Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Geziela Iensue
(Organizadores)
dIREITOS hUMANOS
&
FUNDAMENTAIS
Convidados especiais:
JOSÉ CRETELLA NETO e JOSÉ LUIZ DELGADO
Aimée Schneider Gustavo Ferreira Santos Luiz Augusto da Silva
Ana Claudia M. M. Philippini Hugo César A. de Gusmão Maria N. P. Vasques Mota
André Luiz P. Spinielli João Paulo Allain Teixeira Michelle Asato Junqueira
Antonio H. Maia Lima João Victor Acquino Rafael Carrano Lelis
Arlinda Cantero Dorsa Kelvia Faria Ferreira Renato A. A. Philippini
Bruna Santos de Queiroz Lara Pastorello Panachuk Rosely Maria da S. Pires
Carolina A. de Souza Lima Leonam B. S. Liziero Rosilandy C. C. Lapa
Caroline B. Maciel Andrade Leonardo J. A. Prado Ribeiro Sivlia A. Dettmer
César Augusto F. São José Lídia P. Castillo Amaya Tainara Gomes Penedo
Claudia Regina O. M. da Silva Liliana Lyra Jubilut Thamyris Araújo
Fernanda Gurgel Raposo Livia P. Zamarian Houaiss Thayliny Zardo
Geziela Iensue Lizziane S. Q. Franco de Oliveira Tiago Henrique Torres
Giovana de C. Florencio Luciano Meneguetti Pereira Tuany Baron de Vargas
Guilherme G. Vasques Mota Luís Fernando Sgarbossa Waleska Marcy Rosa
Gustavo César M. Cabral
LUÍS FERNANDO SGARBOSSA
GEZIELA IENSUE
(Organizadores)
DIREITOS HUMANOS
&
FUNDAMENTAIS
FICHA CATALOGRÁFICA
VENDA PROIBIDA
SOBRE O INSTITUTO BRASILEIRO DE PESQUISA JURÍDICA –
IBPJ
RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL
Organizadores
Convidados especiais
Autores
AIMÉE SCHNEIDER
ANA CLAUDIA MOREIRA MIGUEL PHILIPPINI
ANDRÉ LUIZ PEREIRA SPINIELLI
ANTONIO HENRIQUE MAIA LIMA
ARLINDA CANTERO DORSA
BRUNA SANTOS DE QUEIROZ
CAROLINA ALVES DE SOUZA LIMA
CAROLINE BUARQUE MACIEL ANDRADE
CESAR AUGUSTO FERREIRA SÃO JOSÉ
CLAUDIA REGINA OLIVEIRA MAGALHÃES DA SILVA
FERNANDA GURGEL RAPOSO
GEZIELA IENSUE
GIOVANA DE CARVALHO FLORENCIO
GUILHERME GUSTAVO VASQUES MOTA
GUSTAVO CÉSAR MACHADO CABRAL
GUSTAVO FERREIRA SANTOS
HUGO CÉSAR ARAÚJO DE GUSMÃO
JOÃO PAULO ALLAIN TEIXEIRA
JOÃO VICTOR ACQUINO
KÉLVIA FARIA FERREIRA
LARA PASTORELLO PANACHUK
LEONAM BAESSO DA SILVA LIZIERO
LEONARDO JOSÉ DE ARAÚJO PRADO RIBEIRO
LIDIA PATRÍCIA CASTILLO AMAYA
LILIANA LYRA JUBILUT
LIVIA PITELLO ZAMARIAN HOUAISS
LIZZIANE SOUZA QUEIROZ FRANCO DE OLIVEIRA
LUCIANO MENEGUETTI PEREIRA
LUÍS FERNANDO SGARBOSSA
LUIZ AUGUSTO DA SILVA
MARIA NAZARETH DA PENHA VASQUES MOTA
MICHELLE ASATO JUNQUEIRA
RAFAEL CARRANO LELIS
RENATO AUGUSTO DE ALCÂNTARA PHILIPPINI
ROSELY MARIA DA SILVA PIRES
ROSILANDY CARINA CANDIDO LAPA
SILVIA ARAÚJO DETTMER
TAINARA GOMES PENEDO
THAMYRIS ARAÚJO
THAYLINY ZARDO
TIAGO HENRIQUE TORRES
TUANY BARON DE VARGAS
WALESKA MARCY ROSA
NOTA CURRICULAR DOS ORGANIZADORES, CONVIDADOS
ESPECIAIS E AUTORES
CONVIDADOS ESPECIAIS
ORGANIZADORES
GEZIELA IENSUE
PROFESSORES / PESQUISADORES
AIMEE SCHNEIDER
THAYLINY ZARDO
THAMYRIS ARAÚJO
Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ.
SUMÁRIO
CONVIDADOS ESPECIAIS
B. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A
CONSTITUIÇÃOVIGENTE. José Luiz Delgado, 28
I – PARTE
II PARTE
~1~
Direitos Humanos & Fundamentais
“the body of rules which are legally binding on states in their intercourse with each other. These
rules are primarily those which govern the relations of states, but states are not the only subjects
of international law. International organizations and, to some extent, also individuals may be
subjects of rights conferred and duties imposed by international law”2.
Contudo, deve-se reparar que nem sempre esse conjunto de normas (body of rules)
será obrigatório ou vinculante (binding) para os Estados, pois determinadas normas criadas
por organizações internacionais nem sempre são obrigatórias, como suas recomendações,
na grande maioria das vezes.
Aliás, a própria questão da obrigatoriedade das normas de Direito Internacional é tema
de intermináveis discussões.
Se aceitarmos que o conteúdo do Direito Internacional tem por finalidade
estabilizar e facilitar apenas as relações interestatais, como se poderá garantir que as
necessidades dos indivíduos que vivem nesses Estados não serão ignoradas ?
O problema não é apenas o de que as normas que disciplinam as relações entre
Estados raramente são criadas para atender às necessidades dos particulares, mas é porque
geralmente os indivíduos recorrem ao seu próprio Estado quando necessitam de proteção
jurídica. Ao mesmo tempo, muitas vezes é em relação aos atos arbitrários de seu próprio
governo que o particular precisa de proteção.
Nesse aspecto, parece claro que o Direito Internacional clássico tem pouco a
oferecer. É verdade que Estados podem celebrar tratados com a finalidade de proteger
grupos religiosos, étnicos ou nacionais de um Estado que vivam em território de outro
Estado, e que tribunais internacionais podem apreciar e julgar questões que envolvem a
aplicação desses tratados. Esse foi, aliás, o sistema usado pelos tratados sobre minorias
adotados no período do entre-guerras e as proteções buscadas foram, em regra,
asseguradas3.
Contudo, esse sistema tinha suas limitações, tendo sido desde logo percebido que
particulares não tinham acesso direto a tribunais – faltava-lhes, assim, locus standi – nem
gozavam de direitos próprios que pudessem ser validamente pleiteados em juízo – ou seja,
mostravam-se desprovidos de jus standi – e, especialmente, não tinham à sua disposição um
sistema de indenização contra atos de seus Estados de origem que lhes violavam direitos.
2 Oppenheim’s International Law (Robert Yewdall Jennings e, Arthur Desmond Watts, atualizs.), 9ª ed., Londres,
Pablo de. Protection of National Minorities, Nova York, Carnegie Endowment for International Peace, 1967;
Azcárate, Pablo de. The League of Nations and National Minorities: an Experiment (trad. do espanhol por Eileen E.
Brooke), Nova York, Carnegie Endow, 1945.
~2~
Direitos Humanos & Fundamentais
4 Hayden, Patrick. The Philosophy of Human Rights, St. Paul, Minn., Paragon House, 2001, pp. 3-5.
~3~
Direitos Humanos & Fundamentais
96 (“Human rights are rights held simply by virtue of being a human person”).
8 Nickel, James W. The Human Right to a Safe Environment: Philosophical Perspectives on its Scope and Justification, in:
The Philosophy of Human Rights (Patrick Hayden), Paragon House, St. Paul, MN, 2001, pp. 601-617;
também publicado em 18 Yale Journal of International Law 1993, pp. 281-295.
9 Comparato, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, 4ª ed., Saraiva, 2005, p.1. Daí o
equívoco da maioria das religiões, em considerar o Homem como superior a todos os demais seres, em
virtude de sua “racionalidade”. A pergunta é: superior em que ? A racionalidade que o faz construir elaboradas
teorias filosóficas ou compor músicas refinadas é a mesma que provoca conflitos armados de elevado poder
destrutivo, genocídio, bombardeio de populações inocentes e outros tantos flagelos.
~4~
Direitos Humanos & Fundamentais
fonte dos Direitos Humanos no plano internacional, pelo mesmo argumento de que
direitos nacionais não são fonte de Direito Internacional. Essa fonte dos Direitos Humanos
é encontrada no Direito Internacional da Pessoa Humana, embora produza reflexos
profundos nos ordenamentos jurídicos nacionais.
Alguns autores entendem que não pode existir um conceito universal de Direitos
Humanos, pois deve ser reconhecida a existência de grande diversidade cultural no Mundo,
bem como de sistemas políticos10.
Essa é outra visão equivocada dos Direitos Humanos.
A universalidade dos Direitos Humanos decorre da universalidade da dignidade
humana, que independe de leis nacionais, pois que inerente à condição humana.
A maioria dos juristas adota precisamente essa posição, discorrendo apenas sobre
as diferenças que existiriam entre Direitos do Homem, Direitos Fundamentais e Direitos
Humanos. Para Mourgeon, Direitos Humanos (ou Direitos da Pessoa Humana) são aqueles
inerentes tão-somente à condição humana, isto é, aqueles que o ser humano tem
simplesmente por existir, por estar no Mundo como pessoa física e ter dignidade. Já Direitos
do Homem são “prerrogativas, governadas por regras, que a pessoa possui em suas relações
com os particulares e com o Poder”11.
Diferem ambos dos Direitos Fundamentais, que são “os Direitos Humanos
reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o poder político de editar
normas, tanto no interior dos Estados quanto no plano internacional: são os Direitos
Humanos positivados nas Constituições, nas leis, nos tratados internacionais”12. Essa
conceituação segue a doutrina alemã, a qual afirma que “os Direitos Fundamentais, em seu
aspecto formal, nada mais são do que os Direitos Humanos positivados pela
Constituição”13.
Segundo outro enfoque, Direitos Fundamentais podem ser típicos ou atípicos. Os
atípicos seriam os ainda não positivados em textos normativos14.
10 Donoho, Douglas Lee. Relativism versus Unilateralism in Human Rights: The Search for Meaningful Standards, 27-2
Stanford Journal of International Law 1990-91, pp. 345-391; Gros-Espiell, Héctor. The Evolving Concept of
Human Rights: Western, Socialist and Third World Approaches, in: Human Rights: Thirty Years after the Universal
Declaration: Commemorative Volume on the Thirtieth Anniversary of the Universal Declaration of Human
Rights (Bertrand G. Ramcharan, ed.), Haia, Nijhoff, 1979, pp. 41-65.
11 Mourgeon, Jacques. Les Droits de l’Homme, Paris, PUF, 1990.
12 Comparato, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, Op. cit., pp. 57-58. Vide, também, para
uma profunda diferenciação entre Direitos do Homem, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos,
Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, Op. cit., pp. 896-897, entendendo que é mais
importante admitir a interação entre esses direitos, a fim de que todas as pessoas (pertencentes ou não ao
Estado em que se encontrem) sejam protegidas.
13 Stern, Klaus. Handbuch des Staatsrechts, Band 5, Allgemeine Grundrechtslehren, Heidelberg, C.F. Müller
~5~
Direitos Humanos & Fundamentais
15 Israel, Jean-Jacques. Droit des Libertés Fondamentales, L.G.D.J., Paris, 1998, pp. 21-22.
16 Cretella Neto, José. Curso de Direito Internacional Penal, 2ª ed., Ed. Saraiva, 2014, pp. 438-456 (pirataria) e pp.
477-493 (escravidão).
17 Grewe, Wilhelm Georg. Epochen der Völkerrechtsgeschichte, 2ª ed., Berlim, Nomos Verlag, 1988.
~6~
Direitos Humanos & Fundamentais
Recorde-se que a Sociedade das Nações foi criada por um Pacto, anexo ao
Tratado de Versalhes, de 28.04.191918, que previa uma estrutura complexa baseada no
equilíbrio entre os interesses das grandes e pequenas potências da época. A organização
passou a funcionar em Genebra, e corresponde ao ideal wilsoniano expresso na mensagem
do Presidente Thomas Woodrow Wilson (1856-1924) ao Congresso norteamericano,
enviada em 09.01.1918.
O Artigo 22 do Pacto da SdN estabeleceu um sistema de mandatos aplicáveis às
pessoas das ex-colônias e territórios inimigos que, em consequência da guerra, “cessaram
de estar sob a soberania dos Estados que precedentemente os governavam e são habitados
por povos ainda incapazes de se dirigirem por si próprios nas condições particularmente
difíceis do mundo moderno”. E o Artigo 23 do Pacto estabelecia, para o sistema de
Mandato, um “tratamento equitativo das populações indígenas dos territórios submetidos à
sua administração”.
A Parte XIII do Tratado de Versalhes previa a criação da Organização
Internacional do Trabalho-OIT, a qual tinha, entre outras funções, a promoção de
melhores padrões e condições de trabalho, bem como apoio ao direito de associação.
Sem dúvida, o impulso decisivo para o desenvolvimento dos Direitos Humanos
foi o impacto causado pelas atrocidades cometidas pela Alemanha e pelo Japão durante a 2ª
Guerra Mundial.
2. A CARTA E OS PACTOS
18O Tratado de Versalhes foi sancionado, no Brasil, pelo Decreto nº 3.875, de 11.11.1919; publicado no
DOU no dia seguinte; ratificado pelo Brasil em 10.12.1919; depósito da ratificação em Paris, em 10.01.1920;
promulgado, no Brasil, pelo Decreto nº 13.990, de 12.01.1920.
~7~
Direitos Humanos & Fundamentais
Com efeito, veja-se que o Artigo 55 estabelece que “as Nações Unidas
favorecerão: ... ... c) o respeito universal e efetivo para todos, sem distinção de raça, sexo,
língua ou religião”.
E o Artigo 56 prevê que, “para a realização dos propósitos enumerados no Artigo
55, todos os Membros da Organização se comprometem a agir em cooperação com esta,
em conjunto ou separadamente”.
A partir da Carta da ONU, pode-se dizer que o marco normativo pioneiro desse
esforço de proteção ao ser humano foi, sem dúvida, a adoção, pela Assembleia Geral, em
10.12.1948, por meio da Resolução 217 (III) A, da Declaração Universal dos Direitos
Humanos.
É preciso, no entanto, notar que sua natureza jurídica – declaração – é a de um ato
jurídico produzido por uma organização internacional de caráter não obrigatório, da mesma
forma que uma recomendação19.
Resultado de tentativas de abrandamento das tensões internacionais durante a
Guerra Fria, encontrou-se, pouco mais tarde, uma solução de compromisso para o conflito
entre as duas categorias de direitos: da tentativa de consolidar a aplicação da Declaração
dos Direitos do Homem, de 1948, conferindo aos Direitos Humanos mais eficácia jurídica,
resultaram duas convenções internacionais, abrangendo esses grandes grupos de direitos: o
Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos20 e o Pacto Internacional sobre os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais21, ambos adotados pela resolução 2.200-A, da Assembléia Geral
das Nações Unidas, em 16.12.196622.
Destaquem-se, ainda, o Primeiro Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os
Direitos Civis e Políticos, também aprovado pela mesma resolução 2.200-A, em 16.12.1966,
em vigor internacionalmente a partir de 23.03.1976; e também o Segundo Protocolo Facultativo
ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, em 15.12.1989, em vigor
internacionalmente a partir de 11.07.1991 23.
Isso significa que, se um dos objetivos centrais das Nações Unidas é o de
promover a proteção dos seres humanos, este pode até mesmo servir para justificar o uso
19 Para uma discussão sobre o significado e o valor jurídico dos atos normativos das organizações
internacionais, vide Cretella Neto, José. Teoria Geral das Organizações Internacionais, 3ª ed., Ed. Saraiva, 2013, pp.
409 e ss.
20 Entrou em vigor internacionalmente em 23.03.1976. Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 226, de
12.12.1991; promulgado pelo Decreto nº 592, de 06.07.1992. Entrou em vigor, para o Brasil, em 24.04.1992.
21 Entrou em vigor internacionalmente em 03.01.1976. Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 226, de
12.12.1991; promulgado pelo Decreto nº 591, de 06.07.1992. Entrou em vigor, para o Brasil, em 24.04.1992.
22 Modell, Flávia Leda. Direitos Civis e Políticos e Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: Dicotomia ou Integração,
disponível em www.cjf.gov.br/revista/numero10/artigo15.htm.
23 Ambos aprovados pelo Decreto Legislativo nº 311, de 16.06.2009, data em que entraram em vigor no
Brasil.
~8~
Direitos Humanos & Fundamentais
da força em casos especiais, o que tem significativo impacto no entendimento e nas normas
do Direito Internacional Humanitário, permitindo intervenção no interior de territórios de
Estados nos quais indivíduos corram perigos iminentes24.
Em conjunto com os Artigos 1.3, 55 e 56 da Carta da ONU, formam a chamada
“Carta dos Direitos do Homem” (em inglês, International Bill of Rights), a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, o Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto
sobre os Direitos Sociais e Econômicos, já mencionados.
Esses documentos lançaram os fundamentos para a aprovação de uma série de
instrumentos internacionais, tais como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as
Formas de Discriminação Racial 25, a Convenção Internacional contra todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher26, e a Convenção sobre os Direitos da Criança27.
Não há dúvida de que esses tratados nada têm de triviais e representam uma
dramática reviravolta na natureza do sistema jurídico internacional, na medida em que
enfatizam a importância dos direitos dos indivíduos, erigindo-os ao patamar de valores
centrais desse sistema jurídico, na medida em que esses valores desafiam a primazia do
conceito clássico de soberania, bem como da frequentemente violenta paz que à qual essa
soberania se destina a impor (pelo menos no âmbito da Carta da ONU).
De qualquer modo, já não tem mais sentido falar em “relativização dos Direitos
Humanos”, ou de que cada Estado pode implementar os tratados internacionais sobre o
tema conforme seu sistema político e formação cultural. Particularmente após o
esfacelamento do mundo comunista europeu, no início da década de 1990, entende-se que
os Estados podem implementar os Direitos Humanos de modos diferentes – por meio de
legislação ordinária, da Constituição ou com base na lei costumeira – mas o conteúdo daquilo
que deve ser implementado tem por base padrões internacionais e não varia de um país
para outro.
24 Fichtelberg, Aaron. International Law at the Vanishing Point: A Philosophical Analysis of International Law,
internacionalmente e também para o Brasil em 04.01.1969. Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo nº
23, de 21.06.1967; promulgada pelo Decreto nº 65.810, de 08.12.1969.
26 Aprovada pela Resolução 34/1980, da Assembleia Geral, de 18.112.1979. Entrou em vigor
em 03.07.1981. Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo nº 93, de 14.11.1983; promulgada pelo Decreto
nº 89.460, de 20.03.1984. Entrou em vigor para o Brasil em 02.03.1984, com reservas aos Artigos 15.4, e 16.1,
alíneas (a), (c), (g) e (h). Posteriormente, o Decreto Legislativo nº 26, de 22.06.1994, revogou o citado
Decreto Legislativo nº 93, aprovando a Convenção, inclusive os citados Artigos 15.4 e 16.1, alíneas (a), (c), (g)
e (h), retirando as reservas em 20.12.1994. Também o Decreto nº 89.460 foi revogado pelo Decreto nº 4.377,
de 13.07.2002. A Convenção já havia entrado em vigor, para o Brasil, em 02.03.1984, com a reserva facultada
no Artigo 29.2, mas, atualmente, encontra-se integralmente em vigor no País.
~9~
Direitos Humanos & Fundamentais
28Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e do Tratamento dos
Criminosos, realizada em Genebra em 1955 e aprovadas pelo ECOSOC por meio das resoluções 663
(XXIV), de 31.07.1957 e 2076 (LXII), de 13.05.1977.
~ 10 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
marco legal obrigatório nesse campo jurídico, embora possivelmente seus idealizadores não
imaginassem o alcance que esse instrumento atingiria décadas mais tarde.
Pode-se fazer uma breve análise da Declaração Universal de 1948 em conjunto
com os Pactos Internacionais de 1966.
Primeiramente, observe-se que a Declaração enfatiza, no Preâmbulo, que “o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus
direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
Enquanto se reconhece amplamente a importância dos Direitos Humanos na
estrutura jurídica internacional, nota-se considerável confusão quanto à sua precisa
natureza e seu papel no Direito Internacional29.
A questão do que realmente significa um “direito” é, em si, controversa e sujeita a
intenso debate jurisprudencial30.
Alguns “direitos”, por exemplo, são estabelecidos para imediata execução por
meio de obrigações assumidas pelos Estados Partes, outros meramente especificam um
possível futuro padrão de comportamento dos signatários de determinado tratado.
Compare-se, nessa linha de argumentação, os textos do Artigo 2 do Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos 31 com o do Artigo 2 do Pacto Internacional sobre os
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais32.
29 Vide, por exemplo, a respeito, Moskowitz, Moses. The Politics and Dynamics of Human Rights, Nova York,
Dobbs Ferry, Oceana Publishers, 1968, pp. 98-99; e McDougal, Myres Smith, Lasswell, Harold Dwight e
Longzhi, Chen. Human Rights and World Public Order, 2ª ed., New Haven, Yale University Press, 1980, pp. 63-
68.
30 Vide, a respeito, por exemplo, Hohfeld, Wesley Newcomb. Some Fundamental Legal Conceptions as Applied to
Judicial Reasoning, 23 Yale Law Journal 1913, pp. 295-321; e Cranston, Maurice William. What are Human Rigths
?, Londres, The Bodley Head, 1973.
31 “1. Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que
se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto,
sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra
natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição. 2. Na ausência de
medidas legislativas ou de outra natureza destinadas a tornar efetivos os direitos reconhecidos no presente
Pacto, os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a tomar as providências necessárias com vistas
a adotá-las, levando em consideração seus respectivos procedimentos constitucionais e as disposições do
presente Pacto. 3. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a: a) Garantir que toda pessoa,
cujos direitos e liberdades reconhecidos no presente Pacto tenham sido violados, possa de um recurso
efetivo, mesmo que a violência tenha sido perpetra por pessoas que agiam no exercício de funções oficiais; b)
Garantir que toda pessoa que interpuser tal recurso terá seu direito determinado pela competente autoridade
judicial, administrativa ou legislativa ou por qualquer outra autoridade competente prevista no ordenamento
jurídico do Estado em questão; e a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; c) Garantir o
cumprimento, pelas autoridades competentes, de qualquer decisão que julgar procedente tal recurso”.
32 “1. Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio
como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o
máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios
apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a
adoção de medidas legislativas. 2. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir que os
direitos nele enunciados e exercerão em discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião,
~ 11 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer
outra situação. 3. Os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos humanos
e a situação econômica nacional, poderão determinar em que garantirão os direitos econômicos reconhecidos
no presente Pacto àqueles que não sejam seus nacionais”.
33 Ampla discussão a respeito em Dinah Shelton. Remedies in International Human Rights Law, 2ª ed., Oxford,
University of Illinois Law Forum, 1979, p. 609; Watson, J. S. Legal Autointerpretation, Competence and the
Continuing Validity of Article 2(7) of the UN Charter, 71 American Journal of International Law 1977, 60.
35 Higgins, Rosalyn. Reality and Hope and International Human Rights: A Critique, 9 Hofstra Law Review 1981, pp.
1485-1499.
36 Shaw, Malcolm. International Law, 5ª ed., Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 248.
37 Por todos, Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 10ª ed., Ed. Revista dos
~ 12 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
4. irrenunciabilidade (não podem ser violados nem mesmo por autorização de seu
titular);
5. inalienabilidade (não podem ser transferidos nem cedidos a outrem, gratuita ou
onerosamente, nem mesmo com o consentimento de seu titular, sendo ainda
indisponíveis e inegociáveis);
6. inexauribilidade (não apenas não podem ser reduzidos, mas têm a possibilidade
de ser expandidos a qualquer tempo);
7. imprescritibilidade (o titular pode exercê-los a qualquer tempo, não sendo
atingidos pela prescrição);
8. vedação ao retrocesso (devem sempre agregar algo mais e melhor ao ser humano, não
podendo o estado proteger menos do que já protegia anteriormente).
38 Aprovada no Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 2, de 11.04.1951; promulgada pelo Decreto nº
30.822, de 06.05.1952.
39 Aprovada no Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 23, de 21.06.1967; promulgada pelo Decreto nº
65.810, de 08.12.1969.
40 1249 UNTS (1984), p. 13.
41 1465 UNTS (1987), p. 112. O Congresso Nacional aprovou a Convenção por meio do Decreto Legislativo
nº 04, de 23.05.1989; a Carta de Ratificação da Convenção foi depositada pelo Brasil em 28.09.1989; entrou
~ 13 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Além de assegurar:
Direitos civis e políticos (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, assinado
em Nova York, em 12.1966);
Direitos econômicos, sociais e culturais (Pacto Internacional sobre os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, assinado em Nova York, em 19.12.1966); e
Direitos das crianças (Convenção sobre os Direitos da Criança, de 20.11.198944).
em vigor para o País em 28.10.1989, na forma do Artigo 27.2; promulgada pelo Decreto Presidencial nº 40,
de 05.02.1991.
42 212 UNTS (1955), p. 17. O Decreto Legislativo nº 66, de 14.07.1965, aprovou a Convenção Sobre a
Escravatura, assinada em Genebra, em 1926, e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de
Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, de 1956. Ambas as Convenções entraram em vigor,
para o Brasil, em 06.01.1966, promulgadas pelo Decreto nº 58.563, de 01.06.1966. Em 06.01.1966 havia sido
depositado o instrumento brasileiro de adesão, junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas.
43 226 UNTS (1956). Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 66, de 14.07.1965. Também promulgada, no
Brasil, por meio do referido Decreto nº 58.563, de 01.06.1966. Depósito do instrumento brasileiro de adesão
junto à Organização das Nações Unidas e entrada em vigor, para o Brasil, em 06.01.1966.
44 Promulgada no Brasil pelo Decreto n° 28, de 14.09. 1990. A Convenção sobre os Direitos da Criança entrou em
~ 14 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 15 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
A maioria dos crimes internacionais viola direitos da pessoa humana, mas isso
nem sempre ocorre.
Algumas ações envolvendo pirataria em alto-mar – quando dirigidas
exclusivamente contra bens – como tráfico de drogas, mercenarismo, falsificação de
moeda, corrupção e lavagem de dinheiro, por exemplo, via de regra não atentam diretamente
contra os Direitos Humanos.
Pode ocorrer que isso se dê quando praticados alguns atos conexos a esses crimes,
como quando piratas tomam reféns a bordo, ou quando traficantes e mercenários
sequestram pessoas, mas esses atos incidentais não são da essência desses crimes.
Já a maioria dos crimes internacionais, na realidade, viola Direitos Humanos
fundamentais, como veremos a seguir.
E, na tipificação dos crimes internacionais mencionados, podemos isolar
determinadas condutas que se desdobram em dezenas de ações de violência material e/ou
psicológica contra as vítimas.
45Goldsmith, Jack L. e Posner, Eric A. The Limits of International Law, Oxford, Oxford University Press, 2005,
pp. 107-110.
~ 16 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
5.3. Genocídio
O termo genocídio (do grego genos = espécie, raça, tribo + latim cide = matar) foi
cunhado pelo advogado polonês Raphael Lemkin durante a 2ª Guerra Mundial, para
descrever os crimes cometidos pelos nazistas contra determinados grupos étnicos, como os
judeus e os ciganos. Lemkin definiu genocídio como “o conjunto de ações destinadas à
destruição das bases essenciais para a vida de um grupo, orientadas por um plano de
aniquilamento desse grupo”47.
A nova palavra passou a ser empregada para designar uma prática antiga, agora em
contexto contemporâneo48.
Embora prática antiga, foi a partir da 2ª Guerra Mundial que se passou a
considerar o genocídio como uma clara ameaça à paz e à segurança da Humanidade. Isso
ocorre porque grupos ameaçados de extermínio e aqueles que saem em sua defesa são
obrigados a se armar para legitimamente defender-se. Os que sobrevivem a esses pogroms,
frequentemente se vêm motivados por um desejo de vingança contra os que praticaram o
genocídio, para que “nunca mais” esse crime bárbaro seja perpetrado contra aquele grupo.
Isso ocorreu na Europa, efetivamente, durante a 2ª Guerra Mundial e mais tarde,
no Paquistão e na Região dos Grandes Lagos, na África. Essas atividades não apenas
46 Aprovado pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo nº 112, de 06.06.2002; promulgado pelo
Redress, Washington, D.C., Carnegie Endowment for International Peace, 1944, p. 79.
48 Outro termo poderia ser usado para expressar a mesma idéia: etnocídio, formada pelas palavras ethnos =
~ 17 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
perturbam a paz na região e nas regiões vizinhas, mas podem ameaçar a paz de todo o
planeta.
Graças, em grande parte, aos esforços de Lemkin, as condutas que caracterizam o
genocídio foram incluídas na descrição dos crimes de que foram acusados os principais
criminosos de guerra nazistas49.
O crime não havia sido tipificado com essa denominação no Estatuto do Tribunal
de Nurembergue (Artigo 6) nem no do Tribunal Militar de Tóquio (Artigo 5), que definiam
exclusivamente crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a Humanidade, sendo,
contudo, definido na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, concluída
em Paris, por iniciativa das Nações Unidas, em 11.12.1948 50, primeiro tratado multilateral a
respeito de um crime internacional a entrar em vigor na História.
Em sentido lato, o genocídio é, evidentemente, um crime contra a Humanidade, na
medida em que repugna profundamente a consciência jurídica da sociedade internacional.
Contudo, crimes contra a Humanidade é expressão técnica, que designa conduta específica,
descrita em diversos tratados internacionais e nas resoluções da ONU que criaram os
tribunais ad hoc para a ex-Iugoslávia (Artigo 5) e Ruanda (Artigo 3).
Diferencia-se do genocídio, pois este é dirigido contra grupo específico de pessoas,
que têm em comum a crença religiosa, a etnia, a filiação política, etc., enquanto que, nos
crimes contra a Humanidade, as ações criminosas podem ser dirigidas contra diversos
segmentos da população.
O crime de genocídio foi descrito no Artigo 2 da referida Convenção para a Prevenção
e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948. Aqui, o objeto jurídico internacionalmente
protegido é o direito de certos grupos de existir, conforme estabeleceu a Corte Internacional de
Justiça, no Parecer consultivo proferido a respeito do Caso Reservas à Convenção para a
Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, em 28.05.195151.
49 Schwarzenberger, Georg. Power Policy: a Study of International Society, 2ª ed., Londres, Stevens & Sons, 1951, p.
634.
50 Aprovada no Brasil pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 2, de 11.04.1951 e
~ 18 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
5.5. Agressão
52 Pictet, Jean-Simon (ed.). Geneva Convention I, Commentary, Genebra, CICR, 1957, pp. 351 e ss.
~ 19 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 20 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 21 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
desejo de “colocar fim a um flagelo que há muito tempo assola a África, degrada a Europa,
e aflige a Humanidade”, e declararam que a escravatura era “repugnante” em relação aos
valores da comunidade ocidental civilizada 57.
A condenação ao tráfico de escravos, contida na Ata Final, não foi seguida da
imediata suspensão dessa atividade, principalmente devido à rivalidade existente entre a
Grã Bretanha e a França, as duas maiores potências navais da época. Para se ter idéia das
consequências dessa rivalidade, em 20.12.1841, esses dois países concluíram, em Londres, a
Convenção sobre a Repressão ao Comércio de Escravos, mas a França recusou-se a ratificar o
tratado, alegando o Parlamento francês que se opunha ao direito de visita no mar, previsto
pela convenção.
Somente em 26.02.1885, com a conclusão da Ata da Conferência de Berlim58,
confirmada pelo Ato Geral Anti-Escravagista de Bruxelas, de 02.07.189059, que instituiu
norma segundo a qual “conformément au droit des gens, la traite des esclaves est interdite”, foi o
tráfico internacional de escravos definitivamente proscrito.
Outro importante instrumento jurídico da época a ser mencionado, é o Ato Geral
da Conferência de Bruxelas (General Act of the Brussels Conference Relative to the African Slave
Trade), de 02.07.1890, composto por 100 artigos, aplicável a atos relacionados ao tráfico de
escravos, mas apenas no interior do Continente Africano (Artigo I).
No início do século 19, registra-se o Acordo Internacional para a Repressão ao
Tráfico de Escravas Brancas (International Agreement for the Suppression of the White Slave
Traffic)60, concluído em Paris, em 18.05.1904, na forma de um procès-verbal, que reprime uma
espécie particularmente revoltante da redução de seres humanos à escravidão, o tráfico
internacional de mulheres e meninas, para fins de prostituição. Por esse Acordo, as partes
contratantes se obrigavam a criar uma autoridade internacional responsável pela
coordenação de todas as informações relativas ao aliciamento de mulheres e meninas “for
immoral purposes abroad”; essa autoridade deveria manter-se em contato direto com
autoridades similares de todos os Estados partes (Artigo 1).
57 Em 1810, Portugal e Inglaterra assinaram um tratado, no Rio de Janeiro, pelo qual o Príncipe Regente
comprometeu-se a descontinuar o tráfico negreiro entre diversos entrepostos africanos e o Brasil.
58 O título completo do tratado era General Act of the Conference at Berlin of the Plenipotentiaries of Great Britain,
Austria-Hungary, Belgium, Denmark, France, Germany, Italy, the Netherlands, Portugal, Russia, Spain, Sweden and
Norway, Turkey and the United States Respecting: (1) Freedom of Trade in the Basin of the Congo; (2) the Slave Trade; (3)
Neutrality of the Territories in the Basin of the Congo (4) Navigation of the Congo; (5) Navigation of the Niger; and (6) Rules
for the Future Occupation of the Coast of the African Continent.
59 O título completo do tratado era General Act of the Brussels Conference Relative to the African Slave Trade. Ambos
~ 22 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
CONCLUSÕES
61 A convenção foi promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 16.572, de 27.08.1924. Essa Convenção foi
posteriormente emendada pelo Protocol Amending the International Agreement for the Suppression of the White Slave
Traffic, signed at Paris on 18 May 1904, and the International Convention for the Suppression of the White Slave Traffic,
signed at Paris on 4 May 1910, concluído em Lake Success, Nova York, em 04.05.1949, transferindo-se as
competências assumidas pelo governo francês, com base nas convenções de 1904 e 1910, para a Organização
das Nações Unidas (Preâmbulo do Protocolo).
62 Esse tratado fazia parte dos acordos assinados nas proximidades de Paris, encerrando a 1ª Guerra Mundial,
e selava a paz entre as potências aliadas e a Áustria, consagrando, igualmente, o fim da monarquia austro-
húngara. O outrora poderoso Império dos Habsburgos ficaria reduzido à Áustria, que conta, hoje, com pouco
mais de 8 milhões de habitantes.
63 212 UNTS (1955), p. 17. O Decreto Legislativo nº 66, de 14.07.1965, aprovou a Convenção Sobre a
Escravatura, assinada em Genebra, em 1926, e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de
Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, de 1956. Ambas as Convenções entraram em vigor,
para o Brasil, em 06.01.1966, promulgadas pelo Decreto nº 58.563, de 01.06.1966. Em 06.01.1966 havia sido
depositado o instrumento brasileiro de adesão, junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas.
~ 23 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
conferências internacionais, que atingiu o claro e elevado patamar de jus cogens no Direito
Internacional.
Seus enunciados e princípios inspiraram claramente o desenvolvimento do Direito
Internacional desde 1948, e praticamente todos os instrumentos normativos fazem
referência explícita à Carta Internacional dos Direitos Humanos, especialmente em seus
Preâmbulos.
Dificilmente se poderia imaginar a expansão da proteção internacional dos
Direitos Humanos, como vem ocorrendo nos últimos 70 anos, sem a Carta Internacional
dos Direitos Humanos.
Pode-se afirmar, com certeza, que a Carta Internacional dos Direitos Humanos, o Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais formam o importante tripé que constitui o sólido sustentáculo do atual
regime internacional de proteção aos Direitos Humanos.
BIBLIOGRAFIA
Azcárate, Pablo de. Protection of National Minorities, Nova York, Carnegie Endowment for
International Peace, 1967.
Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos (trad. de Carlos Nelson Coutinho), Rio de Janeiro, Ed.
Campus, 1992.
Comparato, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, 4ª ed., Saraiva, 2005.
Cranston, Maurice William. What are Human Rigths ?, Londres, The Bodley Head, 1973.
Cretella Júnior, José. Curso de Direito Romano, 30ª ed., Rio, Ed. Forense, 2007.
Cretella Neto, José. Curso de Direito Internacional Penal, 2ª ed., Ed. Saraiva, 2014, pp. 438-456
(pirataria) e pp. 477-493 (escravidão).
________________. Teoria Geral das Organizações Internacionais, 3ª ed., Ed. Saraiva, 2013.
~ 24 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Donoho, Douglas Lee. Relativism versus Unilateralism in Human Rights: The Search for Meaningful
Standards, 27-2 Stanford Journal of International Law 1990-91, pp. 345-391.
Goldsmith, Jack L. e Posner, Eric A. The Limits of International Law, Oxford, Oxford
University Press, 2005.
Grewe, Wilhelm Georg. Epochen der Völkerrechtsgeschichte, 2ª ed., Berlim, Nomos Verlag,
1988.
Gros-Espiell, Héctor. The Evolving Concept of Human Rights: Western, Socialist and Third World
Approaches, in: Human Rights: Thirty Years after the Universal Declaration:
Commemorative Volume on the Thirtieth Anniversary of the Universal Declaration of
Human Rights (Bertrand G. Ramcharan, ed.), Haia, Nijhoff, 1979, pp. 41-65.
Hayden, Patrick. The Philosophy of Human Rights, St. Paul, Minn., Paragon House, 2001.
Higgins, Rosalyn. Problems & Process – International Law and how we Use it, Oxford, Clarendon
Press, 2004.
______________. Reality and Hope and International Human Rights: A Critique, 9 Hofstra Law
Review 1981, pp. 1485-1499.
Hohfeld, Wesley Newcomb. Some Fundamental Legal Conceptions as Applied to Judicial Reasoning,
23 Yale Law Journal 1913, pp. 295-321.
~ 25 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Lemkin, Raphael. Axis Rule in Occupied Europe: Laws of Occupation – Analysis of Government –
Proposals for Redress, Washington, D.C., Carnegie Endowment for International Peace, 1944.
Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 10ª ed., Ed. Revista dos
Tribunais, 2016.
McDougal, Myres Smith, Lasswell, Harold Dwight e Longzhi, Chen. Human Rights and
World Public Order, 2ª ed., New Haven, Yale University Press, 1980.
Modell, Flávia Leda. Direitos Civis e Políticos e Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: Dicotomia
ou Integração, disponível em www.cjf.gov.br/revista/numero10/artigo15.htm.
Moskowitz, Moses. The Politics and Dynamics of Human Rights, Nova York, Dobbs Ferry,
Oceana Publishers, 1968
Nickel, James W. The Human Right to a Safe Environment: Philosophical Perspectives on its Scope
and Justification, in: The Philosophy of Human Rights (Patrick Hayden), Paragon House, St.
Paul, MN, 2001, pp. 601-617; também publicado em 18 Yale Journal of International Law
1993, pp. 281-295.
Oppenheim’s International Law (Robert Yewdall Jennings e, Arthur Desmond Watts, atualizs.),
9ª ed., Londres, Longmans, 1992.
Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 7ª ed., Ed. Saraiva,
2006.
Schwarzenberger, Georg. Power Policy: a Study of International Society, 2ª ed., Londres, Stevens
& Sons, 1951.
~ 26 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Shaw, Malcolm N. International Law, 5th ed., Cambridge, Cambridge University Press, 2003.
Shelton, Dinah. Remedies in International Human Rights Law, 2ª ed., Oxford, Oxford
University Press, 2005.
Watson, J. S. Legal Theory, Efficacity and Validity in the Development of Human Rights Norms in
International Law, University of Illinois Law Forum, 1979.
Watson, J. S. Legal Autointerpretation, Competence and the Continuing Validity of Article 2(7) of the
UN Charter, 71 American Journal of International Law 1977, 60.
~ 27 ~
A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A CONSTITUIÇÃO VIGENTE
~ 28 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
E houve ainda a Lei 234 (de 23.11.1841), que também pode ser tida como reforma
constitucional, bastando ver que seu objeto era restaurar o Conselho de Estado, que o Ato
Adicional havia suprimido. Nenhuma dessas duas leis tinha formalmente o nome de
Emenda Constitucional nem fora promulgada segundo os procedimentos estabelecidos na
Constituição para sua reforma, mas seu conteúdo autoriza a serem assim consideradas.
A Constituição da chamada “República velha”, a primeira Constituição
republicana, de 1891 (também a mais longeva das constituições republicanas brasileiras:
vigorou 39 anos, de 1891 a 1930) sofreu apenas uma Emenda, consistente num conjunto
de pequenas alterações aprovadas nas sessões ordinárias do Congresso Nacional de 1925 e
26. São as chamadas “Emendas de 1926”, com as quais a Constituição foi republicada,
conservando-se as assinaturas dos constituintes de 1891.
A Constituição de 1934 (que vigorou apenas três anos) sofreu três pequenas
emendas, aquelas que constam do Decreto Legislativo nº 6 (18.12.1935).
Quanto à Constituição de 1937 (vigorou 8 anos, até 1945), devem-se distinguir
duas fases: na primeira, recebeu ela 8 Emendas, que tinham então o nome de Lei
Constitucional. Com a Lei Constitucional nº 9, de 28.02.1945 (que é a penúltima lei
Constitucional assinada pelo chefe do Estado Novo, Getúlio Vargas), começa a segunda
fase, porque dela se pode datar o início da superação do Estado Novo, sobretudo porque aí
Getúlio renuncia à realização do plebiscito, que confirmaria a Carta de 1937, nos termos de
seu artigo final, o 187, e convoca eleições para o Parlamento, declarando, nos seus
“considerandos”,que “a eleição de um Parlamento dotado de poderes especiais para, no curso de uma
legislatura, votar, se o entender conveniente, a reforma da Constituição, supre com vantagem o plebiscito de
que trata o art. 187, e que, por outro lado, o voto plebiscitário implicitamente tolheria ao Parlamento a
liberdade de dispor em matéria constitucional”. Getúlio Vargas ainda assinaria a Lei Constitucional
nº 10, que, a rigor, pertence à primeira fase.
A partir daí, deposto Getúlio, serão 11 Leis Constitucionais, baixadas pelo novo
presidente, José Linhares,no curto espaço de apenas três meses (da Lei Constitucional nº
11, de 30.10.1945, à Lei Constitucional nº 21, de 23.01.1946). Essas novas Leis
Constitucionais foram promulgadas para desmontar as estruturas autoritárias do Estado
Novo e viabilizar a redemocratização do País. Em suma: 9 emendas durante o Estado
Novo propriamente dito (Leis Complementares de 1 a 8, mais a 10) e 12 emendas para
superar o Estado Novo em rumo à redemocratização (Leis Complementares nº 9, e da 11 à
21).
~ 29 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Pode-se, quanto à Constituição de 1946 (que vigorou 21 anos, de 1946 até 1967),
proceder à mesma divisão: (a) o período de normalidade da Constituição de 1946 (que vai
até 1964: 18 anos) e (b) a ruptura de 1964 feita, no entanto, para manter e revitalizar a
Constituição (3 anos: de 1964 a 1967). Nos 18 anos da primeira fase houve 6 Emendas (ou,
a rigor, apenas 4, se excluídas a Emenda nº 4, de 02.09.1961, chamada de “Ato Adicional”,
que instituiu o Parlamentarismo, e a nº 6, de 23.01.1963, que o desinstituiu, revogando a
Emenda nº 4, para restabelecer o presidencialismo do texto original de 1946).
Com a ruptura/manutenção de 1964 houve simplesmente mais 15 emendas:9
emendas (da 7 à 15), antes do Ato Institucional nº 2 (de 27.10.1965) e mais 6 (da 16 à 21)
até à Constituição de 1967, convocada pelo Ato Institucional nº 4 (de 07.12.1966). . Foi
época de grande turbulência constitucional porque, além do Ato Institucional inicial (que
não tinha número, porque era para ser único), houve ainda os Atos 2, 3 e 4 e mais 33 Atos
Complementares – turbulência constitucional que se deveria encerrar com o advento de
uma nova Constituição, segundo pensava Castelo Branco.
Na vigência da Constituição de 1967 (outros 21 anos: de 1967 até 1988),
verificar-se-á, no entanto,o mesmo tumulto constitucional porque a edição do Ato
Institucional nº 5 (de 13.12.1968) reabriu o chamado “processo revolucionário” e
reestabeleceu a dualidade de ordens jurídicas no País (a ordem constitucional e a ordem
“institucional”, consistente na promulgação arbitrária de Atos Institucionais e
Complementares). Pior ainda, a primeira emenda que a Constituição de 1967 sofreu (a
Emenda nº1, de 17.10.1969), que, mexendo numa enorme quantidade de artigos, achou
melhor, ao invés de dar a nova redação dos artigos reformados, simplesmente republicar a
Constituição inteira, convalidou a duplicidade de ordens jurídicas com a absurda inclusão
do art. 182 determinando que “continuam em vigor o Ato Institucional nº 5, de 13.12.1968, e os
demais Atos posteriormente baixados”.
Até a Emenda Constitucional nº 11, de 13.10.1978, que revogou o Ato
Institucional nº 5, acabando portanto com a dualidade de ordens jurídicas, e que pode ser
considerada também como o final do período da ditadura militar (que durou do Ato
Institucional nº 5, de 1968, até essa Emenda nº 11, de 1978, 10 anos, portanto), a
Constituição de 1967terá recebido, nesses 11 anos iniciais de vigência, 10 emendas
constitucionais, devendo-se destacar, dentre elas, a Emenda nº 8, de 14.04.1977, o famoso
“pacote de abril”, editada solitariamente pelo Presidente Geisel, durante recesso imposto ao
Congresso Nacional, e logo a seguinte, a Emenda nº 9 (de 28.06.1977) que, beneficiando-se
da redução do “quórum” para reformas constitucionais, introduziu o divórcio.
~ 30 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 31 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 32 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 33 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 34 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 35 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 36 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
deputados estaduais à dos federais e a dos vereadores à dos deputados estaduais, que
parece regra muito mais razoável. Além do registro irônico de que a primeira Emenda
consistiu num retorno a uma disciplina estabelecida pelo regime militar, o importante é
ressaltar que se trata de emenda desfavorável, no sentido aqui adotado, isto é, que
substituiu opções tomadas pelo constituinte originário por opções diferentes e até opostas.
O governo Fernando Henrique foi especialmente pródigo em aprovar Emendas
Constitucionais desfavoráveis, isto é, optando por soluções contrárias às do constituinte
originário. Podem até ser identificadas pela natureza dos novos valores (ou contra-valores)
que foram então adotados:
a) Desnacionalização
b) Desestatização
~ 37 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
c) O monopólio do petróleo
~ 38 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 39 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
e) Reeleição
~ 40 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Uma das “amarras” com que a Constituição de 1988 protegeu a remuneração dos
servidores civis foi vinculá-la à dos militares, sabendo que os primeiros têm muito menor
poder de pressão, não dispondo de tanques e fuzis, os quais, na hora das reivindicações,
nem precisam ser mencionados explicitamente. Previa ela (artigo 37, X) que “a revisão geral
da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos
civis e militares, far-se-á sempre na mesma data”.
Interessado em desvincular essas remunerações, para poder conceder aos militares
reajustes mais robustos, o governo Fernando Henrique procedeu a inédita manobra de
reforma constitucional (Emenda nº 18, de 05.02.1988): simplesmente transferiu de lugar
toda uma seção da Constituição, a seção III do capítulo VII do título III, deixando esse
capítulo de ter uma divisão interna entre “servidores públicos civis” e “servidores públicos
militares”, deslocando inteiramente essa seção para ser transformada num parágrafo, o 3º,
do artigo 142, do capítulo “Das Forças Armadas” do título V “Da defesa do Estado e das
instituições democráticas”. Muitas edições da Constituição vigente registram que esse § 3º
foi “acrescentado pela EC nº 18”, o que é falso, uma vez que ele não foi propriamente
“acrescentado”: já existia integral e literalmente na Constituição original. Foi apenas
deslocado, tal qual, abduzido, transferido para outra parte da Constituição.
Extremo cuidado técnico e formal? Rigor topográfico? Claro que não. Apenas,
preparar o terreno para o que viria a seguir: estabelecido que os militares não são mais
“servidores públicos militares”, espécie do gênero “servidores públicos” (serão servidores
privados?), poder-se-á em seguida (o que foi feito logo na Emenda seguinte, a nº 19, de 4
meses depois, 04.06.1998) regular o reajuste dos servidores sem mais a vinculação aos
militares: “a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente
poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada
revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices” (isto é, sem distinção de índices
entre eles, os servidores públicos, que são somente os civis, de nenhum modo mais
vinculados aos servidores militares...).
~ 41 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
g) Reforma da previdência
6. Mais contra-opções
~ 42 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Era determinação explícita do texto original: “As taxas de juros reais, nelas incluídas
comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não
poderão ser superiores a 12% ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crise de usura,
punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar” (art. 192 § 3º).
Com essa determinação o sistema financeiro nunca concordou. E o resultado é
que de fato nunca ela vigorou, suspensa desde o primeiro dia de vigência da Constituição,
por determinação do presidente Sarney, que acolheu parecer, neste sentido, do Consultor
Geral da República. Tudo fez o governo Fernando Henrique para suprimir essa limitação,
sem o conseguir. Mas o governo do PT, que a essa supressão viera se opondo com êxito,
aceitou e aprovou a supressão do limite para as taxas de juros, promulgando a Emenda nº
40, de 29.05,2003, exatamente a primeira do governo Lula, para substituir o caput, os 8
incisos e os 3 parágrafos do art. 192, por uma redação muito mais enxuta, apenas o
“caput”, sem incisos e sem paragrafos – na verdade, todo o objetivo da reforma era revogar
o contestado § 3º, que, de fato, desapareceu.
Outro claro exemplo, portanto (sempre sem entrar no mérito da mudança, para
avaliar se para melhor ou para pior), de opção do reformador constitucional por normas
completamente opostas às do constituinte originário.
7. CONCLUSÃO
~ 43 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 44 ~
A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E SUA
IMPORTÂNCIA NA GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E
CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS
DIRETOS HUMANOS
1. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
* Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Toledo de Ensino (ITE). Especialista em Direito Público
com ênfase em Direito Constitucional pela Universidade Potiguar (UNP). Autor e organizador de obras
jurídicas. Professor no Curso de Direito do Centro Universitário Toledo (UNITOLEDO), onde ministra as
disciplinas Direito Internacional, Direito Constitucional e Direitos Humanos. Advogado.
~ 45 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 46 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 47 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
64A primeira fase de conversações dessa Conferência ocorreu de 21 de agosto a 28 de setembro (União
Soviética, Reino Unido e Estados Unidos) e a segunda faseentre 29 de setembro a 7 de outubro (China, Reino
Unido e Estados Unidos). Dumbarton Oaksé uma residência do século XIX, que tem esse nome e está
localizada em Georgetown, um dos bairros da capital americana, Washington-D.C.
65Foi nessa Conferência que ocorreu a efetiva e mais abrangente inserção dos direitos humanos no que veio a
Estados-membros. Desde então, passou a abarcar de maneira crescente e progressiva inúmeros outros
Estados, contando hoje com quase todos os Estados independentes do mundo” (MAZZUOLI, 2016, p. 683).
67 Sobre o assunto vide: Shabtai Rosenne. Is the Constitution of an International Organization an
International Treaty? In: Comunicazioni e Studi, v. 12, 1966, p. 23 89; Simon Chesterman, Ian Johnstone e
David M. Malone. Law and Practice of the United Nations: Documents and Commentary. Oxford: Oxford University
~ 48 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Press, 2016, p. xxxiii-xliii; Bardo Fassbender. The United Nations Charter as the Constitution of the International
Community. Leiden: Martinus NijhoffPublishers, 2009.
~ 49 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
recomendações destinados a favorecer o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais por parte de todos os povos.Por sua vez, o art. 55 estabelece que a ONU
deverá promover o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. Em complemento,
o art. 56, numa significativa determinação, declara que para a realização dos propósitos
elencados no art. 55, todos os Estados-Membros da organização se comprometem a agir
em cooperação com ela, em conjunto ou separadamente.
A Carta também confere poderes ao Conselho Econômico e Social (ECOSOC)68,
órgão que foi autorizado a “fazer recomendações destinadas a promover o respeito e a
observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos” (art. 62, 2),
bem como a criar “comissões para os assuntos econômicos e sociais e a proteção dos
direitos humanos assim como outras comissões que forem necessárias para o desempenho
de suas funções” (art. 68).
Malcolm N. Shaw (2014) ressalta ainda que na Carta foi estabelecido um sistema
internacional de tutela69 que, nos termos do art. 76, tem como um de seus objetivos básicos o
estímulo ao respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem
distinção de raça, sexo língua ou religião, em conformidade com os propósitos da ONU,
estabelecidos no art. 1º da Carta.
Como se nota, a preocupação com a proteção dos direitos humanos restou
fortemente evidenciada em diversos dispositivos da Carta, o que sem dúvida colocou a
promoção desses direitos entre os objetivos centrais das Nações Unidas (MINGST;
KARNS, 2011). No entanto, verifica-se que tais disposiçõessão muito genéricas, vagas e
imprecisas. Ademais, embora a Carta tenha manifestado expressamente o dever de os
Estados se comprometerem com a salvaguarda desses direitos nos respectivos planos
domésticos, não definiu o que poderia se entender por “direitos humanos” e “liberdades
fundamentais”, não identificando ou estabelecendotais direitos e liberdades de modo mais
preciso. Pelo contrário, as menções por ela feitas são concisas e até mesmo enigmáticas,
surgindo então a imediata necessidade de se aclarar o seu alcance e significado (ALSTON;
GOODMAN, 2012).
68 O ECOSOC foi estabelecido pela Carta da ONU em seu art. 7, 1, como um órgão intergovernamental sob
a autoridade da Assembleia Geral, que também foi instituída pela Carta no mesmo dispositivo convencional.
69Em 1945, nos termos do Capítulo XII da Carta, a ONU estabeleceu um Sistema Internacional de Tutela para a
supervisão dos Territórios colocados sob sua supervisão por meio de acordos individuais com os Estados que
os administram.O objetivo básico do sistema era promover o avanço político, econômico e social dos
Territórios e seu desenvolvimento para o autogoverno e a autodeterminação. Também incentivou o respeito
pelos direitos humanos e as liberdades fundamentais e o reconhecimento da interdependência dos povos do
mundo.
~ 50 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
70 Todos os documentos relativos às atividades do ECOSOC entre 1946 a 1947 (1ª a 5ª Sessão), importantes
por colocarem em marcha os procedimentos necessários para a elaboração da DUDH, podem ser
consultados em: <https://goo.gl/Dx2BLD>. Acesso em 20 dez. 2017.
71 A Comissão exerceu suas atividades de 1946 a 2006, quando foi substituída pelo atual Conselho de Direitos
Humanos, criado em 2006, por meio da Resolução n. 60/251 da Assembleia Geral da ONU, de 03 de abril de
2006. O texto integral do referido documento pode ser acessado em: <https://goo.gl/xDgjnL>. Acesso em
20 dez. 2017.
72 Todos os documentos relativos aos travauxpréparatoires da DUDH podem ser encontrados na fantástica obra
de William A. Schabas, intitulada The Universal DeclarationofHumanRights: The travauxpréparatoires, fonte exaustiva
de consulta adotada no presente texto.
73 De acordo com as decisões adotadas na primeira e na segunda sessão do ECOSOC, em 1946, a CDH
recebeu um mandato para lhe apresentar propostas, recomendações e relatórios sobre: a) uma carta
~ 51 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
CDH recebeu logo no início de suas atividades, a árdua e, ao mesmo tempo, honrosa
incumbência de elaborar o projeto da DUDH, visando a explicitar quais seriam os “direitos
humanos” e as “liberdades fundamentais”, previstos genericamente na Carta.
A história da redação oficial é importante para a historiografia da DUDH, bem
como para os direitos humanos em geral, sendo também de especial relevância para a
interpretação da própria Declaração (SCHABAS, 2013) e para a compreensão de sua
ascensão enquanto norma soft law para um documento comforça juridicamente
vinculante.O estudo do procedimento de elaboração da DUDH feito a seguir está pautado,
sobretudo, nos documentos oficiais da ONU. Didaticamente, visando-se a uma melhor
compreensão, a análise da redação oficial da Declaração é feita no presente texto em sete
estágios específicos, que abrangem a atuação de todos os órgãos das Nações Unidas que
estiveram envolvidos em dito procedimento: o Conselho Econômico e Social(quatro sessões), a
Comissão de Direitos Humanos (três sessões), o Comitê de Redação (duas sessões), o Grupo de
Trabalho Temporário, o Terceiro Comitê (Social e Humanitário) da Assembleia Geralda ONU e sua
Assembleia Geral.74
O processo formal de elaboração da DUDHteve início na primeira sessão da
CDH (Estágio 1), realizada no período de 27 de janeiro a 10 de fevereiro de 1947, que
adotou como método de trabalho o estabelecimento de um Comitê de Redaçãocomposto
por oito membros,escolhidos com base no princípio da representação geográfica 75, que
foram incumbidos da tarefa de redigir um projetoda DUDH. Nessa sessão,Eleanor
Roosevelt76 (EUA) foi eleita por unanimidade como Presidente da CDH, Peng-Chan
Chang (China)Vice-Presidente e Charles Malik (Líbano) foi escolhido como Relator
(E/CN.4/SR.1).John P. Humphrey (Canadá), então Diretor da Divisão de Direitos
internacional de direitos humanos; b) declarações ou convenções internacionais sobre as liberdades cívicas, o status
legal e social das mulheres, a liberdade de informação e outras questões análogas; c) a proteção das minorias;
d) a prevenção da discriminação baseada na raça, sexo, língua ou religião; e, e) qualquer outra questão
relacionada aos direitos humanos não prevista nas hipóteses anteriores (NAÇÕES UNIDAS, 1995, p. 15).
74 O site da Biblioteca Dag Hammarskjöld, que fornece pesquisa e informação para o apoio dos trabalhos dos
Estados Membros da ONU, oferece acesso à toda documentação da ONU relacionada ao processo de
elaboração da DUDH. Os documentos, utilizados e citados nesse texto, são apresentados em ordem
cronológica, organizados de acordo com os vários órgãos que se reuniram para discutir, elaborar e redigir a
DUDH. Há também breves notas biográficas dos membros do Comitê de Redação, formado pela CDH da
ONU. Disponível em: <http://research.un.org/en/undhr/introduction>. Acesso em 22 dez. 2017.
75Austrália, Chile, China, Estados Unidos da América, França, Líbano, Reino Unido e União Soviética.
76 A viúva do Presidente Franklin D. Rooseveltpresidiu a CDH no período de elaboração e aprovação da
DUDH. Segundo Celso Lafer (2012, p. 308), citando MaryAnnGlendon, a“grande contribuição de Eleanor
Roosevelt não se deu propriamente na redação do texto da Declaração, mas sim na liderança que exerceu na
presidência da Comissão. Foi ela que manteve o projeto da Declaração vivo e em andamento em momentos
difíceis da negociação e exerceu a sua influência política para assegurar a continuidade do apoio do
Departamento de Estado e do Governo norte-americanos”. Sobre a vida de Eleanor Roosevelt, bem como
sobre a sua grande contribuição para com a DUDH vide: Mary Ann Glendon. A World Made New: Eleanor
Roosevelt and the Universal Declaration of Human Rights. New York: RandomHouse, 2001.
~ 52 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
77 Nessa quarta sessão, o Conselho decidiu que o projeto da Declaração seria submetido à CDH, que o
submeteria aos Estados Membros da ONU para comentários e que o Comitê de Redação consideraria esses
comentários como base para um novo projeto, se necessário. O rascunho seria então novamente submetido à
Comissão para consideração final e então seria enviado ao ECOSOC, que por sua vez enviaria a versão final à
terceira sessão da Assembleia Geral em 1948, para sua consideração.
~ 53 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 54 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
necessidade de o Comitê de Redação estar plenamente informado sobre as respostas dos Governos antes da
próxima reunião, que seria realizada em 3 de maio de 1948, a Comissão solicitou a Secretário geral que: (i)
transmitisse o relatório aos Governos durante a primeira semana de janeiro de 1948; (ii) fixasse a data de 3 de
abril de 1948 como o prazo para a recepção das respostas dos Governos sobre o projeto de Declaração; e,
(iii) distribuísse estas respostas aos membros da Comissão logo que fossem recebidas.
~ 55 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 56 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Era chegado então o momento que impactaria a história dos direitos humanos
para sempre. No dia 09 de dezembro de 1948, Charles Malik, em vez de Eleanor Roosevelt,
apresentou formalmente o projeto final daDUDH à Assembleia Geral das Nações
Unidas(Estágio 7).80 O projeto teria que obterdois terços dos votos(Carta da ONU, art. 18, 2)
para que lograsseaprovação. O clima estava tenso e Roosevelt, Malik, Chang, Cassin e
Santa Cruz, dentre outros, esperavam que seus dois anos de trabalho árduo não restassem
infrutíferos. Felizmente isso não ocorreu e, na memorável noite de 10 de dezembro de
1947, a Assembleia Geral das Nações Unidas, durante o seu terceiro período de sessões (de
setembro a dezembro de 1948), adotou e proclamou a DUDH, nascendo, assim, o
documento que veio a definir com precisão o elenco dos “direitos humanos” e das
“liberdades fundamentais” que foram referidos pelos arts. 1° (3), 13, 55, 56, 62, 68
(estecom referência somente aos direitos humanos) e 76 da Carta da ONU.
Conforme Celso Lafer (2012), a DUDH, embora não tenha pais, deve sua
existência a seis “padrinhos” que integraram a CDH e que foram decisivos na sua
formulação e subsequente aprovação pela Assembleia Geral. São eles: Eleanor Roosevelt
(EUA), John P. Humphrey (Canadá), René Cassin(França), Charles Malik (Líbano), Peng-
Chan Chung (China) e Hernán Santa Cruz (Chile). Esses “padrinhos” empenharam-se,
utilizando suas influências políticas e seus generosos atributos intelectuais, para compor um
texto conciliatório em plena época de início da guerra fria e que conseguiu lograr um
surpreendente consenso interestatal sobre a relevância dos direitos humanos, considerando
a diversidade dos regimes políticos, dos sistemas filosóficos e religiosos e das tradições
culturais dos Estados-Membros da ONU.
Não cabe dentro dos propósitos do presente texto realizaraquiuma análise
pormenorizada do conteúdo da DUDH, mas é imperioso acentuar o seu importante
significado para a internacionalização dos direitos humanos e sua forte pretensão de
universalidadedesses direitos, o que certamente decorreu do caráter avançado de suas
disposições (considerando-se o contexto mundial da época em que foi proclamada), bem
como da virtude de terreunido, em um só documento, os direitos civis e políticos (arts. 3º a
21) e também os direitos econômicos, sociais e culturais (arts. 22 a 28). Conforme Flávia
Piovesan (2009), em razão de conter uma linguagemde direitos inédita até então, a DUDH
80Susan Muaddi Darraj (2009, p. 80-81) explica que é provável que a CDH tenha sentido que Malik deveria
apresentar o projeto da DUDH à Assembleia Geral em razão do papel fundamental que desempenhou ao
“pastorear” o documento através do ECOSOC, bem como durante o exaustivo Terceiro Comitê. Sua
reputação na ONU em razão disso era bastante prestigiosa e muitos no mundo o consideravam com respeito
e admiração. O relatório do Terceiro Comitê foi apreciado nas reuniões plenárias da Assembleia Geral nos
dias 09 e 10 de dezembro de 1948 (A/PV.180, A/PV. 181, A/PV.182, A/PV.183).
~ 57 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
insereno cenário internacional uma extraordinária inovação da gramática dos direitos humanos
ao introduzir a concepção contemporânea desses direitos, marcada pela universalidade 81 e
indivisibilidade.82Sobre a significação da DUDH, Cançado Trindade (2003) afirma ter sido
ela o ímpeto decisivono processo de generalização da proteção internacional dos direitos
humanos que as décadas subsequentes à sua proclamação têm testemunhado desde estão.
Atualmente é tranquilamente perceptível que ao longo dos últimostempos,
notadamente a partir do início do século XXI, houve desenvolvimentos substantivos nas
perspectivaspolíticas, teóricas, jurídicas e legais no âmbito doDireito Internacional
relativamente aos direitos humanos, incluindo debates sobre várias questões conceituais
acerca do alcance e o do conteúdo desses direitos em geral. Também houve um
crescimento significativo nas decisões e na jurisprudência de diferentes órgãos e tribunais
internacionais responsáveis pela interpretação e implementação dos direitos humanos no
plano internacional.
Do mesmo modo assumiu destaque e aumentou expressivamente o papel de
entidades não estatais, tais como as organizações não governamentais (ONGs) na proteção
dos direitos humanos ao redor do globo. Novas perspectivas surgiram e evoluíram em
relação à responsabilidade internacional dos Estados por graves violações de direitos
humanos, bem como aos remédios voltados para a reparação dessas violações. A
responsabilidadepenal individual por graves violações de direitos humanos também passou
a desenvolver-se no plano internacional, notadamente mediante a atuação do Tribunal
Penal Internacional (TPI).
Não há dúvida de que todo esse tremendo quadro evolutivo no tocante à
proteção e promoção internacional dos direitos humanos está direta e indiretamente ligado
à existência da DUDH e ao significado global que ela assumiu, o que denota, à toda
evidência, olegado que esse virtuoso instrumento tem deixado ao longo das últimas sete
décadas ao redor do globo.
81 “Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a
condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um
ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição
humana” (PIOVESAN, 2009, p. 186-187).
82 Além de afirmar a universalidade dos direitos humanos, a Declaração Universal acolhe a ideia da
indivisibilidade dos direitos humanos, a partir de uma visão integral de direitos. A garantia dos direitos civis e
políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um
deles é violado, os demais também o são (PIOVESAN, 2009, p. 188).
~ 58 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
83Para um estudo aprofundado sobre as Declarações da Assembleia Geral da ONU e o seu significado
normativo vide Asamoah (1966).
~ 59 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
um único instrumento ou em dois ou mais instrumentos conexos, concluído entre sujeitos do Direito
Internacional com capacidade para celebrar tratados, sob a égide das normas internacionais, visando a
produção de efeitos jurídicos, independentemente de sua designação específica.
Verifica-se, portanto, que o instrumento destinado à produção de efeitos jurídicos
na órbita internacional, capaz de criar direitos e impor obrigações juridicamente vinculantes
para as partes contratantes é somente o tratado internacional, fruto de uma livre
manifestação de vontades (bilaterais ou multilaterais) capaz de obrigarao cumprimento
daquilo que foi pactuado (pacta sunt servanda), conforme dispõe o art. 26 da CVDT.
No exercício de suas funções e atribuições (Carta da ONU, arts. 10 a 17), a
Assembleia Geral da ONU, órgão deliberativo (e não legislativo) por excelência, se
manifesta por meio deresoluções84, que são declarações de recomendação, de efeito não
vinculante para os Estados-Membros da ONU, como regra (HURD, 2014).85Conforme
Donald A. Wells (2005, p. 20), tais resoluções servem a duas funções básicas: “elas ajudam
a estabelecer a liderança moral e a indicar o consenso dos Estados, como o que deve e o
que não deve ser feito”(tradução nossa). Diferentemente dos tratados (que pressupõem
sempre um acordo bi ou multilateral de vontades), as resoluções nascem de um processo
devotação dos Estados-Membros da ONU sobre determinado assunto, sendo sua
característica comum a unilateralidade.86Para além dessa constatação, na doutrina verifica-se
também uma incerteza terminológica e ambiguidade conceitual em relação aos atos
emanados de organizações internacionais como a ONU.
Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet (2003, p. 377) afirmam que,
apesar dessa incerteza e ambiguidade e “à custa de uma arbitrariedade sobretudo
pedagógica”, é possível dar um sentido genérico a algumas expressões. Nesse sentido,
citando M.Virally, os autores apontam queuma recomendação é a “resolução de um órgão
internacional dirigida a um ou vários destinatários (e implicando) um convite à adopção de
vinculante, tais como aquelas que aprovam o orçamento da organização (art. 17, 2), a admissão, suspensão e
expulsão de membros (art. 18, 2), a escolha de juízes e do Secretário-Geral (CANÇADO TRINDADE, 2017,
p. 111; DINH; DAILLIER; PELLET, 2003, p. 379). De acordo com a doutrina, a natureza de uma resolução
determina se ela terá ou não força vinculante. As resoluções (decisões) do Conselho de Segurança da ONU,
v.g., podem criar obrigações diretas para os Estados, nos termos do art. 25 c./c. art. 103, da Carta das Nações
Unidas.
86 Vale aqui ressaltar que, embora os atos unilaterais das organizações internacionais não estejam
contemplados no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, que contempla o clássico rol das
fontes do Direito Internacional, a doutrina hoje é tranquila em afirmar que estes atos integram aquilo que tem
sido denominado como as novas fontes do Direito das Gentes (QUADROS; PEREIRA, 2015, p. 272).
~ 60 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
87 Conforme afirma Ricardo Seitenfus (2016, p. 143), a “natureza das resoluções oriundas da Assembleia é
própria noção de soft lawainda é bastante contestada. No entanto, nos últimos tempos o termo tem
sidoamplamente utilizado por advogados internacionais e aparecido na jurisprudência (nacional e
internacional), sendo geralmente entendido como referindo-se a certas categorias de normas em que pelo
menos algumas delas têm tido um impacto inegável na interpretação, aplicação e desenvolvimento do Direito
Internacional dos Direitos Humanos (LAGOUTTE; GAMMELTOFT-HANSEN; JOHN CERONE, 2016,
p. 15).
~ 61 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Assim sendo, uma vez apresentadas essas premissas iniciais, cumpre a partir desse
ponto analisar quais as teses que se formaram ao longo dos tempos acerca da força
vinculante da DUDH e qual (ou quais) delas se revela mais apropriada e condizente com a
importância e amplitude que assumiu a proteção dos direitos humanos na atualidade, tanto
no plano doméstico dos Estados como no âmbito da sociedade internacional.
A tese da recomendação, presente em pequena parcela da doutrina89, nega qualquer
caráter vinculante às normas contidas na DUDH, exatamente por atribuir a elas tão-
somente o valor de meras recomendações. O fundamento dessa tese repousa em dois aspectos
específicos: (i) na interpretação literal da Carta da ONU, que nos dispositivos em que trata
das funções e atribuições da Assembleia Geral (arts. 9º a 22) é explícita ao afirmar (várias
vezes) que ela poderá fazer recomendações aos Estados-Membros e ao Conselho de
Segurança; e, (ii) na prática de celebração de diversos tratados internacionais de direitos
humanos, estes sim, com força vinculante e que seriam até mesmo desnecessários se a
DUDH contasse com tal eficácia (MIRANDA, 2008).
Essa tese peca pelo menos por dois motivos. Primeiro, por levar em consideração
apenas o aspecto formal das disposições da Carta, sem se importar com o aspecto material, isto
é, com o conteúdo das recomendações adotadas pela Assembleia Geral sob a forma de
resoluções, que materialmente podem ostentar caráter vinculante, a depender da natureza de
suas disposições, como é o caso da DUDH.E segundo, porque a experiência de celebração
dos tratados de direitos humanos, ulterior à Declaração, por si só não tem o condão de
afastar o caráter vinculante de suas normas, mas de todo o contrário. Se tais tratados têm
reiteradamente feito menção à DUDH e até mesmo repetido o conteúdo de certos direitos
por ela veiculados, não há dúvida de que esses fatos denotam a afirmação convencional de sua
força normativa. Além disso, a força expansiva das disposições da Declaração tem
impulsionado a adoção de muitos tratados voltados à proteção específica de certos direitos
89Hersch Lauterpacht, comentando duramente a DUDH depois de sua proclamação, afirmava que “a
linguagem da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as circunstâncias e as razões da sua adoção e,
acima de tudo, a intenção clara e enfaticamente expressa dos Estados Membros das Nações Unidas que
votaram a favor da Resolução da Assembleia Geral, mostram claramente que a Declaração não é pela sua
natureza e pela intenção de suas partes um documento legal que impõe obrigações legais” (apudSCHABAS,
2013, p. cxiii e cxvi). Conforme aponta Celso D. de Albuquerque Mello (2004, p. 870), a Declaração “não
possui qualquer valor de obrigatoriedade para os Estados. Ela não é um tratado, mas uma simples declaração,
como indica o seu nome. O seu valor é meramente moral. Ela indica diretrizes a serem seguidas neste assunto
pelos Estados”.
~ 62 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
humanos, que encontram apenas uma proteção genérica na DUDH, sendo, portanto, de
todo necessários, por razões óbvias.90
A DUDH tem sofrido importantes transformações desde a sua adoção, em 1948.
E diante de um quadro evolutivo do Direito Internacional, notadamente em relação aos
seus sujeitos91 e fontes92, a tese da mera recomendação parece não mais se sustentar.Conforme
Celso Lafer (2012, p. 318), “no correr dos anos, por obra da prática internacional, ela foi se
transformando num instrumento normativo e num documento político de grande
envergadura”.Atualmente a grande maioria da doutrina93 afirma, quase que unanimemente,
a força vinculante da DUDH, ressaltando ser ela um instrumento normativo que cria
obrigações jurídicas para os Estados-Membros da ONU. Parece que a disputa existente
atualmente acerca do seu caráter normativo, não se refere à existência ou não de sua força
vinculante, mas se reduz em saber se todos os direitos proclamados pela Declaração têm
essa força obrigatória e em que circunstâncias (BUERGENTHAL; GROSSMAN;
NIKKEN, 1990). É sob a ótica da força normativa que são expostas a seguir as demais
teses relativas à temática ora abordada.
Para asteses integrativa e da interpretação autêntica, a força vinculante da DUDH (ou
pelo menos de certas disposições nela contidas)reside no fato de ser ela um documento
integrativo da Carta da ONU, cujas normas constituem uma interpretação
autêntica(authoritative interpretation)das expressões “direitos humanos” e “liberdades
fundamentais”, previstas genericamente na Carta (SHAW, 2014; JENNINGS, WATTS,
1992).Para Celso Lafer (2012, p. 318) “sua contínua invocação, de maneira quase unânime,
no âmbito dos órgãos principais da ONU, acabou conferindo à Declaração a dimensão de
uma interpretação autêntica da Carta da ONU e dos seus dispositivos em matéria de
Direitos Humanos”, especialmente daqueles relativos às obrigações de os Estados
promoverem o respeito universal desses direitos. Em complemento, Jorge Miranda (2008,
p. 18) destaca que
90 Para uma crítica ao argumento da existência dos tratados internacionais de direitos humanos (normas
vinculantes) para afastar o caráter obrigatório da Declaração vide Schabas (2013, p. cxvi-cxix).
91 Uma das maiores alterações na esfera da subjetividade jurídica internacional da contemporaneidade diz
respeito à inserção do indivíduo como sujeito do Direito Internacional, fato que tem início com a DUDH
(LINDGREN ALVES, 1997, p. 30).
92 Para um estudo aprofundado sobre a temática, vide: Harlan GrantCohen.Finding International Law: Rethinking
~ 63 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
figura na Carta. Se é verdade que, por si só, não se impõe aos Estados membros
da ONU, é insofismável que reforça as obrigações a que estes Estados, por
virtude da Carta, estão sujeitos, tornando-as mais precisas.
94 No § 91 de sua sentença, a CIJ afirma que “o fato de privar os seres humanos de sua liberdade e sujeitá-los
a restrições físicas em condições de dificuldades é, em si mesmo, manifestamente incompatível com os
princípios da Carta das Nações Unidas, bem como com os princípios fundamentais enunciados na
Declaração Universal dos Direitos Humanos”. (tradução nossa)
95 “Artigo 38. 1. A Corte [Internacional de Justiça], cuja função é decidir de acordo com o direito
internacional as controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará: (...) b) o costume internacional, como prova
de uma prática geral aceita como sendo o direito”.
96 Para uma visão mais aprofundada das Declarações da Assembleia Geral da ONU como evidencias do
costume e dos princípios gerais do Direito Internacional vide Asamoah (1966, p. 46-62).
~ 64 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
97 A opinião separada do juiz Fouad Ammoun pode ser consultada na íntegra em: <https://goo.gl/r3DwEf
mais considerável pelo lapso de tempo prolongado (dezoito anos) entre a sua adoção e proclamação e a
adoção dos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas (em 1996), o que contribuiu para florescer a
tese de que alguns dos princípios da Declaração cedo se afiguravam como parte do direito internacional
consuetudinário, ou como expressão dos princípios gerais do direito, invocados em processos nacionais e
internacionais”.
99 Para um estudo aprofundado sobre essa questão, dentre outras que têm sido discutidas nessa seção do
presente texto, vide notável artigo de Kenneth O. D. Okwor, intitulado “Argumentsonthe Legal
SignificanceofResolutionsofthe United Nations General Assembly andtheVexedQuestiononWhetherTheyConstitute a
~ 65 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Por fim, outra corrente de pensamento sustenta a tese dos princípios gerais do Direito
Internacional, segundo a qual “os princípios contidos ou reflectidos nos artigos daDeclaração
constituem princípios gerais da ordem jurídica internacional, no quadro dos ‘princípios
gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas’” (MIRANDA, 2008, p. 18),
conforme disposto no art. 38 do Estatuto da CIJ.100
Obed Y. Asamoah (1966), ao comentar as declarações da Assembleia Geral da
ONU como evidências dos princípios gerais do Direito Internacional, destaca a Opinião
Consultiva emitida pela CIJ, em 28 de maio de 1951, no caso das Reservas à Convenção para a
Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), em que a Corte faz uma referência à
Resolução 96 (I), da Assembleia Geral, datada de 11 de dezembro de 1946, que mesmo
sendo anterior à Convenção em questão, já consubstanciava, dentre outros, o princípio da
proibição do genocídio, todos vinculantes para os Estados.
André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros (2015, p. 108-109), ao tratarem do
Direito Internacional na Constituição portuguesa, entendem esses princípios gerais como uma
“cláusula geral de recepção plena”, expressão essa que abrange todo o “acervo de normas e
princípios básicos do Direito Internacional, de aceitação generalizada pela Comunidade
Internacional”, tais como a DUDH. Assumida essa concepção, os princípios insculpidos na
Declaração teriam então projeção não apenas sobre os Estados-Membros da ONU, mas
sobre quaisquer Estados integrantes da sociedade internacional.
Seja qual for a tese adotada (integração, interpretação autêntica, norma costumeira ou
princípio geral do Direito Internacional), parece ser indubitável que a sociedade internacional
avançou consideravelmente nas últimas décadas para conferir à DUDH força juridicamente
vinculante, não mais tendo-a apenas como um conjunto de disposições de caráter
meramenterecomendatório, destituído de qualquer valor normativo. No famoso caso
Filartiga v. Pena-Irala, julgado pelo Tribunal de Apelações dos Estados Unidos (Segundo
Circuito) em 30 de junho de 1980, envolvendo o direito norte-americano e o Direito
Internacional, os juízes, depois de destacarem que uma declaração emanada da Assembleia
Geral da ONU é, de acordo com uma definição autorizada, “um instrumento formal e
solene, adequado para raras ocasiões em que princípios de grande e duradoura importância
estão sendo enunciados”(tradução nossa), asseveraram que a DUDH “não mais se encaixa na
dicotomia do ‘tratado vinculativo’ contra o ‘pronunciamento nãovinculativo’, mas é uma
internacional as controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará: (...) c) os princípios gerais de direito
reconhecidos pelas Nações civilizadas”.
~ 66 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Indo além das teses acima abordadas,o autor do presente texto sustenta ser
plenamente possível o reconhecimento da força vinculante da DUDH (mesmo enquanto
fruto de uma resolução de natureza recomendatória) com fundamento em uma possível
aplicação da doutrina do estoppel, consistente na proibição do comportamentocontraditório
(non concedit venire contra factum proprium)no plano internacional, não podendo, portanto,
determinado Estado secomportar de modo contrário à sua conduta anterior.
O raciocínio na aplicação dessa teoria ao caso em questão é simples e lógico. Se
no processo de adoção de uma resolução sobre uma questão de preocupação global (como
foi o caso da DUDH), os Estados-Membros da Assembleia Geral da ONU votam
esmagadoramente a favor da resolução (como ocorreu à época – 48 x 0) e, depois da
votação, fazem discursos de apoio em favor da resolução, ampliando ainda mais o
consenso já existente (como aconteceu na Conferência de Viena, de 1993 – 171 Estados)
101 A Declaração de Viena de 1993, foi subscrita por 171 Estados e “endossa a universalidade e a indivisibilidade
dos direitos humanos, revigorando o lastro de legitimidade da chamada concepção contemporânea de direitos
humanos, introduzida pela Declaração de 1948. Note-se que, enquanto consenso do “pós-Guerra”, a
Declaração de 1948 foi adotada por 48 Estados, com 8 abstenções. Assim, a Declaração de Viena de 1993
estende, renova e amplia o consenso sobre a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos”
(PIOVESAN, 2009, p. 192).
~ 67 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
102“Artigo 53. Tratado em Conflito com uma Norma Imperativa de Direito Internacional Geral (jus cogens). É
nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito
Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral
é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma
da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito
Internacional geral da mesma natureza”. Para um estudo aprofundado sobre o jus cogens vide:
ChristianTomuschat e Jean-MarcThouvenin.The Fundamental Rules of the International Legal Order: Jus Cogens and
Obligations ErgaOmnes. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2006.
~ 68 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
103 Atualmente existem múltiplos mecanismos internacionais de monitoramento dos direitos humanos no
âmbito doméstico dos Estados e especialmente de reparação das vítimas de violações de direitos humanos,
que integram tanto o sistema global de proteção desses direitos (sistema onusiano) como os sistemas regionais
(sistemas europeu, interamericano e africano), tais como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos,
o Conselho de Direitos Humanos e os Comitês (organismos convencionais) existentes no âmbito da ONU, as
Comissões Interamericana e Africana de Direitos Humanos e as Cortes Europeia, Interamericana e Africana de Direitos
Humanos.
~ 69 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 70 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Hoje, nenhum Estado pode credivelmente afirmar que seu tratamento para
aqueles que estão dentro de seu território ou jurisdição é exclusivamente um assunto
interno (SHELTON, 2015), especialmente em matéria de direitos humanos. E isso pelo
menos por duas sólidas razões: (i) ao aderirem à Carta, os Estados-Membros passam a
reconhecer que os direitos humanos são matéria de interesse internacional e, como
consequência, não constituem assuntos exclusivos de sua jurisdição doméstica
(BUERGENTHAL; GROSSMAN; NIKKEN, 1990); (ii) a força vinculante da DUDH nos
104 “Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que
dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais
assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das
medidas coercitivas constantes do Capítulo VII”.
~ 71 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
dias atuais é notória, conforme se viu na seção anterior desse texto, o que inevitavelmente
condiciona a atuação dos Estados-Membros da ONU a promoverem o respeito aos
direitos humanos no âmbito de suas contingências territoriais soberanas, bem como os
impulsiona acooperarem internacionalmente (com outros Estados e organizações
internacionais), visando a defesa e a proteção internacional desses direitos.
O segundo aspecto a ser destacado em razão do nascimento e ulterior ampliação
do processo de internacionalização dos direitos humanos iniciado pela Carta da ONU e
especificamente pela proclamação da DUDH é justamente a gênese, o desenvolvimento e a
consolidação do DIDH, fenômeno que nesse texto será analisado apenas sob umviés
normativo.105
Passadas quase sete décadas dentro das quais o domínio da proteção internacional
dos direitos humanos experimentou uma extraordinária evolução, o DIDH afirma-se
hodiernamente e“cominegávelvigor,comoumramoautônomo da ciência jurídica
contemporânea, dotado de especificidade própria” (CANÇADO TRINDADE, 2003, p.
38), tendo como fonte material, por excelência, a consciência jurídica universaldespertada e
especialmente evoluída a partir da DUDH. Em preciosa síntese sobre esse aspecto, Celso
Lafer (2012, p. 321) esclarece que
a Declaração Universal, desde a sua origem, traçou uma política de direito para o
desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos (...). Esta
política do Direito foi sendo efetivamente levada adiante, pois a Declaração
Universal teve o mérito de não ser apenas uma reação aos problemas do
passado. Projetou valorações fundamentais para modelar o futuro.
105 Para uma visão acerca do viés processual e operacional do DIDH vide Cançado Trindade (2003, p. 71-84).
106 Para uma descrição objetiva desta metáfora, porém muito clara vide Lafer (2012, p. 316-318).
~ 72 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 73 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 74 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 75 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
direitos previstos na DUDH (v.g., arts. 1º, 2º, 3º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10, 12) em favor das
vítimas do desaparecimento forçado e de suas famílias.107
Como um último exemplo de particularização da proteção internacional dos
direitos humanos, deflagrado e potencializado pela DUDH, cita-se a Convenção Internacional
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, adotadosem 30 de março
de 2007, instrumentos voltados especificamente para as pessoas com deficiência e que
potencializam, em favor dessas pessoas, um grande número de direitos previstos na
DUDH e em outros instrumentos internacionais.Em seu preâmbulo a Convenção reafirma
a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais, conforme delineado pela Declaração e por uma série
de outros tratados subsequentes, bem como a necessidade de garantir que todas as pessoas
com deficiência os exerçam plenamente, sem discriminação de qualquer natureza.
Mas não foi apenas no plano global que a DUDH exerceu sua influência para a
internacionalização da proteção dos direitos humanos e consequente consolidação do
DIDH. A sua força e vigor também reverberaram no âmbito dos sistemas regionais,
responsáveis por internacionalizar os direitos humanos em regiões específicas do globo,
particularmente na Europa, América e África(PIOVESAN, 2016).
No âmbito regional europeu, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem(Convention
for theProtectionofHumanRightsand Fundamental Freedoms), adotada em 04 de novembro de 1950,
constitui o tratado regente do sistema europeu de proteção dos direitos humanos. Paolo
G.Carozza (2013) afirma que a Convenção está expressamente fundamentada na DUDH,
cujo preâmbulo a invoca repetidamente como fonte dos diversos direitos que consagra.
De fato, no preâmbulo desse instrumento, os Estados-Partes reconhecem a
DUDH como um documento que “se destina a assegurar oreconhecimento e aplicação
universais e efetivos dos direitos nela enunciados” e decidem, “animadosno mesmo
espírito, possuindo um patrimônio comum de ideaise tradições políticas, de respeito pela
liberdade e pelo primadodo direito, tomar as primeiras providências apropriadas
paraassegurar a garantia coletiva de certo número de direitosenunciados na Declaração
Universal” (CEDH, 2017).Michel Villey (2007) afirma que subsequentemente à Convenção
Europeia, uma série de preâmbulos convencionais e constitucionais passaram a fazer
referência à DUDH.
107Para uma visão acerca do fenômeno do desaparecimento forçado e da multiplicidade de direitos que essa
prática acarreta vide: PEREIRA, Luciano Meneguetti. A Convenção Internacional para a Proteção de Todas
as Pessoas Contra o Desaparecimento Forçado eseus Impactos no Brasil. In: EspaçoJurídico: Journal of Law
[EJJL]. Joaçaba, v. 18, n. 2, p. 381-420, maio/ago. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/UHbJML>. Acesso
em 28 dez. 2017.
~ 76 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 77 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
ela ou deconsagrar em seus textos, “cópias” dos direitos que foram inseridos nessa porta de
entrada do tempo dos direitos humanos.
Wiktor Osiatyński (2013, p. 12) traz um dado importante ao afirmar que “a
DUDH serviu de modelo para cerca de noventa Constituições, sendo que em dezenove
Constituições de novos estados pós-coloniais, principalmente na África, foram feitas
referências específicas à Declaração”.(tradução nossa)Conforme Paul Sieghart (1986), apenas
no período entre 1958 e 1971, vinte e duas novas constituições passaram a conter
referências à DUDH. Em razão desse extraordinário impacto da DUDH nas constituições
nacionais, Lindgren Alves (1997, p. 32-33) afirma que “independentemente da natureza
obrigatória ou não do documento pela ótica estrita do Direito Internacional, ela advém
sobretudo do grau de incorporação que suas disposições obtiveram no Direito
Constitucional de praticamente todos os países”.
Na ordem jurídica interna de Portugal, v.g., a própria Constituição portuguesa
confere à DUDH uma hierarquia superior a ela própria ao dispor em seu art. 16 (2) que “os
preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser
interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do
Homem” (QUADROS; PEREIRA, 2015, p. 117).
No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro revela-se evidente que a DUDH
serviu de paradigma para a Constituição da República de 1988, que simboliza o marco
jurídico da transiçãodemocrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil. A
Constituição deixa claro que os direitos humanos constituem um tema de legítimointeresse
da sociedade internacional, ao prever em seu art. 4º os princípios pelos quais o país rege-se
em suas relações internacionais e, dentre eles, a prevalência dos direitos humanos (inc. III).
Também acolhe a ideia da universalidade, fortemente presente na DUDH, ao estabelecer
como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III). Em
verdade, como aponta Valerio Mazzuoli (2016, p. 959), a Constituição brasileira
“literalmente ‘copiou’ vários dispositivos da Declaração Universal, o que prova que o
direito constitucional brasileiro atual está perfeitamente integrado com o sistema
internacional de proteção dos direitos humanos”.
Atualmente, portanto, conforme afirma Lindgren Alves (1997, p. 25) é fato
unanimemente reconhecido que a DUDH“constitui o documento maisimportante na fase
por ela inaugurada das relações internacionais, assim como, para a maioria dos países
hojeindependentes, do próprio direito nacional”.
~ 78 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O grande impacto da DUDH pode não ter sido imediato, masnão há dúvidas de
que o seu significado cresceu ao longo dos tempos e continua a crescer. Conforme
nitidamente se viu no decorrer desse tópico, a edificação do interior do templo dos direitos
humanos, advogada por René Cassin em 1951,teve curso no correr dos tempos, fortemente
alicerçada na inspiração da vis directiva da Declaração, pórtico desse grandioso templo, que
certamente continuará a ser expandido pela presente e pelas futuras gerações.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Declaração Universal dos Direitos Humanosé, sem sombra de dúvida, uma verdadeira
obra prima, a Magna Charta dos direitos humanos, fruto da genialidade de todos aqueles que
participaram do seu processo de elaboração (1947-1948) e se esforçaram para que ela fosse
proclamada pelos 51 países (membros fundadores) que à época integravam a recém
constituída Organização das Nações Unidas, naquele memorável 10 de dezembro de 1948.
Em contraste com o momento da sua proclamação, poucas pessoas hoje ousariam
contestar a enorme importância que assumiu a DUDHnos tempos atuais. Seja qual for a
concepção que se tinha desse instrumento à época de sua vinda ao mundo naquele
histórico 10 de dezembro de 1948, e mesmo que inicialmente tenha ele sido envolto numa
roupagem de normassoft law, osquase setenta anos que seguiram à sua adoção certamente
estabeleceram e confirmaram seu papel como um documento juridicamente vinculante e
uma verdadeira fonte de obrigações legais para a grande esmagadora maioria dos países do
globo.
No presente texto essa força vinculante foi fundamentada na exposição das várias
teses apresentadas sobre o tema, pelas quais se demonstrou que, seja como parte integrante
da Carta da ONU, como sua interpretação autêntica, como espelho do costume
internacional ou como princípios gerais da ordem jurídica internacional, atualmente não há
como negar à DUDH o caráter de instrumento que impõe obrigações de defesa e
promoção do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos os
193 Estados-Membros das Nações Unidas.
Trata-se de um documento marco na história humana, que dá início e promove o
desenvolvimento e a consolidação da proteção internacional dos direitos humanos,
demarcando de forma indelével a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência
desses direitos para todos os povos do globo, dando origem ao Direito Internacional dos
Direitos Humanos.
~ 79 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS
ALSTON, Philip; GOODMAN, Ryan. International Human Rights: The Successor to International
Human Rights in Context: Law, Politics and Morals. Oxford: Oxford University Press, 2012.
ASAMOAH, Obed Y. The Legal Significance of the Declarations of the General Assembly of the
United Nations. The Hague: MartinusNijhoff, 1966.
~ 80 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
BROWN, Gordon (Edit.). The Universal Declaration of Human Rights in the 21st Century: A
Living Document in a Changing World. A report by the Global Citizenship Commission. Cambridge:
Open Book Publishers, 2016.
________. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Vol. 1. 2. ed. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2003.
CAROZZA, Paolo G. Human Dignity. In:The Oxford Handbook of International Human Rights
Law. Oxford: Oxford University Press, 2013.
~ 81 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
CHESTERMAN, Simon; JOHNSTONE, Ian; MALONE, David M. Law and Practice of the
United Nations: Documents and Commentary. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2016.
DARRAJ, Susan Muaddi. The Universal Declaration of Human Rights. New York: Chelsea
House Publishing, 2009.
GLENDON, Mary Ann. A World Made New: Eleanor Roosevelt and the Universal Declaration of
Human Rights. New York: Random House, 2001.
~ 82 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
HANHIMÄKI, Jussi M. The United Nations: A Very Short Introduction.2. ed. Oxford: Oxford
University Press, 2015.
HURD, Ian. International Organizations: politics, law, practice. 2. ed. Cambridge: Cambridge
University Press, 2014.
________. United States Diplomatic and Consular Staff in Tehran (United States of America v. Iran).
Disponível em: <https://goo.gl/Q2fWtN>. Acesso em 26 dez. 2017.
JENNINGS, Robert Yewdall; WATTS, Arthur (Edit.). Oppenheim's International Law. 9. ed.
London: Pearson/Longman, 1992.
LAFER, Celso. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). In: MAGNOLI,
Demétrio (Org.). História da Paz: os tratados que desenharam o planeta. 2. ed. São Paulo:
Contexto, 2012.
LINDGREN ALVES, José Augusto. A Arquitetura Internacional dos Direitos Humanos. São
Paulo: FTD, 1997.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 10. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2016.
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. I. 15. ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
~ 83 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
MINGST, Karen A.; KARNS, Margaret P.The United Nations in the 21st Century. 4. ed.
Boulder: Westview Press, 2011.
MORSINK, Johannes. The Universal Declaration of Human Rights: Origins, Drafting, and Intent.
Pennsylvania: Universityof Pennsylvania Press, 1999.
PEREIRA, André Gonçalves Pereira; QUADROS, Fausto de. Manual de Direito Internacional
Público. 3. ed. Lisboa: Almedina, 2015.
________. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 16. ed. São Paulo: Saraiva,
2016.
~ 84 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 6. ed.
São Paulo: Saraiva, 2016, e-book.
SEITENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria
dos Advogados, 2016.
SCHABAS, William A. The Universal Declaration of Human Rights: The travaux préparatoires. Vol.
I. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.
SHAW, Malcolm N. International Law. 7. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.
SHELTON, Dinah. Remedies in International Human Rights Law. 3. ed. Oxford: Oxford
University Press, 2015.
SHEERAN, Scott; RODLEY, Nigel. The Broad Review of International Human Rights
Law. In: Routledge Handbook of International Human Rights Law. Abingdon: Routledge, 2014.
SIBERT, Marcel. Traité de Droit International Public: Le droit de la paix. Vol. 1. Paris: Dalloz,
1951.
SIEGHART, Paul. The Lawful Rights of Mankind: An Introduction to the International Legal Code
of Human Rights. Oxford: Oxford University Press, 1986.
SOMMERVILLE, Donald. The Complete Illustrated History of World War Two: An Authoritative
Account of the Deadliest Conflict in Human History with Analysis of Decisive Encounters and
Landmark Engagements. Londres: AnnessPublishing/Lorenz Books, 2008.
VILLEY, Michel. O Direito e os Direitos Humanos. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado
Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
~ 85 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
WELLS, Donald A. The United Nations: State vs international law. New York: Algora, 2005.
~ 86 ~
COLONIALIDADE E CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS:
UMA LEITURA A PARTIR DA DECLARAÇÃO INTERNACIONAL DE
1948108
108 O processo de escrita do presente trabalho envolveu a colaboração de três pesquisadores na área dos
direitos humanos. Coube ao professor João Paulo Allain Teixeira definir a estrutura do trabalho e a redação
inicial dos três primeiros capítulos. O professor Gustavo Ferreira Santos contribuiu com inserções ao longo
dos três capítulos iniciais. Finalmente, coube à professora LidiaPatriciaCastilloAmaya a redação do último
capítulo. Ao final, todos revisaram o texto.
*Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco e Filosofia do Direito da
Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.
Master em Teorias Críticas do Direito pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha. Doutor em
Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. Membro e líder do grupo REC CNPq – Recife
Estudos Constitucionais. Bolsista de Produtividade em Pesquisa (CNPq).
**Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). E da
~ 87 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 88 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 89 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
II
~ 90 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
ideologia no fim da História” (Douzinas, 2009: 16). Isso reflete uma retórica vazia,
disponível a ser preenchida à vontade do que a assume.
Immanuel Wallerstein retomando o debate envolvendo Bartolomé de Las Casas109
e Juan Ginés de Sepúlveda110, aponta para as incoerências e ambiguidades do discurso dos
Direitos Humanos, particularmente no que se refere à retórica da “intervenção
humanitária”. Wallerstein lembra que os valores que formatam a democracia, livre
mercado, e Direitos Humanos a despeito de sua pretensão de universalismo, localizam-se
no contexto de um projeto político liderado pelas grandes potências do ocidente.
A Imposição dos valores universais contra a barbárie tem na disputa envolvendo
Las Casas e Sepúlveda um marco fundamental. A chegada do conquistador europeu às
Américas, desencadeou um amplo processo de submissão mediante invasão de terras,
escravização dos povos originários, entre outras ações violentas, que acabou por eliminar
impérios como o Inca e o Asteca. Estabelecidos os espanhóis no novo mundo, configurou-
se o sistema de encomiendas, através do qual os colonizadores repartiam as terras e
submetiam os ameríndios a trabalhos forçados nas atividades de mineração, agricultura, e
pastoreio. O próprio Bartolomé de Las Casas é um encomendero. No entanto, após conhecer
as práticas de escravização dos nativos, volta-se contra o sistema, destacando-se pela
atuação em defesa dos povos indígenas do continente americano, estabelecendo uma
poderosa crítica às práticas do sistema de exploração colonial e à subjugação dos povos
originários no continente americano (Dussel, 2005).
Las Casas se insurge contra o modelo de subjugação violenta, defendendo o
caráter pacifico da evangelização. (Wallerstein, 2007: 31-32). Trata como ilegítima a
escravização do índio, mas, ao mesmo tempo, defende a responsabilidade dos espanhóis
para salvá-los, pelo cristianismo, com governo regional, sob o império do Rei espanhol.
Dussel considera que as missões (reduções) jesuítas foram o que mais próximo se chegou o
ideal de Las Casas, pois os índios se autogovernavam e estavam sob o poder do império,
apesar de não estarem diretamente submetidos aos espanhóis (Dussel, 2005, 48).
Dentre os grandes opositores de Las Casas destacou-se Juan Ginés de Sepúlveda,
cujos posicionamentos aludiam a uma condição de inferioridade dos ameríndios,
justificando o processo de submissão em nome do ideal civilizatório. Para Sepúlveda, os
ameríndios seriam “bárbaros, simplórios, iletrados e não instruídos, brutos totalmente
incapazes de aprender qualquer coisa que não seja atividade mecânica, cheios de vícios,
109Bartolomé de Las Casas, nascido em Sevilha em 1484 e falecido em 1566 em Madrid, teria sido o primeiro
sacerdote a ser ordenado nas Américas no ano de 1510.
110Juan Ginés de Sepúlveda, nascido em Córdoba, Espanha, em 1489 e falecido em 1556.
~ 91 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
cruéis e de tal tipo que se aconselha que sejam governados por outros” (Apud
Wallerstein2007: 33).
As teses de Sepúlveda transcendem a temporalidade histórica sendo os mesmos
argumentos utilizados na contemporaneidade para justificar “intervenções humanitárias” a
partir da aplicação de um “ideal civilizatório” a um contexto de “bárbarie”. Do ponto de
vista das relações globais este é um debate que permanece entranhado nas práticas das
relações internacionais até os nossos dias.
Como se sabe, a partir da segunda metade do século XX observamos a
intensificação do processo de descolonização mediante o qual os antigos impérios coloniais
são reconfigurados. Este novo cenário sugeriu em grande medida o fim da interferência da
metrópole sobre suas antigas colônias, já que as justificativas da “evangelização cristã” e da
“missão civilizatória” como elementos de legitimação da submissão ao império não mais se
sustentavam. Nesse sentido a grande novidade veio com a ressignificação do discurso em
torno dos direitos humanos. (Wallerstein, 2007: 42-43).
Na retórica dos países que exercem liderança no capitalismo global, a ideia de
“intervenção humanitária” está geralmente associada a um esforço de ampliação dos
espaços de realização dos Direitos Humanos, mediante a potencialização dos valores
inerentes à “democracia”, à “liberdade” ou ao “livre mercado”. Estes valores, diante da
auto-evidência da superioridade moral que presumivelmente ostentam, justificariam a
universalização de suas pautas, ainda que esta tarefa resultasse em uma imposição através
da força. Wallerstein explica que, se por um lado, os movimentos de libertação nacional
resultaram na intensificação do processo de descolonização a partir da segunda metade do
Século XX, por outro lado, e paradoxalmente, este mesmo processo determinou que os
novos Estados permanecessem atrelados à mesma lógica imperial de outrora. (Wallerstein,
2007: 42).
Um dos instrumentos mais eficientes nesse processo de permanente submissão
dos novos Estados está na pretensão de universalização da lógica que mobiliza o discurso
dos Direitos Humanos, da qual a Declaração de 1948 é expoente de relevo. Ainda que a
doutrina da “não intervenção” consagrada pela ONU aponte no plano discursivo para o
fim das ingerências externas mediante a consagração da autodeterminação dos povos, no
plano fático o controle das potências ocidentais permaneceu intacto. Isto foi possível
graças à “missão civilizatória” por elas assumida autorizando a intervenção sempre em
nome dos Direitos Humanos. A intervenção humanitária torna-se assim um poderoso
~ 92 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
111 Ao tratar da Europa como “periferia” do mundo muçulmano, Dussellemba que “No Século XV, até 1492,
a hoje chamada Europa Ocidental era um mundo periférico e secundário do mundo muçulmano. A Europa
Ocidental nunca fora o ´centro´da história pois não ia além de Viena, ao leste, já que até 1681 os turcos
estiveram perto de seus muros, e além de Sevilha em seu outro extremo, A totalidade de seus habitantes, da
Europa latino-germana não era mais de cem milhões (inferior à população do império chinês sozinho nessa
época). Era uma cultura isolada, que fracassara com as Cruzadas por não poder recuperar alguma presença
num polo nevrálgico do comércio do continente euro-asiático.[...] Impedidos os europeus de poderem
controlar o Mediterrâneo oriental, tiveram de ficar isolados, periféricos do mundo muçulmano” (Dussel, 112)
~ 93 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
III
~ 94 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Para ele, “A cultura não é uma entidade alheia ou separada das estratégias de ação social; ao
contrário, é uma resposta, uma reação à forma como vão se constituindo e se desdobrando
as relações sociais, econômicas e políticas em um tempo e um espaço determinados” (2009:
148). Também denuncia os multiculturalismos localistas ou nativistas, que radicalizam
questões identitárias e redundam em um tipo de “universalismo de retas paralelas”, uma
noção multicultura de direitos. Para ele, “o termo ‘multicultural’ ou não diz nada, dada à
inexistência de culturas separadas, ou conduz à sobrepor, no estilo de um museu, das
diferentes culturas e formas de entender os direitos” (2009:156).
O problema não está na pretensão de universalidade ou na afirmação identitária.
Herrera Flores afirma que é necessária “uma racionalidade sem lar, descentrada e exilada do
convencional e dominante. O problema não está na preocupação pela forma, mas no
formalismo. O problema não reside na luta pela identidade, mas no essencialismo do étnico
ou da diferença” (2009:159). A sua teoria aponta, assim, para um universalismo que não é
tomado como ponto de partida, mas de chegada, depois de “um processo conflitivo,
discursivo de diálogo ou de confrontação em que se rompam os preconceitos e as linhas
paralelas” (Herrera Flores, 2009:157).
Sua visão não é apenas universalista ou multicultural, é intercultural. As culturas se
entrecruzam e apresentam suas próprias narrativas e suas formas de ver os direitos. Estão
abertas a descobrir a perspectiva de outras culturas. Direitos humanos não devem ser vistos
como produto de uma determinada cultura, mas dessa convivência entre diversas formas
de ver o mundo.
Uma percepção intercultural dos Direitos Humanos tem a oferecer afinal, uma
agenda de trabalho significativamente ampla para o enfrentamento de várias questões que
nos afligem neste início de Século XXI. A potencialização da democracia e da inclusão
social passa pela compreensão dos Direitos Humanos enquanto pauta aberta e plural,
insusceptível de apropriação unilateral por grupos eventualmente hegemônicos. Uma visão
complexa dos direitos humanos “assume a realidade e a presença de múltiplas vozes, todas
com o mesmo direito a se expressar, a denunciar, a exigir e a lutar”(Herrera Flores, 2009, p.
152).
IV
~ 95 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
teóricos do movimento americano Critical Legal Studies (Tushnet, 1994) e os seus cinco
argumentos básicos: a) o discurso dos direitos é menos útil para garantir mudanças sociais
reais e progressivas do que as propostas pelos teóricos liberais e ativistas; b) os direitos são
de fato indeterminados e incoerentes; c) o uso do discurso dos direitos desencoraja a
imaginação humana e confunde as pessoas sobre como o direito realmente funciona; d) o
discurso dos direitos reflete e produz uma espécie de individualismo isolado que impede a
solidariedade social e a genuína conexão humana; e finalmente, e) o discurso dos direitos
pode impedir o movimento progressista que luta por democracia e justiça genuínas.
Embora o direito internacional dos direitos humanos tenha quase na sua totalidade,
fundamento na teoria dos direitos objeto da crítica da CLS, apenas autores como David
Kennedy (2006) e Maarti Koskeniemmi têm desenvolvido teorias fortemente baseadas
nesta linha da teoria critica do direito.
Em The Darkside of Virtue (2006) David Kennedy enfoca a sua critica pragmática
nos possíveis riscos, custos e conseqüências imprevistas do ativismo dos direitos humanos.
Para o autor, os advogados humanitários precisam enfrentar os lados obscuros da tradição
humanitária, reconhecendo honestamente os custos e consequências negativas que podem
permear o ativismo, e assumir a responsabilidade pelos danos de uma pratica
excesivamente universalista. Em From Apology to Utopia (1989, 2005), Martti Koskenniemi
apresenta sua tese sobre a indeterminação fundamental do direito internacional. Essa viria a
sintetizar um momento crítico no direito internacional. Koskenniemi demonstrou como a
política dos preconceitos do direito internacional pode operar na sombra da
indeterminação para produzir hegemonia institucional.
Nas últimas décadas o feminismo e o relativismo cultural estão entre as críticas
mais vigorosas e mais visíveis do discurso dominante sobre os direitos humanos. Em
muitas questões, feministas e relativistas culturais se viram tomando lados diametralmente
opostos. Mas, na literatura sobre os “direitos humanos das mulheres” (ENGLE, 1992:
518,519) essas críticas, aparentemente antagónicas, revelam paralelos e semelhanças em
suas respectivas formulaçaões.
É nessa linha de ideais que Peterson (1990: 305, 306) desenvolve uma crítica
feminista (conhecida como “feminist critique”) pós-positivista sobre os “dados” (givens) do
discurso liberal dos direitos humanos especificamente contra as sus premisas fundantes e
pressuposições implícitas sobre a natureza humana, ou seja, a ontología do individuo e das
relações entre “individuo/outro”. Peterson considera que a teoria e a prática originárias e
predominantes dos direitos humanos são androcêntricas pois ainda persiste um tratamento
~ 96 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
secundário para os direitos das mulheres que muitas vezes foram excluídos dos
entendimentos das convencões internacionais (especialmente da Declaração do 1948)
baseados na dicotomia publico/privado, na essencialização das identidades e nas
hierarquias dualistas. Consequentemente, o discurso dominante dos direitos humanos está
ainda fortemente associado a uma filosofía moral liberal, positivista e patriarcal que tem
como centro um gênero específico (o masculino) e a sua visão do mundo, é pelo tanto é
incompleto ao nível ontológico e inadequado para assegurar a completa eliminação da
violência estrutural contra as mulheres nas sociedades contemporâneas.
A partir da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra as Mulheres (aprovada em 18 de dezembro de 1979), o sistema internacional de
direitos humanos superou, apenas em parte, os elementos da crítica feminista consagrando
a ideia segundo a qual a discriminação é uma injustiça e constitui uma ofensa à dignidade
das mulheres. A convenção (também conhecida como Declaração Internacional de
Direitos das Mulheres) ampliou as disposições gerais dos direitos humanos, falando
especificamente sobre os direitos das mulheres como direitos humanos. Seguidamente a
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos realizada em Viena em 1993 reafirmou o
reconhecimento dos direitos das mulheres como parte inalienável, integral e indivisível dos
direitos humanos universais. Finalmente, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra as Mulheres (conhecida como Convenção de Belém do Pará)
aprovada em 9 de Junho de 1994 pela Assembleia Geral dos Estados Americanos
estabeleceu parâmetros legais regionais em torno à violência contra as mulheres,
parâmetros aos quais todos os países signatários da Convenção estão sujeitos.
Contudo, esses sucessos manifestos das visões feministas dentro do sistema de
direitos humanos ainda tem que sortear as possíveis contradições entre o discurso jurídico
e a real efetivação dos direitos humanos. Porém, o discurso dos direitos humanos das
mulheres, ainda tem obstáculos a superar. O referencial teórico feminista desenvolvido
pelas convenções mencionadas deve estar voltado para a superação dos desafios
ontológicos e epistemológicos apontados pela crítica feminista e ser acompanhado pela
cooperação dos Estados em relação à promulgação de políticas de garantia da igualdade
social e paridade política, nas quais as perspectivas de gênero contidas nas normas
convencionais sejam desenvolvidas e concretizadas.
Assim, também os elementos da crítica aos direitos da Critical Legal Studies e da
Feminist Critique estendem-se ao discurso do liberalismo que celebra o advento dos direitos
humanos ao mesmo tempo que não enfrenta os dilemas estruturais mais profundos
~ 97 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS
DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. São Leopoldo: Editora Unisinos,
2009
___________. Origen de la filosofía política moderna: Las Casas, Vitoria y Suárez (1514-
1617). CaribbeanStudies, Vol. 33, n. 2, p. 35-80, 2005.
~ 98 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 99 ~
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS DE 1948
E A CIDADANIA COSMOPOLITA
I – INTRODUÇÃO
Com enorme satisfação aceitei o convite para participar da presente obra, que
comemora os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Nesse
sentido, cabe lembrar brevemente o contexto no qual ela foi elaborada e refletir sobre sua
enorme importância no cenário internacional.Criada em 1945, após a barbárie das duas
grandes guerras mundiais e as sequelas deixadas na humanidade, referida declaração foi a
primeira do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, inaugurado pela
Organização das Nações Unidas.
Diante daquela nefasta realidade, a comunidade internacional buscavanovos
paradigmas para proteger os direitos da pessoa humana e preservar orespeito à sua
dignidade. Com esse propósito foi elaborada a Declaração Universal dos Direitos
Humanos pela Resolução n. 217 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de
dezembro de 1948. Nas décadas seguintes, foram criadas inúmeras outras declarações e
tratados internacionais de direitos humanos,tanto no âmbito global, ou seja, no sistema da
ONU, quanto no âmbito regional, por meio dos sistemas interamericano, europeu e
africano de direitos humanos, todos com o propósito de estruturar, ampliar e aprimorar a
proteção e a promoção dos direitos humanos no mundo.
Podemos afirmar que, nesse contexto, a Declaração de 1948 inaugura um novo
paradigma de percepção e proteção dos direitos da pessoa humana, pautado na concepção
de que somos todos igualmente pertencentes à família humana e, por isso, titulares de
direitos que tutelam a dignidade humana. Opreâmbuloda declaração expressa esse
sentidoda seguinte forma: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os
membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça
e da paz no mundo”.
*Mestre, Doutora e Livre-docente em Direito pela PUC/SP na qual é professora da Graduação e da Pós-
Graduação em Direitos Humanos. Advogada. E-mail: caslima@pucsp;souzalimacarolina@terra.com.br
~ 100 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 101 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 102 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 103 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 104 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
também não eram titulares dos direitos políticos e por isso não votavam. Assim, ao lado
dos ideais de liberdade e igualdade estava a escravidão que perdurou até a Guerra de
Secessão (1861-1865). Somente com a Emenda Constitucional n. 13 a escravidão nos
Estados Unidos da Américafoi expressamente proibida (KARNAL, 2003).
O mesmo ocorreu em relação à Revolução Francesa. Observa Eric J. Hobsbawm
(2009, p. 91), ao analisar a Declaração de 1789, que: “Este documento é um manifesto
contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma
sociedade democrática e igualitária”. A cidadania liberal francesa estabelecia o voto
censitário e somente para homens livres com determinada renda. Cabe lembrar que a
França manteve a escravidão em suas colônias até 1848 (HOBSBAWM, 2009). As
mulheres também estavam excluídas da cidadania. Em 1791, a escritora e artista dramática
Olympe de Gouges propôs à Assembleia Nacional Francesa a “Declaração de Direitos da
Mulher e da Cidadã”, a qual não foi aceita. Foi guilhotinada em 1793, após ter sido
condenada como contrarrevolucionária e considerada mulher “desnaturada”112.
Não obstante a cidadania conquistada ao longo das revoluções burguesas ter tido
caráter excludente, representou, naquela época e contexto, importantíssimo avanço,
porquanto houve efetiva mudança de paradigma na sociedade europeia, ao introduzir os
direitos como conquistas no campo político-social e não mais como privilégios. Ademais, a
cidadania liberal foi importante passo para se reivindicarem no século 19 os direitos de
caráter social, ou seja, aqueles que possibilitam a distribuição da riqueza coletiva e vão
proporcionar maior grau de pertencimento no campo político-social.
Nesse sentido, o século 19 foi marcado pela reafirmação dos direitos civis e
políticos e pela reivindicação dos direitos sociais, com vistas à distribuição da riqueza
coletiva e enfrentamento das injustiças sociais.O Manifesto Comunista, elaborado por Marx
e Engels em 1848, foi o documento mais importante da crítica socialista ao regime liberal-
burguês. Nesse período, a sociedade europeia começava a reivindicar a cidadania com
conotação social, o que também representou a ampliação da cidadania e de pertencimento
ao coletivo. As leis fabris na Inglaterra configuram as primeiras conquistas legislativas nessa
seara (LIMA, 2002).
O século 20, por sua vez, presenciou as duas grandes guerras mundiais e centenas
de outras guerras e conflitos, que o marcaram como o período dos massacres, guerras e
genocídios.A primeira metade do século foi marcada pela conquista dos direitos sociais no
112http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-à-criação-da-Sociedade-das-
~ 105 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 106 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
No entanto, consolidar tais ideias não seria caminho fácil, como nunca é quando
se trata da proteção dos direitos humanos. No período posterior à Segunda Guerra inicia-se
a Guerra Fria, com toda sua complexidade eseus conflitos.Em meio a todo esse contexto,
somado à realidade da globalização econômica pautada no viés neoliberal, a humanidade
ainda se vê diante de muitos outros dilemas, questionamentos, tensões e desafios para
alcançar maior proteção dos direitos humanos e a possibilidade de exercitar uma cidadania
mais plena.
O novo cenário global se apresenta com a degradação do meio ambiente, os
conflitos e as guerras civis e internacionais, o drama dos refugiados, o terrorismo, a busca
pela segurança nacional e internacional, a demanda pela paz mundial, as profundas
desigualdades sociais, a dificuldade de um diálogo intercultural, as inovações tecnológicas
em todos os campos do conhecimento e seus desdobramentos e dilemas éticos, entre
outros.
Diante dessa realidade, começa a se intensificar a demanda por proteção de
direitos que reconheçamtambém o indivíduo como ser pertencente à humanidade, ou seja,
à família humana. São demandas que nos unem na perspectiva da solidariedade. Busca-seo
respeito mútuo entre os indivíduos, iniciando-se nas relações privadas e mais próximas,
caminhando para a vida em sociedade, até chegar às relações mais amplas, como no âmbito
internacional e global. Esse é o caminho da cidadania cosmopolita.
Todas essas relações devem ser pautadas no respeito aos direitos humanos e à
dignidade da pessoa humana. Pode parecer utopia ou ingenuidade defender tais ideais,
diante de um mundo globalizado, masapenas no campo econômico, e marcado por
relações sociais mais pautadas em interesses egoísticos e menos em solidariedade e
colaboração mútua, somadasà falta de empatia e tolerância.No entanto, verificamos que,
por um lado, avançamos na consolidação da cidadania no plano jurídico internacional, o
que representa importante mudança de paradigma e conquista inédita. Por outro lado, a
realidade mundial é muito complexa, com um cenário marcado por países não
democráticos, e mesmo os democráticos muitas vezes não alcançam o grau de proteção e
promoção da cidadania determinado pelos tratados de direitos humanos. Ademais, a
história da cidadania e dos direitos humanos é uma construção da cultura ocidental e, por
isso, arraigada fundamentalmente em seus valores, além de ter profunda influência do
cristianismo, uma das religiões do mundo, mas não a única.
Diante desse cenário de tensões e desafios, vamos discorrer a respeito do
pertencimento,com base na noção de família no sentido privado, para chegar à ideia de
~ 107 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 108 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 109 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
relações sociais. É instituição presente ao longo de toda a história da humanidade. Por isso,
em cada período, espelha a estrutura e as demandas de determinadas sociedade e cultura.
O disposto no artigo 16 da Declaração apresenta os parâmetros mínimos de
proteção da família no âmbito das relações privadas, com vistas a que cada país
regulamente e proteja os interesses da família e dos seus membros no plano interno. Não é
o foco do presente estudo analisar detalhadamente os aspectos civis do casamento e da
constituição da família, uma vez que o objetivo é analisar a família humana, com vistas à
efetivação da cidadania cosmopolita.
No entanto, cabe destacar que o artigo 16 apresenta vertentes mínimas de
proteção nas relações familiares privadas que, sem dúvida, refletem nas relações sociais e na
cultura. Ao estabelecer em seu inciso primeiro que o matrimônio deve ser entre homens e
mulheres de maior idade, visa a proteger a infância e seus direitos. Submeter uma criança
ao casamento, o que é realidade em alguns países, configura violação aos direitos da
infância, em razão de serem as crianças seres em desenvolvimento físico, psíquico e social e
demandarem proteção especial.
O referido inciso primeiro também estabelece a igualdade de direitos nas relações
do casamento e da família. Configura-se o princípio da igualdade entre os cônjuges, o que
representa a igualdade de direitos e deveres. O inciso segundo do artigo 16 complementa
prescrevendo que o “casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes”.
Representa que o casamento deve ser ato de livre e espontânea vontade das pessoas
maiores de idade. Deve ser um ato pleno de livre escolha. A proteção jurídica está tanto na
família em si, quanto em seus membros, com vistas ao respeito e à proteção da
individualidade de cada um. Finaliza o artigo, com o seu inciso terceiro, o qual preceitua
que a família, como núcleo natural e fundamental da sociedade, tem proteção desta e do
Estado.
Quanto ao ordenamento jurídico brasileiro, observa-se que a Constituição de 1988
está em total consonância com o artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos.Nesse sentido, o artigo 226 da Lei Maior preceitua que: “A família, base da
sociedade, tem especial proteção do Estado”. Tal dispositivo incorpora o princípio da tutela
especial à família, segundo o qual esta é a base da sociedade. A proteção do Estado deve
atuar em duas vertentes: na tutela dos direitos dos membros da família e na criação de
mecanismos para coibir a violência no âmbito familiar.Isso porque a família pode ser tanto
o lugar de proteção, como também o da violência contra seus membros, representando em
algumas situações o esconderijo perfeito para a perpetuação da violência.
~ 110 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
113http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931 Acesso em 17 de
dezembro de 2007.
~ 111 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O que ela afirma é que os direitos humanos pressupõem a cidadania não apenas
como um fato e um meio, mas sim como um princípio, pois a privação da
~ 112 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
cidadania afeta substancialmente a condição humana, uma vez que o ser humano
privado de suas qualidades acidentais – o seu estatuto político – vê-se privado de
sua substancia, vale dizer: tornado pura substância, perde a sua qualidade
substancial, que é de ser tratado pelos outros como um semelhante(LAFER, 1988,
p. 151)..
~ 113 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 114 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 115 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 116 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Das diferentes versões deuma dada cultura, deve ser escolhida para o diálogo
intercultural a que representa o círculo de reciprocidade mais amplo, a versão que
vai mais longe no reconhecimento do outro. No que respeita às duas versões da
cultura ocidental dos Direitos Humanos, a liberal e a socialdemocrática, deve ser
privilegiada a última, porque amplia para os domínios econômico e social a
igualdade que a versão liberal apenas considera legítima no domínio
político(SANTOS, 2009, p.17-18).
Defende também que cada cultura deve decidir quando está apta para o diálogo
intercultural. Não pode haver imposição, mas sim verdadeiro diálogo, no qual a troca, a
solidariedade e a empatia são efetivamente respeitadas.Nesse aspecto, não podemos deixar
de reiterar a dificuldade do diálogo diante da prevalência da globalização hegemônica. Por
fim, defende o respeito intrínseco à igualdade no sentido de que: “a hermenêutica diatópica
pressupõe a aceitação do seguinte imperativo transcultural: temos o direito a ser iguais
quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza”(SANTOS, 2009, p.18).
Observa-se, por um lado, que as tensões apresentadas pelo autor esclarecem
porque é difícil viabilizar a proteção e a promoção dos direitos humanos de forma mais
plena no mundo atual, e consequentemente viabilizar a cidadania em todos seus aspectos,
inclusive o cosmopolita. Por outro lado, o autor apresenta caminhos que podem contribuir
para se atingirem níveis mais civilizados de respeito e convivência humana, com base no
diálogo intercultural.
~ 117 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Isso porque, no nosso entender, ainda atuamos e nos relacionamos com base na
cultura da violência. Nas palavras de Ariana Bazzano de Oliveira (2007, p. 17):
VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS
~ 119 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRUDA, José Jobson de A. História Moderna e Contemporânea. 10 ed. São Paulo: Ática,
1979.
Carta aos Gálatas. Novo Testamento, 4. ed. São Paulo: Paulinas, 1989.
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
CONLANGES, Fustel de. A Cidade Antiga: Estudos sobre o Culto, o Direito e as Instituições da
Grécia e de Roma. Tradução de Edson Bini. 3.ed. São Paulo – Bauru: Edipro, 2001.
~ 120 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
FUNARI, Pedro Paulo. A Cidadania entre os Romanos. In: História da Cidadania. Org.:
Jaime Pinsky e Carla BassaneziPinsky. São Paulo: Contexto, 2003.
LIMA, Carolina Alves de Souza; BORGES, K. E. Segunda Guerra Mundial. In: Wagner
Balera. (Org.). A Paz é Possível. 1ed.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, v. 1, p. 35-59.
MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Novas Modalidades de Família na Pós-
Modernidade. Tese de doutorado. USP/SP. 2010. Disponível em
<<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2131/tde-31012011-154418/pt-
br.php>> Acesso em 17 de dezembro de 2017.
OLIVEIRA, Ariana Bazzano de. O Percurso do Conceito de Paz: de Kant à atualidade. 2007
Disponível em:
<<http://www.santiagodantassp.locaweb.com.br/br/simp/artigos/bazzano.pdf>>.
Acesso em 22 dez 2015.
~ 121 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
ROLIM, Luiz Antonio. As Instituições de Direito Romano. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000.
SITES CONSULTADOS:
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-à-criação-da-
Sociedade-das-Nações-até-1919/declaracao-dos-direitos-da-mulher-e-da-cidada-1791.html
Documentos Históricos de Direitos Humanos – Declaração dos Direitos da Mulher e da
Cidadã de 1791. Acesso 17 de dezembro de 2017
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931 Acesso em
17 de dezembro de 2007
~ 122 ~
SETENTA ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS
HUMANOS E A ERRADICAÇÃO DA POBREZA:
A DECLARAÇÃO DO MILÊNIO DE 2000 – O
DESENVOLVIMENTO DAS POPULAÇÕES VULNERÁVEIS.
INTRODUÇÃO
Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua famíl
ia saúde e bem estar, inclusive alimentação , vestuário, habitação, cuidados mé
dicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito àsegurança em caso de
desemprego, doença , invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência fora de seu controle.
* Doutora em Ciências Sociais PUC/SP; Mestre em Ciências Penais UCAM/RJ; Especialista em Direito Penal
e Processual Penal /UFAM-RJ; e em Direito Público e Privado- FGV/AM. Professora do CIESA e
Professora Voluntária do PPGDA/Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos / UEA. Advogada e
Promotora de Justiça do MPE-AM, aposentada.
** Guilherme Gustavo Vasques Mota – Mestre em Ciências Sociais PUC/SP. Doutorando em Ciências Sociais
~ 123 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Sabemos que nesses setenta anos houve avanços, entretanto em algumas situações
não, portanto ao trabalharmos o tema enfatizamos questões relacionadas com a pobreza e a
fome e a possibilidade de erradicação, ou pelo menos de amenização das situações mais
graves verificadas.
~ 124 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 125 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
fome são melhorar a saúde infantil e maternal, controlar doenças globais e atuar em prol da
sustentabilidade ambiental e fortalecimento da parceria global.
Fukuda Parr em artigo, sobre o assunto, buscou demonstrar que a perspectiva da“
capability’s approach” de Sen é somente mais uma das muitas idéias que orbitam o
conceito de economia desenvolvimentista, a partir de uma recente transformação na
agenda desenvolvimentista mundial (FUKUDA PARR, 2005).
O pilar principal envolve investimento social em benefício de pobres,
empoderamento de pessoas e governança democrática, contudo tais políticas
compartilharam premissas de outras, em especial as estratégias neoliberais (IDEM).
Realizada em setembro do ano 2000, a Cúpula do Milênio das Nações Unidas foi
realizada em Nova York. Assistida por 100 Chefes de Estado, 47 Chefes de Governos, 3
Príncipes, 5 Vices-Presidentes, 3 Primeiros Ministros , 8000 Delegados e 5500 Jornalistas,
buscavam “reafirmar nossa fé na Organização e em sua Carta Magna como fundamentos
indispensáveis de um mundo mais pacífico, próspero e justo”116.
Na Declaração da Cúpula do Milênio das Nações Unidas no inciso I, item 6,
consideraram os seguintes valores como fundamentais, a liberdade, a igualdade, a
solidariedade, a tolerância, o respeito à natureza e a responsabilidade comum. Abaixo as
previsões acerca de tais direitos:
~ 126 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
117 IDEM
118IDEM
~ 127 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 128 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 129 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
saúde, educação, seguridade social, entre outros, contribui diretamente para a qualidade de
vida e seu florescimento.
Para Sen, a negação do mercado é a negação da liberdade e da produção da “
capacidade humana” já que “restrições arbitrárias ao mecanismo de mercado podem levar a
uma redução de liberdades devido aos efeitos conseqüenciais favoráveis que os mercados
oferecem e sustentam pode resultar em privações” (SEN, 2004, p. 41).
O objetivo do desenvolvimento relaciona-se à avaliação de liberdades reais
desfrutadas pelas pessoas. As capacidades individuais dependem crucialmente entre outras
coisas de disposições econômicas sociais e políticas, [...] ao se instituírem disposições
institucionais apropriadas, os papéis instrumentais de tipos distintos de liberdade precisam
ser levados em conta, indo-se além da importância fundamental da liberdade global dos
indivíduos (IDEM, p. 96).
Os papéis instrumentais da liberdade incluem vários componentes distintos, poré
m interrelacionados como facilidades econômicas liberdades políticas, oportunidades
sociais, garantidas pela transparência e segurança protetora. Esses direitos, oportunidades e
processos instrumentais possuem fortes encadeamentos entre si, que podem se dar em
diferentes direções. O processo de desenvolvimento é crucialmente influenciada por essas
interrelações.
As liberdades políticas (na forma de liberdade de expressão e eleições livres)
ajudam a promover a segurança econômica. Oportunidades sociais (na forma de serviços
de educação e saúde) facilitam a participação econômica. Facilidades econômicas (na forma
de oportunidades de participação no comércio e na produção) podem ajudar a gerar abund
ância individual além de recursos públicos para os serviços sociais. Liberdades de diferentes
tipos podem fortalecer uma as outras.
As oportunidades sociais facilitam as oportunidades econômicas, que em outros
termos representa a criação de oportunidade para ingresso da pessoa no “jogo econômico”.
Os fins e os meios do desenvolvimento exigem que a perspectiva da liberdade seja
colocada no centro do palco. Nessa perspectiva as pessoas têm de ser vistas como
ativamente envolvidas – dada a oportunidade – na conformação de seu próprio destino e n
ão apenas como beneficiárias passivas dos frutos de engenhosos papeis de
desenvolvimento, O estado e a sociedade têm papéis amplos no fortalecimento e na prote
ção das capacidades humanas. A perspectiva de que a liberdade é central em relação aos
fins e aos meios do desenvolvimento merece toda a nossa atenção.
~ 130 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Segundo Sen (2004), o “bem estar” está diretamente relacionado com o duplo
liberdade-capacidade , por permitir a “escolha de uma vida que se tem razão para valorizar”
. Para explicar essa perspectiva busca o termo “funcionamentos” que conforme ele mesmo
estabelece, possui procedências Aristotélicas, o conceituando como “as várias coisas que
uma pessoa pode considerar valioso fazer ou ter”.
Neste sentido, a capacidade (capability) consistirá nas combinações alternativas de
funcionamentos cuja realização é factível para ela. Portanto a capacidade é um tipo de
liberdade: a liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos
(ou menos formalmente expresso, a liberdade para ter estilos de vida diversos).
Comentando sobre a capacidade humana assegura Sen (2004, p.96) que a
governamentalidade neoliberal pode assegurar qualidade de vida:
Por exemplo, uma pessoa abastada que faz jejum pode ter a mesma realização
de funcionamento quanto a comer ou nutrir-se que uma pessoa destituída da for
ça a passar fome extrema mas a primeira possui o ‘ conjunto capacitário’
diferente do da segunda (a primeira pode escolher comer bem e ser bem nutrida
de um modo impossível para a segunda).
[...] o capital humano tende a concentrar-se na atuação dos seres humanos para
aumentar as possibilidades de produção [...] a perspectiva da capacidade humana
concentra-se no potencial –a liberdade substantiva –das pessoas para levar a vida
que ela tem razãopara valorizar e para melhorar as escolhas reais que elas
possuem [...] essas duas perspectivas nã o podem deixar de estar relacionados,
uma vez que ambas se ocupam do papel dos seres humanos, e em particular, dos
potenciais efetivos [...] mas o aferidor usado na avaliação concentra-se em realiza
ções diferentes (SEN, 2004, p. 332).
~ 131 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 132 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 133 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 134 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 135 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 136 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
126O autor observa que tais elementos, acima apontados são encontrados na obra de C ARBONELL, Miguel.
El neoconstitucionalismo en sulaberinto, in: Teoria del neoconstitucionalismo. Madrid: Trotta, 2007. pp.9 a 12;
SANCHÍS PRIETO, Luis.Justiciaconstitucional y derechosfundamentales. Madrid: Trotta, 2000. p. 132;
FERRAJOLI, Luigi, in: Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003. p. 15 e ss; MOREIRA,Eduardo Ribeiro.
Neoconstitucionalismo – ainvasão da Constituição. São Paulo: Método, 2008, especialmente pp. 19, 22, 35. 36-39,
48,50, 54, 56, 68 e 96.
~ 137 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
La naturaleza o Pachamama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete
integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura,
funciones y procesos evolutivos. // Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podráexigir
a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza. Para aplicar e
interpretar estos derechos se observarán los principios establecidos en la Constitución , en lo que
proceda. // El Estado incentivaráa las personas naturales y jurídicas, y a los colectivos, para
que protejan la naturaleza, y promoveráel respeto a todos los elementos que forman un
ecosistema.
Las personas tienen derecho a un medio ambiente saludable, protegido y equilibrado. El ejercicio
de este derecho debe permitir a los individuos y colectividades de las presentes y futuras
generaciones, además de otros seres vivos, desarrollarse de manera normal y permanente.
El artículo 34º complementa el anterior disponiendo: Cualquier persona, a título individual o en
representación de una colectividad, estáfacultada para ejercer las acciones legales en defensa del
medio ambiente, sin perjuicio de la obligación de las instituciones públicas de actuar de oficio
frente a los atentados contra el medio ambiente (Zaffaroni, 2012, p. 52 ).
CONCLUSÃO
~ 138 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS
~ 139 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
PASSETTI, Edson. Política e Massa: o impasse liberal por Ludwig Von Mises. São
Paulo, SEN, Amartya Kumar. “Desenvolvimento como liberdade” .tradução: Laura
Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras, 20.04.1994.
Sites consultados
~ 140 ~
OS DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA:
MAPEAMENTO DE TESES (2015-2016)
1. PONTUAÇÕES INICIAIS
Todo tipo de construto se dá sob algum tipo de pressão. Ora, pressão pode ser
compreendida como motivação, portanto, todo tipo de motivação exerce alguma pressão.
Nesse sentido, podemos afirmar que os direitos humanos surgem na ordem mundial sob
uma ampla variedade de pressões: políticas, econômicas, jurídicas, morais, etc., e graças a
esse espectro de pressões a humanidade passa a se impor como um valor e um valor a ser
protegido. O caráter do “humano”, aquele dotado de humanidade passa a ser avaliado sob
diferentes prismas, todos buscando responder a seguinte questão: o que é ser humano?
Que conjunto de atribuições, faculdades, características fazem de uma comunidade
qualquer de seres, ser considerada humanidade? Afinal, quem é ser humano? O que é? O
que faz de? Quem é? Esse conjunto de questionamentos leva o homem a uma
autoavaliação, obviamente, motivada por pressões. As respostas dessa autoavaliação, desse
olhar para si mesmo por meio de todos os demais, dentro de um contexto sócio-político-
econômico que permitia, ou melhor, exigia esse processo de olhar-se por intermédio do
espelho, fez eclodir o que hoje entendemos por Direitos Humanos.
Segundo Lynn Hunt (2009) os direitos humanos são inventados sob a luz, ou
melhor, sob a pressão para se responder à questão, afinal quem é humano? Em 1776, por
exemplo, a célebre Declaração de Independência dos Estados Unidos da América editada
por Thomas Jefferson traz a seguinte menção: “Consideramos estas verdades como
autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de
(PUC/SP).henrick_maia@hotmail.com.
*** Doutoranda bolsista do PPGDL- Desenvolvimento Local – Universidade Católica Dom Bosco (UCDB-
MS). thay_zardo@hotmail.com.
~ 141 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade”
(HUNT, 2009).
A autora acima citada nos chama a atenção para o fato de que apesar do
reconhecimento da igualdade entre os seres humanos na declaração de independência
americana, ainda se viu, sob a égide dessa mesma declaração, a escravidão, a guerra, a
segregação racial, a criminalização da homossexualidade, e muitos outros episódios que em
tese violariam este importante documento.
Talvez Hunt (2009) esteja querendo nos fazer ver que a resposta à questão “afinal
quem é humano?” varia, de acordo com a história, de acordo com os interesses, de acordo
com a rede de poderes estabelecida, com a expansão do capitalismo, em suma, ela varia...
Essa “volatização” do estado de humanidade é importante, pois dela decorre aberturas que
permitiram, por exemplo, as maiores atrocidades já cometidas entre seres humanos, as
guerras, a escravidão, a exploração em demasia de recursos, a predação de um homem em
relação a outro homem: e veja, não estamos falando de um estado de natureza hobbesiano,
falamos, pois sim, de um período histórico em que já se havia declarado que todos os
homens seriam iguais.
Do mesmo modo em 1789, ainda sob a lição de Hunt (2009) temos a célebre
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão gestada nos prólogos da Revolução
Francesa, e, trazida ao mundo por aqueles revolucionários burgueses, verdadeiros
parteiros que teriam cortado o cordão umbilical que ligava a humanidade à chamada velha
ordem. Nasce com a Revolução um novo mundo, povoado por novos homens: homens
iguais. Ora, mais uma vez Hunt (2009), nos permite o questionamento: como um país que
se refunda sob os dogmas da humanidade e da cidadania se permite a vivenciar e
protagonizar tão nefastos episódios como aqueles que marcam a história francesa pós-
revolução? Colonialismo, guerras, golpes de estado, massacres étnicos sob o apoio explícito
ou implícito do governo francês, enfim, como algo tão universal como a humanidade pode
ao mesmo tempo ser tão subjetivo? Tão volátil? Tão instável?
Talvez as palavras de Comparato( 2003), possam ajudar: “a afirmação de
autênticos direitos humanos é incompatível com uma concepção positivista do direito. O
positivismo contenta-se com a validade formal das normas jurídicas, quando todo o
problema situa-se numa esfera mais profunda, correspondente ao valor ético do direito.”
Assim o que podemos deduzir é que um sistema de valores, éticos e morais, subsistem ao
sistema jurídico. O reconhecimento formal da igualdade e da universalidade de alguns
direitos a todos os seres dotados da qualidade de “humano” não resiste às conformações
~ 142 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 143 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
produções a partir de deduções propiciadas pela análise de resumo de teses e das suas
palavras-chave, na tentativa de “trazer à tona” elementos tanto quantitativos quanto
qualitativos que de alguma forma ressonem nas problematizações postas anteriormente.
Neste contexto, os trabalhados acadêmicos pesquisados e estudados por meio do
chamado “estado da arte” ou “estado do conhecimento”, visa reconhecer a produção
científica da área dos Direitos Humanos com relação aos avanços temáticos, permitindo
assim, a identificação das problemáticas e a fronteiras estabelecidas com relação às
interfaces temáticas encontradas na escolha das respectivas teses. Este tipo de pesquisa
possibilita aos pesquisadores analisar/comparar pesquisas que tratam de temas
semelhantes, perceber a evolução das teorias apresentadas, observar as tendências
metodológicas utilizadas e principalmente o aprofundamento de conhecimentos sobre os
aportes teóricos que os respectivos autores se subsidiaram para a escrita de suas teses.
A partir disso é possível discutir e apontar indicações para a realização de estudos
dessa natureza a partir do mapeamento de teses defendidas no ano de 2014-2016 nas
universidades brasileiras e pesquisadas no Portal de teses e dissertações da CAPES, tendo
por descritor principal as palavras“direitos humanos + Brasil”.Portanto, este capítulo busca
inicialmente trazer breves considerações metodológicas para, posteriormente, fazer uma
pequena análise do “estado da arte” das produções científicas voltadas aos direitos
humanos.
~ 144 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
conhecer o que vem sendo produzido a este respeito e demonstrar o que ainda pode ser
elaborado. Assim, procuramos compreender “de que formas e em que condições têm sido
produzidas certas teses de doutorado, publicações em periódicos e comunicações em anais
de congressos e de seminários” (FERREIRA, 2002, p. 258).
É importante enfatizar que a expansão da pesquisa no Brasil aponta para um
importante crescimento quantitativo que suscita a realização de levantamentos, estudos,
mapeamentos, análises, balanços, etc. na busca de evidenciar os temas e os assuntos
enfatizados, focalizados; os métodos, procedimentos e análises; os aportes teóricos,
metodológicos, resultados, enfim, tudo que possa ser replicado ou evitado e as lacunas, por
óbvio, que podem reavivar a produção de pesquisas novas (THOMAS, 2007, p. 23)
Reitera este pensamento Pichet (2007, p. 14) ao afirmar que este tipo de pesquisa
é bastante “instigante à medida que suas característicase procedimentos fazem do
pesquisador um investigador de vestígios de determinadotema, sob um olhar detalhista,
focado e acima de tudo cercado de dados quecompõem o cenário de sua caminhada”.
“Estado da arte” ou “estado de conhecimento” é um tipo de pesquisa que possui um
caráter bibliográfico e desafiador em razão da possibilidade da realização de um
mapeamento que enseja discussão sobre determinada produção cientifica acadêmica em
diferentes campos de conhecimento.
Várias denominações e estudos, sobre o levantamento voltado a revisões de
literatura ou produção cientifica, têm surgido, uma delas são as pesquisas de Cervo
eBervian (2002) denominadas de “estudo de revisão”. Segundo estes autores, a primeira
etapa de um estudo do estilo envolve o levantamento de todas as referências encontradas
em diferentes formatos sobre um referido tema: livros, sites, revistas, vídeos, que trazem a
possibilidade de um primeiro contato com o objeto investigado. Vosderau e Romanowski
(2014), por seu turno, elucidam que o material coletado pelo levantamento bibliográfico é
organizado por procedência seja ele de fontes científicas: artigos, teses, dissertações ou
fontes de divulgação de ideias (revistas, vídeos, sites) e permitem a construção de uma
contextualização para o problema assim como a análise das possibilidades presentes na
literatura para a concepção do referencial teórico de novas pesquisas.
É importante enfatizar que há nestas pesquisas dois eixos estruturantes que
sustentam o corpus teórico: o eixo quantitativo e o eixo qualitativo. Ao se buscar o
crescimento ou decrescimento numérico das produções, de acordo com Slongo (2004),
observa-se sua variação ao longo de um determinado período sem se considerar as suas
~ 145 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 146 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 147 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 148 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
para se ter um espectro global dos termos-chaves utilizados nas teses analisadas. Com esse
método obtivemos a seguinte nuvem:
Dos dois programas de doutorado encontrados na varredura inicial já é possível
identificar uma diagramação, ainda que superficial, das áreas do saber em que eles se
inserem e como elas se correlacionam entre si. Apesar de serem as teses produzidasnosso
“objeto” de análise, essa primeira diagramação servirá, pelo menos, para uma comparação
aposteriori e uma análise da influência nas produções dos respectivos programas. Em um
primeiro momento a partir das palavras-chave dos trabalhos acadêmicos buscamos elaborar
uma “nuvem” de palavras que exemplifica o volume e a reiteração do uso de um mesmo
vocábulo. Assim é possível visualizar e analisar a que buscam se dedicar os doutorandos em
seus trabalhos finais. A partir das palavras-chaves das teses provenientes da Universidade
de São Paulo, com a utilização da ferramenta wordcloud obtivemos o seguinte extrato das
recorrências entre as palavras:
Figura 2: Nuvem composta a partir das palavras-chave das teses oriundas da Universidade de São
Paulo.
~ 149 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Figura 3: Nuvem composta a partir das palavras-chave das teses oriundas da Universidade Federal do
Pará.
i)Teses que abordam os direitos humanos na esfera internacional: a partir delas podemos
deduzir que o conjunto de produções na área de direitos humanos oriundos da USP
tem a princípio uma preocupação com os direitos humanos na seara internacional,
talvez inclusive, se debruçando sobre uma perspectiva teórica desses direitos e de sua
gênese. É possível afirmar ainda que tais teses se dedicam ao estudo e à sugestão de
Políticas Públicas voltadas para a questão dos direitos humanos em âmbito
internacional, especialmente, no que diz respeito à migração/imigração, refúgio,
~ 150 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 151 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
iv) Direitos humanos e populações vulneráveis: em outra linha seguem as teses que abordam
a questão dos direitos humanos e populações em situação de vulnerabilidades. Nesse
espectro, as teses advindas da Universidade de São Paulo se apoderam da cartilha dos
direitos humanos, fundamentais, individuais e transindividuais e se debruçam sobre
questões que problematizam o acesso a tais direitos por determinada população. São
populações que historicamente sofrem com violação de direitos, com a imperfeita
distribuição de renda e de oportunidades, com a marginalização, a desigualdade social
e o preconceito. Estamos falando de um recorte de classe, de gênero e de raça
predominantemente, mas não somente: se enquadram nessa discussão recentemente
principalmente os refugiados, que dado o dinamismo político e econômico
internacional contemporâneo emergem como uma categoria que denota extrema
atenção por parte do mundo acadêmico. São as expressões mais presentes nessas
teses: “controle”, “política”, “negra”, “racismo”, “refugiados”, “migratória”,
“migrações”, “condição”, etc.
Agora passemos a analisar a nuvem gerada a partir das palavras-chave das teses
oriundas da Universidade Federal do Pará. Aqui temos um espectro diferente de palavras e
bastante amplo, embora o volume de teses seja bem menor quando comparado com a da
Universidade de São Paulo, o que sugere que as temáticas abordadas são mais abertas e
variadas que no bloco oriundo da USP. As palavras são, com exceção das grandes
“direitos”, “direito” e “humanos”, mais ou menos do mesmo tamanho, o que significa que
foram citadas em quantidades semelhantes ao longo dos resumos.
Temos na nuvem das teses da UFPA uma preocupação em dois grandes eixos dos
direitos humanos, que vão ao encontro de alguns eixos das teses provenientes da USP. São
eles: estudos voltados a populações em situação de vulnerabilidade e estudos voltados à
questão dos direitos humanos e desenvolvimento (muito provavelmente pela localização da
~ 152 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
instituição em plena Amazônia). Ademais existe ainda uma terceira via forte nas teses da
UFPA, que realiza análises teóricas e filosóficas acerca dos direitos humanos. Observe-se:
Na convergência com as teses da USP, que se debruçam sobre a questão das
populações em situação de vulnerabilidade, existe nas teses da UFPA um reforço da
condição dessas populações de dificuldade de ver respeitados os seus direitos humanos.
São teses que abordam os direitos humanos a partir das questões de gênero, de raça e
também, tal como na USP emerge a categoria dos refugiados. São expressões presentes nas
nuvens que possibilitam tais conclusões as seguintes: “travestis”, “igualdade”, “pobreza”,
“sexual”, “igualitário”, “tráfico”, “transmulheres”, etc.
O segundo eixo de palavras de teses da UFPA que converge com um eixo das
teses da USP é a que aborda de alguma forma a questão do “desenvolvimento”. Assim,
tem-se na UFPA uma vertente forte de pesquisa estampada nas teses que busca assegurar à
região amazônica o desenvolvimento sustentável. São as palavras na nuvem que o
possibilitam: “ambiental”, “agroambiental”, “sustentável”, “sustentabilidade”,
“propriedade”, “rural”, “exploração”, “segurança”, etc.
O terceiro eixo das teses da UFPA converge para a área de Direitos humanos e
políticas públicas voltadas para a Amazônia. Aqui é visível que doutorandos desta instituição
também se voltaram para a questão teórica e conceitual dos direitos humanos a partir de
especificidades e realidade amazônicas. Então temos uma preocupação com a questão
política, com o liberalismo e a propriedade privada, a pobreza rural, direitos sociais no
campo e na floresta, além de trabalhos voltados para uma teoria dos direitos humanos a
partir de recortes específicos. São as palavras "integridade", “ministério público”,
“instituídos”, “interpretação”, “constitucionalidade”, “princípio”, “diálogo”, “controle”,
“distributiva”, “propriedade”, dentre outras que caracterizam os resumos das teses desse
eixo.
Nesse item, faremos um mapeamento geral das teses a partir dos eixos
identificados a partir das palavras-chave presentes nos resumos. É importante frisar que
algumas teses poderão aparecer em mais de um eixo dado que sua temática de análise é
possível ser distribuída desta forma. Assim, temos o gráfico abaixo que evidencia a
distribuição das teses por eixo temático. Absolutamente todas as teses foram enquadradas
~ 153 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
em algum dos 5 eixos, dai o fato do sexto eixo, “outros”, se encontrar vazio e sem
referência no gráfico abaixo.
I - Direitos
TESES humanos na
esfera
internacional
II - Direitos
Humanos, políti
ca e ideologia.
O Eixo I que se forma a partir das teses que traçam uma análise dos direitos
humanos na esfera internacional e/ou que versam sobre os mesmos a partir de análises
mais teóricas, com um pano de fundo de jus-filosofia é um eixo que congrega teses tanto
dos anos de 2015 e 2016 quanto dos programas de pós-graduação strictu sensu albergados
por ambas as universidades filtradas, Universidade de São Paulo e Universidade Federal do
Pará, na seguinte proporção: ano de 2016:
Total de 11 (onze) teses das quais, sendo que 5 (cinco) teses, todas oriundas da
USP, foram defendidas no ano de 2016 e 7 (sete) teses defendidas no ano de 2015, 5
(cinco) na Universidade de São Paulo e 2 (duas) na Universidade Federal do Pará. Eis os
resultados:
~ 154 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O Eixo II é formado por aquelas teses que abordam os direitos humanos dentro
de uma concepção ou recorte que envolve as discussões políticas e ideológicas que
caracterizam um debate que é histórico:função social da propriedade, os direitos humanos
no seio do sistema capitalista moderno, liberal e/ou neoliberal e seus reflexos em
determinados contextos políticos, sociais e econômicos.Das teses analisadas que foram
catalogadas neste eixo novamente temos registros advindos dos diferentes anos analisados
e de programas de pós-graduação das diferentes instituições de ensino superior.
Contabiliza-se um total de 6 (seis) teses neste eixo, das quais 5 (cinco) provém de
programas da Universidade de São Paulo e 1 (uma) da Universidade Federal do Pará. Veja-
se:
~ 155 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O Eixo III foi composto por aquelas teses que abordam a questão do
desenvolvimento, do direito ao desenvolvimento, do desenvolvimento enquanto direito
humano, da sustentabilidade e de sua importância para a ordem mundial no século XXI.
Assim temos um número razoável de produções nesses sentidos, novamente distribuídas
ao longo dos dois anos analisados e das duas diferentes instituições analisadas. Como já
dito, em trabalho anterior, verificamos o agigantamento do volume de pesquisas voltadas
para a questão sustentável e/ou desenvolvimentista no último decênio em todas as áreas do
conhecimento. Tal fato nos levou a uma reflexão própria que será trazida no item
“considerações finais”.
Ao todo foram identificadas 4 (quatro) teses que se debruçam sobre essas
temáticas, sendo que destas 2 (duas) oriundas da Universidade de São Paulo, ambas do ano
de 2016 e 2 (duas) oriundas da Universidade Federal do Pará, ambas de 2015. Eis os dados:
~ 156 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O Eixo IV contém as teses que versam sobre “temáticas clássicas” dos direitos
humanos, como, por exemplo, o acesso de determinadas populações historicamente
marginalizadas aos direitos básicos, o racismo, questões de diversidade, de gênero, étnico-
racial, de nacionalidade, etc. No entanto, é gritante a importância dada à questão dos
refugiados, o que fomentou alguns comentários que serão trazidos no item “considerações
finais”.
O total de teses que compõem este item é de 9 (nove), sendo que, há uma ampla
distribuição ao longo dos anos e das instituições de análise: no ano de 2016 houve defesa
de 4 (quatro) teses na Universidade de São Paulo sobre as temáticas do eixo e na
Universidade Federal do Pará no mesmo ano foi defendida 1 (uma) tese. No ano de 2015
as defesas foram de 2 (duas) para cada instituição. Observe-se:
~ 157 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 158 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
6. REFLEXÕES FINAIS
~ 159 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 160 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 161 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 162 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS
CERVO, A. L.; BERVIAN, P. A. Metodologia científica. 5. ed. São Paulo: Prentice Hall,
2002.
SILVA, F. J. C.; CARVALHO, M. E. P. O estado da arte das pesquisas educacionais sobre gênero e
Educação infantil: uma introdução. Anais do 18º REDOR – UFRPE. Disponível em:
~ 163 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
http://www.ufpb.br/evento/lti/ocs/index.php/18redor/18redor/paper/viewFile/2192/6
48 Acesso em: 01 ago. 2017.
~ 164 ~
O DIREITO DE ASILO ENQUANTO INTEGRANTE DO ROL DE
DIREITOS HUMANOS E O REFÚGIO COMO DIREITO
INTRODUÇÃO
~ 165 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O direito de asilo pode ser entendido como o direito de toda pessoa de estar livre
de qualquer forma de perseguição (PIOVESAN, 2015, p. 249); “é uma forma de extensão
da proteção que o Estado confere aos seus nacionais para pessoas de outras nacionalidades,
que (...), precisam buscar fora do seu país de origem a proteção que ali não está sendo
assegurada” (MEDEIROS, 2015, p. 16).
O asilo tem sua gênese no altruísmo (JUBILUT, 2007, p. 35) e foi adotado,
primeiramente, na Antiguidade clássica, entre os gregos e os egípcios, que se limitavam a
concedê-lo por questões religiosas (Ibid, p. 37). Com o surgimento do Império Romano, as
hipóteses de concessão do asilo foram ampliadas, assumindo o mesmo caráter jurídico e
passando a ser admitido como proteção à liberdade individual (Ibid, p. 37). Essa tendência
seguiu delineando o asilo, com a ressalva do período da Idade Média, em que as motivações
religiosas tornaram a prevalecer em sua aplicação (Ibid, p. 37).
Séculos depois, Hugo Grotius desenvolveu a teoria do asilo (Ibid, p. 38), segundo
a qual apenas poderiam gozar do asilo indivíduos perseguidos por motivos políticos ou
religiosos, e aqueles que cometessem outros delitos não poderiam invocá-lo (MEDEIROS,
2015, p. 20). Nesse sentido tem-se que
127Alguns apontariam ainda a existência de direitos de terceira dimensão, como por exemplo a garantia de
ordens internacionais e sociais adequadas previstas no artigo 28.
~ 166 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
A despeito disso, até o final do século XVII, o asilo era concedido a criminosos
comuns que podiam se utilizar do instituto para fugas dos Estados de origem (Ibid, p. 20).
A fim de se corrigir tal desvio, as propostas de Hugo Grotius foram lentamente aceitas até
que não mais se admitisse o asilo por crimes comuns e se entendesse pela devolução dos
fugitivos aos Estados em que cometeram os delitos (Ibid, p. 20).
Somente em 1793, com a edição da Constituição da França, fruto da Revolução
de 1789, o asilo restou contemplado em uma norma constitucional (FISCHEL DE
ANDRADE, 1996, p. 16). Tal movimento, calcado em ideais liberais, em muito contribuiu
para a consolidação do asilo enquanto um direito (JUBILUT, 2007, p. 38).
A consagração universal desse direito ocorreu em 1948 com a adoção da DUDH,
proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 10 de dezembro128.
Composta por 30 artigos, e como mencionado, matriz do surgimento do regime
internacional de proteção da pessoa humana, e parâmetro de aplicação e proteção dos
direitos humanos, a DUDH contemplou, especificamente no artigo XIV, o direito de asilo:
128 Importante destacar que, em momento anterior, documentos regionais, especialmente na América Latina,
já traziam em seu teor normas sobre o direito de asilo, tais quais as Convenções sobre Asilo (1928),
Convenção sobre Asilo Político (1933) e Convenção sobre Asilo Político (1939).
129 Os textos das versões da DUDH mencionados se baseiam na tradução livre dos artigos citados em
GLENDON, M. A. A world made new – Eleanor Roosevelt and the Universal Declaration of Human Rights. New York:
Random House, 2001.
~ 167 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Contudo, na versão final da DUDH, no que é hoje o artigo XVI de seu texto, tal
abordagem foi alterada, resultando na ampliação da proteção uma vez que: “[n]o mínimo, o
artigo 14 coloca o direito de buscar e de obter asilo dentro do paradigma dos direitos
humanos e representa aceitação unânime pelos Estados de sua importância fundamental”130
(EDWARDS, 2005, p. 298).
Com o advento da DUDH, outros diplomas internacionais, de abrangência
universal, trataram da regulamentação e implementação do direito de asilo, como a
Declaração sobre Asilo Territorial (1967) 131 e a Declaração e Programa de Ação de Viena
130 No original: “At a minimum, Article 14 places the right to seek and to enjoy asylum within the human rights paradigm
and represents unanimous acceptance by States of its fundamental importance.” (EDWARDS, 2005, p. 298)(tradução livre
das autoras)
131 Disponível em:
~ 168 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Refugiados-Asilos-Nacionalidades-e-
Ap%C3%A1tridas/declaracao-sobre-asilo-territorial.html>. Acesso em: 15/11/2017.
132 Cf. “Art. 23 - A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma que todos, sem distinção de
qualquer espécie, têm o direito de procurar e obter, noutros países, asilo contra as perseguições de que sejam
alvo, bem como o direito de regressar ao seu próprio país. A este respeito, realça a importância da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, da Convenção de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados e seu
Protocolo de 1967, e de instrumentos de âmbito regional. Exprime o seu reconhecimento aos Estados que
continuam a aceitar e a acolher um elevado número de refugiados nos seus territórios, e ao Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados pela dedicação demonstrada no cumprimento da sua missão.
Expressa, igualmente, o seu apreço à Agência de Obras Públicas e Assistência aos Refugiados Palestinos no
Próximo Oriente. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reconhece que as violações graves dos
Direitos Humanos, nomeadamente em casos de conflito armado, se encontram entre os múltiplos e
complexos fatores que conduzem à deslocação de pessoas. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos
reconhece que, face às complexidades da crise global de refugiados e conforme à Carta das Nações Unidas,
aos relevantes instrumentos internacionais e à solidariedade internacional, e num espírito de partilha de
responsabilidades, se torna necessária uma abordagem global por parte da comunidade internacional, em
coordenação e cooperação com os países afetados e com as organizações relevantes, tendo presente o
mandato do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Tal deverá incluir o desenvolvimento
de estratégias para abordar as causas remotas e os efeitos das movimentações de refugiados e outras pessoas
deslocadas, o reforço de mecanismos de alerta e resposta em caso de emergência, a disponibilização de
proteção e assistência efetivas, tendo presentes as necessidades especiais das mulheres e crianças, bem como a
obtenção de soluções duradouras, primeiramente através da solução preferível do repatriamento voluntário
dignificante e seguro, e incluindo soluções tais como as adotadas pelas conferências internacionais sobre
refugiados. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos sublinha as responsabilidades dos Estados,
particularmente as que se relacionam com os países de origem. À luz da abordagem global, a Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos realça a importância de se dar especial atenção, inclusivamente através de
organizações intergovernamentais e humanitárias, e de se encontrarem soluções duradouras para as questões
relacionadas com pessoas internamente deslocadas, incluindo o seu regresso voluntário e seguro e a sua
reabilitação. Em conformidade com a Carta das Nações Unidas e os princípios de Direito Humanitário, a
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos realça ainda a importância e a necessidade da assistência
humanitária às vítimas de todas as catástrofes, quer naturais quer causadas pelo ser humano”.
133 Cf. “Art. 27 - Toda pessoa tem o direito de procurar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de
perseguição que não seja motivada por delitos de direito Comum, e de acordo com a legislação de cada país e
com os convênios Internacionais”.
134 Cf. “Art. 22 (7) - Toda pessoa tem o direito de buscar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de
perseguição por delitos políticos ou comuns conexos com delitos políticos e de acordo com a legislação de
cada Estado e com os convênios internacionais”.
~ 169 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Quando pessoas têm que abandonar seus lares para escapar de uma perseguição,
toda uma série de direitos humanos é violada, inclusive o direito à vida, liberdade e
segurança pessoal, o direito de não ser submetido à tortura, o direito à privacidade e
à vida familiar, o direito à liberdade de movimento e residência e o direito de não
ser submetido a exílio arbitrário (PIOVESAN, 2015, p. 249).
135 É interessante notar que o non-refoulement encontra corolários em outros regimes de proteção de direitos
humanos, como, por exemplo, no de proteção contra a tortura (artigo 3º da Convenção contra a Tortura e
outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes).
136 No original: “In contrast to the right to seek asylum, the right to enjoy asylum suggests at a minimum a right ‘to benefit
from’ asylum. While a State is not obligated to grant asylum, an individual, once admitted to the territory, is entitled ‘to enjoy’ it.
According to a UN report, ‘asylum’ consists of several elements: to admit a person to the territory of a State, to allow the person
to remain there, to refuse to expel, to refuse to extradite and not to prosecute, punish or otherwise restrict the person’s liberty”.
(EDWARDS, 2005, p. 302-303)
~ 170 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O direito de asilo é efetivado por meio de dois institutos: o asilo político (que, por
sua vez, se subdivide em asilo diplomático e territorial) e o refúgio (JUBILUT, 2007, p. 36).
É possível afirmar que o direito de asilo seria o gênero, enquanto o asilo político e o
refúgio, as espécies (Ibid, p. 50; MEDEIROS, 2015, p. 32).
O refúgio é objeto de um regime internacional universal desde a década de 1950 e
é atualmente entendido como um direito em si; enquanto o asilo político é uma decisão
estatal soberana e discricionária. Cada Estado opta em adotar uma ou outra, ou ainda as
duas, modalidade do direito de asilo. Também opta sobre como o consagrará em seu
ordenamento interno; contudo, uma vez que se obriga com uma prática protetiva, ainda
que por meio do asilo político, deve zelar por sua adequada implementação.
O asilo político e o refúgio apresentam algumas similaridades. Ambos podem ser
entendidos como instrumentos de proteção humanitária internacional tendo essa natureza
em comum (JUBILUT, 2007; MEDEIROS, 2015). Ainda, decorrem da necessidade de
proteção de indivíduos que não possam mais se manter em seu Estado de origem e
precisem se deslocar a outro local. (JUBILUT, 2007; MEDEIROS, 2015, p. 54 e 110).
Além disso, os dois institutos se fundam na cooperação internacional e na solidariedade, e
implicam, na prática, em limitações às possibilidades de saída compulsória do indivíduo do
Estado em que se encontrem (JUBILUT, 2007, p. 49).
Contudo, tais institutos possuem características específicas e não se confundem,
sendo relevante detalhar suas peculiaridades.
~ 171 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Muitas vezes, a pessoa que está sendo alvo de perseguição por delitos de
natureza política, e precisa recorrer à proteção de outro Estado, ainda se
encontra no local onde a perseguição está sendo realizada, carecendo, assim, de
um lugar onde possa ficar protegida dessas ações até que ocorra a transferência
para o local onde ela gozará do asilo concedido. (MEDEIROS, 2015, p. 35)
Mais do que isso, há quem entenda que o asilo diplomático não implica,
obrigatoriamente, na concessão de asilo territorial, tendo em vista que um Estado pode
concedê-lo apenas para proteção de um indivíduo que careça de segurança emergencial e
negar a entrada ou estada em seu território (BARRETO, s/d; MEDEIROS, 2015, p. 35).
Todavia, esta concepção encontra resistência, porquanto não é coerente conceder
o asilo diplomático e negar o territorial; entendendo-se aquele como etapa de “preparação”
para esse. Nesse sentido, no caso da concessão de asilo diplomático pelo Brasil ao senador
boliviano Roger Pinto Molina, foi apontado que “tendo o Brasil reconhecido a sua
condição de perseguido por motivos de delitos políticos, seria juridicamente inconsistente
venire contra factum proprium e não lhe conceder asilo territorial” (LAFER, 2013).
Merece destaque o fato de que o asilo político tem tido maior aplicabilidade no
continente latino-americano137, notadamente em razão da instabilidade política observada
nos Estados que o compõe e nas perseguições que, por conseguinte, acontecem a nacionais
(MEDEIROS, 2015, p. 34). São diversos os diplomas adotados na região sobre o tema,
como a Convenção sobre Asilo (1928), Convenção sobre Asilo Político (1933), Declaração
137 Contudo é relevante mencionar casos que ganharam destaque internacional e que não se limitam
exclusivamente à América Latina como o de Edward Snowden (envolvendo um nacional dos Estados Unidos
que obteve proteção internacional na Rússia) e o de Julian Assange (envolvendo um nacional da Austrália,
que obteve proteção internacional contra um pedido de extradição da Suécia na Embaixada do Equador no
Reino Unido).
~ 172 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
dos Direitos e Deveres do Homem sobre asilo territorial (1948), Convenção sobre Asilo
Político (1939) e Convenção sobre Asilo Diplomático (1954).
Tais documentos positivaram o direito de asilo, tanto territorial quanto
diplomático, no contexto latino-americano e, dentre outras previsões, reconhecem que o
asilo pode ser concedido independente da nacionalidade do solicitante e da existência de
reciprocidade138, inadmitem a devolução do asilado ao Estado do qual se retirou, pelo
princípio do non-refoulement139 e versam sobre a garantia de salvo-conduto140 pelo Estado
territorial141.
O único caso julgado pela Corte Internacional de Justiça sobre o tema é
decorrente da América Latina. Trata-se do caso relativo ao asilo do peruano Victor Raúl
Haya de la Torre, de 1950142, no que pode ser entendido como o reconhecimento inclusive
de um “direito regional de asilo”.
Com efeito, Haya de la Torre foi chefe da Aliança Popular Revolucionária
Americana, partido político peruano e solicitou asilo ao embaixador colombiano em Lima,
na data de 3 de janeiro de 1949. Ele era acusado de instigar uma rebelião militar, isto é,
praticar um crime comum, fato que, se comprovado, impediria o gozo do direito de asilo
(JUBILUT, 2007, p. 98). Nesse sentido, o Peru se absteve de emitir salvo-conduto
autorizando a saída de Haya de la Torre de seu território, e cercou a embaixada colombiana
a fim de efetuar a prisão do mesmo. Não tendo havido consenso entre os Estados
envolvidos sobre como solucionar a questão, a problemática foi levada à CIJ. A CIJ (i)
julgou que a Colômbia havia interpretado erroneamente a Convenção sobre asilo (de 1928)
na qual se baseara para conceder a proteção, (ii) entendeu que, não se tratava de crime
138 Cf., por exemplo, “Art. 1 - El asilo puede concederse sin distinción de nacionalidad y sin perjuicio de los derechos y de las
obligaciones de protección que incumben al Estado al que pertenezcan los asilados. El Estado que acuerde el asilo no contrae por
ese hecho el deber de admitir en su territorio a los asilados, salvo el caso de que estos no fueran recibidos por otros Estados”
(CONVENÇÃO SOBRE ASILO POLÍTICO, 1939) e “Art. 20 - O asilo diplomático não estará sujeito à
reciprocidade. Toda pessoa, seja qual for sua nacionalidade, pode estar sob proteção” (CONVENÇÃO
SOBRE ASILO DIPLOMÁTICO, 1954).
139Cf., por exemplo, “Art. 7 - Una vez salidos del Estado, los asilados no podrán ser desembarcados en punto alguno del
mismo. En el caso de que un exilado volviera a ese país, no podrá acordársele nuevo asilo, subsistiendo la perturbación que
motivó la concesión del mismo” (CONVENÇÃO SOBRE ASILO POLÍTICO, 1939) e “Art. 17 - Efetuada a saída
do asilado, o Estado asilante não é obrigado a conceder-lhe permanência no seu território; mas não o poderá
mandar de volta ao seu país de origem, salvo por vontade expressa do asilado” (CONVENÇÃO SOBRE
ASILO DIPLOMÁTICO, 1954)
140 O salvo-conduto é uma autorização legal que permite a seu portador o livre trânsito em determinados
locais. Em geral, no caso do asilo, trata-se de uma autorização que permite a saída do território do Estado em
que a pessoa se encontra.
141 Cf., por exemplo, “Art. 12 - Concedido o asilo, o Estado asilante pode pedir a saída do asilado para
território estrangeiro, sendo o Estado territorial obrigado a conceder imediatamente, salvo caso de força
maior, as garantias necessárias a que se refere o Artigo V e o correspondente salvo-
conduto” (CONVENÇÃO SOBRE ASILO DIPLOMÁTICO, 1954)
142 Dados sobre o caso pode ser encontrados em: <http://www.icj-cij.org/en/case/7>. Um segundo
~ 173 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
comum permitindo, portanto, a aplicação do direito de asilo, (iii) mas apontou que os
requisitos para a determinação da urgência (e, por conseguinte, para a aplicação da
Convenção de Havana) não foram atendidos o que leva a conclusão de que o Peru não
estaria obrigado a concedê-lo (JUBILUT, 2007, p. 99). Desse modo, o caso não foi
solucionado pela sentença. A CIJ foi criticada por ter proferido decisão contraditória e
inexequível, porquanto deixou de reconhecer a aplicabilidade do asilo na conjuntura latino-
americana (Ibid), e o asilado se manteve na embaixada colombiana até 1954, quando foi
celebrado um acordo em que restou definido que Haya de la Torre seria devolvido aos
peruanos, para cassação da cidadania, mas libertado para asilar-se em outro país, no caso, o
México (JUBILUT, 2007, p. 99). Nesse mesmo ano, foi editada a Convenção sobre Asilo
Diplomático (1954), em Caracas, da qual constou a obrigatoriedade de o Estado territorial
conceder salvo-conduto nas hipóteses de asilo diplomático (MEDEIROS, 2015, p. 36).
Evoluiu-se, assim, com a positivação do direito de asilo, sobretudo na América
Latina. Contudo, o instituto continua tendo sua concessão baseada na discricionariedade
dos Estados, o que diminui a abrangência de proteção que ele pode proporcionar. Isso
resta claro, sobretudo, quando o número de pessoas necessitando de proteção internacional
é significativo, e muitas vezes quando o perfil das mesmas não é de alta importância
política. Nesse sentido, foi necessário estabelecer um outro instituto, fundado em um
direito e não em uma concessão discricionária de proteção a pessoas em situação de
perseguição (especialmente em função dos movimentos das mesmas no início do século
XX (FISCHEL DE ANDRADE, 1996)), criando-se, desta feita, o instituto do refúgio.
3.2. Refúgio
O segundo instituto que efetiva o direito de asilo é o refúgio, que surge no cenário
normativo internacional no século XX, devido ao número expressivo de deslocamentos
além-fronteiras, causados pela Revolução Russa, Primeira e Segunda Guerras Mundiais
(JAEGER, 2001, p. 727). Mas também por conflitos que ocorreram antes e durante a
Primeira Guerra Mundial, como as Guerras Balcânicas (1912-1913), do Cáucaso (1918-
1921) e Greco-Turca (1919-1922) que causaram distúrbios no então Império Russo
ocasionando o deslocamento de aproximadamente 2 milhões de pessoas para vários
Estados da Europa e Ásia menor entre 1918 e 1922 (Ibid); além de eventos trágicos
envolvendo perseguição do Império Turco-Otomano a comunidades étnico-religiosas, a
~ 174 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
143 No original: “[r]esources were becoming exhausted, and there was no central co-ordinating body. In these circumstances the
Joint Committee of the International Committee of the Red Cross and the League of Red Cross Societies called a conference of the
principal organizations concerned on 16 February 1921,at which it was decided to invite the Council to appoint a High
Commissioner to define the status of refugees, to secure their repatriation or their employment outside Russia, and to coordinate
measures for their assistance. The proposal was received by the Council on 21 February 1921,and States Members were sounded
on the feasibility of international co-operation and the forms it should take. On 27 June the Council considered the replies
received, they adopted the original proposal in principle, and instructed the Secretariat to make some preliminary investigation.
The appointment of a High Commissioner was left to the discretion of the President of the Council. Dr. Fridtjof Nansen accepted
the commission on 1 September 1921”. (tradução livre das autoras)
~ 175 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 176 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 177 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
150 Estes padrões podem ser observados, por exemplo, no “Manual de procedimentos e critérios para a
~ 178 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Universal dos Direitos Humanos aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembléia Geral afirmaram o
princípio de que os seres humanos, sem distinção, devem gozar dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais”.
~ 179 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
padrões conceituais da Convenção de 51153, uma vez que se trata de uma obrigação
internacional assumida pelos Estados.
Em sendo o refúgio, portanto, um direito é relevante apontar questões sobre a sua
aplicação no caso concreto na mencionada determinação do status de refugiado. Uma
primeira categoria de problemas nessa determinação diz respeito a questões processuais, já
que a realização da mesma por alguns Estados apresenta violações aos direitos humanos,
no que tange a negativa de um processo imparcial e que considere as peculiaridades dos
refugiados (como a não exigência de documentação que por muitas vezes não está
disponível exatamente em função do deslocamento forçado) e dentro de um prazo
razoável.
Um segundo grupo de problemas se relaciona ao entendimento de que há bem-
fundado temor de perseguição (ou outra causa de reconhecimento do status de refugiado
como a grave e generalizada violação de direitos humanos), e que, portanto, o refúgio se
aplica. Nesse caso, a fim de garantir que a aplicação do refúgio seja objetiva, há métodos
para auxiliar os tomadores de decisão, entre eles, a produção da Informação do Estado de
Origem154 por instituições não ligadas ao processo decisório para a determinação do status
de refugiado e os mencionados padrões mínimos apontados pelo ACNUR. Lembrando
que, em sendo o refúgio um direito, caso as hipóteses legais estejam presentes, ele deve ser
reconhecido, independentemente de questões políticas específicas entre os Estados
envolvidos, até em função do caráter humanitário do refúgio155.
Um último grupo de questões pode surgir da não aplicação adequada do instituto
do refúgio ao caso concreto, seja reconhecendo o status a quem não tem direito ou não o
reconhecendo a quem tem direito. Nessas situações, em sendo o refúgio um direito seria
possível a sua judicialização.
Verifica-se, desta forma, a relevância de se entender o refúgio como direito tanto
no sentido de o direito de asilo possuir uma forma vinculante de implementação quanto a
fim de garantir que sua aplicação se dará conforme os critérios legais e não a partir de
decisões subjetivas dos Estados.
CONCLUSÃO
153 As pessoas que não se enquadrarem não devem ser reconhecidas como refugiados; assim como as
submetidas às cláusulas de exclusão Convenção de 51 que impedem que, ainda que a pessoa se enquadre nos
critérios conceituais de refugiado, seja a mesma reconhecida como tal (art. 1, F).
154 A Informação do Estado de Origem é conhecida como “COI” na sigla em inglês.
155 Cf. 5º parágrafo preambular da Convenção de 51.
~ 180 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Pelo exposto verifica-se que, ainda que o direito de asilo acompanhe a humanidade desde a
Antiguidade, ele segue sendo relevante, sobretudo em face de constantes violações de
direitos humanos, graves crises humanitárias e perseguições políticas infundadas. Nesse
sentido, sua inclusão no rol de direitos humanos da DUDH foi (e é) extremamente
relevante.
Além de permitir que o direito de asilo integre a arquitetura internacional de proteção da
pessoa humana, a consagração do mesmo no artigo XIV da DUDH estabeleceu as bases
para a consolidação de meios de implementação do mesmo, seja por meio de atos
discricionários com o asilo político, seja por meio de um direito universalmente
reconhecido com o refúgio.
A coexistência dessas duas formas de implementação permite assegurar um espaço de
proteção humanitária amplo que conjuga os interesses dos Estados com as necessidades
dos indivíduos, efetivando o espírito da DUDH de garantir proteção jurídica à dignidade
humana por meio de direitos focados nos indivíduos.
Além disso, o direito de asilo e suas formas de implementação também se aproximam da
DUDH no sentido de poderem ser entendidos como formas de reconstrução de direitos
após rupturas graves nas vidas dos seres humanos que necessitam contar com sua proteção.
Assim, ao se celebrar os 70 anos da DUDH, e em face de um cenário internacional que
ainda permite essas graves rupturas, é importante resgatar a inserção do direito de asilo no
rol de direitos humanos, as suas diferentes modalidades de efetivação, e de que uma delas –
o refúgio – é em si também um direito, a fim de se contribuir para a contínua e integral
proteção dos seres humanos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARRETO, L. P. T. F. Das diferenças entre os institutos jurídicos, asilos e refúgio. Disponível em:
<http://www.migrante.org.br/migrante/index.php?option=com_content&view=article&i
d=133:das-diferencas-entre-os-institutos-juridicos-do-asilo-e-do-
refugio&catid=87&Itemid=1203>. Acesso em: 15/11/2017.
BETTS, Alexander. North South Cooperation in the Refugee Regime: The Role of
Linkages. Global Governance, 14, 2, 2007, p. 157-178.
~ 181 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
EDWARDS, Alice. Human Rights, Refugees, and The Right ‘To Enjoy’ Asylum.
International Journal of Refugee Law, 17, 2, 2005, p. 293–330
GLENDON, M. A. A world made new – Eleanor Roosevelt and the Universal Declaration of Human
Rights. New York: Random House, 2001.
HESSBRUEGGE, Jan Arno. European Court of Human Rights Protects Migrants Against “Push
Back” Operations on the High Seas. Abril, 2012. Disponível em: <https://goo.gl/GBFN9e>.
Acesso em: 01/10/2017.
HOBSBAWN, E., Era dos extremos – o breve século XX – 1914 –1991. 2. ed. 18. reimpressão.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 57-58
JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito internacional dos refugiados e sua aplicação no orçamento jurídico
brasileiro. São Paulo: Método, 2007.
JUBILUT, Liliana Lyra; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Direito Internacional Público.
São Paulo: Lex Editora, 2010.
~ 182 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
________. Asilo diplomático - o caso do senador Roger Pinto. 2013. Disponível em:
<http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,asilo-diplomatico-o-caso-do-senador-roger-
pinto-imp-,1074867>. Acesso em: 01/11/2017.
MEDEIROS, Fábio Andrade. Asilo e refúgio: semelhanças e diferenças entre dois institutos de
proteção humanitária e sua aplicação no direito brasileiro. Dissertação de Mestrado apresentada à
Universidade Católica de Santos, 2015.
PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 13ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Saraiva, 2012.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014.
~ 183 ~
A NECESSIDADE DE CRIAÇÃO DE UM TRIBUNAL
INTERNACIONAL GLOBAL DE DIREITOS HUMANOS COMO
CONSEQUÊNCIA DA CIDADANIA UNIVERSAL
I – INTRODUÇÃO
~ 184 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
“A Declaração Universal dos Direitos Humanos é a porta de entrada do templo dos direitos
humanos”. (René Cassin)
~ 185 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 186 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 187 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
e conteúdos normativos que não dispõem de obrigatoriedade, por ter origem em uma
Resolução da Assembleia Geral da ONU, sendo, apenas, um convite aos Estados para
respeitarem suas previsões. Além disso, também foi considerada como norma interpretativa
da Carta de São Francisco. Passou, entretanto, a ter status de norma costumeira de Direito
Internacional.
Posteriormente, a Conferência de Viena de 25/07/1993, que teve como resultado
a Declaração de Viena de 1993, reafirmou o compromisso com os propósitos e princípios
enunciados na Carta de São Francisco e na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
ressaltando que a Declaração se constituiu como padrão de realização para todos os povos
e todas as nações com base no ideal de que “todos os direitos humanos são universais,
indivisíveis, interdependentes e interrelacionados”. É possível afirmar, portanto, que a
Convenção de Viena chancelou a Declaração Universal com a efetiva participação de 171
Estados, 813 organizações não governamentais como observadoras e 2000 organizações
não governamentais no fórum paralelo das ONG’S.
Logo, não há como duvidar da força cogente e universal da Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948 e, sendo assim, a Resolução da Organização das Nações
Unidas passou de norma soft law para hard law dos tratados, ou seja, norma imperativa e
cogente.
Além da Declaração de Viena de 1993, outros documentos também corroboraram
e derivaram da Declaração Universal, tais como o Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), que
tratam, respectivamente, dos direitos de primeira e de segunda dimensões, um verdadeiro
desdobramento dos artigos 1º ao 21 da DUDH, bem como dos artigos 22 a 27 da DUDH,
respectivamente.
Como se pode constatar, diversos documentos posteriores, com ampla
participação dos Estados, consagraram os ideais previstos na Declaração Universal, não
deixando dúvidas a respeito de sua natureza jurídica de hard law.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi uma resposta ao
totalitarismo que imperou durante a Segunda Guerra Mundial, responsável pela inserção
da temática dos direitos humanos no plano internacional, e também uma resposta jurídica
ao problema do mal ativo e do mal passivo.
Além disso, é a interpretação mais autêntica dos diretos humanos e liberdades
fundamentais e integra a Carta da ONU, sendo compreendida,, no mundo todo, como um
código de ética universal de direitos humanos decorrente da tese universalista, que impõe
~ 188 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 189 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 190 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 191 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
John Rawls admite, portanto, as desigualdades, desde que haja a mitigação das
dificuldades para aqueles que a suportam. Prega o Estado liberal com uma perspectiva
social. Parte da posição original como uma situação hipotética na qual as partes
contratantes, livres e iguais, escolhem sob o véu da ignorância, os primarygoods ou bens
primários, ignorando o que as pessoas têm e não têm para possibilitar o contrato social.
Como a teoria de John Rawls não exclui a desigualdade, permite que a pessoa tenha acesso
aos primarygoods escolhidos sob o véu da ignorância tendo os princípios de justiça como
cláusulas contratuais básicas, através de uma escolha racional com base na teoria dos jogos.
O neocontratualismo de John Rawls preconiza a justiça com imparcialidade, com a
distribuição equitativa dos bens básicos, inclusive os direitos sociais, optando pelo menor
dos piores resultados.
A teoria da justiça de John Rawls pode ser usada para fundamentar a tese da
cidadania universal, uma vez que preconiza a ideia de que deve haver acesso aos direitos
básicos com igualdade, inclusive no plano global, transnacional e cosmopolita, e o passo
mais importante para essa transformação foi dado com a Declaração dos Direitos do
Homem de 1948.
É imperioso que qualquer ser humano tenha acesso aos primarygoodsem qualquer
lugar do mundo, independentemente de sua nacionalidade, a fim de que todos os seres
humanos, no mundo, tenham acesso às mesmas liberdades básicas para reduzir o espaço
das desigualdades.
Afirma-se a tese universalista dos direitos humanos na medida em que há um
mínimo ético irredutível que deve ser respeitado por todos os Estados, independentemente
da diversidade cultural e da soberania estatal.
Desse modo, o direito cosmopolita deve regular e proteger os direitos do cidadão
universal, pois, em razão da tese universalista, a violação de um direito é sentida em todos
os lugares da Terra e, assim, a proteção dos direitos do cidadão universal deve ser uma
preocupação cosmopolita e não interna de cada Estado.
O caminho para a “Paz Perpétua” só chegará ao resultado da solidariedade
universal quando o ser humano for considerado como um fim em si mesmo e pertencente
ao mundo, como cidadão universal.
Ainda nesse sentido, Luigi Ferrajoli(2007) anuncia que existe o embrião de uma
‘Constituição do Mundo’, constituída pela Carta da ONU e pela Declaração dos Direitos
Humanos que se destinam a regular os direitos fundamentais universais, no sentido de
propiciar a proteção do ser humano, por formar um conjunto de normas jurídicas
~ 192 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 193 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 194 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
~ 195 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
BIBLIOGRAFIA
BROWN. Gordon. The Universal DeclarationofHumanRights in the 21st century. A living document
in a changing world. A reportbyte Global CitizenshipCommission.Cambridge. UK> Open Book
Publishers, 2016. Http.dx.doi.org10.11647.OBP0091. Acesso em maio de 2018.
LAFER, Celso. Direitos Humanos. Um percurso no Direito só século XXI. São Paulo: Atlas, 2015.
MENEZES, Wagner. The international contemporany law and the transnormativity theory.
Universitá Degli Studi di Padova, v. 1, p. 1, 2008.
______. Tribunais Internacionais: jurisdição e competência. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 1.
426p .
~ 196 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
______. A soft law como fonte do Direito Internacional. In: Wagner Menezes (Org.).
Direito Internacional no cenário contemporâneo. 1ed. Curitiba: Juruá. 2003, v. 1, p. 73-90.
Prefácio de Celso Lafer, in Flavia Piovesan. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São
Paulo: Saraiva, 2007, p. X. São Paulo: Saraiva, 2007.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trás. Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
TRECHSEL, Stefan. A World Court for HumanRights?, 1 Nw. J. Int'l Hum. Rts. 1 (2004).
http://scholarlycommons.law.northwestern.edu/njihr/vol1/iss1
~ 197 ~
A EFETIVIDADE DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS À LUZ DS DESAFIOS
CONTEMPORÂNEOS.
Thamyris Araújo*
1. INTRODUÇÃO
~ 198 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
2. DESENVOLVIMENTO
~ 199 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 200 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 201 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
156Disponívelem <https://istoe.com.br/onu-numero-de-pessoas-que-passam-fome-no-mundo-sobe-para-
108-milhoes> Acesso em: 08/06/2018
~ 202 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
157Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/12/1721455-infanticidio-de-indios-
ainda-e-comum-em-aldeias-da-amazonia.shtml>
158Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/02/03/Por-que-o-projeto-de-lei-contra-
~ 203 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Cesarino afirma que o debate em torno da lei não está incluindo os povos
indígenas, o que fere o seu direito à autodeterminação. Para Marianna Holanda, ainda que a
Constituição Federal reconheça aos índios sua “organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições”, não garante a autodeterminação desses povos.
Cesarino acrescenta que o Brasil é signatário da Convenção 169, da Organização
Internacional do Trabalho, que em seu artigo sexto, alínea a, determina que indígenas têm o
direito de participar de órgãos que tratem de questões suas e que governos devem consultar
os povos interessados “sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas
suscetíveis de afetá-los diretamente”.
A medida também é criticada pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil) por não abordar a morte de crianças indígenas por problemas como desnutrição,
diarreia, viroses e infecções respiratórias, agravados por falta de atendimento médico,
alimentação adequada e saneamento básico.
Estar-se-á, portanto, diante de um tema muito delicado, contornado por críticas
pertinentes, que envolvem questões como identidade, respeito, participação e
autodeterminação dos povos.
Outro tema que gera repercussão no tocante à característica da universalidade dos
direitos humanos é a mutilação genital feminina. O Secretário Geral da ONU, António
Gutérresdestaca que as mulheres e as meninas que sofrem mutilação perdem “sua
dignidade, enfrentam riscos para a saúde e sofrem uma dor desnecessária”159. Entre as
complicações estão sangramentos, cistos, infecções, transmissão de doenças, infertilidade e
até a morte em casos mais graves.
As consequências podem ser fatais. O assessor sênior do Fundo de População da
ONU, Unfpa, Elizeu Chaves, explica o que é exatamente a mutilação genital feminina:
~ 204 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
maioria dos casos ocorrer na África, a prática também acontece em nações do sudeste
asiático e até da América Latina. A comunidade indígena Emberá, da Colômbia, por
exemplo, acredita que a mutilação genital feminina ajuda a prevenir a infidelidade.
O Unfpa trabalha com diversos países na tentativa de conscientizar comunidades
sobre a importância de por fim à mutilação genital feminina. Guiné Bissau é citada por
Elizeu Chaves como uma nação bem sucedida nessa missão.
A mutilação genital feminina coloca em risco também diversos direitos essenciais
do ser humano, como a liberdade, igualdade e saúde, por exemplo. Ademais, atenta contra
características dos direitos humanos além da universalidade, como a inalienabilidade e a
indivisibilidade.
Por fim, diante desse tema, está o grande desafio de conciliar o direito com a
diversidade cultural, que por sua vez, pressupõe os limites da liberdade.
Tal entendimento inspira o estudo dos direitos fundamentais, uma vez que a
positivação dos mesmos na Constituição consagra que estes vão além de meras
proclamações políticas. Os direitos fundamentais constituem uma pretensão exigível pelos
cidadãos em face do Estado.
161Disponível
em: <https://jus.com.br/artigos/57607/a-pratica-da-mutilacao-genital-feminina-e-os-direitos-
humanos> Acesso em: 05/07/2018.
~ 205 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Artigo 25
1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a
sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,
cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em
caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda
dos meios de subsistência fora do seu controle.
Mais uma vez, verifica-se o velho dilema entre teoria e prática. O pensamento
neorrepublicano no sentido de defesa da redução das desigualdades materiais parece
enfatizar a necessidade de serem asseguradas condições sociais mínimas para o exercício de
direitos, de tal modo que as liberdades individuais não sejam comprometidas. Conclui-se,
portanto, que a análise exclusiva de resultados de operações de mercado contribui para
intensificar as desigualdades e com isso afetar o exercício de outras garantias.
A ótica neorrepublicana, portanto, é importante a fim de complementar o debate
acercada efetividade de questões sociais e individuais levantadas quando se trata de direitos
humanos.
~ 206 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Por trás de um ser humano que encontra uma série de liberdades comprometidas,
pode haver também um ser humano com direitos fundamentais e necessidades básicas
comprometidas. Tal indivíduo depara-se, portanto, em situação de emergência e isso em
diversas situações o estimula a procurar apoio em algum lugar que tenha pelo menos suas
necessidades básicas satisfeitas. Isso nos conduz a outro tema polêmico na atualidade:
movimentos migratórios e direitos de refugiados.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 constituiu-se como um
marco inspirador a figuras complementares no intuito de proteção dos direitos humanos.
No âmbito de proteção dos direitos humanos aos refugiados, é importante salientar o
“Direito Internacional dos Refugiados”, que age em proteção do refugiado desde a saída do
seu local de residência, a concessão de refúgio no país de acolhimento e o seu eventual
término. O Direito Internacional dos Refugiados teve como marco a Convenção de
Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951. Em 1984, foi criada a Declaração de
Cartagena, que por sua vez, trouxe adições a essa Convenção.
É interessante notar o quanto esses documentos diferem no tocante aos motivos
que farão uma pessoa buscar refúgio. A Convenção de Genebra de 1951 foi criada no
contexto pós guerra e trazia como motivos raça, nacionalidade, opinião política, religião e
pertencimento a um grupo social. Contudo, havia o entendimento de que a Convenção de
1951 somente se aplicaria a pessoas que tivessem se tornado refugiadas antes de 1951.
O Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados de 1967 veio no sentido de
romper com essas restrições, fazendo com que a Convenção se tornasse geral e universal,
se aplicando para qualquer pessoa que fosse buscar refúgio. A esse avanço, soma-se a
Declaração de Cartagena amplia o rol de motivos pelos quais as pessoas possam buscar
refúgio e um deles é a grave e generalizada violação dos Direitos Humanos. Isso teve
reflexos inclusive no Brasil, quando foi criada a sua lei de refúgio (Lei 9474/97).
No plano jurídico internacional, existem distintas legislações e órgãos
internacionais que protegem o refugiado, como o Estatuto dos refugiados e da ACNUR
(Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), contudo, distintos refugiados
encontram muitas dificuldades em serem considerados cidadãos e sujeitos de direitos nos
países que os recebem. Tal cenário se acirra com a prática da xenofobia e de crises
econômicas, que muitas vezes baseiam políticas mais rígidas para restringir a entrada de
imigrantes.
3. CONCLUSÃO
~ 207 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
BIBLIOGRAFIA
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito Internacional Público: parte geral. 6.ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
162Disponívelem: <https://farofafilosofica.com/2018/03/13/nos-os-refugiados-carta-de-hannah-arendt/>
Acesso: 14/07/2018.
~ 208 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
MIGUEL, Luis Felipe. Desigualdades e democracia: o debate da teoria política. 1.ed. São
Paulo: Editora Unesp, 2016.
MORRIS, Clarence. Os grandes filósofos do Direito. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: Teoria,
História e Métodos de Trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014.
WEBGRAFIA
https://news.un.org/pt/story/2017/02/1576291-mutilacao-genital-feminina-e-uma-
violacao-dos-direitos-humanos
https://jus.com.br/artigos/57607/a-pratica-da-mutilacao-genital-feminina-e-os-direitos-
humanos
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/02/03/Por-que-o-projeto-de-lei-contra-
o-infantic%C3%ADdio-ind%C3%ADgena-%C3%A9-questionado
http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/494777-
CAMARA-APROVA-PROJETO-QUE-PREVE-COMBATE-AO-INFANTICIDIO-EM-
AREAS-INDIGENAS.html
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/12/1721455-infanticidio-de-indios-ainda-
e-comum-em-aldeias-da-amazonia.shtml
https://istoe.com.br/onu-numero-de-pessoas-que-passam-fome-no-mundo-sobe-para-
108-milhoes/
~ 209 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
https://adelmocorreia.jusbrasil.com.br/artigos/337514082/os-refugiados-no-direito-
internacional-o-principio-da-nao-devolucao
http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37103055
http://investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/direito-constitucional/334647-o-
conceito-contemporaneo-de-constituicao
http://www.assisprofessor.com.br/documentos/livros/Morris,%20Clarence%20-
%20Os%20grandes%20filosofos%20do%20direito.pdf
https://www.significados.com.br/jusnaturalismo/
https://www.sabedoriapolitica.com.br/products/jusnaturalismo-e-contratualismo/
http://www.escoladegoverno.org.br/artigos/115-direitos-humanos-declaracao-1948
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Declara%C3%A7%C3%A3o-Universal-
dos-Direitos-Humanos/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.html
http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/geografia/declaracao-universal-dos-direitos-
humanos.htm
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/194914/000865469.pdf
http://www.prrj.mpf.mp.br/custoslegis/revista_2009/2009/aprovados/2009a_Dir_Pub_
Aragao%2001.pdf
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf
https://farofafilosofica.com/2018/03/13/nos-os-refugiados-carta-de-hannah-arendt/
~ 210 ~
OS REFLEXOS DE 70 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS NO DIREITO CONTEMPORÂNEO DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
INTRODUÇÃO
~ 211 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
acordo com a definição de criança e coeso definir a maioridade penal como 14 anos
enquanto ainda está em fase de construção psíquica?
Ainda, outro ponto bastante controverso quando da aplicação prática dos direitos
da criança consolidados pela Declaração Universal é do trabalho realizado por menores e o
direito à educação. Ao determinar o direito à instrução dos menores, a Declaração
corroborou a necessidade de regulamentação do trabalho infantil e proibição do mesmo em
alguns casos. Não há que se falar em proibição global ou total, uma vez que algumas faixas
etárias são permitidas de trabalhar por entendimento da seara trabalhista. A maior diferença
será na primazia educacional frente à trabalhista e nas condições especiais de trabalho.
Outro grande problema que aqui será abordado é da violação direta aos direitos
da criança, tais quais: o infanticídio, todos os tipos de violência, práticas culturais invasivas
e o aborto, o qual se destaca por sua controversa visão. Esses pontos serão tratados ao
longo do capítulo de modo a compreender a extensão da Declaração Universal dos
Direitos Humanos em face dos menores a termos globais e principalmente no direito
interno brasileiro.
A Declaração dos Direitos Humanos dispôs em alguns dos seus artigos acerca dos
direitos dos infantes. Ao introduzir o menor como ser dotado de inteligência e merecedor
de proteção, pugnou pela necessidade da qualidade de vida destes que se tornam o futuro
das Nações. Esbarra, no entanto, na consolidação da garantia desses direitos. Uma vez que
o dispositivo assegura o direito a proteção da lei para com todos, podendo os atingidos
recorrerem a âmbito nacional e internacional por terem seus direitos básicos feridos.
Desde seu preâmbulo até o arremate do primeiro artigo, o dispositivo enfoca na
igualdade desde nascença. O ponto controvertido aqui se trata da existência real dessa
igualdade no direito interno dos países e no conceito de nascimento como para início da
vida e dos direitos. Tal tópico será abordado a seguir, destrinchando do conceito de vida no
direito interno brasileiro e na garantia dos direitos da referida declaração.
~ 212 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Não há solução jurídica para esta controvérsia. Ela dependerá sempre de uma
escolha religiosa ou filosófica de cada um a respeito da vida. Porém, exista ou
não vida a ser protegida, o que é fora de dúvida é que não há qualquer
possibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno nesta fase de sua
formação. Ou seja: ele dependerá integralmente do corpo da mãe. Esta
premissa, factualmente incontestável, está subjacente às ideias que se seguem.
(MELLO, 2016, p. 9).
163Art. 2º - A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro.
~ 213 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
A Declaração assegura ainda que todo ser humano, incluindo os menores, tenham
direito a opinião e expressão. Este pode se esbarrar no poder pátrio e na escuta do
judiciário desse menor. Eis aqui mais uma questão que deve ser resolvida por ponderação
pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
É lógico que uma criança terá sua liberdade à informação restrita pelos adultos de
modo a respeitar a construção cognitiva do menor. Por essa mesma razão é que quando
um menor profere um hate speech (discurso de ódio) cabe ao seu responsável legal
responder. A idade para tal responsabilização varia de país para o outro, este tema será
abordado no tópico 1.4.
Quanto à escuta, no direito interno foi promulgada a lei 13.431 de 2017,
assegurando a realização de uma oitiva adequada ao menor. Tal entendimento de propiciar
a escuta adequada a criança é essencial para consolidação da liberdade de expressão. Como
entende Consuelo Biacchi Eloy“aceitar que a criança possui percepção e opinião sobre as
pessoas e os acontecimentos de sua vida é o primeiro passo para compreendê-la e oferecer-
lhe uma escuta adequada” (ELOY, 2010, p.241).
~ 214 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Ainda, o menor tem seu direito a segurança assegurado internamente pelo artigo
4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, e no Artigo XXII da Declaração objeto de
estudo como obrigação internacional:
Artigo XXII - Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à
segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação
internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos
direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre
desenvolvimento da sua personalidade.
~ 215 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 216 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Por fim, nesse mesmo teor foi julgada na ADI 4.439 em 2017 que entendeu ser
constitucional o ensino religioso confessional no ensino público. Uma vez que o ensino
público é a única opção para aqueles que não possuem condição financeira, surge a
pergunta se não seria contrário ao acordo internacional que assegura a prioridade de direito
na escolha do gênero da instrução de seus filhos. Nesse sentido, assegura a LDB o direito a
estudar nas escolas mais próximas de sua residência, mas ainda assegura a possibilidade de
~ 217 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
ensino religioso facultativo em seu artigo 33. A problemática parece não estar esgotada e
ainda necessitar de rediscussão pelo Congresso, quem tem obrigação de ratificar os tratados
internacionais, quer sejam apenas supralegais ou constitucionais, nos termos do artigo 5º,
parágrafo 2º da CF.
~ 218 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Convenção. Por exemplo, dados da ONU – Organizações das Nações Unidas indicam que
“seis milhões de crianças ainda morrem a cada ano, antes do seu quinto aniversário”, o que
demonstra uma clara preocupação global e da criança como vulnerável. Os objetivos são
coisas como erradicar pobreza, melhorar educação, igualdade de gênero, propiciar
alimentação saudável dentre outros, que devem ser cumpridos até 2030, sendo os maiores
atingidos os menores os quais serão o futuro do planeta.
~ 219 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O ECA foi responsável por transformar o status quo do modo como se encaravam
as crianças e os adolescentes. Isso se revelou de extrema importância especialmente no
tocante ao enfrentamento dos obstáculos culturais quando da efetivação desses direitos.
Juridicamente, além de se abordar os aspectos legislativos do ECA, cabe destacar
a atuação do poder judiciário para tornar efetivo a proteção às crianças e adolescentes.
Dentre os diversos pontos passíveis de nota, cabe citar a criação, de acordo com a
faculdade disposta no artigo 145 do referido estatuto, das varas judiciais especializadas para
julgar os litígios que envolvam, seja como parte ou origem do litígio, crianças e
adolescentes. Tal previsão quebrou o estigma que existia até a década de 90 de que as ações
envolvendo essa parcela da sociedade se resumiam apenas as criminais, quando a criança e
adolescente eram parte no cometimento do delito, e as cíveis que geralmente ficavam
adstritas às varas de família.
~ 220 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 221 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Ainda abordando o aspecto cultural, cabe fazer menção as violações aos direitos
dos menores que possuem origem nas expressões culturais e sociais de determinado povo.
É muito comum que em determinadas sociedades se adotem práticas culturalmente
consolidadas que se identifiquem como fonte de violação de direitos humanos. Em se
tratando dos direitos dos menores, as práticas do casamento infantil e da mutilação genital
feminina são exemplos destas práticas. Na maioria das vezes a ideia de que tais práticas tem
origem cultural e, portanto, definem a identidade de determinado grupo dificultam de
forma desmedida o combate à violação dos direitos dos menores.
Sobre esse aspecto, é amplo o debate existente em sede do estudo dos direitos
humanos quanto ao caráter universal desses direitos e o modo como essa característica se
choca com a cultura de seus destinatários. As normas de direitos humanos são
naturalmente universalista, estas são elaboradas de modo a atingirem todos os seres
humanos. Os adeptos do relativismo cultural defendem que, devido ao grande número de
culturas e expressões sociais, seria inviável que se estabelecesse uma norma dotada do
caráter universal e que não considerasse as práticas de determinado povo. No que pese seja
em partes verdadeira a afirmação dos relativistas, cabe levantar a noção consolidada pela
Declaração dos Direitos Humanos de Viena, de 1993, de que embora as peculiaridades
culturais sejam próprias de cada grupo humano, existe um limite mínimo instransponível
que são expressos nas normas internacionais de direitos humanos. (PIOVESAN, 2014, p.
214).
Conforme explica DONELLY (apud PIOVESAN, 2014, p. 2014):
~ 222 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
CONCLUSÃO
~ 223 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Acertada é a colocação dos direitos dos menores sob uma perspectiva ampla
como faz a Agenda 2030. Ao se analisar os principais problemas pelos quais as crianças e
os adolescentes são atingidos, encontrar-se-á a origem destes em aspectos que ultrapassam
aquilo que se infere em primeiro momento. A garantia de uma educação de qualidade e o
incentivo ao empoderamento são, por exemplo, meios de se melhorar a vida de diversas
meninas que já sofreram e ainda sofrem algum abuso, seja ele psicológico ou físico, no seu
dia-a-dia.
Proteger a infância envolve a quebra de uma série de paradigmas culturais, legais e
sociais. A busca pela defesa dos direitos dos menores deve continuar a avançar e que daqui
a trinta anos, no centenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, possa-se
realizar uma nova análise que demonstre que, apesar dos diversos obstáculos, a
humanidade conseguiu se manter firme ao objetivo de proteger as futuras gerações e fazer
cumprir seus direitos mínimos, protegendo-os a nível familiar, social e estatal.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 54.
Requerente: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. Intimado: Presidente da
República. Relator: Ministro Marco Aurélio de Mello. Brasília, Distrito Federal, 12 de Abril
de 2012.
~ 224 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n.º 124.306. Impetrante: Jair Leite
Pereira. Impetrado: Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Marco Aurélio de Mello.
Brasília, Distrito Federal, 29 de Novembro de 2016.
FREIRE, João. O Aborto e a “derrota” da teoria Concepcionista. Fato Jurídico, 2011. Disponível
em: <http://fatojuridico.com/o-aborto-e-a-derrota-da-teoria-concepcionista/>. Acesso
em 11 de Julho de 2018.
MATTOS, Jadir de; STÜRMER, Kátia Rejane; COSTA, Joselaine. Responsabilidade penal do
médico nos casos de transfusão de sangue, em menor de idade, em iminente risco de vida, cujos pais são
adeptos da seita testemunhas de Jeová. Revista Direito Sanitário, São Paulo, v. 6, n. 1/2/3, p.
132-152, 2005.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos globais, justiça internacional e o Brasil. Revista Fundação
Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, Ano 8, V.
15, p. 93 – 110, janeiro/junho 2000. Disponível em:
<http://www.escolamp.org.br/arquivos/15_07.pdf>. Acesso em: 12 de julho de 2018.
TRICANO, V. C. A nova concepção de criança e adolescente como sujeito de direitos: depoimento especial
em processos judiciais no TJ/RJ. Artigo apresentado no 1º Congresso Nacional dos Direitos da
~ 225 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 226 ~
A INFLUÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS NA INCLUSÃO DAS
MULHERES NAS FORÇAS ARMADAS
INTRODUÇÃO
* Advogado e docente. Mestre em Ciência Política pela Universidade da Força Aérea – UNIFA. Especialista
em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Salesiano – UNISAL e em Direito Militar pela
Universidade Castelo Branco. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de Lorena.
** Aluna do Curso de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA, mestre em Ciência Política pela
Universidade da Força Aérea – UNIFA, especialista em Direito Público pelo Centro Universitário Salesiano –
UNISAL e em Direito em Administração Pública pela Universidade Castelo Branco – UCB.
~ 227 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
pudessem se qualificar tanto como as mães quanto como guerreiras, não haveria identidade
sui generis para os meninos” (DE PAUW, 1998, p. 12,).164
Mesmo com a modificação das bases da guerra promovida na Revolução
Francesa, com a criação da Grande Arma de Napoleão, formado não mais por
mercenários, como na era feudal, mas caracterizado pela mobilização total da população, as
mulheres continuaram afastadas da função de combatentes. O decreto de Conscrição, da
Assembleia Nacional, datado de 23 de agosto de 1793, estabelecia em seu Artigo I:
A partir desse momento até o instante em que nossos inimigos forem expulsos
do território da República, todos os franceses estão permanentemente
convocados para o serviço em armas. [...] Os jovens combaterão; os casados
forjarão as armas e transportarão os suprimentos; as mulheres farão as barracas
e as roupas e servirão nos hospitais; as crianças transformarão pedaços de linho
usado em ataduras; os velhos far-se-ão transportar para as praças públicas a fim
de estimular a coragem dos combatentes, pregar a unidade da República e o
ódio contra os reis. [...] (apud FULLER, 2002, p. 35)
164 Tradução livre de: “[...] when combat serves as a puberty ritual for boys, girls cannot participate without destroying the
meaning. If girls could qualify as both mothers and warriors, there would be no unique identity for boys” (DE PAUW, 1998,
p. 12).
~ 228 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
nos quais a integração se deu de forma total, com a participação de mulheres militares em
operações de combate terrestre e aéreo.
D’Amico e Weinstein (1999), que dedicaram seu estudo à presença feminina nas
Forças Armadas dos Estados Unidos, indicam que, durante a Primeira Grande Guerra, 23
mil enfermeiras do Exército e da Marinha estadunidenses estiveram em serviço ativo, ao
lado de outras tantas empregadas em serviços administrativos e de telecomunicações, sendo
que, a nenhuma das mulheres que participou do conflito foi conferida a condição de
militar. Anos mais tarde, na Segunda Guerra foram criados os corpos auxiliares femininos
como o Women´s Army Auxiliary Corps (WAAC)165, do Exército, o Women Acccepted for
Volunter Emergency Service (WAVES)166, da Marinha e o Women Air force Service Pilots
(WASP)167 composto por mulheres pilotos, que se tornaria em 1943 o Women in the Air
Force168(WAF), após a criação da Força Aérea dos Estados Unidos. No total, mais de 350
mil mulheres serviram durante o conflito, todas como não-combatentes, sendo estas, em
sua maioria, desmobilizadas após o fim das hostilidades.
Seria, pois, preciso esperar pelas duas grandes Guerras Mundiais do século XX
para que elas fossem admitidas nas Forças Armadas (CAIRE, 2002). No entanto, muito
embora durante a Segunda Guerra Mundial as mulheres tenham lutado nos exércitos de
várias nações, a tendência que se seguiu no século XX foi a do recrutamento feminino
apenas em tempo de guerra e, ainda assim, em funções auxiliares.
Foi apenas na década de 1970, que o movimento feminista proporcionou o
começo de uma revisão nas relações entre os sexos e a inclusão da mulher nos mais
variados ambientes de trabalho, incluído, entre estes, o ambiente militar. Nesta década as
Forças Armadas de vários países do mundo começaram a admitir mulheres em suas fileiras,
iniciando uma nova fase na história dos exércitos ocidentais.
Assim sendo a presente investigação busca estabelecer a relação entre a
perspectiva de gênero e a inclusão de mulheres nos contingentes militares brasileiros, tendo
o seguinte problema de pesquisa: de que maneira a Declaração dos Direitos Humanos e
seus documentos correlatos contribuíram para a igualdade de gênero nas Forças Armadas
brasileiras?
Para tanto, este trabalho de investigação compreende a técnica qualitativa e
quantitativa, pois abarca a observação e a análise crítica do corpo discursivo, bem como a
formulação de tabelas comparativas.
165 Corpo Auxiliar de Mulheres do Exército
166 Mulheres Aceitas para Serviço Voluntário de Emergência.
167 Mulheres Pilotos de Serviço da Força Aérea.
168 Mulheres na Força Aérea.
~ 229 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 230 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
das mentalidades deram início a uma mudança de posturas que tiveram como
consequências uma série modificações nas legislações pertinentes à integração feminina em
vários países (CAIRE, 2002).
Os principais acontecimentos relativos à integração feminina nas Forças Armadas
ocidentais, em tempos recentes, se deram nos Estados Unidos. Goldstein (2009) aponta
que, em 1973, com o fim da convocação obrigatória e a criação de um exército
exclusivamente formado por voluntários, as Forças Armadas dos Estados Unidos passam a
encontrar dificuldades em recrutar e manter em seus quadros uma quantidade suficiente de
homens qualificados para as tarefas militares, o que levou o Departamento de Defesa a
voltar a atenção para o recrutamento de mulheres. Em 1974, entrou em vigor legislação que
permitiu o acesso de mulheres nas academias militares e, em 1977, o Secretário de Defesa
submeteu ao Congresso uma série de recomendações no sentido de expandir as
oportunidades de empregos de mulheres nas Forças Armadas. Por sua vez, em 1978, com
o estabelecimento da integração do pessoal feminino a um só comando, em detrimento do
sistema antigo que estabelecia que as mulheres deveriam ter uma cadeia de comando
separado, foi permitido, por exemplo, que mulheres fossem designadas de forma definitiva
em navios da Marinha estadunidense, desde de estes que não exercessem função de
combate e passou a se aceitar designação temporária delas, por até seis meses, em navios de
combate (D’AMICO E WEINSTEIN, 1999).
Entre o final da década de 1980 e início da década seguinte, ocorreram mudanças
significativas, inicialmente desfavoráveis, no que tange ao acesso feminino às chamadas
especialidades nobres, ou seja, que envolvem o combate direto. Conforme documento do
U.S. General Accounting Office169 (UNITED STATES GENERAL ACCOUNTING
OFFICE, 1998) em fevereiro de 1988, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos
adotou a denominada risk rule 170 que tratava de excluir o pessoal feminino de unidades de
suporte de participarem em missões nas quais houvesse riscos de exposição a combate
direito, fogo hostil ou captura, sempre que tais riscos fossem iguais ou superiores aos
experimentados por unidades de combate. Desse modo, ainda segundo o referido estudo,
naquele ano, apenas cerca de metade das posições nas Forças Armadas estadunidenses
encontrava-se acessível para as mulheres.
Entre os anos de 1991 e 1993, no entanto, baseado na experiência da Operação
Desert Storm171, ocorreram mudanças favoráveis ao aumento da integração feminina nas
~ 231 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
forças militares estadunidenses e, em que pese o fato da risk rule ainda continuar em vigor,
esta foi limitada para impedir a participação de pessoal feminino apenas em situações de
combate direto terrestre, de tal modo que as mulheres passaram a ser aceitas como pilotos
de combate e também foi permitido que servissem em navios de combate, excetuando-se
os submarinos e embarcações anfíbias, por razões de alocação (UNITED STATES
GENERAL ACCOUNTING OFFICE, 1998).
Apenas em 1994 o Governo dos Estados Unidos revogou a risk rule, aceitando o
entendimento que todo o pessoal deslocado ao teatro de operações encontra-se em
situação de risco, mantendo, no entanto, a restrição da utilização de pessoal feminino em
unidades cuja missão primária é o engajamento em combate direto terrestre. O
posicionamento então adotado pelo Departamento de Defesa estadunidense equivale a
dizer que se criou um regramento que impunha não o que uma militar poderia fazer, mas
sim onde ela poderia ser empregada, contrariando as demandas pela integração total e
igualdade entre os gêneros (BURRELLI, 2012)
Traçando um panorama relativo à integração feminina nas forças militares dos
Estados Unidos, passados quase vinte anos da revogação da risk rule, Burrelli (2012)
sustenta que, em 2009, foi criada a Military Leadership Diversity Comission172, cujas funções,
entre outras, está a de estabelecer e manter o acesso das mulheres a posições de liderança
nos mais altos postos das Forças Armadas. Diz ainda, que em 2011 a Comissão apresentou
ao Departamento de Estado uma recomendação, particularmente relevante relacionada à
presença feminina nas forças militares, no sentido de que as Forças Armadas dos Estados
Unidos devem eliminar as chamadas “políticas de exclusão de combate”, permitindo acesso
de mulheres qualificadas à totalidade das especialidades militares, inclusive aquelas nas
quais o combate direto faz parte de sua essência.
Em janeiro de 2013 o Departamento de Defesa dos Estados Unidos revogou a
Direct Ground Combat Definition and Assignment Rule173, que se constituía na diretriz que excluía
o efetivo feminino de ocupações ligadas diretamente ao combate terrestre, o que proibia,
consequentemente, a designação de mulheres para unidades de infantaria, de artilharia de
campo, de reconhecimento, vigilância e blindadas, entre outras. Dentro dessa linha de ação,
em 2016 quase todas as limitações de acesso a ocupações nas forças armadas dos Estados
Unidos foram removidas. Nessa mesma esteira têm sido tomadas posturas semelhantes por
forças armadas de países como o Reino Unido.
~ 232 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
No entanto, no Brasil, não obstante tenham sido vencidas uma série de barreiras,
ainda existem muitas ocupações nas Forças Armadas restritas à participação de mulheres,
sendo a questão do gênero ainda um tabu no meio militar.
~ 233 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Ou seja, a positivação dos direitos humanos, traz consigo a concepção de que tais
direitos são inerentes e universais, pertencem a todos os membros da espécie humana, sem
distinção quanto aos atributos ou posição social do indivíduo.
Assim, nas últimas décadas, houve uma expansão dos países que ingressaram no
sistema global, difundiu-se, pois, mundialmente, a tendência em incorporar nas
constituições as normas decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos (WEIS,
1999).
O constitucionalismo, originado no pensamento de Rousseau (1973) e nos
movimentos revolucionários que ocorreram no século XIX na América do Norte e na
França acolheu a ideia da igualdade de todos perante a lei. Chamada de igualdade “na lei”,
~ 234 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
(...) podem ser entendidas como soluções de caráter temporário, tomadas pelo
Estado ou pela iniciativa privada, cujo intuito primordial é o de corrigir e
compensar distorções históricas ou mesmo atuais, causadas por motivos
escusos que foram se acumulando com o decorrer do tempo e acabaram por
prejudicar certo grupo específico, seja por critérios de raça, etnia, religião,
gênero, etc. (Duarte, 2014, p. 5).
175A constitucionalização do princípio da igualdade, ocorreu no Brasil, pela primeira vez, na Constituição de
1824, e hoje encontra-se hoje prevista no art. 5º da Constituição Federal de 1988.
~ 235 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Os direitos das mulheres e a busca por igualdade, durante muito tempo foram
vistos como um problema interno dos Estados. No entanto, tal panorama começou a
modificar-se ainda na primeira metade do século XX. Conforme aponta Mingst (2009):
~ 236 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
A socialização ensina e reforça essas representações, que são definidas pela cultura
da comunidade. No que se refere, aos documentos oficiais da ONU a perspectiva de
gênero implica em análises das relações entre mulheres e homens (meninas e meninos) em
um dado contexto cultural e histórico. Tal perspectiva centra-se nas dinâmicas sociais que
fundamentam o acesso desigual ao poder, à propriedade, aos recursos ou à tomada de
decisões (DEPARTMENT OF PEACEKEEPING OPERATIONS, 2002). Para Carapia
(2004):
Tal análise permite uma visão mais ampla dos processos sociopolíticos que
definem os direitos sociais e humanos, de modo que nenhum dos dois gêneros seja
excluído (CARAPIA, 2004).
A igualdade de gênero, por sua vez, refere-se ao ideal de mulheres e homens
vivendo em igualdade de condições, com respeito aos direitos humanos de todos e onde
~ 237 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 238 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
176O PNPM é elaborado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM),
órgão que, tem status de ministério, de acordo com o art. 38 da Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003.
~ 239 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
frente a uma realidade complexa e com a qual os instrumentos clássicos não têm
conseguido dialogar a contento” (SILVA, 2011, p. 4). A transversalidade, nos termos do
PNPM expressa que:
~ 240 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 241 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
AITHAL, Vathsala. Empowerment and global action of women: theory and practice.
1999. Disponível em: <http://home.arcor.de/aithal/pdf/Aithal_Vathsala.pdf>. Acesso
em: 04 abr. 2016.
~ 242 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
ALMEIDA, Vítor Hugo de Araújo. Mulheres nas Forças Armadas brasileiras: situação
atual e perspectivas futuras. Brasília: Câmara dos Deputados, 2015. 47 p. Disponível em: <
http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/estnottec/areas-da-
conle/tema21/2015_291_estudo-sobre-mulheres-nas-forcas-armadas-vitor-hugo>. Acesso
em: 01 set. 2015.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: A experiência vivida. 2. ed. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1967. 499 p.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros,
2004. 341 p.
BURRELLI, D.F. Women in combat: issues for Congress. 2012. Disponível em:
<http://www.fas.org/sgp/natsec/R42075.pdf>. Acesso em: 15 set. 2014.
~ 243 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
CAIRE, Raymond. A mulher militar: Das origens aos nossos dias. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército Editora, 2002. 336 p. (Coleção General Benício).
COSTA, Rejane Pinto. Capacitação militar para o emprego na nova guerra. Coleção Meira
Mattos: revista das ciências militares, Rio de Janeiro, n. 26, p.59-65, maio 2012.
D’AMICO, Francine; WEINSTEIN, Laurie. Gender camouflage: women and the U.S.
military. New York: New York University Press, 1999.
DE PAUW, Linda Grant. Battles cries and lullabies: Woman in war from prehistory to
the present. Norman: University Of Oklahoma Press, 1998.
FULLER, John Frederick Charles. A conduta da guerra. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca
do Exército Editora, 2002. 332 p. (Coleção General Benício).
GIANNINI, Renata et al. Brasil promove a igualdade de gênero como caminho para a paz.
O Estadão. São Paulo, 29 out. 2015. p. 1-2. Disponível em:
~ 244 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
<http://www.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-promove-a-igualdade-de-genero-como-
caminho-para-a-paz,1788163>. Acesso em: 20 fev. 2016.
GOLDSTEIN, Joshua S. War and gender. 5. ed. New York: Cambrige, 2009. 524 p.
KIRAS, James D.. Irregular Warfare: Terrorism and Insurgency. In: BAYLIS, John;
WIRTZ, James J.; GRAY, Colin S..Strategy in the contemporay world. 3. ed. New York:
Oxford, 2010. Cap. 9. p. 185-207.
MATHIAS, Suzeley Kalil (Org.). Sob o signo de Atena: Gênero na diplomacia e nas
Forças Armadas. São Paulo: Unesp, 2009. 279 p.
~ 245 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
SAYÃO, Deborah Thomé. Corpo, poder e dominação: um diálogo com Michelle Perrot e
Pierre Bourdieu. Revista Perspectiva, Florianópolis, v. 21, n. 1, p.121-149, jan. 2003.
Quadrimestral. Disponível em:
~ 246 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/viewFile/10210/9437>.
Acesso em: 20 jul. 2015.
SCHMITT, Valentina Gomes Haensel; COSTA, Rejane Pinto da; MORETTO NETO,
Luís. Desvendando a administração em ambientes militares. 2012. Disponível em:
<http://www.esg.br/images/Laboratorio/publicacoes/Desvendandoadm.pdf>. Acesso
em: 01 abr. 2016.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. 1989. Disponível em:
<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/169642/mod_resource/content/2/genero-
scott.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2015.
SJOBERG, Laura; COOKE, Grace D.; NEAL, Stacy Reiter. Introduction. Women,
gender, and terrorism. In: SJOBERG, Laura; GENTRY, Caron E..Women, gender, and
terrorism. Athens: University Of Georgia Press, 2011. p. 1-28.
SOARES, Vera. Políticas públicas para igualdade: papel do Estado e diretrizes. In:
GODINHO, Tatau, SILVEIRA, Maria Lúcia da. Políticas públicas e igualdade de
gênero. São Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher, 2004, p. 113-126.
~ 247 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 248 ~
II PARTE
~ 249 ~
MEMÓRIA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988:
BALANÇO HISTÓRICO-COMPARATIVO DAS ORIGENS,
INFLUÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES NOS 30 ANOS DE VIGÊNCIA
DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA.
INTRODUÇÃO
Para a elaboração do presente capítulo, escrito para integrar obra coletiva dedicada
aos trinta anos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e aos setenta
anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pareceu apropriado resgatar a
memória histórica da atual Constituição brasileira a partir dos elementos recebidos das
cartas políticas que a precederam, das influências recebidas de modelos estrangeiros e das
transformações sofridas nas três décadas de sua vigência.
Buscar-se-á fazer aqui, portanto, um resgate em perspectiva histórico-comparativa
da Constituição brasileira, constituindo-se o presente estudo em um trabalho
interdisciplinar, compreensivo da História do Direito Constitucional e do Direito
Constitucional Comparado.
No primeiro tópico será realizado um esforço no sentido de historiar
sucintamente o desenvolvimento da ordem constitucional brasileira, identificando
especialmente traços centrais da constituição de 1988 que podem ser considerados como
legados das constituições que a antecederam. O enfoque se dará preponderantemente sobre
as cartas promulgadas, dado o caráter democrático da Constituição Federal de 1988,
embora contribuições importantes ao sistema constitucional feitas por cartas outorgadas
também possam ser objeto de atenção.
* Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Bacharel em Direito pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul – UFMS. Líder do Núcleo de Pesquisa em Estado e Política – NUPEPOL.
** Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas e
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. Professora Adjunta da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS.
~ 250 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O Brasil conheceu oito constituições ao longo de sua história, sendo sete delas
adotadas formalmente como tais (algumas outorgadas e outras promulgadas) e uma
adotada sob a forma de uma emenda à Constituição, embora possa ser considerada, por seu
conteúdo, uma nova constituição (BONAVIDES, 2008). Assim, desde a independência de
Portugal, vigoraram as constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 (Emenda
Constitucional n. 1/69) e, finalmente, a de 1988 (SILVA, 2011a).
Ao se examinar o desenvolvimento histórico da ordem constitucional brasileira
constata-se, a cada nova carta constitucional, a subsistência de alguns de seus elementos
(embora não raro modificados) e a substituição de outros, de modo que apesar dos termos
enfáticos da Teoria do Poder Constituinte, percebe-se que de fato a ordem constitucional
atual é fruto não apenas de ampla criatividade do Congresso Constituinte (MIRANDA,
2003) de 1986-1988, mas também de um lento desenvolvimento e consolidação de
instituições constitucionais ao longo das sucessivas cartas – o que não significa negar
importância às várias inovações promovidas pela Constituição atual.
Buscaremos resgatar no presente tópico em primeiro lugar a evolução gradual da
ordem constitucional brasileira, por meio dos elementos recepcionados pela Constituição
de 1988 das constituições anteriores (recepção temporal), e, após, destacar brevemente
alguns dos principais elementos de inovação promovidos por aquela.
~ 251 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 252 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 253 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 254 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
sociais (arts. 120 e 121, entre outros), introduz o princípio da função social da propriedade
(art. 113, 17), e cria a Justiça do Trabalho (art. 122).
Sob tal carta constitucional verifica-se o aprimoramento da democracia e do
sistema político e eleitoral se verifica sob tal carta constitucional. Alguns aspectos dignos de
destaque são a instituição do voto secreto aos 18 anos, a adoção da representação
proporcional, a constitucionalização do voto feminino (introduzido pelo Código Eleitoral
de 1932) e, por fim, a constitucionalização do sistema de controle judicial das eleições, em
substituição ao sistema de verificação de poderes, ficando aquele a cargo da Justiça
Eleitoral (igualmente criada pelo Código Eleitoral de 1932) (MIRANDA, 2003), o que se
revelará, ao longo do tempo, fator importante de redução de abusos e fraudes nas eleições
(SILVA, 2011b). Adota o Brasil, doravante, o sistema de controle judicial das eleições, sob
o modelo de justiça especializada (GOMES, 2017). Também a representação proporcional
é instituída no período para a maioria dos cargos do legislativo, sendo o mesmo verdadeiro
para o sufrágio feminino.
É ainda sob esta carta constitucional que começam a surgir elementos importantes
de nosso sistema constitucional, como, por exemplo, novas instituições no âmbito do
controle de constitucionalidade. Sob tal constituição nasce a representação interventiva (art.
12 § 2º), primeiro ensaio de controle de constitucionalidade a caminho do controle
abstrato, possibilitando a intervenção federal por violação aos princípios constitucionais
sensíveis (e, posteriormente, ampliado para em outras hipóteses, como recusa à execução
de lei federal) (MENDES, 1995).
Entre outras inovações importantes promovidas pela Constituição de 1934 em
nosso sistema constitucional destacam-se a cláusula de reserva de plenário (art. 179), e a
resolução suspensiva do Senado Federal (art. 91, IV c.c. 96), ambas relevantes para a
racionalização do sistema de controle judicial difuso introduzido em sistema em sistema
jurídico romanista, no qual os precedentes não são, em regra, vinculantes. Assim, a cláusula
de reserva de plenário é relevante ao impedir a vacilação de jurisprudência em matéria de
constitucionalidade no âmbito do mesmo tribunal, enquanto a resolução suspensiva é
relevante ao permitir a ampliação dos efeitos do controle realizado em concreto,
conferindo eficácia ampla à decisão originalmente restrita às partes no processo
(MENDES, 2008). Estes dois elementos permanecerão presentes no sistema constitucional
brasileiro até a constituição atual.
A constituição outorgada de 1937, influenciada fortemente pelo anticomunismo
(MARCOS; MATHIAS; NORONHA, 2014) sabidamente representou retrocesso em
~ 255 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 256 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
proporcional (art. 134) (SILVA, 2011b). A representação interventiva é mantida (art. 8º) e
suas hipóteses são ampliadas (MENDES, 1995).
É ainda sob a vigência formal da Constituição de 1946 – subordinada que estava
aos Atos Institucionais, como recorda MIRANDA (2003) – que o sistema brasileiro de
constitucionalidade conhece importantes avanços, notadamente a criação da representação
de inconstitucionalidade pela EC n. 16/1965, que alterou a redação da alínea “k” do inciso
I do art. 101. A ação, de iniciativa exclusiva do Procurador Geral da República e da
competência originária do STF, tendo por objeto lei ou ato normativo federal ou estadual,
passa a constituir um meio de controle abstrato de constitucionalidade, paralelamente ao
sistema de controle difuso e concreto existente, constituindo o precedente imediato das
ações diretas atualmente existentes (MEDINA, 2010).
As decisões, originalmente submetidas mesmo sistema da resolução suspensiva do
Senado Federal previsto para o controle difuso, passaram a ser compreendidas como
dotadas de eficácia geral e vinculante, sem prejuízo da sistemática da resolução suspensiva
para as decisões proferidas em controle concreto (MENDES, 1997).
Diante disso, foi sob a vigência formal da Constituição de 1946, emendada em
1965, que o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade passou a ostentar seu
caráter eclético ou misto, ao contemplar controle judicial concreto e abstrato, um traço
fundamental.
Com as constituições outorgadas de 1967 e 1969, sabidamente o regime
democrático e o sistema de direitos fundamentais sofrem retrocessos (BONAVIDES,
2009), tendo sido ambas influenciadas pela carta de 1937 (SILVA, 2011a). A fragilização
dos direitos e garantias e a restrição das liberdades públicas, entre outros fatores, acabam
por modificar severamente o sistema constitucional. Do ponto de vista formal, o conjunto
de instituições continua o mesmo: republicanismo (art. 1º em ambas), presidencialismo (art.
74 e 73, respectivamente), federalismo (art. 1º em ambas), tripartição de poderes (art. 6º,
em ambas), controle judicial de constitucionalidade, entre outros traços já existentes nas
cartas anteriores. Como ensina Jorge MIRANDA (2003, p.; 233),
~ 257 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 258 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 259 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
e 2º), 1946 (art. 217 §§ 2º e 3º), 1967 (arts. 50 e 51), 1969 (art. 47 e 48) e, finalmente, 1988
(art. 60 § 2º). Todas, exceto as de 1937, previram limites materiais: a de 1891 em seu art. 90
§ 4º; a de 1934 em seu art.178, caput e § 5º; a de 1946 em seu art. 217 § 6º; a de 1967 em seu
art. 50 § 1º; a de 1969 em seu art. 47 § 1º e, por fim, a de 1988 em seu art. 60 § 4º inciso IV.
O conjunto das ações diretas estabelecidas pela ou sob a Constituição de 1988 e das
garantias fundamentais por ela mantidas ou incorporadas delineia um sofisticado sistema de
controle de constitucionalidade que conjuga elementos judiciais e políticos e, no âmbito do
controle judicial, controle difuso e abstrato.
Como se vê, do breve escorço histórico aqui traçado, a Constituição Federal de
1988 possui fortes traços inovadores, mas igualmente recupera, reintroduz ou mantém na
tradição constitucional brasileira institutos e características forjadas ao longo do tempo,
embora com transformações maiores ou menores.
Uma vez rememoradas tais características, convém resgatar o papel desempenhado
por algumas das principais constituições estrangeiras que influenciaram o texto
constitucional de 05 de outubro de 1988, o que se fará no item seguinte.
~ 260 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 261 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
modelos estrangeiros influenciadores de tal carta política, sem pretensão de exaustão, até
porque, considerando-se o caráter analítico da carta, referida tarefa aqui seria impossível.
TAVARES (1991) identifica influências portuguesas, espanholas, italianas,
francesas, latino-americanas, anglo-americanas, principalmente, ressalvando, além da já
mencionada ecleticidade, a predominância (sem exclusividade) de uma fonte sobre as
demais em diferentes áreas ou matérias. MARCOS, MATHEUS e NORONHA (2014)
identificam influências norte-americanas, francesas, italianas, alemãs, portuguesas e
espanholas.
A influência portuguesa é uma das predominantes se fazendo presente em
diversas cartas além da de 1988, como na de 1824, influenciada pela constituição lusitana de
1822 e a de 1937, influenciada pela lusitana de 1933, entre outras. Embora a influência
lusitana tenha sido reduzida após a independência, posteriormente volta a se fazer sentir
com maior intensidade novamente (WHITAKER, 1987). Jorge MIRANDA (2003, p. 225)
igualmente faz referência a tais influências:
~ 262 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 263 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 264 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
de acordo com a doutrina. Realmente, examinando-se a similitude das normas (embora não
idênticas), a posição parece ser acertada.
No que diz respeito às medidas provisórias inexiste razões para dúvida da fonte
ser mesmo a vigente constituição italiana. O artigo 62 da Constituição brasileira reproduz
parcialmente com bastante fidelidade o art. 77 da Constituição italiana, e o regime jurídico a
que estão sujeitas entre nós as medidas provisórias e entre eles os provvedimenti provisorii –
provimentos provisórios – é quase idêntico. Confira-se o texto estrangeiro:
Il Governo non può, senza delegazione delle Camere, emanare decreti che abbiano valore di legge ordinaria.
Quando, in casi straordinari di necessità e di urgenza, il Governo adotta, sotto la sua responsabilità,
provvedimenti provvisori con forza di legge, deve il giorno stesso presentarli per la conversione alle Camere che,
anche se sciolte, sono appositamente convocate e si riuniscono entro cinque giorni.
I decreti perdono efficacia sin dall'inizio, se non sono convertiti in legge entro sessanta giorni dalla loro
pubblicazione. Le Camere possono tuttavia regolare con legge i rapporti giuridici sorti sulla base dei decreti non
convertiti
~ 265 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 266 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 267 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 268 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 269 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 270 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 271 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
A despeito disso, será impossível, nos limites do trabalho, explorar mesmo que
minimamente tal temática, de modo que o presente estudo restringe-se a registrar as
principais alterações formais do texto, relegando a outra oportunidade uma análise das
modificações informais, de crescente importância.
CONCLUSÃO
~ 272 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 273 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 23 ed. atual. e ampl. São Paulo:
Malheiros, 2008.
GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 13 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017.
~ 274 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
~ 275 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34. ed. rev. e atual.
São Paulo: Malheiros, 2011a.
SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton. Direito Processual Constitucional. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010.
~ 276 ~
A ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA
EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAUDE:
UMA ANÁLISE SOB O ENFOQUE DA SUPREMACIA JUDICIAL
1 INTRODUÇÃO
* Mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e graduada em Direito pela
Faculdade Metodista Granbery. kelviafaria@hotmail.com
** Professora de Direito Constitucional na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atua na graduação e
~ 277 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 278 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O Estado Social, que surge após a Primeira Guerra e se afirma após a Segunda,
intervém na Economia, por meio de ações diretas e indiretas; e visa garantir o
capitalismo por meio de uma proposta de bem-estar que implica a manutenção
artificial da livre concorrência e da livre iniciativa, assim como a compensação
das desigualdades sociais por meio da prestação estatal de serviços e da
concessão de direitos sociais.
~ 279 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
178 Salientando a controvérsia, mas em defesa da fundamentalidade, veja-se, de Robert Alexy (2008), o
capítulo 9 da obra Teoria dos Direitos Fundamentais, de Ingo Wolfgang Sarlet, o capítulo 4 da obra A Eficácia dos
Direitos Fundamentais (2012), bem como o artigo Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais: contributo para um
balanço aos vinte anos da Constituição Federal de 1988 (2008).
~ 280 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 281 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 282 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
mostrando cada vez mais intensa, deixando os tribunais apenas de suprir as lacunas
deixadas pelo legislador, mas efetivamente interferindo em políticas públicas instituídas
pelo administrador público, sendo de todo pertinente a advertência de Luís Roberto
Barroso (2009, p. 35): “O sistema, no entanto, começa a apresentar sintomas graves de que
pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da falta de critérios e de voluntarismos
diversos”.
Esta possibilidade de se buscar judicialmente a tutela específica de um direito
social traz consigo o debate em torno da legitimidade do Poder Judiciário para tomar tais
decisões, gerando discussões a respeito da possível ofensa à separação dos poderes, através
da supremacia judicial.
Muitos autores se dedicam ao estudo dos direitos sociais, ao papel das cortes
constitucionais na garantia destes e à teoria da separação dos poderes. Neste trabalho,
optou-se por adotar como marco teórico parte da construção de Jeremy Waldron,
professor de Direito nos Estados Unidos da América, nascido na Nova Zelândia, cuja
produção acadêmica é conhecida por voltar-se à crítica do judicial review (revisão judicial da
legislação)179.
O foco principal do argumento de Waldron contra o judicial review está no alegado
caráter antidemocrático da jurisdição constitucional. Toda sua obra é desenvolvida em
torno de argumentos que salientam a primazia das decisões tomadas pelos poderes
eleitosdemocraticamente (especialmente em temas relacionados aos direitos fundamentais)
sobre as decisões tomadas por juízes não comprometidos com esta questão democrática, já
que não se submetem ao voto popular.
Em artigo publicado no ano de 2006, intitulado The core ofthe case against judicial
review, traduzido para o português como A essência da oposição ao judicial review (2010), o
autor estabelece uma diferença essencial quanto ao tipo de controle judicial que pode ser
exercido sobre a legislação.
Segundo Waldron (2006, p. 1354), existe um judicial review forte e um judicial review
fraco. Este tem como característica a impossibilidade de o Poder Judiciário deixar de
aplicar determinada lei por considerá-la inconstitucional. O judicial review fraco não afasta a
179 Neste trabalho, serão feitas menções tanto à expressão original quanto à sua tradução para o português.
~ 283 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
competência do Poder Judiciário para analisar toda a legislação, no entanto, o juízo emitido
não é vinculante, cabendo apenas aos poderes eleitos modificar os efeitos ou revogar a lei.
Por outro lado, o judicial review forte é aquele no qual os tribunais podem deixar de aplicar
uma lei ou modificar os seus efeitos quando entenderem que essa padece de
inconstitucionalidade.
O autor esclarece que sua crítica é dirigida ao judicial review forte, apenas. Em suas
palavras:
In a system of strong judicial review, courts have the authority to decline to apply a statute in a
particular case (even though the statute on its own terms plainly applies in that case) or to
modify the effect of the statute to make its application conform with individual rights (in ways
that the statute itself does not envisage). Moreover, courts in this system havethe authority to
establish as a matteroflawthat a given statute or legislative provision Will not be applied, so
that as a result of stare decisis and issue preclusion a law that they have refused to apply
becomes in effect a deadletter (WALDRON, 2006, p. 1354)180.
180 Em tradução de Adauto Villela, publicada pela Lumen Juris: “Em um sistema de controle de
constitucionalidade forte, os tribunais têm autoridade para deixar de aplicar uma lei em um processo (mesmo
que a lei em seus próprios termos se aplicasse claramente a tal processo) ou para modificar o efeito de uma lei
para deixar sua aplicação em conformidade com direitos individuais (de modo que a lei por si não vislumbra).
Além disso, os tribunais nesse sistema têm autoridade para instituir como matéria de direito que uma dada lei
ou disposição legislativa não será aplicada, de modo que, em consequência da força vinculante dos
precedentes e da preclusão da questão, uma lei cuja aplicação foi recusada pelos tribunais torna-se para todos
os efeitos letra morta” (WALDRON, 2010, p. 100).
181 O artigo foi publicado pela New York UniversityPublic Law and Legal TheoryWorkingPapers.
~ 284 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
the judges should be supreme or even sovereign in the polity and that all other powers in the
constitution should be subordinated to them. I believe that whatever we say for or against
judicial review, it is not the same as judicial supremacy. And it is judicial supremacy that I
want to consider today; I want to explore the ways in which judicial authority might rise to
level of supremacy and ways in which that particular sortof judge-based rule may be
prevented182.
It is tempting to say that the distinction between weak and strong judicial review corresponds to
the distinction between mere judicial review of legislation and assertions of judicial supremacy.
Maybe strong judicial review amounts to a muscular assertion of judicial supremacy. If someone
Said this, I guess we would know what they meant. The term judicial supremacy has no
canonical definition, so people are bound to use it in diferente ways. But in the America debate,
I don’tthis use of it has been found helpful. Instead it is assumed that even among practices of
strong judicial review, or ways of practicing strong judicial review, we might want to identify a
subset of them that amount to judicial supremacy. And then we might want to urge or counsel
those entrusted with the Power of judicial review to avoid any move in the direction of judicial
supremacy. I am not saying that the American courts have never tilted towards judicial
supremacy. Actually, I think in various ways they have. But it is not Just because they have
practiced strong judicial review. It is because of the way they have practiced strong judicial
review183 (grifo no original).
182 Em tradução livre: “os juízes devem ser supremos ou mesmo soberanos na política e todos os outros
poderes devem se subordinar a eles. Eu acredito que, o que quer que se diga a favor ou contra a revisão
judicial, não significa a mesma coisa para a supremacia judicial. E é exatamente sobre tal supremacia que eu
quero refletir hoje; quero explorar as formas pelas quais a autoridade judicial pode alcançar a supremacia e as
formas em que este tipo particular de regra baseada na autoridade judicial pode ser evitada”.
183Em traduçao livre: “É tentador dizer que a distinção entre revisão judicial fraca e forte corresponde à
distinção entre mera revisão judicial da legislação e afirmações de supremacia judicial.Talvez a revisão judicial
forte represente uma asserção muscular da supremacia judicial. Se alguém dissesse isso, acho que saberíamos
o que eles queriam dizer. O termo supremacia judicial não tem uma definição canônica, então, as pessoas o
usam de maneiras diferentes. Mas durante o debate na América, eu não o utilizei da melhor forma. Em vez
disso, presume-se que, mesmo entre as práticas de revisão judicial forte, ou em suas práticas, podemos
identificar um subconjunto que represente a supremacia judicial. E então, podemos instigar ou aconselhar os
responsáveispela revisão judicial para evitar qualquer mudança na direção da supremacia judicial. Não estou
dizendo que os tribunais americanos nunca se inclinaram para a supremacia judicial. Na verdade, penso em
várias maneiras. Mas não é apenas porque eles praticam revisão judicial forte, é devido ao modo comoa
praticam”.
~ 285 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
adotam o judicial review forte, podem existir práticas de supremacia judicial. Sua ocorrência
depende muito mais da forma como se pratica a revisão judicial do que da sua simples
existência.
Jeremy Waldron (2014) sugere três tipos de atuação dos tribunais que implicariam
a ocorrência da supremacia judicial. Segundo ele, o judicial review se transformaria em
supremacia judicial quando as cortes atuarem de forma a perseguir um programa social ou
uma política específica, “ratherthanjustrespondingto a particular abuses identified as suchby
a Bill ofRights as theycropup184” (WALDRON, 2014, p. 27); quando os juízes
considerarem, em suas decisões, apenas seus próprios entendimentos sobre determinado
tema, agindo como se fossem donos da Constituição
“andtheotherbranchesofgovernmentandthepeople in general werenotentitledto a view185”
(WALDRON, 2014, p. 32); e quando os tribunais acreditarem ser a voz da Constituição ou
do povo que a fez (WALDRON, 2014, p. 37).
Quanto à primeira sugestão de Waldron (2014, p. 28), o autor ressalva que sua
intenção não é dirigir um ataque à existência de cláusulas sociais nos textos constitucionais,
mas salientar que a presença dessas não deve autorizar o Poder Judiciário a perseguir a
justiça social como finalidade. Nas palavras do autor:
So: judicial review should not be understood as na opportunity to implement a broad social
program through decisions in sucessive cases. [...] The task of the judges is simply to spot and
identify particular abuses, to oppose the program as a whole, which is none of the
irresponsability186 (WALDRON, 2014, p. 31).
É especialmente neste sentido que a teoria de Jeremy Waldron será adotada como
marco teórico da presente pesquisa. Não se adotará a clássica oposição de Waldron à
revisão judicial da legislação, porém, adotar-se-á, aqui, a distinção que o autor estabeleceu
entre revisão judicial e supremacia judicial.
O objetivo é identificar se, dentro do sistema de judicial review forte adotado pelo
Brasil, há atuação doSupremo Tribunal Federal que tenda à supremacia judicial. Para tanto,
serão adotadas como medida duas das três sugestões de Waldron expostas acima. Logo, a
pergunta que guiará a pesquisa é a seguinte: a atuação do STF, no que se refere à tutela
184 Em tradução livre: “ao invés de apenas responder, à medida que surgirem, aos casos particulares de abusos
aos direitos especificados nas declarações”.
185 Em tradução livre: “e os outros ramos do governo e o povo em geral não tivessem direito a um
entendimento”.
186 Em tradução livre: “Assim: a revisão judicial não deve ser entendida como uma oportunidade para
implementar um programa social amplo através de decisões em casos sucessivos. [...] A tarefa dos juízes é
simplesmente reconhecer e identificar abusos particulares, não é sua função se opor ao programa como um
todo”.
~ 286 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 287 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
entrega do medicamento.
Não conhecido o Recurso
Medicamento para
Estado do Rio Extraordinário, mantida a
RE 195192 22/02/2000 tratamento de criança com
Grande do Sul decisão inferior que deferiu a
fenilcetonúria.
entrega do medicamento.
Negado provimento ao
RE 271286 Medicamentos para Município de agravo, mantida a decisão do
12/09/2000
AgR tratamento de HIV/AIDS. Porto Alegre tribunal inferior que deferiu a
entrega do medicamento.
Medicamentos para
Negado provimento ao
tratamento de
RE 393175 Estado do Rio recurso, mantida a decisão
12/12/2006 esquizofrenia paranoide e
AgR Grande do Sul inferior que deferiu a entrega
doença maníaco-depressiva
do medicamento.
crônica.
Medicamentos para Negado provimento ao
STA 328 tratamento de Doença agravo, mantida a decisão do
24/06/2010 União
AgR Pulmonar Obstrutiva tribunal inferior que deferiu a
Crônica (DPOC) entrega do medicamento.
Negado provimento ao
RE 626382 Fornecimento de fraldas Estado do Rio agravo, mantida a decisão do
27/08/2013
AgR descartáveis. Grande do Sul tribunal inferior que deferiu a
entrega do material de higiene.
Negado provimento ao
Medicamentos para
SL 815 Município de agravo, mantida a decisão do
07/05/2015 tratamento da Hepatite C,
AgR São Paulo tribunal inferior que deferiu a
sem registro na ANVISA.
entrega do medicamento.
Fornecimento de alimento Negado provimento ao
ARE
especial a criança Estado do Rio agravo, mantida a decisão do
947823 28/06/2016
portadora de Grande do Sul tribunal inferior que deferiu a
AgR
fenilcetonúria. entrega do alimento.
Fornecimento de alimento Negado provimento ao
ARE
especial a criança Estado de agravo, mantida a decisão do
1049831 27/10/2017
portadora de alergia Pernambuco tribunal inferior que deferiu a
AgR
alimentar. entrega do alimento.
Fonte: Dados colhidos pelas autoras
A partir desta primeira tabulação dos dados, observa-se que o Supremo Tribunal
Federal decide de forma idêntica para todos os casos nos quais são pleiteados
medicamentos ou tratamentos de saúde. Independentemente da figura processual utilizada
para levar o feito ao julgamento da Corte constitucional, a decisão foi sempre no sentido de
~ 288 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 289 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 290 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 291 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 292 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 293 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
assegurar o direito à saúde. Neste sentido, a Corte entende que a expressão Estado é
utilizada de forma genérica, abrangendo os três níveis da organização política.
Tal ponderação está presente em seis dos nove acórdãos analisados (AI 238328
AgR; RE 271286 AgR; RE 393175 AgR; RE 626382 AgR; ARE 947823 AgR; ARE
1049831 AgR) e o motivo de sua recorrência está no fato de os entes federados alegarem
sua ilegitimidade passiva, em razão da divisão de competência estabelecida na própria
Constituição. Assim, entendem que a cada nível da federação, caberia um tipo específico de
tutela no que se refere ao direito à saúde. Todavia, o Supremo não acolhe este argumento,
entendendo da mesma forma durante todo o período, no sentido de que a obrigação é
solidária aos três níveis federativos.
Portanto, depreende-se que o STF deu interpretação ao texto constitucional que
se mantém a mesma durante todo o período do recorte, não acolhendo as razões expostas
pelos recorrentes. Também é interessante observar que esta interpretação não se respalda
em nenhum argumento senão no próprio entendimento da Corte. Não há recurso à
doutrina ou ao direito comparado, por exemplo, mas apenas ao posicionamento do próprio
Tribunal, sendo comum expressões como: “A jurisprudência desta Corte firmou-se no
sentido de que [...]” (RE 626382 AgR); “O acórdão recorrido está alinhado à jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal [...]” (ARE 947823 AgR); “Esse entendimento foi reafirmado
pelo Plenário desta Corte [...]” (ARE 1049831 AgR).
Tal constatação correlaciona-se com a teoria de Waldron (2014), na segunda
sugestão feita pelo autor a respeito do que considera atuação dos tribunais tendente à
supremacia judicial. Conforme explicitado nasegunda seção, em sua segunda sugestão,
Waldron (2014, p. 32) aduz que a atuação judicial, na qual o tribunal considere apenas seu
próprio entendimento a respeito da Constituição, agindo como dono dela, caracteriza-se
como supremacia judicial.
Nos casos de tutela do direito à saúde julgados pelo STF, especificamente no que
se refere à obrigação solidária dos três níveis federativos, pode-se inferir que a Corte recai
em supremacia judicial. Isso porque interpreta o texto constitucional com respaldo apenas
em seu próprio entendimento, o qual, após ser firmado, torna-se praticamente impassível
de mudanças, haja vista que o Tribunal restringe-se a utilizar como argumento suas
próprias decisões, alegando a consolidação da jurisprudência da Corte.
Observe-se que o lapso temporal entre a primeira e a última decisão é de quase
duas décadas. Neste período, a composição do Supremo modificou-se, bem como
modificaram-se as variáveis sociais, econômicas e políticas, mas o entendimento firmado na
~ 294 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
virada da década de 1990 permanece o mesmo. Logo, pode-se concluir que o STF não
considera os argumentos levados ao seu julgamento como aptos à modificação do seu
entendimento, não permitindo que os demais ramos do Poder (recorde-se que os
demandados são parte do Poder Executivo brasileiro) também realizem uma interpretação
do texto constitucional.
Tal situação não seria disparatada, haja vista que, se o artigo 196 da Constituição
(BRASIL, 1988) enuncia de forma genérica o Estado, o artigo 198 prevê que as ações e
serviços de saúde serão prestadas de forma descentralizada. Logo, o próprio texto
constitucional permite a divisão de obrigações, no que se refere à tutela da saúde, entre os
entes federados. Percebe-se, portanto, que a Constituição brasileira permite as duas
interpretações, no entanto, o STF apenas faz prevalecer o seu próprio entendimento,
motivo pelo qual recai na crítica de Waldron.
Por outro lado, Jeremy Waldron (2014, p. 27) pondera que a atuação de um
tribunal também tende à supremacia judicial quando este, ao julgar os processos levados ao
seu conhecimento, decide de forma a perseguir um programa ou uma política coerente. O
autor salienta que o tribunal deve limitar-se a decidir pontualmente a alegação de ofensa ao
direito ou princípio constitucional em questão. Ressalta, ainda, que “the program in
question might embody a broad progressive or liberal vision, or perhaps an overall vision
of a conservative free market society”187.
Todavia, em seguida, pondera que, nas configurações constitucionais que definem
os direitos sociais e econômicos como direitos fundamentais, os julgadores devem ser ainda
mais cautelosos ao decidir casos que os envolva, tendo em vista que, nestas situações, a
possibilidade de o tribunal se comportar de forma a perseguir uma política ou um
programa social são maiores, “because it may be more difficult to hold social and economic
rights apart from a programmatic vision”188 (WALDRON, 2014, p. 28).
O autor elucida que sua crítica, naquela ocasião, não se dirige à consagração de
direitos sociais no texto constitucional, mas à forma como os tribunais se comportam
perante estas cláusulas sociais. Assim, esclarece que a tomada de decisões pelos tribunais
constitucionais deve considerar apenas a alegação de violação ao direito naquele caso
específico, sendo problemática a atuação que, ao julgar um caso particular, preocupe-se
com um objetivo geral perseguido pela corte.
187 Em tradução livre: “o programa em questão pode incorporar uma ampla visão progressista ou liberal, ou
talvez uma visão geral de uma sociedade conservadora do livre mercado”.
188 Em tradução livre: “porque pode ser mais difícil manter os direitos econômicos e sociais afastados de uma
visão programática”.
~ 295 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 296 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 297 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Esta perseguição de política social pelo Poder Judiciário não tem passado
desapercebida, gerando nos estudiosos verdadeira preocupação quanto à possibilidade de
que este excesso de ativismo gere, na verdade, a inviabilização das políticas públicas e
impeça o acesso de outra parcela da população aos bens e serviços necessários para sua
existência digna. Conforme Barroso (2009, p. 35):
5 CONCLUSÃO
~ 298 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
ÁTRIA, Fernando. Existem direitos sociais? In: MELLO, Cláudio Ari. (Coord.). Os
desafios dos direitos sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 09-46.
~ 299 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 300 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ag. Reg. no Recurso Extraordinário com Agravo nº
947823/RS. Agravante: Estado do Rio Grande do Sul. Agravado: Ministério Público do
Estado do Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília, DF, 28 de junho
de 2016. Diário de Justiça. Brasília, 07 out. 2016. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=8625237>.
Acesso em: 25 maio 2018.
~ 301 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ag. Reg. no Recurso Extraordinário com Agravo nº
1049831/PE. Agravante: Estado de Pernambuco. Agravada: Melissa Afonso de Lima
Vieira da Paz. Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília, DF, 27 de outubro de 2017. Diário
de Justiça. Brasília, 08 nov. 2017. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=14004206>.
Acesso em: 25 maio 2018.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 11. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2012.
______. Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais: contributo para um balanço aos
vinte anos da Constituição Federal de 1988. Revista do Instituto de Hermenêutica
Jurídica. 20 Anos de Constitucionalismo Democrático – E Agora? Porto Alegre-Belo
Horizonte, 2008, p. 163-206.
______. The Core ofthe Case Against Judicial Review. The Yale Law Journal, Yale, v.
115, n. 6, p.1346-1406, 2006.
______. Judicial Reviewand Judicial Supremacy. New York UniversityPublic Law And
Legal TheoryWorkingPapers, New York, n. 495, p.1-43, dez. 2014.
~ 302 ~
REFLEXÕES SOBRE O PODER DE REFORMA AOS 30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
1. INTRODUÇÃO
~ 303 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Não cabe dúvida de que, enquanto magnitude política, o Poder Constituinte, que
“(...) no es un mecanismo de las épocas tranquilas, de las pacíficas transformaciones de los
sistemas constitucionales, sino un acto revolucionario que adquiere su mayor significación
en los períodos de crisis” (NADALES, 1981, p. 177), não pode se perpetuar
indefinidamente. Seu exercício traz consigo o indissociável signo da ruptura e não pode
~ 304 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
tardar em engendrar uma ordem político-jurídica nova ao se desencadear, sob pena de fazer
soçobrar a coletividade sob seus próprios fundamentos. Portanto, soa no mínimo inusitado
que se proponha a permanência de uma manifestação tão refratária ao controle, à
estabilidade, após promulgada a Constituição.
O processo de fundação, por mais revolucionário que seja, não se dirige a outro
objetivo que o da instauração de uma ordem política estável e perene. A relação entre
Poder Constituinte e Constituição e a dúvida acerca da capacidade daquele de, não só criar,
como de conferir sustentação a esta última, não foi ignorada por aqueles que, pela primeira
vez, protagonizaram seu exercício. Este problema, enfrentado no âmbito da Revolução
Americana, foi solucionado, em parte, pelo recurso ao conceito romano de autoridade
(auctoritas) — etimologicamente derivada da palavra augere (aumentar, fazer crescer) —, por
meio do qual a mudança e a permanência passavam a configurar uma mesma realidade
(ARENDT, 1990, p. 201).
Com efeito, as nuanças doutrinárias sobre o tema são variadas e dignas de nota.
Carl Schmitt defende a continuidade do Poder Constituinte, amparando-se na constatação
de que a Constituição não pode se voltar contra seu sujeito ou destruir sua existência
política (SCHMITT, 2001, p. 108). Por outro lado, Pedro de Vega (1985, p. 75-76) também
defende a idéia de permanência, embora parta do pressuposto de existência de uma
Constituição material que se conservaria latente ao longo da vigência da Constituição
formal, representando a perenidade da essência do conjunto decisório manifesto no
fenômeno constituinte. Esta suposta continuidade do Poder Constituinte deveria ser lida,
na verdade, como continuidade da Constituição material, isto é, continuidade da harmonia
entre esta e a Constituição formal, resultante do processo de fundação. Uma posição
semelhante é defendida por Jorge Miranda (1983, p. 83), que chega inclusive a dividir o
Poder Constituinte entre material e formal, propugnando a precedência lógica e histórica
daquele, ressaltando, ademais, a necessidade de pautar a invocação do Poder Constituinte
por critérios que respeitem limites materiais bem definidos, desconfiando de radicalizações
arbitrárias e equivocadas do principio democrático.
Perspectiva distinta é defendida por Alessandro Pace, segundo a qual o Poder
Constituinte poderia surgir a qualquer tempo, dada sua ilimitação jurídica, não perdurando,
porém, ao longo de toda a vigência da Constituição sem provocar uma indistinção entre a
capacidade fundacional e a organizativa, sendo esta de natureza jurídica e aquela, fática
(PACE, 1997, p. 24-25). Com efeito, a manifestação deste suposto Poder Constituinte seria
~ 305 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 306 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
uma vez exercido, o fenômeno constituinte se esgota no que tange à sua capacidade de,
irrompendo num determinado ordenamento, provocar a ruptura com a estrutura vigente,
instaurando uma nova. Esta característica que marca de forma indelével tal fenômeno, não
pode ser mantida num contexto no qual a Constituição presida — como norma suprema
— um ordenamento jurídico. Encontramos uma paradigmática defesa deste
posicionamento no pensamento de Martin Kriele.
Segundo sua argumentação a incompreensão da dialética provocada pela tensão
entre poder e Direito no Estado constitucional democrático constitui a base de sua crise de
legitimidade. Embora não erga objeções à caracterização de uma soberania jurídica ligada
ao Estado constitucional, argumenta que, uma vez promulgada a Carta Magna e criado um
contexto no qual só existam competências, não caberá mais qualquer argumento a favor da
soberania, posto que nem sequer resulta possível atribuí-la à Constituição, já que o poder
efetivo não emana de normas jurídicas. Ademais, esta, por estar sujeita à incidência de
reforma de seu conteúdo, não poderia se apresentar como soberana, condição que somente
seria possível se fosse considerada imutável.
O povo, segundo Kriele, é soberano ao exercer o poder constituinte, rompendo a
estrutura vigente em favor de um novo sistema constitucional. Porém, após o momento
fundacional já não caberia tratar de rupturas ou câmbios operados numa mesma ordem
jurídica (KRIELE, 1980, p. 152). O Poder Constituinte representaria, pois, uma ineludível
manifestação de soberania, que, como tal, se localizaria fora da ordem constitucional
vigente. Instaurado o Estado constitucional, exclui-se a possibilidade de existência de um
ente ainda soberano, já que a única atuação possível em tal contexto é a de um exercício de
competências, impossibilitando, ao mesmo tempo, a defesa da permanência do Poder
Constituinte (KRIELE, 1980, p. 152-153).
De forma semelhante se manifesta Francisco Balaguer Callejón, para quem não
cabe falar de permanência do Poder Constituinte durante a vigência de uma Constituição
normativa. A efemeridade, enquanto marca indelével daquela manifestação política, não
pode conduzir a um contexto distinto, impondo sua extinção após a culminação do seu
exercício. A partir daí, presidida a ordem jurídica pela supremacia da Constituição, que
representa o fundamento de validade formal e material das demais normas, não cabe a
manifestação de outros poderes que não sejam poderes constituídos (CALLEJÓN, 1992, p.
29). Por outro lado, se cabe afirmar que o Poder Constituinte se caracteriza como ilimitado
juridicamente, sendo expressão da soberania, admitir sua manifestação dentro de uma
ordem jurídica, encabeçada e limitada por uma Constituição, nos conduziria a uma situação
~ 307 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
na qual a própria força vinculante desta última se perderia no vazio, por estar sujeita
sempre aos condicionamentos provocados pela possibilidade de manifestação soberana de
uma força política superior. Tal ordem constitucional seria uma ficção, pois perderia uma
característica fundamental que a caracteriza: a capacidade de limitar e condicionar a
manifestação do poder político (CALLEJÓN, 1992, p. 33-35).
No exercício do Poder Constituinte, segundo o catedrático granadino, a
democracia se concretizaria conforme o modelo tradicional, reproduzindo o povo
enquanto unidade homogênea cuja atuação social conduz à instauração da Constituição.
Por outro lado, com o advento desta, o princípio democrático seria condicionado pelo
pluralismo, com base no qual se impõe um equilíbrio entre a prevalência da vontade da
maioria e o respeito aos interesses da minoria. Não haveria negação recíproca entre ambas
as formas de democracia, na medida em que, enquanto a primeira fomentaria a segunda,
esta representaria uma mudança qualitativa daquela. Este equilíbrio entre uma concepção
tradicional de democracia e a democracia constitucional representa o fundamento das
limitações que, durante a vigência de uma determinada Constituição, se impõem ao
exercício do poder. Em suma, o poder soberano que pressupõe uma homogeneidade sócio-
político não pode se manifestar continuamente num contexto marcado pela limitação
jurídica, pelo conflito de interesses e pelo pluralismo (CALLEJÓN, 1992, p. 32-33).
No entanto, a qualquer tempo poderá ressurgir um processo imbuído do poder de
ruptura. E precisamente para evitar o recurso a este poder, a abertura que o constituinte
estabelece para a reforma da Constituição pretende sua neutralização, evitando que
reivindique sua natureza revolucionária e subverta a ordem jurídico-política. Com efeito, a
partir do momento em que se engendra a relevante distinção entre criação e reforma da
Constituição, consolida-se um contexto no qual o Poder Constituinte desaparece com a
promulgação da Carta Política, já que esta, expressão das decisões resultantes da vontade
constituinte, só expressa superioridade material e formal enquanto manifesta
normatividade, garantismo e natureza democrática — “(...) las tres fuentes principales de
las que surge el caudal histórico del constitucionalismo (...)” (CALLEJÓN, 1992, p. 31) —,
que se veriam esvaziadas caso dividissem espaço com um Poder Constituinte permanente
(HÄBERLE, 2001, p. 132).
O poder de reforma adquire, portanto, a característica definitiva de mecanismo de
estabilidade do sistema constitucional, possibilitando a mudança como alternativa à ruptura
político-jurídica, fomentando uma continuidade que coopta o câmbio radical,
transformando-o em parte do projeto político que se pretende perene, porém ao mesmo
~ 308 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
189
BRASIL.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc26-85.htm
~ 309 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
José Afonso da Silva, Célio Borja, José Paulo Sepúlveda Pertence, Paulo Brossard, entre
outros.
Dentre os assuntos debatidos, um dos temas mais suscitados foi o do Tribunal
Constitucional. Não havia certeza quanto a pertinência temática da matéria na
Subcomissão, mas o assunto logo sempre se insurgia entre as reuniões. Outros assuntos
relevantes igualmente abordados foram o Estado de Sítio e o Estado de Emergência.
~ 310 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 311 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 312 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 313 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
190 João Gilberto Lucas Coelho afirmava corroborando esse entendimento: “De repente, precisa se alterar a
Constituição detalhista que, muito provavelmente, nós teremos mais uma vez, precisa-se alterar o dispositivo
sobre a aposentadoria do funcionário público, sobre coisas factuais, não de se submeter a todo um processo,
a exigências, que tocar no voto universal, por exemplo, necessitaria. ” (BRASIL, 1987, p.18). O relator,
Nelton Friedrich, no entanto, fazia uma crítica contundente às palavras do jurista (...) “Começaria, nobre ex-
Deputado João Gilberto, fazendo uma observação – e o próprio constituinte Evaldo Gonçalves tocou nesta
questão – de que já se estabelece uma preocupação há muitos dias, sobre esta Constituição sintética ou não,
enxuta ou não, quando, na verdade, pela sua própria exposição, fica evidente que talvez não cheguemos a esta
posição primorosa. Ao mesmo tempo, muitas vezes esse mero enunciado de princípios facilita a fuga do seu
cumprimento. Fala-se muito na Constituição dos Estados Unidos, mas sabemos que se é a mais longa em
termos de existência e aplicabilidade, na verdade já tem 26 emendas e, praticamente, a Constituição americana
não é a Constituição americana, é a Suprema Corte que, a cada geração, acrescenta um elenco de mudanças.
Se pegarmos outras Constituições da Europa, como por exemplo, a da Suíça, que, embora com cento e
poucos artigos, tem artigos com mais de 16, 20 itens. Por isso, não me preocupa realmente com essa questão.
Parece-me muito mais importante que tenhamos uma Constituição para este País Continental e com o
máximo de instrumento de alta aplicabilidade.” (BRASIL, 1987, p. 23). Gilberto Lucas Coelho, então, fez
uma distinção pertinente entre Constituição extensa e Constituição detalhista, para explicar sua posição
anterior: “(...) a constituição para o país europeu é uma declaração, e não está submetida a regras tão rígidas
de técnicas legislativas como as que submetemos o nosso texto. Por exemplo, para nós brasileiros, o artigo
perfeito, tecnicamente, é aquele que é apenas uma frase, ou seja, que se esgota no primeiro ponto; quando
tem que retomar um ponto adiante, ele já ficou imperfeito. Se consultarem e temos aí a excelente publicação
que o Senado Federal fez sobre constituições, verificaremos que algumas são uma página inteira com vários
parágrafos, mas com parágrafos ortográficos, dentro do mesmo caput do artigo, ou seja, com várias linhas.
Sem nenhuma preocupação por esse lado, pelo caráter que e dado à Constituição como documento político,
temos mais o aspecto da Constituição como documento legal. Então, em parte, essa discussão se dá num
campo falso por causa disso. (...) E, em segundo lugar, não tenho medo de Constituição extensa; tenho um
pouco de preocupação com Constituição detalhista. O que é Constituição detalhista? É aquela que desce a
aspectos que o próprio ritmo da vida vai necessariamente ter que modificar e que, então, se obriga a muitas
alterações. Temos uma tendência a colocar na Constituição, aspectos que não são Constituição. Há dias, um
órgão de imprensa me jogava a seguinte crítica: a Constituição vai frustrar a população, porque as coisas que a
população espera da Constituição não vão estar na Constituição. Nós não estamos olhando a Constituição
como um estatuto. Foi interessante porque até um rapaz me citou o tema da descriminação da maconha. A
Constituinte não está discutindo a descriminação da maconha. Independente do mérito que isso possa ter,
pois existem até opiniões científicas a favor e contra. Respondi a ele: "Escuta, em algum lugar da Constituição
está escrito que homicídio é crime? E homicídio e muito mais grave que fumar maconha. Onde é que está
escrito, na Constituição que homicídio é crime?" Ele levou um susto. E eu continuei: "Para o crime, há o
Código Penal". Então esta questão de saber se fumar maconha deve estar autorizada ou não, não é uma
matéria constitucional, não tem por que estar sendo incluída neste processo. (...) Acho que a constituição
brasileira deverá, inclusive, ser extensa – não acredito numa Constituição sintética. Esse extenso não significa
número de artigos, porque se nós resolvermos escrever a Constituição sem estas restrições que nós hoje
usamos no processo legislativo brasileiro, nós podemos fazer uma Constituição de 200 artigos e dizer multo
mais do que, uma Constituição de 600 ou 700 artigos, escrita à moda como escrevemos hoje, isto é, cada
artigo é uma frase. São questões que outros países não levam em conta na hora de escrever a Constituição”.
(BRASIL, 1987, p. 23-24).
~ 314 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 315 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 316 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Quem trouxe à tona a discussão foi o Sr. João Gilberto Lucas Coelho,
propugnando a impossibilidade de reforma das normas sobre produção jurídica da
Constituição. Asseverou que a decisão de estabelecer os limites do procedimento de
reforma caberia exclusivamente ao Poder Constituinte Originário, como limitação natural e
implícita a esse processo (BRASIL, 1987, p. 20).
191 De acordo com o artigo 178 da Constituição Imperial de 1824 havia uma nítida divisão entre normas
apenas formalmente constitucionais e materialmente constitucionais: “Art. 178. E' só Constitucional o que diz
respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes
dos Cidadãos. Tudo, o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas
Legislaturas ordinarias.” (1824, CONSTITUIÇÃO IMPERIAL)
~ 317 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
192 Brossard sugeria interessante possibilidade de instauração de comissões especiais para estudar as reformas
constitucionais por que passariam o Texto Magno e, assim, sugerir eventuais modificações na forma de
reformas depurativas: “(...) o conveniente seria estabelecer um processo que não ossificasse a lei
constitucional, mas que também não facilitasse em demasia a sua mudança. Talvez fosse uma regra
estabelecer que, de 10 em 10 anos, uma Comissão especial estudaria ou apresentaria o resultado da
experiência constitucional de 10 anos, sugerindo modificações, e o projeto que fosse apresentado tivesse um
tratamento regimental privilegiado. Por quê? É óbvio que, salvo determinados preceitos, pode ocorrer que
~ 318 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
certas normas envelheçam com o tempo. Afinal de contas, os legisladores são homens e, como tais, são
limitados e não atingem, jamais atingiram, creio que nunca vão atingir, a perfeição, a sabedoria plena. De
modo que nada mais natural que uma lei que hoje nos pareça sábia, que hoje nos parece adequada à realidade
nacional, dentro de alguns anos venha a mostrar as suas falhas, as suas deficiências e até as suas
inconveniências. Poder-se-ia estabelecer que uma Comissão da Câmara, do Senado, do Congresso, teria a
incumbência de acompanhar o funcionamento da lei constitucional e, de 10 em 10 anos, apresentar o
resultado. Não quer dizer que antes dos 10 anos não possa ser feito, mas num trecho, num período de 10
anos, ou de 10 em 10, isso seria como que uma rotina, uma apresentação, uma experiência: o que funcionou
bem, o que não funcionou, onde está o defeito, onde está a excelência, faltou isso, uma interpretação
duvidosa sobre tal preceito, qual é a orientação correta, porque, às vezes, um parágrafo ou um inciso corrige
uma deficiência. ” (BRASIL, 1987, p.30).
~ 319 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 320 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
faz-se necessário compreender até que ponto aquilo que está previsto no Art. 60 sofreu
alguma erosão ao longo das três décadas de vigência da Carta Magna. Para desdobrar esta
reflexão sugerimos os seguintes questionamentos: a cláusula de reforma prevista no Art. 60
persiste como única modalidade de reforma constitucional? Ocorreu ao longo do tempo
alguma flexibilização do seu conteúdo?
Contrastados com o pano de fundo até aqui apresentado, os mecanismos de
alteração formal da Constituição de 1988 apresentam peculiaridades dignas de nota. Em
primeiro lugar, cabe salientar que não há, no mecanismo de reforma previsto no Art. 60 da
Carta Política de 1988, qualquer elemento que possa denunciar, de forma imediata, uma
possibilidade de desequilíbrio no seu exercício. Inexiste brecha explícita para sua
flexibilização, como no caso da Constituição brasileira de 1824 (FERREIRA FILHO, 1999,
p. 129), ou uma via para sua petrificação, como no caso do Art. 168 da Constituição
espanhola de 1978. E no entanto, trinta anos após sua promulgação, podemos indicar o
poder de reforma como um dos capítulos mais afetados da Constituição de 1988. Situação
resultante não de uma prática que afronte formalmente a previsão contida no Art. 60, já
que nenhuma das emendas acrescidas ao texto originário de 1988 foi concebida e
promulgada à margem do procedimento previsto constitucionalmente, mas que chama
atenção em decorrência de uma autêntica banalização do seu exercício.
Esta banalização fica patente diante das cento de cinco emendas até o momento,
produzidas num espaço de trinta anos, numa razão de mais de três ao ano. O fato é
assombroso porque, em perspectiva, e se nos dedicássemos à tarefa, encontraríamos com
facilidade certas leis ordinárias e complementares dotadas de maior estabilidade normativa
que a própria Carta Política que lhes confere fundamento de validade.
Apresenta-se portanto, por força de uma combinação de circunstâncias, uma
situação limite na qual o exercício formalmente lícito do poder de reforma pode suscitar a
vulnerabilidade material da própria Constituição. Um problema de difícil solução, posto
que, embora possa se argumentar que o constituinte originário tenha idealizado a Carta
Política como um projeto perene, e sujeito, portanto, ao mínimo de modificações possível,
não lhe foi dado o poder de delimitar um número razoável de reformas, além do qual se
chegaria à ruína normativa da sua obra política, cabendo questionar se, à medida em que as
reformas se aprofundem e aumentem, o projeto político do constituinte originário de 1988
não ficará mais e mais ininteligível diante de uma Constituição que não poderá ser
compreendida desvinculada da incessante atividade do Poder Constituinte Derivado, até
que finalmente, não reste dúvida de que durante um bom tempo, o advento de emendas
~ 321 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 322 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 323 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
é possível imaginar o Constituinte prescrevendo que o próprio Art. 60, que regula a
reforma seja imune à reforma.
Uma objeção previsível é aquela que afirma ser o Art. 60 seja um exemplo de
cláusula pétrea implícita. Este tipo de afirmação, no entanto, deve ser veementemente
combatido no âmbito da dogmática constitucional. Isto porque não deve se dar espaço ao
que poderíamos chamar de “mediunidade constitucional”, que consiste em querer ver, no
texto constitucional, aquilo que não foi afirmado pelo Constituinte.
Ora, por que temos que recorrer a uma ideia invisível para defender um
argumento? O Consituinte estipulou e plasmou os limites do poder de reforma no próprio
texto constitucional. Não há espaço para subjetivismo aqui. Se o sentido da própria
Constituição é consolidar o Estado Democrático de Direito, e se este consiste basicamente
naquela forma política na qual o poder político submete-se ao império do Direito, como
imaginar que o poder de reforma da Constituição esteja sujeito a um critério tão subjetivo e
invisível, vago e impreciso, como o de “cláusula pétrea implícita”? Se o poder constituinte
originário não engendrou um contexto normativo, como supor que ele seja fruto de algo
que não está no horizonte visível e objetivo do Direito Constitucional Positivo?
Não se pode pretender assegurar a normatividade da Constituição, e muito menos
a solidez e estabilidade do exercício do poder de reforma da Constituição por meio de tal
critério, e sim através da disciplina do poder político, submetido àquilo que Konrad Hesse
denomina de força normativa da Constituição.
O Art. 60 da Constituição Federal, portanto, não pode ser compreendido como
uma cáusula pétrea implícita e, não podendo estar incluído entre as cláusulas intangíveis
que nele mesmo estão listados, não haveria, nenhum impedimento na inclusão de uma nova
norma sobre reforma por meio de uma norma de reforma.
Esta constatação, no entanto, nos conduz a outro questionamento: a introdução
de uma nova modalidade de alteração formal do texto constitucional poderia flexibilizar o
que já estivesse disposto no Art. 60? Ou seja, seria possível o advento de uma emenda
constitucional que introduzisse uma modalidade de reforma com procedimento menos
dificultoso?
A possibilidade de flexibilização do mecanismo de rigidez constitucional previsto
na Carta Política é um tema delicado. No entanto, acreditamos que sua abordagem é
necessária para lançar luz sobre a amplitude do poder constituinte derivado reformador.
Conforme afirmamos, o Art. 60 pode ser um veículo para introdução de uma
outra modalidade de mudança formal da Constituição. A questão agora é saber se esta, por
~ 324 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 325 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
constitucional, mais flexível que a que existe atualmente, é preciso ressaltar que saímos do
terreno do raciocínio abstrato, posto que tal fenômeno ocorreu com a introdução do § 3º
ao Art. 5º, por meio da Emenda Constitucional N.º 45/04.
Com o advento da Emenda Constitucional N.º 45/04 uma seríssima modificação
foi introduzida na Carta Política brasileira através do conteúdo do § 3º, agora acrescido ao
Art. 5º.193 Confirmando um antigo entendimento decorrente da leitura doutrinária do § 2º
do mesmo dispositivo constitucional,194 o legislador inseriu uma legítima cláusula de
abertura constitucional à dimensão internacional, permitindo que tratados sobre direitos
humanos ingressem na ordem interna com a qualidade de normas constitucionais. Um
pioneirismo que não se vê sequer em países como a Espanha ou Itália, nos quais um
processo de integração intenso, como o europeu, tem exercido uma forte pressão sobre as
cláusulas do poder de reforma das respectivas constituições nacionais. No caso brasileiro, a
previsão contida no Art. 5º, § 3º, embora avançada, veio desacompanhada de quaisquer
cláusulas de controle que estabelecessem um filtro normativo que não o político, para
inserção de tais normas no plano interno, cabendo portanto questionar se, nos termos da
atual Constituição, abre-se a possibilidade para legitimar um autêntico poder constituinte
derivado reformador internacional, através do qual possamos identificar parte do processo
de mudança formal da Constituição acontecendo fora do Estado e outra no seu interior.
Depreende-se do processo de elaboração da emenda n. 45/2004, que o legislador
não se revestiu dos devidos cuidados quanto a apreciação sobre a proposta de inserção do
art. 5º, §3º, haja vista que não existiu qualquer discussão acerca dos reais efeitos jurídicos
que uma emenda desta relevância ocasionaria no ordenamento jurídico, limitando-se
apenas a seguir o modelo adotado na Argentina. O resultado desta total negligência
parlamentar foi à construção de mais uma anomalia referente à figura do Poder
Constituinte.
Não resta dúvida que a titularidade do poder de reforma da Constituição, ainda
que indiretamente ligada à vontade popular, por meio dos titulares do poder de iniciativa da
Proposta de Emenda Constitucional, mantem um caráter democrático essencialmente
nacional. Os tratados internacionais, por seu turno, são elaborados obedecendo a uma
sistemática que, em parte, foge ao controle do povo. Além de introduzir o corpo
193 Constituição Federal, Art. 5º, § 3º: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que
forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos
respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
194 Constituição Federal, Art. 5º, § 2º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ella adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte.”
~ 326 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
diplomático na equação, que atua como negociador do mesmo, tem-se, ainda, a figura das
partes signatárias que plasmam seus interesses na formação do tratado, fugindo, no todo ou
em parte, ao controle popular, podendo ensejar, por conseguinte, influências de entidades
externas no corpo da Constituição que mitiguem a soberania do Estado. Além do mais,
nesta instância não há qualquer controle jurídico, mas tão somente político, estando
permeado pela discricionariedade do corpo político e da conveniência das relações
internacionais.
Outro problema oriundo dessa alteração legislativa tem um caráter doutrinário,
uma vez que por não serem os tratados instrumentos elaborados apenas internamente, não
cabe qualquer discussão ou modificação de seu objeto após a ratificação. Numa eventual
contradição entre este e o texto constitucional, destarte, a consequência seria a derrogação
de normas constitucionais. Dessa forma, o tratado não estaria sujeito ao procedimento de
rediscussão nem poderia ter o seu conteúdo modificado, exatamente por não ser
instrumento elaborado internamente, o que implicaria descurmprimento das obrigações
assumidas internacionalmente pelo Estado (GUSMÃO, 2005, p. 110-111).
Portanto, o que se percebe é a institucionalização de uma competência
reformadora parcialmente vinda de fora, cuja vontade normativa atende a entidades não
assentadas inteiramente numa legitimidade democrática.
Uma última questão para a qual cabe especial atenção, sobretudo à luz de recentes
eventos políticos é a delicada relação entre o poder de reforma e as circunstâncias de
anormalidade político institucional, a saber, Intervenção Federal, Estado de Defesa e
Estado de Sítio.
O art.. 60, § 1º é bastante taxativo quanto à proibição de se emendar a
Constituição na vigência das três situações de normalidade acima destacadas. Porém, a
manifestação do Presidente da República e de seu Ministro da Defesa quando da assinatura
do Decreto de Intervenção Federal no Rio de Janeiro, revelando a intenção de suspender a
medida a fim de aprovar a PEC N.º 287/16 (Reforma da Previdência), abriu uma capítulo
novo no âmbito da Dogmática Constitucional.
A peculiar conformação do poder de reforma constitucional dentro da ordem
constituída consolida a normatividade da Constituição, mitigando o caráter político em prol
da feição fundamentalmente jurídica da incidência constituinte derivada. Exatamente por
isto, a previsão do poder constituinte derivado manifesta evidentes limites de variado perfil:
processual, material e circunstancial.
~ 327 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
~ 328 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
solidez do pacto positivado nos dispositivos da Carta Política e expõe a relação que um
povo e, sobretudo, suas elites políticas mantem como as limitações jurídicas ao poder.
Ao longo dos trinta anos de vigência da Constituição Federal fenômenos diversos
têm incidido sobre a forma como foi concebido o recurso ao poder constituinte derivado.
Tantas foram as reformas constitucionais em tão pouco tempo, que cabe se questionar se a
essência do projeto inicial não foi comprometida, e se, a rigor, não jaz uma mutação
constitucional sobre a própria norma sobre reforma que é o Art. 60 da nossa Constituição.
Ao mesmo tempo, desafios jurídicos e políticos parecem assomar desafiadores
para a Carta de 1988. Do ponto de vista jurídico cabe questionar a exclusividade do Art. 60
como única norma sobre reforma no texto constitucional, e quais parâmetros deveriam ser
seguidos para eventual inclusão de outras modalidades. Do ponto de vista político, por
outro lado, resta claro que a perturbadora relação entre norma sobre reforma e
circunstâncias de anormalidade político-institucional, descortina a necessidade de manter
firma uma interpretação que garanta o império do Direito sobre a política.
Em todo caso, parece certo que não os limites de qualquer pretensão de resgate da
verdadeira essência do poder de reforma na Constituição Federal não pode se fiar de
encontrar nele mesmo os instrumentos de sua preservação. É no exercício da política, e na
penetração da percepção da normatividade da Constituição que se encontra qualquer
esperança para a preservação do projeto político de 1988.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALLEJÓN, Francisco Balaguer. Fuentes del Derecho. II. Ordenamiento General del
Estado y Ordenamientos Autonómicos. Madrid: Tecnos, 1992.
~ 329 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
GUSMÃO, Hugo César Araújo de . Poder Constituinte: uma categoria ainda válida nos
nossos dias?. In: Revista Brasileira de Direito Constitucional, v. 6, São Paulo: Escola
Superior de Direito Constitucional, 2006.
NADALES, Antonio Porras. Notas sobre la teoría del poder constituyente y la experiencia
española. In: Revista de Estudios Políticos (Nueva Época), Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales, n° 24, Nov./Dic. 1981.
SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular (estudos sobre a
Constituição). São Paulo: Malheiros, 2002.
~ 330 ~
GESTÃO DEMOCRÁTICA DO ENSINO NA JURISPRUDÊNCIA
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: 30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO CIDADÃ
1. INTRODUÇÃO
Doutora e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista
em Direito Constitucional com Extensão em Didática do Ensino Superior. Professora nos Cursos de
Graduação e Pós-Graduação “Lato Sensu” da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Vice-líder do Grupo de
Pesquisa Emergente – CriaDirMack- Direitos da Criança do Adolescente no Século XXI da Faculdade de
Direito da UPM Vice-líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Políticas Públicas como Instrumento de Efetivação
da Cidadania” e do Grupo de Estados “Criança e Adolescente no Século XXI”. Pesquisadora no Grupo de
Pesquisa “Estado e Economia no Brasil”. Avaliadora de diversos periódicos nacionais e autora de diversos
artigos e livros jurídicos. Email: michelleasato@mackenzie.br.
195 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 35.
196 LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 154-159.
~ 331 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
filia à cidadania não é apenas a que permite gozar certos direitos, mas sim aquela de ser co-
participante do governo.
Como esclarece o Professor Dalmo Dallari197, a expressão “cidadania” tem origem
na Roma antiga e servia para designar a condição social, política e jurídica de uma pessoa,
implicando em forte participação na vida social e no governo. Era um critério
discriminatório na medida em que o cidadão era aquele pertencente à classe superior da
sociedade, sendo excluídos, por exemplo, as mulheres e os escravos.
O conceito de cidadania evoluiu muito até atingir a formulação enunciada na
Constituição Federal Brasileira de 1988. Esta trajetória vem sintetizada na seguinte
afirmação de Gianpaolo Poggio Smanio198:
Os 20 anos da Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, Organizador: Alexandre de Moraes,
2008, p. 337.
199 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 157.
200 Id., ibid., p. 159.
~ 332 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
201Educação constitui o ato ou o efeito de educar-se, por sua vez, o ensino designa a transmissão de
conhecimentos, informações ou esclarecimentos úteis ou indispensáveis à educação (RANIERI, Nina.
Educação Superior, Direito e Estado: na Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.394/96). São Paulo: Edusp, 2000, p. 168.
~ 333 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
A educação, consagrada como direito social fundamental, deverá, à luz do art. 205
da Constituição Federal, ser promovida e incentivada pela sociedade, tendo por objetivo o
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.202
Depreende-se que a opção pelo modelo de Estado Democrático rege toda a
estrutura do sistema educacional constitucional e, desta forma, conforme já salientado, a
gestão do ensino deve ser participativa.
Isso porque, em nosso Estado Social e Democrático de Direito, o princípio
democrático implica a democracia participativa, a estruturação de processos que ofereçam
aos cidadãos efetivas possibilidades de aprender a democracia, participar do processo de
decisão, exercer controle crítico na divergência de opiniões, produzir inputs políticos
democráticos.203
Tal como outros conceitos históricos, não há uma única definição de democracia,
no sentido estritamente jurídico-político. Marcello Caetano204 a conceitua como: “Forma de
governo em que os governados são considerados titulares do Poder Político e o exercem
directamente ou mediante representantes temporários periodicamente eleitos”.
Se pudermos relacionar a garantia da liberdade individual como preocupação
precípua do Estado Liberal e o objetivo de conciliação do Estado com a sociedade ao
modelo de Estado Social, acrescendo os valores ligados ao princípio da igualdade, é
conveniente citarmos que, neste, a democracia205 caracteriza-se “como coletivista, social,
onde a compreensão dos valores humanos terá de fazer-se sempre com referência a grupos
e não a indivíduos206”.
Norberto Bobbio207 também não destoa desta forma de interpretação do modelo
de Estado adotado em nossa Constituição, quando salienta que “a justificação da
democracia, ou seja, a principal razão que nos permite defender a democracia como a
melhor forma de governo ou a menos ruim, está precisamente no pressuposto de que o
indivíduo como pessoa moral e racional, é o melhor juiz de seu próprio interesse.”
~ 334 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 335 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Se é certo que a democracia não se resume às eleições diretas, também é certo que
a gestão democrática do ensino deve ser efetivada pela participação da sociedade em
diferentes canais, como nos Conselhos de Ensino e em diferentes instâncias de decisões em
que estão previstas a participação da coletividade. Neste contexto, afastar a comunidade da
escolha dos dirigentes escolares é, sem dúvida, negar a soberania popular.
Vale salientar que o próprio artigo 14 da Constituição de 1988 esclarece que a
soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com
valor igual para todos e, nos termos da lei.
Na oportunidade, reforçando a idéia da inafastabilidade da participação popular,
tem-se que:
212FRAGALE FILHO, Roberto. Educação e Constituição. In: QUARESMA, Regina; OLIVEIRA, Maria
Lúcia de Paula (Cord.). Direito Constitucional Brasileiro: perspectivas e controvérsias contemporâneas, Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 695.
~ 336 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
[...]
VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica,
administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio
de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Por sua vez, a Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1966 213, também prevê:
~ 337 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Como evitar distorções como as acima narradas? Como fazer com que a
comunidade escolar como um todo se sinta parte da escola, evitando que o diretor seja o
~ 338 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 339 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 340 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
217 Acórdãos e votos de relatoria dos Ministros Cezar Peluzo, Celso de Mello, Octavio Gallotti, Carlos
Velloso, Néri da Silveira, Maurício Correa, Paulo Brossard e Sydney Sanches.
218 Outro exemplo, na mesma linha de interpretação, refere-se à nomeação do Diretor-geral do Colégio Pedro
II, mantido na órbita federal por força do artigo 242, § 2º do texto constitucional, conforme ementa:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. COLÉGIO PEDRO II. NOMEAÇÃO
DO DIRETOR-GERAL. GESTÃO DEMOCRÁTICA NO ENSINO PÚBLICO. INTERPRETAÇÃO
DO ARTIGO 20 DA LEI 5758/71. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ARTIGO 37, INCISO V: REGRA
NÃO AUTO-APLICÁVEL. RECONDUÇÃO AO CARGO POR UMA VEZ. DIREITO ADQUIRIDO:
INEXISTÊNCIA. 1. A Constituição Federal, ao preconizar a gestão democrática no ensino público, remeteu
à lei ordinária a forma, as condições e os limites acerca do seu cumprimento. 2. A Congregação tem o dever
de sugerir ao Presidente da República seis candidatos ao cargo de Diretor-Geral do Colégio Pedro II, não
estando o Chefe do Poder Executivo adstrito à lista sêxtupla. Inteligência da expressão "de preferência"
contida no § 1º do artigo 20 da Lei 5758/71. 3. Cargos em comissão a serem preenchidos por servidores
efetivos. A norma inscrita no artigo 37, V, da Carta da República é de eficácia contida, pendente de
regulamentação por lei ordinária. 4. Compatibilidade do ato impugnado com o § 2º do artigo 20 da Lei
5758/71, que veda a recondução sucessiva e não a manutenção do Diretor-Geral no cargo por mais uma vez.
Segurança denegada. (RMS 24287, Relator: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em
26/11/2002, DJ 01-08-2003 PP-00142 EMENT VOL-02117-40 PP-08641).
~ 341 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
219 Constante da revisão de apartes dos Srs. Ministros Sepúlveda Pertence, Nelson Jobim e Cezar Peluso no
julgamento da Medida cautelar, ADIN 2.997-5.
~ 342 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O voto proferido pelo Ministro Carlos Madeira ainda esclarece que “não tendo as
escolas públicas de primeiro grau a autonomia administrativa e financeira conferida à Universidade, não há
que cogitar da investidura em seus cargos de direção por eleição”.
Contudo, procedendo-se com o que o Ministro Sepúlveda Pertence denomina de
“interpretação retrospectiva da Constituição”222, a invocação do artigo 37, inciso II, como
impossibilitante das eleições diretas nas instituições públicas de ensino, se coaduna com a
Carta Constitucional pretérita. Porém, ao introduzir o dispositivo que prevê como princípio
a gestão democrática do ensino, o artigo 206, inciso VI, da Constituição Federal de 1988,
autorizou nova modalidade de provimento de cargos de gestão dos estabelecimentos de
ensino.
pretérita, de modo a que, não obstante a mudança, tudo continue exatamente como era.
~ 343 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
de; SARMENTO, Daniel e BINENBOJM, Gustavo (coord.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2009, p. 697.
225 MARINS, op.cit., p. 699.
~ 344 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
princípios que regem o ensino se aplicam tanto ao ensino privado como ao público, a teor
do disposto no artigo 209 da Constituição Federal de 1988.
Por sua vez, a Constituição de Pernambuco elenca em seu artigo 178, inciso VII,
o princípio da gestão democrática nas escolas públicas e, mais adiante, em seu artigo 183,
esclarece que “a lei assegurará às escolas públicas, em todos os níveis, a gestão democrática,
com participação de docentes, pais, alunos, funcionários e representantes da comunidade”.
O parágrafo único ainda esclarece que “a gestão democrática do ensino público será
consolidada através dos Conselhos Escolares”.
Na Constituição do Rio Grande do Sul, embora o artigo 197, inciso VI, tenha
apenas disposto acerca da gestão democrática do ensino público, o artigo 213, § 1º, deste
diploma, inovou ao determinar que “os diretores das escolas públicas estaduais serão
escolhidos, mediante eleição direta e uninominal, pela comunidade escolar, na forma da
lei”.
As leis gaúchas foram editadas em 1991 (Leis estaduais nºs 9.233/91 e 9.263/91)
e, em conjunto com o dispositivo constitucional estadual, foram declaradas
inconstitucionais, nos termos da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 578, de
relatoria do Ministro Maurício Corrêa, nos termos da ementa abaixo transcrita, cujos
fundamentos do voto serão objeto de análise mais adiante:
226 Art.190. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: [...] VII. gestão democrática do
ensino público e privado, na forma da lei.
227 SILVA, op. cit., p. 789.
228 ADI 578, Relator: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 03/03/1999, DJ 18-05-2001
~ 345 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Art. 178. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
[...]
VII - gestão democrática e colegiada das instituições de ensino mantidas pelo
Poder Público estadual, adotando-se sistema eletivo, direto e secreto, na
escolha dos dirigentes, na forma da lei.
231 A lei 10.486/91 do Estado de Minas Gerais regulamentou o dispositivo da Constituição e ambos foram
declarados inconstitucionais. ADI 640, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Relator p/ Acórdão: Min.
MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 05/02/1997, DJ 11-04-1997 PP-12177 EMENT VOL-
01864-01 PP-00090.
232 ADI 606, Relator: Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 25/03/1999, DJ 28-05-1999
PP-00022 EMENT VOL-02138-04 PP-00778 e ADI 2997, Relator Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno,
julgado em 12/08/2009, DJe-045 DIVULG 11-03-2010 PUBLIC 12-03-2010 EMENT VOL-02393-01 PP-
00119.
Em relação ao Rio de Janeiro houve também a discussão acerca da iniciativa da lei regulamentadora que
previu as eleições diretas para os cargos dos dirigentes das instituições de ensino. A referida lei foi de
iniciativa do então deputado Carlos Minc. Entendeu o STF que haveria inclusive vício de iniciativa, uma vez
que o provimento de cargo público é de iniciativa exclusiva do chefe do executivo.
234 ADI 123, Relator: Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/02/1997, DJ 12-09-1997
Tribunal Pleno, julgado em 01/03/1991, DJ 11-10-1991 PP-14247 EMENT VOL-01637-01 PP-00084 RTJ
VOL-00135-03 PP-00905.
236 Art. 230. O Conselho de Educação do Ceará, órgão normativo, consultivo e deliberativo do sistema de
ensino do Estado do Ceará, será entidade autônoma e constituir-se-á em unidade orçamentária e de despesa.
§ 1º O Conselho de Educação do Ceará será integrado por educadores, indicados na seguinte proporção: um
terço pelo Secretário de Educação do Ceará e dois terços pelo Legislativo.
237 EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
CONSTITUIÇÃO DO CEARÁ, art. 230, § 1º. NOMEAÇÃO DE MEMBROS PARA O CONSELHO DE
EDUCAÇÃO. I. - As nomeações para os cargos da Administração, ressalvadas as hipóteses inscritas na
Constituição, são da competência do Chefe do Poder Executivo (C.F., art. 84, XXV), facultadas as delegações
~ 346 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
impossibilidade de nomeação de cargos por pessoa outra que não o chefe do Executivo.
Contudo, não há, na Constituição do referido Estado, previsão para eleições diretas, mas
sim normas rígidas de composição do Conselho de Educação.
Outra questão que se coloca é saber se, na qualidade de norma principiológica,
seria a gestão democrática do ensino público norma de repetição obrigatória nas
Constituições dos Estados Brasileiros?
A referida discussão não está contida expressamente nos argumentos das ações
em curso no Supremo Tribunal Federal, que versam sobre a gestão democrática do ensino,
embora a ADI 340, que declarou a inconstitucionalidade do dispositivo da Constituição de
Minas Gerais, conforme já salientado, tenha servido de exemplo a Leonardo Marins de
aplicação, pelo Supremo Tribunal Federal, do denominado princípio da simetria 238, que
constitui na necessidade de identidade absoluta entre a norma central da Constituição
Federal e o ordenamento estadual.
A certeza é que, para os que repetiram o texto constitucional, a vigência e eficácia
foram preservadas, aos que inovaram, a inconstitucionalidade foi certeira.
Todavia, mais uma questão deve ser salientada: a gestão democrática do ensino
visa, sem dúvida, à ampliação da participação popular. Nesta linha, o próprio Supremo
Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que o princípio constitucional do sufrágio
direto, como um “mandamento de otimização” deve ser realizado na maior medida
possível, mas dentro das circunstâncias históricas e jurídicas vigentes.239
As decisões de inconstitucionalidade não seriam, portanto, incongruentes com a
necessidade de se ampliar a participação popular?
Vale lembrar que, a Constituição, nos termos do artigo 60, pode ser emendada
mediante proposta: “I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados
ou do Senado Federal; II – do Presidente da República; III – de mais da metade das
Assembleias Legislativas nas unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela
maioria de seus membros”.
indicadas no parágrafo único do mesmo artigo 84, C.F. II. - Cautelar deferida para suspensão da eficácia, no §
1º do art. 230 da Constituição do Ceará, que cuida da nomeação dos membros do Conselho de Educação, das
expressões: "indicados na seguinte proporção: um terço pelo Secretário de Educação do Ceará e dois terços
pelo Legislativo".
(ADI 143 MC, Relator: Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 06/05/1993, DJ 30-03-2001
PP-00080 EMENT VOL-02025-01 PP-00001).
238 O princípio da simetria é tratado em diversos julgados do Supremo Tribunal Federal, v. g. ADI 1353/RN,
Relator: Ministro Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJU de 16/05/2003; ADI 738/GO, Relator: Ministro
Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJU de 07/02/2003 e RE 223037/SE, Relator: Ministro Mauricio Corrêa,
Tribunal Pleno, DJU de 02/08/2002).
239 ADI 4298 MC, Relator: Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 07/10/2009, DJe-223
~ 347 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
[...] ainda que se admita que a intenção de normas dessa natureza seja generosa
e, quem sabe, progressista, o que aqui se encontra é um aberto desafio à lógica
constitucional e ao próprio princípio democrático. Numa instituição pública de
ensino, onde tudo rigorosamente depende do tesouro público, onde tudo é pago
por recursos tomados ao contribuinte e administrados pelo Estado, não se
compreende que as pessoas que em determinado momento ocupam funções
docentes, ou lá se encontram realizando seus estudos ou prestando trabalho
administrativo, assumam essa prerrogativa autárquica. Teríamos aí uma
instituição autárquica financiada por outrem. Teríamos uma forma sutil e curiosa
de soberania universitária – numa universidade, entretanto, que não se
sustenta, porque depende do tesouro público. Depende, portanto, daquela
comunidade contribuinte que se confunde com o colégio eleitoral que conduziu
ao poder as pessoas às quais o sistema confere a prerrogativa de fazer essa
escolha. (grifei) 240
[...]
VI- gestão democrática do ensino público, adotado o sistema eletivo, mediante voto direto e secreto, para
escolha dos dirigentes dos estabelecimentos de ensino, nos termos da lei.
~ 348 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
universidades foi concedida, pelo texto constitucional, uma autonomia própria, a fim de
assegurar a liberdade de aprender e ensinar.
4. CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
243FRAGALE FILHO, Roberto. Educação e Constituição. In: QUARESMA, Regina; OLIVEIRA, Maria
Lúcia de Paula (Cord.). Direito Constitucional Brasileiro: perspectivas e controvérsias contemporâneas, Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 695.
~ 349 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
FRANCO, Maria Estela dal Pai e MOROSINI, Marilia Costa. Gestão Democrática e
Autonomia Universitária: Educação Superior no Brasil e o Mercosul. Disponível em
http:www.publicacoes.inep.gov.br/.../%7B595186B4-34FF-4479-BFA7-
429BBE0F0986%7D_MIOLO_TEXTO%20DISCUSSÃO%20Nº%. Acesso em: 08. jun.
2018.
LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
~ 350 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
RANIERI, Nina Beatriz. Educação Superior, Direito e Estado. São Paulo: Edusp, 2000.
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2008.
~ 351 ~
DEMOCRACIA E REPRESENTATIVIDADE EM UM
PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO:
BREVE ANÁLISE DO CASO BRASILEIRO
1. INTRODUÇÃO
* Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Professora de Direito Constitucional e
Financeiro na Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA.
** Doutor em História do Direito pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutor pelo Max-Planck-Institut für
~ 352 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Democracia não é uma palavra de fácil definição. Talvez nem sequer possa
afirmar que uma só uma expressão dê conta da imensidão semântica que o termo demanda.
Giovanni Sartori (1987, p. 17) alerta que “ideias erradas sobre democracia fazem a
democracia dar errado”. Para o autor, “definite la democrazia è importante perché
stabilisce cosa ci aspettiamo dalla democrazia” (2007, p. 11).
Teóricos políticos buscam nas reminiscências históricas do termo alguma pista do
que viria a ser democracia. Bobbio (2003), por exemplo, se dedica a descrever democracia
percorrendo a evolução etimológica da palavra – kratos– poder e dêmos – povo. Conclui que
“a democracia dos antigos se distingue da dos modernos pela maneira como o povo exerce
o poder” (2003, p. 235).
Democracia como o poder do povo é a mais simples conotação que se possa
empregar ao termo, e talvez a mais fidedigna. Os desdobramentos desta definição a partir
dos problemas do cotidiano ensejam maiores teorizações acerca do tema. Por exemplo,
como se dá o exercício deste poder pelo povo? A partir da delimitação de espaço e tempo,
o exercício deste poder pode se dar diretamente, na praça, como faziam os gregos antigos;
ou por meio de representantes, nos Estados modernos. É sobre esta definição de
democracia que iremos nos debruçar neste trabalho: o poder exercido pelo povo, por meio
de representantes; a denominada democracia representativa.
~ 353 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
244Cumpre ressaltar que não se está aqui a afirmar que a democracia é inviável em sua mais pura forma.
Acredita-se que em planos menores, como o municipal ou até mesmo em conselhos comunitários, por
exemplo, a democracia em sua modalidade participativa é viável e pode ser eficiente.
~ 354 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
democracia representativa), pautando-se por ideias de igualdade e liberdade. Mas isto não é
garantia que as escolhas tomadas sejam as mais adequadas ou as melhores, nem se, de fato,
há uma identificação com a vontade geral do povo. Aliás, esta é a grande problemática da
democracia representativa, especialmente em sociedades complexas e heterogêneas como
são as atuais.
É natural que haja discordâncias de interesses entre os mais variados setores da
sociedade. A democracia busca lidar com tais situações de modo pacífico e não violento, a
fim de estabelecer um ambiente de convivência entre as diferenças. Um dos meios
encontrados foi o de atribuir valor a manifestação do povo e, na soma destes valores,
alguns interesses devem ceder àquele que alcançou maior valor em suas manifestações.
Atualmente, uma forma de mensuração deste valor tem sido feita por meio dovoto,
através do qual o cidadão manifesta qual representante terá direito de tomar decisões em
seu nome. Nesta disputa de interesses, há a preponderância de uns sobre os outros. Este é
o meio formal de manifestação de vontade e condução de políticas em Estados que
consideram democráticos245.
Oportuno destacar que a representatividade não é o único meio de viabilizar um
sistema de governo democrático. É equivocada a noção de que, necessariamente, todo
governo democrático deve ser representativo.
Entretanto, a necessidade de operacionalização do exercício desta soberania
popular forjou uma necessária vinculação entre o princípio democrático e o princípio
representativo. Inicia-se, assim, a era da democracia liberal na qual aqueles que se dizem
representantes do povo exercem o poder para o bem comum.
Ao analisar a democracia parlamentar, Schimitt (1996) conclui que se trata de um
regime inviável, pois acredita que a identidade entre governante e governado, que é a base
de uma democracia, não seria possível em um regime que tem como parlamento o centro
das decisões políticas. Para o jurista alemão, democracia parlamentar trata-se de conformar
dois princípios bem singulares e distintos: o da identidade, típico da democracia, e o da
representatividade, típico das monarquias.
A noção de democracia schmittiana não se coaduna com a noção de democracia
que as sociedades plurais e complexas demandam. A perfeita identificação entre
governantes e governados, com uma identidade una, é irreal para um contexto tão
complexo quanto o da modernidade. Mas as análises do jurista alemão chamam atenção de
245Há outras formas de manifestação de poder; mesmo em democracias representativas, há mecanismos de
democracia direta que possibilitam ao cidadão fazer parte do processo decisório das políticas de sua
comunidade. No entanto, como o foco do presente estudo é o da democracia representativa, dedicaremos
especial atenção a esta modalidade de democracia.
~ 355 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
que não se deve confundir representatividade com democracia, ou ainda, que não se
entenda o exercício da democracia apenas por meio da representatividade, ainda que este
seja o meio mais difundido.
A democracia representativa, largamente difundida no mundo ocidental, pode ser
vislumbrada no exercício da função legislativa, por exemplo. O parlamento é formado por
representantes, via de regra, eleitos para representar determinados grupos da sociedade.
Outrossim, se por um lado a representatividade foi a solução para administrar eventuais
conflitos, por outro passou a ser um dos grandes problemas da moderna democracia.
Aliás, a pluralidade e heterogeneidade típicas das sociedades atuais elevou,
também, “o numero de indivíduos que atuam em política ou que colaboram direta ou
indiretamente na formação das decisões coletivas isso tornou o ‘espaço político’ mais
amplo, embora mais fluido ou menos definido e com limites mais diluídos” ( BOBBIO,
2003, p. 289).
As mudanças que foram ocorrendo acarretaram novas demandas das mais
diversas ordens, especialmente a social e econômica; por conseguinte, “a multiplicação de
demandas exacerba a tendência histórica de intervenção ampliada do Estado”
(ABRANCHES, 1988, p. 6).
Por representatividade, foi disseminada a ideia de que se baseia em uma relação de
confiança dos eleitores no escolhido para representar interesses, e não de mandatário, a
qual exige fidedignidade ao mandante. Para Bobbio (2003), trata-se de uma evolução das
concepções acerca do locus da soberania.
~ 356 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
interesses convergentes a fim de sua melhor defesa, os partidos tem sido destaque no
cenário político de grande parte dos Estados democráticos.
Os partidos políticos são uma realidade incontestável e inevitável nas democracias
modernas (BONAVIDES, 2000, p. 455). Embora tenha havido rejeição à ideia de uma
democracia partidária, em especial pelos liberais, a acolhida constitucional nas democracias
sociais do sistema partidarista foi inevitável. Viabilizar a representatividade mediante
sistema de ideias, que não personificassem o indivíduo mas os interesses a serem
representados era o grande atrativo da proposta de uma política partidária – mas também, o
motivo de tanta resistência como na visão de Schmitt acima mencionada.
O fato é que os partidos passaram a ser utilizados como viabilização do sistema
democrático representativo. Algumas nações possuem um sistema cuja atuação partidária
se destaca em apenas duas frentes –, a exemplo do que ocorre na Inglaterra e Estados
Unidos; enquanto outros se destacam por uma atuação partidária com múltiplos partidos,
sendo denominado de multipartidarismo, como é o caso do Brasil.
~ 357 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Para que uma democracia funcione plenamente, é necessário que suas instituições
atuem em consonância com suas funções, observando a sua inserção em uma sociedade
plural e complexa. O debate é necessário, a manifestação de opiniões é preciso e tudo isto
só é possível se houver uma liberdade de consciência do homem político que integra estes
poderes. A arena de debates (parlamento) deve ser utilizada para que o pluralismo da
sociedade possa ter vez e voto. Se este espaço é utilizado de modo indevido, para satisfação
de interesses pessoais ou puramente partidários, há desvio de finalidade da função pública
na qual o parlamentar está investido, o que compromete, diretamente, os direitos e
garantias da sociedade.
Vivemos em sociedades plurais, complexas. As diferentes formas de agir e pensar
acarretam diferentes valores a serem considerados relevantes. A representatividade dos
diferentes grupos de uma sociedade tendem a ser viabilizados mediante representatividade
no espaço público de discussões. Na via política, a existência de diversos partidos com
linhas ideológicas diversas parece ser o caminho eleito.
No entanto, convém ressaltar que este mesmo pluralismo de valores que
predomina em uma sociedade múltipla pode vir a culminar em insatisfações de ordem geral
na política (ABRANCHES, 1988, p. 6). A bem da verdade, não se trata de um pluralismo
de valores, mas uma “disparidade de comportamentos desde as formas mais atrasadas de
clientelismo até os padrões de comportamento ideologicamente estruturados”, fruto de um
desenvolvimento econômico-social desordenado (ABRANCHES,1998, p. 6).
Preconizando essa solução, supõem ser a crise dos partidos em larga parte
determinada pela incapacidade em que se acham eles de reduzir ao interesse
geral certos anseios de classe, que ficam portanto desatendidos ou postos à
margem, quando não chegam a ser — o mais comum, aliás — indevidamente
apropriados por grupos, cuja legitimidade para representá-los é mais duvidosa
que a dos próprios partidos. (Bonavides, 2000, p. 481)
~ 358 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
246No caso brasileiro, exige-se filiação partidária para que se possa concorrer em uma eleição, nos termos do
artigo 14, §3o, V da Constituição Federal. No entanto, há países, como é o caso dos Estados Unidos da
América, em que o cidadão pode concorrer a cargos políticos de modo avulso, não sendo obrigada a filiação
partidária.
247Fontes Câmara dos Deputados e Senado Federal. Disponível em:
<http://www.camara.leg.br/Internet/Deputado/bancada.asp> e
<https://www.senado.gov.br/senadores/senadoresPorPartido.asp> Acesso em 12 de junho de 2016.
~ 359 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 360 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Esta forte tendência a centralização observada por Bloch é percebida não apenas
por quem exerce o poder executivo, mas de certo modo, pelos que exercem o poder
legislativo também. Assiste razão a Bloch quando afirma
248Aquiestá caracterizada a figura do homem, no masculino, por fidedignidade à fonte utilizada. No entanto,
oportuno ressaltar que homens ou mulheres podem exercer qualquer cargo no sistema político brasileiro.
~ 361 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 362 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
249Em livre tradução: “se a democracia deve funcionar –na verdade, se for para durar, o governo em geral e o
presidente, em particular, devem construir e manter conquistando coalizões”.
250Argelina Figueiredo (Um estado para aparelhar. Revista Insight Inteligência,Rio de Janeiro: Insight
Inteligência, Ano XV, n. 58, p. 40 – 49, Jul/ Set. 2012) em artigo sobre o aparelhamento do Estado
brasileiro, argumenta que essas coalisões, por vezes, caracterizam-se como uma necessidade governamental, o
que não quer dizer se tratar de algo negativo para o funcionamento da máquina governamental. Seu texto, de
Jul/set de 2012 inicia com o seguinte questionamento: “O chamado loteamento de cargos é oexercício do
governo partidário, seja petistaou tucano. Que mal há nisso?” (FIGUEIREDO, 2012, p. 41). Ao longo de seu
texto, a autora explica que há um estigma que paira sobre a ocupação de cargos públicos no Brasil, que seria
uma “partidarização dos cargos no governo, com reflexos ideológicos sobre a eficiência administrativa da
gestão pública” p. 42. A autora argumenta que alguns governos, como o do ex-Presidente Lula, aumentou a
burocracia – considerando a quantidade de cargos públicos, por exemplo – a fim de tornar o Estado mais
eficiente, como foi o caso citado da previdência social com inúmeros benefícios concedidos sem uma análise
mais acurada. A autora denomina “loteamento de cargos” como sendo um “exercício de um governo
partidário”, o que seria típico de governos representativos . “Votamos num partido para exercer o governo.
É legítima, portanto, a nomeação de quadros partidários para o exercício do governo”(p.44).
Um dos pontos positivos realçados pela autora neste jogo de nomeação decorrente desse governo
representativo é o fato de a burocracia nem sempre responder aos obejtivos em termos de preferências
~ 363 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
partidos para garantir uma margem mínima de aprovação de seus projetos no Congresso,
sem garantia de êxito.Há que se levar em consideração, também, que os parlamentares
podem se deixar levar não pela fidelidade aos ideais do partido, mas inclinados a obtenção
de vantagens, inclusive de caráter pessoal, como cargos públicos e apoio do prestígio
presidencial em suas bases territoriais.
Argelina Figueiredo (2012, p. 40-49) analisa a participação de partidos e políticos
na esfera governamental como algo típico do jogo político. Argumenta que a divisão de
cargos na estrutura governamental faz parte de um governo representativo e que o partido,
ao ser convidado a participar da base de coalizão do governo, analisa o que receberá em
troca a fim de cumprir seus objetivos, seja para ter uma fatia de poder ou para aumentar os
votos de seu partido, por exemplo. No entanto, os que escolherem a adesão apenas por
prestígio social tendem a ser excluído da política.
Para Abranches (1988), a articulação entre os poderes deve ser feita de modo
responsável, considerando os interesses defendidos por cada partido. Para o cientista
político, as lideranças, ao negociarem, deve atentar que as coalizões frequentemente
consideram a “inclusão de políticas contrárias aos princípios diretivos dos partidos” e
devem calcular corretamente “a amplitude de sua legitimidade e autoridade junto às bases e
de sua credibilidade perante a opinião pública” (1988, p. 28-9).
As coalizões estabelecidas entre o executivo e o legislativo podem ser de
segurança máxima, na qual tenta-se angariar o maior número possível de partidos para
garantir a quantidade máxima de votos e, assim, a viabilidade dos projetos de governo; e a
de segurança mínima, em que se estabelece coalizão com um número mínimo de partidos
que garantam os votos necessários à aprovação de projetos. A diferença em estabelecer um
ou outro são os compromissos firmados pelo poder executivo; quanto mais compromissos
com partidos que se distanciam de suas ideologias e premissas, mais comprometido fica o
governo com projetos que podem deturpar a proposta inicial de seu projeto político.
Para Wanderley Guilherme dos Santos (2013, p. 29-30), uma coalizão de
segurança máxima exige do presidente um enorme custo de benefícios antecipados,
distribuídos pela multiplicidade de interesses que ela integra. Assim, se por um lado a
coalizão é essencial para garantir sua governabilidade, por outro, ela pode comprometer
significativamente o projeto político do executivo, em virtude do excesso de compromissos
assumidos com os partidos.
políticas, servindo, assim, a nomeação política para corrigir as distorções decorrentes da falta de
responsividade da burocracia (p. 45).
~ 364 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
4. REPRESENTATIVIDADE, MULTIPARTIDARISMO E
PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO NO BRASIL
251Em livre tradução: “governamibilidade exige que cada um dos três poderes do governo seja forte”.
~ 365 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 366 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 367 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
que essa coalizão seja efetivada na prática. Entretanto, alguns instrumentos a favor do
presidente foram sendo enfraquecidos com o passar do tempo. A edição da Emenda
Constitucional no 86 e a imposição de execução de emendas parlamentares no orçamento e
a interpretação dada ao sistema de trancamento de pauta provocado pela edição de medidas
provisórias253 são alguns fatores que enfraqueceram o presidencialismo de coalizão no
Brasil nos últimos anos. Acrescente a isso o fato de a presidente eleita não gozar de tanta
popularidade quanto o seu antecessor, e uma série de escândalos de corrupção envolvendo
diversos setores do planalto central podem explicar um pouco da relação entre executivo e
legislativo nos últimos anos.
O fato é que se o presidencialismo de coalizão, no Brasil, já foi sinônimo de um
executivo forte, com poder de barganha, chegando até a passar uma imagem de legislativo
que acata cegamente os comandos do presidente, hoje já não é mais o que se presencia.
Estamos diante de um executivo esfacelado, com um vice-presidente atuando como ator
principal de um roteiro supostamente escrito por ele e seus aliados. A verdade, é que o
mesmo luta para garantir seu papel principal, mas não passa de um coadjuvante.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
253Em 2009, o então presidente da Câmara dos Deputados, vice-presidente durante os mandatos da
presidente Dilma Roussef, e atual presidente em exercicio, Michel Temmer emitiu parecer sobre a
interpretação dada ao dispositivo constitucional que estabelece o trancamento da pauta do legislativo
enquanto não apreciar as medidas provisórias emitidas pelo presidente da república. Com essa interpretação,
que passou a ser adotada no Congresso Nacional, a pauta que a não apreciação da medida provisória tranca é
a da legislação ordinária, única com mesmo conteúdo das medidas provisórias. Com esta interpretação, o
poder do executivo em relação aos trabalhos do legislativo ficou mais restrita.
~ 368 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 369 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS
254Em consideração à denominada teoria alemã da mutação constitucional, que prevê a alteração do sentido
da Constituição sem a modificação de seu texto.
~ 370 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10a edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
~ 371 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 372 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
WEBER, Max. Ciência Política: duas vocações. Prefário de Manoel T. Berlinck. Tradução
de Leônidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. 18. Ed. São Paulo: Cultrix, 2011
~ 373 ~
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NO CONTEXTO
CONSTITUCIONAL:
EFETIVAÇÃO PLENA PELA PARTICIPAÇÃO E FISCALIZAÇÃO DO
POVO AOS ATOS DO ESTADO NA PERSPECTIVA DO PROCESSO
DEMOCRÁTICO
INTRODUÇÃO
O exercício de poder pelo Estado é algo que faz parte da sua própria existência,
quer seja para uma possívelautoafirmação perante o povo, componente de sua formação e
concepção, ou para manutenção de sua soberania perante os demais Estados. Em outras
palavras, o Poder se torna “elemento essencial constitutivo do Estado” (BONAVIDES,
2010, p. 133), que tem o condão de encaminhar para inúmeras consequências, relacionadas
à forma pela qual é exercido, por quem é exercido e com quais objetivos é exercido.
Apesar das situações e comportamentos humanos que, por vezes, deturpam o
poder como elemento essencial para a formação do Estado, este Estado deve exercê-lo de
forma legítima, assentada em leis, notadamente em sua Constituição, existente como sua
pedra fundamental de organização e estruturação. Além disto, é preciso que o exercício de
poder pelo Estado se legitime pelos componentes de seu próprio território, ou seja, o seu
povo.
Contudo, este “legitimar” do povo não pode ocorrer de forma inconsciente e
impensada, sob pena de que todo e qualquer esforço empreendido em torno da legitimação
dos atos do Estado se perca diante da inexistência de esforço daqueles que, em regra, são (e
devem ser) os maiores interessados no bom funcionamento de suas engrenagens. A
importância do povo nesta relação mencionada passa pela existência de direitos que ele
próprio deve gozar e fruir, porquanto inseridos na Constituição como fundamentais para a
garantia de sua própria dignidade, a partir de sua previsão na Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
*Mestrando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG).
Especialista em Direito Processual Civil pela Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC/MG).
Bacharel em Direito pela Fundação Pedro Leopoldo (FPL).
~ 374 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 375 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Executivo para defender os seus interesses e através da decisão do próprio titular do poder
através do plebiscito, referendo e outros meios.” (1999, p. 249).
Concepções como esta refletem muitas vezes o entendimento raso sobre
institutos que, desde sua gênese, já surgem com objetivo muito mais amplo, conforme
advertiu Alexis de Tocqueville, ao afirmar que falava de um governo que segue a vontade
exclusiva e real do povo, não se limitando a se consolidar em um governo que comandasse
em nome de tal povo (TOCQUEVILLE, 2005, p. 249).
Fato é que a Democracia e o próprio Constitucionalismo despontam com real
importância em tempos modernos já em meados do século XX, com o fim da Segunda
Guerra Mundial e, consequentemente, com o fim dos regimes totalitários de cunho
nazifascista, os quais dizimaram milhões de pessoas em razão do exercício de poder de
forma despótica. A partir de tal momento histórico,os Estadosque se denominaram
democráticos retiraram de si a carga autocrática que lhes era peculiar em momento
pretérito, passando a primar pela normatização de direitos básicos para garantir uma vida
digna e plena ao povo, bem como da participação deste nos rumos da própria atividade do
Estado, atitude primordial para se livrarem definitivamente da mácula ditatorial que lhes
distinguia de qualquer outro Estado (ABBOUD, 2016, p. 103-105; BRÊTAS, 2015, p. 87-
88).
Muitos destes direitos que garantiriam condições mínimas de vida ao povo,
surgidos a partir da ruptura com os regimes ditatoriais, tais como educação, saúde,
segurança e moradia surgiram ainda no período do chamado WelfareState, ou Estado de
Bem-Estar. No entanto, houve notada a incorporação de outra gama de direitos que
atribuiriam ao povo a possibilidade de atuar mais concretamente nos rumos do próprio
Estado, ofertando verdadeira releitura dos atributos de povo, sociedade, jurisdição,
interesse público, cidadão, direitos fundamentais, direito à vida digna, dentre outros, como
bem relembra André Del Negri (2008, p. 39).
Esta eclosão de novos direitos ao povo foi viabilizada justamente pelo conteúdo
democrático que passou a ser identificado nas constituições dos Estados Nacionais no
período pós Segunda Guerra Mundial, notadamente com o advento da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, caracterizando estes Estados pelas premissas
básicas de realização da função legislativa mediante a participação de representantes do
povo, divisão do Estado em funções primordiais (legislativa, administrativa e jurisdicional),
atuação do Estado em conformidade com a lei e sob controle jurisdicional, além do
necessário reconhecimento de direitos e liberdades fundamentais ao povo (BARACHO,
~ 376 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
255 Entenda-se “positivação” no sentido de vigência do direito, ou posto à existência concreta e objetiva na
legislação, em contraposição ao direito natural, mas não se relacionando efetivamente com a doutrina
Positivista. De igual forma, adoraremos esta concepção ao mencionarmos esta palavra ao longo do texto.
(ABBAGNANO, 2007, p. 778.).
~ 377 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 378 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
256 Por “norma”, procurou se basear nos ensinamentos de Norberto Bobbio, o qual indica como norma todo
e qualquer conteúdo regulatório da vida humana, positivado no ordenamento jurídico ou não. “A nossa vida
se desenvolve em um mundo de normas. Acreditamos ser livres, mas na realidade, estamos envoltos em uma
rede muito espessa de regras de conduta que, desde o nascimento até a morte, dirigem nesta ou naquela
direção as nossas ações. A maior parte destas regras já se torna tão habitual que não nos apercebemos mais de
sua presença. Porém se observarmos um pouco, de fora, o desenvolvimento da vida de um homem através da
atividade educadora exercida pelos seus pais, pelos seus professores e assim por diante, nos daremos conta
que ele se desenvolve guiado por regras de conduta.” (BOBBIO, 2001, p. 23-24).
~ 379 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 380 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
257 Por “processualidade democrática”, vale lembrar o que já escreveu Dierle José Coelho Nunes, delineando
de forma bastante precisa: “A percepção democrática do direito rechaça a possibilidade de um sujeito solitário
captar a percepção do bem viver em sociedades altamente plurais e complexas e, no âmbito jurídico, a
aplicação do direito e/ou proferimento de provimentos, fazendo-se necessária a percepção de uma
procedimentalidade na qual todos os interessados possam influenciar na formação das decisões. Assim, toda
decisão deve ser resultado de um fluxo discursivo balizado por um procedimento embasado nos princípios
fundamentais (processo) que permita uma formação processual de todo exercício de poder. (NUNES, 2012,
p. 203).
~ 381 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
do povo. Isto porque a prestação da função jurisdicional pelo Estado a seu povo não pode
ter outra função essencial senão a de conceber estes Direitos Fundamentais. No entanto, a
Jurisdição não pode fazer brotar de seu exercício funcional a dita efetivação de direitos,
notadamente por também se configurar em Direito Fundamental, devendo ser guiada por
um instituto que os torne viáveis.
Neste sentido, importante relembrar sobre a inserção do direito à jurisdição como
fundamental ao povo, notadamente na Constituição de 1988 em seu artigo 5º, (inciso
XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), de
forma com que o povo possa buscar junto ao Estado a tutela e preservação de seus
direitos. Por esta razão, é de clareza solar o entendimento de que a Jurisdição
Constitucional é Direito Fundamental do povo (BRÊTAS, 2015, 90-92). A função
jurisdicional é inerte, como é cediço, sendo praticada pelo Estado apenas quando
provocada por atuação direta e concreta do povo, sobretudo quanto se insere no texto
constitucional expressamente esta possibilidade como mecanismo de concretização e
salvaguarda de Direitos Fundamentais. Por esta conclusão lógica, apenas e tão somente por
intermédio do processo é que a viabilização de tais direitos poderia ser conseguida, já que,
como pontuado anteriormente, a Jurisdição não poderia dar origem e realizar, por si só, tais
Direitos Fundamentais.
Há quem entenda que a Jurisdição Constitucional atua como uma espécie de
“legislador constitucional”, na medida em que o exercício do controle de
constitucionalidade culminaria na geração de novas bases normativas para regulação das
relações sociais (CRUZ, 2014, p. 128-136). Por outro lado, há quem entenda que a
Jurisdição Constitucional é um espaço de destaque para tratamento específico das questões
constitucionais de um Estado (ABBOUD, 2016, p. 104). Contudo, respeitando as vertentes
contrárias, entende-se como mais correta a lição de que:
~ 382 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 383 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Estado, hoje, não pode mais ser concebido como a figura hobbesiana do
Leviatã, o monstro exibido por Jeová a Job para demonstrar o seu poderio.A
criação do mito do Leviatã foi o esforço político imaginativo da unidade do
poder no âmbito de um determinado território, isto é, do poder do Estado
soberano de declara, uma única e exclusiva instância, a positividade jurídica com
estatização das fontes do direito. (2016, p. 56).
~ 384 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
258 “Em algunos textos legales se utiliza el vocablo jurisdicción para referirse a la prerrogativa, autoridade o poder de
determinados órganos públicos, especialmente losdel Poder Judicial. Se alude a la investidura, a la jerarquia, más que a la
función. La noción de jurisdicción es um poder-deber. Junto a la facultad de juzgar, el juez tiene el deber administrativo de
hacerlo. El concepto de poder deve ser substituído por el concepto de función.” (COUTURE, 2007, p. 25)
~ 385 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 386 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Todo o descrito até aqui nos encaminha para a certeza de que o Estado exerce
poder, viabilizando-o em seus atos. Contudo, baseando-se na célebre doutrina de
Montesquieu, não se pode partir da premissa equivocadamente conduzida por alguns
doutrinadores de que o Estado se divide em poderes (MAUS, 2009, p. 140-143; PEREIRA,
2012, p. 140-143), sendo comumente creditadaao filósofo francês sobre a criação desta
concepção rígida e estática.
Diferentemente, é preciso que se faça a leitura das ideias de Montesquieu não de
forma rígida, mas sim concebendo uma distribuição do poder do Estado, de forma
259Sobre a posição de Hesse, conferir citação direta contida no item 1 deste estudo.
260“(...) deve-se, compreender, de imediato, o sufrágio universal como o direito de votar concedido a todos os
nacionais, natos ou naturalizados, homem ou mulher.” (DEL NEGRI, 2016, p. 176.)
~ 387 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
A partir desta premissa,em concepção atual (ou pós moderna), o exercício dos
atos do Estado deve sempre observar os ditames básicos que lhe apregoa o Estado
Democrático de Direito. Em outras palavras, tais atos devem observar tanto o princípio do
Estado de Direito, ou seja, balizar-se estritamente no conteúdo de sua Constituição e todo
o Ordenamento Jurídico, bem como o princípio Democrático, pelo respeito à efetiva
participação do povo e, sobretudo, do respeito aos Direitos e Garantias Fundamentais a
que este povo faz jus. Estas condicionantes nos encaminham à certeza de que,
concebendo-se um ambiente de necessária processualidade democrática, há de se inserir o
Processo Constitucional como forma de viabilizar a legitimidade dos atos do Estado, quer
seja pela atuação direta e concreta do povo, quer seja pela procedimentalidade por ele
guiada, com estrita observância das normas constitucionais. Por esta razão, definiu
Rosemiro Pereira Leal:
Por tal razão, o Processo Constitucional é meio pelo qual a legitimação dos atos
do Estado pode ser concretizada, viabilizando, de forma direta ou indireta, a participação
do povo, já que os atos do Estado não podem surgir de uma vontade única, mas sim de
uma intensa participação e fiscalização do povo interessado, porquanto considerado como
a própria origem do poder Estatal. Apesar de toda a questão conjectural que muitos
~ 388 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
possam pensar, ao conceber o povo como fonte do poder do Estado, investido de Direitos
e Garantias Fundamentais e legítimo soberano em uma democracia, é preciso que se utilize
do Processo Constitucional, que também se configura em Garantia Fundamental, para que
não se incorra na advertência dada por Friedrich Müller, acerca do agir do próprio povo
(ou sua inércia) o colocar sob o signo de um ícone261, face a todo e qualquer arbítrio que o
Estado possa cometer em seu desfavor. Apesar desta ressalva, o mesmo Mülleré enfático
ao ressaltar que o povo deve sempre ser visto como “instância global da atribuição da
legitimidade democrática”, porquanto estrutura a própria legitimação do agir do Estado
(2003, p. 76-77).Por isto, André Del Negri ressalta:
261 “A instância prolatora da sentença com caráter de obrigatoriedade, que não se pode basear em textos de
norma de modo plausível em termos de método, exerce contrariamente uma violência que ultrapassa esse
limite, uma violência selvagem, transbordante, consistente tão somente nesse ato que já não é constitucional;
ela exerce uma violência ‘atual’. Neste caso a invocação do povo, a ação ‘em nome do povo’ é apenas icônica.
Diante de tal configuração não se trata nem do ‘povo’ ativo nem também apenas do ‘povo’ de atribuição; e
muito menos aí o povo está exercendo a dominação real. Mas fala-se como se ele estivesse exercendo a
dominação real, como se tivesse agido de forma mediada, como se legitimasse por meio da lealdade mediada
por normas. Nesse caso usamos o povo como sucesso da justificativa pré-democrática, supramundana: eis o
legitismo ‘por obra e graça do povo’.” (MÜLLER, 2003, p. 67)
~ 389 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 390 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
(...) a permitir que o Estado seja o mesmo em sua ortodoxia opressiva e todista,
a açambarcar todos os níveis de liberdade e privacidade em nome de uma
segurança pública, a CONSTITUIÇÃO em que esse ESTADO estivesse
inserido não teria sido construída a partir do espaço-tempo-processualizado, não
se revestido de qualificação jurídico-democrático-econômica na concepção pós
moderna de DEMOCRACIA aos moldes teóricos aqui desenvolvidos” (2010, p.
65).
263“A natureza humana sendo como é, não há de se esperar que o titular ou titulares do poder sejam capazes,
por auto-limitação voluntária, para liberar os destinatários de poder e a si próprios do trágico abuso de
poder.” (LOWENSTEIN, 1973, p. 149).
~ 391 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
4.2. Participação do Povo na Criação e Fiscalização dos atos do Estado por meio
do Processo Constitucional
Por tal desiderato é que já se afirmou no presente estudo que não há como se
assegurar que a lei, por si só, garanta a legitimidade de um ato do Estado, já que este ato
normativo pode conter vício antidemocrático desde sua gênese. Não se pode olvidar que
não é incomum que ocorram situações de criação de normas ilegítimas, ou, totalmente
contrárias ao que anseia o povo, sobretudo quando afrontam Direitos Fundamentais. De
forma contrária, o desconhecimento da possibilidade, ou verdadeira necessidade, de
participação do povo no processo legiferante do Estado colima para que muitos de tais
Direitos Fundamentais sejam diuturnamente tolhidos em ambiente legislativo. Apesar desta
~ 393 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
realidade, é preciso se ter em mente que, aqueles designados para a realização da função
legislativa, mediante a escolha do povo por sufrágio universal, devem necessariamente
observar os anseios, necessidades e carências do próprio povo, e não realizarem o seu
mister tolhendo a vontade de quem lhes deu a possibilidade de representa-los. Sobre estas
situações descritas, Rosemiro Pereira Leal já dissertou:
O fato de uma lei ser produzida num parlamento não torna democrático o
direito dela derivado, mesmo que se trate de um Estado constitucional e
declaradamente democrático. É que regimes de dominação estratégica em
variáveis e engenhosas normatividades adotam rótulos constitucionais de ênfase
retórico-democrática como formas patrióticas (cívicas) de gerir o povo icônico
numa cadeia de razões infinitamente messiânicas. (2010, p. 97).
Mas, afinal, quem sofreria o dano maior, a Casa ou o povo? O povo seria a
resposta mais adequada. A preocupação com o levantamento desses desacertos
tem em mira o propósito de demonstrar que o parlamentar, quando atua
divorciado do devido processo, colabora para a produção de
inconstitucionalidades e a violência no sentido derridariano. (2015, p.41).
~ 394 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
apenas a norma posta, apreciada em casos concretos pela função jurisdicional, mas também
entendida como regra de conduta (BOBBIO, 2001, p. 24) a todos do povo, donde se
espera do ordenamento jurídico, principalmente, o respeito aos Direitos e Garantias
Fundamentais. Esta estrita fiscalização da constitucionalidade “recai sobre um ato do Poder
Público lato sensu, ou seja, ato de um órgão estatal, titular de uma das três funções estatais
por excelência: da legiferante, executivo-administrativa ou jurisdicional” (MARTINS, 2011,
p. 11), possibilitando ao povo um amplo controle sobre a atividade do Estado, partindo-se
de uma necessária observância àquelas normas que tenham disposições e conteúdo de
Direito Fundamental (ALEXY, 2008, p. 65-66). Conforme pontuou Charley Teixeira
Chaves, nunca é demais relembrar que:
O raciocínio aqui delineado faz crer que o povo precisa atuar em Controle de
Constitucionalidade no momento da edição e também da aplicação das normas, sob pena
de não ser observada nos atos do Estado a legitimidade que o próprio povo deve conferir,
~ 395 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
CONSIDERAÇÕES FINAIS
~ 396 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
representantes, garantindo que estes mesmos direitos sejam resguardados desde a gênese de
um conteúdo legislado.
Em síntese, legitimar um ato do Estado pela atuação do povo vai muito além de
identificar validade ou eficácia de efeitos de um ato. É, verdadeiramente, buscar extrair do
povo o caráter de transformador de sua própria realidade, por meio de procedimentos
igualmente legítimos que justifiquem o seu agir como detentor do verdadeiro poder em um
Estado, sobretudo quando este se auto denomine Democrático de Direito. É efetivar
Direitos e Garantias Fundamentais pela plena atuação do povo nesta perspectiva
democrática.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5ª. ed. Trad. Ivone Castilho Benedetti.
São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008.
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Regimes Políticos. São Paulo: Resenha Universitária,
1977.
~ 397 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani
Bueno Sudatti. São Paulo: Edipro, 2001.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15 ª. ed. rev. atual. São Paulo:
Malheiros, 2005.
~ 398 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. 2ª. ed. rev. ampl.
atual. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014.
DEL NEGRI, André. Técnica Legislativa e Teoria do Processo. In: BRETAS, Ronaldo de
Carvalho Dias; SOARES, Carlos Henrique (Coord.). Técnica Processual. Belo horizonte:
Del Rey, 2015.
DEL NEGRI, André. Teoria da Constituição e Direito Constitucional. 2ª. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2016.
~ 399 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 5ª. ed. rev. ampl.
atual. Salvador: Juspodivm, 2013.
GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa. Das Necessidades Humanas aos Direitos – Ensaio de
Sociologia e Filosofia do Direito. 2ª. ed. rev. atual. ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2014.
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como Teoria da Lei Democrática. Belo Horizonte:
Fórum, 2010.
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo – Primeiros Estudos. 13ª. ed. rev.
atual. aum. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
~ 400 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
MARTINS, Leonardo. Direito Processual Constitucional Alemão. São Paulo: Atlas, 2011.
NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático – Uma análise crítica das
reformas processuais. 4ª. reimp. Curitiba: Juruá, 2012.
~ 401 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
WEBER, Max. Os três tipos puros de Dominação Legítima. In: Max Weber – Coleção
Grandes Cientistas Sociais. Coord. Florestan Fernandes. Org. Gabriel Cohn. Trad. Amélia
Cohn e Gabriel Cohn. São Paulo: Ática, 2003.
~ 402 ~
A RESSIGNIFICAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE:
DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL À
LEI N. 13.456/2017
INTRODUÇÃO
~ 403 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
264Observa Silvio Venosa que a propriedade coletiva primitiva é,por certo, a primeira manifestação de função social. (VENOSA, 2013, p.
158)
~ 404 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 405 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
266A respeito do laissez faire, apontam Farias e Rosenvald que “a função estatal primordial era a de defender
a segurança do cidadão e da sua propriedade. Os demais problemas sociais seriam solucionados pela ‘mão
invisível’ do mercado.” (FARIAS, ROSENVALD, 2015, p.213).
~ 406 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 407 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
direito de possuir alguma coisa. O direito à propriedade justifica não somente direitos
envolvidos ao bem-estar da coletividade, mas também, direitos que se destinam a auferir
justiça social e a universalização do acesso à propriedade.
Na esfera do direito privado, a primeira codificação civil brasileira, o Código Civil
de 1916, trouxe as regras gerais nos arts. 524 a 529. A doutrina clássica à época, já entendia
a propriedade comoplena in re potesta, direito real por excelência (PEREIRA, 2014),
considerada pelos civilistas como a matriz dos direitos reais e núcleo central dos direitos
das coisas.
Orlando Gomes prelecionava que o direito de propriedade é o mais amplo dos
direitos reais e seu conceito por ser delimitado a partir de três critérios: o sintético, o
analítico e o descritivo:
Em sua problemática conceitual, Caio Mário da Silva Pereira entende que “todos
os bens são apropriáveis, ou que o homem, como sujeito da relação jurídica, tem a
faculdade de dominação sobre todas as coisas dentro dos limites e com as restrições
instituídas em lei” (PEREIRA, 2014, p. 81)
As regras gerais da propriedade privada foram reformuladas no Código Civil de
2002 (arts. 1228 a 1232), sob influência da função social prevista expressamente na
Constituição de 88e passou a adotar um viés muito menos individualista.
Neste plano legal, não foi estabelecido uma definição concreta a respeito da
propriedade. Entretanto, o Código Civil Brasileiro disciplinou em seu artigo 1228 os
poderes facultativos do proprietário de usar, gozar, dispor e reaver a coisa do poder de
quem quer que a injustamente a possua ou detenha. Aproximando-se do Direito
Constitucional e da preocupação com o coletivo, o artigo 1228 § 1º do Código Civil passou
a aduzir:
~ 408 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 409 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 410 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 411 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 412 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 413 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
2671) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser suplantado
de maneira genérica sempre que houver, como dispõe o art. 231, § 6º, da CF, o interesse público da União, na
forma de lei complementar; 2) o usufruto dos índios não abrange a exploração de recursos hídricos e
potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional; 3) o usufruto dos
índios não abrange a pesquisa e a lavra de recursos naturais, que dependerá sempre de autorização do
Congresso Nacional; 4) o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, dependendo, se o
caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira; 5) o usufruto dos índios fica condicionado ao interesse da
Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções
militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico
e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes — o Ministério da Defesa
e o Conselho de Defesa Nacional —, serão implementados independentemente de consulta às comunidades
indígenas envolvidas ou à FUNAI; 6) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no
âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta às comunidades indígenas
envolvidas ou à FUNAI; 7) o usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de
equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias
à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação; 8) o usufruto dos
índios na área afetada por unidades de conservação fica restrito ao ingresso, trânsito e permanência, bem
como a caça, a pesca e o extrativismo vegetal, tudo nos períodos, temporadas e condições estipulados pela
administração da unidade de conservação, que ficará sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade; 9) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá
pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação
das comunidades indígenas da área, em caráter apenas opinativo, levando em conta as tradições e os costumes
dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da FUNAI; 10) o trânsito de visitantes e
pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e
condições estipulados pela administração; 11) deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não-
índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela FUNAI; 12) o
ingresso, trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou
quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; 13) a cobrança de tarifas ou quantias de
qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização de estradas, equipamentos
públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a
serviço do público, tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não; 14) as terras indígenas não
poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico, que restrinja o pleno exercício
~ 414 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
suas terras. Em seguida, os Ministros restantes da Suprema Corte procederam com o voto
em favor do julgamento imparcial da ação popular.
O caso Raposa Serra do Sol expõe a complexidade em questões antagônicas que o
direito de propriedade e a aplicação do princípio da função social podem enfrentar. A
decisão judicial buscou adequar estes institutos jurídicos a conservação dos valores culturais
e das tradições da comunidade indígena, assim como, a preservação do sentido econômico
da terra, acudindo os não índios ocupantes da área em reserva.
Ambos os casos demonstram importantes ressignificações do conceito clássico de
propriedade, muito embora não se deve negligenciar que tantas outras decisões268,
atendendo a este viés contemporâneo, possam ser encontradas no Judiciário brasileiro.
da posse direta pela comunidade jurídica ou pelos silvícolas; 15) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer
pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutos,
assim como de atividade agropecuária extrativa; 16) os bens do patrimônio indígena, isto é, as terras
pertencentes ao domínio dos grupos e comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e
das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto nos artigos 49, XVI, e 231, § 3º, da
Constituição da República, bem como a renda indígena, gozam de plena isenção tributária, não cabendo a
cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns e outros; 17) é vedada a ampliação da terra
indígena já demarcada; 18) os direitos dos índios relacionados as suas terras são imprescritíveis e estas são
inalienáveis e indisponíveis. (BRASIL, 2010).
268 É o caso, por exemplo da sentença proferida em 27 de abril de 2017, nos autos n. Autos n.º 0001128-
90.2013.8.16.0030, da 2ª Vara da Fazenda Pública de Foz do Iguaçu, em que se negou a reintegração de posse
dos proprietários registrais em loteamentos populares já constituídos, favor do interesse social dos ocupantes
de loteamentos populares faticamente já constituídos.
~ 415 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
que a posse não cumpre a finalidade do interesse comum. Sucessivamente, foi aprovado o
Enunciado n. 496 possibilitando o pedido de desapropriação privada por posse trabalho
em ação autônoma, o que facilitou ainda mais a reivindicação do instituto.
A IV Jornada de Direito Civil aprovou o Enunciado n. 304 estabelecendo que são
aplicáveis as disposições dos §§ 4.º e 5.º do art. 1.228 do CC às ações reivindicatórias
relativas a bens públicos dominicais. Isso significa dizer que até mesmo o Estado está
sujeito a ser privado de sua propriedade em desuso quando houver interesse social
relevante em discussão.
Esses entendimentos consolidados nos enunciados doutrinários das Jornadas de
Direito Civil demonstram a interferência do ordenamento jurídico no setor do domínio
privado e a preocupação contundente com os aspectos sociais. A funcionalização da
propriedade é testemunha de que, mesmo a sua configuração demarcada pelo Direito
Privado, o instituto exerce um papel ideológico social.
Além desta previsão, que já constava na redação original, é importante observar
que mais recentemente o legislador reconheceu mais uma espécie de propriedade: o direito
de laje.
O direito sobre laje constata como a funcionalização da propriedade se modifica e
se adapta aos fatos sociais. A atenção à proteção humana e a preocupação com a
coletividade se intensificou de tal modo, que foi criado uma nova classe de direitos onde se
discute se a natureza é de um direito real sobre coisa própria, sobre coisa alheia ou se se
trata de uma ampliação dos contornos do direito de propriedade.
A Lei n. 13.465 de 11 de julho de 2017 disciplinou o direito de laje, que até então,
era objeto da Medida Provisório n.759 de 22 de dezembro de 2016. Com a vigência desta
lei, o direito de laje foi inserido no rol de direitos reais, tipificado na redação do artigo 1225
do Código Civil. O artigo 1510-A do Código Civil (acrescentado pela Medida Provisória no
Código Civil), estabelece o conceito do direito laje:
A nova lei visou regulamentar uma questão social presente na realidade social das
cidades brasileiras, onde o crescimento urbano desordenado, sucedeu em ocupação de
imóveis urbanos irregulares, principalmente em locais onde residem moradores de renda
mais baixa. A construção erguida para moradia em propriedade de terceiro é uma prática
~ 416 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
corrente que se tornou um fenômeno social, gerado pelos diversos problemas estruturais
em razão da ausência de regramento jurídico sobre o tema.
O direito de laje, veio então, positivar um costume já existente, possibilitando de
forma legal, a edificação de uma ou mais unidades imobiliárias no espaço aéreo ou no
subsolo, dotadas de autonomia funcional, conservando na mesma área duas titularidades
reais diferentes e com matrícula própria, desde que haja autorização do proprietário da
construção-base. Assim, estima-se a regularização fundiária urbana, o atingimento das
funções socioeconômicas das cidades e a concessão para todo cidadão à dignidade de
moradia e direitos de se apropriar de bens.
No tocante a natureza jurídica do direito de laje como um direito real, há quem
defenda que se trata de um direito real sobre coisa própria, já que é aberta uma matrícula
própria na constituição desse direito. Este é o posicionamento de Nelson Rosenvald
(2018)e Carlos Eduardo Elias de Oliveira (2017), assessor no Senado Federal e um dos
autores da lei.Em contrapartida, outra corrente doutrinária, seguida por Flávio Tartuce
(2017), Pablo Stolze (2017), entre outros, entende tratar-se de um direito real sobre coisa
alheia, sendo uma modalidade de superfícies.
O legislador foi impreciso quanto à natureza jurídica da laje, entretanto, o artigo
1510-A do Código Civil dispõe que o proprietário da construção base pode ceder a
superfície superior ou inferior de sua construção para que o titular da laje possa edificar sua
moradia, distinta daquela originalmente construída sobre o solo. Atenta-se que o texto legal
menciona a palavra superfície.
O posicionamento adotado pelo STJ trata o direito de laje como direito real sobre
coisa alheia, visto que a construção-base é do proprietário cedente, havendo, deste modo,
um direito real de gozo ou fruição. Conforme o voto do ministro Luís Felipe Salomão:
[...] A presente hipótese, apesar de também ser conhecida como “laje” não se
tipifica ao novel instituto, já que se está, em verdade, diante de uma projeção de
uma parte ideal do mesmo apartamento – o terraço cobertura (espécie de
acessão/benfeitoria) de titularidade única, com o mesmo número de matrícula,
sem desdobramento da propriedade, não se tratando de unidade autônoma nem
funcionalmente independente. [...] O foco da norma foi o de regulamentar
realidade social muito comum nas cidades brasileiras, conferindo de alguma
forma, dignidade à situação de inúmeras famílias carentes que vivem alijadas de
uma proteção específica, dando maior concretude ao direito constitucional à
moradia (CF, art. 6). Criou-se, assim, um direito real sobre coisa alheia (CC, art.
1510-A), na qual se reconheceu a proteção sobre aquela extensão – superfície
sobreposta ou pavimento inferior – da construção original, conferindo destinação
socioeconômica à referida construção. (BRASIL, 2017)
~ 417 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 418 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
CONSIDERAÇÕES FINAIS
~ 419 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição 3388. Relator Min. Carlos Britto. Brasília,
DF, 19 mar. 2009. Diário de justiça eletrônico, 01 jul. 2010.
BUCCI, Alexandra. A Releitura do Caso Favela Pullman sob a ótica do Estatuto da Cidade
e da Usucapião Coletiva. Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura, n.35,
2012.
GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21ª ed. atual. por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro:
Forense, 2012
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Direito das Coisas. 7ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2012.
~ 420 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade. 3ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011.
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Barsoi, 1957.
OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. O que é o Direito de Laje à luz da Lei n. 13.465/2017.
Revista Consultor Jurídico. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2017-set-
18/direito-civil-atual-direito-real-laje-luz-lei-134652017-parte> Acesso em 10 jul. 2018.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 22ª Ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2014.
SÃO PAULO (estado). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível
212.726-1/8. Relator Des. José Osório de Azevedo Júnior. São Paulo, 16 dez. 1994.
~ 421 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
TARTUCE, Flávio. Direito Real de Laje à Luz da Lei n. 13.465/2017: Nova Lei, Nova
Hermenêutica. Disponível em
<https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/478460341/direito-real-de-laje-a-luz-da-lei-
n-13465-2017-nova-lei-nova-hermeneutica> Acesso em 10 jul. 2018.
TARTUCE. Flávio. Direito Civil – Direito das Coisas. 6ª ed. São Paulo: Método, 2014
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Direitos Reais. 13ª ed. São Paulo: Atlas S.A,
2013
~ 422 ~
UMA PERSPECTIVA AGNÓSTICA PARA A (DIFÍCIL)
CONVIVÊNCIA ENTRE A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A
PRISÃO PREVENTIVA
*Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Aluno da Pós-Graduação em Ciências
Criminais da Faculdade Guanambi.
~ 423 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 424 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
surge para garantir a eficácia do elementar princípio da presunção de inocência, mas não só
por isso. A quantidade assustadora de presos sem condenação no Brasil está envolvida no
cenário de ilegitimidade sem volta dos sistemas penais latino-americanos atuais
(ZAFFARONI, 2001), que buscam a irracional imposição de pena a todo custo: mesmo
antes de se decidir ou não pela absolvição do acusado, mesmo que ela não cumpra com
nenhuma das funções que alega cumprir.
Qualquer estudo sobre prisões sem condenação torna-se impossível sem que se
tenham em mente o conteúdo da garantia fundamental da presunção de inocência e a sua
importância reconhecida pela positivação na Constituição Federal de 1988 e em diversos
diplomas internacionais.
O princípio da presunção ou o estado de inocência – daqui em diante, tomados
como sinônimos – surge, para Duclerc (2016, p. 51-52), como o “mais importante” dos
princípios de aplicação específica para o processo penal e que deve ser compreendido
como “consectário lógico do princípio da liberdade, ao passo que Lopes Jr. (2016, p. 95-96)
o considera o “princípio reitor do processo penal”, cujo nível de observância (eficácia)
permite verificar a qualidade de um sistema processual.
Retomando o pensamento de Ferrajoli (2006, p. 503) os valores da jurisdição
penal podem ser identificados, entre outros aspectos com “a imunidade dos cidadãos
contra o arbítrio e a intromissão inquisitiva e com a defesa dos fracos mediante regras do
jogo iguais a todos”. Na medida em que propõe a jurisdição como atividade necessária à
obtenção da prova do cometimento de um crime, “nenhum delito pode ser considerado
cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a pena”, desde que
tal prova tenha sido produzida regularmente em juízo (FERRAJOLI, 2006, p. 505). A
referida imunidade dos cidadãos, em especial frente ao exercício do poder punitivo (uma
potentia puniendi) torna-se mais evidente ao considerarmos a jurisdição, de fato, um contra-
poder, como no capítulo anterior. O ponto central da questão é que o princípio da
submissão à jurisdição 269 “postula a presunção de inocência do imputado até a prova
contrária decretada pela sentença definitiva de condenação” (FERRAJOLI, 2006, p. 505).
(1) O princípio da submissão à jurisdição expressa-se, em sentido lato, pelo axioma nulla culpa sine judicio, ou seja, exige que
não há culpa sem juízo. Já em sentido estrito, exige que não pode haver juízo sem que a acusação se sujeite à
prova e à refutação (FERRAJOLI, 2006).
~ 425 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Binder (1999, p. 123) destaca o Juízo prévio e a presunção de inocência como garantias
básicas do processo penal a partir e sobre as quais se começa a construir “el escudo protector”
frente ao poder arbitrário, ao passo que “son dos caras de una misma moneda”.
A presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade e representa o
fruto de uma opção garantista a favor da tutela dos inocentes, mesmo que se tenha de arcar
com a impunidade de algum culpado (FERRAJOLI, 2006). Trata-se de uma opção
ideológica em que se elege como valor o maior interesse na tutela de todos os inocentes,
sem exceção (LOPES JR., 2013). Sujeita-se, portanto, às marchas e contra-marchas da
história. O princípio da presunção de inocência tem origens no direito romano e foi
ofuscado – ou praticamente invertido – pelas práticas inquisitórias da Baixa Idade Média,
somente recuperando relevância na modernidade (FERRAJOLI, 2006). Entre outros, já
afirmava Beccaria (2016, p. 41-42) que “um homem não pode ser considerado culpado
antes da sentença do juiz” e que “perante as leis, é inocente aquele cujo delito não se
provou”.
Na esteira desse percurso histórico, a presunção de inocência foi consagrada em
diversos diplomas e Cartas de direitos, a exemplo da Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, marco da Revolução Francesa de 1789, ao versar que “cada homem é
presumido inocente desde que não tenha sido declarado culpado”. O estado de inocência
ainda foi submetido aos ataques da Escola Positiva Italiana e, de maneira mais grave, pela
orientação fascista de Vicenzo Manzini expressa na Itália pelo Código Rocco de 1930 – que
inspira o código de processo penal brasileiro vigente desde 1941, durante o regime do
Estado Novo.
A revaloração da presunção de inocência no pós-guerra toma força na Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, ao versar que “toda pessoa acusada de um ato
delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido
provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas
todas as garantias necessárias à sua defesa”. Zaffaroni e Batista (2003, p. 94) pontuam que
“a positivação dos direitos humanos em nível internacional constitui um extraordinário
esforço universal em favor do estado de direito”, ainda que esta seja uma luta por um
modelo ideal e que até hoje não foi consumado.
A superação dos retrocessos autoritários no Brasil, após o fim da Ditadura Militar,
começa a se manifestar na consagração expressa do princípio da presunção de inocência na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, positivada em seu art. 5º, inciso
LVII, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de
~ 426 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
(2) É coerente a adoção dos significados garantistas associados à presunção de inocência, mas sem que se
deixe de reconhecer a importante construção do dever de tratamento que atua na dimensão externa ao
processo.
~ 427 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 428 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
punitivo e a inversão dos rumos repressivos tomados pelo eficientismo penal do discurso
oficial da Lei e Ordem (KARAM, 2006). A regra de tratamento, como significado garantista
associado à presunção de inocência, talvez seja “el núcleo central de esta garantía”. Por conta
dele o imputado não pode ser tratado como culpado e não se pode lhe antecipar a pena,
que é consequência direta da comprovação de sua culpabilidade. Nesse ponto se revela a
problemática questão das prisões preventivas que são rotineiramente utilizadas como pena
(BINDER, 1999, p. 129).
É fundamental a este trabalho a denúncia de Binder (1999, p. 129-131) de que a
realidade do processo penal está muito distante de cumprir o programa constitucional da
presunção de inocência, que muitas vezes mais parece uma ficção. Um dos sinais evidentes
de que o estado de inocência é um programa a se realizar, uma tarefa pendente, é o
fenômeno dos presos sem condenação. Estes formam a maior parte da clientela
aprisionada pelo poder punitivo latino-americano (ZAFFARONI, 2011). É certo que não
se pode ignorar tal quadro com considerações simplesmente exegéticas ou dogmáticas,
porém, do mesmo modo, não se pode também deixar de compreender a dogmática posta,
em especial quando se pretende instrumentalizá-la para uma estratégia de redução de
danos, para a máxima contenção do poder punitivo, com o urgente “resgate de um
processo penal orientado pela supremacia da tutela da liberdade sobre o poder punitivo”
como caminho necessário a uma futura abolição do sistema penal (KARAM, 2006, p. 111-
113).
~ 429 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Na contramão dessas teorias, ganha força a aquela que reconhece a essência penal
da prisão preventiva para que possa reduzi-la ou suprimi-la. Tal perspectiva encontra-se
apta a oferecer importantes contribuições a um processo penal que se proponha a limitar e
conter o exercício do poder punitivo. Como expoente dessa teoria, Ferrajoli (2006, p. 507-
508) reafirma a importância da presunção de inocência ao sustentar que tal princípio impõe
a ilegitimidade e a inadmissibilidade da prisão preventiva. A história dessa prisão sem
condenação está intimamente ligada com o percurso histórico da presunção de inocência,
em especial na Europa Ocidental, como brevemente narrado no tópico anterior. Chegou a
ser admitida e proibida na Roma Antiga, tomada como pressuposto da instrução em
procedimentos inquisitórios na Idade Média, e novamente estigmatizada pelo Iluminismo e
pela redescoberta do processo acusatório (FERRAJOLI, 2006).
Ponto controverso nesse percurso histórico é que, mesmo de certo modo
estigmatizada, a prisão preventiva seguiu legitimada pelo pensamento iluminista, que a
~ 430 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
denuncia, exige sua limitação, mas não a suprime: é tratada como se fosse uma espécie de
“injustiça necessária” e acabou sendo justificada por todo o pensamento liberal clássico,
numa posição precária e incapaz de conter o seu desenvolvimento patológico.
(FERRAJOLI, 2006). Representa essa posição processualística o “sofisma segundo o qual
ela seria uma medida ‘processual’, ‘cautelar’ ou até mesmo ‘não penal’, ao invés de uma
ilegítima pena sem juízo”. (FERRAJOLI, 2006, p. 509). Ferrajoli (2006, p. 511) contrapõe-
se ao dito sofisma ao apontar-lhe a seguinte inconsistência: ao admitir o encarceramento de
um cidadão presumido inocente por necessidade processual, “nenhum jogo de palavras
pode impedir que tal fato também se dê por ‘necessidade penal’”.
Portanto, grave consequência dessa legitimação precária – nesse caso, em especial,
por Carrara – está na perversão da prisão preventiva pelas teorias substantivistas ao deixar
de ser exclusivamente instrumental às finalidades do processo e passar a ser tomada como
instrumento de prevenção e defesa social. Atribui-se, assim, à prisão preventiva “as mesmas
finalidades e o mesmo conteúdo aflitivo da pena” e lhe priva o argumento utilizado pelas
teorias processualísticas, Segue-se a isso o advento do fascismo, em que o Código Rocco a
assume como “uma verdadeira medida de prevenção contra perigosos e suspeitos ou, pior,
de uma execução provisória, ou antecipada, da pena” (FERRAJOLI, 2006, p. 510).
Mais recentemente, vislumbram-se previsões normativas que incluem – junto às
hipóteses de perigo de fuga do acusado e risco de interferência na produção de provas – a
possibilidade de ser decretada a prisão preventiva com base na periculosidade social do
imputado, no risco de reiteração delitiva ou pela análise de suas condições pessoais.
Exemplo brasileiro consta no atual Código de Processo Penal, com o genérico fundamento
na garantia da ordem pública incluído em seu artigo 312 pela Lei nº 5.349 de 1967,
sancionada durante a Ditadura Militar – pouco mais de um ano antes da edição do Ato
Institucional nº 5 – em alteração ao texto original concebido pelo Estado Novo e mantida
ainda hoje, apesar das diversas reformas pelas quais passou o Código. Pavimenta-se, assim,
a transformação da prisão preventiva de medida processual em medida de polícia.
Passa a ser pertinente a preocupação de Ferrajoli (2006, p. 511-512) de que a
presunção de inocência seja reduzida a um mero engodo e sua busca por demonstrar a
ilegitimidade da prisão preventiva e sua aptidão a provocar o esvaecimento não só do
estado de inocência, mas de todas as outras garantias penais e processuais. Para tanto,
pergunta-se se a prisão preventiva é realmente uma “injustiça necessária” ou se é produto
de uma concepção inquisitorial de processo em que se busca presumir a culpa do
imputado. A resposta para tal pergunta admite dois pontos de vista: um externo e outro
~ 431 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
interno. O ponto de vista externo prescinde a análise da Constituição, para que não se
submeta à falácia de que tudo o que ela permite é justo e incontestável, enquanto o ponto
de vista interno leva em conta o que prevê a Constituição.
Ferrajoli (2006, p. 512-513) concebe que é preciso questionar qual seria a
necessidade a ser satisfeita pela prisão preventiva. De plano, são manifestamente
inconcebíveis as prisões preventivas voltadas para finalidades substantivistas de prevenção
e defesa social, já que ignoram a presunção de inocência e antecipam indevidamente a pena.
Quanto às finalidades de tutelar a prova e evitar a fuga, estas atribuem finalidades
estritamente cautelares e processuais, mas ainda devem ter sua necessidade questionada e
serem substituídas por meios menos gravosos. Defende Ferrajoli (2006, p. 513-515) que a
não deterioração das provas antes do interrogatório poderia justificar somente uma breve
condução coercitiva para crimes mais graves, o que ensejaria menor repercussão pública e
menor efeito difamatório e infamante que a prisão, em especial se adotado um julgamento
mais célere. Enquanto para o risco de fuga, reduzir ou abolir as penas de detenção, bem
como as próprias prisões preventivas, que seriam, em primeiro lugar, o motivo de temor
que levaria o acusado à fuga. Desse modo, sustenta que a contraditória prisão preventiva
poderia ser suprimida, ao menos, até o primeiro grau de jurisdição pela necessidade
processual de que o imputado, em sua defesa, esteja em igualdade de condições com a
acusação.
É questão de coerência, contudo, explicitar pontos problemáticos na concepção
de Ferrajoli quanto à ilegitimidade das prisões preventivas, em especial porque decorrem
das próprias críticas atribuídas aos pressupostos ético-políticos do garantismo, tratadas no
capítulo anterior. Ferrajoli (2006, p. 512) aponta que tratar a prisão preventiva como
medida processual é espécie de “trapaça na formalidade” usada para dissolver “a função de
tutela do direito penal e o papel mesmo da pena enquanto medida preventiva exclusiva”.
Para superar tal impasse, propõe que
~ 432 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
tomada como uma medida preventiva exclusiva. Nos modelos atuais de sociedade, apenas
em caráter excepcional a pena assume a função que minimalismo penal 271 – portanto,
também o garantismo – imagina para ela em uma sociedade futura (ZAFFARONI;
BATISTA; et. al., 2003, p. 128-129). Reflexo dessa perspectiva voltada para o futuro está na
própria conclusão de Ferrajoli (2006, p. 516) sobre a abolição das prisões preventivas: “não
escondo que a perspectiva aqui proposta pode parecer, a curto prazo, uma quimera”. É
inócua a oposição de um “sentimento comum de justiça”, a orientar as agências penais na
defesa da presunção de inocência, contra uma opinião pública formada pelo autoritarismo
midiático que se propaga pelas campanhas de Lei e Ordem, fruto do eficientismo penal em
plena expansão. Ponderadas essas questões, não se pode desconsiderar a importância da
abordagem de Ferrajoli em sua intenção de estender ao máximo possível o alcance da
presunção de inocência, bem como na sua imediata retaliação à concepção de qualquer
prisão preventiva voltada para fins de prevenção e defesa social, em evidente antecipação
ilegítima da pena.
(3) Nesse ponto fala-se em minimalismo penal em um sentido mais amplo, em que Zaffaroni e Batista
incluem tanto o garantismo de Ferrajoli, quanto o modelo de direito penal mínimo de Baratta.
~ 433 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 434 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Si vivimos una realidad que distorsiona continuamente el sistema constitucional, no por ello
debemos distorsionarlo para adecuarlo a la realidad. Uma de las funciones del Derecho
consiste, también, en mantener una relación de tensión respecto de la realidad en un intento
permanente por configurarla según sus principios, aunque esto sea una utopía siempre
inalcanzable.
(4) XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a
decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas,
até o limite do valor do patrimônio transferido; XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará,
~ 435 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social
alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos; XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de
guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de
banimento; e) cruéis; XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a
natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade
física e moral;
273 LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz
competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada; LXIII - o preso será informado de seus direitos,
entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; LXIV - o
preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial; LXV - a
prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; LXVI - ninguém será levado à prisão ou
nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;
~ 436 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 437 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
CONCLUSÃO
Com o presente artigo foi possível compreender que discussão sobre um processo
penal limitador das prisões preventivas como tática de redução de danos deve,
necessariamente, enfrentar o quadro de irracionalidade e ilegitimidade que impera no
sistema penal cautelar latino-americano, com o evidente caráter punitivo das prisões
impostas sob esse parâmetro, em violação sistemática e crescente à presunção de inocência
nos últimos 30 anos.
Tal tarefa tomou como premissa o marco teórico da criminologia crítica, do
garantismo penal e da teoria agnóstica da pena, pressupostos de uma teoria do processo
penal capaz de construir conceitos que não se omitam a esse quadro de irracionalidade e
ilegitimidade, sem recorrer aos atalhos metodológicos do fenômeno distinto que é o processo
civil.
Assim, a perspectiva agnóstica de deslegitimação da prisão denuncia o tratamento
de inimigo conferido a todo suspeito na América Latina, cujo sistema penal se caracteriza
pelo número significativo de presos sem condenação, um verdadeiro sistema penal cautelar
que opta por atuar antes da condenação, em especial no combate às pessoas vulneráveis e
indesejáveis.
Diante de tal quadro, antes da necessária abolição das prisões preventivas, deve-se
pressionar com urgência por sua redução radical a hipóteses mínimas, como, por exemplo,
as fundamentadas na tutela da prova e no risco de fuga, conforme uma lógica de redução
de danos pretendida por uma teoria agnóstica do processo penal.
Pode-se dizer que são hipóteses, de certo modo, (ainda) toleráveis. Remetem-se às
teses processualistas “que tendem a negar o caráter punitivo (da prisão preventiva) para
reduzir seu âmbito de aplicação”, mas que “não podem impedir o inevitável dano ao
princípio de inocência violado por todo o sistema penal cautelar” e, ao menos até o
momento, “não têm tido êxito no são propósito de reduzir a sua amplitude”
(ZAFFARONI, 2011, p. 113).
No entanto, dada a impossibilidade constitucional de abolir as prisões preventivas,
seguem admitidos tais fundamentos do art. 312 do CPP, desde que atuem como coerção
direta para prevenir outro conflito iminente ou evitar a continuidade de uma lesão em
curso, por se tratar, de fato, de hipóteses que se apresentam como lei penal eventual.
~ 438 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia.6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. rev. ampl. São
Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 2006.
JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 8. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro, RJ:
Forense, 1999.
KARAM, Maria Lúcia. Para conter e superar a expansão do poder punitivo. Veredas do
Direito, Belo Horizonte , v.3, n.5 , p.95-114, jan./jun. 2006.
LOPES JR., Aury. Prisões cautelares. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
____________. Direito Processual Penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
~ 439 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 12. ed. rev.,
atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. 5. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2001.
~ 440 ~
DEMOCRATIZANDO A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
NO BRASIL: ESTAMOS NO CAMINHO CERTO?
(OU: AINDA SOBRE A VIGIA DOS VIGILANTES)
INTRODUÇÃO
*Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Mestrando em Direito do Estado na
Universidade Federal do Paraná – UFPR.
~ 441 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
274
Gibbons (2011) no famoso romance gráfico Watchmen . A proposta dos autores, com a
narrativa, é a de conjecturar sobre quais seriam as repercussões políticas, econômicas e
sociais da existência real de heróis mascarados na história mundial do século XX, trazendo
mais verossimilhança ànoção do “super-herói”, tão presente na cultura pop. O que
aconteceria se indivíduos dotados de habilidades extraordinárias realmente caminhassem
entre nós? E a reposta a essa pergunta significa a própria subversão do conceito popular de
“super-heroísmo”: sujeitos excessivamente poderosos, quando deixados livres de quaisquer
amarras para agir além da lei e segundo seus juízos de bem e mal, ao invés de salvadores do
povo, acabam se tornando as causas,não de sua glória, --mas de sua decadência.
A história é fictícia, mas os temas filosóficos e políticos que ela aborda não
poderiam ser mais concretos.Pois na vida real parece,cada vez mais, que certas pessoas ou
instituições apresentam uma tendência para de tempos em tempos serem elevadas à
categoria de “heróis”. Os grandes heróis de hoje, é claro, não usam capas nem máscaras,
mas togas. Não rondam os recantos escuros das ruas, mas reúnem-se em espaços solenes
chamados tribunais, ou cortes. Seus poderes? Derrubar atos dos representantes eleitos pelo
povo com base na sua contrariedade à linguagem muitas vezes ampla e abstrata dos
preceitos expressos, explicita ou implicitamente, num documento de índole especial que
chamados de Constituição.É a ascensão dos juízes, do Poder Judiciário, e o advento da
jurisdição constitucional e das práticas de controle de constitucionalidade (HIRSCHL,
2004, p. 5): verdadeiros vigilantes – para prosseguir com ametáfora – da conformidade das
leis e dos demais atos do Estado em face da Constituição.
O dilema que todo esse cenário jurídico-político envolve é bastante conhecido, e
tem tirado o sono dos constitucionalistas e dos cientistas sociais: como é possível conciliar
o ideal democrático de autogoverno do povo com o fato de que uma elite não eleita de
juízes detém poderes assim tão impressionantes? Como compatibilizar um sistema no qual
as cortes são constantemente provocadas a expressar seus juízos sobre assuntos polêmicos
e decisivos com a liberdade de um povo para moldar, por si e pelos representantes que
escolhe, o caráter moral de sua comunidade?Está aí o difícil desafio de encontrar um
equilíbrio aceitável entre os ideais de representação e separação dos Poderes, pedras
angulares de toda a democracia, e a missão conferida às cortesde fazer valer a
Constituição.Está aí o problema básico do controle judicial de constitucionalidade
(BEATTY, 2014, p. 61; ELY, 2016, p. 08).É preciso, de alguma forma, compatibilizar a
chamada tensão entre democracia e constitucionalismo (VIEIRA, 1997, p. 55):democratizar o
274A história, originalmente publicada como uma série de quadrinhos ao longo de 1986 e 1987, ganhou uma
adaptação cinematográfica de mesmo título em 2009, sob a direção de Zack Snyder.
~ 442 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos
ou diretamente, nos termos desta Constituição”. É o que consta no parágrafo único logo
do primeiro artigo da Constituição brasileira. De fato, uma das premissas básicas do
constitucionalismo contemporâneo é a de que a Constituição expressa os compromissos
mais fundamentais de uma determinada comunidade; ela é redigida pelo e para o povo. É
no caráter democrático das constituições que reside sua fonte de legitimidade e, logo, de
autoridadesobre os cidadãos e sobre os agentes oficiais do Estado. Seria apenas natural,
portanto, esperar que as divergências interpretativas sobre o significado do texto
constitucional, inevitáveis numa sociedade minimamente livre, democrática e pluralista,
fossem solucionadas de modo compatível com as compreensões que o povo – seu redator
e destinatário – tem a respeito dele.
Acontece que no Brasil, seguindo o influxo mundial de constitucionalização de
direitos e de adoção de formas de revisão judicial das leis, a Constituição parece ter sido
entregue, para todos os fins e efeitos práticos, aos ministros do Supremo Tribunal Federal.
Asituação é tão viva que dispensa grandes introduções. Baseado na propalada retórica do
“guardião último” e da supremacia do Poder Judiciário, supostamente derivada do art. 102
~ 443 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 444 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Federal, com a Constituição de 1988, especialmente em matéria constitucional: “[...] o termo supremocracia
refere-se à expansão da autoridade do Supremo em detrimento dos demais poderes. [...] Foi apenas com a
Constituição de 1988 que o Supremo deslocou-se para o centro de nosso arranjo político. Esta posição
institucional vem sendo paulatinamente ocupada de forma substantiva, em face da enorme tarefa de guardar
tão extensa constituição. A ampliação dos instrumentos ofertados para a jurisdição constitucional tem levado
o Supremo não apenas a exercer uma espécie de poder moderador, mas também de responsável por emitir a
última palavra sobre inúmeras questões de natureza substantiva, ora validando e legitimando uma decisão dos
órgãos representativos, outras vezes substituindo as escolhas majoritárias.”
~ 445 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 446 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
opositores (SERROTA, 2012, p. 1646) e confessado por seus adeptos (DONELLY, 2012,
p. 170), a de como operacionalizar na prática o ideal de participação popular que o
movimento conclama na teoria. Pois se, por um lado, a comunidade deve deter um papel
maior na determinação dos significados constitucionais, por outro, a grande dúvida que
permanece em aberto é: o que significa dizer que a “comunidade” deve ser mais proativa?
Como fazer com que isso aconteça? Os caminhos são vários; e é aqui que mesmo os
partidários da teoria divergem entre si. O próprio Kramer veio a reconhecer isso, em texto
posterior ao seu livro The People (KRAMER, 2006, p. 08) 277. Não obstante, passado o
momento inicial de resistência quase raivosa à supremacia do Judiciário, o “segundo ato”
do constitucionalismo popular, como afirma Tom Donelly (2012, p. 177), tem se focado,
exatamente, nessa implementação prática da teoria.
Por mais interessantes que sejam os contributos teóricos do constitucionalismo
popular, algumas ponderações merecem ser feitas. De fato, sua importação para solo
brasileiro não pode ser feita de maneira acrítica, sem ter em vista nossas peculiaridades
institucionais. Discutir a legitimidade do judicial reviewnos Estados Unidos é diferente de
discutir a legitimidade do controle de constitucionalidade das leis no Brasil. Lá, a prática foi
consolidada a partir de uma decisão da própria Suprema Corte acerca do alcance de seus
poderes para invalidar os atos do governo que reputava inconstitucionais – lembre-se do
conhecido caso Marbury versus Madison, julgado no ano de 1803. Aqui, ela é fruto de
reformas institucionais relativamente recentes em termos históricos – o controle
concentrado no Supremo Tribunal, por exemplo, foi inaugurado só em 1965 (BARROSO,
2012, pp. 85-90)278–, e encontra-se hoje, em boa medida, consagrada expressamente no
texto constitucional(art. 102, CF).
À luz da vivência ainda jovem do nosso constitucionalismo, portanto, abdicar
totalmente da importância do Poder Judiciário na leitura constitucional – “tirar a
277 São as palavras do autor: “For there is no one theory. Popular constitutionalism, as such, is just a general
concept or broad idea. As noted above, basically it’s the idea that final authority to control the interpretation
and implementation of constitutional law resides at all times in the community in an active sense. A ‘theory’
of popular constitutionalism involves showing how this idea works or could be made to work. But there are
countless institutional arrangements by which popular control can become meaningful.”
278 No Brasil, o controle de constitucionalidade foi introduzido com o advento da República, pela
Constituição de 1891, sendo inexistente durante o Império. Foi consagrado um modelo difuso e concreto de
controle, inspirado na experiência norte-americana. Na Constituição de 1934, foi prevista uma forma
embrionária de controle concentrado no STF: a chamada “representação interventiva”, cujo legitimado único
era o Procurador-Geral (um instrumento de garantir um federalismo centralizado na União). Enfim, o
controle concentrado e abstrato surgiria entre nós apenas com a Emenda Constitucional n°. 16/1965, durante
a vigência da Constituição de 1946: por meio dela, atribuiu-se ao STF a competência para julgar a
constitucionalidade de leis e atos normativos federais, mediante representação do Procurador-Geral da
República. Desde então, convivem os dois modelos – concentrado e difuso – de controle de
constitucionalidade, mantidos pela Constituição de 1988.
~ 447 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Constituição das Cortes” por completo (TUSHNET, 1999), por assim dizer – soa extremo
demais. Em nossa cultura jurídico-política, na cultura brasileira, esse papel de fato existe e é
sem dúvida importante – tanto que foi positivado num textode caráter jurídico superior(art.
102, CF). Renunciar a ele seria uma guinada drástica em face da organização institucional
disposta na própria Constituição. Em outras palavras: se o Supremo Tribunal se apresenta
como o vigilante – o “guardião” – de nossa Constituição, é porque nós mesmos, de certo
modo, conferimos a ele esse encargo.
É preciso, portanto, discernir qual deve ser o real papel dos tribunais – e do
Supremo inclusive – na tarefa de interpretar e aplicar a Constituição. Mas devemos fazê-lo
sem cair na retórica simplista da “última palavra” ou da supremacia. Para tanto, podemos
enriquecer nosso entendimento sobre o valor da jurisdição constitucional com outro aporte
teórico normativo: o constitucionalismo democrático, tal como elaborado por Robert Post e Reva
Siegel. Vamos a ele.
A principal premissa da teoria do constitucionalismo democrático é a de que a
autoridade da Constituição depende, fundamentalmente, de sua legitimidade democrática
(POST; SIEGEL, 2007, p. 04). Baseia-se na tradição de que as reivindicações a respeito do
significado constitucional autorizam os cidadãos a contestar os atos do governo – inclusive
as decisões judiciais. A autoridade das decisões do Judiciário, assim como a autoridade da
Constituição, depende, em última análise, da confiança que inspira nos cidadãos. No
entanto, costuma-se confundir supremacia da Constituição com a supremacia judicial, de
modo que qualquer contestação às decisões das cortes seria uma afronta à própria
Constituição. O constitucionalismo democrático se opõe a essa opinião corrente. Segundo
a teoria, a mobilização popular contra determinadas decisões das cortes pode, em verdade,
ter efeitos construtivos no sentido da reafirmação da Constituição e do incremento dos laços
sociais – é o que Post e Siegel chamam de backlash(2007, p. 16).
A razão disso é fácil de ser apreendida. Ao criticar decisões das cortes com
argumentos constitucionais, os cidadãos estão não negando, mas sim reafirmando seu
comprometimento com a Constituição. Deve-se reconhecer, por isso, a importância do
governo representativo e da participação popular na efetivação da Constituição, mesmo
numa comunidade que atribui aos tribunais a relevante tarefa de interpretá-la por meio do
raciocínio jurídico profissional [professional legal reason](POST; SIEGEL, 2007, p. 02). Talvez
esteja aí um ponto relevante de diferença entre o constitucionalismo democrático e o
popular em sua forma “pura”, digamos: a teoria não pretende retirar totalmente a
Constituição do Poder Judiciário. Mas ela se diferencia, de modo igualmente significativo,
~ 448 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
279Conferir: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n°. 3.510/DF.
Requerente: Procurador-Geral da República. Relator: Ministro Carlos Aires Brito. Brasília, 28 de maio de
2010. Diário Oficial de Justiça da União. Disponível em: <https://goo.gl/VHGsCR> Acesso em 03/02/2018.
~ 449 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
para além das dificuldades enfrentadas pela ciência em definir quando começa a vida
humana, ele remete ao próprio significado do valor da vida, e do que é exigido de nós para
trata-la com respeito e dignidade – questões filosóficas e morais profundas, por natureza
(DWORKIN, 2009, passin).
O caso é emblemático porque, de largada, deu a tônica do que viriam a
representar as audiências para o STF: instrumentos de participação da sociedade em
processos relacionados a intensas polêmicas constitucionais. E de fato, desde então, as
audiências públicas percorreram um longo caminho; é seguro dizer que elasse consolidaram
na atividade institucional do STF, hoje com expressa previsão no art. 9º da Lei n°.
9.868/99. Praticamente todos os grandes temas que chegaram à apreciação do Supremo,
nos últimos anos, tiveram uma audiência pública convocada pelos ministros no intuito de
subsidiar seus julgamentos.Num breve retrospecto, a lista é longa, mas elucidativa:
importação de pneus usados (ADPF n°. 101); interrupção de gravidez de fetos
anencefálicos (ADPFn°. 54); sistema de saúde e judicialização da saúde (STA n°. 36 e
outros); cotas raciais em universidades públicas, ou ação afirmativa (ADPF n°. 186);
financiamento de campanhas eleitorais (ADI n°. 4.640); publicação de biografias não
autorizadas (ADI n°. 4.815); ensino religioso em escolas públicas (ADI n°. 4.439), dentre
vários outros casos que poderiam ser mencionados. Só o ano de 2017, seguindo essa
tendência, foi repleto de audiências sobre tópicos constitucionais dos mais relevantes:
armazenamento de perfis genéticos de condenados por crimes violentos (RExt n°.
973.837); possibilidade de suspensão de aplicativo de comunicação por decisões judiciais
(ADPF n°. 403); aplicabilidade do chamado “direito ao esquecimento” na esfera cível
(RExtn°. 1.010.606).
Assim como as audiências, popularizou-se no âmbito do STF a convocação de
amici curiae – os “amigos da corte”, numa tradução simpática do latim – para auxiliar a
tomada de decisão. Instituto de inspiração norte-americana, o amicus curiae é um órgão ou
entidade, dotado de “representatividade adequada”, capaz de contribuir de algum modo
com os julgamentos do Tribunal, geralmente a partir de elementos técnicos ou de
informações acerca de controvérsias de relevância social (art. 7º, § 2º, Lei nº. 9.868/99; art.
138 do CPC). O objetivo da atuação processual dos amici curiae, em princípio, é modesto:
auxiliar, instruir o Tribunal em seus julgamentos, com opiniões especializadas sobre
assuntos técnicos ou complexos sob algum ponto de vista (científico, cultural, econômico,
etc.).
~ 450 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Mas diz-se “em princípio” por um motivo: o Supremo tem encarado os amicicuriae
como muito mais do que simplesmente experts técnicos. Veja-se, a propósito, o que pensa o
Ministro Celso de Mello: “a intervenção processual do ‘amicus curiae’ tem por objetivo
essencial pluralizar o debate constitucional, (...) visando-se, ainda, com tal abertura
procedimental, superar a grave questão pertinente à legitimidade democrática das decisões emanadas
desta Corte.” (ADI n°. 5.022-MC - destacamos). Acompanham-no, certamente, a Ministra
Rosa Weber, para quem “a intervenção de amicus curiae no controle concentrado de atos
normativos primários destina-se a pluralizar e a legitimar social e democraticamente o debate
constitucional (...)” (RExt 592.891/SP - destacamos), e o Ministro Gilmar Mendes, que está
convencido de que “a admissão de amicus curiae confere ao processo um colorido
diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto” (ADI n°. 2.316 - destacamos).
Todas essas citações permitem constatar o seguinte. O enorme apreço pelas
audiências públicas e pelos amici curiae deriva, em boa medida, da percepção que os próprios
ministros do STF passaram a cultivar a respeito desses procedimentos (MEDINA, et al.,
2013). Reconhece-se, com frequência, que tais instrumentos caracterizam formas
importantes de engajamento popular no processo decisório do Tribunal, os quais
contribuiriam para conferir maior legitimidade democrática às decisões – algo que, ninguém
discorda disso, é particularmente relevante em matéria constitucional. Pelo simples fato de
se estar oportunizando a palavra a certos segmentos da sociedade civil – sejam os inscritos
nas audiências públicas, sejam as entidades admitidas como amicus curiae – o STF teria se
tornado um ambiente propício ao pluralismo e ao debate público: uma “Casa do Povo”.
Seriam, então, as audiências e os amici curiae maneiras autênticas de contrabalancear o tão
anunciado déficit democrático que marca a jurisdição constitucional.
Muitos juristas têm acompanhado e endossado a postura do STF. Há quem
afirme, como Miguel Godoy, que a intensificação do uso de audiências públicas a dos amici
curiae nos seus julgamentos revelaria uma “tentativa de abertura do Supremo Tribunal
Federal a um diálogo direto com outras instituições e com o povo” (2017, p. 170). No
mesmo sentido, Clèmerson Clève e Bruno Lorenzetto sustentam que “os mecanismos da
audiência pública e do amicus curiae são instrumentos potenciais para o aprimoramento
substantivo da formação das razões públicas que devem ser apresentadas pelos ministros
na fundamentação de suas decisões.” (CLÈVE; LORENZETTO, 2016, p. 144). Outros
reconhecem que a capacidade de influência da participação do povo, veiculada pelas vozes
das audiências e dos amici curiae, traria um maior grau de legitimidade ao processo decisório
perante o Supremo, tornando-o mais participativo e aberto às aspirações sociais – uma
~ 451 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
espécie de legitimação pelo procedimento (MORAES, 2011, passin; PEREIRA E SILVA, 2010,
passin).
É claro que mesmo os defensores das audiências públicas e dos amici curiae
admitem que esses instrumentos não são perfeitos. Realmente, ainda há muito o que fazer
para aprimorar os mecanismos de participação popular no controle judicial de
constitucionalidade (GODOY, 2017, pp. 200-213). Primeiro problema: a escolha de quem
participa e quem não participa é feita por decisão discricionária, irrecorrível, do relator do
processo. Segundo problema: a forma como as audiências são conduzidas não propicia um
diálogo efetivo entre os participantes; as exposições costumam ser feitas de maneira
isolada. E mais um problema, esse já há muito denunciado: o modelo decisório no STF não
permite identificar um posicionamento do Tribunal; os julgamentos são tomados com base
no somatório dos votos individuais dos ministros, cujas fundamentações nem sempre são
compatíveis entre si (SILVA, 2009, p. 219) – o que dificulta a análise sobre se e como as
discussões prévias contribuem substancialmente para o julgamento.
Seja como for, a tese subsiste. O desafio, para essa linha de pensamento, é de
ordem prática: como melhorar a qualidade das audiências e da intervenção dos amici curiae. Se
é verdade que o STF tem se preocupado em se valer de audiências e doamicus sempre que
possível – e a experiência recente mostra que ele de fato tem essa preocupação – logo,
segundo as opiniões dos ministros e de juristas respeitáveis, estaríamos num bom trajeto
rumo à democraciada nossa interpretação constitucional. Basta melhorar o que já se está
fazendo.
Será mesmo? Retomemos as propostas básicas do constitucionalismo popular e
do constitucionalismo democrático: a leitura da Constituição deve ser compatível com as
expectativas que o povo, seu autor e destinatário, projeta sobre ela; para tanto, a
interpretação constitucional merece ser compreendida como um empreendimento
conjunto, dialógico, que envolve as diferentes instituições democráticas e a comunidade de
um modo mais amplo. O fato de o Poder Judiciário avocar para si a “última palavra” sobre
os significados constitucionais – o fato de o Judiciário proclamar sua posição de
“supremacia” perante as demais instituições – indica, assim, que algo merece ser revisto na
distribuição de poderes dentro do sistema democrático. O diagnóstico da “Supremocracia”
é prova de que o Brasil se enquadra perfeitamente nesse perfil.
Só que isso, contudo, vem sendo pouco questionado, seja pelos ministros do STF,
seja pela maioria da doutrina jurídica entusiasta da recente abertura democrática
experimentada pelo Tribunal. Na realidade, as limitações das audiências e dos amici curiae
~ 452 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
são mais cruciais do que se pensa. Elas não decorrem dos obstáculos práticos – ou, ao
menos, não só de obstáculos práticos – que assolam essas técnicas de “democratizar” a
jurisdição constitucional; existem também limites conceituais que dificilmente poderiam ser
superados no atual esquema de organização do Estado. Ora, tanto as audiências quanto os
amici são, por definição, instrumentos de subsídio aos julgamentos do Supremo: visam a
incrementar, de algum modo, a qualidade das decisões proferidas pelo Tribunal sobre o
conteúdo da Constituição; agora, o quê, exatamente, significa esse incremento decisório
“qualitativo” é uma questão em aberto (alvo das teorias hermenêuticas e da adjudicação).
Todo esse esforço é benéfico e merece ser feito. Mas não questiona, perceba-se –
e nem tem a pretensão de questionar – a posição do STF como “guardião último” da
Constituição: a autoridade interpretativa final permanece concentrada em suas mãos. O
grau de influência das manifestações nos julgamentos fica à mercê, ainda, muito mais da
opção teórica de cada ministro (LEAL, 2015) do que de um efetivo contrapeso
institucional, capaz de infirmar, se necessário, as posições argumentativas da Corte.Os
mecanismos participativos na jurisdição constitucional, nesse sentido, não contestam, mas
antes reafirmam a autoridade solitária do Tribunal. A aposta excessiva nas audiências e nos
amici curiaedeixa de lado, portanto, um aspecto relevantíssimo da interpretação
constitucional, e que temos razões para repensar: o ideal de supremacia do Poder
Judiciário, que no Brasil se manifesta como um ideal “supremocrático”, mantem-se
inabalado. O vigilante segue sua patrulha, sem que alguém possa verdadeiramente vigiá-lo.
Por isso, não se deve supervalorizar o potencial dito democratizante das
audiências públicas e dos amici curiae. Deve-se, apenas, trata-los como aquilo que
efetivamente são. E eles são, há que se reconhecer, instrumentos que exercem uma função
epistemológica não desprezível na tomada de decisão constitucional pelo STF (CLÈVE;
LORENZETTO, 2016, p. 67). Numa sociedade cada vez mais técnica, dependente da
tecnologia, como a nossa, assuntos científicos tornam-se assuntos jurídicos; e estes, não
raro, tornam-se assuntos constitucionais: contendas sobre o uso de células tronco para
pesquisas, o bloqueio judicial de aplicativos e a proibição do amianto – todas na pauta do
STF – são exemplos disso. Espera-se, nessas circunstâncias, que os julgadores possam se
munir de fundamentações técnicas com um grau razoável – ainda que não absoluto,
obviamente – de aceitabilidade e objetividade científica, inclusive por exigência de uma
razão pública que deve pautar os julgamentos (MENDONÇA, 2014, p. 151). Aí, quem
sabe, “teremos a garantia mínima de que ao menos tecnicamente as apreciações serão
perfeitas” (SOARES, 1969, p. 158).
~ 453 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Fizemos algum progresso; mas até aqui nossa análise permaneceu em grande
medida desconstrutiva. Qualquer abordagem que se prese necessita também de uma parte
de pretensão construtiva. Pois bem: seriam as audiências públicas e os amici curiae, realmente,
as únicas possibilidades de democratizar o controle de constitucionalidade no arranjo
institucional brasileiro? Temos insistindo desde o início que não. É hora de desenvolver
melhor esse argumento.
~ 454 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. Por meio do
dispositivo, atribui-se ao Senado Federal a competência para expedir resoluções
suspendendo a execução das leis declaradas incompatíveis com a Constituição pelo STF,
nos julgamentos proferidos em recursos extraordinários e demais processos de sua alçada;
ou seja, no exercício do controle difuso e concreto de constitucionalidade.
Não é isso, entretanto, o que parece pensar o STF – os motivos são conhecidos e
tem sido objeto de inúmeros comentários na literatura jurídica nacional. Estamos falando
da controvertida tese sustentada na Reclamação n°. 4.335/AC, particularmente nos votos
do ministro Gilmar Mendes e do então ministro Eros Grau. É a tese da “mutação
constitucional” do art. 52, X, da Constituição brasileira. A proposta dos ministros no
julgamento da Reclamação n°. 4.335/AC não foi simplesmente a elaboração de uma nova
norma a partir da atribuição de um sentido diferente a um mesmo texto normativo – nada
disso. Foram além, e proclamaram a substituição de um texto – positivado pelo poder
constituinte originário – por outro texto, criado pelo próprio STF280. A prevalecer o
argumento, a função do Senado teria se reduzido à de meramente conferir publicidade às
decisões do STF tomadas em sede de controle difuso; o efeito vinculante e erga omnes já
seria consequência automática da autoridade de uma decisão plenária do Tribunal. Na
prática, acabariam igualados, em nosso sistema, os efeitos das decisões proferidas em
controle abstrato e em controle concreto de constitucionalidade (SANTOS, 2014, p. 606).
O resultado do julgamento foi nebuloso. Por conta da superveniência da Súmula
Vinculante n°. 26 (que tratou do mérito do caso), a “mutação constitucional”
aparentemente não vingou, embora o acórdão faça referência ao “caráter expansivo” das
decisões em controle difuso – o que é outro tópico delicado (BACHA E SILVA, 2017, p.
113). O impacto simbólico dos votos, no entanto, persiste, com consequências práticas
significativas.
Não é o espaço, aqui, de aprofundar o debate sobre a ocorrência ou não de uma
“mutação constituição” no julgamento, ou mesmo sobre se é possível atribuir algum valor
normativo-decisório a uma categoria como essa (HORTA, 1992, p. 14; SANTOS, 2015, p.
80). Num estudo sobre democracia interpretativa e diálogos institucionais, devemos chamar
280Sobre o assunto, o argumento sustentado pelo então Ministro Eros Roberto Grau foi o seguinte:
“Passamos em verdade de um texto [pelo qual] compete privativamente ao Senado Federal suspender a
execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal
Federal, a outro texto: ‘compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução,
operada pelo STF, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do
Supremo.’” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n°. 4.335/AC. Reclamante: Defensoria Pública
da União. Reclamado: Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco. Relator:
Ministro Gilmar Mendes. Brasília, 22 de outubro de 2014. Diário Oficial de Justiça da União. Disponível em:
<https://goo.gl/A1LHxT> Acesso em 03/02/2018.
~ 455 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
atenção para um fato muitas vezes encoberto: por trás da teoria da mutação constitucional,
anunciada como descritiva – afinal, o discurso dos julgadores se resumiria a constatar
alguma incongruência entre o texto constitucional e a realidade que o circunda (daí a
“mutação”) –, existe o que podemos chamar de uma metateoria sobre quais devem ser os
atores envolvidos na leitura da Constituição – normativa por excelência.
As manifestações dos ministros Gilmar Mendes e Eros Grau na Reclamação n°.
4.355 são sintomáticas de uma filosofia mais profunda, e eminentemente juricêntrica, que
vem tomando conta do imaginário da Corte Constitucional brasileira: a de que a função de
“guarda da Constituição” confere ao Supremo, invariavelmente, a última palavra sobre o
significado dela. Mais do que isso, ao interpretar e aplicar o texto constitucional, o Supremo
atuaria não apenas para preservá-lo, mas disporia também da prerrogativa excepcional de
modificá-lo, “atualizá-lo”, de acordo com seus próprios entendimentos 281 – uma espécie de
“sentimento constituinte tardio” (SUNDFELD, 2012, p. 54). É o vigilante tornando-se
dono do bem encarregado de vigiar. Essa é a única premissa que explica a compreensão
dos ministros de que não haveria mal político algum – não seria uma perda democrática – na
supressão da competência privativa do Senado mediante uma decisão do STF. O raciocínio
decorre do equívoco teórico revelado a partir do constitucionalismo democrático: o de
confundir a supremacia da Constituição com a supremacia do Judiciário, ou melhor, do
Supremo Tribunal Federal.
Vale insistir: a força da Constituição decorre de sua legitimidade democrática. Por
isso, processos igualmente válidos de interpretação constitucional podem e devem ter lugar
nas outras instituições, e na comunidade em geral – não só no Judiciário. E a intervenção
do Senado, nesse sentido, representa um instrumento relevante para oportunizar a
verificação política das decisões de inconstitucionalidade proferidas pelo STF na instância de
controle difuso de constitucionalidade (ABBOUD, 2014, p. 452; STRECK, 2014, p. 551).
É um meio de permitir que representantes eleitos pelo povo possam dar sua contribuição
dialógica ao juízo de (in)constitucionalidade emanado do STF, seja chancelando-o, seja se
281 A propósito, confira-se a seguinte passagem emblemática do ministro Celso de Mello, no julgamento da
ADI n°. 3.345/DF: “A interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pelo STF – a quem se
atribuiu a função eminente de ‘guarda da Constituição’ (CF, art. 102, caput) – assume papel de essencial
importância na organização institucional do Estado brasileiro, a justificar o reconhecimento de que o modelo
político-jurídico vigente em nosso País confere, à Suprema Corte, a singular prerrogativa de dispor do
monopólio da última palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental”; ao que
complementa que “[n]o poder de interpretar a Lei Fundamental, reside a prerrogativa extraordinária de
(re)formulá-la, eis que a interpretação judicial acha-se compreendida entre os processos informais de mutação
constitucional, a significar, portanto, que ‘A Constituição está em elaboração permanente nos Tribunais
incumbidos de aplicá-la’. [...]” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n°.
3.345. Requerente: Partido Progressista. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 20 de agosto de 2010.
Diário Oficial de Justiça da União. Disponível em: <https://goo.gl/CvDZBP> Acesso em 02/02/2018).
~ 456 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
282 Aqui entra em cena, conforme sustenta Gilberto Bercovici, a difícil relação – embora essa seja uma relação
necessária – entre política e Constituição (2004, p. 24): “Não se pode, portanto, entender a Constituição fora
da realidade política, com categorias exclusivamente jurídicas. A Constituição não é exclusivamente
normativa, mas também política; as questões constitucionais são também questões políticas. A política deve
ser levada em consideração para a própria manutenção dos fundamentos constitucionais.”
~ 457 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
283 Num modelo fraco de revisão judicial das leis, a exemplo do que se procura praticar no Canadá desde 1982
com a promulgação do Canada Act, o Poder Judiciário, ao se deparar com uma lei que considera
inconstitucional, não a declara nula e sem efeito (modelo forte); em linhas gerais, a legislação é devolvida ao
Parlamento, que pode reavaliá-la à luz dos argumentos do Tribunal, mediante o processo legislativo ordinário
e em curto prazo. Mas o núcleo da proposta – um diálogo entre Judiciário e Legislativo – parece ser possível a
partir da interpretação construtiva do art. 52, X, da Constituição brasileira. De acordo com Tushnet (2004, p.
17): “Weak-form systems allow the courts to remind legislatures of their constitutional obligations, without making the courts'
specification unrevisable except by constitutional amendment. Legislatures and courts interact on questions of the constitution's
meaning, and proponents of weak-form review suggest that the outcome of the process will advance both self-governance and
constitutionalism, as legislators, instructed but not compelled by the courts, modify the policies they adopt to conform to
constitutional limits on their power, and importantly—as courts, instructed but not compelled by legislators, modify their views of
what the constitution requires”.
~ 458 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Quis custodiet ipsos custodes?” 285 – quem vigia os vigilantes da Constituição? Numa
democracia, a autoridade interpretativa final sobre a Constituição deve recair sobre o
próprio povo, sobre a comunidade. Oprojeto, aí, passa a ser o de como instrumentalizar do
modo mais fidedigno possível a soberania popular, por meio da organização das
instituições democráticas. Não há “supremacia”, nem do Judiciário, nem de nenhum outro
284 Originalmente uma crítica à excessiva judicialização experimentada nos Estados modernos: “trata-se de
contrabalançar mecanicamente o legislativo que perdeu a confiança da sociedade por um judicial que a não
ganhou”.
285 Frase original em latim atribuída ao poeta romano Juvenal, em sua coletânea de poemas Sátiras. A frase foi
utilizada como referência por Alan Moore e Dave Gibbons no romance gráfico Watchmen, trabalhado na
introdução deste texto.
~ 459 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
ator: é do diálogo entre todos eles que provém a legitimidade dos significados
constitucionais, em permanente releitura.
Dito isso, o título deste artigo contém uma pergunta, feita como uma provocação
mesmo, e agora é o momento de respondê-la. Chegados os trinta anos de vigência da
Constituição Federal de 1988, estamos no caminho certorumo à democratização da
interpretação constitucional no Brasil? Não deve vir com surpresa, a essa altura, que
odesfecho irá soar um tanto desalentador: não – nós não estamos. Ao menos não enquanto
seguirmos depositando excessivamente nossas esperanças em métodos como asaudiências
públicas e o amicus curiae na qualidade de técnicas de “democracia” interpretativa; não
enquanto acreditarmos nas teses “última palavra” e da “supremacia”; e não enquanto os
membros do nosso Supremo Tribunal Federal continuarem insistindo em que é a ele, e
somente a ele, quem cabe dizer essa“última palavra” sobre o significado da Constituição.
Em épocas de crise, é natural olharmos para o céu na espera de um salvador, de
um herói. Os juízes, e o Supremo Tribunal Federal particularmente, parecem inspirar esse
tipo de confiança naconjuntura brasileira de hoje. Masalgo de valioso se perde numa
democracia, algo intrinsecamente valioso, a partir do momento em que abrimos mão do
desafio de resolver os problemas mais profundos de nossa sociedade por nós mesmos, e
transferimos essa responsabilidade especial aos membros de uma elite técnica. Pois quem
deve, no fim do dia, aprender a conviver de maneira harmoniosa e pacífica somos nós – o
povo.
O tempo dos heróis já se foi; a fé no poder super-heroico dos Vigilantes está
longe de trazer aquilo a que almejamos. Na luta pela realização da Constituição, e da
comunidade que queremos construir com base nela, não há outro caminho a trilhar a não
ser a democracia. Sim: teremos que ser nossos próprios heróis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
~ 460 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
______. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
BEATTY, David M. A Essência do Estado de Direito. Trad. Ana Aguiar Cotrim. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2014.
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Política: uma relação difícil. Lua Nova, São Paulo, n.
61, pp. 5-24, 2004.
~ 461 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
HIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of the New
Constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2004.
KRAMER, Larry. The people themselves: popular constitutionalism and judicial review. New
York: Oxford University Press, 2004.
______. The Interest of the Man: James Madison, Popular Constitutionalism, and the Theory
of Deliberative Democracy. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=938721> Acesso
em 10/07/2017.
~ 462 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
LEAL, Fernando. 2015.Para que servem as audiências públicas no STF? Disponível em:
<https://jota.info/artigos/para-que-servem-as-audiencias-publicas-no-stf-16062015>.
Acesso em 10/07/2017.
POST, Robert; SIEGEL Reva. 2007.Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash.
Disponível em:http://papers.ssrn.com/abstract=990968. Acesso em 06/07/2017.
SANTOS, Carlos Victor Nascimento. “Mutação à brasileira”: uma análise empírica do art.
52, X, da Constituição. Revista Direito GV, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, pp. 597-614, jul./dez.
2014.
~ 463 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
SOARES, Rogério Ehrhadt. Direito público e sociedade técnica. Coimbra: Tenacitas, 1969.
STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 4ª Ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014.
SUNDFELD, Carlos Ari. Que Constituição? In: ______. Direito Administrativo para Céticos.
São Paulo: Malheiros, 2012.
TUSHNET, Mark. Taking the Constitution Away from the Courts. Princeton: Princeton
University Press, 1999.
______. Weak-form judicial review: its implications for legislatures. New Zealand Journal of
Public and International Law, New Zealand, v. 2, n. 1, pp. 07-23, 2004.
VIEIRA, Oscar Vilella. A Constituição como Reserva de Justiça. Lua Nova, São Paulo, n.
42, pp. 53-97, 1997.
______. Supremocracia. Revista Direito GV, São Paulo, v. 04, pp. 441-464, jul./dez. 2008.
~ 464 ~
CONSTITUIÇÃO PARA QUEM? TRINTA ANOS DE
INVISIBILIZAÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS LGBTIs
NO BRASIL
INTRODUÇÃO
~ 465 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
286 A busca foi realizada na versão online dos anais disponibilizada pelo Senado. Disponível
em:<http://www6g.senado.gov.br/apem/search?keyword=orienta%C3%A7%C3%A3o+sexual>. Acesso
em: 31 mar. 2018. As comissões nas quais a questão chegou a ser discutida foram: Comissão da Soberania e
dos Direitos do Homem e da Mulher; Comissão da Ordem Social; Comissão da Família, da Educação,
Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação; e Comissão de Sistematização (tendo sido
nessa última em que se decidiu em definitivo pela exclusão do termo "orientação sexual" do artigo terceiro.
~ 466 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
287 Ochy Curiel (2013, p. 100-108), em trabalho que analisa a formação da Constituição colombiana, chama
atenção para dois pontos importantes: 1) o fato de grande parte das normas incluídas no texto constitucional,
relativas às mulheres, indígenas etc., configurar uma mera igualdade formal, que não encontra
~ 467 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
amplamente transformadores, principalmente no que diz respeito aos direitos dos povos
indígenas e tradicionais, das mulheres e do meio ambiente. Todavia, o mesmo não ocorreu
para a população LGBTI, o que precisa prementemente ser alterado, por meio do
protagonismo dos indivíduos afetados, o qual se ilustra na construção de um
constitucionalismo LGBTI em oposição ao padrão cisheteronormativo hegemônico.
É importante notar que essa atuação contra-hegemônica não deve ocorrer apenas
no momento de criação legislativa do direito, mas também em sua interpretação. Desse
modo, propõe-se uma ampliação da ideia de interpretação pluralista concebida por Häberle
(2002, p. 11-18). O autor alemão propugna a superação do que denominou uma sociedade
fechada de intérpretes (marcada pelo monopólio estatal dessa função, por meio da atuação
jurisdicional) para uma sociedade aberta, que abarcaria uma multiplicidade de atores
interpretativos, para além daqueles tradicionalmente autorizados e legitimados. Segundo
ele, "todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma (...) é, indireta ou, até
mesmo diretamente, um intérprete dessa norma” (HÄBERLE, 2002, p. 15). Portanto,
todos os cidadãos que a vivenciam ou, em muitos casos, que sentem sua ausência, seriam
pré-intérpretes ou cointérpretes do mandamento constitucional.
A construção de uma hermenêutica constitucional pluralista é essencial para a
diversificação da interpretação e para a ampliação da legitimidade interpretativa.
Entretanto, não parece ser suficiente para que se caracterize como uma abordagem "de
baixo para cima". Por isso, defende-se que, quando se trata de violação de direitos
humanos e de direitos fundamentais, aquele que vivencia a norma (ou sua ausência) não
deve atuar apenas como cointérprete, mas sim como intérprete principal e o mais (senão o
único) legitimado para tal interpretação. Assim, a função estatal seria veicular a
interpretação dos indivíduos atingidos. E isso não só nas arenas formalmente legitimadas
para exercer a jurisdição (por meio, por exemplo, dos institutos do amicus curiae eda
audiência pública ou mesmo da realização de uma litigância estratégica), mas também na
interpretação realizada por esses indivíduos em outros campos, como em trabalhos
científicos, doutrinários e em debates políticos. Isto é, ouvir a voz daqueles e daquelas que
realmente devem ser ouvidos, pois são jurídica e materialmente atingidos pelo
ordenamento.
correspondência materialmente concreta; e, por outro lado, 2) o fato de o processo constituinte ter sido
amplamente masculino, heterossexual e branco, por essas serem as características dos legisladores
constituintes colombianos (havia apenas quatro mulheres na assembleia constituinte). Assim, embora tenha
havido uma pressão externa dos movimentos sociais, os grupos oprimidos não encontraram representação
efetiva entre os criadores do texto constitucional, o que não se limita apenas à realidade colombiana, mas à
latino-americana como um todo.
~ 468 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Antes que se parta para a análise feita pelos movimentos sociais acerca do atual
estado de proteção constitucional de seus direitos, é essencial que seja ilustrada sua
importância histórica. Isto é, entender como sua existência e atuação foram fundamentais
para se chegar ao patamar atual, além de compreender as especificidades e contradições de
sua própria formação. Nesse sentido, este subtópico se dedica a uma breve exposição da
trajetória do movimento LGBTI no Brasil, reconstruída a partir de revisão bibliográfica.
Uma ressalva inicial é importante: devido à forma de construção do movimento
que hoje chamamos de LGBTI e também à invisibilização produzida pelo protagonismo
excessivo e excludente dos homens gays brancos no início da politização das identidades
sexuais, boa parte da história do movimento LGBTI a que temos acesso é marcada por um
relato eminentemente homossexual masculino, que só muito recentemente começou a se
diversificar.
Em trabalho sobre a história homossexualidade no Brasil, James Green (2000, p.
454) destaca que o advento de um movimento homossexual, politizado e reivindicatório de
direitos, deu-se tardiamente no país, quando comparado com a realidade latino-americana,
de países como Argentina, México e Porto Rico. Segundo o autor, o motivo para isso teria
sido a eclosão da ditadura militar no ano de 1964, uma vez que as condições brasileiras já
estariam amadurecidas para o surgimento de um movimento organizado de gays e lésbicas
em momento anterior.
Para melhor entender a forma como esse desenvolvimento ocorreu, Regina
Facchini (2005) divide a ascensão do movimento LGBTI brasileiro em três ondas. A
primeira onda e, portanto, o próprio surgimento do movimento, deu-se a partir do final
dos anos setenta. Segundo a autora, foi nessa época que gays e lésbicas passaram a se reunir
com propósitos mais politizados, em contraste aos modelos de "guetos homossexuais"
existentes anteriormente (FACCHINI, 2005, p. 88). Essa referência aos "guetos" remete
~ 469 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
aos grupos homossexuais existentes desde os anos 1950, que se voltavam apenas "à
sociabilidade, à diversão e à paródia, aglutinando principalmente homens, que promoviam
eventos como concursos de miss, shows de travestis e desfiles de fantasias" (SIMÕES;
FACCHINI, 2009, p. 63).
Assim, fortemente influenciados pelo gay liberation estadunidense, ativistas
brasileiros começaram a se reunir, tendo sido fundado em 1978, em São Paulo, aqueleque é
apontado como o primeiro grupo brasileiro voltado à politização da homossexualidade: o
Somos. Desde sua criação, o grupo enfrentou "uma polarização entre a 'esquerda' e a
'autonomia das lutas das minorias'", um debate que perpassou todos os integrantes do
movimento na primeira onda e que até hoje encontra reverberações (FACCHINI, 2005, p.
93-94).
Por sua eclosão em plena ditadura, a primeira onda do movimento possuía como
característica principal o antiautoritarismo, rechaçando composições hierárquicas dentro de
sua própria organização e exercendo importante papel no combate às repressões militares.
Exemplo singular dessa atuação foi a criação no jornal Lampião, lançado em abril de 1978,
sob a direção do jornalista e escritor Aguinaldo Silva. A proposta da publicação se aliava ao
formato de "imprensa alternativa", fortemente presente à época, mas possuía enfoque
exclusivo na temática da homossexualidade (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 82-83). Pode-
se dizer que o
Ademais, esse momento também foi fortemente marcado por uma tentativa de
subversão da normalização imposta ao gênero e à sexualidade. Procurava-se retirar o
conteúdo pejorativo de termos como "bicha" e "lésbica", por meio da valorização de sua
utilização cotidiana. Além disso, ganhou especial destaque o combate às assimetrias entre
homens e mulheres, bem como às estereotipizações entre ativo/passivo e
efeminados/masculinizadas (FACCHINI, 2005, p. 96).
Essa primeira onda teria seu fim por volta de meados dos anos 1980, coincidindo
com o momento de eclosão da epidemia da AIDS (Acquired Immunodeficiency Syndrome). O
período foi marcado por uma drástica diminuição no número de grupos LGBTIs
~ 470 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
organizados, ocasionada não só pela disseminação da AIDS, mas também pelo início do
processo de redemocratização, que retirou o "inimigo comum" da maioria dos grupos que
focavam sua atuação no combate ao autoritarismo (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 61-
117). Ainda que muitos identifiquem o período como de declínio do movimento
homossexual, Facchini (2005, p. 102-119) destaca que se tratou apenas de uma diminuição
quantitativa de grupos, não implicando perda qualitativa na militância, que alterou seu
modo de atuação.
A segunda onda foi marcada pela busca de articulação com o movimento LGBTI
internacional, principalmente por meio da International Lesbian and Gay Association (ILGA), e
pela valorização da formalização das organizações, passando a haver interesse no registro
legal e na aquisição de personalidade jurídica para os grupos. Os militantes dessa época não
encaravam a atuação daqueles da primeira onda como política, mas sim como uma forma
de autoajuda, tendo em vista que os primeiros grupos se encontravam para troca de
experiências e vivências pessoais (FACCHINI, 2005, p. 102-119).
Aliado a isso, o movimento da época teve mais um grande desafio: combater os
discursos de patologização da homossexualidade que vinham ganhando força no meio
científico a partir do alastramento da AIDS. Desse modo, os esforços se voltaram à
desvinculação entre homossexualidade e doença e ao combate à sua caracterização como
forma ilegítima de vivência sexual. Devido ao intenso trabalho dos grupos LGBTIs nesse
sentido, houve também uma importante conquista no período, que foi a retirada da
homossexualidade do Código de Doenças do Instituto Nacional da Previdência Social
(FACCHINI, 2005, p. 53- 61). Em síntese,
Foi nesse momento, também, em que os grupos intensificaram sua atuação junto
ao poder legislativo, trabalhando diretamente na constituinte de 1988, na tentativa de
incluir a vedação à discriminação em razão de orientação sexual na nova Constituição. Os
dois grupos de maior destaque à época e peças fundamentais ao avanço da militância
LGBTI foram o Triângulo Rosa (comandado por João Antonio Mascarenhas) e o Grupo Gay
da Bahia (liderado por Luiz Mott). Ambos representavam características típicas do
~ 471 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
288 Trata-se de acordos firmados pelo Brasil com o Banco Mundial para o financiamento de projetos na área
de saúde, que integraram o Programa Nacional de DST e AIDS (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 140).
289 O programa se voltou ao incentivo de múltiplas ações para o combate da homofobia no país, desde a
capacitação de funcionários de educação nas temáticas de identidade de gênero e orientação sexual até o
lançamento de editais para financiar pesquisas ligadas à temática (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 145-146).
~ 472 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
replicação: outro pesquisador deve conseguir entender, avaliar, basear-se em, e reproduzir a
pesquisa sem que o autor lhe forneça qualquer informação adicional". Por isso, dedica-se
esta seção à explicitação da forma de aplicação e à análise dos questionários.
Como já mencionado, um dos objetivos desta pesquisa é permitir a construção de
uma interpretação constitucional de baixo para cima, com protagonismo das pessoas
LGBTIs. Nesse sentido, tendo em vista a dificuldade de delimitação da população (em
virtude de diversos fatores, como a própria condição de anonimato em relação à orientação
não heterossexual ou à condição não cisgênera), considerou-se que a melhor forma de
atingi-la seria a partir de organizações que trabalham diretamente com a temática. Além
disso, o recurso às organizações se mostra ainda mais propício em função do perfil de seus
integrantes, em geral mais acostumados à "linguagem dos direitos", devido à experiência de
militância; e, também, por permitir uma percepção mais coletiva e menos subjetiva acerca
de quais seriam as prioridades na agenda LGBTI, ampliando, embora não garantindo, a
possibilidade de obtenção de resultados mais inclusivos, atentos à pluralidade de
experiências LGBTIs.
Com relação ao instrumento utilizado para a produção dos dados, ainda que o
questionário esteja mais usualmente ligado à execução de investigações quantitativas, a
escolha se deu em virtude das limitações físicas e financeiras desta investigação. Como o
recorte da pesquisa é amplo, abarcando organizações de diversos estados brasileiros, não
seria possível realizar entrevistas com os e as representantes de cada uma das organizações
em suas sedes. Além disso, a realização de entrevistas por videochamadas poderia não ser
aceita por todas as organizações ou, ainda, prejudicar a percepção das informações em
virtude de falhas na conexão. Assim, o questionário se mostrou, como instrumento, a
melhor opção metodológica.
Para sua estruturação, o questionário foi dividido em quatro seções,
predominando perguntas de caráter aberto para possibilitar o máximo de captação de
informações e, também, um menor grau de influência nas respostas. A primeira seção
visava apenas à obtenção de informações gerais sobre a organização, tais quais nome, país e
cidade da sede, bem como e-mail de contato. Já na segunda seção, perguntou-se sobre
quais direitos a organização considerava que precisam ser expressamente previstos na
Constituição, independentemente da realidade de seu próprio país. Foi disponibilizado um
espaço para inclusão de até cinco direitos e uma justificativa para cada um deles, sendo
obrigatória somente a inclusão de pelo menos um direito. Na seção seguinte, a única que
contava com uma pergunta de resposta fechada (as opções dadas eram apenas "sim" ou
~ 473 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
"não"), questionava-se: "a proteção constitucional dos direitos LGBTIs em seu país é
suficiente?". Por fim, a quarta seção variava de acordo com a resposta dada na terceira,
inquirindo: por que a organização considerava a proteção suficiente ou não; quais
acreditava serem os motivos desse status protetivo; e, nos casos em que havia sido apontada
uma proteção insuficiente, questionava-se quais poderiam ser os meios de resolução do
problema.
Para a obtenção de amostragem ampla de organizações brasileiras, optou-se por
utilizar uma lista de organizações que trabalham com a causa LGBTI no país,
disponibilizada pelo "TODXS App", aplicativo de celular criado pela ONG TODXS e
voltado exclusivamente para a população LGBTI290. No app, além de ser disponibilizada a
lista de organizações, tem-se acesso a toda a legislação brasileira referente à temática e
também podem ser realizadas denúncias de casos de homotransfobia que são
encaminhadas diretamente à Controladoria Geral da União (CGU) para investigação.
Diante disso, foi enviado o questionário para um total de 72 organizações, das
quais voltaram 10 respostas. Todos os questionários foram enviados em janeiro de 2018,
tendo como prazo para resposta até metade e fevereiro; mais tarde, foram reenviados em
fevereiro, estendendo-se o prazo de resposta até início de março.
Com relação ao método, guiou-se pela análise qualitativa tripartite de
documentação empírica proposta por Mario Cardano (2017). O método de análise
proposto pelo autor compreende as seguintes etapas: segmentação, qualificação e
individuação das relações. A segmentação se refere ao estabelecimento de marcadores,
"cuja função consiste na identificação de segmentos relativamente homogêneos para
submeter à comparação no interior dos materiais empíricos" (CARDANO, 2017, p. 273).
Nesse sentido, a segmentação seguiu a divisão de perguntas constante no questionário,
separando-se o exame em quatro categorias: os direitos e as justificativas; a suficiência ou
não da proteção no país e o porquê dessa caracterização; as causas da proteção suficiente
ou insuficiente; e as sugestões de superação da insuficiência protetiva, nos casos em que se
aplicavam.
Mais adiante, a etapa da qualificação é conceituada por Cardano (2017, p. 293)
como a “atribuição de uma ou mais propriedades a um determinado segmento da
documentação empírica, úteis à sua caracterização". Desse modo, a técnica permite que se
aprofunde a dimensão de análise do documento por meio de sua maior especificação.
Portanto, para a qualificação dos segmentos, utilizou-se a chamada template analysis proposta
~ 474 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
por Nigel King (2012, p. 426-450). O método consiste na composição de uma grade
analítica a partir da caracterização de cada uma das propriedades identificadas para
possibilitar sua comparação. A utilização da template analysis pode se dar a partir de duas
abordagens principais: indutiva (data-drive), sendo a grade composta por meio do observado
na análise do material; ou dedutiva (theory-drive), por meio da qual se encaixa o encontrado
no documento analisado a categorias definidas previamente. A análise dos questionários foi
feita apenas de modo indutivo, sendo a classificação estabelecida a partir das respostas
fornecidas.
Por fim, a individuação das relações consiste na análise a partir da comparação das
qualificações; ou, ainda, por meio da separação de determinada qualificação para análise.
Sendo assim, nessa última etapa, realizou-se a análise por meio do exame cruzado das
qualificações, destrinchando as principais conclusões aduzidas a partir dos dados
produzidos.
Direito à não discriminação não discriminação; direito à não discriminação; direito à não
discriminação em razão da orientação sexual e identidade de gênero;
combate à discriminação
~ 475 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Direito a uma vida digna/segurança direito à cidadania; proteção do Estado à população LGBT; direito à
segurança de vida; segurança; [proteção de] LGBTs na prisão
Igualdade de direitos e oportunidades A garantia do tratamento igualitário principalmente dos serviços
públicos; direito à igualdade e cidadania; direitos civis; políticas
afirmativas aos transgêneros; direito a isonomia completa como a
dos demais cidadãos heterossexuais
Direito à identidade de gênero Lei da Identidade de Gênero conhecida por João Nery; direito ao
cumprimento da pena privativa de liberdade de acordo com a
identidade de gênero e em ambiente livre de discriminação;
nome social; direito à alteração de registro (nome e sexo); lei de
identidade de gênero; identificação civil; direito à livre expressão
social da identidade de gênero e orientação sexual
Direito ao casamento e união civil direito ao casamento igualitário; casamento igualitário; direito ao
casamento civil e à adoção por casais não heterossexuais
Direito à saúde acesso total à saúde;a saúde de qualidade; direito à saúde; prevenção
a infecções sexualmente transmissiveis; a garantia a saúde plena
LGBT
As aparições destacadas em vermelho são aquelas nas quais dois direitos foram
colocados conjuntamente e que, portanto, sofreram cisão para sua melhor categorização.
Por outro lado, aquelas marcadas em laranja se referem a aparições que, apesar de se
encaixarem em direitos maiores, são tão específicas que poderiam ter recebido uma
~ 476 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
categoria autônoma; o que não foi feito na tentativa de possibilitar uma melhor
comparação e individuação das relações. Na Tabela 02, é possível observar a frequência de
aparição de cada uma das categorias nos questionários.
Direito ao trabalho 1
Direito à saúde 5
Criminalização da homofobia 3
Direito à moradia 1
Direito à maternidade/paternidade/adoção 3
Despatologização da transexualidade 1
Um exame rápido das tabelas anteriores nos permite afirmar que a proteção
atualmente existente naConstituiçãobrasileira está infinitamente aquém do cenário ideal,
apontado e esperado pelos movimentos LGBTI. Recortando apenas a partir dos quatro
~ 477 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 478 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O trecho chama a atenção para uma interseção entre as opressões sofridas pela
população carcerária e pela população trans, amplificando o sofrimento e a violação aos
direitos dessas pessoas.
O segundo ponto diz respeito ao procedimento de alteração do registro. Outra
organização destacou a necessidade de que a alteração se dê pela via administrativa e não
~ 479 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
291As respostas aos questionários ocorreram antes da decisão do STF no RE nº 670.422 e na ADI 4275, que
autorizou a alteração do registro de nome e gênero das pessoas trans a partir de seu gênero autopercebido e
sem necessidade de procedimento judicial.
~ 480 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 481 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
aposta traz uma série de riscos: não só de a concretização do direito se dar de maneira
incompleta (em virtude da falta de regulamentação ou de abordagem de todas as nuances
da temática pelas decisões judiciais), mas também da insegurança jurídica gerada, por se
depender das interpretações promovidas por um judiciário cambiante. Nesse sentido, uma
das organizações brasileiras frisa que a segurança e proteção dos LGBTIs "depende muito
da interpretação e da boa vontade das pessoas que operam a máquina do Estado". O que
reflete, mais uma vez, a precariedade do atual panorama de reconhecimento de direitos às
pessoas LGBTIs.
O terceiro ponto levantado traduz a estrutura da opressão veiculada por uma
sociedade cisheteronormativa, na qual aqueles e aquelas que transgridem a norma tendem a
ser marginalizados e subvalorizados. O quarto aspecto, por sua vez, à dimensão dos
números de violência contra a população LGBTI.
Por fim, o último pontoapresentado diz respeito à não criminalização da
homotransfobia no ordenamento brasileiro. A ideia de se utilizar do sistema penal, meio de
opressão e perpetuação de discriminações estruturais, para tutelar os interesses dos e das
LGBTIs é tema controverso até mesmo dentro da militância homo e transexual. Ainda que
recorrer ao direito penal possa transmitir a sedutora imagem de que as vidas LGBTIs
passaram a importar para a sociedade, é preciso ter em mente que isso não só não irá
alterar a percepção da maioria da população acerca dessas identidades e sexualidades
desviantes, como também atuará sob um escopo extremamente limitado e enviesado, que já
sobrecarrega negros e negras diariamente no Brasil. É dizer: a criminalização só teria
utilidade para encarcerar aqueles e aquelas que o sistema já enquadra como transgressores
antes mesmo de qualquer julgamento. Desse modo, é necessária profunda reflexão acerca
de sua aplicação.
~ 482 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
292 Nesse sentido, Corrales (2015, p. 7) destaca que, até o ano de 2014, só havia tido 15 pessoas, na história da
formação legislativa nos países da América Latina e Caribenha, que eram abertamente homossexuais e
ocupavam cargos em casas legislativas em nível federal. E isso se restringia aos seguintes países: Argentina,
Aruba, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, México e Peru. Atualmente no Brasil, apenas o
deputado federal Jean Wyllys se enquadra nessa categoria.
293 Em pesquisa empírica conduzida sobre o tema, Andrew Reynolds (2013, p. 259) aponta como resultado a
existência de uma associação entre a presença (mesmo pequena) de legisladores abertamente gays e a
aprovação de normativas que avançam nos direitos dos homossexuais, uma vez que a presença dos gays no
legislativo tem um efeito transformador na visão e votação de seus colegas heterossexuais.
~ 483 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Como se aduz, a falta de diálogo tende a partir do próprio poder público e não
dos movimentos sociais. Pelo contrário, como identificado pelos questionários, o
movimento LGBTI tem se esforçado para atingir e influenciar o poder público de alguma
forma, buscando que suas demandas sejam, ao menos, escutadas e levadas em
consideração.
~ 484 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 485 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Por fim, foi sugerido por outra organização que o primeiro passo para a alteração
da realidade atual seria a criminalização das práticas LGBTIfóbicas. Como já debatido, o
tema da criminalização é extremamente controverso, até mesmo entre LGBTIs, e deve
sempre ser acompanhado de uma necessária visão crítica do instituto penal. Caso se
considere a criminalização uma saída (uma vez que não parece possível descartá-la a priori),
deve-se, concomitantemente, levantar a discussão acerca da problemática da discriminação
estrutural do sistema penal, bem como de sua utilização enquanto ultima ratio, buscando
evidenciar quais seriam as situações jurídicas que realmente mereceriam ser tuteladas por
esse ramo do direito. Ademais, como destaca Thula Pires (2015, p. 278-279) sobre a
criminalização do racismo, as normas que visam combater a discriminação por meio da
pena podem carecer de efetividade, uma vez que as instituições punitivas naturalizam
padrões de opressão, não enquadrando os atos de discriminação no tipo penal.
CONCLUSÃO
O Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTIs no mundo. Embora se enquadre
em uma tradição constitucional com marcado alargamento da pauta de direitos, a
Constituição de 1988 não possui qualquer disposição específica com relação à tutela dos
direitos LGBTIs. Nesse sentido, o presente trabalho investigou qual seria a abrangência da
proteção fornecida pela Constituição brasileira, a partir da ótica dos movimentos sociais,
privilegiando a construção de um direito de baixo para cima.
Desse modo, foi traçada uma reconstrução histórica da atuação do movimento
LGBTI brasileiro, por meio da técnica de revisão bibliográfica, para a melhor compreensão
da caracterização e formas de atuação desse movimento. Posteriormente, foram analisadas
as respostas de dez organizações brasileiras ao questionário aplicado. A partir da análise
documental, foi possível concluir pela evidente insuficiência protetiva de nossa
Constituição com relação às pessoas LGBTIs, o que foi apontado unanimemente por todas
as entidades que responderam ao instrumento.
Além disso, o exame dos questionários permitiu avançar na compreensão do
porquê da invisibilização das pessoas LGBTIs no texto constitucional e também na busca
~ 486 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
de formas por meio das quais o atual paradigma possa ser superado. Nesse sentido,
concluiu-se, também, que essa superação deve ocorrer para além do campo jurídico, que se
mostra como extremamente limitado para efetivar uma transformação social profunda.
Portanto, é necessária sua articulação com outros campos, como a educação e a saúde a fim
de promover a concretização da justiça para as pessoas LGBTIs.
REFERÊNCIAS
CORRALES, Javier. LGBT Rights and Representation in Latin America and the
Caribbean: The Influence of Structure, Movements, Institutions, and Culture. University
of North Carolina: LGBT Representation and Rights Initiative, 2015.
EPSTEIN, Lee; KING, Gary. Pesquisa empírica em direito: as regras de inferência. São
Paulo: Direito GV, 2013.
~ 487 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
KING, Nigel. Doing Template Analysis. In: SYMON, Gillian.; CASSEL, Catherine.
Qualitative Methods in Organizational Research: core methods and current
challenges. London: SAGE Publications, 2012, p. 426-450.
VITAL, Christina; LOPES, Paulo Victor Leite. Religião e Política: uma análise da atuação
dos parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de
Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2012.
~ 488 ~
O ESTADO POLUIDOR-PAGADOR:
POR UMA LEITURA CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA DA
RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO NA TRAGÉDIA DA
BARRAGEM EM MARIANA-MG
1 INTRODUÇÃO
* Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Brasil. Graduada em Direito pela
Universidade Federal do Paraná – UFPR, Brasil. Especialista em Políticas Públicas pelo Consejo Latinoamericano
de Ciencias Sociales y Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, Costa Rica. Especialista em Direito do Trabalho
pelo Centro de Estudos Jurídicos do Paraná, Brasil. Pesquisadora do Grupo Trabalho, Economia e Políticas
Públicas da Universidade Federal do Paraná, Brasil. Advogada em Curitiba, Brasil.
~ 489 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
gestão pública nessa esfera. Exemplo disso é o desastre ocorrido na cidade de Mariana, em
Minas Gerais, com o rompimento da barragem da empresa mineradora Samarco. Todas as
esferas do debate e da responsabilização destinaram os esforços a verificar os limites da
culpa da empresa, desprezando, de outro lado, o descumprimento do dever fiscalizatório
do Estado que concorreu para a ocorrência do destrate.
ambiente tal como se aproveita agora, seja em termos de variedade, seja em termos de abundância, ou ainda,
em termos de qualidade e conservação dos bens naturais (ARAGÃO, 1997, p. 30). “Significa, de um lado,
instituir uma igualdade entre cidadania atual e futura — ambas objeto de igual proteção — e ainda, de outro,
reconhecer que uma situação hipotética de plenitude do bem-estar presente pode se deslegitimar pelos seus
reflexos adversos nas gerações do por vir; ou pode ser constringida, num verdadeiro ‘trade off’ em favor das
potencialidades futuras de bem-estar” (VALLE, 2011).
~ 490 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 491 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 492 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
297 A Lei nº 1.628, de 20 de junho de 1952, criou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
(BNDE), e atribuiu-lhe a natureza autárquica. Seu objetivo era ser o órgão formulador e executor da política
nacional de desenvolvimento econômico. “Numa primeira fase, o BNDE investiu muito em infraestrutura,
mas a criação de estatais aos poucos liberou o Banco para investir mais na iniciativa privada e na indústria.
Durante os anos 60, o setor agropecuário e as pequenas e médias empresas passaram a contar com linhas de
financiamento do BNDE”. (BRASIL, s. d.).
298 Conforme destaca Fernando Henrique Lemos Rodrigues, tal influência, embora não tenha se dado
~ 493 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 494 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 495 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
300“Em nível mundial, (...) o número de rompimentos com barragens na década de 1990 superou os 30 casos
e nos anos 2000 passou de 20, tendo sido estes em sua maioria eventos com consequências graves ou muito
graves”. (POEMAS, 2015)
~ 496 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
301 A água coletada pelo SAAE (Serviço de Água e Esgoto) do município de Valadares apontou um índice de
ferro 1.366.666% acima do tolerável para tratamento. Os níveis de manganês, metal tóxico, superaram o
tolerável em 118.000%, enquanto o alumínio estava presente com concentração 645.000% maior do que o
possível para tratamento e distribuição aos moradores. O nível de turbidez regular é 1000 uT, mas chegou a
80 mil uT na passagem dos rejeitos. “Segundo o chefe do Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das
Clínicas da USP, Anthony Wong, a concentração mais preocupante é do manganês: — É um metal tóxico
que, por ser mais pesado, devia estar depositado no fundo. Pode provocar alterações nas contrações
musculares, problemas ósseos, intestinais e agravar distúrbios cardíacos. O alumínio não traz riscos para a
população em geral, mas nestas quantidades pode trazer riscos para diabéticos, pessoas com tumores ou
problemas renais crônicos. O organismo mais ácido absorve mais alumínio”. (SANSON, 2015)
302 Dados constantes na Ação Civil Pública movida em face da Samarco, da Vale e da BHP Billion pela
União, pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, pelo
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, pela Agência Nacional das Águas – ANA, pelo
Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, pelo Estado de Minas Gerais, Instituto Estadual de
Florestas – IEF, pelo Instituto Mineiro de Gestão de Águas – IGAM, pela Fundação Estadual de Meio
Ambiente – FEAM, pelo Estado do Espírito Santo, pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos
Hídricos – IEMA, e pela Agência Estadual de Recursos Hídricos – AGERH.
~ 497 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 498 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 499 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
necessidade da regulação, fiscalização e controle por parte do Estado com vistas ao fim de
consolidar uma orientação política que condicione as mineradoras a adotarem novas
matrizes de disposição de rejeitos no Brasil de forma a se alcançar, na maior medida
possível, uma atividade extrativa que cause o menor dano possível ao meio ambiente.
~ 500 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
De tal modo que o direito ao futuro fará aflorar um repensar sobre a teoria da
responsabilidade civil em matéria ambiental como categoria jurídica, e não como dogma
estático, precisão conceitual ou categoria própria de um ramo jurídico autônomo e
autossuficiente. A alegação de que a responsabilidade por danos ambientais ao entrar em
contato com categorias do direito público inaugura seu próprio declínio remonta à
“Constituição do homem privado” que revela uma principiológica incompatibilidade entres
estruturas patrimonialistas e abstracionista do Código Civil em face da estrutura humanista
emergente da Constituição Federal de 1988 (FACHIN, 2015, p. 52).Luiz Edson Fachin
aponta que tal racionalidade ainda está indevidamente calcada no reducionismo entre
inclusão e exclusão, sendo um dos modos pelos quais “o próprio Direito pode provocar
vítimas, afastando-se de uma direção emancipatória”(FACHIN, 2015, p. 52).
Sendo assim, parece claro que o paradigma da sustentabilidade suscita um outro
tipo de olhar sobre o conceito de responsabilidade. No âmbito do Direito Público esse
novo repensar não se restringirá a afirmar que o Estado “não se esconde em supostos
juízos de conveniência e de oportunidade para nada fazer” (FREITAS, 2012, p. 264), mas
incorporará em seu discurso que o Estado existe também como garantia de gerações
futuras. A inovação é presente, “precisamente, na internalização do princípio constitucional
da sustentabilidade, aplicável à íntegra no sistema jurídico-político, não apenas ao campo
avançado do Direito Ambiental”(FREITAS, 2012, p. 265).
A releitura da teoria da responsabilidade estatal, sobretudo a partir do recorte
temático desse estudo, para que não se persista na absurda postura omissiva
inconstitucional e inconvencional. O Estado sustentável é aquele que cumpre a Agenda
ambiental de forma completa e de ofício, cumprindo fazê-los para que antes que seja tarde,
se introduza uma guarda efetiva dos direitos constitucionalmente previstos.(FREITAS,
2012, p. 270)
~ 501 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Assim, três pontos básicos deverão ser revistos: (i) a defesa, ainda substancial, da
responsabilização do Estado de forma subjetiva na modalidade omissiva; (ii) a releitura do
nexo causal e (iii) a mitigação da excludente de responsabilidade por fato de terceiro.
A abalizada doutrina brasileira ainda tem cometido o equívoco de identificar a
responsabilidade subjetiva nos casos de omissão, com a incorporação da tese desenvolvida
e amplamente defendida por Celso Antônio Bandeira de Mello.
~ 502 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 503 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Por último, cabe um destaque breve, porém importante a não incidência do fato
de terceiro como excludente do nexo causal para fins de responsabilização Estatal. Marçal
Justen Filho afirma que
4 CONCLUSÕES
~ 504 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS
ALMEIDA FILHO, Niemeyer; CORRÊA, Vanessa Petrelli. A CEPAL ainda é uma escola
do pensamento?.Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p.
92-111, jan./abr. 2011. p. 93.
CAMARGOS, Daniel. Plano de emergência para barragens da Samarco era ineficaz, acusa
Polícia Federal. Jornal Estado de Minas, 31 jan. 2016. Disponível em: <
http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2016/01/31/interna_gerais,730015/plano-de-
emergencia-para-barragens-da-samarco-era-ineficaz-acusa-pf.shtml>. Acesso em: 10 abr.
2016.
~ 505 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
FACHIN, Luis Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro:
Renovar, 2015.
FEITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade civil do Estado por omissão: uma proposta
de releitura da fauteduservice. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo [et. al.].
Direito e administração pública: estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella di
Pietro. São Paulo: Atlas, 2013. p. 1139.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014. p. 1339.
LEITE, José Rubens Morato; BELLO FILHO, Ney de Barros. Direito Ambiental
Contemporâneo. Barueri: Manole, 2004. p. 3.
LUCENA, Eleonora da. Tragédia da Samarco teve triplo recorde mundial. Folha de S.
Paulo, 12 dez. 2016. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/12/1718130-tragedia-da-samarco-teve-
triplo-recorde-mundial-diz-consultoria.shtml>. Acesso em: 14 abr. 2016.
~ 506 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
PoEMAS. Antes fosse mais leve a carga: avaliação dos aspectos econômicos, políticos e
sociais do desastre da Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG). Universidade Federal de Juiz
de Fora, 2015. Disponível em: <http://www.ufjf.br/poemas/files/2014/07/PoEMAS-
2015-Antes-fosse-mais-leve-a-carga-vers%C3%A3o-final.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2016.
SANSON, Cesar. Lama contaminada tem concentração de metais até 1.300.000% acima do
normal. Revista IHU. São Leopoldo. 13 nov. 2015. Disponível em:
<http://www.ihu.unisinos.br/noticias/549002-lama-contaminada-tem-concentracao-de-
metais-ate-1300000-acima-do-normal>. Acesso em: 28 jun. 2018.
~ 507 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
VALLE, Vanice Regina Lírio do. Sustentabilidade das escolhas públicas: dignidade da
pessoa traduzida pelo planejamento público. A&C – Revista de Direito Administrativo
& Constitucional, Belo Horizonte, ano 11, n. 45, p. 127-149, jul./set. 2011.
~ 508 ~
A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O DIREITO
CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO INCLUSIVA
INTRODUÇÃO
~ 509 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
declarou com algum tipo de barreira físico-mental, que acaba por inviabilizar sua plena
participação em sociedade.
Hoje, não restam dúvidas de que milhares de alunos com deficiência são
escolarizados juntamente com outras pessoas pertencentes ao mesmo grupo e, assim, tem-
se que houve um grande crescimento das práticas educacionais inclusivas, partindo-se de
um direito à igualdade constitucionalmente previsto para o implemento deste princípio,
considerado de suma importância na análise das políticas públicas em prol das pessoas com
deficiência.
Dessa forma, valendo-se do método bibliográfico, este artigo busca tecer notas
gerais e dar início a determinadas reflexões sobre a importância e atual condição do direito
constitucional à educação no que tange às pessoas com deficiência, analisando a evolução
do ainda conturbado conceito de pessoa com deficiência, bem como da melhor
nomenclatura a ser utilizada, servindo de base textos de renomados autores da área e da
própria legislação pertinente, e aspectos da chamada escola inclusiva, com incursões na
progressão social e constitucional do direito à educação, verificando seu desenvolvimento
até o marco comemorativo dos trinta anos da Constitucional Federal, especialmente
quando aplicada às pessoas com deficiência.
~ 510 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
A partir dessa visão, era plenamente possível, e até recomendável, que a sociedade
prescindisse de pessoas com deficiência, pois eram indivíduos que possuíam vidas que não
mereciam ser vividas e havia clara legitimação e adoção de práticas excludentes, como o
infanticídio ou o aborto do recém-nascido “disforme”, como era chamado.
O antecessor do citado filósofo grego, Platão, também relatava como eram as
práticas relacionadas aos deficientes nas polis gregas, ressaltando o fato de homens
considerados inferiores naquela organização político-social terem que levar seus filhos
“disformes” e escondê-los em um local oculto, totalmente segregado da sociedade comum,
conforme se vê em breve passagem de uma de suas obras, ao dizer que “(...) pegarão então
~ 511 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
nos filhos dos homens superiores, e levá-los-ão para o aprisco, para junto de amas que
moram à parte num bairro da cidade; os dos homens inferiores, e qualquer dos outros que
seja disforme, escondê-los-ão num lugar interdito e oculto, como convém” (GUGEL,
2006, p. 25).
As crianças deficientes eram lançadas de um abismo denominado Apothetai rumo à
morte, relevando que o tratamento dispensado às pessoas com deficiência na antiga cultura
grega em muito se relacionava ao abandono ou sacrifício, realizado pelo próprio genitor do
recém-nascido ou anciãos encarregados de eliminar a vida do bebê feio e disforme303. Em
outras cidades gregas, os nascituros eram abandonados em locais considerados sagrados e
deixados à própria sorte ou, como acreditavam, ao arbítrio dos deuses. Portanto, percebe-
se a grave necessidade de manter a pessoa com deficiência vivente na época da antiguidade
clássica totalmente excluída do seio social – já bastante seletivo com quem era ou não
considerado cidadão –, muitas vezes ignoradas e escondidas, para que não fossem
“ameaças” à beleza das cidades. 304
Pouco diferente foi a situação da pessoa com deficiência nos tempos de Idade
Média, período bastante caracterizado pelo culto ao divino e formulação de teses filosóficas
e científicas sempre relacionadas à moral cristã, pois passaram a ser encarados como
verdadeiros pecadores e objetos para a prática da misericórdia das pessoas consideradas
normais, geralmente presente em relatos bíblicos, nos quais mostram a cura de deficientes
físicos e visuais, que retornam normalmente às suas atividades depois de operada uma
espécie de “milagre”.
Com a entrada em vigor do Renascimento, a ciência médica passou a caracterizar
a deficiência como doença ou disfunção biológica, asseverando que as limitações e
privações da pessoa com deficiência decorrem de má-formação de sua saúde física ou
mental, considerada fora dos padrões da normalidade, consagrando o período
conhecimento como “médico” ou “biológico”.
A incapacidade individual passou a ser notada como a grande limitadora das
funções do indivíduo, sendo a culpa estritamente sua, que, diante das limitações, sofreria
claramente as restrições do meio em que vivia. No mesmo instante, desenvolvia-se o
assistencialismo, que buscou incessantemente a colocação das pessoas com deficiência no
303 Nesse ínterim, explica Otto Marques da Silva (2009, p. 23) que, os genitores de qualquer recém-nascido
“eram obrigados a levar o bebê, ainda bem novo, a uma espécie de comissão oficial formada por ancião de
reconhecida autoridade, que se reunia para examinar e tomar conhecimento oficial do novo cidadão”.
304 No campo da mitologia grega, algumas divindades eram representadas como pessoas com deficiência em
suas formas humanas, que eram suas características marcantes, como pessoas cegas. Não obstante o cenário
fantástico, a literatura classicista, representada pelo poeta grego Homero, consagrou a figura de Hefesto como
deficiente físico, que fora agraciado pelos deuses com grande maestria na metalurgia e artes manuais.
~ 512 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
âmbito da sociedade, mas lhes nomeando como “excepcionais”, englobados ali todos os
indivíduos cujas características desviam das normas nos padrões construídos pelos homens
em suas relações sociais.
Não obstante, com a propagação do cristianismo, o tratamento concedido às
pessoas com deficiência tramitava da prestação de caridade ao extermínio, a fim de
expurgar-lhes os pecados. Com a Revolução Francesa, a experiência social com o tema
obteve grandes repercussões, ao passo que a deficiência foi vista como tratável, fazendo
com que surgissem hospitais psiquiátricos e outras instituições totais com o fim de ocupar
o deficiente com trabalhos manuais e iniciar as tentativas de ensino de comunicação para
pessoas surdas e com deficiência mental.
A partir da década de 70 surge o modelo social, invertendo a lógica até então
adotada e buscando as causas da deficiência não no corpo do indivíduo, mas sim nas
barreiras sociais impostas ao deficiente, que agora passa a depender de ações sociais no
meio em que se encontra inserido. Não se trata mais de o indivíduo com deficiência ter o
dever de se adequar ao meio ambiente em que vive, cujo ônus passa a ser da sociedade, que
deve adaptar os locais de convívio social ao deficiente.
Talvez o maior exemplo desse avanço na mentalidade social seja exatamente a
atuação da Organização das Nações Unidas (ONU), que, no decorrer da década de 1970
escreve resoluções contribuindo para que se inicie o processo de inclusão do deficiente na
sociedade, sobretudo após dois conflitos armados que deixaram diversos combatentes
mutilados.
A proclamação da Declaração dos Deficientes Mentais (ONU, 1971) teve o
seguinte teor:
(...) se alguns deficientes mentais não são capazes, devido à gravidade de suas
limitações, de exercer afetivamente todos os seus direitos, ou se tornar
necessário limitar ou até suspender tais direitos, o processo empregado para
esses fins deverá incluir salvaguardas jurídicas que protejam o deficiente contra
qualquer abuso. Esse procedimento deverá basear-se numa avaliação da
capacidade social do deficiente por peritos qualificados.
~ 513 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Uma vez que o Brasil passa a se preocupar juridicamente com a pessoa com
deficiência no início do século XXI, ainda em plano internacional, a Assembleia Geral das
Nações Unidas, com manifesto objetivo de promover níveis de vida melhores e mais
elevados a todos os indivíduos que compõem o grupo vulnerável em discussão, edita a
Resolução nº 30/84, de 1975, que se institui como base e referência para o apoio e
proteção dos direitos nela previstos. É também a grande responsável pela introdução do
termo “pessoa portadora de deficiência”, ainda em voga, apesar de entendimentos em
sentido contrário, para se referir ao indivíduo que, por força de seus déficits físicos ou
mentais, não se encontra em pleno gozo da capacidade civil, de satisfazer, total ou
parcialmente, suas necessidades vitais e sociais.
Ainda, a citada resolução serviu de base para a futura Emenda Constitucional nº
12/78, que prevê o termo “deficiente” e consagra a melhoria de sua condição social e
econômica por meio da garantia de acessibilidade, assistência e reabilitação, com vistas à
futura integração social por completo, proibindo também a discriminação em diversos
setores da vida comunitária, inclusive na admissão ao trabalho e no pagamento de salários
(GUGEL, 2006, p. 27)
Por outro lado, a grande problemática enfrentada pelo modelo social é a ausência
de análise da situação subjetiva da pessoa, que, por muitas vezes, acaba condicionando o
modo com que ela se comporta na sociedade. Isso quer dizer que as alterações sociais para
incluir o deficiente são genéricas, desprovidas de qualquer análise concreta de casos.
Em 1980, a Organização Mundial da Saúde adota um modelo misto baseado em
três vertentes, sendo elas a biológica, psíquica e social, como escalas pelas quais a pessoa
com deficiência deveria passar para ser caracterizada e assim ter melhor atendidas as suas
necessidades especiais. A grande instauração desse modelo se dá quando o órgão
internacional publica a Classificação Internacional de Impedimentos, Deficiências e
Incapacidades (CIDID), demonstrando que é claramente possível que em uma pessoa
exista concomitantemente os três tipos de especialidades, esclarecendo que tais restrições
não lhe retiram o valor como pessoa humana que é, dotada de dignidade, tampouco obsta
seu poder de tomar decisões que digam respeito ao seu modus vivendi.
Na sequência, no ano de 1981, a Organização das Nações Unidas, por intermédio
da Resolução nº 34/154, proclama aquele ano como o Ano Internacional das Pessoas
Deficientes, elencando como tema principal de suas pautas a participação plena do
deficiente em sociedade, bem como a possibilidade de crescimento dos movimentos sociais
~ 514 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
305Em notável artigo escrito sobre a inclusão escolar da pessoa com deficiência, Fabio Masci (2017, p. 133-
134) explica que “la vulnerabilità è una condizione esistenziale che spoglia l’uomo della propria autonomia e
lo veste di mancanze e dipendenze che velano il suo essere persona”, afirmando ainda que a “persona
vulnerabile” é uma espécie do gênero “pessoa” e seu desenvolvimento reside na proteção da liberdade e da
igualdade, que a torna igual aos demais pelo simples fato de ser homem.
~ 515 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 516 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
sendo a Convenção de Nova Iorque, que foi promulgada juntamente com um Protocolo
Facultativo, inserido por meio do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, tendo ambos
caracteres de Emenda Constitucional, e a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que instituiu
a lei nacional de inclusão da pessoa com deficiência, vulgarmente chamada de “Estatuto da
Pessoa com Deficiência”.
Assim, pode-se dizer que contemporaneamente, pessoa com deficiência é “aquela
que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o
qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (BRASIL, 2015).
Além disso, a deficiência apenas poderá ser constatada mediante laudo biopsicossocial
confeccionado por equipe multiprofissional e interdisciplinar, considerando os
impedimentos corporais, fatores socioambientais e pessoais, a limitação no desempenho de
atividades e a restrição de participação.
Diferentemente do cenário atual e do supracitado autor, a doutrinadora Nair
Lemos Gonçalves (sem data, p. 3495) emprega o termo “excepcional” e o coloca como
sinônimo de pessoa com deficiência, dizendo se tratar de “desvio acentuado dos
mencionados padrões médios e sua relação com o desenvolvimento físico, mental,
sensorial ou emocional, considerados esses aspectos do desenvolvimento separada,
combinada ou globalmente”.
A visão exarada pela supracitada especialista é atinente à época de seus escritos,
pois a expressão de que se serve ela já se encontra superada pela doutrina e pelos textos
normativos posteriores à Constituição Federal de 1988, apesar de diplomas mais recentes,
como o Código Civil Brasileiro, ainda reportarem ao termo em suas disposições sobre
capacidade absoluta e relativa, o que demonstra claramente a total falta de sintonia entre o
legislador e as preocupações necessárias ao grupo de pessoas com deficiência.
Nesse sentido, necessário mencionar finalmente o entendimento do ilustre
estudioso Lauro Ribeiro (2012, p. 160), citado na obra “Manual dos direitos da pessoa com
deficiência”, que exalta com razão que
O conceito social de deficiência trazido pela Convenção da ONU (...) exige uma
mudança da sociedade, que deve ajustar-se para permitir que a pessoa com
deficiência, que dela já faz parte, usufrua de todos os sistemas sociais em
igualdade de condições com as demais pessoas; é dizer: na atualidade a
sociedade deve ser inclusiva.
~ 517 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Por esta razão, merece demasiados elogios o conceito adotado pela Convenção,
que se mostra muito mais amplo e aberto, fazendo menção à dificuldade de inclusão e,
evidente, bastante condizente com as regras de gramática local.
2. DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA
~ 518 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 519 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O primeiro requisito reza que a diferenciação adotada por uma lei, ação social ou
política pública relativa à pessoa com deficiência busque a promoção da inserção social ou
o desenvolvimento individual do diferenciado, fazendo com que haja uma medida positiva,
um meio de acesso facilitado para os integrantes do grupo. O segundo apregoa que, mesmo
que se trate de uma medida positiva, é necessário que a diferenciação se esfacele o direito à
igualdade, significando que a ação perquirida deve ter como base fundamental o direito a
ser exercido por qualquer pessoa, não só os integrantes de determinado grupo. Finalmente,
é preciso que a pessoa com deficiência tenha a autonomia da vontade respeitada, no
sentido de poder ou não acatar a diferenciação que lhe é feita, mesmo que em seu
benefício, proporcionando a opção de utilizá-la ou não.
Em sentido contrário à inclusão social, é importante frisar que as pessoas com
deficiência sofrem dupla exclusão na maioria, senão em todos, os campos do meio social,
incluindo a saúde pública, a educação, a acessibilidade física às edificações públicas e privas,
já que se veem defronte a “restrição ou impossibilidade de acesso aos bens sociais,
incluindo-se aqueles relacionados com uma vida independente e autossustentada” (LIPPO,
2004, p. 37).
Segundo Humberto Lippo (2004, p. 247), a primeira forma de exclusão é advinda
dos próprios mecanismos que constituem a sociedade capitalista, principalmente em países
subdesenvolvidos, que inserem grandes contingentes populacionais a uma condição de
flagrante miserabilidade ou subsistência. Por isso, a classe social de que é oriunda a pessoa
com deficiência exerce grande influência em sua cidadania participativa, já que nas classes
menores e menos privilegiadas, há a formação de uma cultura da normalidade no que versa
sobre as pessoas com deficiência retirarem sua vivência da mendicância e persistirem
mergulhadas no analfabetismo. Nas classes mais ascendentes, o cenário é distinto e as
pessoas integrantes desfrutam de determinados privilégios. Por outro lado, a segunda
espécie de exclusão é decorrente da própria condição pessoal, pelo fato de ter uma
“diferença restritiva” nas áreas físicas, sensoriais, cognitivas ou comportamentais, que se
situam em desacordo com os padrões socialmente estabelecidos como produtivos,
funcionais e eficientes.
Sendo assim, é de se concluir que a acessibilidade não é um direito reconhecido
apenas às pessoas com deficiência, mas também às pessoas que possuem mobilidade
reduzida, independentemente do motivo que a ensejou, seja por própria deficiência física,
por idade ou por estados pessoais, como no caso das gestantes ou obesa. O direito à
inclusão reclama uma reavaliação legal e social, de modo que passe a ser tratado não apenas
~ 520 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
como a mera remoção de obstáculos arquitetônicos, por exemplo, que outrora eram
considerados os únicos problemas enfrentados pelas pessoas com deficiência numa
sociedade moderna, mas sim estender tal entendimento à extirpação de barreiras
ideológico-sociais, na maioria das vezes de cunho preconceituoso, ofertando uma plena e
sadia inclusão às pessoas pertencentes ao grupo em análise nos mais diversos campos de
atuação humana.
(...) a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se
encontram preparadas para a vida social; tem por objetivo suscitar e
desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais,
reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a
criança, particularmente, se destine.
~ 521 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 522 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
desenvolvimento das ciências jurídicas, que conta com ferramentas necessárias ao combate
de qualquer ameaça ao perfeito funcionamento do sistema de educação.
A existência do direito à educação enquanto ramo autônomo das ciências jurídicas
não é descabido, pois diversos profissionais das áreas jurídica e educacional unem esforços
para apresentar teses que demonstrem a existência de estritas relações entre os
conhecimentos de ambos os campos. Nesse sentido, inclusive, oportuno colacionar que a
jurista Esther de Figueiredo Ferraz assevera que todos os que atuam “na área da educação e
do direito sentimos a necessidade de juntar esses dois elementos, porque percebemos
perfeitamente que a educação é uma área, que deva ser cultivada também pelo direito”
(JOAQUIM, 2009, p. 103).
Levando-se em consideração o contexto apresentado, vem à discussão se o direito
educacional poderia ou não ser creditado como ramo autônomo da ciência jurídica, ou se
ele é pertencente a outro e atua apenas como uma espécie de um grande gênero. Porém,
antes disso já se dizia em sede doutrinária que, ao invés de se questionar pela autonomia
legislativa e científica de um ramo jurídico, deve-se entender que essa divisão serve única e
simplesmente para uma apresentação didática, uma vez que os efeitos jurídicos resultantes
da incidência de um grupo de normas jurídicas podem afetar outros galhos da “árvore
jurídica”.
Por tal motivo, hoje a doutrina e a jurisprudência majoritária protestam pela
autonomia do direito educacional, pois se trata de ramo composto por um conjunto
sistematizado de normas e princípios que o diferenciam das demais ramificações. A
propósito, feliz a contribuição de Renato Alberto Teodoro Di Dio (1982, p. 25), para quem
o “(...) direito educacional é o conjunto de normas, princípios, leis e regulamentos, que
versam sobre as relações de alunos, professores, administradores, especialistas e técnicos,
enquanto envolvidos, mediata ou imediatamente, no processo ensino-aprendizagem”.
É certo também que o maior acervo no que diz respeito à formatação da
educação no Brasil, quando não presente em materiais próprios de ciências mais afins, está
no ordenamento jurídico. Como é cediço, com a derrocada do regime militar de 1964 e a
entrada em vigor da nova ordem constitucional, o momento trouxe consigo legislações
específicas sobre a área educacional, com normas específicas na própria Constituição
Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, as quais contribuem, dia a dia, para que
se amplie a incidência normativa do ramo. Outro ponto manifesto é que,
independentemente da área do conhecimento humano, embora os conceitos e
~ 523 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 524 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
direito social, econômico e cultural. Aliás, apoiando tal posição, o professor Richard Pierre
Claude (2005, p. 37) especifica que o direito constitucional à educação é também um
~ 525 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
O direito à educação das pessoas com deficiência não foge à regra da inclusão e
tampouco se trata de um direito distinto dos demais. É bem verdade que todas as pessoas
com deficiência têm pleno direito à educação e ao acesso à cultura e instrução, de modo
que objetive seu desenvolvimento e o preparo pessoal para o exercício da cidadania, sem se
olvidar da qualificação para o trabalho, nos termos prescritos no artigo 205 da Constituição
Federal, que atribui à educação, em claras palavras, o status de direito de todos, sem fazer
qualquer exceção de ordem econômica, pessoal, étnica ou intelectual.
No campo dessa matriz constitucional, o direito à educação das pessoas com
deficiência não deve ser vítima de qualquer tipo de restrição – como a sociedade está
acostumada a ver, no âmbito escolar, sérios problemas relacionados ao bullying, às questões
de gênero, de deficiência e etnia –, uma vez que é empiricamente aceito que a educação
inclusiva tem permitido que estudantes que façam parte do grupo em análise perfaçam sua
trajetória escolar lado a lado às pessoas que não têm deficiência, constituindo-se uma
verdadeira concretização do direito à diferença. Não menos, a educação inclusiva tem sido
~ 526 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 527 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
para o presente tema reside no fato de que o documento foi parte de um movimento global
em prol da educação inclusiva, inclusive oferecendo diretrizes e planos de ação em níveis
internacional, nacional e regional.
O movimento ganhou mais notoriedade ainda quando, no Japão, foi assinada a
chamada Declaração de Sapporo, aprovada no ano de 2002, segundo a qual a participação
plena da pessoa com deficiência tem início ainda na infância, no interior das salas de aula,
nas áreas de recreio e em programas e serviços próprios de educação. Além disso, apregoa
o entendimento segundo o qual “quando crianças com deficiência se sentam lado a lado
com outras crianças, as nossas comunidades são enriquecidas pela consciência e aceitação
de todas as crianças”.
No direito constitucional doméstico, desponta como importante precedente à
educação inclusiva a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5357, ajuizada pela
Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) em face dos
artigos 28 e 30 da Lei nº 13.146/2015, que dizem respeito às normas sobre educação
específica para pessoas com deficiência. A ação questionava a constitucionalidade de
dispositivos que previam medidas de alto custo para escolas privadas, o que as levaria à
bancarrota, com o encerramento de suas atividades, tudo sob o argumento de que havia
ofensa ao princípio da razoabilidade por obrigarem à escola comum, não especializada e
despreparada, receber toda e qualquer pessoa com deficiência, independentemente do grau
de sua deficiência. Isso porque a lei teria ido além do esperado ao prometer à pessoa com
deficiência uma inclusão social eficiente, sobretudo nas escolas regulares, o que seria
humana e economicamente impossível, sem que houvesse graves prejuízos à educação de
outros alunos e à infraestrutura das escolas. Finalmente, lançaram a justificativa de que a lei
lançou sobre a iniciativa privada encargos que são de responsabilidade exclusiva dos
Poderes Públicos.
Com razão, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou constitucionais as
sobreditas normas, estabelecendo a obrigatoriedade de as escolas privadas promoverem a
inserção de pessoas com deficiência no ensino regular, juntamente com outros alunos que
não possuem deficiência, com o ônus de prover as medidas adaptativas necessárias, sem
que tais gastos sejam cobrados indiretamente nas mensalidades, anuidades e matrículas.
Fundamentaram os Ministros no sentido de que a Constituição Federal e outros
documentos incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro dispõem sobre a proteção da
pessoa deficiente e, desse modo, trata-se de dever do Estado facilitar a plena participação
no sistema de ensino e na vida em comunidade, em condições de igualdade, assim como
~ 528 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
assegurar que inexista qualquer limitação da educação das pessoas com deficiência e
estabelecimentos públicos ou privados que prestem tal modalidade de serviço306.
Dessa maneira, desde o ano de 2003, a pauta da educação inclusiva foi inserida na
agência educacional brasileira e tem-se verificado uma forte alteração de comportamento
por parte da administração pública, da sociedade e especialmente dos gestores de escolas
particulares, que hoje se veem com a necessidade de realizar alterações que possibilitem a
inclusão das pessoas com deficiência, em condições de igualdade com as demais pessoas.
Isso não quer dizer que os desafios diários da pessoa com deficiência no âmbito
escolar tenham sido extintos, pois é flagrante a existência de confusões históricas acerca da
capacidade das pessoas com deficiência ou a impossibilidade de alguns estabelecimentos de
ensino promover a inclusão, com a adequação arquitetônica e a capacitação de
profissionais, sem que venham à falência. Por outro lado, são felizes os resultados de
pesquisas que demonstram que muito maiores são os benefícios que a educação inclusiva
proporciona às pessoas com deficiência e aos demais que participam das atividades
educacionais em conjunto, ou seja, incluir um aluno com deficiência propicia um ambiente
de respeito à igualdade e à inclusão social, princípios estes impostos pela legislação
referente ao grupo em apreço.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição Federal de 1988 foi responsável por trazer à tona diversos direitos
relativos à educação, notadamente a fixação da igualdade de condições para o acesso e
permanência na escola, despontando como importante instituto a educação inclusiva,
essencial ao pleno desenvolvimento da pessoa com deficiência em condições paritárias com
outras pessoas que não estejam incluídas no grupo das pessoas com deficiência.
Certo é dizer que a garantia do acesso à educação por parte do grupo em questão
acarreta um processo de inclusão necessário não só ao cumprimento da norma legal, mas
também à erradicação de preconceitos socialmente enraizados e exclusões infundadas, de
modo que qualquer prática que vá de encontro aos ditames legais coloca em risco a ordem
306Não se pode olvidar que, como afirmado por Stephen Holmes e Cass Sunstein (1999), todos os direitos
demandam financiamento, requerem gastos públicos. Com a efetivação do direito à educação das pessoas
com deficiência não é diferente, de modo que a formação de um corpo docente especializado nas questões de
deficiência, capazes de contabilizar e tecer um plano de ensino que abarque o deficiente e o inclua como
aluno comum, e a adaptação de escolas regulares às necessidades do grupo, exigem esforços econômicos
tanto do Estado quanto dos responsáveis pelo ensino particular.
~ 529 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
constitucional e infraconstitucional no que diz respeito à tutela dos direitos das pessoas
com deficiência, sendo tratado como crime pela lei específica 307.
Como reforçado, a educação inclusiva é prática benéfica às sociedades
contemporâneas que já adotam o modelo social de tratamento à pessoa com deficiência,
vez que tem o condão de ensinar os indivíduos do sistema educacional a como respeitarem
as diferenças a que estão expostos, além de enriquecer o trabalho do educador e facilitar a
promoção de mudanças positivas e cada vez menos preconceituosas no ambiente
educacional. Portanto, a conclusão a que se chega é que a de que a garantia da educação
inclusiva é necessária às sociedades contemporâneas que lutam em prol da extinção das
discriminações e também à consecução dos fins constitucionalmente previstos para que o
direito à educação alcance sua plenitude.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
_______. Painel sobre a proteção das pessoas com deficiência no Brasil: a aparente
insuficiência da Constituição e uma tentativa de diagnóstico. In: ROMBOLI, Roberto;
ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de (Orgs.). Justiça constitucional e tutela
jurisdicional dos direitos fundamentais. 1. ed. Belo Horizonte: Arraes, 2015.
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Diário Oficial da União. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso
em jan, 2018.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2014.
307 Nos termos do artigo 8º da Lei nº 7.853/1989, “Constitui crime punível com reclusão de 1 (um) a 4
(quatro) anos, e multa: I – recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a
inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos
derivados da deficiência que porta”.
~ 530 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. 10. ed. Tradução de Lourenço Filho. São
Paulo: Melhoramentos, 1978.
FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Direitos das pessoas com deficiência: garantia
de igualdade na diversidade. 1. ed. Rio de Janeiro: WVA, 2004.
GONÇALVES, Nair Lemos. Excepcional. In: Enciclopédia Saraiva de Direitos, vol. 34.
1. ed. São Paulo: Saraiva, sem data.
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on
taxes. 1. ed. New York and London: W. M. Norton, 1999.
JOAQUIM, Nélson. Direito educacional brasileiro: história, teoria e prática. 1. ed. Rio
de Janeiro: Editora Livre Expressão, 2009.
~ 531 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
LEITE, Glauco Salomão. Manual dos direitos da pessoa com deficiência. 1. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012.
_______. Trajetórias recentes das pessoas com deficiência. Legislação, movimento social e
políticas públicas. In: Relatório Azul: garantias e violações dos direitos humanos.
Porto Alegre: Assembleia Legislativa, 2004.
RANIERI, Nina Beatriz Stocco. O direito educacional no sistema jurídico brasileiro. In:
ABMP – Todos pela educação, justiça pela qualidade na educação. 1. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013.
SASSAKI, Romeu Kazumi. Como chamar as pessoas que têm deficiência?. Revista da
Sociedade Brasileira de Ostomizados, Ano I, nº. 1, primeiro semestre, 2003.
SILVA, Otto Marques da. Epopeia ignorada. 1. ed. São Paulo: Editora Faster, 2009.
Souza, Motauri Cioccheti de. Direito educacional. In: Manual de direitos difusos.
JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes (Coord.). 2. ed. São Paulo: Editora Verbatim, 2012.
~ 532 ~
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E POLÍTICAS
ECONÔMICAS CONSTITUCIONAIS ESTADUAIS DE TURIMO
DESDE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
INTRODUÇÃO
~ 533 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Não nos interessou desvendar o porquê, mas nos parece óbvio que o fato jurídico
depende da existência de fatos sociais, assim como o objeto do direito depende da
existência de objetos fáticos no mundo real. É igualmente evidente que o turismo
representa um segmento de potencial exploração econômica, e o Brasil é mundialmente
(re)conhecido pelas suas belezas naturais. Junto com o turismo, percebemos uma tendência
nos Constituintes Decorrentes em abordar temas partindo de recursos naturais disponíveis
nos seus Estados e nas suas regiões.
O objetivo central do presente artigo é descrever de que modo as Constituições
Estaduais brasileiras pós-Carta Magna de 1988 trataram do turismo, e em que medida esse
tratamento efetiva a autonomia dos entes federativos e a competência concorrente para
instituir políticas econômicas estaduais, nos moldes da Constituição Federal de 1988. A
proposta foi mapear o tratamento outorgado ao turismo nessas Cartas para, na sequência,
analisar em que medida esse tratamento efetiva as finalidades da Constituição Federal que
são de competência Estadual, em especial a garantia do desenvolvimento nacional a partir
da instituição de políticas que se preocupassem com o desenvolvimento estadual, local ou
regional. Isso porque entendemos que a instituição de políticas econômicas
desenvolvimentistas estaduais são parte do compromisso estadual com os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil presentes no artigo terceiro da Carta
Magna.
Para tanto, uma pesquisa bibliográfica e legislativo-constitucional foi realizada a
fim de confrontar os debates teóricos sobre Federalismo, autonomia e limites dos entes
para, a partir desses referenciais, iniciar para uma investigação nas Constituições Estaduais
em si, a fim de analisar em que medida a autonomia se efetivou nessas Cartas,
considerando o recorte das políticas que interessam à ordem econômica e ao
desenvolvimento, e que trataram do turismo. Esse recorte foi feito considerando não
somente os títulos “Da Ordem Econômica”, mas as Constituições Estaduais na sua
integralidade, pois percebeu-se no corpo de todo o texto constitucional era possível
encontrar dispositivos que interessavam à política econômica estadual. Desta feita, as
disposições extraídas das Cartas que apresentamos a seguir podem ou não se encontrar no
rol de artigos dedicados formalmente à ordem econômica nas Constituições Estaduais.
~ 534 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Antes de tratarmos das abordagens das Constituições Estaduais sobre turismo, faz
necessária uma pequena exposição sobre em que contexto se inserem os parâmetros usados
para investigar a efetivação da autonomia e da prerrogativa da competência concorrente
outorgada pela escolha de repartição de competências adotada pela Constituição Federal de
1988. Para tanto, iniciaremos tratando dos papeis dos entes federativos no Estado Federal e
do que a doutrina tradicional sobre o assunto entende por autonomia.
Isso porque é indiscutível que o Estado organizado sob a forma federativa
subdivide-se em unidades menores, chamadas de entes, que são dotadas de autonomia. A
autonomia dessas unidades pressupõe a capacidade de auto-organização, de autogoverno e
de autoadministração. No Brasil, as unidades imediatas ao Estado maior são chamadas de
Estados-membros, e apresentam uma subdivisão decorrente do pacto federativo, em
Municípios. A União é o ente federativo ou a Pessoa Jurídica de Direito Público interno
que representa e administra os interesses da Federação como um todo.
Sobre o conceito de autonomia adotado para fins da análise que segue, ficamos
com algumas das diretrizes da mais respeitada doutrina que tratou da temática, a saber, a
concepção de Bandeira de Mello sobre autonomia, segundo o qual essa está associada à
existência de governo próprio. Para o autor, autônoma é qualquer coletividade pública que
goza de certa capacidade de provimento próprio dos cargos governamentais, observados os
“circuitos prefixados pela coletividade superior”. Some-se a essa característica, a faculdade
de auto-organização dentro dos limites das questões que são de seu peculiar interesse.
(BANDEIRA DE MELO, 1948, p. 95).
Todavia, para fins da pesquisa acerca dos limites à autonomia do Estado-Membro
em matéria de Direito Econômico, o conceito adotado conglomera a acepção de Bandeira
de Mello com uma complementação conceitual da concepção de Horta sobre autonomia,
posto que este trata explicitamente da distinção em relação à soberania, atribuindo aos
Estados-Membros somente a prerrogativa da autonomia que conceitua como sendo um
instituto jurídico que pressupõe um poder não soberano que em decorrência de direito
próprio que estabelece normas jurídicas de cumprimento e observância obrigatórias.
(HORTA, 1964, p. 40)
Dessa forma, entende-se a autonomia enquanto atributo das unidades federadas
que compõem o Estado Federal, atributo esse que lhe confere capacidade de auto-
~ 535 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 536 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
administrativas que culminarão num aumento dos poderes dos estados federados. Essa
divisão, entretanto, não descarta a existência de pontos de intersecção entre a competência
da União e a competência dos Estados-Membros, que, entre outras, são as chamadas
competências concorrente e/ou suplementar. É nesse contexto teórico que se inserea
análise mais pormenorizada acerca desse Poder Constituinte dos Estados-Membros, para
análise de autonomia e limites no estudo das constituições, em relação especialmente ao
tratamento outorgado por elas ao turismo, enquanto matéria que interessa ao Direito
Econômico e ao desenvolvimento.
Destaque-se que as previsões sobre uma futura ampliação dos poderes dos
Estados Federados feitas por Bandeira de Mello, entendidas enquanto movimento que
coincide com o que uma evolução dos processos no contexto da Federação, data de 1948.
Todavia, a pesquisa realizada considerando o caso brasileiro, e cujos resultados nesse artigo
se apresentam, demonstram que essa mudança caminha a passos bem lentos. Obviamente é
preciso considerar que a nossa democracia e a nossa Constituição atual são relativamente
jovens, especialmente se considerarmos a maturidade dos debates sobre federalismo e
descentralização da doutrina mais respeitada sobre assunto.
De todo modo, nos propusemos a apresentar os passos dados em direção a
efetivação dessa autonomia federativa, assim como da consolidação dos objetivos traçados
para a República Brasileira, na Carta Magna de 1988, em especial aquele que trata sobre a
garantia desenvolvimento nacional no seu artigo 3º, inciso II, em relação às políticas de
turismo, por entendermos que se trata de um segmento de potencial exploração econômica
e social, considerando-se especialmente as potencialidades culturais e naturais dos Estados-
membros e regiões.
O turismo foi escolhido como tema a ser investigado nas Constituições Estaduais
tanto pelo seu potencial em relação a exploração econômica e cultural, quanto pela
identificação de tratamento constitucional estadual outorgado a temática em algumas
constituições. É possível que os Poderes Constituintes derivados ou decorrentes tenham
incluído o tema nas pautas de debates para atender ao artigo 180 da Constituição Federal,
que se insere no título outorgado ao tratamento da Ordem Econômica e Financeira, e no
capítulo designado aos princípios gerais da atividade econômica, segundo o qual: “A
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão e incentivarão o
~ 537 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
turismo como fator de desenvolvimento social e econômico.” (BRASIL, 1988, art. 180).
Vejamos então “se” ou “de que forma” os Poderes Constituintes dos Estados-membros
efetivaram esse dispositivo constitucional no texto das Cartas Estaduais.
Para começar a apresentação dos resultados dessa investigação, traremos os
Estados-membros cujas constituições foram omissas em relação ao assunto turismo. Numa
análise apriorística poderíamos imaginar que há Estados com outros segmentos
potencialmente exploráveis capazes de tornar a exploração turística insignificante. Todavia,
não foi esse o resultado encontrado no tocante a omissão constitucional sobre o turismo
pois, curiosamente, identificamos Estados litorâneos tradicionalmente conhecidos pela
ampla propaganda dos seus atrativos turísticos que não trataram dessa atividade nas suas
Constituições, e foram os Estados do Rio Grande do Norte, Alagoas, Maranhão, Bahia,
Pernambuco e Sergipe, e não somente eles.
Igualmente não contemplaram dispositivos normativos de compromisso estatal
com a atividade - mas agora não se trata mais de Estados-membros amplamente
conhecidos pela exploração turística - as Constituições do Mato Grosso, do Mato Grosso
do Sul, do Pará, do Paraná, de Roraima e de São Paulo, que merecem menção apesar do
turismo não ser atividade de ampla veiculação publicitária entre eles. Mas também não
destacaram artigos nas suas Constituições para tratamento jurídico à matéria.
Não obstante, a omissão do Constituinte Decorrente não implica afirmar que o
Estado-Membro não disponha de uma regulamentação que trate de políticas públicas
voltadas ao desenvolvimento desse setor, haja vista a possibilidade de regulamentação
infra-constitucional sobre a matéria, mas induz à conclusão de que compromissos
constitucionais de política de desenvolvimento do setor enquanto atividade econômica não
foram adotados pelos Estados supracitados. Isso implica na possibilidade de alterações
substanciais nas políticas turísticas de acordo com as prioridades estabelecidas por cada
governo. A defesa - ou o destaque - para a importância de uma abordagem constitucional
sobre os temas que interessam ao desenvolvimento e que podem contribuir com este, é
que dispositivos constitucionais podem orientar ações de governo, instituindo, ainda que
minimamente, políticas de Estado.
De forma distinta dos Constituintes omissos, alguns Estado-membros se
dispuseram a tratar de turismo nas suas respectivas Cartas estaduais, e foram os Estados do
Amapá, do Amazonas, do Ceará, do Espírito Santo, de Goiás, de Minas Gerais, da Paraíba,
~ 538 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
308 A Constituição Estadual do Rio de Janeiro foi a única Constituição que tratou da atividade, mas não criou
seção ou capítulo próprio, posto que optou por incluí-la no capítulo sobre políticas industriais, comerciais e
de serviços.
309 Sobre essa inserção da temática feita pelos Constituintes Decorrentes Reformadores do Estado de Santa
Catarina, cabe uma reflexão e um destaque sobre a relevância de pesquisas dessa natureza, pois a nossa ordem
jurídica possibilita a inserção de dispositivos constitucionais por esses poderes, ou seja, por aqueles
legitimados a promover alterações no corpo do texto constitucional Estadual através de Emendas
Constitucionais.
~ 539 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 540 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Art. 251. O Estado, juntamente com a iniciativa privada, definirá através de lei, a
política estadual de turismo, observadas as seguintes diretrizes e ações: III -
apoio a programa de divulgação e orientação do turismo regional e a
implantação de projetos turísticos nos Municípios; (grifo nosso) (AMAPÁ,
1991).
~ 541 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 542 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 543 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
CONCLUSÃO
~ 544 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 545 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
310Ação Direita de Inconstitucionalidade. Criação de Município. A criação de Município por lei constitucional
estadual é inconstitucional, uma vez que, tendo a constituição Federal determinado que ela se faria por lei
ordinária, impõe aos estados-membros a participação, em sua feitura, do Chefe do Poder Executivo estadual,
que pode, inclusive, vetá-la. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 192. Relator Moreira Alves.
Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266244 Acesso em:
10.07.2017.
~ 546 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
~ 547 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
______. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1995
~ 548 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 549 ~
A PROPORCIONALIDADE NO CONTEMPORÂNEO DIREITO
CONSTITUCIONAL BRASILEIRO:
APLICABILIDADE DAS NOÇÕES DE ÜBERMASSVERBOT E
UNTERMASSVERBOT
~ 550 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Veja-se um exemplo básico sobre como isso gera certo estranhamento inicial: os
ditos princípios jurídicos não se confundem com os princípios gerais de direito. Em um
clássico livro para alunos de primeiro ano, como Lições Preliminares de Direito de Miguel
Reale, os princípios gerais de direito são descritos como enunciados lógicos como
condições de validade para o conhecimento jurídico, assim como com qualquer campo do
saber filosófico ou científico. Em uma acepção restrita à lógica, Reale (2011, p. 217) define
princípios como “verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais
admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos
de ordem prática de caráter operacional”. Os princípios gerais do direito seriam parte do
que Reale define por princípios monovalentes, ou seja, válidos apenas para um campo
específico do conhecimento.
Por sua vez, Lenio Streck (2014, p. 640) esclarece que tais princípios do Estado
Democrático de Direito, presentes na ordem constitucional não se confundemcom os
“princípios gerais do direito” do positivismo. Estes últimos, oriundos do sistema positivista
de discricionariedade, “não são compatíveis com a principiologia ínsita ao Estado
Democrático de Direito”. Ainda que não mencionados na Constituição, orientam a
conformação da legislação infraconstitucional com o texto constitucional.
O próprio Streck (2014), Marcelo Neves (2013) e Dimitri Dimoulis (2006) são
autores a denunciar o fetichismo principista no Brasil, ainda que por caminhos diferentes.
Fato é que o movimento “neoconstitucionalista” que, no intuito de uma possível
superação do positivismo jurídico, possuem escritos de autores que se supõem pertencer a
um grupo auto-identificado “pós-positivistas”.
Como Dimoulis (2006) observa, praticamente inexiste a designação deste termo
“pós-positivista” fora do Brasil. Trata-se de uma série de deturpações de autores
estrangeiros mal adaptadas no contexto brasileiro. Veja-se mesmo por dois dos autores
mais estudados em Teoria do Direito e Direito Constitucional: Ronald Dworkin e Robert
Alexy, cujas teorias, apesar de críticas ao positivismo jurídico em sentido estrito
(DIMOULIS, 2006) são muito diferentes entre si: não há conversação entre elas, nem ao
menos a respeito sobre o conceito semântico de princípios no direito. Não é incomum
encontrar escritos descuidados sobre a aplicabilidade de tais teorias para no Direito
brasileiro, sob o argumento da defesa uma ordem jurídica fundada em princípios revestidos
de carga axiológica.
O fascínio presente na produção acadêmica brasileiro em direito constitucional,
assim como também na prática forense, segundo observa Neves (2013, p.171), é “uma
~ 551 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
atitude que, com destacada exceções, tem contribuído para uma banalização das questões
complexas referentes à relação entre princípios e regras”. Neves, ao dissertar sobre a
distorcida recepção de teorias estrangeiras no Brasil, identifica a fragilidade da reflexão
jurídica no Brasil, seja na teoria do direito, seja na dogmática jurídica.
Diante deste quadro, é possível pensar em somente duas alternativas: o
continuísmo desta prática jurídica frágil e inconsistente, com efeitos que se mostram
nocivos e que colocam a normatividade constitucional em xeque, ou uma ruptura, com
formulações teóricas consistentemente sólidas para provocar uma vicissitude na prática do
direito (NEVES, 2013), em especial nas decisões judiciais.
Os princípios no Brasil, com todo a deturpação provocada pelas leituras teóricas
equivocadas do “neoconstitucionalismo”, funcionam muitas vezes para os juízes e outros
tomadores de decisões como coelhos retirados da cartola: em seu dever de motivação,
razões políticas ou mesmo a desídia de fundamentação surgem travestidas de princípios. O
fetichismo acerca da designação principiológica é evidente e certeira nestes 30 anos de
promulgação da Constituição de 1988.
A busca pela justiça como um sentido para o direito, como um modo adicional de
superação do modelo positivista, também contribui para a fragilidade do próprio direito.
Segundo Neves (2013, p. 191), a invocação de princípios nas decisões, em nome de uma
suposta justiça, “em uma sociedade complexa com várias leituras possíveis dos princípios,
serve antes à acomodação de interesses concretos e particulares, em detrimento à força
normativa da Constituição”.
A busca pela justiça nas decisões por meio de princípios, no contexto atual no
Brasil, pode ser mostrar lesiva ao Estado Democrático de Direito e à Constituição. Em sua
relação com o direito, a justiça tem funções essenciais de legitimação e correção. Todavia, a
justiça pode possuir um lado perverso quando suas concepções oprimem em nome da
conservação de um poder dominante. Por isso um dos famosos mandamentos do jurista
uruguaio Eduardo Couture parece tão questionável: se a justiça deve ser escolhida quando
entrar em conflito com o direito, a objetividade da norma, que pertence à uma ordem
jurídica que em muitos países são fruto de uma deliberação de pessoas eleitas
democraticamente, pode ser preterida ao solipsismo de uma concepção de justiça.
Ao lado do poder dominante a justiça pode se tornar uma arma terrível de
opressão, sobretudo se a certeza do direito positivo for enfraquecida pelo clamor da ordem
social pela justiça. Atribuir ao direito o caráter de justo para aferir sobre sua legitimidade
pode conduzir à uma tirania social. Não é demais lembrar que sob fundamentos parecidos
~ 552 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
de identificação de decisões com o sentido de justiça, ainda que com propósitos diferentes,
a legalidade no Nacional-Socialismo era afastada em nome da Rechtässigkeit.
É uma relação paradoxal: a justiça dá sentido ao direito, mas pode destruir suas
instituições; a justiça dá a correção à aplicação do direito, mas pode ser deturpada em nome
de decisões individualistas baseadas em concepções de mundo próprias do agente público.
Uma vez expostas tais considerações sobre o cuidado com o uso dos princípios
no Brasil contemporâneo, tanto em relação à prático quanto aos desenvolvimentos
teóricos, é possível uma melhor reflexão acerca da utilização e recepção do princípio da
proporcionalidade no Brasil, especialmente derivadas das considerações formuladas por
Robert Alexy.
~ 553 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
A inconstitucionalidade pode surgir sempre que uma lei ameaça o exercício dos
direitos fundamentais em razão da desproporcionalidade entre os fins para qual foi criada e
sua eficácia. Segundo Canotilho (2003, p. 384) é uma “questão de «medida» ou «desmedida»
para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim”.
A elaboração legislativa possui fatores tais como os motivos, os meios e os fins. A
ideia de proporcionalidade de cada lei estará presente se houver uma adequação de sentidos
entre esses três fatores. E para tal, é importante a referência à Alexy, sobretudo em sua
Teoria dos Direitos Fundamentais, com o devido cuidado no tocante ao sopesamento, uma
vez que mal utilizado como é no Brasil, representa um álibi para o enfraquecimento da
legalidade, desdita contemporânea da prática jurídica brasileira.
Incialmente, em brevíssimas palavras, a noção de princípio para Alexy (diferente
para muitos autores) envolve a caracterização de normas que podem ser ou não satisfeitas
em diferentes graus. Esta satisfação dependerá de circunstâncias da concretude do caso que
exige decisão, bem como pela colisão provável de normas que ali existirão. Por serem
razões prima facie, os princípios também se caracterizam por sua indeterminação.
Uma vez com esta indeterminação inerentes a eles, os princípios dependem de
atribuição de diferentes pesos em um mesmo caso. Abstratamente, nenhum princípio
colide com outro. Deste modo, conforme Alexy (2015, p. 93), “o que ocorre é que um os
princípios têm precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras
condições a questão de precedência pode ser resolvida de forma oposta”.
A proporcionalidade não é um princípio em si: a tradução em português de Alexy
a denomina como uma máxima (ALEXY, 2015, p. 117). De fato, apesar do nome no
idioma alemão ser Verhältnismäßigkeitsgrundsatz, que literalmente pode ser traduzido por
princípio da proporcionalidade, a proporcionalidade não é um princípio em si, no sentido
da noção de princípio na teoria de Alexy. Razão pela qual é mais adequado tratar a
proporcionalidade e suas três subdivisões como máximas, uma vez que diferentemente dos
princípios, não podem ser sopesadas.
A proporcionalidade, com suas três máximas parciais (adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito), é uma decorrência lógica da natureza dos princípios,
mandamentos de otimização na concepção de Alexy (2015, p. 117). Deste modo, a
proporcionalidade é uma estrutura lógica do raciocínio jurídico em si, mais se aproximando
aquela noção de princípio geral do direito do que destes princípios com carga axiológica. A
confusão semântica se repete neste ponto.
~ 554 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 555 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
tabaco de imprimir em seus produtos informações sobre os riscos do fumo para a saúde é
uma intervenção leve na liberdade profissional”. A proibição total de venda de cigarros
seria considerada séria. Entre estes dois extremos, a proibição de venda em máquinas em
certos estabelecimentos seria um exemplo de medida média (moderada).
Nesse raciocínio, é possível inferior que a máxima da proporcionalidade é
inerente ao aspecto estático de normas emitidas, como as leis, uma vez que se faz
necessária a devida razoabilidade para qualquer medida pretendida.
Uma desproporcionalidade na medida legislativa neste aspecto normativo seria, de
acordo com o exemplo proposto por Barroso (2014, p. 282), uma lei que proibisse o
cidadão de comprar e consumir bebidas alcóolicas durante o carnaval para evitar a
contaminação pelo vírus HIV. Neste caso, há uma ruptura entre o meio e o fim, uma vez
que o consumo de bebidas alcóolicas no carnaval pelos cidadãos não influência na
propagação da AIDS. Assim o fim pretendido pela lei – evitar que as pessoas se
contaminem com o HIV – não se mostra justificável o suficiente para proibir a liberdade
individual dos cidadãos de poderem consumir bebidas alcoólicas durante a época da maior
festa brasileira.
Outro exemplo de como a máxima da proporcionalidade seria afrontada: uma lei
federal que, com a finalidade de reduzir demandas por habitações e demais gastos urbanos,
proibisse migrações para as grandes cidades. Veja-se: mesmo com alguma relação fática
entre o fim pretendido e o meio (a restrição legislativa), são fatores inconstitucionais, uma
vez que haveria certeira violação à igualdade entre os cidadãos e à liberdade de locomoção.
Uma possível violação à Constituição por parte da atividade do Legislativo, ou
seja, em uma lei, coaduna-se com a restrição (ou violação) a direitos fundamentais.Tal
limitação pode ser manifestada quando não houver razoabilidade entre as restrições e os
fins da lei. A inconstitucionalidade se manifestará em inobservância à máxima da
proporcionalidade quando houver uma constatação de que outra medida menos lesiva a
direitos fundamentais pudesse ser tomada.
Ao retomar o exemplo acerca da finalidade legislativa de prevenir a contaminação
dos cidadãos pelo vírus HIV em épocas como a do carnaval, é possível pensar que uma
medida menos lesiva que a proibição do consumo de bebidas alcoólicas seria a adoção de
política pública para conscientização sexual e distribuição gratuita de preservativos, como é
a praxe do Ministério da Saúde (para tal, conferir sua Portaria de Consolidação nº 1, de 28
de setembro de 2017).
~ 556 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
CONSIDERAÇÕES FINAIS
~ 557 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
forma caótica e sem o devido cuidado teórico, gera a insegurança que pode significar um
risco para a frágil estabilidade democrática brasileira.
Seriam os ditos princípios jurídicos professados pelos autores do “pós-
positivismo” brasileiro mandamentos de justiça, que estão além do direito positivo e que
devem orientar a decisão judicial? Neste sentido, seria a proporcionalidade mais um destes
princípios com carga axiológica que permeariam o direito? O que se buscou esclarecer
nestas breves palavras é que não. A proporcionalidade, apesar de comumente identificada
como princípio, se aproxima da noção de princípio geral de direito, enquanto condição de
validade do raciocínio para a produção normativa. Por tal motivo, mais apropriado é pensar
a proporcionalidade não como principio enquanto valor, mas como princípio no sentido de
máxima ou axioma. Deste modo, de forma a se evitar confusões semântica no contexto
atual no Brasil, é mais apropriado nomear tal preceito como máxima da proporcionalidade.
Lembra Streck (2014, p. 653) que os princípios, no contexto do Estado
Democrático de Direito, devem ser compreendidos conforme a hermenêutica em
detrimento da compreensão da teoria da argumentação: enquanto para esta compreende os
princípios, como o da proporcionalidade, como mandados de otimização, possibilitando
assim uma abertura interpretativa, a hermenêutica restringe a discricionariedade do
aplicador do direito. Deste modo, a proporcionalidade é um modo de explicar que cada
interpretação deve ser razoável para evitar entendimentos arbitrários que estabeleçam
sentidos além ou aquém do que é determinado pela Constituição.
A invocação retórica de princípios corre em sentido contrário à solidez
constitucional e à força normativa da Constituição. A simplificação da ordem
constitucional para retraí-la a um valor último e supremo (como dignidade da pessoa
humana) abre margem a um moralismo incompatível com o funcionamento do direito em
uma sociedade complexa. Invocar a dignidade da pessoa humana retoricamente para afastar
regras constitucionais que se mostram precisas em nome de uma pretensa justiça serve
muito mais a satisfação de interesses particulares não condizentes com o Estado
Democrático de Direito, projeto de realização constitucional desde 5 de outubro de 1988.
A panaceia principiológica leva à erosão constitucional, pois fomenta o valor
surpresa das decisões judiciais.
~ 558 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2015.
BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 4 ed. São Paulo:
Saraiva, 2014.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: Princípios e Regras Constitucionais. São Paulo:
Martins Fontes, 2013.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
~ 559 ~
DESAFIO NO ENFRENTAMENTO ÀS VIOLÊNCIAS CONTRA AS
MULHERES: A CONSTITUINTE DE 1988 A EFETIVAÇÃO DAS LEIS
PELOS OPERADORES DO DIREITO
Aimée Schneider*
Rosely Maria da Silva Pires**
INTRODUÇÃO
em que donas de casa protestavam devido o arrocho salarial e a alta inflação; Movimento Por Creches e Movimento
Estudantil, atuação das mulheres na busca por uma sociedade mais justa e igualitária (BLAY, 1983, pp. 82-83).
~ 560 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
312A mencionada Carta foi o resultado da reunião de diversas mulheres em Brasília, inovando em dois
aspectos: violência doméstica e aborto. No concernente ao segundo tópico, a legalização não era mencionada;
embora a possibilidade de diálogo sobre o tema fosse deixada em aberto.
~ 561 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Brasil, que os encaminhava, sem custos, para o Senado Federal, somando um total de
72.719 respostas (BACKES; AZEVEDO, 2008, p. 73). Pesquisando-se as palavras
“gênero” e “mulher”, foram encontrados 75 e 3.825 registros, respectivamente –
demonstrando, assim, o quão presentes já eram as questões relativas a tais termos dentro
do rol de demandas da sociedade.313
Outro dispositivo fundamental para as manifestações era o de iniciativa por
emenda popular, assegurado no artigo 24 do Regimento Interno da ANC. O mecanismo
das emendas populares exerceu grande influência na organização e mobilização social,
tornando-se um canal aberto para versar sobre diversos temas: “288 entidades diferentes
apresentaram 122 emendas populares que angariaram um total de 12.277.423 assinaturas”
(BRANDÃO, 2011, p. 79). No âmbito dos direitos das mulheres, foram propostos cinco
projetos de emendas populares, quais sejam: a) Projeto de Emenda (PE) nº 016, sobre
garantias dos direitos do homem e da mulher; b) PE nº 019, sobre aposentadoria das
donas-de-casa; c) PE nº 020, voltado para os direitos e garantias da mulher; d) PE nº 023,
sobre a aposentadoria da mulher; e d) PE nº 065, sobre a saúde da mulher (aborto). Cada
proposta contou com algumas entidades responsáveis, entre elas: União das Mulheres, de
São Paulo/SP; Serviço de Informação da Mulher, de Campo Grande/MS; Rede Mulher, de
São Paulo/SP; Grupo de Saúde Nós Mulheres do Rio, do Rio de Janeiro/RJ; e Associação
de Mulheres de Cosme de Farias, de Salvador/BA.314
Em paralelo a essas formas de participação, as mulheres também se manifestavam
por outros meios, tais como o envio de sugestões por entidades sociais, audiências públicas
e cartas pessoais. Os textos escritos e os pronunciamentos orais vinham carregados de
expectativas, e a vida social se projetava neles. A escrita e a fala não eram neutras e, em
inúmeros casos, as manifestantes se referiam a situações próprias, particulares, para
exemplificar questões da órbita geral, expondo valores que, por vezes, eram compartilhados
por outros, em propostas diversas. O espaço social passou a ser utilizado na “busca de um
alargamento das experiências do mundo” (SADER, 1988, p. 206).
Importante registrar que, dentro do movimento feminino, categorias e subgrupos
reivindicavam direitos específicos. Um exemplo digno de registro é o Coletivo de Mulheres
Negras (NZINGA), que promoveu, em 1985, uma campanha para a conscientização da
comunidade negra quanto à importância de se eleger representantes dos grupos de
mulheres e negros, pois a nova “Constituição por si só não resolverá todos estes
problemas, mas, dependendo de como for feita, poderá garantir alguns de nossos direitos”.
~ 562 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
315 “Ainda em tempo: Sobre a Constituinte”. NZINGA, julho de 1985, nº 02, Ano I, disponível em
<http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PNZINRJ071985002.pdf > Acesso em 03 jun. 2018.
316 O termo Lobby é entendido, aqui, como uma articulação política, organizada por um grupo no intuito de
~ 563 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
317 Abigail Feitosa (PSB-BA), Anna Maria Rattes (PSDB-RJ), Benedita da Silva (PT-RJ), Beth Azize (PSDB-
AM), Beth Mendes (PMDB-SP), Cristina Tavares (PDT-PE), Dirce Tutu Quadros (PSDB-SP), Eunice
Michles (PFL-AM), Irma Passoni (PT-SP), Lídice da Mata (PCdoB-BA), Lúcia Braga (PFL-PB), Lúcia Vânia
(PMDB-GO), Márcia Kubitschek (PMDB-DF), Maria de Lourdes Abadia (PSDB-DF), Maria Lúcia (PMDB-
AC), Marluce Pinto (PTB-RR), Moema São Thiago (PSDB-CE), Myriam Portella (PSDB-PI), Raquel Cândido
(PDT-RO), Raquel Capieribe (PSB-AP), Rita Camata (PMDB-ES), Rita Furtado (PFL-RO), Rose de Freitas
(PSDB-ES), Sadie Hauache (PFL-AM), Sandra Cavalcanti (PFL-RJ) e Wilma Maia (PDT-RN). No início dos
trabalhos, a deputada Bete Mendes licenciou-se para assumir o cargo de Secretária de Cultura do Estado de
São Paulo. Com isso, apesar de contar com 26 deputadas na data da posse, a ANC foi composta, na verdade,
por 25 parlamentares mulheres. Fonte: Site da Câmara dos Deputados, disponível em
<http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-
cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/copy_of_index.html>. Acesso em 08 jun. de 2018.
318 Discurso pronunciado em 05 de maio de 1987 – publicado em 06 de maio de 1987, p. 48.
319 Discurso pronunciado em 7 de julho de 1988 – publicado em 8 de julho de 1988, p. 11.911.
~ 564 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
discriminação. Não queremos estar nem atrás nem à frente, mas lado a lado com os nossos
companheiros, para desempenharmos a nossa função”.320
Abordando o aspecto histórico, a Deputada Rita Camata (PMDB) esclareceu
acerca da sobrecarga das mulheres que, além das atividades profissionais, possuem
obrigações domésticas e familiares: as suas funções não foram repensadas mesmo após a
inserção massiva no mercado de trabalho. Assim, junto à conquista de um direito veio o
acúmulo de incumbências não reconhecidas e nem remuneradas.321 Em harmonia com tal
posicionamento, a Presidenta do CNDM, Jaqueline Pitanguy, comentou que as vozes
femininas foram silenciadas e excluídas do processo histórico de construção da liberdade.
A exclusão – memória do silêncio e da invisibilidade, conforme apontou Pitanguy – se traduziu
nas lutas pela participação na esfera pública e pelos direitos civis e sociais: “[e]ntão, nós
mulheres, trazíamos na nossa memória tanto a experiência da privação quanto a da
resistência, o que, acredito, nos fortalece muito”.322 Nesse sentido, a Constituinte de 1987-
88 é tida como um separador de águas, pois as mulheres se fizeram ouvir, logrando o
reconhecimento, para si, dos mesmos direitos e deveres destinados aos homens: “primeiro
impulso no sentido de uma maior participação da representação parlamentar feminina no
tratamento legislativo da questão feminina aconteceu com a Constituinte de 1988”
(SANTOS; BRANDÃO; AGUIAR, 2004, p. 49).
~ 565 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 566 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Cabe, ainda, comentar uma questão que se projeta a partir da leitura do trabalho
de Pires. A autora registra que o poder mitológico inerente à toga vestida pelo juiz – capaz
de transformá-lo em um homem Extraordinário. Estaria a psique humana apta a lidar com
o poder inerente à persona do operador de direito enquanto julgador?
Analisando as relações de poder nas intervenções sociais, Pires e Rodrigues (2016)
alertam para a compreensão de que a lógica perversa que opera não somente nos regimes
totalitários, mas igualmente no fundamentalismo religioso e, com maior pertinência ao
tema ora discutido, na misoginia, produzem ações que não são apenas conscientes e
formadas por conjunturas politicas, culturais, sociais e econômicas, mas são também
emoções inconscientes – e, portanto, seu controle e análise revelam um grau extra de
dificuldade. A compreensão deste aspecto vem elucidar as contradições entre a lei e a sua
efetivação por seus operadores, formados historicamente por culturas machistas e por uma
sociedade patriarcal. No caso brasileiro, projetam-se, entre normas de um passado não tão
remoto, as Ordenações Filipinas (1602), que permitiam aos homens castigar fisicamente
não somente seus filhos e escravos, mas também suas esposas (livro V, título 36), podendo
recorrer, em casos de adultério, ao cárcere privado, ou mesmo matá-las (livro V, título 29).
Neder (2005), ao pesquisar sobre os primeiros códigos criminais, argumenta que a
permanência cultural de tais posicionamentos está atrelada ao fato de que são constitutivos
de concepções e visões de mundo, tanto tomistas quanto religiosas em geral. Para a autora,
~ 567 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
ainda segundo os autores, define as mulheres como seres frágeis, passíveis e dependentes
da proteção do Estado, reiterando, assim, uma perspectiva misógina. Nesta esteira, dois
foram os discursos identificados nas sentenças: a concepção de “ser dominada e explorada,
necessitando da proteção do Estado; e aquele que consiste no discurso tecnicamente
neutro, sem comprometimentos e intervenções sociais firmes, em nenhum perfil
reformador” (p. 09).
Além dos juízes, outros profissionais da segurança pública tiveram suas ações
examinadas por meio de pesquisas que investigaram os procederes adotados no
atendimento à vitima de violência doméstica. Em 2009, Vilella et al (2011) problematizou a
atuação de agentes da saúde e da justiça nas ações de atendimento a mulheres vitimas de
violência. O estudo abrangeu os dois maiores hospitais, três unidades básicas de
atendimento à mulher, três delegacias comuns e duas delegacias especializadas em São
Paulo. Os dados extraídos das 21 entrevistas realizadas apontam para uma preocupante
realidade que, em que pese a escala regional da pesquisa, possuem o condão de refletir o
panorama nacional. O recorte aqui adotado abrangerá somente as questões relativas aos
profissionais da Segurança Publica.
No tocante ao acolhimento, em Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), de
denúncias realizadas por mulheres violentadas, tem-se as seguintes problemáticas: a
primeira consiste no fato de tais delegacias atenderem a uma média de 25 casos diários;
para além disso, tem-se que
As DDM estão abertas de segunda à sexta-feira das 9 h às 19h. Isso significa que,
caso a mulher seja violentada às 20 h da sexta-feira, precisa esperar até as 9 h da
segunda-feira para dar queixa, a não ser que faça a ocorrência numa delegacia
comum (p. 118)
~ 568 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 569 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
(...) a taxa de homicídios é maior entre as mulheres negras (5,3) que entre as não
negras (3,1) – a diferença é de 71%. Em relação aos dez anos da série, a taxa de
homicídios para cada 100 mil mulheres negras aumentou 15,4%, enquanto que
entre as não negras houve queda de 8%. Em vinte estados, a taxa de homicídios
de mulheres negras cresceu no período compreendido entre 2006 e 2016, sendo
que em doze deles o aumento foi maior que 50%. (ATLAS DA VIOLENCIA
2018, p. 51).
323Eugenio Raúl Zaffaroni, entrevistado por Julita Lemgruber. Revista Brasileira de Segurança Pública | Ano
1 Edição 1 2007, p. 130.
~ 570 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
(...) "homem sagrado", figura obscura do direito romano arcaico, era aquele que,
ao mesmo tempo não podia ser objeto de um sacrifício ritual, mas podia ser
morto. Era o que vivia em um espaço "situado originalmente à margem do
ordenamento", sua vida era "incluída no ordenamento unicamente sob a forma de
sua exclusão (ou seja, de sua matabilidade)". A relação de exceção coloca o
excluído como banido, não posto fora da lei mas simplesmente abandonado por
ela, "daí o banido", ou "bandido", que se vê impossibilitado de "distinguir a
transgressão da lei e sua execução". (ALMEIDA, 2018, p. 17)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
~ 571 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
disparidade consolidada entre homens e mulheres. Em que pese tal fato, os desafios do
enfrentamento às violências baseada em gênero são alarmantes, de modo que conferir
visibilidade aos movimentos de oposição à cultura machista e patriarcal se revela uma
iniciativa necessária; tal equivale a combater infestações de cupins subterrâneos, em discreta
ação destrutiva dos malhetes, os martelos sentenciantes dos juízes e que, junto à balança e a
Themis – uma deusa egressa da mitologia grega –, conformam um conjunto de símbolos de
direito e justiça.
O inciso I do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
– que completa 30 anos garantindo que “mulheres e homens são iguais em direitos e obrigações”
(grifamos) – depende, para fins de sua efetivação como instrumento de conquista dos
movimentos sociais, sobretudo feminista, de ações efetivas no campo de políticas públicas.
E tal escopo é muito mais amplo do que simplesmente reinventar a abordagem da
segurança: deve-se abranger também investimentos em educação, cultura, saúde e políticas
sociais diversas. Considerando-se o reflexo deste conjunto sobre a questão da igualdade de
gêneros, o fato de o Brasil estar vivendo um momento de redução catastrófica das verbas
públicas tende a comprometer a mencionada estimativa do Fórum Econômico Social para
extinção das diferenciações de gênero.
A violência contra a mulher guarda uma complexidade muito maior do que aquela
que se faz viável neste espaço. Procedeu-se a um recorte que permitiu considerar a
produção de leis e sua implementação no campo penal; todavia, são várias as experiências
substanciais para o fortalecimento da mulher, e consequente redução desta violência, nos
campos educacional, social e cultural. A título de exemplo, Pires, Silva e Gouvea (2017)
apresentam dados importantes do Projeto de Extensão da Universidade Federal do
Espirito Santo, Fordan: Cultura no Enfrentamento à Violência. O projeto, realizado na
periferia de São Pedro, bairro de Vitória (ES), acolhe as famílias, e não apenas as mulheres,
e é feito por uma equipe multidisciplinar de profissionais das áreas de cultura, educação,
direito, assistência social, psicologia, psicanálise e fisioterapia. Um dos grandes avanços
deste projeto tem sido o fortalecimento da capacidade das famílias de reconhecer o que são
relações abusivas – uma iniciativa que contribui para a resolução de conflitos familiares em
ampla escala, problematizando a violência contra a mulher e também contra a criança
enquanto fomenta a reflexão do agressor quanto a sua postura. Embora a denúncia, pela
mulher agredida, em delegacias seja estimulada pelo projeto, o enfrentamento da cultura
machista, misógina e patriarcal e suas hierarquias de poder é centrado em rodas de
~ 572 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERENCIAS
BLAY, Eva A. Do espaço privado ao público: a conquista da cidadania pela mulher no Brasil.
Espaço e Debates, v. 9, maio/agosto-83, Cortez, São Paulo, 82-83.
______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em 17 de jun. de 2018.
~ 573 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
______. Sistema de Apoio Informático à Constituinte (SAIC). Brasília: Senado Federal, 1987d.
Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/baseshist/bh.asp#/>. Acesso em
21 de mai. de 2018.
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Nota Técnica nº 17. Atlas da Violência
2018. Brasília, DF: IPEA, 2018
LAURINDO. Ana; QUEIROZ, Marisse. “Violência doméstica nos tribunais: análise das
questões de gênero presentes nas sentenças judiciais”. Anais do III Simpósio Gênero e Políticas
Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014
MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flavia. Feminismo e política. 1 ed. São Paulo: Boitmepo,
2014.
NEDER, Gizlene. “Ideias Jurídicas, Religião e Punição: Rigor e Tolerância”. In: ANPUH –
XXIII Simpósio Nacional de História – Londrina, 2005.
PINTO, Célia Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. 1 ed. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003.
~ 574 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
RODRIGUES, Almira. “Lugar de mulher é na política: um desafio para o século XIX”. In:
SWAIN, Tania Navarro e MUNIZ, Diva do Couto Gontijo. (orgs.). Mulheres em ação:
práticas discursivas, práticas políticas. Florianopóles: Ed. Mulheres; Belo Horizonte: PUC
Minas, 2005.
SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiência, falas e lutas dos
trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SANTOS, Eurico A.G.C. dos; BRANDÃO, Paulo H.; AGUIAR, Marcos M. de. “Um
toque feminino: recepção e formas de tratamento das proposições sobre questões
femininas no Parlamento Brasileiro, 1826-2004”. In: SENADO FEDERAL. Proposições
legislativas sobre questões femininas no Parlamento Brasileiro, 1826-2004. Brasília: Senado Federal,
Comissão Temporária do Ano da Mulher/Subsecretaria de Arquivo, 2004.
TROTTA, Margarethe von. Hannah Arendt. [Filme – vídeo]. Produção de Margarethe von.
Trotta. Luxemburgo, Europa Filmes, 2012. 1 DVD/NTSC. 113 min.
~ 575 ~
30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E
INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO: DO
CASO BANESTADO AO RECONHECIMENTO DOS PODERES
IMPLÍCITOS
1. INTRODUÇÃO
*Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR (2017). Pós-graduação em andamento na
Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná – FEMPAR.
~ 576 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
2. O CASO BANESTADO
~ 577 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 578 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 579 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
embargos de declaração em embargos infringentes, tais não versaram sobre a temática aqui
pertinente), foi suscitada a nulidade do processo, pela realização de investigações pelo
MPF.
No STJ, o feito teve o registro REsp 1.115.275PR. Em seu voto, o Relator Min.
Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ/RJ), colacionou precedentes
para indicar a orientação favorável da Corte aos poderes investigatórios do Ministério
Público, decorrentes da legitimidade constitucional de “titular exclusivo da ação penal
pública -, cabendo-lhe, para tanto, a coleta de elementos de convicção”. (2011, p. 8620).A
ementa do julgamento, na parte aqui pertinente: “PODER INVESTIGATÓRIO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGALIDADE. LEGITIMIDADE DO PARQUET EM
PROMOVER MEDIDAS ASSECURATÓRIAS. ARTS. 127 E 142 DO CP.” (2011, p.
8642).
Após, houve embargos de declaração, assim como embargos de declaração nos
embargos de declaração e EDcl nos EDcl nos EDcl no REsp 1.115275, porém tais
recursos não apresentam relevância aqui, pois não mencionaram novamente os poderes
investigatórios do MPF.
Observa-se, nos autos da ação penal nº 2003.70000.39531-9, que a tese de
nulidade das provas e do processo pela atuação investigatória do MPF foi utilizada
reiteradamente pelas Defesas. Porém, a argumentação defensiva limitou-se a colacionar
teorias que, pela abstração desprovida de elementos concretos, poderiam aparecer em
quaisquer petições de processos diversos. Assim, o Juízo da 2ª Vara Criminal Federal
afastou as alegações, pois, após a concessão de prazo para comprovação do arguido em
defesa prévia, houve ausência de cumprimento do ônus probatório: não houve sequer
menção de quais provas teriam sido produzidas pelo órgão ministerial e quais prejuízos
teriam sido supostamente decorrentes de tal atuação, apenas a repetição das abstrações, na
fase do art. 499, do CPP e, posteriormente, nas alegações finais.
A falta de concretude da referida tese foi considerada no parecer da Procuradoria
Regional da República, bem como na decisão do TRF da 4ª Região, embora, também a
questão, nesta instância, foi abordada em sua dimensão teórica, tanto pelo representante do
Parquet, quanto pelo órgão julgador, a 8ª Turma do TRF4. Já no STJ, o colegiado da 5ª
Turma do STJ reforçou o entendimento teórico acerca da legalidade das investigações
produzidas pelo Ministério Público, em consonância com o ordenamento pátrio.
Assim, após contextualizar a questão em um importante caso, para proporcionar
um melhor entendimento dos contornos fáticos que perpassam o cenário jurídico, passa-se
~ 580 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 581 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 582 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 583 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Ministério Público, o que permite agir com maior desenvoltura, sem interferências externas,
ao passo que o máximo assegurado aos delegados, atualmentena Lei nº 12.830, é que a
remoção somente pode ser realizada por ato fundamentado. Porém, como é de praxe que
as decisões administrativas sejam fundamentadas, pode-se argumentar que “poderia a
autoridade superior, com atribuições para remover o delegado de polícia, fundamentar seu
ato na necessidade do serviço público e, mais uma vez, restaria frustrada a investigação. ”
(GRECO, 2017, p. 103)
Outra situação relevante decorre do controle externo da atividade policial, a ser
realizado pelo Ministério Público, nos termos da Constituição de 1988. Aliás, cabe
mencionar que na atuação ministerial para apurar os crimes praticados pelo “Esquadrão da
Morte” houve diligências diretas sob a direção do Procurador de Justiça Hélio Bicudo
(MAZZILI, 2012, p. 241). Atualmente,observa-se que há dificuldades em comprovar, v.g.,
corrupção e enriquecimento ilícito, pelo temor de quem delata sofrer represálias pela
cultura do silêncio interna corporis. Uma saída possível é a partir do ordenamento pátrio,“que
institui um sistema de divulgação/investigação de rendas e ativos, constitui importante
ferramenta à disposição do Ministério Público para levar a cabo um controle externo da
atividade policial eficiente, voltado ao combate da corrupção policial. ” (GUALTIERI,
2016, p. 245). A análise conjunta dos dados patrimoniais e das atividades desenvolvidas
pelo policial pode ser realizada a fim de averiguar se há maior propensão para atos
corruptos v.g. “as atividades de polícia administrativa, com alto grau de monopólio e
discricionariedade, são áreas sensíveis nesse aspecto” (GUALTIERI, 2016, p. 246). Assim,
tais procedimentos visam à eficiência e efetividade do controle externo da atividade policial,
“contribuindo de forma decisiva para o desestímulo de práticas corruptas por agentes
policiais (prevenção) bem como aquilatando as chances de que o ato corrupto (ou ao
menos o seu resultado financeiro) seja descoberto pelo Ministério Público (detecção). ”
(GUALTIERI, 2016, p. 246).
Ressalta-se a atuação dos grupos de Promotorias de Justiça conhecidos como
GAECO, existentes em vários estados brasileiros, com escopo de investigações sobre
organizações criminosas. Aliás, para além de uma simples questão de técnica jurídica, há
que se considerar que “o grande problema não foi o Ministério Público investigar, mas sim
investigar casos de repercussão nacional, que envolviam associações criminosas formadas
por pessoas que, até aquele instante, eram tidas como acima de qualquer suspeita. ”
(GRECO, 2017, p. 102). Afinal, com o redesenhar institucional propiciado pelo advento da
Constituição de 1988, que assegurou ao Ministério Público garantias similares às da
~ 584 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 585 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 586 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 587 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
A Min. Weber mencionou que até a parte privada pode proceder a investigações
próprias, quanto mais o Parquet, que detém especial condição de parte-imparcial: “Como
órgão público deve agir com obediência à lei e à Constituição, não estando livre para
perseguir interesses particulares. A realização pela instituição do Ministério Público de atos
investigatórios não coloca em risco o devido processo legal. ” (STF. RE 593.727/MG. Rel.
p/ ac. Min. Gilmar Mendes, Plenário, j. 14/05/2015. p. 235).
Nesse sentido, a fundamentação do agir ministerial pela Ministra Weber passa à
teoria dos poderes implícitos, considerando que “incoerente seria interpretar o texto
constitucional como a vedar o emprego dos meios necessários à execução dos poderes
atribuídos pela própria Constituição. ”(STF. RE 593.727/MG. Rel. p/ ac. Min. Gilmar
Mendes, Plenário, j. 14/05/2015. p. 238). Assim, a Ministra realiza profunda explanação
sobre a referida doutrina, sendo mencionado a seguirtrecho pertinente do voto:
Assim como em outros votos (Min. Luiz Fux, Min. Gilmar Mendes, Min. Celso de
Mello, Min. Ayres Britto e Min. Cármen Lúcia), a cooperação entre as instituições
foiressaltada pela Ministra Weber:
~ 588 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 589 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
4. CONCLUSÃO
~ 590 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
retrocesso para uma época pretérita onde o Ministério Público não podia investigar.
Salienta-se que a atuação legislativa tem como base e limite a própria Constituição e, como
anteriormente mencionado, a mesma concede, implicitamente, poderes investigatórios ao
Parquet.
REFERÊNCIAS
~ 591 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
FISCHER, Douglas. Investigação Criminal pelo Ministério Público: sua determinação pela
Constituição brasileira como garantia do acusado e da sociedade. In: CUNHA, Rogério
Sanches; TAQUES, Pedro; GOMES, Luiz Flávio. Limites constitucionais da investigação. São
Paulo: RT, 2009. p. 46-71.
~ 592 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 8. ed. rev. ampl. atual. São Paulo:
Saraiva, 2012.
RANGEL, Paulo. Investigação Criminal Direta pelo Ministério Público: Visão Crítica. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003.
SWISHER, Carl Brent. Decisões Históricas da Côrte Suprema. Rio de Janeiro: Forense, 1964.
~ 593 ~
HIPERCONSUMO REVELADOR DA INEFICÁCIA
CONSTITUCIONAL
1. INTRODUÇÃO
~ 594 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 595 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 596 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Ainda que essa discussão fosse necessária no Brasil no início da década de 1980,
em outras localidades já se tornava um assunto consolidado. Em alguns países – de
industrialização anterior à brasileira –, os consumidores tiveram vitórias na proteção dos
seus direitos durante a década de 1960. Tendo foco nesses países cujas economias são
centrais para o capitalismo (países centrais), em uma divisão básica e didática da evolução
do consumo, é possível apontar o aprimoramento das marcas (ainda com acesso
extremamente restritoaos seus produtos) a partir do final do século XIX, e a existência de
uma verdadeira sociedade de consumo somente após o pós-Guerra (na passagem da década
de 1940 para a de 1950). A partir deste momento, com número maior de consumidores e
uma produção massificada e padronizada, surgem conflitos maiores e mais frequentes entre
consumidores e fornecedores325.Todavia, já em 1936 estava a ser fundada a primeira
organização formal de consumidores – a Consumers Union, nos Estados Unidos (EEUU),
325 Importa ressaltar quais relações sociais que fazem surgir esses conflitos. Como afirma Marcelo Sodré
(2009, p. 12), "[d]a relação trabalho-capital nasceu o direito do trabalho. Da relação produção-consumo está
nascendo o direito do consumidor. Mas semelhança não é igualdade: o primeiro surge no fim do século XIX;
o segundo em meados do século XX e ainda está em construção. Além disso, como já afirmado, os
consumidores não formam uma classe social. Só isto já aponta diferenças significativas.". Na clássica
apresentação de Mercadoria (M) e Dinheiro (D) na fórmula M-D-M, a relação capital-trabalho foca-se no
primeiro binômio (M-D), onde o trabalhador que somente possui sua força de trabalho a vende como
mercadoria (M) para obter o salário (D); entretanto, mantendo-se a mesma formulação e focando no último
binômio (D-M), têm-se as relações de consumo, onde o que se troca é um valor em dinheiro (D) por um
produto ou serviço (M). Nota-se, então, que a relação de consumo independe de classe, pois tanto o
trabalhador quanto o proprietário da mercadoria poderão estar no polo consumidor da relação (RIBEIRO,
2018, p. 124). Ao mesmo tempo, essa mesma relação (consumo) distorce outras realidades sociais, como a
ideia de que o acesso a ou consumo de determinados itens gera qualquer igualdade entre indivíduos de
diferentes classes; da mesma forma, essa inexistência de classe comum entre os consumidores faz com que os
próprios consumidores percebam-se carentes de verdadeira organização coesa contra a exploração dos
fornecedores, havendo apenas o rechaço ao abuso por estes perpetrados. Essa ausência de visão dos
consumidores como entes políticosfaz com que haja pouca pressão em favor de alterações nos sistemas de
preços de produtos ou serviços, proteção ambiental ou sustentabilidade, quebra de patentes de fármacos,
entre muitos outros exemplos possíveis.
~ 597 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 598 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 599 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
A partir do princípio da solidariedade, todo o direito passa a ser visto sob a ótica
da justiça social. A dignidade da pessoa humana, antes de ser o mais belo
protocolo de intenções, abre suas asas sobre o ordenamento jurídico acolhendo-
o e conformando-o à valorização do humano.
Sobressai-se, nesse contexto, a garantia de um mínimo existencial, um patamar
mínimo de bens jurídicos que necessitam de efetiva concretização para que se
possa atribuir a todos uma vida minimamente digna, permitindo, assim, que
desempenhe o papel ativo que a nova concepção de cidadania para ele
desenhou.
[…] O direito de acesso ao consumo, em seu aspecto formal, significa a efetiva
possibilidade de acesso aos bens indispensáveis para uma vida digna. É o
caminho possível para a erradicação da pobreza. Não se vislumbra a
possibilidade de extinção imediata do capitalismo ou do mercado. A saída,
portanto, para o fim da pobreza é conformar o capitalismo à justiça social, de
modo a deixar de ser um fenômeno de exclusão para tornar-se um mecanismo
de inclusão.
~ 600 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
326 A série histórica oficial sobre endividamentos dos consumidores utilizada pelo governo brasileiro é
elaborada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviço e Turismo (CNC), denominada
Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC). A análise dessa série histórica
subdivide os consumidores brasileiros em dois grupos: quem ganha até dez salários mínimos (chama-se, neste
trabalho, de G1) e quem ganha mais que dez salários mínimos (G2). Com início da análise em 2010, o ápice
de famílias endividadas que a PEIC registrou para o G1 foi de 67,2% (em fevereiro de 2011), sendo de 58,9%
para G2 (em julho de 2013). A maioria deste endividamento – que varia entre 11 e 50% do rendimento das
famílias – dá-se em razão de dívidas com o cartão de crédito (dinheiro de plástico), sendo de 75,8% para G1 e
de 71% para G2. Isso demonstra que o superendividamento, além de independer de idade e classe social, é
proveniente majoritariamente do desejo pelo consumo de bens e serviços (geralmente supérfluos) cujo
acesso, teoricamente, não seria possível com o patrimônio ou a renda própria.
~ 601 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
endividam para consumir; todavia, impressiona mais notar que dentro da mesma classe
social, há quem muito consuma (endividando-se ou não) e quem nada tenha para consumir.
Tudo isso é reflexo de um sintoma global, mas que se mostra mais nocivo às populações
das nações mais pobres. Tal sintoma é o que é definido por Gilles Lipovetsky como
hiperconsumo e será objeto do próximo capítulo.
3. O HIPERCONSUMO DE CATÁSTROFE
~ 602 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 603 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
produção padronizada pode se tornar, nesta época, industrial, o que propicia a ampliação
de produtos mais sofisticados e de melhor estética – como exemplo, apresenta-se o prêt-à-
porter, peças de vestuários que seguem as modas das classes mais alta, mas em ampla e
escala e preço verdadeiramente acessível –ainda que longe do luxo dos mercados de alto
padrão. Porém, pela popularização, o luxo e os valores ostensivos passam a perder um
pouco de espaço na moda – tal qual a maior simplicidade dos traços em moda, houve a
possibilidade de personalização e maior dinamismo criativo (LIPOVETSKY, 2009, p. 126-
132).
A partir de então, consolida-se a sociedade do consumo de massa, sociedade do
desejo – estimulam-se mais os desejos, o hedonismo, a despesa, o humor, a libertação das
tradições (e dos moldes como as famílias eram mantidas) e do tempo presente. Cultua-se
uma cultura jovem – em contraposição à imagem de prosperidade que os mais velhos
(bem-sucedidos) detinham – e mantém-se um imaginário de felicidade atingível pelo
consumo (LIPOVETSKY, 2006, p. 30-31; 2009, p. 139-142). Esse modus vivendi torna-se
central – com o consumo incorporando quase que definitivamente as qualidades da moda.
Em sequência, como tudo que é central, fez-se uma referência para contestação.
Cria-se, nesta época – a virada entre a segunda e terceira fase, na década de 1970 –
, uma aparente (mas forte) contestação social. É nesta época que surgem, também como
cultura de grandes coletivos, as referências hippies, punks, afro e rasta (LIPOVETSKY, 2009,
p. 147). Ainda que se discurse almejar uma ruptura por tais culturas, mais certo é que, ao
negar a cultura vigente, utilizava-se das mesmas formas (principalmente uma estetização
própria, ainda que agressiva se comparada à estetização padronizada das massas) e,
portanto – e por ser controlada pelo modo de produção vigente –, não se poderia cogitar
romper com os padrões capitalistas da época.A tal "virada", Lipovetsky (2004, p. 52-53 e
71) chama de pós-modernidade ou pós-modernismo – isto, pois se trata de uma tentativa
de romper com o que era então entendido como modernidade (primeira e segunda fases),
fugindo-se dos enquadramentos sociais, políticos e ideológicos, buscando e preservando
uma liberdade nova e quase que absoluta. Há, nisso, uma exaltação do tempo presente e
uma tranquilidade descontraída (praticamente utópica) em relação ao futuro. Entretanto,
esse tempo pós-moderno, conforme entendido por Lipovetsky, surgia prestes a se pôr,
anunciando o que lhe sucederia – a hipermodernidade.
Nessa passagem, ao invés da almejada ruptura, há verdadeira intensificação dos
padrões tidos como modernos. É por esse fator que o sociólogo evita adotar a expressão
"pós", dando preferência ao "hiper"-moderno. Como afirma Sébastien Charles (in
~ 604 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 605 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 606 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 607 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 608 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
entre os princípios da ordem econômica do Estado brasileiro, devendo esta rumar à justiça
social. Nota-se, entretanto, que o este dever do Estado não é cumprido plenamente, sendo
possível e necessário falar em hiperconsumo de catástrofe no Brasil.
~ 609 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
ser alcançada pelo Estado brasileiro (GRAU, 2015, p. 192-193). Segundo os objetivos do
Estado, deve-se afirmar que o direito brasileiro tem o dever de, através de seus órgãos
políticos, combater o hiperconsumo. Entretanto, a legislação consumerista produzida não
teve o condão de alterar as relações sociais existentes – não rumou em direção ao destino
constitucional, mas deixou o direito do consumidor aberto ao decisionismo judicial.
Todavia, os questionamentos judiciais dão-se, em grande parte, de modo individual,
buscando minimizar as abusividades dos fornecedores. Quando existentes os
questionamentos coletivos, estes somente têm por fim fazer cessar irregularidades ou
infrações praticadas por determinados consumidores. Portanto, há uma excelente coesão
do Código de Defesa do Consumidor com a natureza capitalista das relações de consumos,
o que fez, na prática, perfeita adequação da sociedade de consumo à legislação protetiva ao
consumidor.
O direito do consumidor, com a prática que se deu à legislação atual, foge da sua
destinação constitucional – de busca por justiça social e redução das desigualdades. Trata-se
de um direito ainda em construção e extremamente recente. Faltam, neste microcosmos
jurídico, elementos concretos que suavizem ou rompam com a cultura ocidentalizada do
hiperconsumo. Com isso, há um incentivo, no direito do consumidor, ao hiperconsumo e à
hiperindividualização. Tal direito, como praticado no Brasil, somente é adequado ao
hiperconsumo de catástrofe para perpetuar suas estruturar; porém, contraria sua origem
constitucional, deixando de promover uma melhor dignidade social ao povo brasileiro.
Nota-se que não há – pensando na inviabilidade da ruptura do modo de produção
capitalista – que se alterar completamente a legislação consumerista. A leitura do direito do
consumidor é que deve ser alterada, devendo ser dada eficácia à CRFB nas regulações
jurídicas e judiciais das relações de consumo. Todavia, isso releva a necessidade da alteração
de relações sociais – que consequentemente alterariam a cultura jurídica, tornando-a mais
conectada à integralidade do povo brasileiro (e não somente à elite brasileira). Para que a
CRFB seja verdadeiramente eficaz aos consumidores brasileiros, há que se fazer uma
aplicação da defesa do consumidor em toda e qualquer política governamental – não sendo
possível falar em política de Estado que contrarie as vontades expressas na Constituição –,
impedindo a adoção de medidas que ampliem a disparidade entre os consumidores das
classes sociais mais altas e os consumidores das classes sociais mais baixas. Sem tal feito
(como se mantém até hoje) não haverá verdadeira proteção constitucional ao consumidor –
e, portanto, não haverá qualquer proteção ao consumidor pelo direito brasileiro.
~ 610 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
~ 611 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
totalidade, a busca pela justiça social e pela redução das desigualdades. É nesse sentido, em
conformidade com sua origem constitucional, que o direito do consumidor deve ser guiado
e interpretado.
Há, contudo, pouca esperança em relação ao preenchimento dos escopos
constitucionais – e ainda menos em relação a transformações sociais positivas – quando se
tem em mente que o direito (forma jurídica adotada em conformação e derivação do modo
de produção adotado) é criado, regulado, aplicado (e, em sua maioria, estudado) pela elite
que pode reproduzir sem prejuízo ou esforço o hiperconsumo dos países centrais.
REFERÊNCIAS
~ 612 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 613 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
TELEPATIA. O Boticário. Direção: Fred Luz. Produção Executiva: Rafael Fortes e Flávia
Zanini. Diretor Geral de Criação: Luiz Sanches. Diretor Executivo de Criação: Bruno
Prosperi. Diretor de Criação: Rynaldo Gondim. Diretor de arte: Vinícius Valeiro. Redator:
Tales Bahu. São Paulo: O2 Filmes, 2017. Filme digital para televisão (1 min), son., color.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EgBhqVBfhXA>. Acesso
em: 14jul. 2018.
~ 614 ~
A LIBERDADE RELIGIOSA NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988
INTRODUÇÃO
* Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professora Adjunta do curso de Direito da UFMS,
Campus de Três Lagoas/MS. Email: silvia.dettmer@ufms.br
327BARROSO, Luís Roberto. Direito constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção
~ 615 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
1.Considerações histórico-jurídicas
330 MACHADO. Jónatas E.M. Estado constitucional e neutralidade religiosa: entre o teísmo e o (neo) ateísmo.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 9.
331Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=356402 – Acesso: 15
mar.2018.
332 GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. Trad. Isa Mara Lando. São
93.
~ 616 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Foi dessa faixa do litoral atlântico que Portugal tomou posse desse território e
colonizou-o por direitos de descobrimento. Posteriormente, foi reconhecida a imensa expansão
territorial do Brasil, caracterizando-se, portanto, um Estado de formação originária, de
desenvolvimento natural, histórico-geográfico.334
Diante da predominância da colonização dos portugueses, a população que se formava
no território brasileiro foi, no entanto, adquirindo os usos e costumes da mãe-pátria, a
organização política, a língua comum e a tradição religiosa, entre outros traços.
Diante do cenário político-religioso que predominou durante o período do Brasil-
Colônia e Imperial, faz-se necessário considerar os reflexos sobre o direito à liberdade religiosa
em decorrência da relação jurídica da união entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica.
Os apontamentos de Ranquetat335 sobre o Estado constitucional de 1824, denominado
confessional refere-se ao fato da cultura brasileira ter sofrido o influxo do Catolicismo desde
seus primórdios. O Brasil foi descoberto por uma nação católica que, em seu projeto
colonizador e evangelizador, visava estender ao novo mundo as fronteiras da fé e do império.
Era vigente à época, o regime do padroado336, que possibilitava à Coroa portuguesa e,
posteriormente, ao Império brasileiro interferir na Igreja Católica, nomeando bispos, recolhendo
os dízimos, remunerando o clero, construindo igrejas, monastérios, capelas. Era praticamente
impossível viver integrado no Brasil sem seguir ou pelo menos respeitar a religião católica. 337
Cabe lembrar que o Antigo Paço Imperial, no centro do Rio de Janeiro, casarão do
século XVII, foi sede oficial do governo de D.João VI, no Brasil, entre 1808 e 1821; local que
abrigou uma das cortes mais religiosas e carolas da Europa.338
Assim, durante grande parte desse período da história brasileira, o Estado foi
confessional, com estreita relação jurídica com a Igreja Católica. Autoridade espiritual e poder
temporal estavam integrados em um modelo de Cristandade.
334 MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. Atualizador Miguel Alfredo Malufe Neto. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
386.
335 RANQUETAT JÚNIOR, Cesar Alberto. Laicidade à brasileira: um estudo sobre a controvérsia em torno da
igreja local ou nacional, a um administrador civil, em apreço de seu zelo, dedicação e esforços para difundir a
religião e como estímulo para futuras boas obras. RANQUETAT JÚNIOR, Cesar Alberto. Laicidade à brasileira:
um estudo sobre a controvérsia em torno da presença de símbolos religiosos em espaços públicos. Tese de
doutorado em Antropologia Social. Universidade Federal de Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. Porto Alegre, 2012, p. 48.
337 HOONAERT, Eduardo. A Igreja no Brasil-colônia (1550-1800). São Paulo: Brasiliense, 1994.
338GOMES, Laurentino. 1808. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007, p. 17.
~ 617 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
339 Art. 1º: “A Nação Brazileira adopta como fórma de governo, sob o regimen representativo, a Republica
Federativa proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitue-se, por união perpetua e indissoluvel das suas antigas
províncias, em Estados Unidos do Brazil.” CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo.
Constituições do Brasil. São Paulo: Atlas, 1994, p. 685.
340 Art. 4º: “Fica extincto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerrogativas.” Disponível em
realidade diferente. O poder se encastelou nas oligarquias estaduais, que, aliadas com o governo federal, dominaram
o cenário político durante toda a Primeira República. O regime democrático do governo não saiu do papel, o poder
estava diluído entre o governo federal e as oligarquias estaduais. AGRA, Walber de Moura. Curso de direito
constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 61.
342Art. 1º: “E' prohibidoá autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou
actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e creardifferenças entre os habitantes do paiz,
ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.”
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm>. Acesso: 10 mar. 2015.
343Art. 2º do Decreto 119-A: “A todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu
culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem o
exercicio deste decreto.” Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm>.
Acesso em 12 mar. 2015.
344 BARBOSA, Ruy. Escritos e discursos seletos. Org. Virgínia Côrtes de Lacerda. Rio de Janeiro: José Aguilar,
1960, p. 664.
345 Art. 72, §4: “A Republica só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”. §5º: “Os cemitérios terão
caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a pratica
~ 618 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral publica e as leis”. §6º: “Será leigo
o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”. CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo.
Constituições do Brasil. São Paulo: Atlas, 1994, p. 712.
346 Art. 17, §III: “É vedado à União, aos Estados, ao Districto Federal e aos Municipios: ter relação de alliança ou
dependencia com qualquer culto ou igreja, sem prejuizo da collaboração reciproca em prol do interesse collectivo”.
CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil. São Paulo: Atlas, 1994, p.
633. A leitura do artigo 17, II (estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos) e III, à
primeira vista aparece contraditória; tal contradição não deixou de ser discutida no plenário do Congresso.
SCAMPINI, José. A liberdade religiosa nas constituições brasileiras (estudo filosófico-jurídico comparado). Revista
de Informação legislativa, julho a setembro de 1974. Ano IX. Número 43. Brasília: Senado Federal, p. 166.
347 A Constituição de 1946 insere-se entre as melhores, senão a melhor de todas que tivemos. Tecnicamente é muito
correta e, do ponto de vista ideológico, traçava nitidamente uma linha de pensamento libertária do campo político,
sem descurar da abertura para o campo social, que foi recuperada da Constituição de 1934. Com isso, o Brasil
procurava definir o seu futuro em termos condizentes com os regimes democráticos vigentes no Ocidente.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 126.
~ 619 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
No que tange ao ensino religioso, foi previsto, no art. 168, §3º, IV, do texto
constitucional de 1967, o que a Constituição de 1934 estabelecia em seu art. 153 e a de 1946, no
art. 168, V. Dispôs que constituía disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau
primário e médio, sendo de matrícula facultativa e a ser ministrado de acordo com a confissão
religiosa do aluno, manifesta por ele, se fosse capaz, ou por seu representante legal ou
responsável.
A Emenda Constitucional nº 1/69 foi editada em um período excepcional da história
do Brasil: momentos do constitucionalismo brasileiro mediante a vigência do exercício sem
limites do poder pelos militares, embora procurasse uma aparência de legitimidade pela
invocação de dispositivos legais que estariam a embasar essas emanações de força. Para uns, essa
emenda foi uma nova Constituição; para outros não passou de mera emenda.348
Sobre o ensino religioso, foi previsto no art. 176, §3º, V: constituiria disciplina os
horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio, sendo de matrícula facultativa.
Intimamente ligado ao ensinoreligioso estava o ensino da Educação Moral e Cívica 349, disciplina
tornada obrigatória em todos os graus de escolarização, como disciplina, ou como prática
educativa, pelo Decreto-Lei n.869/69.
348 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 87. Dentre
as considerações iniciais da Emenda Constitucional nº 1 de 1969, há a menção de que “feitas as modificações
mencionadas, todas em caráter de Emenda, a Constituição poderá ser editada de acordo com o texto que adiante se
publica, Promulgam a seguinte Emenda à Constituição de 24 de janeiro de 1967”. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>.Acesso: 14
mar. 2018.
349É oportuno mencionar que a disciplina EducaçãoMoral e Cívica aparece pela primeira vez no direito brasileiro em
1934, na emenda proposta por Plínio Tourinho, em substituição ao ensino religioso. Esses limites, mais explícitos
do que em outras constituições, revelam asituação contingente do Brasil e, portanto, a característica da
Constituiçãoatual, que inspira todos os seus artigos, ou seja, "liberdade com autoridade". SCAMPINI, José. A
liberdade religiosa nas constituições brasileiras (estudo filosófico-jurídico comparado). Revista de Informação
Legislativa, julho a setembro de 1974. Ano IX. Número 43. Brasília: Senado Federal, p. 231-232.
350 Embora não haja condições de reproduzir com minúcias o desenvolvimento dos trabalhos da Assembleia
presidida pelo Deputado Ulysses Guimarães, importa registrar a dimensão gigantesca desse processo. Cumpre
averbar que a ausência de um anteprojeto devidamente sistematizado contribuiu de forma decisiva para certa
desordem e insegurança no contexto dos trabalhos da Assembleia Constituinte, que não deixou de se refletir no
campo dos direitos fundamentais. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Uma teoria
geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 63-64.
~ 620 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
a ruptura com o regime autoritário militar, instalado em 1964. 351 Esse fator enseja impacto
especialmente na esfera dos direitos fundamentais.
E nesse contexto, Canotilho afirma que a dignidade da pessoa humana exprime a
abertura da República à ideia de comunidade constitucional inclusiva, pautada pelo
multiculturalismo mundividencial, religioso e filosófico.352
Dessa forma, delimita uma esfera constitutiva como núcleo essencial da República que
leva em consideração o princípio material subjacente à dignidade da pessoa humana353 como
princípio antrópico que acolhe a ideia pré-moderna e moderna da dignitas-hominis, ou seja, do
indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual.
No texto constitucional de 1988, a liberdade religiosa está incluída entre as liberdades
espirituais e sua exteriorização é forma de manifestação de pensamento, mas, sem dúvida, é de
conteúdo mais complexo pelas implicações que suscita. Cabe lembrar que a liberdade de
manifestação de pensamento assegura o direito de dissentir.
Salienta-se, neste ponto, que o corolário básico do regime democrático é a possibilidade
de os cidadãos se expressarem de acordo com o seu pensamento e as suas convicções, conforme
prevê o art. 5º, IV da Constituição354.
A conquista constitucional do direito à liberdade religiosa é a consagração de
maturidade de um povo e desdobramento da liberdade de expressão do pensamento.
Desde a Constituição de 1891, encontra-se, nas Constituições brasileiras, a separação
entre Estado e Igreja. Assim, o Estado consolidou-se como sendo laico, admitindo e respeitando
as inúmeras vocações religiosas existentes.
Nesse sentido, o direito fundamental à liberdade religiosa localiza-se na esfera jurídico-
constitucional e refere-se à laicidade como princípio do Estado Democrático de Direito, que
“não busca a salvação das almas, mas sim, a máxima expansão das liberdades humanas em um
âmbito de ordem pública protegida”.355
351 A Carta de 1988 institucionaliza a instauração de um regime político democrático no Brasil. Introduz também
indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores
vulneráveis da sociedade brasileira. A partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando-se a
Carta de 1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotados no
Brasil. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2013,
p. 83, 86.
352CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p.236.
353 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra, 1988, v. 4, p. 166.
354 Inciso IV da CF/88: “é livre a manifestação do pensamento”. Constituição da República Federativa do
Brasil. Org. Alexandre de Moraes. São Paulo: Atlas, 2013. A pessoa pode externar seu pensamento sobre qualquer
assunto e da forma que desejar. Se, porém, ao manifestar seu pensamento, a pessoa ferir o direito de outrem, ficará
obrigada a indenizar os danos materiais, morais ou à imagem (art. 5º, V). FACHIN, Zulmar. Curso de direito
constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 262.
355 HUACO, Marco. A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito.In: LOREA, Roberto Arriada
(Org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 43.
~ 621 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
3. ENSINO RELIGIOSO
A questão do ensino religioso tem sido muito debatida no âmbito das relações entre o
Estado e as confissões religiosas. Para tanto, o texto constitucional de 1988, na esteira das
Constituições anteriores, desde a de 1934, dispõe, em seu art. 210, §1º, que o ensino religioso, de
356 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva:
dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 187.
357O Supremo concluiu o julgamento da ADI 4439. Votaram pela improcedência do pedido os ministros Alexandre
de Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia. Ficaram vencidos
os ministros Luís Roberto Barroso (relator), Rosa Weber, Luiz Fux, Marco Aurélio e Celso de Mello, que se
manifestaram pela procedência da ação. Disponível em
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=357099 Acesso: 14 mar. 2018.
~ 622 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental.
Quanto ao ensino religioso nas escolas públicas, Jónatas Machado entende que deve ser
equacionado à luz do princípio da neutralidade confessional do Estado, porém essa evolução não
foi bem compreendida e revelou-se ainda muito condicionada pelos dados fáticos e normativos
do sistema tradicional. Para esse entendimento, o autor opera algumas diferenciações
fundamentais:
Nesse sentido, Roseli Fischmann elucida que a existência do ensino religioso em escolas
públicas em si deve ser revista, pois independentemente do formato traz prejuízos à laicidade, ao
papel de construção cidadã da escola e à própria liberdade religiosa (...). E acrescenta: O projeto
político-pedagógico da escola deve contemplar temas como ética e direitos humanos, sem que
seja necessário envolver conteúdos religiosos.359
Verifica-se que o sistema atualmente vigente compreende-se melhor como um esforço
para conservar alguns vestígios do sistema tradicional de ensino religioso nas escolas públicas do
que como uma tentativa séria de adequação aos novos dados constitucionais. 360
A despeito da diretriz da Lei de Diretrizes e Bases, diversos Estados e Municípios têm
elaborado suas regulamentações de forma confessional, entre outros aspectos que podem ser
considerados inconstitucionais em face do princípio da laicidade. Nesse contexto, o Conselho
358 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva:
dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 378-379.
359 FISCHAMNN, Roseli. Escolas públicas e ensino religioso: subsídios para a reflexão sobre Estado laico, a escola
dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 381.
~ 623 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Nacional de Educação (CNE) foi provocado diversas vezes a se manifestar sobre os contornos
do ensino religioso nas escolas públicas. 361
Várias questões pertinentes ao ensino religioso de caráter curricular foram levantadas
junto ao CNE362, tais como: o que entender por ensino religioso; a matrícula facultativa supõe
que a escola, em seu projeto pedagógico, ofereça com clareza aos alunos e pais quais são as
opções disponibilizadas pelas igrejas, em caráter confessional ou interconfessional;o
financiamento desta atividade na escola pública; qual deve ser a carga horária e se ela integra o
mínimo legal de 800 horas anuais preconizadas pela Lei de Diretrizes e Bases.363
Os Conselheiros Relatores, após pesquisa e discussão interna nas Câmaras e recurso ao
pensamento de especialistas, submeteram o Parecer364 ao Conselho Pleno, que manifestaria o seu
361 ZYLBERSZTAJN, Joana. O princípio da laicidade na Constituição Federal de 1988. Tese de doutorado.
Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP). São Paulo,
2012, p. 153.
362 O CNE manifestou-se em várias oportunidades sobre o ensino religioso. Posteriormente, o Parecer nº 16/98
versou sobre a consulta sobre a carga horária do ensino religioso no ensino fundamental. O Parecer 97/99 tratou da
formação de Professores para o Ensino Religioso nas Escolas Públicas de Ensino Fundamental. A formação de
professores para o ensino religioso se enquadra na questão mais ampla da oferta de formação religiosa para os
alunos dos estabelecimentos públicos de ensino e está relacionada à separação entre Igreja e Estado, que tem sido,
no Brasil, objeto de permanente debate. O Parecer 26/2007 resultou da consulta sobre a legalidade da criação do
Conselho Municipal de Ensino Religioso, cuja parte interessada foi a Secretaria Municipal de Educação de
Goiânia/GO.
363 Por meio do parecer CNE nº 12/97, a Câmara de Educação Básica pronunciou-se sobre a inclusão do ensino
religioso para efeito da “totalização do mínimo de 800 horas”. O parecer diz que “a resposta é não”, devido ao fato
de a matrícula ser facultativa e a disciplina fazer parte da liberdade das escolas. A mesma Câmara, em resposta à
solicitação da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina, que pedia maior explicitação do assunto âmbito
das 800 horas obrigatórias no ensino fundamental, pronunciou-se por meio do parecer nº 16/98, de modo a
incentivar o ensino religioso interconfessional e ecumênico e a confirmar o desenvolvimento de “um currículo com
840 (oitocentas e quarenta) horas anuais, o que propicia, com grande facilidade, o cumprimento do preceito legal do
ensino religioso. Além disso, no histórico do parecer, o relator enuncia que a normatividade vigente implica a oferta
regular, “para aqueles alunos que não optam pelo ensino religioso, nos mesmos horários, outros conteúdos de
formação geral [...]”. Por sua vez, o Conselho Pleno do CNE pronunciou-se sobre a formação de professores para o
ensino religioso por meio do parecer CP/CNE nº 097/99, porque a nova redação incumbe ao poder estatal a
definição das normas para habilitação e admissão dos professores desta disciplina. Diz o parecer, em vários trechos
importantes: Nessa formulação [da lei nº 9.475/97], a matéria parece fugir à competência deste Conselho, pois a
questão da fixação de conteúdos e habilitação ou admissão dos professores fica a cargo dos diferentes sistemas de
ensino. Entretanto, a questão se recoloca para o Conselho no que diz respeito à formação de professores para o
ensino religioso, em nível superior, no Sistema Federal de Ensino. [...] A Lei nº 9.475 não se refere à formação de
professores, isto é, ao estabelecimento de cursos que habilitem para a docência, mas atribui aos sistemas de ensino
tão somente o estabelecimento de normas para habilitação e admissão de professores. [...] Considerando essas
questões, é preciso evitar que o Estado interfira na vida religiosa da população e na autonomia dos sistemas de
ensino. [...] Esta parece ser, realmente, a questão crucial: a imperiosa necessidade, por parte do Estado, de não
interferir e, portanto, não se manifestar sobre qual o conteúdo ou a validade desta ou daquela posição religiosa, de
decidir sobre o caráter mais ou menos ecumênico de conteúdos propostos [...]; não cabe à União determinar, direta
ou indiretamente, conteúdos curriculares que orientem a formação religiosa dos professores, o que interferiria tanto
na liberdade de crença como nas decisões dos estados e municípios referentes à organização dos cursos em seus
sistemas de ensino, não lhe compete autorizar, nem reconhecer, nem avaliar cursos de licenciatura em ensino
religioso, cujos diplomas tenham validade nacional. CURY, Carlos Roberto Jamil. Ensino religioso na escola
pública: o retorno de uma polêmica recorrente.Disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n27/n27a12.pdf>. Acesso: 12 mar. 2018.
364 A Constituição apenas reconhece a importância do ensino religioso para a formação básica comum do período
de maturação da criança e do adolescente, que coincide com o ensino fundamental e permite uma colaboração entre
as partes, desde que estabelecida em vista do interesse público e respeitando, pela matrícula facultativa, opções
religiosas diferenciadas ou mesmo a dispensa de frequência de tal ensino na escola. Conselho Nacional de Educação.
~ 624 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
posicionamento: entendia-se não haver contradição entre o art. 19, I, e o art. 210 da Constituição
Federal.
O caput do art. 213 estabelece que os recursos públicos serão destinados às escolas
públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas
em lei.
José Afonso da Silva365 explica que, para o dispositivo, essas escolas serão definidas em
lei, porém a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional não o fez. Limitou-se a reproduzir o
texto constitucional, apenas acrescentando a nova condição de prestação de contas ao Poder
Público dos recursos recebidos. Acrescenta o autor que
Embora não seja objeto de estudo a ser aprofundado neste momento, é oportuno citar
que o ensino católico e de outras confissões na rede pública de ensino do País foi tratado no art. 11 do
decreto 7.107/2010, que promulga o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil
e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na Cidade do
Vaticano, em 13 de novembro de 2008.366
Após o acordo, a Procuradoria-Geral da República (PGR) propôs, em agosto de 2010, a
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4439,a fim de que o Supremo Tribunal Federal:
1. Realizasse interpretação conforme a Constituição do art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB) para assentar que o ensino religioso em escolas públicas só pode ser de
natureza não confessional, com proibição de admissão de professores na qualidade de
representantes das confissões religiosas; 2. Proferisse decisão de interpretação conforme a
Constituição do art. 11, §1º, do Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé,
relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil; 3. Caso se tivesse por incabível o
Parecer CNE 05/97, de 11 de março de 1997. Publicado no Diário Oficial da União de 17.06.1997. Disponível em
<http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/PNCP0597.pdf>. Acesso: 12 mar. 2018.
365 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 819.
366A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da
pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da
pessoa. §1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina
dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural
religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de
discriminação. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D710
7.htm>. Acesso: 10 mar. 2018.
~ 625 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Na audiência pública sobre ensino religioso nas escolas públicas promovida pelo
Supremo Tribunal Federal, as posições sobre o tema divergiram em dois pontos: os favoráveis
ao ensino religioso, entre os quais se encontram representantes das religiões (separadamente); e
aqueles que defendem a laicidade do Estado brasileiro.
Ao abrir a audiência, o relator Ministro Luís Roberto Barrosoafirmou que a democracia
contemporânea contempla três dimensões que devem ser equilibradas e expôs que três valores
seriam abordados: a liberdade religiosa, o estado laico e o dispositivo constitucional que prevê o
ensino religioso nas escolas públicas. Afirmou ainda na ocasião queestamos falando só de escolas
públicas, não há nada contra escolas (particulares) católicas, protestantes ou judaicas, que continuarão a ministrar
livremente o ensino religioso confessional. Ao todo, foram trinta e uma entidades que se manifestaram e
defenderam suas argumentações.
A audiência terminou com a maioria dos representantes das entidades contrária ao
ensino religioso nas escolas da rede pública.
As apresentações foram efetuadas, em sua maioria, por aqueles que ingressaram na ação
como Amicus Curiae, dentre várias manifestações, destaca-se a apresentação dos representantes da
Confederação dos Trabalhadores em Educação (CNTE); do Conselho Nacional de Educação do
Ministério da Educação; da Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ;
mar. 2018.
~ 626 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 627 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
única forma de se adequar ao princípio do Estado laico. Argumentou ainda que, após pesquisas e
debates, o grupo chegou à conclusão de que a ADI 4439 deveria ser julgada procedente.
369Disponível em http://luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2017/08/ADI-4439-vers%C3%A3o-
final.pdf – Acesso: 16 mar.2018.
~ 628 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
~ 629 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
maioria dos votos (6 x 5), os ministros entenderam que o ensino religioso nas escolas públicas
brasileiras pode ter natureza confessional, ou seja, vinculado às diversas religiões.
CONCLUSÃO
370PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2013, p.
83, 86.
~ 630 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
BARBOSA, Ruy. Escritos e discursos seletos. Org. Virgínia Côrtes de Lacerda. Rio de Janeiro:
José Aguilar, 1960.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.
CURY, Carlos Roberto Jamil. Ensino religioso na escola pública: o retorno de uma polêmica
recorrente.Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n27/n27a12.pdf>. Acesso: 12
mar. 2018.
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D710
7.htm>. Acesso: 10 mar. 2018.
~ 631 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
Disponível em http://luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2017/08/ADI-4439-
vers%C3%A3o-final.pdf – Acesso: 16 mar.2018.
Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-
69.htm>.Acesso: 14 mar. 2018.
Disponível em
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=293591>. Acesso: 10
mar. 2018.
Disponível em
<http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=635016&tipo=TP&descricao
=AD I%2F4439>. Acesso: 10 mar. 2018.
Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=356402 –
Acesso: 15 mar.2018.
Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=357099
Acesso: 14 mar. 2018.
~ 632 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
FISCHAMNN, Roseli. Escolas públicas e ensino religioso: subsídios para a reflexão sobre
Estado laico, a escola pública e a proteção do direito à liberdade de crença e culto.ComCiência:
Revista Eletrônica de Jornalismo Científico. São Paulo, v. 56, 2004.
GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. Trad. Isa
Mara Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. Atualizador Miguel Alfredo Malufe Neto. São Paulo:
Saraiva, 2010.
~ 633 ~
Direitos Humanos & Fundamentais
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2014.
~ 634 ~
ISBN 978-85-94308-05-4