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JOINTH - 2014

Bíblia e ecumenismo: elementos de uma hermenêutica


ecumênica da bíblia para as Igrejas no Brasil

Elias Wolff
professor no PPGT da PUCPR
elias.wolff@facasc.edu.br

Resumo: A bíblia é o único conjunto de livros em torno dos quais as igrejas


estabelecem o consenso de palavra de Deus revelada à humanidade. Nesse
sentido, a bíblia é fator de aproximação, convergência e consenso de fé entre
as diferentes igrejas. Contudo, a fragmentação no mundo cristão tem origem e
fundamentação também na forma como os cristãos e as igrejas utilizam a
bíblia. Assim, faz-se mister desenvolver uma hermenêutica da bíblia que
favoreça o diálogo e a comunhão entre os cristãos. O movimento ecumênico
tem se dedicado a desenvolver essa hermenêutica, constatando que é na
medida em que as igrejas estabelecem o consenso na interpretação das
escrituras sagradas, que mais possibilidades existem para o consenso sobre os
demais elementos da fé cristã e das estruturas da igreja. Faz-se mister,
portanto, trabalhar os elementos de uma hermenêutica ecumênica da bíblia
que impulsione os esforços pela unidade dos cristãos que acontecem no
contexto brasileiro.

Palavras-chave: diálogo, leitura da Bíblia, ecumenismo

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Bíblia e Ecumenismo: uma relação identitária

As igrejas envolvidas no movimento ecumênico têm consciência da


importância fundamental da Bíblia na busca da unidade dos cristãos. Trata-se
de uma relação de identidade entre Bíblia e ecumenismo, no sentido que, de
um lado, o verdadeiro ecumenismo é essencialmente bíblico; e, de outro lado,
a Bíblia exige uma leitura ecumênica para ser compreendida de modo a
sustentar a unidade dos cristãos e da Igreja: “Para conhecermos o
ecumenismo nada melhor do que começarmos estudando a Bíblia” (Clai/Conic,
1998, 25). Essa consciência manifesta-se de muitas formas no mundo
ecumênico, como nas traduções ecumênicas das Sagradas Escrituras, na
entreajuda de exegetas, teólogos e pastoralistas para o estudo bíblico, nas
iniciativas pastorais que privilegiam a leitura ecumênica da Bíblia.
No movimento ecumênico, a palavra hermenêutica tem sido aplicada,
quase exclusivamente, à compreensão dos vários modos como a Bíblia é
interpretada nas diferentes tradições eclesiais, e à tentativa de clarear a
relação entre hermenêutica e unidade cristã. Por várias vezes o Conselho
Mundial das Igrejas tratou da relação entre Bíblia e ecumenismo. Entre outras,
destacam-se os trabalhos de Fé e Constituição: The Fourths World Conference
on Faith an Order (Londres, 1964); “O significado do problema hermenêutico
para o movimento ecumênico” (Bristol, 1967); “A autoridade da Bíblia”
(Louvain (1971); “O sentido do Antigo Testamento em relação ao Novo”
(Loccum, 1971). O último documento publicado é Tesouro em Vasos de Argila
– Instrumento para uma reflexão ecumênica sobre hermenêutica (Paulus,
2000). A convicção é que a Bíblia fornece as bases indispensáveis para a
unidade a unidade dos cristãos, como a revelação de Deus a um povo, e a
resposta deste povo à proposta que Deus faz de reuni-lo em comunidade. Em
muitas comunidades cristãs, a Bíblia está deixando de ser objeto de
controvérsia para ser instrumento de diálogo e de comunhão. Isso é possível
pela sintonia numa hermenêutica que prioriza a “releitura contextual” da
Escritura Sagrada. A hermenêutica bíblica assume a perspectiva da comunhão
como eixo dinamizador da vida das igrejas. A comunidade dos cristãos é o
lugar eclesial do texto, o locus hermenêutico por excelência, de modo que se

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supera a preocupação exclusiva pelo texto, estabelecendo a interação entre


Bíblia, liturgia, teologia, história, sociologia, espiritualidade e assim por diante,
numa impostação do debate hermenêutico interdisciplinar e ecumênico. A
Igreja é, assim, uma comunidade hermenêutica, onde encontram-se as bases e
critérios para a realização de uma hermenêutica da unidade na releitura bíblica
(Mesters, 1982, 84-94; Seibert, 1995, 70-86; SANTANA/BARROS, 1990, 107).

Repercussões no Brasil

No Brasil, o primeiro trabalho de publicação ecumênica da Bíblia no


Brasil teve início em 1968. Tratava-se de uma doação oferecida à CNBB para
a publicação do Segundo Testamento (CNBB, 1968, p. 5). A CNBB aprovou a
primeira edição ecumênica do Segundo Testamento na reunião da Comissão
Central no dia 19/07/1969, em preparação à sua X Assembléia Geral (CNBB,
1969, p. 8). Mais tarde aconteceram outras edições ecumênicas, como “O
Novo Testamento na Linguagem de Hoje”, publicado em colaboração com a
instituição protestante “Sociedade Bíblica do Brasil” (CNBB, 1973, p. 802). Na
sua XIV Assembléia Geral, a CNBB votou a escolha de um “Dia da Bíblia”
único para católicos e evangélicos. A razão foi que: “A Sagrada Escritura
constitui no diálogo religioso um excelente instrumento na potente mão de
Deus para conseguir a unidade” (UR 21) (CNBB, 1974, p. 1061). A partir de
então muitas outras iniciativas vêm se desenvolvendo no setor, por exemplo:
quando o mês da Bíblia no Brasil teve como tema o apóstolo Paulo, o material
usado pelas comunidades católicas romanas em todo o país foi elaborado por
um protestante (CNBB, 1997, p. 20). Outro exemplo é o Centro de Estudos
Bíblicos – CEBI, criado em 12/05/1979, com a finalidade de ajudar as
comunidades cristãs no uso e na interpretação da Bíblia. Dele participaram e
participam exegetas, teólogos e pastoralistas de várias igrejas, alguns já
falecidos e outros ainda em atividade, como o pastor congregacionalista
Jether Ramalho, o Bispo metodista Paulo Ayres Mattos, os pastores
presbiterianos Carlos Cunha e Zwinglio Dias, o pastor luterano Milton
Schwantes, o católico Frei Carlos Mesters. Para todos, “a Bíblia é marco de
referência para a fé, para o trabalho, e também é marco ecumênico” (E.H.

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LOPES, 1998, p. 7) 1.

Elementos ecumênicos da Bíblia

A Bíblia é uma realidade ecumênica em si mesma por diversas razões,


entre elas:
1) Pela sua estrutura: existem várias versões da história do povo de
Deus, constituídas por tradições diferentes entrelaçadas numa pluralidade de
intenções subjacentes aos textos bíblicos que não apresentam facilidades de
conciliação. Mas o Cânone das Escrituras “nos propõe a única verdade do
Evangelho numa pluralidade de livros e inclusive numa possível multiplicidade
de significados de um mesmo texto bíblico” (Cereti, 1997, p. 78). Isso deixa
claro que a diversidade em si mesma não constitui empecilho para a
comunhão. Na Bíblia, a história do povo de Deus é narrada de maneira
ecumênica Clai/Conic, 1998, p. 19).
2) Pelo uso comum – a Bíblia é o instrumento de fé mais partilhado pelas
Igrejas. Mais, é o único livro de fé em torno do qual existe real sintonia na sua
aceitação como Palavra divina e inspirada. A mesma sintonia não existe,
porém, na hermenêutica dos textos, fator esse que tem sido uma das principais
causas de divisão entre os cristãos. Contudo, importa ressaltar o fato de que o
uso comum da Bíblia pode favorecer para a aproximação das comunidades dos
cristãos no desenvolvimento de uma hermenêutica ecumênica.
3) Pela sua mensagem: todos os cristãos compartilham a compreensão
da Bíblia como a revelação do Uno-Trino Deus, e sua realidade divina
essencialmente caracterizada como comunhão: “Eu e o Pai somos um” (Jo
10,30); Deus Pai quer reunir a todos para viver em comunhão (Ez 36, 24-28).
Esse projeto identifica-se com Jesus Cristo, com o qual os cristãos são
chamados a viver em comunhão (1Col 1,9), e se realiza escatologicamente, na

1
Ver as publicações do CEBI da Série “A Palavra na Vida”: Bíblia e Atitude Ecumênica –
Desafios para o nosso trabalho, (n. 93), São Paulo, 1995; Símbolo de Unidade – Juntando
nossos pedaços, (nn.105/106), São Paulo, 1996; S.A.G. SOARES, Um só Senhor – Meditação
sobre ecumenismo, (n. 104), São Paulo, 1996; Deus Tudo em Todos – Acolhendo o diferente e
defendendo a vida. XIV Assembléia Nacional, (n.109), São Paulo, 1997; F.R. OROFINO,
Acariciando o Sonho – Ecumenismo e Igrejas cristãs, (n. 122), São Paulo, 1998.

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vida plena em Deus (Mc 1,14-15; Mt 9,35-36; Lc 11,20; Jo 10,10). O Espírito


Santo é causador da comunhão, do divino com os homens, dos homens com o
divino, e dos homens entre si (At 2; 2Cor 13,13; Fil 2,1). A Igreja congrega os
fiéis em Cristo na comunhão fraterna (At 2,42-47), e torna-se na história
responsável pela tarefa de eliminar todas as divisões existentes no povo de
Deus (Gl 3,28; 2Cor 5,19; 1Jo 4,7-10; At 2, 44-45).

Gestos e palavras ecumênicas de Jesus

Pelo considerado acima, conclui-se que a Bíblia sozinha não constitui o


ecumenismo, mas o ecumenismo passa necessariamente por ela. O Primeiro
Testamento mostra que o projeto de Deus visa a unidade do seu povo, sendo
Deus mesmo o autor da unidade, inclusive rompendo todo etnocentrismo e
atingindo todo o universo, pois como Deus é Deus do cosmos (Jó 38-41) “toda
carne verá a salvação de Deus” (Is 40; 60; Gn 1,9) 2. No Segundo Testamento,
os Evangelhos apresentam Jesus superando as barreiras religiosas e culturais
que causam a divisão3. Ele formou uma comunidade de discípulos com base a
novos princípios de convivência: “Dou-vos um mandamento novo: que vos
ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos uns aos outros” (Jo 13,34).
Isso é condição e o que caracteriza o discipulado: “Nisto reconhecerão todos
que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,35). Ele
aceitou morrer “para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos”
(Jo 11,52), e confiou essa missão à sua Igreja (Mt. 28,19), dando-lhe o
ministério da reconciliação (Mt 5, 21ss; 18).
2
Várias são as passagens bíblicas que ilustram essa afirmação: Is 66, 10-13 e 18-22:
“Como uma mãe vou consolar vocês [...] virei para reunir o meu povo; Jer 31, 10-13: “aquele
que espalhou Israel, o reunirá”; Ez 36, 24-28: “Vou reunir vocês”; Ez 37: “Estes ossos secos
são a casa de Israel”; Joel 3, 1-4, 2: “Derramarei o meu Espírito” Sal 80 (79): “Restaura-nos e
fazei brilhar tua face”; Sl 85 (84): “Prece pela restauração do povo”; Sl 147: “Colocou paz em
tuas fronteiras”.
3
No modo de compreender a lei e a religião do judaísmo oficial, ao aproximar-se dos
pecadores (Mt 9, 13; Lc 15, 2), ao pregar o Reino já presente na sua própria pessoa (Mt 12,
28); ao aproximar-se dos samaritanos (Lc 10, 25; 17, 11). Sem assumir a aspiração política
das profecias (2Sm 7, 8; Sl 78 (77), 71); Jr 23, 3-4; 23, 5; 31, 10; Ez 34, 11-12. 23-24), Jesus
se reconheceu como o pastor que percorre os caminhos da Palestina para realizar a tarefa
messiânica de reconduzir o rebanho disperso: “Ao ver a multidão teve compaixão dela,
porque estava cansada e abatida como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 36). Por isso apresentou-se
como o “verdadeiro pastor” (Jo 10, 1-5), a “porta” (Jo 10, 7-10), o “bom pastor” (Jo 10, 11-
18). Todas essas figuras apontam para a unidade como meta e sinal da salvação messiânica:
“Mas tenho outras ovelhas que não são deste redil; devo conduzi-las também; elas ouvirão a
minha voz; então haverá um só rebanho, um só pastor” (Jo 10, 16).
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Jesus realizou ações simbólicas da unidade. Dois gestos por Ele


realizados são fundamentais: 1) a escolha dos Doze: os Evangelhos
testemunham a existência de um grupo de Doze em torno a Cristo (Mt 10, 2-
4)4. Os relatos mostram que os Doze não surgiram por vontade própria, mas
pela escolha do próprio Cristo como discípulos, e com a função de “julgar as
doze tribos de Israel” (Mt 18,28; Lc 22,30), no momento da renovação
definitiva. Assim, eles são os iniciadores de uma nova era, de um novo povo
escolhido, um novo Israel. Sua missão se estende “até os confins da terra”, “até
o fim dos séculos” (At 1,8; Mt 28,20). São, portanto, o fundamento da unidade
da nova comunidade constituída por Jesus. Dentro da simbologia judaica,
doze era um número que indicava a totalidade do universo, e, portanto, a
Igreja já se concebia a si mesma como destinada a espalhar-se pela
universalidade da terra. Doze são as casas do Zodíaco, através das quais o
Sol faz o seu percurso aparente, durante o ano, no Hemisfério Norte; doze
são os filhos de Jacó e, consequentemente, as tribos de Israel, que
englobavam a totalidade do povo eleito. Quando o autor do livro do
Apocalipse quer apresentar um símbolo da Igreja perseguida, faz aparecer
“um grande sinal”, a mulher vestida de sol, calçada de lua e coroada de doze
estrelas (Ap 12, 1). O mesmo autor mostra a esperança definitiva como
“cidade santa, a nova Jerusalém, a esposa do Cordeiro”, com doze portas,
onde se unificam os povos do Antigo e do Novo Testamento. Sobre as portas
estão escritos os nomes das doze tribos de Israel e nos seus alicerces os dos
doze Apóstolos do Cordeiro (Ap 21, 9-21) (HORTAL, 1989, pp. 134-135).
2) A celebração da última Ceia: na celebração da última Ceia Jesus
acentuou o simbolismo do novo povo. Trata-se da “Ceia Pascal”, no decurso da
qual Ele celebrou a instituição de uma nova Aliança, pela imolação de sua
própria vida (“Corpo entregue”) derramando seu sangue como selo da nova
Aliança: “É do vosso interesse que um só homem morra pelo povo e não
pereça a nação toda [...] para congregar na unidade todos os filhos de Deus
dispersos” (Jo 11,50-52. Também Mt 26, 26-29; Mc 14, 22-25; 1Cor 11,23-25).
Ele é o “Cordeiro de Deus (imolado) que tira o pecado do mundo” dando à

4
Também os Atos dos Apóstolos apresentam esses nomes (At 1,13), e são
mencionados em Ap 21,14.
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Aliança um caráter definitivo, que conforme as esperanças messiânicas, unifica


a “casa de Israel e a casa de Judá” (Jr 3,18; 23,5-6; 31,1; Is 11,13-14; Ez 37,
15-27; Os 2,2; Mq 2,12; Zc 9,10). É por isso que o sacrifício da Nova Aliança
aponta para a unidade da Igreja, o novo Povo de Deus, sendo precisamente os
Doze os primeiros a serem chamados a participarem desse sacrifício: “Já que
há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, visto que todos
participamos desse único pão” (1Cor 10, 17).
Na “oração sacerdotal” de Jesus encontramos a mais intensa expressão
do seu desejo de unidade entre os seus discípulos, fundamentada no amor:

Pai Santo, guarda-os em teu nome que me deste, para que sejam um
como nós [...] Não rogo somente por eles, mas pelos que, por meio de
sua palavra, crerão em mim: a fim de que todos sejam um. Como tu, Pai,
estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós, para que o mundo
creia que tu me enviaste. Eu lhes dei a glória que me deste para que
sejam um, como nós somos um: eu neles e tu em mim, para que sejam
perfeitos na unidade e para que o mundo reconheça que me enviaste e
os amaste como amaste a mim [...] Eu lhes dei a conhecer o teu nome e
lhes darei a conhecê-lo, a fim de que o amor com que me amaste esteja
neles e eu neles (Jo 17, 1.11.20-23.26).

A unidade aparece como um desejo ardente e um pedido explícito do


Senhor. Isso tem conseqüências para a missão da Igreja, enviada para unir em
Cristo todos os povos da terra (Mt 28,19-20). O amor é o critério e fundamento
da unidade, acima de qualquer outro elemento: “Permanecei no meu amor” (Jo
15, 9). E trata-se do amor vivido até as últimas conseqüências, pois o pastor dá
a vida em favor da unidade do rebanho. Assim, a Igreja deve apresentar o
crucificado como o centro da unidade: “Quando eu for elevado da terra, atrairei
todos a mim” (Jo 12,32). A unidade se dá aos pés da cruz, em adoração ao que
se encontra pregado não num instrumento de suplício, mas no trono da vitória
do redentor (HORTAL, 1989, p. 139). A cruz é o caminho da Igreja rumo à
unidade: “Para onde eu vou, conheceis o caminho” (Jo 14,4). A unidade exige o
despojamento, é no esvaziamento e na renúncia de si que será possível
encontrar os outros como verdadeiros irmãos.

A palavra ecumênica das primeiras comunidades cristãs

A Bíblia mostra que as comunidades primitivas compreenderam muito

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bem isso. Paulo serve como exemplo: a centralidade da sua mensagem está
na fé na ressurreição do Senhor como fundamento de toda a vida cristã e
vínculo da unidade entre as comunidades (1Cor 15). Para Paulo, a comunidade
forma um só corpo no Cristo onde todos os membros estão a serviço uns dos
outros (Rm 12,4-5). Por isso, quando acontece divisão, esta não afeta apenas
as relações entre as pessoas, mas afeta o próprio corpo de Cristo: “será que
Cristo está dividido?” (1Cor 1,10ss).
Paulo conhece a fragilidade das comunidades para a conservação da
graça da unidade doada por Cristo. Entre os cristãos existem partidos (1Cor 3,
4), ambições de poder e de honra (1Cor 4, 19-20), e outros fatores que
dificultam a serenidade das relações, como a divisão entre pobres e ricos na
Santa Ceia (1Cor 11,22). Mas a causa maior da divisão do corpo de Cristo é o
pecado, como “obras da carne” (Gl 5,19-21; Rm 1, 24-32; 1Cor 6,10),
incompatível com o Reino de Deus. O pecado habita no homem impedindo-o
de fazer o bem (Rm 1, 14,24) e produz a morte (Rm 6,23).
Como superar essas dificuldades? Paulo indica dois caminhos: pastoral:
orientando as comunidades no modo de manter a unidade (Rm 16); e teológico
– doutrinal: preocupando-se em manter a unidade na fé em um único
Evangelho (Gl 1,6-10), como único fundamento (Ef 2,20; 1Cor 3,10-11; Ef 2,20;
1Tm 6,19; 2Tm 2,19). Paulo ensina que a unidade não se constrói pelo
relativismo de posições, ou por uma diplomacia de neutralidade (Santana,
1987, p. 185). É preciso tomar posições claras sobre os problemas, definindo
os pontos de convergência que permitem a realização de uma prática comum
que una todas as comunidades (At 15,29; Gl 2,10), e defender com inteligência
as próprias convicções (At 22-26).
Paulo sabe que a unidade é fruto do Espírito, outros são apenas
cooperadores de Deus. Lançam o fundamento, outro constrói (1Cor 3,9-10). A
ação do Espírito dá aos cristãos “o pensamento de Cristo” (1Cor 2,10-16), de
modo que quem vive no Espírito deve comportar-se segundo o Espírito (Gal 5,
25): “Se a Igreja mantiver a unidade, produz seus frutos (do Espírito). É na
relação com o Espírito, fonte de liberdade, bem como de tolerância e
abertura, que se nutre a comunhão fraterna dentro das Igrejas” (Santana,
1987, p. 187). O Espírito suscita e fortalece nos cristãos a fé comum no único

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Senhor como a primeira atitude ecumênica (1Tm 2,5, Hb 8,6). A fé concorre


para as boas obras (Tg 2, 22). Surge, assim, um homem novo, plenificado em
Cristo (Ef 4,13), que vive a justiça e a santidade verdadeiras (Ef 4,23-24), numa
nova relação com os irmãos (Ef 4,25-32). Enfim, Paulo ensina que não pode
haver problema capaz de impedir os esforços pela busca da unidade (1 Cor
6,1-8; 8,1ss; 9,19-23; 10,14-17 e 31-33; 11,33ss).

Exorto-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, a andardes de modo digno


da vocação a que fostes chamados: com toda humildade e mansidão,
com longanimidade, suportando-vos uns aos outros com amor,
procurando conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz. Há um
só Corpo e um só Espírito, assim como é uma só a esperança da
vocação a que fostes chamados; há um só Senhor, uma só fé, um só
batismo; há um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de
todos e em todos (Ef 4,1-6).

A hermenêutica ecumênica da Bíblia

Por “hermenêutica”, compreende-se aqui “a arte de interpretar e


comunicar corretamente as verdades contidas na Sagrada Escritura” (CPPUC,
1998, n. 11) - bem como também dos documentos da Igreja - um meio de
reflexão para distinguir entre o “depósito da fé” e o modo como as verdades de
fé são formuladas (CPPUC, 1994, n. 181). A formulação doutrinal das verdades
é um dos problemas fundamentais na hermenêutica da fé bíblica. O Papa João
XXIII, observava que existe diferença entre o depósito da fé e a sua
formulação. Por sua vez, o papa João Paulo II, coloca como critério
hermenêutico observar se, diante de novas formulações de fé, não comuns às
diferentes Igrejas “as palavras não subentenderão um conteúdo idêntico” (UUS
38). Já a Congregação para a Doutrina da Fé afirma que com relação às
verdades reveladas, “as fórmulas dogmáticas do magistério da Igreja foram
desde o início aptas para comunicar a verdade revelada e que permanecem
sempre aptas a comunicá-la a todos aqueles que retamente as
compreendem”5.
O desafio na reflexão ecumênica é fazer com que essas orientações
favoreçam o diálogo entre doutrinas cristãs diferentes. Para isso, deve-se

5
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, “Mysterium ecclesiae”, de 24/06/73, in
AAS 65 (1973) 403.
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explorar as possibilidades de uma hermenêutica da Bíblia que seja aceita pelas


Igrejas, pelos teólogos e pelo próprio movimento ecumênico. Na tradição cristã
o Mistério de Deus revelado nas Escrituras identifica-se com a Pessoa de
Jesus Cristo, que nos mostra o Pai e dá o seu Espírito como herança, numa
comunhão de pessoas vivendo a unidade na diversidade, e convocando a
humanidade à participação da koinonia divina, ao mesmo tempo que se
apresenta também como modelo para a formação da Igreja. Compreender isso
a partir de uma leitura ecumênica da Bíblia é fundamental para que as Igrejas
vivam na koinonia que Deus é e quer para a Igreja e para a humanidade:

A koinonia que experimentamos não é menos do que a presença


reconciliadora do amor de Deus. Deus deseja a unidade para a Igreja,
para a humanidade e para a criação, porque Deus é koinonia de amor, a
unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Esta koinonia vem a nós na
forma de um Dom que apenas podemos aceitar com gratidão. A
gratidão, entretanto, não é passividade. Ela está no Espírito Santo, que
nos impele à ação. Ela nos leva a buscar a unidade visível capaz de
concretizar a nossa koinonia com Deus e uns com os outros (CONIC,
1994, p. 23).

Assim, a melhor hermenêutica da Bíblia é, naturalmente, a hermenêutica da


comunhão, pois é a que melhor ajuda a entender Deus e o seu projeto. Essa
hermenêutica não pode ser feita pelas Igrejas isoladas umas das outras, exige
que ela estejam sintonizadas no método de estudos da Palavra de Deus. Esse
método ajuda as Igrejas na superação das divergências existentes entre elas,
ajudando para perceberem o fundamento comum da fé, sobretudo no horizonte
bíblico, cristológico e trinitário. As tradições particulares assumem um sentido
universal quando integradas nesse fundamento.
A hermenêutica ecumênica da Bíblia precisa ser privilegiada por ajudar o
movimento ecumênico na aproximação das igrejas em expressões da fé que
explicite a comunhão entre elas (CPPUC, 1998, p. 11; João Paulo II, n. 31). A
unidade dos cristãos vincula-se particularmente à noção bíblica da Igreja como
de participação do Povo de Deus, Corpo de Cristo, Templo do Espírito Santo.
Essa unidade tem uma dimensão mistérica e sacramental, e manifesta-se
particularmente na Eucaristia e no Batismo. Assim, a comunhão é a forma
própria e permanente da unidade da Igreja.

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A hermenêutica ecumênica das Escrituras tem como características


fundamentais:
1) Eclesial – O Concílio Vaticano II renovou a eclesiologia católica sobretudo
pela valorização da Bíblia como norma non normata na compreensão da Igreja
e da doutrina cristã. A perspectiva bíblica da eclesiologia é eminentemente
ecumênica, sobretudo por favorecer a compreensão da Igreja como koinonia6.
Também as Igrejas no Brasil e os cristãos empenhados na busca da unidade
procuram manifestar uma compreensão da Igreja como comunhão, valorizando
a sua ressonância bíblica e teológica7. O espírito da koinonia serve como
critério hermenêutico das Escrituras para discernir entre os projetos sociais e
eclesiais, quais são os que realizam com melhor eficácia o projeto cristão da
unidade:
A koinonia na Bíblia é vista como natureza da vocação eclesial do povo cristão.
Esse povo está em continuidade com o Povo da Aliança, testemunhando o
seguimento de Cristo e posicionando-se profeticamente contra as forças de
divisão e individualismo da sociedade (CLAI, “A verdadeira koinonia vai além
das palavras”, 15). Deus revela-se dando a graça da unidade, e a Igreja que se
funda nessa revelação é chamado a ser como Ele é, comunhão. A Igreja do
Deus bíblico deve assumir as características do Deus que a sustenta.
2) A unidade na diversidade – A unidade fundamentada biblicamente não anula
as diferenças, enquanto não contraditórias, mas se realiza a partir delas.
Unidade não é uniformidade, não anula as partes e nem as elimina (Gl 3,28). A
unidade na diversidade é o horizonte da comunhão eclesial buscada. Trata-se
antes da unidade no único Espírito, o de Jesus Cristo, descobrindo o

6
Ver: FÉ E CONSTITUIÇÃO, “L’Unità della Chiesa come Koinonia: dono e vocazione”,
2.1, in M. MATTÉ, ed., Canberra: Vieni, Spirito Santo, rinnova l’intero creato, Bologna,
1991, 118; CENTRO DE ESTUDOS ECUMÊNICOS DE S TRASBURGO, “Communio/Koinonia”, in Il
Regno Documenti, 35 (1990) 6624-633; ARCIC II, “La Chiesa come communione”, in Il
Regno Documenti, 34 (1991) 430.
7
A título de exemplo, citamos: IECLB, Nossa Fé, Nossa Vida, 3-4; IEAB, Conheça a
IEAB, 9; Constituição da IEAB – 1994, art.1-2; IGREJA METODISTA, “Constituição – 1930”,
art. 3; IPU, “Princípios de Fé e Ordem”, art. 3; CLAI, “Declaração de São Paulo”, III Consulta
Ecumênica Latino-Americana de Pastoral Indígena, realizada em São Paulo (Brasil), nos dias
18 a 23 de janeiro de 1991, in Estudos Teológicos (1991) 181; CESEP, “Unidade da Igreja –
Unidade do Povo” (curso sobre ecumenismo, realizado de 08 a 17 de junho de 1989, em São
Paulo), in CONIC, Notícias, 8 (1989) 8; CONIC-CLAI, Diversidade e Comunhão; F.R.
OROFINO, Acariciando o Sonho – Ecumenismo e igrejas cristãs, CEBI, Série A Palavra na
Vida, n. 122, 1998; P.J. KRISCHKE, R. DOS S ANTOS PRADO, Ecumenismo e Renovação, 18;
P.A. MATTOS, “Ecumenismo para o novo milênio”, 7-9.
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significado profundo da particularidade das diferenças. Como na concepção


cristã de Deus, também no movimento ecumênico é o Espírito quem une os
participantes do diálogo, limpando as arestas para melhor compreender como
cada parte participa da comunhão na totalidade da realidade eclesial.
3) A hierarquia das verdades – O Concílio Vaticano II afirmou a existência de
uma “ordem ou hierarquia nas verdades católicas” (UR 11), de modo que
alguns elementos da doutrina estão mais próximos “do fundamentum da fé
cristã” do que outros. Esse fundamentum é compreendido como sendo o
mistério da morte e ressurreição de Jesus, tal como revelado nas Escrituras
(1Cor 15,3-5). A consideração da hierarquia das verdades da fé cristã é um
critério indispensável na reflexão ecumênica da Bíblia, colaborando para que
no diálogo ecumênico “todos se sintam incitados a um conhecimento mais
profundo e manifestação mais clara das inesgotáveis riquezas de Cristo” (UR
11). Isso implica numa hermenêutica bíblica que sustente uma teologia
ecumênica capaz de considerar a doutrina cristã como um complexo
estruturado, de cujo centro alguns artigos estão mais próximos do que outros.
Os teólogos aprofundam a perspectiva ecumênica dessa orientação, buscando
os critérios para o discernimento das verdades que se apresentam como
centrais do credo cristão (Henn, 1990, p. 111-142; Beinert, 1990, p. 303). É
claro que não existem no Credo verdades “periféricas”, que podem ser
desconsideradas. Todas são vinculantes. Contudo, o diálogo ecumênico exige
o reconhecimento dos diversos “nexos” de vinculação das diversas verdades
doutrinais com a centralidade ou fundamento de tais verdades apresentadas
nas Escrituras Sagradas.
Aqui surge a questão: qual seria, então, a forma mais exata de entender, viver
e expor a fé cristã? Aqui é importante “o recurso permanente à Sagrada
Escritura, onde se encontra a norma fundamental da nossa vida cristã, e
constitui um especial ponto de unidade” (J.C.U. VIERA, 1998, P. 199). A partir
das Escrituras, é possível o reconhecimento de uma graduação nas verdades
das doutrinas das diversas Igrejas, o que exige distinguir, pelo diálogo
ecumênico, onde a verdade cristológica e trinitária é apresentada integralmente
e torna-se base indispensável da koinonia entre os cristãos e suas Igrejas.

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Referências:

BEINERT, W., Lessico di Teologia Sistematica, EDB, 1990.

CNBB, Comunicado Mensal n.184/185 (1968); 201/202 (1969); n.249 (1973); n.


266 (1974)

______, O que é Ecumenismo? – Uma ajuda para trabalhar a exigência do


diálogo. São Paulo, 1997.

CONIC-CLAI, Diversidade e Comunhão – Um convite ao ecumenismo, São


Paulo/São Leopoldo, 1998.

______, Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, São Paulo, 1994.

CPPUC, A Dimensão Ecumênica na Formação dos que Trabalham no


Ministério Pastoral, Paulinas, 1998.

______, Diretório para a Aplicação dos Princípios e Normas sobre o ecumenismo,


Paulinas, 1994.
JOÃO PAULO II, Ut Unum Sint, Paulinas, 1995.

E.H. LOPES, “Ecumenismo no CEBI”, in P. AYRES, ed., Bíblia e Ecumenismo –


Um grande desafio – 3, São Paulo, 1988.

HENN, W., “The Hierarchy of Truths and Christian Unity”, in Ephemerides


Theologicae Lovanienses, 66 (1990) 111-142.

HORTAL, J., E Haverá um só Rebanho, São Paulo, 1989.

MESTERS, C., «Come si interpreta la Bibbia in alcune comunità ecclesiale di Base del
Brasile», in Concilium, 8 (1982) 84-94.
SANANTA DE, J., Ecumenismo e Libertação, Petrópolis, 1987.
SANTANA, J. de –BARROS SOUZA, M., de, “Ecumenismo”, in CESEP, Curso de Verão
IV, São Paulo, 1990, 107-1011.
SEIBERT, E.W., Busca de unidade na Confissão de Fé, São Paulo, 1995.
VIEIRA, J.C.U. -CELAM – El Fenómeno de las Sectas – Análisis a partir del
magisterio latinoamericano, Bogotá, 1998.

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