aceitação confortável “da inclinação, bestialidade e violência como fenômeno condutor do ser”.
Com isso, Benjamin compara a relação com “hooligans dançarinos [...] das imagens de pogrom da
Idade Média” (ibid.). Esta modificação é sem dúvida um reflexo de uma objeção de Adorno, que
discutiu o texto com Benjamin em meados de dezembro de 1936 (cf. carta de Benjamin a Adorno de
7 de fevereiro de 1936 in Adorno/Benjamin Briefweschsel, op.cit.p. 164). Sobre a discrepância entre
Adorno e Benjamin a respeito de Disney cf. Miriam Hansen, “Of Mice and Ducks: Benjamin and
Adorno on Disney”, in South Atlantic Quarterly 92, Jan. 1993, p. 27-61.

54
ESPECIAL: THEODOR W. ADORNO FD9 (2005)

movem-se em círculos com um sorriso estereotipado nos lábios. A vida


no capitalismo tardio é um contínuo rito de iniciação. Todos têm que
mostrar que se identificam integralmente com o poder de quem não
cessam de receber pancadas. Eis aí, aliás, o princípio do jazz, a síncope,
que ao mesmo tempo zomba do tropeção e o erige em norma.46

Se os homens pretendem continuar a viver neste mundo administrado,


devem continuamente passar por um “ritual de iniciação”: um ritual
no qual a indústria cultural desempenha o papel do sacerdote arcaico e
leva o iniciante a suportar as provas com um sorriso artificial e assim
demonstrar sua dedicação total à tribo. A batida [Schlager] no rádio,
ou as batidas [Schlägerei] em desenhos em movimento servem, por
assim dizer, como um cacetete sacerdotal, a cujos golpes tanto as
massas como a tropeçante “síncope do jazz” reagiria. Esta associação,
que soa tão abrupta, com a técnica jazzistica tem sua origem, na
realidade, em “Sobre o Jazz”: “Ela [a síncope do jazz] representa um
mero chegar-cedo-demais [...] como a impotência demonstra-se no
orgasmo antecipado e incompleto. Por meio [...] da medida de base
[Grundmetron] ela fica completamente relativizada e, de novo como a
impotência, tendendo ao escárnio: o escárnio e a dor expressam-se
igualmente nela em uma triste ambiguidade.”47 Paralelamente ao
indivíduo perante o “bando” autoritário está a síncope do jazz em
relação à “medida básica”, contra a qual, com seu riso de escárnio, crê
intencionalmente rebelar-se por meio de seu tempo atrasado, embora
seja na verdade completamente dependente dele. Além disso, a
metáfora sexual, repetidamente ocorrendo, da “impotência”, aponta
para o que está atrás de sua aparência ambígua:

O “eu” contingente é ele mesmo, por princípio, e como membro da


classe burguesa, vítima da lei social cega. Aprendendo assim a temer a
instância social e vivenciando a ameaça de castração – diretamente:
medo de impotência – identifica-se justamente com a instância a que
deve temer, passa repentinamente a pertencer a ela, e pode dançar com
ela. O sex appeal do jazz é um comando: faça o que lhe é dito e poderás
também, e um pensamento onírico [...]: se me desmaculinizo, só assim
serei potente.48

46
DdE, p. 143f. Ênfase Y.T.
47
Adorno, “Über Jazz”, op.cit.p. 98.
48
ibid.

55
ESPECIAL: THEODOR W. ADORNO FD9 (2005)

A base da psicologia do jazz constitui desta forma um medo de


castração no sentido freudiano: da mesma maneira que o menino, de
acordo com a teoria do complexo de Édipo, abre mão de todos os
desejos proibidos por causa da ameaça de castração, e obedece a um
superego formado por meio da interiorização da proibição paterna,
assim também o jazz, apesar de sua aparente insubordinação,
identifica-se emocionalmente com a temida instância social, para que
possa secretamente apropriar-se de sua autoridade e potência. Não é
preciso especular-se se este complexo de castração também tem um
significado decisivo no rito de passagem do capitalismo avançado: as
batidas da indústria cultural, que se fazem sentir através das melodias
de batidas repetidas, síncopes jazzísticas batendo em sucessão,
anúncios de produtos a martelar ou as pauladas do desenho animado,
promovem uma desmasculinização social do público, com o fim de
apagar qualquer resistência de seus pensamentos, e para levar a cabo a
identidade com o poder como autor de sua própria castração, que está
estruturada com o falo imaginário. Apesar da veemente crítica de
Adorno ao Schlager em “Autoridade Radiofônica,” acontece agora que
este de forma alguma contradiz aquele interesse “público-político”,
mas que justamente por meio de seu efeito “de batida” transforma os
ouvintes em eunucos dependentes da autoridade, potencialmente
fascistas e castrados pela indústria cultural, traços essenciais que
Adorno resumirá, nos estudos sobre o anti-semitismo, escritos em
colaboração com outros psicólogos sociais, com o nome de
“personalidade autoritária.”

III. Bater como Origem da Escrita Musical


Indústria cultural e fascismo: é certo que ambos são fênomenos
determinantes para o século vinte, porém, como estão
inextrincavelmente ligados ao progresso econômico-social do
capitalismo, sua “pré-história” deve ser primeiramente investigada na
Europa do século XIX, onde pela primeira vez na história floresceu o
mundo industrialmente avançado das mercadorias. Versuch über
Wagner [À Busca de Wagner, ou Investigação sobre Wagner], que
Adorno começou a escrever no outono de 1937 em Londres, e que foi
completado em março de 1938 em Nova York, pouco depois de sua
emigração para os EUA49, representa uma tentativa de “desvendar a

49
Adorno partiu para Nova York em 16 de feveiro de 1938 com a Sra. Gretel, com quem
recentemente se casara.

56
ESPECIAL: THEODOR W. ADORNO FD9 (2005)

origem da tirania fascista no processo social dominante”50 por meio de


uma confrontação crítica com a obra e as idéias de Richard Wagner:
na visão de Adorno, Wagner incorpora em germe tudo que
posteriormente conduzirá ao nacional-socialismo, e com o afiado
bisturi de seu pensamento disseca variados momentos protofascistas
desse “clássico do Terceiro Reich”51, como por exemplo seu notório
racismo, a ideologização da mitologia ou o fanático culto de Bayreuth,
vendo-os como antecipação do hitlerismo e assim por diante. Por outro
lado, Adorno descobre nas óperas de Wagner um engodo envolvendo o
caráter de mercadorias industriais, uma fantasmagoria de êxtase
tecnologicamente produzida, através da qual todas as contradições
podem ser ilusionariamente ocultadas,52 e que estaria na origem da
indústria cultural.53 De acordo com a diagnose de Adorno, o caráter
questionável de Wagner vem à tona especialmente em sua relação com
o público ouvinte, quando o compositor agiria como “batedor”
[“Schlagender”]:

[S]ua música [é] concebida nos gestos do bater e é dominada por


representações de batidas. [...] Porém, como batedor, o maestro
compositor dá ênfase às pretensões terroristas do público. A
consideração democrática com o ouvinte transforma-se em acordo com
as forças da disciplina [...]. O estranhamento do público está para ele
desde o começo conjurado com o efeito sob o público; apenas um
público ouvinte cujo a priori social e estético está tão separado daquele
do compositor, como no capitalismo avançado, pode tornar-se,
coisificado, objeto de cálculo da manipulação artística.54

Com os gestos de batida de Wagner, cuja Gestalt, segundo Adorno, é a


“de um maestro dando ordens em uma orquestra”55, o público seria
coisificado [verdinglicht] em uma matéria para a manipulação
calculadora. Aqui reside sem dúvida o ponto de contato entre o público
ouvinte de Wagner na ópera e a massa, tanto na socidade da indústria
cultural quanto sob o regime fascista. Em Wagner, repetem-se os
temas condutores, que teriam uma função “parecida com a da
mercadoria, semelhante a do anúncio” e por cujo “retumbar e

50
Adorno, “Selbstanzeige des Essaybuches Versuch über Wagner” in AGS 13, p. 504-508, aqui p.
504.
51
ibid.
52
cf. Adorno, Versuch über Wagner, in AGS 13, p. 82-91, esp.p. 86ff.
53
Ibid.p. 102.
54
ibid.p. 28, ênfase Y.T.
55
ibid.p. 27.

57
ESPECIAL: THEODOR W. ADORNO FD9 (2005)

incontáveis repetições” “martela a música no público”.56 Além disso,


defende Adorno, a obra de Wagner é dominada por “representações de
batida” não apenas em tais traços exibicionistas, mas também do ponto
de vista musical, e completamente: Wagner coisifica com mestria
[schlagend] o próprio conteúdo composicional de seus dramas
musicais, na medida em que esvazia57 a extensão temporal da música,
que de acordo com Adorno está no cerne do verdadeiro
desenvolvimento musical (como presente nas seqüências sinfônicas de
Beethoven58), através da “metronomização”, a divisão mensurada e
racional do tempo, espacializando a música: “No que concerne tal
espacialização e presentificação [Vergegenwärtigung], as formas
wagnerianas são, também do ponto de vista do compositor, auxílios de
memória. [...] O domínio wagneriano do tempo através do pulso
[Taktieren] é oposto ao tempo abstrato sinfônico, ou seja, corresponde
justamente à idéia de um tempo articulado por batidas de compasso.”;
“[A]ssim, a idéia da batida do pulso ajuda enganosamente o
compositor a ter sob seu poder o tempo vazio, com o qual começou
[...].”59
A espacialização e coisificação do tempo musical, que se mostra
especialmente no gesto de Wagner de bater/marcar o pulso como
“compositor regente”, não começou todavia na era burguesa com seu
drama musical, mas acompanhou continuamente a história da música
ocidental. Pois o desdobramento da teoria e prática musicais na
Europa desde a Antiguidade, que nada mais é do que a consolidação da
hegemonia do sistema tonal, não pode ser separado do processo
progressivo do homem de domínio da natureza pela racionalização – a
idéia central da Dialética do Esclarecimento. Em sua crítica a Wagner,
Adorno vai em busca das “origens bárbaras” da batida e da regência
no século XVII, quando “os maestros marcavam o tempo com
bastões.”60 No entanto, em seus fragmentos e esboços sobre a execução
musical, escritos entre 1946 e 1959, publicados e editados apenas em
2001 com o título Para uma Teoria da Reprodução Musical,61 faz
56
ibid.p. 29, ênfase Y.T. cf. Andreas Huyssen, “Adorno in Reverse: From Hollywood to Richard
Wagner” in After the Great Divide: Modernism, Mass Culture, Postmodernism. Bloomington, 1986, p.
16-43, esp.p. 37ff.
57
cf. Adorno, Versuch über Wagner, op.cit.p. 34.
58
ibid.p. 30.
59
ibid.p. 31.
60
ibid.p. 29.
61
Adorno, Zu einer Theorie der musikalischen Reproduktion, Hennri Lonitz (ed.) )Nachgelassene
Schriften Abteilung I: Fragment gebliebene Schriften, Band 2), Frankfurt a.M., 2001. Como a
maior parte deste texto, e a mais importante para nosso interesse, foi escrita entre 1946-1949, ou
seja, nos últimos anos do exílio de Adorno nos EUA, ele merece ser citado aqui, apesar de sua longa
gestação (o primeiro plano de composição remonta a 1927).

58
ESPECIAL: THEODOR W. ADORNO FD9 (2005)

remontar a espacialização do temporal pela marcação do pulso à


origem da notação: “Os primeiros caracteres musicais são as batidas
de tambor rigidamente regulares dos bárbaros [...]. Cada nota escrita é
a imagem de uma batida: a objetivação da música, a mudança do
passar do tempo em um espacial, representa [...] a espacialização da
experiência com o fim de sua dominação.”62 Através da introdução de
instrumentos de percursão [Schlaginstrumente] de marcação
numericamente determinada, a “experiência” do tempo musical torna-
se um objeto racionalmente dominável em um sistema rígido de signos,
ou seja é espacializado em notação, de tal forma que nos faz lembrar
do destino dos homens manipulados no sistema da indústria cultural.
Perdido com isso fica antes de mais nada o mimético, que segundo
Adorno constitui a essência da música, pois na realidade sua origem
residiria na “imitação dos sons naturais [...] por meio de gestos.”63 É
verdade que a escrita musical contém um rudimento destes momentos
miméticos, na medida em que, como “escrita de gestos”, “esta baseada
na mímesis, na reprodução [Abbild] opticamente petrificada do
gesto”64, como mostra, por exemplo, a “marca de batida” na escrita
neumática65 como “reprodução da batida da música de cultura
bárbara-ritualística”.66 Todavia, na escrita musical uma outra
mímesis, inautêntica, vem à tona “como imitação do sistema musical
disciplinador, por assim dizer como mímesis do elemento anti-
mimético da música”,67 que não representaria senão a
“desapropriação, estranhamento, petrificação da música”68 e que
mataria a verdadeira mímesis por meio da racionalização e fixação: “A
eternização da música pela escrita presta-se a um momento de morte:
o que mantém é ao mesmo tempo irrecuperável.”69; “mata a música
como fenômeno natural, para preservá-la, quebrada, como espírito.”70
É porém justamente nesta característica da notação musical de trazer
a morte que Adorno, paradoxalmente, vê uma possibilidade utópica de
reprodução musical: “Esta contradição delimita a utopia da
reprodução da música artística: através da ordenação total trazer de
volta o que a ordenação tornou irrecuperável. Todo musicar é uma

62
Ibid.p.71, ênfase Y.T. cf.também p. 227.
63
ibid.p. 223f.
64
ibid.p. 233.
65
Sistema de notação do canto gregoriano, baseado no acento das palavras. (Nota do tradutor)
66
ibid.p. 232.
67
ibid.p. 227f.
68
ibid.p. 228.
69
ibid.
70
ibid.p. 235.

59
ESPECIAL: THEODOR W. ADORNO FD9 (2005)

recherche du temps perdu.”71 Pois apesar de sua falta de ambiguidade


significativa, não-mimética, a escrita em notas deveria preservar
“como imagem, algo da ambiguidade neumática”, “o elemento
alegórico” ou “o momento da expressão”,72 no qual a essência
mimética da música” permaneceria em estado degenerado.73 A prática
da reprodução musical é assim uma alegorese contraditória:
interpretar a notação como escrita de imagens ou imagem escrita e
dela invocar, musicando, a utopia do mimético, há muito perdida e
talvez nem mesmo mais obtível, que no entanto por definição não pode
ser reproduzida.74
Esta teoria da notação musical, que procura decifrar a forma
mortalmente petrificada do gesto da música, coisificado em mero
signo, como a apresentação negativa de um “utopia” irrecuperável,
nunca encontrou uma forma definitiva durante a vida de Adorno.
Porém seus teoremas deixaram traços conspícuos em seus últimos
escritos sobre estética. Na Teoria Estética (1961-1969), por exemplo, as
modernas obras de arte, cuja linguagem somente pode ser
compreendida “como uma escrita”,75 “abandonam-se mimeticamente à
coisificação, seu princípio de morte”,76 e “retendo o transitório – a vida
– em sua duração, as obras desejam redimir-se da morte, matando-
o”,77 para finalmente por meio de sua ”negatividade absoluta”
exprimir “o inexprimível, a utopia”.78 Todavia, enquanto que no
pensamento de Adorno como um todo atribui-se um tal potencial
utópico apenas ao campo da arte autêntica, os fenômenos, coisificados
e alienados, da indústria cultural, que até aqui foram abordados
segundo a figura da batida, parecem estar completamente excluídos
desta possibilidade redentora. Seria o caso que Adorno manteve por
toda sua vida sua rejeição aos bens comercias de consumo de massa,
que exprimiu tão radicalmente em “Transmissão Radiofônica e
Autoridade”, de forma que não veria nenhuma outra possibilidade
senão remediar as conseqüências perversas dos bens culturais do
capitalismo avançado por meio de considerações críticas, mesmo
quando não mais exigindo sua proibição? É verdade que uma leitura
71
ibid.p. 228, cf.p.71.
72
ibid.p.235f.
73
“[A] natureza mimética da música degenera na expressão” (ibid.p. 84).
74
Estas considerações sobre a natureza coisificante da notação vieram de fato da teoria de
Benjamin a respeito da escrita alegórica por imagens [alegorische Bilderschrift] no Ursprung des
deutschen Trauerspiels (1923-1925), especialmente na seção “Ritter über die Schrift”, ao qual se faz
referência em uma nota (cf.ibid.p. 83)
75
Adorno, Teoria Estética São Paulo: Martins Fontes, 1982. trad. Artur Morão. p. 145.
76
Ibid.p. 154.
77
ibid.p. 155, tradução modificada.
78
ibid.p. 46.

60
ESPECIAL: THEODOR W. ADORNO FD9 (2005)

superficial de seus escritos críticos sobre a cultura, nos quais


diagnósticos pessimistas abundam, pode dar esta impressão, mas nos
textos nos quais Adorno lida com a cultura e com os meios de massa
também há passagens nas quais descobre dimensões utópicas. Em
1934, ou seja, logo após a publicação de “Autoridade Radiofônica”,
veio à luz um curto texto chamado “A Forma do Disco”,79 no qual
Adorno confere à configuração do disco um “profundo direito”:

[P]etrificada, retirada, através do disco, da produção viva e da


exigência da prática artística, a música grava em si, ossificando-se, a
vida, que de outra forma vai embora. A morte salva a arte “fugidia” e
passageira como sendo apenas ela viva. Aqui pode residir seu maior
direito, que não será curvado por nenhuma posição estética contra a
coisificação. Pois este direito recoloca, justamente por meio da
coisificação, uma relação antiqüíssima, soterrada, mas autêntica: a da
música com a escrita.80

Em oposição à sua imagem cliché como defensor obtuso da


modernidade estética, para quem o desenvolvimento da tecnologia
moderna seria de pouco interesse, Adorno sustenta aqui que é
precisamente a coisificação técnico-reprodutora do disco que possui o
poder de roubar de fenômenos passageiros como a música, por meio de
sua ossificação mortal, sua vivacidade “fugidia”, e dar-lhe ao invés
uma outra vida, “morta”, como um pós-vida, para finalmente salvá-la
como “escrita”. Sem dúvida, esta concepção característica do disco
como meio, assim como a reabilitação da coisificação, comunica-se
diretamente com as considerações sobre a notação musical no esboço
da Teoria da Reprodução Musical. E, na realidade, Adorno vai lidar em
seguida com o disco, i.e. com seus sulcos, como um descendente da
escrita musical na era de sua reprodutibilidade técnica, que não
obstante possui a seguinte característica determinante:

Quem já notou a pressão, crescente e constante, que a esrita musical e


a imagem das notas [Notenbild] exerceu especialmente nos últimos
cinqüenta anos sobre os compositores [...], não poderá se espantar se
um dia desses uma reviravolta acontecesse na qual a música, outrora
veiculada pela escrita, de uma vez só se convertesse ela mesma em
escrita: ao preço de sua imediaticidade, mas com a esperança de que
79
Adorno, “Die Form der Schallplatte”, in AGS 19, p. 530-534.
80
Ibid.p. 532. Ênfase de Adorno. Para a história do contexto deste pensamento cf. Thomas Y.
Levin. “For the Record: Adorno on Music in the Age of Its Technological Reproducibility”, in
October 55, Winter/1990, p. 23-47.

61
ESPECIAL: THEODOR W. ADORNO FD9 (2005)

ficasse de tal forma fixada, que pudesse ser lida como “a última língua
de todos os homens depois da construção da Torre”, suas mensagens,
determinadas, porém cifradas, contendo cada uma de suas “frases”.
Fossem todavia as notas seus meros signos, então aproximar-se-iam
decisivamente, por meio dos sulcos dos discos, de seu verdadeiro
caráter de escrita. Decisivamente, porque esta escrita deve ser
reconhecida como uma verdadeira língua [echte Sprache], na medida
em que surge como seu simples ser-de-signo: irremovivelmente
dedicado ao som, que este e apenas este corte de som possui.81

Os sulcos do disco estariam assim muito mais próximos do “verdadeiro


caráter de escrita” do que a notação, pois se as notas ainda atuam
como portadores semióticos, que se referem ao som apenas de uma
forma arbitrária e mediada, os cortes do disco desprezam qualquer
significação e apresentam ainda assim um som específico como escrita.
Ainda que este possa ser silencioso, está “irremovivelmente” ligado a
suas figuras materializadas, e decifrá-las representaria nada menos
que a “verdadeira língua”, que anunciaria uma correspondência tão
pura, desprovida de arbitrariedade, e tão imediata, que talvez pudesse
até mesmo superar a confusão lingüística da torre de Babel.82 Quanto
mais o mundo afunda na tecnologização e comercialização do
capitalismo avançado, tanto mais profunda e completamente a
coisificação atinge todas as criaturas terrenas, de forma que mesmo a
música, que certa vez, através da introdução do sistema de notação, foi
espacializada em mero signo e assim coisificada, precisa passar por
uma segunda mutação, literalmente transformando-se em itens
materias, i.e. nos sulcos cortados em forma de espiral do vinil preto
produzido em massa, de cuja constituição hieroglífica negativamente
brilha a possibilidade de uma paradisíaca fala-de-som [Klang-Sprache]
indivisa. Se não se pode negar que as análises de Adorno da cultura de
massa durante o exílio chamaram incansavelmente a atenção para os
lastimáveis resultados das “batidas” da indústria cultural, não se pode
ignorar que sua coerente crítica à indústria cultural sempre mantém
aberta a perspectiva de redimir os produtos de massa, em seu grau
máximo de coisificação, por meio de uma virada [Umschlag] dialética.

Traduzido por Fabio Akcelrud Durão.

81
Adorno, “Die Form der Schallplatte”, op.cit.p. 532f.
82
Cf. Levin, “For the Record” op.cit.p. 33.

62

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