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A passagem com a qual iniciamos nosso trabalho resume com enorme rigor, uma
impressão comum a todos os estudiosos da literatura angolana, sua característica
eminentemente histórico-social; ao mesmo tempo que explica prolongadas ausências
de qualquer registro literário digno desse nome. Os autores angolanos estiveram
sempre em primeira linha de combate pela libertação e pela dignificação do homem
angolano e, o que não é raro, subordinando na produção literária a luta socio-política.
Um dos primeiros escritos da literatura oral, segundo Carlos Ervedos, em seu “Roteiro
da Literatura Angolana”, por Saturnino de Sousa e Oliveira e, Manuel Alves de Castro
Francina, um brasileiro e um angolano que, em seu livro, editado em 1864, Elementos
Gramaticais da Língua Nbumdu, nos oferecem vinte provérbios em kimbundu(língua
originária da região de Luanda e do centro e norte de Angola).
A população européia que ao largo do século XIX viveu nas primeiras cidades de
Angola estava essencialmente constituída, segundo nos diz Júlio de Castro Lopo, “por
africanistas de permanência incerta no território, aventureiros, colonos forçosamente
ligados à vida colonial por necessidades econômicas e contrariedades diversas,
missionários e clérigos, militares e deportados”.
Luanda e Benguela, como portas de saída dos escravos para a América do Sul, eram
as cidades que tinham o maior número de habitantes. Comparadas com as cidades de
hoje, não passavam de minúsculas vilas, apesar de contarem àquela época, com alguns
séculos de existência . Em 1851, Luanda tinha uma população de 12.565 habitantes,
dos quais 9270 eram negros, 6020 escravos, 2055 mestiços e somente 1240 brancos.
Entre estes últimos, o número de mulheres era insignificante.
Assim se sucederam várias publicações entre os anos 1845 e 1880. Ali se foi
esboçando uma primeira linha de homens que, sendo europeus, viviam
cotidianamente os problemas da colônia, fazendo da imprensa uma ampla tribuna para
a defesa de seus interesses. O procedimento tornou-se tradição e, mais tarde, o
periodismo se converteria na principal arma de luta dos intelectuais africanos.
A exemplo do que ocorria com a grande maioria dos intelectuais dos finais do século
XIX e princípios do século XX, que eram simultaneamente periodistas e escritores,
Alfredo Trony inscreveria também seu nome entre os grandes da literatura angolana
com a novela “Nga Muturi”, publicada inicialmente em forma de folhetins na
imprensa de Lisboa e reunida em um livro quase cem anos depois.
O primeiro periódico editado por africanos, “O Hecho de Angola”, data de 1881. Sua
aparição abriria caminho para o despertar de novos órgãos daquela que se chamou a
imprensa africana, que se caracterizou por conter publicações redigidas ora em
kimbundu ora em português. Entre estas, destacam “O Futuro de Angola”, 1882; “O
Farol do Povo”, 1883; “O Arauto Africano”, 1889; e “1 Muen’exi”, 1889; “O
Desastre”, 1889; e “O Policial Africano”, 1890.
A exemplo de muitas outras publicações da época, este periódico teve uma vida
bastante curta, posto que não passou do quarto número.
Somente dois dos escritores deste primeiro movimento nos deram livros. Pedro de
Félix Machado e Cordeiro da Matta. Ao primeiro corresponde a publicação da novela
“Cenas d’ África”, em uma primeira edição em forma de folhetim na Gazeta de
Portugal. A reedição da novela data de 1892.
A Pedro Machado são atribuídas também as autorias de um livro de sonetos, “Sorrisos
e Desalentos” e de dois monólogos, “Beijos e “Uma Teima”.
Cordeiro da Matta, natural de Icolo e Bengo, foi autor de numerosas obras, desde a
novela até a etnografia, passando pela poesia, a crônica, a história, a pedagogia e a
filologia, ademais do próprio periodismo no qual se destacou nas colunas de “o
Arauto Africano” e “O Farol do Povo”.
Por outro lado, Cordeiro da Matta era um profundo conhecedor de kimbundu, sua
língua materna. E é como profundo conhecedor de kimbundu que também publica a
obra “Ensaio de Dicionário de Escrita”, “Segundo a Cartilha Maternal”, do Doutor
João de Deus. Como historiador, nos deixou a “História de Angola”, publicada em
forma de folhetim em “O Farol do Povo”. Por último, com cronista e novelista foi
autor de duas obras: “O Luandense da Alta e Baixa Esfera” e “O Doutor Gaudencio”,
cujos manuscritos, infelizmente, se perderam.
Com a perda das colônias do Oriente primeiro e do Brasil depois, e sobretudo, depois
da abolição da escravatura, Portugal se viu com a necessidade de intensificar a
exploração dos territórios africanos, a qual não podia continuar da maneira como era
feita então, de forma puramente mercantilista, sem falar na ameaça de que eram
objeto os territórios portugueses por parte dos holandeses e ingleses. Assim, de
colônia penal, Angola se transforma em colônia de ocupação. Quando os portugueses
começaram a chegar em número crescente, a partir de meados do século XIX,
encontram já uma burguesia nacional em pleno desenvolvimento, constituída, em sua
maioria, por negros e mestiços.
A partir dos finais do século XIX, os ataques sobem de nível. Já em 1901, a “Gazeta
de Luanda”, único periódico que então se publicava, publicou um artigo – “contra a
lei”, pela greve – cujo autor manifestava o mais escandaloso reacionarismo
colonialista, ao afirmar a inferioridade do negro em relação ao branco e negando ao
primeiro o direito mais elementar: o de formar uma parte da humanidade.
As respostas não se fizeram esperar. Uma obra coletiva de onze autores, “Voz de
Angola”, e “Clamando no Deserto”, foi publicada em Maio de 1901. Apesar destes
terem guardado o anonimato por razões que a repressão de então justificava, segundo
a perspectiva do historiador Julio de Castro Lopo, sabemos que se tratava de : António
José do Nascimento, Pascoal Jé Martins, Francisco das Necessidades Castelbranco,
Mário Castanheira Nunes, Carlos Saturnino, Augusto Silvério Ferreira, Carlos
Botelho de Vasconcelos, José Carlos de Oliveira Nunes, Eusébio Velasco Galiano
Júnior, João de Almeida Campos e Apolinário Van Dúnem. Entretanto a obra
sobrepuja o âmbito de uma mera resposta e postula já alguns dos princípios que vão
orientar a vida das sucessivas gerações de intelectuais angolanos: a luta pela
autodeterminação.
Fato muito comum era também a aparição de numerosos periodistas entre os poetas de
maior renome, como é o caso de Arcénio do Carpo, Faria Leal, Urbano de Castro e o
já muito citado Cordeiro da Matta.
No final do século XIX, por volta de 1896, é quando se assiste a aparição de um novo
grupo de jovens intelectuais, o grupo que mais tarde se chamou de a geração de 1896.
Talvez tenha sido esta a geração de maior destaque entre os intelectuais angolanos,
antes da geração da mensagem, em 1948;esta última é a que estaria presente no
acontecimento da luta armada em 1961. Composta por vigorosos pensadores,
animados, como seus antecessores, pelas melhores intenções e dispostos a tudo na luta
em favor dos interesses dos angolanos, a geração de 1896, impulsionada pelos mais
puros ideais, procurava elevar a sociedade a qual pertencia a um estado mais alto de
sua evolução. Entre outros, são dignos de destaque os nomes de Pedro de Paixão
Franco, Augusto Silvério Ferreira, Francisco Castelbranco, Vieira Lopes, Francisco
Taveira, Apolinário Domingos Van-Dúnem, Ernesto Santos, Jorge Rosa e Lourenço
do Carmo Ferreira.
Este grupo possuía uma orientação programática e como ponto de apoio para sua
atividade tinham a difusão da educação e da instrução entre seus compatriotas. Desde
esse momento, aqueles pensadores compreenderam que na instrução do povo estava o
ponto de partida para o desenvolvimento socio-econômico do país, opondo-se desse
modo a tendência acentuada do sistema colonialista à desfiguração sócio-cultural e
histórica de Angola.
“Luz e Crença” nasce, um ano antes, em 1902, constituindo uma coleção de ensaios
literários dos escritores locais que reunia também contos, poesias, temas da história e
etnografia, entre outros, afirmando-se como um movimento intelectual com o objetivo
de servir aos ideais da educação, a justiça e a liberdade. “Não sejamos indignos do
século das luzes em que nascemos” disse Paixão Franco nesse primeiro número; “Que
aprenda cada um a sua maneira e mestre o que sabe, para que os mestres das
emboscadas na noite da ignorância se convençam de uma vez para sempre de que o
rebanho de carneiros vai desaparecendo. Ou cidadãos ou servis aduladores”.
“(…) Queremos luz, muita luz, porque onde não há luz não há fatos, disse um gênio
justo e colossal. Queremos uma enxurrada de luz. Luz para admirar a porta triunfal
que abre…. luz para ver os antros onde se refugiam os tigres sociais. Lua para seguir
o largo caminho rumo ao futuro”.
Entretanto, a medida que se avança no século, cada vez se faz mais intensa a pressão
colonial sobre a pequena burguesia africana, sobretudo sobre os jovens intelectuais
que, incansáveis, não paravam de denunciar, sempre através da imprensa, os abusos e
a prepotência de uma comunidade crescente de europeus, ávida de terras.
Um nome muito importante que surge nesta época é o de António de Assis Júnior, que
apesar de pertencer a geração de 1896, só um pouco mais tarde conseguiu alguma
notoriedade.
De fato, desta forma não era possível fazer literatura. António Assis Júnior personifica
o que em maior ou menor grau aconteceu com os intelectuais que se negaram a
assistir de braços cruzados o despedaçamento de seu país. Com os aprisionamentos,
Assis Júnior perdeu seu matrimônio, seus bens e o direito de exercer a magistratura.
Teve que começar sua vida de novo partindo do zero.
Além de todas as obras mencionadas, Assis Júnior nos deixou também publicado um
“Dicionário Kimbundu-Português”, cuja publicação em fascículos começou em
Dezembro de 1941 e terminou, depois de 24 números, em Agosto de 1947.
Outro nome que deve ser citado neste período é o de Lília da Fonseca que se inicia
como periodista e poetisa em “A Província de Angola”. Sua primeira novela,
“Panguila”, se publicou em 1944. Nela, a autora nos dá uma imagem fiel da sociedade
colonial daquela época. Lília da Fonseca foi de fato uma referência importante na
literatura angolana da época. Sem dúvida, foi a sua estadia em Portugal, onde se
enraizou “o marco a partir do qual ela se despojou de toda sua angolanidade,
escondendo-se na vida intelectual portuguesa e não dando mais de si à literatura
angolana”.
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É perfeitamente possível ganhar eleições sem o voto dos intelectuais, mas governar contra eles ou contra os
interesses das elites em geral é um erro que, mais cedo ou mais tarde, será pago por aqueles que,
eventualmente, o cometerem. Do mesmo modo, e como é sabido, nenhum país pode ser construído sem o
contributo dos intelectuais.
Alcançada, finalmente, a paz em Angola, depois de mais de quatro décadas de guerras que já se haviam
tornado praticamente endêmicas, parece igualmente óbvio que todos nós teremos de exercer novos papéis,
mais adequados à actual situação vivida há mais de um ano. Naturalmente, os intelectuais têm de fazer também
a sua parte.
Na minha opinião, a participação dos intelectuais angolanos no actual processo histórico-social do país é
praticamente nula e, sobretudo, extremamente incompetente, em grande parte por razões “exteriores”, isto é,
da responsabilidade da sociedade em geral, mas também por causas que só a eles próprios competem. Esse o
motivo, aliás, que me levou a propor este debate público.
Um dos sintomas “exteriores” dessa situação é a própria confusão que reina socialmente, entre nós, acerca do
conceito de intelectual. Durante muito tempo, por exemplo, dizer intelectual era praticamente sinônimo de
dizer escritor; certamente, razões históricas contribuíram para essa confusão semântica, mas, além do conceito
não ser redutível, de modo nenhum, à actividade de escritor, tenho igualmente sérias dúvidas se todos os
escritores - ou “escrevedores” - são mesmo intelectuais.
À medida que o país, uma vez alcançada a independência, em 1975, foi formando os seus quadros, outra
confusão se instalou: intelectual passou a ser sinônimo de licenciado. Ora, parece pacífico que não se deve,
necessariamente, confundir quadro com intelectual, pois há quadros altamente competentes nas suas
especialidades, mas sem nenhuma vocação ou inquietação de tipo intelectual. A dúvida que sobra é se todos os
intelectuais serão quadros.
Estas confusões são, digamos assim, normais e aceitáveis. Outras, contudo, são mais difíceis de explicar. Em
certos congressos do maior partido político do país, o MPLA, por exemplo, todos os funcionários públicos
eram registados como intelectuais, para efeitos de estabelecimento das percentagens de participação dos
delegados por categoria.
“Intelectual: pessoa dada ao estudo; pessoa de grande cultura” - eis, entretanto, a definição do Dicionário
Universal de Língua Portuguesa, da Texto Editora, edição de 1995. O que, além da fixação do conceito em si
mesma, chama a nossa atenção suplementar, nessa definição, é o seu carácter neutral, comprovado, aliás, pela
práxis histórica e social: desde sempre, os intelectuais têm assumido diversas cores ideológicas e políticas,
chegando alguns deles, inclusive, a participar em algumas das maiores misérias da história da humanidade.
Contudo, e embora consciente de estar a introduzir, aqui, um factor de natureza ideológica, é de alvitrar que
um intelectual digno desse nome não perca jamais de vista a sua vocação humanista.
Feita esta breve introdução, direi, agora, que a participação dos intelectuais no processo histórico do país pode
ser analisada, com inegável propriedade, em dois grandes períodos: antes e depois da independência. Com
efeito, os intelectuais angolanos, nomeadamente os escritores e jornalistas, mas não só, desempenharam um
papel historicamente reconhecido na formação do nacionalismo local e na luta pela libertação do país do jugo
colonial português. Mas, depois da independência, sobretudo a partir de meados dos anos 80, começaram a
notar-se uma série de sinais denunciando um evidente, embora surdo, mal-estar da maioria dos intelectuais em
relação à situação geral do país.
Um episódio da nossa história recente contribuiu - e, de certo modo, continua a contribuir até hoje - para uma
tendência dos intelectuais angolanos à auto-marginalização do processo social e histórico em curso no país: o
27 de Maio de 1977. Na verdade, os efeitos desse episódio foram paradoxais: por um lado, a repressão -
legítima em si mesma - à tentativa de golpe de Estado liderada por Nito Alves atingiu foros altamente
condenáveis, cujas seqüelas tardam a ser encaradas de frente pelo poder político; por outro lado, e embora a
intentona tenha sido derrotada, a influência política do nitismo estendeu-se para além desse facto, levando o
regime a estalinizar-se definitivamente.
A partir de então, passou a vigorar no país um modelo totalmente autoritário, centralizado e controlador, com
reflexos directos, entre outros, na atitude dos intelectuais. De notar que esse facto coincidiu com os primeiros
sinais de esgotamento da euforia praticamente colectiva dos primeiros anos da independência, reforçada,
entretanto, pela derrota sul-africana em 1976. Na época, começava também a constatar-se que, após a subida
de Reagan ao poder nos Estados Unidos, a guerra civil iria certamente agudizar-se no país. Enfim, do ponto de
vista interno, começavam a tornar-se visíveis as profundas contradições entre os que haviam participado na
gloriosa gesta da independência, com conseqüências danosas para o projecto colectivo de então, como ficou
patente, por exemplo, com o início do descalabro do sistema de educação.
Tudo isso foi gerando, primeiramente entre os intelectuais e as pessoas mais conscientes, aquele surdo
sentimento de mal-estar a que me referi há pouco. Significativamente, os primeiros sinais desse sentimento
apareceram impressos em três obras literárias, escritas por autores que, de uma forma ou de outra, haviam
participado directamente na luta pela independência.
Duas delas costumam ser amplamente referenciadas: o romance Mayombe, de Pepetela, que pela primeira vez
mostrou que os designados “combatentes da liberdade”, afinal, eram seres humanos comuns; e a novela Quem
me dera ser onda, essa poderosa sátira social de Manuel Rui, que escalpelizou impiedosamente a forma
populista e burocrática como as elites tentaram construir o novo país, logo depois da independência. Mas é de
plena e estrita justiça referir também, aqui, o livro de poemas publicado em 1980 por Henrique Abranches,
Cântico Barroco, no qual o autor deixa escapar todo o seu desencanto pelos rumos que o país começava na
altura a tomar.
Seja como for, o desencanto da maioria dos intelectuais, nessa época, não os levou a romperem formalmente
com o MPLA, ao qual quase todos estavam historicamente ligados. O problema, pelo menos para eles, é que a
alternativa mais consistente que se visualizava no horizonte histórico imediato era a UNITA, de Jonas
Savimbi, cuja natureza e cujos métodos de actuação estavam longe de lhes inspirar confiança. Podemos dizer,
aliás, que essa desconfiança era partilhada por outros grupos sociais, nomeadamente urbanos, mas não só.
A fim de tornar a análise mais abrangente, devo lembrar, entretanto, que também havia, obviamente,
intelectuais que se tinham posicionado ao lado da UNITA, embora, aparentemente, não sejam necessárias
estatísticas para afirmar que o seu número era claramente inferior ao daqueles que permaneceram no campo
político do MPLA. Por outro lado, e embora não haja muitos relatos disponíveis, pode imaginar-se que a sua
situação dentro da UNITA era particularmente difícil, a avaliar pelo que sucedeu a Wilson dos Santos e Tito
Chingunji, já no fim dos anos 80.
A propósito, não posso deixar de mencionar o livro de Sousa Jamba, Os patriotas, cuja versão inglesa
constituiu o primeiro testemunho do famigerado “episódio das bruxas”, que a jornalista Bela Malaquias
descreveu, mais recentemente, numa carta dramática e chocante publicada pelo Jornal de Angola.
Sintomaticamente, recorde-se que, na versão em português, esse episódio foi suprimido pelo autor, o que
confirma a avaliação que fiz anteriormente.
A desconfiança da maioria dos intelectuais e da sociedade angolana em geral em relação à UNITA foi
corroborada, à evidência, pelos resultados eleitorais de 1992. O que, particularmente, interessa ao presente
tema é que a quase totalidade dos intelectuais apoiou, na guerra pós-eleitoral que se seguiu, as posições
essenciais do MPLA acerca do conflito, mesmo que grande parte deles tenha estado ou esteja desapontado com
a maneira como essa organização tem gerido o país nos últimos tempos. A excepção - além, claro, daqueles
ligados à UNITA - foi a atitude de um reduzido grupo de intelectuais, oriundo, nomeadamente, da extrema
esquerda angolana. Mas a maneira como a guerra acabou mostra claramente, penso, qual era a posição
historicamente correcta em relação a esse problema específico.
Aqui chegados, e após todas essas vivências e experiências históricas, qual é, digamos assim, o “estado” da
intelectualidade angolana? Como disse no início, isso pode ser visto quer internamente, isto é, a partir da
situação dos intelectuais em si mesma, quer externamente, ou seja, na sua relação com o resto da sociedade.
Do ponto de vista interno, há duas constatações básicas que, quanto a mim, não podem deixar de ser feitas. A
primeira é que, como resultado do longo conflito que dividiu a nação angolana por mais de quatro décadas, a
própria intelectualidade está igualmente profundamente fracturada. A segunda é que, também como todo o
resto da sociedade angolana, os intelectuais continuam a pautar a sua actuação e a sua maneira de estar por
critérios excessivamente partidarizados.
Apenas para dar um exemplo, é extremamente rara a presença dos intelectuais em actividades públicas, como
debates, seminários, mesas redondas, lançamentos de livros, exposições, etc., promovidas por quaisquer
entidades com as quais não tenham ligações ou das quais não sejam, pelo menos, simpatizantes. Ou seja, os
intelectuais ligados, mesmo que seja apenas afectivamente, ao partido no poder apenas se dão entre eles,
enquanto aqueles ligados à oposição ou aos sectores mais críticos em relação ao governo também só circulam
nos meios freqüentados pelos seus pares.
Nesse sentido, podemos afirmar que a maioria da intelectualidade é composta por aquilo a que Gramsci
chamava os “intelectuais orgânicos”. Discordo, portanto, daqueles intelectuais ligados a certos partidos da
oposição - alguns deles altos dirigentes desses partidos - que apenas se referem aos intelectuais simpatizantes
do MPLA como sendo “orgânicos”, tentando conferir a esse termo uma carga semântica negativa. Trata-se de
uma tentativa, voluntária ou não, de mistificar uma realidade que, na verdade, é muito mais abrangente, o que
pode dificultar o, quanto a mim, urgentemente necessário diálogo entre todos os intelectuais angolanos.
Na verdade, e sendo intelectual e politicamente honesto, pode dizer-se que o problema maior da sociedade
angolana, neste momento, não é, como por vezes se analisa a partir de fora, em especial num certo “jardim à
beira-mar plantado”, o de uma suposta inexistência de liberdade de expressão no país. Nesse aspecto, a actual
situação de Angola não tem comparação com aquela que existia há dez ou quinze anos atrás. O problema -
esse, sim, real e concreto - é que todo o mundo, de um modo geral, se pode exprimir livremente, mas cada um
continua entrincheirado no seu próprio campo, firme e “orgulhosamente só”.
No que diz respeito à relação entre a intelectualidade e o resto da sociedade, a minha primeira observação é
que existe uma espécie de “divórcio de facto” entre os intelectuais e o sistema político como um todo. O
principal sintoma desse facto é a escassa presença de intelectuais, no rigoroso sentido da palavra (não
confundir, repito, intelectual com licenciado), nas instâncias de poder, quer do Estado, quer dos partidos
políticos, quer, ainda, das organizações da sociedade civil.
Segundo algumas estimativas, o próprio MPLA - cuja relação com a intelectualidade remonta à sua criação -
estará supostamente transformado, hoje, pelo menos em termos de base social de apoio, num partido de
camponeses (como não existe indústria, até os operários sumiram), dirigido por aquilo que restou da
burocracia partidária criada ainda nos anos 80. Exageradas ou não essas estimativas, a verdade é que, olhando-
se a cúpula do MPLA, constata-se claramente que, pelo menos ali, a presença de intelectuais é quase nula.
A única vantagem que o MPLA possui, por enquanto, em relação aos demais partidos, é que, quando é
necessário, muitos dos intelectuais angolanos ainda continuam a emprestar-lhe o seu concurso, sobretudo para
a elaboração de estratégias, preparação de documentos, estudos, etc. Mas mesmo muitos desses intelectuais são
tomados, cada vez mais, pela estranha sensação de que, no fundo, não passam de uma espécie de “assessores”,
no sentido mais negativo do termo.
Uma possível explicação para esse divórcio entre a intelectualidade e o sistema político angolano pode ser
encontrada no facto de a situação no país se ter caracterizado, desde os anos 60, por um longo conflito militar,
que se arrastou até 2002, assumindo diversos contornos, que não é necessário recordar. Naturalmente, assim,
as elites estritamente político-militares foram assumindo uma ascendência dentro das diferentes organizações
em confronto, a qual se mantém até hoje.
Seja como for, o divórcio entre os intelectuais e o sistema político tem uma dupla e perversa conseqüência:
enquanto a prática e o discurso político das instâncias tradicionais existentes (governo, partidos, etc.), se
empobrecem, o poder tende a ser realmente exercido por assessores e conselheiros, criando-se uma série de
estruturas paralelas, permanentes ou não (gabinetes, comissões, etc.), que esvaziam crescentemente aquelas
instituições, transformando-as em meros organismos formais.
A segunda observação a fazer é que, sendo verdade que os intelectuais, digamos assim, “foram sendo
divorciados”, ao longo deste tempo, do sistema político como um todo (ou, pelo menos, do seu núcleo duro,
abrangendo esse fenómeno seja o governo, seja a oposição), eles próprios se foram divorciando gradualmente,
por diferentes razões, do resto da sociedade, fechando-se nas suas próprias redomas, ruminando as suas
frustrações, os seus medos, a sua impotência ou simplesmente a sua incapacidade.
Esse divórcio pode ser chamado também de “apatia”, a qual tem duas facetas. Em primeiro lugar, parece
evidente que a intervenção pública da intelectualidade angolana (por exemplo, na imprensa) é de tal maneira
reduzida que o sistema de comunicação e cultura do país tende cada vez mais a ficar nas mãos, na melhor das
hipóteses, de jovens imberbes e mal-preparados, embora bem intencionados; e, na pior, da mediocridade
preconceituosa e arrogante. Em segundo lugar, essa apatia da intelectualidade é também comprovada pelo seu
profundo desligamento das classes e grupos sociais mais populares, contrariando, assim, uma longa tradição
histórica dos intelectuais angolanos, que já vem do século XIX, pelo menos, e que culminou, no final dos anos
50, com a formação do moderno projecto nacionalista organizado pelo MPLA.
De toda a forma, existe entre nós uma organização que, nesse aspecto, se tem procurado pautar pela diferença:
a Associação Chá de Caxinde. Desde logo, é justo reconhecer que, tratando-se de uma colectividade
constituída por um grande número de figuras cuja ligação histórica ao partido no poder é conhecida, mas
nascida de uma iniciativa realmente genuína e autónoma, tem conseguido manter essa autonomia ao longo de
todos estes anos, pese embora a excessiva partidarização da sociedade angolana já referida. Por outro lado, ao
criar, há dois anos, o seu próprio grupo carnavalesco, aberto em especial à juventude de todas as origens,
retoma aquela velha tradição cívica e popular da intelectualidade angolana, dando o exemplo a outras
associações e organizações sociais.
Finalmente, vou tentar agora responder à questão colocada no título desta palestra. Uma pergunta se impõe,
com efeito, diante do cenário que acabei de caracterizar: quais os novos papeis dos intelectuais angolanos, uma
vez terminada a guerra, e como poderão eles exercê-los? Como é óbvio, não me cabe a mim fixar a agenda dos
intelectuais angolanos. O que vou fazer, portanto, é apenas lançar para o debate algumas ideias, na esperança
de que outros as retomem, ampliem, contestem ou corrijam. Se conseguir isso, já me darei, pessoalmente, por
satisfeito.
Desde logo, defendo, pessoalmente, que a intelectualidade é chamada, na actual etapa histórica vivida pela
sociedade angolana, a contribuir para a superação das profundas fissuras existentes entre os diferentes grupos,
não apenas como resultado da guerra que assolou o país desde 1961, mas também da longa noite colonial, em
cujo bojo podem e devem ser localizadas as origens de certos fenômenos sociais que ainda hoje dividem os
angolanos, tais como o racismo e o tribalismo. Para isso, os intelectuais devem, quanto a mim, lutar no interior
dos diferentes grupos a que pertencem ou estão vinculados no sentido de impor socialmente essa necessidade
de reconciliação e harmonização nacional.
Obviamente, os intelectuais devem ser os primeiros a dar o exemplo, o que implica não apenas evitar mútuas
culpabilizações, mas conviverem mais uns com os outros, conversarem, dialogarem, em suma, tentarem
conhecer-se melhor.
Com efeito, muitas das fissuras ainda existentes entre os angolanos são derivadas de preconceitos gerados pelo
seu profundo desconhecimento mútuo. Os intelectuais, até pelo instrumental teórico-científico que devem, por
definição, possuir, aliado à vocação humanística de que, como disse no início, não devem jamais abdicar, têm,
na minha opinião, a responsabilidade histórico-social de contribuir para um melhor conhecimento entre todos
os angolanos, ajudando a estabelecer pontes entre os diferentes grupos.
O segundo papel fundamental que, segundo penso, os intelectuais devem tentar cumprir, presentemente, é
defender e contribuir para a ampliação e consolidação definitiva da liberdade e da democracia.
Independentemente das ideias e do eventual posicionamento político-partidário de cada um, devem os
intelectuais, quanto a mim, fazer seu o lema de Voltaire:-“Eu discordo das tuas ideias, mas lutarei até ao fim
pelo teu direito de defendê-las”. Os intelectuais devem ser capazes de discutir ideologicamente com os seus
opositores e não chamar os serviços de segurança para intimidá-los ou silenciá-los.
Outro papel a desempenhar pela intelectualidade angolana, neste momento, é o de restabelecer as suas ligações
com as chamadas massas, isto é, com os grupos e camadas sociais populares. Isso pode ser feito de diversas
maneiras ou mecanismos, tais com o a educação, a cultura, a investigação, a assistência e tantos outros. Em
termos formais, poderão ser utilizadas, igualmente, diferentes tipos de organização, tradicionais ou modernos,
desde que se mostrem operacionais. A única cautela que eu tomo a liberdade, modestamente, de sugerir é que
esse relacionamento seja feito sem demagogias inócuas - do tipo “suicídio de classe” -, nem arrogantes ou
seráficos paternalismos.
Last but not the least, os intelectuais devem produzir ideias, de preferência inovadoras. Esse é, aliás, em todas
as épocas, o seu papel fundamental. Ora, parece evidente, para quem não teimar em ser autista, que Angola
vive neste momento uma profunda crise de ideias, da qual a mesmice da prática política quer do governo quer
da oposição é apenas um dos sintomas.
De facto, e assim como aconteceu em 1975, o país está, mais uma vez, a reboque de modelos exógenos, de
maneira meramente mimética, sem adaptá-los criativamente às suas necessidades mais profundas e perenes.
Em vez disso, foi montado um sistema que serviu para ganhar a guerra, mas que dificilmente servirá para
vencer a paz e, sobretudo, construir um país realmente diferente, onde todos os angolanos se revejam como
cidadãos integralmente iguais, com as mesmas obrigações e oportunidades.
Assim, e fracassado o antigo projecto nacional - o qual, embora tivesse uma perspectiva modernizante, as
elites de então tentaram impor, como já o disse em outra ocasião, de maneira autoritária, centralizada,
burocrática e excessivamente positivista -, são necessárias ideias novas, capazes de contribuir para a
formulação, por toda a sociedade, de um novo projecto, que não apenas supere a farsa neo-liberal que os
grupos dominantes, quer externos, quer internos, nos tentam “vender”, mas que pela primeira vez galvanize
todos os angolanos, estimulando-os a concluir a obra de construção da nação e do país iniciada pelas gerações
anteriores.
Quer dizer: é preciso um novo sonho nacional, totalmente abrangente, sem nenhuma excepção, socialmente
justo e verdadeiramente modernizante, sem esquecer a revalorização (e não a cópia cega e acrítica) da tradição.
Quem, se não os intelectuais, estará, mais uma vez, em melhores condições para propô-lo ao resto da
sociedade?
*Texto de uma palestra proferida na União dos Escritores Angolanos, no dia 9 de Abril de 2003, e na
Associação Chá de Caxinde, no dia 28 de Abril de 2003.
Boubakar Keita não acredita que a ascensão de João Lourenço traga já uma ruptura da
continuidade, do posicionamento, da ideologia ou do projecto de sociedade, mas sim um
toque pessoal do novo líder na organização interna, visão estratégica do pensamento
sobre o desenvolvimento, gestão do país, entre outros, e tendo em conta a correlação de
forças internas, com implicações na vida do país.
Explicou que apesar ser membro da Internacional Socialista, que inclui partidos de
esquerda, que vão de comunistas ao centro, o MPLA precisará de classificar a sua posição
ideológica dada a influência na definição dos planos estratégicos de desenvolvimento e na
adesão de militantes, sob pena de perder boa parte do eleitorado.
Boubakar Kieta, que vive em Angola há 33 anos, afirmou que João Lourenço mostrou, em
quase um ano na governação, ser possível gerir o país de outra maneira.
O docente acredita que o Presidente vai enfrentar sérios obstáculos, por ter herdado o país
com um sistema de governação e gestão extremamente complexo, com armadilhas,
gestão nebulosa e sem grande transparência na estrutura económica e financeira a todos
os níveis, envolvendo grandes empresas estratégicas.
A esperança em João Lourenço por uma Angola mais virada para África
O historiador Boubakar Namory Keita espera que a liderança do Presidente João Lourenço
promova uma Angola mais virada para África, ao invés de olhar essencialmente para a
Europa.
Boubakar Keita considera um dos desafios de Angola uma maior e efectiva abertura para
África, uma vez que o país “tem estado muito fechado” e “pouco presente na cena
africana”.
O académico sublinhou que Angola tem potencial e pode ter grandes propostas
económicas para os países africanos, com grandes lucros e sem precisar de avultadas
somas, comparadas as exigidas para investir no mercado europeu.
Adianta que para além do sector económico, Angola devia incrementar também na
cooperação com países africanos nas políticas de desenvolvimento humano e intelectual,
trabalhando com as universidades e centros da investigação científica com avanços
consideráveis nestes domínios.
Boubakar Keita pede que o novo Presidente faça mais viagens de Estado a países
africanos para exprimir o interesse económico e financeiro, bem como estabelecer linhas
de cooperação entre si.
“Há países que têm acumulado experiência económica que podia ser benéfica para
Angola”, realçou
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Introdução Este ensaio pretende prestar homenagem ao grupo de intelectuais angolanos denominados de
Geração de 50, que veio a ter uma grande influência nas gerações posteriores de escritores. Esta influência não
se resume unicamente a aspectos meramente culturais, necessários à construção de uma identidade comum,
mas também outros que se referem à mobilização e formação política militante de novas gerações numa
emergente luta pela autonomia cultural e política, naquele dado momento histórico (finais dos anos quarenta e
década de cinqüenta).
Introdução Este ensaio pretende prestar homenagem ao grupo de intelectuais angolanos denominados de
Geração de 50, que veio a ter uma grande influência nas gerações posteriores de escritores. Esta influência não
se resume unicamente a aspectos meramente culturais, necessários à construção de uma identidade comum,
mas também outros que se referem à mobilização e formação política militante de novas gerações numa
emergente luta pela autonomia cultural e política, naquele dado momento histórico (finais dos anos quarenta e
década de cinqüenta).
Se o espaço político destes jovens intelectuais era extremamente restrito devido às condições de repressão
existentes, a sua ação, no entanto, foi importante na formação das novas gerações de escritores angolanos.
Desde as discussões de temas políticos à orientação de leituras de clássicos disponíveis marcaram o cotidiano
desta relação generacional, como nos afirmou Mário António. Benjamin Abdala Júnior já nos tinha ressaltado
a continuidade de um “processo que levaria aos valores ideológicos e literários da Angola contemporânea” ,
que tem origem naquelas raízes. A segunda fase desse processo e da racionalização da identidade cultural a
que estamos nos referindo e que procede da intelligentzia urbana. São eles angolanos, não só por rejeição ao
modelo português o que, embora importante, ainda é limitado, mas pelo conhecimento da própria autonomia,
autonomia essa que se dá em termos do discurso e do reconhecimento dos seus próprios valores: as línguas, a
geografia, as condições existenciais; enfim, começa a formar-se um tecido em que se afirma historicamente a
existência e a idéia de uma autonomia angolana. No discurso da intelligentzia, mas também abertamente a
partir de 1945/48, não há diferenças entre os angolanos: todas as formas, todas as línguas, todas as estruturas
contribuem para a formação de um tecido nacional e não pode por isso haver diferenças entre elas. Queremos
aqui deixar enfatizada a idéia de que este é um pensamento e um discurso nativista por excelência. Não é a
idéia evidentemente que se faz dos angolanos através do discurso do colonizador. Já dissemos que essa ação do
intelectual, que só podia ser urbano, tinha imposto uma dissolução ainda que limitada das concepções
apertadas das diversas nações (etnias). E nesse caso em Luanda, a capital, e em Benguela já existia um
embrião de pequena burguesia separada, pelo menos em parte, das origens regionais. A importância dessa
pequena burguesia é fundamental porque ela foi historicamente obrigada a assumir a responsabilidade da
criação dessa fase de consciência nacional. Então aparece o panteão dos heróis angolanos, parte de um
imaginário coletivo, que passam a ser reabilitados pelos escritores e pelos poetas, como por exemplo a rainha
Nzinga (Ginga), entre outros. Esses heróis começam a substituir o “écran ideológico da história” criado pelos
portugueses. É feita uma recuperação da história nacional, com a mobilização de heróis próprios e, esses, são
frequentemente, como no caso da rainha Nzinga, os heróis da resistência contra os portugueses. Numa fase
anterior, essa tomada de consciência embrionária permitira lançar as operações da guerra de guerrilha. E nesse
campo ainda convém distinguir o que já e clássico: os militantes que procuram apenas servir ao seu grupo — o
tal “tribalismo” tão preciosamente analisado por Pepetela no seu livro “Mayombe” —
Metáforas da Mensagem e Dialética da Natureza Uma página de Luandino Vieira merece nossa atenção como
exemplo do discurso da práxis social angolana na tomada de consciência do jovem escritor e na formação das
novas gerações. Literariamente, esta página de Luuanda já foi analisada, ressaltando a exemplar análise de
Maria Aparecida Santilli em Africanidade , já dando conta desta dimensão do discurso do autor. Permita-se
aqui que se faça uma analogia entre a leitura de Darwin (A origem das espécies) e sua visão dialética da
natureza que tanto sensibilizou Marx, com as páginas antológicas de Luandino Vieira, que através do cajueiro
nos remete metaforicamente à raiz das coisas, à dialética social. Diz-nos a dialética da natureza de Darwin, a
respeito deste princípio de unidade e continuidade: “Têm-se representado, algumas vezes, sob a figura de uma
grande árvore as afinidades de todos os seres da mesma classe, e creio que esta imagem é assaz adequada sob
certos pontos”. Diz-nos Luandino Vieira a respeito daqueles mesmos princípios (da unidade e continuidade):
“O fio da vida que mostra o quê, o como das conversas, mesmo que está podre não parte. Puxando-lhe,
emendando-lhe, sempre a gente encontra um princípio num sítio qualquer, mesmo que esse princípio é o fim
doutro princípio (...) e a analogia com a árvore “(...) É assim como um cajueiro, um pau velho e bom (...)”.
Descreve-nos Darwin os aspectos que opõem as gerações (velhos e novos) na árvore da vida: “As bifurcações
do tronco divididas entre grossos ramos, e estes entre ramos menos grossos e mais numerosos, tinham outrora
quando a árvore era nova, apenas ramificações, com rebentos: ora, esta analogia entre os velhos e os novos (...)
representa bem a classificação de todas as espécies extintas e vivas em grupos subordinados a outros grupos”.
Analogicamente, Luandino escreve: “(...) e os troncos grossos, tortos, recurvados, misturam-se, crescem uns
para cima dos outros, nascem-lhe filhotes mais novos, estes fabricam uma teia de aranha em cima dos mais
grossos (...)”e mais adiante: “(...) a árvore vive sempre com os outros grossos filhos dos troncos mais velhos
agarrados ao pai gordo e espetado na terra. Por fim, Darwin sintetiza exemplarmente esta relação entre
gerações/unidade/continuidade (morte e vida, do ponto de vista biológico): “Julgo eu que geração atua
igualmente para a grande árvore da vida, cujos ramos mortos e quebrados são sepultados nas camadas de
crosta terrestre, enquanto que as suas suntuosas ramificações, sempre vivas e incessantemente renovadas,
cobrem a superfície.” De igual modo, exemplar na sua africanidade, Luandino descreve-nos poeticamente este
princípio da força vital: “(...) em vez de continuar descer no caminho da raiz à procura do princípio, deixem o
pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio e vão dar encontro com a castanha, ela já rasgou a
pele seca e escura e as metades verdes abrem como um feijão e um pequeno pau está nascer debaixo da terra
com beijos da chuva. O fio da vida não foi partido. Mais ainda: se querem outra vez voltar no fundo da terra
pelo caminho da raiz, na vossa cabeça vai aparecer castanha antiga, mãe escondida desde pau de cajus que
derrubaram mas filha enterrada doutro pau. (...) É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma se
começar, para ser mais fácil, na raiz das coisas (...)”. Esta releitura do texto de Luandino tem para nós um novo
sentido ao associar-mos à luta pela unidade e continuidade de determinados princípios de identidade e
afirmação cultural e política. A geração de 50 pode ser um dos ramos ou troncos no caminho da raiz das
coisas. A luta contra o poder difuso da amnésia ou da memória institucional e superficial marcam este caminho
de encontro à raiz ou à fonte onde todos bebemos. Esta memória necessária é, como bem disse, nosso poeta
maior hoje, Ruy Duarte: “Uma memória a ter-se
Mensagem. nº2,3 e 4 outubro de 1951/ janeiro-abril 1952. pág.34 Novembro nº94, outubro de1986 p.4
Andrade, Mário Pinto – Antologia Temática de Poesia Africana. Na noite grávida de punhais. Lisboa, Sá da
Costa, 1975.
Mauss, Marcel – Sociologia e Antropologia, (vol. II), São Paulo, E.P.U.?EDUSP. 1974
Castoriadis, Cornelius – A Instituição Imaginária da Sociedade, R.J., Ed. Paz e Terra. 1982 pp. 94-98
Angola através dos textos, São Paulo Editora Felman-Rêgo, 1962. Abdala Jr., Benjamin. Agostinho Neto e a
poética do caderno "Poesia Negra de Expressão Portuguesa" in "Letras e Letras", nº 52, Porto, 7 de Agosto
1991.
Carvalho, Ruy Duarte de – Hábito da Terra, Poesia, Luanda, União dos Escritores Angolanos, 1988.