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CONSIDERAÇÕES

Ernesto von RÜCKERT


Viçosa – Minas - 2019
i
CONSIDERAÇÕES
(em preparo)
ERNESTO VON RÜCKERT

CONSIDERAÇÕES

VIÇOSA, MINAS GERAIS


2019
Copyright © 2019 – Ernesto von Rückert

Ficha Catalográfica

Rückert, Ernesto von, 1949 –

R279f Considerações / Ernesto von Rückert


Viçosa: Edição do Autor, 2019.

xii + 149p.; 21 cm

ISBN (em preparo)

1. Filosofia. I. Título

CDD 869
CDU 86
ΑΓΕΩΜΕΤΡΗΤΟΣ ΜΗΔΕΙΣ ΕΙΣΙΤΩ
SUMÁRIO
SUMÁRIO ix

1. SOBRE O ATEÍSMO 11

2. SOBRE A ANARQUIA 63

3. SOBRE O TEMPO 79

4. SOBRE A VIDA 84

5. SOBRE A EVOLUÇÃO 85

6. SOBRE O CARÁTER 86

7. SOBRE A CIÊNCIA 87

8. SOBRE A ARTE 88

9. SOBRE A EDUCAÇÃO 89

10. SOBRE A ÉTICA 90

11. SOBRE A REALIDADE 91

12. SOBRE O AMOR 92

13. SOBRE O UNIVERSO 93

14. SOBRE A MENTE 94

15. SOBRE O COMUNISMO 95

16. SOBRE A SANTIDADE 96

17. SOBRE AS EXPLICAÇÕES 97

ix
10
1. SOBRE O ATEÍSMO
Considero que a existência de Deus não seja um problema de fé, pois, de fato,
a fé não pode ser critério de verdade para qualquer proposição, uma vez que crer não
garante a verdade objetiva de nada, mesmo que a pessoa, subjetivamente, esteja convicta
disto. No caso de Deus, especialmente, há crentes fiéis e sinceros em diferentes versões
de divindades. Certamente que não podem estar todos certos porque creem, pois, creem
em conceitos distintos e a verdade, por definição, é única. Como saber quem a detém? O
critério precisa ser extrínseco à fé.
É preciso entender que a verdade é a adequação entre a realidade e o que se
diz a respeito dela. Existem dois critérios para estabelecê-la. O primeiro é o da evidência
sensorial, mesmo que apoiada por instrumentos. No caso de não haver tais evidências
(como se dá com Deus) pode-se apelar para uma comprovação por raciocínio.
Até o momento todas as pretendidas provas da existência de Deus se revela-
ram falhas. Assim, não há prova cabal e inconteste de que Deus exista. Nem o há de que
não exista. Como essa existência não é evidente e a fé não a garante, a posição apriorística
a tomar é supor que não exista, até que se tenha uma prova de que exista. Ou seja, não
se requer prova de inexistência de Deus e sim da existência. A inexistência é a suposição
preliminar.
Pessoalmente, fui criado como católico e, na juventude, assumi minha religião
integralmente, imbuindo-me do propósito de me tornar santo. Nesse sentido aprofundei
meus estudos teológicos (sem, contudo, pretender seguir o sacerdócio), ao mesmo tempo
que, por índole pessoal, também me dediquei profundamente aos estudos científicos. E
nisso eu tenho grande capacidade de mergulhar completamente e de extrair o máximo
de conhecimento. Tais estudos me levaram a concluir pelo completo despropósito da fé
e pela absoluta improcedência da noção da existência de Deus, bem como de qualquer
tipo de espírito, como a alma humana.
A respeito da existência de Deus, há um espectro de posições que podem ser
sumarizadas em cinco:
O crente convicto, que está certo de que Deus existe;
O que não tem certeza, mas acha que existe;
O que não sabe dizer se existe ou não (agnóstico);
O que acha que não existe, mas não garante (ateu cético);
O que está certo de que não existe (ateu dogmático).
Também preciso esclarecer que o Deus a que me refiro pode abranger concei-
tos variados, tendo em comum o fato de ser uma entidade com poder para agir sobre o
Universo à revelia de suas leis naturais (um mágico, na acepção verdadeira), não preci-
sando ser justo nem bom, nem único. Mas, além de onipotente, deve ser onisciente, au-
tossuficiente (incausado) e eterno. Sem esses predicados não seria denominado “Deus”.
Não precisa também ser uma “pessoa” (ou três).
Dito isso, declaro-me partidário da quarta opção (ateísmo cético). Isso signi-
fica que não posso provar que Deus não exista e nem que exista, mas considero que os
indícios de sua não existência são mais fortes que os porventura favoráveis a ela.
O ateísmo cético não se configura, de forma alguma, em uma religião, e sim,
na ausência de qualquer religião, conforme o que normalmente se entende por religião,

11
SOBRE O ATEÍSMO
isto é, um complexo envolvendo uma crença, um corpo doutrinário, uma assembleia de
seguidores, uma organização administrativa e hierárquica, um conjunto de edificações
para sediar suas atividades, um ritual de procedimentos laudatórios e propiciatórios e
mais outros aspectos de menor importância. Nem o ateísmo dogmático e, certamente, o
agnosticismo, são religiões, mesmo que se constate alguma atividade de proselitismo por
parte de seus seguidores.
Concordo em que não se pode zombar da sinceridade da fé de quem a possua
e nem afirmar que tal fato seja sinal de ignorância ou burrice. Jamais me posicionei dessa
forma. No máximo posso dizer que seja por falta de esclarecimento, o que procuro levar,
como o faço agora, na tentativa de convencer da impropriedade da fé e da insustentabi-
lidade das propaladas provas da existência de Deus.
Antes de cogitar da implausibilidade de sua existência, vejamos estas:
O argumento ontológico de Anselmo de Cantuária garante existir Deus por
ser este um conceito necessário, uma vez que seria o de um ser perfeitíssimo, cuja inexis-
tência seria uma imperfeição. Primeiro que perfeição não é uma característica essencial
do conceito de Deus, segundo que a existência não é atributo de ser nenhum, mas sim
um estado de ocorrência, pelo qual o ente conceituado se dá, de fato, na realidade. Logo,
o argumento é falacioso.
O argumento cosmológico do motor primo afirma que, como todo evento tem
uma causa e o encadeamento de causas no Universo não pode ser infinito, por ser este
contingente, há que haver uma causa primeira, extrínseca ao Universo, identificada com
Deus.
A premissa maior, de que todo evento tenha uma causa, é falsa (ou pelo me-
nos não garantida), uma vez que provém de um raciocínio indutivo, com base na cons-
tatação desse fato em eventos que se dão na escala de dimensões e tempos acessíveis
diretamente à observação humana. Ora, toda conclusão induzida não é garantida e pode
ser derrubada por um único contraexemplo. Existem miríades de eventos que não são
efeitos de causa alguma no domínio microscópico, como o decaimento radioativo e a
emissão de fótons por átomos excitados (a excitação é condição e não causa). Logo, não
sendo verdadeira a premissa maior, não é verdadeira a conclusão. A premissa menor
também não é verdadeira, pois o fato de ser contingente (poder não existir), não impede
o Universo de ser eterno para o passado, contrariando o argumento Kalam, que diz que
isso seria impossível, pois não teria havido tempo para se vir do início da eternidade até
hoje, e hoje está aqui. Ora, um tempo infinito para o passado não significa um início
infinitamente afastado e sim a ausência de um início.
Pode ser que exista um ser acima das leis naturais que não consigamos detec-
tar. Então, como saber que existe e porque tal entidade seria identificado com o Deus que
as religiões concebem? O importante, contudo, é que não é necessário supor a existência
ou não de tal tipo de entidade para explicar nada. Tudo pode ser entendido sem a inter-
veniência de nada extrínseco à natureza. E se não se consegue verificar a existência de
uma coisa desse tipo, por que supor que exista?
É impossível que Deus seja energia pura, pois nada pode ser energia pura, já
que energia é um atributo de alguma coisa. Ela não é algo substancial, que exista sozinha.

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Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
Ela só existe em alguma coisa. Então Deus, mesmo que possua energia, teria que ser feito
de alguma substância que contivesse essa energia.
Voltemos ao nada. Inexistência de tudo: matéria, campos, radiação, espaço,
tempo, espíritos, leis, possibilidades e proibições. Portanto, não é possível que algo seja
formado a partir do nada, nem por ordem de Deus (que, aliás, também não poderia exis-
tir, senão haveria alguma coisa). Então, o Universo tem que ter sempre existido. As ob-
servações, contudo, indicam que ele teve um começo. Ou então nunca houve o nada, mas
Deus, e ele criou o Universo tirando seu conteúdo de si mesmo. Logo o Universo é feito
de Deus, sendo parte dele. Ou então tudo surgiu sem ter procedência, não veio de coisa
alguma, nem do nada. Como decidir?
Note que “O Nada”, não é algo. Antes de existir o Universo (se ele não existe
desde sempre), não existia “O Nada”. Simplesmente não existia nada. “O Nada” seria
algo, um tipo de entidade sem conteúdo. Mas não existir nada significa não haver enti-
dade nenhuma. Não apenas nenhum conteúdo substancial, como também nem espaço
vazio que poderia conter algo, mas não continha, nem passagem de tempo. A concepção
cosmológica do surgimento do Universo é, justamente, de que seu conteúdo e o espaço
para contê-lo surgiram sem ter de que provir. Isto é, surgiram de nada, e não “dO Nada”.
O que surgiu foi um campo indiferenciado preenchendo um espaço, que, pelo que se
sabe, já surgiu infinito e em expansão. Essa expansão não é um movimento do conteúdo
pelo espaço, com suas partes se afastando umas das outras. É um inchamento do próprio
espaço, sem que nada saia do lugar. Isso acarretou uma alteração no estado do Universo
que implicou no surgimento de uma sucessão de momentos, caracterizados pelos dife-
rentes estados do Universo, que constitui, exatamente, o tempo. Com essa expansão o
campo foi se condensando aqui e acolá, bem como diferenciando-se, dando azo ao sur-
gimento das partículas elementares constituintes da matéria e das partículas elementares
portadoras das interações entre as primeiras. Isso foi o que ficou conhecido como o “Big
Bang”.
O agnosticismo não é uma atitude de dúvida sobre a existência de Deus e de
uma razão e um propósito para o Universo e sim uma consideração da impossibilidade
de comprovação quer da existência quer da inexistência de tais fatos. Então o agnóstico
não se preocupa com o assunto: não crê, não descrê nem duvida. Quem duvida dessas
coisas é o ateu cético, como eu. O ateu dogmático está certo de que não há Deus, nem
razão, nem propósito. O crente está certo do oposto, ainda havendo o que acha que
existe, sem ter certeza.
É certo, porém, que, pelo que vejo, a posição ateísta não decorre de nenhuma
desilusão ou infelicidade, mas de estudos e reflexões. E, também, não é arrogante nem
depreciadora das opiniões divergentes. Mas, certamente, ateísmo não é garantia de vir-
tude, honestidade, sabedoria e bondade, do mesmo modo que não o é de devassidão,
venalidade, improbidade, malvadeza ou qualquer demérito.
Da mesma forma a fé religiosa não significa ignorância nem desonestidade,
mas também não garante santidade e nenhuma virtude.
Pelo que me consta, os casos ditos de manifestação demoníaca são problemas
psicóticos, que, em última análise, são neurológicos. Ainda não tenho conhecimento de
experimentos controlados em que se possa fazer uma verificação objetiva de presença de
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SOBRE O ATEÍSMO
algum espírito demoníaco no fenômeno em questão. Da mesma forma as curas ditas mi-
lagrosas, ao que me consta, são naturais, uma vez que a influência de boas disposições
mentais no comportamento somático do sistema imunológico é fortíssima. Ainda não
tive conhecimento de curas que não pudessem ser explicadas fisiologicamente, como,
por exemplo, a reversão de alguma fratura. Parto do paradigma de que só posso atribuir
uma causa sobrenatural a um fenômeno se todas as possibilidades de explicações natu-
rais forem descartadas. De fato, sou mais cético do que São Tomé, pois, mesmo vendo,
para crer eu preciso descartar qualquer possibilidade de alguma ilusão. Acho que esta
deve ser a postura, inclusive do crente, para que sua fé seja alicerçada em bases extrema-
mente sólidas. O ceticismo é um método de abordagem da realidade valiosíssimo para a
aferição da verdade.
Não sou um ateu dogmático, e sim cético. Nem disse que o que não possa ser
comprovado cientificamente não possa existir. O que eu disse é que aquilo cuja existência
não seja evidente, requer comprovação (não necessariamente científica) para que se
possa admiti-la. Tal é o caso de Deus. Certamente que os crentes consideram a existência
de Deus como um ato de fé, como está consignado no “Símbolo dos Apóstolos” (Credo).
Quanto ao Universo, o fato de não se ter uma explicação para o seu surgimento não im-
plica que ele não exista, pois, sua existência é uma evidência sensorial. Há que se distin-
guir fé de crença. Crença é a aceitação de proposições não evidentes nem comprovadas
como verdadeiras face aos indícios de que o sejam. Fé é essa aceitação, sem indícios.
Sobre a existência do Universo, pode-se conceber que ele sempre existiu ou
que surgiu em um momento. Ambas possibilidades são científica e filosoficamente acei-
táveis. Os dados observacionais é que poderão levar a decidir por qual delas. Pelo que
se conhece o conteúdo do Universo apresenta uma expansão com velocidade tanto maior
quanto mais afastado se encontra o objeto, expansão essa, inclusive, acelerada. Donde se
conclui que, no passado, todo esse conteúdo esteve altamente concentrado. Os cálculos
mostram que o momento em que tal expansão começou situa-se a 13,8 bilhões de anos
atrás. O problema que se põe é se o conteúdo primevo que começou a expandir-se surgiu
então ou já havia. Não se tem ainda como saber. O fato é que, naquele momento, iniciou-
se o tempo, pois este decorre do fato de haver alteração no estado do Universo, o que
não se dava antes do início da expansão. O nome “Big Bang”, dado a esse início não é
apropriado, pois não se tratou de uma explosão, mas sim de um súbito inchamento do
próprio espaço, que sempre abrange todo o Universo, isto é, não há espaço vazio “fora”
do Universo.
Outra questão é se tal expansão teve uma causa ou foi fortuita. Não há razão
necessária para que tenha tido causa (como, aliás, qualquer evento), mas pode ter tido.
Caso tenha tido, ela teria que ser oriunda de algo extrínseco ao Universo (Deus?). Tal
possibilidade, contudo, tem sérias dificuldades, como o modo com que se teria dado a
relação causal de algo não físico sobre algo físico. Tal mecanismo (inclusive responsável
por algum milagre) ainda não é conhecido, o que não significa que não possa vir a sê-lo.
O importante é que a possibilidade de que o surgimento daquele conteúdo tenha se dado
sem que fosse proveniente de nada pré-existente (como aliás o seria se tivesse sido dado
por um ato criativo de Deus), e de forma espontânea (incausada), não pode ser

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Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
descartada. Isto é, não existe um princípio de causalidade necessária para todo evento,
que pode não ser efeito de nada.
O surgimento da vida em toda a sua diversidade pode ser explicado pela Evo-
lucionismo ou pelo Criacionismo. Este possui uma versão forte que considera que tudo
se deu literalmente como consignado na Bíblia, por uma ação direta do Criador. A versão
criacionista fraca considera que a vida evoluiu como diz o evolucionismo, mas de uma
forma planejada e dirigida pelo Criador. Eu considero que tudo se deu por meio da evo-
lução, tal como é modernamente entendida (e não exatamente como o propôs Charles
Darwin), sem planejamento e interveniência de nenhum Criador, isto é, espontanea-
mente pela própria natureza. Isso é perfeitamente plausível, dentro da competência do
acaso de engendrar qualquer coisa. Nos cálculos probabilísticos que são muitas vezes
feitos para mostrar a impossibilidade de o acaso ser o responsável pela evolução, erra-se
ao considerar a probabilidade da formação das estruturas complexas do organismo bio-
lógico a partir dos átomos isolados. Não é assim que se calcula. Primeiro se calcula a
probabilidade de átomos formarem aminoácidos e bases do RNA e DNA, depois deles
formarem proteínas e proto RNA e DNA. A cada passo, o elemento do espaço amostral
é o resultado do passo anterior. Esse cálculo aumenta enormemente a probabilidade,
que, mesmo assim, ainda é menor que a de ganhar na loteria. Mas, do mesmo modo que
alguém ganha na loteria, contra a remota probabilidade, se estamos aqui, é porque,
mesmo improvavelmente, a sucessão de eventos que trouxe a nós ocorreu.
A aceitação dos fatos históricos (inclusive a existência de Jesus) não se dá por
crença. Mesmo não os tendo presenciado, pode-se aceitá-los como verdades (provisori-
amente, até que sejam contestados) em virtude dos testemunhos documentais. O mesmo
não se dá, por exemplo, com a divindade de Jesus, que precisa ser aceita como um ato
de fé. A Bíblia, em parte, é um documento histórico, e isto pode ser visto (como, de resto
todos os demais documentos históricos), por cotejo entre diferentes documentos, de va-
riadas procedências. Mas a Bíblia também é uma obra literária, como nos Salmos e no
Cântico dos Cânticos e, principalmente, uma obra de ficção, que relata mitos ancestrais
do povo judaico, absorvidos de seus predecessores sumérios e outros, como é o caso do
Gênesis. Ou mesmo ficção científica, como o Apocalipse de João. O mais importante é
que a Bíblia é, principalmente, um código de ética. Esse aspecto, na minha opinião o mais
valioso dela, muitas vezes é deixado de lado pelos próprios judeus e cristãos (que, além
dos muçulmanos são “os povos do livro”), que não se empenham devidamente em san-
tificar sua vida em atendimento ao livro em que creem. Quem, por acaso, segue à risca o
preceito de Jesus de dar tudo o que possui aos pobres e segui-lo? Quem oferece a outra
face ao que esbofeteou uma delas? Quem serão os bem-aventurados seguidores dos con-
selhos do Sermão da Montanha? Não que o valor da mensagem de Jesus seja menor pela
falta de testemunho de muitos que dizem segui-lo, mas que só se pode dar crédito ao
testemunho daquele que, de fato, cumpre a palavra.
Não me consta que haja alguma menção bíblica sobre a esfericidade da Terra,
mas apenas sobre sua redondeza, que pode ser entendida como circularidade plana (Is-
40:22). A esfericidade da Terra não era estranha a alguns povos antigos. Egípcios cultos
já o sabiam mil anos antes de Moisés e gregos, desde Pitágoras, dois séculos depois de
Isaías. De qualquer modo, alguma menção à esfericidade da Terra que conste da Bíblia
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SOBRE O ATEÍSMO
não testemunha que tal conhecimento tenha sido uma revelação divina ao povo judeu,
pois esta concepção, mesmo rara, não era estranha a muitos.
Ser ateu significa apenas que se considera que Deus não exista. Nada mais.
Um ateu pode crer ou descrer em qualquer outro tipo de coisa. Pode ser cético ou não.
Pode ter qualquer concepção filosófica, política e pode, mesmo, ser filiado a alguma re-
ligião, como o Budismo, que não exige a crença em Deus.
No meu caso particular, sou um ateu cético que não é filiado a religião ne-
nhuma. Mas também tenho minhas crenças e aceito muitas propostas das religiões como
válidas, especialmente no tocante ao comportamento ético e à solidariedade e compai-
xão. Isto é, considero que a virtude, especialmente as ligadas ao amor e à verdade, devam
ser metas a perseguir para se levar a vida de modo significativo e edificante.
A concepção de teoria como uma proposta de explicação não confirmada não
é correta. Teoria não é algo que não seja provado, mas, pelo contrário, um sistema de
hipóteses explicativas de algum aspecto da realidade que venceu muitos testes de vali-
dade.
As teorias da Evolução e do Big-Bang são assim denominadas, justamente,
por terem um alto grau de validade, alicerçadas em muitos fatos que as comprovam.
Quanto ao que acredita um ateu, isso varia de ateu para ateu. No meu caso,
minhas crenças podem ser vistas no credo que deixei publicado em meu blog:
Creio na realidade do mundo exterior, independente de uma mente percep-
tiva.
Creio na natureza física da realidade objetiva, isto é, na inexistência de espíri-
tos e deuses.
Creio no caráter puramente físico-biológico da mente e da consciência, que
não sobrevivem à morte do organismo.
Creio no surgimento espontâneo do mundo e da vida.
Creio na evolução natural das espécies vivas.
Creio no indeterminismo e na incausalidade como possibilidades no encade-
amento de eventos.
Creio no acaso e em nenhuma predeterminação como o fator condicionante
do rumo da evolução.
Creio na impessoalidade do bem e do mal e na superioridade do primeiro.
Creio que a felicidade é o supremo bem, mas que ela não é gozo desenfreado
de prazeres, mas sim a satisfação interior de se fazer o bem.
Creio que a verdade seja o maior valor a ser perseguido.
Creio no ceticismo metodológico como a melhor ferramenta para a busca da
verdade.
Creio que a conduta humana pode ser balizada por princípios éticos decor-
rentes de concepções puramente naturalistas.
Creio na capacidade humana de disseminar o bem e erradicar o mal.
Creio na capacidade humana de atingir a verdade por seus próprios recursos
intelectuais.
Creio na ciência como o único caminho para se atingir a verdade.

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Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
Creio que o amor incondicional, ilimitado e irrestrito seja a atitude a ser to-
mada e o conselheiro a ser ouvido em tudo o que se faça.
Creio na possibilidade de se construir uma sociedade justa, fraterna, pacífica,
harmoniosa e feliz.
Creio na tolerância, na solidariedade, na operosidade e na honestidade como
condutas exemplares para a construção dessa sociedade.
Creio na virtude e não na vantagem, como a regra exemplar de vida a ser
perseguida por toda pessoa.
Creio na bondade como a maior de todas as virtudes.
Creio na educação e na cultura artística, científica e filosófica e não na religião
ou na violência, como meios para se atingir essas condições.
Creio no sonho de se realizar tudo isto como a grande motivação para se viver.
Creio na luta pela concretização desse sonho como o maior significado que se
possa dar à vida. Neste blog, inclusive, é possível se ter uma ideia abrangente do meu
pensamento ateísta e anarquista, além de algumas questões cosmológicas e outras (aces-
sem a página inicial e procurem os tópicos na coluna da esquerda).
Em muitos lugares vemos, por exemplo, a inscrição “Cristo Vive!”. Alguns
afirmam que há vida após a morte. Será que um robô funcionando está vivo? Para saber
ao certo há que se definir, antes de mais nada, o que se entende por “vida”. Existem
várias concepções. A mais básica é a biológica. Nesse sentido vida é um fenômeno bio-
lógico. Assim, um espírito não possui este tipo de vida, nem um robô. No caso de Cristo,
que teria ascendido aos céus inclusive com o seu corpo biológico, a coisa fica complicada.
Ele se alimenta? Excreta? Mas vamos deixar isso para depois. O próprio conceito de vida
biológica não é tranquilo. Um vírus é um ser vivo? E quando está inerte, cristalizado? E
um príon?
O que seria a vida de um espírito, caso exista? Ou se se pode entender como
vida o funcionamento de um robô (ainda não existente) que fosse inteiramente auto con-
trolável?
O conceito de “alma” nem precisava existir. Bastaria o de “mente”. Muitas
vezes, contudo, distingue-se a alma da mente, sendo a mente uma ocorrência, uma situ-
ação, um estado de funcionamento do cérebro (mesmo inconsciente) e a alma um prin-
cípio que mantém a mente funcionando. A alma seria algo como a “vida”, mas diferindo
pelo fato de que a vida pode ser puramente vegetativa ou, mesmo que seja animal, ape-
nas senciente, mas inconsciente. No ser consciente (que também é senciente), mesmo
quando está inconsciente (dormindo ou anestesiado, por exemplo) ele é potencialmente
consciente, então seu nível de vida tem um certo grau de elevação que, molecularmente
falando, está associado à complexidade. A partir de certo nível de complexidade do or-
ganismo ele passa a ter consciência, o que ocorre nos primatas superiores e em alguns
outros mamíferos e possivelmente, mesmo outros animais (papagaio, quem sabe?). Mas
a noção de alma é perfeitamente dispensável. Espírito, então, nem se fala. É uma coisa
que, simplesmente, não existe. O que se sabe é que a vida, exceto em seu surgimento, por
enquanto, só pode ser obtida de outra vida. Mas não é impossível que, algum dia, venha
a ser fabricada a posta a funcionar artificialmente. Ou em um organismo biológico arti-
ficial ou em um artefato eletromecânico que, neste caso, teria “alma”.
17
SOBRE O ATEÍSMO
Quero comentar sobre a implausibilidade da existência de espíritos, na acep-
ção que as religiões dão ao termo. Isto é, por “espírito”, entende-se um tipo de entidade
etérea, não física, incorpórea, imaterial, que não tem massa nem volume, nem cor e ne-
nhuma propriedade física, como posição, velocidade, não emite som nem luz. Mas essa
entidade possui individualidade, autoconsciência, raciocínio, emoção, vontade, persona-
lidade, temperamento, caráter e é capaz de ter uma percepção do mundo físico, além de
poder agir sobre ele, provocando efeitos físicos oriundos de uma causa não física, e ainda
ser capaz de captar pensamentos e, possivelmente, comunicar-se diretamente com as
mentes dos seres vivos. Considera-se que este espírito é a substância da “alma”, isto é,
da componente do homem que lhe vivifica o corpo e é a sede de seu psiquismo, segundo
as concepções dualistas da natureza do homem (e, possivelmente, de todo ser vivo).
Vejo grandes dificuldades em admitir a existência de tal tipo de coisa. A pri-
meira está na questão da ligação entre o espírito e o mundo físico. Se uma emoção reside
na alma, mas se expressa, por exemplo, pelo rubor da face, como se faz essa comunica-
ção? O rubor da face é um fenômeno físico. Há uma cadeia de causalidade ligando a
captação da informação desse rubor por uma máquina fotográfica e a alteração psíquica
que o provocou. Mas, na origem da mensagem nervosa que levou à dilatação dos vasos
sanguíneos estaria uma causa não física: a emoção vivida pela alma. Como pode um
efeito físico ser proveniente de uma causa não física? Como poderia um espírito “ver”
alguma coisa se a visão consiste na captação de fótons emitidos pelo objeto a ser visto na
direção do observador que possui um sensor (a retina). Se o espírito não tem olho, como
pode ver? Ou ouvir? Se não tem extensão como pode estar em algum lugar?
A percepção de pensamentos (uma oração, por exemplo) é outro problema.
Para isso seria preciso que o pensamento se irradiasse do cérebro, por meio de algum
tipo de onda, que iria requerer energia para fazê-lo. As energias associadas ao ato de
pensar são extremamente baixas, incapazes de sensibilizar algo que não esteja fincado
no couro cabeludo, como um eletroencefalograma. E o que captaria essas ondas? Bom,
pode-se argumentar que existe toda uma realidade não física, um Universo sobrenatural
paralelo ao físico e que o permeia, no qual os espíritos vivem e se comunicam através de
processos específicos desse mundo. Pode ser… Não estou dizendo que não seja, mas, só
vou dizer que isso existe quando vir uma comprovação cabal da sua existência. Todo o
psiquismo pode perfeitamente ser explicado em termos puramente naturais, de modo
perfeitamente verificável por provas e evidências. Não há necessidade alguma em se ad-
mitir a existência de espíritos para explicar nada. Então, por simplicidade (a navalha de
Ockham), considero-os excluídos da realidade.
Vida após a morte? O que é isto? O que é vida? No meu entendimento vida é
um conceito biológico bem caracterizado. Após a morte de um organismo, ele não está
vivo, em absoluto. Se for um ser consciente, como os humanos (mas não apenas), sua
consciência acabará em definitivo. Como seria esse negócio de “vida após a morte”? Não
consigo conceber tal coisa. Antes que eu possa, até mesmo, estudar que tipo de evidência
deveria ser procurada, tenho que entender que tipo de coisa está sendo buscada. Se se
trata da sobrevivência da “alma” fora do corpo, então ela não pode ser concebida como
uma ocorrência fisiológica do cérebro (a “mente”), mas uma ocorrência que se dê em
uma entidade supra corpórea, que seria o “espírito”, capaz de persistir existindo,
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Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
decorrida que fosse a morte do organismo a que esteja vinculado. Vejo uma série de pro-
blemas. Como se daria essa vinculação? Se esse espírito fosse manter a memória do ser
biológico correspondente, como seria a transferência? Como esse espírito existiria sem o
organismo? Que tipo de interação ele teria com o mundo físico (teria que ter, senão seria
inteiramente incomunicável)? Se ele tiver interação, então absorverá e gastará energia.
Como? Que tipo de sensores teria para captar a luz e os sons (nem falo dos odores, sabo-
res e das sensações táteis e térmicas). Em que ele armazenaria sua energia? Se teria fun-
ções psíquicas, sua complexidade seria tão grande quanto a de um organismo humano.
Que tipo de estrutura teria? E por que não é observado por todo mundo normalmente?
Sinceramente não vejo evidências e nem consigo conceber a existência de tal tipo de
coisa.
Considero que o entendimento de “alma” como uma entidade substancial de
natureza não física é difícil de ser aceita. Essa alma seria a sede da consciência, da me-
mória, dos pensamentos, dos sentimentos, da vontade, enfim, de toda a vida psíquica,
especialmente do “eu”. Ora, para sediar tudo isto, tal entidade precisaria ter uma elevada
complexidade. Além do mais, precisaria interagir com o organismo biológico que lhe
corresponde, de modo a perceber as informações do ambiente e a comandar as ações
corpóreas. Não vejo por que tal tipo de coisa não possa ser executada pelo próprio orga-
nismo biológico, sem apelo a nada de outra ordem. Além do que, não vejo indícios ne-
nhum de que tal tipo de coisa exista e nem como se poderia proceder a uma inspeção de
sua composição, estrutura e funcionamento (itens que caracterizam qualquer entidade).
Minha concepção é de que tais atributos sejam função do sistema neurológico e de seu
funcionamento, constituindo uma “ocorrência” que vem a ser a “mente”, capaz de assu-
mir todas as funções psíquicas, inclusive a consciência e o “eu”. Note que não estou me
referindo a um “epifenômeno” do cérebro, mas a uma outra categoria que depende do
cérebro, mas possui uma natureza não substancial (como seria a alma, cuja substância
não é física). Sua natureza é de ordem estrutural e dinâmica, isto é, trata-se de uma “ocor-
rência” advinda da complexa estrutura cerebral e de seu funcionamento. Fazendo uma
comparação pobre é como uma “música”. A música não é a partitura, nem os instrumen-
tos, mas o “acontecimento” dos instrumentos estarem executando a partitura. Só que
este acontecimento só pode se dar se existirem os instrumentos e a partitura (mesmo que
memorizada pelos músicos). Só que a mente é algo extremamente mais complexo.
Dessa forma, não há como a mente subsistir sem o substrato físico-biológico
que a suporta, a não ser que, antes que ele se perca, seu conteúdo seja transferido para
outro substrato, de mesma natureza (um transplante de consciência entre cérebros) ou
de outra natureza (um artefato robótico) que fosse capaz de assimilar tal conteúdo. Isso,
em tese, é possível, mas ainda não há competência tecnológica para tal. De modo que,
fora isto, a morte do organismo biológico significa também a cessação completa da cons-
ciência, de todas as memórias e do “eu”. Tal constatação leva atribuir à vida biológica e
psíquica uma importância muito maior do que lhe atribuem as concepções espiritualistas
que admitem a sobrevivência do “eu” ao organismo, seja na forma de um “espírito” ou
outra qualquer, seja ou não transferido para novo organismo. A unicidade e finitude do
“eu” lhe dá uma significância ímpar, pois cada um de nós só tem mesmo esta vida e
acabou. Há, pois, que aproveitá-la em plenitude, cuidando do vaso que a contêm com o
19
SOBRE O ATEÍSMO
máximo carinho (a saúde) e zelando para que a vida seja algo que dê a seu vivenciador
o máximo proveito em termos de felicidade, realização, alegria e tudo que permita ao
“eu” ser recompensado pela própria existência. No entanto é preciso entender que isto
não significa um hedonismo desenfreado, pois que a busca exclusiva da fruição dos pra-
zeres não leva a uma recompensa serena e permanente.
As pesquisas neurológicas sobre a consciência estão avançando. O fato de
ainda não se ter a explicação cabal de como o organismo gera a consciência não significa
que ela não exista, da mesma forma que o fato de não se ter uma explicação de como a
alma interaja com o organismo não significa que esta interação não exista. No entanto a
suposição de que a consciência seja devido à alma é muito menos plausível do que de
que seja um fato fisiológico, pois requer a consideração da existência de uma entidade
adicional inteiramente desnecessária. Pode ser até que se venha a descobrir que, de fato,
existe alma, mas supor isto, a priori, é um despropósito. O correto é se fazer uma inves-
tigação da natureza da consciência, da mente e do eu, supondo que ela possa ser natural,
somente inserindo uma entidade supranatural se isto se mostrar evidente, o que não é o
caso.
Quanto ao epifenomenalismo, ele entende que os processos mentais “emer-
gem” do funcionamento do cérebro, mas não podem ser a eles reduzidos, pairando
“acima” do comportamento físico, constituindo, pois, um “dualismo de propriedades”.
Minha concepção do psiquismo como “ocorrência” é inteiramente redutível aos fenôme-
nos físicos, constituindo-se, pois, em um “monismo fisicalista”, desde que entendamos
o mundo físico (natural) como constituído não apenas de matéria, mas também de cam-
pos, estruturas, interações e comportamentos dinâmicos e que o reducionismo não seja
concebido na forma de uma função linear mas que admita não linearidades e retroali-
mentações (isto é, o todo e uma função das partes, mas não a “soma” das partes). Em
outras palavras, uma expansão multiplexa do tipo:
F(x,y)=Ax+By+Cxy²+Dx²y+Exy³+Fx²y²+Gx³y+…, incluindo, até, termos de
expoentes negativos (série de Laurent). A linearidade consiste em que todos os coefici-
entes sejam nulos, exceto A e B.
Ao considerar a não existência da alma e de espíritos (inclusive de Deus) não
estou dizendo que tenho garantias de tal fato e nem de que isto seja a minha “fé”. Mas é
mais do que uma mera opinião, consistindo em uma convicção embasada em indícios
muito fortes. No entanto não é uma questão fechada e eu estou aberto a rever esta con-
vicção desde que plenamente convencido do erro. O fato é que, não sendo evidente a
existência de tais entidades, a suposição apriorística é a de que não existam, sendo pre-
ciso uma comprovação de sua existência para que seja aceita. Até o momento não tenho
conhecimento de nenhuma comprovação de que exista. Como também de que não exista,
mas, como não há evidências, o razoável e supor que não exista. Por outro lado, a acei-
tação da existência dessas entidades como um ato de “fé” é inteiramente despropositada,
pois não traz garantia alguma de sua veracidade. Não é prudente se ter “fé” em coisa
alguma. Sabe-se ou não se sabe. Isso não significa que não se possa “crer” em proposições
não comprovadas, desde que sejam altamente plausíveis. A “fé”, contudo, é uma crença
inteiramente infundada. Eu, por exemplo, creio na existência objetiva do mundo exterior
à minha mente, sem que possa provar que, de fato, assim o seja. Mas os indícios são
20
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
muito fortes. Gostaria de saber que fortes indícios existem para que se aceite a existência
de alguma “alma”, sobrevivente ao organismo biológico.
Cada ser não é principalmente aquilo de que é feito, mas sim como se orga-
niza. É como um guarda-chuva, que um dia trocou o pano, depois as varetas, depois a
haste, depois o cabo e, ao fim, não tinha mais nada do que fora no início, mas era o mesmo
guarda-chuva, pois manteve sua estrutura e continuidade histórica. Assim somos nós e
qualquer coisa. No caso especial de um ser vivo, além da estrutura há que se considerar
o funcionamento. Eu sou o conjunto de minhas moléculas (que se renovam), estruturado
de certa forma e funcionando de certo modo. Cessado meu funcionamento, mesmo que
eu ainda mantenha minha estrutura (cadáver fresco), eu não sou mais eu. Isso inclui mi-
nha autoconsciência. Não vejo por que esses três aspectos (composição, estrutura e fun-
cionamento) não sejam capazes de prover ao sistema em questão todas as funções psí-
quicas, desde que se tenha a complexidade suficiente para tal. Inclusive em artefatos ar-
tificialmente construídos, como os robôs ou os organismos biológicos que venham a ser
projetados e construídos. Isto só não é feito, ainda, por falta de conhecimento, habilidade
e competência. Se entendermos a vida como uma ocorrência em certos sistemas, a ani-
quilação da consciência não significa a cessação da vida, pois o conteúdo do organismo
e, mesmo, certo grau de organização e funcionamento, poderá subsistir nos outros orga-
nismos que dele venham a se alimentar. Mas a identidade fica perdida. Isto é, o “eu”
desaparece.
Dentro da evolução, nós, humanos, continuamos a ser animais, apenas que
com um grau de inteligência mais desenvolvido. Isto é, não apenas somos descendentes
de macacos (não os atuais), mas somos macacos, mesmo. Qualitativamente não somos
outro tipo de seres. E, certamente, evoluiremos para novas espécies transumanas mais
inteligentes ainda. Enquanto isto, possivelmente, outras espécies animais poderão evo-
luir, como estão fazendo, para espécies inteligentes não humanas que coabitarão o pla-
neta conosco, como já ocorreu no tempo do homem de Neandertal.
A especifição cladística de nossa espécie biológica é:
Homo Sapiens
Domínio: Eukaryota
Reino: Animalia
Filo: Chordata
Subfilo: Vertebrata
Classe: Mammalia
Ordem: Primates
Subordem: Haplorrhini
Infra ordem: Simiiformes
Parvordem: Catarrhini
Super-família: Hominoidea
Família: Hominidae
Gênero: Homo
Espécie: Homo Sapiens
Todos os pertencentes à infra ordem “Simiiformes”, de forma genérica, são
símios, denominados popularmente de “macacos”, inclusive nós.
21
SOBRE O ATEÍSMO
As noções de bem e de mal absolutamente não possuem nenhuma relação
com a existência ou não de Deus. O bem é o que seja capaz de propiciar paz, tranquili-
dade, alegria, felicidade, bem-estar, satisfação e coisas do tipo, enquanto o mal propicia
dor, tristeza, mal-estar, infelicidade, intranquilidade, insatisfação, contrariedade etc. O
bem e o mal não estão nos seres e nas coisas, mas nas ações. Como toda ação tem um
agente e um paciente, para este, tal caráter está no que sente, independentemente do que
ou quem tenha feito a ação e com qual intenção. Todavia a imputação de uma qualidade
ética é feita ao agente da ação, desde que a tenha feito sem coação. Assim a natureza
pode provocar, em suas ações, um bem ou um mal, mas a ela não se pode imputar a
qualidade de ser boa ou má. Ela é indiferente. Da mesma forma, alguém que age sem
liberdade, obrigado por alguma coação física ou mental, não pode, por isto, ser taxado
de bom ou mal. A qualidade ética de uma ação só se aplica a um agente consciente e
livre. Quem deliberadamente agir com a intenção de prejudicar ou causar dor, sofri-
mento, prejuízo, mal estar ou qualquer dano a quem quer que seja, mesmo à natureza,
está agindo de forma maldosa, portando fazendo um mal. Se agir de forma a propiciar
satisfação, alegria, bem estar, felicidade e coisas assim, está fazendo um bem. Mas pode
agir de forma indiferente ou neutra e não estar fazendo nem bem nem mal. A noção de
que o mal é a ausência do bem é falsa. Ausência de bem e de mal é uma atitude neutra.
Bem e mal são deliberada e positivamente intentados.
Supor que Deus seja a fonte do bem enquanto o demônio seja do mal é uma
atribuição feita “a posteriori”. Tais conceitos existem aprioristicamente. A noção de Deus
das crenças abrahãmicas é a de um ser bondoso. Mas nem todas as crenças atribuem
bondade a Deus, apenas poder.
A Teoria M, de fato, ainda não possui o estatuto de teoria, mas, por enquanto,
apenas de hipótese, ainda por ser confirmada. Mesmo ela não dá conta de explicar a
origem do Universo. Tal ocorrência, atualmente, só pode ser explicada por conjecturas.
Isto não significa que não possa vir a ser e não o venha, de uma forma natural, sem apelo
a uma interveniência extrínseca (Deus). Pode ser que isto não seja possível. Todavia a
consideração de que tenha sido obra de Deus, para ser aceita sem o recurso da fé, requer
que se comprove que assim o fora, o que também ainda não se tem.
Quanto a universos paralelos, várias hipóteses os levam em consideração.
Contudo, como seriam entidades disjuntas de nosso Universo, não há como constatar
sua existência ou não. A não ser que tais hipóteses venham a ser cabalmente confirmadas
por seu poder de explicação dos fatos em nosso Universo, com exclusão de todas as que
supõem que só haja este Universo, não se pode considerar que os universos paralelos de
fato existam. Considero que não, mas isto não é algo indubitável.
A onipotência de Deus poderia propiciar a transmissão de pensamentos ou
qualquer fenômeno. Mesmo assim eles seriam passíveis de exame e explicação. Não me
consta que haja alguma constatação indubitável de comunicação das mentes humanas
com entidades incorpóreas (espíritos), especialmente com Deus ou de Deus às mentes.
Em verdade, o que se tem é uma impressão interna de tais ocorrências, geradas pela
própria mente de pessoa. Experimentos objetivos para detectar efeitos de orações não
são conclusivos, se analisados por um prisma que considere que tais coisas ” a priori”
não acontecem, a não ser que provas cabais demonstrem que sim, como devem ser feitos
22
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
tais experimentos, mesmo por parte de quem ache que orações promovem comunicação
com Deus.
Referências a passagens bíblicas que digam qualquer coisa a respeito, obvia-
mente, não têm valor nenhum como comprovações do que se diz. Se as sagradas escri-
turas fossem verdades incontestes pela fé que se tem nelas, então as versões hinduístas
sobre a criação do mundo como emanação de Brahman (não confundir com Brahma)
também teriam que ser aceitas como verdade, pois há quem tenha fé sincera em tais afir-
mativas.
Aceitar o evolucionismo como explicação para a origem das espécies vivas
não requer fé alguma, mas apenas verificação e estudo. O criacionismo é que é uma ex-
plicação baseada em fé. A evolução não é uma suposição, mas uma constatação. Inclusive
perceptível diretamente, na evolução das cepas de bactérias resistentes a antibióticos
cada vez mais poderosos.
Por outro lado, nossa espécie não é, absolutamente, o elo terminal da cadeia
evolutiva. Somos uma transição como todas as outras que já existiram e existem. Dentro
de certo tempo surgirá ou surgirão espécies transumanas, como houve as pré-humanas,
cujos fósseis mostram os elos (não perdidos, mas achados) entre as antecedentes e as
subsequentes, como também as variantes paralelas, como a de Neandertal, que poderia
ainda estar viva hoje em dia, compartilhando conosco o planeta. Isso ainda não se deu
porque nossa espécie é muito recente (menos de 300 mil anos) e a evolução se processa
na escala de milhões de anos, pelo menos para organismo mais complexos como o nosso
(mas não para bactérias).
O melhoramento genético artificial e a engenharia genética têm produzido
variedades de vegetais e animais que, brevemente, se constituirão em espécies distintas
das que lhes deram origem (por enquanto são apenas variedades ou raças de uma mesma
espécie). Isso já acontece com bactérias produzidas artificialmente para dar conta de vá-
rios processos, como a produção de insulina, por exemplo. O enxerto de trechos de DNA
de uma espécie em outra (coisa já corriqueira em laboratórios) produz novas espécies
com as características que se desejam. Possivelmente a primeira espécie transumana po-
derá ser produzida artificialmente em laboratório. Se isso é ético ou não é outra conversa.
Mas tecnicamente será viável.
Para começar, a lei da não-contradição aplica-se a ocorrências passíveis de
uma descrição dicotômica, que é a lógica usada, por exemplo, em computadores digitais.
Mas esta não é a única lógica possível. Existem ocorrências que se enquadram em lógicas
policotômicas, difusas e, mesmo, multidimensionais, nas quais não se pode atribuir a
qualificação de falso ou verdadeiro, mas graus variados de falsidade e verdade (e esses
graus podem variar não só ao longo de um eixo, mas ao longo de vários eixos). Isso é
mais comum do que a dicotomia. Por exemplo, você não pode dizer que algo está quente
ou frio, seco ou úmido, claro ou escuro e muitas outras coisas, de uma forma taxativa
com sim e não, mas por meio de gradações de temperatura, umidade ou claridade. No
caso de cores, a gradação se dá ao longo de três eixos, os sabores ao longo de, pelo menos,
cinco eixos, os sons ao longo de infinitos eixos, fornecidos pela transformada de Fourier.
É o que é mais comum. A dicotomia é uma exceção, que também ocorre. Por isso é que

23
SOBRE O ATEÍSMO
os computadores digitais ainda não são capazes de reproduzir a inteligência humana,
pois esta raciocina em gradações de “talvez” e o computador não.
De fato, as leis da lógica e da matemática são abstrações, mas são inferidas a
partir do comportamento da natureza. A extrema aderência que as descrições matemá-
ticas dos fenômenos físicos são capazes de prover não constituem uma coincidência es-
tranha, mas um testemunho de que a matemática (que, no fundo, é lógica) traduz o modo
como a natureza opera. Isto é, a lógica não é apriorística, como o supunha Descartes e
Kant, mas uma decorrência do comportamento da natureza. Se esse comportamento é
nela inculcado por Deus ou se é algo intrínseco a ela é uma questão de verificação. No
segundo caso, mesmo que Deus exista, ele não pode agir a seu bel prazer, mas apenas
em conformidade com as leis da física, da lógica e da ética, inerentes à natureza. Mas isso
é assunto para outra discussão.
Abstrações, como a lógica, a ética, a metafísica, a estética, os números, as figu-
ras geométricas, a matemática, as leis e tantas outras são conceitos e relações entre con-
ceitos produzidos pela mente sem correspondência direta na realidade concreta do
mundo (concreto entendido como tendo existência independente de mentes percepti-
vas). Mas, uma vez que existe possibilidade de comunicação entre as mentes existentes
(mediada por meios físicos como o som e a luz), é possível se conceber tais abstrações
como constituindo uma realidade extra mental, que seja propriedade comum de uma
coletividade de mentes. Isso não significa que elas precedam as mentes. São produtos
delas e deixam de existir se não houver mente alguma que as conceba. Não se tratam,
pois, de padrões absolutos, mas concepções urdidas pela inteligência. Poderiam ser de
outra forma. Se outras espécies atingirem o nível de inteligência que possuímos (ou ou-
tras que possivelmente já o tenham em outros planetas), poderiam desenvolver uma ló-
gica, uma matemática, uma física, uma estética ou uma ética completamente distinta da
que desenvolvemos. E mesmo as nossas poderiam ser outras. São o que são devido à
evolução histórica que vivenciaram. E, como disse, emergem do comportamento da na-
tureza. Mas esse comportamento poderia ser descrito por outros modelos descritivos,
que também possuíssem uma boa aderência. Todos os conceitos da Física, por exemplo,
como velocidade, força, energia, carga elétrica, temperatura e outros são construtos hu-
manos. A natureza poderia ser descrita por outras noções diferentes dessas. O chamado
“mundo das ideias” de Platão, simplesmente, não existe. Como os espíritos, se bem que
sejam coisas completamente distintas.
As leis da Física não “regem” o comportamento do Universo. Elas o “descre-
vem” o que é inteiramente diferente. A natureza age por si mesma, não obedecendo a
nada. A ciência procura descrever como isso ocorre e, muitas vezes (mas nem sempre)
acerta.
O pensamento consiste em uma ocorrência que se dá na mente, como um sen-
timento, uma emoção, uma percepção, uma volição, uma evocação, uma memorização,
um raciocínio etc. E mente nada mais é do que a entidade que consiste em um cérebro
em funcionamento atual ou potencial. A mente não é o cérebro, mas não existe sem ele.
É uma ocorrência do cérebro, isto é, um acontecimento que se estabelece devido a seu
funcionamento, que depende de sua constituição, estrutura e dinâmica. O pensamento é
como uma música. Ela não existe sem que um instrumento (ou a voz) a produza, mas ela
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Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
não é apenas o som, mas tudo o que a maneira com que esse som é gerado sequencial-
mente no tempo seja capaz de produzir, devido à variação da altura, da intensidade, do
timbre, do ritmo, da melodia, da harmonia e de todas as demais características. Assim o
pensamento é uma sequência de evocações de percepções, de associações, de sentimen-
tos, e de tudo o que o funcionamento do cérebro pode produzir. Note-se que o pensa-
mento pode mesmo ser inconsciente. Certamente para pensar a mente requer que o cé-
rebro funcione e, portanto, consuma energia. Mas o pensamento não é energia, nem tam-
pouco reações químicas. Não é matéria e nem espírito (que, aliás, não existe). Pensa-
mento pertence à categoria de realidades que se denominam “ocorrências”. Isto é: pen-
samento é um processo que se dá na mente, um acontecimento, um evento. Para que tal
evento ocorra é requerido o fornecimento de energia como, de resto, em todo processo
orgânico. Mas essa energia é a fornecida pela metabolização do alimento que se ingere.
Ela não provém de fonte externa ao organismo. Energia não é uma entidade e sim um
atributo. Não existe energia em si mesma, mas apenas como propriedade de alguma
coisa. Como uma cor, por exemplo.
Tal ocorrência consiste em transmissões de sinais entre neurônios. Esses sinais
caminham pelos dendritos e axônios como uma onda de inversão de polarização de suas
membranas, em função da variação da concentração de íons de sódio, potássio e cálcio.
A comunicação entre os dendritos e os axônios é feita pelos neurotransmissores, que es-
tão disponíveis no meio glial, tratando-se, pois, de um transporte químico de moléculas.
Tais assuntos podem ser vistos em qualquer tratado de anatomia e fisiologia neural. Não
há nenhuma evidência experimentalmente testificada de que o pensamento possa, natu-
ralmente, emanar da mente que o experimenta, propagar-se pelo espaço e ser captado
por outra mente.
Uma questão, contudo, é inteiramente pertinente: de onde vem o pensa-
mento? Isto é, o que desencadeia a ocorrência de um pensamento na mente? Várias coi-
sas. Em sua origem, todo processamento mental provém das sensações que os órgãos
dos sentidos levam ao cérebro. São os estímulos visuais, sonoros, térmicos, táteis, olfati-
vos, gustativos bem como dos sentidos que percebem o equilíbrio, o posicionamento do
corpo e o funcionamento dos órgãos internos que provocam as primeiras cadeias de
transmissões de sinais neurais que se transformam em percepções, assim que interpreta-
dos. Em segundo lugar, o próprio cérebro, em seu funcionamento, evoca, por associação
ou mesmo aleatoriamente, a percepção de imagens já registradas na memória. E as pro-
cessa, produzindo novos resultados que passam a ser registrados. Esse fluxo de proces-
samento neural é que é o pensamento. Ele pode se dar de modo consciente ou inconsci-
ente, voluntário ou involuntário. Quando consciente, o “eu” toma ciência da ocorrência.
Nos sonhos e alucinações há uma emulação inconsciente da consciência, que, inclusive,
pode acarretar respostas motoras (sudorese, micção e mesmo, locomoção, além do mo-
vimento dos olhos, característico do estágio REM do sono). Dependendo de seu modo
de ser, o pensamento pode ser um raciocínio, uma emoção, um sentimento, uma decisão.
Em todos estes casos, o processamento mental desencadeia alterações somáticas (hormo-
nais, vago-simpáticas ou outras), como excitação, taquicardia, sudorese, rubor, palidez,
secura na boca, vaso constrição ou dilatação. Todas essas alterações são percebidas pela

25
SOBRE O ATEÍSMO
varredura dos sentidos e registradas na memória com parte da ocorrência, de modo que
o processamento mental não é apenas cerebral, mas envolve todo o organismo.
Estudar a consciência é justamente, estudar como o cérebro é capaz de gerá-
la, e ele o faz. Todos os atributos do psiquismo, como o intelecto, o pensamento, o racio-
cínio, a intuição, as emoções, os sentimentos, a consciência e o “eu”, são produtos da
atividade neurológica, conjugada com a hormonal, bem como com o funcionamento de
todo o organismo. Isto é objeto de um imenso trabalho de pesquisa que vem sendo de-
senvolvido pela neurociência e, a cada dia, novos conhecimentos são obtidos, de modo
que se pode prever para pouco tempo (menos de 200 ou 300 anos) uma explicação cabal
da mente em termos neurológicos, ou seja, orgânicos, isto é, biológicos, e, portanto, físi-
cos. Nada de espírito ou alma. Mas isso não significa que pensamento e sentimento são
matéria. São “ocorrências” não substanciais. Essa é a chave da compreensão da mente.
Ocorrência é uma complexidade de eventos em dada estrutura. Conteúdo, estrutura e
dinâmica é o que fazem algo ser o que é.
Sobre os bebês, não há o que defina qual deles vai ser eu, porque o “eu” só
começa a existir quando o sistema nervoso daquele bebê começa a se formar, ainda no
útero. “Eu” é algo que vai se construindo à medida que o bebê vive e continua ao longo
de toda a vida. Não existe um “Eu” pronto que adere a um corpo. O que eu e você somos
depende do que vivemos, além de nossa genética. E, quando morrermos, desaparece in-
teiramente. Nunca se repetirá. Cada bebê vai ser algum “eu”, mas isto não é pré-deter-
minado. Eu sou esse eu que sou porque já vivi minha vida até agora assim, passando
pelos eventos que passei. Qualquer coisa que tivesse sido diferente, eu seria outro eu.
Um ser não é algo que “É”, como dizem os escolásticos, mas algo que “vai sendo”, ao
longo do tempo.
Em primeiro lugar temos um organismo biológico que possui um sistema ner-
voso em que há um órgão, o cérebro que centraliza o controle do funcionamento desse
organismo. Mas não só ele. Parte do controle é exercido pela própria medula e pelo ce-
rebelo. Para exercer este controle ele se vale dos nervos que levam informações sensoriais
sobre o estado do ambiente interno e externo ao organismo. Tais sensações, devidamente
classificadas pelo cérebro e armazenadas nos locais previstos, vão formar os registros de
memória de que o organismo se vale para não ter que começar sempre do zero. Dentre
os processos que ocorrem no cérebro temos os pensamentos, que são operações de troca
de informação entre registros com a elaboração e saída para registro de conclusões. Isso
pode ocorrer inconscientemente, como também as reações emocionais de medo, raiva,
desejo e outras. Ter consciência é ficar sabendo que isso está ocorrendo bem como ter
notícia das sensações. E quem fica sabendo disto é o “eu”. O “eu” é resultante da auto-
consciência que é a informação sobre o próprio organismo. Isto é, o organismo, a todo
momento, está informando, pelos nervos, do seu estado posicional da musculatura e do
esqueleto e do funcionamento dos órgãos internos, dos sentidos externos (muitos, não
só cinco) e do próprio cérebro. Essa constante atividade é que dá a noção do eu à consci-
ência. A consciência pode ser interrompida, como ocorre no sono, no desmaio e na anes-
tesia. Isto é, há uma parte do cérebro que não recebe informação sobre o funcionamento
do organismo. Na consciência há uma constante percepção com formação de imagens
visuais, táteis, sonoras, olfativas, térmicas, cinestésicas etc. Esse complexo de coisas em
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Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
funcionamento é o que se denomina “mente”, mesmo sem estar consciente, pois há
muito processamento inconsciente, aliás maior que o consciente. Isso é uma ocorrência
que se dá no organismo, especialmente no cérebro (mas, repito, não só). Não é material,
mas não é espiritual, porque não requer algo substancial. Apenas ocorrências.
Assim, não vejo que seja a consciência que possibilita a mente, mas que a cons-
ciência é um dos fenômenos mentais (ou psíquicos), como a memória, o pensamento, o
raciocínio, o desejo, a decisão, as percepções, os sentimentos, as emoções, a intuição. A
mente é possibilitada pela vida orgânica do cérebro saudável. Pode haver cérebro vivo
sem mente, apenas com vida vegetativa, como no estado de coma, ao que parece, mas,
inclusive, tem-se registros de que comatosos possuem algumas percepções e pensamen-
tos, sem comando motor voluntário. Em suma, todo o psiquismo é fisiológico, biológico,
sendo possível sua explicação inteiramente em termos naturais, sem apelo para entida-
des extranaturais como uma possível alma espiritual. A existência de uma alma, pelo
contrário, traria uma série de problemas de várias naturezas. Por exemplo, se ela não é
natural, como interage com a mente, que é uma ocorrência natural. E se sobrevive à
morte do organismo, carrega a memória que ele tinha? Como poderia ter algum tipo de
sensação, por exemplo, visual? Se não é natural, não está no espaço e nem no tempo, não
tendo massa, volume, substância. O que seria, então? Acho isto muito complicado de
aceitar.
Certamente, a maior parte da vida existente não possui mente (é só pensar
que as bactérias do subsolo consistem na maior parte da massa protoplasmática viva do
planeta e que nosso corpo possui mais bactérias do que células dele mesmo). A mente
não existe nos vegetais, nem fungos, nem protozoários. Nos animais é uma questão difí-
cil saber a partir de que nível existe mente. É fácil ver que os cordados têm mente, mas
nos outros filos, talvez só a ordem octopoda da classe cephalopoda do filo molusca, isto
é, os polvos. Note que possuir mente não significa exibir comportamento proativo. Existe
mente mesmo havendo apenas comportamento reativo. Já a consciência, pelo que tenho
conhecimento, considera-se que ela possivelmente exista entre chimpanzés, gorilas,
orangotangos, golfinhos, elefantes, cachorros, gatos, porcos, corvos, gralhas, papagaios
e ratos em um certo grau. Certamente que só há consciência em seres que possuam
mente. Mas a mente e a consciência também poderiam ser desenvolvidas em um artefato
elaborado, como um robô.
A complexidade dos seres vivos superiores não significa perfeição, pois se as-
sim o fosse, não haveria doenças nem deformidades. Não só os seres humanos são im-
perfeitos, mas toda a natureza possui muita imperfeição, muita coisa que dá errado. A
evolução não tem propósito nem busca perfeição. Ela se dá ao acaso e evoluir não signi-
fica melhorar, mas apenas mudar. O sexo foi um modo que surgiu para a reprodução e,
apesar de mais complicado do que a simples partenogênese, pela qual apenas o sexo
feminino seria necessário, a existência do sexo masculino, que é acessório, firmou-se na
seleção natural por propiciar uma maior variabilidade genética. A homossexualidade é
um comportamento secundário que tem origem nos mecanismos de atração sexual que
surgiram para garantir a perpetuidade da espécie.
Nada, não sendo coisa alguma, não é capaz de gerar nada. Dizer que o Uni-
verso surgiu de nada não significa que havia algo, “o Nada”, que o gerou, mas sim que
27
SOBRE O ATEÍSMO
ele surgiu sem que tivesse sido gerado ou criado e sim de forma espontânea, sem que
fosse proveniente de algo que o precedesse. O fato de isso ter se dado em certo momento
também não implica que tenha que continuar a se dar, pois, uma vez tendo surgido o
Universo, também surgiu um comportamento de seu conteúdo que se dá de acordo com
leis de conservação. No entanto, ainda se dá o surgimento de matéria e antimatéria a
partir do vácuo (que, em verdade, não é “Nada”). É claro que “o Nada” não planejou o
que iria surgir. Não há plano algum. Outra coisa é que não é verdade que as coisas estão
como sempre foram. De modo nenhum. Tudo está sempre mudando. O que existe hoje
não existia na Era Mesozoica e o que existia então não existia na Paleozoica. Trilobitas e
Dinossauros não existem mais. Há apenas meio milhão de anos atrás não havia homens.
Além disso o homem não é o objetivo da evolução, que não termina nele, mas prosse-
guirá além.
Cada espécie de ser vivo gera outro da mesma espécie, mas podendo ter pe-
quenas diferenças. O acúmulo de diferenças ao longo de centenas de milhares de gera-
ções pode produzir um ser que não seja mais da mesma espécie do seu ancestral, cente-
nas de milhares de gerações atrás. Esporadicamente, uma mutação de grande monta
pode ocorrer, fazendo com que se gere um descendente suficientemente modificado para
ser de outra espécie. Isso ocorre, por exemplo, com bactérias e vírus a todo momento,
como se observa ao microscópio e pelo comportamento resistivo a antibióticos. Ou
mesmo provocado por engenharia genética.
A origem das diferenças está nas mutações cromossômicas que ocorrem em
razão de radiação ionizante, mutagênicos químicos ou simplesmente por falha de repli-
cação, durante a divisão celular. Se isso se der nas células reprodutoras (mas não nas
somáticas), o ser gerado incorporará a mutação. Células cancerosas são mutantes, isto é,
não são células da espécie do organismo que as abriga. Aliás não são de espécie alguma.
Tumores benignos têm células com a mesma assinatura genética do organismo, mas os
cancerosos não.
Pelo que me consta, o Carbono 14 não é usado para datação paleológica, mas
apenas para arqueológica e antropológica (até 60 mil anos). Para eras geológicas usam-
se os métodos urânio-chumbo, samário-neodímio e potássio-argônio, dentre outros.
Além de métodos radioativos, também são usadas as taxas de deposição e velocidades
de soerguimento das placas tectônicas, especialmente nos Andes e no Himalaia, o que
confirmam os períodos de milhões, ao invés de milhares de anos.
Mesmo que se considere que tudo tenha sido criado por algum Deus, é preciso
entender que as descrições bíblicas são mitológicas, isto é, resumem lendas ancestrais já
correntes nos povos do Oriente Próximo e Médio, dos quais emergiu a civilização he-
braica que redigiu a Torá ou Pentateuco, base do Antigo Testamento. Elas não possuem
nenhuma confiabilidade em termos de uma descrição real dos eventos decorridos. A Bí-
blia não é um compêndio de história e nem de ciência.
A Bíblia, para mim, é a reunião de vários escritos que se propõem ser a reve-
lação do Deus único aos homens. Como essa entidade não existe, o que se pode inferir é
que os autores da Bíblia escreveram o que vinha na cabeça deles, dizendo estarem inspi-
rados por Deus. É possível que acreditassem mesmo assim o estar. Certamente que pre-
tendiam instruir o povo judeu (no antigo testamento) ou a humanidade (no novo
28
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
testamento) sobre o comportamento que deveriam ter para conseguirem obter a salvação
da condenação ao inferno, por transgredirem as leis que eles atribuíam ao Deus e obte-
rem a bem-aventurança de uma vida eterna para sua pretensa alma espiritual, junto ao
Deus. Além disso, a Bíblia também relata a história do povo judeu, não de um ponto de
vista propriamente histórico e isento, mas para efeito de proselitismo religioso. Por isso
não é confiável como documento histórico. Em resumo, é uma obra de ficção, mesmo
que tenha ensinamentos bem úteis e proveitosos para uma conduta ética e decente. Mas
todo o aparato da Teologia que se erigiu sobre a interpretação de seu texto em termos de
realidades sobrenaturais, é algo inteiramente vazio de significado.
O fato de dizer que a Bíblia é uma obra de ficção absolutamente não a nivela
à literatura comercial tipo “Harry Potter” nem diz que ela seja uma obra desimportante.
Jamais disse isto. O que significa ser uma obra de ficção é que o que é dito nela não se
trata de fatos comprovados por nenhum critério de aferição de sua veracidade histórica
ou científica. Tratam-se de compilações de lendas mitológicas que foram passadas de
geração a geração, mescladas com relatos de fatos verdadeiros, tudo isso inculcado de
mensagens moralizantes e prescrições de comportamentos propiciatórios ao favoreci-
mento da pretensa divindade aos reclames do povo dito “eleito”, no antigo testamento
(fora as páginas eróticas do “Cântico dos Cânticos” e a poesia laudatória dos Salmos).
No novo testamento, trata-se de relatos pretensamente fidedignos da vida de Jesus nos
evangelhos e de admoestações e recomendações nas epístolas, além de uma notável pá-
gina de genuína ficção científica, que é o apocalipse.
A Bíblia teve a imensa influência que granjeou, mesmo sendo uma ficção, por-
que o cristianismo foi adotado como religião oficial do Império Romano por Constantino
e daí passou para o Império Bizantino, para o Sacro Império Romano Germânico e para
os demais países da Europa e, dela, para as Américas e o resto das colônias europeias.
Tal disseminação, contudo, não dá à Bíblia um valor superior, em termos de
veritabilidade, do que o Corão, os Vedas ou qualquer outro denominado “livro sagrado”.
Pode ser que os ensinamentos morais da Bíblia sejam superiores aos de outros
livros sagrados, o que não sei dizer, pois não os conheço em extensão e profundidade
para emitir juízo a respeito. Mas sei que, na Bíblia, existe muita contradição entre o que
é pregado e o que é narrado como fato histórico.
Religiões podem ser boas no sentido de proverem a pessoa que delas participa
de um apoio social e psicológico para enfrentar os reveses da vida e preencher a neces-
sidade interna de encontrar um sentido e um propósito para a existência. Mas apresen-
tam grandes problemas. O primeiro deles, no meu entendimento, está em sua funda-
mentação doutrinária na fé em alguma revelação, que é algo inteiramente sem cabi-
mento. Não se pode aceitar como verdadeiro algo só porque alguém disse que o seja, por
mais digno de respeito e veneração esse alguém seja. Não porque se suponha que ele
esteja deliberadamente mentindo (o que também pode ocorrer), mas que ele esteja con-
siderando como verdade algo que não o seja. A verdade tem que ser buscada pelos testes
das evidências e das comprovações lógicas. Nada disso é propriedade da fé. Segundo,
muitas religiões acabam criando uma atitude de intolerância em relação às demais (ou à
sua simples ausência) que pode ser um perigoso estopim de conflitos. Terceiro, religião
envolve também todo um aparato de pessoas e instituições nos quais, muitas vezes, se
29
SOBRE O ATEÍSMO
inserem oportunistas que se aproveitam da credulidade do povo para tirar vantagens
pecuniárias e lesar os fiéis, enganando-os com pretensas benesses.
Em minha opinião, uma religião que se preze deve ser inteiramente filosófica
e desprovida de organização, templos, sacerdotes e tudo o mais. Que seja simplesmente
uma relação do fiel com a divindade em que creia, mesmo que envolva alguma atividade
socializada, mas inteiramente livre de ônus financeiro. E que tenha tolerância para com
as demais, além de pregar a cooperação, a solidariedade e o amor. Todavia, tudo isso
pode ser muito bem cultivado sem religião alguma. A própria filosofia é a melhor reli-
gião. Creia-se ou não em deuses, basta que se tenha um projeto de vida dentro de uma
cosmovisão ética e positiva, que se está vivendo de um modo a dar significado à própria
vida em benefício do mundo todo. De minha parte não acho que exista Deus e nem alma
imortal, não sendo filiado a qualquer religião. Todavia, pauto minha vida pela busca da
verdade e a prática da virtude, encontrando um significado em minhas ações solidárias
e de esclarecimento, para levantar as trevas da ignorância e tornar o mundo um lugar
bom e aprazível.
Mito, de fato, não explica, mas tem a pretensão de fazê-lo. Nesse sentido, digo
que as explicações da Bíblia e de todas as denominadas “Sagradas Escrituras”, sejam de
que religião forem, bem como de certas ditas “Fraternidades” ou “Sociedades” esotéri-
cas, nenhuma delas possui fundamentação em dados factuais obtidos diretamente ou em
deduções lógicas baseadas nesses fatos, como é o que ocorre com a ciência. Portanto,
todas as “explicações” (entendidas como propostas de explicação) que elas fornecem são
mitológicas, isto é, advindas de crenças ancestrais que, na verdade, são “lendas”, isto é,
invenções que alguém um dia propôs e foram sendo passadas de geração a geração até
serem consignadas em algum livro, que passou a ser tido como uma “revelação” da di-
vindade. Isso tem uma força tremenda, como bem o demonstrou Joseph Campbell, mas
é uma coisa inteiramente infundada. Na atualidade, considero que seja um dever, até
mesmo do estado, suprir a juventude de conhecimento esclarecido de forma que possa,
por si mesma, decidir em aceitar ou rejeitar tais explicações. Certamente que a ciência
também não é dona da explicação definitiva sobre coisa alguma, mas disto ela tem cons-
ciência e jamais pretende ser dona da verdade, mas apenas sua perseguidora. É nesse
sentido que reafirmo que são a ciência e a filosofia que possuem a capacidade de dar
significado ao mundo e à vida.
A rejeição existente entre religiosos e a filosofia é natural, pois a primeira pre-
missa da filosofia é o livre pensamento. O filósofo não pode se ater a qualquer espécie
de dogma, mas examinar a realidade e, refletindo sobre ela e cotejando suas elucubrações
com os dados das evidências experimentais (isto é, os fatos concretos), extrair suas con-
clusões, sempre provisórias. Nisso ele necessariamente é cético, no sentido metodológico
da palavra. A filosofia, por princípio, tem que rejeitar toda e qualquer postura oriunda
de pretensas “revelações” e tão somente atingir a verdade sobre a descrição e explicação
que se consegue fazer sobre o mundo, a vida e tudo o que se apresentar à consideração
da mente apenas pela inquirição, pela reflexão, pela experimentação e pela comprova-
ção. Nada de fé!.
Isso significa que sempre que alguma conclusão filosófica ou científica estiver
em contradição com o que estabelecem as escrituras sagradas de qual seja a religião, essas
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Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
devem ser rejeitadas como inverdades, o que o verdadeiro crente não está disposto a
fazer, só o fazendo no momento em que percebe a total insensatez de toda e qualquer fé
e adere ao racionalismo.
Definitivamente “há” sim, contradição entre a fé e a razão. Não necessaria-
mente em seu objeto, que até pode coincidir, mas em seus pressupostos. A fé pressupõe
que há uma verdade inconteste na “revelação”, contida nas escrituras sagradas de cada
religião. Por exemplo, a existência de Deus é um dado apriorístico para a Teologia, mas
não para a Filosofia, que a tal fato pode até ser levada, a posteriori. Ou não. Essa é a
grande diferença. A razão pode levar a conclusões em desacordo com as revelações e,
certamente leva, pois, as diferentes revelações fazem afirmativas distintas sobre os mes-
mos temas. Por exemplo, a tri-pessoalidade do Deus judaico-cristão, não aceita pelo is-
lamismo. Você pode dizer: mas a revelação islâmica (o Corão) não contém a verdade.
Por que não? E porque a Bíblia, sim? Por quê? Muçulmanos têm tanta fé no Corão quanto
cristãos na Bíblia. Tomás de Aquino forçou a Filosofia a se tornar serva da Teologia e
nisto cometeu um grande erro, aliás denunciado por seu contemporâneo Guilherme de
Ockham e, antes, por Duns Scotto, que eram homens de fé, mas que viram que não é
possível racionalizar a fé e, então, deixaram a razão de lado. Platão e Aristóteles foram
inteligências privilegiadas e muito deixaram de contribuição à Filosofia. Mas o excesso
de respeito por sua autoridade, extensivamente incontestada, prejudicou, e muito, o
avanço do conhecimento. O mesmo se deu com Descartes e, atualmente, até mesmo com
Marx, Sartre, Nietzsche e outros “medalhões” da Filosofia, que seus seguidores conside-
ram inatacáveis. Isso é ruim para o avanço do conhecimento, tanto quanto a inatacabili-
dade das sagradas escrituras.
Tenho para mim que a Teologia é uma disciplina inteiramente desprovida de
significado e relevância e explico. O objeto da Teologia é a análise e interpretação do
conteúdo das escrituras consideradas pelas diversas religiões como uma “revelação” da
divindade ao homem, como a Bíblia, o Corão, os Vedas, ou, até mesmo, os escritos de
Allan Kardec. A questão, desde o princípio, se revela problemática, pois a única garantia
que se tem de que, de fato, tais escrituras sejam ditadas pela divindade é a fé daqueles
que creem em tal fato. Ora, a fé, absolutamente, não pode ser critério de veracidade de
coisa alguma, pois, se assim o fosse, haveria inúmeras verdades que mutuamente se con-
tradiriam, já que há pessoa que possuem fé sincera e verdadeira em coisas completa-
mente distintas, que são os seguidores fiéis das diferentes crenças religiosas. Como a
verdade, por definição, tem que ser única, surge a questão de decidir por qual das reve-
lações se fazer a escolha como sendo a verdadeira. Mas o critério, nessa escolha, certa-
mente que há de ser externo às próprias crenças que validam cada uma delas. E esse
critério só pode ser o critério filosófico de veritação que se baseia nas evidências dos
sentidos ou nas comprovações racionalmente válidas que se fazem, em última instância,
com o apoio de premissas validadas por evidências.
Ao que me consta, nenhuma evidência ou comprovação existe da veracidade
de nenhuma dessas “sagradas escrituras”, logo concluo que todas são meramente relatos
compilados de mitos ancestrais, passados oralmente de geração a geração, cuja origem
deve ter se dado nas explicações fantasiosas que os primitivos elaboravam para entender
aquilo de que não possuíam noção da razão de ser. E se a Teologia se fundamenta em
31
SOBRE O ATEÍSMO
escritos inteiramente desprovidos de razão, que valor pode ter qualquer conclusão que
deles se tire?
Em meu entendimento, perdem seu tempo aqueles que se debruçam, por
exemplo, sobre a Bíblia para extrair algum conhecimento a respeito da realidade. Melhor
fariam se a estudassem de um ponto antropológico, como uma manifestação cultural dos
povos e deixassem a realidade para ser estudada pela filosofia e pelas ciências.
De fato, coloco a Teologia no mesmo nível de conhecimento da Astrologia e
de outros conhecimentos esotéricos desprovidos de qualquer fundamentação.
Que se apresentem os teólogos para justificar porque consideram a Teologia
algo de valor, pois estou disposto a mudar meu ponto de vista, caso convencido.
Admitindo-se que Deus não exista, como o faço, fica patente que a Teologia é
um assunto totalmente desprovido de propósito, pois estuda algo que, simplesmente,
não existe. Todavia, mesmo que se considere que Deus exista, seu estudo deveria ser
feito por meio de uma disciplina racional e científica que é a Teodicéia. A Teologia, por
basear-se nas pretensas “revelações”, que, mesmo, reafirmo, considerando a existência
de Deus, não têm garantia alguma de que sejam, de fato, revelações divinas, peca por
completa falta de embasamento. Além disso, mesmo, ainda, que se considerem as ditas
“sagradas escrituras” como revelações, haveria um tremendo problema de conciliar as
contradições que elas guardam entre si. Só para começar, como conciliar a Bíblia com o
Corão? Aquela considera que Deus tenha personalidade tripla e este simples. E os Vedas,
então, que admitem a existência de múltiplos deuses? Alguém diria: ora, todas essas
pseudo escrituras são falsas, só a da minha religião é verdadeira, como o garante a minha
fé. Bom… de quem estou falando? Como saber quem está com a verdade? Que se pro-
nunciem os Teólogos.
Muitos religiosos congratulam-se com a fé exibida pelas pessoas, conside-
rando ser uma grande virtude a aceitação como verdades inquestionáveis de fatos com-
pletamente impossíveis de serem verificados diretamente. Jesus, no evangelho, bendisse
os que creem sem ver, dirigindo-se a seu apóstolo, Tomé. Bom… eu sou mais cético do
que Tomé, pois, mesmo vendo, ainda duvido, achando que possa estar tendo ilusão de
ótica. Considero que a fé é um total e completo disparate. Não consigo entender como se
pode achar valor em se crer em alguma coisa sem fundamento algum. Por quê? Porque
está escrito na Bíblia? E daí? Outros livros dizem outras coisas. Devo acreditar em tudo
o que está escrito em qualquer lugar? Por que a Bíblia seria diferente de outros livros?
Como saber que ela relata verdades e não opiniões? Isto a Teologia é capaz de garantir?
Quero saber com que argumentos. Pelo que sei a Teologia judaico-cristã, baseia-se na
própria Bíblia. Logo não pode ser capaz de validar a Bíblia. Isso só poderia ser feito por
argumentos externos a ela. Quais são eles? A Fé? Isso não faz sentido. A fé não é capaz
de servir de critério de verdade e essa assertiva é óbvia. Eu não posso garantir que algo
seja verdadeiro porque acho que assim o seja. Daí a Teologia ser um estudo inteiramente
desprovido de significado. Todas as extensas elucubrações teológicas dos Padres e Dou-
tores da Igreja, Gregório, Ário, Agostinho, Abelardo, João Crisóstomo, Jerônimo, Macá-
rio, Teodoro, João Damasceno, Tomás de Aquino, Anselmo, Boaventura, Bernardo de
Claraval, Alberto Magno, João da Cruz, Roberto Belarmino, Tereza de Ávila, Catarina de
Siena, Lutero, Calvino, Zwinglio, Spener, John Knox, Lewis, Boff e outros mais, que
32
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
ocupam milhões de páginas escritas são tão inúteis quanto a literatura sobre Astrologia,
Alquimia, Numerologia, Ufologia, Cientologia e outra “gias” que são Pseudociências in-
teiramente desprovidas de fundamento.
A necessidade de se filiar a uma religião, no meu entendimento, é de duas
ordens. A primeira relaciona-se aos questionamentos interiores sobre a origem e o des-
tino da vida e do mundo, e as razões para que as coisas sejam como são. A segunda é a
necessidade de participar gregariamente de uma comunidade de visões, interesses, pro-
postas e atividades convergentes. Nesse caso a religião funciona como uma espécie de
“clube”, em que as pessoas se reúnem e participam de atividades sociais. Isso é parte da
natureza humana, e muitas vezes, mesmo sem ter a fé na doutrina da religião professada,
a pessoa a segue por razões sociais, para ser aceita no grupo em que está inserida. Inclu-
sive pode até se destacar em sua atuação, internamente motivada pelo desejo de reco-
nhecimento e admiração. Dizem que Madre Tereza de Calcutá tinha dúvidas a respeito
da fé cristã. Esse caráter social de uma religião é muito forte, maior inclusive do que o
caráter doutrinário da fé professada, muitas vezes, inclusive, nebulosamente entendida
pelos praticantes de alguma delas. Daí o surgimento dos sincretismos, um dos mais es-
drúxulos sendo o existente, aqui no Brasil, entre o catolicismo e o espiritismo. Qualquer
um que se dedique a entender um pouco que seja das doutrinas dessas religiões verá que
elas são mutuamente excludentes. O espiritismo, mesmo que o neguem alguns de seus
seguidores, não é cristão, apesar de reverenciar o ensinamento de Jesus. É que o fulcro
do cristianismo é a redenção realizada por Cristo em seu sacrifício na cruz. Ela só tem
sentido, no contexto da doutrina cristã, se se aceitar Jesus como o homem-deus. Mas o
espiritismo não atribui divindade a Jesus e nem considera a redenção como algo que
tenha havido. Para ele a purificação e elevação da alma se dá com as seguidas reencar-
nações, ocorrência estritamente negada pela doutrina católica e cristã em geral. Social-
mente, contudo, é comum encontrarmos os católicos-espíritas, que, certamente, não en-
tendem nada nem de uma nem de outra.
O espiritismo não é religião e nem ciência. É um corpo de conhecimentos de
caráter inteiramente doxático, engendrado pelo Allan Kardec, com base em crenças me-
tempsicóticas hinduístas, mesclado com as mensagens dos evangelhos, de modo a for-
mar uma doutrina que pretende dar uma explicação para o sentido da realidade, com
base na existência de entidades supranaturais que seriam os espíritos e toda uma lista de
fatos e comportamentos a eles atribuídos. Não há a menor fundamentação científica em
tais doutrinas. E elas, absolutamente, não se abrigam no seio do cristianismo, pois este
encara Jesus Cristo como Deus e homem simultaneamente, sendo sua paixão a realização
do que se denomina “redenção”, que seria uma anistia dada por Deus ao pecado, com a
chance da salvação eterna da alma, resgatada pela imolação de Deus a si mesmo na cruz.
Fantástica história, mas completamente alheia ao espiritismo.
Para o benefício da verdade, acho que a Igreja Católica e as protestantes de-
veriam, como o islamismo, não permitir a representação pictórica de Deus. Senão as pes-
soas ficam pensando que Deus é antropomórfico. Além disso, acho incorreta a noção que
se passa que a pessoa “Pai” de Deus, seja o criador, enquanto a pessoa “Filho” seja o
redentor. Se Deus é único, mesmo tendo tripla personalidade, todas suas pessoas são o
mesmo Deus, portanto o Filho é criador e o Pai e redentor também. Para falar a verdade,
33
SOBRE O ATEÍSMO
se eu acreditasse em Deus, estaria mais propenso a considerá-lo como o “Allah” dos mu-
çulmanos (para não dizer o dos deístas, à moda de Voltaire). Para mim essa questão da
redenção, que é o fulcro do cristianismo, é muito mais complicada do que a criação.
Outra coisa que não se passa para as pessoas é essa do céu e o inferno não
serem lugares. Portanto não há chamas no inferno, pois chamas são gases superaqueci-
dos. E almas não se queimam em chama alguma, pois não são materiais. o sofrimento do
inferno, só pode ser um sofrimento puramente mental, que é a única coisa que uma alma
tem. Aliás, o conceito de alma é justamente o de uma mente, só que consubstanciada em
uma entidade substancial, isto é, que seja feita de “algo”, mesmo que não material. O
monismo fisicalista considera a mente apenas como uma ocorrência que se dá no orga-
nismo (especialmente no cérebro, mas não só). Seria como que uma estrutura em funci-
onamento, algo dinâmico, e, segundo algumas opiniões, holográfico. Mas não substan-
cial (no sentido filosófico e não químico da palavra).
Considero que a doutrina cristã, não importa o quão seja fundamentada em
estudos bíblicos, encíclicas papais ou tratados dos doutores da Igreja, na súmula do seu
conteúdo, é algo simplesmente horroroso. Essa é a palavra: “horroroso”. Vejamos:
O Universo teria sido criado por uma entidade a ele extrínseca, Deus.
Dentro tudo que foi criado, o ser humano reveste-se de especial significância,
por ter sido criado “à imagem e semelhança de Deus”, e, portanto, dotado de mente,
psiquismo, personalidade, inteligência, vontade, sensibilidade e livre arbítrio, atributos
estes sediados em sua “alma”, entidade incorpórea e espiritual que se vincula a cada
pessoa.
Além dos seres humanos, apenas os anjos, espíritos puros, possuem tais atri-
butos. Em virtude deles, Lúcifer e um grupo de liderados seus rebelou-se contra Deus,
sendo condenados à privação da convivência divina e ao sofrimento eterno em certo lu-
gar (ou não lugar) denominado “inferno”.
Aos homens, Deus dedicou toda a criação para que sobre ela reinassem em
harmonia e livres de todo sofrimento e da morte, usufruindo de todas as benesses da
natureza.
Instados por Lúcifer, na forma de uma serpente, o primeiro casal humano de-
sobedeceu a prescrição divina de não comerem o fruto da “árvore da ciência do bem e
do mal”, nisto consistindo o “pecado original”, que foi de desobediência.
Em represália, Deus expulsou-os do paraíso e os condenou a ganhar o sus-
tento com o suor de seu rosto, a sofrer dores de parto e a morrer, sem merecer a beatitude
da contemplação eterna da face de Deus.
Debalde suplicaram os israelitas e seus profetas, em sacrifícios expiatórios de
imolação de ovelhas primogênitas. Deus não se deu por satisfeito, mas prometeu a vinda
de seu filho para redimir a humanidade.
E assim deu-se o nascimento de Jesus, por obra do Espírito Santo, do ventre
de uma virgem. Jesus é o ser híbrido Deus-homem(com corpo e alma humanos, além da
divindade). Trata-se da encarnação da segunda pessoa da Santíssima Trindade (uma vez
que Deus, no judaísmo e no cristianismo, é um ser tri-pessoal, seja lá o que isso for).
Com a imolação de Jesus em sacrifício propiciatório, Deus deu-se por satis-
feito e permitiu que as almas humanas pudessem, após a morte, se tivessem morrido em
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Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
estado de graça, ascendessem ao Céu, onde poderiam eternamente contemplar, em bea-
titude, a face de Deus, inclusive, após o Juízo Final, religadas a seus corpos.
Em que reside a horripilância disso tudo? Em que residem as incoerências
dessa história?
A horripilância está na crueldade extrema de Deus de só se sentir aplacado de
sua ira contra a humanidade com o sacrifício de um homem, que seria sua segunda pes-
soa encarnada, a si mesmo. Será que este ser não seria aquele a quem Deus mais amaria,
pois era, em parte, ele mesmo? Como é cruel e vingativo este “Deus de bondade infinita”!
Afora isso, o que é da onipotência de Deus que permitiu a existência do mal?
Ou ele não tem esse poder, ou se, tem, não deseja impedir, e, logo, não é bom.
Sem considerar que tudo isso só tem sentido se se aceitar o criacionismo es-
trito. A evolução do homem (e dos demais seres vivos) a partir de outras espécies, é in-
compatível com a existência de pecado original e, daí, da necessidade de qualquer re-
denção. Nenhum cristão convicto, católico ou protestante, pode aceitar a evolução como
uma descrição real do surgimento das espécies sem renunciar a crer que Jesus seja algum
redentor.
Não vejo bondade na redenção
Considerando que o mal está na intenção e não na ação de fazer algo que re-
verta em sofrimento, dor, prejuízo ou qualquer dano a outrem (não apenas a outra pes-
soa, mas a qualquer ser), então, certamente que o mal só pode ser obra de seres que pos-
suam consciência, como é o caso do ser humano. Mas, se foi um Deus que criou o Uni-
verso, então ele permitiu que isto pudesse ocorrer. Logo é conivente, pois poderia ter
criado os seres conscientes (humanos ou outros que existam) sem essa capacidade. Con-
clusão: ou não somos obras de Deus ou ele não é bom. Sem considerar a existência do
mal não intencional, produzido pelos cataclismos da natureza e pelas doenças e aciden-
tes, por exemplo.
Não considero como uma bondade Deus ter feito Jesus (acho muito esquisito
chamar Jesus de filho de Deus, já que ele era o próprio Deus) ser sacrificado para redimir
os pecados da humanidade. Bondade seria Deus perdoar os pecados simplesmente. Por
que a necessidade desse sacrifício expiatório? Isto revela uma crueldade por parte de
Deus.
O esclarecimento sobre o fato do céu e do inferno não serem lugares foi exce-
lente e, de fato, eu tinha esta noção errônea. Mesmo considerando, como considero, que
espíritos não existem, imagino que, se existissem (pode ser até que existam) não seriam
entidades físicas, logo, não possuiriam atributos físicos, como extensão, volume, locali-
zação, massa, carga elétrica, cor, sabor, textura, estrutura etc. No entanto, possuiriam
mente, memória, sensibilidade, percepção, inteligência, vontade e outros atributos psí-
quicos. O que não vejo é como seria uma possível interação entre algum espírito e o
mundo físico. Assim eles não poderiam “ver”, nem “ouvir” ou nada que dependesse de
sensores físicos para ocorrências físicas, como são a luz e o som. Só poderiam perceber
pensamentos, que teriam a mesma natureza. Aliás, esta é a parte que me faz rejeitar a
explicação dualista da mente.
Muitos cristãos consideram que a ressurreição do Cristo seja o evento magno
de sua doutrina. Não é. A ressurreição foi uma encenação publicitária, para conceder
35
SOBRE O ATEÍSMO
verossimilhança a toda a história da encarnação e da redenção na pessoa do Cristo.
Tendo ressuscitado ele provou ser, de fato, Deus e, portanto, capaz de redimir a huma-
nidade por seu sacrifício na cruz. Os sacrifícios propiciatórios anteriores não teriam sido
suficientes para aplacar a ira de Deus, que só se contentou com o sacrifício de si a si
mesmo. É curioso como o judaísmo e o cristianismo, concebendo a existência de três pes-
soas em Deus, de fato, são religiões politeístas (no caso, triteístas), restando apenas o islã
como monoteísta.
Fé, esperança e caridade são as virtudes teologais da doutrina cristã. Mas que
significado possuem de um ponto de vista externo às religiões, de um ateu como eu, que
considera as religiões sob uma ótica apenas antropológica? Vejamos.
A fé é a aceitação, sem comprovação, de assertivas que se apresentam como
verdades por terem sido reveladas pela própria divindade. No caso cristão, o ponto dis-
tintivo é a aceitação da morte de Jesus Cristo como a redenção, por seu sacrifício expia-
tório, de Deus a si mesmo, que liberou o acesso das almas dos que morreram em estado
de graça à gloria eterna da contemplação de Deus no paraíso. Outras doutrinas religiosas
fazem outras considerações e as propõem como verdades da fé. Para judeus, muçulma-
nos, hinduístas, budistas, espíritas e todas as demais, Jesus não foi o redentor, nem se-
quer Deus. Algumas consideram que Deus é unipessoal e não tripessoal, como o cristia-
nismo. Algumas admitem vários deuses, outras nenhum. E todas elas possuem crentes
sinceros, fiéis e piedosos, que levam a vida em santidade, segundo os preceitos de cada
uma. Se a fé fosse alguma coisa válida como critério de verdade, teríamos várias verda-
des diferentes em vigor, o que é contraditório, pois a verdade tem que ser única. Como
decidir qual delas é a verdade verdadeira? Certamente que não pela fé. Então a fé não é
algo que possua algum valor. De fato, a crença em qualquer coisa não a valida, em abso-
luto. E a esperança?
A esperança está ligada à fé, no sentido que ter esperança é confiar que o que
se deseja será atendido pela divindade. Se não se pode saber se há ou não alguma divin-
dade ou se ela é sensível às súplicas dos que oram ou indiferente, então, ter esperança é
algo inteiramente inócuo, no sentido se ter uma confiança de que acontecerá. O máximo
que se pode é desejar que ocorra e torcer para tal.
Mas a caridade é inteiramente diferente. A caridade é uma virtude humana,
que independe da existência ou não de Deus. Todas as religiões pregam a caridade e o
humanismo naturista também. Porque amarmos uns aos outros é essencial.
Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
Como se interpretaria esta frase, atribuída a Jesus? De início, supondo que ele
fosse, de fato, Deus encarnado. Então, o que ele está dizendo é que ele é o caminho, mas
caminho para onde? Pelo que entendo, para a salvação. Isto é, seguindo suas instruções,
a pessoa seria salva. Mas o que é ser salva? Na exegese cristã é a alma não ir para o
inferno, após a morte. Ao dizer que ele é a verdade ele estaria dizendo que o que ele diz
é a verdade a respeito da realidade do homem e do Universo, e, especialmente, de seu
próprio papel. E que papel é esse? Ser imolado em sacrifício expiatório para aplacar a ira
de Deus pelo pecado original, de modo a que Deus, então, satisfeito, permitisse às almas
que o contemplassem no céu. Ao dizer que é a vida, ele estaria dizendo que, só por sua
intercessão, com seu sacrifício, e, logo, só crendo na sua história, a pessoa teria a vida
36
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
eterna em beatitude, no céu. Caso não creia nele, estaria danada, ou seja, condenada ao
sofrimento eterno no inferno. É isto o que eu entendo, e se não for, por favor, corrijam-
me.
Muito bem. Por tudo o que consigo compreender, isso é um grandessíssimo
engano. Ou Jesus nem existiu e atribuíram a um personagem fictício tudo o que ele diz
nos evangelhos, ou, se existiu, era um lunático convencido de que era Deus, ou era um
líder religioso comum que foi endeusado por seus seguidores ou, na pior das hipóteses,
um charlatão, tipo Edir Macedo. Não tenho bases para optar por nenhuma dessas quatro
opções, mas rejeito a quinta, de que, de fato, era Deus encarnado.
O ideal de santidade habita comigo desde a juventude e, mesmo tendo per-
dido a fé, continuo a persegui-lo. Vejo um sentido na vida, mesmo que não exista Deus.
Ele está na doação de cada um ao próximo para que se construa um mundo bom e fra-
terno, justo e honesto, livre e verdadeiro, independentemente de qualquer recompensa
ou punição eternas. E, sem Deus, a responsabilidade pela erradicação do mal e o preva-
lecimento do bem torna-se inescapável. Tenho um apreço muito especial pelos ensina-
mentos da vida do “poverello di Assisi”, desde que li, pela primeira vez, há quarenta
anos, “I Fioretti”. Considero-o da estatura moral do próprio Cristo e da Buda. E, mesmo
não sendo cristão, miro-me na pessoa de Jesus como modelo de homem a ser imitado.
Todavia tenho sérias objeções a fazer aos dogmas básicos da doutrina cristã, que são a
existência, unicidade e trindade de Deus, a encarnação e redenção do Cristo e, no caso
do catolicismo, a presença viva na eucaristia e a mediação de Maria. Tenho discutido
muito sobre isto. No entanto, não tenho encontrado quem possua argumentação sufici-
entemente convincente para que eu possa rever minha opinião. Nutro um desejo sincero
de que eu esteja errado, mas as evidências e toda a lógica me convencem de que estou
certo. Gostaria de travar com alguém um debate como o fizeram Umberto Eco e o Car-
deal Martini, ou Bertrand Russell e o Padre Copleston. Mas, acompanhando os francis-
canos Duns Scotus e Guilherme de Ockham, de modo diferente do dominicano São To-
más, vejo que a razão não pode justificar a fé, e fico, não como os dois, mas com a razão.
No sentido de propiciar a maximização da felicidade, pode até ser que a
crença em algum poder superior leve a pessoa a uma paz e tranquilidade que, como um
entorpecente, lhe anestesie a razão e tire suas preocupações com o significado da vida,
sua razão e seu propósito. No entanto, isso se dá às custas de viver iludido. E quando se
percebe esse fato, a desilusão é uma grande fonte de infelicidade. Assim, acho preferível
se encarar de frente a realidade de que não existe Deus nenhum, não temos alma eterna
que vá sobreviver à morte do nosso corpo, e, logo, a morte biológica do organismo é a
extinção total da consciência de modo irreversível, isto é, não mais existimos depois da
morte. Também é bom se ter claro que nossa existência não tem razão de ser e nem pro-
pósito algum. Existimos por acaso e para nada.
Mas temos uma consciência, fruto da evolução biológica, devido à complexi-
dade de nosso sistema nervoso. E ela nos pede uma razão para se viver. Que cada um
procure a sua para apascentar sua consciência. Os valores morais, o bem, a bondade, a
justiça, a verdade e a beleza não são valores privativos de religião nenhuma (não quero
me restringir ao cristianismo), mas sim estoque comum da humanidade e não só podem
como devem ser tomados como objetivos de vida, que a gratificam e concedem a quem
37
SOBRE O ATEÍSMO
os pratica a fortuna de gozar de uma felicidade plena, advinda da certeza de se estar
agindo em conformidade com tudo o que faça aumentar o bem coletivo e a felicidade de
todos. A responsabilidade do ateu em fazer prevalecer o bem e erradicar o mal é maior
que a de qualquer crente, pois ele sabe que não há poder maior algum que fará alguma
justiça, que só pelas próprias mãos dos homens pode ser feita. Assim, quem levar sua
vida pelos parâmetros da virtude e do bem, sem confiar em poder sobrenatural algum,
será uma pessoa feliz e realizada por saber que sua existência fez diferença para o bem
deste mundo.
Metafísica existe e tem sentido sim. Só que não é nada a respeito de sobrena-
tural, isto é, de espíritos. É o estudo de natureza da realidade, de sua categorização, da
conceituação das coisas que intervém no fluxo de ocorrências e, principalmente, da in-
vestigação da relação que esses conceitos guardam entre si. Nesse sentido é que digo que
a Metafísica não é meramente um exercício gramatical, nem tampouco objeto puramente
especulativo, mas também uma investigação fenomenológica (daí a palavra “verifica-
tiva”) sobre o comportamento relacional daquilo que ela conceitua. Assim a Metafísica
(e toda a Filosofia) não se afasta metodologicamente tanto das ciências específicas, mas
delas se diferencia pelo objeto de seu estudo.
Para mim está bem claro que Metafísica não trata do sobrenatural (que, aliás,
não existe) mas sim dos aspectos não físicos da realidade, isto é, das abstrações, dos con-
ceitos, das ideias e das relações que essas entidades guardam entre si e com as entidades
do mundo físico (natural). Assim, são problemas metafísicos a investigação da natureza
da realidade, a relação entre as ideias e o mundo sensível, a relação de causa e efeito, a
razão e o propósito do mundo, a existência ou não de deuses e espíritos, a natureza da
vida, o motivo e o propósito da existência. Dentro da Metafísica, um lugar central é ocu-
pado pela Ontologia, que trata da categorização das coisas, de suas propriedades e da
relação entre elas. Alguns filósofos, inclusive, consideram que a Filosofia se resume em
construir conceitos. Mas há que se investigar. também, a relação entre eles, que não é
uma construção mental, mas depreendida da realidade objetiva.
A analogia entre a explicação para o surgimento da vida de forma química ou
pela intervenção de Deus com a da origem da bola de borracha na praia, não é apropri-
ada. A questão não é ser mais ou menos provável, pois, como já disse antes, não importa
o quão improvável seja, se não for impossível, pode acontecer. A questão é qual tem
alguma plausibilidade. Digo que a criação por Deus é algo de extrema implausibilidade.
Primeiro porque a própria existência de Deus não é plausível, segundo porque, mesmo
que exista, a intervenção mágica de Deus na natureza para fazer algo à revelia do com-
portamento dela é de aceitação muito mais difícil do que a ocorrência de uma série de
acasos e coincidências que tenham possibilitado o surgimento da vida. Se tudo só pode-
ria ter ocorrido caso as condições elencadas tivessem se dado e se a vida existe, porque
não considerar que, realmente, foi o que houve? Por que inventar um ser extranatural
para fazer isto? E se há tal tipo de ser, achar uma explicação para o modo como ele inter-
vém na natureza é muito mais difícil do que considerar que tudo tenha se dado natural-
mente, por mais improvável que seja. A concepção ateísta do mundo é muito mais plau-
sível que a teísta, ou mesmo a deísta e a panteísta. Não estou falando sobre a concepção
cristã, nem a islâmica, a judaica, a espírita, a hinduísta, a zoroastrista, a budista ou
38
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
qualquer outra. Estou falando simplesmente sobre a concepção de que exista algum
Deus, quaisquer atributos que tenha, desde que seja um ser sobrenatural onipotente
(nem precisa ser justo e bom). Veja-se que, pessoalmente, acho que seria ótimo se Deus
existisse e tivéssemos uma alma imortal, de modo que nossos atos pudessem ser punidos
ou premiados na vida que esta alma fosse ter após a morte do corpo que a suporta. Entre
desejar e isso ser verdade, porém, vai uma enorme distância.
Sempre se diz que os quatro bilhões de anos de existência do planeta Terra
seriam insuficientes para que o acaso pudesse construir um ser com a complexidade do
humano (ou mesmo uma bactéria). Não é verdade. Se considerarmos a probabilidade de
um arranjo aleatório de átomos de carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio e os outros
elementos constituintes do corpo humano se agregarem na disposição específica que
constitui nosso corpo é certo que sim. Mas não é este o cálculo que tem que ser feito.
Primeiro é preciso calcular a probabilidade de se formar um aminoácido. Então, forma-
dos que sejam os aminoácidos, considerando-se cada um como a unidade, calcula-se a
probabilidade de se formarem proteínas e moléculas replicantes (DNA e RNA). A partir
desses tijolos, calcula-se a probabilidade de se formarem estruturas num grau mais ele-
vado de complexidade, como vírus, e assim vão se agregando umas com as outras e ele-
vando-se a complexidade gradativamente. Vê-se, então, que a probabilidade se torna
muito maior do que a reunião direta dos elementos básicos. Por exemplo: Consideremos
as 24 letras do alfabeto. A probabilidade de que elas se reúnam por acaso para formar
um texto de 2000 letras é de (1/24)^2000 = 3,78E-2761. No entanto, para formar palavras
de 10 letras é de (1/24)^10 = 1,58E-14. Se considerarmos a existência de 500.000 palavras
na língua e 200 no tal texto, a probabilidade das palavras se reunirem por acaso no texto
é de (1/500.000)^200 = 1,61E-1140. Multiplicando essas duas, temos: 2,53E-1154, que é
uma probabilidade 6,70E1606 vezes maior que a anterior. Se fizermos o cálculo passando
pela etapa intermediária das sílabas então o resultado se torna maior ainda. Levando isto
para a formação de organismos pode-se ver que o tempo de alguns poucos bilhões de
anos é suficiente.
A ciência não precisa e nem pretende explicar “quem criou” o Universo, sim-
plesmente porque não existe esse “quem” e nem o Universo foi “criado”. A ciência busca
saber “como” o Universo surgiu. Inclusive a questão “porque” o Universo surgiu, isto é,
porque existe algo ao invés de nada, não é objeto da ciência e nem é pertinente, pois não
existe razão alguma para isto. Ou seja, a pergunta não tem resposta. É uma estreita visão
antropocêntrica essa de atribuir a uma pessoa, isto é, a um ser dotado de inteligência,
vontade e poder, a causa das ocorrências naturais. Mesmo quando existe alguma causa,
ela não precisa ser atribuída à vontade de ninguém, mas apenas à própria natureza, que
não é pessoa e nem tem inteligência nem vontade. No entanto, muitas vezes, o evento
não tem causa nenhuma: é fortuito. Assim é o evento do surgimento do Universo, como
muitos outros.
Por que ser ateu?
Porque é mais honesto, mais verdadeiro, mais coerente, mais responsável,
mais racional, mais evidente, mais justo, mais simples, mais honrado, mais lúcido, mais
inteligente, mais consciente, mais caridoso, mais comprometido com o prevalecimento
do bem e a erradicação do mal, sem outorgar isto a nenhum hipotético preposto.
39
SOBRE O ATEÍSMO
Dizer que algo é verdadeiro porque está escrito na Bíblia não tem fundamento
algum. Se a Bíblia fosse a palavra de Deus não haveria discrepâncias entre as diferentes
versões de copistas, pois Deus teria preservado sua palavra. Leiam o livro “O que Jesus
disse? O que Jesus não disse?” de Bart Ehrman. Dizer que a fé é mais relevante do que o
conhecimento filosófico ou científico também é falso. A fé é algo inteiramente descabido.
Não há modo nenhum de garantir a veracidade de suas assertivas, tanto que existem
muitas “fés” que pregam verdades conflitantes. Se fé for critério de verdade, como há
pessoas de fé em todas essas correntes (judaísmo, hinduísmo, budismo, zoroastrismo,
catolicismo, islamismo, protestantismo, espiritismo etc.), todas teriam que ser verdadei-
ras, o que não é coerente, pois a verdade, por definição, é única. Com qual delas está a
verdade? Como decidir? É claro que não pode ser pela fé, pois assim cada um decidiria
pela sua e ficaria tudo na mesma de novo. A escolha só pode ser pela razão, com os
instrumentos da ciência e as elucubrações da filosofia.
As analogias e comparações, as estórias e os poemas são, de fato, belíssimos e
comoventes em muitos casos. Eu também aprecio, escrevo poesias, narro histórias, pinto
telas, faço músicas, toco piano e canto. Mas sei que são obras de ficção. Podem corres-
ponder a fatos e coisas reais, mas não têm compromisso com isso. A história, a ciência e
a filosofia, por outro lado, têm um compromisso com a realidade. Sua assertivas devem
ser verdadeiras, isto é, consoantes com a realidade. Mas não a arte. Criar belas imagens
e tocantes narrativas tem valor como realização estética e não histórica, filosófica ou ci-
entífica. A Bíblia não é um livro desprezível, pois seu conteúdo retrata estórias de pes-
soas que, ao longo da história, buscaram a verdade de boa-fé. Mas não garante que a
encontraram. Rubem Alves, assim, é um poeta, como o Rei David e o autor do “Cântico
dos Cânticos”. A poesia não tem compromisso com a verdade. Isto não reduz o seu valor,
mas o coloca na perspectiva correta. Já os Evangelhos, os livros dos Profetas, o Gênesis,
o Livro dos Reis e os outros livros históricos da Bíblia deveriam ter e assim se propõem.
Mas não indicam as fontes onde conferir sua veracidade. Veja este texto:
“Os poetas sabem que tudo começa com a Palavra. Antes da Poesia, o que
havia era um abismo escuro e só se ouvia o ruído das águas do mar sem fim agitado por
um vento furioso. Tudo era sem forma e vazio. Não havia beleza, não havia música e
nem estórias….”
É lindo, mas inteiramente desprovido de sentido. Como poderia haver mar e
vento no vazio?
Muita gente tem uma noção errada do que seja uma “Teoria”. Não se trata de
uma conjectura. Isso é chamado de “Hipótese”. As teorias são sistemas explicativos da
realidade que abarcam uma abrangência de fatos correlatos sob um mesmo modelo teó-
rico, que tenha sido aprovado em extensa bateria de testes comprobatórios. Isto é, que
suas predições se confirmem em grande extensão, dentro do limite de aplicabilidade de
seus pressupostos. Assim é a Teoria Atômica da Matéria, a Teoria da Relatividade, a
Mecânica Quântica, a Genética, a Teoria da Evolução, a Termodinâmica, a Teoria Eletro-
magnética, a Cromodinâmica Quântica, a Teoria do Big Bang e muitas outras. A ciência,
contudo, nunca pretende ter a explicação definitiva. Suas teorias estão sempre sujeitas a
revisão, face a novas descobertas. Assim é que se aprimora o conhecimento. Algumas
explicações encontram-se, ainda, em fase de elaboração, como é o caso da,
40
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
impropriamente denominada, “Teoria M”, que engloba as p-branas e as super-cordas. A
Teoria da Evolução, contudo, já é uma explicação solidamente estabelecida. Mas não é
sobre a origem da vida e sim sobre o surgimento de espécies a partir de outras. Do
mesmo modo, a teoria do Big Bang não é sobre a origem do Universo, mas sobre sua
evolução, logo tenha surgido. A biogênese e a cosmogênese ainda não possuem uma
teoria firmemente estabelecida. De modo que a hipótese de que tenham se dado por in-
terveniência divina não é descartada. Todavia ela encontra sérias dificuldades em ser
admitida, sem o concurso da fé, que, como disse, é algo inadmissível. O problema está
em se explicar o processo de estabelecimento da relação causal entre algo de natureza
não física e algo físico. Se isto não for obtido, de forma testável, então não se conseguiu,
de fato, uma explicação.
Não se trata de “crer” no que diz a ciência ou a filosofia, mas sim em “saber”
se tais ditos são verdades ou não. Por isto a ciência e a filosofia divulgam as fontes de
suas conclusões, isto é, como se chegou a tal explicação, para que todos possam refazer
os experimentos ou raciocínios e também tirar a mesma conclusão. Quando se tratar de
mera opinião, isto é colocado bem claro. Não é o que se dá nas doutrinas religiosas. Suas
proposições são postas como verdades reveladas, sem pistas dos métodos de verificação.
Assim só podem ser aceitas com base na “fé”. É claro que todos os escritos científicos e
filosóficos não são inspirados pelo Espírito Santo. Mas as ditas “Sagradas Escrituras”
também não. São fruto da “opinião” de seus autores, que até poderiam crer que fossem
inspirados por Deus. Sabe por quê? Porque não existe Espírito Santo nenhum. Se exis-
tisse ele teria inspirado textos inteiramente contraditórios, como o são as escrituras das
diferentes religiões, que possuem milhões de crentes sinceros. Se a fé bastasse para ga-
rantir a veracidade delas, todas seriam verdadeiras, apesar de se contradizerem. Logo
não podem o ser.
Quanto ao inferno, como o céu (dos bem-aventurados, não o astronômico), é
claro que são meras quimeras. Quem morre acaba definitivamente. Seu “eu” desaparece.
É como um sono profundo e inconsciente (ou uma anestesia) de que não se desperta
nunca mais. É uma pena que assim o seja, pois, o fato de uma pessoa do mal não ser
punida, se se safar de tudo, é muito frustrante. Mas é a verdade, infelizmente. A socie-
dade é que tem que zelar pela punição do mal. Essa responsabilidade é nossa e não de
um pretenso Deus.
Não existe “Lei da Causalidade”. Causa é um evento cuja ocorrência provo-
que a ocorrência de outro, denominado seu “efeito”. A causa precede temporalmente o
efeito. O que acontece é que nem todo evento é um efeito. Isto se chama “incausalidade”
e é o mais comum, no domínio microscópico da natureza. No nível acessível diretamente
à observação humana, os eventos experimentados pelos sistemas complexos exibem uma
relação de causa e efeito. Daí se induz que tal fato seja uma necessidade universal, isto é,
que todo evento seja efeito de alguma causa. Como toda indução, sua validade não é
garantida e um único contraexemplo a derruba. Ora, isso é o que ocorre a todo momento
no nível subatômico, como no decaimento radioativo e na emissão de fótons por átomos
excitados (a excitação é condição e não causa da emissão). Logo tal lei não prevalece,
sendo apenas um comportamento particular de alguns eventos (mesmo que fossem a
maioria, mas não são).
41
SOBRE O ATEÍSMO
Note-se, contudo, que causa e efeito são eventos e não seres. Um ser não pos-
sui causa. O que poderia possuir causa seria o evento de sua passagem da inexistência
para a existência. Isto não é obrigatório, mas, mesmo que o fosse, não tem significado
dizer que algo menor possa ou não ser causa de algo maior. Que “tamanho” é este que
algo possuiria? Pelo que entendo, não há nada que possa ser maior do que o Universo,
pois ele é o conjunto de tudo. E não pode haver nada menor do que coisa alguma, que se
chama de “nada”, desde que se entenda que “nada” não é algo que exista, isto é, não é
ser, tampouco ente. Contudo, mesmo que o Universo tenha surgido sem que houvesse
algo que o precedesse, não se pode dizer que tenha sido causado pelo “nada” e sim que
seu surgimento não tenha tido causa.
Considerar, e não “crer”, que Deus não exista não é algo religioso. O ateu não
professa religião alguma. É preciso entender que uma religião é um complexo constitu-
ído de uma crença, uma doutrina, uma comunidade, uma entidade, uma liturgia, uma
cosmovisão, edificações, leis, organização, pessoal etc. É o que se denomina uma “repre-
sentação social”, como um partido político, um clube de futebol e assim por diante. Um
ateu não participa de nada disso. Nem tampouco possui uma crença a respeito de enti-
dades sobrenaturais. De fato, ele possui uma descrença. Note que não crer que Deus
exista é diferente de crer que Deus não exista. Pode haver quem creia que Deus não
exista. Não é o meu caso nem dos ateístas céticos. Nós não cremos que Deus exista, isto
é, não temos crença alguma a respeito. Consideramos que assim o é em face dos fortes
indícios de que assim o seja e da completa falta de evidências e comprovações de que
assim não o seja, isto é, de que Deus exista.
A consideração de que o Universo tenha surgido sem ter sido criado não é
subjetiva. Para começar, o Big Bang não foi uma explosão, mas um inchamento do es-
paço, inicialmente bem rápido. Depois, não se trata de uma hipótese, mas de uma teoria,
confirmada por muitas evidências, diretas e indiretas. O surgimento do conteúdo que
começou a expandir, ou sua pré-existência, é que ainda não possui explicação. Isso não
significa que ela não exista, mas que não foi encontrada. Também não implica que se
deva tributar tal fato à interveniência de uma divindade. Pode ser que o seja, mas isso é
uma questão de verificação e não de crença. Crenças podem ser admitidas desde que
plausíveis e, mesmo assim, sempre provisoriamente, até que explicações comprovadas
por evidência ou racionalmente as substituam. Mas a fé, que é uma crença sem indícios
de plausibilidade, não tem cabimento.
Certamente que tudo o que existe é real, pois real, por definição, é aquilo que
existe. O que pode é não ser natural, pois nem tudo que existe ou possa existir é natural.
O que pode existir, mas não existe não é real. Espíritos (incluindo Deus) pode ser que
existam. Se existirem são reais, mesmo que não naturais. Além dos hipotéticos espíritos,
outras categorias podem ser reais, sem serem naturais, como os conceitos, ideias, os nú-
meros, as figuras geométricas, os valores, as normas, as estruturas e fatos mentais e so-
ciais, e, possivelmente, outras. Certas concepções, contudo, são impossíveis, até mesmo
de se fazer uma ideia, como um círculo quadrado.
Nem todo conhecimento é científico, decerto, mas crença não é conhecimento,
pois conhecer é saber com garantia. Crenças podem ser aceitas na estrutura do conheci-
mento num caráter provisório, caso sejam plausíveis. Mas devem ser rejeitadas, caso se
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Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
mostrem em desacordo com fatos. Tal não se dá com a fé, que, ao ser rejeitada, coloca a
pessoa fora do conjunto dos fiéis àquela fé. Note-se que ter alguma fé ou mesmo uma
vivência espiritualista, não implica em ser religioso, pois, para tal, não bastam as convic-
ções de foro íntimo, mas a adesão a uma complexa representação social.
Pode ser que existam seres e ocorrências espirituais, não passíveis de detecção
física, mas alguma forma de detecção há que se ter, ou algo detectável que seja impossí-
vel explicar, exceto com a hipótese da existência de Deus ou de espíritos. Caso contrário,
tal existência é meramente uma especulação gratuita, como se dá com Universos Parale-
los. Em minha opinião é exatamente o que ocorre com Deus e espíritos.
Como não há nada que exija sua existência para ser explicado, como não são
evidentes e nem logicamente necessários, mesmo que possam existir (e, até, para mim,
que seria bom que existissem) a atitude mais correta é supor sua inexistência.
O que a ciência busca são explicações para estruturas e fenômenos, certamente
daquilo que existe e evolve. A existência de algo não implica em que tenha sido criado,
mas que tenha surgido ou sempre existido. Pode ter sido criado ou surgido ao acaso.
Além do mais, as coisas não são imutáveis, mas estão sendo, a cada momento, de modo
diferente. A essência de um ser não é o que ele é de forma perene, mas o que está sendo
em cada momento. Portanto nada continua no mesmo lugar e do mesmo modo, tudo
está sempre mudando. Os homens são homens por enquanto. Antes não eram e no fu-
turo não serão mais. Há 500 mil anos atrás não havia homens e daqui a alguns milhões
não haverá mais. Mas haverá os transumanos que nos sucederão. E os animais e vegetais
hoje existentes serão outros, como muitos de outrora não existem mais. Alguns poderão
até adquirir inteligência e consciência comparáveis à humana atual. Cosmologicamente
falando, galáxias se desfarão, estrelas deixarão de existir e novas se formarão. Outras
Terras poderão surgir, nas quais poderão aparecer outras humanidades ou algo similar.
Quanto à descrição bíblica da criação, mesmo que se admita que um Deus a
tenha feito, certamente que é um mito, uma lenda, uma ficção ingênua, uma compilação
de crenças ancestrais dos povos primitivos da Caldéia e da Suméria, que deve ter evolu-
ído de mitos mais primitivos ainda, gestados pelo homem em seu berço africano. Claro
que, àquela época, não seria de esperar nenhuma explicação com base em evidências,
como são as que se tem hoje. Mesmo quem creia em Deus não pode negar tais evidências,
se se debruçar sobre seu estudo em profundidade. A cosmogênese e a biogênese, tais
como são descritas pela física e a biologia modernas, não são conjecturas vazias, mas
decorrem de um modelamento descritivo calcado em sólidos indícios e evidências.
O homem atual é tal qual é apenas de uns trezentos mil anos para cá. Antes
não era assim e futuramente não o será. Mesmo num tempo menor, muitas variações têm
aparecido, como as mudanças étnicas que deram surgimento às variedades de pele ne-
gra, branca, vermelha, parda e amarela, com outras características distintivas, como
olhos puxados, cabelo liso ou crespo, nariz fino ou largo etc. Os homens primitivos eram
todos negros. Isso ainda não é uma especiação, mas é uma variação evolutiva surgida há
meras poucas dezenas de milhares de anos. A redução do tamanho da mandíbula, que
provoca a necessidade da extração dos dentes de siso é outra variação evolutiva mo-
derna, como se deu antes com a diminuição da proeminência superciliar, a elevação da
fronte, o recuo da boca, o surgimento do queixo, o encurtamento dos braços, o
43
SOBRE O ATEÍSMO
deslocamento para frente do polegar do pé, possibilitando a locomoção rápida, a exacer-
bação das nádegas, para possibilitar o equilíbrio na postura ereta e assim por diante. Tais
mudanças podem ser gradativamente observadas nos fósseis dos elos intermediários
evolutivos da espécie humana.
Na descrição da criação pelo Gênesis há muitas incoerências, além de incor-
reções.
Para começar Deus criou a Terra antes do Sol. Ora, a Terra se formou a partir
da matéria do Sol.
Depois Deus criou a luz antes das estrelas. Ora toda luz que existe vem de
estrelas. No caso da luz que ilumina a Terra, desta estrela bem próxima que é o Sol.
Ao criar a Terra, fê-la com águas, antes de criar a terra firme. Ora, a água exis-
tente na Terra proveio do seu material ígneo, na forma gasosa, que, esfriando na alta
atmosfera provocou chuvas que, ao tocarem o solo ígneo o foram esfriando, vapori-
zando-se, resfriando-se e precipitando-se novamente ao longo de centenas de milhões
de anos até que a crosta esfriada possibilitasse à agua ficar liquida sobre ela e se acumu-
lasse nas depressões, formando os oceanos, que são posteriores à crosta sólida.
Deus criou as plantas antes dos animais e os terrestres antes dos marinhos.
Ora, os animais surgiram nos oceanos muito antes de que as terras tivessem qualquer
ser vivo. E os vegetais são posteriores aos animais, mesmo os terrestres.
Além disso tudo, a cronologia está completamente equivocada. Os registros
fósseis, os estratos geológicos dos sedimentos e a datação radioativa das rochas mostram
cabalmente que o surgimento do homem, há uns 300 mil anos atrás, se deu alguns bilhões
de anos após o surgimento da Terra e centenas de milhões depois do surgimento da vida.
E o Sol surgiu, pelo menos, um bilhão e meio de anos antes da Terra. Dizer que os dias
do Gênesis não são de 24 horas não convence, pois nele mesmo se diz que esses dias são
os dias em que o Sol e a Lua permutam de papel como governadores dos períodos de
tempo, isto é, trata-se dos dias que consideramos como tais atualmente.
Achar que o surgimento do mundo se deu “ipsis litteris” como descreve a
Bíblia, mesmo que se creia em Deus, é algo totalmente fora de propósito.
Certamente que o surgimento do Universo não se deu em consonância com
as leis que ora prevalecem, pois elas nem existiam. Isso também não implica, por ne-
nhuma consideração empírica ou racional, que tenha que ter sido criado por algum
agente extrínseco a ele (sobrenatural) e não que tenha surgido espontaneamente. A su-
posição de que tenha havido a interveniência de um poder sobrenatural que tenha feito
surgir (criado) o conteúdo substancial do Universo (campo, matéria e radiação), bem
como o espaço-tempo sem que houvesse coisa alguma da qual tais entidades tenham
provido é extremamente mais difícil de ser aceito por qualquer consideração lógica do
que a de que tudo tenha surgido sem agente provocador nenhum. Porque, neste caso,
não é preciso explicar nenhum mecanismo de ação causal entre algo não natural e a na-
tureza, já que a ausência de tudo (o “nada”) não exige e nem proíbe coisa alguma, per-
mitindo, assim, o surgimento incausado de qualquer coisa, inclusive tudo. Já a hipótese
da criação gera a dificuldade de considerar que algo pré-existente, mas não pertencente
ao Universo, isto é, Deus, tenha provocado o seu surgimento, que teria tido uma causa
não natural. A ação de algo extranatural sobre algo natural é extremamente mais
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Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
inadmissível do que a incausalidade, já que a improcedência substancial do Universo se
daria de qualquer forma (a não ser que se considere que o conteúdo do Universo seja o
próprio Deus – caso do panteísmo).
Existindo, não importa como tenha surgido, um conteúdo substancial no Uni-
verso (campo, radiação e matéria), bem como uma arena para os fenômenos por eles
apresentados (o espaço-tempo) observa-se que um tipo especial de organização se mani-
festa: a vida. As evidências empíricas mostram que a vida, naturalmente (artificialmente
ainda não foi produzida, mas poderá ser), se forma a partir de outra vida que lhe precede
(inclusive considerando que a evolução das espécies ocorra pela própria natureza). Um
ser vivo, “vivo” é um conjunto de átomos, de certa forma organizado e “funcionando”.
A partida de tal funcionamento é dada pelo ser vivo do qual este originou-se. Admitido
o fato de que todo ser vivo proveio de outro numa cadeia evolutiva, surge a questão de
como originou-se o primeiro deles, pois que não existem desde a formação do Universo.
Duas hipóteses se apresentam: a primeira vida originou-se de alguma estrutura não viva
de forma espontânea ou foi provocada por uma interveniência extrínseca ao Universo,
no caso, Deus (estou descartando, por absoluta improcedência, a consideração de que
cada espécie tenha sido criada independentemente pelo Deus). Novamente se apresenta
a problemática de como poderia se dar uma relação causal entre algo não natural e algo
natural, que considero insuperável. Mas não a possibilidade de que as primeiras molé-
culas replicantes tenham se formado de forma aleatória, o que não contradiz a inexistên-
cia de geração espontânea, pois esta se aplica aos seres já desenvolvidos.
Mesmo que se considere que pudesse haver uma interveniência sobrenatural
no processo, nada indica que ela seria proveniente de uma entidade “pessoal”, nem
“única”, além de tal possibilidade não implicar em nenhuma das propriedades atribuí-
das ao Deus judaico-cristão-muçulmano, como justiça e bondade.
Existem dois conceitos de consciência, que, infelizmente, em português, são
designados pela mesma palavra (mas não em inglês, por exemplo). O primeiro é a cons-
ciência psíquica que é a capacidade do ser reconhecer-se a si mesmo como distinto do
mundo e o segundo é a consciência ética, que é a capacidade de discernir entre o bem e
o mal. O ser humano possui as duas. Certamente alguns animais superiores possuem a
primeira e já se cogita que outros também possuam a segunda. Bem e mal são conceitos
inteiramente independentes da existência de Deus ou de alguma lei divina que os esta-
beleça. Aliás, as leis naturais e sociais não são prescrições ou normas, mas descrições de
comportamentos. O ser humano tem a percepção do que lhe seja benfazejo ou maléfico,
pela satisfação, alegria, prazer e felicidade que propicia, ao invés de prejuízo, incômodo,
dor e tristeza. Como é racional, induz que provocar as primeiras impressões seja algo
bom enquanto as segundas, algo mau. Daí a noção natural da ética. A moral é um sistema
de normas que procura (mas nem sempre) nortear as ações para que sejam eticamente
boas. Assim o são os dez mandamentos, mas bastaria um: “Não provocarás infelici-
dade”. Não há nada nesse comportamento que implique em supor a existência de Deus.
Por outro lado, agir em conformidade com os preceitos morais para ser pre-
miado pela salvação ou para evitar a danação eternas revela mesquinhez de caráter. O
bem tem que ser praticado e o mal execrado por si mesmos, independentemente das
consequências que suas práticas acarretem para a pessoa.
45
SOBRE O ATEÍSMO
A noção de que a natureza é bela e o Universo ordenado é falsa. Singular-
mente há um prevalecimento da ordem e da beleza na região em que nos encontramos e
na escala de dimensões espaciais e durações temporais a que temos acesso. Todavia no
macro e no microcosmo, bem como na mini e na micro biosfera, domina uma situação
extremamente belicosa e caótica, verdadeiramente horripilante. Germes e anticorpos
permanecem numa infindável batalha, muitas vezes vencida pelos primeiros, redun-
dando em doenças, que, por si só, mostram a imperfeição da natureza. Nos núcleos das
galáxias a situação é de uma terrível predação de massas umas pelas outras, sem o esta-
belecimento de nenhum padrão de ordem. Isso acontece também no cinturão de asteroi-
des. Mesmo num nível mais próximo do humano, nos oceanos e nas selvas, presas e
predadores vivem em contínuo embate. Entre os insetos é o mesmo que se dá.
A poesia da natureza e a beleza que se pode ver em muitas coisas são patentes
e motivo de um sentimento de enlevo e êxtase contemplativo, que também compartilho.
A ternura, o carinho e o desvelo de uma mãe amamentando seu filhinho, um gesto de
solidariedade, enfim, há inúmeros exemplos comoventes de beleza e bondade, não só
humana, mas provindo de todos os seres da natureza. Concordo plenamente. O que es-
tou dizendo é que tudo o que existe de belo na natureza (e é muita coisa), não a caracte-
riza como “bela”, pois não se trata de uma regra geral, sempre presente, mas de um as-
pecto acidental, mesmo que bastante ocorrente. Da mesma forma que existe a beleza,
existe a feiura, mesmo horrível, o sofrimento, a maldade, a dor. A natureza, em si, é in-
diferente a tais aspectos. Ela não é boa nem má, nem bela nem feia. Existe beleza e existe
feiura, existe bondade e existe maldade. Só que estes conceitos não estão nas coisas em
si, mas no modo com que nós, humanos, as vemos. Inclusive, isso varia com o tempo, o
lugar e a cultura do observador. Por isso é que digo que não há uma razão para a natu-
reza ser bela e ordenada, simplesmente porque ela não é bela e ordenada. Ela é indife-
rente. Ela não possui os atributos de inteligência e nem de sentimentos. Por isso não se
pode dizer que ela seja bela e nem que seja ordenada. Tais qualificativos não se lhe apli-
cam. Nós é que temos uma tendência de antropomorficar as ações da natureza, tanto que
inventamos o conceito de Deus como um ser interveniente na natureza, possuidor de
inteligência, sensibilidade, volição e poder, isto é, Deus foi criado à imagem e semelhança
do homem.
A beleza e a bondade existem sim e são objetos de especial valor e merecedo-
res da máxima aplicação de esforços em sua obtenção. Mas são valores humanos. Numa
natureza desprovida de seres conscientes e sencientes, não existiriam tais categorias.
Na verdade, o juízo que fazemos acerca da natureza tem o viés humanista,
isto é, a natureza não possui, em si mesma, atributos do tipo inteligência, discernimento,
afetos, desejo, volição ou alguma razão e propósito para fazer o que quer que seja. Ape-
nas os seres de suficiente complexidade, como o humano (mas não só), concebem em
suas mentes tais qualidades. A natureza não possui mente e, “a fortiori”, consciência. O
que alguns denominam “consciência cósmica” é algo inteiramente sem fundamento,
como também a noção de “Gaia”. A evolução do Universo se dá de maneira cega, à mercê
das forças titânicas dos elementos, guiados pela aleatoriedade. Por acaso surgiu, neste
rincão, uma espécie como a nossa, que se debruça sobre tais coisas e “filosofa”. Além
disso, ela talvez seja capaz de interferir de modo consciente e com objetivo na evolução
46
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
da vida e do cosmo, provido que seja tempo suficiente para que se atinja um nível de
compreensão e domínio técnico de ferramentas capazes de tal proeza (se, antes disto, ela
não destruir a si mesma). Enquanto isso, possivelmente, outras congêneres, em outras
plagas, estejam com idênticos propósitos ou até mesmo, agindo nesse sentido.
A consciência, como atributo da mente, é uma ocorrência (um epifenômeno)
do organismo (em especial do cérebro, mas não só), que advém de sua extrema comple-
xidade estrutural e dinâmica, não tendo relação alguma com uma pretensa realidade so-
brenatural, o dito “espírito”. A concepção monista fisicalista é a única consistente com
todos os dados e, a cada dia, apesar das contestações, a neurociência progride em seu afã
de explicar de modo puramente natural todo o psiquismo. Mas ainda é cedo para se ter
um quadro definido. No entanto, isso não significa que ele não exista, pois tudo isso é
muito recente. Deixemos passar umas boas centenas ou milhares de anos.
Os conceitos de belo e de feio também são humanos e inteiramente estranhos
à natureza. De fato, há muito de belo na natureza. Nós consideramos belo aquilo que nos
proporciona uma sensação agradável, quando o cérebro interpreta o que os sentidos lhe
comunicam, à luz de nossa vivência. Como somos seres que surgiram neste planeta
tendo evoluído em adaptação a suas condições, consideramos belo o que nos propicia
uma adaptação satisfatória ao meio. Mas existe muita coisa feia, horrível mesmo na na-
tureza. A noção de que a natureza seja perfeita absolutamente não procede. Senão não
existiriam doenças que causam sofrimentos atrozes e mortes em agonias insuportáveis.
Não haveria pessoas más e cruéis, não haveria predadores que caçam e matam para co-
mer suas presas, que fogem apavoradas de seu cruel destino. Não haveria cataclismos
climáticos, como furacões e tsunamis, que matam justos e pecadores, como não haveria
terremotos e erupções vulcânicas. No mundo dos pequenos insetos e dos micro-organis-
mos reina um apavorante terror para a sobrevivência: os vírus destruindo as bactérias,
os anticorpos lutando contra os germes. A vida, em seu nível profundo é uma constante
e horrível guerra. A evolução é uma batalha de sobrevivência. E no nível cosmológico,
galáxias fagocitando-se, estrelas explodindo, buracos negros descomunais engolindo mi-
lhares de estrelas nos núcleos dos quasares. Tudo isso, se analisado estatisticamente,
mostra que a feiura é mais abundante que a beleza neste Universo. Não estou dizendo
que não haja beleza na natureza, mas sim que ela não é bela, o que tem outro significado.
Isso não é uma questão de se acreditar e sim de se constatar.
Quanto às doenças, mesmo que se tenha o maior cuidado, delas nem sempre
se escapa, pois nem todas provém de contaminação, podendo ser hereditárias ou congê-
nitas ou, ainda, resultante de exposição à radiação cósmica, o que não se consegue evitar.
Mesmo as infecciosas podem se estabelecer em uma pessoa que tenha o máximo de pre-
cauções higiênicas e em lugares em que o estado toma todos os cuidados com a saúde
pública. Os danos causados por catástrofes naturais, mesmo que não saibamos quem
sejam os justos ou os pecadores, certamente não selecionam as vítimas por nenhum cri-
tério, a não ser o acaso, que alguns chamam de sorte ou azar. De fato, a natureza não é
bela nem feia, nem burra nem inteligente, nem fria nem calorosa para com nenhum ser
existente. Ela é completamente indiferente a todos esses aspectos e suas ações não se
pautam por nenhum critério ético ou estético. Tais valores são construtos humanos, que

47
SOBRE O ATEÍSMO
também podem ser encontrados em animais mais evoluídos ou nos que ainda estão por
vir na sequência da evolução.
No entanto nós possuímos esses valores, e eles surgiram porque cultivá-los
propicia, no todo do tecido social (já que somos gregários) a maximização do bem estar,
da paz, da harmonia, enfim, da felicidade, o que resulta em vantagem evolutiva, pela
garantia da procriação e do sucesso adaptativo ao ambiente, condições que não se cum-
pririam satisfatoriamente se o homem não cultivasse um comportamento ético e de va-
lorização do bom e do belo. Imagine como a humanidade logo se aniquilaria se, por
exemplo, a gatunagem fosse erigida como norma geral de procedimento para todas as
pessoas. Quem produziria os bens a serem roubados? O progresso e o bem-estar que
propiciaram a explosão demográfica da espécie humana são resultantes da prática de
valores relacionados à cooperação, à convivência harmônica, à solidariedade, a honesti-
dade e a justiça. Na natureza, contudo, nada disso existe.
Primeiramente é preciso entender que o conceito de Deus é que foi concebido
pelo homem à imagem e semelhança dele mesmo, para que pudesse dizer que ele, ho-
mem, fora feito à imagem e semelhança de Deus. Se considerarmos a imensidão do Uni-
verso, mesmo com a raridade das condições propícias ao desenvolvimento de vida inte-
ligente que a Terra apresenta, ainda resta a chance de um a três planetas por galáxia.
Como existem cem bilhões de galáxias, haveria uns cem bilhões de planetas com seres
inteligentes. Certamente que não seriam todos como nós. E como Deus é previsto que
seja um só, a semelhança com ele seria perdida.
Autoconsciência não é privilégio do ser humano. Experimentos com animais
mostram que vários também a possuem, além dos outros humanos que se extinguiram
e, decerto os hominídeos.
Da mesma forma há muitos experimentos animais sobre sua capacidade de
abstração e do uso de linguagem. Em suma, nós humanos não somos qualitativamente
distintos dos animais, apenas possuímos em grau mais elevado atributos psíquicos que
animais também possuem.
No entanto, mesmo que nenhum outro animal possuísse autoconsciência (não
falo de inteligência porque esta está mais que provado que animais possuem), isso não é
prova cabal de que tal diferença só possa se dar por interveniência divina, de modo al-
gum.
O homem se assemelha intelectualmente a Deus, porque ele inventou o con-
ceito de Deus dessa forma. Deus não revelou nada ao homem, simplesmente porque
Deus não existe. O homem é que colocou na boca do pretenso Deus o que ele queria que
Deus dissesse.
Quanto à moral, já disse que não tem origem divina.
Ser bom não significa fazer o que Deus quer. Significa fazer o que provoca a
maximização da felicidade global. Ao conceber a ideia de Deus, nem todos os povos a
conceberam como a de um ser bom. Os deuses pagãos não eram bons. No Zoroastrismo,
Arimã era uma divindade do mal. O Deus judaico era vingativo. Pelo que sei a respeito,
a redenção, evento central do cristianismo, ocorreu devido ao pecado original. Ao criar
Adão e Eva, Deus proibiu-os de provar do fruto da árvore do bem e do mal. Como eles
o fizeram, Deus irou-se e expulsou-os do paraíso, condenando-os a viver com o suor de
48
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
seu trabalho e a parir com dor os filhos, além de serem condenados a morrer (o corpo) e
sua alma ficar impossibilitada a ascender ao paraíso. Sacrifícios propiciatórios foram fei-
tos a Deus no decorrer do tempo (imolando inocentes cordeiros) em vão. Deus não se
comoveu. Mas acordou que, se fosse feito um sacrifício infinito, então levantaria a proi-
bição das almas ascenderem ao paraíso. Tal sacrifício só poderia ser de Deus a si mesmo.
Então ele providenciou que sua segunda pessoa (já que ele é um ser de tripla personali-
dade) incorporasse a um homem (Jesus) completo (com corpo e alma) e esse ser híbrido
fosse imolado em sacrifício propiciatório para que Deus (que também é Jesus) pudesse
ser aplacado. Assim foi feito e, com sua paixão, Jesus abriu as portas do céu à humani-
dade para que os justos pudessem ir para o céu, a princípio somente a alma mas, após o
juízo final, integralmente com o corpo e a alma.
Para que fizessem jus a isto, contudo, as pessoas precisariam crer em tal his-
tória e, além disso, de acordo com algumas vertentes do cristianismo (como o catoli-
cismo) pautar sua vida pela prática do bem e das boas obras, estando em estado de graça,
isto é, sem pecado mortal, no momento de sua morte. Pecados eventualmente cometidos
poderiam ser desconsiderados se o pecador se arrependesse contritamente, confessando-
os.
Mesmo considerando que Deus existisse, como ele seria cruel e vingativo ao
exigir o sacrifício do próprio filho em expiação à sua ira. A redenção, que é a peça chave
do cristianismo (já que a criação é comum às outras religiões monoteístas), é uma coisa
absurda. Além do mais, para aceitá-la é preciso rejeitar toda a teoria da evolução e con-
siderar a história de Adão e Eva com algo real, senão não haveria pecado original e ne-
cessidade de redenção. Não acredito em Deus, mas supor que Jesus seja Deus é pior
ainda. A existir, penso que Deus ou seria o Deus de Voltaire (Deísmo), ou o de Espinoza
(Panteísmo). Um Deus pessoal, isto é, que seja uma pessoa, com psiquismo, inteligência,
vontade, sensibilidade, que interaja com a humanidade e lhe atenda os pedidos, ouvindo
suas orações e a julgue, puna ou premie, para mim, é bem difícil de se admitir.
A verdade, pois, com relação a esta questão que é o cerne das religiões, con-
siste, exatamente, em saber se existe ou não Deus, caso sim, quantos e que atributos ele
(na falta do gênero neutro na língua portuguesa) ou eles (e elas) teriam, se é uno ou trino,
se Jesus é Deus ou não, que religião conta a história correta a respeito da criação. Se
houve pecado original e redenção, ou ainda está por haver. Se há alguma alma que so-
breviva ao corpo. Se há céu, inferno ou purgatório. Vê-se que são muitas questões e para
elas, existem inúmeras respostas, conforme a doutrina religiosa que se considera, inclu-
sive dentro do próprio cristianismo.
A questão da redenção, pedra angular da doutrina cristã, envolve, de fato,
duas controversas. A primeira é sobre a maldade de Deus em exigir um sacrifício expia-
tório para os pecados, sacrifício de tal monta que só a imolação de seu próprio filho seria
capaz de aplacar sua ira. É um absurdo! Se Deus é bom, porque não perdoou o pecado
simplesmente, como Jesus pregava que devia ser feito? Isso de imolar cordeiros é uma
coisa muito esquisita, se se considerar a religião cristã do ponto de vista interno. Antro-
pologicamente falando, todavia, isto é, considerando que o cristianismo e todas as reli-
giões foram invenções humanas, bem como o próprio conceito de Deus, tudo fica enten-
dido num contexto de uma evolução de mitos pré-históricos, quando o homem, recém
49
SOBRE O ATEÍSMO
evoluído de seus predecessores mais simiescos, tendo adquirido inteligência, passou a
buscar explicações para o desconhecido e as atribuiu a entidades personalistas e volun-
tariosas, porém invisíveis, já que, pelo que sabia, tudo era feito por algum ser animado.
Outro ponto é se era para haver um sacrifício, então foi tudo uma burla, pois,
repito, na visão interna do cristianismo, Jesus era tanto homem quanto Deus (corpo, alma
e divindade e não só corpo e divindade, como o queria a heresia apolinária). A ortodoxia
católica, ortodoxa e protestante considera a “união hipostática” da humanidade com a
divindade de Jesus, sendo ele, portanto (segundo esta visão) sempre Deus e sempre ho-
mem, indissoluvelmente. Logo não poderia ter morrido e, daí, não houve sacrifício al-
gum. Outrossim é preciso considerar que a palavra da Bíblia não constitui verdade inso-
fismável, exceto para que assim o admite por fé. Sob o prisma histórico e documental, há
muitas contradições e improcedências em suas narrativas, sendo, inclusive, contestável
a própria existência histórica de Jesus. Mesmo admitindo, como o faço, sua existência
histórica, sua natureza dual é meramente conjectural.
Concordo em que a crença em Deus, na existência de uma alma espiritual
imortal, em anjos e demônios, na divindade de Jesus Cristo, na descrição bíblica da cria-
ção e na questão do pecado original e da redenção, bem como nos dogmas principais de
todas as religiões, como na revelação do Corão pelo Arcanjo Gabriel a Maomé ou dos
princípios do Espiritismo pelo espírito Zéfiro (ou as obras do Chico Xavier, consideradas
psicografadas pelo espírito Emmanuel), ou a iluminação atingida pelo Buda, os ensina-
mentos de Zaratustra ou as doutrinas ancestrais dos Vedas, na verdade, não diferem
essencialmente dos conhecimentos mitológicos da Astrologia, da Numerologia, da Ca-
bala, da Gnose ou de todas as doutrinas consideradas reveladas por entidades superiores
aos homens. De fato, para mim, todas são produtos puramente humanos, mesmo que as
pessoas que as divulgaram estivessem sinceramente convencidas de estar agindo sob
uma inspiração sobrenatural. Assim, da mesma forma que a ampliação das informações
e dos conhecimentos científicos foram desacreditando a Astrologia, a Numerologia e ou-
tros pseudoconhecimentos análogos, pela demonstração de sua absoluta falta de emba-
samento e confiabilidade, também as doutrinas religiosas, todas elas provenientes de um
refinamento de conhecimentos de base mitológica, serão paulatinamente desacreditadas
pela disseminação de métodos criteriosos e rigorosos de aferição da veritabilidade de
suas assertivas, uma vez que já está cabalmente demonstrado que a fé, absolutamente,
não pode servir de critério de validação da veritabilidade de qualquer assertiva ou de
qualquer sistema de explicação da realidade. Assim as religiões deixarão de ter seu as-
pecto metafísico e passarão a ser apenas códigos morais de comportamento, podendo
manter, como elementos folclóricos, num contexto de antropologia cultural, seus tem-
plos e cerimônias, como ocorre com os cultos dos indígenas civilizados.
Deus teria provado o seu amor por nós de forma muito mais patente se tivesse
perdoado o pecado original simplesmente, sem que fosse preciso sacrificar-se a si mesmo
na figura de sua parte hibrida Jesus.
Dizer que Deus mandou Jesus fazer justiça por ele é considerar que Jesus não
seja o próprio Deus e sim outro ser, o que se configura em heresia.
O entendimento que se tem de Deus é justamente aquilo que as pessoas in-
ventam a respeito dele, pois Deus é uma invenção.
50
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
Ninguém colocou Deus para governar o mundo (o Universo). O Universo
simplesmente não tem governante nenhum. É totalmente anárquico.
É claro que algo deixado por conta própria não só existe, mas evolui. É assim
que tudo se dá. A ciência nunca disse que isto seja impossível.
Não é preciso pessoa alguma para controlar a aplicação das leis da natureza a
todo o Universo. A natureza comporta-se por conta própria. As leis da natureza não são
“determinações” de comportamento nenhum, mas simplesmente “descrições” de como
eles se dão.
Minha busca da verdade se dá por meio da investigação, da dúvida metódica,
da constatação das evidências e da comprovação lógica, não por meio de nenhuma fé.
Isto é inteiramente fora de propósito.
Assim, se as palavras de Jesus forem verdadeiras, então elas serão aprovadas
pelo crivo de todos os testes de veritação. Não é preciso “crer” nelas, do mesmo modo
que não se “crê” em nada do que a ciência explica, mas se é convencido pelas evidências
e comprovações.
O fato de a ciência não prover explicação para tudo não significa que elas não
existam dentro do contexto científico e nem que se precise apelar para explicações mito-
lógicas para preencher tais lacunas. Inclusive porque, como saber qual dos mitos é o de-
tentor da verdade?
O fato de que a probabilidade de que tudo o que existe tenha surgido por
acaso ser muito baixa não impede que assim o tenha sido, como já comentei anterior-
mente. Há sempre alguém que ganha na loteria contra todas as probabilidades. Consi-
derar a possibilidade da existência de entidades extrínsecas ao Universo, intervenientes
no seu surgimento e evolução, é algo muito mais implausível do que admitir que tudo
se tenha dado por acaso.
Porque seria necessário um sacrifício expiatório para Deus perdoar o homem
pelo pecado original, isto é, porque ele não poderia simplesmente perdoar, como pregou
Jesus? Não quero versículos bíblicos, mas argumentos.
Se a união da divindade e da humanidade de Jesus fosse indissolúvel, ele,
como Deus, não morreria. Se morreu é porque sua parte humana dissociou-se da divina.
Outra coisa, tendo ressuscitado e ascendido aos céus de corpo e alma, como seu corpo
sobreviveria sem alimentos? E onde fica o céu? Se for no espaço sideral, sem apoio, então
Jesus está em órbita? Mas o céu é só dos terráqueos? E os outros possíveis seres consci-
entes de outros planetas, que pode haver. Também foram redimidos por Jesus? Ou não
cometeram pecado original? Ou houve outro Jesus lá? Ou o cristianismo não admite sua
existência. Não estou fazendo brincadeira. Estou falando sério. Como se pode estender
o cristianismo aos extraterrestres (que suponho que possam haver, mas não que possam
comunicar-se conosco e nem nos visitarem)?
Uma pessoa inteligente, pode, deve e tem que questionar as informações cons-
tantes da Bíblia, senão irá abdicar de sua humanidade e se transformar em zumbi. É
muito esquisito isso de Deus ter querido sacrificar-se a si mesmo para expiar nossos pe-
cados. Acho uma parvoíce de Deus, caso exista.

51
SOBRE O ATEÍSMO
Não contesto a possibilidade de poder haver um Deus incriado. O que con-
testo é que exista de fato. Como saber que existe? Porque, se não houver prova de que
exista, há que se considerar que não exista. Isso não requer prova.
Não creio que a natureza tenha o poder de criar-se a si mesma. O que consi-
dero (mas isto não é crença) é que nada foi criado e sim surgiu espontaneamente, sem
causa e nem propósito. Não “do nada”, mas sem ter algo de que proviesse.
A ciência tem um crédito superior às crenças exatamente porque não pretende
ser detentora da verdade, mas sim empenhada em buscá-la, a despeito de se derrubar
todas as convicções. Porque a ciência é honesta e verdadeira, enquanto as crenças insis-
tem na validade de suas proposições sem comprovação. E como existem múltiplas cren-
ças, com proposições contraditórias a respeito de vários fatos, não há como saber qual
delas é verdadeira. A suposição mais sensata é de que nenhuma o seja. A fé, realmente,
não tem credencial alguma para servir de critério de verdade.
“Sentir” a existência de Deus é uma experiência subjetiva que não garante,
em absoluto, sua veracidade. Podemos “sentir” inúmeras coisas, inteiramente falsas.
De certa forma, mesmo que existam pessoas altamente inteligentes, informa-
das e cultas, que creem em várias modalidades de Deuses, nas diferentes religiões, con-
sidero que sua crença é um tipo de ignorância, a respeito dos fatos concernentes à exis-
tência de Deuses. Em verdade, sua consideração de que Deus exista não procede de uma
verificação racional e fatual mas de uma adesão a uma crença, justificada por razões afe-
tivas e emocionais, e não racionais. Não digo que os aspectos afetivos e emocionais sejam
menos importantes do que os racionais na condução da vida, pelo contrário, tanto é que
respeito a crença em Deus das pessoas. Só considero que, quanto a esse respeito, os afetos
não garantem a veracidade e, então, lamento o fato de viverem uma ilusão, mesmo que
ela possa ser consoladora e gratificante.
Não tenho medo de morrer e de castigo eterno nenhum, pois sei que isto não
existe.
Pergunta-se: “Quem” apertou o botão para dar origem ao Universo ou criou
as forças que o produziram? Essa noção de que seja necessário “alguém” (isto é, uma
pessoa dotada de inteligência, vontade e poder) para produzir os eventos da natureza é
inteiramente falsa. Trata-se de uma concepção humana, advinda da observação, desde
tempos pré-históricos (ou mesmo de nossos predecessores pré-humanos) de que as ocor-
rências se davam por ação de alguém. Então, por extensão, os primitivos humanoides,
consideravam que tudo requereria a interveniência de “alguém”, que, quando não iden-
tificado, foi inventado, na figura de um “gênio”, “espírito” ou “deus”, como causador
do fenômeno (chuvas, trovões, raios, enchentes, vulcões, eclipses, nascer e pôr do Sol,
fases da Lua e todas os fenômenos naturais). Com a evolução da humanidade e o surgi-
mento das civilizações, tais coisas se transformaram em mitos, que, numa etapa poste-
rior, passaram a doutrinas religiosas, consignadas nas diferentes “escrituras sagradas”,
muitas vezes, umas espelhadas em outras, como as judaicas se basearam nas babilônicas,
que o foram nas hinduístas e assim por diante. Tal encadeamento de considerações che-
gou até a algo tão sofisticado como o “Direito Canônico” da Igreja Católica, por exemplo.
A ciência, contudo, pouco a pouco foi achando explicações naturais para tudo, de forma

52
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
que o que provém dos conhecimentos mitológicos nada mais é do que “ficção lendária”,
como a Bíblia, sem valor epistemológico algum.
Em resumo, não é preciso haver “ninguém” para apertar botão nenhuma e
fazer surgir o Universo. Ele pode surgir por acaso, de forma espontânea, sem criador.
Peço argumentos racionais e fatuais pois não vejo por que a Bíblia seria depo-
sitária da verdade e não as outras escrituras, como os Vedas, o Corão, ou mesmo os es-
critos de Allan Kardec. Todos esses textos foram redigidos por pessoas que estavam con-
vencidas de serem porta-vozes de Deus e, no entanto, escreveram coisas que se contra-
dizem umas às outras. Há crentes sinceros, fiéis, pios e santos em todas as religiões, como
há os aproveitadores desonestos da fé do povo. Então o critério para decidir em qual
delas se encontra a verdade tem que ser extrínseco a elas. Até hoje, não vi em nenhuma,
provas de serem as donas da verdade. O único e legítimo critério de verdade é a prova
por evidências ou raciocínios válidos, em última análise, calcados em evidências. A exis-
tência do Deus abrahãmico, bem como do pecado original, da redenção de Jesus, do juízo
final e dos demais pontos fundamentais da doutrina cristã, são tão desprovidos de fun-
damento como a existência de Rá, Amon, Hórus, Isis, Brahman, Brahma, Shiva, Vixnu,
Krishna, Maya, Yin, Yang, Aúra-Masda, Arimã, Allah (não tripessoal), Zeus, Apolo,
Athena, reencarnação, metempsicose e outras divindades e conceitos das demais religi-
ões. Todos eles, contudo, são objeto de citações nas escrituras sagradas de suas religiões.
A exigência de justiça por parte de Deus, em relação ao pecado de Adão e Eva,
não tem nada a ver com sacrifícios expiatórios. Justiça se traduz em prêmio ou punição
ao autor da ação objeto de apreciação. Sacrifícios ou oferendas são caprichos exigidos
pelo Juiz em completo desacordo com o próprio espírito imparcial e desinteressado da
justiça. A satisfação propiciatória de Deus apenas com o sacrifício de seu próprio filho
Jesus revela um caráter mesquinho e egoísta de Deus, muito longe do padrão de bondade
e santidade que se atribui a Ele.
Além do mais tudo isso só tem significado se se admitir a criação do homem
diretamente por Deus nas pessoas de Adão e Eva, o que é inteiramente desprovido de
confirmação, além de ser extremamente ingênuo.
A existência de personagens históricas, incluindo Jesus, Maria, Moisés,
Abraão e outros da Bíblia é aceita face os testemunhos orais e escritos dos contemporâ-
neos, transmitidos até os dias atuais. A existência de Deus não pode se basear no mesmo
critério, senão seria preciso admitir a existência de todos os deuses da mitologia pagã,
hinduísta e assim por diante. Se nós concordamos que os deuses mitológicos da Grécia
e de Roma são invenções consignadas em textos, como a Ilíada e a Odisseia, porque não
colocamos o Deus judaico-cristão-muçulmano na mesma categoria, mesmo que constem
da Bíblia e do Corão? Por que seria a Bíblia uma revelação e o Corão não? Por que os
cristãos têm fé? Mas os muçulmanos também têm! E, para eles, Jesus foi só um grande
profeta, logo abaixo de Maomé, mas não o Deus encarnado. E nem existe nada de San-
tíssima Trindade. E quanto ao zoroastrismo, que considera o demônio uma divindade?
E o panteão hinduísta?
Deuses não são evidências sensoriais diretas, como pessoas. Eu considero que
Jesus existiu, mas não que seja Deus.

53
SOBRE O ATEÍSMO
É claro que os argumentos racionais não abalam a fé, pois a fé é irracional. O
que proclamo é que se precisa abandonar a fé, pois ela não tem cabimento. Pode-se crer
sem prova, provisoriamente, em algo não comprovado, desde que haja fortes indícios,
mas com a disposição de abandonar a crença quando evidências a derrubarem. Tal não
se dá com a fé, que é proposta ser aceita sem discussão. Isto é inteiramente inadmissível.
Concito a todos vocês que possuem fé, que a deixem em suspenso e façam uma análise
crítica de seus fundamentos, como eu o fiz e a abandonei.
A questão fundamental do ateísmo não se prende a possíveis deslizes morais
dos personagens bíblicos e nem, realmente, ao que a Bíblia ou qualquer outra escritura
sagrada diga ou não. Todas elas são códices redigidos por pessoas, mesmo que convictas
de sua inspiração divina, mas que, na verdade, expressam o modo de pensar de sua
época, sua localização, sua etnia, seu extrato social e demais circunstâncias, além da opi-
nião pessoal do próprio autor do texto. O fundamento do ateísmo, ao afirmar que não
existem divindades de espécie alguma, nem tampouco semideuses, almas, anjos, demô-
nios, gênios, djins, duendes, elfos, gnomos ou qualquer tipo de espíritos ou elementais
de qualquer tipo é que não há comprovação nem evidência da existência de tais entida-
des e, portanto, tudo o que existe é natural, as únicas substâncias de que qualquer coisa
seja feita são os constituintes naturais do Universo, isto é, matéria, radiação e campos.
É claro que o ateísmo considera a existência de abstrações, mas elas são apenas
concepções mentais, não tendo existência sem mentes que as concebam. E as mentes são
apenas ocorrências advindas da composição, estrutura e funcionamento do organismo,
especialmente do cérebro.
Deuses são, pois, conceitos, ideias concebidas por mentes, sem existência no
mundo real. Nada há que comprove sua existência e, como não são evidentes, a hipótese
zero, isto é, “por default” considera-se que não existam, sendo requerida comprovação
para considerar que existam. E isto ainda não se deu, pois, as pretensas “revelações” não
comprovam coisa alguma.
É claro que existem cientistas que creem em Deus. Isso não prova que Deus
existe, como o fato de haver outros que não acreditam não prova que não exista. Ou,
ainda, alguns que, mesmo não sendo crentes, não aceitam a “Teoria da Evolução”. A
questão é que a Teoria da Evolução (como atualmente entendida e não como original-
mente formulada) é consensual na comunidade biológica, sendo seus detratores uma
corrente marginal. E, note-se que, a Teoria da Evolução não faz nenhuma afirmação so-
bre a inexistência de Deus, apenas que as espécies evoluíram umas a partir das outras e
não que foram criadas individualmente. Nem cogita do surgimento da vida, que é objeto
de outras teorias, de biogênese, mas que mostram ser perfeitamente possível o surgi-
mento da vida a partir da matéria inanimada, sem criação. Mas não diz que foi assim
que ocorreu. No entanto, a inserção de um ente extranatural interveniente é perfeita-
mente dispensável, por não ser necessária.
Quanto ao Universo ser finito ou infinito, ter surgido ou sempre existido, são
possibilidades inteiramente admissíveis na cosmologia, a serem decididas, não por in-
formações mitológicas, mas pela análise de dados observacionais, que, no momento,
ainda não são conclusivos a respeito. O que não significa que não venham a ser. Há que
se aguardar. O fato de não se ter ainda uma certeza não significa que não se possa
54
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
alcançá-la. Acontece que a humanidade é jovem no planeta (menos de um milhão de
anos) e a ciência menos ainda (só uns 500 anos). Dá para esperar algumas dezenas de
milhares de anos, ou mesmo milhões.
Mesmo que seja correta a ideia de que é preciso haver Deus para que o Uni-
verso e a vida tenham sentido, isso não garante que haja. Do mesmo modo eu gostaria
que houvesse Deus, para que se fizesse justiça a uma pessoa má que tenha se dado bem
na vida, cometendo atrocidades. Tal desejo não garante sua existência. No entanto, muita
coisa mostra que é mais provável que Deus não exista. E, de fato, não há razão nem pro-
pósito para que exista tudo o que existe, inclusive o homem. Existe porque surgiu e po-
deria não ter surgido. De modo que a razão de ser de qualquer coisa é simplesmente
existir e, se for vivo, viver. Seres conscientes como o homem sentem-se felizes e realiza-
dos quando encontram propósito para suas vidas. Cada caso é um caso. Os primitivos
colocavam o sentido da vida apenas em garantir a sobrevivência e procriar. A civilização
permitiu o ócio e com ele o surgimento da arte, da ciência, da filosofia, dos esportes, do
lazer, da cultura. O homem, pois, começou a buscar outros significados para a vida e,
dentre eles, a glória dos deuses que inventaram. Não só servir aos pressupostos desíg-
nios do Deus judaico-cristão-muçulmano, mas de qualquer outro deles. No entanto tal
significado, que aquiete a consciência, pode muito bem ser achado em realizações pes-
soais meritórias ao longo da vida. Bondade, solidariedade, generosidade, como todas as
virtudes, são atitudes humanas que nada têm a ver com a existência de algum Deus (e
sabemos que muitos conceitos de Deus não incluem o fato de serem bons. O próprio
YHWH não é nada bondoso, mas cruel e vingativo – tanto que sacrificou seu próprio
filho para satisfazer sua sádica necessidade de expiação). Não é preciso Deus para se
achar um sentido para a vida. Eu, por exemplo, já fui católico fiel e piedoso, perseguia a
santidade, ia à missa e comungava todo dia (no tempo em que era em latim), acompa-
nhado no missal, rezava um rosário de joelhos todo dia e me aprofundava no estudo das
escrituras e da doutrina.
Ao mesmo tempo me dedicava ao estudo de matemática, física, química, bio-
logia, filosofia, geologia, astronomia, cosmologia, sociologia, história, música, literatura,
artes plásticas, muito além do exigido na escola, pois sempre fui um “nerd”. Todos esses
estudos e prolongadas e profundas reflexões me levaram, aos 19 anos, a concluir pela
total improcedência da fé, qualquer que seja ela. Tornei-me, a princípio, agnóstico e, de-
pois, ateu, da modalidade cética e não da dogmática. No entanto mantive meu alto pa-
drão de exigência ética, concluindo que a busca da virtude e da verdade são metas ele-
vadas a serem perseguidas por toda pessoa. E, principalmente, que nada têm a ver com
religiosidade ou fé. No entanto a caridade permanece como uma virtude capital e o en-
sinamento de Jesus: “amai-vos uns aos outros” é a meta a ser seguida universalmente.
Nesse novo contexto vi que o objetivo da vida, para mim, especialmente na
qualidade de professor (de física e matemática) é levar o esclarecimento e a atitude de
livre-pensamento e ceticismo, no propósito de se encontrar a verdade, sem as muletas
da fé. E de passar à ação efetiva para erradicar o mal e fazer prevalecer o bem, sem espe-
rança de recompensa alguma, nem de salvação eterna, mas pelo valor do bem em si. A
responsabilidade do ateu é maior ainda, pois ele sabe que não há outra vida para punir
o mal e recompensar o bem. Isso tem que ser feito nesta vida, pela sociedade.
55
SOBRE O ATEÍSMO
Assim considerada, a vida passa a possuir um valor inestimável, pois é única.
É nessa perspectiva que vejo não haver necessidade de Deus nem vida eterna para dar
significado à vida, que passa a residir nela mesma. Assim procedendo a mente se com-
praz e traz a satisfação de sentir que a vida de cada um faz diferença para a paz, harmo-
nia e felicidade do mundo.
Santidade é um ideal de toda religião, não apenas a cristã. Ser santo é levar
uma vida virtuosa e sem pecado. Isso pode e deve ser a meta de toda pessoa, tenha qual-
quer religião ou nenhuma. De fato, a história mostra que Jesus foi um santo, tanto quanto
Buda, Sócrates, Francisco de Assis, Mahatma Ghandi, Zarthustra, Moisés, Chico Xavier
e outros. Não conheço a vida dos grandes líderes protestantes a fundo para dizer se Lu-
tero, Calvino e outros foram santos. Henrique VIII, certamente não foi. Mas, sem dúvida,
há santos protestantes e evangélicos, bem como muçulmanos, budistas, hinduístas, espí-
ritas, judeus, pagãos e… ateus. Sim, se entendermos por santo o virtuoso e por pecado
um ato em desacordo com os princípios elevados da ética.
Pessoas que possuem uma fé firme e sincera na existência de Deus, em geral,
não concebem que alguém possa considerar que Ele não exista. Isto é um engano. Há
ateus, como eu, convictos da inexistência de Deus na plenitude de sua consciência, inte-
ligência, sentimentos, afetos e vontade. Mesmo que alimentem o desejo de que exista, o
que seria ótimo, mas não se fosse o Deus abrahãmico judaico-cristão-muçulmano. Este
não é nada misericordioso nem justo como afirma o refrão islâmico “Allah é misericor-
dioso”. O conceito que os homens fizeram dessa entidade é de uma pessoa cruel e vin-
gativa, caprichosa, voluntariosa e volúvel, egoísta e vaidosa, em suma, um péssimo
exemplo para ser seguido. Moisés e Maomé também não são nada exemplares. Jesus sim,
mas, não é nada parecido com Deus. Saulo de Tarso, Agostinho de Hipona e outros pa-
dres da Igreja deturparam a mensagem fraternal de Jesus e consolidaram uma Igreja
mesquinha e obtusa, que promoveu, por exemplo, a morte de Hipátia, as Cruzadas e a
Inquisição. Calvino não fica atrás em sua perseguição aos infiéis, de modo semelhante
aos fundamentalistas islâmicos do Talibã. Henrique VIII é uma tragédia. É triste o quanto
as religiões fizeram de mal à humanidade (inclusive o paganismo perseguindo os cris-
tãos), bem como as ideologias totalitárias fascista, nazista e comunista. Atualmente ve-
mos escândalos em algumas igrejas neopentecostais de índole comercial, como também
os conflitos de pretexto religioso na Irlanda, em Israel e outros lugares. Nada disso teria
ocorrido se Constantino não oficializasse, por interesse, o cristianismo e o impusesse ao
povo e ao Império sob o poder da espada e da fogueira, como prosseguiram exemplar-
mente os imperadores bizantinos, os czares da Rússia, os reis de Espanha e até presiden-
tes norte-americanos, inimigos do livre-pensamento, este sim, promotor da tolerância,
da paz, da harmonia e da felicidade para todo o mundo.
Não é preciso fé para ser ateu. Esta é a condição normal da pessoa ao nascer.
Posteriormente é que ensinam à criança que existe Deus e lhe passam suas características,
conforme a religião dos pais, bem como as práticas litúrgicas dessa religião. A criança,
que confia nos pais como fonte de conhecimento do mundo, aceita isso e uma porção de
coisas sem provas, pois é o modo que tem de integrar-se no mundo e sobreviver. À me-
dida que cresce vai verificando e contestando muito do que aprendeu, rejeitando alguma
coisa e preservando outras, conforme conclui por sua veracidade. A fé, contudo, é algo
56
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
à parte, pois lhe é ensinado também que não pode ser contestada. Poucos ousam checar
sua validade, mas, quando o fazem, se suficientemente embasados de conhecimentos
sobre todas as coisas e com boa habilidade de raciocínio, concluem que não pode ter
fundamento algum e a rejeitam. Justamente, então, pela rejeição da fé e não por ela, tor-
nam-se ateus novamente, como nasceram.
É claro que as injustiças não são obra de Deus, já que Ele não existe. São obra
das pessoas e temos o dever de coibi-las, para implantar um mundo justo, harmônico,
pacífico, fraterno e feliz para todos.
Ter exigido o sacrifício de Jesus para expiar os pecados da humanidade não é
um ato de amor e sim de requintada crueldade. Amor é perdoar incondicionalmente.
Inclusive esse negócio de vedar a ida para o céu (para quem crê nisto), até para os justos
e bondosos, antes de Jesus, mostra um caráter mesquinho do suposto Deus. Condenar
os maus é admissível, mas porque vedar o céu aos bons?
Há cristãos que consideram que só quem aceita Jesus como salvador vai para
o céu. E os bons muçulmanos, budistas e de todas as outras religiões, como ficam? Eles
são pecadores por não serem cristãos? Muito esquisito isto.
Os experimentos de Pasteur não contrariam a teoria da Evolução em nada,
nem tampouco a biogênese (que não tem nada a ver com a evolução), pois o que ele
mostrou é que, nas condições atualmente vigentes e nos intervalos de tempo envolvidos
(da ordem observável em uma vida humana) a vida só provém de outra vida. Certa-
mente que noutras condições, foi preciso que a vida surgisse sem que proviesse de outra,
pois nem sempre existiu. Então, ou foi criada por algo com poder para tal, previamente
existente (Deus) ou surgiu espontaneamente da matéria inanimada em processos espe-
ciais e ao longo de um grande tempo, no início da existência da Terra (ou de outro pla-
neta e, então, transportada para cá). Mas isso não consta da Teoria da Evolução, que
também considera que vida vem da vida, só que pode passar de uma espécie para outra,
também ao longo de grande tempo.
O ateu, como todas as pessoas, tem crenças. Mas fé é outra coisa. Crença é a
aceitação da veracidade de assertivas não evidentes nem comprovadas, com base em
indícios convincentes e de forma sempre passível de rejeição, logo surjam evidências ou
provas que a desmereçam. Fé é uma crença com base em relatos sem indícios de veraci-
dade e estatuída de modo a ser definitiva e imune a contestações, mesmo que evidências
e provas lhe sejam contrárias. Por isto a fé é algo inadmissível, mas não as crenças. Eu,
por exemplo, creio que existe um mundo exterior à minha mente, mesmo sem provas
nem evidências de que tudo que percebo não seja mera ilusão, mas devido a fortes indí-
cios, advindos da concordância dos testemunhos independentes de diferentes sujeitos.
A crença na veracidade dos relatos históricos advém, exatamente, do cotejo crítico de
diferentes testemunhos, mas está sempre em processo de revisão. Do mesmo modo as
afirmações científicas são sempre provisórias e nunca se tem certeza de que se possua a
verdade. Isso é que é o maior mérito da ciência, enquanto as doutrinas religiosas são
dogmáticas e pretensamente infalíveis. No entanto isso não é verdade nem dentro das
religiões, tanto é que surgiram várias vertentes do cristianismo. Como saber qual a que
está com a verdade? A Batista? a Presbiteriana? a Católica? a Ortodoxa? E o Judaísmo, o

57
SOBRE O ATEÍSMO
Islã, o Hinduísmo, o Budismo, o Espiritismo, por que não são a religião verdadeira?
Como saber?
As pessoas não são más nem boas ao nascer. Todos temos capacidade de fazer
o bem e o mal. Nenhuma criança nasce naturalmente adoradora e sim ateia. É a educação
que nos faz ver que o bem é melhor do que o mal, para garantir a maximização da felici-
dade para o maior número de seres. Dos dois instintos primários, o da sobrevivência e o
da procriação, o primeiro é egoísta e o segundo altruísta. A civilização mostrou que o
egoísmo não contribui para o bem-estar geral, daí as religiões pregarem normas altruís-
tas, pelo menos para o povo em geral. Os detentores do poder político, militar e religioso,
muitas vezes, para si mesmos, não aplicam as normas que preconizam. O mal, contrari-
ando Agostinho de Hipona, não é a ausência do bem e sim algo positivamente deliberado
para causar prejuízo, sofrimento, desprazer, infelicidade, mal-estar e tudo que possa ser
ruim. Considero que a punição do mal é justa, necessária e pedagógica, para que não
prevaleça na sociedade o proveito de poucos em detrimento de muitos. Isso é um traba-
lho que a sociedade tem que fazer. Quanto ao pecado de Adão ter sido herdado por toda
a humanidade, trata-se de um completo despautério. Mesmo que exista Deus e tenha
havido a criação de um único primeiro casal (o que é altamente controvertido), se esse
Deus, de fato, estendeu a toda sua descendência essa culpa, ele não é nem um pouco
justo e muito menos bondoso. De fato, tudo isso é meramente uma lenda. A verdade é
que não há nem Deus, nem alma, nem anjos, nem demônios, nem céu, nem inferno, nem
pecado original. Todas as religiões possuem a mesma validade, isto é, nenhuma, ou seja,
todas são falsas. Se o Universo testemunha o criador, então ele mostra que ele é bem
incompetente, tal é o número de imperfeições existentes no mundo, para começar, doen-
ças, cataclismos, maldades. Pode ser que isto tudo tenha sido criado por um Deus, mas
bom é que ele não seria.
Em verdade a criança nasce agnóstica, isto é não acha que Deus existe e nem
que não existe. Aliás não tem a mínima noção do que seja isto.
A ciência ainda não achou todas as respostas porque é muito jovem. A própria
humanidade não tem mais de 300 mil anos. A civilização só uns 10 mil e a ciência uns
500. Os progressos da ciência são imensos, mas muitas respostas só surgirão daqui a
centenas ou milhares de anos (ou mais ainda). A ciência não pretende ser dona da ver-
dade, mas a busca com afinco, paciência e perseverança, jamais considerando estar com
a palavra final e sempre duvidando de si mesma. Essa é sua grande virtude, enquanto
as doutrinas das religiões já consideram que estão com a verdade inquestionável, cada
uma delas estigmatizando as outras como falsas. Nessa babel, como saber onde fica a
verdade? Por que a fé assim o diz? Mas existem pessoas que têm fé firme e sincera em
todas as religiões e creem em coisas diferentes. Logo a fé não pode ser critério de ver-
dade. Por que a sua e não a de Maomé ou de Buda?
Com razão não se pode determinar que Deus não exista. Nem que exista! E
como sua existência não é evidente, por “default” considera-se que não exista até que se
prove que existe. Tal proeza ainda não foi realizada. Só se aceita sua existência com base
na fé, que já mostrei que não pode ser critério de verdade.

58
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
Pelo que me consta, a incidência de drogados, alcoólatras, pedófilos e devas-
sos em geral é muito menor entre muçulmanos e budistas do que entre os que se dizem
cristãos (mas, de fato, não o são, pois, o verdadeiro cristão é o santo).
Dizer que Deus não existe, mas “é”, é justamente o que considero que seja,
isto é, Ele tem essência mas não existência. Deus é uma entidade conceitual, isto é, algo
que pode existir, mas não necessariamente existe. Não existe nada que exista por neces-
sidade. A afirmação de Tomás de Aquino de que a essência de Deus é a sua existência
não procede. A prova ontológica de Avicena, Anselmo, Descartes, Leibniz e até Gödel é
uma falácia. Tudo que existe poderia não existir. Um ser é um ente que existe, enquanto
está existindo. O ser, pois, não “é”, mas “está sendo” ao longo do tempo. Um ente “é”,
pois, um conceito pode ser permanente, enquanto o ser real que ele descreve está em
permanente mutação, mesmo Deus, se existisse. Existir é estar presente no mundo, en-
tendendo por mundo não o planeta Terra, mas o Universo físico acrescido de tudo o que
não for natural também. Deus, se existisse, seria um ser. A existência de um ser é algo
que requer verificação, ou pela constatação da evidência sensorial de sua existência ou
pela comprovação lógica indireta dela. Algo que seja o que for e não existir é apenas um
conceito, uma ideia. Não é real no mundo, isto é, não existe independentemente de men-
tes que o concebam. Nesse caso concordo de que Deus não existe como realidade no
mundo (que pode incluir espíritos, se houver), mas apenas como conceito nas mentes.
Assim ele “é”, tem uma essência (que é a descrição da substância e das propriedades que
fazem algo ser o que é e não outra coisa), mas não existência. Sem existência nada pode
ser percebido e nem agir sobre qualquer coisa. Assim Deus não criou nem cria coisa al-
guma, não ouve preces e nem interfere no mundo, já que não existe.
No Universo existe beleza e existe feiura, existe bondade e existe maldade,
existe perfeição e imperfeição. Nada disso tem a ver com a existência ou não de Deus. A
noção de que a natureza é bela e o Universo ordenado é falsa. Singularmente há um
prevalecimento da ordem e da beleza na região em que nos encontramos e na escala de
dimensões espaciais e durações temporais a que temos acesso. Todavia no macro e no
microcosmo, bem como na mini e na micro biosfera, domina uma situação extremamente
belicosa e caótica, verdadeiramente horripilante. Germes e anticorpos permanecem
numa infindável batalha, muitas vezes vencida pelos primeiros, redundando em doen-
ças, que, por si só, mostram a imperfeição da natureza. Nos núcleos das galáxias a situ-
ação é de uma terrível predação de massas umas pelas outras, sem o estabelecimento de
nenhum padrão de ordem. Isso acontece também no cinturão de asteroides. Mesmo num
nível mais próximo do humano, nos oceanos e nas selvas, presas e predadores vivem em
contínuo embate. Entre os insetos é o mesmo que se dá. Se fossemos perfeitos, não fica-
ríamos doentes e nem morreríamos. Além disto, nunca cometeríamos erro algum, tem
teríamos lapsos de memória, nunca mentiríamos, nem faríamos (nenhuma pessoa) qual-
quer ação malévola, desonesta ou, mesmo, desintencionalmente desastrada ou equívoca.
A constatação de que nós não somos perfeitos é patente, não apenas nós, mas tudo na
natureza.
A noção de que a natureza é perfeita é uma ilusão. Existe muita imperfeição
na natureza, além da existência deliberada do mal nos seres volitivos e conscientes, como
o ser humano e alguns outros animais superiores. A perfeição, como a verdade, não é
59
SOBRE O ATEÍSMO
um dado estabelecido, mas um ideal a ser perseguido, um objetivo, uma meta, cada vez
mais aproximada, à medida que esforços são para isso voltados. E porque fazê-lo, se não
se pode atingi-lo? Porque esse padrão é um ideal do bem em si mesmo. Porque é o que
é certo fazer, tenha-se ou não recompensa por isto ou punição por não o tentar. Quanto
mais próximo da perfeição o mundo se tornar, mais disseminada será a felicidade para
todos os seres e mais razão será encontrada para a existência, já que esta não tem ne-
nhuma razão externa para ocorrer, mas que a presença de uma mente consciente em
nosso ser é de tal forma estruturada que busca aquietar-se no encontro de uma razão
para a existência.
Se a perfeição da natureza for usada como comprovação da existência de
Deus, então precisamos considerar que Ele não existe mesmo ou então, que é incompe-
tente em produzir sua criação. De fato, a imperfeição não prova que Deus não existe,
pois não há exigência de que Ele tenha que fazer tudo perfeito. Mas não se pode basear
na perfeição da natureza para confirmar que Deus existe, pois, ela não é perfeita, de jeito
nenhum.
Não estou me referindo apenas à maldade humana, mas à maldade que mui-
tos seres, mesmo inanimados provocam, como os cataclismos naturais, os predadores,
os germes patogênicos etc. Tudo isto ocorre e ocorreria da mesma forma se não houvesse
a espécie humana.
Guerras, pestes, cataclismos e coisas assim vêm ocorrendo no mundo há sé-
culos e sempre se diz que os dias do apocalipse chegaram. Os apóstolos achavam que
veriam o juízo final em suas vidas. Nada ocorreu. No entanto a vida continua… Tudo o
que está havendo hoje, já aconteceu pior e o mundo não acabou. A humanidade tem
fôlego para ainda sobreviver por alguns milhões de anos antes de se extinguir. Então,
muito provavelmente, outras espécies transumanas que a evolução der surgimento nos
substituirão, como várias novas surgirão em substituição de muitas atuais. Aliás, é pre-
ciso se esclarecer o que se entende por “fim do mundo”: a extinção da espécie humana,
permanecendo o resto? A extinção de toda a vida na Terra? A aniquilação do próprio
planeta? E outros planetas, que porventura abriguem vida também? Seria a aniquilação
do Universo inteiro? Certamente que a vida neste planeta ficará impossível dentro de
poucos bilhões de anos, quando o Sol começar a expandir-se, acabando por engolir a
Terra. Quanto ao fim do Universo, há várias hipóteses: a morte térmica, em 100 bilhões
de anos, o big-crunch, o big-rip, ou, quem sabe uma súbita aniquilação total, com retorno
ao nada primordial, por mera flutuação quântica do estado total do Universo. São con-
jecturas, mas, tão ou mais plausíveis que o drama apocalíptico, este sim, uma obra prima
de ficção científica.
Talvez vocês se perguntem por que insisto em tentar convencê-los da inexis-
tência de Deus, como aliás o faço com todo mundo. Considero esta a missão a que me
propus, ao lado de espalhar o máximo de conhecimento científico, filosófico, histórico e,
mesmo, religioso, sob uma ótica abrangente e antropológica, isto é, sobre a gênese, dou-
trina e estrutura de todas as religiões. Sou ateu porque é mais honesto, mais verdadeiro,
mais coerente, mais responsável, mais racional, mais evidente, mais justo, mais simples,
mais honrado, mais lúcido, mais inteligente, mais consciente, mais caridoso, mais

60
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
comprometido com o prevalecimento do bem e a erradicação do mal, sem outorgar isto
a nenhum hipotético preposto.
De fato, considero que as pessoas que acreditam em Deus cometem um
grande equívoco e desviam seu tempo, sua energia e seus recursos para algo inócuo,
enquanto poderiam despendê-los no trabalho de tornar o mundo melhor, mais justo,
equitativo, honesto, fraterno, pacífico e feliz para todos
Outra concepção que abraço e procuro divulgar é o anarquismo.
A palavra “Espírito” no livro do Conte-Sponville não significa uma entidade
etérea, mas tem a conotação de ideia predominante, sentido ou significado. Por outro
lado, é preciso entender que “espiritualidade” não tem nada a ver com “espíritos”.
Entendo por “espírito” um tipo de entidade etérea, não física, incorpórea, ima-
terial, que não tem massa nem volume, nem cor e nenhuma propriedade física, como
posição, velocidade, não emite som nem luz, mas possui individualidade, autoconsciên-
cia, raciocínio, emoção, vontade, personalidade, temperamento, caráter e é capaz de ter
uma percepção do mundo físico, além de poder agir sobre ele, provocando efeitos físicos
oriundos de uma causa não física, e ainda ser capaz de captar pensamentos e, possivel-
mente, comunicar-se diretamente com as mentes dos seres vivos. Na concepção dualista
do mundo, considera-se que o espírito seja a sede do psiquismo e a substância da “alma”,
isto é, da componente do ser vivo que lhe vivifica o corpo. Assim, a vida seria dada ao
corpo pelo espírito, que, então, seria sua alma. Assim concebidos, alma e espírito se con-
fundem, pelo menos para os seres humanos. Mas haveria espíritos que não seriam almas
de nenhum corpo, como os anjos e demônios. E, quando desencarnadas, as almas seriam
simplesmente espíritos, não estando vivificando nenhum corpo. Tenho para mim que tal
tipo de coisa simplesmente não existe e só conseguirei aceitar que exista se isto me for
demonstrado de forma cabal e inequívoca, o que, até hoje, não vi.
Por outro lado, entendo a espiritualidade como uma elevação mental, isto é,
uma dedicação e um comprometimento de toda a inteligência, da vontade e da sensibi-
lidade com os padrões mais elevados não só de conduta, mas também de interesses.
Considero que a citação de ditos de outras pessoas não tem valor por terem
sido ditas por quem as disse, mas apenas se, em si mesmas, forem válidas, verdadeiras
e convincentes. O fato de alguém ter sido um expoente em algum aspecto não faz com
que tudo o que diga seja igualmente valioso. O próprio Einstein, cuja obra estudei ex-
tensa e profundamente, pois minha especialização, em Física, é na Teoria da Relatividade
e em Cosmologia, fez muitas afirmações erradas em Mecânica Quântica (teoria de que
foi um dos fundadores, inclusive), como a famosa: “Deus não joga com dados” a respeito
da interpretação probabilística da função de onda. Isso devido a suas arraigadas convic-
ções deterministas. É preciso que estejamos dispostos a abandonar nossas mais profun-
das e caras convicções face a verdades evidentes e comprovadas. Nada é definitivo. Ci-
tações de versículos da Bíblia ou suratas do Corão não significam atestados de veraci-
dade. Em cada caso há que se analisar o que é dito, o que significa no contexto em que
foi escrito e se corresponde a coisas ou fatos realmente verdadeiros por critérios científi-
cos e filosóficos de validação. Fé não garante validade a coisa alguma, como já explanei
inúmeras vezes.

61
SOBRE O ATEÍSMO
Para finalizar essas considerações quero discutir a questão levantada por mui-
tos que, mesmo acatando as argumentações sobre a inexistência de qualquer tipo de re-
alidade sobrenatural, ainda receiam abraçar convictamente o ateísmo por medo de esta-
rem equivocados e, existindo mesmo Deus, alma, céu e inferno, serem condenados à da-
nação eterna por terem se tornado ateus. Trata-se da “Aposta de Pascal”, pela qual ele
argumenta que, como não se sabe se Deus existe ou não, por garantia, mesmo que se
esteja errado, é melhor considerar que exista, para não perder a alma. Bem, supondo que
Deus exista e que seja bom, se se concluiu, de boa-fé, por sua inexistência, isso foi feito
com o uso da inteligência que teria sido um dom dado por ele. Então ele não poderia
condenar o ateu sincero e convicto, pois este assim o seria em decorrência das próprias
qualidades que teriam sido dadas por Deus. Claro, considerando que esse ateu tenha,
sob outros aspectos, levado uma vida benemérita.
Portanto, considerando tudo o que foi dito, concito a que se reflita bem sobre
a questão e se aceite como fato bem estabelecido a inexistência de deuses, espíritos, al-
mas, anjos, demônio, céu, inferno e qualquer tipo de realidade sobrenatural. E que se
assuma declaradamente essa convicção, proclamando-a socialmente, bem como envi-
dando esforços de esclarecimentos das pessoas para que também concluam o mesmo.
Um aspecto importante que se tem que ressaltar é que o fato de se ser ateu não implica,
como muitos consideram, que se seja uma pessoa de mau caráter, de mau coração, imo-
ral, cruel e tudo de ruim. Do mesmo modo que um crente, um ateu pode ser tanto uma
boa como uma má pessoa. São aspectos independentes da personalidade, do caráter e da
cosmovisão pessoal. Espero que o leitor deste texto possa ter chegado a sua conclusão e
abrace a causa do ateísmo, em prol do bem do mundo.

62
2. SOBRE A ANARQUIA
Para iniciar é preciso que fiquem entendidos alguns conceitos.

Povo é um grupamento de seres humanos que compartilhem atributos como a língua, a


etnia, as origens históricas, os costumes, a cultura e laços de cooperação e autodefesa.
País é um território geográfico habitado por um povo. Contudo pode haver povo que
não tenha um país. Como os ciganos. Nação é um país estabelecido de modo formal,
munido de instituições fixadoras de suas características e de um sistema estabelecido
de gestão de sua sociedade. Há países que não são nações. Como a Groenlândia. Estado
é o ordenamento jurídico de uma nação, constituindo-se de uma entidade de direito,
possuidora de soberania sobre sua população. Há estados que abrangem mais de uma
nação. Como o Reino Unido. Governo é o sistema administrativo que gerencia o funcio-
namento do estado. Em geral, os Estados possuem governos. A humanidade povoa o
planeta Terra, dividindo-o em países, com poucas exceções, como a Antártida, e os paí-
ses fazem parte de estados que possuem governos. Política é atividade humana que
cuida de estabelecer os governos e fazê-los funcionar.

Economia é a atividade humana que cuida de prover as pessoas dos bens que elas fa-
zem uso para as necessidades de sua vida, bem como para a satisfação de seus desejos,
mesmo não necessários. Por bem se entende tudo o que possa ser usado em proveito da
vida dos seres humanos. Parte relevante da política é gerenciar a economia de um
povo, para que as necessidades sejam providas de forma satisfatória, do mesmo modo
que buscando suprir o povo de bens, até supérfluos, que lhes venha satisfazer os dese-
jos. Todavia nem só da economia cuida a política.

A política também cuida da defesa do país, da saúde do povo, da distribuição da jus-


tiça, da garantia dos direitos das pessoas, da segurança interna, da formação educacio-
nal do povo, do relacionamento com outras nações e outros assuntos. Para exercer seu
papel, a política se vale do exercício do Poder, que é a capacidade de coagir o povo a
cumprir o que seja estabelecido para a obtenção dos resultados pretendidos.

O Poder é particionado em três aspectos: Legislativo, Executivo e Judiciário.

O poder Legislativo, normalmente exercido por um ou dois colegiados eleitos direta-


mente pelo povo (parlamento, senado ou câmaras alta e baixa), elabora as normas (leis)
que deverão reger o funcionamento do estado e aprovam as iniciativas propostas pelo
poder Executivo. O Poder Executivo elabora propostas para gerenciar o funcionamento
do Estado, a serem submetidas ao Poder Legislativo, bem como providencia a execução
das decisões tomadas a respeito dos assuntos. O Poder Judiciário fiscaliza o cumpri-
mento das normas (leis) pelos outros poderes e pelas pessoas do povo, aplicando, se for
o caso, sanções estabelecidas por seu não cumprimento.

63
SOBRE A ANARQUIA
Para dar conta disso, a política pode se estabelecer de acordo com vários regimes políti-
cos.

Um regime Autocrático ou Totalitário é aquele em que o poder se encontra concen-


trado nas mãos de uma pessoa ou de um grupo restrito, que o exerce a seu bel-prazer,
sem o consentimento do povo sobre o qual é exercido. São as ditaduras e as monar-
quias absolutistas. Nos regimes autocráticos ou totalitários, a pessoa ou o grupo deten-
tor do poder exerce, sozinha, os poderes legislativo, executivo e judiciário. Há casos,
contudo, em que há essa separação, mas os poderes legislativo e judiciário trabalham
em atendimento aos desejos do poder executivo. Um regime Democrático é aquele em
que o poder é concedido a representantes escolhidos pelo povo, ao qual têm que pres-
tar contas e pelo qual podem ter o poder destituído. São as repúblicas e as monarquias
constitucionais. Um regime Acráto ou Anárquico é aquele em que o funcionamento da
sociedade se dá sem a existência de um governo, por meio de articulações adrede esta-
belecidas para cada empreendimento, entre os próprios membros da população.

Esses regimes podem acontecer de várias formas.

República é a forma de governo em que os governantes são escolhidos por meio de


eleições e exercem o poder em mandatos com tempo determinado. As eleições podem
ser gerais ou restritas a um grupo selecionado de eleitores (o parlamento, por exemplo)
Monarquia é a forma de governo em que o governante máximo é uma pessoa que ad-
quire esse direito pelo fato de ser herdeiro de certa família ou por uma escolha reali-
zada apenas entre um grupo selecionado de pessoas (caso do Papa) e que exercem seu
poder de forma vitalícia.

Dentro dessas formas de governo, ele pode ser exercido por dois sistemas de governo.
No sistema parlamentarista, o parlamento exerce, também, o poder executivo, além do
legislativo, por meio de um Primeiro Ministro, escolhido entre os parlamentares. Nesse
caso, o Monarca ou o Presidente da República atuam apenas como Chefes de Estado e
não Chefes de Governo. No sistema presidencialista, só nas repúblicas, o Presidente de
República tanto é o Chefe de Estado quanto o Chefe de Governo.

Um aspecto crucial que diferencia os regimes políticos autocratas dos democratas e


ácratos é a questão da liberdade. Nas democracias e acracias as pessoas gozam de plena
liberdade, apenas restrita a não poder fazer o que seja maléfico para os outros, para a
sociedade e para a natureza, isto é, não cometerem crimes, desonestidades e malvade-
zas em geral. No mais podem agir do modo que preferirem, como também fazer o que
quiserem. Nos regimes autocratas ou totalitários, todavia, existem inúmeras restrições
às liberdades das pessoas para fazer inúmeras coisas ou agir de variados modos. Inclu-
sive, até, de expressar o seu pensamento.

Para entender a economia é preciso, também, compreender alguns conceitos.


64
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
Para começar, existe o Capital e o Trabalho. Dentro do capital se colocam as matérias
primas, os meios de produção e os bens intermediários. O trabalho tanto pode ser o de
transformação dos bens quanto a prestação de serviços. As matérias primas são os re-
cursos providos pela natureza, como a terra, a água, o ar, os vegetais, os animais e os
minerais. Os meios de produção são as ferramentas, as instalações (fábricas) e os conhe-
cimentos. Outro importante componente da economia é a moeda, instrumento interme-
diário de troca dos bens e serviços. A posse da moeda também é uma modalidade de
capital.

Em relação ao modo de condução da economia, as nações podem ser capitalistas, socia-


listas ou comunistas.

No regime econômico capitalista, o capital é detido por uma parcela da população que
lhes tem a posse. Outra parcela da população aluga sua força de trabalho (geralmente
em troca de moeda, por meio do salário) para realizar as transformações desde a maté-
ria prima até os bens de consumo direto, bem como a prestação de serviços. O capita-
lismo é, pois, um regime socialmente desigualitário em que a primazia é concedida ao
capital em detrimento do trabalho, considerado a atividade de segunda categoria. Em
geral, nas nações capitalistas, a maior parte da economia é exercida pela iniciativa pri-
vada da população (os empresários), mas parte também é exercida pelo próprio estado.
Para obter recursos para exercer sua parte na economia, o estado se vale da cobrança de
impostos e taxas. Em uma democracia, a união com o capitalismo costuma ser chamada
de “Liberalismo Econômico”.

No regime econômico socialista, o controle e a execução da economia é feito pelo es-


tado, que se torna o patrão de todos os trabalhadores, que dele recebem seu salário. O
socialismo seria uma tentativa de fazer uso do estado para garantir que a sociedade
toda fosse beneficiada pela atividade econômica, e não apenas os detentores do capital.
Uma situação intermediária existe nas nações socialdemocratas, em que o capitalismo
pode ser exercido privadamente, mas sob o controle do estado. Tal forma é justificada
para garantir o “bem-estar social” da população. Ao mencionar “socialismo” apenas,
me refiro ao socialismo estatista, geralmente existente em regimes políticos autocráti-
cos. Como o que se deu na extinta União Soviética. Tais regimes, infelizmente, foram
denominados, incorretamente, de “comunistas”, mas nunca o foram e nem o são, os
que atualmente assim se dizem.

O regime econômico comunista, verdadeiramente, é aquele em que os trabalhadores


também são os detentores do capital das empresas, não havendo empregados assalaria-
dos (nem do governo) e nem patrões que apenas aufiram rendimentos de capital. To-
dos são trabalhadores e sócios das empresas, não havendo atividade econômica por
parte do governo (se houver). Os trabalhadores também podem ser sócios de empresas
em que não trabalhem. Até o momento não existiu nenhuma nação verdadeiramente
65
SOBRE A ANARQUIA
comunista na Terra. Isso significa que, no Comunismo, o trabalho é colocado no mesmo
nível que o capital, para efeitos econômicos. Ou seja, o comunismo é, economicamente,
igualitário.

Nas considerações acima expostas se considerou que os bens produzidos pelas ativida-
des econômicas seriam distribuídos à população por meio de trocas, quer diretamente,
quer indiretamente, pela intermediação da moeda. No entanto há outra forma de distri-
buição dos bens produzidos pela economia, especialmente adequada ao regime econô-
mico comunista. Trata-se da ECONOMIA DE DOAÇÃO. Ela consiste em que os bens
extraídos e transformados, bem como os serviços prestados, sejam “doados” à popula-
ção sem troca por nada. Ou seja, tudo é de graça e ninguém ganha nada pelo que faz.
Assim todos terão tudo o que precisam e mais ainda, sem haver distinção nenhuma en-
tre ricos e pobres. A diferença será apenas a ocupação de cada um. Quanto ao mais, não
há nenhuma diferença com relação a uma economia monetária. Uma economia de doa-
ção não é uma economia primitiva. Ela pode ser altamente sofisticada e muito desen-
volvida tecnologicamente. Certamente almas atividades deixam de existir, como as ati-
vidades bancárias, as Bolsas de Valores e tudo o que seja relacionado ao dinheiro. Mas
a ciência da Economia persistirá como uma ciência e uma técnica de produção e distri-
buição dos bens.

Outro aspecto importante numa economia comunista é o princípio do compartilha-


mento e da coletivização, em substituição ao individualismo. Ou seja, todos os bens são
compartilhados entre as pessoas, ninguém sendo proprietário particular de nada. E
tudo se torna coletivo, como as habitações, os veículos de transporte, as vestimentas, os
alimentos, os livros e bens culturais e o que mais seja. As pessoas fazem uso do que
precisam e devolvem ao depósito em perfeitas condições para serem usados por outros.
Numa sociedade assim não há residências monofamiliares e sim, coletivas, os Falansté-
rios. Há refeitórios coletivos, lavanderias coletivas, vestuários coletivos e assim por di-
ante. Tal situação consubstanciará uma imensa economia de escala, possibilitando que
uma quantidade muito menor de bens possa atender a um número muito maior de
pessoas, diminuindo tremendamente o tempo e o esforço requeridos para sua produ-
ção e, portanto, aumentando consideravelmente o tempo de lazer das pessoas.

Falanstérios são grandes edificações em que dezenas ou centenas de pessoas residem.


Neles há dormitórios, refeitórios, cozinhas, lavanderias, vestuários, creches, salas de la-
zer para tudo, horta, pomar, bibliotecas, ambulatório, escola, salas de estudo, sala de
música, espaço para festas, espaço para práticas de atividades físicas, jardins, bem
como uma garagem para veículos de uso compartilhado. Enfim, uma mini- cidade. As
pessoas que neles residirem revezarão todos os trabalhos de manutenção e atendi-
mento das necessidades de todos, sem necessidade de serviçais. Os falanstérios aten-
dem a um dos princípios básicos do comunismo que é, justamente, a concepção de que
tudo seja “comum”, sem individualização e posse particular de nada.
66
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
Em uma nação comunista o transporte é, essencialmente, coletivo. Para o caso de emer-
gências, há garagens com veículos disponíveis para qualquer um usar nas necessida-
des. Sempre que possível, os deslocamentos se dão por bicicletas, que ficam disponíveis
em estacionamentos e podem ser pegas e deixadas em qualquer um. Um dos ideais de
uma sociedade comunista é o desmantelamento das grandes cidades e a distribuição da
população através de um grande número de cidades médias em que, cada uma, se es-
pecialize em uma principal atividade econômica. Dá para se perceber que o comu-
nismo, de modo inteiramente diverso do socialismo, não pode ocorrer em um regime
político autocrata. Ou é democrata ou ácrata. Em verdade, o comunismo é um regime
econômico que dispensa o governo. Portanto a situação ideal para se estabelecer o co-
munismo é dentro de uma anarquia. Tal situação é dita “Anarco-Comunismo”.

Todavia um regime político anárquico (ácrata) pode existir com um regime econômico
capitalista. Nesse caso, não havendo governo, todas as atividades são exercidas pela
iniciativa privada, mesmo as que, em regimes políticos em que há governo (cracias) são
exercidas pelo governo, como a justiça, a segurança, a diplomacia, a defesa e outras.
Certamente, nesse caso, não há cobrança de impostos e nenhum organismo controlador
de qualquer atividade econômica, que ficam regidas, exclusivamente, pelas leis de mer-
cado, da concorrência e da oferta e da procura. Tal situação, seguramente, é muito da-
nosa para a parcela da população mais carente.

A anarquia comunista, por outro lado, mesmo sem governo, é uma situação inteira-
mente distinta. As atividades, econômicas ou não, são todas exercidas, não por iniciati-
vas privadas, mas por iniciativas coletivas. Para cada empreendimento é constituída
um grupo de trabalhadores que nomeia uma comissão coordenadora que elaborará as
diretrizes, os projetos e gerenciará a condução do empreendimento. Isso vale para
tudo. Em alguns casos o empreendimento será permanente e, em outros, temporário,
dependendo de sua natureza. Escolas, fazendas e hospitais, por exemplo, são empreen-
dimentos permanentes. A construção de uma ferrovia é um empreendimento temporá-
rio, mas sua manutenção é permanente. A construção civil de dada edificação é tempo-
rária, mas a atividade de construção é permanente, pois sempre haverá nova constru-
ções, bem como a reforma das existentes. O estabelecimento de uma empresa de trans-
porte aéreo é um empreendimento permanente. Uma fábrica de aviões é um estabeleci-
mento permanente, do mesmo modo que uma mina de ferro, uma siderúrgica, uma ex-
ploração de petróleo, uma refinaria e fábricas de tudo o quanto há. As comissões coor-
denadoras ou gestoras dos empreendimentos tomarão todas as providências para que
ele se desenvolva, como a obtenção dos insumos, a produção fabril e a distribuição dos
produtos. Nenhuma dessas atividades, contudo, implicará em qualquer interveniência
monetária. Tudo é feito de graça. Nada é comprado e nada é vendido. Tudo é distribu-
ído. Os trabalhadores trabalham de graça, mas, por outro lado, obtêm tudo o que preci-
sam ou queiram (se for possível atender) de graça: habitação, alimentação, vestuário,

67
SOBRE A ANARQUIA
transporte, educação, assistência médica e, inclusive, lazer. A contrapartida é o traba-
lho. E trabalhadores são todas as pessoas, mesmo os planejadores e gestores. Apenas as
crianças, os idosos e os inválidos terão tudo o que precisam ou queiram de graça, sem
terem que trabalhar. Sendo comunista, isto é, tudo sendo de uso comum, a economia
de escala para a sociedade fica extremamente aumentada. Ou seja, tem-se que trabalhar
muito menos para se obter os mesmos benefícios. Daí o grande aumento do tempo dis-
ponível para o lazer.

Um aspecto que não pode deixar de ser ressaltado é que o anarco-comunismo é um re-
gime político-econômico que requer, necessariamente, que a população seja toda ela
constituída de pessoas responsáveis, conscientes, comprometidas, diligentes e total-
mente probas. Isto é, um mundo de pessoas completamente virtuosas. Esse é o maior
desafio, que alguns consideram inatingível, mas é atingível.

Na Socialdemocracia, o regime de governo é democrático e a economia é capitalista,


mas sob um rigoroso controle governamental e com expressiva parcela executada pelas
próprias mãos do estado. É o que acontece nas nações escandinavas, Noruega, Suécia,
Dinamarca, Finlândia, bem como o Canadá, a Holanda, a Irlanda, a Bélgica. O estado
propicia um grande número de benefícios para a população, como educação e assistên-
cia médica gratuita, salário desemprego bom, bom sistema viário, boas aposentadorias.
Em compensação cobra um imposto bem alto. Existe, também, o “Socialismo Demo-
crata”, que difere da Socialdemocracia por não admitir a posse privada de capital,
sendo ele completamente estatal, mas existindo um regime político perfeitamente de-
mocrático e não como nos países em que o Socialismo Estatal é gerido por um governo
autocrático, como foi o da União Soviética.

Em termos sociais, as nações podem diferir quanto ao grau de conservadorismo e liber-


tarianismo. Essas concepções, em tese, são independentes das concepções políticas e
econômicas. Todavia há certa correlação entre capitalismo com conservadorismo, auto-
cracia com conservadorismo, comunismo com libertarianismo e democracia e acracia
com libertarianismo (mas não entre capitalismo e autocracia e nem entre comunismo
com democracia e acracia). O conservadorismo ou tradicionalismo é a concepção social
de que o modo de vida das pessoas deva permanecer como se estabeleceu historica-
mente no passado. Isso inclui os costumes sociais, especialmente os ligados ao compor-
tamento gamético, como a condenação das relações homoafetivas. O libertarianismo,
por outro lado, considera que as pessoas tenham a liberdade de agir como queiram,
desde que não façam mal a ninguém. Isso se explicita, principalmente também, no
comportamento gamético, como a aceitação das ligações homoafetivas e, mesmo, das
ligações gaméticas plurais consentidas.

O estabelecimento ideal da sociedade, com vistas à maximização da felicidade para o


maior número de seres (inclusive não humanos) é um regime político ácrato, com um
68
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
regime econômico comunista, em uma sociedade libertária. Tal combinação é a situa-
ção social mais ética que se pode conceber. O estabelecimento dessa tríade de situações,
contudo, não é algo de fácil monta e requer um ingente e prolongado esforço de quem
nutra esse ideal para a humanidade. Especialmente porque requer, de toda a popula-
ção, uma elevada consciência ética e uma tremenda responsabilidade social, associada
à máxima diligência e dedicação ao bem comum. Em suma, é uma situação em que to-
dos têm que ser completamente altruístas e subidamente virtuosos. Trata-se, principal-
mente, de uma cosmovisão pessoal a ser assumida por todos, ou seja, atingida, antes de
mais nada, por uma transformação pessoal do caráter de cada um, para, então, poder
ser expressa como uma transformação social. Daí ser um processo que não se alcança
por nenhuma revolução, mas sim pela evolução civilizatória da humanidade, condu-
zida por meio do processo educativo. A impossibilidade de se atingir o anarco-comu-
nismo por meio de uma revolução (como queria Bakunin) está no fato de que, sendo
vitoriosa, precisará conter os vencidos pela força e a aplicação de força requer a existên-
cia de um poder político que a anarquia não admite existir.

Outro aspecto essencial do anarco-comunismo é que, sendo um regime político e eco-


nômico que não considera a existência nem do estado nem de seu governo, também
não admite a existência de fronteiras nacionais. Uma coisa que não existe é um “Estado
Anarquista”. Ao se estabelecer a anarquia, deixa de haver um estado. Como poderia
um país anarco-comunista comercializar com outros se não possui moeda? Como po-
deria estabelecer relações diplomáticas se não há um governo e nem um chefe para re-
presentá-lo? Isso significa que a anarquia só tem viabilidade se for algo existente no
mundo todo. Isso é, se não houver estado nenhum, nação nenhuma. Mesmo que se
possa considerar a existência de países. A extinção dos governos tem que ser global.

A questão então é como pode acontecer essa mudança completa das concepções políti-
cas e econômicas? Seria isso algo possível? A resposta é que sim, mas não é fácil. Aliás,
muito mais difícil do que uma transformação por meio de uma revolução, que vimos
não funcionar para o atingimento da anarquia comunista. Tem que ser por meio de um
processo evolutivo gradual, mas firme, que demanda décadas, séculos ou, até, milê-
nios. Como seria esse processo?

Como dito, o atingimento do anarco-comunismo é um processo que se dá, em primeiro


lugar, na mentalidade das pessoas. Portanto é algo que tem que ser desenvolvido por
meio da educação. É ela que fará as pessoas passarem a considerar, desenvolver e, fi-
nalmente, defender e promover um mundo anarco-comunista. Então, antes de tudo, é
preciso que o processo educativo contemple o estudo de questões políticas, econômi-
cas, éticas e sociais de modo muito sério. Não basta o estudo de Sociologia como é feito
atualmente, mesmo que ele também seja necessário, como o de Filosofia, e tem que ser
para os estudantes que seguirão qualquer atividade futura na vida. No nível médio da
Educação Básica. O conteúdo pode estar inserido dentro das disciplinas de Sociologia e
69
SOBRE A ANARQUIA
Filosofia, mas tem que ser explicitado e exigido nas avaliações. Sem deixar de incluir
Ética e Moral, que são essenciais para a anarquia comunista. Mas não pode ser algo im-
posto como se dá, por exemplo, na educação confessional religiosa. Tem que ser um
tema filosoficamente exposto para estudo e reflexão. A conclusão pela superioridade
do anarco-comunismo deve ser alcançada racional e afetivamente. Claro que, antes de
tudo, é preciso que a educação em nível médio seja acessível à totalidade da população
e que seja, sempre, de alta qualidade.

Para mim, um dos mais graves defeitos da civilização capitalista é o seu espírito com-
petitivo. As pessoas são criadas com a noção de que precisam vencer para ter sucesso.
E esse vencer não é apenas superar suas deficiências. É derrotar os outros, mesmo. A
vida cotidiana é cheia de ocasiões em que existem disputas e alguém vence enquanto
outro perde. Os esportes são assim. Tal noção é extremamente maléfica para o bem co-
mum.

O ideal é que todos se empenhem para ajudar uns aos outros a vencerem suas próprias
limitações, de modo que todos tenham sucesso e o sucesso de um nunca dependa do
insucesso de outro. Que os esportes não sejam competitivos, sem vencedor e nem per-
dedor, mas apenas atividades físicas e lúdicas, que desenvolvam o corpo e a mente de
modo prazeroso sem que ninguém tenha que derrotar ninguém. Que os negócios sejam
feitos de forma colaborativas, todos os colegas de atividades se auxiliando mutuamente
para que todos obtenham mais resultados. Que ninguém deseje que outra pessoa leve
desvantagem em nada, pelo contrário, que todos se unam para que todos consigam o
que desejam.

Essa é uma concepção que tem que estar arraigada na cosmovisão de cada um. É uma
perspectiva totalmente oposta à que vigora no mundo capitalista. Mas é assim que se
conseguirá construir uma sociedade justa, harmônica, fraterna, próspera e feliz para to-
dos e não só para alguns. Essa mentalidade é uma condição para que se atinja uma so-
ciedade ácrata, em que não haja mandantes e nem servidores, patrões e nem emprega-
dos, em que ninguém seja dono de nada e tudo seja de todos. Essa sociedade sem na-
ções e sem fronteiras, sem governo e sem dinheiro só será alcançada por meio da cola-
boração sem competição, da extinção do egoísmo, da ganância e, principalmente, da
preguiça. Todos têm que trabalhar de graça, com afinco, uns pelos outros. Assim todos
serão beneficiados, não haverá pobres e nem ricos, todos poderão trabalhar muito me-
nos e fruir muito mais lazer.

O anarquismo é o verdadeiro pós-modernismo. A modernidade se caracteriza, social,


cultural e economicamente, pela democracia, o liberalismo, o mercado livre, o livre-
pensamento, o individualismo, a globalização. Mas ainda existem nações, propriedade,
dinheiro, religiões, família. Nos dias atuais, na sociedade ocidental e na classe média,
vivenciamos uma exacerbação da modernidade, que poderia se chamar hiper-
70
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
modernidade, com um crescimento da licenciosidade. Mas nada disso é pós-moder-
nismo. O anarquismo é que é o pós-modernismo, pois é uma ruptura total com os para-
digmas estabelecidos para a sociedade. Trata-se de um comunitarismo não individua-
lista, sem fronteiras, propriedade, dinheiro, governo, religião e família, mas com muita
responsabilidade, solidariedade, diligência, altruísmo.

Minha concepção de comunismo é democrática e libertária. Não é o comunismo de es-


tado, imposto, mas um comunismo abraçado pela própria sociedade, que prefiriria cha-
mar de comunitarismo, que não exclui, por enquanto, o capital e a propriedade, mas os
fragmenta e distribui. Até que o dinheiro e a propriedade venham a ser abolidos por
absoluta falta de necessidade, mais ou menos como o plano real acabou com a inflação.
Essa é uma tendência natural da humanidade e será alcançada em poucos milênios, de
forma espontânea. Minha concepção comunista é anarquista, mas sou pacifista, isto é,
não prego nenhuma revolução para chegar lá. Acredito que isso será obtido ao longo
do tempo (vários séculos ou até milênios) por meio da educação. Além disso, considero
que o caminho para o anarquismo não é o socialismo nem o comunismo de estado, mas
sim o capitalismo liberal cada vez mais pulverizado e o comunitarismo, que envolve
ações políticas de iniciativa das comunidades, sem intervenção do poder formal, na
forma de mutirões, por exemplo. Isto é, não acabar com os patrões, mas transformar
todo trabalhador em patrão. O cooperativismo também é uma linha para o anar-
quismo. Deve-se cada vez mais trabalhar de graça pela comunidade até que o dinheiro
se faça desnecessário.

Isso é um projeto para longo prazo, da ordem de vários séculos. O ser humano não é
bom nem mal por natureza, mas é capaz de ambas as posturas. É a educação que o fará
optar por uma ou outra. Esforços continuados por séculos a fio levarão à abolição da
preguiça e da cobiça, condições para o estabelecimento do anarquismo. O poder tem
que ser gradativamente diluído até não precisar de existir. Ações desvinculadas do di-
nheiro levarão a que ele seja abolido por falta de necessidade. O crime deixará de exis-
tir por ausência de motivo, já que nada é de ninguém e tudo é de todos (inclusive mu-
lheres e maridos). A competição será trocada pela colaboração que é muito mais produ-
tiva em termos de prosperidade global. O individualismo trocado pelo coletivismo.
Isso é possível sim, mas precisamos começar agora, sem revoluções nem traumas. O se-
gredo está na educação, educação para a solidariedade, para o altruísmo, para a dili-
gência, para a honestidade, para o justiça, para a tolerância, para a compreensão, para a
colaboração, para a verdade, para o bem, para a generosidade, para a coragem, enfim…
para a virtude, sem esquecer a fortaleza e a bravura no combate ao mal. Não por re-
compensa nenhuma, sequer a salvação eterna, mas porque isso é o que é certo a fim de
se ter uma sociedade justa, harmônica, igual e fraterna para que todos sejam prósperos
e felizes.

71
SOBRE A ANARQUIA
O problema de se querer rapidez na libertação do controle capitalista é que isto levará,
fatalmente, a choques, conflitos e revoluções que, normalmente, apenas substituem a
tirania do capital pela tirania dos novos detentores do poder, que vencerem. Nada
disso é anarquismo. No anarquismo não há poder de ninguém, nem do capital, nem da
aristocracia, nem do partido comunista. Alienação se combate com educação. Esse é o
segredo. Que todos os que desejem um mundo melhor se dediquem a educar a juven-
tude para se libertar do consumismo, da cobiça, da preguiça, da ganância, da competi-
ção e se tornar solidária, cooperativa, generosa, altruísta.

De qualquer modo, se nada disso der certo, o capital sucumbirá por asfixia da massa de
trabalhadores, pois ele só existe se houver trabalhador e consumidor. Se se exacerbar o
lucro dos mais ricos, quem irá consumir? Para haver consumo há que ter distribuição
de renda, e isto levará à melhoria do nível educacional, ao questionamento e a ações
positivas no sentido da pulverização do capital, até que ele não seja mais necessário. Os
detentores do capital não podem destruir as massas. A tendência natural é a diminui-
ção da diferença entre ricos e pobres, como ocorre nos países bem desenvolvidos, como
os escandinavos. O anarquismo é inevitável, mas vai demorar até que, por exemplo, o
Haiti seja tão desenvolvido quanto a Holanda, ou que todos na Índia sejam ricos. A po-
pulação não aumentará indefinidamente. Acredito que pare em menos de 14 bilhões lá
pelo ano 2300, se considerarmos uma curva logística, senão o resto morrerá de fome.
Enquanto isso, fatalmente haverá distribuição de renda, ou então haverá redução da
população pela fome. A produção de bens também terá um crescimento logístico, com
um ponto de saturação talvez em 2500, segundo posso aferir por uma projeção de da-
dos a sentimento. Isso se forem mantidas as atuais condições da dinâmica populacional
e econômica. Enquanto isso, há que se promover a distribuição pelo modelo do capita-
lismo pulverizado, em que todos os empregados se tornem patrões. Penso que até o
ano 2700 o anarquismo estará disseminado. Há que se promover, paralelamente, o cres-
cimento da tolerância religiosa até a abolição das religiões como instituições, ficando a
fé como assunto individual, pois as religiões são grande fonte de discórdia e conflitos.
No mais: educação…educação…educação.

Considero que a sociedade ideal seja anarco-comunista. Tal objetivo, contudo, só po-
derá ser atingido de forma espontânea e não revolucionária. A ditadura do proletari-
ado e qualquer forma de socialismo estatal está fadada à falência, pois substitui a tira-
nia do capital pela da burocracia. O caminho para o anarquismo é, pois, gradual e se
fundamenta principalmente na educação. Mas há que se esperar inúmeras décadas ou
séculos para que se torne realidade, já que só tem sentido se for uma situação geral
para o mundo, uma vez que não se pode abolir a existência de algum estado se ainda
houver outro. Estou falando de uma sociedade sem fronteiras, sem propriedade, sem
estado soberano, sem moeda, sem crime, sem pobreza, sem classes. Tal sociedade tem
que ser altamente evoluída e, certamente, extremamente culta e tecnologicamente

72
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
desenvolvida. Seu fundamento está no “comunitarismo”, isto é, na abolição das resi-
dências individuais e até mesmo da família unicelular. Alojamentos coletivos, refeitó-
rios coletivos, lavanderias coletivas, tudo comunitário. Inclusive maridos e mulheres
coletivos. Todo mundo trabalhando de graça e tendo tudo o que precisa de graça. Num
nível que pode chegar até ao luxo. Para todo mundo. Sem nenhum preguiçoso, ne-
nhum ganancioso, nenhum trapaceiro, nenhum ladrão. Todo mundo operoso, solidá-
rio, gentil, alegre e feliz. Isto é possível? Sim, é claro!

Qual o caminho?

Começa-se pela pulverização do capital, transformando todo empregado em patrão.


Continua pela dedicação de uma fração do tempo a trabalhos comunitários voluntários,
como hortas, creches, refeitórios etc., onde não se faz nada por dinheiro e se consegue
tudo por doação. Aos poucos vai se prescindindo do dinheiro para tudo. As pessoas
deixam seus carros em garagens coletivas para todos usarem. Seus pertences são es-
pontaneamente doados para centros comunitários onde há bibliotecas, salas de música,
cinemas, jogos. Tudo mantido por voluntariado. Com administração por comitês “ad
hoc” escolhidos entre os participantes. Tudo isto é bem possível.

E é pela educação que vai se começar a criar essa mentalidade nas crianças. Privilegiar
a cooperação ao invés da competição. Essas iniciativas comunitárias podem e devem
ser feitas de modo não oficializado. Nada de ong’s nem de fundações. As pessoas con-
seguem um terreno por doação, constroem uma creche em mutirões com tudo doado,
sem nota fiscal, sem imposto. E todos trabalham sem formalização nenhuma. Com um
compromisso feito pela palavra dada. Fazem horta para plantar os alimentos. Se se
abolir o consumo de carne, melhor ainda, pois a economia que se tem de comer o vege-
tal ao invés de usá-lo para engordar o gado é imensa. Ninguém precisa nem ter roupa
própria. Poderia haver vestuários coletivos. Isso não impede a existência de indústrias
sofisticadas, como a aeronáutica, que fabricariam aviões sem custo nem preço, para as
pessoas viajarem sem pagar passagem. Acho que um mundo assim é possível e fatal-
mente acontecerá.

Minha proposta para trilhar o caminho para o anarco-comunismo não é pela ditadura
do proletariado nem pelo estabelecimento de um estado totalitário, mas sim pela am-
pliação e pulverização do capitalismo, transformando todo empregado em patrão, pela
coletivização do capital das empresas. Paralelamente ao estabelecimento de acordos de
livre comércio, e conglomerados de fronteiras livres, como a União Européia, bem
como ao incentivo aos empreendimentos sociais de livre iniciativa, na forma de volun-
tariado, estas medidas, no correr do tempo, farão com que as fronteiras, o dinheiro, a
propriedade privada e até os próprios governos se extingam espontaneamente, por ab-
soluta falta de necessidade de existirem. Então a humanidade terá deixado a sua infân-
cia como espécie e entrará na adolescência de uma vida cuja maturidade eu antevejo
73
SOBRE A ANARQUIA
longeva da ordem de centenas de milhões de anos, em um estado de paz, harmonia, ci-
vilização, cultura, progresso, felicidade sem par, com a eliminação total de todo a cri-
minalidade, das doenças, da pobreza (sim, é possível uma situação em que todos os se-
res humanos sejam, de fato, ricos e não pouco. Isso se não houver propriedade privada
e nem dinheiro. Se nada for de ninguém e se tudo for de todos. A igualdade de oportu-
nidades será total e a motivação para qualquer crime não existirá, nem os passionais,
pois toda mulher será mulher de todo homem e todo homem será marido de toda mu-
lher. E toda criança será filha de todo adulto que será pai e mãe de toda criança. É pre-
ciso, contudo, um esforço educativo persistente ao longo de centenas de anos para ex-
tirpar os dois empecilhos a que isto venha a existir: a preguiça e a cobiça.

O Anarquismo não consegue se sustentar se não for Ateu. Uma sociedade ácrata, justa,
fraterna, harmônica e feliz para todos não pode coexistir com religiões escravizantes de
mentes. A condição de liberdade para o homem começa com ser um livre-pensador,
um cético, um ser racional que, não desprezando a emoção, liberta-se de toda e qual-
quer crença não fundamentada, pelo menos, em fortes indícios de veritabilidade.

Há uma noção errônea de que anarquismo seja uma bagunça total, porque não há
quem mande e todo mundo faz o que quer. Não é bem assim. Anarquismo realmente
significa ausência de governo, e, portanto, de estado e de fronteiras nacionais. Além
disto, o anarquismo envolve a ausência da propriedade privada e do dinheiro. Trata-se
de um comunismo verdadeiramente comunista, sem ditatura nem do proletariado nem
de ninguém. Tudo é de todos. Todos contribuem para o bem comum e o produto é
compartilhado por todos. Não há motivo para crimes, pois ninguém tem nada para ser
roubado. Nem os passionais, pois os homens e as mulheres também são compartilha-
dos por todos. Isso, absolutamente, não significa desordem e bagunça, mas sim um sis-
tema em que a ordem e a harmonia fluem naturalmente por consenso e desejo de to-
dos, como a melhor forma de se conduzir a vida, sem imposições. É claro que tal situa-
ção exige alto grau de conscientização, de solidariedade, de tolerância, de desprendi-
mento, de altruísmo e de generosidade, mas também de operosidade, de coragem, de
disposição, de vigor, de tirocínio, de inteligência, de sagacidade. Não para destruir,
oprimir, esmagar, derrotar, mas para construir, resgatar, reerguer, sustentar. Assim
propicia o mais elevado estado de felicidade, harmonia, alegria, prazer. Não é nada
como um estático, modorrento e chatíssimo “céu dos bem-aventurados”. É uma condi-
ção vibrante, lúdica, poderosa. É a realização plena do ideal do “Übermensh”, de Ni-
etszche, tão mal interpretado por muitos. É a plenitude da realização do ser humano
integrado à natureza e à sociedade, confiante, laborioso, tão viril quanto sensível, tão
honrado quanto modesto, tão sério quanto alegre, tão virtuoso quanto bem-humorado
e tolerante, espirituoso sem pernosticismo, culto sem esnobismo, altivo sem soberba,
forte sem crueldade. Tais qualidade só se podem alcançar na liberdade plena de uma

74
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
sociedade sem mando e nem grilhões, cuja ordem e cuja fortaleza sejam provenientes
do caráter e da virtude de seus membros: a ácrata.

Na sociedade ácrata não há escambo. Ninguém troca nada por nada. Todos produzem
e dão o máximo e o melhor de si para todos, e obtém tudo de que precisam de todos,
sem verificar nenhuma equivalência de valores. Todo mundo trabalha de graça e tem
tudo de graça, sem trocar por nada. Não é só o dinheiro que pode trazer corrupção,
mas a ideia de propriedade, mesmo não havendo dinheiro. O fundamental é uma mu-
dança radical nas profundas concepções de mundo das pessoas. Considerar que se é
parte da natureza e da sociedade, sem ter direito a nada particularmente para si. Des-
pir-se inteiramente do egoísmo e de toda maldade, tornar-se ingênuo como uma cri-
ança, confiante no seu semelhante, desprendido, solícito, dedicado. Tornar todas as
pessoas assim é um sonho perfeitamente realizável por um processo educacional contí-
nuo ao longo de poucos séculos.

Sociedade ácrata é uma sociedade sem governo, isto é, anárquica (são sinônimos).

Nessa sociedade ácrata não haveria nenhum imóvel que fosse propriedade de ninguém
para ser alugado. Simplesmente não haveria propriedade privada alguma. Tudo seria
coletivo: alojamentos coletivos (mesmo que em forma de bangalôs individualizados),
refeitórios coletivos, lavanderias coletivas, vestiários coletivos, garagens coletivas, bi-
bliotecas coletivas, salas de lazer coletivas. Tudo o que existe seria compartilhado, in-
clusive maridos, esposas, filhos e pais.

Ninguém morreria de tédio e desgosto, pois o tempo livre para o lazer seria enorme.
Quem quiser e gostar se dedicaria a esportes, cinema, diversões em geral, eventos cul-
turais, concertos, óperas, teatro, circo, shows, bibliotecas, caminhadas, excursões. Tudo
seria de graça.

Mas haveria muito trabalho também, para construir uma estrutura de alta qualidade
com excelente conforto para todos e não só para alguns. Luxo mesmo. Sofisticação, re-
quinte, apuro. Todo mundo com curso superior. Todo mundo culto. Ninguém pobre,
faminto, mal arrumado, sujo. Riqueza total e bem distribuída. Novos desafios tecnoló-
gicos de exploração interplanetária, submarina. A conservação da natureza.

Mas isto não é para daqui a décadas, mas daqui a séculos ou até milênios. A questão é
já ir construindo as condições para se chegar lá.

Para tal, é preciso, antes, mudar o homem, eliminar o egoísmo, a competição, a ideia de
tirar vantagem e “passar a perna”. Tornar todo mundo honesto, generoso, batalhador.
Acabar com a preguiça e a cobiça. Isto pode ser obtido por meio da educação ao longo
de dezenas de gerações.

75
SOBRE A ANARQUIA
Mas isso tudo só tem sentido se for global, no mundo todo. Algo como a Europa tem
que ser difundido pelo mundo todo até que sejam abolidas as fronteiras. Mas antes tem
que acabar com a pobreza e a ignorância, principalmente a religiosa, levando a uma to-
lerância ampla e colaboração desinteressada.

É possível chegar lá, mas é importantíssimo que tudo seja feito de graça e sem organi-
zações. Anarquismo não significa ausência de gestão, mas sim que a gestão é feita por
comissões “ad hoc” que escolhem um coordenador como se fosse “por empreitada”
para cada empreendimento.

A estrutura de produção e distribuição seria completamente diferente. Isso tudo tem


que ir surgindo gradualmente, de forma espontânea, e, quem sabe mesmo, ao longo de
alguns milhares de anos. Mas que poderia ser abreviada para apenas algumas centenas
de anos (digamos 700) se houver um esforço contínuo direcionado para isso.

Realmente, há que se ter um retorno a comunidades de pequeno e médio porte (até uns
200 mil habitantes), com o abandono das megalópoles. De qualquer forma isto aconte-
cerá, fatalmente, com a maior distribuição de populações pelas áreas rurais, antes que a
humanidade dobre de população.

Sim, esta UTOPIA é o mundo que eu almejo que se torne realidade e envido todos os
meus esforços nesse sentido. É o anarquismo, a sociedade ácrata, sem governo, sem
fronteiras, sem dinheiro, sem propriedade, sem crimes. Isto é perfeitamente possível e
tenho a convicção que esta é a tendência da humanidade e que chegaremos a esse está-
gio talvez em menos de mil anos. Mas podemos abreviar esse tempo por ações positi-
vas, principalmente na educação e no exemplo. Exemplo de trabalhar de graça pelos
outros, de doar os seus bens e se tornar despossuído, de organizar voluntariados para
empreendimentos comunitários. Sim, o dinheiro é um veículo de troca, e nada mais.
Não tem valor em si mesmo. Mas é inteiramente dispensável se pensarmos na Econo-
mia como os processos de produção e distribuição dos bens em si mesmos. Mas não em
troca. Nem se trata de escambo. Cada um produz tudo o que for capaz e cada um con-
some o que necessitar. Mas de modo espontâneo e não controlado pelo governo como
ocorreu com os países ditos comunistas, que simplesmente trocaram a tirania da aristo-
cracia pela tirania da burocracia partidária. Mas o povo continuou sem liberdade. Os
regimes comunistas caíram porque exatamente não eram comunistas coisa nenhuma.
Eram ditaduras e nem do proletariado. O capitalismo é um sistema econômico natural.
Se deixarmos todos por sua conta, sem imposições, surgirá o capitalismo. Só que pode
haver exploração dos mais fracos (em qualquer sentido) pelos mais fortes. Mas se um
grupo atuante puder convencer, pela educação e pelo exemplo, de que a felicidade será
maximizada quando todos participarem das riquezas (em termos de bens e não de di-
nheiro), então será possível pulverizar o capitalismo de tal forma (transformando todos
em patrões) que, a certo momento, o dinheiro perderá a razão de existir, como ocorreu
76
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
com a URV no plano real. Como não tem sentido haver um partido anarquista, pessoas
anarquistas se candidatariam a cargos legislativos por qualquer partido e proporiam
leis que, ao longo do tempo, promoveriam a participação dos empregados no capital
das empresas, até que tal coisa ocorresse. Levariam poucos séculos.

Certamente que é preciso haver coordenações de esforços e coibições de preguiçosos e


aproveitadores. Anarquismo não significa desordem, em absoluto. Pelo contrário. Sig-
nifica, inclusive, um sistema altamente organizado, porque orgânico, isto é, a ordem
ocorre de dentro para fora, por uma constatação de sua necessidade, sem imposição.
Outra característica do anarquismo que pode começar a ser implantada desde jé é o co-
munitarismo. Isto é: não haver residências particulares, mas sim, hospedarias coletivas,
lavanderias coletivas, refeitórios coletivos, vestuários coletivos, locais de lazer coleti-
vos, agrupados por regiões a cada mil pessoas, por exemplo. Com postos de saúde e
tudo que for preciso. Assim ninguém precisa possuir nada de seu, nem roupas, nem
carros, nem motos, nem televisores, nem geladeiras, nem louça, nem talheres, nada
mesmo. Tudo é de todo mundo e nada é de ninguém. Nem as mulheres, nem os mari-
dos. Todo homem o é de toda mulher e toda mulher o é de todo homem. E toda criança
é filha de todo adulto e todo adulto é pai e mãe de toda criança. Não havendo proprie-
dade (nem do cônjuge) não há quase motivo nenhum para qualquer crime. Para que
roubar aquilo que já se tem? Essas iniciativas já podem começar a serem implementa-
das em bairros, com creches, hortas, quadras de esportes etc. Mas nada feito pelo go-
verno e sim pelas próprias pessoas, que cedem seu tempo para trabalhar de graça na
construção e na manutenção, que doam os materiais. Tudo sem contabilidade, sem re-
gistro, sem formalidades legais. Espontâneo. Assim, daí a um certo tempo, o governo
se tornará dispensável.

Uma das perversidades da existência do dinheiro é a criação de desigualdades artifici-


ais pelo escalonamento do grau de riqueza material, expressa pelo quanto de dinheiro
se possui. Desigualdades naturais as há, quanto à inteligência, beleza, saúde, tempera-
mento, estatura, peso, etnia etc. Outras são socialmente impostas e precisam ser aboli-
das. Religião, por exemplo. Ninguém nasce tendo nenhuma religião, mas a sociedade
(a própria família) impinge uma à criança, o que lhe estigmatiza perante outras. A et-
nia, por exemplo, mesmo sendo uma desigualdade natural, só passa a ser motivo de
preconceito quando a sociedade lhe confere esse tipo de valor. Uma sociedade anar-
quista é completamente igualitária, principalmente quanto à riqueza. Todos são igual-
mente ricos, pois todos possuem tudo. E todos são igualmente pobres, pois ninguém
possui nada. Essa é a beleza maior do anarquismo: a liberdade, a igualdade e a fraterni-
dade totais e globais. Mas não se tem a liberdade de ser intolerante ou tolher a liber-
dade alheia. A sociedade desenvolverá mecanismos de coibir a intolerância, a preguiça,
a malandragem, a esperteza desleal e qualquer vício, sem que seja preciso haver polícia
nem prisões. Assim muitas profissões se tornarão inúteis, como bancários, advogados,

77
SOBRE A ANARQUIA
juízes, contadores e muitas outras. Com a coletivização de tudo, o tempo de lazer au-
mentará tremendamente, bem como a economia de recursos de toda ordem para se fa-
zer qualquer coisa. É o verdadeiro paraíso na Terra. Mas só pode existir se for em nível
de abrangência mundial. Não é possível haver um estado anarquista e só se podem
abolir os estados se não houver nenhum. Países sim, com sua diversidade cultural e lin-
guística. Mas não governos, nem estados, nem fronteiras. Religiões até pode haver,
desde que todas tolerem umas às outras e não restrinjam liberdade alguma das pes-
soas, exceto a de coibir a liberdade alheia ou ações malévolas. A ética prevalece, enten-
dendo por ética uma conduta maximizante da felicidade.

Uma das atitudes anárquicas mais louváveis que já temos é a da formulação dos sof-
twares livres, distribuídos gratuitamente, como o Linux. Eles não possuem autor. São
construções coletivas. Outra é a Wikipedia. Ou os livros disponibilizados gratuita-
mente como e-books. E músicas também. A internet é uma grande rede anárquica e é
fabulosa. É preciso que comecemos a tomar iniciativas desse tipo em nossa comuni-
dade. Isso é, que dispendamos parte do nosso tempo trabalhando de graça para benefí-
cio coletivo. Dando aulas de graça. Compartilhando nossa casa, nossos livros e outras
coisas com os outros. E convencendo a todos a agir assim. Consertando os buracos da
rua por nossa conta. Deixar o governo de lado cada vez mais e fazer tudo o que for pos-
sível por iniciativa própria coletiva e sem ônus para ninguém. Procurar aumentar a
economia informal o máximo possível. Quanto mais isto for disseminado mais vai
sendo desnecessário a existência de governo, até que ele caia de maduro, por não arre-
cadar mais imposto algum e não ter nada mais que fazer.

78
3. SOBRE O TEMPO
Richard Dawkins, em sua brilhante obra “Desvendando o Arco-Íris” comenta que o po-
eta inglês Keats havia dito que Newton tirara toda a poesia do arco-íris, ao decompô-lo
em suas cores primárias pelo prisma. Ao se iniciar a corrida espacial, no carnaval de
1961, Ângela Maria estourou com a marchinha “A Lua é dos Namorados”, de Ar-
mando Cavalcanti. Em geral há um sentimento de que a ciência tira a poesia do mundo
ao explicá-lo. Nada mais incorreto. Pelo contrário (e o livro de Dawkins exatamente se
dedica a demonstrar isto), o entendimento mais profundo dos maravilhosos mecanis-
mos da natureza é que nos enche de deslumbramento e, mesmo, de um sentimento de
enlevo, ao nos percebermos partícipes desta exuberância que é o Cosmos. E, nisso tudo,
está o tempo. Estamos inseridos nele, como tudo o mais. Há uma imbricação impossí-
vel de ser demolida entre tempo, espaço, matéria, movimento, existência, vida e consci-
ência e, em decorrência, tudo o que é produzido pelo pensar e fazer humanos, como a
poesia e a música em especial, que são as artes cujo objeto se desenvolve no tempo e
não no espaço. Assim, um entendimento dos fundamentos físicos do tempo talvez nos
faça poder apreciar ainda mais a beleza de tudo o que a literatura já produziu sobre o
tema. É o que intento desenvolver em sequência, num linguajar que acredito acessível
ao não especialista.

Em primeiro lugar é preciso entender que o espaço e o tempo não são elementos aprio-
risticamente estabelecidos sobre os quais se assenta o conteúdo substancial do Uni-
verso, que são os campos e suas concentrações (a matéria e a radiação). Se o Universo
teve um começo (pode ser que não, isto é, que sempre existiu), então, nesse começo
também se deu o surgimento do tempo e do espaço com o seu conteúdo (isto é, tudo!).
Não há sentido em se questionar o que havia antes por que, simplesmente, não havia
“antes”. O tempo não existia (nem o espaço). Não existe espaço sem conteúdo e nem
tempo sem movimento. Espaço é uma capacidade de caber algo, isto é, o conjunto dos
lugares possíveis para algo estar. Vácuo é um espaço sem matéria, preenchido só por
campos. Isso existe. Mas vazio, isto é, um espaço sem coisa alguma, não existe no Uni-
verso. O conceito físico de “nada” é o da ausência de tudo, inclusive de espaço e tempo.
Antes de existir o Universo, não existia nada. Só para ficar claro, o conteúdo do Uni-
verso é o “campo”, uma entidade cujas concentrações constituem as subpartículas for-
madoras da matéria e cujas alterações promovem as interações entre as partículas, res-
ponsáveis por tudo o que ocorre (inclusive o pensamento). O campo e a matéria pos-
suem atributos, como energia (ou massa, outra maneira de concebê-la nas concentra-
ções), carga, movimento, rotação, torção e outras. Na concepção fisicalista e reducio-
nista (que advogo), não se faz necessária a interveniência de qualquer tipo de entidade
extrínseca ao Universo físico (algo como espírito) para explicar seu surgimento, sua
evolução e sua estrutura (nela incluída a estrutura da mente e o psiquismo). Passemos,
pois, ao tempo.

79
SOBRE O TEMPO
Se no Universo só houvesse uma partícula, todo o espaço seria apenas essa partícula.
Então ela seria necessariamente imóvel, pois movimento é uma mudança de posição
relativa e não haveria outra coisa em relação à qual a posição da partícula pudesse mu-
dar. Além disso, partícula, por definição, não possui estrutura, de modo que não pode
se deformar nem girar. Então nada se alteraria. Havendo uma segunda partícula, tudo
muda de figura. Elas podem se aproximar ou se afastar. Pode haver, pois, mudança na
configuração e no estado do Universo, isto é, das duas partículas. Surge aí o espaço e o
tempo, pois podem existir localizações variadas para uma partícula em relação à outra
e, havendo alteração, podem ser caracterizados momentos, como a propriedade que in-
dica cada diferente situação. O fundamental disso tudo é que o espaço e o tempo não
precedem o conteúdo do Universo, mas surgem com ele, em razão da dinâmica do seu
estado (entende-se por configuração a disposição dos elementos de um sistema e por
estado o modo pelo qual esta configuração se estabelece, isto é, a condição de sua evo-
lução). Outra descrição, mais correta, é feita, não em termos de partículas, mas de cam-
pos. Enquanto o campo do Universo todo é inteiramente homogêneo e imutável, o
tempo não passa. Uma vez que ocorram alterações em sua densidade, podem-se carac-
terizar estados distintos, isto é, há mudança (ou movimento, no sentido mais amplo do
termo) e, logo, momentos, isto é, tempo. No Universo real, em verdade, desde sua for-
mação, miríades de concentrações e rarefações se formaram, modificando-se, surgindo
o espaço como a coleção de todos os lugares preenchidos pelo campo e o tempo, como
a coleção dos diferentes momentos, isto é das indicações de cada estado.

Uma característica fundamental do tempo é que, sendo uma coleção de momentos


(como o espaço é uma coleção de lugares), essa coleção é ordenada, isto é, dados dois
momentos distintos, um deles é anterior e o outro posterior. Esse ordenamento é esta-
belecido por uma propriedade chamada entropia. A entropia é definida pelo logaritmo
da probabilidade do estado macroscópico. O estado macroscópico é descrito pelas vari-
áveis globais que o caracterizam, enquanto o estado microscópico é definido pela cole-
ção de todas as variáveis de cada partícula constitutiva. A um dado estado macroscó-
pico pode corresponder um número extremamente grande de estados microscópicos. A
razão do número de estados microscópicos correspondentes a um dado estado macros-
cópico para o número total de estados microscópicos possíveis é a probabilidade da-
quele estado macroscópico. O logaritmo disto é a entropia. Pois bem, o tempo flui no
sentido em que a entropia aumenta. A evolução do estado do Universo se dá do menos
provável para o mais provável.

Outra coisa interessante a considerar é se o fluxo do tempo é contínuo ou discreto (isto


é, se dá-se por saltos). Imagine que, no Universo inteiro, cessassem todas as alterações,
todo o movimento. O estado do Universo permaneceria inalterado. Elétrons não gira-
riam em torno dos núcleos, a luz cessaria de se propagar, os astros interromperiam
seus movimentos orbitais, objetos estacionariam a sua queda, corações não bateriam, os

80
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
pensamentos ficariam suspensos. Então não haveria passagem do tempo. É como se
fosse um filme cuja projeção se interrompesse. Assim que tudo voltasse a prosseguir, o
fluxo do tempo seria restaurado e aquela interrupção não poderia ser detectada absolu-
tamente por nada. Quem sabe isso já não ocorreu um sem número de vezes desde que
você iniciou esta leitura. A quantização do tempo é, pois, uma coisa que, exista ou não,
não faz diferença. A Teoria da Relatividade e a Mecânica Quântica supõem o tempo
contínuo. Mas não uniforme e absoluto.

Se o tempo flui, é possível medi-lo, isso é, dizer o quanto de tempo se passou entre dois
momentos (momento ou instante, no tempo, é como o ponto na reta, enquanto duração
ou intervalo e como o comprimento do segmento de reta, que é o pedaço de reta exis-
tente entre dois pontos distintos, pertencentes a ela). Medir é comparar grandezas de
mesma espécie, dizendo o quanto uma contém da outra. Para medir intervalos de
tempo há que se tomar um deles como termo de comparação, denominado “unidade
de tempo”. Uma propriedade a ser exigida da unidade é a sua reprodutibilidade, isto é,
deve-se poder sempre obtê-la novamente com a mesma grandeza. Para o tempo isto é
um problema, pois é impossível, uma vez decorrido um intervalo, voltar atrás para
conferir se outro intervalo é igual a ele. Então é preciso considerar que o novo intervalo
seja igual, por definição, sem conferir. Para isso são usados fenômenos ditos periódicos,
isto é, que voltam sempre a se repetir. Por exemplo, os dias, o ano, as batidas do cora-
ção ou o balançar de um pêndulo. Se vai-se medir um tempo em dias, tem-se que supor
que todos os dias são iguais. Não há como medir a duração de hoje comparando-a com
a de ontem, pois ontem não volta mais. Pode-se comparar os dias com as oscilações de
certo pêndulo e ver se conferem, mas aí tem-se que supor que as oscilações sempre le-
vam o mesmo tempo. Por comparações desse tipo, entre diversas possíveis unidades de
tempo, viu-se que os dias não são todos iguais, que os anos também não são, que os
pêndulos podem variar. Bem… até o momento, o que se supõe que seja mais regular e
reprodutível é o período de oscilação da luz de uma cor exatamente bem definida. Usa-
se a luz emitida pelo decaimento do átomo de césio (o isótopo 133), entre os dois níveis
hiperfinos de seu estado fundamental. Como este é um tempo muito pequeno, fixou-se
como unidade o segundo, que é um tempo 9.192.631.770 vezes maior. Daí se constrói o
relógio atômico, a partir do qual os outros relógios são aferidos.

Pode parecer que o tempo, assim definido, é algo que flui de modo homogêneo em
todo o Universo, como supunha Newton. Mas não. Para cada um, o tempo flui com a
velocidade “1″, isto é, 1 minuto por minuto, 1 hora por hora, 1 dia por dia. Mas, compa-
rando os fluxos de um lugar com outro, pode não ser “1″. Assim, em outra galáxia, que
tenha alguma velocidade em relação à nossa, o tempo lá pode passar à razão de 50 mi-
nutos por hora em relação a nós, isto é, a cada hora nossa passam 50 minutos lá. Isso é a
relatividade do tempo. É claro que estou falando de relógios que medem o tempo com
a mesma unidade. Eles lá, para si mesmos, medem o fluxo normal de 60 minutos por

81
SOBRE O TEMPO
hora. É o chamado “tempo próprio”. Isso foi descoberto por Einstein e já foi confir-
mado por experiências com o decaimento radioativo dos müons, ou “mésons mü”, pro-
venientes de raios cósmicos na alta atmosfera e outros experimentos. Existem fórmulas
para calcular isto. A intensidade do campo gravitacional no local também altera a mar-
cha dos relógios (e de tudo o mais, como o crescimento dos pelos da barba, por exem-
plo). Portanto, no Universo, o tempo é realmente algo determinado pelas condições lo-
cais da densidade de matéria e do seu movimento e não uma coisa que existe indepen-
dentemente. Isso também ocorre com as distâncias. Em suma, o espaço e o tempo não
são como um palco no qual os personagens representam a peça. Eles também são per-
sonagens da peça.

Os seres vivos possuem um modo interno de perceber a passagem do tempo e desenca-


dear vários comportamentos, como o ciclo sazonal das plantas e de animais, ou mesmo,
os ciclos circadianos de sono e vigília, por exemplo. No caso dos seres conscientes,
como os animais superiores (ou dispositivos artificiais que venham possui-la) há outro
fator que é a percepção mental interna da passagem do tempo. Essa percepção nem
sempre é coincidente com a marcha física do tempo. Isso pode variar de pessoa para
pessoa, em função da idade, do estado de espírito ou por ação de drogas. Em geral, à
medida que se envelhece, cada ano é uma fração menor da existência, por isso parece
um intervalo menor. Outro fator que faz o tempo parecer passar mais depressa é a mo-
notonia. Quanto mais variada for a vivência cotidiana da pessoa, mais parece que o
tempo demora a passar. Atividades desagradáveis sempre parecem demorar mais que
as agradáveis. Mas, tirando essas condições, é notável como a mente tem um cronôme-
tro interno razoavelmente bem calibrado, o que pode ser observado pelo fato comum
de pessoas que sempre precisam acordar a certa hora, em geral, despertam poucos mi-
nutos antes do despertador tocar e o desligam.

Classificando-se as artes segundo os sentidos que impressionam, a literatura e a música


unem-se na categoria das que são comunicadas pela audição, já que a escrita é uma
mera representação simbólica de sons, como se fora uma gravação codificada da fala,
que modernamente ocorre em mídias óticas e magnéticas. Por outro lado, elas podem
também ser classificadas, conjuntamente, em artes cujo objeto se desenvolve no tempo,
em oposição às artes plásticas, em que o objeto se desenvolve no espaço. A escrita ideo-
gráfica, em que os signos não representam fonemas, mas conceitos, também só pode
ser interpretada na sequência temporal dos ideogramas, que não são contemplados si-
multaneamente, no seu todo, como numa pintura. Vê-se deste modo, que, na própria
sistematização que a estética faz das belas artes, música e literatura ocupam células vi-
zinhas do esquema, estando, portanto, unidas por um ponto de vista estrutural. Em
que pese a existência da poesia concreta, na qual a expressão artística do poema se ma-
nifesta, inclusive, pelo aspecto pictórico, normalmente a poesia é feita para ser decla-
mada (ou cantada, se for a letra de uma música). Então é uma arte que se desenvolve

82
Ernesto von Rückert CONSIDERAÇÕES
no tempo. A apreensão mental do conteúdo da música e da poesia é feita pela parte do
cérebro ligada à audição e sua memorização se dá de uma forma sequencial, isto é, or-
denada no tempo e não numa totalidade simultânea, como ocorre com a memorização
de uma gravura.

83
4. SOBRE A VIDA

84
5. SOBRE A EVOLUÇÃO

85
6. SOBRE O CARÁTER

86
7. SOBRE A CIÊNCIA

87
8. SOBRE A ARTE

88
9. SOBRE A EDUCAÇÃO

89
10. SOBRE A ÉTICA

90
11. SOBRE A REALIDADE

91
12. SOBRE O AMOR

92
13. SOBRE O UNIVERSO

93
14. SOBRE A MENTE

94
15. SOBRE O COMUNISMO

95
16. SOBRE A SANTIDADE

96
17. SOBRE AS EXPLICAÇÕES

97
98

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