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Luís Fernando Sgarbossa

Geziela Iensue
(Organizadores)

dIREITOS hUMANOS
&
FUNDAMENTAIS
Convidados especiais:
JOSÉ CRETELLA NETO e JOSÉ LUIZ DELGADO
Aimée Schneider Gustavo Ferreira Santos Luiz Augusto da Silva
Ana Claudia M. M. Philippini Hugo César A. de Gusmão Maria N. P. Vasques Mota
André Luiz P. Spinielli João Paulo Allain Teixeira Michelle Asato Junqueira
Antonio H. Maia Lima João Victor Acquino Rafael Carrano Lelis
Arlinda Cantero Dorsa Kelvia Faria Ferreira Renato A. A. Philippini
Bruna Santos de Queiroz Lara Pastorello Panachuk Rosely Maria da S. Pires
Carolina A. de Souza Lima Leonam B. S. Liziero Rosilandy C. C. Lapa
Caroline B. Maciel Andrade Leonardo J. A. Prado Ribeiro Sivlia A. Dettmer
César Augusto F. São José Lídia P. Castillo Amaya Tainara Gomes Penedo
Claudia Regina O. M. da Silva Liliana Lyra Jubilut Thamyris Araújo
Fernanda Gurgel Raposo Livia P. Zamarian Houaiss Thayliny Zardo
Geziela Iensue Lizziane S. Q. Franco de Oliveira Tiago Henrique Torres
Giovana de C. Florencio Luciano Meneguetti Pereira Tuany Baron de Vargas
Guilherme G. Vasques Mota Luís Fernando Sgarbossa Waleska Marcy Rosa
Gustavo César M. Cabral
LUÍS FERNANDO SGARBOSSA
GEZIELA IENSUE
(Organizadores)

DIREITOS HUMANOS
&
FUNDAMENTAIS

Reflexões aos 30 Anos da Constituição e 70 da


Declaração Universal

Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica – IBPJ


2018
© Luís Fernando Sgarbossa/Geziela Iensue
ISBN 978-85-94308-05-4
Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica – IBPJ
CNPJ n. 28.539.750/0001-55
Prefixo ABISBN n. 94308

FICHA CATALOGRÁFICA

Sgarbossa, Luís Fernando; Iensue, Geziela. Direitos Humanos & Fundamentais:


Reflexões aos 30 Anos da Constituição e 70 da Declaração Universal./ Luís Fernando
Sgarbossa./ Geziela Iensue./ 1ª ed./ Campo Grande: Instituto Brasileiro de Pesquisa
Jurídica, 2018. 665 p.

1. Direito Constitucional. 2. Direitos Humanos. I. Título.


C.D.U. 340. 342.7.

A responsabilidade pelas opiniões emitidas e pela originalidade dos artigos


que compõe a presente obra é dos autores.

A reprodução total ou parcial dos conteúdos da obra é livre, desde que


citada a fonte e respeitados os direitos autorais.

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ambiental.
CONSELHO EDITORIAL

ABILI LÁZARO CASTRO DE LIMA


ALEXANDRE COUTINHO PAGLIARINI
ALEXANDRE BARBOSA DA SILVA
CÉSAR ANTONIO SERBENA
DENNIS JOSÉ ALMANZ TORRES (Peru)
ELISABETTA GRANDE (Itália)
GEZIELA IENSUE
GUILHERME AMINTAS PAZINATO DA SILVA
ILTON NORBERTO ROBL FILHO
IVO DANTAS
LUÍS FERNANDO SGARBOSSA
MANUEL DAVID MASSENO (Portugal)
MARIO SPANGENBERG BOLÍVAR (Uruguai)
MAURÍCIO D. TIMM DO VALLE
NATALINA STAMILE (Itália)
PABLO MALHEIROS DA CUNHA FROTA
PAULO OPUSZKA
RENATO BRAZ MEHANNA KAMIZ
ORGANIZADORES, CONVIDADOS E AUTORES

Organizadores

LUÍS FERNANDO SGARBOSSA


GEZIELA IENSUE

Convidados especiais

JOSÉ CRETELLA NETO


JOSÉ LUIZ DELGADO

Autores

AIMÉE SCHNEIDER
ANA CLAUDIA MOREIRA MIGUEL PHILIPPINI
ANDRÉ LUIZ PEREIRA SPINIELLI
ANTONIO HENRIQUE MAIA LIMA
ARLINDA CANTERO DORSA
BRUNA SANTOS DE QUEIROZ
CAROLINA ALVES DE SOUZA LIMA
CAROLINE BUARQUE MACIEL ANDRADE
CESAR AUGUSTO FERREIRA SÃO JOSÉ
CLAUDIA REGINA OLIVEIRA MAGALHÃES DA SILVA
FERNANDA GURGEL RAPOSO
GEZIELA IENSUE
GIOVANA DE CARVALHO FLORENCIO
GUILHERME GUSTAVO VASQUES MOTA
GUSTAVO CÉSAR MACHADO CABRAL
GUSTAVO FERREIRA SANTOS
HUGO CÉSAR ARAÚJO DE GUSMÃO
JOÃO PAULO ALLAIN TEIXEIRA
JOÃO VICTOR ACQUINO
KÉLVIA FARIA FERREIRA
LARA PASTORELLO PANACHUK
LEONAM BAESSO DA SILVA LIZIERO
LEONARDO JOSÉ DE ARAÚJO PRADO RIBEIRO
LIDIA PATRÍCIA CASTILLO AMAYA
LILIANA LYRA JUBILUT
LIVIA PITELLO ZAMARIAN HOUAISS
LIZZIANE SOUZA QUEIROZ FRANCO DE OLIVEIRA
LUCIANO MENEGUETTI PEREIRA
LUÍS FERNANDO SGARBOSSA
LUIZ AUGUSTO DA SILVA
MARIA NAZARETH DA PENHA VASQUES MOTA
MICHELLE ASATO JUNQUEIRA
RAFAEL CARRANO LELIS
RENATO AUGUSTO DE ALCÂNTARA PHILIPPINI
ROSELY MARIA DA SILVA PIRES
ROSILANDY CARINA CANDIDO LAPA
SILVIA ARAÚJO DETTMER
TAINARA GOMES PENEDO
THAMYRIS ARAÚJO
THAYLINY ZARDO
TIAGO HENRIQUE TORRES
TUANY BARON DE VARGAS
WALESKA MARCY ROSA
NOTA CURRICULAR DOS ORGANIZADORES, CONVIDADOS
ESPECIAIS E AUTORES

CONVIDADOS ESPECIAIS

JOSÉ CRETELLA NETO

Mestre, Doutor e Livre-Docente em Direito Internacional pela Faculdade


de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Advogado Internacional
baseado em São Paulo, Capital.

JOSÉ LUIZ DELGADO

Professor da Faculdade de Direito do Recife – Universidade Federal de


Pernambuco – UFPE.

ORGANIZADORES

GEZIELA IENSUE

Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Mestre


em Ciências Sociais Aplicadas e Bacharel em Direito pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa – UEPG. Professora Adjunta da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS/CPTL. Líder do Grupo de
Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Jurisdição Internacional.

LUÍS FERNANDO SGARBOSSA

Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná –


UFPR. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa
– UEPG. Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul – UFMS/CPTL. Membro da Academia Internacional de Direito
Constitucional (Pretória – África do Sul). Líder do Núcleo de Pesquisa em
Estado e Política – NUPEPOL.

PROFESSORES / PESQUISADORES

AIMEE SCHNEIDER

Advogada e historiadora. Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pelo


Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito na Universidade
Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora do Laboratório Cidade e Poder
(LCP) do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da UFF e do
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia História Social das
Propriedades e Direitos de Acesso (Proprietas). Membro da comissão
editorial da Revista Cantareira e bolsista do CNPq.
ANA CLAUDIA MOREIRA MIGUEL PHILIPPINI

Aluna do Curso de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA,


mestre em Ciência Política pela Universidade da Força Aérea – UNIFA,
especialista em Direito Público pelo Centro Universitário Salesiano –
UNISAL e em Direito em Administração Pública pela Universidade
Castelo Branco – UCB.

ANTONIO HENRIQUE MAIA LIMA

Doutorando bolsista em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo (PUC/SP).

ARLINDA CANTERO DORSA

Professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local


(Mestrado e Doutorado) da Universidade Católica Dom Bosco – UCDB,
Mato Grosso do Sul.

CAROLINA ALVES DE SOUZA LIMA

Mestre, Doutora e Livre-docente em Direito pela Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo – PUC/SP na qual é professora da Graduação e da
Pós-Graduação em Direitos Humanos. Advogada.
CESAR AUGUSTO FERREIRA SÃO JOSÉ

Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Aluno


da Pós-Graduação em Ciências Criminais da Faculdade Guanambi.

CLAUDIA REGINA OLIVEIRA MAGALHÃES DA SILVA

Pós-Doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da


Universidade de Coimbra. Mestre e Doutora pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC/SP. Graduada pelas Faculdades
Metropolitanas Unidas – FMU. Professora de Direito Internacional.
Pesquisadora da Universidade de São Paulo – USP em Tribunais
Internacionais. Membro da Academia Brasileira de Direito Internacional –
ABDI. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional – IBDC.

FERNANDA GURGEL RAPOSO

Graduada em Direito e em Letras/Inglês. Mestre em Letras e em Direito


Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo – USP.

GUILHERME GUSTAVO VASQUES MOTA

Advogado. É Mestre em Ciências Sociais/Política e Doutorando em


Ciências Sociais/Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
– PUC/SP. Professor da Universidade Federal do Amazonas – UFAM,
do Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas – CIESA e da
Universidade Martha Falcão.

GUSTAVO CÉSAR MACHADO CABRAL

Doutor em História do Direito pela Universidade de São Paulo – USP.


Pós-Doutor pelo Max-Planck-Institut für europäische Rechtsgeschichte
(Alemanha). Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceara – UFC.

GUSTAVO FERREIRA SANTOS

Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de


Pernambuco – UNICAP e da Universidade Federal de Pernambuco –
UFPE. Pós-Doutorado na Universidade de Valência. Membro do grupo
de pesquisa REC – Recife Estudos Constitucionais (CNPq). Bolsista de
Produtividade em Pesquisa (CNPq).

HUGO CÉSAR ARAÚJO DE GUSMÃO

Doutor e Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de


Granada. Professor Doutor Associado do Departamento de Direito
Público do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual da
Paraíba – UEPB, atuando nas disciplinas de Teoria da Constituição e
Direito Constitucional Positivo.
JOÃO PAULO ALLAIN TEIXEIRA

Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de


Pernambuco – UNICAP e de Filosofia do Direito da Universidade
Federal de Pernambuco – UFPE. Mestre em Direito pela Universidade
Federal de Pernambuco – UFPE, Brasil. Master em Teorias Críticas do
Direito pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha. Doutor em
Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Brasil.
Membro e líder do grupo REC CNPq – Recife Estudos Constitucionais.
Bolsista de Produtividade em Pesquisa (CNPq).

KÉLVIA FARIA FERREIRA

Mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora –


UFJF. Graduada em Direito pela Faculdade Metodista Granbery.

LARA PASTORELLO PANACHUK

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR (2017).


Pós-graduação em andamento na Fundação Escola do Ministério Público
do Estado do Paraná – FEMPAR.

LEONAM BAESSO DA SILVA LIZIERO

Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da


Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Pós-Doutor em Direito pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Doutor e Mestre em
Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Estadual do Rio de
Janeiro – UERJ.

LEONARDO JOSÉ DE ARAÚJO PRADO RIBEIRO

Mestre em Direito Político e Econômico. Graduado em Direito.

LIDIA PATRÍCIA CASTILLO AMAYA

Doutora em Direito Público pela Universidade de Bari “Aldo Moro” –


UNIBA, Itália. Realizou Estágio de Pós-Doutorado em Direito
Constitucional Comparado no Programa de Pos-graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina – PPGD-UFSC, Brasil.
Pesquisadora associada do Centro Euro-Americano sobre Políticas
Constitucionais – CEDEUAM da Universidade do Salento, Italia.
Docente do Mestrado em Direito Constitucional do Departamento de
Pós-Graduação da Universidade Dr. José Matías Delgado – UJMD, El
Salvador.

LILIANA LYRA JUBILUT

Doutora e Mestre em Direito Internacional pela Universidade de São


Paulo – USP. LLM em International Legal Studies pela NYU School of Law,
foi Visiting Scholar na Columbia Law School e Visiting Fellow na Refugee Law
Initiative da Universidade de Londres. Professora do Programa de Pós-
Graduação em Direito da Universidade Católica de Santos –
UNISANTOS, onde coordena o Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos
e Vulnerabilidades” e a Cátedra Sérgio Vieira de Mello. Trabalha desde
1999 com a temática dos refugiados, tendo sido Advogada/Oficial de
Proteção no Centro de Referência para Refugiados da Caritas
Arquidiocesana de São Paulo e Consultora do ACNUR-Brasil. É membro
de projetos de pesquisa nacionais e internacionais e integra o Migration
Research Leaders Syndicate da Organização Internacional para as Migrações –
OIM.

LIVIA PITELLO ZAMARIAN HOUAISS

Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da


Universidade Federal Fluminense – PPGSD UFF. Mestre em Direito pela
Instituição Toledo de Ensino – ITE.

LIZZIANE SOUZA QUEIROZ FRANCO DE OLIVEIRA

Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC.


Professora de Direito Constitucional e Financeiro na Universidade
Federal Rural do Semiárido – UFERSA.

LUCIANO MENEGUETTI PEREIRA

Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Toledo de Ensino – ITE.


Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional
pela Universidade Potiguar – UNP. Autor e organizador de obras
jurídicas. Professor no Curso de Direito do Centro Universitário Toledo –
UNITOLEDO, onde ministra as disciplinas Direito Internacional, Direito
Constitucional e Direitos Humanos. Advogado.

LUIZ AUGUSTO DA SILVA

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR.


Mestrando em Direito do Estado na Universidade Federal do Paraná –
UFPR.

MARIA NAZARETH DA PENHA VASQUES MOTA

Mestra em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes – UCAM


do Rio de Janeiro e Doutora em Ciências Políticas pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Promotora de Justiça
aposentada do Ministério Público do Estado do Amazonas. Advogada.
Professora Voluntária do Programa de Mestrado em Direito Ambiental e
Segurança Pública da Universidade do Estado do Amazonas – UEA e do
Centro Universitário do Estado do Amazonas – CIESA.

MICHELLE ASATO JUNQUEIRA

Doutora e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade


Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Constitucional com
Extensão em Didática do Ensino Superior. Professora nos Cursos de
Graduação e Pós-Graduação “Lato Sensu” da Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Emergente – CriaDirMack-
Direitos da Criança do Adolescente no Século XXI da Faculdade de
Direito da UPM. Vice-líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Políticas
Públicas como Instrumento de Efetivação da Cidadania” e do Grupo de
Estudos “Criança e Adolescente no Século XXI”. Pesquisadora no Grupo
de Pesquisa “Estado e Economia no Brasil”. Avaliadora de diversos
periódicos nacionais e autora de diversos artigos e livros jurídicos.

RENATO AUGUSTO DE ALCÂNTARA PHILIPPINI

Advogado e docente. Mestre em Ciência Política pela Universidade da


Força Aérea – UNIFA. Especialista em Direito Processual Civil pelo
Centro Universitário Salesiano – UNISAL e em Direito Militar pela
Universidade Castelo Branco. Bacharel em Direito pelo Centro
Universitário Salesiano de Lorena.

ROSELY MARIA DA SILVA PIRES

Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós


Graduação em Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense –
UFF. Fundadora e Pesquisadora do Programa de Extensão da
Universidade Federal do Espírito Santo – UFES Fordan: Cultura no
Enfrentamento as Violências (FORDAN/UFES).
ROSILANDY CARINA CANDIDO LAPA

Mestranda em Direito Internacional na Universidade Católica de Santos –


UNISANTOS. É integrante do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos e
Vulnerabilidades” e Membro da Cátedra Sérgio Vieira de Mello.

SILVIA ARAÚJO DETTMER

Doutora em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica


de São Paulo – PUC/SP. Professora Adjunta do Curso de Direito da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, Campus de Três
Lagoas/MS.

TAINARA GOMES PENEDO

Mestranda em Direito Internacional na Universidade Católica de Santos.


É integrante do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos e
Vulnerabilidades” e Membro da Cátedra Sérgio Vieira de Mello.

THAYLINY ZARDO

Doutoranda bolsista do Programa de Pós-Graduação em


Desenvolvimento Local da Universidade Católica Dom Bosco – PPGDL
UCDB-MS.
TIAGO HENRIQUE TORRES

Mestrando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de


Minas Gerais – PUC/MG. Especialista em Direito Processual Civil pela
Fundação Mineira de Educação e Cultura – FUMEC/MG. Bacharel em
Direito pela Fundação Pedro Leopoldo – FPL.

TUANY BARON DE VARGAS

Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR,


Brasil. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná –
UFPR, Brasil. Especialista em Políticas Públicas pelo Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales y Facultad Latinoamericana de Ciencias
Sociales, Costa Rica. Especialista em Direito do Trabalho pelo Centro de
Estudos Jurídicos do Paraná, Brasil. Pesquisadora do Grupo Trabalho,
Economia e Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná, Brasil.
Advogada em Curitiba, Brasil.

WALESKA MARCY ROSA

Professora de Direito Constitucional na Universidade Federal de Juiz de


Fora – UFJF. Atua na graduação e no Programa de Pós-Graduação stricto
sensu (mestrado) em Direito e Inovação e desenvolve pesquisas no Grupo
de Pesquisa Direito e Argumentação.
ACADÊMICOS DE GRADUAÇÃO

ANDRÉ LUIZ PEREIRA SPINIELLI


Faculdade de Direito de Franca.

BRUNA SANTOS DE QUEIROZ


Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.

CAROLINE BUARQUE MACIEL ANDRADE


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro / Instituto Multidisciplinar
– UFRRJ/IM.

GIOVANA DE CARVALHO FLORENCIO


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS.

JOÃO VICTOR ACQUINO


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS.

RAFAEL CARRANO LELIS


Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF.

THAMYRIS ARAÚJO
Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO. Luís Fernando Sgarbossa, Geziela Iensue.

CONVIDADOS ESPECIAIS

A. CARTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS:


SUA IMPORTÂNCIA PARA A EXPANSÃO E A CONSOLIDAÇÃO
DO REGIME JURÍDICO DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS
DIREITOS HUMANOS. José Cretella Neto, 1

B. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A
CONSTITUIÇÃOVIGENTE. José Luiz Delgado, 28

I – PARTE

1. A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS


HUMANOS E SUA IMPORTÂNCIA NA GÊNESE,
DESENVOLVIMENTO E CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO
INTERNACIONAL DOS DIRETOS HUMANOS. Luciano Meneguetti
Pereira, 45

2. COLONIALIDADE E CRÍTICA DOS DIREITOS


HUMANOS: Uma leitura a Partir da Declaração Internacional de 1948.
João Paulo Allain Teixeira, Gustavo Ferreira Santos, Lidia Patricia Castillo
Amaya, 87

3. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS


DE 1948 E A CIDADANIA COSMOPOLITA. Carolina Alves de Souza
Lima, 100

4. SETENTA ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE


DIREITOS HUMANOS E A ERRADICAÇÃO DA POBREZA: A
DECLARAÇÃO DO MILÊNIO DE 2000: o desenvolvimento das
populações vulneráveis. Maria Nazareth da Penha Vasques Mota, Guilherme
Gustavo Vasques Mota, 123

5. OS DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: Mapeamento


de teses (2015-2016). Arlinda Cantero Dorsa, Antonio Henrique Maia Lima,
Thayliny Zardo, 141

6. O DIREITO DE ASILO ENQUANTO INTEGRANTE DO


ROL DE DIREITOS E O REFÚGIO COMO DIREITO. Liliana Lyra
Jubilut, Rosilandy Carina Candido Lapa, Tainara Gomes Penedo, 165

7. A NECESSIDADE DE CRIAÇÃO DE UM TRIBUNAL


INTERNACIONAL GLOBAL DE DIREITOS HUMANOS COMO
CONSEQUÊNCIA DA CIDADANIA UNIVERSAL. Claudia Regina
Oliveira Magalhães da Silva, 184
8. A EFETIVIDADE DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS À LUZ DOS DESAFIOS
CONTEMPORÂNEOS. Thamyris Araújo, 198

9. OS REFLEXOS DE 70 ANOS DA DECLARAÇÃO


UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS NO DIREITO
CONTEMPORÂNEO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. João
Victor Acquino, Giovana de Carvalho Florencio, 211

10. A INFLUÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS NA


INCLUSÃO DAS MULHERES NAS FORÇAS ARMADAS. Renato
Augusto de Alcântara Philippini, Ana Claudia Moreira Miguel Philippini, 227

II PARTE

11. MEMÓRIA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: BALANÇO


HISTÓRICO-COMPARATIVO DAS ORIGENS, INFLUÊNCIAS E
TRANSFORMAÇÕES NOS 30 ANOS DE VIGÊNCIA DA
CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA. Luís Fernando Sgarbossa, Geziela Iensue,
250
12. A ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA
EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAUDE: uma análise sob o enfoque
da supremacia judicial. Kélvia Faria Ferreira, Waleska Marcy Rosa, 277

13. REFLEXÕES SOBRE O PODER DE REFORMA AOS 30


ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Hugo César Araújo de Gusmão,
Bruna Santos de Queiroz, 303

14. GESTÃO DEMOCRÁTICA DO ENSINO NA


JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: 30
ANOS DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ. Michelle Asato Junqueira, 331

15. DEMOCRACIA E REPRESENTATIVIDADE EM UM


PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO: BREVE ANÁLISE DO
CASO BRASILEIRO. Lizziane Souza Queiroz Franco de Oliveira, Gustavo
César Machado Cabral, 352

16. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NO


CONTEXTO CONSTITUCIONAL: Efetivação Plena pela Participação
e Fiscalização do Povo aos Atos do Estado na perspectiva do Processo
Democrático. Tiago Henrique Torres, 374

17. A RESSIGNIFICAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE:


da Constituição da República Federativa do Brasil à Lei n. 13.456/2017.
Livia Pitelli Zamarian Houaiss, Caroline Buarque Maciel Andrade, 403
18. UMA PERSPECTIVA AGNÓSTICA PARA A (DIFÍCIL)
CONVIVÊNCIA ENTRE A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A
PRISÃO PREVENTIVA. Cesar Augusto Ferreira São José, 423

19. DEMOCRATIZANDO A INTERPRETAÇÃO


CONSTITUCIONAL NO BRASIL: estamos no caminho certo? (ou:
ainda sobre a vigia dos vigilantes). Luiz Augusto da Silva, 441

20. CONSTITUIÇÃO PARA QUEM? TRINTA ANOS DE


INVISIBILIZAÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS LGBTIs
NO BRASIL. Rafael Carrano Lelis, 465

21. O ESTADO POLUIDOR-PAGADOR: por uma leitura


constitucionalmente adequada da responsabilidade da administração na
tragédia da barragem em Mariana- MG. Tuany Baron de Vargas, 489

22. A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O DIREITO


CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO INCLUSIVA. André Luiz Pereira
Spinielli, 509

23. DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E POLÍTICAS


ECONÔMICAS CONSTITUCIONAIS ESTADUAIS DE TURISMO
DESDE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Fernanda Gurgel
Raposo, 533
24. A PROPORCIONALIDADE NO CONTEMPORÂNEO
DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO: aplicabilidade das
noções de Übermassverbot e Untermassverbot. Leonam Baesso da Silva Liziero,
550

25. DESAFIOS NO ENFRENTAMENTO ÀS VIOLÊNCIAS


CONTRA AS MULHERES: a Constituinte de 1988 a Efetivação das Leis
pelos Operadores do Direito. Aimee Schneider, Rosely Maria da Silva Pires,
560

26. 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E


INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO: do
caso Banestado ao reconhecimento dos poderes implícitos. Lara Pastorello
Panachuk, 576

27. HIPERCONSUMO REVELADOR DA INEFICÁCIA


CONSTITUCIONAL. Leonardo José de Araújo Prado Ribeiro, 594

28. A LIBERDADE RELIGIOSA NOS 30 ANOS DA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Silvia Araújo Dettmer, 615
APRESENTAÇÃO

É com grande satisfação que o Instituto Brasileiro de Pesquisa


Jurídica – IBPJ e os organizadores, neste ano de 2018, trazem a público a
presente obra, intitulada “Direitos Humanos & Fundamentais: Reflexões aos 30
Anos da Constituição Federal e 70 da Declaração Universal”.
A obra buscou reunir reflexões de professores, pesquisadores e
acadêmicos da área do Direito e afins sobre os avanços e retrocessos
experimentados neste período de várias décadas entre aqueles marcos
civilizatórios da humanidade e da sociedade brasileira, apesar de todas as
ameaças e de todas as turbulências experimentadas pelas instituições
democráticas no Brasil e no mundo em anos recentes.
Reúne 30 capítulos da autoria de 45 autores, sendo sua primeira
parte dedicada às reflexões focadas na Declaração Universal de 1948 e a
segunda parte àquelas referentes à Constituição de 1988.
Ficamos profundamente gratos a todos os autores de capítulos
que tornaram a presente obra possível. Contamos com participações
expoentes na área jurídica como convidados especiais, registrando desde
logo nossos penhorados agradecimentos aos Professores José Cretella
Neto e José Delgado pelas contribuições que abrilhantam a presente obra.
Entre os demais autores e convidados, contamos com a
participação de professores pesquisadores e acadêmicos, nomeadamente
de Aimee Schneider, Ana Claudia Moreira Miguel Philippini, André Luiz
Pereira Spinielli, Antonio Henrique Maia Lima, Arlinda Cantero Dorsa,
Bruna Santos de Queiroza, Carolina Alves de Souza Lima, Caroline
Buarque Maciel Andrade, Cesar Augusto Ferreira São José, Claudia
Regiona Oliveira Magalhães da Silva, Fernanda Gurgel Raposo, Geziela
Iensue, Giovana de Carvalho Florencio, Guilherme Gustavo Vasques
Mota, Gustavo César Machado Cabral, Gustavo Ferreira Santos, Hugo
César Araújo de Gusmão, João Paulo Allain Teixeira, João Victos
Acquino, Kélvia Faria Ferreira, Lara Pastorello Panachuk, Leonam Baesso
da Silva Liziero, Leonardo José de Araújo Prado Ribeiro, Lidia Patrícia
Castillo Amaya, Lliana Lyra Jubilut, Livia Pitello Zamarian Houaiss,
Lizziane Souza Queiroz Franco de Oliveira, Luciano Meneguetti Pereira,
Luís Fernando Sgarbossa, Luiz Augusto da Silva, Maria Nazareth da
Penha Vasques Mota, Michelle Asato Junqueira, Rafael Carrano Lelis,
Renato Augusto de Alcântara Philippini, Rosely Maria da Silva Pires,
Rosilandy Carina Candido Lapa, Silvia Araújo Dettmer, Tainara Gomes
Penedo, Thamyris Araújo, Thayliny Zardo, Tiago Henrique Torres, Tuany
Baron de Vargas e Waleska Marcy Rosa.
Como se pode perceber, a obra contou com a participação de
autores de todas as regiões do país e vinculadas, como docentes, discentes
e/ou pesquisadores, às mais variadas instituições de ensino superior, tais
como a Universidade de São Paulo – USP, a Universidade Federal de
Pernambuco – UFPE, a Universidade Federal do Paraná – UFPR, a
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, a Academia
Internacional de Direito Constitucional – AICL (África do Sul), a
Universidade Federal Fluminense – UFF, a Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC/SP, a Universidade Católica Dom Bosco –
UCDB, a Universidade Federal da Bahia – UFBA, a Universidade de
Coimbra (Portugal), a Academia Brasileira de Direito Internacional –
ABDI, a Universidade Federal do Amazonas – UFAM, o Max-Planck-
Institut (Alemanha), a Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, a
Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, a Universidade Federal da
Paraíba – UFPB, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, a
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, a Universidade Federal
de Santa Catarina – UFSC, a Universidade Católica de Santos, a
Universidade Federal do Ceará – UFC, a Universidade Federal Rural do
Semi-Árido – UFERSA, a Universidade Estadual do Amazonas – UEA, a
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, entre outras. Encontram-se
aqui representadas, portanto, todas as regiões do país.
As reflexões dos autores dos capítulos foram ricas e profundas,
abordando os mais variados aspectos ligados aos eixos temáticos da obra.
Assim, na primeira parte da obra, encontramos entre os temas abordados
temas como a importância da Carta Internacional de Direitos Humanos;
as mudanças sofridas pela Constituição Federal de 1988; a importância da
Declaração Universal dos Direitos Humanos; a crítica dos Direitos
Humanos a partir da colonialidade; a cidadania cosmopolita; a declaração
do milênio e a erradicação da pobreza; a necessidade de um Tribunal
Internacional Global de Direitos Humanos; a inefetividade dos Direitos
Humanos; os Direitos Humanos da Criança e do Adolescente; a inclusão
das mulheres nas Forças Armadas, entre outros temas.
Na segunda parte da obra, contemplam-se temas igualmente
relevantes e variados, tais como a memória histórica da Constituição
Federal de 1988; o STF e a efetivação do Direito Fundamental à saúde; o
poder de reforma da Constituição; a gestão democrática do ensino; a
democracia e o presidencialismo de coalizão; as transformações do direito
de propriedade; presunção de inocência e prisão preventiva; a
democratização da interpretação constitucional; os direitos LGBTIs; a
tragédia ambiental da Mariana-MG; a inclusão educacional da pessoa com
deficiência; entre outros.
Registre-se, por oportuno, que aos autores foi conferida a mais
ampla liberdade de fundo e de forma para produzirem seus capítulos, o
que redundou em produções de excelente qualidade e compreensivas de
temas tão variados. Pela mesma razão, apenas pequenas modificações
formais foram realizadas nas produções por eles produzidas, para fins de
conferir certa homogeneidade ao texto, buscando-se sempre prestigiar a
forma adotada pelo próprio autor, pelo que não deve causar
estranhamento ao leitor a presença de certas variações formais ou de
apresentação entre os diversos capítulos.
A obra consubstancia nossa singela contribuição à discussão dos
avanços, retrocessos e desafios que se apresentam localmente e
globalmente aos Direitos Humanos, aos Direitos Fundamentais e às
instituições do Estado Democrático de Direito por ocasião da passagem
de várias décadas da criação da DUDH e da Constituição Federal.
Desejamos a todos(as) uma excelente leitura.

Luís Fernando Sgarbossa


Geziela Iensue
Organizadores
I PARTE
CARTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS: SUA
IMPORTÂNCIA PARA A EXPANSÃO E A CONSOLIDAÇÃO DO
REGIME JURÍDICO DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS
DIREITOS HUMANOS

José Cretella Neto*

1. BREVE SÍNTESE: DO DIREITO INTERNACIONAL CLÁSSICO AOS


DIREITOS HUMANOS

O Direito Internacional clássico é considerado um sistema que fornece preceitos


normativos aos Estados e demais sujeitos de Direito da sociedade internacional, para que a
eles se submetam em suas relações mútuas. Nesse sistema, os principais participantes são
Estados soberanos, embora, em princípio, inexista qualquer motivo para excluir indivíduos
de seu alcance.
Sem dúvida, ao longo do tempo, ocorreu um desvio de finalidade e de objetivos
em relação ao conteúdo e aos sujeitos da disciplina quando comparados à formulação dos
fundadores do Direito Internacional, como Francisco de Vitória (1492-1546) e,
posteriormente, Hugo Grócio (1583-1645), que colocavam o indivíduo no centro das
preocupações da disciplina.
O forte desenvolvimento do positivismo no século 19 implicou em que o Direito
Internacional se ocupasse exclusivamente dos Estados soberanos, então os únicos
“sujeitos” do Direito Internacional, que contrastavam com a situação de Estados não
independentes e indivíduos, considerados “objetos” do Direito Internacional1.
No entanto, a gradual sofisticação da doutrina positivista, combinada com o
aparecimento de novas abordagens conceituais do sistema de relações internacionais,
desfez essa ênfase exclusiva nos Estados, e ampliou os papeis desempenhados por
entidades não-estatais, tais como indivíduos, empresas
Assim, autores clássicos, como Oppenheim, em edição de sua obra atualizada por
Sir Robert Jennings e por Sir Arthur Watts, assim definem o Direito Internacional:

* Mestre, Doutor e Livre-Docente em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de


São Paulo-USP Advogado internacional baseado em São Paulo
1 Shaw, Malcolm N. International Law, 5th ed., Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 44.

~1~
Direitos Humanos & Fundamentais

“the body of rules which are legally binding on states in their intercourse with each other. These
rules are primarily those which govern the relations of states, but states are not the only subjects
of international law. International organizations and, to some extent, also individuals may be
subjects of rights conferred and duties imposed by international law”2.

Contudo, deve-se reparar que nem sempre esse conjunto de normas (body of rules)
será obrigatório ou vinculante (binding) para os Estados, pois determinadas normas criadas
por organizações internacionais nem sempre são obrigatórias, como suas recomendações,
na grande maioria das vezes.
Aliás, a própria questão da obrigatoriedade das normas de Direito Internacional é tema
de intermináveis discussões.
Se aceitarmos que o conteúdo do Direito Internacional tem por finalidade
estabilizar e facilitar apenas as relações interestatais, como se poderá garantir que as
necessidades dos indivíduos que vivem nesses Estados não serão ignoradas ?
O problema não é apenas o de que as normas que disciplinam as relações entre
Estados raramente são criadas para atender às necessidades dos particulares, mas é porque
geralmente os indivíduos recorrem ao seu próprio Estado quando necessitam de proteção
jurídica. Ao mesmo tempo, muitas vezes é em relação aos atos arbitrários de seu próprio
governo que o particular precisa de proteção.
Nesse aspecto, parece claro que o Direito Internacional clássico tem pouco a
oferecer. É verdade que Estados podem celebrar tratados com a finalidade de proteger
grupos religiosos, étnicos ou nacionais de um Estado que vivam em território de outro
Estado, e que tribunais internacionais podem apreciar e julgar questões que envolvem a
aplicação desses tratados. Esse foi, aliás, o sistema usado pelos tratados sobre minorias
adotados no período do entre-guerras e as proteções buscadas foram, em regra,
asseguradas3.
Contudo, esse sistema tinha suas limitações, tendo sido desde logo percebido que
particulares não tinham acesso direto a tribunais – faltava-lhes, assim, locus standi – nem
gozavam de direitos próprios que pudessem ser validamente pleiteados em juízo – ou seja,
mostravam-se desprovidos de jus standi – e, especialmente, não tinham à sua disposição um
sistema de indenização contra atos de seus Estados de origem que lhes violavam direitos.

2 Oppenheim’s International Law (Robert Yewdall Jennings e, Arthur Desmond Watts, atualizs.), 9ª ed., Londres,

Longmans, 1992, pp. 3-4.


3 Fouques-Duparc, Jacques. La Protéction des Minorités de Race, Langue et de Religion, Paris, Dalloz, 1922; Azcárate,

Pablo de. Protection of National Minorities, Nova York, Carnegie Endowment for International Peace, 1967;
Azcárate, Pablo de. The League of Nations and National Minorities: an Experiment (trad. do espanhol por Eileen E.
Brooke), Nova York, Carnegie Endow, 1945.

~2~
Direitos Humanos & Fundamentais

Mesmo durante os períodos de guerras, e o consequente desenvolvimento do


Direito Internacional Humanitário, os direitos dos indivíduos prendiam-se muito mais à
concepção estatocêntrica do Direito Internacional do que à efetiva proteção dos
combatentes enquanto seres humanos.
É preciso reconhecer que o conceito de Direitos Humanos tem uma longa
história, mas é nos escritos da modernidade européia que o debate assume forma mais
consistente.
As revoluções religiosas, científicas e políticas dos séculos 16 e 17 deram início a
um gigantesco movimento no pensamento acerca da natureza dos seres humanos e no
sentido de uma ordem social justa. Dessas transformações culturais emergiu uma profusão
de sofisticadas filosofias que inspiraram a opinião pública e os processos das dramáticas
transformações sociais ocorridas durante os séculos 17, 18 e 19, com especial ênfase nas
Revoluções Francesa e Americana. Esses eventos desaguaram no desenvolvimento de
governos democráticos com base nos Direitos do Homem e não nos direitos supostamente
divinos dos monarcas.
O que diferencia o Direito Internacional contemporâneo da concepção clássica é
fundamentalmente o fato de que grande parte das obrigações criadas é, agora, diretamente
devida ao indivíduo, e não ao governo do Estado do qual é nacional.
Especificamente, a proteção internacional do particular consiste em um sistema
diferente de todos os demais ramos do Direito Internacional e se enquadra no que hoje é
conhecido, nos países de língua portuguesa, como Direito Internacional dos Direitos
Humanos-DIDH, tradução inadequada e sofrível da expressão inglesa International Human
Rights Law, já que “Direito dos Direitos” é algo de difícil compreensão e pouca lógica. Por
essa razão, muitos preferem simplesmente referir-se à disciplina como Proteção Internacional
da Pessoa Humana.
Contudo, ainda hoje é marcante a influência do Direito Natural sobre o Direito
Internacional, inspirado na antiga filosofia grega, nas escrituras judaico-cristãs e no
pensamento jurídico e moral dos romanos4. Embora tenha evoluído de uma concepção
meramente religiosa para a de uma recta ratio, com Grócio (1583-1645), seu foco
antropocêntrico atrai estudiosos de ontem e de hoje.
Entende Bobbio que os Direitos Humanos nascem como direitos naturais
universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrar
plena consolidação como direitos positivos universais. Para o consagrado jusfilósofo

4 Hayden, Patrick. The Philosophy of Human Rights, St. Paul, Minn., Paragon House, 2001, pp. 3-5.

~3~
Direitos Humanos & Fundamentais

italiano, “o maior problema dos Direitos Humanos, atualmente, não é mais o de


fundamentá-los, e sim, o de protegê-los”5.
Essa consolidação, no plano internacional, surgiu em meados do século 20, em
decorrência da gravidade e da extensão dos crimes praticados por dirigentes e militares da
Alemanha e do Japão durante 2ª Guerra Mundial 6, daí ter-se intensificado de forma
acentuada a preocupação da comunidade internacional com a proteção dos Direitos
Humanos, que ganharam foro privilegiado nas discussões acadêmicas e políticas.
Como elegantemente afirmou Dame Rosalyn Higgins, ex-Juíza e ex-Presidente da
Corte Internacional de Justiça, “direitos humanos são direitos que o indivíduo tem apenas
por ser uma pessoa humana”7,.
Ou, dito de outra forma, “Direitos Humanos são normas morais e jurídicas
internacionais que protegem pessoas – simplesmente enquanto pessoas, e não em virtude de
cidadania ou aliança – de abusos sociais, políticos e legais de graves, mas comuns, abusos”8.
Parece-nos equivocado considerar que o Homem tenha “eminente posição no
9
mundo” e, com base nesse duvidoso argumento, mereça ser protegido, a não ser que essa
posição a ele conferida deflua do fato de ser o único ser vivo sobre a face da Terra capaz de
causar-lhe imensa e rápida destruição. Nesse sentido, o ser humano é, mesmo, “eminente”,
pois se destaca das demais espécies, embora de forma negativa. O Homem faz parte da
Natureza, em especial de seu bioma, mas nenhuma forma de vida pode ser considerada
“mais importante” do que outra ou “superior” às demais.
Logo, não é por se constituir em um pretenso “ente superior” que o ser humano
merece proteção e que essa proteção deva independer de sua etnia, convicção religiosa,
nacionalidade, partido político, sexo, ou qualquer outro grupo em que se enquadre. A razão
dessa proteção é a dignidade humana.
Consequentemente, de sua dignidade e dos direitos que lhe são conferidos, não
pode o ser humano ser deles despojado nem por governos nem por outros indivíduos,
nem, tampouco, por qualquer sistema jurídico. Sistemas jurídicos internos não constituem
5 Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos (trad. de Carlos Nelson Coutinho), Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1992,
p. 30.
6 Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 7ª ed., Ed. Saraiva, 2006, p. 115.
7 Higgins, Rosalyn. Problems & Process – International Law and how we Use it, Oxford, Clarendon Press, 2004, p.

96 (“Human rights are rights held simply by virtue of being a human person”).
8 Nickel, James W. The Human Right to a Safe Environment: Philosophical Perspectives on its Scope and Justification, in:

The Philosophy of Human Rights (Patrick Hayden), Paragon House, St. Paul, MN, 2001, pp. 601-617;
também publicado em 18 Yale Journal of International Law 1993, pp. 281-295.
9 Comparato, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, 4ª ed., Saraiva, 2005, p.1. Daí o

equívoco da maioria das religiões, em considerar o Homem como superior a todos os demais seres, em
virtude de sua “racionalidade”. A pergunta é: superior em que ? A racionalidade que o faz construir elaboradas
teorias filosóficas ou compor músicas refinadas é a mesma que provoca conflitos armados de elevado poder
destrutivo, genocídio, bombardeio de populações inocentes e outros tantos flagelos.

~4~
Direitos Humanos & Fundamentais

fonte dos Direitos Humanos no plano internacional, pelo mesmo argumento de que
direitos nacionais não são fonte de Direito Internacional. Essa fonte dos Direitos Humanos
é encontrada no Direito Internacional da Pessoa Humana, embora produza reflexos
profundos nos ordenamentos jurídicos nacionais.
Alguns autores entendem que não pode existir um conceito universal de Direitos
Humanos, pois deve ser reconhecida a existência de grande diversidade cultural no Mundo,
bem como de sistemas políticos10.
Essa é outra visão equivocada dos Direitos Humanos.
A universalidade dos Direitos Humanos decorre da universalidade da dignidade
humana, que independe de leis nacionais, pois que inerente à condição humana.
A maioria dos juristas adota precisamente essa posição, discorrendo apenas sobre
as diferenças que existiriam entre Direitos do Homem, Direitos Fundamentais e Direitos
Humanos. Para Mourgeon, Direitos Humanos (ou Direitos da Pessoa Humana) são aqueles
inerentes tão-somente à condição humana, isto é, aqueles que o ser humano tem
simplesmente por existir, por estar no Mundo como pessoa física e ter dignidade. Já Direitos
do Homem são “prerrogativas, governadas por regras, que a pessoa possui em suas relações
com os particulares e com o Poder”11.
Diferem ambos dos Direitos Fundamentais, que são “os Direitos Humanos
reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o poder político de editar
normas, tanto no interior dos Estados quanto no plano internacional: são os Direitos
Humanos positivados nas Constituições, nas leis, nos tratados internacionais”12. Essa
conceituação segue a doutrina alemã, a qual afirma que “os Direitos Fundamentais, em seu
aspecto formal, nada mais são do que os Direitos Humanos positivados pela
Constituição”13.
Segundo outro enfoque, Direitos Fundamentais podem ser típicos ou atípicos. Os
atípicos seriam os ainda não positivados em textos normativos14.

10 Donoho, Douglas Lee. Relativism versus Unilateralism in Human Rights: The Search for Meaningful Standards, 27-2
Stanford Journal of International Law 1990-91, pp. 345-391; Gros-Espiell, Héctor. The Evolving Concept of
Human Rights: Western, Socialist and Third World Approaches, in: Human Rights: Thirty Years after the Universal
Declaration: Commemorative Volume on the Thirtieth Anniversary of the Universal Declaration of Human
Rights (Bertrand G. Ramcharan, ed.), Haia, Nijhoff, 1979, pp. 41-65.
11 Mourgeon, Jacques. Les Droits de l’Homme, Paris, PUF, 1990.
12 Comparato, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, Op. cit., pp. 57-58. Vide, também, para

uma profunda diferenciação entre Direitos do Homem, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos,
Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, Op. cit., pp. 896-897, entendendo que é mais
importante admitir a interação entre esses direitos, a fim de que todas as pessoas (pertencentes ou não ao
Estado em que se encontrem) sejam protegidas.
13 Stern, Klaus. Handbuch des Staatsrechts, Band 5, Allgemeine Grundrechtslehren, Heidelberg, C.F. Müller

Verlag, 1992, p. 20.


14 Gouveia, Jorge Bacelar. Os Direitos Fundamentais Atípicos, Lisboa, Aequitas/Editorial Notícias, 1985, p. 58.

~5~
Direitos Humanos & Fundamentais

Os principais Direitos Fundamentais são o direito à vida, talvez o primeiro dos


Direitos do Homem (embora não expressamente citado pela Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789, mas implicitamente reconhecido no texto), o princípio da
igualdade, os direitos de natureza política e os direitos de natureza econômica15.
É preciso, no entanto, não perder de vista a origem desses direitos e a forma de
designá-los. Recorde-se que a política e as relações internacionais do pós-guerra ficaram
caracterizadas pela bipolaridade Leste-Oeste. Essa visão dicotômica dividiu os Direitos
Humanos em Direitos Civis e Políticos (Civil and Political Rights), de um lado, e Direitos
Sociais e Econômicos (Social and Economic Rights), de outro. O conflito ficou evidente
inclusive na nomenclatura das categorias de direitos: enquanto os EUA enfatizaram o
primeiro grupo, já que o consideram como parte integrante de sua herança liberal, a ex-
URSS priorizou os Direitos Sociais e Econômicos, de acordo com a teoria marxista.
É preciso não perder de vista que, não há muito tempo – no século 19, mais
precisamente –, as doutrinas positivistas da soberania estatal e da jurisdição doméstica
dominavam completamente o pensamento jurídico.
Praticamente todos os temas que hoje enquadraríamos na ampla rubrica “Direitos
Humanos” eram, na época, remetidos à esfera do Direito interno de cada Estado. As
principais exceções eram a pirataria jure gentium e a escravidão16. Quanto a este último crime,
uma série de tratados foram concluídos visando sua abolição.
O século 19 testemunhou o surgimento de tratados e atos unilaterais de Estados
que vedavam o comércio de escravos, bem como a proibição à denegação de justiça, além
de atos estatais, baseados em preocupações com os Direitos Humanos, que reconheciam
Estados e governos estrangeiros17.
Em 25.03.1807, por exemplo, por iniciativa do parlamentar inglês Sir William
Wilberforce (1759-1833), o Parlamento aprovou o Slave Trade Act, lei que proibia o tráfico
de escravos no Império Britânico. Como lei interna, no entanto, somente valia para os
súditos de Sua Majestade britânica.
Surgia também, na época, a preocupação com o tratamento dos soldados doentes
e feridos de guerra, bem como com os prisioneiros, exigindo-se dos Estados padrões
mínimos de tratamento dos estrangeiros capturados durante as batalhas.
Um marco importante ocorreu com a criação da Sociedade das Nações em 1919.

15 Israel, Jean-Jacques. Droit des Libertés Fondamentales, L.G.D.J., Paris, 1998, pp. 21-22.
16 Cretella Neto, José. Curso de Direito Internacional Penal, 2ª ed., Ed. Saraiva, 2014, pp. 438-456 (pirataria) e pp.
477-493 (escravidão).
17 Grewe, Wilhelm Georg. Epochen der Völkerrechtsgeschichte, 2ª ed., Berlim, Nomos Verlag, 1988.

~6~
Direitos Humanos & Fundamentais

Recorde-se que a Sociedade das Nações foi criada por um Pacto, anexo ao
Tratado de Versalhes, de 28.04.191918, que previa uma estrutura complexa baseada no
equilíbrio entre os interesses das grandes e pequenas potências da época. A organização
passou a funcionar em Genebra, e corresponde ao ideal wilsoniano expresso na mensagem
do Presidente Thomas Woodrow Wilson (1856-1924) ao Congresso norteamericano,
enviada em 09.01.1918.
O Artigo 22 do Pacto da SdN estabeleceu um sistema de mandatos aplicáveis às
pessoas das ex-colônias e territórios inimigos que, em consequência da guerra, “cessaram
de estar sob a soberania dos Estados que precedentemente os governavam e são habitados
por povos ainda incapazes de se dirigirem por si próprios nas condições particularmente
difíceis do mundo moderno”. E o Artigo 23 do Pacto estabelecia, para o sistema de
Mandato, um “tratamento equitativo das populações indígenas dos territórios submetidos à
sua administração”.
A Parte XIII do Tratado de Versalhes previa a criação da Organização
Internacional do Trabalho-OIT, a qual tinha, entre outras funções, a promoção de
melhores padrões e condições de trabalho, bem como apoio ao direito de associação.
Sem dúvida, o impulso decisivo para o desenvolvimento dos Direitos Humanos
foi o impacto causado pelas atrocidades cometidas pela Alemanha e pelo Japão durante a 2ª
Guerra Mundial.

2. A CARTA E OS PACTOS

Desde sua criação, em 24.10.1945, as Nações Unidas têm se esforçado para


assegurar a promoção e a proteção dos Direitos Humanos em escala mundial.
Inúmeras são as menções aos Direitos Humanos na Carta das Nações Unidas.
Já no Preâmbulo, reafirma “a fé nos direitos fundamentais do homem, na
dignidade e no valor do ser humano”.
O Artigo 1.3 dispõe que a ONU tem como uma de suas missões a de “promover
e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem
distinção de raça, sexo, língua ou religião”.
Se a manutenção da paz mundial é o objetivo primordial da ONU, a proteção aos
Direitos Humanos segue de muito perto a lista de prioridades da organização.

18O Tratado de Versalhes foi sancionado, no Brasil, pelo Decreto nº 3.875, de 11.11.1919; publicado no
DOU no dia seguinte; ratificado pelo Brasil em 10.12.1919; depósito da ratificação em Paris, em 10.01.1920;
promulgado, no Brasil, pelo Decreto nº 13.990, de 12.01.1920.

~7~
Direitos Humanos & Fundamentais

Com efeito, veja-se que o Artigo 55 estabelece que “as Nações Unidas
favorecerão: ... ... c) o respeito universal e efetivo para todos, sem distinção de raça, sexo,
língua ou religião”.
E o Artigo 56 prevê que, “para a realização dos propósitos enumerados no Artigo
55, todos os Membros da Organização se comprometem a agir em cooperação com esta,
em conjunto ou separadamente”.
A partir da Carta da ONU, pode-se dizer que o marco normativo pioneiro desse
esforço de proteção ao ser humano foi, sem dúvida, a adoção, pela Assembleia Geral, em
10.12.1948, por meio da Resolução 217 (III) A, da Declaração Universal dos Direitos
Humanos.
É preciso, no entanto, notar que sua natureza jurídica – declaração – é a de um ato
jurídico produzido por uma organização internacional de caráter não obrigatório, da mesma
forma que uma recomendação19.
Resultado de tentativas de abrandamento das tensões internacionais durante a
Guerra Fria, encontrou-se, pouco mais tarde, uma solução de compromisso para o conflito
entre as duas categorias de direitos: da tentativa de consolidar a aplicação da Declaração
dos Direitos do Homem, de 1948, conferindo aos Direitos Humanos mais eficácia jurídica,
resultaram duas convenções internacionais, abrangendo esses grandes grupos de direitos: o
Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos20 e o Pacto Internacional sobre os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais21, ambos adotados pela resolução 2.200-A, da Assembléia Geral
das Nações Unidas, em 16.12.196622.
Destaquem-se, ainda, o Primeiro Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os
Direitos Civis e Políticos, também aprovado pela mesma resolução 2.200-A, em 16.12.1966,
em vigor internacionalmente a partir de 23.03.1976; e também o Segundo Protocolo Facultativo
ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, em 15.12.1989, em vigor
internacionalmente a partir de 11.07.1991 23.
Isso significa que, se um dos objetivos centrais das Nações Unidas é o de
promover a proteção dos seres humanos, este pode até mesmo servir para justificar o uso

19 Para uma discussão sobre o significado e o valor jurídico dos atos normativos das organizações
internacionais, vide Cretella Neto, José. Teoria Geral das Organizações Internacionais, 3ª ed., Ed. Saraiva, 2013, pp.
409 e ss.
20 Entrou em vigor internacionalmente em 23.03.1976. Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 226, de

12.12.1991; promulgado pelo Decreto nº 592, de 06.07.1992. Entrou em vigor, para o Brasil, em 24.04.1992.
21 Entrou em vigor internacionalmente em 03.01.1976. Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 226, de

12.12.1991; promulgado pelo Decreto nº 591, de 06.07.1992. Entrou em vigor, para o Brasil, em 24.04.1992.
22 Modell, Flávia Leda. Direitos Civis e Políticos e Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: Dicotomia ou Integração,

disponível em www.cjf.gov.br/revista/numero10/artigo15.htm.
23 Ambos aprovados pelo Decreto Legislativo nº 311, de 16.06.2009, data em que entraram em vigor no

Brasil.

~8~
Direitos Humanos & Fundamentais

da força em casos especiais, o que tem significativo impacto no entendimento e nas normas
do Direito Internacional Humanitário, permitindo intervenção no interior de territórios de
Estados nos quais indivíduos corram perigos iminentes24.
Em conjunto com os Artigos 1.3, 55 e 56 da Carta da ONU, formam a chamada
“Carta dos Direitos do Homem” (em inglês, International Bill of Rights), a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, o Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto
sobre os Direitos Sociais e Econômicos, já mencionados.
Esses documentos lançaram os fundamentos para a aprovação de uma série de
instrumentos internacionais, tais como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as
Formas de Discriminação Racial 25, a Convenção Internacional contra todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher26, e a Convenção sobre os Direitos da Criança27.
Não há dúvida de que esses tratados nada têm de triviais e representam uma
dramática reviravolta na natureza do sistema jurídico internacional, na medida em que
enfatizam a importância dos direitos dos indivíduos, erigindo-os ao patamar de valores
centrais desse sistema jurídico, na medida em que esses valores desafiam a primazia do
conceito clássico de soberania, bem como da frequentemente violenta paz que à qual essa
soberania se destina a impor (pelo menos no âmbito da Carta da ONU).
De qualquer modo, já não tem mais sentido falar em “relativização dos Direitos
Humanos”, ou de que cada Estado pode implementar os tratados internacionais sobre o
tema conforme seu sistema político e formação cultural. Particularmente após o
esfacelamento do mundo comunista europeu, no início da década de 1990, entende-se que
os Estados podem implementar os Direitos Humanos de modos diferentes – por meio de
legislação ordinária, da Constituição ou com base na lei costumeira – mas o conteúdo daquilo
que deve ser implementado tem por base padrões internacionais e não varia de um país
para outro.

24 Fichtelberg, Aaron. International Law at the Vanishing Point: A Philosophical Analysis of International Law,

Aldershot, Inglaterra, Ashgate Publishers, 2008, p. 114.


25 Aprovada pela Resolução 2106 (XX), da Assembleia Geral, de 21.12.1965. Entrou em vigor

internacionalmente e também para o Brasil em 04.01.1969. Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo nº
23, de 21.06.1967; promulgada pelo Decreto nº 65.810, de 08.12.1969.
26 Aprovada pela Resolução 34/1980, da Assembleia Geral, de 18.112.1979. Entrou em vigor

internacionalmente em 02.09.1990. Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo nº 28, de 14.09.1990;


promulgada pelo Decreto nº 99.710, de 21.11.1990. Entrou em vigor para o Brasil em 23.10.1990.
27 Aprovada pela Resolução 44/25, da Assembleia Geral, de 20.11.1989. Entrou em vigor internacionalmente

em 03.07.1981. Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo nº 93, de 14.11.1983; promulgada pelo Decreto
nº 89.460, de 20.03.1984. Entrou em vigor para o Brasil em 02.03.1984, com reservas aos Artigos 15.4, e 16.1,
alíneas (a), (c), (g) e (h). Posteriormente, o Decreto Legislativo nº 26, de 22.06.1994, revogou o citado
Decreto Legislativo nº 93, aprovando a Convenção, inclusive os citados Artigos 15.4 e 16.1, alíneas (a), (c), (g)
e (h), retirando as reservas em 20.12.1994. Também o Decreto nº 89.460 foi revogado pelo Decreto nº 4.377,
de 13.07.2002. A Convenção já havia entrado em vigor, para o Brasil, em 02.03.1984, com a reserva facultada
no Artigo 29.2, mas, atualmente, encontra-se integralmente em vigor no País.

~9~
Direitos Humanos & Fundamentais

As obrigações do Estado em relação aos Direitos Humanos no plano civil e


político diferem das obrigações relativas aos direitos econômicos, sociais e culturais. No
primeiro caso, a obrigação fica cumprida quando o Estado se abstém de praticar
determinada conduta, como quando não interfere com o exercício do direito à livre
expressão. Ou seja, a obrigação é satisfeita por meio de uma abstenção. Já no segundo caso, o
Estado deve agir, como quando provê educação e saúde condignas para seus habitantes. São
obrigações cumpridas, portanto, respectivamente, de forma negativa ou positiva. Sem dúvida,
os Direitos Humanos incluem tanto o direito à livre expressão quanto o direito à educação
de qualidade, mas as obrigações do Estado são cumpridas de modo diverso.
Casos que parecem de obrigação negativa, no entanto, podem exigir ação do
Estado, como na proibição da tortura, que, para ser evitada, demanda educação e
treinamento adequado das forças policiais e dos guardas de prisão, que devem estar
familiarizados com o Direito Internacional, especialmente com as Normas-Padrão
Internacionais Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros (Standard International Minimum
Rules for the Treatment of Prisoners)28. E, quando ocorrerem violações às normas que proíbem a
tortura, deve ser possível julgar e punir rápida e justamente os agressores.
Discutiu-se longamente sobre se os Direitos Humanos seriam inatos, positivos,
históricos, ou se teriam origem em algum sistema moral, polêmica que, embora menos
intensa, hoje, ainda permanece latente no pensamento jurídico contemporâneo.

3. A CARTA DE 1948: NÃO OBRIGATÓRIA, MAS DOTADA DE INEGÁVEL


FORÇA MORAL E OS PACTOS DE 1966

Muitos Estados não assinaram e/ou ratificaram os Pactos Internacionais. Assim


sendo, a Declaração Universal pode ser o único instrumento jurídico aplicável, em alguns
casos.
Além disso, deve ser notado que tem sido usada como fundamento para as
constituições e outros documentos de base quando da criação de novos Estados quando de
seu processo de descolonização.
Outra característica da Carta é que tem servido de referência para a adoção de
grande parte das convenções internacionais de Direitos Humanos, tornando-se assim, um

28Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e do Tratamento dos
Criminosos, realizada em Genebra em 1955 e aprovadas pelo ECOSOC por meio das resoluções 663
(XXIV), de 31.07.1957 e 2076 (LXII), de 13.05.1977.

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Direitos Humanos & Fundamentais

marco legal obrigatório nesse campo jurídico, embora possivelmente seus idealizadores não
imaginassem o alcance que esse instrumento atingiria décadas mais tarde.
Pode-se fazer uma breve análise da Declaração Universal de 1948 em conjunto
com os Pactos Internacionais de 1966.
Primeiramente, observe-se que a Declaração enfatiza, no Preâmbulo, que “o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus
direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
Enquanto se reconhece amplamente a importância dos Direitos Humanos na
estrutura jurídica internacional, nota-se considerável confusão quanto à sua precisa
natureza e seu papel no Direito Internacional29.
A questão do que realmente significa um “direito” é, em si, controversa e sujeita a
intenso debate jurisprudencial30.
Alguns “direitos”, por exemplo, são estabelecidos para imediata execução por
meio de obrigações assumidas pelos Estados Partes, outros meramente especificam um
possível futuro padrão de comportamento dos signatários de determinado tratado.
Compare-se, nessa linha de argumentação, os textos do Artigo 2 do Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos 31 com o do Artigo 2 do Pacto Internacional sobre os
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais32.

29 Vide, por exemplo, a respeito, Moskowitz, Moses. The Politics and Dynamics of Human Rights, Nova York,

Dobbs Ferry, Oceana Publishers, 1968, pp. 98-99; e McDougal, Myres Smith, Lasswell, Harold Dwight e
Longzhi, Chen. Human Rights and World Public Order, 2ª ed., New Haven, Yale University Press, 1980, pp. 63-
68.
30 Vide, a respeito, por exemplo, Hohfeld, Wesley Newcomb. Some Fundamental Legal Conceptions as Applied to

Judicial Reasoning, 23 Yale Law Journal 1913, pp. 295-321; e Cranston, Maurice William. What are Human Rigths
?, Londres, The Bodley Head, 1973.

31 “1. Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que

se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto,
sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra
natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição. 2. Na ausência de
medidas legislativas ou de outra natureza destinadas a tornar efetivos os direitos reconhecidos no presente
Pacto, os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a tomar as providências necessárias com vistas
a adotá-las, levando em consideração seus respectivos procedimentos constitucionais e as disposições do
presente Pacto. 3. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a: a) Garantir que toda pessoa,
cujos direitos e liberdades reconhecidos no presente Pacto tenham sido violados, possa de um recurso
efetivo, mesmo que a violência tenha sido perpetra por pessoas que agiam no exercício de funções oficiais; b)
Garantir que toda pessoa que interpuser tal recurso terá seu direito determinado pela competente autoridade
judicial, administrativa ou legislativa ou por qualquer outra autoridade competente prevista no ordenamento
jurídico do Estado em questão; e a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; c) Garantir o
cumprimento, pelas autoridades competentes, de qualquer decisão que julgar procedente tal recurso”.
32 “1. Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio

como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o
máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios
apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a
adoção de medidas legislativas. 2. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir que os
direitos nele enunciados e exercerão em discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião,

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Direitos Humanos & Fundamentais

Os problemas referentes à execução (enforcement) e às sanções em relação aos


Direitos Humanos no plano internacional constituem questões que influenciam a própria
caracterização do fenômeno33.
Alguns autores34 consideram a alta incidência de violações às normas (rights) de
Direitos Humanos como prova de práticas estatais que negam a existência de princípios
dos Direitos Humanos no Direito Internacional (law). Sem dúvida, ocorrem todos os dias
violações às normas de Direitos Humanos, mas essa tese não é apenas avaliada como
academicamente incorreta como também se revela profundamente negativa 35.
Não há dúvida de que o conceito de Direitos Humanos está intimamente ligado à
ética e à moralidade. E os direitos que refletem os valores de determinada comunidades são
os que têm maiores probabilidades de ser respeitados. Direitos positivos podem ser
incluídos em determinado sistema jurídico, quer reflitam ou não considerações de ordem
moral, enquanto direitos calcados na moralidade – como os afirmados pela Declaração
Universal – não serão necessariamente obrigatórios, ou seja, impostos pela lei36.
É bastante fácil e imediato identificar os direitos positivos, mas o mesmo não se
passa com a dedução do que sejam direitos baseados na moral, pois dependem da
percepção e dos valores daqueles que os buscam.
De qualquer modo, consolidou-se, na melhor doutrina, que as principais
características dos Direitos Humanos são, pelo menos, as seguintes37:

1. historicidade (são direitos construídos ao longo do tempo, principalmente a partir


do final da 2ª Guerra Mundial);
2. universalidade (seus titulares são todas as pessoas, bastando que apresentem a
condição de “ser humano”);
3. essencialidade (representam os valores supremos do ser humano, estando ou não
insculpidos em Constituições ou em quaisquer outras leis);

opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer
outra situação. 3. Os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos humanos
e a situação econômica nacional, poderão determinar em que garantirão os direitos econômicos reconhecidos
no presente Pacto àqueles que não sejam seus nacionais”.
33 Ampla discussão a respeito em Dinah Shelton. Remedies in International Human Rights Law, 2ª ed., Oxford,

Oxford University Press, 2005.


34 Watson, J. S. Legal Theory, Efficacity and Validity in the Development of Human Rights Norms in International Law,

University of Illinois Law Forum, 1979, p. 609; Watson, J. S. Legal Autointerpretation, Competence and the
Continuing Validity of Article 2(7) of the UN Charter, 71 American Journal of International Law 1977, 60.
35 Higgins, Rosalyn. Reality and Hope and International Human Rights: A Critique, 9 Hofstra Law Review 1981, pp.

1485-1499.
36 Shaw, Malcolm. International Law, 5ª ed., Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 248.
37 Por todos, Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 10ª ed., Ed. Revista dos

Tribunais, 2016, pp. 899-901.

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Direitos Humanos & Fundamentais

4. irrenunciabilidade (não podem ser violados nem mesmo por autorização de seu
titular);
5. inalienabilidade (não podem ser transferidos nem cedidos a outrem, gratuita ou
onerosamente, nem mesmo com o consentimento de seu titular, sendo ainda
indisponíveis e inegociáveis);
6. inexauribilidade (não apenas não podem ser reduzidos, mas têm a possibilidade
de ser expandidos a qualquer tempo);
7. imprescritibilidade (o titular pode exercê-los a qualquer tempo, não sendo
atingidos pela prescrição);
8. vedação ao retrocesso (devem sempre agregar algo mais e melhor ao ser humano, não
podendo o estado proteger menos do que já protegia anteriormente).

4. A CARTA COMO ORIGEM DE DIVERSOS TRATADOS E DECLARAÇÕES


INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

O Direito Internacional da Pessoa Humana regulamenta o tratamento dispensado


pelos Estados aos indivíduos que se encontram sob sua jurisdição.
O atual regime internacional dos Direitos Humanos consiste, principalmente, em
convenções que proíbem:

 o genocídio (Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio,


concluída em Paris, por iniciativa das Nações Unidas, em 11.12.1948 38);
 a discriminação racial (Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial, concluída em Nova York, em 07.03.196639);
 a discriminação contra as mulheres (Convenção sobre a Eliminação de todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres, adotada pela resolução 34/180 da
Assembléia Geral, em 18.12.197940);
 a tortura (Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos
ou Degradantes foi concluída em Nova Iorque, em 10.12.1984 41);

38 Aprovada no Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 2, de 11.04.1951; promulgada pelo Decreto nº
30.822, de 06.05.1952.
39 Aprovada no Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 23, de 21.06.1967; promulgada pelo Decreto nº

65.810, de 08.12.1969.
40 1249 UNTS (1984), p. 13.
41 1465 UNTS (1987), p. 112. O Congresso Nacional aprovou a Convenção por meio do Decreto Legislativo

nº 04, de 23.05.1989; a Carta de Ratificação da Convenção foi depositada pelo Brasil em 28.09.1989; entrou

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Direitos Humanos & Fundamentais

 a escravidão (Convenção sobre a Escravatura, concluída em Genebra, em


25.09.1926, sob os auspícios da Sociedade das Nações, emendada pelo Protocolo,
de 07.12.195342, também reforçou a condenação ao tráfico de escravos, objeto
também do Protocolo de Nova York, de 04.05.1949, aos instrumentos de 1904 e
de 1910; também a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico
de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura 43, concluída em
Genebra, em 07.07.1956),

Além de assegurar:

 Direitos civis e políticos (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, assinado
em Nova York, em 12.1966);
 Direitos econômicos, sociais e culturais (Pacto Internacional sobre os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, assinado em Nova York, em 19.12.1966); e
 Direitos das crianças (Convenção sobre os Direitos da Criança, de 20.11.198944).

Além disso, compõe esse quadro um amplo conjunto de convenções


internacionais regionais que tratam dos mesmos temas, adaptando o tratamento jurídico a
espaços específicos, como as Américas, a Europa, a África e a Ásia.
Esses tratados impõem aos signatários a obrigação de proteger as pessoas
humanas que se situam em seus territórios, e muitos instrumentos também criam
mecanismos e órgãos de monitoramento destinados ao cumprimento (compliance) dessas
obrigações.
O que de realmente significativo ocorreu após o final do segundo conflito
mundial, no plano da proteção à pessoa humana, foram o empenho da comunidade
internacional em concluir tratados multilaterais regulamentando condutas reprováveis e

em vigor para o País em 28.10.1989, na forma do Artigo 27.2; promulgada pelo Decreto Presidencial nº 40,
de 05.02.1991.
42 212 UNTS (1955), p. 17. O Decreto Legislativo nº 66, de 14.07.1965, aprovou a Convenção Sobre a

Escravatura, assinada em Genebra, em 1926, e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de
Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, de 1956. Ambas as Convenções entraram em vigor,
para o Brasil, em 06.01.1966, promulgadas pelo Decreto nº 58.563, de 01.06.1966. Em 06.01.1966 havia sido
depositado o instrumento brasileiro de adesão, junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas.
43 226 UNTS (1956). Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 66, de 14.07.1965. Também promulgada, no

Brasil, por meio do referido Decreto nº 58.563, de 01.06.1966. Depósito do instrumento brasileiro de adesão
junto à Organização das Nações Unidas e entrada em vigor, para o Brasil, em 06.01.1966.
44 Promulgada no Brasil pelo Decreto n° 28, de 14.09. 1990. A Convenção sobre os Direitos da Criança entrou em

vigor internacionalmente em 02.09.1990.

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Direitos Humanos & Fundamentais

criminosas, bem como a iniciativa de criar instituições permanentes, assim como


mecanismos voltados exclusivamente para assegurar essa proteção.
O moderno Direito Internacional desenvolveu sistemas e mecanismos que
promovem a regulamentação jurídica de diversos fenômenos internacionais, não apenas
relativamente aos Direitos Humanos – tais como comércio, navegação, transportes,
propriedade intelectual, proteção ao meio ambiente – que já existiam antes, mas, agora, a
vasta escala, a complexidade e a intensidade com que foram estabelecidos, de forma
sistemática e concertada, contrastam com os esforços isolados, características do período
anterior.
É interessante observar a elevada percentagem de Estados que subscreveram esses
tratados, em relação à totalidade de Estados-Membros das Nações Unidas:

Participação dos Estados em Tratados sobre Direitos Humanos


(em 30.09.2015)
Tratado Entrada em Número de Percentagem
Vigor Estados ONU
que ratificaram
Convenção para a Prevenção e a
Repressão do Crime de Genocídio 1951 146 75,65
Convenção Internacional sobre a
Eliminação de Todas as Formas 1969 177 91,71
de Discriminação Racial
Pacto Internacional sobre Direitos 1976 168 87,05
Civis e Políticos
Pacto Internacional sobre os
Direitos Econômicos, Sociais e 1976 164 84,97
Culturais
Convenção sobre a Eliminação de
todas as Formas de Discriminação 1976 189 97,93
contra as Mulheres
Convenção contra a Tortura e
outras Penas ou Tratamentos 1987 158 81,87
Cruéis, Desumanos ou
Degradantes
Convenção sobre os Direitos da 1990 193 100
Criança

~ 15 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Contudo, a maciça participação dos Estados nas principais convenções


internacionais, nem de longe reflete sua efetiva atuação no campo dos Direitos Humanos,
pois cada governo acomoda seus objetivos políticos da forma como bem entende e, entre o
discurso oficial e a prática, muitas vezes a distância é enorme45.

5. AS PRINCIPAIS CONDUTAS VIOLADORAS DOS DIREITOS HUMANOS

5.1. Crimes Internacionais que Violam Direitos Humanos

A maioria dos crimes internacionais viola direitos da pessoa humana, mas isso
nem sempre ocorre.
Algumas ações envolvendo pirataria em alto-mar – quando dirigidas
exclusivamente contra bens – como tráfico de drogas, mercenarismo, falsificação de
moeda, corrupção e lavagem de dinheiro, por exemplo, via de regra não atentam diretamente
contra os Direitos Humanos.
Pode ocorrer que isso se dê quando praticados alguns atos conexos a esses crimes,
como quando piratas tomam reféns a bordo, ou quando traficantes e mercenários
sequestram pessoas, mas esses atos incidentais não são da essência desses crimes.
Já a maioria dos crimes internacionais, na realidade, viola Direitos Humanos
fundamentais, como veremos a seguir.
E, na tipificação dos crimes internacionais mencionados, podemos isolar
determinadas condutas que se desdobram em dezenas de ações de violência material e/ou
psicológica contra as vítimas.

5.2. Crimes contra a Humanidade

Os crimes contra a Humanidade há muito já eram objeto de definição nos Estatutos


do Tribunal Militar Internacional de Nurembergue (Artigo 6) e do Tribunal Militar
Internacional de Tóquio (Artigo 5). Foram depois tipificados pelo Artigo 5 do Estatuto do
Tribunal Penal para a ex-Iugoslávia-TPI-ex-I e pelo Artigo 3 do Estatuto do Tribunal Penal
para Ruanda-TPIR.

45Goldsmith, Jack L. e Posner, Eric A. The Limits of International Law, Oxford, Oxford University Press, 2005,
pp. 107-110.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Também foram minuciosamente descritos no Artigo 7 do Estatuto do Tribunal


Penal Internacional, aprovado em Roma, em 17.07.1998 46.
Entre as condutas não criminosas estão todas aquelas que exercem alguma
influência para tornar a vida humana indigna, insuportável ou humilhante. Privar alguém de
ter acesso à educação fundamental de qualidade, à saúde apropriada, à moradia condigna, a
um emprego regular, situações que ocorrem, via de regra, pela ação danosa ou por simples
omissão dos Estados.
Além desse crime, o Estatuto de Roma de 1998 tipifica genocídio (Artigo 6) e crimes
de guerra, deixando para ser definido, ao ser aprovado, o crime de agressão em momento
posterior, estabelecido em sete anos após a entrada em vigor da Convenção (Artigos 121 e
123 do Estatuto).

5.3. Genocídio

O termo genocídio (do grego genos = espécie, raça, tribo + latim cide = matar) foi
cunhado pelo advogado polonês Raphael Lemkin durante a 2ª Guerra Mundial, para
descrever os crimes cometidos pelos nazistas contra determinados grupos étnicos, como os
judeus e os ciganos. Lemkin definiu genocídio como “o conjunto de ações destinadas à
destruição das bases essenciais para a vida de um grupo, orientadas por um plano de
aniquilamento desse grupo”47.
A nova palavra passou a ser empregada para designar uma prática antiga, agora em
contexto contemporâneo48.
Embora prática antiga, foi a partir da 2ª Guerra Mundial que se passou a
considerar o genocídio como uma clara ameaça à paz e à segurança da Humanidade. Isso
ocorre porque grupos ameaçados de extermínio e aqueles que saem em sua defesa são
obrigados a se armar para legitimamente defender-se. Os que sobrevivem a esses pogroms,
frequentemente se vêm motivados por um desejo de vingança contra os que praticaram o
genocídio, para que “nunca mais” esse crime bárbaro seja perpetrado contra aquele grupo.
Isso ocorreu na Europa, efetivamente, durante a 2ª Guerra Mundial e mais tarde,
no Paquistão e na Região dos Grandes Lagos, na África. Essas atividades não apenas

46 Aprovado pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo nº 112, de 06.06.2002; promulgado pelo

Decreto nº 4.388, de 25.09.2002; entrou em vigor internacionalmente em 01.07.2002 e para o Brasil em


01.09.2002.
47 Lemkin, Raphael. Axis Rule in Occupied Europe: Laws of Occupation – Analysis of Government – Proposals for

Redress, Washington, D.C., Carnegie Endowment for International Peace, 1944, p. 79.
48 Outro termo poderia ser usado para expressar a mesma idéia: etnocídio, formada pelas palavras ethnos =

nação, em grego + a palavra latina cide.

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Direitos Humanos & Fundamentais

perturbam a paz na região e nas regiões vizinhas, mas podem ameaçar a paz de todo o
planeta.
Graças, em grande parte, aos esforços de Lemkin, as condutas que caracterizam o
genocídio foram incluídas na descrição dos crimes de que foram acusados os principais
criminosos de guerra nazistas49.
O crime não havia sido tipificado com essa denominação no Estatuto do Tribunal
de Nurembergue (Artigo 6) nem no do Tribunal Militar de Tóquio (Artigo 5), que definiam
exclusivamente crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a Humanidade, sendo,
contudo, definido na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, concluída
em Paris, por iniciativa das Nações Unidas, em 11.12.1948 50, primeiro tratado multilateral a
respeito de um crime internacional a entrar em vigor na História.
Em sentido lato, o genocídio é, evidentemente, um crime contra a Humanidade, na
medida em que repugna profundamente a consciência jurídica da sociedade internacional.
Contudo, crimes contra a Humanidade é expressão técnica, que designa conduta específica,
descrita em diversos tratados internacionais e nas resoluções da ONU que criaram os
tribunais ad hoc para a ex-Iugoslávia (Artigo 5) e Ruanda (Artigo 3).
Diferencia-se do genocídio, pois este é dirigido contra grupo específico de pessoas,
que têm em comum a crença religiosa, a etnia, a filiação política, etc., enquanto que, nos
crimes contra a Humanidade, as ações criminosas podem ser dirigidas contra diversos
segmentos da população.
O crime de genocídio foi descrito no Artigo 2 da referida Convenção para a Prevenção
e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948. Aqui, o objeto jurídico internacionalmente
protegido é o direito de certos grupos de existir, conforme estabeleceu a Corte Internacional de
Justiça, no Parecer consultivo proferido a respeito do Caso Reservas à Convenção para a
Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, em 28.05.195151.

49 Schwarzenberger, Georg. Power Policy: a Study of International Society, 2ª ed., Londres, Stevens & Sons, 1951, p.

634.
50 Aprovada no Brasil pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 2, de 11.04.1951 e

promulgada pelo Decreto nº 30.822, de 06.05.1952. O Brasil depositou o instrumento de ratificação em


Nova Iorque em 15.04.1952. Atualmente, o genocídio está tipificado, no Brasil, na Lei nº 2.889, de
01.10.1956. Atualmente, o genocídio está tipificado, no Brasil, na Lei nº 2.889, de 01.10.1956. Essa lei tipifica
o genocídio no art. 1º: “Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico,
racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental
de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de
ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no
seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo”. As punições
previstas são as seguintes: com as penas do art. 121, § 2º, do Código Penal, no caso da letra a; com as penas
do art. 129, § 2º, no caso da letra b; com as penas do art. 270, no caso da letra c; com as penas do art. 125, no
caso da letra d; com as penas do art. 148, no caso da letra e.
51 ICJ Reports 1951, p. 23.

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Direitos Humanos & Fundamentais

O genocídio é tipificado igualmente no Artigo 4.2 do Estatuto do Tribunal Penal


para a ex-Iugoslávia e no Artigo 2.2 do Estatuto do Tribunal Penal para Ruanda.

5.4. Crimes de Guerra

A expressão “crimes de guerra” tem sido empregada em contextos diversos,


muitas vezes com significados contraditórios.
Para alguns, esses crimes compreendem um grande leque de condutas, praticadas
durante conflitos armados, enquanto que para outros, “crimes de guerra” são todas as
violações ao Direito Internacional Humanitário, sejam ou não condutas delituosas52.
Os crimes de guerra foram tipificados no Artigo 6 do Estatuto do Tribunal Militar
de Nurembergue e no Artigo 5 do Estatuto do Tribunal Militar de Tóquio, mas não nos
Estatutos do TPI-ex-I nem do TPIR. São objeto de extensa definição no Artigo 8.2 do
Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.

5.5. Agressão

A definição do crime de agressão, no Direito Internacional, foi sempre objeto de


intensas discussões e profundos desacordos, desde a Minuta do Protocolo de Genebra, de
02.10.1924, que nunca entrou em vigor.
Registra-se outra tentativa de definição, com os Tratados de Locarno, de 16.10.1925,
que entraram em vigor em 14.09.1926.
O referido Protocolo de Genebra continha a obrigação de “não recorrer à guerra
em caso algum” e, em 25.09.1925, a 6ª Assembléia da Sociedade das Nações adotou uma
resolução que estabelecia ser a “guerra de agressão” um “crime internacional, atendendo a
uma proposta da delegação da Espanha.
Em 24.09.1927, a Assembléia da Sociedade das Nações voltou a declarar que a
agressão era considerada crime internacional.
Em 18.01.1928, uma conferência panamericana, da qual participaram 21 Estados
do Continente, declarou que agressão era “um crime contra a espécie humana”.
Em fevereiro de 1933, a União Soviética apresentou uma proposta de definição,
por meio do Conselheiro Jurídico da Missão Soviética Permanente Junto aos Estados
Unidos, Evgeny N. Nasynovsky. A partir dessa proposta, o Comitê de Questões de

52 Pictet, Jean-Simon (ed.). Geneva Convention I, Commentary, Genebra, CICR, 1957, pp. 351 e ss.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Segurança elaborou uma Minuta, semelhante à proposta pela URSS, submetendo-a ao


Comitê Político, para apreciação.
Contudo, à época, diversas nações demonstravam interesses expansionistas, e o
interesse na questão da busca pela definição de agressão declinou.
Após a 2ª Guerra Mundial, em 1946, a Assembléia-Geral da ONU afirmou,
inicialmente, os princípios de Direito Internacional reconhecidos pela Carta e pelo Estatuto
do Tribunal Militar Internacional53. No ano seguinte, a Assembléia-Geral, por meio da
resolução 177 (II), aprovada em 21.11.1947, instruiu a Comissão de Direito Internacional a
formular esses princípios e também a preparar uma Minuta de Crimes contra a Paz e a
Segurança da Humanidade.
A CDI elaborou os Princípios de Nurembergue, que foram adotados em 1950, e o
texto inclui os crimes contra a paz, enfatizando que os agressores respondem,
pessoalmente, por tais crimes e podem ser por eles punidos.
Mais tarde, em 14.12.1974, a Assembléia-Geral aprovou a resolução 3314 (XXIX),
que define o crime de agressão, a qual, contudo, não tem força obrigatória, justamente por
ser uma decisão da Assembléia-Geral e não constar de um tratado internacional54.
O Estatuto de Roma, aprovado em 17.07.1998, entrou em vigor em 01.07.2002 e
determinou que uma Conferência internacional para tentar definir o crime deveria ser
realizada a partir de julho de 2009.
De fato, a prevista Conferência de Revisão do Estatuto de Roma, ocorreu em
Kampala, Uganda, entre 31.05 e 11.06.2010, após vários anos de trabalhos preparatórios.
Nessa Conferência, foram adotadas emendas ao Estatuto, que incluíram a
definição do crime de agressão, bem como um regime que estabeleceu a forma pela qual o
Tribunal deverá julgar esse crime.

53 Resolução 95 (I), adotada em 11.12.1946, p. 188.


54 A definição aprovada foi: “Aggression is the use of armed force by a State against the sovereignty,
territorial integrity or political independence of another State, or in any other manner inconsistent with the
Charter of the United Nations, as set out in this Definition. Any of the following acts, regardless of a
declaration of war, shall, subject to and in accordance with the provisions of article 2, qualify as an act of
aggression: a) The invasion or attack by the armed forces of a State of the territory of another State, or any
military occupation, however temporary, resulting from such invasion or attack, or any annexation by the use
of force of the territory of another State or part thereof; b) Bombardment by the armed forces of a State
against the territory of another State or the use of any weapons by a State against the territory of another
State; c) The blockade of the ports or coasts of a State by the armed forces of another State; d) An attack by
the armed forces of a State on the land, sea or air forces, or marine and air fleets of another State; e) The use
of armed forces of one State which are within the territory of another State with the agreement of the
receiving State, in contravention of the conditions provided for in the agreement or any extension of their
presence in such territory beyond the termination of the agreement; f) The action of a State in allowing its
territory, which it has placed at the disposal of another State, to be used by that other State for perpetrating
an act of aggression against a third State; g) The sending by or on behalf of a State of armed bands, groups,
irregulars or mercenaries, which carry out acts of armed force against another State of such gravity as to
amount to the acts listed above, or its substantial involvement therein”.

~ 20 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

As condições para a entrada em vigor dessas reformas decididas em Kampala,


estipularam que o Tribunal somente poderá exercer sua jurisdição sobre o crime após
01.01.2017, quando uma decisão dos Estados Partes for tomada nesse sentido.
O Artigo 8bis adotado em Kampala define o crime individual de agressão como
“planejamento, preparação, iniciação ou execução, por uma pessoa em posição de
liderança, de um ato de agressão”. Contém a exigência de que o ato de agressão constitua
uma manifesta violação da Carta das Nações Unidas e descreve os atos de agressão
contidos na referida resolução 3314 (XXIX), da Assembléia Geral.
Em resumo, em termos práticos, quase nada se avançou quanto à definição do
crime de agressão, pois pouco foi alterada a formulação da resolução da Assembléia Geral
de 1974 e, além disso, permanece o Tribunal Penal Internacional impedido de atuar quanto
à punição de pessoas acusadas desse crime até, pelo menos, 01.01.2017.
Ou seja, o Tribunal Penal Internacional continua a ser mera peça decorativa da
Justiça criminal internacional, pois, tendo entrado em funcionamento em março de 2003,
não julgou, até o momento, nem um único caso em definitivo que não tenha sido iniciado
por ele próprio !

5.6. Escravidão e Tráfico de Escravos

Escravidão (“servitus”) é a instituição jurídica do Direito das Gentes, mediante a qual


um ser humano (“servus”), privado da liberdade (“libertas”) e, pois, de qualquer traço de
personalidade, é equiparado a objetos, a coisas55.
O tráfico de escravos56, ou seja, o comércio de seres humanos com a finalidade de
submetê-los à escravidão, é, historicamente, a segunda conduta tradicional a ser
considerada ilícito penal internacional, criminalizada depois da pirataria.
Em 25.03.1807, por iniciativa do parlamentar inglês William Wilberfoce (1759-
1833), o Parlamento aprovou o Slave Trade Act, lei que proibia o tráfico de escravos no
Império Britânico. Como lei interna, no entanto, somente valia para os súditos de Sua
Majestade britânica.
Apenas em 1815, com a Ata Final do Congresso de Viena, o tráfico de escravos
começou a diminuir de intensidade. Nesse instrumento, em nome dos princípios universais
de moralidade e de humanidade, as potências envolvidas proclamaram solenemente seu
55 Cretella Júnior, José. Curso de Direito Romano, 30ª ed., Rio, Ed. Forense, 2007, p. 67. A “libertas”, a liberdade,
é o maior bem para o romano. A liberdade se opõe à escravidão.
56 Tráfico = comércio. Não se trata de transporte, como erroneamente se imagina. Em inglês, slave trade; em

francês, traite d’esclaves.

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Direitos Humanos & Fundamentais

desejo de “colocar fim a um flagelo que há muito tempo assola a África, degrada a Europa,
e aflige a Humanidade”, e declararam que a escravatura era “repugnante” em relação aos
valores da comunidade ocidental civilizada 57.
A condenação ao tráfico de escravos, contida na Ata Final, não foi seguida da
imediata suspensão dessa atividade, principalmente devido à rivalidade existente entre a
Grã Bretanha e a França, as duas maiores potências navais da época. Para se ter idéia das
consequências dessa rivalidade, em 20.12.1841, esses dois países concluíram, em Londres, a
Convenção sobre a Repressão ao Comércio de Escravos, mas a França recusou-se a ratificar o
tratado, alegando o Parlamento francês que se opunha ao direito de visita no mar, previsto
pela convenção.
Somente em 26.02.1885, com a conclusão da Ata da Conferência de Berlim58,
confirmada pelo Ato Geral Anti-Escravagista de Bruxelas, de 02.07.189059, que instituiu
norma segundo a qual “conformément au droit des gens, la traite des esclaves est interdite”, foi o
tráfico internacional de escravos definitivamente proscrito.
Outro importante instrumento jurídico da época a ser mencionado, é o Ato Geral
da Conferência de Bruxelas (General Act of the Brussels Conference Relative to the African Slave
Trade), de 02.07.1890, composto por 100 artigos, aplicável a atos relacionados ao tráfico de
escravos, mas apenas no interior do Continente Africano (Artigo I).
No início do século 19, registra-se o Acordo Internacional para a Repressão ao
Tráfico de Escravas Brancas (International Agreement for the Suppression of the White Slave
Traffic)60, concluído em Paris, em 18.05.1904, na forma de um procès-verbal, que reprime uma
espécie particularmente revoltante da redução de seres humanos à escravidão, o tráfico
internacional de mulheres e meninas, para fins de prostituição. Por esse Acordo, as partes
contratantes se obrigavam a criar uma autoridade internacional responsável pela
coordenação de todas as informações relativas ao aliciamento de mulheres e meninas “for
immoral purposes abroad”; essa autoridade deveria manter-se em contato direto com
autoridades similares de todos os Estados partes (Artigo 1).

57 Em 1810, Portugal e Inglaterra assinaram um tratado, no Rio de Janeiro, pelo qual o Príncipe Regente
comprometeu-se a descontinuar o tráfico negreiro entre diversos entrepostos africanos e o Brasil.
58 O título completo do tratado era General Act of the Conference at Berlin of the Plenipotentiaries of Great Britain,

Austria-Hungary, Belgium, Denmark, France, Germany, Italy, the Netherlands, Portugal, Russia, Spain, Sweden and
Norway, Turkey and the United States Respecting: (1) Freedom of Trade in the Basin of the Congo; (2) the Slave Trade; (3)
Neutrality of the Territories in the Basin of the Congo (4) Navigation of the Congo; (5) Navigation of the Niger; and (6) Rules
for the Future Occupation of the Coast of the African Continent.
59 O título completo do tratado era General Act of the Brussels Conference Relative to the African Slave Trade. Ambos

foram revisados pelo Tratado assinado em Saint-Germain-em-Laye, em 10.09.1919, denominado Convention


Revising the General Act of Berlin, 26 February 1885, and the General Act and Declaration of Brussels, 2 July 1890.
60 A convenção foi promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 58.563, de 01.06.1966.

~ 22 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Além disso, os governos obrigavam-se a manter vigilância, especialmente em


estações de trem, portos de embarque, e en route, para identificar e deter pessoas
encarregadas de acompanhar mulheres e meninas “destined for immoral life” (Artigo 2).
A Convenção Internacional para a Repressão ao Tráfico de Escravas Brancas
(International Convention for the Suppression of the White Slave Traffic)61, também concluída em
Paris, em 04.05.1910, tomou por base a minuta de convenção elaborada durante a Primeira
Conferência – realizada em Paris, entre 15 e 25.07.1902 – e aprimorada durante a Segunda
Conferência – também realizada em Paris, entre 18.04 e 04.05.1910 – revogou o Acordo de
1904.
O Tratado assinado em Saint-Germain-en-Laye, em 10.09.191962, reforçou a
proibição à escravatura e ao tráfico de escravos, estipulando que as partes contratantes “will
endeavour to secure the complete suppression of slavery in all its forms and of the slave trade by land and
sea” (Artigo 11.1, in fine).
A Convenção sobre a Escravatura, concluída em Genebra, em 25.09.1926, sob os
auspícios da Sociedade das Nações, emendada pelo Protocolo, de 07.12.195363, também
reforçou a condenação ao tráfico de escravos, objeto também do Protocolo de Nova York,
de 04.05.1949, aos instrumentos internacionais anteriores, de 1904 e de 1910.

CONCLUSÕES

A Carta Internacional dos Direitos Humanos não é um instrumento dotado de


força normativa e nem foi concebido para sê-lo.
Contudo, ao longo do tempo, foi sendo com tal frequência empregada como
texto de referência para a elaboração de tratados internacionais e declarações, ao final de

61 A convenção foi promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 16.572, de 27.08.1924. Essa Convenção foi
posteriormente emendada pelo Protocol Amending the International Agreement for the Suppression of the White Slave
Traffic, signed at Paris on 18 May 1904, and the International Convention for the Suppression of the White Slave Traffic,
signed at Paris on 4 May 1910, concluído em Lake Success, Nova York, em 04.05.1949, transferindo-se as
competências assumidas pelo governo francês, com base nas convenções de 1904 e 1910, para a Organização
das Nações Unidas (Preâmbulo do Protocolo).
62 Esse tratado fazia parte dos acordos assinados nas proximidades de Paris, encerrando a 1ª Guerra Mundial,

e selava a paz entre as potências aliadas e a Áustria, consagrando, igualmente, o fim da monarquia austro-
húngara. O outrora poderoso Império dos Habsburgos ficaria reduzido à Áustria, que conta, hoje, com pouco
mais de 8 milhões de habitantes.
63 212 UNTS (1955), p. 17. O Decreto Legislativo nº 66, de 14.07.1965, aprovou a Convenção Sobre a

Escravatura, assinada em Genebra, em 1926, e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de
Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, de 1956. Ambas as Convenções entraram em vigor,
para o Brasil, em 06.01.1966, promulgadas pelo Decreto nº 58.563, de 01.06.1966. Em 06.01.1966 havia sido
depositado o instrumento brasileiro de adesão, junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas.

~ 23 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

conferências internacionais, que atingiu o claro e elevado patamar de jus cogens no Direito
Internacional.
Seus enunciados e princípios inspiraram claramente o desenvolvimento do Direito
Internacional desde 1948, e praticamente todos os instrumentos normativos fazem
referência explícita à Carta Internacional dos Direitos Humanos, especialmente em seus
Preâmbulos.
Dificilmente se poderia imaginar a expansão da proteção internacional dos
Direitos Humanos, como vem ocorrendo nos últimos 70 anos, sem a Carta Internacional
dos Direitos Humanos.
Pode-se afirmar, com certeza, que a Carta Internacional dos Direitos Humanos, o Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais formam o importante tripé que constitui o sólido sustentáculo do atual
regime internacional de proteção aos Direitos Humanos.

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~ 27 ~
A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A CONSTITUIÇÃO VIGENTE

José Luiz Delgado*

A Constituição de 1988 é e não é a Constituição vigente. A Constituição vigente é


a Constituição vigente, que, em boa medida, é a Constituição de 1988, mas, noutra medida,
é uma Constituição contrária à Constituição de 1988.
A Constituição de 1988 foi mexida, remexida, modificada, reformada, como
nenhuma outra na história constitucional brasileira. Não há, precedentemente, nada igual
ao que aconteceu e acontece com a Constituição de 1988. O número de Emendas que
sofreu é muito superior, simplesmente, ao total de Emendas de todas as Constituições
anteriores juntas.

1. EMENDAS ÀS CONSTITUIÇÕES ANTERIORES

Para se avaliar adequadamente o que representam hoje as Emendas à Constituição


de 1988, é importante passar uma vista, mesmo sumária, sobre as Constituições brasileiras
anteriores e as Emendas que cada uma delas sofreu.
A Constituição do Império, que é a mais longeva das Constituições brasileiras
(vigorou durante 65 anos, de 1824 a 1889), recebeu formalmente apenas uma reforma, mas
pode-se dizer que de fato ela recebeu três. Formalmente, isto é segundo o procedimento
que aprópria Constituição estabelecera, houve apenas o chamado “Ato Adicional” (Lei nº
16 de 12.08.1834): ela foi precedida por lei (de 12.10.1832) que autorizou essa reforma, para
a qual os eleitores deveriam, na eleição seguinte, dar aos deputados poderes especiais. O
Ato Adicional foi aprovado assim na legislatura seguinte, conforme determinava a
Constituição imperial.
Identificando-se inconvenientes no Ato Adicional, pensou-se em nova reforma
constitucional. Mas o procedimento estabelecido na Constituição para a reforma era lento e
as modificações pareciam urgentes. Levantou-se então a ideia de elaborar uma “lei de
interpretação” daquele Ato. Foi o que se fez, promulgando-se a Lei nº 105 (de 12.05.1840),
que, não sendo formalmente uma reforma da Constituição, pode, porém, ser tida como tal.

* Professor da Faculdade de Direito do Recife. Universidade Federal de Pernambuco.

~ 28 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

E houve ainda a Lei 234 (de 23.11.1841), que também pode ser tida como reforma
constitucional, bastando ver que seu objeto era restaurar o Conselho de Estado, que o Ato
Adicional havia suprimido. Nenhuma dessas duas leis tinha formalmente o nome de
Emenda Constitucional nem fora promulgada segundo os procedimentos estabelecidos na
Constituição para sua reforma, mas seu conteúdo autoriza a serem assim consideradas.
A Constituição da chamada “República velha”, a primeira Constituição
republicana, de 1891 (também a mais longeva das constituições republicanas brasileiras:
vigorou 39 anos, de 1891 a 1930) sofreu apenas uma Emenda, consistente num conjunto
de pequenas alterações aprovadas nas sessões ordinárias do Congresso Nacional de 1925 e
26. São as chamadas “Emendas de 1926”, com as quais a Constituição foi republicada,
conservando-se as assinaturas dos constituintes de 1891.
A Constituição de 1934 (que vigorou apenas três anos) sofreu três pequenas
emendas, aquelas que constam do Decreto Legislativo nº 6 (18.12.1935).
Quanto à Constituição de 1937 (vigorou 8 anos, até 1945), devem-se distinguir
duas fases: na primeira, recebeu ela 8 Emendas, que tinham então o nome de Lei
Constitucional. Com a Lei Constitucional nº 9, de 28.02.1945 (que é a penúltima lei
Constitucional assinada pelo chefe do Estado Novo, Getúlio Vargas), começa a segunda
fase, porque dela se pode datar o início da superação do Estado Novo, sobretudo porque aí
Getúlio renuncia à realização do plebiscito, que confirmaria a Carta de 1937, nos termos de
seu artigo final, o 187, e convoca eleições para o Parlamento, declarando, nos seus
“considerandos”,que “a eleição de um Parlamento dotado de poderes especiais para, no curso de uma
legislatura, votar, se o entender conveniente, a reforma da Constituição, supre com vantagem o plebiscito de
que trata o art. 187, e que, por outro lado, o voto plebiscitário implicitamente tolheria ao Parlamento a
liberdade de dispor em matéria constitucional”. Getúlio Vargas ainda assinaria a Lei Constitucional
nº 10, que, a rigor, pertence à primeira fase.
A partir daí, deposto Getúlio, serão 11 Leis Constitucionais, baixadas pelo novo
presidente, José Linhares,no curto espaço de apenas três meses (da Lei Constitucional nº
11, de 30.10.1945, à Lei Constitucional nº 21, de 23.01.1946). Essas novas Leis
Constitucionais foram promulgadas para desmontar as estruturas autoritárias do Estado
Novo e viabilizar a redemocratização do País. Em suma: 9 emendas durante o Estado
Novo propriamente dito (Leis Complementares de 1 a 8, mais a 10) e 12 emendas para
superar o Estado Novo em rumo à redemocratização (Leis Complementares nº 9, e da 11 à
21).

~ 29 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Pode-se, quanto à Constituição de 1946 (que vigorou 21 anos, de 1946 até 1967),
proceder à mesma divisão: (a) o período de normalidade da Constituição de 1946 (que vai
até 1964: 18 anos) e (b) a ruptura de 1964 feita, no entanto, para manter e revitalizar a
Constituição (3 anos: de 1964 a 1967). Nos 18 anos da primeira fase houve 6 Emendas (ou,
a rigor, apenas 4, se excluídas a Emenda nº 4, de 02.09.1961, chamada de “Ato Adicional”,
que instituiu o Parlamentarismo, e a nº 6, de 23.01.1963, que o desinstituiu, revogando a
Emenda nº 4, para restabelecer o presidencialismo do texto original de 1946).
Com a ruptura/manutenção de 1964 houve simplesmente mais 15 emendas:9
emendas (da 7 à 15), antes do Ato Institucional nº 2 (de 27.10.1965) e mais 6 (da 16 à 21)
até à Constituição de 1967, convocada pelo Ato Institucional nº 4 (de 07.12.1966). . Foi
época de grande turbulência constitucional porque, além do Ato Institucional inicial (que
não tinha número, porque era para ser único), houve ainda os Atos 2, 3 e 4 e mais 33 Atos
Complementares – turbulência constitucional que se deveria encerrar com o advento de
uma nova Constituição, segundo pensava Castelo Branco.
Na vigência da Constituição de 1967 (outros 21 anos: de 1967 até 1988),
verificar-se-á, no entanto,o mesmo tumulto constitucional porque a edição do Ato
Institucional nº 5 (de 13.12.1968) reabriu o chamado “processo revolucionário” e
reestabeleceu a dualidade de ordens jurídicas no País (a ordem constitucional e a ordem
“institucional”, consistente na promulgação arbitrária de Atos Institucionais e
Complementares). Pior ainda, a primeira emenda que a Constituição de 1967 sofreu (a
Emenda nº1, de 17.10.1969), que, mexendo numa enorme quantidade de artigos, achou
melhor, ao invés de dar a nova redação dos artigos reformados, simplesmente republicar a
Constituição inteira, convalidou a duplicidade de ordens jurídicas com a absurda inclusão
do art. 182 determinando que “continuam em vigor o Ato Institucional nº 5, de 13.12.1968, e os
demais Atos posteriormente baixados”.
Até a Emenda Constitucional nº 11, de 13.10.1978, que revogou o Ato
Institucional nº 5, acabando portanto com a dualidade de ordens jurídicas, e que pode ser
considerada também como o final do período da ditadura militar (que durou do Ato
Institucional nº 5, de 1968, até essa Emenda nº 11, de 1978, 10 anos, portanto), a
Constituição de 1967terá recebido, nesses 11 anos iniciais de vigência, 10 emendas
constitucionais, devendo-se destacar, dentre elas, a Emenda nº 8, de 14.04.1977, o famoso
“pacote de abril”, editada solitariamente pelo Presidente Geisel, durante recesso imposto ao
Congresso Nacional, e logo a seguinte, a Emenda nº 9 (de 28.06.1977) que, beneficiando-se
da redução do “quórum” para reformas constitucionais, introduziu o divórcio.

~ 30 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A partir daí, instalar-se-á um processo que já se pode considerar de desconstrução


da Constituição de 1967 (e que vai durar 10 anos), e de que são passos importantes a
Emenda nº 15 (de 19.11.1980) que restabelece as eleições diretas para governador e acaba
com a figura dos senadores biônicos; a Emenda nº 22, de 29.06.1982, que restabeleceu o
quórum de 2/3 para as emendas constitucionais e desfez a coincidência geral dos
mandatos; e a Emenda nº 25, de 15.05.1985, já na presidência Sarney, que restabelece as
eleições diretas para Presidente e para os municípios capitais. Da Emenda 11à Emenda nº
27, de 28.11.1985, serãomais 17 emendas, inclusive a controvertida Emenda Constitucional
nº 26, de 27.11.1985, que convocou a Assembleia Nacional Constituinte, para 1º de
fevereiro de 1987.
27 emendas sofreu, assim, a Constituição de 1967, sendo 10 no primeiro período,
de 11 anos , de 1967 até à Emenda nº 11, de 13.10.1978, e 17 no segundo período,
retomada da tradição constitucional democrática, de 10 anos, retorno à unicidade da ordem
jurídica (pela revogação do Ato Institucional nº 5) até à nova Constituição de 1988.
Total, portanto, das emendas constitucionais às Constituições anteriores à de
1988: 3 (se tanto) emendas na Constituição imperial; mais 1 na Constituição de 1891; 3 na
de 1934; 21, na Constituição de 1937; 21, também, na Constituição de 1946; e 27, na de
1967 – ao todo, 76 Emendas Constitucionais, muito menos do que recebeu a Constituição
de 1988, nesses seus quase 30 anos de vigência...

2. QUANDO AS EMENDAS SE INTENSIFICAM

O mais importante a assinalar, nesse levantamento, é que claramente os períodos


em que se intensifica a produção de emendas constitucionais são aquelas fases em que o
Brasil vive ou bem fortes turbulências constitucionais, ou bem um processo de retomada
da tradição constitucional democrática.
Das 21 Emendas à Constituição de 1937, 12 (no ano de 1945) foram promulgadas
para superar o Estado Novo no rumo da redemocratização. Assim também se podem
considerar 17 (das 27) Emendas à Constituição de 1967, aquelas promulgadas a partir da
revogação do AI-5 e consistindo no processo de redemocratização do País.
Por outro lado, 15 (das 21) Emendas à Constituição de 1946 correspondem a um
período de intensa turbulência constitucional, aquele que decorreu do Ato Institucional nº
1, e sobretudo do AI-2, juntamente com os AIs 3 e 4.

~ 31 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Ou seja, nada menos de 44 Emendas correspondem a essas fases de turbulência


ou reconstrução democrática. Das 76 Emendas que todas as nossas Constituições
anteriores à vigente receberam, ao longo de toda a história brasileira, seja imperial seja
republicana, simplesmente 44 delas (mais da metade) traduzem esses períodos
extraordinários. Somente as outras, portanto somente 32 podem ser consideradas emendas
normais. Enquanto isso, a Constituição de 1988 vai com mais de 100 emendas...
Qual o ritmo dessas emendas? Ao longo de 164 anos de história constitucional
brasileira, nossas Constituições sofreram (abstraídas aquelas emendas que correspondem às
fases extraordinárias de perturbação democrática) apenas 32 emendas, ou seja, uma a
pouco mais de 5 anos.Considerando todas as emendas, tanto as dos períodos de
normalidade quanto as das fases extraordinárias de perturbação democrática, isto é, as 76
emendas que as seis Constituições brasileiras anteriores sofreram, tem-se uma emenda a
cada pouco mais de 2 anos.
Segundo esse ritmo, a Constituição de 1988, nesses 30 anos de vigência, poderia
ter recebido no máximo 15 emendas...

3. AS EMENDAS À CONSTITUIÇÃO DE 1988.

Esse quadro vai mudar drasticamente com a Constituição de 1988. O começo é


tímido e até se insere na tradição de poucas emendas constitucionais. Não houve nenhuma
Emenda Constitucional no governo Sarney. No de Fernando Collor, houve 2. No de
Itamar Franco, outras 2 (mais as 6 de revisão). Mesmo, portanto, na hora da revisão
constitucional, cinco anos depois da promulgação da Constituição, que era oportunidade
para uma reforma completa da Constituição, apenas 6 emendas foram promulgadas. Nesses
6 anos iniciais, portanto, apenas 10 emendas (incluídas as 6 de revisão).
Aí vem o governo de Fernando Henrique que praticamente desmontou a
Constituição. Foram simplesmente 35 emendas em 8 anos, 16 no primeiro mandato (1995
a 1998) e 19 no segundo (1999 a 2002): 5 em 1995; 6 em 1996; 2 em 1997; e 3 em 1998 –
16, portanto, no primeiro mandato. E 4 em 1999, 7 em 2000, 5 em 2001 e 3 em 2002 – 19
no segundo mandato. Esse total de 35 emendas ao longo de 8 anos significam mais de 4
emendas por ano, ou seja, mais de uma emenda por trimestre. A Constituição virou um
periódico constitucional, com periodicidade trimestral.
O governo Lula, também nisso seguindo os precedentes do governo FHC,não
faria diferente: serão 14 emendas no primeiro mandato (2003 a 2006) e outras 14 no

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Direitos Humanos & Fundamentais

segundo (2007 a 2010), 28 no total, o ímpeto reformista apenas levemente diminuído: 3 no


primeiro, no segundo e no terceiro anos (2003, 2004 e 2005) e 5 no quarto ano (2006), total
de 14 no primeiro mandato. No segundo: 3 emendas em 2007, apenas uma em 2008, 5 em
2009 e outras 5 em 2010 – total de também 14 no segundo mandato. Tendo sido 28
emendas ao todo, significa 3,5 emendas em cada ano, ou seja, uma emenda a cada 3 meses
e 14 dias. Continua o periódico constitucional.
O governo Dilma até agravou o ritmo febril do governo FHC: 17 emendas no 1º
mandato (2011 a 2014) e 7 nos dois anos do segundo mandato (2015 e 2016). Foi uma
emenda em 2011, mas 3 emendas em 2012, 5 em 2013 e 8 em 2014.No segundo mandato
foram 6 emendas em 2015 e 1 emenda nos 5 meses de 2016. O total é de 24 emendas em 5
anos e 5 meses, ou em 65 meses, o que significa mais de 4 emendas por ano, a rigor, 4,44,
ou seja 1 emenda a cada menos de 3 meses. A Constituição continua sendo um periódico
constitucional.
O governo Temer vai no mesmo ritmo: 4 emendas nos 7 meses de 2016 e outras
4 em 2017, total de 8 emendas até o final de 2017.
Já são, ao todo, 105 emendas (99 emendas mais as 6 de revisão), em 29 anos e 3
meses da Constituição de 1988. Dividindo-se o total de meses, 351 (29 anos e 3 meses)
pelo total de emendas, 105, dá 1 emenda a cada 3,3 meses – ou seja, 3,6 emendas por ano.
O absurdo de 1 emenda a cada pouco mais de 3 meses.
Como se viu, não há nada semelhante na história constitucional brasileira anterior.
Com o agravante de que o atual período de quase 30 anos é fase de rara e notável
estabilidade democrática no Brasil, o período de maior normalidade depois da República
velha (que durou 39 anos, de 1891 a 1930). Duração que já é muito superior à fase normal
da Constituição de 1946 (apenas 18 anos – de 1946 a 1964). Ou seja, não se verifica hoje
nenhuma daquelas situações que justificaram a intensificação na produção de emendas
constitucionais nas vigências das Constituições anteriores: nem há turbulência democrática
nem se cuida de desmontar estruturas autoritárias para restaurar a normalidade
democrática. É espantoso isso: que, não se estando em nenhuma época de
excepcionalidades democráticas, a Constituição venha sendo reformada num ritmo
alucinante, como nunca aconteceu precedentemente.
Que diferença quanto às Constituições anteriores! Enquanto, naquelas o ritmo das
emendas (tiradas as extraordinárias, correspondentes aos períodos de turbulência ou de
restauração democrática) era de 1 emenda a quase 5 anos, agora, no regime da Constituição
de 1988, o que se tem é 1 emenda a quase pouco mais de três meses... Mesmo

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Direitos Humanos & Fundamentais

considerando o total das emendas às 6 Constituições anteriores (76), incluídas portanto as


dos períodos de turbulência democrática, o que se tinha era uma emenda a cada pouco
mais de 2 anos. E, agora, a pouco mais de três meses. A escala do tempo mudou
radicalmente – deixou de ser medida em anos para ser medida em meses...

4. EMENDAS FAVORÁVEIS E EMENDAS DESFAVORÁVEIS

À assombros aquantidade de emendas deve acrescentar-se observação importante


sobre a natureza delas. Sem qualquer juízo de valor quanto ao mérito intrínseco das
emendas, podem elas serclassificadas como favoráveis ou desfavoráveis ao texto
constitucional originário (não há que usar as expressões “boa” ou “má”, nem “positiva” ou
“negativa”). Favoráveis podem ser ditas aquelas emendas que vêm ao encontro dos valores
adotados pelo constituinte originário, reforçando as opções que ele tomou. Desfavoráveis,
aquelas, ao contrário, que se opõem aos valores e às opções do constituinte originário: de
fato, substituem as opções e os valores dele por outros valores e opções. O constituinte
originário adotou certas soluções e agora o reformador constitucional prefere soluções
diferentes e até opostas.
É o que aconteceu, em impressionante escala, com o texto originário de 1988.
Exemplo magnífico de emenda favorável é a Emenda nº 4 (de 14.09.1993). Ela dá
nova redação ao art. 16, para dizer, substancialmente, a mesma coisa, mas de forma mais
técnica, portanto superior. Dizia a redação original: “A lei que alterar o processo eleitoral só
entrará em vigor um ano após sua promulgação”. Agora, com a nova redação dada pela Emenda
nº 4, o que se diz é que “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua
publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Emenda, assim,
claramente favorável à Constituição original. Mantém sua opção, apenas aperfeiçoa a
redação.
Podem ser tidas também como emendas favoráveis a Emenda Constitucional de
Revisão nº 4 (de 07.06.1994), a Emenda Constitucional de Revisão nº 6 (de 07.06.1994), a
Emenda Constitucional nº 15 (de 12.09.1966).
O § 9º do artigo do art. 14 dizia originariamente que “Lei complementar estabelecerá
outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a normalidade e a legitimidade
das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na
administração direta ou indireta”. A Emenda Constitucional de Revisão nº 4 explicita essa
almejada “normalidade e legitimidade das eleições”, dizendo agora “a fim de proteger a

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Direitos Humanos & Fundamentais

probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do


candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições”. Reforça-se a opção do constituinte
originário.Emenda favorável.
No mesmo sentido, a Emenda Constitucional de Revisão nº 6. A cassação de
mandato de parlamentar implicava consequências graves para sua vida política. Mas, se
renunciasse no curso do processo de cassação? Era o que vários vinham fazendo. A
Emenda de Revisão nº 6 resolveu brilhantemente o problema, vindo ao encontro
evidentemente da intenção do constituinte originário, acrescentando um § 4º ao art. 55,
para estabelecer que “A renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à perda
do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais de que tratam os
§§ 2º e 3º”. Magnífica solução: se o processo for concluído pela cassação, o mandato estará
cassado; se concluir pela absolvição, vale a renúncia... Na linha exata do constituinte
originário.
Será também o caso da Emenda Constitucional nº 15, embora com uma ressalva.
O § 4º do art. 18 dispunha sobre criação de novos Municípios, e falava na obediência a
“requisitos previstos em lei complementar estadual” e de “consulta prévia, mediante plebiscito, às
populações diretamente interessadas”. A Emenda nº 15 vai (a) explicitar os requisitos, para dizer
que se trata de atender a “Estudos de Viabilidade Municipal”;(b) esclarecer quais seriam as
“populações diretamente interessadas”: são as dos “Municípios envolvidos”, isto é, portanto, as dos
municípios que se querem fundir ou incorporare também a do Município de que uma área
se quer desmembrar, não somente a área desmembranda; e (c) completar a regra com a
exigência de um prazo: “dentro do período determinado por lei complementar federal”. Todas são
alterações favoráveis, isto é, mantendo, reforçando ou explicitando as opções do
constituinte originário. Há que ressalvar, no entanto, a retirada de expressão que havia no
texto original – “preservarão a continuidade e a unidade histórico-cultural do ambiente urbano” – o que
poderia levar à conclusãode que se tomou uma opção diferente daquela inicial, não sendo,
no entanto, razoável admitir que um novo município se possa constituir suprimindo a
unidade de um determinando ambiente urbano, isto é, fraccionando-se uma unidade
urbana em dois ou mais municípios.
Ao lado dessas, há, como dito, outro tipo de emendas, as desfavoráveis.

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Direitos Humanos & Fundamentais

5. AS CONTRA-OPÇÕES RELATIVAMENTE À CONSTITUIÇÃO DE 1988

Exemplo de emendas claramente contrárias à Constituição de 1988, no sentido de


adotar (para melhor ou para pior) opções diferentes e até opostas às adotadas pelo
constituinte originário, é logo a primeira emenda que a Constituição sofreu, a Emenda
Constitucional nº 1 (de 31.03.92), que estabelece (ou restabelece, conforme assinalarei a
seguir) limites para as remunerações dos deputados estaduais e vereadores, relativamente à
remuneração dos deputados federais – regime claramente diferente da liberdade que o
corporativismo da Constituição de 1988 havia definido.
De fato, nessa matéria de remuneração de deputados estaduais e vereadores, a
redação original da Constituição de 1988 retornara à tradição da Constituição de 1946, que
era a de liberdade para as diversas casas legislativas (federal, estaduais, municipais) fixarem
as próprias remunerações, exigindo-se apenas a pré-fixação (fixação não por uma legislatura
para si mesma, mas pela legislatura anterior para a seguinte). Dessa forma a Constituição de
1988 determinava, originariamente, que (art. 27 § 2º) “a remuneração dos deputados estaduais será
fixada em cada legislatura, para a subsequente, pela Assembleia legislativa”, e que (art. 29, V)“ a
remuneração do Prefeito, vice-Prefeito e dos Vereadores [será] fixada pela Câmara municipal, em cada
legislatura, para a subsequente”.
Abandonou, portanto, a disciplina vigente (porque era “entulho autoritário”?), que
havia sido introduzida primeiramente pelo Ato Institucionalnº 2, de 27.10.1965, e que
consistia em limitar a remuneração dos deputados estaduais a 2/3 da remuneração dos
deputados federais (art. 11 do AI nº 2) e em suprimir totalmente a remuneração dos
vereadores (art. 10: “Os vereadores não perceberão remuneração, seja a que título for”). Essa
supressão de qualquer remuneração para os Vereadores foi logo atenuada pela Constituição
de 1967, que permitiu remuneração nos municípios de até 100 mil habitantes, na forma de
lei complementar – que logo foi baixada: a Lei Complementar nº 2, de 29.11.1967. A
Emenda nº 1, de 1969, que revisou quase integralmente a Constituição de 1967, manteve a
mesma disciplina, alterando apenas o total dos habitantes que permitiriam ao município
remunerar seus vereadores. Esta, a disciplina que o constituinte de 1987/88 encontrou:
remunerações escalonadas, de tal sorte que a remuneração dos deputados estaduais se
limitaria a um tanto da remuneração dos deputados federais, e a dos vereadores a outro
tanto da dos deputados estaduais.
Ora, a primeira Emenda que a nova Constituição, de 1988, sofrerá vai exatamente
retornar à disciplina do “entulho autoritário”: vai voltar a vincular a remuneração dos

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Direitos Humanos & Fundamentais

deputados estaduais à dos federais e a dos vereadores à dos deputados estaduais, que
parece regra muito mais razoável. Além do registro irônico de que a primeira Emenda
consistiu num retorno a uma disciplina estabelecida pelo regime militar, o importante é
ressaltar que se trata de emenda desfavorável, no sentido aqui adotado, isto é, que
substituiu opções tomadas pelo constituinte originário por opções diferentes e até opostas.
O governo Fernando Henrique foi especialmente pródigo em aprovar Emendas
Constitucionais desfavoráveis, isto é, optando por soluções contrárias às do constituinte
originário. Podem até ser identificadas pela natureza dos novos valores (ou contra-valores)
que foram então adotados:

a) Desnacionalização

A explícita opção do constituinte de 1987/88 em favor da “Empresa brasileira de


capital nacional” foi claramente abandonada no governo Fernando Henrique, nela
consistindo a primeira investida contra valores afirmados pela Constituição de 1988. A tal
ponto que há hoje na Constituição um artigo inexistente, tendo sido, todo ele, revogado
pela Emenda nº 6, de 15.08.1995: é o artigo 171, que definia “empresa brasileira” e
“empresa brasileira de capital nacional”, em cujo favor não somente o inciso IX do artigo
anterior estabelecia, como um dos princípios da ordem econômica, “tratamento
favorecido” (norma também substituída), como ainda o próprio artigo 171 detalhava
benefícios que lhe poderiam ser concedidos.
Também o favorecimento a “empresa brasileira de capital nacional” quanto à
pesquisa e lavra de recursos minerais e aproveitamento de potenciais de energia hidráulica,
previsto no artigo 176 § 1º, foi suprimido pela mesma Emenda nº 6.
Na mesma linha, e na mesma data a Emenda seguinte, nº 7 (também de
15.08.1995), vai suprimir a norma original do artigo 178 (estava no inciso II), que
estabelecia, no tocante à ordenação dos transportes marítimos,a “predominância de
armadores nacionais e navios de bandeira e registros brasileiros”.
Portanto, sempre sem adentrar no mérito, para discutir qual das soluções seria
materialmente a melhor, o que há de registrar é que são duas opções: uma, do constituinte
originário (em favor da “empresa brasileira de capital nacional”), e outra, do reformador
constitucional, desfavorecendo esse tipo de empresa.

b) Desestatização

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Direitos Humanos & Fundamentais

A data de 15 de agosto de 1995 é claramente um marco. Nela não somente foram


promulgadas as duas Emendas que acabam de ser referidas (a 6 e a 7), mas ainda foram
promulgadas mais duas (a 5 e a 8), agora desestatizando diversas atividades econômicas.
Era competência exclusiva da União, nos termos do artigo 21, XI da redação
original de 1988, explorar, diretamente ou mediante concessão a empresas sob controle
acionário estatal, os serviços telefônicos, telegráficos de transmissão de dados e demais
serviços públicos de comunicações. A Emenda nº 8 (daquela data fundamental,
15.08.1995), mantém a competência exclusiva da União, autorizando porém a exploração,
diretamente, ou mediante autorização, concessão ou permissão, sem mais restringir
somente às empresas sob controle acionário estatal.
Na competência remanescente dos Estados, o texto original de 1988 explicitava
(artigo 25 § 2º) a exploração dos serviços locais de gás canalizado, e dizia que eles o fariam
“diretamente ou mediante concessão a empresa estatal”. Essa restrição quanto às
concessões foi suprimida pela Emenda nº 5, da mesma data (15.08.1995), mantendo-se a
competência, a exploração dos serviços sendo feita ou diretamente ou mediante concessão
a qualquer tipo de empresa, portanto.
Outro ponto em que se contrapõem claramente as opções originárias do
constituinte e as opções do reformador.

c) O monopólio do petróleo

No seu texto original, a Constituição de 1988 mantinha o monopólio da União


quanto ao petróleo e o reforçava com diversas normas, entre elas a que vedava à União
“ceder ou conceder qualquer tipo de participação em espécie ou em valor, na exploração de
jazidas de petróleo ou gás natural”. Logo a Emenda seguinte, a nº 9 (promulgada três
meses depois daquelas quatro, em 10.11.1995) revogava essa vedação, instituindo, ao
contrário, a possibilidade de contratação, pela União, de “empresas estatais ou privadas”
para a realização das atividades relacionadas como objeto do monopólio.

d) Concentração tributária em favor da União

Assunto capital para o regime federativo é, evidentemente, adistribuição das


receitas tributárias. Uma série de investidas vão ser feitas nessa matéria, por sucessivas

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Direitos Humanos & Fundamentais

reformas constitucionais, todas no sentido de concentrar recursos na União, esvaziando,


consequentemente, a situação financeira dos Estados e Municípios.
Começam com o Fundo de Estabilização Fiscal, no qual se converteu o antigo
Fundo Social de Emergência, criado pela Emenda Constitucional de Revisão nº 1 (de
01.03.1994), e que, reformulado pela Emenda nº 10 (veja-se a sequencia das reformas de
Fernando Henrique: emendas nº 5, 6, 7, 8 , 9 e agora, a 10, de 04.03.1996, que são
exatamente as primeiras reformas constitucionais que ele promoveu), deixa de ser “de
emergência” e deixa de ser “social”. Esse Fundo seria constituído de parcela de vários
tributos federais, as quais já seriam previamente deduzidas da base de cálculo de qualquer
vinculação ou participação constitucional (§§ 2º e 3º do artigo 72 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, na redação que lhe foi dada pelo artigo 2º da Emenda nº 10),
portanto debilitando a situação financeira dos Estados e Municipios e reforçando a União.
A vigência deste Fundo (que iria até 30.06.1997) foi prorrogada (até 31.12.1999) e
ele terminou substituído(Emenda nº 27, de 21.03.2000) pela DRU (Desvinculação de
Receitas da União),que, sucessivamente renovada, virou norma praticamente definitiva.
Todos os governos seguintes a prorrogaram: o do presidente Lula (Emendas nº 42, de
19.12.2003, e nº 56, de 20.12.2007; da presidente Dilma (Emenda nº 68, de 21.12.2011); e
também do presidente Temer (Emenda nº 93 (de 08.09.2016) sendo que, agora, ficou
valendo simplesmente até 31.12.2023.
No mesmo sentido, de reforço e concentração financeira nas mãos da União,
pode-se incluir a famosa CPMF, Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira,
que, instituída originariamente como Imposto (pela Emenda nº 3, de 31.12.1994), já
desaparecido, foi restaurada graças aos esforços e ao prestígio de Adib Jatene, então
ministro da Saúde, especificamente para reforçar as verbas para a saúde. Foi a Emenda nº
12 (de 15.08.1996), e que, permitindo ao governo institui-la, dava-lhe o prazo máximo de 2
anos. Depois foi várias vezes prorrogada (Emenda nº 21, de 18.03.1999; Emenda nº 37, de
12.06.2002; e Emenda 42, de 19.12.2003, que a estendia até 31.12.2007), até que o mesmo
Partido do governo que a criou, o PSDB, resolveu não mais prorrogá-la, em nome do
terrível princípio de que o que era necessário e bom para o seu governo não poderia valer
para o governo do partido oposto...
Em todas essas emendas, feitas não como reforma a artigos da Constituição
original, mas como novas disposições transitórias adicionadas ao ADCT, o que se verifica é
claramente um abandono do desenho original das competências tributárias, sempre em

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Direitos Humanos & Fundamentais

favor de um maior volume de receitas para a União: concentração financeira em favor da


União.

e) Reeleição

Com o sonho dareeleição, promovida em causa própria (Emenda nº 16, de


04.06.1997), o governo Fernando Henrique não contrariou somente o texto original de
1988: contrariou toda a tradição constitucional brasileira.
Dispunha o artigo 14 § 5º do texto original de 1988 que ”são inelegíveis para os
mesmos cargos, no período subsequente, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do
Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído nos 6 meses anteriores ao pleito”.
Agora, a Emenda nº 16, vai estabelecer que esses mesmos Presidente,
Governadores, Prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído “no curso do mandato”
“poderão ser reeleitos para um único período subsequente” – tendo-se esquecido, no entanto, de
suprimir também a inelegibilidade, dessas mesmas autoridades, para a candidatura a outros
cargos: não tocou no § 6º do mesmo artigo 14, pelo qual, para concorrerem a outros
cargos, aquelas mesmas autoridades “devem renunciar aos respectivos mandatos até 6 meses antes do
pleito”, instalando assim absurda contradição – para se candidatarem a outros cargos, devem
renunciar 6 meses antes; para se candidatarem aos mesmos cargos, não: podem ser
candidatos e continuar em pleno exercício do mandato...
O mais grave é que a vedação da reeleição não constava apenas da Constituição de
1988: constava de todas as Constituições brasileiras republicanas anteriores.
Nem o Ato Institucional nº 2, de 27.10.1965, que suprimiu a eleição direta,
transformando-a em eleição indireta, permitiu a reeleição. Consta que Castelo Branco foi
firme em exigir (dizem que ele próprio redigiu) que “para essa eleição (a primeira que seria
indireta) o atual Presidente da República é inelegível” (artigo 26, parágrafo único). .
A Constituição de 1967 era explícita em vedar a reeleição do “Presidente que tenha
exercido o cargo, por qualquer tempo, no período imediatamente anterior, ou quem, dentro dos 6 meses
anteriores ao pleito, lhe haja sucedido ou o tenha substituído” (art. 146, I, a).
Do mesmo modo, a Constituição de 1946: art. 139, I, a. Também a Constituição
de 1934: art. 52 § 6º, b. E a primeira Constituição republicana, a de 1891: “o Presidente
exercerá o cargo por 4 anos, não podendo ser reeleito para o período presidencial imediato”(art. 43)9.
Somente não teve regra expressa a respeito a Constituição do Estado Novo, de
1937, mas nem aí se pode dizer que a reeleição era permitida. Ao contrário, deduz-se sua

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Direitos Humanos & Fundamentais

vedação do fato de que o Colégio Eleitoral nela previsto escolheria um candidato à


presidência e o Presidente da República poderia indicar outro(artigo 84) – concluindo-se,
portanto, que não seria ele próprio.

f) Desvinculação entre militares e civis

Uma das “amarras” com que a Constituição de 1988 protegeu a remuneração dos
servidores civis foi vinculá-la à dos militares, sabendo que os primeiros têm muito menor
poder de pressão, não dispondo de tanques e fuzis, os quais, na hora das reivindicações,
nem precisam ser mencionados explicitamente. Previa ela (artigo 37, X) que “a revisão geral
da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos
civis e militares, far-se-á sempre na mesma data”.
Interessado em desvincular essas remunerações, para poder conceder aos militares
reajustes mais robustos, o governo Fernando Henrique procedeu a inédita manobra de
reforma constitucional (Emenda nº 18, de 05.02.1988): simplesmente transferiu de lugar
toda uma seção da Constituição, a seção III do capítulo VII do título III, deixando esse
capítulo de ter uma divisão interna entre “servidores públicos civis” e “servidores públicos
militares”, deslocando inteiramente essa seção para ser transformada num parágrafo, o 3º,
do artigo 142, do capítulo “Das Forças Armadas” do título V “Da defesa do Estado e das
instituições democráticas”. Muitas edições da Constituição vigente registram que esse § 3º
foi “acrescentado pela EC nº 18”, o que é falso, uma vez que ele não foi propriamente
“acrescentado”: já existia integral e literalmente na Constituição original. Foi apenas
deslocado, tal qual, abduzido, transferido para outra parte da Constituição.
Extremo cuidado técnico e formal? Rigor topográfico? Claro que não. Apenas,
preparar o terreno para o que viria a seguir: estabelecido que os militares não são mais
“servidores públicos militares”, espécie do gênero “servidores públicos” (serão servidores
privados?), poder-se-á em seguida (o que foi feito logo na Emenda seguinte, a nº 19, de 4
meses depois, 04.06.1998) regular o reajuste dos servidores sem mais a vinculação aos
militares: “a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente
poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada
revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices” (isto é, sem distinção de índices
entre eles, os servidores públicos, que são somente os civis, de nenhum modo mais
vinculados aos servidores militares...).

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Direitos Humanos & Fundamentais

Claramente, opção oposta à do constituinte originário: quisera este proteger a


revisão da remuneração dos servidores civis, vinculando-a à dos militares; quis o
reformador constitucional do governo Fernando Henrique abolir essa vinculação, para
liberar os reajustes para os servidores militares.

g) Reforma da previdência

O regime previdenciário estabelecido na Constituição de 1988 veio sendo objeto


de sucessivas reformulações.
Com Fernando Henrique foi feita a primeira grande reforma: a Emenda nº 20, de
15.12.1998.
O governo Lula mexeu duas vezes na previdência: as Emendas Constitucionais nº
41 (de 19.12.2003) e nº 47 (de 05.07.2005).
O governo Dilma também fez sua reforma: a Emenda nº 70 (de 29.03.2012). E o
governo Temer está lutando desesperadamente para fazer mais uma.
Parece que, desde o de Fernando Henrique, nenhum governo admite cumprir as
regras previdenciárias da Constituição de 1988, sempre alegando que a previdência
continua deficitária. Por isso, vêm insistindo os governos em induzir a população a
contratar planos de previdência privada complementar. Em resumo: o regime da
previdência vigente hoje não é mais absolutamente o sistema estabelecido no texto original
de 1988.

6. Mais contra-opções

Os enormes precedentes criados pelo governo Fernando Henrique, desmontando


a Constituição de 1988, substituindo as opções que ela adotara por outras, contrárias
àquelas (ainda bem que a Revisão Constitucional já havia sido feita!) tiveram continuidade
nos governos seguintes.
Além da renovação e prorrogação de vários desses contra-valores, já assinaladas (a
propósito especialmente da Desvinculação das Receitas da União e da Reforma da
Previdência), jáa primeira emenda do governo Lula representou a opção por novo e
importante regime completamente oposto ao querido pela Constituição de 1988: o da
limitação da taxa de juros.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Era determinação explícita do texto original: “As taxas de juros reais, nelas incluídas
comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não
poderão ser superiores a 12% ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crise de usura,
punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar” (art. 192 § 3º).
Com essa determinação o sistema financeiro nunca concordou. E o resultado é
que de fato nunca ela vigorou, suspensa desde o primeiro dia de vigência da Constituição,
por determinação do presidente Sarney, que acolheu parecer, neste sentido, do Consultor
Geral da República. Tudo fez o governo Fernando Henrique para suprimir essa limitação,
sem o conseguir. Mas o governo do PT, que a essa supressão viera se opondo com êxito,
aceitou e aprovou a supressão do limite para as taxas de juros, promulgando a Emenda nº
40, de 29.05,2003, exatamente a primeira do governo Lula, para substituir o caput, os 8
incisos e os 3 parágrafos do art. 192, por uma redação muito mais enxuta, apenas o
“caput”, sem incisos e sem paragrafos – na verdade, todo o objetivo da reforma era revogar
o contestado § 3º, que, de fato, desapareceu.
Outro claro exemplo, portanto (sempre sem entrar no mérito da mudança, para
avaliar se para melhor ou para pior), de opção do reformador constitucional por normas
completamente opostas às do constituinte originário.

7. CONCLUSÃO

Pelo espantoso número de Emendas sofridas, e pela quantidade de Emendas que


definiram valores contrapostos aos valores escolhidos pelo constituinte originário, o que se
deve concluir é que a Constituição vigente é a Constituição vigente, não é mais
rigorosamente a Constituição de 1988.
Foi inacreditavelmente modificada 105 vezes (99 emendas mais as 6 de Revisão), e
isso em apenas quase 30 anos de vigência, ao passo que as seis Constituições anteriores
(1824, 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967) foram, em conjunto, e ao longo de nada menos de
164 anos (de 1824 a 1988), isto é, num período de tempo mais de 5 vezes maior,
modificadas apenas 76 vezes, aí incluídas até as dos períodos de turbulência institucional ou
de restauração democrática. Sem as emendas dessas fases excepcionais (nada menos de 44),
as 6 Constituições anteriores terão sido modificadas somente 32 vezes – o que faz da
quantidade de Emendas à Constituição de 1988 (105 em 30 anos) um completo absurdo.
Muitas dessas Emendas, como visto, representam opção por valores não só
diferentes mas até contrários aos valores do constituinte originário de 1987/88.

~ 43 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Em suma: tantas vezes foi modificada a Constituição de 1988, num número de


emendas absolutamente sem precedentes na história constitucional brasileira, e tão
profundamente foi ela mais do que modificada, de fato contrariada, as opções do
constituinte originário havendo sido substituídas por opções contrárias, que o texto atual
pouco tem do texto originário.

~ 44 ~
A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E SUA
IMPORTÂNCIA NA GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E
CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS
DIRETOS HUMANOS

Luciano Meneguetti Pereira*

A Declaração Universal dos Direitos Humanos


é a porta de entrada do templo dos direitos humanos.
(René Cassin)

1. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS

Os direitos humanos, aqui entendidos como um conjunto de direitos considerado


imprescindível para a existência de uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e
dignidade, direitos esses dos quais todas as pessoas são titulares, pelo simples fato de
pertencerem ao gênero humano, são frutos de uma construção histórica que hoje se
encontra definitivamente incorporada ao patrimônio comum da humanidade. E isso muito
tem a ver com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), adotada e proclamadaem
1948 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas e que no ano de 2018
comemora o seu septuagésimo aniversário.
Não há dúvida de que a DUDH constitui um documento marco na história
mundial dos direitos humanos, sendo responsável pela gênese e pelo desenvolvimento da
proteção internacional desses direitos, hoje consubstanciada em um ramo específico do
Direito Internacional, denominado e conhecido globalmente como Direito Internacional dos
Direitos Humanos (DIDH), que visa a proteger e promover a dignidade humana em todo o
mundo ao consagrar uma série de direitos (universais, indivisíveis e interdependentes)
dirigidos à todas as pessoas, sem distinção de qualquer natureza, inclusive de nacionalidade
ou do Estado em que o indivíduo se encontre.

* Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Toledo de Ensino (ITE). Especialista em Direito Público
com ênfase em Direito Constitucional pela Universidade Potiguar (UNP). Autor e organizador de obras
jurídicas. Professor no Curso de Direito do Centro Universitário Toledo (UNITOLEDO), onde ministra as
disciplinas Direito Internacional, Direito Constitucional e Direitos Humanos. Advogado.

~ 45 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A DUDH inaugurouuma nova era na história internacional, notadamente por ser


um instrumento que transcendeu as fronteiras nacionais, ultrapassando os espaços
soberanos em que aprecária proteção dos direitos humanos se encontrava confinada até
então, dando voz a uma herança cultural de toda a humanidade e alçando a proteção desses
direitos ao nível internacional. Seja no plano ideológico, filosófico ou jurídico-normativo,
nenhum documento na história da humanidade tem contribuído tanto para a defesa e
garantia dos direitos humanos como a DUDH, razão pela qual é sempre importante uma
reflexão sobre a sua origem, natureza e legado, dentre outros aspectos que envolvem esse
notável documento.
Desse modo, no momento em que completa 70 anos, discutir e refletir sobre a
trajetória e a importância desse instrumento de proteção global dos direitos humanos, bem
como sobre as grandes dificuldades, obstáculos e desafios hodiernos na efetivação dos
direitos por ele consagrados ao redor do globo, objetivo geral desta obra e, particularmente,
sob certos aspectos, do presente texto, torna-se imperativo, especialmente em razão do
quadro de sistemáticas violações de direitos humanos que hoje ocorre nos quatro cantos do
planeta, atingindo direta e indiretamente a vida e a dignidade de milhões de pessoas.
Embora seja inegável que a salvaguarda dos direitos humanos ocupa atualmente
uma posição de centralidade na agenda internacional e também doméstica de muitos países,
notadamente a partir da primeira década do século XXI,do mesmo modo não se pode
negar que esses direitos têm sidomenosprezados, ultrajados e amplamente violados ao
redor do globo, inclusive no Brasil, onde se verifica um quadro de violações que têm sido
materializadas, sobretudo, na marginalização eexclusão sociais de segmentos crescentes da
população, na ampla diversificação dasfontes deviolações dos direitos humanos, bem como
naimpunidade de seusperpetradores.
O presente texto, em particular, propositadamente menos focado nesse cenário de
violações, propõe uma reflexão otimista acerca da DUDH, objetivando-se demonstrar que
esse extraordinário consenso, que acolhe a universalidade, a indivisibilidade e a
interdependência dos direitoshumanos tem gozado de uma trajetória não menos
extraordinária, especialmente por inspirar incontáveis desdobramentos na defesa e
promoção local,nacional, regional e, sobretudo, internacional desses direitos, cristalizando-
secomoum dos documentos mais influentes da história humana.
É nesse contexto que inicialmente são feitas algumas consideraçõessobre os
trabalhos preparatórios da DUDH, sua histórica adoção e proclamação, assim como o seu
significado. Na sequência é analisada a celeuma que envolve a natureza jurídica e a força

~ 46 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

vinculante desse notável e paradigmático documento internacional. Ao final, busca-se


elucidar a importância da DUDHpara a gênese, desenvolvimento e consolidação do
DIDH.

2. OS TRABALHOS PREPARATÓRIOS, A PROCLAMAÇÃO DA


DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E SEU
SIGNIFICADO

Um pouco antes da meia noite de 10 de dezembro de 1948, depois de quase três


anos de gestação, largas e tensas jornadas de negociações e muitas deliberações, a
Assembleia Geral da então recém constituída Organização das Nações Unidas (ONU), em sua
3ª sessão, reunida em Paris, França, adotou e proclamou, por meio da Resolução 217 A
(III), a DUDH, com 48 votos a favor, nenhum contra e apenas oito abstenções (África do
Sul, Arábia Saudita, Bielo-Rússia, Iugoslávia, Polônia,Tchecoslováquia, Ucrânia e União
Soviética). Naquele momento iniciou-se um novo capítulo da história da humanidade,
surgindo um novo horizonte sob o qual voltou a brilhar a esperança dos homens, que havia
sido obscurecida anos atrás com a profunda escuridão que pairou sobre os povos com a
deflagração e ocorrência da Segunda Guerra Mundial e todas as atrocidades cometidas
contra a vida humana nesse fatídico, demencial e desolador período da história humana.
No entanto, o consenso internacional acerca da necessidade de se estabelecerem
documentos e mecanismos internacionais aptos a prevenir as atrocidades perpetradas
contra a vida humana durante conflito que, ao longo de quase seis anos (1939-1945),
estima-se ter dizimado por volta de 50 a mais de 70 milhões de vidas humanas
(SOMMERVILLE, 2008; HANHIMÄKI, 2015), foi obtido ainda durante aguerra, sendo
possível afirmar que o início, ainda que informal, dos trabalhos preparatórios que
culminaram com a adoção da DUDH tiveram início naquele momento, mais
especificamente com a criação da ONU.
Antes mesmo do final do conflito, as potências aliadas (Estados Unidos da
América, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Reino Unido e China), que
combatiam as potências do Eixo (Alemanha, Japão e Itália), levando em consideração o
completo fracasso da Liga das Nações na tentativa de evitar a Segunda Guerra Mundial,
manifestaram a intenção de estabelecer,em um curto período de tempo, uma nova
organização internacional, de caráter gerale fundada na igualdade soberana de todos os
Estados pacíficos, que tivesse como propósitoprimordial a manutenção da paz e da

~ 47 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

segurança internacionais, intenção essa que já pairava no ar com a assinatura da Declaração


das Nações Unidas, em 1º da janeiro de 1942 (CHESTERMAN; JOHNSTONE;
MALONEP, 2016).
Na Conferência de Moscou, que ocorreu entre 18 de outubro e 11 de novembro de
1943, se fez a primeira menção à necessidade da criação da referida organização após o
término da guerra. Na Conferência do Teerã, ocorrida de28 de novembro a 1º de dezembro de
1943, a ideia foi reafirmada.Na Conferência Dumbarton Oaks64, realizada entre agosto e
outubro de 1944, foram feitas as primeiras proposições e preparados os projetos iniciais
referentes à nova organização. Em fevereiro de 1945, na Conferência de Yalta, Crimeia, os
chefes de Estado Winston Churchill, Josef Stalin e Franklin Roosevelt dedicaram-se a
resolver os últimos pontos relativos à nova organização e decidiram pela convocação de
uma nova Conferência a ser realizada na cidade de São Francisco, Califórnia (MELLO,
2004).
A Conferência de São Francisco, denominada oficialmente como “Conferência das Nações
Unidas para a Organização Internacional”, ocorreu entre 25 de abril e 26 de junho de 1945, com
a participação das potências aliadas e de vários outros Estados convidados. Nela foi
preparada a Carta da Organização das Nações Unidas (também conhecida como Carta das
Nações Unidas, Carta da ONUouCarta de São Francisco), que foi aberta a assinatura no último
dia da Conferência.65 Trata-se do documento constitutivo da ONU, instrumento fundante
da maior e mais importante organização internacional (jurídica e politicamente falando) de
vocação global existente nos dias atuais, que entrou em vigor em 24 de outubro de 1945,
com o depósito dos instrumentos de ratificação dos membros permanentes do Conselho de
Segurança (órgão criado pela Carta) e da maioria dos outros Estados signatários.66
A partir de sua adoção, ao longo dos tempos se formou uma discussão acerca de
sua natureza jurídica, evidenciando-se uma preocupação em saber se a Carta deveria ser
tida como uma constituição ou um tratado internacional.67No entanto, conforme afirma
Cançado Trindade (2017, p. 352), felizmente

64A primeira fase de conversações dessa Conferência ocorreu de 21 de agosto a 28 de setembro (União
Soviética, Reino Unido e Estados Unidos) e a segunda faseentre 29 de setembro a 7 de outubro (China, Reino
Unido e Estados Unidos). Dumbarton Oaksé uma residência do século XIX, que tem esse nome e está
localizada em Georgetown, um dos bairros da capital americana, Washington-D.C.
65Foi nessa Conferência que ocorreu a efetiva e mais abrangente inserção dos direitos humanos no que veio a

ser o texto final da Carta da ONU (LAFER, 2012, p. 304).


66 “O tratado-fundação da ONU, que é a carta orgânica da instituição, foi firmado inicialmente por 51

Estados-membros. Desde então, passou a abarcar de maneira crescente e progressiva inúmeros outros
Estados, contando hoje com quase todos os Estados independentes do mundo” (MAZZUOLI, 2016, p. 683).
67 Sobre o assunto vide: Shabtai Rosenne. Is the Constitution of an International Organization an

International Treaty? In: Comunicazioni e Studi, v. 12, 1966, p. 23 89; Simon Chesterman, Ian Johnstone e
David M. Malone. Law and Practice of the United Nations: Documents and Commentary. Oxford: Oxford University

~ 48 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

há hoje um consenso generalizado de que a Carta da ONU não é um tratado


como qualquer outra convenção multilateral nem tampouco uma “constituição”
formal; é um tratado sui generis, a ser interpretado como tal, que dá origem a uma
complexa entidade internacional que passa a ter “vida própria”: sua carta
constitutiva contém regras básicas a reger a convivência internacional assim
como princípios a permear o corpus juris do direito internacional como um todo.

O importante a ser aqui ressaltado é que nesse singular tratado internacional de


natureza sui generis está a gênese da DUDH e da consequente internacionalização dos
direitos humanos, conforme se verá adiante.A doutrina é unânime em afirmar que, ao lado
da primordial finalidade da ONU em manter a paz e a segurança internacionais (Carta da
ONU, art. 1º, 1), não menos importante está o objetivo pertinente àdefesa e promoção do efetivo
respeito aos direitos humanos (MELLO, 2004; QUADROS; PEREIRA, 2015).
Os horrores da Segunda Guerra Mundial despertaram a consciência internacional
acerca da estreita relação entre a segurança e a paz internacionais e o respeito pela
dignidade humana, o que acabou por levar a Carta a dar um salto qualitativo na promoção
dos direitos humanos para todas as pessoas, sem distinção de qualquer natureza.Celso Lafer
(2012, p. 298) explica que a Carta da ONU

vai além da paz e da segurança coletiva, tratadas apenas no relacionamento


interestatal. Aponta para uma comunidade internacional não só de Estados
igualmente soberanos, mas de indivíduos livres e iguais. Nesta linha, (...)
internacionaliza os direitos humanos e insere, de maneira abrangente, a sua
temática na construção da ordem mundial. Procura limitar o arbítrio
discricionário das soberanias no trato dos seus jurisdicionados, que tantas
atrocidades gerou no pós-Primeira Guerra Mundial e que foram
subsequentemente percebidas como uma das causas das tensões que levaram à
Segunda Guerra.Esta inserção adquiriu uma feição clara com a Declaração
Universal de 1948 que é um desdobramento da Carta da ONU.

Conforme Dinah Shelton (2015, p. 7), a preocupação com a promoção e proteção


desses direitos é tecida em toda a Carta, a começar pelo seu preâmbulo, que reafirma,
depois de a humanidade vivenciar os horrores de duas grandes guerras, “a fé nos direitos
fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito
dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas”.
Na sequência, o art. 1º, 3, da Carta menciona entre os propósitos da organização,
a promoção e o estímulo ao respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais
para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. O art. 13, 1, “b”, dispõe que a
Assembleia Geral tem a missão de iniciar e realizar estudos, bem como fazer

Press, 2016, p. xxxiii-xliii; Bardo Fassbender. The United Nations Charter as the Constitution of the International
Community. Leiden: Martinus NijhoffPublishers, 2009.

~ 49 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

recomendações destinados a favorecer o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais por parte de todos os povos.Por sua vez, o art. 55 estabelece que a ONU
deverá promover o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. Em complemento,
o art. 56, numa significativa determinação, declara que para a realização dos propósitos
elencados no art. 55, todos os Estados-Membros da organização se comprometem a agir
em cooperação com ela, em conjunto ou separadamente.
A Carta também confere poderes ao Conselho Econômico e Social (ECOSOC)68,
órgão que foi autorizado a “fazer recomendações destinadas a promover o respeito e a
observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos” (art. 62, 2),
bem como a criar “comissões para os assuntos econômicos e sociais e a proteção dos
direitos humanos assim como outras comissões que forem necessárias para o desempenho
de suas funções” (art. 68).
Malcolm N. Shaw (2014) ressalta ainda que na Carta foi estabelecido um sistema
internacional de tutela69 que, nos termos do art. 76, tem como um de seus objetivos básicos o
estímulo ao respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem
distinção de raça, sexo língua ou religião, em conformidade com os propósitos da ONU,
estabelecidos no art. 1º da Carta.
Como se nota, a preocupação com a proteção dos direitos humanos restou
fortemente evidenciada em diversos dispositivos da Carta, o que sem dúvida colocou a
promoção desses direitos entre os objetivos centrais das Nações Unidas (MINGST;
KARNS, 2011). No entanto, verifica-se que tais disposiçõessão muito genéricas, vagas e
imprecisas. Ademais, embora a Carta tenha manifestado expressamente o dever de os
Estados se comprometerem com a salvaguarda desses direitos nos respectivos planos
domésticos, não definiu o que poderia se entender por “direitos humanos” e “liberdades
fundamentais”, não identificando ou estabelecendotais direitos e liberdades de modo mais
preciso. Pelo contrário, as menções por ela feitas são concisas e até mesmo enigmáticas,
surgindo então a imediata necessidade de se aclarar o seu alcance e significado (ALSTON;
GOODMAN, 2012).

68 O ECOSOC foi estabelecido pela Carta da ONU em seu art. 7, 1, como um órgão intergovernamental sob
a autoridade da Assembleia Geral, que também foi instituída pela Carta no mesmo dispositivo convencional.
69Em 1945, nos termos do Capítulo XII da Carta, a ONU estabeleceu um Sistema Internacional de Tutela para a

supervisão dos Territórios colocados sob sua supervisão por meio de acordos individuais com os Estados que
os administram.O objetivo básico do sistema era promover o avanço político, econômico e social dos
Territórios e seu desenvolvimento para o autogoverno e a autodeterminação. Também incentivou o respeito
pelos direitos humanos e as liberdades fundamentais e o reconhecimento da interdependência dos povos do
mundo.

~ 50 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Conforme explica André de Carvalho Ramos (2016), as referências esparsas aos


direitos humanos na Carta da ONU “revelam (i) a ausência de consenso sobre o rol desses
direitos e (ii) a timidez redacional, pois são utilizadas expressões como ‘favorecer’,
‘promover’ o respeito aos direitos humanos, evitando-se, então, a utilização de expressões
mais incisivas”. Isso constituiu a mola propulsora para o efetivo início dos trabalhos
destinados à elaboração dos primeiros rascunhos daquilo que em pouco mais de três anos
se tornaria a DUDH.
Embora a Carta da ONU não traga uma definição do que seriam os direitos
humanos e as liberdades fundamentais que menciona, “nem por isso se pode entender que
os mesmos não são obrigatórios, sendo obrigação dos Estados entendê-los como regras
jurídicas universais e não como meras declarações de princípios” (MAZZUOLI, 2016, p.
947). Para Philip Alston e Ryan Goodman (2012) a Carta deu uma expressão formal e
autorizada ao regime de direitos humanos que começou no final da Segunda Guerra, pois
desde o seu nascimento, a ONU tem sido um impulso institucional vital para o
desenvolvimento do regime de proteção internacional dos direitos humanos, além de servir
como um fórum importante para debates bilaterais sobre o tema. Apesar da falta de
precisão das normas de direitos humanos nela constantes, elas foram (e têm sido) de
grande importância, notadamente por terem outorgado caráter internacional a esses
direitos, bem como por criar as bases jurídicas necessárias para que a ONU pudesse dar
início aos trabalhos de definição e codificação dos direitos humanos (BUERGENTHAL,
GROSSMAN; NIKKEN, 1990).
Conforme os poderes que lhe foram conferidos pelo art. 68 da Carta da ONU, o
ECOSOC, em sua primeira sessão de trabalhos, ocorrida em Londres, de 26 de janeiro a 18
de fevereiro de 194670, por meio da Resolução E/RE/5 (I), de 16 de fevereiro de 1946,
criou a Comissão de Direitos Humanos (CDH)71 da ONU, estabelecendo-a definitivamente
como um órgão intergovernamental subsidiário, por meio da Resolução E/RES/9 (II), de
21 de junho de 1946 (SCHABAS, 2013).72Nos termos do mandato73que lhe foi atribuído, a

70 Todos os documentos relativos às atividades do ECOSOC entre 1946 a 1947 (1ª a 5ª Sessão), importantes
por colocarem em marcha os procedimentos necessários para a elaboração da DUDH, podem ser
consultados em: <https://goo.gl/Dx2BLD>. Acesso em 20 dez. 2017.
71 A Comissão exerceu suas atividades de 1946 a 2006, quando foi substituída pelo atual Conselho de Direitos

Humanos, criado em 2006, por meio da Resolução n. 60/251 da Assembleia Geral da ONU, de 03 de abril de
2006. O texto integral do referido documento pode ser acessado em: <https://goo.gl/xDgjnL>. Acesso em
20 dez. 2017.
72 Todos os documentos relativos aos travauxpréparatoires da DUDH podem ser encontrados na fantástica obra

de William A. Schabas, intitulada The Universal DeclarationofHumanRights: The travauxpréparatoires, fonte exaustiva
de consulta adotada no presente texto.
73 De acordo com as decisões adotadas na primeira e na segunda sessão do ECOSOC, em 1946, a CDH

recebeu um mandato para lhe apresentar propostas, recomendações e relatórios sobre: a) uma carta

~ 51 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

CDH recebeu logo no início de suas atividades, a árdua e, ao mesmo tempo, honrosa
incumbência de elaborar o projeto da DUDH, visando a explicitar quais seriam os “direitos
humanos” e as “liberdades fundamentais”, previstos genericamente na Carta.
A história da redação oficial é importante para a historiografia da DUDH, bem
como para os direitos humanos em geral, sendo também de especial relevância para a
interpretação da própria Declaração (SCHABAS, 2013) e para a compreensão de sua
ascensão enquanto norma soft law para um documento comforça juridicamente
vinculante.O estudo do procedimento de elaboração da DUDH feito a seguir está pautado,
sobretudo, nos documentos oficiais da ONU. Didaticamente, visando-se a uma melhor
compreensão, a análise da redação oficial da Declaração é feita no presente texto em sete
estágios específicos, que abrangem a atuação de todos os órgãos das Nações Unidas que
estiveram envolvidos em dito procedimento: o Conselho Econômico e Social(quatro sessões), a
Comissão de Direitos Humanos (três sessões), o Comitê de Redação (duas sessões), o Grupo de
Trabalho Temporário, o Terceiro Comitê (Social e Humanitário) da Assembleia Geralda ONU e sua
Assembleia Geral.74
O processo formal de elaboração da DUDHteve início na primeira sessão da
CDH (Estágio 1), realizada no período de 27 de janeiro a 10 de fevereiro de 1947, que
adotou como método de trabalho o estabelecimento de um Comitê de Redaçãocomposto
por oito membros,escolhidos com base no princípio da representação geográfica 75, que
foram incumbidos da tarefa de redigir um projetoda DUDH. Nessa sessão,Eleanor
Roosevelt76 (EUA) foi eleita por unanimidade como Presidente da CDH, Peng-Chan
Chang (China)Vice-Presidente e Charles Malik (Líbano) foi escolhido como Relator
(E/CN.4/SR.1).John P. Humphrey (Canadá), então Diretor da Divisão de Direitos

internacional de direitos humanos; b) declarações ou convenções internacionais sobre as liberdades cívicas, o status
legal e social das mulheres, a liberdade de informação e outras questões análogas; c) a proteção das minorias;
d) a prevenção da discriminação baseada na raça, sexo, língua ou religião; e, e) qualquer outra questão
relacionada aos direitos humanos não prevista nas hipóteses anteriores (NAÇÕES UNIDAS, 1995, p. 15).
74 O site da Biblioteca Dag Hammarskjöld, que fornece pesquisa e informação para o apoio dos trabalhos dos

Estados Membros da ONU, oferece acesso à toda documentação da ONU relacionada ao processo de
elaboração da DUDH. Os documentos, utilizados e citados nesse texto, são apresentados em ordem
cronológica, organizados de acordo com os vários órgãos que se reuniram para discutir, elaborar e redigir a
DUDH. Há também breves notas biográficas dos membros do Comitê de Redação, formado pela CDH da
ONU. Disponível em: <http://research.un.org/en/undhr/introduction>. Acesso em 22 dez. 2017.
75Austrália, Chile, China, Estados Unidos da América, França, Líbano, Reino Unido e União Soviética.
76 A viúva do Presidente Franklin D. Rooseveltpresidiu a CDH no período de elaboração e aprovação da

DUDH. Segundo Celso Lafer (2012, p. 308), citando MaryAnnGlendon, a“grande contribuição de Eleanor
Roosevelt não se deu propriamente na redação do texto da Declaração, mas sim na liderança que exerceu na
presidência da Comissão. Foi ela que manteve o projeto da Declaração vivo e em andamento em momentos
difíceis da negociação e exerceu a sua influência política para assegurar a continuidade do apoio do
Departamento de Estado e do Governo norte-americanos”. Sobre a vida de Eleanor Roosevelt, bem como
sobre a sua grande contribuição para com a DUDH vide: Mary Ann Glendon. A World Made New: Eleanor
Roosevelt and the Universal Declaration of Human Rights. New York: RandomHouse, 2001.

~ 52 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Humanos da Secretaria da ONUe Secretário da CDH, também participou das sessões da


Comissão e foi de fundamental importância no processo de redação da DUDH.
Entre os membros da CDH, os pontos de vista diferiram quanto à natureza do
documento que deveria ser criado, isto é, se um instrumento juridicamentevinculante que
contemplasse possíveis métodos de execução, ou uma declaração universal de direitos que
atuaria como um documento universal de definição padrão para os direitos humanos. Esta
questão persistiu ao longo do processo de redação e a CDH trabalhou em ambos os lados,
simultaneamente (E/CN.4/SR.7, E/CN.4/SR.9,E/CN.4/SR.10). Conforme explica
Cançado Trindade (2003, p. 58), o plano geral inicial “era de uma Carta (Bill) Internacional
de Direitos Humanos, da quala Declaração seria apenas a primeira parte, a ser
complementada por uma Convenção ou Convenções (posteriormente denominadas
Pactos) e medidas de implementação”.
Durante essa primeira sessão, a CDH decidiu que (i) a Presidente, o Vice-
Presidente eo Relator, com a assistência da Secretaria, assumiriam a tarefa de formular o
projeto da DUDH, de acordo com as instruções e decisões da Comissão, que deveria ser a
ela submetido em sua segunda sessão para uma análise mais aprofundada; (ii) a Presidente,
no decorrer dos trabalhos, poderia obter a cooperação e receber, por via oral ou escrita,
quaisquer observações e sugestões de qualquer membro da Comissão, bem como poderia
consultar os peritos escolhidos com o consentimento dos seus Governos, membros da
ONU; (iii) a Presidente, o Vice-Presidente e o Relator, na elaboração do referido projeto,
poderiam consultar qualquer pessoa ou documento que julgassem relevante para o
desenvolvimento do trabalho.O relatório dessa primeira sessão da CDH (E/259) foi
submetido à quarta sessão do ECOSOC.
Quando o relatório da primeira sessão da CDH foiconsiderado na quarta sessão
do ECOSOC, alguns membros expressaram a opinião de que o Comitê de Redação deveria
ser ampliado.77 Na sequência de uma carta da Presidente da CDH ao Presidente do
ECOSOC, de 27 de março de 1947 (E/383), oComitê foi então expandido para incluir
representantes da Austrália, Chile, França, União Soviética e Reino Unido, além dos
representantes da China, França, Líbano e Estados Unidos da América.
Em fevereiro de 1947, de conformidade com o decidido na primeira sessão da
CDH, o grupo composto por Roosevelt, Chang e Malik deu início à elaboração da DUDH.

77 Nessa quarta sessão, o Conselho decidiu que o projeto da Declaração seria submetido à CDH, que o
submeteria aos Estados Membros da ONU para comentários e que o Comitê de Redação consideraria esses
comentários como base para um novo projeto, se necessário. O rascunho seria então novamente submetido à
Comissão para consideração final e então seria enviado ao ECOSOC, que por sua vez enviaria a versão final à
terceira sessão da Assembleia Geral em 1948, para sua consideração.

~ 53 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Com a assistência do Secretariado da ONU, a tarefa de formular o primeiro projeto foi


dada aJohn P.Humphrey, que elaborou um texto consubstanciando“uma competente
destilação de numerosos projetos elaborados por diferentes indivíduos e organizações,
lastreada igualmente na documentação que o secretariado coligiu de textos extraídos das
constituições de muitos países” (LAFER, 2012, p. 308), que foi posteriormente enviado ao
Comitê de Redação.
O projeto elaborado por Humphrey foi submetido à primeira sessão do Comitê
de Redação (Estágio 2), que ocorreu entre 09 e 25 de junho de 1947, sendo apresentado na
forma de uma Declaração Internacionalde DireitosHumanos que continha 48 artigos
(E/CN.4/AC.1/3) e recebeu dois adendos (E/CN.4/AC.1/3/Add.1 e
E/CN.4/AC.1/3/Add.2). Na primeira reunião, o Comitê criou um grupo de trabalho
temporário composto por René Cassin (França), Charles Malik (Líbano), Geoffrey Wilson
(Reino Unido) eEleanor Roosevelt (EUA) (E/CN.4/AC.1/SR.6), cujas tarefas eram(i)
realizar um rearranjo lógico dos artigos do anteprojeto preliminar, (ii) elaborarum novo
rascunho de seus vários artigos, à luz das discussões havidas no âmbito do Comitê de
Redação, e (iii) sugerir ao Comitê de Redação como a substância dos artigos poderia ser
“dividida” entre uma declaração e uma convenção. No âmbito desse grupo de trabalho, foi
dada à René Cassin a tarefa de redigir o novo projeto da DUDH, baseado no texto
preliminar de Humphrey.
Cassin elaborou então um novo projeto, contemplando aquilo que entendia ser
apropriado incluir em uma Declaração. Belo, harmonioso e de qualidades arquitetônicas, o
projeto consistiu num “documento integrado, com sentido de aplicação universal, que
partiu do elenco de direitos preparado pelo secretariado, mas teve o indiscutível mérito de
iluminar o significado desses direitos e das suas interdependências” (LAFER, 2012, p. 309).
O relatório do Comitê de Redação, apresentado à CDH (E/CN.4/21),incluiu os
rascunhos de uma Declaração Internacional de Direitos Humanos (Anexo F), de Projetos de Artigos
a serem considerados para inclusão em uma convenção (Anexo G), bem como
umMemorando de Implementação, elaborado pela Divisão de Direitos Humanos da ONU, a
pedido do Comitê de Redação (Anexo H).
Durante a segunda sessão da CDH(Estágio 3), realizada no período de 02 a 10 de
dezembro de 1947, o conceito de uma Carta Internacional de Direitos Humanos aparece como
sendo compreensivo de três partes: uma declaração, uma convenção e medidas de

~ 54 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

implementação.78As discussões revelaram que muitos Estados-Membros da ONU estavam


prontos a aceitar um projeto de declaração que precedesse (mas não substituísse) uma
futura convenção. Com base nos documentos já elaborados até então, nessa segunda sessão
a CDH produziu uma nova minuta da Declaração (“o Rascunho de Genebra”), que foi
submetida aos Estados para comentários.79
Em sua sexta sessão, ocorrida entre 02 de fevereiro e 11 de março de 1948, o
ECOSOC adiou a consideração dos projetos de declaração e da convenção para sua
próxima sessão, a fim de permitir que aCDHtivesse a oportunidade de rever os projetos à
luz das observações recebidas dos Governos.
Em sua segunda sessão(Estágio 4), realizada no período de 03 a 21 de maio de
1948, o Comitê de Redação reviu a minuta da DUDH, à luz dos comentários recebidos dos
Estados, considerando também documentos e sugestões recebidas de outros órgãos,
incluindo a Conferência das Nações Unidas sobre Liberdade de Informação, realizada de março a
abril de 1948, em Genebra (E/Conf.6/79), a Comissão sobre o Estatuto da Mulher (E/615) e a
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, adotada pela Nona Conferência
Internacional dos Estados Americanos, realizada em Bogotá, na Colômbia, que ocorreu no
período de 30 de março a 02 de maio de 1948.
O relatório acerca dessa segunda sessão do Comitê foi submetido à terceira sessão
da CDH (E/CN.4/95). O Anexo A desse relatório continha a nova redação do projeto
daDeclaração Internacional de Direitos Humanos e no Anexo B estava um novo rascunho do
projeto de uma Convenção Internacional sobre Direitos Humanos. O Comitê não teve tempo
suficiente para estudar a questão das medidas de implementação, conforme havia sido
direcionado anteriormente (E/RES/116(VI)F; E/CN.4/95).
Durante a sua terceira sessão(Estágio 5), realizada no período de 24 de maio a 16
de junho de 1948, a CDH, baseando seu trabalho no relatório da segunda sessão de
trabalho do Comitê de Redação, fez novas revisões da minuta antes de submetê-la ao
ECOSOC.Foi feita uma análise individual dos artigos da Declaração e a Comissão então
78 Em sua 29ª reunião, de 8 de dezembro de 1947 (E/CN.4/SR.29), a CDH criou três grupos de trabalho
distintos para considerar, respectivamente, a Declaração, a Convenção (ou as Convenções) e as Medidas de
Implementação. Estes grupos apresentaram os seus relatórios à Comissão por meio dos seguintes
documentos: E/CN.4/56 (Grupo de Trabalho sobre uma Convenção Internacional sobre os Direitos
Humanos); E/CN.4/57 e E/CN.4/57/Add.1 (Grupo de Trabalho sobre a Declaração sobre os Direitos
Humanos); e, E/CN.4/53 (Grupo de Trabalho sobre Implementação). O relatório da segunda sessão da
Comissão está constante no documento E/600.
79 Conforme observado no § 13 do relatório da CDH sobre sua 2ª sessão (E/600), tendo em vista a

necessidade de o Comitê de Redação estar plenamente informado sobre as respostas dos Governos antes da
próxima reunião, que seria realizada em 3 de maio de 1948, a Comissão solicitou a Secretário geral que: (i)
transmitisse o relatório aos Governos durante a primeira semana de janeiro de 1948; (ii) fixasse a data de 3 de
abril de 1948 como o prazo para a recepção das respostas dos Governos sobre o projeto de Declaração; e,
(iii) distribuísse estas respostas aos membros da Comissão logo que fossem recebidas.

~ 55 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

aprovou uma nova minuta da Declaração com 12 votos a favor e 4 abstenções


(E/CN.4/SR.81).O relatório da terceira sessão da Comissão (E/800 e Add.1 e Add.2), foi
submetido à sétima sessão do ECOSOC.
Nas reuniões que aconteceram durante a sétima sessão do ECOSOC, de 19 de
julho a 29 de agosto de 1948, todos os membros do Conselho fizeram declarações sobre o
relatório da terceira sessão da CDH. Os membros sublinharam a importância do projeto
dadeclaração, mas também lamentaram a não conclusão do projeto da convenção
internacional e das medidas de implementação (E/SR.215 e E/SR.218).Na sequência das
discussões, o Conselho adotou a Resolução 151 (VII), de 26 de agosto de 1948,
transmitindo o projeto da DUDH à Assembleia Geral da ONU.
As reuniões do Terceiro Comitê (Social, Humanitário e Cultural) da Assembleia
Geral da ONU (Estágio 6), realizadas de30 de setembro a 07 de dezembro de 1948,
proporcionaram uma nova oportunidade para os Estados que não tinham nenhuma
representação dentre os membros da CDH, opinarem quanto à minuta da DUDH. Mesmo
diante de todo o trabalho que já havia sido realizado pela CDH e seus órgãos subsidiários
(Comitê de Redação e Grupo de Trabalho Temporário), o Terceiro Comitê examinou
novamente todo o documentoao longo de 85 reuniões, votando cada um dos seus
dispositivos num processo que requereu 1400 votações(MORSINK, 1999). Nesse
momento mais uma vez a influência de Eleanor Roosevelt foi imprescindível para que os
trabalhos realizados até então não fossem naquele instante obstaculizados no âmbito do
Terceiro Comitê (DARRAJ,2009).
Assim que o Comitê finalizou a revisão do projeto, um subcomitê presidido por
René Cassin começou a colocá-lo naquilo que seria a sua forma definitiva. Nessa fase,
algumas mudanças foram feitas na sequência dos artigos e, por influência da Cassin, o título
da então Declaração Internacional de Direitos Humanos foi oficialmente alterado para
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Segundo Cassin, a expressão “universal”
deixava claro o significado de que a DUDH era um documento moralmente vinculante
para todos os Estados e não somente para os Governos que votaram pela sua adoção.
Também deveria ficar claro que não se tratava de um documento “internacional” ou
“intergovernamental”, mas dirigidoa toda a humanidade e fundado em uma concepção
unificada do ser humano (GLENDON,2001; CASSIN, 1972).No dia 7 de dezembro de
1948, às três horas da manhã, o projeto foi aprovado pelo Terceiro Comitê para submissão
à Assembleia Geral(A/777).

~ 56 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Era chegado então o momento que impactaria a história dos direitos humanos
para sempre. No dia 09 de dezembro de 1948, Charles Malik, em vez de Eleanor Roosevelt,
apresentou formalmente o projeto final daDUDH à Assembleia Geral das Nações
Unidas(Estágio 7).80 O projeto teria que obterdois terços dos votos(Carta da ONU, art. 18, 2)
para que lograsseaprovação. O clima estava tenso e Roosevelt, Malik, Chang, Cassin e
Santa Cruz, dentre outros, esperavam que seus dois anos de trabalho árduo não restassem
infrutíferos. Felizmente isso não ocorreu e, na memorável noite de 10 de dezembro de
1947, a Assembleia Geral das Nações Unidas, durante o seu terceiro período de sessões (de
setembro a dezembro de 1948), adotou e proclamou a DUDH, nascendo, assim, o
documento que veio a definir com precisão o elenco dos “direitos humanos” e das
“liberdades fundamentais” que foram referidos pelos arts. 1° (3), 13, 55, 56, 62, 68
(estecom referência somente aos direitos humanos) e 76 da Carta da ONU.
Conforme Celso Lafer (2012), a DUDH, embora não tenha pais, deve sua
existência a seis “padrinhos” que integraram a CDH e que foram decisivos na sua
formulação e subsequente aprovação pela Assembleia Geral. São eles: Eleanor Roosevelt
(EUA), John P. Humphrey (Canadá), René Cassin(França), Charles Malik (Líbano), Peng-
Chan Chung (China) e Hernán Santa Cruz (Chile). Esses “padrinhos” empenharam-se,
utilizando suas influências políticas e seus generosos atributos intelectuais, para compor um
texto conciliatório em plena época de início da guerra fria e que conseguiu lograr um
surpreendente consenso interestatal sobre a relevância dos direitos humanos, considerando
a diversidade dos regimes políticos, dos sistemas filosóficos e religiosos e das tradições
culturais dos Estados-Membros da ONU.
Não cabe dentro dos propósitos do presente texto realizaraquiuma análise
pormenorizada do conteúdo da DUDH, mas é imperioso acentuar o seu importante
significado para a internacionalização dos direitos humanos e sua forte pretensão de
universalidadedesses direitos, o que certamente decorreu do caráter avançado de suas
disposições (considerando-se o contexto mundial da época em que foi proclamada), bem
como da virtude de terreunido, em um só documento, os direitos civis e políticos (arts. 3º a
21) e também os direitos econômicos, sociais e culturais (arts. 22 a 28). Conforme Flávia
Piovesan (2009), em razão de conter uma linguagemde direitos inédita até então, a DUDH

80Susan Muaddi Darraj (2009, p. 80-81) explica que é provável que a CDH tenha sentido que Malik deveria
apresentar o projeto da DUDH à Assembleia Geral em razão do papel fundamental que desempenhou ao
“pastorear” o documento através do ECOSOC, bem como durante o exaustivo Terceiro Comitê. Sua
reputação na ONU em razão disso era bastante prestigiosa e muitos no mundo o consideravam com respeito
e admiração. O relatório do Terceiro Comitê foi apreciado nas reuniões plenárias da Assembleia Geral nos
dias 09 e 10 de dezembro de 1948 (A/PV.180, A/PV. 181, A/PV.182, A/PV.183).

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Direitos Humanos & Fundamentais

insereno cenário internacional uma extraordinária inovação da gramática dos direitos humanos
ao introduzir a concepção contemporânea desses direitos, marcada pela universalidade 81 e
indivisibilidade.82Sobre a significação da DUDH, Cançado Trindade (2003) afirma ter sido
ela o ímpeto decisivono processo de generalização da proteção internacional dos direitos
humanos que as décadas subsequentes à sua proclamação têm testemunhado desde estão.
Atualmente é tranquilamente perceptível que ao longo dos últimostempos,
notadamente a partir do início do século XXI, houve desenvolvimentos substantivos nas
perspectivaspolíticas, teóricas, jurídicas e legais no âmbito doDireito Internacional
relativamente aos direitos humanos, incluindo debates sobre várias questões conceituais
acerca do alcance e o do conteúdo desses direitos em geral. Também houve um
crescimento significativo nas decisões e na jurisprudência de diferentes órgãos e tribunais
internacionais responsáveis pela interpretação e implementação dos direitos humanos no
plano internacional.
Do mesmo modo assumiu destaque e aumentou expressivamente o papel de
entidades não estatais, tais como as organizações não governamentais (ONGs) na proteção
dos direitos humanos ao redor do globo. Novas perspectivas surgiram e evoluíram em
relação à responsabilidade internacional dos Estados por graves violações de direitos
humanos, bem como aos remédios voltados para a reparação dessas violações. A
responsabilidadepenal individual por graves violações de direitos humanos também passou
a desenvolver-se no plano internacional, notadamente mediante a atuação do Tribunal
Penal Internacional (TPI).
Não há dúvida de que todo esse tremendo quadro evolutivo no tocante à
proteção e promoção internacional dos direitos humanos está direta e indiretamente ligado
à existência da DUDH e ao significado global que ela assumiu, o que denota, à toda
evidência, olegado que esse virtuoso instrumento tem deixado ao longo das últimas sete
décadas ao redor do globo.

81 “Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a
condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um
ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição
humana” (PIOVESAN, 2009, p. 186-187).
82 Além de afirmar a universalidade dos direitos humanos, a Declaração Universal acolhe a ideia da

indivisibilidade dos direitos humanos, a partir de uma visão integral de direitos. A garantia dos direitos civis e
políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um
deles é violado, os demais também o são (PIOVESAN, 2009, p. 188).

~ 58 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

3. A NATUREZA JURÍDICA E A DISCUSSÃO SOBRE A FORÇA


VINCULANTE DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

Conforme se verificou na seção anterior, DUDH foi inicialmente adotada e


proclamada pela Assembleia Geral da ONU por meio da Resolução 217 A (III), na forma
do art. 10 da Carta da ONU. Portanto, um primeiro dadoa ser destacado nesse tópico é que
a DUDH não é tecnicamente um tratado internacional, mas tem natureza jurídica de resolução. Esse
dado é importante porque dele decorremas discussõesacerca da força vinculante da
Declaração. Seria ela um instrumento capaz de criar direitos juridicamente exigíveis no
plano interno dos Estados-Membros da ONU? Teria ela o poder de impor objetivamente
obrigações a esses Estados? Esse é o ponto que se pretende discutir e, ainda que de modo
não exaustivo, esclarecer nessa seção do texto.83
Como se sabe, no plano internacional, o instrumento capaz de criar direitos e
imporobrigações juridicamente vinculantes para as partes envolvidas em determinado
acordointernacional de natureza jurídica é denominado tratado internacional, que compõe a
categoria das normas conhecidas como hard lawno âmbito do Direito Internacional.
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT), de 1969, traz a definição
legal de tratado como sendo um “acordo internacional concluído por escrito entre Estados
e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou
mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica” (art. 1º, “a”).
Por sua vez, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados e Organizações
Internacionais ou entre Organizações Internacionais, de 1986, ainda não em vigor no plano
internacional até o presente momento, dispõe que o tratado “significa um acordo
internacional regido pelo Direito Internacional ecelebrado por escritoi) entre um ou mais
Estados e uma ou mais organizaçõesinternacionais; ouii) entre organizações
internacionais,quer este acordo conste de um único instrumento ou de dois ou mais
instrumentos conexos equalquer que seja sua denominação específica” (art. 1º, “a”).
Em razão da evolução do Direito Internacional nos últimos tempos, os Estados
deixaram de ocupar a posição de únicos sujeitos do Direito das Gentes com capacidade
para celebrar tratados internacionais, tendo ocorrido uma notória ampliação do rol dos
sujeitos internacionaisque passaram a deter o treaty making power. Em razão disso, adequando-se
os conceitos convencionais acima mencionados à realidade internacional atual, um tratado
internacionalpode ser entendido como um acordo internacional, celebrado por escrito, constante de

83Para um estudo aprofundado sobre as Declarações da Assembleia Geral da ONU e o seu significado
normativo vide Asamoah (1966).

~ 59 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

um único instrumento ou em dois ou mais instrumentos conexos, concluído entre sujeitos do Direito
Internacional com capacidade para celebrar tratados, sob a égide das normas internacionais, visando a
produção de efeitos jurídicos, independentemente de sua designação específica.
Verifica-se, portanto, que o instrumento destinado à produção de efeitos jurídicos
na órbita internacional, capaz de criar direitos e impor obrigações juridicamente vinculantes
para as partes contratantes é somente o tratado internacional, fruto de uma livre
manifestação de vontades (bilaterais ou multilaterais) capaz de obrigarao cumprimento
daquilo que foi pactuado (pacta sunt servanda), conforme dispõe o art. 26 da CVDT.
No exercício de suas funções e atribuições (Carta da ONU, arts. 10 a 17), a
Assembleia Geral da ONU, órgão deliberativo (e não legislativo) por excelência, se
manifesta por meio deresoluções84, que são declarações de recomendação, de efeito não
vinculante para os Estados-Membros da ONU, como regra (HURD, 2014).85Conforme
Donald A. Wells (2005, p. 20), tais resoluções servem a duas funções básicas: “elas ajudam
a estabelecer a liderança moral e a indicar o consenso dos Estados, como o que deve e o
que não deve ser feito”(tradução nossa). Diferentemente dos tratados (que pressupõem
sempre um acordo bi ou multilateral de vontades), as resoluções nascem de um processo
devotação dos Estados-Membros da ONU sobre determinado assunto, sendo sua
característica comum a unilateralidade.86Para além dessa constatação, na doutrina verifica-se
também uma incerteza terminológica e ambiguidade conceitual em relação aos atos
emanados de organizações internacionais como a ONU.
Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet (2003, p. 377) afirmam que,
apesar dessa incerteza e ambiguidade e “à custa de uma arbitrariedade sobretudo
pedagógica”, é possível dar um sentido genérico a algumas expressões. Nesse sentido,
citando M.Virally, os autores apontam queuma recomendação é a “resolução de um órgão
internacional dirigida a um ou vários destinatários (e implicando) um convite à adopção de

84 “A atuação dos organismos internacionais, em setores os mais diversos, se externaliza habitualmente


através de resoluções, de relevância e significação variáveis: algumas servem de instrumento de exortação,
outras enunciam princípios gerais, e outras requerem determinado tipo de ação visando resultados
específicos”. (CANÇADO TRINDADE, 2017, p. 106)
85 Vale aqui ressaltar que de acordo com a Carta da ONU, algumas resoluções da Assembleia Geral têm força

vinculante, tais como aquelas que aprovam o orçamento da organização (art. 17, 2), a admissão, suspensão e
expulsão de membros (art. 18, 2), a escolha de juízes e do Secretário-Geral (CANÇADO TRINDADE, 2017,
p. 111; DINH; DAILLIER; PELLET, 2003, p. 379). De acordo com a doutrina, a natureza de uma resolução
determina se ela terá ou não força vinculante. As resoluções (decisões) do Conselho de Segurança da ONU,
v.g., podem criar obrigações diretas para os Estados, nos termos do art. 25 c./c. art. 103, da Carta das Nações
Unidas.
86 Vale aqui ressaltar que, embora os atos unilaterais das organizações internacionais não estejam

contemplados no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, que contempla o clássico rol das
fontes do Direito Internacional, a doutrina hoje é tranquila em afirmar que estes atos integram aquilo que tem
sido denominado como as novas fontes do Direito das Gentes (QUADROS; PEREIRA, 2015, p. 272).

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Direitos Humanos & Fundamentais

um determinado comportamento, ação ou abstenção”; por sua vez, o termo decisão é


“reservado aos actos unilaterais obrigatórios”; e o termo resolução engloba “as duas
categorias precedentes, visando, portanto, qualquer acto emanado de um órgão colectivo
de uma organização internacional”.
Verifica-se, portanto, que as resoluções da Assembleia Geral são atos unilaterais
provindos deste órgão, constituindoinstrumentos distintos dos tratados internacionais, uma
vez quenão passampelo rito procedimental formal (tanto internacionalcomo doméstico) de
celebração dos tratados, mas tão-somente por um processo de votação dos membros da ONU.
Ademais, tais resoluções também não possuem as características impostaspela CVDT para
que um ato internacionaldetenha a roupagem própria de tratado, notadamente por não
serem “concluídas entre Estados”,mas adotadas unilateralmente pela Assembleia Geral
(MAZZUOLI, 2016).
Em razão disso, o entendimento doutrinário predominante é o de que, como
regra, as resoluções da ONU, em geral, são instrumentos que não têm força jurídica
vinculante para os Estados (MIRANDA, 2008), consistindo, a priori, apenasrecomendaçõesdas
Nações Unidas, adotadas sob a forma de resoluções (QUADROS; PEREIRA, 2015). 87
Nesse sentido, em razão dessecaráter recomendatório, tais resoluções constituiriam,em sua
grande maioria, parte do soft law88 do Direito Internacional, isto é, “instrumentos ou regras
que têm alguns indícios de DireitoInternacional, mas aos quais faltam vinculação legal
explícitae acordada”(tradução nossa) (RAUSTIALA; SLAUGTHER, 2001, p. 551), sendo
exatamente esseo status com o qual nasceu a DUDH (BROWN, 2016).
No entanto, embora a DUDH não seja tecnicamente um tratado, mas fruto de
uma resolução unilateral, ela tem sido a pedra fundamental da atividade da ONU (dentre muitos
outros organismos e tribunais internacionais e nacionais) na proteção e promoção dos
direitos humanos em todo o mundo. Em decorrência dessa constatação, Malcolm N. Shaw
(2014) explica que, embora inicialmente a DUDH não tenha nascido como

um instrumento capaz de dar margem a meios judiciais de coerção; no entanto,


importa saber se ela não veio depois a adquirir esse caráter vinculante, quer pelo

87 Conforme afirma Ricardo Seitenfus (2016, p. 143), a “natureza das resoluções oriundas da Assembleia é

bastante distinta. Trata-se unicamente de recomendações feitas aos Estados-Membros ou ao Conselho de


Segurança, ausente qualquer elemento de constrangimento”.
88 Importante considerar que não há uma definição universalmente aceita da expressão soft law. Em verdade, a

própria noção de soft lawainda é bastante contestada. No entanto, nos últimos tempos o termo tem
sidoamplamente utilizado por advogados internacionais e aparecido na jurisprudência (nacional e
internacional), sendo geralmente entendido como referindo-se a certas categorias de normas em que pelo
menos algumas delas têm tido um impacto inegável na interpretação, aplicação e desenvolvimento do Direito
Internacional dos Direitos Humanos (LAGOUTTE; GAMMELTOFT-HANSEN; JOHN CERONE, 2016,
p. 15).

~ 61 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

costume, quer pelos princípios gerais de direito, quer ainda em virtude da


interpretação que a prática subsequente conferiu à própria Carta das Nações
Unidas.(tradução nossa)

Assim sendo, uma vez apresentadas essas premissas iniciais, cumpre a partir desse
ponto analisar quais as teses que se formaram ao longo dos tempos acerca da força
vinculante da DUDH e qual (ou quais) delas se revela mais apropriada e condizente com a
importância e amplitude que assumiu a proteção dos direitos humanos na atualidade, tanto
no plano doméstico dos Estados como no âmbito da sociedade internacional.
A tese da recomendação, presente em pequena parcela da doutrina89, nega qualquer
caráter vinculante às normas contidas na DUDH, exatamente por atribuir a elas tão-
somente o valor de meras recomendações. O fundamento dessa tese repousa em dois aspectos
específicos: (i) na interpretação literal da Carta da ONU, que nos dispositivos em que trata
das funções e atribuições da Assembleia Geral (arts. 9º a 22) é explícita ao afirmar (várias
vezes) que ela poderá fazer recomendações aos Estados-Membros e ao Conselho de
Segurança; e, (ii) na prática de celebração de diversos tratados internacionais de direitos
humanos, estes sim, com força vinculante e que seriam até mesmo desnecessários se a
DUDH contasse com tal eficácia (MIRANDA, 2008).
Essa tese peca pelo menos por dois motivos. Primeiro, por levar em consideração
apenas o aspecto formal das disposições da Carta, sem se importar com o aspecto material, isto
é, com o conteúdo das recomendações adotadas pela Assembleia Geral sob a forma de
resoluções, que materialmente podem ostentar caráter vinculante, a depender da natureza de
suas disposições, como é o caso da DUDH.E segundo, porque a experiência de celebração
dos tratados de direitos humanos, ulterior à Declaração, por si só não tem o condão de
afastar o caráter vinculante de suas normas, mas de todo o contrário. Se tais tratados têm
reiteradamente feito menção à DUDH e até mesmo repetido o conteúdo de certos direitos
por ela veiculados, não há dúvida de que esses fatos denotam a afirmação convencional de sua
força normativa. Além disso, a força expansiva das disposições da Declaração tem
impulsionado a adoção de muitos tratados voltados à proteção específica de certos direitos

89Hersch Lauterpacht, comentando duramente a DUDH depois de sua proclamação, afirmava que “a
linguagem da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as circunstâncias e as razões da sua adoção e,
acima de tudo, a intenção clara e enfaticamente expressa dos Estados Membros das Nações Unidas que
votaram a favor da Resolução da Assembleia Geral, mostram claramente que a Declaração não é pela sua
natureza e pela intenção de suas partes um documento legal que impõe obrigações legais” (apudSCHABAS,
2013, p. cxiii e cxvi). Conforme aponta Celso D. de Albuquerque Mello (2004, p. 870), a Declaração “não
possui qualquer valor de obrigatoriedade para os Estados. Ela não é um tratado, mas uma simples declaração,
como indica o seu nome. O seu valor é meramente moral. Ela indica diretrizes a serem seguidas neste assunto
pelos Estados”.

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Direitos Humanos & Fundamentais

humanos, que encontram apenas uma proteção genérica na DUDH, sendo, portanto, de
todo necessários, por razões óbvias.90
A DUDH tem sofrido importantes transformações desde a sua adoção, em 1948.
E diante de um quadro evolutivo do Direito Internacional, notadamente em relação aos
seus sujeitos91 e fontes92, a tese da mera recomendação parece não mais se sustentar.Conforme
Celso Lafer (2012, p. 318), “no correr dos anos, por obra da prática internacional, ela foi se
transformando num instrumento normativo e num documento político de grande
envergadura”.Atualmente a grande maioria da doutrina93 afirma, quase que unanimemente,
a força vinculante da DUDH, ressaltando ser ela um instrumento normativo que cria
obrigações jurídicas para os Estados-Membros da ONU. Parece que a disputa existente
atualmente acerca do seu caráter normativo, não se refere à existência ou não de sua força
vinculante, mas se reduz em saber se todos os direitos proclamados pela Declaração têm
essa força obrigatória e em que circunstâncias (BUERGENTHAL; GROSSMAN;
NIKKEN, 1990). É sob a ótica da força normativa que são expostas a seguir as demais
teses relativas à temática ora abordada.
Para asteses integrativa e da interpretação autêntica, a força vinculante da DUDH (ou
pelo menos de certas disposições nela contidas)reside no fato de ser ela um documento
integrativo da Carta da ONU, cujas normas constituem uma interpretação
autêntica(authoritative interpretation)das expressões “direitos humanos” e “liberdades
fundamentais”, previstas genericamente na Carta (SHAW, 2014; JENNINGS, WATTS,
1992).Para Celso Lafer (2012, p. 318) “sua contínua invocação, de maneira quase unânime,
no âmbito dos órgãos principais da ONU, acabou conferindo à Declaração a dimensão de
uma interpretação autêntica da Carta da ONU e dos seus dispositivos em matéria de
Direitos Humanos”, especialmente daqueles relativos às obrigações de os Estados
promoverem o respeito universal desses direitos. Em complemento, Jorge Miranda (2008,
p. 18) destaca que

tudo aquilo quanto há de essencial na Declaração se encontra já na Carta das


Nações Unidas; ela é um enunciado de princípios gerais que apenas desenvolve
e explicita a menção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais que

90 Para uma crítica ao argumento da existência dos tratados internacionais de direitos humanos (normas
vinculantes) para afastar o caráter obrigatório da Declaração vide Schabas (2013, p. cxvi-cxix).
91 Uma das maiores alterações na esfera da subjetividade jurídica internacional da contemporaneidade diz

respeito à inserção do indivíduo como sujeito do Direito Internacional, fato que tem início com a DUDH
(LINDGREN ALVES, 1997, p. 30).
92 Para um estudo aprofundado sobre a temática, vide: Harlan GrantCohen.Finding International Law: Rethinking

the Doctrine of Sources, 93 Iowa L. Rev. 65 (2007).


93 Vide, dentre muitos outros Shaw (2014); Schabas (2013, p. cxv-cxix); Lafer (2012, p. 318-321); Miranda

(2008, p. 18); Buergenthal, Grossman, Nikken (1990, p. 25-27).

~ 63 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

figura na Carta. Se é verdade que, por si só, não se impõe aos Estados membros
da ONU, é insofismável que reforça as obrigações a que estes Estados, por
virtude da Carta, estão sujeitos, tornando-as mais precisas.

Para Marcel Sibert (1951), a DUDH é uma extensão daCarta da ONU


(especialmente dos seus arts. 55 e 56), na medida em que a integra, sendo assim obrigatória
para os Estados-Membros da ONU no sentido de tornar suas leis domésticas plenamente
compatíveis com as suas disposições.
A Corte Internacional de Justiça (CIJ), em decisão proferida em 24 de maio de
1980, no caso do pessoal diplomático e consular dos EUA no Teerã(United StatesofAmerica v.
Iran)94,confirmou, no plano judicial, esse entendimento doutrinário, lastreado na prática
(LAFER, 2012, p. 319).Portanto, de acordo com tais teses, a DUDH teria força
juridicamente vinculante para os Estados por via indireta(Carta da ONU) no tocante às suas
prescrições.
Por sua vez, para a tese da norma consuetudinária, que consiste num desdobramento
das teses integrativa e da interpretação autêntica, a constante utilização da DUDH pelos
Estados e também por diversas organizações intergovernamentais constitui uma prática
que, realizada com a convicção de estar respondendo à uma obrigação jurídica, reúne os
requisitos para ser considerada como um costume internacional(BUERGENTHAL;
GROSSMAN; NIKKEN, 1990), nos termos do art. 38 95do Estatuto daCIJ, que consagra o
clássico rol das fontes do Direito Internacional.A DUDH seriaentão um “espelho do
costume internacional de proteção de direitos humanos” (RAMOS, 2016). Nesse sentido,
Celso Lafer (2012, p. 319) pontua que,

um desdobramento jurídico da contínua invocação da Declaração, que se soma


ao do seu alcance como uma interpretação autêntica da Carta da ONU, é o de
atribuir a ela a natureza de uma norma costumeira do Direito Internacional
Público. Com efeito, a criação de um costume requer a prática – o elemento
material – e o reconhecimento de que esta prática é constitutiva de uma norma
jurídica, ou seja, não é apenas um uso ou uma cortesia. A contínua invocação da
Declaração acabou evoluindo, para uma opinio juris (opinião jurídica)
significativa, como ‘a prova de uma prática geral aceita como sendo o
Direito’”.96

94 No § 91 de sua sentença, a CIJ afirma que “o fato de privar os seres humanos de sua liberdade e sujeitá-los
a restrições físicas em condições de dificuldades é, em si mesmo, manifestamente incompatível com os
princípios da Carta das Nações Unidas, bem como com os princípios fundamentais enunciados na
Declaração Universal dos Direitos Humanos”. (tradução nossa)
95 “Artigo 38. 1. A Corte [Internacional de Justiça], cuja função é decidir de acordo com o direito

internacional as controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará: (...) b) o costume internacional, como prova
de uma prática geral aceita como sendo o direito”.
96 Para uma visão mais aprofundada das Declarações da Assembleia Geral da ONU como evidencias do

costume e dos princípios gerais do Direito Internacional vide Asamoah (1966, p. 46-62).

~ 64 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A CIJ, emumaimportante Opinião Consultiva,datada de 21 de junho de 1971(Legal


Consequences for StatesoftheContinuedPresenceof South Africa in Namibia – South West Africa –
Notwithstanding Security CouncilResolution 276 – 1970), considerouilegal a presença da África
do Sul na Namíbia,em razão de haver desrespeitado suasobrigações jurídicas como
potência mandatária, no tocante ao dever de observância,em território sobsua
administração, das normas sobre direitos humanos presentes na Carta da ONU,
queproíbem quaisquer discriminações baseadas em raça, cor, ascendência, ou
origemnacional ou étnica, violando assim os princípios e os propósitos daCarta (§ 131). Em
uma opinião separada, o juiz FouadAmmoun fez referência ao caráter jurídico daDUDH,
como evidência do direito internacional costumeiro, fonte reconhecida peloEstatuto da CIJ (art.
38, 1, “b”), instrumento que, anexo à Carta, éigualmente obrigatório para os Estados-
Membros da ONU.97
Nessa mesma linha, Malcolm N. Shaw (2014) também observa que o Ministério
das Relações Exteriores do Reino Unido, num documento publicado em janeiro de 1991,
intitulado “HumanRights in ForeignPolicy”, sustentou a opinião de que, embora a DUDH
“não tenha, por si mesma, efeito juridicamente vinculante, pode-se dizer que boa parte de
seu conteúdo foi agora incorporado pelo Direito Internacional consuetudinário”.
Portanto, o que se verifica é que, embora a DUDH no momento da sua
proclamação não tenha sido concebida comoum instrumento juridicamente vinculante, ao
longo do tempo evoluiu para assumir essa feição, na medida em que algumas de suas
disposições passaram a consubstanciar verdadeiros costumes internacionais (BADERIN;
SSENYONJO, 2010).98
No entanto, torna-se importante aqui ressaltar que uma análise mais detida e
cuidadosa da prática dos Estados, inegavelmente apontará para o fato de que nem todos os
direitos proclamados pela DUDH têm adquirido o status de norma consuetudinária ao
longo dos tempos, mas uma adequada abordagem dessa questão não caberia no âmbito do
presente estudo.99

97 A opinião separada do juiz Fouad Ammoun pode ser consultada na íntegra em: <https://goo.gl/r3DwEf

>. Acesso em 26 dez. 2017. Vide, notadamente, p. 64.


98 Cançado Trindade (2003, p. 59) afirma que “o impacto da Declaração Universal de 1948 tornou-se ainda

mais considerável pelo lapso de tempo prolongado (dezoito anos) entre a sua adoção e proclamação e a
adoção dos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas (em 1996), o que contribuiu para florescer a
tese de que alguns dos princípios da Declaração cedo se afiguravam como parte do direito internacional
consuetudinário, ou como expressão dos princípios gerais do direito, invocados em processos nacionais e
internacionais”.
99 Para um estudo aprofundado sobre essa questão, dentre outras que têm sido discutidas nessa seção do

presente texto, vide notável artigo de Kenneth O. D. Okwor, intitulado “Argumentsonthe Legal
SignificanceofResolutionsofthe United Nations General Assembly andtheVexedQuestiononWhetherTheyConstitute a

~ 65 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Por fim, outra corrente de pensamento sustenta a tese dos princípios gerais do Direito
Internacional, segundo a qual “os princípios contidos ou reflectidos nos artigos daDeclaração
constituem princípios gerais da ordem jurídica internacional, no quadro dos ‘princípios
gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas’” (MIRANDA, 2008, p. 18),
conforme disposto no art. 38 do Estatuto da CIJ.100
Obed Y. Asamoah (1966), ao comentar as declarações da Assembleia Geral da
ONU como evidências dos princípios gerais do Direito Internacional, destaca a Opinião
Consultiva emitida pela CIJ, em 28 de maio de 1951, no caso das Reservas à Convenção para a
Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), em que a Corte faz uma referência à
Resolução 96 (I), da Assembleia Geral, datada de 11 de dezembro de 1946, que mesmo
sendo anterior à Convenção em questão, já consubstanciava, dentre outros, o princípio da
proibição do genocídio, todos vinculantes para os Estados.
André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros (2015, p. 108-109), ao tratarem do
Direito Internacional na Constituição portuguesa, entendem esses princípios gerais como uma
“cláusula geral de recepção plena”, expressão essa que abrange todo o “acervo de normas e
princípios básicos do Direito Internacional, de aceitação generalizada pela Comunidade
Internacional”, tais como a DUDH. Assumida essa concepção, os princípios insculpidos na
Declaração teriam então projeção não apenas sobre os Estados-Membros da ONU, mas
sobre quaisquer Estados integrantes da sociedade internacional.
Seja qual for a tese adotada (integração, interpretação autêntica, norma costumeira ou
princípio geral do Direito Internacional), parece ser indubitável que a sociedade internacional
avançou consideravelmente nas últimas décadas para conferir à DUDH força juridicamente
vinculante, não mais tendo-a apenas como um conjunto de disposições de caráter
meramenterecomendatório, destituído de qualquer valor normativo. No famoso caso
Filartiga v. Pena-Irala, julgado pelo Tribunal de Apelações dos Estados Unidos (Segundo
Circuito) em 30 de junho de 1980, envolvendo o direito norte-americano e o Direito
Internacional, os juízes, depois de destacarem que uma declaração emanada da Assembleia
Geral da ONU é, de acordo com uma definição autorizada, “um instrumento formal e
solene, adequado para raras ocasiões em que princípios de grande e duradoura importância
estão sendo enunciados”(tradução nossa), asseveraram que a DUDH “não mais se encaixa na
dicotomia do ‘tratado vinculativo’ contra o ‘pronunciamento nãovinculativo’, mas é uma

SourceofInternational Law WithBindingEffects”. Disponível em: <https://goo.gl/Y2NJm4>. Acesso em 26 dez


2017.
100 “Artigo 38. 1. A Corte [Internacional de Justiça], cuja função é decidir de acordo com o direito

internacional as controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará: (...) c) os princípios gerais de direito
reconhecidos pelas Nações civilizadas”.

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Direitos Humanos & Fundamentais

declaração autorizada da comunidade internacional” (DIXON; MCCORQUODALE;


WILLIAMS, 2011, p. 201) (tradução nossa).
A propósito, a Proclamação do Teerã, de 13 de maio de 1968, divulgada ao final da
primeiraConferência Mundialsobre Diretos Humanos, ocorrida entre de 22 de abril a 13 de maio
de1968 e patrocinada pela ONU, afirmou categoricamente que a DUDH “afirma um
entendimento comum dos povos do mundo relativamente aos direitos inalienáveis e
invioláveis de todos os membros da família humana e constitui uma obrigação para os membros
da comunidade internacional”(Grifo nosso). Na segunda Conferência Mundial sobre os Direitos
Humanos, realizada em Viena, capital austríaca, de 14 a 25 de junho de 1993, foram adotadas
consensualmente (sem votação e sem reservas) uma Declaração101e um Programa de Ação. Em
seu preâmbulo, a Declaração, reafirma “o compromisso com os propósitos e princípios
enunciados na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos”
e ressalta que

a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que constitui um padrão comum


de realização para todos os povos e todas as nações, é fonte de inspiração e tem
sido a base utilizada pelas Nações Unidas no progresso feito para o
estabelecimento das normas contidas nos instrumentos internacionais de
direitos humanos existentes, particularmente no Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional dos Direitos Humanos
Econômicos, Sociais e Culturais.

Indo além das teses acima abordadas,o autor do presente texto sustenta ser
plenamente possível o reconhecimento da força vinculante da DUDH (mesmo enquanto
fruto de uma resolução de natureza recomendatória) com fundamento em uma possível
aplicação da doutrina do estoppel, consistente na proibição do comportamentocontraditório
(non concedit venire contra factum proprium)no plano internacional, não podendo, portanto,
determinado Estado secomportar de modo contrário à sua conduta anterior.
O raciocínio na aplicação dessa teoria ao caso em questão é simples e lógico. Se
no processo de adoção de uma resolução sobre uma questão de preocupação global (como
foi o caso da DUDH), os Estados-Membros da Assembleia Geral da ONU votam
esmagadoramente a favor da resolução (como ocorreu à época – 48 x 0) e, depois da
votação, fazem discursos de apoio em favor da resolução, ampliando ainda mais o
consenso já existente (como aconteceu na Conferência de Viena, de 1993 – 171 Estados)
101 A Declaração de Viena de 1993, foi subscrita por 171 Estados e “endossa a universalidade e a indivisibilidade

dos direitos humanos, revigorando o lastro de legitimidade da chamada concepção contemporânea de direitos
humanos, introduzida pela Declaração de 1948. Note-se que, enquanto consenso do “pós-Guerra”, a
Declaração de 1948 foi adotada por 48 Estados, com 8 abstenções. Assim, a Declaração de Viena de 1993
estende, renova e amplia o consenso sobre a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos”
(PIOVESAN, 2009, p. 192).

~ 67 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

ecomprometendo seus Governos domésticos ao afirmar categoricamente que observarão e


cumprirão as disposições de tal resolução, então resta evidente que esses Governos não
podem, posteriormente, escapar ao caráter normativo e à natureza vinculante dessa
resolução, afirmando que ela é de caráter meramente recomendatório. Nesse caso, esses
Estados estariam impedidos de negar a natureza vinculante do documento, em razão da
proibição de um comportamento contraditório ao anterior.
Reconhecida a sua força vinculante e superada a visão de que a DUDH seria tão-
somente um repositório de disposições internacionais recomendatórias, torna-se forçoso
retirá-la também dos domínios do soft law, devendo-se aqui destacar, em sentido
diametralmente opostoe que dá um passo além, o entendimento doutrinário que confere à
Declaração (ou pelo menos a alguns dos direitos nela consagrados) o caráter denormas
imperativas de Direito Internacional geral, também conhecidas comojus cogens(MELLO, 2004;
MAZZUOLI, 2016), normas aceitas e reconhecidas pela sociedade internacional como um
todo e em relação às quais nenhuma derrogação é permitida, senão por outra norma
posterior da mesma natureza, nos termos do art. 53 da CVDT.102
Embora se trate de um conceito aindaum tanto controverso na doutrina
internacionalista,Dominique Carreau eJahyr-Philippe Bichara (2017, p. 56) entendem o jus
cogens como “um corpo de regras superiores que não necessita da vontadeexpressa dos
Estados, o qual se impõe a eles e aos demais sujeitosdo direito internacional”.
Manifestações do jus cogens no plano internacional têm sido cada vez mais frequentes,
notadamente na maneira como muitos tratados de direitos humanos têm sido interpretados
e aplicados. Nesse sentido, Cláudio Finkelstein (2013, p. 230) destaca que as restrições aos
direitos humanos consagrados nesses tratados, previstas por esses próprios tratados, têm
sido interpretadas de forma restritiva pelas Cortes Internacionais, demonstrando que os
“direitos humanos não pertencem ao domínio do jus dispositivum e não podem ser
considerados simplesmente ‘negociáveis’”. Para esse autor,

o surgimento e a afirmação do jus cogens evocam as noções de ordem pública


internacional e de uma hierarquia das normas jurídicas, bem como a prevalência
do jus necessarium sobre o jus voluntarium. Ojus cogens se apresenta, portanto,como a
expressão jurídica da própria comunidade internacional como um todo que,

102“Artigo 53. Tratado em Conflito com uma Norma Imperativa de Direito Internacional Geral (jus cogens). É
nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito
Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral
é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma
da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito
Internacional geral da mesma natureza”. Para um estudo aprofundado sobre o jus cogens vide:
ChristianTomuschat e Jean-MarcThouvenin.The Fundamental Rules of the International Legal Order: Jus Cogens and
Obligations ErgaOmnes. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2006.

~ 68 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

finalmente, toma consciência de si e dos princípios e valores fundamentais que a


orientam (2013, p. 230-231).

Atualmente é possível vislumbrar uma consagração oficial formal do jus cogens na


jurisprudência internacional, havendo manifestações nesse sentido na Corte Internacional
de Justiça, no Tribunal de Justiça da União Europeia, no Tribunal de Nuremberg, no
Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, na Corte Europeia de Direitos Humanos
e na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CARREAU; BICHARA, 2017).
Atualmente nota-se que no campo dos direitos humanos a noção do jus cogens tem
sido empregada com maior frequência e vigor, fato que se deve, em grande parte, à
DUDH, que é tida por parcela significativa da doutrina como integrante dessa categoria de
normas do Direito Internacional, seja ele oriundo de fonte convencional ou mesmo
unilateral, como é o caso da Declaração (QUADROS; PEREIRA, 2015).

4. A IMPORTÂNCIA DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL PARA A GÊNESE E


CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS
HUMANOS

A proteção e a promoção dos direitos humanos indubitavelmente estão entre os


objetivosprecípuos do Direito Internacional contemporâneo. Notadamente a partir da
segunda metade do século XX e mais enfaticamente no início do século XXI, muitos
Estados soberanos e quase todas as organizações internacionais, sejam elas de âmbito
global ou de vocação regional, passaram a se preocupar com a questão e a adotar normas
veiculadoras de direitos humanos, bem como a responder às violações desses direitos ao
abrirem vias e estabelecerem mecanismos de reparação 103 para aqueles indivíduos cujos
direitos foram violados e que não encontraram remédiosadequados e efetivos no âmbito
doméstico dos Estados.
Inaugurando-se com a Carta da ONU e com a DUDH, às quais se seguiram
vários outros instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos (v.g., tratados
internacionais e muitas resoluções emanadas da própria ONU), a consideração das
questões relativas a esses direitos alcançou todos os órgãos (principais e subsidiários) das

103 Atualmente existem múltiplos mecanismos internacionais de monitoramento dos direitos humanos no
âmbito doméstico dos Estados e especialmente de reparação das vítimas de violações de direitos humanos,
que integram tanto o sistema global de proteção desses direitos (sistema onusiano) como os sistemas regionais
(sistemas europeu, interamericano e africano), tais como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos,
o Conselho de Direitos Humanos e os Comitês (organismos convencionais) existentes no âmbito da ONU, as
Comissões Interamericana e Africana de Direitos Humanos e as Cortes Europeia, Interamericana e Africana de Direitos
Humanos.

~ 69 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Nações Unidas, incluindo o Conselho de Segurança, que tem identificado e atuado em


relação a graves violações dos direitos humanos como ameaças à paz e
àsegurançainternacionais, bem como passou a ocupar um lugar de destaque no seio de
organizações continentais específicas como a União Europeia, a Organização dos Estados
Americanos e a União Africana, onde foram estruturados, a partir da segunda metade do
século XX, os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos (sistemas europeu,
interamericano e africano).
Pode-se dizer que como um resultado direto da adoção da Carta e da proclamação
da DUDH, nasceu, se consolidou e tem se desenvolvido, notadamente nos últimos tempos,
um “direito novo”: o Direito Internacional dos Direitos Humanos(DIDH) (SHEERAN;
RODLEY, 2014), um ramo específico do Direito Internacional que tem como objetivos
precípuos a proteção e a promoção da dignidade humana em todo o mundo ao consagrar
uma série de direitos (universais, indivisíveis e interdependentes) dirigidos à todas as
pessoas, sem distinção de qualquer natureza, inclusive de nacionalidade ou do Estado em
que o indivíduo se encontre.
É, portanto, por meio desses instrumentos, notadamente pela DUDH, que tem
início a internacionalização dos direitos humanos, sobretudo pela constatação, ao término da
Segunda Guerra, de “que eles só seriam realmente garantidos se tivessem uma afirmação e
proteção internacional” (MELLO, 2004, p. 868), uma vez que os Estados, não raras as
vezes, são os seus maiores violadores. Em verdade, o“regime totalitário do nazifascismo
produziu gigantescas violações de direitos humanos, desnudando a fragilidade de uma
proteção meramente local” (RAMOS, 2016).
Se a existência de normas internacionais esparsas relativas a certos direitos
humanos antes da Segunda Guerra, auxiliou a sensibilizar os Estados quanto à temática,
constituindo-se em causa remota para a contemporânea proteção internacional desses
direitos, as causas próximas estão intimamente relacionadas à nova organização da sociedade
internacional do pós-Segunda Guerra Mundial, notadamente pelo surgimento da ONU, por
meio da Carta das Nações Unidas, e pela posterior proclamação da DUDH, originando-se
aquilo que André de Carvalho Ramos (2016) denomina internacionalização em sentido estrito.
Esse processo de internacionalização ocasionou o fenômeno que Ganshof Van
Der Mersh descreveu como o Direito Internacional se apoderando de uma parte do Direito
Constitucional, “que cessou de ter o monopólio do direito interno”. Para ele, “o
sentimento de solidariedade humana determinou as instituições internacionais a

~ 70 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

promoverem um regime uniforme de garantia dos direitos fundamentais” (apud MELLO,


2004, p. 870-871).
Nesse contexto, o primeiro aspecto a ser destacado com a gênese e posterior
desenvolvimento desse processo de internacionalização dos direitos humanos é uma
mudança de paradigma em relação ao clássico conceito de soberaniae à teoria do domínio reservado,
que passam a ser relativizados em razão do dever de observância e respeito aos direitos
humanos e às liberdades fundamentais.
Malcolm N. Shaw (2014) explica que no século XIX, imperavam soberanas as
doutrinas positivistas da supremacia do Estado e da exclusividade da jurisdição doméstica,
afirmando que naquela época, “quase todas as matérias que hoje em dia seriam classificadas
sob a rubrica de direitos humanos estavam inscritas na esfera interna da jurisdição
nacional” (tradução nossa). Mas o autor observa que, embora essa doutrina do domínio reservado
tenha sido encampada pela Carta da ONU em seu art. 2º (7) 104, essa “disposição foi
recebendo uma interpretação cada vez mais flexível no decorrer dos anos, de tal modo que,
hoje, já não se considera que as questões de direitos humanos dependam unicamente da
jurisdição interna dos Estados”(tradução nossa). Nesse contexto não há dúvida de que a Carta
da ONU e a DUDH reduziram o conteúdo do domínio reservado e relativizaram a
soberania do Estado. Conforme explica Ricardo Seitenfus (2016, p. 130), citando Luigi
Ferrajoli,

a adoção da Carta da ONU em 1945 e logo a seguir (1948) da Declaração


Universal dos Direitos do Homem “transformaram, ao menos no plano
normativo, a ordem jurídica do mundo, levando-o do estado de natureza ao
estado civil”. A soberania, tanto em sua vertente externa quanto interna, deixa
de ser um princípio absoluto e selvagem e subordinar-se-á, a partir deste
momento, aos imperativos da paz e dos direitos humanos.

Hoje, nenhum Estado pode credivelmente afirmar que seu tratamento para
aqueles que estão dentro de seu território ou jurisdição é exclusivamente um assunto
interno (SHELTON, 2015), especialmente em matéria de direitos humanos. E isso pelo
menos por duas sólidas razões: (i) ao aderirem à Carta, os Estados-Membros passam a
reconhecer que os direitos humanos são matéria de interesse internacional e, como
consequência, não constituem assuntos exclusivos de sua jurisdição doméstica
(BUERGENTHAL; GROSSMAN; NIKKEN, 1990); (ii) a força vinculante da DUDH nos

104 “Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que
dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais
assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das
medidas coercitivas constantes do Capítulo VII”.

~ 71 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

dias atuais é notória, conforme se viu na seção anterior desse texto, o que inevitavelmente
condiciona a atuação dos Estados-Membros da ONU a promoverem o respeito aos
direitos humanos no âmbito de suas contingências territoriais soberanas, bem como os
impulsiona acooperarem internacionalmente (com outros Estados e organizações
internacionais), visando a defesa e a proteção internacional desses direitos.
O segundo aspecto a ser destacado em razão do nascimento e ulterior ampliação
do processo de internacionalização dos direitos humanos iniciado pela Carta da ONU e
especificamente pela proclamação da DUDH é justamente a gênese, o desenvolvimento e a
consolidação do DIDH, fenômeno que nesse texto será analisado apenas sob umviés
normativo.105
Passadas quase sete décadas dentro das quais o domínio da proteção internacional
dos direitos humanos experimentou uma extraordinária evolução, o DIDH afirma-se
hodiernamente e“cominegávelvigor,comoumramoautônomo da ciência jurídica
contemporânea, dotado de especificidade própria” (CANÇADO TRINDADE, 2003, p.
38), tendo como fonte material, por excelência, a consciência jurídica universaldespertada e
especialmente evoluída a partir da DUDH. Em preciosa síntese sobre esse aspecto, Celso
Lafer (2012, p. 321) esclarece que

a Declaração Universal, desde a sua origem, traçou uma política de direito para o
desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos (...). Esta
política do Direito foi sendo efetivamente levada adiante, pois a Declaração
Universal teve o mérito de não ser apenas uma reação aos problemas do
passado. Projetou valorações fundamentais para modelar o futuro.

Em uma linda metáfora e profeticamente falando, René Cassin (1951) comparou a


DUDH ao pórtico de um templo grego, afirmando ser ela a porta de entrada do templo dos
direitos humanos.106 Mas preocupado com os desdobramentos da positivação desses direitos
no plano internacional, advertiusobre a importância de se ir além dessa porta de entrada,
chamando a atenção para a necessidade de se construir o interior do templo. Em suas
palavras (1951, p. 279), “o pórtico não pode ser uma fachada soberba por trás da qual não
há nada. É necessário que as portas da Declaração, que permitem entrar no templo dos
direitos humanos, realmente conduzam a algum lugar” (tradução nossa). Felizmente a sua
profecia tem se cumprido e o desenvolvimento do DIDH, que se passa a demonstrar a
partir desse momento é a constatação objetiva desse cumprimento.

105 Para uma visão acerca do viés processual e operacional do DIDH vide Cançado Trindade (2003, p. 71-84).
106 Para uma descrição objetiva desta metáfora, porém muito clara vide Lafer (2012, p. 316-318).

~ 72 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

O common standard ofachievement delineado no preâmbulo da DUDH começou a ser


perseguido e os direitos nela previstos começaram gradativamente a ser expandidos,
explicitados, aperfeiçoados e fortalecidos, notadamente por meio de uma série de tratados
internacionais e outras resoluções de organismos internacionais (inclusive da própria
ONU), responsáveis por dar andamento à construção do interior do templo dos direitos
humanos, conformando aquilo que hoje é conhecido como DIDH. Nesse sentido, a
DUDH tornou-se um bem-sucedido paradigma daquilo que, “graças ao multilateralismo
diplomático, tornou-se usual no processo de criação de normas do Direito Internacional
Público: a passagem, no correr do tempo, da soft-law de uma Resolução para a hard law dos
tratados” (LAFER, 2012, 321).
Numa concretização tardia (18 anos) daquilo que foi uma aspiração à época da
elaboração e proclamação da DUDH, em dezembro de 1966, durante a XXI Sessão da
AssembleiaGeral das Nações Unidas, foram adotados o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos(PIDCP) e o Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais(PIDSEC), que
entraram em vigor, respectivamente, em 23 de março de 1976 e 03 de janeiro de 1976, dois
tratados internacionais que, junto com a DUDH, deram origem à hoje conhecida
International Bill of Human Rights, responsável por inaugurar o sistema global de proteção dos
direitos humanos, ao lado do qual já se delineava o sistema regional de proteção (europeu,
interamericano e, posteriormente, o africano), bem como por acelerar o processo de
generalização da proteção internacional desses direitos, abrindo definitivamente o campo
para uma gradativa passagem da fase legislativa à de implementação dos tratados e
instrumentos internacionais de proteçãodos direitos humanos.
Esses dois pactos multilaterais surgiram com a finalidade precípua de conferir
dimensão técnico-jurídica à DUDH, tendo o PIDCP regulamentado os arts. 1° ao21 da
Declaração (direitos de primeira geração) e o PIDSEC os arts. 22 a 28 (direitos de segunda
geração). Esses tratados compõem atualmente “o núcleo-base da estrutura normativa do
sistema global de proteção dos direitos humanos, na medida em que ‘judicizaram’, sob a
forma de tratado internacional, os direitos previstos pela Declaração” (MAZZUOLI, 2016,
p. 961).José Augusto Lindgren Alves (1997, p. 24) ao comentar referidos pactos
internacionais, explica que eles “complementam a Declaração de 1948, conferindo aos
direitos nelaestabelecidos a força de obrigação jurídica [para aqueles que não reconhecem
essa força na DUDH] que os respectivos Estados-partes se comprometem, voluntária e
solenemente, a implementar”.

~ 73 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A DUDH impulsionou não apenas a elaboração e adoção de instrumentos


internacionais de proteção genérica dos direitos humanos (PIDCP e PIDSEC), mas
juntamente com esses, também atuou (e tem atuado) como mola propulsora do fomento e
da consequente adoção de muitos instrumentos internacionais multilaterais de proteção
específicadesses direitos, tanto no âmbito global como regional. Esses instrumentos
respondem a exigências de especificação no plano internacional (PIOVESAN, 2016), por
isso são pertinentes a determinadas e específicas violações de direitos humanos tais como o
genocídio, a tortura, a discriminação racial, a discriminação e a violência contra as
mulheres, a violação dos direitos das pessoas refugiadas e apátridas, das pessoas traficadas,
das pessoas vítimas de desaparecimento forçado, das pessoas com deficiência, dos
trabalhadores migrantes e suas famílias, das crianças e adolescentes etc. Eis apenas alguns
exemplos.
A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, adotada em 28 de julho de 1951, bem
como seu Protocolo Facultativo, adotado em 31 de janeiro de 1967, constituem instrumentos
específicos de proteção dos direitos humanos das pessoas refugiadas. Além de evocaro art.
14 da DUDH, em seu preâmbulo a Convenção considera que Carta da ONU e a
Declaração afirmaram o princípio de que os seres humanos, semdistinção, devem gozar
dos direitos humanos e das liberdadesfundamentais.
Nessa linha de especificação da proteção internacional, a Convenção sobre o Estatuto
dos Apátridas, adotada em 28 de setembro de 1954; assim como a Convenção para a Redução dos
Casos de Apatridia, adotada em 30 de agosto de 1961, são instrumentos que nitidamente
reverberam o art. 15 da DUDH, segundo o qual “todo o indivíduo tem direito a ter uma
nacionalidade”, sendo que “ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade
nem do direito de mudar denacionalidade”.
Por sua vez, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial, adotada em 21 de dezembro de 1965, constitui um evidente exemplo da
especificação dos princípios genéricos da igualdade e da não discriminação, contemplados
genericamente nos art. 1º e 2º da DUDH. Celso Lafer (2012) lembra que uma especificação
dessa especificação é a Convenção Internacional sobre a Eliminação e a Punição do Crime de
Apartheid, de 1973.
Nessa mesma direção, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (CEDAW), adotada em 18 de dezembro de 1979, igualmente
configura uma especificação dos princípios da igualdade e da não discriminação
contemplados na DUDH, consistindo em um instrumento que busca promover os

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Direitos Humanos & Fundamentais

direitosda mulher na busca da igualdade de gênero, bem como reprimir quaisquer


discriminaçõescontra a mulher nos Estados-Partes. Em seu preâmbulo a Convenção
considera que a DUDH reafirma o princípio da não-discriminação e proclama que todos os
seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e que toda pessoa pode
invocar todos os direitos e liberdades por ela proclamados, sem distinção alguma, inclusive
de sexo.
Já aConvenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes, adotada em 10 de dezembro de 1984, constitui um aprofundamento do art. 5º
da DUDH e do art. 7º do PIDCP, os quais determinam que ninguém será sujeito à tortura
ou a pena ou tratamento cruel, desumano ou degradante.
Também na linha da especificação da proteção internacional dos direitos
humanos, a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada em 20 de novembro de 1989,
reverbera, especificae fortalece o art. 25 da DUDH, o art. 24 do PIDCP e os arts. 10 e 12
do PIDSEC. Em seu preâmbulo, os Estados reconhecem que as Nações Unidas
proclamaram a Declaração e acordaram nos referidos pactos de direitos humanos “que
toda pessoa possui todos os direitos e liberdades neles enunciados, sem distinção de
qualquer natureza, seja de raça, cor, sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra
índole, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra
condição”, bem como recordam que na DUDH a ONU proclamou que “a infância tem
direito a cuidados e assistência especiais”.
A Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes
e dos Membros das suas Famílias, adotada em 18 de dezembro de 1990, faz ecoar e fortalece os
arts. 24 e 25 da DUDH, bem como confere um tratamento aprofundado a diversos
dispositivos do PIDCP e do PIDSEC, dentre outros tratados. Na Convenção os Estados
reconhecem a importância e a extensão do fenômeno migratório, que envolve milhares
depessoas e afeta um grande número de Estados no âmbito da sociedade internacional e
por isso, na linha de inspiração da Declaração, adotaram um documento voltado para a
busca da igualdade de direitos entre nacionais e trabalhadores migrantes e os membros de
suas famílias.
Também nesse contexto de especificação a Convenção Internacional para a Proteção de
Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, adotada em 20 de dezembro de 2006,
constitui um documento que potencializa e dota de mecanismos de proteção, diversos

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Direitos Humanos & Fundamentais

direitos previstos na DUDH (v.g., arts. 1º, 2º, 3º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10, 12) em favor das
vítimas do desaparecimento forçado e de suas famílias.107
Como um último exemplo de particularização da proteção internacional dos
direitos humanos, deflagrado e potencializado pela DUDH, cita-se a Convenção Internacional
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, adotadosem 30 de março
de 2007, instrumentos voltados especificamente para as pessoas com deficiência e que
potencializam, em favor dessas pessoas, um grande número de direitos previstos na
DUDH e em outros instrumentos internacionais.Em seu preâmbulo a Convenção reafirma
a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais, conforme delineado pela Declaração e por uma série
de outros tratados subsequentes, bem como a necessidade de garantir que todas as pessoas
com deficiência os exerçam plenamente, sem discriminação de qualquer natureza.
Mas não foi apenas no plano global que a DUDH exerceu sua influência para a
internacionalização da proteção dos direitos humanos e consequente consolidação do
DIDH. A sua força e vigor também reverberaram no âmbito dos sistemas regionais,
responsáveis por internacionalizar os direitos humanos em regiões específicas do globo,
particularmente na Europa, América e África(PIOVESAN, 2016).
No âmbito regional europeu, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem(Convention
for theProtectionofHumanRightsand Fundamental Freedoms), adotada em 04 de novembro de 1950,
constitui o tratado regente do sistema europeu de proteção dos direitos humanos. Paolo
G.Carozza (2013) afirma que a Convenção está expressamente fundamentada na DUDH,
cujo preâmbulo a invoca repetidamente como fonte dos diversos direitos que consagra.
De fato, no preâmbulo desse instrumento, os Estados-Partes reconhecem a
DUDH como um documento que “se destina a assegurar oreconhecimento e aplicação
universais e efetivos dos direitos nela enunciados” e decidem, “animadosno mesmo
espírito, possuindo um patrimônio comum de ideaise tradições políticas, de respeito pela
liberdade e pelo primadodo direito, tomar as primeiras providências apropriadas
paraassegurar a garantia coletiva de certo número de direitosenunciados na Declaração
Universal” (CEDH, 2017).Michel Villey (2007) afirma que subsequentemente à Convenção
Europeia, uma série de preâmbulos convencionais e constitucionais passaram a fazer
referência à DUDH.

107Para uma visão acerca do fenômeno do desaparecimento forçado e da multiplicidade de direitos que essa
prática acarreta vide: PEREIRA, Luciano Meneguetti. A Convenção Internacional para a Proteção de Todas
as Pessoas Contra o Desaparecimento Forçado eseus Impactos no Brasil. In: EspaçoJurídico: Journal of Law
[EJJL]. Joaçaba, v. 18, n. 2, p. 381-420, maio/ago. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/UHbJML>. Acesso
em 28 dez. 2017.

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Direitos Humanos & Fundamentais

No plano regional interamericano, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos,


adotada em 22 de novembro de 1969 é o tratado maior do sistema interamericano de
proteção dos direitos humanos. Em seu preâmbulo, na mesma linha da Convenção
Europeia, os Estados americanos reconhecem que “os direitos essenciais do homem não
derivam do fato de ser ele nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como
fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção
internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar” àquela oferecida
pelo direito interno.
Na sequência, os Estados consideram os princípios que foram consagrados na
DUDH e “reafirmados e desenvolvidos em outros instrumentos internacionais, tanto de
âmbito mundial como regional”, reiterando que “de acordo com a Declaração Universal
dos Direitos do Homem, só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento do
temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus
direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos”
(CIDH, 2017). Menções à DUDH também se encontram espalhadas nos preâmbulos dos
diversos tratados interamericanos de direitos humanos, assim como ocorre com diversas
constituições dos Estados americanos.
Por sua vez, naesfera regional africana, no preâmbulo da Carta Africana dos Direitos
Humanos e dos Povos (ou Carta de Banjul), adotada em 27 de julho de 1981, que constitui o
tratado regente do sistema africano de direitos humanos, os Estados-Partes reafirmam a
necessidade da cooperação internacional para a defesa e promoção dos direitos humanos,
conforme estabelecido na Carta da ONU e na DUDH, explicitando sua adesão “às
liberdades e aos direitos humanos e dos povos contidos nas declarações, convenções e
outros instrumentos adotados no quadro da Organização da Unidade Africana, do
Movimento dos Países Não-Alinhados e da Organização das Nações Unidas” (CADHP,
2017).
É evidente a notável influência da DUDH sobre uma enorme quantidade de
países espalhados pelo mundo. Trata-se de um documento quese afigura “como a fonte de
inspiração e um ponto de irradiação e convergência dos instrumentos sobre direitos
humanos em níveis tanto global quanto regional” (CANÇADO TRINDADE, 2003, p. 65).
Por fim, vale também ressaltar a influência que a DUDH exerceu sobre uma vasta
quantidade de constituições de Estados soberanos ao redor do globo.Possivelmente poucas
constituições nascidas após a proclamação da Declaraçãodeixaram de fazer menção direta a

~ 77 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

ela ou deconsagrar em seus textos, “cópias” dos direitos que foram inseridos nessa porta de
entrada do tempo dos direitos humanos.
Wiktor Osiatyński (2013, p. 12) traz um dado importante ao afirmar que “a
DUDH serviu de modelo para cerca de noventa Constituições, sendo que em dezenove
Constituições de novos estados pós-coloniais, principalmente na África, foram feitas
referências específicas à Declaração”.(tradução nossa)Conforme Paul Sieghart (1986), apenas
no período entre 1958 e 1971, vinte e duas novas constituições passaram a conter
referências à DUDH. Em razão desse extraordinário impacto da DUDH nas constituições
nacionais, Lindgren Alves (1997, p. 32-33) afirma que “independentemente da natureza
obrigatória ou não do documento pela ótica estrita do Direito Internacional, ela advém
sobretudo do grau de incorporação que suas disposições obtiveram no Direito
Constitucional de praticamente todos os países”.
Na ordem jurídica interna de Portugal, v.g., a própria Constituição portuguesa
confere à DUDH uma hierarquia superior a ela própria ao dispor em seu art. 16 (2) que “os
preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser
interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do
Homem” (QUADROS; PEREIRA, 2015, p. 117).
No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro revela-se evidente que a DUDH
serviu de paradigma para a Constituição da República de 1988, que simboliza o marco
jurídico da transiçãodemocrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil. A
Constituição deixa claro que os direitos humanos constituem um tema de legítimointeresse
da sociedade internacional, ao prever em seu art. 4º os princípios pelos quais o país rege-se
em suas relações internacionais e, dentre eles, a prevalência dos direitos humanos (inc. III).
Também acolhe a ideia da universalidade, fortemente presente na DUDH, ao estabelecer
como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III). Em
verdade, como aponta Valerio Mazzuoli (2016, p. 959), a Constituição brasileira
“literalmente ‘copiou’ vários dispositivos da Declaração Universal, o que prova que o
direito constitucional brasileiro atual está perfeitamente integrado com o sistema
internacional de proteção dos direitos humanos”.
Atualmente, portanto, conforme afirma Lindgren Alves (1997, p. 25) é fato
unanimemente reconhecido que a DUDH“constitui o documento maisimportante na fase
por ela inaugurada das relações internacionais, assim como, para a maioria dos países
hojeindependentes, do próprio direito nacional”.

~ 78 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

O grande impacto da DUDH pode não ter sido imediato, masnão há dúvidas de
que o seu significado cresceu ao longo dos tempos e continua a crescer. Conforme
nitidamente se viu no decorrer desse tópico, a edificação do interior do templo dos direitos
humanos, advogada por René Cassin em 1951,teve curso no correr dos tempos, fortemente
alicerçada na inspiração da vis directiva da Declaração, pórtico desse grandioso templo, que
certamente continuará a ser expandido pela presente e pelas futuras gerações.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Declaração Universal dos Direitos Humanosé, sem sombra de dúvida, uma verdadeira
obra prima, a Magna Charta dos direitos humanos, fruto da genialidade de todos aqueles que
participaram do seu processo de elaboração (1947-1948) e se esforçaram para que ela fosse
proclamada pelos 51 países (membros fundadores) que à época integravam a recém
constituída Organização das Nações Unidas, naquele memorável 10 de dezembro de 1948.
Em contraste com o momento da sua proclamação, poucas pessoas hoje ousariam
contestar a enorme importância que assumiu a DUDHnos tempos atuais. Seja qual for a
concepção que se tinha desse instrumento à época de sua vinda ao mundo naquele
histórico 10 de dezembro de 1948, e mesmo que inicialmente tenha ele sido envolto numa
roupagem de normassoft law, osquase setenta anos que seguiram à sua adoção certamente
estabeleceram e confirmaram seu papel como um documento juridicamente vinculante e
uma verdadeira fonte de obrigações legais para a grande esmagadora maioria dos países do
globo.
No presente texto essa força vinculante foi fundamentada na exposição das várias
teses apresentadas sobre o tema, pelas quais se demonstrou que, seja como parte integrante
da Carta da ONU, como sua interpretação autêntica, como espelho do costume
internacional ou como princípios gerais da ordem jurídica internacional, atualmente não há
como negar à DUDH o caráter de instrumento que impõe obrigações de defesa e
promoção do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos os
193 Estados-Membros das Nações Unidas.
Trata-se de um documento marco na história humana, que dá início e promove o
desenvolvimento e a consolidação da proteção internacional dos direitos humanos,
demarcando de forma indelével a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência
desses direitos para todos os povos do globo, dando origem ao Direito Internacional dos
Direitos Humanos.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Conforme se verificou, o DIDH hoje se apresenta como um ramo autônomo das


ciências jurídicas contemporâneas, constituído por um corpus juris dotado de uma
multiplicidade de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, de
natureza e efeitos jurídicos variáveis (tratados internacionais; costumes internacionais;
princípios gerais do direito internacional; atos unilaterais dos Estados e de organismos
internacionais, materializados em resoluções sob a forma de decisões ou recomendações),
operando tanto no âmbito global (ONU) como regional (UE, OEA, UA), e que visa a
atender uma das grandes preocupações, possivelmente de todos os tempos, mas acentuada
e evidente dos tempos presentes: a proteção internacional e doméstica do ser humano em
toda e qualquer circunstância, independentemente de sua nacionalidade, do Estado em que
se encontre ou de qualquer outro fator que importe em discriminação atentatória contra os
direitos humanos.
E se a sociedade internacional evoluiu para alcançar esse nível de consciência
jurídica universal, indubitavelmente isso se deve à DUDH, documento ao qual agora,
falando pela primeira vez em primeira pessoa no presente texto, desejo longa vida para que
possa continuar impactando positivamente as consciências de indivíduos e Governos que,
recalcitrantes, ainda insistem em menosprezar a vida e a dignidade humana ao redor do
mundo.
Desde o pórtico até o seu interior, o templo dos direitos humanos vem sendo
edificado ao longo das últimas décadas. Mas como toda a qualquer construção, esse templo
precisa ser constantemente reparado, expandido e aperfeiçoado para que possa continuar
em pé e protegendo todos aqueles (direitos e seres humanos) que o habitam. O legado
daqueles que elaboraram a Declaração Universal dos Direitos Humanosé um documento que
hoje falacom uma eloquência que não é e nunca será diminuída pela idade e pelas
consciências menos evoluídas e, falando pela segunda vez nesse texto em primeira pessoa: é
nisso que creio!

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COLONIALIDADE E CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS:
UMA LEITURA A PARTIR DA DECLARAÇÃO INTERNACIONAL DE
1948108

João Paulo Allain Teixeira*


Gustavo Ferreira Santos**
Lidia Patricia Castillo Amaya***

Afirma o mestre George Steiner que “os que submergem a grandes


profundidades contam que, chegando a certo ponto o cérebro humano
se vê possuído por uma ilusão de que é novamente possível a respiração
natural. Quando isso ocorre, o mergulhador retira o escafandro e se
afoga. Torna-se bêbado com uma narcose fatal chamado de vertigedes
grandes profondeurs ... Daí, os intentos sistemáticos e legislativos para
(chegar a) uma finalidade acordada”. O texto, retirado do enigmático
livro Presencias reales, demonstra o horror que produz a
multidimensionalidade do real, e as infinitas possibilidades de
interpretação que existem. Tanto as visões abstratas como as localistas
abominam o contínuo fluxo de interpretações e re-interpretações. Cada
uma, por seu lado, procura colocar um ponto final hermenêutico que
determine a racionalidade, em suas análises e propostas. (Joaquín Herrera
Flores, 2002:16)

108 O processo de escrita do presente trabalho envolveu a colaboração de três pesquisadores na área dos
direitos humanos. Coube ao professor João Paulo Allain Teixeira definir a estrutura do trabalho e a redação
inicial dos três primeiros capítulos. O professor Gustavo Ferreira Santos contribuiu com inserções ao longo
dos três capítulos iniciais. Finalmente, coube à professora LidiaPatriciaCastilloAmaya a redação do último
capítulo. Ao final, todos revisaram o texto.
*Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco e Filosofia do Direito da

Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.
Master em Teorias Críticas do Direito pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha. Doutor em
Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. Membro e líder do grupo REC CNPq – Recife
Estudos Constitucionais. Bolsista de Produtividade em Pesquisa (CNPq).
**Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). E da

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).Pós-Doutorado na Universidade de Valência. Membro do


grupo de pesquisa REC – Recife Estudos Constitucionais (REC – CNPq). Bolsista de Produtividade em
Pesquisa (CNPq).
***Doutora em Direito Público pela Universidade de Bari “Aldo Moro” (UNIBA), Itália. Realizou Estágio de

Pós-Doutorado em Direito Constitucional Comparado no Programa de Pos-graduação em Direito da


Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD-UFSC), Brasil. Pesquisadora associada do Centro Euro-
Americano sobre Políticas Constitucionais (CEDEUAM) da Universidade do Salento, Italia. Docente do
Mestrado em Direito Constitucional do Departamento de Pó-sgraduação da Universidade Dr. José Matías
Delgado (UJMD), El Salvador.

~ 87 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A Declaração Internacional dos Direitos Humanos assinada em Paris em 1948


representa um marco fundamental para a ordem internacional. Foi adotada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas etransformou-se um marco na afirmação de direitos,
influenciando vários documentos e ações políticas no plano internacional e no plano
interno. Sobre ela se apoiam vários tratados e convenções além de muitos textos
constitucionais promulgados depois da sua edição.
Refletir sobre a importância da Declaração Internacional dos Direitos Humanos
no seu aniversário de 70 anos, contudo, envolve um esforço de enfrentamento dos
paradoxos e das dificuldades decorrentes do modelo de institucionalização por ela adotado.
É preciso comemorá-la como um passo importante, mas, também, é preciso reconhecer
que nem tudo são flores nessa trajetória.
Não se trata, assim, de negar a importância histórica da declaração e muito menos
minimizar a relevância prática dos tratados e convenções internacionais que, com
fundamento na Declaração Internacional dos Direitos Humanos, oferecem as bases do
sistema internacional de tutela de direitos. Contudo, pretendemos aqui apontar os limites e
possibilidades do cumprimento do seu papel declarado diante das disputas discursivas que
convergem para o seu texto.
É amplamente utilizada no debate constitucional a classificação proposta por
KarelVasak, em 1977, que divide os direitos humanos em três diferentes gerações
(Macklem, 2015). Em uma primeira versão, falava do histórico entre a Declaração
Universal e aquele momento. Em 1979, em uma conferência, traz a versão hoje muito
conhecida dessa divisão de direitos em gerações. Nessa narrativa, a “primeira geração” é
formada por direitos civis e políticos, a exemplo da liberdade de expressão e do direito ao
voto. A segunda geração é formada por direitos econômicos, sociais e culturais, a exemplo
dos direitos à moradia e à sindicalização. A terceira geração de direitos é formada por
“direitos de solidariedade”, como os direitos de minorias e o direito ao meio ambiente
economicamente equilibrado.
A narrativa que classifica os direitos humanos em três “gerações” parece mais
encobrir do que revelar as disputas que efetivamente orientaram a consagração dos direitos.
Como percebe Jacques Derrida, todo ato de “mostrar” envolve um esforço de ocultação.
Daí a oportunidade de repensar a sugestiva inexorabilidade histórica da afirmação de

~ 88 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

direitos embutida na Declaração. Ainda que a pretensão de substituição da expressão


“geração” pela expressão “dimensão” seja relativamente difundida, nenhum desses
conceitos consegue traduzir de maneira satisfatória as tensões e disputas envolvendo o
sentido e o alcance dos direitos, antes apontando para um padrão de estabilização
hegemônica que silencia as múltiplas narrativas e disputasinerentes ao processo histórico
que resultou na afirmação dos direitos. Trata-se assim de um discurso que serve aos
vencedores.
A compreensão da amplitude e abrangência da declaração passa pelas tensões
inerentes à dicotomia universalismo versus relativismo. A defesa do universalismo
geralmente parte de uma leitura estática e imutável dos direitos humanos, fundada na
reivindicação de uma essência inerente à condição humana, que estaria acima de qualquer
fator cultural historicamente estabelecido. Para os universalistas, a existência de valores
intrínsecos à condição humana justifica a leitura atemporal da declaração, já que a condição
humana em sua específica natureza é essencialmente a mesma em qualquer tempo e em
qualquer espaço. Esta leitura contudo, desconsidera a inserção histórico-cultural da qual
derivam múltiplas formas de vida, crenças e pautas morais plurais.
O modelo dominante de reconhecimento de direitos humanos até os dias de hoje
resultou assim, de um processo de sucessivas negações e exclusões que se desenvolvem em
múltiplos planos da vida. Irônico que tenha a própria Declaração de Direitos do Homem e
do Cidadão, adotada na Revolução Francesa, sido resultado de negociações entre “projetos
múltiplos, e até mesmo inconciliáveis” (Jullien, 2008), que evitaram os pontos
controvertidos e deram ao seu texto uma abstração que permitiu a formatação da ideia de
universalidade tão útil à exportação do modelo.
O triunfo deste processo, esboçado com as revoluções do Século XVIII,
representou a afirmação de uma específica pauta política, econômica, social e cultural,
garantindo os valores inerentes à organização dos interesses da burguesia liberal europeia e
norte-americana e ao modo de produção capitalista.
Este processo é acompanhado de perto pelo desenvolvimento da ciência moderna
promovendo, do ponto de vista epistemológico, uma peculiar forma de dar sentido à
realidade. A confiança na verdade como produto da razão, a pretensão de neutralidade do
saber cientifico e aposta na felicidade através da valorização do individualismo trouxeram
como consequência o esvaziamento político-ideológico do discurso dos direitos, que
passaram a representar o paradoxo de uma ideologia sem ideologia.

~ 89 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Destaca Francois Jullien que a ideia de moderna de “direitos do homem” é


produto de uma dupla abstração: “dos direitos”, “privilegiando o ângulo defensivo da
reivindicação”, e “do homem”, isolando o homem “de todo contexto vital, do animal ao
cósmico”. Para ele, “É justamente nessa abstração que está a contradição da
universalização dos direitos do homem: o isolamento, preço pago para erigir o
“universal”, desfez a incorporação do humano em seu mundo e o distanciou da tão
almejada não-alienação” (2008).
Há por isso uma evidente contradição entre os discursos de inclusão e
emancipação traduzidos abstratamente pelas declarações de direitos e as práticas que se
desenvolvem em nome delas. Basta lembrar a conquista do “novo mundo” e o genocídio
legitimado pelo ideal “civilizatório”. Como resultado, a subalternização e o silenciamento
dos povos originários, suas formas de vida, seus valores e seus saberes.
Não deixa de surpreender que em pleno Século XXI, mesmo diante de tantas
proclamações de direitos, e mesmo pela recorrente presença da retórica dos Direitos
Humanos nos discursos oficiais, ainda exista uma ampla negação de direitos para parcelas
significativas da população mundial. O flagelo das migrações na Europa, os conflitos no
campo e a questão indígena na América Latina, a fome e a pobreza na África, a constante
subalternização e silenciamento de grupos vulneráveis e a histórica e recorrente negação de
direitos sociais em todo o planeta, bem o atestam.

II

A partir das décadas recentes, particularmente a partir do desencanto dos conflitos


armados do segundo pós-guerra, emergiu com força significativa a percepção de um
profundo distanciamento entre o registro da teoria e o registro da prática dos Direitos
Humanos em escala global. Estas tensões são reveladoras das ambiguidades e paradoxos de
que se reveste o discurso dos Direitos Humanos, evidenciando a importância do
desvelamento de suas entranhas discursivas e conferindo visibilidade à sua dimensão
oculta.
Costas Douzinas lembra que a contemporaneidade revelou o triunfo da retórica
dos Direitos Humanos, já que é possível encontrá-la em todos espectros políticos, tanto à
Esquerda quanto à Direita, de Norte a Sul, estando presente no discurso do Estado e do
rebelde, sendo por isso “a única ideologia na praça, a ideologia após o fim das ideologias, a

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Direitos Humanos & Fundamentais

ideologia no fim da História” (Douzinas, 2009: 16). Isso reflete uma retórica vazia,
disponível a ser preenchida à vontade do que a assume.
Immanuel Wallerstein retomando o debate envolvendo Bartolomé de Las Casas109
e Juan Ginés de Sepúlveda110, aponta para as incoerências e ambiguidades do discurso dos
Direitos Humanos, particularmente no que se refere à retórica da “intervenção
humanitária”. Wallerstein lembra que os valores que formatam a democracia, livre
mercado, e Direitos Humanos a despeito de sua pretensão de universalismo, localizam-se
no contexto de um projeto político liderado pelas grandes potências do ocidente.
A Imposição dos valores universais contra a barbárie tem na disputa envolvendo
Las Casas e Sepúlveda um marco fundamental. A chegada do conquistador europeu às
Américas, desencadeou um amplo processo de submissão mediante invasão de terras,
escravização dos povos originários, entre outras ações violentas, que acabou por eliminar
impérios como o Inca e o Asteca. Estabelecidos os espanhóis no novo mundo, configurou-
se o sistema de encomiendas, através do qual os colonizadores repartiam as terras e
submetiam os ameríndios a trabalhos forçados nas atividades de mineração, agricultura, e
pastoreio. O próprio Bartolomé de Las Casas é um encomendero. No entanto, após conhecer
as práticas de escravização dos nativos, volta-se contra o sistema, destacando-se pela
atuação em defesa dos povos indígenas do continente americano, estabelecendo uma
poderosa crítica às práticas do sistema de exploração colonial e à subjugação dos povos
originários no continente americano (Dussel, 2005).
Las Casas se insurge contra o modelo de subjugação violenta, defendendo o
caráter pacifico da evangelização. (Wallerstein, 2007: 31-32). Trata como ilegítima a
escravização do índio, mas, ao mesmo tempo, defende a responsabilidade dos espanhóis
para salvá-los, pelo cristianismo, com governo regional, sob o império do Rei espanhol.
Dussel considera que as missões (reduções) jesuítas foram o que mais próximo se chegou o
ideal de Las Casas, pois os índios se autogovernavam e estavam sob o poder do império,
apesar de não estarem diretamente submetidos aos espanhóis (Dussel, 2005, 48).
Dentre os grandes opositores de Las Casas destacou-se Juan Ginés de Sepúlveda,
cujos posicionamentos aludiam a uma condição de inferioridade dos ameríndios,
justificando o processo de submissão em nome do ideal civilizatório. Para Sepúlveda, os
ameríndios seriam “bárbaros, simplórios, iletrados e não instruídos, brutos totalmente
incapazes de aprender qualquer coisa que não seja atividade mecânica, cheios de vícios,

109Bartolomé de Las Casas, nascido em Sevilha em 1484 e falecido em 1566 em Madrid, teria sido o primeiro
sacerdote a ser ordenado nas Américas no ano de 1510.
110Juan Ginés de Sepúlveda, nascido em Córdoba, Espanha, em 1489 e falecido em 1556.

~ 91 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

cruéis e de tal tipo que se aconselha que sejam governados por outros” (Apud
Wallerstein2007: 33).
As teses de Sepúlveda transcendem a temporalidade histórica sendo os mesmos
argumentos utilizados na contemporaneidade para justificar “intervenções humanitárias” a
partir da aplicação de um “ideal civilizatório” a um contexto de “bárbarie”. Do ponto de
vista das relações globais este é um debate que permanece entranhado nas práticas das
relações internacionais até os nossos dias.
Como se sabe, a partir da segunda metade do século XX observamos a
intensificação do processo de descolonização mediante o qual os antigos impérios coloniais
são reconfigurados. Este novo cenário sugeriu em grande medida o fim da interferência da
metrópole sobre suas antigas colônias, já que as justificativas da “evangelização cristã” e da
“missão civilizatória” como elementos de legitimação da submissão ao império não mais se
sustentavam. Nesse sentido a grande novidade veio com a ressignificação do discurso em
torno dos direitos humanos. (Wallerstein, 2007: 42-43).
Na retórica dos países que exercem liderança no capitalismo global, a ideia de
“intervenção humanitária” está geralmente associada a um esforço de ampliação dos
espaços de realização dos Direitos Humanos, mediante a potencialização dos valores
inerentes à “democracia”, à “liberdade” ou ao “livre mercado”. Estes valores, diante da
auto-evidência da superioridade moral que presumivelmente ostentam, justificariam a
universalização de suas pautas, ainda que esta tarefa resultasse em uma imposição através
da força. Wallerstein explica que, se por um lado, os movimentos de libertação nacional
resultaram na intensificação do processo de descolonização a partir da segunda metade do
Século XX, por outro lado, e paradoxalmente, este mesmo processo determinou que os
novos Estados permanecessem atrelados à mesma lógica imperial de outrora. (Wallerstein,
2007: 42).
Um dos instrumentos mais eficientes nesse processo de permanente submissão
dos novos Estados está na pretensão de universalização da lógica que mobiliza o discurso
dos Direitos Humanos, da qual a Declaração de 1948 é expoente de relevo. Ainda que a
doutrina da “não intervenção” consagrada pela ONU aponte no plano discursivo para o
fim das ingerências externas mediante a consagração da autodeterminação dos povos, no
plano fático o controle das potências ocidentais permaneceu intacto. Isto foi possível
graças à “missão civilizatória” por elas assumida autorizando a intervenção sempre em
nome dos Direitos Humanos. A intervenção humanitária torna-se assim um poderoso

~ 92 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

sucedâneo da “evangelização” utilizada nos séculos anteriores pelas grandes potências,


atualizando o debate entre Las Casas e Sepúlveda.
As grandes potências militares receitam aos países a adoção de desenhos
institucionais específicos e de declarações abstratas de direitos, muitas vezes sem qualquer
conexão com a realidade econômica, social ou cultural daquele povo. No Iraque, por
exemplo, após a destruição causada por uma mal justificada guerra, feita pelos Estados
Unidos à margem das instituições internacionais, legou-se uma constituição ocidentalizada,
no pacote de elementos para a reconstrução do país. Enquanto isso, no país real, nas ruas,
as bombas não paravam de gritar contra a intervenção redentora.
Ao tratar sobre o processo de colonização da América, Enrique Dussel, põe em
debate as contradições da modernidade representadas, de um lado pela promessa de
emancipação, e de outro lado pelas justificativas de uso da violência contra o diferente. A
difusão do “mito da modernidade” contribuiu para a universalização dos valores europeus.
Como percebe Dussel, até a descoberta da América em 1492, a Europa era a periferia do
mundo, sendo o oriente o centro111. A descoberta do novo continente provocou o
deslocamento geográfico da centralidade do poder, dando protagonismo à Europa. O
“mito da modernidade” decorre deste processo de transformações geopolíticas mediante
um processo de auto-referenciação cultural europeia.
Assim, o “mito da modernidade”, moldado no contexto europeu, concebe a
própria cultura europeia como “superior” e “mais desenvolvida”, justificando a imposição
do modelo “civilizado” contra a “barbárie”. Nas palavras de Dussel, “a outra cultura é
determinada como rude, bárbara, sempre sujeito de uma ´imaturidade´ culpável. De
maneira que a dominação (guerra, violência) que é exercida sobre o Outro é, na realidade,
emancipação, ´utilidade´, ´bem´do bárbaro que se civiliza, que se desenvolve ou
´moderniza´”. (Dussel, 1993: 75). A afirmação do “mito da modernidade” resultou em um
processo de “encobrimento do outro”.

111 Ao tratar da Europa como “periferia” do mundo muçulmano, Dussellemba que “No Século XV, até 1492,
a hoje chamada Europa Ocidental era um mundo periférico e secundário do mundo muçulmano. A Europa
Ocidental nunca fora o ´centro´da história pois não ia além de Viena, ao leste, já que até 1681 os turcos
estiveram perto de seus muros, e além de Sevilha em seu outro extremo, A totalidade de seus habitantes, da
Europa latino-germana não era mais de cem milhões (inferior à população do império chinês sozinho nessa
época). Era uma cultura isolada, que fracassara com as Cruzadas por não poder recuperar alguma presença
num polo nevrálgico do comércio do continente euro-asiático.[...] Impedidos os europeus de poderem
controlar o Mediterrâneo oriental, tiveram de ficar isolados, periféricos do mundo muçulmano” (Dussel, 112)

~ 93 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

III

O potencial crítico das teorias surgidas no contexto periférico pode contribuir


para pensarmos nos limites e possibilidades dos direitos humanos na contemporaneidade.
Como já explicitado em outro momento, procuramos aqui amplificar a força emancipatória
da Declaração Internacional dos Direitos Humanos mediante uma compreensão que
transcenda os valores ocidentais. Nesse sentido, as propostas originadas nas teorias críticas
são significativamente sugestivas de parâmetros epistemológicos para a refundação do
pensamento jurídico diante dos desafios da contemporaneidade. Aqui destacamos as
contribuições de Boaventura de Sousa Santos e Joaquín Herrera Flores.
A proposta de Boaventura de Sousa Santos parte da valorização das estratégias de
articulação entre diferentes saberes científicos ou populares sobre um mesmo tema. Parte
da ideia de que todos saberes são incompletos.. Busca-se assim superar a hegemonia do
saber científico introduzindo como válidas muitas formas de pensar silenciadas e mesmo
negadas pela tradição cientificista ocidental. A difusão da proposta de uma “ecologia de
saberes” tem como consequência a possibilidade de dar protagonismo a diferentes formas
de materialização dos direitos humanos, valorizando uma multiplicidade de perspectivas
concernentes à realização do ideal de vida digna.
Contra um universalismo abstrato, a teoria crítica dos direitos humanos de
Joaquín Herrera Flores contempla as inconsistências e paradoxos dos direitos humanos,
destacando, no entanto, a sua importância como instrumento de luta. Faz uma crítica ao
paradigma cultural ocidental que se sustenta“encriteriosesencialistas que parten de una
concepción a priori del resto de culturas. Nessemodelo,“los otros son vistos como culturas
cerradas, inmodificables en sus aspectos fundamentales, portadoras de tradicionalismos
inmutables y agresivos”(2006:.22).
Para Herrera Flores, é preciso reconhecer a complexidade dos direitos humanos e
reinventá-los a partir de uma racionalidade de resistência. Esta reconfiguração dos Direitos
Humanos pressupõe um conjunto de “múltiplas vozes”, incorporando “diferentes
contextos físicos e simbólicos na experiência do mundo” (Herrera Flores, 209:152). Esta
compreensão implica no abandono da pretensão universalista em favor de uma leitura
intercultural dos Direitos Humanos enquanto prática “criadora e recriadora” do mundo a
partir de uma “resistência ativa” insurgente e pluralista (Herrera Flores, 2009:160).
Herrera Flores vê pouca capacidade explicativa nos multiculturalismos
conservadores, que vêm a questão cultural apartada das questões políticas e econômicas.

~ 94 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Para ele, “A cultura não é uma entidade alheia ou separada das estratégias de ação social; ao
contrário, é uma resposta, uma reação à forma como vão se constituindo e se desdobrando
as relações sociais, econômicas e políticas em um tempo e um espaço determinados” (2009:
148). Também denuncia os multiculturalismos localistas ou nativistas, que radicalizam
questões identitárias e redundam em um tipo de “universalismo de retas paralelas”, uma
noção multicultura de direitos. Para ele, “o termo ‘multicultural’ ou não diz nada, dada à
inexistência de culturas separadas, ou conduz à sobrepor, no estilo de um museu, das
diferentes culturas e formas de entender os direitos” (2009:156).
O problema não está na pretensão de universalidade ou na afirmação identitária.
Herrera Flores afirma que é necessária “uma racionalidade sem lar, descentrada e exilada do
convencional e dominante. O problema não está na preocupação pela forma, mas no
formalismo. O problema não reside na luta pela identidade, mas no essencialismo do étnico
ou da diferença” (2009:159). A sua teoria aponta, assim, para um universalismo que não é
tomado como ponto de partida, mas de chegada, depois de “um processo conflitivo,
discursivo de diálogo ou de confrontação em que se rompam os preconceitos e as linhas
paralelas” (Herrera Flores, 2009:157).
Sua visão não é apenas universalista ou multicultural, é intercultural. As culturas se
entrecruzam e apresentam suas próprias narrativas e suas formas de ver os direitos. Estão
abertas a descobrir a perspectiva de outras culturas. Direitos humanos não devem ser vistos
como produto de uma determinada cultura, mas dessa convivência entre diversas formas
de ver o mundo.
Uma percepção intercultural dos Direitos Humanos tem a oferecer afinal, uma
agenda de trabalho significativamente ampla para o enfrentamento de várias questões que
nos afligem neste início de Século XXI. A potencialização da democracia e da inclusão
social passa pela compreensão dos Direitos Humanos enquanto pauta aberta e plural,
insusceptível de apropriação unilateral por grupos eventualmente hegemônicos. Uma visão
complexa dos direitos humanos “assume a realidade e a presença de múltiplas vozes, todas
com o mesmo direito a se expressar, a denunciar, a exigir e a lutar”(Herrera Flores, 2009, p.
152).

IV

A crítica ao discurso dos direitos humanos também encontra fundamento no


plano da teoria crítica do direito, especificamente na “critique ofrights” desenvolvida pelos

~ 95 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

teóricos do movimento americano Critical Legal Studies (Tushnet, 1994) e os seus cinco
argumentos básicos: a) o discurso dos direitos é menos útil para garantir mudanças sociais
reais e progressivas do que as propostas pelos teóricos liberais e ativistas; b) os direitos são
de fato indeterminados e incoerentes; c) o uso do discurso dos direitos desencoraja a
imaginação humana e confunde as pessoas sobre como o direito realmente funciona; d) o
discurso dos direitos reflete e produz uma espécie de individualismo isolado que impede a
solidariedade social e a genuína conexão humana; e finalmente, e) o discurso dos direitos
pode impedir o movimento progressista que luta por democracia e justiça genuínas.
Embora o direito internacional dos direitos humanos tenha quase na sua totalidade,
fundamento na teoria dos direitos objeto da crítica da CLS, apenas autores como David
Kennedy (2006) e Maarti Koskeniemmi têm desenvolvido teorias fortemente baseadas
nesta linha da teoria critica do direito.
Em The Darkside of Virtue (2006) David Kennedy enfoca a sua critica pragmática
nos possíveis riscos, custos e conseqüências imprevistas do ativismo dos direitos humanos.
Para o autor, os advogados humanitários precisam enfrentar os lados obscuros da tradição
humanitária, reconhecendo honestamente os custos e consequências negativas que podem
permear o ativismo, e assumir a responsabilidade pelos danos de uma pratica
excesivamente universalista. Em From Apology to Utopia (1989, 2005), Martti Koskenniemi
apresenta sua tese sobre a indeterminação fundamental do direito internacional. Essa viria a
sintetizar um momento crítico no direito internacional. Koskenniemi demonstrou como a
política dos preconceitos do direito internacional pode operar na sombra da
indeterminação para produzir hegemonia institucional.
Nas últimas décadas o feminismo e o relativismo cultural estão entre as críticas
mais vigorosas e mais visíveis do discurso dominante sobre os direitos humanos. Em
muitas questões, feministas e relativistas culturais se viram tomando lados diametralmente
opostos. Mas, na literatura sobre os “direitos humanos das mulheres” (ENGLE, 1992:
518,519) essas críticas, aparentemente antagónicas, revelam paralelos e semelhanças em
suas respectivas formulaçaões.
É nessa linha de ideais que Peterson (1990: 305, 306) desenvolve uma crítica
feminista (conhecida como “feminist critique”) pós-positivista sobre os “dados” (givens) do
discurso liberal dos direitos humanos especificamente contra as sus premisas fundantes e
pressuposições implícitas sobre a natureza humana, ou seja, a ontología do individuo e das
relações entre “individuo/outro”. Peterson considera que a teoria e a prática originárias e
predominantes dos direitos humanos são androcêntricas pois ainda persiste um tratamento

~ 96 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

secundário para os direitos das mulheres que muitas vezes foram excluídos dos
entendimentos das convencões internacionais (especialmente da Declaração do 1948)
baseados na dicotomia publico/privado, na essencialização das identidades e nas
hierarquias dualistas. Consequentemente, o discurso dominante dos direitos humanos está
ainda fortemente associado a uma filosofía moral liberal, positivista e patriarcal que tem
como centro um gênero específico (o masculino) e a sua visão do mundo, é pelo tanto é
incompleto ao nível ontológico e inadequado para assegurar a completa eliminação da
violência estrutural contra as mulheres nas sociedades contemporâneas.
A partir da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra as Mulheres (aprovada em 18 de dezembro de 1979), o sistema internacional de
direitos humanos superou, apenas em parte, os elementos da crítica feminista consagrando
a ideia segundo a qual a discriminação é uma injustiça e constitui uma ofensa à dignidade
das mulheres. A convenção (também conhecida como Declaração Internacional de
Direitos das Mulheres) ampliou as disposições gerais dos direitos humanos, falando
especificamente sobre os direitos das mulheres como direitos humanos. Seguidamente a
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos realizada em Viena em 1993 reafirmou o
reconhecimento dos direitos das mulheres como parte inalienável, integral e indivisível dos
direitos humanos universais. Finalmente, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra as Mulheres (conhecida como Convenção de Belém do Pará)
aprovada em 9 de Junho de 1994 pela Assembleia Geral dos Estados Americanos
estabeleceu parâmetros legais regionais em torno à violência contra as mulheres,
parâmetros aos quais todos os países signatários da Convenção estão sujeitos.
Contudo, esses sucessos manifestos das visões feministas dentro do sistema de
direitos humanos ainda tem que sortear as possíveis contradições entre o discurso jurídico
e a real efetivação dos direitos humanos. Porém, o discurso dos direitos humanos das
mulheres, ainda tem obstáculos a superar. O referencial teórico feminista desenvolvido
pelas convenções mencionadas deve estar voltado para a superação dos desafios
ontológicos e epistemológicos apontados pela crítica feminista e ser acompanhado pela
cooperação dos Estados em relação à promulgação de políticas de garantia da igualdade
social e paridade política, nas quais as perspectivas de gênero contidas nas normas
convencionais sejam desenvolvidas e concretizadas.
Assim, também os elementos da crítica aos direitos da Critical Legal Studies e da
Feminist Critique estendem-se ao discurso do liberalismo que celebra o advento dos direitos
humanos ao mesmo tempo que não enfrenta os dilemas estruturais mais profundos

~ 97 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

gerados pelo sistema econômico político e social internacional. Um compromisso com a


teoria crítica do direito deve levar a novas formas de ver os direitos humanos que podem
promover uma compreensão alternativa da relação entre o direito e a política.

REFERÊNCIAS

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2009

ENGLE, Karen. International Human Rights and Feminism: When Discourses


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Sociais, n. 75, p. 21-40, 2006.

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DERRIDA, Jacques. Força de Lei: O Fundamento Místico da Autoridade. São Paulo,


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DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro (A Origem do “Mito da


Modernidade”). Petrópolis: Vozes, 1993.

___________. Origen de la filosofía política moderna: Las Casas, Vitoria y Suárez (1514-
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Boiteux, 2009

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Diplomatique Brasil. São Paulo, p. 30-31, 2008.

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Direitos Humanos & Fundamentais

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Humanitarianism.Princeton University Press, 2005.

KOSKENNIEMI, Martti. From Apology to Utopia. The Structure of International


Legal Argument, Cambridge: Cambridge University Press, 1989

MACKLEM, Patrick. Human rights in international law: three generations or


one?. London Review of International Law, v. 3, n. 1, p. 61-92, 2015.

PETERSON, V. Spike. Whose Rights? A Critique of the "Givens" in Human Rights


Discourse. inAlternatives: Global, Local, Political, Vol. 15, No. 3 (1990), pp. 303-344.

TUSHNET, Mark. The Critique of Rights, 47 Southern Methodist University Law


Review, 23, 1994.

WALLERSTEIN, Immanuel. O Universalismo Europeu. São Paulo: Boitempo, 2007

~ 99 ~
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS DE 1948
E A CIDADANIA COSMOPOLITA

Carolina Alves de Souza Lima*

I – INTRODUÇÃO

Com enorme satisfação aceitei o convite para participar da presente obra, que
comemora os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Nesse
sentido, cabe lembrar brevemente o contexto no qual ela foi elaborada e refletir sobre sua
enorme importância no cenário internacional.Criada em 1945, após a barbárie das duas
grandes guerras mundiais e as sequelas deixadas na humanidade, referida declaração foi a
primeira do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, inaugurado pela
Organização das Nações Unidas.
Diante daquela nefasta realidade, a comunidade internacional buscavanovos
paradigmas para proteger os direitos da pessoa humana e preservar orespeito à sua
dignidade. Com esse propósito foi elaborada a Declaração Universal dos Direitos
Humanos pela Resolução n. 217 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de
dezembro de 1948. Nas décadas seguintes, foram criadas inúmeras outras declarações e
tratados internacionais de direitos humanos,tanto no âmbito global, ou seja, no sistema da
ONU, quanto no âmbito regional, por meio dos sistemas interamericano, europeu e
africano de direitos humanos, todos com o propósito de estruturar, ampliar e aprimorar a
proteção e a promoção dos direitos humanos no mundo.
Podemos afirmar que, nesse contexto, a Declaração de 1948 inaugura um novo
paradigma de percepção e proteção dos direitos da pessoa humana, pautado na concepção
de que somos todos igualmente pertencentes à família humana e, por isso, titulares de
direitos que tutelam a dignidade humana. Opreâmbuloda declaração expressa esse
sentidoda seguinte forma: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os
membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça
e da paz no mundo”.

*Mestre, Doutora e Livre-docente em Direito pela PUC/SP na qual é professora da Graduação e da Pós-
Graduação em Direitos Humanos. Advogada. E-mail: caslima@pucsp;souzalimacarolina@terra.com.br

~ 100 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Diante desse novo paradigma apresentado pela referida Declaração, pretendemos


analisar e discutir, no presente artigo,quais os caminhos para a viabilidade efetiva da família
humana, fundamentada na cidadania cosmopolita,com vistas a alcançarmos níveis mais
solidários de convivência fraterna e de respeito aos direitos da pessoa humana no mundo
atual.Indagamo-nos o que é preciso ser construído e aprimorado para que a comunidade
internacional, os Estados-partes, a sociedade civil e as organizações internacionais
viabilizem a cidadania cosmopolita. Partiremos da análise das relações mais próximas, ou
seja, da família, base da sociedade, e também tutelada pela Declaração em análise, para
chegarmos na família humana, concebida como humanidade.

II - ORIGEM E PERSPECTIVA DA CIDADANIA NA HISTÓRIA OCIDENTAL


DOS DIREITOS HUMANOS

É preciso, primeiramente, definir cidadania e contextualizá-la no âmbito histórico-


político, para que se possa compreender o porquê da demanda pela cidadania cosmopolita
na atualidade. Cabe também destacar que cidadania sempre esteve ligada à ideia de
pertencimento, assim como a família sempre representou o pertencimento. A cidadania na
cultura ocidental é uma construção político-social que determina a relação de
pertencimento.
A cidadania nasce originariamente na Grécia Antiga, durante o período
democrático,no século 5a.C,especialmente durante o governo de Péricles, de 444 a 429 a.C.
No regime democrático ateniense,foi estabelecida a igualdade de todos os homens livres e
o direito de participarem diretamente do governo da cidade, conhecida como polis.Foi nesse
contexto que surgiu a figura do cidadão. Este discutia e defendia em público suas ideias e
propostas a respeito do que entendia ser melhor para o interesse público. As discussões
eram realizadas nas assembleias e demandavam dos cidadãoscapacidade de
persuasão(CHAUÍ, 1997).
Interessante destacar que os atenienses consideravam a liberdade política uma
obrigação moral. A cidadania alcançava o status político de participação e atuação nos
assuntos de interesse da cidade, com vistas ao interesse coletivo e público, mas também
compreendia os direitos e deveres da vida privada, no âmbito doméstico familiar. Segundo
essa concepção, os estrangeiros, os escravos, as mulheres e as crianças– dependentes de
uma figura masculina,um cidadão – não eram considerados cidadãos, e consequentemente

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Direitos Humanos & Fundamentais

não detinham tais prerrogativas (CHEVALLIER, 1982; CHAUÍ, 1997 e COMPARATO,


2006).
Para a civilização romana antiga, a ideia de cidadania também estava ligada ao
pertencimento à cidade. Para eles, civis era o indivíduo livre e civitas,a cidade, o local no qual
se exercia a liberdade.O jus civile–o direito civil dos romanos–era o direito específico e
positivo da cidade e preceituava as regras de convivência dos cidadãos romanos. Estes
titularizavam, concomitantemente, o status libertatis, o status civitatis e o status familiae. O
primeiro representava a qualidade de indivíduo livre. A escravidão significava a perda desse
status. O segundorepresentava a ligação do indivíduo ao Estado romano. Os titulares desse
status participavam da vida política do Estado e gozavam de direitos tanto na esfera privada
quanto pública. Somente os patrícios titularizavamesse status. O status civitatis pressupunha o
status liberatis. Já o status familiaeera a condição que o homem, figura masculina, tinha no
âmbito familiar. (FUNARI, 2003 e ROLIM, 2000).
Pautado nesses status, o direito romano desenvolveu na seara político-social as
primeiras noções de pessoa, como sujeito de direitos e obrigações. No entanto, somente os
homens livres e pertencentes à classe dos patrícios detinham todos essesstatus.Isso porque a
sociedade romana antiga era dividida em classes e havia enorme distância social entre os
“bem-nascidos” e o restante da sociedade, o que geravainúmeros conflitos de ordem
política e social. As classes sociais eram divididas em patrícios, clientes, plebeus e escravos
(ROLIM, 2000; COULANGES, 2001; FUNARI, 2003).
Ao longo dos séculos que percorreu a civilização romana antiga,
odescontentamento dos plebeus e suas reivindicações possibilitaram que eles fossem
paulatinamente conquistando direitos até igualarem-se à classe patrícia. Os primeiros
direitos foram conquistados com a elaboração da Lei das XII Tábuas, em 451 a.C., no
período da República. Referida lei trouxe maior segurança jurídica por estabelecer o
princípio da lei escrita. Sua característica mais relevante foi estabelecer a laicização do
direito. Segundo a décima primeira tábua: “Que a última vontade do povo tenha força de
lei”.Todavia, referida lei ainda estava distante de ser uma lei protetora dos direitos dos
plebeus. O texto privilegiava os patrícios, que continuavam a exercer os cargos políticos,
como as magistraturas e o senado, além de estabelecer a servidão por dívida e a vedação do
casamento entre patrícios e plebeus. No entanto, com base nela foram elaboradas várias
leis que, progressivamente, beneficiaram os plebeus com os direitos da cidadania(ROLIM,
2000; FUNARI, 2003).

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Direitos Humanos & Fundamentais

Observa-se que as duas civilizações antigas, a grega e a romana, foram de


substancial importância para a concepção de cidadania,concebida, como analisado, em uma
vertente restrita de pertencimento à cidade, seja a polis, seja a civitas. Todavia, apoiada nessa
vertente a noção de cidadania foi sendo paulatinamente ampliada. Referidas civilizações
influenciaram profundamente a cultura ocidental nos séculos seguintes.
Cabe destacar também a influência do cristianismo na concepção de dignidade da
pessoa humana e consequentemente de cidadania. O cristianismoredimensionou valores ao
introduzir o respeito à dignidade da pessoa humana, a fraternidade universal e a igualdade
de todos os homens. Para os romanos, por exemplo, a dignidade poderia ser conquistada,
mas também perdida, uma vez que não era concebida como atributo do ser humano. Nesse
sentido expõem Philippe Áries e George Duby:“Não se tratava de uma virtude de
respeitabilidade, mas de um ideal aristocrático de glória. (...) A dignidade se adquire,
aumenta e pode-se perder”(1989, p. 109).
O cristianismo também inovou ao estabelecer o mandamento da igualdade de
todos os homens, o qual é especialmente retratado em uma das passagens da Carta aos
Gálatas (1989, p. 403-404), na qual São Paulo pronunciou: “não há mais diferença entre
judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são
um só em Jesus Cristo”. Os homens são, perante o cristianismo, iguais entre si e também
irmãos entre si, uma vez que todos são filhos de Deus. Trata-se do mandamento do amor
ao próximo, ou seja, da fraternidade universal. Importante destacar que o cristianismo teve
influência central na concepção de dignidade da pessoa humana e seus direitos.
Nesse sentido, a construção filosófica da ideia de direitos humanos teve influência
direta do cristianismo, uma das religiões do mundo, mas claro, não a única. Essa realidade
histórica vai dificultar no século 20 e 21 tanto a concepção laica de direitos humanos,
quanto a concepção que dialoga com todas as outras formas de religiosidade.
Cabe também destacar que a sociedade romana do início da Era Cristã era
formada por castas, com indivíduos sem cidadania e, por isso, sem propriedade, sem
posição social reconhecida e sem direitos. Foi nessa conjuntura político-social de conflitos
que o cristianismo encontrou espaço para sua expansão. As comunidades cristãs,
percebendo essa realidade, agiram no âmbito social, dando aos não cidadãos a esperança de
vida digna por meio de benefícios e proteção humanitária e social, o que gerou profunda
aceitação popular. No entanto, o alcance de “direitos” da cidadania para as classes
inferiores tinha conotação de caridade e não de direito (HOORNAERT, 2003).

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Direitos Humanos & Fundamentais

Durante aIdade Média,também encontramos a concepção de direitos ligados à


noção de cidadania e de pertencimento; todavia, ainda em um contexto restrito, uma vez
que a realidade política e social da época era marcada por uma sociedade estratificada. As
cartas de franquias medievais, dadas pelos reis aos vassalos, consolidavam a concessão de
direitos a determinados estamentos. Já sinalizavam a abertura para transformar os direitos
estamentais – pautados no privilégio – em direitos do homem. A Magna Carta Libertatumde
1215 foi a mais célebre de todas. Seu propósito foi estabelecer um modus vivendi entre o
monarca e os barões, no qual se selavam determinados direitos de supremacia do rei em
troca de certos direitos de liberdade dos barões. Previu pioneiramente a garantia do devido
processo legal em seu artigo 39, além de alguns direitos da personalidade (CANOTILHO,
s.d.).
A partir da Era Moderna, com base na filosofia iluminista, que propunha ideias
que condenavam toda forma de tirania, seja intelectual, moral ou religiosa, a classe burguesa
passou a reivindicar a cidadania liberal, fundamentada no respeito aos direitos civis e
políticos.Esses ideais fundamentaram e legitimaram as revoluções burguesas. Nesse
sentido, os direitos reivindicados foram previstos, primeiramente, nas declarações, como a
inglesa de 1688, a francesa de 1789 e a americana de 1776, e logo depois nas Constituições,
como a Francesa de 1791 e a Americana de 1787, sendo estas consideradas o marco formal
do constitucionalismo moderno.
Com fundamento nas referidas constituições, o constitucionalismo moderno
ganha força e difunde seus princípios não só para a Europa, mas também para outros
continentes. Apresentava como doutrina principal a afirmação dos direitos fundamentais e
a limitação dos poderes do Estado por meio de uma constituição que tutelasse
fundamentalmente os direitos civis e políticos. Os ideais iluministas chegaram até o Brasil e
inspiraram a Constituição de 1824, que previu uma série de direitos fundamentais. No
entanto, é preciso assinalar que referida constituição foi outorgada e concebia o regime
escravocrata(LIMA, 2012). Cabe frisar que a cidadania construída nesse período era a
liberal. Nas palavras de Leandro Karnal (2003, p 143-144):

Na verdade, o termo cidadania foi criado em meio a um processo de exclusão.


Dizer quem era cidadão – ao contrário de hoje, em que supomos se tratar da
maioria – era uma maneira de eliminar a possibilidade de a maioria participar, e
garantir os privilégios de uma minoria. Admitir o conceito de cidadania como um
processo de inclusão total é uma leitura contemporânea.

A cidadania conquistada com a Revolução Americana representou para os


indígenas norte-americanos a perda de direitos. As mulheres e os homens brancos e pobres

~ 104 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

também não eram titulares dos direitos políticos e por isso não votavam. Assim, ao lado
dos ideais de liberdade e igualdade estava a escravidão que perdurou até a Guerra de
Secessão (1861-1865). Somente com a Emenda Constitucional n. 13 a escravidão nos
Estados Unidos da Américafoi expressamente proibida (KARNAL, 2003).
O mesmo ocorreu em relação à Revolução Francesa. Observa Eric J. Hobsbawm
(2009, p. 91), ao analisar a Declaração de 1789, que: “Este documento é um manifesto
contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma
sociedade democrática e igualitária”. A cidadania liberal francesa estabelecia o voto
censitário e somente para homens livres com determinada renda. Cabe lembrar que a
França manteve a escravidão em suas colônias até 1848 (HOBSBAWM, 2009). As
mulheres também estavam excluídas da cidadania. Em 1791, a escritora e artista dramática
Olympe de Gouges propôs à Assembleia Nacional Francesa a “Declaração de Direitos da
Mulher e da Cidadã”, a qual não foi aceita. Foi guilhotinada em 1793, após ter sido
condenada como contrarrevolucionária e considerada mulher “desnaturada”112.
Não obstante a cidadania conquistada ao longo das revoluções burguesas ter tido
caráter excludente, representou, naquela época e contexto, importantíssimo avanço,
porquanto houve efetiva mudança de paradigma na sociedade europeia, ao introduzir os
direitos como conquistas no campo político-social e não mais como privilégios. Ademais, a
cidadania liberal foi importante passo para se reivindicarem no século 19 os direitos de
caráter social, ou seja, aqueles que possibilitam a distribuição da riqueza coletiva e vão
proporcionar maior grau de pertencimento no campo político-social.
Nesse sentido, o século 19 foi marcado pela reafirmação dos direitos civis e
políticos e pela reivindicação dos direitos sociais, com vistas à distribuição da riqueza
coletiva e enfrentamento das injustiças sociais.O Manifesto Comunista, elaborado por Marx
e Engels em 1848, foi o documento mais importante da crítica socialista ao regime liberal-
burguês. Nesse período, a sociedade europeia começava a reivindicar a cidadania com
conotação social, o que também representou a ampliação da cidadania e de pertencimento
ao coletivo. As leis fabris na Inglaterra configuram as primeiras conquistas legislativas nessa
seara (LIMA, 2002).
O século 20, por sua vez, presenciou as duas grandes guerras mundiais e centenas
de outras guerras e conflitos, que o marcaram como o período dos massacres, guerras e
genocídios.A primeira metade do século foi marcada pela conquista dos direitos sociais no
112http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-à-criação-da-Sociedade-das-

Nações-até-1919/declaracao-dos-direitos-da-mulher-e-da-cidada-1791.html Documentos Históricos de


Direitos Humanos – Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã de 1791. Acesso em 17 de dezembro de
2017.

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Direitos Humanos & Fundamentais

âmbito constitucional, o que representou ampliação da cidadania para muitos. Tiveram


destaque a Constituição Mexicana de 1917, com ênfase nos direitos sociais, em especial nos
direitos trabalhistas, e a Constituição Alemã de 1919, conhecida como Constituição de
Weimar,a primeira tentativa de criar uma socialdemocracia no mundo
(COMPARATO,2006).
O término da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a constatação de todas as
ofensas aos direitos da pessoa humana nela perpetradas levam ao início do processo de
internacionalização desses direitos, com a ampliação do Direito Humanitário, a criação da
Liga das Nações e da Organização Internacional do Trabalho (PIOVESAN, 2008). No
entanto, se, por um lado, após a Primeira Guerra se inicia o processo de internacionalização
dos direitos humanos, por outro, as dificuldades oriundas dos efeitos da guerra e dos
movimentos revolucionários do período de 1918 a 1919 favorecem a instalação de regimes
totalitários em diversos países da Europa no período entre as duas grandes guerras. Dentre
eles, o nazismo na Alemanha e o fascismo na Itália (ARRUDA, 1979).
A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) desencadeou certamente a maior
catástrofe humana da história, no qual o Estado totalitário alemão impôs suapolítica
nazista, baseada no racismo, ao afirmar a superioridade da raça ariana, encarnada pelo povo
alemão, sobre os não alemães, particularmente os judeus, e que levou ao genocídio de
milhões de pessoas. Ao final da guerra e diante de toda a barbárie, consolida-se o Sistema
Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, estruturado no Direito Internacional dos
Direitos Humanos. Este tem como papel central proteger, única e exclusivamente, os
direitos da pessoa humana, porquanto se fundamenta no respeito incondicional a sua
dignidade. Introduz a cidadania cosmopolita, pautada no direito de todo e qualquer ser
humano ter seu lugar de “pertencimento” garantido pela ordem jurídica internacional.O
propósito é estabelecer que todos nós, sem exceção, pertencemos à família humana.
Para tanto, cria-se a Organização das Nações Unidas, por meio da Carta de São
Francisco em 1945 e da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. Referida
declaração preceitua expressamente o reconhecimento da dignidade inerente a todos os
membros da família humana.A partir de então, foram elaborados vários tratados
internacionais de direitos humanos, tanto no âmbito global quanto regional, reafirmando os
mesmos postulados no que se refere a proteger a dignidade da pessoa humana, os direitos
humanos e a cidadania. Introduz-se, no campo jurídico, a cidadania cosmopolita como
relação de pertencimento à família humana.

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Direitos Humanos & Fundamentais

No entanto, consolidar tais ideias não seria caminho fácil, como nunca é quando
se trata da proteção dos direitos humanos. No período posterior à Segunda Guerra inicia-se
a Guerra Fria, com toda sua complexidade eseus conflitos.Em meio a todo esse contexto,
somado à realidade da globalização econômica pautada no viés neoliberal, a humanidade
ainda se vê diante de muitos outros dilemas, questionamentos, tensões e desafios para
alcançar maior proteção dos direitos humanos e a possibilidade de exercitar uma cidadania
mais plena.
O novo cenário global se apresenta com a degradação do meio ambiente, os
conflitos e as guerras civis e internacionais, o drama dos refugiados, o terrorismo, a busca
pela segurança nacional e internacional, a demanda pela paz mundial, as profundas
desigualdades sociais, a dificuldade de um diálogo intercultural, as inovações tecnológicas
em todos os campos do conhecimento e seus desdobramentos e dilemas éticos, entre
outros.
Diante dessa realidade, começa a se intensificar a demanda por proteção de
direitos que reconheçamtambém o indivíduo como ser pertencente à humanidade, ou seja,
à família humana. São demandas que nos unem na perspectiva da solidariedade. Busca-seo
respeito mútuo entre os indivíduos, iniciando-se nas relações privadas e mais próximas,
caminhando para a vida em sociedade, até chegar às relações mais amplas, como no âmbito
internacional e global. Esse é o caminho da cidadania cosmopolita.
Todas essas relações devem ser pautadas no respeito aos direitos humanos e à
dignidade da pessoa humana. Pode parecer utopia ou ingenuidade defender tais ideais,
diante de um mundo globalizado, masapenas no campo econômico, e marcado por
relações sociais mais pautadas em interesses egoísticos e menos em solidariedade e
colaboração mútua, somadasà falta de empatia e tolerância.No entanto, verificamos que,
por um lado, avançamos na consolidação da cidadania no plano jurídico internacional, o
que representa importante mudança de paradigma e conquista inédita. Por outro lado, a
realidade mundial é muito complexa, com um cenário marcado por países não
democráticos, e mesmo os democráticos muitas vezes não alcançam o grau de proteção e
promoção da cidadania determinado pelos tratados de direitos humanos. Ademais, a
história da cidadania e dos direitos humanos é uma construção da cultura ocidental e, por
isso, arraigada fundamentalmente em seus valores, além de ter profunda influência do
cristianismo, uma das religiões do mundo, mas não a única.
Diante desse cenário de tensões e desafios, vamos discorrer a respeito do
pertencimento,com base na noção de família no sentido privado, para chegar à ideia de

~ 107 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

família no sentido coletivo e público, a abarcar a noção de cidadania cosmopolita.Para


tanto, indagamos quais são os empecilhos e as tensões da atualidade que inviabilizam o
acordado pela Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 no sentido da
construção da cidadania cosmopolita.

III – A FAMÍLIA NA SUA VERTENTE PRIVADA E SUA RELAÇÃO DE


PERTENCIMENTO

O ser humano tem em sua essência a necessidade de pertencimento. É ser


gregário por natureza. Desde a Antiguidade Clássica, a família já exercia papel de destaque
na sociedade. A título de curiosidade, as primeiras normas das civilizações grega e romana
nasceram no seio da família e foram formadas pelos antigos princípios que a constituíam,
princípios esses baseados na religiosidade dessa sociedade. A autoridade primeira na família
era a religião doméstica. A religião estava em todas as casas e cada uma possuía seus deuses.
Cada deus protegia apenas uma família, que era aquela à qual ele pertencia (COULANGES,
2001).
Naquele período, a família era uma sociedade autossuficiente e funcionava como
se fosse o Estado. Todas as questões da vida eram resolvidas no seio da família, inclusive as
pertinentes à realização da justiça com relação aos que estavam subordinados ao “pater
familias”. Ele era o magistrado das mulheres, dos filhos e dos escravos. Quanto aos filhos,
como o laço sanguíneo, por si só, não constituía o laço de família, uma vez que era
necessário o vínculo religioso, aqueles nascidos fora do matrimônio religioso não
pertenciam ao fogo doméstico e, por isso, eram ilegítimos e desprovidos de proteção
(COULANGES, 2001).
A família sempre esteve presente em todas as sociedades e culturas. Hoje, no
século 21, estrutura-se,é claro, em outros parâmetros e se manifesta de acordo com cada
cultura e sociedade em que se insere.Na cultura ocidental, à qual pertencemos, o século 20,
especialmente a partir da sua segunda metade, foi um período de muitas transformações
nos costumes e valores da sociedade. A emancipação feminina e sua independência
econômica, a reivindicação e paulatina conquista da igualdade entre os sexos, o divórcio, a
emancipação dos filhos, o controle da natalidade, as novas técnicas de reprodução humana,
assim como a prevalência da afetividade e do respeito à dignidade da pessoa humana como
valores fundamentais das relações familiares, fizeram e fazem com que a instituição da
família se renove constantemente (MALUF, 2010).

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Direitos Humanos & Fundamentais

Nesse contexto, algumas transformações sociais vieram a repercutir diretamente


na organização da família, como a acentuação do processo de industrialização e de
urbanização, e a consolidação da sociedade de consumo. Tais mudanças fizeram com que a
família precisasse se reestruturar. O processo de emancipação da mulher trouxe tanto o
desejo quanto a necessidade de trabalhar fora de casa, assim como a conquista da
igualdade, pelo menos formal, dos seus direitos em relação aos direitos dos homens. Tal
realidade gerou a necessidade de redefinir os atores familiares e também de flexibilizar os
papéis na família (MALUF, 2010).
Da perspectiva dos direitos humanos, podemos conceber duas possibilidades de
se compreender e proteger a família. A primeira delas é a da família no âmbito das relações
privadas. Encontra proteção no artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948 e em vários tratados de direitos humanos, assim como na Constituição Federal de
1988. A família é concebida como núcleo natural e fundamental da sociedade. A outra
forma de concebermos a família é da perspectiva da fraternidade universal, expressa nos
preâmbulos de documentos de direitos humanos, primeiramente na Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948 e, na sequência, no Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos e no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de
1966.
De acordo com os referidos documentos internacionais,há o reconhecimento da
dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e
inalienáveis, os quais são o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. O
Direito Internacional dos Direitos Humanos parece assim apontar para um objetivo maior
de todos nós como família humana, no sentido de construir uma sociedade mais solidária,
tolerante e pacífica.
Quanto à proteção da família no âmbito privado, preceitua o artigo 16 da
Declaração que: “1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça,
nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais
direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. 2. O casamento não será válido senão com o
livre e pleno consentimento dos nubentes. 3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem
direito à proteção da sociedade e do Estado”. Referido dispositivo é de extrema relevância ao
estabelecer várias vertentes de proteção da família e de seus membros.
A família é uma realidade social. É também a primeira das instituições, a mais
antiga e a mais importante, porque tem sido ao longo dos tempos base substancial das

~ 109 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

relações sociais. É instituição presente ao longo de toda a história da humanidade. Por isso,
em cada período, espelha a estrutura e as demandas de determinadas sociedade e cultura.
O disposto no artigo 16 da Declaração apresenta os parâmetros mínimos de
proteção da família no âmbito das relações privadas, com vistas a que cada país
regulamente e proteja os interesses da família e dos seus membros no plano interno. Não é
o foco do presente estudo analisar detalhadamente os aspectos civis do casamento e da
constituição da família, uma vez que o objetivo é analisar a família humana, com vistas à
efetivação da cidadania cosmopolita.
No entanto, cabe destacar que o artigo 16 apresenta vertentes mínimas de
proteção nas relações familiares privadas que, sem dúvida, refletem nas relações sociais e na
cultura. Ao estabelecer em seu inciso primeiro que o matrimônio deve ser entre homens e
mulheres de maior idade, visa a proteger a infância e seus direitos. Submeter uma criança
ao casamento, o que é realidade em alguns países, configura violação aos direitos da
infância, em razão de serem as crianças seres em desenvolvimento físico, psíquico e social e
demandarem proteção especial.
O referido inciso primeiro também estabelece a igualdade de direitos nas relações
do casamento e da família. Configura-se o princípio da igualdade entre os cônjuges, o que
representa a igualdade de direitos e deveres. O inciso segundo do artigo 16 complementa
prescrevendo que o “casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes”.
Representa que o casamento deve ser ato de livre e espontânea vontade das pessoas
maiores de idade. Deve ser um ato pleno de livre escolha. A proteção jurídica está tanto na
família em si, quanto em seus membros, com vistas ao respeito e à proteção da
individualidade de cada um. Finaliza o artigo, com o seu inciso terceiro, o qual preceitua
que a família, como núcleo natural e fundamental da sociedade, tem proteção desta e do
Estado.
Quanto ao ordenamento jurídico brasileiro, observa-se que a Constituição de 1988
está em total consonância com o artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos.Nesse sentido, o artigo 226 da Lei Maior preceitua que: “A família, base da
sociedade, tem especial proteção do Estado”. Tal dispositivo incorpora o princípio da tutela
especial à família, segundo o qual esta é a base da sociedade. A proteção do Estado deve
atuar em duas vertentes: na tutela dos direitos dos membros da família e na criação de
mecanismos para coibir a violência no âmbito familiar.Isso porque a família pode ser tanto
o lugar de proteção, como também o da violência contra seus membros, representando em
algumas situações o esconderijo perfeito para a perpetuação da violência.

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Direitos Humanos & Fundamentais

A liberdade de constituição da família garante o direito de as pessoas constituírem


ou não família. Por isso, trata-se de um direito e não de uma obrigação. É o direito de
constituir livremente uma família matrimonializada ou não. Isso significa que a entidade
familiar pode ser constituída pelo casamento, mas não exclusivamente por ele. Quando
constituída pelo casamento, este pode ser civil ou religioso. A família também pode ser
constituída pela união estável entre um homem e uma mulher.
Quanto à realidade jurídica brasileira, cabe destacar que, em 2011, o Supremo
Tribunal federal, a mais alta corte brasileira, analisou demanda na qual reconheceu a união
estável para casais do mesmo sexo na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277. Entre
os argumentos da Corte, a decisão fundamentou-se no direito à intimidade e à vida privada,
respaldado pelo artigo 5º da Constituição. Nesse sentido, a concepção de família abarca
várias formas de relacionamento ligadas pelo afeto, o que consolida o princípio do
pluralismo dos tipos familiares. O Estado brasileiro avança significativamente ao ampliar a
proteção da união estável para casais do mesmo sexo 113.
Da ótica constitucional, é a família a primeira instituição a garantir o
pertencimento e proporcionaro cultivo e desenvolvimentoda afetividade eda fraternidade.
É no espaço familiar que se estabelecem as relações, assim como seassumem as
responsabilidades tanto no âmbito privado quanto público. Nesse sentido, a Constituição
preceitua o princípio da solidariedade familiar em seu artigo 229. Referido princípio baseia-
se nos vínculos de afetividade, solidariedade e reciprocidade, que devem estruturar as
relações familiares. Por isso, a Constituição estabelece o dever de assistência mútua entre os
cônjuges, a proteção integral às crianças e aos adolescentes, o amparo aos idosos e o dever
de alimentos nos casos de necessidade. Há também o princípio da afetividade. Não
obstante não haver previsão expressa na Constituição, podemos concebê-lo implicitamente
e diretamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que a família é
uma instituição formada por laços de afeto e de comunhão (MALUF, 2010).
Dessa perspectiva, verifica-se que a família é a instituição por excelência, uma vez
que desempenha substancial função social. É o local do acolhimento dos seus membros, da
transmissão de valores, crenças, costumes e comportamentos que estruturam e revelam
como são as sociedades. É o local em que se pode proporcionar o desenvolvimento da
personalidade, no qual há a primeira educação, se exerce e se preserva a vida privada e se
prepara o indivíduo para a vida social. É o local de acolhimento dos afetos e das relações
mais autênticas (MALUF, 2010).

113http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931 Acesso em 17 de
dezembro de 2007.

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Direitos Humanos & Fundamentais

IV – FAMÍLIA HUMANA, PERTENCIMENTO E CIDADANIA


COSMOPOLITA: TENSÕES E DESAFIOS PARA SUA CONCRETIZAÇÃO

A concepção de cidadania passou por longo período de formação e consolidação,


como já analisado neste estudo, até chegar à cidadania cosmopolita fundamentada no
Direito Internacional dos Direitos Humanos.O indivíduo passa a ser sujeito de direitos no
âmbito internacional eos Estados Democráticos de Direito passam a reconhecer a
cidadania como um vínculo do indivíduo com a sociedade política e juridicamente
organizada, por meio do contrato social, consolidado pelas Constituições e pelos Tratados
e Declarações de Direitos Humanos, com o propósito de garantir a ampla proteção e
titularidade dos direitos humanos.Nessecontexto, os Estados Democráticos,que
compõemo Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, assumem o
compromisso jurídico de promover e proteger os referidos direitos no âmbito nacionale
internacional.
Segundo essa perspectiva, a cidadania cosmopolita representa o grau máximo de
pertencimento, no sentido de que todo e qualquer Estado-parte do Sistema Internacional
de Proteção dos Direitos Humanos tem o dever jurídico de proteger os direitos de toda e
qualquer pessoa humana sob sua jurisdição, independentemente da nacionalidade, da idade,
do sexo, da posição política, social e econômica, da religião, da etnia, ou de qualquer outra
circunstância. O alcance da cidadania cosmopolita representa elevado grau de civilidade nas
relações entre pessoas, sociedades e Estados da comunidade internacional, porquanto
estabelece o comprometimento com o respeito à pessoa humana e sua dignidade como
princípio supremo da comunidade nacional e internacional.
Nesse sentido, é sempre fundamental reiterar o pensamento de Hannah Arendt,
segundo o qual o primeiro direito humano é o direito a ser titular de direitos. Essa
titularidade se alcança pelo vínculo da cidadania, ou seja, pelo vínculo do indivíduo com a
sociedade política e juridicamente organizada e garantidora dos direitos (ARENDT,
1989).Expõe Celso Lafer (1988,p. 147), ao analisar o pensamento da autora, que: “num
mundo como o do século XX, inteiramente organizado politicamente, perder o status
civitatis significava ser expulso da humanidade, de nada valendo os direitos humanos aos
expelidos da trindade Estado-Povo-Território”. Prossegue o autor:

O que ela afirma é que os direitos humanos pressupõem a cidadania não apenas
como um fato e um meio, mas sim como um princípio, pois a privação da

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Direitos Humanos & Fundamentais

cidadania afeta substancialmente a condição humana, uma vez que o ser humano
privado de suas qualidades acidentais – o seu estatuto político – vê-se privado de
sua substancia, vale dizer: tornado pura substância, perde a sua qualidade
substancial, que é de ser tratado pelos outros como um semelhante(LAFER, 1988,
p. 151)..

O Sistema Jurídico brasileiro, representado pela Constituição de 1988, é


plenamente comprometido com a proteção dos direitos humanos, com a garantia do
exercício da cidadania e com o respeito à dignidade da pessoa humana. Isso se constata
pela análise de vários de seus artigos, assim como pela hermenêutica constitucional. Dentre
eles, podemos destacar o artigo 1º, que elege a dignidade da pessoahumana e a
cidadaniacomofundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro; o artigo 4º, que
estabelece que a República Federativa do Brasil é regida, em suasrelações internacionais,
peloprincípio da prevalência dos direitos humanos; assim como o próprio artigo 5º e seus
incisos, todos destinados à consolidação da cidadania em suas várias facetas, com destaque
especial ao seu parágrafo 2º, que faz a ligação entre o sistema nacional e o internacional de
proteção dos direitos humanos.
No entanto, diante de normas jurídicas tão protetoras dos direitos humanos,
como compreender a expressiva falta de efetividade desses direitos, assim como a falta de
perspectiva do alcance real da cidadania cosmopolita. Trata-se, como é sabido, de realidade
complexa e que pode ser analisada de várias óticas. Uma delas está nas ideias de Boaventura
de Sousa Santos (2009), das quais compartilhamos, em seu artigo intitulado “Direitos
Humanos: o Desafio da Interculturalidade”. O autor tenta identificar como os direitos humanos
podem ser colocados a serviço de uma política progressista e emancipatória. Para enfrentar
tal questão, apresentacasos e tensões da atualidade que revelam o cenário político, social,
econômico e cultural no qual estamos imersos como “sociedade global”,o que fragiliza e
muitas vezes inviabiliza uma concepção mais forte dos direitos humanos e da cidadania.

V – DIÁLOGO COM O PENSAMENTO DE BOAVENTURA DE SOUSA


SANTOS QUANTO AOS DESAFIOS DA EFETIVIDADE DA CIDADANIA
COSMOPOLITA

Boaventura de Sousa Santos (2009) busca, no referido estudo, identificar as


condições nas quais os direitos humanos podem efetivamente representar e ser uma
política emancipatória das sociedades. Expõe primeiramente que existem três tensões
dialéticas presentes na modernidade ocidental. A primeira ocorre entre regulação social e
emancipação social. A segunda entre o Estado e a sociedadecivil. A terceira, por sua vez,

~ 113 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

dá-se entre o Estado-nação e a globalização. Dessa última tensão surgem a busca e a


reivindicação por uma cidadania global e cosmopolita, e,por isso, o nosso diálogo com o
pensamento do autor.
A fragilização atual do Estado-nação, diante do próprio processo de globalização
econômica, tem dificultado a proteção dos direitos humanos no âmbito nacional. Isso
porque os Estados são os primeiros responsáveispor promover e proteger esses direitos.O
sistema internacional de direitos humanos tem, na sua essência, a subsidiariedade. Isso
reforça a relevância do regime democrático e da sua relação direta com a proteção desses
direitos, com o papel de destaque dos Estados nessa missão.
Assevera Boaventura de Sousa Santosque a política dos direitos humanos é
essencialmentecultural.Nesse sentido, indaga como referidos direitos poderão ser
simultaneamente uma política cultural e global, diante das tensões da modernidade.Entende
pela possibilidade da vertente emancipatória dos direitos humanos; todavia, apresenta o
fenômeno da globalização neoliberal como um dos principais entraves para a proteção dos
referidos direitos. Para o autor, não se deve falar em globalização, mas sim em
globalizações. Mas a priori a define como: “o processo pelo qual determinada condição ou
entidade local consegue estender a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a
capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival”(2009, p.12).Para
o autor, o que chamamos hoje de globalização é sempre globalização bem-sucedida de
determinado localismo.
Defende ainda a existência de quatro formas de globalização. A primeira é o
localismo globalizado, em quedeterminado fenômeno local é globalizado com sucesso,
como, por exemplo, a atividade mundial das multinacionais, a transformação da língua
inglesa em língua franca, a globalização do fastfood americano e da sua música popular, etc.
A segunda forma de globalização, segundo o autor, é o globalismo localizado, em
que há “impacto específico de práticas e imperativos transnacionais nas condições locais”.
Apresenta vários exemplos, dentre eles (SANTOS, 2009, p. 12): “o desflorestamento e
destruição maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; tesouros
históricos, lugares ou cerimônias religiosos, artesanato e vida selvagem postos à disposição
da indústria global do turismo; conversão da agricultura de subsistência em agricultura para
exportação como parte do ‘ajustamento estrutural’; alterações legislativas e políticas
impostas pelos países centrais ou pelas agências multilaterais que eles controlam”.
A terceira forma de globalização é o cosmopolitismo, que, segundo Santos(2009,
p.12-13),representa:“conjunto muito vasto e heterogêneo de iniciativas, movimentos e

~ 114 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

organizações que partilham a luta contra a exclusão e a discriminação sociais e a destruição


ambiental produzidas pelos localismos globalizados e pelos globalismos localizados,
recorrendo a articulações transnacionais tornadas possíveis pela revolução das tecnologias
de informação e de comunicação”. O cosmopolitismo está presente nas várias frentes de
lutas e reivindicações, como,por exemplo,pelos direitos das minorias, dos excluídos e dos
direitos que interessam ao bem comum.
A quarta forma de globalização é chamada pelo autor de “Patrimônio Comum da
Humanidade”. A própria denominação já se autoexplica. Apresenta como exemplos a
preservação do planeta Terra e a sustentabilidade da vida humana em suas várias vertentes,
assim como a exploração do espaço e a relação com o planeta Terra (SANTOS, 2009).
Diante dessas quatro formas de manifestação da globalização, expõe Boaventura
de Sousa Santos (2009) que tanto os localismos globalizados quanto os globalismos
localizados são formas de globalização neoliberal, e por isso são formas impositivas de
determinados padrões e interesses hegemônicos. O cosmopolitismo e o patrimônio comum
da humanidade, ao contrário, são formas de globalização solidária, e por isso contra-
hegemônicas. Expõe que a complexidade dos direitos humanos está em que eles podem ser
compreendidos tanto como globalização hegemônica quanto como contra-hegemônica.
Quando concebidos como universais, entende o autor que os direitos humanos tenderão a
operar como localismo globalizado, ou seja, como globalização hegemônica, porque
buscam impor determinados valores locais como universais. Isso gera o chamado “choque
de civilizações”, com a tentativa de a cultura ocidental se impor às outras.
O autor busca apresentar quais são as condições culturais para que os direitos
humanos constituam forma de cosmopolitismo, ou seja, globalização contra-hegemônica, e
que atendam aos interesses da coletividade como um todo, com base no equilíbrio entre
liberdade e igualdade, com distribuição da riqueza coletiva e justiça social. Para viabilizar o
projeto cosmopolita, os direitos humanos precisam ser compreendidos e aceitos como
multiculturais. Nesse sentido, defende não haver uma cultura global. É a cultura ocidental
que busca apresentar os direitos humanos como globais e universais. Faz inclusive críticas à
própria Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, elaborada sem a participação
da grande maioria dos países da comunidade internacional. Também critica os interesses
dos países capitalistas hegemônicos a partir do final da Segunda Grande Guerra, no sentido
de defenderem seus interesses econômicos e geopolíticos,em detrimento de uma verdadeira
política emancipatória dos direitos humanos (SANTOS, 2009).

~ 115 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

No contexto neoliberal, o autor critica a dualidade entre o que chama depolítica


de “invisibilidade” e de “supervisibilidade”. A política de invisibilidade marca importantes
problemas e demandas pela proteção e promoção dos direitos humanos, especialmente de
grupos minoritários, vulneráveis e sem poder econômico e político. Já a política da
supervisibilidade dá destaque ao que é mais conveniente ao sistema neoliberaldas potências
hegemônicas. Ao criticar a política da supervisibilidade em detrimento da de invisibilidade,
aponta que há histórias não contadas e visibilizadas. Há outros lados, há outras lutas que se
manifestam no que ele denominou como cosmopolitismo. São lutas emancipatórias e
muitas vezes, explícita ou implicitamente, anticapitalistas. Por isso, entende que a luta pelos
direitos humanos deve passar de um localismo globalizado para um projeto
cosmopolita.Trata-se da concepção multicultural dos direitos humanos, no qual se legitima
e se proporciona amplamente e de forma democrática o diálogo intercultural (SANTOS,
2009).
Para tanto, o autor identifica algumas premissas que podem levar a essa
transformação. A primeira é a superação das teorias do universalismo e do relativismo
cultural. Expõe que todas as culturas são relativas; todavia, o relativismo cultural, como
posição filosófica, é incorreto, porquanto possibilita o desrespeito à pessoa humana com
base na cultura. Também expõe que o universalismo cultural, ou seja, a ideia de valores
universais, é válido, mas,comoposição filosófica, é incorreto, porquanto impõe modos
culturais como se fossem universais.
A segunda premissa da transformação cosmopolita dos direitos humanos
reconhece que todas as culturas possuem concepções de dignidade da pessoa humana, mas
nem todas elas ascompreendem em termos de direitos humanos.A terceira premissa
pressupõe que todas as culturas são incompletas, e por isso a existência de tantas culturas.
Para o autor (SANTOS, 2009, p. 14): “Aumentar a consciência de incompletude cultural é
uma das tarefas prévias à construção de uma concepção multicultural de Direitos
Humanos”. A quarta premissa estabelece que todas as culturas têm compreensões diversas
de dignidade da pessoa humana.
Para se alcançar o multiculturalismo, que representa o diálogo intercultural,
Boaventura de Souza Santos propõe a hermenêutica diatópica. Ela fundamenta-se,
basicamente, na ideia da incompletude de toda e qualquer cultura e, por isso, na
necessidade do diálogo entre as diferentes culturas. Desse modo, é necessário termos
consciência da incompletude de todas as culturas, inclusive a nossa, assim como termos
abertura e disposição para compreender o outro e dialogar com ele. Não há dúvida que o

~ 116 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

caminho mais civilizado é o do diálogo e da compreensão, especialmente defendido pela


cultura da paz, hoje prevista na Declaração da ONU sobre Cultura da Paz.
Não se trata, no entanto, de caminho fácil. Ao contrário. Ademais, cabe sempre
lembrar que aconstrução história, filosófica e política dos direitos humanos pertence à
cultura ocidental, marcada por uma postura imperialista, de dominação e subjugação de
muitos povos e culturas e baseada na globalização hegemônica. É preciso sempre analisar
pelo menos dois lados. Por um lado, a cultura ocidental tem muito a acrescentar no diálogo
intercultural. Por outro, ela não pode mais ser colocada como a “melhor”, a “mais
civilizada” e a “mais completa”. As culturas são muito mais amplas e apresentam variadas
formas de conceber a vida, o mundo e os relacionamentos.
Mesmo diante desse cenário, Boaventura de Sousa Santos apresenta algumas
diretrizes para um possível caminho do diálogo interculturalentre grupos sociais e culturais
na atualidade.Propõe que todas as culturas reconheçam sua própria incompletude e a
necessidade da consciência autorreflexiva. Para que o diálogo intercultural seja mais
profícuo, defende que:

Das diferentes versões deuma dada cultura, deve ser escolhida para o diálogo
intercultural a que representa o círculo de reciprocidade mais amplo, a versão que
vai mais longe no reconhecimento do outro. No que respeita às duas versões da
cultura ocidental dos Direitos Humanos, a liberal e a socialdemocrática, deve ser
privilegiada a última, porque amplia para os domínios econômico e social a
igualdade que a versão liberal apenas considera legítima no domínio
político(SANTOS, 2009, p.17-18).

Defende também que cada cultura deve decidir quando está apta para o diálogo
intercultural. Não pode haver imposição, mas sim verdadeiro diálogo, no qual a troca, a
solidariedade e a empatia são efetivamente respeitadas.Nesse aspecto, não podemos deixar
de reiterar a dificuldade do diálogo diante da prevalência da globalização hegemônica. Por
fim, defende o respeito intrínseco à igualdade no sentido de que: “a hermenêutica diatópica
pressupõe a aceitação do seguinte imperativo transcultural: temos o direito a ser iguais
quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza”(SANTOS, 2009, p.18).
Observa-se, por um lado, que as tensões apresentadas pelo autor esclarecem
porque é difícil viabilizar a proteção e a promoção dos direitos humanos de forma mais
plena no mundo atual, e consequentemente viabilizar a cidadania em todos seus aspectos,
inclusive o cosmopolita. Por outro lado, o autor apresenta caminhos que podem contribuir
para se atingirem níveis mais civilizados de respeito e convivência humana, com base no
diálogo intercultural.
~ 117 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Isso porque, no nosso entender, ainda atuamos e nos relacionamos com base na
cultura da violência. Nas palavras de Ariana Bazzano de Oliveira (2007, p. 17):

Uma cultura de violência é constituída por valores que permeiam as relações


sociais e impelem os indivíduos a (re)agirem por meio da força, da imposição, da
opressão e da desigualdade. O Estado, nesta perspectiva, também contribuiu para
a consolidação da cultura de guerra, ao adotá-la como forma primordial de
resolução de conflitos. O Estado mantém uma relação intrínseca com a violência
e esta, em suas múltiplas formas de manifestação, permaneceu arraigada como
maneira habitual, institucionalizada e moralmente valorizada de soluções de
conflitos tanto internos àquela sociedade quanto externos a ela.

A cultura da paz, diferentemente, propõe a construção de relações pessoais,


familiares, sociais, coletivas, internacionais e de todos os níveis e âmbitos, pautadas no
diálogo, no respeito, na empatia e na solidariedade. Nesse sentido, a Declaração e Programa
de Ação de uma Cultura da Paz da ONU, de 1999, define oito campos de atuação dos
Estados, das organizações internacionais e da sociedade civil em prol da construção da
cultura da paz e que representam o alcance de uma cidadania mais plena. Estes são a
promoção da educação para a paz; o desenvolvimento econômico e social sustentável; o
respeito aos direitos humanos; a garantia da igualdade entre homens e mulheres; a
participação democrática; a promoção da compreensão, da tolerância e da solidariedade; o
apoio à comunicação participativa e à livre circulação de informação e conhecimento; e a
promoção da paz e da segurança internacional (LIMA; BORGES, 2016).
Juntamente com a Declaração sobre uma Cultura da Paz está a Declaração de
Princípios sobre a Tolerância, de 1995, que em seu artigo 1º preceitua:

A tolerância é o respeito, a aceitação e a apreço da riqueza e da diversidade das


culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de
exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a
abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e
de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem
ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude
que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma
cultura de paz.

VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A consolidação do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos após


a Segunda Grande Guerra inegavelmente representou e representa importantíssimo avanço
nas relações internacionais entre Estados soberanosque buscam relações amistosas, paz,
segurança e maior promoção e proteção dos direitos humanos. A Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948 foi a primeira a estabelecer a proteção jurídica da ampla gama
~ 118 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

de direitos, reunindo no mesmo documento os direitos de vertente liberal com os de


vertente social.Nesse sentido, não há como negar o propósito da comunidade internacional
em estabelecer nova forma de se estruturar e se relacionar no plano internacional, com o
fim maior de respeitar e proteger a pessoa humana de toda e qualquer forma de violência.A
Declaração de 1948 inaugura esse novo paradigma de concepção e de proteção dos direitos
da pessoa humana, pautado na compreensão de que somos todos igualmente pertencentes
à família humana e, por isso, titulares de direitos que tutelam incondicionalmente a
dignidade humana. Esse é importante avanço que não pode deixar de ser reconhecido e
prestigiado.
No entanto, há também uma realidade que precisa ser discutida e enfrentada. São
os compromissos não honrados e que fragilizam demasiadamente os direitos humanos.
Esvaziam seu conteúdo e deslegitimam sua luta por meio dosmandamentos da ordem
política e econômicamundial estruturada no neoliberalismo. Este se estrutura na
globalização hegemônica, que legitima as profundas desigualdades sociais e todos seus
nefastos desdobramentos. Ademais, o cenário internacional é por demasiado
complexo,constituído por países democráticos, mas também não democráticos. Se os
democráticos já enfrentam sérios problemas para proteger e promover os direitos
humanos, os não democráticos já os aniquilam de plano.
Dentro desse cenário, temos dois grandes desafios para podermos alcançar modos
mais civilizados de convivência humana, pautados na cidadania cosmopolita. O primeiro
deles é possibilitar que a globalização nãohegemônica, baseada no cosmopolitismo, tenha
mais espaço tanto no âmbito nacional quanto internacional, colocando “freios” na
globalização hegemônica, marcada pelos interesses egoísticos de lucro a qualquer custo em
detrimento da distribuição da riqueza coletiva e da justiça social. O segundo desafio é
buscar consolidar a globalização solidária por meio do multiculturalismo, em que se
reconheçam a riqueza de todas as culturas, a singularidade de cada uma delas, e a
possibilidade real de convivência e troca harmônica entre todas elas, sem necessidade de
nenhuma se impor sobre a outra.
Nesse sentido, temos a possibilidade de construir a cidadania cosmopolita, grau
máximo de pertencimento, na qual não há excluídos, mas sim incluídos, porquanto todos,
sem exceção, pertencem à família humana, e têm o direito de serem respeitados pelo
Estado e pela sociedade como sujeitos de direito. Por isso, todo e qualquer Estado-parte do
Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos tem o dever jurídico de proteger
os direitos de toda e qualquer pessoa humana sob sua jurisdição, independentemente da

~ 119 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

nacionalidade, da idade, do sexo, da posição política, social e econômica, da religião, da


etnia, ou de qualquer outra circunstância. O alcance da cidadania cosmopolita representa
elevado grau de civilidade nas relações entre pessoas, sociedades e Estados da comunidade
internacional, porquanto estabelece o comprometimento com o respeito à pessoa humana
e à sua dignidade como princípio supremo da comunidade nacional e internacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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~ 122 ~
SETENTA ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS
HUMANOS E A ERRADICAÇÃO DA POBREZA:
A DECLARAÇÃO DO MILÊNIO DE 2000 – O
DESENVOLVIMENTO DAS POPULAÇÕES VULNERÁVEIS.

Maria Nazareth da Penha Vasques Mota *


Guilherme Gustavo Vasques Mota**

INTRODUÇÃO

Neste 2018 comemoram-se setenta anos da Declaração o Universal de Direitos


Humanos. Inicialmente é importante destacar em que condições foi a mencionada
declaração de 1948 assinada, esta constituiu-se em resposta às barbáries do totalitarismo
cometidos na segunda guerra mundial quando o nazismo enviou 18 milhões de pessoas a
campos de concentração, sendo responsável pela morte de 11 milhões de pessoas, entre
estas ciganos, homossexuais, comunistas e seis milhões de judeus (PIOVESAN, 2017).
Em seu artigo XXV, a Declaração Universal de Direitos Humanos estabelece que:

Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua famíl
ia saúde e bem estar, inclusive alimentação , vestuário, habitação, cuidados mé
dicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito àsegurança em caso de
desemprego, doença , invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência fora de seu controle.

Verificando-se assim a importância da erradicação da pobreza no mundo


que gerou por parte da Organização das Nações Unidas elaboração de projetos e metas em
tal sentido e que gerou a abordagem que é levada a efeito neste trabalho.
Diante do esposado esclarece-se que o objetivo do presente artigo éverificar como
o neoconstitucionalismo latino americano pode significar uma mudança na situação de

* Doutora em Ciências Sociais PUC/SP; Mestre em Ciências Penais UCAM/RJ; Especialista em Direito Penal
e Processual Penal /UFAM-RJ; e em Direito Público e Privado- FGV/AM. Professora do CIESA e
Professora Voluntária do PPGDA/Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos / UEA. Advogada e
Promotora de Justiça do MPE-AM, aposentada.
** Guilherme Gustavo Vasques Mota – Mestre em Ciências Sociais PUC/SP. Doutorando em Ciências Sociais

PUC/SP , Professor da UFAM, CIESA e Martha Falcão.

~ 123 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

pessoas pobres na América Latina, visando o desenvolvimento humano no continente,


bem como reduzindo de forma significativa tal carência.
Não há como olvidar o fato de que as metas da “ Declaração do Milênio ”de
2000, que jáapresenta resultados, relacionadas àcategoria“ erradicação da pobreza”foram
parcialmente alcançadas, no prazo estabelecido, assim como o patamar estabelecido para
melhora do índice de desenvolvimento humano (IDH) da mesma forma.
Contudo, não significa um sucesso total nas pretensões estabelecidas, em especial
se considerarmos a situação do Brasil, relacionadas as comunidades rurais, representadas
pelas comunidades tradicionais e indígenas.
Considerou-se ainda, as mudanças climáticas e as violações de Direitos Humanos
em países da tríplice fronteira que embora não afetem especificamente nosso País , o torna
rota para fins de permanência de pessoas assim afetadas.
Os desastres ambientais são resultantes da busca desenfreada lucro econômico a
partir do capitalismo mediante o aumento de consumo e desenvolvimento de tecnologia
sem considerar, em muitos casos a degradação sofrida pelo meio ambiente, como ocorre
no caso das tecnologias obsoletas que tornam-se lixo mais rápido a partir de técnicas
denominadas de obsolescência programada, sendo este um dos principais problemas
ambientais atuais: a falta de programação do destino do lixo (MOTA, 2016).
Para isso o presente artigo lançou mão do método dedutivo, partindo da
generalidade para especificidade, procedimento bibliográfico, a partir de leitura de livros e
artigos mediante a técnica indireta de pesquisa.
Neste sentido, percorreu-se a verificação da declaração do milênio e a análise da
redução da pobreza enquanto meta, em seguida a contextualização da pobreza em países
que abarcam populações indígenas, as mudanças climáticas em meio a uma política mundial
ecológica emergente – a Ecopolítica -, e finalmente a temática de como o
neoconstitucionalismo latino americano buscou equalizar tais obstáculos para garantir a
dignidade das pessoas vulneráveis.

1 OS 70 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS

Sabemos que nesses setenta anos houve avanços, entretanto em algumas situações
não, portanto ao trabalharmos o tema enfatizamos questões relacionadas com a pobreza e a
fome e a possibilidade de erradicação, ou pelo menos de amenização das situações mais
graves verificadas.

~ 124 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Diante de tal entendimento buscamos o Relatório de Desenvolvimento Humano,


de 2016, lançado em 21.03.2017, pelo Programa das Nações Unidas para o
desenvolvimento (PNDU), para apreciarmos as questões relacionadas ao tema que
enfrentamos, neste momento.
No relatório mostra-se que metade da humanidade é ignorada, embora não
estejamos entre os melhores índices de Desenvolvimento Humano, houve no Brasil
melhora em relação a renda, como exemplo, a situação da renda média per capita no Brasil ,
que em 2010 que era de R$ 793,87, chegando a R$ 2.043,00 em São Caetano do Sul e a R$
96,25 no Município de Marajá da Sena no Maranhão114 . Em 2015 dados do IBGE
informam que a renda média per capita chegou a R$ 1.113,00, e no Distrito Federal de R$
2.252,00 e no Maranhão (menor valor) R$ 509,00. Em 2016 a informação é de que 20
Estados, dos 27 brasileiros, alcançaram patamares inferiores a renda média per capita que foi
de R$1.226,00, destes o Amazonas foi o único que não apresentou crescimento, ao contrá
rio teve queda nos rendimentos .115
Deve-se ainda considerar que a partir da Declaração Universal de Direitos
Humanos, documento essencial para as novas formas de buscar consenso entre as
soberanias mundiais apesar das diferenças entre países ricos e pobres vem envidando esforç
os para diminuição da pobreza no mundo, sendo o Brasil , da América Latina um dos que
mais vem atingindo as metas , tendo sido publicado pelo Portal Brasil que conseguimos
atingir a 25 milhões de pessoas que saíram da pobreza extrema, podemos afirmar que
atualmente temos, em nosso País, programas voltados a apoiar tais populações.
Diante disso, devemos nos voltar àquelas populações mais vulneráveis, que
precisam de atenção especial para incrementar nossos índices em direção ao alcance de
melhor posicionamento mundial visando o atendimento dos princípios inquestionáveis da
Declaração Universal de Direitos Humanos.

1.1 A DECLARAÇÃO DO MILÊNIO E A REDUÇÃO DA POBREZA

O consenso acerca do objetivo de acabar com a fome surge na década de 1990 e


foi institucionalizada como acordo político no DAC política. “Moldando o século XXI” foi
adotado em 1995 e depois na declaração do milênio.
Essa declaração foi aprovada na Assembléia Geral da ONU em 2000 com 147
participações e foi difundida como metas do milênio. Os oito alvos globais para redução da

114 Disponível em www.br.undp.org, em 03.04.2018


115Disponível em www1.folha.uol.com.br, em 03.04.2018

~ 125 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

fome são melhorar a saúde infantil e maternal, controlar doenças globais e atuar em prol da
sustentabilidade ambiental e fortalecimento da parceria global.
Fukuda Parr em artigo, sobre o assunto, buscou demonstrar que a perspectiva da“
capability’s approach” de Sen é somente mais uma das muitas idéias que orbitam o
conceito de economia desenvolvimentista, a partir de uma recente transformação na
agenda desenvolvimentista mundial (FUKUDA PARR, 2005).
O pilar principal envolve investimento social em benefício de pobres,
empoderamento de pessoas e governança democrática, contudo tais políticas
compartilharam premissas de outras, em especial as estratégias neoliberais (IDEM).
Realizada em setembro do ano 2000, a Cúpula do Milênio das Nações Unidas foi
realizada em Nova York. Assistida por 100 Chefes de Estado, 47 Chefes de Governos, 3
Príncipes, 5 Vices-Presidentes, 3 Primeiros Ministros , 8000 Delegados e 5500 Jornalistas,
buscavam “reafirmar nossa fé na Organização e em sua Carta Magna como fundamentos
indispensáveis de um mundo mais pacífico, próspero e justo”116.
Na Declaração da Cúpula do Milênio das Nações Unidas no inciso I, item 6,
consideraram os seguintes valores como fundamentais, a liberdade, a igualdade, a
solidariedade, a tolerância, o respeito à natureza e a responsabilidade comum. Abaixo as
previsões acerca de tais direitos:

A liberdade. Os homens e as mulheres têm o direito de viver sua vida e de criar


os seus filhos com dignidade, livres da fome e livres do medo da violência, da
opressão e da injustiça. A melhor forma de garantir estes direitos é através de
governos de democracia participativa baseados na vontade popular.

A igualdade também ganhou extrema importância ao ser relacionada como o


desenvolvimento humano, destacada da forma abaixo transcrita

A igualdade. Nenhum indivíduo ou nação deve ser privado da possibilidade de


se beneficiar do desenvolvimento. A igualdade de direitos e de oportunidades
entre homens e mulheres deve ser garantida.

A solidariedade foi outro valor que auferiu uma reformatação relativa à


vulnerabilidade:

A solidariedade. Os problemas mundiais devem ser enfrentados de modo a


que os custos e as responsabilidades sejam distribuídos com justiça, de acordo
com os princípios fundamentais da eqüidade e da justiça social. Os que sofrem,
ou os que se beneficiam menos, merecem a ajuda dos que se beneficiam mais.

116 Site <http//www.bosms.saude.gov.br> , disponível em 03.11.2017

~ 126 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A tolerância teve sua estrutura “otimizada" para acrescentar como elemento


central, diversidade, como bem precioso de toda humanidade. Se na fórmula de Voltaire
deu-se maior importância para a questão religiosa, nessa atualização da tolerância, busca-se
como objetivo a inserção da diversidade e respeito àdiversidade como principal objetivo:

A tolerância. Os seres humanos devem respeitar-se mutuamente, em toda a


sua diversidade de crenças, culturas e idiomas. Não se devem reprimir as diferen
ças dentro das sociedades, nem entre estas. As diferenças devem, sim, ser
apreciadas como bens preciosos de toda a humanidade. Deve promover-se
ativamente uma cultura de paz e diálogo entre todas as civilizações.

A sustentabilidade aparece na menção“ respeito pela natureza” . Enuncia-se aqui


o “ desenvolvimento sustentável”. Além dela, abaixo se transcreve ainda a previsão da
responsabilidade comum, consolidando a cooperação internacional entre países para
concretização de tais objetivos:

Respeito pela natureza. É necesserio atuar com prudência na gestão de todas


as espécies e recursos naturais, de acordo com os princípios do
desenvolvimento sustentável. Sóassim poderemos conservar e transmitir aos
nossos descendentes as imensuráveis riquezas que a natureza nos oferece. Ép
reciso alterar os atuais padrões insustentáveis de produção e consumo, no
interesse do nosso bem-estar futuro e no das futuras gerações.

Responsabilidade comum. A responsabilidade pela gestão do


desenvolvimento econômico e social no mundo e por enfrentar as ameaças àpaz
e segurança internacionais deve ser partilhada por todos os Estados do mundo e
ser exercida multilateralmente. Sendo a organização de caráter mais universal e
mais representativa de todo o mundo, as Nações Unidas devem desempenhar
um papel central neste domínio.117

Como forma de transformar tais valores em ações, os participantes da Cúpula do


Milênio das Nações Unidas estabeleceram importância dos “objetivos chave”, aos quais
atribuíram significado especial. Entre as inúmeras determinações e esforços estabelecidos
consideramos ainda de importância essencial ao objetivo então delineado aquele previsto
no item 19:
Reduzir para metade, até ao ano 2015, a percentagem de habitantes do planeta
com rendimentos inferiores a um dólar por dia e a das pessoas que passam fome;
de igual modo, reduzir para metade a percentagem de pessoas que não têm acesso
a água potável ou carecem de meios para obter.118

117 IDEM
118IDEM

~ 127 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Dentre tais objetivos enfatizamos o “III – Desenvolvimento e Erradicação da


Pobreza”, que pretendemos analisar dois aspectos em especial: a ideia de retirar da pobreza
mais de um bilhão de homens, mulheres e crianças que vivem em condição de extrema
pobreza; buscar o estabelecimento, tanto em nível nacional, como global, que busque o
desenvolvimento e à eliminação da pobreza;
Em relação ao objetivode erradicação da pobreza este foi alcançado, sendo o
Brasil destaque neste aspecto. A América Latina e o Caribe reduziram pela metade a “taxa
de pobreza extrema”, diminuiu em 13 % em 1999, para 4 % em 2015, o número de pessoas
vivendo com menos de 1,25 dólares. Em relação a fome do total da população a
percentagem de pessoas subnutridas diminuiu de 15% entre 1990 e 1992, na América
Latina, para 6% entre 2014 e 2015, entretanto no Caribe este corresponde a 20%. 119
Um dos precursores na luta contra a fome no Brasil foi Herbert de Souza,
fundador do IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, este órgão
observou que embora nosso país tenha alcançado a meta de acordo com o estabelecido
pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), muito falta alcançar,
uma vez que, segundo Francisco Menezes (consultor do IBASE) reduzir a pobreza faz
parte de uma ação conjunto entre “ações de governo e sociedade” , para o consultor
algumas medidas foram produtivas, tais como :aquisição de alimentos da agricultura
familiar, plano nacional de nutrição nas escolas e, observa ainda que o bolsa família
significou uma transferência de renda para os pobres. 120
Da fala extraída muito significa o alerta de que deve ser dada especial atenção aos
indígenas e outras populações tradicionais, isto é de forma geral aos mais vulneráveis. A
questão que se impõe é de que forma atingir os mais vulneráveis, como atender os indí
genas e as outras populações tradicionais ?
Maria Alice Setubal, tratando sobre o que denominou de as “comunidades
invisíveis do Brasil” expressa que “[...] esquecimento dessas populações isoladas faz com
que muitas vezes elas não sejam contempladas por políticas públicas que atuam junto a
outras minorias (como os quilombolas ou indígenas).121
Em relação ao mundo “a população miserável diminuiu de 47% para 22%, mas
continua alta. Mais de 1,2 bilhão de pessoas seguem na penúria (165 milhões são crianças
desnutridas)”.122

119 Em www.secretariadegoverno.gov.br, disponível em 03.11.2017.


120 IDEM
121www.educação.uol.brcounas/maria-alice-setuba. Disponível em 05/10/2017.
122 IMAZON, 2010.

~ 128 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

2 A ERRADICAÇÃO DA POBREZA, INDÍGENAS E FORMAS DE ALCANCE E


A ECOPOLÍTICA.

O preocupação com o desenvolvimento de países em desenvolvimento surge no p


ós guerra a partir de teorias desenvolvimentistas. Na passagem do mundo antes e pós
segunda guerra mundial se consolida o neoliberalismo enquanto política mundial.
O neoliberalismo enquanto racionalidade política passa a propor práticas
ambientais para inserir pessoas no formato empresa, buscando criar uma sociedade
internacional de empresas. Contudo para que as pessoas se comportem em acordo com os
objetivos do mercado se fez necessário a criação da capacidade.
Neste sentido, foram várias teorias que fundaram a criação da capacidade, o que
começou na década de 60 com um movimento welfarista denominado “nova ordem
mundial”.Contudo, a partir do fracasso das técnicas de economia planista, os neoliberais
assumiram o mainstream e a partir principalmente de Theodore Schultz e Gary Becker,
produziram a teoria do capital humano. A partir de tal teoria, o investimento no capital
humano, a partir de oportunidades sociais conduziriam a um maior resultado econômico.
Na década de 90 surgem novas teorias que colocam a pessoa humana no centro
da proteção abandonando a noção de Capital humano. Amartya Sen, um dos acadêmicos
que tratou do IDH, deste índice que mede o chamado desenvolvimento humano, e també
m, fundador do Instituto Mundial de Pesquisa em Economia e Desenvolvimento –
Universidade da ONU – expôs as procedências de seu discurso sobre o desenvolvimento e
suas relações com a Economia de Mercado em seu livro “O desenvolvimento como
liberdade” (SEN,2004).
A proposta básica lançada por Sen e que ronda o livro é examinar o
desenvolvimento (segundo Sen) relacionado à viver do jeito que se quer, sendo portanto,
um critério capacitário, muito parecido com as menções utilitaristas de Mises sobre a “
busca pela felicidade” proporcionada pelo Liberalismo.
Para Sen, “a contribuição do desenvolvimento humano tem que ser julgada não
apenas pelo aumento de rendas privadas, mas também pela expansão de serviços sociais
(incluindo em muitos casos, redes de segurança social) que o crescimento econômico pode
possibilitar” (SEN, 2004, p. 54).
A criação de oportunidades sociais contribui diretamente para a expansão das
capacidades humanas e da qualidade de vida (como exposto). A expansão dos serviços de

~ 129 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

saúde, educação, seguridade social, entre outros, contribui diretamente para a qualidade de
vida e seu florescimento.
Para Sen, a negação do mercado é a negação da liberdade e da produção da “
capacidade humana” já que “restrições arbitrárias ao mecanismo de mercado podem levar a
uma redução de liberdades devido aos efeitos conseqüenciais favoráveis que os mercados
oferecem e sustentam pode resultar em privações” (SEN, 2004, p. 41).
O objetivo do desenvolvimento relaciona-se à avaliação de liberdades reais
desfrutadas pelas pessoas. As capacidades individuais dependem crucialmente entre outras
coisas de disposições econômicas sociais e políticas, [...] ao se instituírem disposições
institucionais apropriadas, os papéis instrumentais de tipos distintos de liberdade precisam
ser levados em conta, indo-se além da importância fundamental da liberdade global dos
indivíduos (IDEM, p. 96).
Os papéis instrumentais da liberdade incluem vários componentes distintos, poré
m interrelacionados como facilidades econômicas liberdades políticas, oportunidades
sociais, garantidas pela transparência e segurança protetora. Esses direitos, oportunidades e
processos instrumentais possuem fortes encadeamentos entre si, que podem se dar em
diferentes direções. O processo de desenvolvimento é crucialmente influenciada por essas
interrelações.
As liberdades políticas (na forma de liberdade de expressão e eleições livres)
ajudam a promover a segurança econômica. Oportunidades sociais (na forma de serviços
de educação e saúde) facilitam a participação econômica. Facilidades econômicas (na forma
de oportunidades de participação no comércio e na produção) podem ajudar a gerar abund
ância individual além de recursos públicos para os serviços sociais. Liberdades de diferentes
tipos podem fortalecer uma as outras.
As oportunidades sociais facilitam as oportunidades econômicas, que em outros
termos representa a criação de oportunidade para ingresso da pessoa no “jogo econômico”.
Os fins e os meios do desenvolvimento exigem que a perspectiva da liberdade seja
colocada no centro do palco. Nessa perspectiva as pessoas têm de ser vistas como
ativamente envolvidas – dada a oportunidade – na conformação de seu próprio destino e n
ão apenas como beneficiárias passivas dos frutos de engenhosos papeis de
desenvolvimento, O estado e a sociedade têm papéis amplos no fortalecimento e na prote
ção das capacidades humanas. A perspectiva de que a liberdade é central em relação aos
fins e aos meios do desenvolvimento merece toda a nossa atenção.

~ 130 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Segundo Sen (2004), o “bem estar” está diretamente relacionado com o duplo
liberdade-capacidade , por permitir a “escolha de uma vida que se tem razão para valorizar”
. Para explicar essa perspectiva busca o termo “funcionamentos” que conforme ele mesmo
estabelece, possui procedências Aristotélicas, o conceituando como “as várias coisas que
uma pessoa pode considerar valioso fazer ou ter”.
Neste sentido, a capacidade (capability) consistirá nas combinações alternativas de
funcionamentos cuja realização é factível para ela. Portanto a capacidade é um tipo de
liberdade: a liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos
(ou menos formalmente expresso, a liberdade para ter estilos de vida diversos).
Comentando sobre a capacidade humana assegura Sen (2004, p.96) que a
governamentalidade neoliberal pode assegurar qualidade de vida:

Por exemplo, uma pessoa abastada que faz jejum pode ter a mesma realização
de funcionamento quanto a comer ou nutrir-se que uma pessoa destituída da for
ça a passar fome extrema mas a primeira possui o ‘ conjunto capacitário’
diferente do da segunda (a primeira pode escolher comer bem e ser bem nutrida
de um modo impossível para a segunda).

Segundo Sen, “o conjunto capacitário consistiria nos vetores de funcionamento


alternativos dentre os quais uma pessoa pode escolher [...] Enquanto a combinação dos
funcionamentos de uma pessoa reflete suas realizações efetivas, o conjunto capacitário
representa liberdade para realizar as combinações alternativas de funcionamento, dentre as
quais a pessoa pode escolher” (SEN, 2004, p. 96).
Como se percebe, conceder o conjunto capacitário é criar meios para a realização
da “praxeologia” e da “cooperação pacífica”. Para Sen, a negação do mercado é a negação
da liberdade e da produção da “capacidade humana” já que “restrições arbitrárias ao
mecanismo de mercado podem levar a uma redução de liberdades devido aos efeitos
conseqüenciais favoráveis que os mercados oferecem e sustentam pode resultar em privaçõ
es” (Idem, p. 41).
Finalmente, Sen faz uma distinção entre capital humano e capacidade humana
atestando que não está, em suas obras, a tratar do capital humano:

[...] o capital humano tende a concentrar-se na atuação dos seres humanos para
aumentar as possibilidades de produção [...] a perspectiva da capacidade humana
concentra-se no potencial –a liberdade substantiva –das pessoas para levar a vida
que ela tem razãopara valorizar e para melhorar as escolhas reais que elas
possuem [...] essas duas perspectivas nã o podem deixar de estar relacionados,
uma vez que ambas se ocupam do papel dos seres humanos, e em particular, dos
potenciais efetivos [...] mas o aferidor usado na avaliação concentra-se em realiza
ções diferentes (SEN, 2004, p. 332).

~ 131 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Todas essas teorias buscam alinhar-se às exigências globais da Ecopolítica. A


compreensão da Ecopolítica apresenta como pressuposto, a ideia de uma nova utopia para
o capitalismo, uma luta relacionada à preservação do planeta, dos ecossistemas e controle
do risco. Após a segunda guerra mundial, ocorre o esgotamento da biopolítica com o
Nazismo. A racionalidade neoliberal a partir das décadas de 70 e 80 encontrou na ONU o
espaço de configuração de uma situação de ordenamento não só em torno da redução de
poluentes, mas principalmente enquanto recomendações que levaram a uma nova
configuração viável do capitalismo, uma nova ordem democrática e sustentável.
A ecopolítica resulta de um fluxo derivado da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, a guerra fria, as rebeldias da década de 60, a sustentabilidade proposta pelo clube
de Roma, a Convenção de Estocolmo, o relatório Brundtland, a ECO 92, a Conferência de
Joanesburgo de 2002 e a Rio + 20 de 2012, consolidando a noção de sustentabilidade
(CARNEIRO, 2012, PASSETTI, 2013).
Como se verificou dos estudos de Mises, a transposição da barreira do Estado
nacional necessitava de um tema (como por exemplo a terra é azul) para realizar a
desterritorialização das fronteiras invisíveis e a produção dessa verdade se inicia com as
bombas de hidrogênio em 1945, a discussão sobre a energia nuclear, as discussões sobre a
impossibilidade de controle dos efeitos radioativos que se espalham pela atmosfera.
Com isso surgia o dispositivo ambiental que “não foi uma resposta direta a isso,
mas incorporou o alcance planetário dos efeitos das ações humanas sobre o meio que
acabaram exigindo um redimensionamento dos cálculos de risco e periculosidade no meio
ambiente” (CARNEIRO, 2012).
Neste diapasão, a ecologia passa a ser evocada e divulgada na opinião pública e
como uma verdade “capaz de restringir o uso da ciência moderna baseada no poder sobre a
natureza”. A ecologia, um ramo da ciência biológica, estuda as interações entre as espécies
não tendo como objeto as espécies em si, mas as trocas energéticas da cadeia alimentar nos
ecossistemas.
Dentro da discussão das ameaças ao planeta em 1968, o Clube de Roma reuniu
empresários para discutir a problemática mundial incluindo pobreza, desemprego, poluição,
inflação, entre outros. Para equacionar isto, desenvolveram um modelo matemático para o
diagnóstico e o prognóstico de cenários futuros.
É de Meadows a visão de que o planeta não suportaria o crescimento
populacional pois no manuseio dos recursos energéticos, ocorre o aumento da poluição e a

~ 132 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

degradação do meio ambiente. Contudo é a partir de 1972 com as reuniões no ECOSOC -


ONU discutiu-se sobre “os problemas do ambiente humano”.
Na conferência da Biosfera, em Paris, a UNESCO mudou o enfoque da discussão
ecológica acerca da preservação da natureza sob forma de santuários em prol da conservaçã
o pela qual se visa a melhoria das qualidades humanas. Com isso, termos que eram
utilizados para relacionar o meio ambiente como risco, vulnerabilidade e sustentabilidade sã
o transferidos para a análise da realidade do homem, mas também, o perigo não está mais
no homem ou sua mentalidade, mas sim as condições ambientais que este dispõe.
Neste sentido, a gestão da vida passa a ser a gestão do risco, as novas modalidades
de biopoder se alocam nas novas modalidades de gestão, o risco passa a ser pensado como
passível de controle, surge a noção de cálculo de probabilidade
Trata-se assim de uma sociedade onde o risco é gerenciável. As tentativas de
ordenação do espaço social dão lugar ao gerenciamento de riscos e estes passam a ser uma
questão privilegiada na sociedade de controle. Com isso, saímos de uma forma panóptica
de vigilância das epidemias, das periculosidades, do corpo individual e do corpo social pela
higiene pública.
O risco não é a existência de perigo mas a probabilidade do aparecimento do
comportamento indesejável a partir da exposição a certos fatores. Prevenir é vigiar e
antecipar o surgimento de acontecimentos indesejados naquelas populações consideradas
como portadoras de risco iniciando um racismo que se orienta pela análise ecológica do
homem.
Como previsto por Foucault, não é mais as mentes dos jogadores o que importa
mas sim as cartas do jogo. Nesse sentido, as políticas preventivas não se destinam aos indiv
íduos mas aos fatores. O gerenciamento dos riscos passa a ser o novo mecanismo de
controle vinculado ao biopoder: a noção de risco neutraliza a de perigo pela antecipação do
mesmo e vigilância sobre situações que podem causá-lo.
A noção de vulnerabilidade se destaca como a existência de um risco pela
incapacidade de responder ao risco na esfera sócio ambiental. E é a noção de
vulnerabilidade que abre espaço para as interferências no ambiente do tecido social.
A relação da biopolítica com a segurança e a população é metamorfoseada em
ecopolítica com segurança para o governo dos ambientes do planeta. A sustentabilidade
firma-se como meio para o capitalismo realizar de maneira adequada a utopia de uma
futuro melhor no presente.

~ 133 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A interferência na natureza mediante regulações internacionais repercutem na


legislação nacional e as empresas aderem à responsabilidade social e custos de investimento
em redutores de vulnerabilidades aplicando-se o IDH.
Segundo Passetti, trata-se da consolidação do mercado como ambiente (algo bem
parecido com o proposto por Mises), pois “[...] o que era degeneração passa a ser degradaçã
o [...] com a ecopolitica, o alvo deixa de ser a população no território e passa a ser a popula
çãoestratificada vista em seu ambiente”. Assim, o indivíduo não mais na sua
individualidade, mas na multiplicidade como “divíduo”.
Tendo como quadro geral o neoliberalismo passa da biopolítica à ecopolicia no
que concerne ao dispositivo de segurança e sua forma de atuação. Na Ecopolítica surgiu a
tecnologia ambiental, o que era considerado perigo, agora é calculado antes de se tornar
risco, pelo cálculo logarítmico. A vigilância não se dá mais mediante modelos panópticos e
sim a céu aberto por georreferenciamento, o prognóstico atua antes da causa, fazendo
surgir a noção de vulnerabilidade, que é quando há o risco para o surgimento do indesejá
vel e sustentabilidade que émais uma das noções que foram migradas da ecologia para a pol
ítica.
A medicina não é mais o discurso principal na atuação frente ao indesejado, o que
era considerado periculosidade, hoje a atuação do dispositivo de segurança funciona
mediante considerações ecológicas, trazendo a utilização dos termos sustentabilidade e
vulnerabilidade.
Talvez seja uma ampliação da economia política aos dispositivos de segurança, o c
álculo não se reduz mais a utilização do Direito como no Liberalismo. No neoliberalismo o
cálculo econômico da economia política ganha ambições planetárias. Não se busca mais
administrar uma população em âmbito interno em um território que corresponde a um
Estado nacional, mas governar ambientes de diversas populações a partir de uma utopia
transterritorial que produz mediante a institucionalização da ONU, Estados e cidadãos
internacionais.
Para que haja interferência sobre o ambiente tudo o que se precisa são os
indicadores que comprovam que existe uma situação de vulnerabilidade. Esses indicadores
de Desenvolvimento Humano foram o elo necessário que transportou em âmbito
internacional a consideração do risco da situação de vulnerabilidade no ecossistema à
chamada vulnerabilidade socioeconômica, estratégia que foi desempenhada pela ONU
principalmente pelo ECOSOC e suas agências especializadas.

~ 134 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Com a Ecopolítica, a partir da renovação do capitalismo e seleção do tema


ecologia, já foi possível ativar a chamada tecnologia ambiental que agora detecta o perigo e
o chama de risco pela forma preventiva que o faz, retirando as análises do indesejável do
campo da medicina social para o sócio econômico pelo Índice de Desenvolvimento
Humano que passa a ser analisado.
Entretanto, voltando aos critérios de desenvolvimento humano, um problema se
coloca como alcançar e utilizar estes mesmos critérios para os vulneráveis, em especial para
as populações tradicionais e indígenas. E, como enfrentar a questão de que nem todas as
regiões do Brasil são contempladas de forma igual pelas Políticas Públicas.
O IMAZON (Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia)
observa que na Amazônia a pobreza pode ser conceituada de diferentes formas,
considerando que:

20% da população das áreas rurais, entre elas, as populações tradicionais e


indígenas, que obtêm sua subsistência da floresta e dos rios por meio do
extrativismo (frutos, pesca ou caça ), os fatores culturais, geográficos e ambientais
são determinantes na pobreza e bem estar. Afinal o bem estar dessas populaçõe s
depende não apenas de renda, mas também da abundância e do acesso aos
recursos naturais e de sua capacidade e condiçõe s para manejá-los[...]. No
entanto 80% da população urbana depende de emprego e renda para viver
(Celetano, Santos e Veríssimo, 2010, p. 17).

A amazônia concentra a maior extensão de Terras Indígenas do Brasil, totalizando


98% das mesmas, nessas terras vivem cerca de 173 povos, totalizando aproximadamente
250.000 pessoas. Em relação a erradicação da fome e da pobreza esta liga-se essencialmente
a:

[...] garantia ao usufruto exclusivo de seus territórios tradicionalmente ocupados,


definidos a partir de seus usos e costumes. Éjustamente a consolidação territorial
que permite que tais populações possam produzir seus alimentos àsua maneira,
por meio de atividades de pesca, caça, agricultura, coleta e atémesmo pecuária
(Celentano, Santos e Veríssimo, 2010,p. 43).

Então, concluem os autores que é garantindo o território que os indígenas


poderão desenvolver “ seus modos de vida em plena liberdade e autonomia”( Idem, p.43).

3 OS IMPACTOS DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Em 26 de outubro do corrente ano , na casa da ONU realizou-se o Seminário“Diá


logos Estratégicos sobre Mudanças do Clima, Erradicação da Pobreza e Desenvolvimento

~ 135 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Humano”123 (o objetivo voltava-se para a Agenda 2030 desenvolvimento sustentável da


ONU), na realidade a discussão versava sobre tal impacto sobre a erradicação da pobreza.
Na ocasião referenciou-se que 24 milhões de pessoas, por força de desastres naturais são
levadas à condição de pobreza (PNDU Didier Trebuck).
O responsável no Brasil pelo Departamento de mudanças no clima doMinistério
do Meio Ambiente, José Miguez, ressaltou a importância do Acordo de Paris, que além de
buscar uma reflexão sobre o tema, ainda consolidou-se como um esforço global para
diminuir a redução das emissões de gazes e outros, para busca de uma alteração na situação
atual.124
Para o diretor do escritório da CEPAL no Brasil, Carlos Mussi, “a mudança do
clima, a erradicação da pobreza e o desenvolvimento humano estão diretamente
conectados”. Segundo ele, “temos que pensar de forma Integrada para termos sinergia nas
ações que fortalecem o desenvolvimento, de maneira holística”125.
O ano de 2017, foi emblemático em relação aos desastres climáticos, não só os
pobres sofreram, também os ricos. Não há como estabelecer fronteiras ou condições
sociais para os desastres climáticos. América Latina e o Caribe, Miami, Porto Rico, Barbuda
e Havana vítimas de furacões. Bangladesh, Índia e Nepal foram afetados por grandes
inundações. O anunciado aumento da temperatura.
O Brasil tem sido caminho não só para afetados por desastres climáticos, como os
Haitianos que não conseguem se recuperar pela reincidências destas tragédias. Aliás não só
estes, mas aqueles afetados por violências, fome e desrespeito aos Direitos Humano como,
Venezuelanos e Sírios aportam nosso país.

4 O NEOCONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO E O


DESENVOLVIMENTO DAS POPULAÇÕES VULNERÁVEIS

O novo Direito Constitucional tem sua principal referência na Constituição


Alemã de 1949 e ainda, na criação do Tribunal Constitucional Federal de 1951, o que
gerou uma “fecunda produção teórica e jurisprudencial”, cita ainda Luiz Roberto Barroso
(2007, p.2) a Constituição da Itália, 1947 a instalação da Corte Constitucional de 1956, a
reconstitucionalização de Portugal, da Espanha, 1976 e 1978 respectivamente. Para o
autor, acima citado, no caso brasileiro ocorreu:

123 Em <http//:www.br.undp.org>, disponível em 03.11.2017.


124 IDEM.
125 IDEM.

~ 136 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

[...] igualmente, no ambiente de reconstitucionalização do país , por ocasião da


discussão prévia, convocação, elaboração e promulgação da Constituição de1988.
Sem embargo de vicissitudes de maior ou menor gravidade no seu texto,e da
compulsão com que tem sido emendada ao longo dos anos, aConstituição foi
capaz de promover, de maneira bem sucedida, a travessia do Estado brasileiro de
um regime autoritário intolerante e, por vezes, violento para um Estado democrá
tico de direito (BARROSO,2007,p.7 ).

Foi na Europa que, na metade do século XX, desenvolveu-se o novo


constitucionalismo, em ambiente do pós positivismo e, como uma das principais mudanças
de paradigma encontramos “no plano teórico, o reconhecimento de força normativa à
Constitui ção, a expansão da jurisdição constitucional e a elaboração das diferentes
categorias da nova interpretação constitucional ” ( BARROSO,2007,p.5) .
No Direito Constitucional denominado neoconstitucionalismo, verificam-se
algumas alterações fundamentais, tais como:

Princípios em vez de regras (ou mais princípios do que regras); ponderação no


lugar de subsunção (ou mais ponderação do que subsunção); justiça particular em
vez de justiça geral (ou mais análise individual e concreta do que geral e abstrata);
Poder Judiciário emvez dos Poderes Legislativo ou Executivo (ou mais Poder
Judiciário e menos Poderes Legislativo e Executivo); Constituição em substituição
àlei (ou maior, ou direta, aplicação da Constituição em vez da lei) .126

O neoconstitucionalismo latino americano éconsiderado pelos autores da área, tais


como: Alves, 2012, Ribeiro, 2013, Dalmau, 2013, como evolução do anterior
constitucionalismo.
Na realidade, o novo constitucionalismo latino americano vai abrigar em seus
aportes teóricos o Estado plurinacional para respeitar e proteger os direitos de todas as
camadas sociais, além de que passa a reconhecer a terra como sujeito de direitos.Eugênio
Raul Zaffaroni ( 2012 ) observa que já no preambulo da Constituição de 2008 se coloca a
natureza (pacha mama) como vital para nossa existência, devendo ser construída uma
convivência harmoniosa com a natureza para o alcance do buen vivir (sumak
Kawsay).Reconhece-se em tal documento a questão ambiental, como da natureza e como tí
tular de direitos. Zaffaroni ( 2012, p. 51 ) cita o art. 71 que dispõe:

126O autor observa que tais elementos, acima apontados são encontrados na obra de C ARBONELL, Miguel.
El neoconstitucionalismo en sulaberinto, in: Teoria del neoconstitucionalismo. Madrid: Trotta, 2007. pp.9 a 12;
SANCHÍS PRIETO, Luis.Justiciaconstitucional y derechosfundamentales. Madrid: Trotta, 2000. p. 132;
FERRAJOLI, Luigi, in: Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003. p. 15 e ss; MOREIRA,Eduardo Ribeiro.
Neoconstitucionalismo – ainvasão da Constituição. São Paulo: Método, 2008, especialmente pp. 19, 22, 35. 36-39,
48,50, 54, 56, 68 e 96.

~ 137 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

La naturaleza o Pachamama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete
integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura,
funciones y procesos evolutivos. // Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podráexigir
a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza. Para aplicar e
interpretar estos derechos se observarán los principios establecidos en la Constitución , en lo que
proceda. // El Estado incentivaráa las personas naturales y jurídicas, y a los colectivos, para
que protejan la naturaleza, y promoveráel respeto a todos los elementos que forman un
ecosistema.

A Constituição Política do Estado Boliviano foi submetida a voto popular em


2009 e se estabelece no art. 33:

Las personas tienen derecho a un medio ambiente saludable, protegido y equilibrado. El ejercicio
de este derecho debe permitir a los individuos y colectividades de las presentes y futuras
generaciones, además de otros seres vivos, desarrollarse de manera normal y permanente.
El artículo 34º complementa el anterior disponiendo: Cualquier persona, a título individual o en
representación de una colectividad, estáfacultada para ejercer las acciones legales en defensa del
medio ambiente, sin perjuicio de la obligación de las instituciones públicas de actuar de oficio
frente a los atentados contra el medio ambiente (Zaffaroni, 2012, p. 52 ).

É ainda Zaffaroni (2012) a observar que a Constituição enuncia a questão


ambiental como de direitos humanos, não esquece de referir-se a outros seres vivos
reconhecendo a estes direitos (idem) .

CONCLUSÃO

Ao tratar dos vetores Declaração do Milênio da ONU e da categoria erradicação


da pobreza, tínhamos em vista proceder a análise desta e seu resultado em nosso País e, em
especial, associá-lo com as populações vulneráveis quase sempre esquecidas pelas Políticas
Públicas e, principalmente da indígena.Como foi possível perceber a preocupação com os
vulneráveis fez surgir uma política global, a ecopolítica, uma produção extrajurídica que
produziu teorias ecológicas influenciando os direitos humanos.
Além dos dados colacionados, não podia-se olvidar os indicadores atualmente
utilizados para verificar-se o alcance das metas estabelecidas da já mencionada Declaração,
dentre estes o IDH, e o pensamento de Amartya Sen em sua obra Desenvolvimento como
liberdade.
Em verdade os patamares alcançados nos primeiros quinze anos do milênio só
poderão avançar se o país voltar a crescer e a redução da pobreza, em busca de sua erradica
ção, não diminui, uma vez que as desigualdades, estas permanecem. As Políticas de
redistribuição de renda, por meio do Bolsa Família, certamente colaboraram, para tirar
muitos da situação de aquém da linha da pobreza.

~ 138 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

No que se refere aos vulneráveis, comunidades tradicionais e indígenas é


reconhecido que somente o cuidado com o meio ambiente poderá fazer com que estes
sejam objeto de uma vida mais digna em que sua cultura e formas de vida sejam premiadas
com o bom viver.
Neste aspecto o neoconstitucionalismo latino americano adquire grande
importância na medida que reconhecendo o Estado Plurinacional, a terra como sujeito de
direitos (o que proporcionará um melhor cuidado em relação a não devastação da mesma),
permitindo a proteção dos direitos de todos em sua peculiaridade. O desenvolvimento das
comunidades tradicionais e dos indígenas depende da ação política e democrática que
reconheça a necessidade de proteção ambiental, de respeito a terra para que possam ter
acesso a uma vida simples mas sem pobreza.

REFERÊNCIAS

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triunfo tardio do direito constitucional no Brasil): Revista de Direito Administrativo, v.
240, 2005. Disponível em 04.11.201.

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, Belém, IMAZON, 2010

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(1978- 1979)”. Trad. Eduardo Brandão. Martins Fontes, São Paulo/SP, 2008.

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Direitos Humanos & Fundamentais

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PASSETTI, Edson. Transformações da biopolítica e emergência da ecopolítica.


Revista Ecopolítica, São Paulo, n. 5. 2013.

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3.SITE <http//:www.educação.uol.br/colunas/maria-alice-setubal>. Disponível em


05/10/2017.

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5. SITE http// www1.folha.uol.com.br, disponível em 03.04.2018

~ 140 ~
OS DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA:
MAPEAMENTO DE TESES (2015-2016)

Arlinda Cantero Dorsa*


Antonio Henrique Maia Lima**
Thayliny Zardo***

1. PONTUAÇÕES INICIAIS

Todo tipo de construto se dá sob algum tipo de pressão. Ora, pressão pode ser
compreendida como motivação, portanto, todo tipo de motivação exerce alguma pressão.
Nesse sentido, podemos afirmar que os direitos humanos surgem na ordem mundial sob
uma ampla variedade de pressões: políticas, econômicas, jurídicas, morais, etc., e graças a
esse espectro de pressões a humanidade passa a se impor como um valor e um valor a ser
protegido. O caráter do “humano”, aquele dotado de humanidade passa a ser avaliado sob
diferentes prismas, todos buscando responder a seguinte questão: o que é ser humano?
Que conjunto de atribuições, faculdades, características fazem de uma comunidade
qualquer de seres, ser considerada humanidade? Afinal, quem é ser humano? O que é? O
que faz de? Quem é? Esse conjunto de questionamentos leva o homem a uma
autoavaliação, obviamente, motivada por pressões. As respostas dessa autoavaliação, desse
olhar para si mesmo por meio de todos os demais, dentro de um contexto sócio-político-
econômico que permitia, ou melhor, exigia esse processo de olhar-se por intermédio do
espelho, fez eclodir o que hoje entendemos por Direitos Humanos.
Segundo Lynn Hunt (2009) os direitos humanos são inventados sob a luz, ou
melhor, sob a pressão para se responder à questão, afinal quem é humano? Em 1776, por
exemplo, a célebre Declaração de Independência dos Estados Unidos da América editada
por Thomas Jefferson traz a seguinte menção: “Consideramos estas verdades como
autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de

* Profª Dra. do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local (mestrado e doutorado) da


Universidade Católica Dom Bosco –MS (UCDB –MS).acdorsa@ucdb.br.
** Doutorando bolsista em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

(PUC/SP).henrick_maia@hotmail.com.
*** Doutoranda bolsista do PPGDL- Desenvolvimento Local – Universidade Católica Dom Bosco (UCDB-

MS). thay_zardo@hotmail.com.

~ 141 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade”
(HUNT, 2009).
A autora acima citada nos chama a atenção para o fato de que apesar do
reconhecimento da igualdade entre os seres humanos na declaração de independência
americana, ainda se viu, sob a égide dessa mesma declaração, a escravidão, a guerra, a
segregação racial, a criminalização da homossexualidade, e muitos outros episódios que em
tese violariam este importante documento.
Talvez Hunt (2009) esteja querendo nos fazer ver que a resposta à questão “afinal
quem é humano?” varia, de acordo com a história, de acordo com os interesses, de acordo
com a rede de poderes estabelecida, com a expansão do capitalismo, em suma, ela varia...
Essa “volatização” do estado de humanidade é importante, pois dela decorre aberturas que
permitiram, por exemplo, as maiores atrocidades já cometidas entre seres humanos, as
guerras, a escravidão, a exploração em demasia de recursos, a predação de um homem em
relação a outro homem: e veja, não estamos falando de um estado de natureza hobbesiano,
falamos, pois sim, de um período histórico em que já se havia declarado que todos os
homens seriam iguais.
Do mesmo modo em 1789, ainda sob a lição de Hunt (2009) temos a célebre
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão gestada nos prólogos da Revolução
Francesa, e, trazida ao mundo por aqueles revolucionários burgueses, verdadeiros
parteiros que teriam cortado o cordão umbilical que ligava a humanidade à chamada velha
ordem. Nasce com a Revolução um novo mundo, povoado por novos homens: homens
iguais. Ora, mais uma vez Hunt (2009), nos permite o questionamento: como um país que
se refunda sob os dogmas da humanidade e da cidadania se permite a vivenciar e
protagonizar tão nefastos episódios como aqueles que marcam a história francesa pós-
revolução? Colonialismo, guerras, golpes de estado, massacres étnicos sob o apoio explícito
ou implícito do governo francês, enfim, como algo tão universal como a humanidade pode
ao mesmo tempo ser tão subjetivo? Tão volátil? Tão instável?
Talvez as palavras de Comparato( 2003), possam ajudar: “a afirmação de
autênticos direitos humanos é incompatível com uma concepção positivista do direito. O
positivismo contenta-se com a validade formal das normas jurídicas, quando todo o
problema situa-se numa esfera mais profunda, correspondente ao valor ético do direito.”
Assim o que podemos deduzir é que um sistema de valores, éticos e morais, subsistem ao
sistema jurídico. O reconhecimento formal da igualdade e da universalidade de alguns
direitos a todos os seres dotados da qualidade de “humano” não resiste às conformações

~ 142 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

históricas, políticas e econômicas dadas à questão de “quem é humano” e em decorrência a


questão “à quem se destina os direitos do homem”.
Novamente segundo Hunt (2009) os direitos humano requerem três qualidades
encadeadas: naturalidade, isto é, devem ser naturais (inerentes nos seres humanos), igualdade
(os mesmos para todo mundo) e universalidade (aplicáveis por toda parte). Assim, “todos os
humanos em todas as regiões do mundo devem possuí-los igualmente e apenas por causa
de seu status como seres humanos” (HUNT, 2009, p. 19).
A partir de ambas as ponderações, sejade Comparato, seja de Hunt, o que nos
resta explícito é que não se têm direitos humanos, sequer a discussão sobre direitos
humanos, sem que haja um fundo político para isso. Naturais, iguais e universais são os
direitos humanos, no entanto, politicamente, homens e sociedades não se distribuem à
proporção desses três pilares. “Os direitos humanos só se tornam significativos quando
ganham conteúdo político. Não são os direitos de humanos um estado de natureza: são os
direitos de humanos em sociedade” (idem). O que as declarações citadas, tanto a da
Independência Americana quanto a da Revolução Francesa fazem é justamente “politizar”
as inerências e as consequências dos direitos humanos, num movimento que se repetirá ao
longo de séculos, até a aclamada Declaração das Nações Unidas de 1948, nomeadamente
“universal”. Mais uma vez: haveria certo tom de utopia nessa “universalidade”? Talvez um
tom menos nobre, um tom de imperialismo nessa “universalidade”? Ambas as respostas
retundam no princípio político de toda declaração de direitos. Mais uma vez, a depender da
história, dos interesses, dos valores éticos e morais, da economia e da política, o que é
universalmente humano é uma noção manejada e remanejada para responder às pressões.
Como abrimos esse capítulo: “todo tipo de construto se dá sob algum tipo de pressão”.
Daí a vocação ideológica dos direitos humanos, em especial, pós Declaração Universal de
1948.
Sob essa premissa do político, do ético, do ideológico, enfim, sob a premissa das
pressões, das lutas, dos jogos de força sob os quais se imperam as declarações e as
legislações neste capítulo haveremos de fazer uma análise dessas questões a partir do
conjunto de teses doutorais produzidas sobre a temática dos direitos humanos entre os
anos de 2014 e 2016.
A escolha desse tipo de trabalho se relaciona com a discussão, nos meios
acadêmicos,sobre a importância dos Direitos Humanos e sua relevância frente à
comunidade científica a partir de um panorama da produção em nível de pós-graduação
strictu sensu no Brasil. A pretensão deste capítulo é delinear as interfaces temáticas dessas

~ 143 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

produções a partir de deduções propiciadas pela análise de resumo de teses e das suas
palavras-chave, na tentativa de “trazer à tona” elementos tanto quantitativos quanto
qualitativos que de alguma forma ressonem nas problematizações postas anteriormente.
Neste contexto, os trabalhados acadêmicos pesquisados e estudados por meio do
chamado “estado da arte” ou “estado do conhecimento”, visa reconhecer a produção
científica da área dos Direitos Humanos com relação aos avanços temáticos, permitindo
assim, a identificação das problemáticas e a fronteiras estabelecidas com relação às
interfaces temáticas encontradas na escolha das respectivas teses. Este tipo de pesquisa
possibilita aos pesquisadores analisar/comparar pesquisas que tratam de temas
semelhantes, perceber a evolução das teorias apresentadas, observar as tendências
metodológicas utilizadas e principalmente o aprofundamento de conhecimentos sobre os
aportes teóricos que os respectivos autores se subsidiaram para a escrita de suas teses.
A partir disso é possível discutir e apontar indicações para a realização de estudos
dessa natureza a partir do mapeamento de teses defendidas no ano de 2014-2016 nas
universidades brasileiras e pesquisadas no Portal de teses e dissertações da CAPES, tendo
por descritor principal as palavras“direitos humanos + Brasil”.Portanto, este capítulo busca
inicialmente trazer breves considerações metodológicas para, posteriormente, fazer uma
pequena análise do “estado da arte” das produções científicas voltadas aos direitos
humanos.

2. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS SOBRE “MAPEAMENTO DE


PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO”

Muito provavelmente o maior desafio do pesquisador que realiza pesquisas do


cunho de mapeamentos de produção de conhecimento é lidar com a inquietação oriunda
da situação de desconhecimento a respeito dos estudos e pesquisas tanto quantitativos
quanto qualitativos de uma determinada área de conhecimento epossibilitar a realização de
uma metodologia inventariante, já que, conforme Ferreira (2002), o mapeamento possibilita
diferentes percepções acerca de um discurso, quenum primeiro momento nos é
apresentado de forma descontínua ou contraditória. No presente capítulo, o que leva os
autores a fazê-lo é a necessidade de uma reflexão desenvolvida no âmbito da Pós-
Graduação que envolve a temática dos Direitos Humano.
Para isso, a partir dos descritores “direitos humanos + Brasil” e da sua inserção
nas teses de doutorados no Brasil, a partir do estado da arte ou conhecimento, visamos

~ 144 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

conhecer o que vem sendo produzido a este respeito e demonstrar o que ainda pode ser
elaborado. Assim, procuramos compreender “de que formas e em que condições têm sido
produzidas certas teses de doutorado, publicações em periódicos e comunicações em anais
de congressos e de seminários” (FERREIRA, 2002, p. 258).
É importante enfatizar que a expansão da pesquisa no Brasil aponta para um
importante crescimento quantitativo que suscita a realização de levantamentos, estudos,
mapeamentos, análises, balanços, etc. na busca de evidenciar os temas e os assuntos
enfatizados, focalizados; os métodos, procedimentos e análises; os aportes teóricos,
metodológicos, resultados, enfim, tudo que possa ser replicado ou evitado e as lacunas, por
óbvio, que podem reavivar a produção de pesquisas novas (THOMAS, 2007, p. 23)
Reitera este pensamento Pichet (2007, p. 14) ao afirmar que este tipo de pesquisa
é bastante “instigante à medida que suas característicase procedimentos fazem do
pesquisador um investigador de vestígios de determinadotema, sob um olhar detalhista,
focado e acima de tudo cercado de dados quecompõem o cenário de sua caminhada”.
“Estado da arte” ou “estado de conhecimento” é um tipo de pesquisa que possui um
caráter bibliográfico e desafiador em razão da possibilidade da realização de um
mapeamento que enseja discussão sobre determinada produção cientifica acadêmica em
diferentes campos de conhecimento.
Várias denominações e estudos, sobre o levantamento voltado a revisões de
literatura ou produção cientifica, têm surgido, uma delas são as pesquisas de Cervo
eBervian (2002) denominadas de “estudo de revisão”. Segundo estes autores, a primeira
etapa de um estudo do estilo envolve o levantamento de todas as referências encontradas
em diferentes formatos sobre um referido tema: livros, sites, revistas, vídeos, que trazem a
possibilidade de um primeiro contato com o objeto investigado. Vosderau e Romanowski
(2014), por seu turno, elucidam que o material coletado pelo levantamento bibliográfico é
organizado por procedência seja ele de fontes científicas: artigos, teses, dissertações ou
fontes de divulgação de ideias (revistas, vídeos, sites) e permitem a construção de uma
contextualização para o problema assim como a análise das possibilidades presentes na
literatura para a concepção do referencial teórico de novas pesquisas.
É importante enfatizar que há nestas pesquisas dois eixos estruturantes que
sustentam o corpus teórico: o eixo quantitativo e o eixo qualitativo. Ao se buscar o
crescimento ou decrescimento numérico das produções, de acordo com Slongo (2004),
observa-se sua variação ao longo de um determinado período sem se considerar as suas

~ 145 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

minúcias, já na segunda frente de pesquisa, busca-se verificar as características dessas


produções em detrimento de sua quantidade.
As limitações também são comuns como em qualquer método de análise de dados
e documentos, sobre este viés, Ferreira (2002) tece algumas considerações importantes: a
primeira limitação evidencia a ausência de um controle geral do pesquisador com relação ao
seu objeto de investigação a partir da ênfase que a leitura do estado da arte proposta por ele
reverbera em outras leituras, sendo assim haverá tantas histórias quantos leitores dispostos
a lê-las: “[...] ele [o pesquisador] estará, quando muito, escrevendo uma das possíveis
Histórias [...]” (FERREIRA, 2002, p. 269).
Diante dessas reflexões, no presente estudo foi realizado um levantamento
bibliométrico de teses referentes aos anosde 2014, 2015 e 2016constantes no Banco de
Teses e Dissertações da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior) e a partir das considerações de Slongo (2004) e outros aliados teóricos
procuramos trazer à tona aspectos tanto quantitativos quanto qualitativos desse material.

3.UMA BREVE ANÁLISE QUANTITATIVA DE DADOS

A pesquisa do tipo “estado da arte” conforme osdizeres de Slongo (2004)busca


em um primeiro momento um aparato genérico numérico das produções e a variação
dessas produções num período específico de tempo. A partir dessas considerações,
dividiremos nosso estudo em duas etapas, sendo a primeira um demonstrativo geral das
conotações quantitativas do material catalogado, filtrado e selecionado e na segunda
adentraremos nos seus aspectos qualitativos.
Na primeira etapa foi realizada uma busca das teses no referido portal utilizando
as seguintes palavras-chave: “direitos humanos e Brasil”. Com este critério foram coletadas
cerca de 16.336 teses,de 2015 a 2016. A partir de uma segunda filtragem, foi selecionada
como grande área asCiências Sociais Aplicadas (na qual se insere o Direito enquanto área
do conhecimento), chegando-se a 2.663 teses. As áreas de conhecimento apontaram com
relação às respectivas teses: Direito – 898 teses, Administração-330 teses, Economia -232
teses, Comunicação – 216 teses e Serviço Social – 209 teses.
Com a intenção de analisar em maiores detalhes as teses, foram selecionadas as
referentes ao Direito – 898 teses, e a partir da área de Concentração em Direitos Humanos
chegou-se a 28 teses sendo que destas, 13 foram defendidas em 2016 e 15 no ano de 2015.
As teses mapeadas pertencem basicamente a dois programas de doutorado: Universidade

~ 146 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

de São Paulo (USP), da qual 23 tesessão oriundas e da Universidade Federal do Pará, de


onde provêm 17 teses.

Distribuição das Teses por Área do


Conhecimento
Direito
Administração
Economia
Comunicação
Serviço Social

Figura 1: Distribuição proporcional das teses na temática “Direitos Humanos” por


área do conhecimento

Segundo a CAPES, o curso de doutorado avaliado com nota igual ou superior a 3


é“recomendado” ao reconhecimento ou renovação do conhecimento pelo Conselho
Nacional de Educação. A nota é classificada entre 1 e 7.
Sobre os dois programas acima citados, é de se ressaltar que a primeira instituição
que se integrou à Universidade de São Paulo foi a Faculdade de Direito em 1934. Em
junho de 1970, o Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito foi criado pela
Portaria GR nº 1211, sendo Reitor da Universidade o Prof. Dr. Miguel Reale. O programa
é reconhecido pela CAPES e recebeu nas duas últimas avaliações a nota 6, além da área de
Direitos Humanos possui mais 09 áreas de concentração tanto em nível de mestrado como
doutorado.
O doutorando ao ingressar no Programa deve se inserir no âmbito das linhas de
pesquisa e dos projetos acadêmicos da área de concentração escolhida. As áreas de Direitos
Humanos einclusão socialtêemprojetos de pesquisa voltados à: I) democracia, igualdade e
combate à discriminação; II) o direito à educação, à saúde, ao meio ambiente; III)
trabalho no combate à exclusão; IV) direito e exclusão social na história: aspectos jurídicos
e filosóficos; V) mecanismos nacionais e internacionais de proteção dos direitos humanos;
VI) direito à diversidade no pensamento político contemporâneo: reconhecimento,
redistribuição, políticas multiculturais.
Ao integrar o Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará,
oriunda da Faculdade Livre de Direito do Pará, uma das mais antigas do país, o Programa

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Direitos Humanos & Fundamentais

de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Pará iniciou suas


atividades em 1984 e oferta cursos de Mestrado e Doutorado (único da área de Direito na
Amazônia), estruturado em uma única área de concentração: Direitos Humanos. O curso
possui quatro linhas de pesquisa: I)Constitucionalismo, Democracia e Direitos Humanos;
II)Direitos Humanos e Inclusão Social; III)Direitos Humanos e Meio-Ambiente e IV)
Intervenção Penal, Segurança Pública e Direitos Humanos.
Implantado em 2003, o curso de doutorado com a área de concentração voltada
aos Direitos Humanos, volta-se aos graves problemas vividos pela sociedade amazônica,
seja pela exploração insustentável de recursos naturais, responsável pela degradação
ambiental, seja pelas violações dos direitos humanos das populações tradicionais e nos
centros urbanos, seja pela necessidade de proteção e promoção dos direitos humanos, por
meio da implantação de políticas públicas, temas de grandes preocupações das linhas de
pesquisa do PPGD-UFPA.

4. UMA BREVE ANÁLISE QUALITATIVA DE DADOS

Segundo Slongo (2004) é a quantidade de enfoques e outras variáveis que o


pesquisador analisará na fase qualitativa de sua pesquisa de tipo “estado da arte”. Seguindo
os passos de Ferreira (2002) tentamos realizar um estudo qualitativo a partir dos resumos
das teses encontradas. Para isso seguiremos o método desta autora empregado nos seus
estudos a partir dos resumos da ANPED onde a autora buscou contar uma “história” da
produção acadêmica na área da educação, no entanto, está muito longe de nossos objetivos
a construção de uma “história” das produções sobre biodiversidade.
Como expresso na introdução procuraremos enfatizar com um recorte
transdisciplinar o que chamamos de “pano de fundo” das produções em nível de
doutorado no ano de 2015 a 2016em torno dos direitos humanos. Assim poderemos traçar,
com sorte, uma espécie de “teia” em que será possível visualizar quais as temáticasem que
estão se debruçando os pesquisadores e como elas repercutem na academia.
Utilizando-se da ferramenta wordcloud que projeta na forma de nuvem as palavras
presentes nos resumos das teses em diferentes tamanhos, na medida da quantidade de
vezes que aparecem, sendo que, quanto maior a palavra mais vezes ela apareceu no resumo,
realizamos o seguinte exercício: compusemos com a ferramenta uma nuvem para cada tese
de doutorado, e desta nuvem retiramos as três maiores palavras, reservando-as para ao
final, compormos uma grande nuvem com as três palavras mais utilizadas em cada resumo

~ 148 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

para se ter um espectro global dos termos-chaves utilizados nas teses analisadas. Com esse
método obtivemos a seguinte nuvem:
Dos dois programas de doutorado encontrados na varredura inicial já é possível
identificar uma diagramação, ainda que superficial, das áreas do saber em que eles se
inserem e como elas se correlacionam entre si. Apesar de serem as teses produzidasnosso
“objeto” de análise, essa primeira diagramação servirá, pelo menos, para uma comparação
aposteriori e uma análise da influência nas produções dos respectivos programas. Em um
primeiro momento a partir das palavras-chave dos trabalhos acadêmicos buscamos elaborar
uma “nuvem” de palavras que exemplifica o volume e a reiteração do uso de um mesmo
vocábulo. Assim é possível visualizar e analisar a que buscam se dedicar os doutorandos em
seus trabalhos finais. A partir das palavras-chaves das teses provenientes da Universidade
de São Paulo, com a utilização da ferramenta wordcloud obtivemos o seguinte extrato das
recorrências entre as palavras:

Figura 2: Nuvem composta a partir das palavras-chave das teses oriundas da Universidade de São
Paulo.

O mesmo procedimento foi realizado com as teses advindas da Universidade


Federal do Pará e obtivemos o seguinte resultado na forma de nuvem:

~ 149 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Figura 3: Nuvem composta a partir das palavras-chave das teses oriundas da Universidade Federal do
Pará.

É visível que as expressões “direito”, “direitos” e “humanos” se sobressaíram em


ambas as nuvens, e por razões um tanto quanto óbvias. É praxe no mundo acadêmico
incluir como palavra-chave de um trabalho, especialmente no âmbito da pós-graduação, a
área temática a que se vincula a “casa” do autor e do trabalho, ou seja, à área de
concentração e a linha de pesquisa do respectivo programa em que está inserida a
produção. Por tal razão, deixaremos as “grandes” palavras de lado e nos dedicaremos às
palavras médias, que aparecem nas respectivas nuvens, pois cremos que nelas estão
estampadas as singularidades de cada produção.
A respeito da nuvem das teses da Universidade de São Paulo temos como
destaques as palavras “democracia”, “gestão”, “internacional”, “corte”, “social”, “racismo”.
A partir delas vamos categorizar as teses encontradas a partir das suas palavras-chaves
dispostas em nuvem seguindo a escala de progressão das “maiores palavras” para as
“menores palavras”:

i)Teses que abordam os direitos humanos na esfera internacional: a partir delas podemos
deduzir que o conjunto de produções na área de direitos humanos oriundos da USP
tem a princípio uma preocupação com os direitos humanos na seara internacional,
talvez inclusive, se debruçando sobre uma perspectiva teórica desses direitos e de sua
gênese. É possível afirmar ainda que tais teses se dedicam ao estudo e à sugestão de
Políticas Públicas voltadas para a questão dos direitos humanos em âmbito
internacional, especialmente, no que diz respeito à migração/imigração, refúgio,

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Direitos Humanos & Fundamentais

populações vulneráveis, perspectivas étnico-raciais, prevalecendo o questionamento


aos sistemas positivo-jurídicos e capitalismo.Nessa vertente, as teses tratam dos
direitos humanos como um “ordenamento jurídico supranacional” que media os
sistemas jurídicos nacionais. Dentro dessa discussão se inserem os tribunais
internacionais, especialmente a Corte Europeia de Direitos Humanos e a Corte
Interamericana de Direitos Humanos e, por decorrência, se debruçam também sobre
o Pacto de San José da Costa Rica e seus efeitos legais e supralegais no ordenamento
jurídico brasileiro.Expressões que denunciam essa tendência são: “refugiados”,
“migrantes”, “migrações”, “migratória”, “mundial”, “tráfico”,
“interamericana”,“cortes”, “europeia”,etc.

ii) Direitos Humanos, política e ideologia: as teses provenientes da Universidade de São


Paulo se debruçam ainda sobre a questão política, gerencial, administrativa, eleitoral e
ideológica, provavelmente. Isto é, há toda uma ordem de teses que abordam a
democracia como uma espécie de “fundamento” dos direitos humanos,
questionando os sistemas sócio-políticos e estabelecendo questionamentos a respeito
da colisão desses sistemas com os próprios direitos humanos. Observe-se que neste
recorte há uma interação da temática dos direitos humanos com questões
eminentemente políticas e ideológicas: abordagens de viés marxista expõem as
fragilidades do sistema capitalista no que diz respeito à garantia dos direitos humanos
diante dos fluxos e das necessidades de mercado, assim, questões como
solidariedade, políticas de distribuição, igualdade/desigualdade, classe e até mesmo
divisão internacional do trabalho são levantadas. Ainda neste item, vale destacar a
proeminência de discussões a respeito da liberdade de expressão política como
direito humano. Palavras na nuvem que possibilitam tal avaliação são: “capitalismo”,
“propriedade”, “política”, “marxismo”, “igualdade”, “desestratificação”, “estrutural”,
“eleitoral”, “social”, etc.

iii) Direitos humanos e desenvolvimento: existe também de forma acentuada um grupo de


teses que se debruça sobre a discussão da questão do desenvolvimento
correlacionado com os direitos humanos. Isto é: o direito ao desenvolvimento como
um direito humano. Nesse caminho, seguem teses que entrelaçam questões como
sustentabilidade, saúde, terceiro setor, participação comunitária, políticas públicas de
saúde, direitos culturais, etc. Convergem para uma tentativa de solucionar problemas

~ 151 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

de pesquisa que permeiam os novos paradigmas do desenvolvimento e a questão dos


direitos humanos, desenvolvimento humano e social e principalmente
desenvolvimento sustentável, que em outro estudo (Dorsa, Lima, Zardo e Addor,
2017) puderam verificar que têm sido o grande investimento intelectual da pós-
graduação brasileira em diferentes áreas do saber. As palavras na nuvem que
evidenciam e possibilitam tais contestações são: “sanitária”, “desenvolvimento”,
“urbanística”.

iv) Direitos humanos e populações vulneráveis: em outra linha seguem as teses que abordam
a questão dos direitos humanos e populações em situação de vulnerabilidades. Nesse
espectro, as teses advindas da Universidade de São Paulo se apoderam da cartilha dos
direitos humanos, fundamentais, individuais e transindividuais e se debruçam sobre
questões que problematizam o acesso a tais direitos por determinada população. São
populações que historicamente sofrem com violação de direitos, com a imperfeita
distribuição de renda e de oportunidades, com a marginalização, a desigualdade social
e o preconceito. Estamos falando de um recorte de classe, de gênero e de raça
predominantemente, mas não somente: se enquadram nessa discussão recentemente
principalmente os refugiados, que dado o dinamismo político e econômico
internacional contemporâneo emergem como uma categoria que denota extrema
atenção por parte do mundo acadêmico. São as expressões mais presentes nessas
teses: “controle”, “política”, “negra”, “racismo”, “refugiados”, “migratória”,
“migrações”, “condição”, etc.

Agora passemos a analisar a nuvem gerada a partir das palavras-chave das teses
oriundas da Universidade Federal do Pará. Aqui temos um espectro diferente de palavras e
bastante amplo, embora o volume de teses seja bem menor quando comparado com a da
Universidade de São Paulo, o que sugere que as temáticas abordadas são mais abertas e
variadas que no bloco oriundo da USP. As palavras são, com exceção das grandes
“direitos”, “direito” e “humanos”, mais ou menos do mesmo tamanho, o que significa que
foram citadas em quantidades semelhantes ao longo dos resumos.
Temos na nuvem das teses da UFPA uma preocupação em dois grandes eixos dos
direitos humanos, que vão ao encontro de alguns eixos das teses provenientes da USP. São
eles: estudos voltados a populações em situação de vulnerabilidade e estudos voltados à
questão dos direitos humanos e desenvolvimento (muito provavelmente pela localização da

~ 152 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

instituição em plena Amazônia). Ademais existe ainda uma terceira via forte nas teses da
UFPA, que realiza análises teóricas e filosóficas acerca dos direitos humanos. Observe-se:
Na convergência com as teses da USP, que se debruçam sobre a questão das
populações em situação de vulnerabilidade, existe nas teses da UFPA um reforço da
condição dessas populações de dificuldade de ver respeitados os seus direitos humanos.
São teses que abordam os direitos humanos a partir das questões de gênero, de raça e
também, tal como na USP emerge a categoria dos refugiados. São expressões presentes nas
nuvens que possibilitam tais conclusões as seguintes: “travestis”, “igualdade”, “pobreza”,
“sexual”, “igualitário”, “tráfico”, “transmulheres”, etc.
O segundo eixo de palavras de teses da UFPA que converge com um eixo das
teses da USP é a que aborda de alguma forma a questão do “desenvolvimento”. Assim,
tem-se na UFPA uma vertente forte de pesquisa estampada nas teses que busca assegurar à
região amazônica o desenvolvimento sustentável. São as palavras na nuvem que o
possibilitam: “ambiental”, “agroambiental”, “sustentável”, “sustentabilidade”,
“propriedade”, “rural”, “exploração”, “segurança”, etc.
O terceiro eixo das teses da UFPA converge para a área de Direitos humanos e
políticas públicas voltadas para a Amazônia. Aqui é visível que doutorandos desta instituição
também se voltaram para a questão teórica e conceitual dos direitos humanos a partir de
especificidades e realidade amazônicas. Então temos uma preocupação com a questão
política, com o liberalismo e a propriedade privada, a pobreza rural, direitos sociais no
campo e na floresta, além de trabalhos voltados para uma teoria dos direitos humanos a
partir de recortes específicos. São as palavras "integridade", “ministério público”,
“instituídos”, “interpretação”, “constitucionalidade”, “princípio”, “diálogo”, “controle”,
“distributiva”, “propriedade”, dentre outras que caracterizam os resumos das teses desse
eixo.

5. UMA ANÁLISE POR EIXO

Nesse item, faremos um mapeamento geral das teses a partir dos eixos
identificados a partir das palavras-chave presentes nos resumos. É importante frisar que
algumas teses poderão aparecer em mais de um eixo dado que sua temática de análise é
possível ser distribuída desta forma. Assim, temos o gráfico abaixo que evidencia a
distribuição das teses por eixo temático. Absolutamente todas as teses foram enquadradas

~ 153 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

em algum dos 5 eixos, dai o fato do sexto eixo, “outros”, se encontrar vazio e sem
referência no gráfico abaixo.

I - Direitos
TESES humanos na
esfera
internacional

II - Direitos
Humanos, políti
ca e ideologia.

Figura 4: Distribuição proporcional das teses na temática “Direitos Humanos”


por área do conhecimento

EIXO I: Teses que abordam os direitos humanos na esfera internacional.

O Eixo I que se forma a partir das teses que traçam uma análise dos direitos
humanos na esfera internacional e/ou que versam sobre os mesmos a partir de análises
mais teóricas, com um pano de fundo de jus-filosofia é um eixo que congrega teses tanto
dos anos de 2015 e 2016 quanto dos programas de pós-graduação strictu sensu albergados
por ambas as universidades filtradas, Universidade de São Paulo e Universidade Federal do
Pará, na seguinte proporção: ano de 2016:
Total de 11 (onze) teses das quais, sendo que 5 (cinco) teses, todas oriundas da
USP, foram defendidas no ano de 2016 e 7 (sete) teses defendidas no ano de 2015, 5
(cinco) na Universidade de São Paulo e 2 (duas) na Universidade Federal do Pará. Eis os
resultados:

Autoria Ano IES de origem Título


BUCCI, D. 2016 USP Limites materiais da liberdade de expressão política no
direito eleitoral brasileiro.
CIENA, F. 2016 USP A gestão pública das políticas educacionais para a
efetivação democrática do direito à educação no Brasil:
da democracia cognitiva à democracia participativa.
WALDMAN, T. 2016 USP Nem clandestinos, nem ilegais: construindo contornos
para uma definição da condição, migratória não
documentada no Brasil.
CUNHA, C. 2016 USP Investimento internacional e a nova acepção de

~ 154 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

desenvolvimento: o desenvolvimento sustentável'


MAHLKE, H. 2016 USP Novo Paradigma Jurídico da Proteção Internacional dos
Refugiados.
BRANDÃO, J. 2015 USP Justiça e direitos humanos: análise da jurisprudência no
STF(1988-2012).
LEITE, L. 2015 USP O devido processo legal para o refúgio no Brasil.
SERAU JR., M. 2015 USP Resolução do conflito previdenciário e direitos
fundamentais.
MAGALHÃES, B. 2015 USP Pluralismo constitucional interamericano: a leitura plural
da Constituição de 1988 e o diálogo entre o Supremo
Tribunal Federal e a corte interamericana de Direitos
humanos.
TAXI, R. 2015 USP A perda da prudência no pensamento jurídico moderno.
SANTOS, M. 2015 UFPA O controle de constitucionalidade da pena
desproporcional em busca da resposta certa.
SILVA, S. 2015 UFPA A tutela coletiva extraprocessual: o diálogo institucional
como instrumento de atuação do ministério público para
a concretização dos direitos sociais.
Tabela 1: Teses que compõem o Eixo I: Teses que abordam os direitos humanos na esfera internacional

EIXO II - Direitos Humanos, política e ideologia.

O Eixo II é formado por aquelas teses que abordam os direitos humanos dentro
de uma concepção ou recorte que envolve as discussões políticas e ideológicas que
caracterizam um debate que é histórico:função social da propriedade, os direitos humanos
no seio do sistema capitalista moderno, liberal e/ou neoliberal e seus reflexos em
determinados contextos políticos, sociais e econômicos.Das teses analisadas que foram
catalogadas neste eixo novamente temos registros advindos dos diferentes anos analisados
e de programas de pós-graduação das diferentes instituições de ensino superior.
Contabiliza-se um total de 6 (seis) teses neste eixo, das quais 5 (cinco) provém de
programas da Universidade de São Paulo e 1 (uma) da Universidade Federal do Pará. Veja-
se:

Autoria Ano IES de origem Título


BERSANI, H. 2016 USP Racismo estrutural e direito à desestratificação: um
estudo a partir das relações de trabalho.
ROZAS, M. 2016 USP Direito à moradia: âmbito, limites e controle no

~ 155 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

ordenamento jurídico nacional.


MENEZES, R. 2016 USP Direito à Habitação e Sociometabolismo do Capital: para
a crítica aos mecanismos de atendimento habitacional à
parcela pauperizada da classe trabalhadora.
ARIENTE, E. 2015 USP A função social da propriedade intelectual.
BIONDI, P. 2015 USP Capitalismo e direitos humanos de solidariedade:
elementos para uma crítica.
SÁ, J. 2015 UFPA Direito de propriedade e justiça distributiva no Brasil:
ampliação das capacidades como forma de combater a
pobreza rural.
Tabela 2: Teses que compõem o Eixo II: Teses que abordam os Direitos Humanos, política e ideologia.

EIXO III: Direitos humanos e desenvolvimento.

O Eixo III foi composto por aquelas teses que abordam a questão do
desenvolvimento, do direito ao desenvolvimento, do desenvolvimento enquanto direito
humano, da sustentabilidade e de sua importância para a ordem mundial no século XXI.
Assim temos um número razoável de produções nesses sentidos, novamente distribuídas
ao longo dos dois anos analisados e das duas diferentes instituições analisadas. Como já
dito, em trabalho anterior, verificamos o agigantamento do volume de pesquisas voltadas
para a questão sustentável e/ou desenvolvimentista no último decênio em todas as áreas do
conhecimento. Tal fato nos levou a uma reflexão própria que será trazida no item
“considerações finais”.
Ao todo foram identificadas 4 (quatro) teses que se debruçam sobre essas
temáticas, sendo que destas 2 (duas) oriundas da Universidade de São Paulo, ambas do ano
de 2016 e 2 (duas) oriundas da Universidade Federal do Pará, ambas de 2015. Eis os dados:

Autoria Ano IES de origem Título


CUNHA, C. 2016 USP Investimento internacional e a nova acepção de
desenvolvimento: o desenvolvimento sustentável.
DINIZ, M. 2016 USP Democracia sanitária e participação social na organização
mundial da saúde: das organizações não governamentais
aos atores não estatais.
SEFER, R. 2015 UFPA Segurança jurídica: prática jurisprudencial na efetivação
de direitos fundamentais agroambientais.
SANTANA, R. 2015 UFPA Desenvolvimento Sustentável: Parâmetros para uma
interpretação jurídica da sustentabilidade ambiental.
Tabela 3: Teses que compõem o Eixo III: Teses que abordam Direitos humanos e desenvolvimento.

~ 156 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

EIXO IV: Direitos humanos e populações vulneráveis.

O Eixo IV contém as teses que versam sobre “temáticas clássicas” dos direitos
humanos, como, por exemplo, o acesso de determinadas populações historicamente
marginalizadas aos direitos básicos, o racismo, questões de diversidade, de gênero, étnico-
racial, de nacionalidade, etc. No entanto, é gritante a importância dada à questão dos
refugiados, o que fomentou alguns comentários que serão trazidos no item “considerações
finais”.
O total de teses que compõem este item é de 9 (nove), sendo que, há uma ampla
distribuição ao longo dos anos e das instituições de análise: no ano de 2016 houve defesa
de 4 (quatro) teses na Universidade de São Paulo sobre as temáticas do eixo e na
Universidade Federal do Pará no mesmo ano foi defendida 1 (uma) tese. No ano de 2015
as defesas foram de 2 (duas) para cada instituição. Observe-se:

Autoria Ano IES de origem Título


WALDMAN, T. 2016 USP Nem clandestinos, nem ilegais: construindo contornos
para uma definição da condição, migratória não
documentada no Brasil.
MELO, C. 2016 USP Ações coletivas e promoção da igualdade racial - estudo
sobre a proteção de direitos transindividuais da
população negra.
MAHLKE, H. 2016 USP Novo Paradigma Jurídico da Proteção Internacional dos
Refugiados.
BERSANI, H. 2016 USP Racismo estrutural e direito à desestratificação: um
estudo a partir das relações de trabalho.
LEITE, L. 2015 USP O devido processo legal para o refúgio no Brasil.
MUNHOZ, M. 2015 USP Direitos humanos e relações raciais: uma contribuição da
teoria da branquidade para a análise da jurisprudência
brasileira sobre a conduta da discriminação racial prevista
na legislação.
SMITH, A. 2016 UFPA Travestis e transmulheres: rotas e conexões de
protagonistas de tráfico para exploração sexual Belém.
SÁ, J. 2015 UFPA Direito de propriedade e justiça distributiva no Brasil:
ampliação das capacidades como forma de combater a
pobreza rural.
SILVA, S. 2015 UFPA A tutela coletiva extraprocessual: o diálogo institucional
como instrumento de atuação do ministério público para

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Direitos Humanos & Fundamentais

a concretização dos direitos sociais.


Tabela 4: Teses que compõem o Eixo IV: Teses que abordam Direitos humanos e populações vulneráveis.

EIXO V - Direitos humanos e políticas públicas voltadas para a Amazônia.

O Eixo V foi formado a partir da verificação de que na Universidade Federal do


Pará, por conta de sua situação geográfica e política, em plena bacia Amazônica há uma
preocupação em abordar os direitos humanos a partir das realidades ou demandas locais,
típicas de uma área de interesse internacional, de suma importância para o futuro do
planeta. As teses da UFPA evidenciam essa preocupação sistêmica e governamental e por
isso entendemos por justo criar um Eixo próprio para as mesmas, numa tentativa de
evidenciar ainda mais a inquietação e a importância da discussão trazida por essas
produções acadêmicas.Tamanha é a importância da região, que mesmo na USP foi possível
encontrar teses que versam sobre esta temática.
Das teses oriundas da Universidade Federal do Pará (um total de seis) podemos
afirmar que 5 (cinco) podem ser enquadradas neste eixo, uma vez que, diretamente ou
quase que diretamente abordam os direitos humanos dentro de uma dinâmica que implica a
região amazônica, na Universidade de São Paulo houve 1 (um) registro em 2015. Veja-se:

SMITH, A. 2016 UFPA Travestis e transmulheres: rotas e conexões de


protagonistas de tráfico para exploração sexual Belém.
LEÃO, L. 2015 USP Direito à saúde e sua concretização a partir das políticas
públicas: uma análise da política nacional de atenção
básica ao diabetes mellitus elaborada e implementada no
município de Santarém-PA no período de 2003 a 2010.
SÁ, J. 2015 UFPA Direito de propriedade e justiça distributiva no Brasil:
ampliação das capacidades como forma de combater a
pobreza rural.
SILVA, S. 2015 UFPA A tutela coletiva extraprocessual: o diálogo institucional
como instrumento de atuação do ministério público para
a concretização dos direitos sociais.
SANTANA, R. 2015 UFPA Desenvolvimento Sustentável: Parâmetros para uma
interpretação jurídica da sustentabilidade ambiental.
SEFER, R. 2015 UFPA Segurança jurídica: prática jurisprudencial na efetivação
de direitos fundamentais agroambientais.
Tabela 5: Teses que compõem o Eixo V: Teses que abordam Direitos humanos e políticas públicas voltadas
para a Amazônia.

~ 158 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

6. REFLEXÕES FINAIS

Iniciamos nossa reflexão a partir de uma premissa: todo construto se dá sob


algum tipo de pressão e não seria diferente com os trabalhos de conclusão de pós-
graduação strictu sensu, ainda mais às voltadas para um dos marcos do século XX que são os
direitos humanos. Como pudemos vislumbrar, a partir das breves análises realizadas nos
itens precedentes, além de assuntos já considerados “típicos” da seara dos direitos
humanos como as questões étnico-raciais, os direitos humanos no contexto dos direitos
internacionais, jus-filosofia dedicada aos direitos humanos, etc. temos especialmente três
pontos considerados muitos novos que vêm sendo de forma destacada estudados nas teses
doutorais analisadas, sendo que dois, convergem para um único assunto. Quais sejam: a
questão dos direitos humanos dos refugiados e a questão dos direitos humanos voltados
para o desenvolvimento e sustentabilidade, assunto que absorve também o Eixo V de
nossas análises, basicamente se debruçam sobre a questão da “Amazônia Sustentável”.
Primeiramente, abordemos a questão dos direitos humanos e da sustentabilidade.
O ponto crucial desses apontamentos é que a sustentabilidade somente passa a ter a
relevância que tem hoje quando dela passa a depender o desenvolvimento do sistema
capitalista, dado que outrora essa área era objetivada e vista com verdadeiro desprezo, isto
quando não se viam políticas públicas voltadas, por exemplo, para a “modernização” (leia-
se desmatamento para a urbanização ou para o agronegócio) de áreas cruciais como a
Amazônia.
Conforme afirmamos em Dorsa (et al, 2017) o que se verifica ao longo do pós-
Segunda Guerra são os países capitalistas vencedores e a Organização das Nações Unidas
conduzindo um processo de fomentoao desenvolvimento, a partir de suas agências, como
por exemplo, a FAO e oPNUD. Ao se verificar a insustentabilidade do modelo
desenvolvimentista vigente por meio século, com Relatório Brundtland (1987) se solidifica
a ideia de “sustentabilidade” e de “desenvolvimento” sustentável.
O desenvolvimento passa a ser compreendido como “aquele que satisfaz as
necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas
próprias necessidades”. Sistematiza-se a partir desse período fundamental da história
recente do Ocidente a gestação/modificação/criação de programas de pós-graduação
voltados para a satisfaçãodesses ideais de “desenvolvimento sustentável”, ainda que não
sejaesta a temática específica de muitas teses, dentre as analisadas. Dessa forma, a
sustentabilidade incendeia um volume imenso de pesquisas de pós-graduação em diversos

~ 159 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

setores e áreas do conhecimento. Tem-se, portanto, uma política específica de fomento à


pesquisa voltada à sustentabilidade e ao desenvolvimento sustentável engendrada na
dinâmica das Agendas 21.
Lima, Maciel e Tashima (2017) ao se debruçarem sobre o efeito político das
Agendas 21 se posicionam da seguinte maneira: a Agenda 21 estabelece a forma de
participação de cada país no Projeto Sustentável estabelecendo parâmetros de planejamento
de políticas públicas e metas a serem atingidas já nas primeiras décadas do século XXI,
envolvendo sociedade civil, governos e a própria ONU. Segundo dados apontados por
estes autores, quase 180 países assinaram a Rio 92 e acordaram a Agenda 21 Global, que é
um programa que constitui a mais abrangente tentativa de promover, em escala global, o
denominado “desenvolvimento sustentável”. O termo “Agenda 21” foi usado no sentido
de intenções, desejo de mudança para esse novo modelo de desenvolvimento para o século
XXI. Ela é um instrumento de planejamento para a construção de sociedades sustentáveis,
em diferentes bases geográficas, que concilia métodos de proteção ambiental, justiça social
e eficiência econômica, entrecruzando-se por óbvio com os direitos humanos.
A partir da Agenda 21 Global, os países signatários do acordo se prontificaram e
editaram suas respectivas Agendas 21 nacionais. No que se refere à pesquisa e a inovação,
existe um documento no Brasil que incorpora os ditames da Agenda e delimita os
horizontes da pesquisa brasileira a partir de então. Estamos falandodo Livro Azul da 4ª
Conferência Nacional de Ciência que amplia o fomento à pesquisa nessas áreas estratégicas,
na esfera do discurso e da destinação de recursos inclusive, o que, segundo nosso ponto de
vista, reflete nesse “boom” de pesquisas a respeito da sustentabilidade e do
desenvolvimento sustentável no âmbito da pós-graduação. Podemos entender que são
reflexos dessa política de incentivo, inclusive com a ampliação e a facilitação de concessão
de bolsas de estudos nesta área, que é considerada prioritária, inclusive para estudos fora do
país como foi o caso do Programa Ciências Sem Fronteiras, suspenso pelo governo Michel
Temer.
Ainda segundo Lima, Maciel e Tashima (2017) em O futuro que queremos,
documento de 2014 da Organização das Nações Unidas podemos ler no parágrafo 235 que
os organismos internacionais ressaltam a importância de apoiar instituições de ensino
superior em países em desenvolvimento, para efeitos de pesquisa para o desenvolvimento
sustentável, nomeadamente no domínio da educação, desenvolvendo assim programas de
qualidade e inovadores, incluindo o empreendedorismo e formação profissional,
habilidades, formação técnica e aprendizagem ao longo da vida, orientados com o objetivo

~ 160 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

de preencher as lacunas de competências para promover os objetivos nacionais de


desenvolvimento sustentável.

Assim, grosso modo, o que procuramos revelar é que a ideia de


desenvolvimento sustentável se impregnou numa proporção tão elevada nos
estudos voltados para a biodiversidade que, ainda que não seja este o objeto das
pesquisas, ele aparece como palavra-chave diante das políticas de fomento e da
relevância dada à sustentabilidade no último decênio enquanto política de
Estado (DORSA, et al, 2017, p. 274).

Essa atmosfera dá um novo rumo para a pesquisa na área e estabelece novas


prioridades: a sustentabilidade passa a permear toda a gama do possível, no que se refere à
pesquisa acadêmica no âmbito da pós-graduação. Esse fenômeno orquestrado pela política
de governos anteriores, do Partido dos Trabalhadores, começa a produzir efeitos, como se
viu, na forma de dissertações e teses de doutorado, porém, fica a dúvida: tais pesquisas de
fato contribuirão para a melhoria das condições de vida das populações interessadas,
especialmente as amazônicas? Tais pesquisas têm bases sólidas que reverterão o
investimento da política de fomento em resultados satisfatórios? A flagrante míngua dos
recursos para a pesquisa nos últimos semestres poderá comprometer esses resultados? O
tempo responderá a tais questionamentos, dado que nos encontramos, como já dito, a ver
as primeiras colheitas desse movimento perpetrado nos primeiros anos da década de 2010.
É inegável, no entanto, que em alguns aspectos o país precisa produzir para ver satisfeitas
suas ambições de outrora (já que no presente momento todos esses investimentos e
interesses estão parcial ou totalmente suspensos), inclusive cumprindo compromissos e
metas estabelecidas perante a comunidade internacional.
A pesquisa voltada ao desenvolvimento sustentável e a sustentabilidade na esfera
dos direitos humanos passa a ser uma importante ferramenta de aprimoramento e
lapidação do que o Brasil e a ciência brasileira almeja ser no futuro, ocupando espaços que
hoje são ocupados por um seleto grupo de países que investem pesadamente na pesquisa
voltada para esta questão.
Outro ponto de discussão interessante nos nossos resultados é a questão dos
refugiados. Conforme se pôde verificar, há uma proporção elevada de teses que
correlaciona os direitos humanos com imigração e refúgio. Nossa hipótese é que esse
aumento se verifique por conta da histórica crise política e humanitária vivenciada no
último decênio, especialmente a partir da Primavera Árabe e da questão socioeconômica na
África. Mais uma vez os grandes órgãos gestores do planeta inauguram uma “pressão”

~ 161 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

sobre a academia na tentativa de responder às demandas sociais, políticas, jurídicas e


econômicas que surgem dessa dinâmica.
O Brasil está prestes a receber grandes volumes de refugiados e imigrantes,
seguindo uma constante de aumento de demanda que é sentida em todo o Ocidente.
Assim, nada mais natural que os mecanismos de pesquisa e inovação se dediquem às
mesmas na tentativa de assegurar que os direitos humanos dessas populações sejam
respeitados ao longo de sua trajetória migratória e especialmente ao longo de sua
permanência em solo brasileiro.
O que verificamos ao analisar as teses doutorais dos programas de pós-graduação
strictu sensu na área de direitos humanos é justamente uma coexistência entre problemas
antigos dessa área do saber com problemas contemporâneos. Os primeiros, tidos como
clássicos, que por décadas vêm sendo estudados, mas que infelizmente ainda não foi
verificada uma “solução” se é que esta é possível: estamos falando das populações
vulneráveis, da desigualdade social, das questões de ordem sócio-político-econômica que
afetam um grande contingente da população brasileira. Problemas antigos é verdade, mas
que ainda se fazem tão presentes quanto os novos problemas.
A pesquisa no âmbito dos direitos humanos, como insistentemente dito neste
capítulo, vem respondendo às pressões e elaborando novos conhecimentos a respeito das
novas temáticas e novas demandas que a dinâmica global institui. Sem dúvida, a questão da
sustentabilidade e do desenvolvimento sustentável e da crise política/humanitária
delimitam e acenam para os novos horizontes dos direitos humanos, cada vez mais
globalizados e imbricados na dinâmica política e econômica que ditam as “regras do jogo”.
Se no princípio se discutia sobre os “direitos universais” do “homem universal”,
muitas vezes, excluindo-se “homens” do conceito de humano em prol de um ideário de
progresso, hoje se discute sobre direitos humanos de homens globalizados, de interesses
globalizados que, no entanto, não equivalem ao universal, mas pelo contrário: direitos
humanos que quanto mais globalizados mais individualizados, dado a imensa diversidade
de configurações sociais e políticas em que estes direitos precisam se adaptar para
conseguirem lá existir e surtir seus efeitos. Porém, ainda em prol de um ideário de
progresso que, por mais sustentável e “humano” que seja, ainda permanece em sua gênese
com velhas características. Mas esta é outra discussão!

~ 162 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

REFERÊNCIAS

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2002.

COMPARATO, F. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. rev. e ampl. -


São Paulo: Saraiva, 2003.

_______. Fundamentos dos Direitos Humanos. Disponível em:


www.iea.usp.br/artigos. Acesso em 12/2017.

DORSA, A. C.; LIMA, A. H. M; ZARDO, T. ADDOR, N. Um olhar sobre a biodiversidade:


mapeamento das teses – 2016. In. PASA, M. G.; DE DAVID, M. Múltiplos olhares sobre a
biodiversidade. v. 5. Cuiabá: EdUFMT/Tanta Tinta, 2017.

FERREIRA, N, S. A. As pesquisas denominadas “estado da arte”. Educação & Sociedade, ano


XXIII, n. 79, Agosto/2002.

HUNT, L. A invenção dos direitos humanos: uma história. Trad. RosauraEichemberg.


São Paulo: CIA das Letras, 2009.

NÓBREGA-THERRIEN, S.; THERRIEN, J. O estado da questão: sua compreensão na


construção de trabalhos científicos: reflexões teórico-metodológicas.Estudos em Avaliação
Educacional, v. 15, n. 30, p. 5-16, jul./dez. 2004.

PICHETH, F. M. PeArte: um ambiente colaborativo para a formação do pesquisador que


atua no ensino superior por meio da participação em pesquisas do tipo estado da arte.
2007. 139 f. Dissertação (Mestrado em Educação) — Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, Curitiba, 2007. Disponível em:
http://www.biblioteca.pucpr.br/ tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=828. Acesso
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SILVA, F. J. C.; CARVALHO, M. E. P. O estado da arte das pesquisas educacionais sobre gênero e
Educação infantil: uma introdução. Anais do 18º REDOR – UFRPE. Disponível em:

~ 163 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

http://www.ufpb.br/evento/lti/ocs/index.php/18redor/18redor/paper/viewFile/2192/6
48 Acesso em: 01 ago. 2017.

SLONGO, I. I. P. A produção acadêmica em ensino de biologia: um estudo a partir de


teses e
dissertações. Centro de Ciências da Educação, UFSC, Florianópolis, 2004. (Tese de
Doutorado).

THOMAS, G. Introdução: evidência e prática. In: THOMAS, G. et al. Educação baseada


em evidências: atualização dos achados científicos para a qualificação da prática pedagógica.
Porto Alegre: Artmed, 2007. p. 9-27.

VOSGERAU, D. S. R; ROMANOWSKI, J. P.Estudos de revisão: implicações conceituais e


metodológicas. Rev. Diálogo Educ., Curitiba, v. 14, n. 41, p. 165-189, jan./abr. 2014.

~ 164 ~
O DIREITO DE ASILO ENQUANTO INTEGRANTE DO ROL DE
DIREITOS HUMANOS E O REFÚGIO COMO DIREITO

Liliana Lyra Jubilut


Rosilandy Carina Candido Lapa
Tainara Gomes Penedo

INTRODUÇÃO

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é o marco inicial da


arquitetura do sistema internacional contemporâneo de proteção da pessoa humana.
Resultando das violações de direitos humanos cometidas durante a Segunda Guerra
Mundial (PIOVESAN, 2012, p. 122), ela é um marco da reconstrução dos direitos
humanos após a ruptura trazida por esse conflito (LAFER, 1999) e traz as diretrizes, os
princípios e a gramática do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Apesar de não ter sido adotada como um documento juridicamente vinculante –
uma vez que é uma Declaração (no caso, um ato unilateral de Organização Internacional) –
a DUDH foi se consolidando no Direito Internacional, tendo hoje ao menos força de
costume internacional (e, portanto, vinculante), ou até mesmo de jus cogens (ou seja, de
direito cogente e aplicado erga omnes) (JUBILUT & MONACO, 2010 p. 90).
A DUDH traz um rol de direitos considerados basilares na proteção da dignidade
da pessoa humana, entre eles o direito de asilo em seu artigo XIV; consagrando, assim,
direito que permeia a história da humanidade desde a Antiguidade e assegura proteção a
pessoas em situação de perseguição indevida.

Liliana Lyra Jubilut é Doutora e Mestre em Direito Internacional pela USP, tem LLM em International Legal
Studies pela NYU School of Law, foi Visiting Scholar na Columbia Law School e Visiting Fellow na Refugee Law
Initiative da Universidade de Londres. É Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Católica de Santos, onde coordena o Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos e
Vulnerabilidades” e a Cátedra Sérgio Vieira de Mello. Trabalha desde 1999 com a temática dos refugiados,
tendo sido Advogada/Oficial de Proteção no Centro de Referência para Refugiados da Caritas
Arquidiocesana de São Paulo e Consultora do ACNUR-Brasil. É membro de projetos de pesquisa nacionais e
internacionais e integra o Migration Research Leaders Syndicate da OIM. (lljubilut@gmail.com)

Rosilandy Carina Candido Lapa é Mestranda em Direito Internacional na Universidade Católica de Santos.
É integrante do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos e Vulnerabilidades” e Membro da Cátedra Sérgio
Vieira de Mello. (roselapa@outlook.com)

Tainara Gomes Penedo é Mestranda em Direito Internacional na Universidade Católica de Santos. É
integrante do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos e Vulnerabilidades” e Membro da Cátedra Sérgio Vieira
de Mello. (tainarapenedo@hotmail.com)

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Direitos Humanos & Fundamentais

A DUDH inclui direitos de primeira e segunda dimensões127, mas não aponta


mecanismos de efetivação e implementação desses direitos humanos. É nesse sentido que
surgem as principais críticas em relação à DUDH.
Diante disso, em um texto sobre o direito de asilo em um livro sobre a DUDH
torna-se relevante analisar quais seriam as suas formas de implementação. Assim, o
presente capítulo propõe descrever o direito de asilo, em suas características básicas e com
sua base jurídica universal na DUDH, destacando, dessa forma, seu caráter de integrante
do rol de direitos humanos, e, na sequência apontar as modalidades pelas quais ele tem sido
implementado: o asilo político e o refúgio. Ao final, retoma-se o debate sobre a base
jurídica do direito de asilo focando a questão do refúgio enquanto direito.

1. O DIREITO DE ASILO NA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS


HUMANOS

O direito de asilo pode ser entendido como o direito de toda pessoa de estar livre
de qualquer forma de perseguição (PIOVESAN, 2015, p. 249); “é uma forma de extensão
da proteção que o Estado confere aos seus nacionais para pessoas de outras nacionalidades,
que (...), precisam buscar fora do seu país de origem a proteção que ali não está sendo
assegurada” (MEDEIROS, 2015, p. 16).
O asilo tem sua gênese no altruísmo (JUBILUT, 2007, p. 35) e foi adotado,
primeiramente, na Antiguidade clássica, entre os gregos e os egípcios, que se limitavam a
concedê-lo por questões religiosas (Ibid, p. 37). Com o surgimento do Império Romano, as
hipóteses de concessão do asilo foram ampliadas, assumindo o mesmo caráter jurídico e
passando a ser admitido como proteção à liberdade individual (Ibid, p. 37). Essa tendência
seguiu delineando o asilo, com a ressalva do período da Idade Média, em que as motivações
religiosas tornaram a prevalecer em sua aplicação (Ibid, p. 37).
Séculos depois, Hugo Grotius desenvolveu a teoria do asilo (Ibid, p. 38), segundo
a qual apenas poderiam gozar do asilo indivíduos perseguidos por motivos políticos ou
religiosos, e aqueles que cometessem outros delitos não poderiam invocá-lo (MEDEIROS,
2015, p. 20). Nesse sentido tem-se que

[s]e o contrário fosse verdade, o direito de asilo estaria burlando a lei e


acobertando criminosos, visto que estes poderiam estar protegidos em Estados

127Alguns apontariam ainda a existência de direitos de terceira dimensão, como por exemplo a garantia de
ordens internacionais e sociais adequadas previstas no artigo 28.

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Direitos Humanos & Fundamentais

nos quais se encontrassem asilados e, assim, impedindo que o Estado onde


cometeram seus respectivos crimes os punissem (Ibid, p. 20).

A despeito disso, até o final do século XVII, o asilo era concedido a criminosos
comuns que podiam se utilizar do instituto para fugas dos Estados de origem (Ibid, p. 20).
A fim de se corrigir tal desvio, as propostas de Hugo Grotius foram lentamente aceitas até
que não mais se admitisse o asilo por crimes comuns e se entendesse pela devolução dos
fugitivos aos Estados em que cometeram os delitos (Ibid, p. 20).
Somente em 1793, com a edição da Constituição da França, fruto da Revolução
de 1789, o asilo restou contemplado em uma norma constitucional (FISCHEL DE
ANDRADE, 1996, p. 16). Tal movimento, calcado em ideais liberais, em muito contribuiu
para a consolidação do asilo enquanto um direito (JUBILUT, 2007, p. 38).
A consagração universal desse direito ocorreu em 1948 com a adoção da DUDH,
proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 10 de dezembro128.
Composta por 30 artigos, e como mencionado, matriz do surgimento do regime
internacional de proteção da pessoa humana, e parâmetro de aplicação e proteção dos
direitos humanos, a DUDH contemplou, especificamente no artigo XIV, o direito de asilo:

Artigo XIV – 1. Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e


de beneficiar de asilo em outros países. 2. Este direito não pode, porém, ser
invocado no caso de processo realmente existente por crime de direito comum
ou por atividades contrárias aos fins e aos princípios das Nações Unidas.

A adoção da DUDH, com a previsão do asilo, entre outros direitos, se fez


necessária em decorrência das consequências da Segunda Guerra Mundial e da busca de se
elevar o asilo à categoria de um direito humano universalmente reconhecido (JUBILUT,
2007, p. 40). De fato, as atrocidades cometidas a Segunda Guerra Mundial geraram
movimentos massivos de deslocamento forçado e demonstraram a imprescindibilidade da
consagração do asilo como integrante do rol de direitos humanos (EDWARDS, 2005, p.
296).
Nas versões iniciais do texto da DUDH, mormente nas denominadas Humphrey
e Cassin 129, ambas de junho de 1947, o direito de asilo já aparecia, ainda que limitado a
“refugiados políticos” e sendo um direito do Estado (JUBILUT, 2007, p. 40):

128 Importante destacar que, em momento anterior, documentos regionais, especialmente na América Latina,

já traziam em seu teor normas sobre o direito de asilo, tais quais as Convenções sobre Asilo (1928),
Convenção sobre Asilo Político (1933) e Convenção sobre Asilo Político (1939).
129 Os textos das versões da DUDH mencionados se baseiam na tradução livre dos artigos citados em

GLENDON, M. A. A world made new – Eleanor Roosevelt and the Universal Declaration of Human Rights. New York:
Random House, 2001.

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Artigo 34 - Todo Estado deve ter o direito de conceder asilo a refugiados


políticos.

Na versão da Comissão de Direitos Humanos, de novembro de 1947, o direito de


asilo deixou de ser do Estado e tornou-se do indivíduo (JUBILUT, 2007, p. 40), porém
com a supremacia dos interesses estatais no sentido de que o asilo seria assegurado
somente se o Estado o concedesse (Ibid, p. 40):

Artigo 14 – Todos têm o direito de escapar de perseguições política, ideológica


ou em função de preconceito racial por meio de refúgio no território de
qualquer Estado que esteja disposto a lhes conceder asilo.

Na proposta seguinte, conhecida como a versão de Genebra, de dezembro de


1947, o direito individual de ter o asilo concedido foi mantido, porém com algumas
restrições, quais sejam, a não concessão a criminosos e a atos contrários a princípios e
propósitos da Organização das Nações Unidas (JUBILUT, 2007, p. 41):

Artigo 11 - Todos têm o direito de buscar asilo em função de perseguição e de


tê-lo concedido. Tal direito não será concedido a criminosos e àqueles cujos atos
são contrários aos princípios e propósitos das Nações Unidas.

A perspectiva da versão de Genebra foi conservada na versão Lake Success, de


junho de 1948:
Artigo 12 - 1. Todos têm o direito de buscar asilo em função de perseguição, em
outros países. 2. Persecuções decorrentes de crimes não políticos e de atos
contrários aos propósitos das Nações Unidas não constituem perseguição.

Contudo, na versão final da DUDH, no que é hoje o artigo XVI de seu texto, tal
abordagem foi alterada, resultando na ampliação da proteção uma vez que: “[n]o mínimo, o
artigo 14 coloca o direito de buscar e de obter asilo dentro do paradigma dos direitos
humanos e representa aceitação unânime pelos Estados de sua importância fundamental”130
(EDWARDS, 2005, p. 298).
Com o advento da DUDH, outros diplomas internacionais, de abrangência
universal, trataram da regulamentação e implementação do direito de asilo, como a
Declaração sobre Asilo Territorial (1967) 131 e a Declaração e Programa de Ação de Viena

130 No original: “At a minimum, Article 14 places the right to seek and to enjoy asylum within the human rights paradigm
and represents unanimous acceptance by States of its fundamental importance.” (EDWARDS, 2005, p. 298)(tradução livre
das autoras)
131 Disponível em:

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(1993)132. Documentos regionais, sobretudo na América Latina, também reconheceram o


direito de asilo, tais como a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem
(1948)133 e a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) 134.
Em alguns casos, inclusive, a proteção assegurada na América Latina é mais ampla
do que a da DUDH, uma vez que não focam apenas no direito de gozo mas também no
direito de obter o asilo; ou seja, geram obrigações internacionais de respeito e efetivação do
direito de asilo (JUBILUT, 2007, p. 39).

2. O DIREITO DE ASILO COMO DIREITO HUMANO

A inserção do direito de asilo na DUDH já denota, em si mesma, a sua


configuração enquanto integrante do rol de direitos humanos. Ademais, entendendo-se os
direitos humanos como “um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida

<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Refugiados-Asilos-Nacionalidades-e-
Ap%C3%A1tridas/declaracao-sobre-asilo-territorial.html>. Acesso em: 15/11/2017.
132 Cf. “Art. 23 - A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma que todos, sem distinção de

qualquer espécie, têm o direito de procurar e obter, noutros países, asilo contra as perseguições de que sejam
alvo, bem como o direito de regressar ao seu próprio país. A este respeito, realça a importância da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, da Convenção de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados e seu
Protocolo de 1967, e de instrumentos de âmbito regional. Exprime o seu reconhecimento aos Estados que
continuam a aceitar e a acolher um elevado número de refugiados nos seus territórios, e ao Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados pela dedicação demonstrada no cumprimento da sua missão.
Expressa, igualmente, o seu apreço à Agência de Obras Públicas e Assistência aos Refugiados Palestinos no
Próximo Oriente. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reconhece que as violações graves dos
Direitos Humanos, nomeadamente em casos de conflito armado, se encontram entre os múltiplos e
complexos fatores que conduzem à deslocação de pessoas. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos
reconhece que, face às complexidades da crise global de refugiados e conforme à Carta das Nações Unidas,
aos relevantes instrumentos internacionais e à solidariedade internacional, e num espírito de partilha de
responsabilidades, se torna necessária uma abordagem global por parte da comunidade internacional, em
coordenação e cooperação com os países afetados e com as organizações relevantes, tendo presente o
mandato do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Tal deverá incluir o desenvolvimento
de estratégias para abordar as causas remotas e os efeitos das movimentações de refugiados e outras pessoas
deslocadas, o reforço de mecanismos de alerta e resposta em caso de emergência, a disponibilização de
proteção e assistência efetivas, tendo presentes as necessidades especiais das mulheres e crianças, bem como a
obtenção de soluções duradouras, primeiramente através da solução preferível do repatriamento voluntário
dignificante e seguro, e incluindo soluções tais como as adotadas pelas conferências internacionais sobre
refugiados. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos sublinha as responsabilidades dos Estados,
particularmente as que se relacionam com os países de origem. À luz da abordagem global, a Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos realça a importância de se dar especial atenção, inclusivamente através de
organizações intergovernamentais e humanitárias, e de se encontrarem soluções duradouras para as questões
relacionadas com pessoas internamente deslocadas, incluindo o seu regresso voluntário e seguro e a sua
reabilitação. Em conformidade com a Carta das Nações Unidas e os princípios de Direito Humanitário, a
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos realça ainda a importância e a necessidade da assistência
humanitária às vítimas de todas as catástrofes, quer naturais quer causadas pelo ser humano”.
133 Cf. “Art. 27 - Toda pessoa tem o direito de procurar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de

perseguição que não seja motivada por delitos de direito Comum, e de acordo com a legislação de cada país e
com os convênios Internacionais”.
134 Cf. “Art. 22 (7) - Toda pessoa tem o direito de buscar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de

perseguição por delitos políticos ou comuns conexos com delitos políticos e de acordo com a legislação de
cada Estado e com os convênios internacionais”.

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humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade” (RAMOS, 2014, p. 24), e o direito de


asilo assegurando tais bases para às vítimas de perseguições indevidas, tal tese vê-se
reforçada.
Além disso, o direito de asilo é um direito individual, decorrente da inerente
dignidade de cada ser humano, e criado em virtude da necessidade de proteção daqueles
que são perseguidos. Logo, tem por objeto a proteção dos indivíduos, o que destaca ainda
mais sua natureza enquanto integrante do rol de direitos humanos.
O direito de asilo pode ser considerado um direito humano em si, mas também
um instrumento de proteção de outros direitos (ou seja, um direito instrumental), uma vez
que:

Quando pessoas têm que abandonar seus lares para escapar de uma perseguição,
toda uma série de direitos humanos é violada, inclusive o direito à vida, liberdade e
segurança pessoal, o direito de não ser submetido à tortura, o direito à privacidade e
à vida familiar, o direito à liberdade de movimento e residência e o direito de não
ser submetido a exílio arbitrário (PIOVESAN, 2015, p. 249).

Em sendo o asilo tanto um direito, quanto um direito humano, é relevante


destacar que suas violações são afrontas ao Direito Internacional e são passíveis de
responsabilização internacional.
É pacífico que os Estados devem observar, por exemplo, o non-refoulement,
princípio oriundo do Direito Internacional dos Refugiados, e, portanto, do direito de asilo,
e segundo o qual estão impedidos de devolverem pessoas a um país em que seus direitos à
vida e à liberdade sejam violados (PIOVESAN, 2015, p. 262-265)135.
Esta responsabilidade estatal guarda estreita relação com o direito de gozar asilo,
uma vez que:

[e]m contraste com o direito de pedir asilo, o direito de beneficiar de asilo


sugere, no mínimo, um direito de "se beneficiar" do asilo. Embora um Estado
não seja obrigado a conceder asilo, um indivíduo, uma vez admitido no
território, tem o direito de "goza-lo". De acordo com um relatório da ONU, o
"asilo" consiste em vários elementos: admitir uma pessoa no território de um
Estado, permitir que a pessoa permaneça lá, recusar-se a expulsar, recusar-se a
extraditar e a não processar, punir ou restringir a liberdade da pessoa136.
(EDWARDS, 2005, p. 302-303)

135 É interessante notar que o non-refoulement encontra corolários em outros regimes de proteção de direitos
humanos, como, por exemplo, no de proteção contra a tortura (artigo 3º da Convenção contra a Tortura e
outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes).
136 No original: “In contrast to the right to seek asylum, the right to enjoy asylum suggests at a minimum a right ‘to benefit

from’ asylum. While a State is not obligated to grant asylum, an individual, once admitted to the territory, is entitled ‘to enjoy’ it.
According to a UN report, ‘asylum’ consists of several elements: to admit a person to the territory of a State, to allow the person
to remain there, to refuse to expel, to refuse to extradite and not to prosecute, punish or otherwise restrict the person’s liberty”.
(EDWARDS, 2005, p. 302-303)

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O direito de asilo é, assim, (i) um direito, (ii) reconhecido universalmente, (iii)


integrante do rol de direitos humanos, (iv) do qual derivam obrigações aos Estados, e (v) de
cuja violação resultam ilícitos internacionais. É relevante, dessa forma, verificar como pode
se dar sua implementação.

3. OS INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO DE ASILO

O direito de asilo é efetivado por meio de dois institutos: o asilo político (que, por
sua vez, se subdivide em asilo diplomático e territorial) e o refúgio (JUBILUT, 2007, p. 36).
É possível afirmar que o direito de asilo seria o gênero, enquanto o asilo político e o
refúgio, as espécies (Ibid, p. 50; MEDEIROS, 2015, p. 32).
O refúgio é objeto de um regime internacional universal desde a década de 1950 e
é atualmente entendido como um direito em si; enquanto o asilo político é uma decisão
estatal soberana e discricionária. Cada Estado opta em adotar uma ou outra, ou ainda as
duas, modalidade do direito de asilo. Também opta sobre como o consagrará em seu
ordenamento interno; contudo, uma vez que se obriga com uma prática protetiva, ainda
que por meio do asilo político, deve zelar por sua adequada implementação.
O asilo político e o refúgio apresentam algumas similaridades. Ambos podem ser
entendidos como instrumentos de proteção humanitária internacional tendo essa natureza
em comum (JUBILUT, 2007; MEDEIROS, 2015). Ainda, decorrem da necessidade de
proteção de indivíduos que não possam mais se manter em seu Estado de origem e
precisem se deslocar a outro local. (JUBILUT, 2007; MEDEIROS, 2015, p. 54 e 110).
Além disso, os dois institutos se fundam na cooperação internacional e na solidariedade, e
implicam, na prática, em limitações às possibilidades de saída compulsória do indivíduo do
Estado em que se encontrem (JUBILUT, 2007, p. 49).
Contudo, tais institutos possuem características específicas e não se confundem,
sendo relevante detalhar suas peculiaridades.

3.1. Asilo político - asilo diplomático e asilo territorial

Pelo instituto do asilo político “um Estado tem o poder discricionário de


conceder proteção a qualquer pessoa que se encontre sob sua jurisdição” (Ibid, p. 38),
sendo certo que, hodiernamente, denomina-se asilo político, porquanto concedido a

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indivíduos perseguidos por razões políticas, e subdivide-se em asilo territorial e asilo


diplomático (Ibid, p. 36; MEDEIROS, 2015, p. 16).
O asilo territorial pode ser conceituado como “aquele buscado pelo solicitante
dentro do território do Estado em que ele deseja receber a proteção” (MEDEIROS, 2015,
p. 32), sendo indispensável a presença física do indivíduo no Estado do qual pretende a
concessão do asilo para realizar a devida solicitação.
Em contrapartida, no asilo diplomático, é prescindível que o solicitante esteja
dentro do território do Estado asilante, bastando que esteja em um local sob sua proteção.
É aquele “concedido em extensões do território do Estado solicitado como, por exemplo,
em embaixadas, ou em navios, ou aviões da bandeira do Estado” (JUBILUT, 2007, p. 38).
Alguns defendem que o asilo diplomático é concedido em caráter de urgência:

Muitas vezes, a pessoa que está sendo alvo de perseguição por delitos de
natureza política, e precisa recorrer à proteção de outro Estado, ainda se
encontra no local onde a perseguição está sendo realizada, carecendo, assim, de
um lugar onde possa ficar protegida dessas ações até que ocorra a transferência
para o local onde ela gozará do asilo concedido. (MEDEIROS, 2015, p. 35)

Mais do que isso, há quem entenda que o asilo diplomático não implica,
obrigatoriamente, na concessão de asilo territorial, tendo em vista que um Estado pode
concedê-lo apenas para proteção de um indivíduo que careça de segurança emergencial e
negar a entrada ou estada em seu território (BARRETO, s/d; MEDEIROS, 2015, p. 35).
Todavia, esta concepção encontra resistência, porquanto não é coerente conceder
o asilo diplomático e negar o territorial; entendendo-se aquele como etapa de “preparação”
para esse. Nesse sentido, no caso da concessão de asilo diplomático pelo Brasil ao senador
boliviano Roger Pinto Molina, foi apontado que “tendo o Brasil reconhecido a sua
condição de perseguido por motivos de delitos políticos, seria juridicamente inconsistente
venire contra factum proprium e não lhe conceder asilo territorial” (LAFER, 2013).
Merece destaque o fato de que o asilo político tem tido maior aplicabilidade no
continente latino-americano137, notadamente em razão da instabilidade política observada
nos Estados que o compõe e nas perseguições que, por conseguinte, acontecem a nacionais
(MEDEIROS, 2015, p. 34). São diversos os diplomas adotados na região sobre o tema,
como a Convenção sobre Asilo (1928), Convenção sobre Asilo Político (1933), Declaração

137 Contudo é relevante mencionar casos que ganharam destaque internacional e que não se limitam
exclusivamente à América Latina como o de Edward Snowden (envolvendo um nacional dos Estados Unidos
que obteve proteção internacional na Rússia) e o de Julian Assange (envolvendo um nacional da Austrália,
que obteve proteção internacional contra um pedido de extradição da Suécia na Embaixada do Equador no
Reino Unido).

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Direitos Humanos & Fundamentais

dos Direitos e Deveres do Homem sobre asilo territorial (1948), Convenção sobre Asilo
Político (1939) e Convenção sobre Asilo Diplomático (1954).
Tais documentos positivaram o direito de asilo, tanto territorial quanto
diplomático, no contexto latino-americano e, dentre outras previsões, reconhecem que o
asilo pode ser concedido independente da nacionalidade do solicitante e da existência de
reciprocidade138, inadmitem a devolução do asilado ao Estado do qual se retirou, pelo
princípio do non-refoulement139 e versam sobre a garantia de salvo-conduto140 pelo Estado
territorial141.
O único caso julgado pela Corte Internacional de Justiça sobre o tema é
decorrente da América Latina. Trata-se do caso relativo ao asilo do peruano Victor Raúl
Haya de la Torre, de 1950142, no que pode ser entendido como o reconhecimento inclusive
de um “direito regional de asilo”.
Com efeito, Haya de la Torre foi chefe da Aliança Popular Revolucionária
Americana, partido político peruano e solicitou asilo ao embaixador colombiano em Lima,
na data de 3 de janeiro de 1949. Ele era acusado de instigar uma rebelião militar, isto é,
praticar um crime comum, fato que, se comprovado, impediria o gozo do direito de asilo
(JUBILUT, 2007, p. 98). Nesse sentido, o Peru se absteve de emitir salvo-conduto
autorizando a saída de Haya de la Torre de seu território, e cercou a embaixada colombiana
a fim de efetuar a prisão do mesmo. Não tendo havido consenso entre os Estados
envolvidos sobre como solucionar a questão, a problemática foi levada à CIJ. A CIJ (i)
julgou que a Colômbia havia interpretado erroneamente a Convenção sobre asilo (de 1928)
na qual se baseara para conceder a proteção, (ii) entendeu que, não se tratava de crime

138 Cf., por exemplo, “Art. 1 - El asilo puede concederse sin distinción de nacionalidad y sin perjuicio de los derechos y de las
obligaciones de protección que incumben al Estado al que pertenezcan los asilados. El Estado que acuerde el asilo no contrae por
ese hecho el deber de admitir en su territorio a los asilados, salvo el caso de que estos no fueran recibidos por otros Estados”
(CONVENÇÃO SOBRE ASILO POLÍTICO, 1939) e “Art. 20 - O asilo diplomático não estará sujeito à
reciprocidade. Toda pessoa, seja qual for sua nacionalidade, pode estar sob proteção” (CONVENÇÃO
SOBRE ASILO DIPLOMÁTICO, 1954).
139Cf., por exemplo, “Art. 7 - Una vez salidos del Estado, los asilados no podrán ser desembarcados en punto alguno del

mismo. En el caso de que un exilado volviera a ese país, no podrá acordársele nuevo asilo, subsistiendo la perturbación que
motivó la concesión del mismo” (CONVENÇÃO SOBRE ASILO POLÍTICO, 1939) e “Art. 17 - Efetuada a saída
do asilado, o Estado asilante não é obrigado a conceder-lhe permanência no seu território; mas não o poderá
mandar de volta ao seu país de origem, salvo por vontade expressa do asilado” (CONVENÇÃO SOBRE
ASILO DIPLOMÁTICO, 1954)
140 O salvo-conduto é uma autorização legal que permite a seu portador o livre trânsito em determinados

locais. Em geral, no caso do asilo, trata-se de uma autorização que permite a saída do território do Estado em
que a pessoa se encontra.
141 Cf., por exemplo, “Art. 12 - Concedido o asilo, o Estado asilante pode pedir a saída do asilado para

território estrangeiro, sendo o Estado territorial obrigado a conceder imediatamente, salvo caso de força
maior, as garantias necessárias a que se refere o Artigo V e o correspondente salvo-
conduto” (CONVENÇÃO SOBRE ASILO DIPLOMÁTICO, 1954)
142 Dados sobre o caso pode ser encontrados em: <http://www.icj-cij.org/en/case/7>. Um segundo

julgamento pode ser encontrado em: <http://www.icj-cij.org/en/case/14>.

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Direitos Humanos & Fundamentais

comum permitindo, portanto, a aplicação do direito de asilo, (iii) mas apontou que os
requisitos para a determinação da urgência (e, por conseguinte, para a aplicação da
Convenção de Havana) não foram atendidos o que leva a conclusão de que o Peru não
estaria obrigado a concedê-lo (JUBILUT, 2007, p. 99). Desse modo, o caso não foi
solucionado pela sentença. A CIJ foi criticada por ter proferido decisão contraditória e
inexequível, porquanto deixou de reconhecer a aplicabilidade do asilo na conjuntura latino-
americana (Ibid), e o asilado se manteve na embaixada colombiana até 1954, quando foi
celebrado um acordo em que restou definido que Haya de la Torre seria devolvido aos
peruanos, para cassação da cidadania, mas libertado para asilar-se em outro país, no caso, o
México (JUBILUT, 2007, p. 99). Nesse mesmo ano, foi editada a Convenção sobre Asilo
Diplomático (1954), em Caracas, da qual constou a obrigatoriedade de o Estado territorial
conceder salvo-conduto nas hipóteses de asilo diplomático (MEDEIROS, 2015, p. 36).
Evoluiu-se, assim, com a positivação do direito de asilo, sobretudo na América
Latina. Contudo, o instituto continua tendo sua concessão baseada na discricionariedade
dos Estados, o que diminui a abrangência de proteção que ele pode proporcionar. Isso
resta claro, sobretudo, quando o número de pessoas necessitando de proteção internacional
é significativo, e muitas vezes quando o perfil das mesmas não é de alta importância
política. Nesse sentido, foi necessário estabelecer um outro instituto, fundado em um
direito e não em uma concessão discricionária de proteção a pessoas em situação de
perseguição (especialmente em função dos movimentos das mesmas no início do século
XX (FISCHEL DE ANDRADE, 1996)), criando-se, desta feita, o instituto do refúgio.

3.2. Refúgio

O segundo instituto que efetiva o direito de asilo é o refúgio, que surge no cenário
normativo internacional no século XX, devido ao número expressivo de deslocamentos
além-fronteiras, causados pela Revolução Russa, Primeira e Segunda Guerras Mundiais
(JAEGER, 2001, p. 727). Mas também por conflitos que ocorreram antes e durante a
Primeira Guerra Mundial, como as Guerras Balcânicas (1912-1913), do Cáucaso (1918-
1921) e Greco-Turca (1919-1922) que causaram distúrbios no então Império Russo
ocasionando o deslocamento de aproximadamente 2 milhões de pessoas para vários
Estados da Europa e Ásia menor entre 1918 e 1922 (Ibid); além de eventos trágicos
envolvendo perseguição do Império Turco-Otomano a comunidades étnico-religiosas, a

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Direitos Humanos & Fundamentais

exemplo dos Armênios e Curdos (1915-1917), e contribuíram para o deslocamento


massivo dessas comunidades (Ibid).
A assistência humanitária a essas pessoas foi providenciada em um primeiro
momento por organizações não governamentais, mas que, sozinhas, não conseguiam
atender as necessidades dos milhões de refugiados, deslocados internos e apátridas,
especialmente nas questões que iam além do cuidado médico, envolvendo realocação ou
perda da nacionalidade após a dissolução de Estados (UNOG, 2017, p.10). Em função
disso, o tema passou a ser debatido no âmbito de as Organizações Internacionais.
Estas organizações iniciaram discussões sobre a situação, primeiramente
destacando a importância da formação de um Alto Comissariado para definir o conceito de
refugiado, uma vez que:

as fontes estavam ficando exauridas, e não havia um órgão central de


coordenação. Nestas circunstâncias, o Comitê Misto do Comitê Internacional da
Cruz Vermelha e da Sociedade da Cruz Vermelha convocou uma conferência
com as principais organizações interessadas [incluindo a Liga das Nações] em 16
de fevereiro de 1921, na qual foi decidido convidar o Conselho a nomear um
Alto Comissariado para definir o status de refugiado, assegurar a sua repatriação
ou o seu emprego fora da Rússia e coordenar medidas para a sua assistência. A
proposta foi recebida pelo Conselho [da Liga das Nações] em 21 de fevereiro de
1921 e os Estados-Membros tomaram conhecimento da viabilidade da
cooperação internacional e das formas para a sua realização. Em 27 de junho, o
Conselho considerou as respostas recebidas, adotaram a proposta original em
princípio e encarregaram o Secretariado Conselho [da Liga das Nações] de fazer
uma investigação preliminar. A nomeação de um Alto Comissário foi deixada à
discrição do presidente do Conselho Conselho [da Liga das Nações]. Dr.
Fridtjof Nansen aceitou o cargo em 1 de setembro de 1921 143. (SIMPSON,
1939, p. 199).

Assim, durante o mandato da Liga das Nações, surgiu a primeira estrutura


internacional para a proteção aos refugiados: The Nansen Internacional Office for Refugees (1931-
1938) (JEAGER, 2001, p. 729). A partir de reuniões iniciadas em 1922, russos e armênios
foram reconhecidos como refugiados, obtendo documentação que os identificasse como tal
(Ibid).

143 No original: “[r]esources were becoming exhausted, and there was no central co-ordinating body. In these circumstances the
Joint Committee of the International Committee of the Red Cross and the League of Red Cross Societies called a conference of the
principal organizations concerned on 16 February 1921,at which it was decided to invite the Council to appoint a High
Commissioner to define the status of refugees, to secure their repatriation or their employment outside Russia, and to coordinate
measures for their assistance. The proposal was received by the Council on 21 February 1921,and States Members were sounded
on the feasibility of international co-operation and the forms it should take. On 27 June the Council considered the replies
received, they adopted the original proposal in principle, and instructed the Secretariat to make some preliminary investigation.
The appointment of a High Commissioner was left to the discretion of the President of the Council. Dr. Fridtjof Nansen accepted
the commission on 1 September 1921”. (tradução livre das autoras)

~ 175 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A elaboração da Convention Relating to the International Status of Refugees (1933)144 fez


com que os Estados reconhecessem suas obrigações com relação aos refugiados russos,
armênios e assimilados. Posteriormente, o benefício foi estendido aos Austríacos.
Com a ocorrência da Segunda Guerra Mundial surgiram novamente ondas de
deslocamentos massivos transfronteiriços: durante o conflito estima-se a existência de 40,5
milhões de refugiados (HOBSBAWN, 1995, p. 57-58), e ao final de 1951, computavam-se
ao menos 2 milhões de refugiados registrados na Europa145.
Em face disso, em 1950 foi estabelecido o Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados (ACNUR), e, em 1951, foi elaborada a Convenção sobre o Status dos Refugiados
(Convenção de 51)146, considerada a base normativa universal do instituto do refúgio, uma
vez que (i) determinou diretrizes do conceito de refugiado, (ii) consagrou o non-refoulement
(princípio basilar do Direito Internacional dos Refugiados), e (iii) destacou direitos dos
refugiados. A partir desse documento, entende-se como refugiados as pessoas que:

Art.1° 2) Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de


janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua
nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da
proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país
no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos,
não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.

A Convenção de 51 reservava-se geograficamente aos refugiados na Europa, e


permitia reserva temporal relativa aos acontecimentos ocorridos antes de janeiro de 1951,
limitando a aplicação prática do conceito de refugiado. A fim de sanar tal limitação, a
revisão da abrangência trazido pela Convenção de 51 ocorreu em 1967, com a criação do
Protocolo sobre o Status dos Refugiados147, de 1967 (Protocolo de 67), que indicou logo em seu
preâmbulo que “todos os refugiados abrangidos na definição da Convenção,
independentemente do prazo de 1° de janeiro de 1951, possam gozar de igual estatuto”, ou
seja removendo a reserva temporal prevista na Convenção de 51 e, consequentemente
ampliando a proteção.

144 Disponível em: < http://www.refworld.org/docid/3dd8cf374>. Acesso em: 15/11/2017.


145 Cf., por exemplo, dados disponíveis em: <http://popstats.unhcr.org/en/overview>.
146 Disponível em:
<http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos
_Refugiados.pdf >. Acesso em: 15/11/2017.
147 Disponível em:
<http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Protocolo_de_1967_Relativo_ao_Est
atuto_dos_Refugiados.pdf>. Acesso em: 15/11/2017.

~ 176 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Tal extensão da proteção continuou com iniciativas regionais, a exemplo da


Convenção Relativa aos Aspectos Específicos dos Refugiados Africanos (1969), que inseriu a “grave
perturbação da ordem pública” como fundamento para conferir proteção, e da Declaração de
Cartagena (1984) que inclui a “violência generalizada ou violação maciça dos Direitos
Humanos”. Estes conceitos se acrescem ao conceito universal estabelecido pela Convenção
de 51 revisada pelo Protocolo de 67, apenas tornando mais ampla a proteção.
Uma vez definidos os conceitos de refugiado, é preciso tratar dos direitos que a
eles se aplicam. Dentro da concepção do regime internacional de proteção aos refugiados,
constam direitos gerais e específicos. Aqueles correspondem aos direitos humanos que se
aplicam a todas as pessoas independentemente de sua condição: decorrem da inerente
dignidade humana presente em todas as pessoas, e têm sua titularidade ligada tão somente à
própria condição humana. No caso dos direitos específicos à situação dos refugiados,
destacam-se o non-refoulement, os relativos à determinação do status de refugiado148 e
delimitações acerca de direitos gerais durante a condição de refugiados.
O non-refoulement pode ser concebido como uma premissa básica para o
cumprimento do direito ao pedido de refúgio; como uma garantia de não expulsão pelo
Estado de asilo, que deve acolher o solicitante de refúgio durante o devido processo legal
para o seu reconhecimento (UNHCR, 1977). Tal direito já constava do regime
internacional de proteção aos refugiados, desde a época de atuação da Liga das Nações,
tendo sido adotado pela mencionada Convenção de 1933 149; e consagrado novamente na
Convenção de 51.
Na Convenção de 51, o princípio é reconhecido pelos Estados, não sendo
facultativa ou opcional a adesão a este ponto específico. Ele encontra-se no artigo 33:

Art.33º Nenhum dos Estados Membros expulsará ou rechaçará, de maneira


alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a
sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua
nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas.

A determinação do status de refugiado consiste na adoção de um processo


individual específico pelo Estado asilante para avaliar o pleito do solicitante de refúgio, em
que se faz a subsunção do caso específico com as definições da Convenção de 51 e
Protocolo de 67. Cada Estado estabelece o seu procedimento interno dentro de um padrão

148 A determinação da condição de refugiado é conhecida pela sigla em inglês “RSD”.


149Cf. “Art. 3° Each of the Contracting Parties undertakes not to remove or keep from its territory by application of police
measures, such as expulsions or non-admittance at the frontier (refoulement), refugees who have been authorized to reside there
regularly, unless the said measures are dictated by reasons of national security or public order. It undertakes in any case not to
refuse entry to refugees at the frontier of their countries of origin”.

~ 177 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

mínimo recomendado pelo ACNUR150. Diferente dos instrumentos de proteção da Liga


das Nações, que visavam o reconhecimento da condição de refúgio a partir de verificação
coletiva, a Convenção de 51 institui o processo individual (FISCHEL DE ANDRADE,
1996).
Sobre o gozo de direitos enquanto a pessoa se encontra em situação de refúgio, a
Convenção de 51 é bastante eclética trazendo normas sobre propriedade, profissões, direito
de associação, bem-estar, liberdade de locomoção e relacionamento com o Estado asilante,
entre outros.
É importante destacar que a Convenção de 51 é um instrumento vinculante, da
qual, por um lado decorrem direitos específicos, e, que por outro, determina a natureza
jurídica do refúgio enquanto um direito em si.

3.3 O refúgio como direito

Atualmente, há 22,5 milhões de refugiados no mundo, e 2,8 milhões de


solicitantes de refúgio (UNHCR, 2017, p. 2). Aproximadamente 4.010.962 milhões de
pessoas estão confinadas em acampamentos, grande parte há mais de cinco anos (Ibid,
2016) em um limbo duradouro. Lembrando que por trás de cada um desses números
encontra-se uma pessoa com necessidade de proteção, verifica-se a contínua relevância do
tema. Contudo, e apesar do exposto até aqui, há ainda debates sobre a natureza jurídica do
refúgio e se o mesmo pode ser considerado um direito ou se os Estados teriam
discricionariedade em sua ampliação, assim como têm no caso do asilo político.
Tal tema ganha ainda mais destaque com o ressurgimento de regimes
conservadores, que, pautados pelo discurso da segurança nacional e risco de instabilidade
econômica e social, tentam justificar a criação de políticas migratórias excludentes.
Em alguns casos, verificam-se tentativas de negar o refúgio enquanto um direito, e
em outros de encontrar formas de justificar violações, sobretudo do non-refoulement, por
meio de defesas pautadas na não aplicação do mesmo ao caso concreto.
Exemplos dessa última prática são as realizações de push backs (BETTS, 2009, p.
13), que consistem em, utilizando barreiras físicas tais como muros, exército e outras
táticas, impedir a entrada de refugiados em um território ou de devolução forçada dos

150 Estes padrões podem ser observados, por exemplo, no “Manual de procedimentos e critérios para a

determinação da condição de refugiados” do ACNUR (disponível em:


<http://www.acnur.org/fileadmin/scripts/doc.php?file=fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/20
13/Manual_de_procedimentos_e_criterios_para_a_determinacao_da_condicao_de_refugiado>. Acesso em:
15/11/2017) e também por meio de resoluções do ExCom (o Comitê Executivo do ACNUR).

~ 178 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

mesmos ao território em que se encontravam, e de ações visando a impedir que refugiados


cheguem a territórios seguros.
O caso Hirsi Jamaa and Others Vs. Italy, de 2012, analisado pela Corte Europeia dos
Direitos Humanos ilustra essa última questão. O caso versa sobre um grupo de somalianos
que foi interceptado por navios italianos antes de adentrar o mar territorial da Itália, detido,
retornado e deixado na Líbia, seu local de embarque. A defesa da Itália alegou que como o
grupo não estava em seu mar territorial não havia necessidade de cumprir o princípio do
non-refoulement. Contudo, a Corte Europeia dos Direitos Humanos entendeu que a detenção
e devolução de potenciais refugiados, mesmo que fora do mar territorial da Itália, feriu não
apenas o artigo 3° da Convenção Europeia de Direitos Humanos (1953), sobre tratamento
degradante, mas também o artigo 33 da Convenção de 51 e o Protocolo de 67, pois ao
devolver o grupo à Líbia colocaram em risco suas vidas e liberdades individuais, posto que
esta poderia praticar uma “segunda devolução ao encaminhá-los ao seu Estado de Origem”
(HESSBRUEGGE, 2012); e condenou a Itália a indenizar o grupo.
Se nesses exemplos debate-se sobre a aplicação do non-refoulement ao caso concreto,
os debates sobre se o refúgio é um direito são mais complexos.
A definição do refúgio como um direito pode ser defendida, como visto, a partir
da Convenção de 51, que tem natureza jurídica, e impõem (como os tratados
internacionais) direitos e deveres aos Estados signatários (JUBILUT, 2011, p. 169) (que
atualmente somam 145, e 146 do Protocolo de 67)151.
Esse documento aborda o refúgio a partir de uma perspectiva jurídica tanto
consagrando direitos aos refugiados (desde o seu preâmbulo em que menciona diretamente
a DUDH152), mas também a própria definição de refugiado como um direito (JUBILUT,
2011, p. 169). Isso porque a Convenção de 51 adota uma linguagem impositiva ao definir o
conceito de refugiado, estabelecendo que “Para os fins da presente Convenção, o termo
"refugiado" se aplicará a qualquer pessoa que (...)”, ou seja impondo que o conceito (e
consequentemente os direitos dele derivados) deve ser assegurado para os que se
enquadram nas definições da Convenção de 51 e impedindo discricionariedades (Ibid, p.
174). O refúgio deve, portanto, ser reconhecido às pessoas que se enquadrarem nos

151 Cf. dados obtidos em: <http://www.unhcr.org/protection/basic/3b73b0d63/states-parties-1951-


convention-its-1967-protocol.html>.
152 Cf. “Primeiro parágrafo preambular- Considerando que a Carta das Nações Unidas e a Declaração

Universal dos Direitos Humanos aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembléia Geral afirmaram o
princípio de que os seres humanos, sem distinção, devem gozar dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais”.

~ 179 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

padrões conceituais da Convenção de 51153, uma vez que se trata de uma obrigação
internacional assumida pelos Estados.
Em sendo o refúgio, portanto, um direito é relevante apontar questões sobre a sua
aplicação no caso concreto na mencionada determinação do status de refugiado. Uma
primeira categoria de problemas nessa determinação diz respeito a questões processuais, já
que a realização da mesma por alguns Estados apresenta violações aos direitos humanos,
no que tange a negativa de um processo imparcial e que considere as peculiaridades dos
refugiados (como a não exigência de documentação que por muitas vezes não está
disponível exatamente em função do deslocamento forçado) e dentro de um prazo
razoável.
Um segundo grupo de problemas se relaciona ao entendimento de que há bem-
fundado temor de perseguição (ou outra causa de reconhecimento do status de refugiado
como a grave e generalizada violação de direitos humanos), e que, portanto, o refúgio se
aplica. Nesse caso, a fim de garantir que a aplicação do refúgio seja objetiva, há métodos
para auxiliar os tomadores de decisão, entre eles, a produção da Informação do Estado de
Origem154 por instituições não ligadas ao processo decisório para a determinação do status
de refugiado e os mencionados padrões mínimos apontados pelo ACNUR. Lembrando
que, em sendo o refúgio um direito, caso as hipóteses legais estejam presentes, ele deve ser
reconhecido, independentemente de questões políticas específicas entre os Estados
envolvidos, até em função do caráter humanitário do refúgio155.
Um último grupo de questões pode surgir da não aplicação adequada do instituto
do refúgio ao caso concreto, seja reconhecendo o status a quem não tem direito ou não o
reconhecendo a quem tem direito. Nessas situações, em sendo o refúgio um direito seria
possível a sua judicialização.
Verifica-se, desta forma, a relevância de se entender o refúgio como direito tanto
no sentido de o direito de asilo possuir uma forma vinculante de implementação quanto a
fim de garantir que sua aplicação se dará conforme os critérios legais e não a partir de
decisões subjetivas dos Estados.

CONCLUSÃO

153 As pessoas que não se enquadrarem não devem ser reconhecidas como refugiados; assim como as
submetidas às cláusulas de exclusão Convenção de 51 que impedem que, ainda que a pessoa se enquadre nos
critérios conceituais de refugiado, seja a mesma reconhecida como tal (art. 1, F).
154 A Informação do Estado de Origem é conhecida como “COI” na sigla em inglês.
155 Cf. 5º parágrafo preambular da Convenção de 51.

~ 180 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Pelo exposto verifica-se que, ainda que o direito de asilo acompanhe a humanidade desde a
Antiguidade, ele segue sendo relevante, sobretudo em face de constantes violações de
direitos humanos, graves crises humanitárias e perseguições políticas infundadas. Nesse
sentido, sua inclusão no rol de direitos humanos da DUDH foi (e é) extremamente
relevante.
Além de permitir que o direito de asilo integre a arquitetura internacional de proteção da
pessoa humana, a consagração do mesmo no artigo XIV da DUDH estabeleceu as bases
para a consolidação de meios de implementação do mesmo, seja por meio de atos
discricionários com o asilo político, seja por meio de um direito universalmente
reconhecido com o refúgio.
A coexistência dessas duas formas de implementação permite assegurar um espaço de
proteção humanitária amplo que conjuga os interesses dos Estados com as necessidades
dos indivíduos, efetivando o espírito da DUDH de garantir proteção jurídica à dignidade
humana por meio de direitos focados nos indivíduos.
Além disso, o direito de asilo e suas formas de implementação também se aproximam da
DUDH no sentido de poderem ser entendidos como formas de reconstrução de direitos
após rupturas graves nas vidas dos seres humanos que necessitam contar com sua proteção.
Assim, ao se celebrar os 70 anos da DUDH, e em face de um cenário internacional que
ainda permite essas graves rupturas, é importante resgatar a inserção do direito de asilo no
rol de direitos humanos, as suas diferentes modalidades de efetivação, e de que uma delas –
o refúgio – é em si também um direito, a fim de se contribuir para a contínua e integral
proteção dos seres humanos.

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~ 183 ~
A NECESSIDADE DE CRIAÇÃO DE UM TRIBUNAL
INTERNACIONAL GLOBAL DE DIREITOS HUMANOS COMO
CONSEQUÊNCIA DA CIDADANIA UNIVERSAL

Claudia Regina Oliveira Magalhães da Silva *

I – INTRODUÇÃO

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 surgiu dos escombros da


II Guerra Mundial, após o fim do conflito, com a criação das Nações Unidas com a
consolidação da promessa da sociedade universal de não repetição das atrocidades contra
os direitos humanos.
Em 1946, como parte dos trabalhos preliminares para a redação da Declaração,
sob os auspícios da UNESCO, Jacques Maritain reuniu um Comitê de Filósofos para
identificar a chave teórica de uma Carta de Direitos para todas as pessoas e para todas as
nações. Em sua primeira sessão, em 1947, a Comissão autorizou seus membros a formular
a minuta elaborada por 8 membros da Comissão. (BROWN, 2016)
Eleanor Roosevelt era a presidente da Comissão, que era composta por René
Cassin, elaborador da primeira minuta; Charles Malik ,relator da Comissão; PengChung,
vice-presidente e John Humphrey, diretor da Divisão de Direitos Humanos das Nações
Unidas.
A comissão concluiu que deveria ser elaborada uma declaração e não um tratado
internacional e que ela deveria ser curta, energizante e acessível às pessoas em qualquer
parte do mundo, contendo tanto direitos civis, políticos, sociais e econômicos.
Foi proclamada pela Resolução 217-A (III) de 10/12/1948, pela Assembleia Geral
das Nações Unidas, reunida em Paris e formou as bases dos Pactos Internacionais de 1966,
o de Direitos Civis e Políticos e o de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos com
status de hard law.

*Pós-Doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Mestre e


Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Graduada pelas Faculdades
Metropolitanas Unidas – FMU. Professora de Direito Internacional. Pesquisadora da Universidade de São
Paulo – USP em Tribunais Internacionais. Membro da Academia Brasileira de Direito Internacional – ABDI.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional – IBDC.

~ 184 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A Declaração tem como valor fundante a dignidade humana ao proclamar, em seu


preâmbulo, o reconhecimento da inerente dignidade e da igualdade, bem como os direitos
inalienáveis aos membros da família humana, como base da liberdade, justiça e paz no
mundo.
O princípio não é definido nem pela Declaração, nem por outros documentos de
Direitos Humanos, mas pode-se afirmar que a dignidade humana é um especial status
atribuído a toda e qualquer pessoa devido à sua natureza inerente de ser humano, sua
potencialidade humana, suas capacidades e habilidades humanas.
Contém três partes essenciais para a expansão dos direitos humanos, que se
dividem em princípios geais, a codificação de referidos princípios e práticas para sua
implementação, que atualmente, expressa-se por sistemas de monitoramento, a instituição
de Tribunais Internacionais, bem como pela manutenção de esforços para o cultivo do
respeito aos direitos humanos. (BROWN, 2016).

2. O CIDADÃO UNIVERSAL COMO DECORRÊNCIA DO REGIME


JURÍDICO ORIUNDO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS
HUMANOS DE 1948

“A Declaração Universal dos Direitos Humanos é a porta de entrada do templo dos direitos
humanos”. (René Cassin)

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi um desdobramento da


Carta de São Francisco de 1945, que instaurou um novo pacto social distinto do antigo
pacto das Nações Unidas. Em seu preâmbulo, a Carta de São Francisco enfatizou a fé nos
direitos fundamentais do homem, na dignidade, no valor do ser humano e na igualdade de
direitos dos homens e das mulheres, anunciando como propósitos da Organização das
Nações Unidas a obrigação jurídica interestatal de cooperação internacional para promover
e estimular o respeito aos direitos humanos. A carta, portanto, revisitou a clássica noção de
soberania estatal para enfatizar o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais.
A Declaração teve início na sessão plenária de 1947, com a redação de oito
membros escolhidos com base em representação geográfica (Austrália, Chile, China, EUA,
França, Líbano, Reino Unido e União Soviética). Foi proclamada por quarenta e oito votos,
nenhum contra e oito abstenções (Arábia Saudita, Bielorrúsia, Checoeslováquia, Polônia,
Ucrânia, União Sul Africana, União Soviética e Iugoslávia).

~ 185 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Foi o documento internacional mais importante para a evolução dos direitos


humanos em escala universal e coletiva, por ressaltar a prevalência do ser humano,
alterando a clássica lógica da Paz de Westfália, de 1648, que exaltava os Estados soberanos
e independentes.
É possível afirmar, portanto, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948 foi um marco na plataforma emancipatória do ser humano, pois ressaltou a sua
consideração como um fim em si mesmo e sua dignidade como objetivo principal da esfera
dos direitos humanos. Institucionalizou a vertente do princípio do universalismo,
rechaçando a temática do relativismo cultural como justificativa para a prática de
atrocidades contra os direitos humanos. Apontou para a afirmação de que nenhum País
tem o direito de alegar que sua cultura e seu ordenamento jurídico autorizam a ofensa e o
desrespeito aos direitos humanos fundamentais.
Anunciou uma sociedade internacional de Estados soberanos e de indivíduos
livres e iguais, que institucionalizou os direitos humanos e inseriu sua temática na
construção da ordem mundial, limitando o arbítrio discricionário da soberania estatal sobre
a soberania pessoal.
É um documento essencial para a humanidade, pois concentra a ideia de que
todos os seres humanos pertencem a uma única comunidade global, tendo direitos, deveres
morais e responsabilidades perante os outros. É também um standard para a educação e a
cultura para os direitos humanos, uma vez que consagra a ideia de que uma injustiça
cometida em um determinado local é uma injustiça que gera consequências em todos os
cantos do mundo (BROWN, 2016).
A Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal alteraram o paradigma e o
ponto de partida para a materialização e concretização dos direitos humanos fundamentais,
com a elevação do ser humano a sujeito de direito central, relativizando a preponderância
do Estado soberano e absoluto.
Por isso, pode-se afirmarque a Carta de São Francisco, a Declaração Universal e
os Pactos Internacionais de 1966 representam o embrião de uma Constituição Global, que
configura os jus cosmopoliticum, delineado por Kant em sua obra, “A Paz Perpétua” (1995).
A propósito do tema, Celso Lafer explica que o jus cosmopoliticum diz respeito aos
seres humanos e aos Estados em suas relações de interdependência, sendo os cidadãos
pertencentes a um Estado universal da humanidade.(LAFER, 2015).
A doutrina de Kant contribuiu para a análise da história humana sob o ângulo
universal, sendo o ser humano, um fim em si mesmo, que tem dignidade e não preço, o

~ 186 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

centro de sua doutrina moral. Apresentou o direito cosmopolita, como fundamento do


direito à hospitalidade universal, um direito comum a todos os seres humanos da face da
Terra, de modo que a violação de um direito humano praticada num canto da Terra, é
sentida em todos os demais pontos.
Assim, para que os direitos humanos sejam concretizados, é preciso ir além do
direito interno e alcançar a tutela internacional, pois somente nessa vertente, poder-se-ia
falar em “direito a ter direitos”, conforme pensamento de Hannah Arendt.

A solução dos problemas enfrentados pela sociedade internacional atualmente só


será uma realidade quando se abandonar a tímida visão de que os Estados soberanos e as
relações interestatais ainda estão em posição de supremacia. A ponderação avança,
portanto, na aparente dicotomia entre soberania estatal e soberania pessoal, que devem ser
harmonizadas, sempre levando-se em consideração a supremacia das normas de direitos
humanos que preconizam o ideal do ser humano como um fim em si mesmo.
O artigo 6º da Declaração Universal, ao afirmar que todos têm o direito de ser
reconhecidos como pessoas perante a lei em todos os lugares, dá respaldo ao drama dos
displacedpeople, uma vez que combate o aniquilamento dos refugiados e dos apátridas.
Referida ideia é corroborada pelo artigo 15 da Declaração que prevê que todos têm direito
a uma nacionalidade e de não serem privados dela. A nacionalidade, portanto, deixa de
estar reservada ao domínio dos Estados, o que contribui para a internacionalização dos
direitos humanos.
A apatridia tem de ser revertida em qualquer parte do mundo, pois o que se
pretende é a concessão da nacionalidade como um direito fundamental do cidadão
universal, o que não pode ficar única e exclusivamente a critério dos Estados envolvidos,
pois estes atuarão no contexto da soberania estatal, o que é rechaçado pela ideia da
universalidade dos direitos humanos e dos direitos da personalidade fundamentais.
Além disso, o artigo 13 confere ao cidadão universal a liberdade de locomoção, de
toda pessoa, nacional ou estrangeira, dentro das fronteiras de cada Estado, além de garantir,
no inciso 2º direito de qualquer pessoa deixar o seu país ou qualquer outro país e de a ele
regressar, além do direito de pedir asilo, segundo o artigo 14.
Referidos direitos confirmam a manifestação Kantiana do direito à hospitalidade
universal, ou seja, o jus cosmopoliticum.
Quanto à natureza jurídica da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
afirma-se que não é de lei internacional, mas sim de Recomendação, soft law, ou seja, de atos

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Direitos Humanos & Fundamentais

e conteúdos normativos que não dispõem de obrigatoriedade, por ter origem em uma
Resolução da Assembleia Geral da ONU, sendo, apenas, um convite aos Estados para
respeitarem suas previsões. Além disso, também foi considerada como norma interpretativa
da Carta de São Francisco. Passou, entretanto, a ter status de norma costumeira de Direito
Internacional.
Posteriormente, a Conferência de Viena de 25/07/1993, que teve como resultado
a Declaração de Viena de 1993, reafirmou o compromisso com os propósitos e princípios
enunciados na Carta de São Francisco e na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
ressaltando que a Declaração se constituiu como padrão de realização para todos os povos
e todas as nações com base no ideal de que “todos os direitos humanos são universais,
indivisíveis, interdependentes e interrelacionados”. É possível afirmar, portanto, que a
Convenção de Viena chancelou a Declaração Universal com a efetiva participação de 171
Estados, 813 organizações não governamentais como observadoras e 2000 organizações
não governamentais no fórum paralelo das ONG’S.
Logo, não há como duvidar da força cogente e universal da Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948 e, sendo assim, a Resolução da Organização das Nações
Unidas passou de norma soft law para hard law dos tratados, ou seja, norma imperativa e
cogente.
Além da Declaração de Viena de 1993, outros documentos também corroboraram
e derivaram da Declaração Universal, tais como o Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), que
tratam, respectivamente, dos direitos de primeira e de segunda dimensões, um verdadeiro
desdobramento dos artigos 1º ao 21 da DUDH, bem como dos artigos 22 a 27 da DUDH,
respectivamente.
Como se pode constatar, diversos documentos posteriores, com ampla
participação dos Estados, consagraram os ideais previstos na Declaração Universal, não
deixando dúvidas a respeito de sua natureza jurídica de hard law.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi uma resposta ao
totalitarismo que imperou durante a Segunda Guerra Mundial, responsável pela inserção
da temática dos direitos humanos no plano internacional, e também uma resposta jurídica
ao problema do mal ativo e do mal passivo.
Além disso, é a interpretação mais autêntica dos diretos humanos e liberdades
fundamentais e integra a Carta da ONU, sendo compreendida,, no mundo todo, como um
código de ética universal de direitos humanos decorrente da tese universalista, que impõe

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Direitos Humanos & Fundamentais

um padrão mínimo de dignidade independentemente da cultura particular e da soberania de


cada Estado para promover a positivação internacional dos direitos mínimos dos seres
humanos, em consonância com os propósitos das Nações Unidas de proteção aos direitos
humanos e liberdades fundamentais de todos.
O documento de cunho universalista, tem como fundamento a dignidade da
pessoa humana como valor fonte dos direitos humanos universais, bastando a condição de
pessoa para a exigência dos direitos humanos em qualquer ocasião, circunstância e em
qualquer lugar do mundo.Os direitos humanos, portanto, devem ser tratados de forma
global pela comunidade internacional, com um padrão mínimo de dignidade,
independentemente da cultura de cada povo, devido à aplicação da tese universalista.
O universalismo dos direitos humanos mínimos abre espaço para o direito
cosmopolita consolidando a independência dos cidadãos de seu Estado de origem por
pertencerem a um Estado da humanidade. Por isso, defende-se a tese de que os direitos
fundamentais podem ser exercidos por qualquer pessoa, em qualquer circunstância e em
qualquer lugar do mundo.
Celso Lafer, ao prefaciar a obra de Flávia Piovesan, lembra que: “Os direitos
humanos são uma plataforma emancipatória voltada para a proteção da dignidade humana”
e, citando Hannah Arendt, afirma “que é um instrumento de mobilização para a proteção
dos mais fracos”. (PIOVESAN, 2007)
Vislumbra-se o surgimento de um novo direito, distinto do direito público
internacional, baseado na cooperação entre Estados soberanos, de acordo com um
interesse geral, que transcende seus interesses peculiares e consagra a cidadania universal,
com direitos que transcendem aos interesses dos Estados soberanos, que devem coexistir
em cooperação internacional, a fim de que os seres humanos possam exercer seus direitos
em qualquer lugar do mundo, isso porque a Declaração Universal dos Direitos do Homem
de 1948 é um documento de interesse geral, que tem natureza jurídica de jus cogens gerando
efeitos erga omnes.
Immanuel Kant, no terceiro artigo definitivo para a Paz Perpétua, assevera que o
direito cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade universal. A hospitalidade
universal deve ser dirigida ao estrangeiro que não pode ser tratado com hostilidade por
estar no território de outrem. Explica que há o direito dos homens à propriedade comum
da superfície da Terra, de modo que os homens devem se suportar uns aos outros, pois
ninguém tem mais direito do que o outro a estar em um determinado lugar da Terra.

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Direitos Humanos & Fundamentais

A comunidade cosmopolita, para Immanuel Kant, concretiza-se entre os povos da


Terra quando a violação do direito num lugar da Terra se sente em todos os outros,
enfatizando a ideia de um direito cosmopolita, como direito público da humanidade em
geral. Assim, todos os seres humanos do mundo seriam proprietários da superfície da Terra
e estariam unidos por um direito cosmopolita, e universal, calcado na fundamentabilidade
dos direitos humanos.
No segundo artigo definitivo para A paz perpétua, Immanuel Kant anuncia que
para que se possa dar a cada um o que é seu, é necessário que se forme uma federação de
povos e não um Estado de povos. No suplemento primeiro, Da garantia da paz perpétua,
Immanuel Kant explica que para que haja a garantia da paz, a natureza se organizou para
que as pessoas atuassem de forma justa em todas as partes do mundo.
Logo, para que todo ser humano exerça os direitos fundamentais, em qualquer
lugar da Terra, deve haver um direito cosmopolita, universal que atualmente é representado
pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Para tanto, deve ser criada
uma federação de povos independente dos Estados soberanos a fim de que a violação do
direito num canto da Terra se sinta em todos os outros.
A efetividade no sistema global de proteção aos direitos humanos fundamentais é
uma necessidade premente. A revisão da organização e do funcionamento da ONU com a
participação equitativa de todos os países do mundo é uma imposição necessária
determinada pela busca e promoção da paz no mundo que é, em tese, o principal objetivo
da ONU.
Para que a universalização dos direitos da personalidade seja uma realidade, com a
redução das desigualdades, é necessário que haja o redesenho do Estado no caminho da
implantação dos direitos universais do ser humano, a fim de que o cidadão universal seja
reconhecido como sujeito de direito na ordem global.
A consolidação dos valores dos direitos humanos deve se dar no âmbito global e,
no caso do cidadão universal, os valores relativos aos direitos da personalidade, enquanto
direitos humanos, devem ser resguardados em qualquer parte do mundo, ensejando,
inclusive, a efetiva tutela jurisdicional com a possibilidade de o indivíduo se dirigir, sem
intermediários, às Cortes Internacionais, em qualquer sistema de proteção dos direitos
humanos.
Os direitos humanos são um construído em constante processo de construção e
reconstrução e, desse modo, os direitos da personalidade do cidadão universal estão em
processo de construção e reconstrução na medida em que ainda há muito o que conquistar.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Há intrínseca relação, portanto, entre o princípio do universalismo e a ideia de


constitucionalismo global, sobre o qual José Joaquim Gomes Canotilho(2003) enfatiza que
compreende a relação entre Estado e povo, bem como a elevação da dignidade humana a
pressuposto de todos os constitucionalismos, o que consequentemente coloca o direito
internacional como parâmetro de validade das Constituições nacionais.
A ideia de constitucionalismo global acima apresentada, leva à afirmação de que
os Estados devem observar as regras de direito internacional em suas Constituições. No
Brasil, tal imposição é representada pelo § 2º do art. 5º, da Constituição Federal de 1988.
Além disso, o próprio art. 1º, III que consigna o princípio da dignidade humana abarca o
princípio como um valor inafastável. Vislumbra-se, então, o Constitucionalismo Global na
medida em que o valor dignidade humana é universal e de declaração obrigatória por
qualquer Estado.
O cidadão universal, enquanto sujeito de direito, não pode ser analisado sob a
ótica do Estado, que impõe limites à universalização dos direitos humanos. Logo, o
cidadão universal não pode ser considerado sujeito de direito somente se o Estado lhe
conferir referida condição, pois é a condição humana que torna a pessoa sujeito de direitos
na ordem global.
Há uma consciência ética compartilhada pelos Estados no sentido de alcançar o
mínimo ético irredutível na seara dos direitos humanos, o que corrobora a tese
universalista. E, nesse sentido, a condição de pessoa é o único requisito para a titularidade
de direitos, considerando o ser humano dotado de dignidade.
É possível fundamentar a tese da universalidade dos direitos fundamentais na
teoria da justiça de John Rawls, que desenvolve o conceito de justiça como equidade
afirmando que uma sociedade democrática é aquela que seus cidadãos adotariam numa
situação de fase equitativa, o que chama de posição original, recriando a ideia de contrato
social, baseada num consenso e não no domínio do Estado ao conceder direitos às pessoas.
(2000).
Como kantiano, Rawls funda sua teoria em três situações: o contrato social, a
posição original e o véu da ignorância, com base em dois princípios: o de oferecer as
mesmas liberdades básicas para todos os cidadãos, bem como a equidade social e
econômica. Ele afirma que existem desigualdades, mas é preciso que sejam garantidos aos
menos favorecidos os mesmos bens da vida pertencentes aos mais abastados, o que
chamou de primary goods.

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Direitos Humanos & Fundamentais

John Rawls admite, portanto, as desigualdades, desde que haja a mitigação das
dificuldades para aqueles que a suportam. Prega o Estado liberal com uma perspectiva
social. Parte da posição original como uma situação hipotética na qual as partes
contratantes, livres e iguais, escolhem sob o véu da ignorância, os primarygoods ou bens
primários, ignorando o que as pessoas têm e não têm para possibilitar o contrato social.
Como a teoria de John Rawls não exclui a desigualdade, permite que a pessoa tenha acesso
aos primarygoods escolhidos sob o véu da ignorância tendo os princípios de justiça como
cláusulas contratuais básicas, através de uma escolha racional com base na teoria dos jogos.
O neocontratualismo de John Rawls preconiza a justiça com imparcialidade, com a
distribuição equitativa dos bens básicos, inclusive os direitos sociais, optando pelo menor
dos piores resultados.
A teoria da justiça de John Rawls pode ser usada para fundamentar a tese da
cidadania universal, uma vez que preconiza a ideia de que deve haver acesso aos direitos
básicos com igualdade, inclusive no plano global, transnacional e cosmopolita, e o passo
mais importante para essa transformação foi dado com a Declaração dos Direitos do
Homem de 1948.
É imperioso que qualquer ser humano tenha acesso aos primarygoodsem qualquer
lugar do mundo, independentemente de sua nacionalidade, a fim de que todos os seres
humanos, no mundo, tenham acesso às mesmas liberdades básicas para reduzir o espaço
das desigualdades.
Afirma-se a tese universalista dos direitos humanos na medida em que há um
mínimo ético irredutível que deve ser respeitado por todos os Estados, independentemente
da diversidade cultural e da soberania estatal.
Desse modo, o direito cosmopolita deve regular e proteger os direitos do cidadão
universal, pois, em razão da tese universalista, a violação de um direito é sentida em todos
os lugares da Terra e, assim, a proteção dos direitos do cidadão universal deve ser uma
preocupação cosmopolita e não interna de cada Estado.
O caminho para a “Paz Perpétua” só chegará ao resultado da solidariedade
universal quando o ser humano for considerado como um fim em si mesmo e pertencente
ao mundo, como cidadão universal.
Ainda nesse sentido, Luigi Ferrajoli(2007) anuncia que existe o embrião de uma
‘Constituição do Mundo’, constituída pela Carta da ONU e pela Declaração dos Direitos
Humanos que se destinam a regular os direitos fundamentais universais, no sentido de
propiciar a proteção do ser humano, por formar um conjunto de normas jurídicas

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Direitos Humanos & Fundamentais

específicas para regular os direitos das pessoas, os direitos da personalidade. Assim, se as


normas destinadas a regular as pessoas são de direito civil, há que se criar institutos
jurídicos de direito civil cosmopolita, como direitos da personalidade, pessoa, personalidade
e capacidade numa perspectiva transnacional.
A Declaração Universal representa o documento fundante num processo de
elaboração progressiva dos direitos humanos que proporcionou muitos avanços na
promoção na proteção dos direitos humanos desde 1948, incluindo o desenvolvimento de
um corpo jurídico de Direitos Humanos e a implementação de mecanismos de proteção.
Embora tenha havido muitos avanços, é necessário reconhecer que os direitos humanos
continuam sendo violados em uma escala alarmante pelo globo terrestre.

3. A JUSTIÇA INTERNACIONAL GLOBAL COMO CONSEQUÊNCIA DA


TESE DA CIDADANIA UNIVERSAL E A NECESSIDADE DE CRIAÇÃO DE
UM TRIBUNAL INTERNACIONAL GLOBAL DE DIREITOS HUMANOS

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 necessita ser afirmada e


implementado como o documento fundante da cidadania global, uma vez que os 30 artigos
representam os direitos fundamentais que devem ser garantidos e exercidos por qualquer
cidadão em qualquer parte do mundo, independentemente de sua nacionalidade, pois o que
decorre da Declaração não é o vínculo jurídico-político que o cidadão tem com
determinado Estado, mas o valor inerente de sua dignidade humana.
Embora, atualmente, os Estados se movimentem no sentido de frear a migração,
impondo barreiras à mobilidade humana, não se pode negar o avanço da tese da cidadania
universal.
A evolução dos direitos humanos, principalmente com a criação de Conselhos e
Comitês no âmbito do sistema global e de Tribunais Internacionais, no âmbito dos
sistemas regionais delete, por um lado, a fragmentação do direito internacional mas, sob
outro aspecto, demonstra o avanço no sentido da consolidação da personalidade jurídica
internacional do cidadão universal, com a democratização do acesso do cidadão aos
sistemas Internacionais de proteção aos direitos humanos.
Apesar dos avanços noticiados, ainda existem muitas falhas nos sistemas de
proteção aos direitos humanos, principalmente o difícil acesso dos cidadãos universais à
justiça internacional, principalmente aos tribunais internacionais, a resistência dos Estados,
no sistema interamericano, de realização do controle de convencionalidade, a complexa

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Direitos Humanos & Fundamentais

interpretação da teoria da margem de apreciação no sistema regional europeu. Todos os


fatores apontados, anunciam que o diálogo das fontes e a transnormatividade (MENEZES,
2008) precisam dar o tem aos princípios que regem as relações internacionais.
Após 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda há
obstáculos à consolidação de uma justiça internacional e do acesso efetivo do cidadão
universal à referida justiça.
Por isso, a consolidação da cidadania global, universal e cosmopolita demanda a
criação de um Tribunal Internacional Global de Direitos Humanos, refletindo a
dependência e a interconexão global que conduz à diminuição da distância existente entre
os cidadãos universais.
A necessidade da criação de um Tribunal Internacional Global de Direitos
Humanos decorre da responsabilidade de proteger, que não se expressa apenas através da
elaboração de Tratados Internacionais para garantir direitos ou com a proteção de pessoas
em situação de vulnerabilidade devido a conflitos armados, mas também compreende a
obrigatoriedade de a comunidade internacional oferecer mecanismos e instituições aptas a
conferir ampla proteção ao cidadão universal.
Uma das recomendações do Relatório organizado por Gordon Brown foi
justamente a de criação de um Tribunal Global: “At the global level, the
UNshouldconsiderthecreationof a World HumanRightsCourt,
consistentwiththeprincipleofcomplementarity.”
A criação de um Tribunal Internacional Global de Direitos Humanos deve ser
considerada pela comunidade internacional, independentemente da existência de tribunais
regionais, da criação de comitês e da existência da Corte de Haia.
Isso se explica pelo fato de os tribunais regionais e o global dialogarem entre si, na
ideia da cross-reference e de serem complementares, portanto. Além disso, a existência de uma
Corte em Haia onde apenas os Estados têm locusstandi abre uma lacuna considerável na
consolidação da cidadania universal, uma vez que deve haver a harmonização entre a
soberania estatal e a soberania pessoal.( CANÇADOTRINDADE, 2013)
Ademais, um Tribunal Internacional Global para Direitos Humanos asseguraria
uma interpretação uniforme para a lei global de Direitos Humanos. (TRESCHEL, 2004)
No Tribunal Internacional Global, indivíduos, organizações internacionais e não
governamentais teriam locusstandi, figurando no polo ativo, enquanto que Estados,
organizações internacionais e organizações internacionais não-governamentais poderiam
figurar no polo passivo.

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Direitos Humanos & Fundamentais

O Tribunal teria competência para a consideração de demandas envolvendo


direitos humanos, utilizando-se a Declaração Universal e os Pactos de 1966 como
conteúdo mínimo desses direitos.
Aparentemente, a criação de um Tribunal Internacional Global de Direitos
Humanos poderia refletir uma tendência errônea de universalização dos direitos humanos
baseada na globalização, o que não seria uma boa solução para os conflitos vivenciados
pela comunidade internacional (MIGNOLO, 2003; QUIJANO, 2005; SANTOS, 1997).
Por outro lado, o Tribunal Global representa um mecanismo importante para o
enfrentamento do desafio à consolidação da igualdade com respeito à diversidade em todos
os seus aspectos, incluindo o cultural, Genero, étnico.
Em outra perspectiva, um Tribunal Internacional Global, poderia preencher as
lacunas existentes nos sistemas de proteção aos direitos humanos, desde que se constituísse
como um tribunal livre da prejudicial dicotomia países centrais e países periféricos,
comprometido com um mundo mais igualitário e inclusivo.(SCHTTEKALTE, 2016).
Assim, a criação de um Tribunal Internacional Global de Direitos Humanos
contribuiria para o cumprimento da responsabilidade de proteger dos Estados, pois
garantiria os direitos humanos aos cidadãos universais, em decorrência de um processo de
intervenção humanitária para a preservação dos direitos humanos desrespeitados em
grande escala, bem como em escala esporádica e individual, uma vez que a violação dos
direitos humanos de um ser humano diz respeito a todos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na comemoração dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de


1948 a tese da consolidação da cidadania universal nunca foi tão atual e necessária para a
evolução dos direitos humanos.
A Declaração de 1948 tem seu fundamento na universalização dos direitos
humanos que seja capaz de concretizar a dignidade humana de todos os seres humanos
habitantes da Terra, em qualquer lugar do mundo.
É salutar afirmar que referida universalização tem de ser pautada no respeito à
diversidade cultural e étnica e nesse ponto reside o maior desafio para os próximos 70 anos
da Declaração.
A criação de um Tribunal Internacional Global de Direitos Humanos consolidaria
a cidadania universal e preencheria as lacunas existentes nos sistemas de proteção aos

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Direitos Humanos & Fundamentais

direitos humanos existentes, propagando o entendimento universal a respeito da


interpretação da Declaração Universal.
A universalização dos direitos humanos a partir do Tribunal Internacional em
questão deve respeitar a diversidade cultural e étnica, o que representa o grande desafio
para a concretização da Declaração Universal para os próximos anos.

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~ 197 ~
A EFETIVIDADE DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS À LUZ DS DESAFIOS
CONTEMPORÂNEOS.

Thamyris Araújo*

1. INTRODUÇÃO

A celebração dos setenta anos da Declaração Universal dos Direitos humanos


consolida-se como um momento de importante reflexão acerca da importância de direitos
inerentes à condição de todo e qualquer ser humano. O recente interesse em
multiculturalismo, diferenças econômicas e sociais e seus desdobramentos, como por
exemplo, o choque cultural decorrente de movimentos migratórios são temas que possuem
relação com os direitos humanos, no sentido de reafirmar a característica da universalidade,
bem como defender a aplicação desses direitos a todo e qualquer ser humano.
A desigualdade presente no mundo muitas vezes se apresenta como uma
decorrência de raízes históricas de exploração socioeconômica e traz reflexos que
frequentemente se chocam com a proteção garantida aos direitos fundamentais pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Distintos problemas
socioeconômicos que persistem até o presente momento, como a fome no mundo, são
incompatíveis com o disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Vale ressaltar também, que, em distintas situações, as próprias características dos
direitos humanos se enfrentam com a manifestação de distintas culturas, que durante anos,
se baseiam na liberdade para praticá-las. Esse choque cultural traz desdobramentos
políticos e sociais até o presente momento.
Estar-se-á, portanto, diante de uma série de desafios acerca da efetividade da
Declaração de Direitos Humanos acerca de discussões contemporâneas que suscitam uma
releitura dos direitos e valores presentes na Declaração e seus desdobramentos. A fim de
que essa seja feita, é possível se valer de distintas correntes, sejam elas filosofias de séculos
passados que até hoje inspiram a interpretação dos direitos fundamentais, seja através de

* Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ.

~ 198 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

movimentos que despertam o interesse da teoria política contemporânea como o


neorrepublicanismo.
O presente capítulo busca debater questões de efetividade, apresentando a
contribuição que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 trouxe em termos
de expandir a proteção aos direitos humanos, já aludidanos ideais defendidos pela ONU,
como também procurar estabelecer as colisões decorrentes de características e disposições
presentes na Declaração com o cenário global, marcado por desigualdades
socioeconômicas e culturais.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 Da formação da Declaração e suas possíveis influências

A comemoração dos setenta anos da Declaração Universal dos Direitos


Humanos, como todo momento de celebração também pode ser um momento de
recordação e reflexão de todos os avanços garantidos até então e aqueles ainda a se atingir.
É possível se apoiar em abordagens históricas, filosóficas e teóricas, no intuito de suscitar
uma interdisciplinaridade para analisar a trajetória de setenta anos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos.
Recorrendo-se de um marco histórico, é possível traçar distintos momentos que
influenciaram a criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tamanha é a sua
importância que desde o pós guerra, foram produzidos reflexos que se verificam na criação
de pactos e tratados que incorporaram seus princípios, como o Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
culturais, ambos de 1966. Através de uma análise histórica, é viável analisar as raízes de
diferentes pontos de vista acerca da efetividade da Declaração Universal dos Direitos
Humanos desde o período inicial de sua criação até os eventos com mais enfoque na
contemporaneidade.
No século XVIII, o movimento iluminista trouxe à tona as ideias de liberdade,
igualdade, direito à propriedade e passou a questionar a estrutura absolutista vigente na
sociedade na época, marcada pelos privilégios de classe, que por sua vez trazia diferentes
obstáculos à ascensão política e econômica da burguesia. Foi justamente nesse cenário que
se fortaleceu o jusnaturalismo, defendido por autores como John Locke e Imannuel Kant,
constituindo a base para o debate sobre temas como a moral e a Justiça.

~ 199 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Através dos estudos dos referidos contratualistas, é possível encontrar também


outras contribuições, as quais comprovam que num período anterior ao século XX, já
existia a ideia de proteção de direitos, antes que esses fossem positivados.
É possível encontrar um fundamento do pensamento de Kant no qual se ampare
a terminologia contemporânea “direitos do homem”. Esse fundamento é a relação entre o
direito das gentes (jus gentium) e a lei internacional, que favorece a ideia de aliança entre as
Nações a fim de evitar agressões externas. Influenciado pelas ideias jusnaturalistas, o
pensamento de Kant considera a violação à liberdade como injustiça a ser combatida.

“Mas o que, então, é um inimigo injusto de acordo com as concepções do


Direito das Gentes, quando, como se pensa em geral do Estado de Natureza,
todo Estado é juiz em sua própria causa? É um inimigo cuja vontade
publicamente expressa, seja por palavras ou ações, revela uma máxima que, se
fosse tomada como regra universal, tornaria impossível um estado de Paz entre
as nações e necessariamente perpetuaria o Estado de Natureza. Assim é a
violação dos Tratados Públicos, com relação aos quais se pode supor que
qualquer uma dessas violações diz respeito a todas as nações por ameaçar sua
liberdade, e que elas estão, desse modo, convocadas a se unir contra essa
injustiça e retirar o poder de cometê-la.” (MORRIS, 2002, p.258)

Kant também traz considerações valiosas ao utilizar a terminologia “direito


cosmopolita à hospitalidade”: o direito a buscar associação humana, que na realidade
poderia ser visto como uma extensão do direito humano à liberdade. Não é à toa que o
filósofo defendeu o chamado “direito de residência permanente”.
Seguindo a linha de pensamento do direito cosmopolita, Hannah Arendt ressaltou
a depreciação totalitária ocorrida pela vida humana e o tratamento dos seres humanos
como entes supérfluos que conduziram a um colapso do sistema de estados nação na
Europa e nas duas guerras mundiais. Milhares de indivíduos sem nacionalidade foram
privados não só de seus direitos cidadãos, mas também de direitos humanos. Isso colocou
em choque diversas declarações burguesas, inspiradas pelo pensamento iluminista,
defensoras da igualdade e liberdade, mas que foram desrespeitadas nesse contexto. Esses
dilemas entre teoria e prática se aplicam em diversos momentos da história, sobretudo em
momentos de crise, o que apenas ressalta a importância dos debates acerca da efetividade
de diferentes Declarações.Nesse sentido, Hannah Arendt formulou a expressão: “direito a
ter direitos” como forma de corroborar que direitos como a nacionalidade não devem ser
considerados privilégios soberanos, mas sim direitos humanos universais.
A corrida pela África representou o regresso a níveis de desumanidade daqueles
que se diziam “civilizados”, através de políticas de extermínio racial, saqueios e intolerância.
Esse cenário marcou um momento de extrema fragilidade dos direitos humanos, baseado

~ 200 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

em interesses econômicos imperialistas. Já no século XX, período alardeado pela onda de


modernidade e avanços trazidos pela Belle Époque, parece incompatível conceber que os
mesmos países que defendiam com clamor a civilização eram também aqueles que
mantinham exploração colonial. A lógica de exploração colonial nessa época certamente
diferia da estrutura escravista vigente na época das grandes navegações, mas as ideias de
fortalecimento da dignidade da pessoa humana se deram somente após segunda guerra
mundial.
Sabe-se que é difícil estabelecer um rol de jus cogens, contudo, há práticas
inadmissíveis com a condição humana e assim constituem um rol mínimo de normas
imperativas. É certo que a abolição da escravidão é norma imperativa em escala mundial.
Nesse sentido, a Declaração Universal trouxe relevante contribuição, sobretudo com a
redação do artigo quarto que proíbe a escravidão e o tráfico de escravos em todas as suas
formas (artigo quarto da Declaração Universal de Direitos Humanos).
É possível sinalizar outro grande marco de fragilidade do direitos humanos
quando se falano antissemitismo presente no governo Nazista e o período do holocausto.
O horror causado pelo holocausto levou a sociedade internacional a criar um sistema
internacional de proteção a fim de evitar que violações da mesma natureza ocorressem
novamente. Com isso, é feita uma releitura de parte da filosofia kantiana, com os conceitos
de “objeto” e “imperativo categórico” que embasou a teoria dos direitos fundamentais,
fortalecida no período pós guerra, sobretudo com o fortalecimento das Cortes e Tribunais
Constitucionais, entre eles, o alemão.
Esse arcabouço conceitual influenciou intensamente o que hoje se considera por
dignidade humana. O próprio conceito de “mínimo existencial”citado por Daniel
Sarmentoressalta o conteúdo da dignidade da pessoa humana, que por sua vez, constitui o
fundamento dos direitos fundamentais. É possível utilizar o mesmo raciocínio em questões
de direitos humanos e especificamente direito internacional dos direitos humanos, uma vez
que o direito à cidadania, muitas vezes é necessário para o exercício de outros direitos.
Num contexto em que diversos países se negam a conceder refúgio e cidadania a
estrangeiros, diante de crises econômicas acirradas por expressões xenófobas, encontra-se
nessa ideia um fundamento para fortalecer a concessão do direito à cidadania a
estrangeiros: esse constituiria um mínimo ao exercício de outros direitos essenciais ao
indivíduo.
Em 1945, foi criada a Carta da ONU e em Dezembro de 1948 foi criada a
Declaração Universal dos Direitos Humanos. A declaração conseguiu ampliar o âmbito de

~ 201 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

tratamento dos direitos fundamentais previstos na Carta da ONU (mais especificamente no


seu preâmbulo).
A dignidade inclusive é referida no Preâmbulo da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Aqui também caberia o questionamento sobre a normatividade do
preâmbulo. Ainda que esse não seja dotado de normatividade, sabe-se que a dignidade
humana é deduzida de diferentes ordenamentos. A dignidade da pessoa humana tem
função muito significativa no sentido de conferir unidade de sentido e legitimidade a todo
sistema de direitos fundamentais e também uma função limitadora do arbítrio estatal.
Boa parte das Constituições tem em suas previsões influências do Direito
Internacional, no Brasil isso é perceptível através, por exemplo, da redação do artigo
quinto, parágrafo terceiro. Os tratados que versem sobre direitos humanos e que foram
aprovados em dois turnos de votação com maioria de três quintos ganham status
constitucional e a partir disso, desfrutam de posição hierárquica superior em relação às
outras normas constitucionais. Essa poderia ser considerada uma forma de conferir
normatividade ao disposto em tratados internacionais, uma vez que em diversas ocasiões,
os tratados para serem incorporados nacionalmente necessitam do consentimento do país.

2.2 A realidade além da Declaração: desafios entre teoria e prática

Acerca das características da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é


possível suscitar de que maneiras suas características podem ser questionadas a ponto de
ampliar sua efetividade, a começar pelo próprio nome “universal”. A característica da
universalidade pressupõe que os direitos humanos sejam aplicáveis a todos os seres
humanos, afinal, eles são inerentes à condição humana. O artigo 25 da Declaração
Universal dos Direitos humanos dispõe que todo ser humano tem direito a um padrão de
vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação,
vestuário, habitação cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis. Todavia, estima-
se o número de pessoas afetadas pela fome no mundo em 108 milhões, considerando os
dados de 2016, segundo um relatório elaborado pela ONU e pela União Europeia156. É
preciso ressaltar ainda que a garantia desse patamar mínimo de direitos é necessária para o
exercício de outros direitos. Por exemplo, é muito difícil conceber que uma pessoa que
passe por necessidades exerça o seu direito de voto. A previsão do direito à alimentação na
Declaração revela o seu caráter “Soft Law” confirmando que ainda que algumas

156Disponívelem <https://istoe.com.br/onu-numero-de-pessoas-que-passam-fome-no-mundo-sobe-para-
108-milhoes> Acesso em: 08/06/2018

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Direitos Humanos & Fundamentais

disposições apresentem caráter vinculante, como é a vedação da tortura e da escravidão,


boa parte das disposições da Declaração tem caráter não vinculante.
Outra discussão referente ao aspecto da universalidade diz respeito ao direito à
vida (cuja previsão se encontra no artigo terceiro da Declaração). Sabe-se que há tribos
indígenas, inclusive no Brasil, em que é comum a prática de infanticídio. É o caso de tribos
ianomâmis ao Norte do país. A morte de bebês, geralmente com até seis dias de vida, é
praticada, segundo lideranças indígenas, entre tribos ianomâmis, menos aculturados e de
recente contato com o homem branco157.
Em 2015, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que cria medidas
para impedir o “assassinato” de crianças indígenas pelos pais. O projeto está em tramitação
na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, sem data para a
emissão de um parecer, necessário para que seja colocado em votação no Plenário.
Todavia, continua sendo motivo de muita discussão.
O projeto também é conhecido como Lei Muwaji – nome em homenagem à mãe
da tribo dos suruwahas que não permitiu a morte da filha deficiente. Sua aprovação
acrescentaria um artigo à Lei 6.001 de 1973 (Estatuto do Índio). É importante ressaltar que,
diferentemente de uma das interpretações, a lei não “proíbe” que indígenas realizem o
infanticídio, mas sim cria mecanismos para impedi-lo.
Entre as críticas ao projeto, está a do professor de antropologia da Universidade
de São Paulo, Pedro Cesarino. Ele afirma que o projeto é problemático, porque não se
baseia em dados objetivos a respeito da morte de crianças indígenas. Não há estudos que
comprovem uma proporção particularmente alta de infanticídio na população indígena que
justifiquem uma ação específica sobre esse grupo. Por isso, uma lei como essa seria
discriminatória. Essa foi inclusive a posição adotada pela Marianna Holanda, em debate
realizado em Novembro de 2016 na Comissão de Direitos Humanos do Senado,
antropóloga que é crítica à posição do Parlamento, tendo em vista que o infanticídio não é
uma prática exclusiva de tradições indígenas, mas que ocorre em toda humanidade158.
Na opinião da advogada Erika Yamada, relatora de direitos humanos e povos
indígenas da plataforma Dhesca Brasil, tentar colocar o modo indígena como um modo de
ser superado poderia contribuir também para deslegitimar a demarcação de terras
indígenas, onde esses povos poderiam viver à sua maneira.

157Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/12/1721455-infanticidio-de-indios-
ainda-e-comum-em-aldeias-da-amazonia.shtml>
158Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/02/03/Por-que-o-projeto-de-lei-contra-

o-infantic%C3%ADdio-ind%C3%ADgena-%C3%A9-questionado> Acesso: 04/07/2018

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Direitos Humanos & Fundamentais

Cesarino afirma que o debate em torno da lei não está incluindo os povos
indígenas, o que fere o seu direito à autodeterminação. Para Marianna Holanda, ainda que a
Constituição Federal reconheça aos índios sua “organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições”, não garante a autodeterminação desses povos.
Cesarino acrescenta que o Brasil é signatário da Convenção 169, da Organização
Internacional do Trabalho, que em seu artigo sexto, alínea a, determina que indígenas têm o
direito de participar de órgãos que tratem de questões suas e que governos devem consultar
os povos interessados “sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas
suscetíveis de afetá-los diretamente”.
A medida também é criticada pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil) por não abordar a morte de crianças indígenas por problemas como desnutrição,
diarreia, viroses e infecções respiratórias, agravados por falta de atendimento médico,
alimentação adequada e saneamento básico.
Estar-se-á, portanto, diante de um tema muito delicado, contornado por críticas
pertinentes, que envolvem questões como identidade, respeito, participação e
autodeterminação dos povos.
Outro tema que gera repercussão no tocante à característica da universalidade dos
direitos humanos é a mutilação genital feminina. O Secretário Geral da ONU, António
Gutérresdestaca que as mulheres e as meninas que sofrem mutilação perdem “sua
dignidade, enfrentam riscos para a saúde e sofrem uma dor desnecessária”159. Entre as
complicações estão sangramentos, cistos, infecções, transmissão de doenças, infertilidade e
até a morte em casos mais graves.
As consequências podem ser fatais. O assessor sênior do Fundo de População da
ONU, Unfpa, Elizeu Chaves, explica o que é exatamente a mutilação genital feminina:

É uma prática realizada hoje em cerca de 30 países do mundo e consiste na


remoção de parte da genitália feminina parcial ou integral, da genitália externa. É
uma prática que segue valores e tradições de algumas comunidades. Trata-se na
verdade de uma violação de direitos humanos, sem nenhum tipo de benefício no
campo da saúde.160

Segundo ele, existem duzentos milhões de garotas e de mulheres no mundo que


sofreram a violação. A maioria são meninas com menos de cinco anos de idade. Quase
metade dos casos ocorrem em apenas três países: Egito, Etiópia e Indonésia. Apesar de a

159 Disponível: <https://news.un.org/pt/story/2017/02/1576291-mutilacao-genital-feminina-e-uma-


violacao-dos-direitos-humanos> Acesso em: 04/07/2018
160Disponível: <https://news.un.org/pt/story/2017/02/1576291-mutilacao-genital-feminina-e-uma-
violacao-dos-direitos-humanos> Acesso em: 04/07/2018

~ 204 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

maioria dos casos ocorrer na África, a prática também acontece em nações do sudeste
asiático e até da América Latina. A comunidade indígena Emberá, da Colômbia, por
exemplo, acredita que a mutilação genital feminina ajuda a prevenir a infidelidade.
O Unfpa trabalha com diversos países na tentativa de conscientizar comunidades
sobre a importância de por fim à mutilação genital feminina. Guiné Bissau é citada por
Elizeu Chaves como uma nação bem sucedida nessa missão.
A mutilação genital feminina coloca em risco também diversos direitos essenciais
do ser humano, como a liberdade, igualdade e saúde, por exemplo. Ademais, atenta contra
características dos direitos humanos além da universalidade, como a inalienabilidade e a
indivisibilidade.
Por fim, diante desse tema, está o grande desafio de conciliar o direito com a
diversidade cultural, que por sua vez, pressupõe os limites da liberdade.

Um dos grandes desafios enfrentados pelos direitos humanos hoje, entretanto, é


sustentar sua universalidade frente ao desponte das mais diversas culturas. O
mundo sempre foi heterogêneo e a diversidade cultural sempre foi uma
realidade. Contudo, a intensificação da globalização econômica ocorrida na
segunda metade do século XX contribuiu para que a diversidade cultural
despontasse como um dilema a ser discutido nas arenas política, jurídica, social e
econômica.161

2.3 Uma releitura dos direitos humanos à ótica contemporânea

É possível também realizar uma interpretação dos direitos humanos através de


temas abordados pela teoria política contemporânea, entre eles, o neorrepublicanismo.
Veja-se a posição de Luis Felipe Miguel sobre o tema:

O neorrepublicanismo apresenta-se não apenas como instrumento de análise e


crítica das instituições das sociedades contemporâneas, mas também como uma
perspectiva normativa para a indução de reformas institucionais e para a
produção de leis e políticas públicas em consonância com o ideal de liberdade
que a constitui. (MIGUEL, 2016, p.139)

Tal entendimento inspira o estudo dos direitos fundamentais, uma vez que a
positivação dos mesmos na Constituição consagra que estes vão além de meras
proclamações políticas. Os direitos fundamentais constituem uma pretensão exigível pelos
cidadãos em face do Estado.

161Disponível
em: <https://jus.com.br/artigos/57607/a-pratica-da-mutilacao-genital-feminina-e-os-direitos-
humanos> Acesso em: 05/07/2018.

~ 205 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A fim de compreender melhor a possibilidade de analisar os direitos humanos por


um viés neorrepublicano, é importante analisar as contribuições dos teóricos que possuem
relação com essa corrente, uma delas é a de Philip Pettit.
Enquanto liberais como Isaiah Berlin defendem que a interferência intencional
reduz a quantidade de liberdade dos indivíduos, PhilipPettit sustenta que apenas as formas
arbitrárias de interferência, vinculadas ao fenômeno da dominação são lesivas à liberdade.
Por conseguinte, a liberdade é definida pela linha de Pettit como não dominação.
Isso é importante para questionar o que seriam formas de dominação. Uma das
questões trazidas por Luis Felipe Miguel em seu livro “Desigualdades e Democracia: o
debate da teoria política” é a desigualdade material e para isso, ele recorre a dois autores
clássicos: Maquiavel e Rosseau, trazendo a ideia de que o problema não está em existirem
cidadãos ricos, mas sim no momento em que a riqueza extrema de um lado gera tamanha
opressão que compromete a liberdade do outro.
Tal cenário se reflete na análise dos efeitos econômicos num mundo globalizado.
Uma sociedade comprometida em assegurar o ideal de não dominação conceituado pelos
neorrepublicanos não se preocuparia apenas com efeitos econômicos vantajosos
decorrentes das relações mercantis, mas sim atentar para desigualdades que há tempos são
produtoras de dominação. Depara-se, portanto, novamente, com uma questão de
efetividade, uma vez que o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos parece
esclarecer o quão importante é a questão social para o exercício dos Direitos Humanos:

Artigo 25
1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a
sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,
cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em
caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda
dos meios de subsistência fora do seu controle.

Mais uma vez, verifica-se o velho dilema entre teoria e prática. O pensamento
neorrepublicano no sentido de defesa da redução das desigualdades materiais parece
enfatizar a necessidade de serem asseguradas condições sociais mínimas para o exercício de
direitos, de tal modo que as liberdades individuais não sejam comprometidas. Conclui-se,
portanto, que a análise exclusiva de resultados de operações de mercado contribui para
intensificar as desigualdades e com isso afetar o exercício de outras garantias.
A ótica neorrepublicana, portanto, é importante a fim de complementar o debate
acercada efetividade de questões sociais e individuais levantadas quando se trata de direitos
humanos.

~ 206 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Por trás de um ser humano que encontra uma série de liberdades comprometidas,
pode haver também um ser humano com direitos fundamentais e necessidades básicas
comprometidas. Tal indivíduo depara-se, portanto, em situação de emergência e isso em
diversas situações o estimula a procurar apoio em algum lugar que tenha pelo menos suas
necessidades básicas satisfeitas. Isso nos conduz a outro tema polêmico na atualidade:
movimentos migratórios e direitos de refugiados.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 constituiu-se como um
marco inspirador a figuras complementares no intuito de proteção dos direitos humanos.
No âmbito de proteção dos direitos humanos aos refugiados, é importante salientar o
“Direito Internacional dos Refugiados”, que age em proteção do refugiado desde a saída do
seu local de residência, a concessão de refúgio no país de acolhimento e o seu eventual
término. O Direito Internacional dos Refugiados teve como marco a Convenção de
Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951. Em 1984, foi criada a Declaração de
Cartagena, que por sua vez, trouxe adições a essa Convenção.
É interessante notar o quanto esses documentos diferem no tocante aos motivos
que farão uma pessoa buscar refúgio. A Convenção de Genebra de 1951 foi criada no
contexto pós guerra e trazia como motivos raça, nacionalidade, opinião política, religião e
pertencimento a um grupo social. Contudo, havia o entendimento de que a Convenção de
1951 somente se aplicaria a pessoas que tivessem se tornado refugiadas antes de 1951.
O Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados de 1967 veio no sentido de
romper com essas restrições, fazendo com que a Convenção se tornasse geral e universal,
se aplicando para qualquer pessoa que fosse buscar refúgio. A esse avanço, soma-se a
Declaração de Cartagena amplia o rol de motivos pelos quais as pessoas possam buscar
refúgio e um deles é a grave e generalizada violação dos Direitos Humanos. Isso teve
reflexos inclusive no Brasil, quando foi criada a sua lei de refúgio (Lei 9474/97).
No plano jurídico internacional, existem distintas legislações e órgãos
internacionais que protegem o refugiado, como o Estatuto dos refugiados e da ACNUR
(Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), contudo, distintos refugiados
encontram muitas dificuldades em serem considerados cidadãos e sujeitos de direitos nos
países que os recebem. Tal cenário se acirra com a prática da xenofobia e de crises
econômicas, que muitas vezes baseiam políticas mais rígidas para restringir a entrada de
imigrantes.

3. CONCLUSÃO

~ 207 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Mas é importante se lembrar que já existem mecanismos no âmbito do Direito no


plano internacional e que podem ser incrementados pela vontade dos Estados. O grande
desafio está muitas vezes em conferir efetividade a esses, pois os problemas pelos quais
cada país passa, muitas vezes interferem no seu consentimento com relação à entrada de
novos habitantes.
Existe também o desafio de adequar as disposições de Declarações com as
especificidades socioculturais de cada grupo, que muitas vezes põem em jogo suas
características.
É preciso ressaltar, portanto, os avanços já atingidos até então e aqueles que ainda
serão, lembrando sempre das diretrizes já estabelecidas, prezando pelo respeito à
humanidade e ao interesse da coletividade. Num cenário global de distintas desigualdades
que muitas vezes influenciam em quadros de fragilidade dos direitos humanos e diretrizes
pessimistas, no aniversário de 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948, faz-se importante recordar das palavras de Hannah Arendt, quando escreveu uma
carta que expressa de maneira profunda a maneira como um refugiado se sente: “Com
efeito, nosso otimismo é admirável, mesmo que sejamos nós a dizê-lo”162.

BIBLIOGRAFIA

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fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

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162Disponívelem: <https://farofafilosofica.com/2018/03/13/nos-os-refugiados-carta-de-hannah-arendt/>
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~ 210 ~
OS REFLEXOS DE 70 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS NO DIREITO CONTEMPORÂNEO DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

João Victor Acquino


Giovana de Carvalho Florencio*

INTRODUÇÃO

Setenta anos após a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos


muito ainda há que se pensar acerca da universalidade e da consolidação dos direitos dos
menores. Haja vista que o conceito de criança por si só é muito recente, o que realça o
objetivo da declaração pioneira ao dispor acerca dos direitos dos infantes de forma
protetiva e geral.
No decorrer dos anos, a Organização das Nações Unidas promoveu diversos
eventos visando incitar os direitos desse grupo social, sendo o mais influente deles a
Convenção Internacional do Direito da Criança e do Adolescente, a qual esclareceu acerca
dos direitos dos menores. Ainda, esta é o tratado internacional de direitos humanos com
maior número de ratificações existente, no entanto, em termos práticos ainda há muito que
se falar da aplicação do mesmo ao redor do mundo.
Para realizar o papel fiscalizador da implementação da Convenção, foi criado o
Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, nos termos do art. 28 do Pacto
Internacional sobre os Direitos Humanos. O mesmo tem poder apenas de realizar
relatórios acerca dos problemas visualizadose solicitar informações acerca do cumprimento,
porém, por não possuir poderes de constrição, devido à soberania dos Estados, encontra
seu poder limitado.
Outra questão quanto à aplicação do direito da criança é o conceito da mesma,
um vez que o artigo segundo da Convenção, estipula criança como todo ser humano
menor de 18 anos. No entanto, essa definição etária encontra obste em fatores culturais e
legais específicos, quer seja na definição de idade civil e maioridade penal. Estaria de

* Acadêmicos do Curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS.

~ 211 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

acordo com a definição de criança e coeso definir a maioridade penal como 14 anos
enquanto ainda está em fase de construção psíquica?
Ainda, outro ponto bastante controverso quando da aplicação prática dos direitos
da criança consolidados pela Declaração Universal é do trabalho realizado por menores e o
direito à educação. Ao determinar o direito à instrução dos menores, a Declaração
corroborou a necessidade de regulamentação do trabalho infantil e proibição do mesmo em
alguns casos. Não há que se falar em proibição global ou total, uma vez que algumas faixas
etárias são permitidas de trabalhar por entendimento da seara trabalhista. A maior diferença
será na primazia educacional frente à trabalhista e nas condições especiais de trabalho.
Outro grande problema que aqui será abordado é da violação direta aos direitos
da criança, tais quais: o infanticídio, todos os tipos de violência, práticas culturais invasivas
e o aborto, o qual se destaca por sua controversa visão. Esses pontos serão tratados ao
longo do capítulo de modo a compreender a extensão da Declaração Universal dos
Direitos Humanos em face dos menores a termos globais e principalmente no direito
interno brasileiro.

1.DISPOSITIVOS DA DECLARAÇÃO E AQUISIÇÃO DO DIREITO DOS


INFANTES

A Declaração dos Direitos Humanos dispôs em alguns dos seus artigos acerca dos
direitos dos infantes. Ao introduzir o menor como ser dotado de inteligência e merecedor
de proteção, pugnou pela necessidade da qualidade de vida destes que se tornam o futuro
das Nações. Esbarra, no entanto, na consolidação da garantia desses direitos. Uma vez que
o dispositivo assegura o direito a proteção da lei para com todos, podendo os atingidos
recorrerem a âmbito nacional e internacional por terem seus direitos básicos feridos.
Desde seu preâmbulo até o arremate do primeiro artigo, o dispositivo enfoca na
igualdade desde nascença. O ponto controvertido aqui se trata da existência real dessa
igualdade no direito interno dos países e no conceito de nascimento como para início da
vida e dos direitos. Tal tópico será abordado a seguir, destrinchando do conceito de vida no
direito interno brasileiro e na garantia dos direitos da referida declaração.

~ 212 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

1.1 Direito à vida (Artigo III)

Na atualidade, o Brasil tem adotado o posicionamento da teoria concepcionista


para com o início dos direitos fundamentais. Este se respalda pela mera expectativa de vida,
uma vez que todo ser humano, no caso incapaz, tem direito à vida. O marco inicial do
direito a mesma dá-se do surgimento da vida, entendida diversamente em casa país. Nesse
sentido é de grande importância a decisão do HC 124.306/RJ pelo ministro Marco Aurélio
que levantou a proporcionalidade do direito a vida e do direito da mulher.
Nesse diapasão, é essencial discorrer sobre as teorias do conceito de vida
relacionado à fase gestacional. A primeira teoria, tradicional, é a concepcionista que
considera a hipótese de que a vida começa desde o encontro dos gametas. Enquanto isso,
algumasteoria modernas consideram que a vida tem seu início na formação do sistema
nervoso central e rudimentos de consciência, o que ocorreria por volta do terceiro mês de
gestação. E ainda, a teoria adotada quando da criação do Código Civil brasileiro oriunda do
entendimento de Pontes de Miranda, a natalista, que entende pelo surgimento da vida
quando da primeira respiração. A solução do caso parece muito mais pessoal do que
processual, uma vez que depende da crença de cada um, e ainda está sujeito a fatos que a
ciência não finalizou suas pesquisas.

Não há solução jurídica para esta controvérsia. Ela dependerá sempre de uma
escolha religiosa ou filosófica de cada um a respeito da vida. Porém, exista ou
não vida a ser protegida, o que é fora de dúvida é que não há qualquer
possibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno nesta fase de sua
formação. Ou seja: ele dependerá integralmente do corpo da mãe. Esta
premissa, factualmente incontestável, está subjacente às ideias que se seguem.
(MELLO, 2016, p. 9).

No direito interno brasileiro prevalece a posição de defesa dos nascituros


consoante art. 2º do Código Civil 163e consequentemente do direito a vida, limitado aos
embates sociedades. Dentre estes os mundialmente conhecidos e problemáticos são o
aborto, que se relaciona como o entendimento do conceito de vida, e da transfusão de
sangue por parte das Testemunhas de Jeová. Tal qual qualquer outros dos direitos
resguardados pela Constituição, ainda que provindo da Declaração Universal dos Direitos,
este não é ilimitado e é possível de ponderação nas situações concretas. É mister diz que
mesmo após tanto tempo de Declaração não há um entendimento universal.

163Art. 2º - A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro.

~ 213 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Enquanto no Brasil o aborto só é permitido em três casos específicos, que sejam:


aborto necessário ou terapêutico, o aborto no caso de gravidez resultante de estupro,
descriminalizados pelo art. 128 do Código Penal, e no caso de fetos anecefalos após a
decisão da ADPF 54. Países como EUA, Alemanha, Reino Unido, França, Portugal,
Espanha, Itália, Holanda e Austrália não tratam o ato de interrupção da gravidez até o 3º
mês como crime.
Já quanto a questão das Testemunhas de Jeová é válidalembrar que hoje em dia
existem muitas maneiras alternativas a transfusão sanguínea. Mas o embate surge quando se
trata de casos sem medidas alternativos em que a vítima esteja entre a vida e a morte versus
direito de crença. No caso de menores, parte da jurisprudência entende pela valoração do
poder pátrio e a outra pelo direito a vida. Quando em risco de vida, o Conselho Federal de
Medicina entende pela prevalência do direito a vida, uma vez que a criança é merecedora de
proteção integral. Nesse sentido, vide Resolução CFM nº 1.021/80, artigo 2º: "Se houver
iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de
consentimento do paciente ou de seus responsáveis”.

1.2. Direito à liberdade (Artigo III eXIX)

A Declaração assegura ainda que todo ser humano, incluindo os menores, tenham
direito a opinião e expressão. Este pode se esbarrar no poder pátrio e na escuta do
judiciário desse menor. Eis aqui mais uma questão que deve ser resolvida por ponderação
pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
É lógico que uma criança terá sua liberdade à informação restrita pelos adultos de
modo a respeitar a construção cognitiva do menor. Por essa mesma razão é que quando
um menor profere um hate speech (discurso de ódio) cabe ao seu responsável legal
responder. A idade para tal responsabilização varia de país para o outro, este tema será
abordado no tópico 1.4.
Quanto à escuta, no direito interno foi promulgada a lei 13.431 de 2017,
assegurando a realização de uma oitiva adequada ao menor. Tal entendimento de propiciar
a escuta adequada a criança é essencial para consolidação da liberdade de expressão. Como
entende Consuelo Biacchi Eloy“aceitar que a criança possui percepção e opinião sobre as
pessoas e os acontecimentos de sua vida é o primeiro passo para compreendê-la e oferecer-
lhe uma escuta adequada” (ELOY, 2010, p.241).

~ 214 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

1.1 Direito à segurança (Artigo III e XXII)

Ainda, o menor tem seu direito a segurança assegurado internamente pelo artigo
4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, e no Artigo XXII da Declaração objeto de
estudo como obrigação internacional:

Artigo XXII - Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à
segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação
internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos
direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre
desenvolvimento da sua personalidade.

Esse direito é base fundamental para desenvolvimento cognitivo e físico dos


infantes. O ideal trata de uma premissa básica do direito a uma vida segura a todas, e
principalmente, para aqueles que são seres humanos em desenvolvimento e que necessitam
de proteção.

1.2 Maioridade Penal e suas implicações

No caso da responsabilidade penal, a Declaração dos Direitos Humanos assegura


o direito à presunção de inocência e do devido contraditório em seu artigo XI. Porém, no
caso das crianças inimputáveis apenas respondem civilmente ou penalmente, quando assim
determinado por lei, seus responsáveis. O termo crianças “inimputáveis” trata da relação de
maioridade penal que varia ente os países do mundo, sendo que em alguns os infantes
chegam a responderem criminalmente.
Por exemplo, a maioridade penal do Brasil é maior que a média,se situando entre
18 anos, enquanto desde 1998 na Inglaterra a maioridade penal se dá aos 10 anos de idade.
A pergunta que cabe aqui é se a maioridade penal precoce estipulada em alguns países diz
interesse apenas em relação a sua soberania ou tem impactos internacionais estando em
desacordo com o estipulado nas declarações e tratados internacionais (FOLHA DE SÃO
PAULO, 2011).

~ 215 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Fonte: Open University

1.3 Direito a vida privada e seus abusos

Os direitos personalíssimos de imagem e honra defesos pelo artigo 20 do CC e 5º


da CF são originários do artigo XII da Declaração objeto de estudo, o qual assegura o
direito a vida privada. No entanto, essencialmente quando se trata da criança e do
adolescente, esse direito não há de ser ilimitado. Principalmente, quanto às questões que
excedem a maturidade psicológica do menor.
É assegurado no direito interno pelo artigo 227 da CF o direito a convivência
familiar, igualando os direitos dos filhos contraídos em matrimônio ou não. Ainda, há
igualdade parental na criação dos filhos, cabendo ao judiciário dirimir eventuais
divergências. Por fim, é vedada qualquer violência intrafamiliar exercida contra os menores,
estando no limiar do poder parental. Caso os direitos do menor sejam feridos por sua
própria familiar, é possível a perda ou suspensão do poder familiar, nos termos do art. 22 e
24 do Estatuto da Criança e do Adolescente (PIOVESAN, 2016, p.278).
Ainda, a Declaração assegura os diretos a maternidade, saúde e equiparação entre
todas as crianças, que seja “artigo XXV (...) 2. A maternidade e a infância têm direito a
cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio
gozarão da mesma proteção social”. Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente
assegura o acompanhamento gestacional gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e
possui uma lei acerca da averiguação de paternidade oficiosa para registro a todas crianças,
Lei 8.560 de 1992. No entanto, é mister dizer que o Brasil é um dos únicos países que
possui sistema de saúde gratuito e lei para averiguar crianças registradas sem nome do
genitor.Nessa seara, há muitos abusos no direito internacional, como se pode ver, e muito a
melhorar no direito e questão de saúde de menores.

~ 216 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

1.4 Direito a educação x Trabalho

Pelo artigo 7º XXXIII da Constituição Federal é vedado qualquer trabalho


insalubre a menores de 18 anos e qualquer trabalho salvo na condição de aprendiz antes
dos 14 anos. Os direitos do trabalhador assegurados constitucionalmente pelo direito
interno no artigo 7º da magna carta estão dispostos também no artigo XXIII da Declaração
em estudo. Esses direitos se entendem aos menores qual seja sua classificação de trabalho,
ainda pela sua natureza, frisa-se o direito a educação como concomitante ao trabalho,
sendo que este não pode impedir o outro.
No caso do artigo XXIV que afirma que “todo ser humano tem direito a repouso
e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas
periódicas” é essencial para a construção lúdica e psicológica do ser humano em
desenvolvimento.O lazer se complementa com o direito a instrução,este disposto no artigo
XXVI da Declaração. A instrução deve gratuita ao menos nos graus elementares para que
os seres humanos tenham informação básica para exercer seu trabalho com qualidade e
possuir uma vida com dignidade mínima.
Ainda, o conceito de meritocracia disposto neste mesmo artigo encontra atrito
com as desigualdades socioeconômicas dos países, principalmente para o ingresso no nível
superior. No direito brasileiro foi instituído o direito as cotas escolares para algumas classes
sociais específicas visando equiparar a realidade econômica do país. A lei 12.711 de 2012
que a instituiu foi objeto de ADPF 186 e declarada constitucional pelo princípio da
proporcionalidade. Seja uma decisão conflituosa ou não do Brasil, tem sido entendido que
a mesma não contrapõe, mas supera a Declaração de modo a fortalecer o segundo tópico
do mesmo artigo:

2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da


personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e
pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a
tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e
coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

Por fim, nesse mesmo teor foi julgada na ADI 4.439 em 2017 que entendeu ser
constitucional o ensino religioso confessional no ensino público. Uma vez que o ensino
público é a única opção para aqueles que não possuem condição financeira, surge a
pergunta se não seria contrário ao acordo internacional que assegura a prioridade de direito
na escolha do gênero da instrução de seus filhos. Nesse sentido, assegura a LDB o direito a
estudar nas escolas mais próximas de sua residência, mas ainda assegura a possibilidade de

~ 217 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

ensino religioso facultativo em seu artigo 33. A problemática parece não estar esgotada e
ainda necessitar de rediscussão pelo Congresso, quem tem obrigação de ratificar os tratados
internacionais, quer sejam apenas supralegais ou constitucionais, nos termos do artigo 5º,
parágrafo 2º da CF.

2. INFLUÊNCIA DA DECLARAÇÃO NA CONVENÇÃO DA CRIANÇA (1990)

Ademais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos se consolidou pela


asseguração dos direitos ao ser humano sem classes definidas, se pautando em breves
trechos ao direito da criança, como pudemos ver. No entanto, ele foi responsável pela
asseguração e impulso para o surgimento da Convenção da Criança e do Adolescente de
1989, sendo o tratado de diretos humanos com mais ratificações na história (PIOVESAN,
2016, p.268).
A igualdade e os direitos gerais dispostos na Declaração serviram de escopo para a
Convenção, e vieram de modo a pregar a não discriminação e suporte das crianças. Ainda,
a princípio a Convenção impôs o método de controle dos relatórios de monitoria do
Comitê sobre os Direitos da Criança. Só então em 2001 que adotou o protocolo facultativo
para possibilitar o recurso individual de direitos, para apreciar violações aos direitos das
crianças, fortalecendo a individualização e proteção integral do menor.
Acerca da proteção integral do menor, há que se dizer que é um dos pilares da
construção do Estatuto da Criança e do Adolescente e do art. 227 da Constituição Federal
que dispõe sobre os direitos dos menores. Nesse diapasão, é válido dizer que o Brasil
ratificou a Convenção em 25 de setembro de 1990 e ratificou os Protocolos Facultativos
em 27 de janeiro de 2004 (PIOVESAN, 2016, p. 471).
Sobre tal, a nossa carta magna assegurou como ordem social a proteção das
crianças e adolescentes e corroborou os direitos elencados na Declaração aqui citada (Lena,
2016, p.1481):

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao


adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.

Também, a âmbito internacional os ODS (Objetivos de desenvolvimento do


milênio) atuam como gancho para consubstanciação da Declaração, e é claro, da

~ 218 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Convenção. Por exemplo, dados da ONU – Organizações das Nações Unidas indicam que
“seis milhões de crianças ainda morrem a cada ano, antes do seu quinto aniversário”, o que
demonstra uma clara preocupação global e da criança como vulnerável. Os objetivos são
coisas como erradicar pobreza, melhorar educação, igualdade de gênero, propiciar
alimentação saudável dentre outros, que devem ser cumpridos até 2030, sendo os maiores
atingidos os menores os quais serão o futuro do planeta.

3. CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DA CRIANÇA E DO


ADOLESCENTE NO DIREITO INTERNO

O início do processo de incorporação dos direitos humanos advindos de tratados


assinados pelo Brasil teve como marco principal o processo de redemocratização do Brasil.
O fim da ditadura civil-militar proporcionou uma mudança significativa no modo como se
compreendia a relação entre o direito internacional e o direito interno. O primeiro
instrumento internacional a ser introduzido em sede do ordenamento jurídico brasileiro foi
a ratificação da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou
Degradantes em 1989. Nas décadas seguintes, muito devido a ordem constitucional
inaugurada pela Carta Magna de 1988, ratificou-se uma série de instrumentos internacionais
de proteção dos direitos humanos, como a própria Convenção Sobre os Direitos da
Criança, em 24 de setembro 1990. (PIOVESAN, 2000, p. 100).
A mudança no ordenamento jurídico brasileiro acompanhou a tendência
preponderante na América Latina. A herança jurídica da maioria dos países dessa parte do
continente é historicamente ligada ao positivismo jurídico, aliado principalmente as
doutrinas de soberania estatal, o que dificultava em demasia a inserção de normas
decorrentes de tratados internacionais.
O processo de redemocratização e o fortalecimento do sistema constitucional
possibilitou que o Brasil retornasse ao cenário internacional em busca de um maior
protagonismo e participação nos organismos internacionais, tal qual a ONU. O processo
de reconhecimento dos instrumentos internacionais possibilitou o fortalecimento da
democracia e aumentou o grau de proteção dos direitos humanos no país, tendo em vista
que este permitiu a expansão e a reafirmação do rol de direitos fundamentais que o texto
constitucional já compreendia. (PIOVESAN, 2000, p. 101-102).
Além disso, o constituinte originário consagrou em dois artigos, o 227 e o 228,
ambos resultados de duas emendas populares, um novo patamar de proteção do direito das

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Direitos Humanos & Fundamentais

crianças e adolescentes. O artigo 227, especificamente, institui como dever da família, da


sociedade e do Estado, assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem uma série de
garantias, como à educação, à saúde e à profissionalização, e os tornou sujeitos de direito.
A partir de 1988 o Brasil adotou o viés garantista no tocante aos direitos infanto-juvenis e,
por conseguinte, se tornou um dos países com a legislação mais avançada nesse tema.
(AMIN, 2016, p. 52).
Nesse contexto, promulgou-se, com intuito de regulamenta e efetivar os direitos
constitucionalmente garantidos, a Lei n.º 8.069 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA). Nas palavras de AMIN (2016, p. 52-53):

O termo “estatuto” foi de todo próprio, porque traduz o conjunto de direitos


fundamentais indispensáveis à informação integral de crianças e adolescentes,
mas longe está de ser apenas uma lei que se limita a enunciar regras de direito
material. Trata-se de um verdadeiro microssistema que cuida de todo o
arcabouço necessário para efetivar o ditame constitucional de ampla tutela do
público infantojuvenil. É norma especial com extenso campo de abrangência,
enumerando regras processuais, instituindo tipos penais, estabelecendo normas
de direito administrativo, princípios de interpretação, política legislativa, em
suma, todo o instrumental necessário e indispensável para efetivar a norma
constitucional.

O ECA foi responsável por transformar o status quo do modo como se encaravam
as crianças e os adolescentes. Isso se revelou de extrema importância especialmente no
tocante ao enfrentamento dos obstáculos culturais quando da efetivação desses direitos.
Juridicamente, além de se abordar os aspectos legislativos do ECA, cabe destacar
a atuação do poder judiciário para tornar efetivo a proteção às crianças e adolescentes.
Dentre os diversos pontos passíveis de nota, cabe citar a criação, de acordo com a
faculdade disposta no artigo 145 do referido estatuto, das varas judiciais especializadas para
julgar os litígios que envolvam, seja como parte ou origem do litígio, crianças e
adolescentes. Tal previsão quebrou o estigma que existia até a década de 90 de que as ações
envolvendo essa parcela da sociedade se resumiam apenas as criminais, quando a criança e
adolescente eram parte no cometimento do delito, e as cíveis que geralmente ficavam
adstritas às varas de família.

4. EMBATES SOCIAIS E CULTURAIS PARA CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO


DA CRIANÇA

Embora exista um sistema de proteção internacional dos direitos humanos dos


menores bem consolidado, ainda há uma dura realidade em todo o mundo que obsta a

~ 220 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

efetivação de tais direitos. As crianças e adolescentes ainda são submetidos a recorrentes


violações de seus direitos mais básicos.
Estas violações podem ocorrer de diversas formas. Umas são mais facilmente
identificáveis, como a exploração sexual e a laboral, e outras cujo reconhecimento e
enfrentamento demandam um processo mais complicado, visto que possuem uma raiz
fundada nas práticas culturais e sociais de determinado povo, é o caso a mutilação genital
feminina e do casamento infantil. Em ambos os casos, tais práticas se identificam como
empecilho para que se atinja o pleno desenvolvimento e proteção à infância e juventude.
Um dos meios contemporâneos de exploração com maior ocorrência é aquela que
ocorre em âmbito laboral.Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), o número de crianças e adolescentes submetidos ao trabalho infantil no Brasil
chega a alcançar a incrível cifra de 1,8 milhões de menores explorados. Segundo os dados
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Contínua a maioria das crianças
exploradas está na faixa entre 14 e 17 anos. A maioria trabalho no setor privado,
destacando-se a alta incidência do trabalho dos menores em ambiente doméstico.
A motivação econômica de se auferir lucro com base no abuso de menores é
antiga. Desde a revolução industrial o trabalho do menor é tratado como um meio de se
conseguir mão de obra barata e de fácil substituição. Já no final do século XIX e inicio do
XX, surgiram as primeiras legislações protetivas na Inglaterra. Estas tinham como objetivo
principal a proibição do trabalho dos menores em locais insalubres, como minas, e a
proibição do seu trabalho noturno. O Brasil, por sua vez, delineou normativamente o
trabalho das crianças e adolescentes a partir da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
promulgada em 1943. Dentre outras coisas, o texto legal proibiu o trabalho dos menores de
16 anos, excetuando-se a condição de menor aprendiz que permite o trabalho a partir dos
14 anos, e garante a este todos os direitos de um trabalhador comum.
No entanto, diferente do Brasil, muitos países possuem pouca ou nenhuma
legislação que regulamente o trabalho. Além da questão normativa, uma das principais
dificuldades encontradas no combate ao trabalho infantil é a noção cultural, vigente em
muitas sociedades, de que o trabalho é parte importante da vida de um individuo e que,
portanto, é irrelevante que se estabeleça um limite mínimo de idade para que se comece a
laborar. É muito comum em diversas localidades, urbanas e rurais, crianças que desde a
primeira infância já possuem alguma ocupação. O principal problema desse tipo de
exploração se encontra no fato de que esta é realizada pela própria família.

~ 221 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Ainda abordando o aspecto cultural, cabe fazer menção as violações aos direitos
dos menores que possuem origem nas expressões culturais e sociais de determinado povo.
É muito comum que em determinadas sociedades se adotem práticas culturalmente
consolidadas que se identifiquem como fonte de violação de direitos humanos. Em se
tratando dos direitos dos menores, as práticas do casamento infantil e da mutilação genital
feminina são exemplos destas práticas. Na maioria das vezes a ideia de que tais práticas tem
origem cultural e, portanto, definem a identidade de determinado grupo dificultam de
forma desmedida o combate à violação dos direitos dos menores.
Sobre esse aspecto, é amplo o debate existente em sede do estudo dos direitos
humanos quanto ao caráter universal desses direitos e o modo como essa característica se
choca com a cultura de seus destinatários. As normas de direitos humanos são
naturalmente universalista, estas são elaboradas de modo a atingirem todos os seres
humanos. Os adeptos do relativismo cultural defendem que, devido ao grande número de
culturas e expressões sociais, seria inviável que se estabelecesse uma norma dotada do
caráter universal e que não considerasse as práticas de determinado povo. No que pese seja
em partes verdadeira a afirmação dos relativistas, cabe levantar a noção consolidada pela
Declaração dos Direitos Humanos de Viena, de 1993, de que embora as peculiaridades
culturais sejam próprias de cada grupo humano, existe um limite mínimo instransponível
que são expressos nas normas internacionais de direitos humanos. (PIOVESAN, 2014, p.
214).
Conforme explica DONELLY (apud PIOVESAN, 2014, p. 2014):

Eu acredito que nós podemos, justificadamente, insistir em alguma forma de um


fraco relativismo cultural — que é, por sua vez, um razoavelmente forte
universalismo. É preciso permitir, em grau limitado, variações culturais no modo
e na interpretação de direitos humanos, mas é necessário insistir na sua
universalidade moral e fundamental. Os direitos humanos são, para usar uma
apropriada frase paradoxal, relativamente universais

Seguindo a orientação dada pela Declaração de Viena, nos momentos em que as


noções ou expressões sociais e culturais se demonstrarem um entrave para a efetivação dos
direitos humanos das crianças e adolescentes deve prevalecer a noção dos direitos humanos
como garantidores da proteção mínima e, portanto, prevalecer sobre qualquer costume.

~ 222 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

CONCLUSÃO

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 logrou em ser um dos


primeiros instrumentos internacionais que fizeram menção àquilo que hoje se compreende
como direitos das crianças e adolescentes. Decorreram-se 70 anos e muitos avanços foram
realizados. No entanto, sete décadas não foi o suficiente para que se alcançasse aquilo que
foi posto pela Convenção Sobre os Direitos da Criança. Ainda são muitos os problemas
jurídicos, sociais e culturais que existem sob o individuo em condição de criança e
adolescente. O posicionamento da colocado pela Declaração foi reiterado e aperfeiçoado
pela Convenção Sobre os Direitos da Criança de 1989.
Resiste, no entanto, uma falsa ideia de que os direitos dos menores são de segunda
classe e que a definição do modo como estes se relacionam com a sociedade cabe única e
exclusivamente aos pais ou responsáveis legais. Muitas das violações dos direitos das
crianças e adolescentes quando ocorrem se alicerçam em algum desses dois aspectos. É
incontável o número de crianças que são exploradas sob o pretexto de que, por não
possuírem desenvolvimento mental o suficiente para tomarem suas próprias decisões,
devem se submeter ao que lhe julgam ser mais adequado.
As normas internacionais, ao consagrarem a proteção aos infantes dentro do
sistema internacional de proteção dos direitos humanos, transformam a preocupação com
o bem estar dos menores em um assunto que interessa a sociedade como um todo e
transcende o simples locus de um determinado núcleo familiar. O Brasil a partir dessa
orientação se tornou um dos países mais avançados em se tratando da legislação protetiva.
Graças a Constituição Federal de 1988, os direitos já recepcionados da Convenção sobre os
Direitos da Criança puderam ser aplicados e aprimorados no bojo do Estatuto da Criança e
do Adolescente.
A nível global ainda há muito que se aprimorar. A atuação da Organização das
Nações Unidas tem sido de extrema relevância, principalmente no tocante a criação e
instrumentalização de políticas que busquem diminuir o alto nível de exploração e violação
dos menores. O exemplo mais recente é o da inserção da proteção à infância nos Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável. A principal característica assumida na Agenda 2030 foi o
grau de ocorrência de objetivos e metas que procuram proteger a infância, sendo que
grande parte se manifestou de forma interdisciplinar com diversos setores, como o
trabalho, o empoderamento, a educação e a cultura.

~ 223 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Acertada é a colocação dos direitos dos menores sob uma perspectiva ampla
como faz a Agenda 2030. Ao se analisar os principais problemas pelos quais as crianças e
os adolescentes são atingidos, encontrar-se-á a origem destes em aspectos que ultrapassam
aquilo que se infere em primeiro momento. A garantia de uma educação de qualidade e o
incentivo ao empoderamento são, por exemplo, meios de se melhorar a vida de diversas
meninas que já sofreram e ainda sofrem algum abuso, seja ele psicológico ou físico, no seu
dia-a-dia.
Proteger a infância envolve a quebra de uma série de paradigmas culturais, legais e
sociais. A busca pela defesa dos direitos dos menores deve continuar a avançar e que daqui
a trinta anos, no centenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, possa-se
realizar uma nova análise que demonstre que, apesar dos diversos obstáculos, a
humanidade conseguiu se manter firme ao objetivo de proteger as futuras gerações e fazer
cumprir seus direitos mínimos, protegendo-os a nível familiar, social e estatal.

REFERÊNCIAS

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CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução 1.021 de 26 de Setembro de 1980.


Adotar os fundamentos do anexo, parecer, como interpretação autêntica dos dispositivos
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iminenteperigo de vida.

FREIRE, João. O Aborto e a “derrota” da teoria Concepcionista. Fato Jurídico, 2011. Disponível
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Direitos Humanos & Fundamentais

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adolescente-como-sujeito-de-direitos-.pdf>. Acesso em: 20 de maio de 2018.

~ 226 ~
A INFLUÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS NA INCLUSÃO DAS
MULHERES NAS FORÇAS ARMADAS

Renato Augusto de Alcântara Philippin*


Ana Claudia Moreira Miguel Philippini**

INTRODUÇÃO

A guerra é um fenômeno complexo e tão antigo quanto a própria humanidade.


De acordo com Keeley (2011), desde as sociedades pré-históricas e tribais o ser humano
vem se envolvendo em práticas belicosas e mortais. No entanto, tão antiga quanto a guerra
é a participação das mulheres nos conflitos.
Conforme nota Fuller (2002), no senso comum, a guerra sempre foi percebida
como uma atividade masculina e a profissão de soldado uma exclusividade dos homens. A
zona de guerra é marcadamente construída como um espaço exclusivamente masculino;
nesse contexto, o homem é identificado como o guerreiro, enquanto a mulher é
invariavelmente definida como a vítima inocente do conflito (CAIRE, 2002).
Caire (2002) afirma que a mulher sempre participou ativamente dos conflitos
armados e, desde a Antiguidade, a presença feminina se fazia presente em posições
subalternas e de apoio às formações dos exércitos, mas sempre à sua margem.
Na Antiguidade, pois, a mulher como guerreira configurava sempre um
acontecimento excepcional. De Pauw (1998) assinala que o fato de não atuar como
combatente nas sociedades primitivas, não significa que a mulher não fosse capaz de matar,
como acontecia, por exemplo, em certos rituais culturais ou religiosos, nas quais elas
tomavam a função de torturadoras ou executoras dos prisioneiros de guerra. Segundo a
autora, entretanto, “[...] quando o combate serve como um ritual de puberdade para os
meninos, as meninas não podem participar sem destruir seu significado. Se as meninas

* Advogado e docente. Mestre em Ciência Política pela Universidade da Força Aérea – UNIFA. Especialista
em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Salesiano – UNISAL e em Direito Militar pela
Universidade Castelo Branco. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de Lorena.
** Aluna do Curso de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA, mestre em Ciência Política pela

Universidade da Força Aérea – UNIFA, especialista em Direito Público pelo Centro Universitário Salesiano –
UNISAL e em Direito em Administração Pública pela Universidade Castelo Branco – UCB.

~ 227 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

pudessem se qualificar tanto como as mães quanto como guerreiras, não haveria identidade
sui generis para os meninos” (DE PAUW, 1998, p. 12,).164
Mesmo com a modificação das bases da guerra promovida na Revolução
Francesa, com a criação da Grande Arma de Napoleão, formado não mais por
mercenários, como na era feudal, mas caracterizado pela mobilização total da população, as
mulheres continuaram afastadas da função de combatentes. O decreto de Conscrição, da
Assembleia Nacional, datado de 23 de agosto de 1793, estabelecia em seu Artigo I:

A partir desse momento até o instante em que nossos inimigos forem expulsos
do território da República, todos os franceses estão permanentemente
convocados para o serviço em armas. [...] Os jovens combaterão; os casados
forjarão as armas e transportarão os suprimentos; as mulheres farão as barracas
e as roupas e servirão nos hospitais; as crianças transformarão pedaços de linho
usado em ataduras; os velhos far-se-ão transportar para as praças públicas a fim
de estimular a coragem dos combatentes, pregar a unidade da República e o
ódio contra os reis. [...] (apud FULLER, 2002, p. 35)

Assim, após o surgimento dos exércitos regulares, na época napoleônica, se


algumas mulheres ainda combateram isso aconteceu fora de suas fileiras. Ou seja, o meio
militar tornou-se uma instituição generificada, conforme aponta o pensamento de Acker
(1992), pois para a autora, o gênero é um princípio ordenador da instituição militar.
Assim, o século XIX representou uma época em que a presença feminina junto
aos exércitos de forma regulamentar limitava-se às funções de cantineira e enfermeira.
Enquanto a primeira classe, segundo aponta Caire (2002), teria suas funções notabilizadas
durante as guerras da Criméia, do México, da Argélia e Franco-Prussiana para, desaparecer
por completo nos primeiros anos do século XX, as enfermeiras consolidariam sua
participação nos exércitos, graças à aparição da Cruz Vermelha. Na passagem do século
XIX para o século XX as enfermeiras passaram a tomar lugar nos hospitais militares.
Caire (2002) constata que, no século XIX, iniciou-se o processo de integração das
mulheres aos exércitos de modo que, na Primeira Guerra Mundial, já havia enfermeiras e
motoristas de ambulâncias e de viaturas de transporte presentes em zonas de combate.
Caire (2002) aponta, ainda, que na Segunda Guerra Mundial houve grande aproveitamento
feminino no esforço de guerra e relembra experiências como a da França, que foi o
primeiro país a reconhecer o status “militar” dos serviços auxiliares femininos, a dos
Estados Unidos e da Inglaterra, onde houve maior nível de integração com a criação de
vários corpos femininos e, por fim, da União Soviética e outros países do Leste europeu

164 Tradução livre de: “[...] when combat serves as a puberty ritual for boys, girls cannot participate without destroying the
meaning. If girls could qualify as both mothers and warriors, there would be no unique identity for boys” (DE PAUW, 1998,
p. 12).

~ 228 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

nos quais a integração se deu de forma total, com a participação de mulheres militares em
operações de combate terrestre e aéreo.
D’Amico e Weinstein (1999), que dedicaram seu estudo à presença feminina nas
Forças Armadas dos Estados Unidos, indicam que, durante a Primeira Grande Guerra, 23
mil enfermeiras do Exército e da Marinha estadunidenses estiveram em serviço ativo, ao
lado de outras tantas empregadas em serviços administrativos e de telecomunicações, sendo
que, a nenhuma das mulheres que participou do conflito foi conferida a condição de
militar. Anos mais tarde, na Segunda Guerra foram criados os corpos auxiliares femininos
como o Women´s Army Auxiliary Corps (WAAC)165, do Exército, o Women Acccepted for
Volunter Emergency Service (WAVES)166, da Marinha e o Women Air force Service Pilots
(WASP)167 composto por mulheres pilotos, que se tornaria em 1943 o Women in the Air
Force168(WAF), após a criação da Força Aérea dos Estados Unidos. No total, mais de 350
mil mulheres serviram durante o conflito, todas como não-combatentes, sendo estas, em
sua maioria, desmobilizadas após o fim das hostilidades.
Seria, pois, preciso esperar pelas duas grandes Guerras Mundiais do século XX
para que elas fossem admitidas nas Forças Armadas (CAIRE, 2002). No entanto, muito
embora durante a Segunda Guerra Mundial as mulheres tenham lutado nos exércitos de
várias nações, a tendência que se seguiu no século XX foi a do recrutamento feminino
apenas em tempo de guerra e, ainda assim, em funções auxiliares.
Foi apenas na década de 1970, que o movimento feminista proporcionou o
começo de uma revisão nas relações entre os sexos e a inclusão da mulher nos mais
variados ambientes de trabalho, incluído, entre estes, o ambiente militar. Nesta década as
Forças Armadas de vários países do mundo começaram a admitir mulheres em suas fileiras,
iniciando uma nova fase na história dos exércitos ocidentais.
Assim sendo a presente investigação busca estabelecer a relação entre a
perspectiva de gênero e a inclusão de mulheres nos contingentes militares brasileiros, tendo
o seguinte problema de pesquisa: de que maneira a Declaração dos Direitos Humanos e
seus documentos correlatos contribuíram para a igualdade de gênero nas Forças Armadas
brasileiras?
Para tanto, este trabalho de investigação compreende a técnica qualitativa e
quantitativa, pois abarca a observação e a análise crítica do corpo discursivo, bem como a
formulação de tabelas comparativas.
165 Corpo Auxiliar de Mulheres do Exército
166 Mulheres Aceitas para Serviço Voluntário de Emergência.
167 Mulheres Pilotos de Serviço da Força Aérea.
168 Mulheres na Força Aérea.

~ 229 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Com vistas a responder a indagação proposta, foram traçadas as seguintes tarefas:

a. Analisar a integração feminina nas Forças militares.


b. Identificaros direitosatinentes à mulher militar.
c. Identificar as políticas afirmativas
d. Estabelecer a relaçãoentre as políticas afirmativas efetivadas e a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948.

A MULHER NAS FORÇAS ARMADAS

É possível observar que a presença feminina, mesmo após a década de 1970,


permaneceu limitada por leis e políticas vigentes sobre o recrutamento feminino nas Forças
Armadas impondo restrições quanto à sua participação no combate, reservando para elas
funções em serviços auxiliares, inviabilizando o acesso a outros postos e principalmente a
posições de comando (GOLDSTEIN, 2009).
Com o final da Guerra Fria, no entanto, as características da guerra, dos conflitos
armados e das instituições militares sofreram mudanças, sendo o fim da era da dissuasão
nuclear sucedida por uma série de conflitos na África e no Leste Europeu. Nessa
conjuntura, as experiências dos exércitos ocidentais durante os conflitos no Iraque,
segundo Keegan (2005) e no Afeganistão, de acordo com Kiras (2010) foram marcados
pela irregularidade e pela presença de atores não estatais, assim como foi de grande
relevância o emprego militar de elementos de alta tecnologia, trazendo a necessidade de
uma rediscussão da identidade e do emprego de outros atores nas Forças Armadas,
particularmente no que diz respeito ao acesso às especialidades ou armas vedadas ao
público feminino e sua consequente atuação em combate.
No campo de batalha pós-moderno, mais tecnológico e irregular, num cenário em
que há maior demanda por outros fatores e mesmo por uso maior da diplomacia abre-se o
debate acerca da integração feminina nas forças militares (CAIRE, 2002). Por este viés,
deve-se levar em conta que uma sociedade de participação igualitária implica na integração
feminina nas Forças Armadas, preservando, por um lado, a eficiência e finalidade do braço
militar e, por outro, os direitos garantidos às mulheres de participar não mais apenas como
auxiliares.
Verifica-se, no entanto, que a tendência da mobilização feminina apenas em
tempo de guerra se manteve durante o século XX, até que transformações nos costumes e

~ 230 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

das mentalidades deram início a uma mudança de posturas que tiveram como
consequências uma série modificações nas legislações pertinentes à integração feminina em
vários países (CAIRE, 2002).
Os principais acontecimentos relativos à integração feminina nas Forças Armadas
ocidentais, em tempos recentes, se deram nos Estados Unidos. Goldstein (2009) aponta
que, em 1973, com o fim da convocação obrigatória e a criação de um exército
exclusivamente formado por voluntários, as Forças Armadas dos Estados Unidos passam a
encontrar dificuldades em recrutar e manter em seus quadros uma quantidade suficiente de
homens qualificados para as tarefas militares, o que levou o Departamento de Defesa a
voltar a atenção para o recrutamento de mulheres. Em 1974, entrou em vigor legislação que
permitiu o acesso de mulheres nas academias militares e, em 1977, o Secretário de Defesa
submeteu ao Congresso uma série de recomendações no sentido de expandir as
oportunidades de empregos de mulheres nas Forças Armadas. Por sua vez, em 1978, com
o estabelecimento da integração do pessoal feminino a um só comando, em detrimento do
sistema antigo que estabelecia que as mulheres deveriam ter uma cadeia de comando
separado, foi permitido, por exemplo, que mulheres fossem designadas de forma definitiva
em navios da Marinha estadunidense, desde de estes que não exercessem função de
combate e passou a se aceitar designação temporária delas, por até seis meses, em navios de
combate (D’AMICO E WEINSTEIN, 1999).
Entre o final da década de 1980 e início da década seguinte, ocorreram mudanças
significativas, inicialmente desfavoráveis, no que tange ao acesso feminino às chamadas
especialidades nobres, ou seja, que envolvem o combate direto. Conforme documento do
U.S. General Accounting Office169 (UNITED STATES GENERAL ACCOUNTING
OFFICE, 1998) em fevereiro de 1988, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos
adotou a denominada risk rule 170 que tratava de excluir o pessoal feminino de unidades de
suporte de participarem em missões nas quais houvesse riscos de exposição a combate
direito, fogo hostil ou captura, sempre que tais riscos fossem iguais ou superiores aos
experimentados por unidades de combate. Desse modo, ainda segundo o referido estudo,
naquele ano, apenas cerca de metade das posições nas Forças Armadas estadunidenses
encontrava-se acessível para as mulheres.
Entre os anos de 1991 e 1993, no entanto, baseado na experiência da Operação
Desert Storm171, ocorreram mudanças favoráveis ao aumento da integração feminina nas

169 Em português: Controladoria Geral do Governo dos Estados Unidos.


170 Em português: regra do risco.
171 Em português: Tempestade no Deserto.

~ 231 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

forças militares estadunidenses e, em que pese o fato da risk rule ainda continuar em vigor,
esta foi limitada para impedir a participação de pessoal feminino apenas em situações de
combate direto terrestre, de tal modo que as mulheres passaram a ser aceitas como pilotos
de combate e também foi permitido que servissem em navios de combate, excetuando-se
os submarinos e embarcações anfíbias, por razões de alocação (UNITED STATES
GENERAL ACCOUNTING OFFICE, 1998).
Apenas em 1994 o Governo dos Estados Unidos revogou a risk rule, aceitando o
entendimento que todo o pessoal deslocado ao teatro de operações encontra-se em
situação de risco, mantendo, no entanto, a restrição da utilização de pessoal feminino em
unidades cuja missão primária é o engajamento em combate direto terrestre. O
posicionamento então adotado pelo Departamento de Defesa estadunidense equivale a
dizer que se criou um regramento que impunha não o que uma militar poderia fazer, mas
sim onde ela poderia ser empregada, contrariando as demandas pela integração total e
igualdade entre os gêneros (BURRELLI, 2012)
Traçando um panorama relativo à integração feminina nas forças militares dos
Estados Unidos, passados quase vinte anos da revogação da risk rule, Burrelli (2012)
sustenta que, em 2009, foi criada a Military Leadership Diversity Comission172, cujas funções,
entre outras, está a de estabelecer e manter o acesso das mulheres a posições de liderança
nos mais altos postos das Forças Armadas. Diz ainda, que em 2011 a Comissão apresentou
ao Departamento de Estado uma recomendação, particularmente relevante relacionada à
presença feminina nas forças militares, no sentido de que as Forças Armadas dos Estados
Unidos devem eliminar as chamadas “políticas de exclusão de combate”, permitindo acesso
de mulheres qualificadas à totalidade das especialidades militares, inclusive aquelas nas
quais o combate direto faz parte de sua essência.
Em janeiro de 2013 o Departamento de Defesa dos Estados Unidos revogou a
Direct Ground Combat Definition and Assignment Rule173, que se constituía na diretriz que excluía
o efetivo feminino de ocupações ligadas diretamente ao combate terrestre, o que proibia,
consequentemente, a designação de mulheres para unidades de infantaria, de artilharia de
campo, de reconhecimento, vigilância e blindadas, entre outras. Dentro dessa linha de ação,
em 2016 quase todas as limitações de acesso a ocupações nas forças armadas dos Estados
Unidos foram removidas. Nessa mesma esteira têm sido tomadas posturas semelhantes por
forças armadas de países como o Reino Unido.

172 Comissão de Diversidade de Liderança Militar


173regra de atribuição e definição de combate direto.

~ 232 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

No entanto, no Brasil, não obstante tenham sido vencidas uma série de barreiras,
ainda existem muitas ocupações nas Forças Armadas restritas à participação de mulheres,
sendo a questão do gênero ainda um tabu no meio militar.

OS DIREITOS HUMANOS E A INCLUSÃO DAS MULHERES

Para Tedeschi (2012), as relações de gênero e poder permeiam a história, de modo


que “[...] a história tradicional antropocêntrica e universalizante criou o mito do sexo frágil,
da impotência feminina e da sua dependência existencial do masculino” (TEDESCHI,
2012, p. 9).
Constantemente utiliza-se o termo “sexo” para classificar os indivíduos segundo a
anatomia humana, tendo em vista que o organismo dos seres vivos apresenta características
estruturais e funcionais peculiares e distintivas entre os machos e as fêmeas. A separação
entre homem e mulher, com base em suas características anatômicas, produziu uma série
de construções culturais que vem se reproduzindo ao longo dos séculos e que terminaram
por revelar inúmeras desigualdades e hierarquias entre os sexos.
Dessa forma, historicamente, a mulher foi tomada numa posição
hierarquicamente inferior ao homem, tomando uma posição de reprodutora/cuidadora,
enquanto eles são tidos como ativos e provedores (STEARNS, 2010). Nesse sentido Sayão
(2003), aponta que, tendo como base suas características anatômicas, todo ser humano,
após o nascimento, é identificado com determinado sexo, estabelecendo-se assim uma
condição que vai manter-se para a vida toda.
Contrariando a ideia de biologia como destino, o pensamento feminista anuncia
que os machos e as fêmeas humanos distinguem-se tendo em vista características biológicas
(cromossomos, órgãos sexuais, hormônios, entre outros), mas são, fatores sociais, tais
como o papel ou posição na sociedade, o comportamento e a identidade que serão os
responsáveis por distinguir as mulheres dos homens. Para expressar tal ideia, foi
desenvolvido o conceito de gênero.
Beauvoir (1967) observa que ninguém nasce mulher, mas sim se torna mulher. Ou
seja, se por um lado a distinção biológica entre macho e fêmea diz respeito ao sexo, o
gênero refere-se às características que se espera das pessoas classificadas como homens ou
mulheres. Gênero, portanto, corresponde às expectativas comportamentais socialmente
constituídas, aos estereótipos e às regras que constroem a masculinidade e a feminilidade
(SJOBERG; COOKE; NEAL, 2011). Scott (1989), por sua vez, aponta que o conceito de

~ 233 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

gênero se constitui em uma importante ferramenta acadêmica, sobretudo por ampliar a


discussão, permitindo que mulheres e homens sejam investigados a partir de suas relações
com as dinâmicas sociais nas quais estão inseridos, sem que haja exclusão de um ou de
outro, mas sim de forma a entender a organização das relações sociais e analisar sujeitos
distintos dentro de suas próprias diversidades (REBELO, 2011).
Foi apenas no século XX que, contrariando os valores e normas culturais até
então positivados, os direitos das mulheres passaram a ser reconhecidos e salvaguardados e,
pouco a pouco, como outros direitos humanos, tornam-se uma questão globalizada
(MINGST, 2009).
Nesse sentido, a sistematização dos direitos humanos, entre eles o direito das
mulheres, teve início com a proclamação, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos
Humanos174, quando se começou a definir o ramo do direito internacional público
denominado “Direito Internacional dos Direitos Humanos” (DIDH), cujo fim é
estabelecer os direitos fundamentais do ser humano, bem como obrigar os Estados a
garantir o exercício de tais direitos (WEIS, 1999). Conforme aponta Weis (1999), o Direito
Internacional dos Direitos Humanos:

[...] recupera, em uma ordem jurídica globalizada, o significado do


Constitucionalismo e das Declarações de Direitos dos séculos XVIII e XIX em
seu tempo, a começar pelo fundamento jusnaturalista, pois a crença de direitos
inatos do ser humano, característica comum às Declarações do século XVIII, é a
mesma que orienta a formulação de todos os tratados internacionais de direitos
humanos (WEIS, 1999, p. 22).

Ou seja, a positivação dos direitos humanos, traz consigo a concepção de que tais
direitos são inerentes e universais, pertencem a todos os membros da espécie humana, sem
distinção quanto aos atributos ou posição social do indivíduo.
Assim, nas últimas décadas, houve uma expansão dos países que ingressaram no
sistema global, difundiu-se, pois, mundialmente, a tendência em incorporar nas
constituições as normas decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos (WEIS,
1999).
O constitucionalismo, originado no pensamento de Rousseau (1973) e nos
movimentos revolucionários que ocorreram no século XIX na América do Norte e na
França acolheu a ideia da igualdade de todos perante a lei. Chamada de igualdade “na lei”,

174 Resolução 217-a (III) da Assembleia-Geral da ONU.

~ 234 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

ou igualdade formal, tal afirmação representava e formalizava a até então inexistente


negação de privilégios entre os seres humanos175.
Nesse sentido o constitucionalismo contemporâneo, busca conferir mais do que
liberdades aos indivíduos, estabelecendo a possibilidade de exigir do Estado certas
prestações positivas, materializadas em atuações concretas e específicas que, de acordo com
Alexy (2009), constituem-se em encargos estatais de proteger ou promover algo. Ou seja,
hodiernamente, nas cartas constitucionais dos países democráticos instituem não somente a
pretensão de que o Estado se omita frente à um direito fundamental, mas que, pelo
contrário, passe a ficar proibido de se omitir.
Desse modo podem ser vislumbradas duas espécies de direitos fundamentais: os
direitos fundamentais a uma prestação negativa do Estado, que Alexy (2009) denomina
direitos de defesa e os direitos fundamentais a uma prestação positiva do Estado. Os
primeiros são ligados ao conceito de igualdade formal e os últimos ao de igualdade material.
Tendo como foco o indivíduo particularmente considerado, surgiram pois, em
diversos ordenamentos jurídicos nacionais e no âmbito do Direito Internacional dos
Direitos Humanos, políticas sociais de apoio e de promoção de determinados grupos
socialmente fragilizados, agora vistos como sujeitos concretos e historicamente situados.
Tais políticas, que buscam a concretização da igualdade substancial ou material,
denominam-se "ações afirmativas". Com essa nova posição, o Estado deixa de ser neutro e
mero espectador dos passa a atuar ativamente, no intuito de concretizar a igualdade
positivada nos textos constitucionais (BONAVIDES, 2004). De acordo com Duarte
(2014), as ações afirmativas:

(...) podem ser entendidas como soluções de caráter temporário, tomadas pelo
Estado ou pela iniciativa privada, cujo intuito primordial é o de corrigir e
compensar distorções históricas ou mesmo atuais, causadas por motivos
escusos que foram se acumulando com o decorrer do tempo e acabaram por
prejudicar certo grupo específico, seja por critérios de raça, etnia, religião,
gênero, etc. (Duarte, 2014, p. 5).

Organizadas em torno de uma demanda concreta de igualdade – a igualdade de


oportunidades – as ações afirmativas ancoram-se na ideia de que a igualdade fundada na
autonomia da vontade de cada pessoa não passava de uma ficção, porque quando as
relações econômicas e sociais são desiguais, a liberdade cede lugar à opressão dos mais
fracos (DRAY,1999).

175A constitucionalização do princípio da igualdade, ocorreu no Brasil, pela primeira vez, na Constituição de
1824, e hoje encontra-se hoje prevista no art. 5º da Constituição Federal de 1988.

~ 235 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Para Taborda (1998), a igualdade de oportunidades material e, destarte, as ações


afirmativas, funcionam como ponto de equilíbrio entre as aspirações liberais e sociais.
Visando a atingir seus objetivos, as ações afirmativas podem assumir várias
formas, que vão desde políticas sensíveis ao critério racial, social ou de gênero, em que tais
critérios são considerados ao lado de outros, até as políticas de cotas, em que se reserva um
percentual de vagas para pessoas pertencentes a esses grupos.
Previstas nos ordenamentos de vários países, as ações afirmativas encontram-se
estabelecidas na Constituição de 1988 como forma de superação ou de transição da
igualdade formal para a igualdade material de oportunidade de acesso a bens sociais
relevantes.
Da análise do texto constitucional, podem-se catalogar, no Brasil, pelo menos três
importantes categorias de sujeitos em relação aos quais se tem procurado estabelecer
medidas concretizadas para a superação da igualdade meramente formal: a dos deficientes
físicos, a relativa ao gênero e a dos negros ou afrodescendentes.
Além das previsões constitucionais, o ordenamento brasileiro apresenta também
ações afirmativas no plano infraconstitucional. A título de exemplo, a Lei nº 8.666/93, de
21 de junho de 1993 (BRASIL, 1993), dispõe sobre a contratação de associação de
portadores de deficiência física por órgãos ou entidades da Administração Pública.
Especificamente no que tange ao gênero, a Lei nº 9.504/97, de 30 de setembro de 1997
(BRASIL, 1997), estabelece que pelo menos 30% das candidaturas dos partidos políticos
brasileiros devem ser reservadas para cada sexo, permitindo-se, assim, que tal patamar
mínimo fosse reservado às mulheres. Não obstante o conjunto de ordenações jurídicas, de
cunho constitucional que pretendem erradicar a desigualdade entre homens e mulheres,
deve-se lembrar da face mais cruel dessa disparidade que é a violência contra a mulher, que
coexiste em um bloco de preconceitos e estereótipos que teima em permanecer.

POLÍTICAS PÚBLICAS DE IGUALDADE DE GÊNERO NAS FORÇAS


ARMADAS

Os direitos das mulheres e a busca por igualdade, durante muito tempo foram
vistos como um problema interno dos Estados. No entanto, tal panorama começou a
modificar-se ainda na primeira metade do século XX. Conforme aponta Mingst (2009):

A questão do direito das mulheres, como outras questões de direitos humanos,


colide diretamente com valores e normas culturais; entretanto, como outras

~ 236 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

questões de direitos humanos, pouco a pouco se tornou uma questão


globalizada (MINGST, 2009, p. 299).

A Organização das Nações Unidas tem como um de seus objetivos, a promoção


da igualdade de gênero e o empowerment das mulheres (UNITED NATIONS, 2010). E neste
sentido, a partir da conceituação de gênero, definições adicionais são utilizadas em seus
estudos. A identidade de gênero remete ao sentimento individual de ser homem ou mulher.
Stoller (1993) aponta que a masculinidade ou a feminilidade não são naturalmente
apresentadas ao sujeito por determinações biológicas, mas são características definidas
psicologicamente.
Diferentemente da identidade de gênero, os papéis de gênero são as formas de
manifestação ou representação social de ser macho ou fêmea. Os papéis de gênero são
papéis do que se espera que homens e mulheres devam desempenhar em determinada
sociedade. Nesse sentido Grossi (2012) explica que:

Papel é aqui entendido no sentido que se usa no teatro, ou seja, uma


representação de um personagem. Tudo aquilo que é associado ao sexo
biológico fêmea ou macho em determinada cultura é considerado papel de
gênero (GROSSI, 2012, p. 6).

A socialização ensina e reforça essas representações, que são definidas pela cultura
da comunidade. No que se refere, aos documentos oficiais da ONU a perspectiva de
gênero implica em análises das relações entre mulheres e homens (meninas e meninos) em
um dado contexto cultural e histórico. Tal perspectiva centra-se nas dinâmicas sociais que
fundamentam o acesso desigual ao poder, à propriedade, aos recursos ou à tomada de
decisões (DEPARTMENT OF PEACEKEEPING OPERATIONS, 2002). Para Carapia
(2004):

Por perspectiva de género se entiende la categoría metodológica que permite


estudiar las construcciones sociales de la realidad desde el género con rigor
metodológico, es la forma de analizar, interpretar y explicar las relaciones
sociales que se establecen entre hombres y mujeres en un momento histórico
determinado (CARAPIA, 2004, p. 9).

Tal análise permite uma visão mais ampla dos processos sociopolíticos que
definem os direitos sociais e humanos, de modo que nenhum dos dois gêneros seja
excluído (CARAPIA, 2004).
A igualdade de gênero, por sua vez, refere-se ao ideal de mulheres e homens
vivendo em igualdade de condições, com respeito aos direitos humanos de todos e onde

~ 237 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

todos os gêneros podem se beneficiar do desenvolvimento econômico, social, cultural e


político (DEPARTMENT OF PEACEKEEPING OPERATIONS, 2002). O conceito
refere-se a iguais direitos, responsabilidades e oportunidades para homens e mulheres,
configurando-se em uma questão de direitos humanos.
Por seu turno, equidade de gênero consiste no processo de ser justo com homens
e mulheres. De modo a assegurar a equidade medidas regulares devem ser postas em
prática, a fim de compensar as desvantagens históricas e sociais que impedem homens e
mulheres de trabalharem em igualdade de condições. A equidade é um meio; a Igualdade é
um resultado (DEPARTMENT OF PEACEKEEPING OPERATIONS, 2002).
Por fim, o termo empowerment, já mencionado anteriormente, muitas vezes
substituído na literatura nacional pelo neologismo “empoderamento”, significa, em inglês,
“dar poder”. O termo, conforme indica Aithal (1999), originou-se na prática de ativistas
feministas para depois consolidar-se como objeto de teorização. Rowlands (1997) aponta
que o termo adquire acepções diversas dependendo do agente que a utiliza: uma agência
governamental, comunidades de base ou teóricos. Não existe, pois, concordância em
relação ao conceito do termo. No entanto, Mosedale (2005) aponta que existe consenso no
pensamento feminista que empowerment das mulheres relaciona-se com o conceito de
autonomia, ou seja, da capacidade de tomar decisões em relação à própria vida. Há
consenso, pois, que a noção de empowerment é diretamente ligada à questão do poder com
algo que capacita (PARPART; RAI; STAUDT, 2002). Rowlands (1997) aponta que o termo
é usado em preferência a poder, pois empowerment envolve diferentes formas de “poder”: o
“poder sobre”, entendido como o poder de controlar algo ou alguém (gera, como
consequência, aquiescência, dominação ou resistência); o “poder para”, significando a
capacidade de fazer algo, sem que haja invasão dos domínios de terceiros; o “poder com”,
abarcando a ideia da ação em grupo; e o “poder de dentro”, ligado à autoestima e a
autoconfiança como forma de aceitar os outros como iguais.
O reconhecimento dos direitos das mulheres como direitos humanos, deve-se à
atuação da Organização das Nações Unidas. A base do suporte da ONU aos direitos das
mulheres encontra-se na Carta da Organização, promulgada em 1945. Em seu preâmbulo,
o documento reafirma a “igualdade de direito dos homens e das mulheres”, e logo a seguir,
no Artigo 1, declara ser um dos propósitos das Nações Unidas:

[...] conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas


internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para
promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades

~ 238 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião


(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, p.1, grifo nosso).

Nenhum documento jurídico internacional anterior havia tão enfaticamente


afirmado a igualdade de todos os seres humanos, ou se referido especificamente ao sexo
como base para discriminação. De tal forma, a Carta da ONU afirmou de modo
inequívoco, que a temática dos direitos das mulheres se tornaria uma questão central na
atuação da Organização nos anos vindouros.
No âmbito jurídico-normativo pátrio, a Constituição Federal de 1988 constitui-se
num marco no campo da proteção dos direitos humanos, entre os quais, os direitos das
mulheres (PIOVESAN, 2008). Com o novo quadro legislativo, o preceito constitucional da
igualdade de gênero passou a orientar todas as ações da Administração Pública. Para Rato
et al. (2005), quando se refere às transformações do século XX e seu impacto sobre a
Administração Pública:

As grandes transformações societais do século XX – que se caracterizam pelo


aprofundamento dos sistemas políticos democráticos, pela entrada massiva das
mulheres no mercado formal de trabalho, por uma maior consciência dos
direitos humanos e de cidadania e pela importância do papel dos Estados
enquanto garantia de equidade social – influenciaram os princípios, a estrutura e
os objectivos das Administrações Públicas, principalmente nos países ocidentais
(RATO, 2005, p. 7).

No entanto, apenas a previsão constitucional relativa à igualdade entre homens e


mulheres, não é suficiente para garantir a eficácia do princípio. Conforme assinala Soares
(2004), a ação do Estado é determinante na construção da igualdade. Para a autora, aceitar
“[...] é um primeiro passo, mas não o suficiente. É indispensável incorporar na sua agenda a
construção da igualdade” (SOARES, 2004, p. 114).
Nesse sentido, foi instituído no Brasil o Plano Nacional de Políticas Públicas para
as Mulheres 2013-2015 (BRASIL, 2013) constitui-se no documento de mais alto nível em
âmbito nacional que orienta as ações de governo relativas à perspectiva de gênero 176.
O PNPM (BRASIL, 2013), tem como princípios norteadores, entre outros, a
busca da igualdade efetiva entre mulheres e homens, em todos os âmbitos; e o respeito à
diversidade e combate a todas as formas de discriminação. Além de tais fundamentos, o
Plano adota “a transversalidade como princípio orientador de todas as políticas públicas”
(BRASIL, 2013, p. 10). Nesse sentido, compreende-se, pois, transversalidade, como sendo
o “[...] instrumento gerencial que visa dotar as organizações de capacidades para fazer

176O PNPM é elaborado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM),
órgão que, tem status de ministério, de acordo com o art. 38 da Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003.

~ 239 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

frente a uma realidade complexa e com a qual os instrumentos clássicos não têm
conseguido dialogar a contento” (SILVA, 2011, p. 4). A transversalidade, nos termos do
PNPM expressa que:

[...] não cabe apenas ao organismo de políticas para as mulheres promover a


igualdade de gênero, mas a todos os órgãos dos três níveis federativos. Para
tanto, o PNPM é implementado com base na transversalidade, tanto do ponto
de vista horizontal (entre os ministérios) quanto do vertical [...] (BRASIL, 2013,
p. 10).

A inclusão do tema “gênero” à agenda governamental demanda novo modus


operandi por parte da Administração Pública uma vez que, conforme aponta Serra (2005), as
estruturas clássicas de desenho organizacional não se apresentam adequadas para enfrentar
as exigências da adoção da perspectiva de gênero. A inclusão do gênero nas políticas
publicas presume, entre outros pontos, enfrentar demandas ou políticas públicas que não
fazem parte da competência de um só órgão; prevê, ainda, a necessidade de uma visão
unificada etransversalidade como princípio orientador (BRASIL, 2013).
A fim de atingir seu intento, o Plano está organizado em dez capítulos, sendo que
cada capítulo tem seus objetivos gerais e específicos, metas, linhas de ação e ações
(BRASIL, 2013).
Seguindo a estratégia transversal, os objetivos e as linhas de ação previstas no
PNMP são distribuídos como sendo da competência de vários órgãos da estrutura estatal.
Entre estes se incluem as Forças Armadas.
Em capítulo dedicado à eliminação de todas as formas de violência contra a
mulher, o PNPM (BRASIL, 2013) apresenta medidas a serem efetivadas pelo Ministério da
Defesa, em conjunto com a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência de
República (SPM).
Por sua vez, visando a viabilizar as linhas de ação previstas no PNPM, foi criada,
por meio da Portaria nº 893/MD, de 14 de abril de 2014, a Comissão de Gênero no âmbito
do Ministério da Defesa.
A Comissão de Gênero, que tem caráter consultivo, possui, entre outras funções,
a finalidade de “[...] estudar e propor ações visando à atuação do Ministério da Defesa na
efetivação dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero, observando as
peculiaridades das Forças Armadas [...]” (BRASIL, 2014, p.1, grifo nosso).
Nesse sentido, cabe destaque o fato do Plano vincular a concretização dos direitos
das mulheres à observância das particularidades da vida castrense. Conforme propõe
Janowitz (1967), as Forças Armadas são uma instituição fechada e conservadora, pois cabe

~ 240 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

a elas a garantia da existência do próprio Estado. Observar, pois, as peculiaridades da vida


militar, segundo Mathias (2009) é garantir que a entrada das mulheres nas Forças Armadas
não ocorra sem que haja garantia da manutenção do padrão profissional.
Apesar de admitir a possibilidade do combate e do monopólio do uso organizado
da violência legitimada, fatores que diferenciam a instituição militar de quaisquer outras
instituições da sociedade civil. Existe uma lógica na gestão de organização militar e outra
em organizações burocráticas civis. De acordo com Schmitt, Costa e Netto (2012) as
organizações militares “[...] têm regimentos e legislação próprios, portanto, distintos das
organizações civis”. Não obstante, conforme apontam os autores, “[...] cabe destacar que,
assim como as demais, seguem a Administração Pública” (SCHMITT; COSTA; NETO,
2012, p. 3).
Ainda segundo os autores “[...] as organizações militares instituições públicas,
essas são regulamentadas por princípios próprios, que no caso brasileiro são da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
Sendo a administração militar parte integrante da Administração Pública, deve
orientar-se pelos mesmos ditames impostos a esta.
Conforme nota Costa (2012) a pós-modernidade militar apresentou novas
ameaças e desafios às Forças Armadas. A integração das mulheres no meio militar consiste
em um destes desafios, sobretudo quando se trata da inclusão em ambientes operacionais.
Seja pelas necessidades de recrutamento ou resultado do maior envolvimento
feminino no mundo do trabalho o fato é que o aumento no número de mulheres militares,
a diversificação das ocupações e a possibilidade da progressão na carreira são uma
realidade.
O emprego do contingente feminino em operações de paz ou de guerra, além de
um direito das mulheres, estabelece-se como um dever da administração militar, seja frente
ao ordenamento pátrio, seja perante os compromissos internacionais, tais como as
RCSNU.
A inserção no PNPM de ações da competência do MD em relação à questão do
gênero em operações de paz é o primeiro reflexo de uma futura simetria entre as RCSNU e
as ações da Administração Pública.
No entanto, ainda são tímidas as políticas e praticamente inexistentes as ações
afirmativas no sentido de acabar com a disparidade de gênero nas Forças armadas
brasileiras, implementamdo um regime internacional de igualdade de gênero e empowerment
das mulheres.

~ 241 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

CONCLUSÃO

Com base no que foi discutido na presente investigação, é possível vislumbrar


que, embora os movimentos da década de 1970 tenha propiciado uma nova postura com
relação as mulheres, a participação feminina nos contingentes militares ainda é limitada,
uma vez que a inclusão não se deu em todos os níveis, dos postos de comando e funções
operacionais.
Em que pese à igualdade consagrada na Declaração Universal dos Direitos
Humanos e seus documentos correlatos, as ForçasArmadas ainda não promoveram a
inclusão da dimensão da igualdade de gênero em suas legislações militares, bem como não
eliminaram todas as restrições existentes tanto em relação ao ingresso como aos quadros e
especialidades.
Por conseguinte, os quase setenta anos após a edição da Declaração não foram
suficiente para que as Forças Armadas se adequassem a igualdade de gênero e eliminassem
os óbices existentes para a participação das mulheres em seus contingentes. Entre as
disparidades encontradas no tratamento entre homens e mulheres na formação dos
contingentes, encontram-se as restrições de acesso a certas ocupações dentro das Forças.
Tal conjuntura corrobora o fato de que as Forças Armadas são instituições
generificadas que o gênero está presente nos processos, práticas, imagens, ideologias e
distribuições de poder, nos mais variados setores da vida social. Ou seja, as Forças
Armadas são instituições historicamente desenvolvidas e dominadas por homens e
simbolicamente interpretadas do ponto de vista masculino.

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~ 248 ~
II PARTE

~ 249 ~
MEMÓRIA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988:
BALANÇO HISTÓRICO-COMPARATIVO DAS ORIGENS,
INFLUÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES NOS 30 ANOS DE VIGÊNCIA
DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA.

Luís Fernando Sgarbossa*


Geziela Iensue**

INTRODUÇÃO

Para a elaboração do presente capítulo, escrito para integrar obra coletiva dedicada
aos trinta anos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e aos setenta
anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pareceu apropriado resgatar a
memória histórica da atual Constituição brasileira a partir dos elementos recebidos das
cartas políticas que a precederam, das influências recebidas de modelos estrangeiros e das
transformações sofridas nas três décadas de sua vigência.
Buscar-se-á fazer aqui, portanto, um resgate em perspectiva histórico-comparativa
da Constituição brasileira, constituindo-se o presente estudo em um trabalho
interdisciplinar, compreensivo da História do Direito Constitucional e do Direito
Constitucional Comparado.
No primeiro tópico será realizado um esforço no sentido de historiar
sucintamente o desenvolvimento da ordem constitucional brasileira, identificando
especialmente traços centrais da constituição de 1988 que podem ser considerados como
legados das constituições que a antecederam. O enfoque se dará preponderantemente sobre
as cartas promulgadas, dado o caráter democrático da Constituição Federal de 1988,
embora contribuições importantes ao sistema constitucional feitas por cartas outorgadas
também possam ser objeto de atenção.

* Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Bacharel em Direito pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul – UFMS. Líder do Núcleo de Pesquisa em Estado e Política – NUPEPOL.
** Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas e

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. Professora Adjunta da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS.

~ 250 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

No segundo tópico o enfoque histórico será complementado pelo enfoque


comparativo, buscando-se identificar algumas das influências exercidas por modelos
constitucionais estrangeiros sobre o texto constitucional de 1988. Buscar-se-ão identificar,
sem pretensão de exaustão, a origem de alguns dos traços característicos da nova ordem
constitucional em ordenamentos constitucionais estrangeiros, de modo a compreender um
pouco das características da Carta Política também no que diz respeito à recepção de
direito ou circulação de modelos (SGARBOSSA, JENSEN, 2008).
Por fim, no último tópico, buscar-se-á realizar um inventário de algumas das
principais mudanças ocorridas na ordem constitucional brasileira ao longo das três décadas
de vigência, sejam elas formais, promovidas por meio de revisão ou emendas
constitucionais, sejam elas informais, por meio de mutação constitucional ou processos
análogos.

1 HISTÓRICO DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS E SUA INFLUÊNCIA


SOBRE A CONSTITUIÇÃO DE 1988.

O Brasil conheceu oito constituições ao longo de sua história, sendo sete delas
adotadas formalmente como tais (algumas outorgadas e outras promulgadas) e uma
adotada sob a forma de uma emenda à Constituição, embora possa ser considerada, por seu
conteúdo, uma nova constituição (BONAVIDES, 2008). Assim, desde a independência de
Portugal, vigoraram as constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 (Emenda
Constitucional n. 1/69) e, finalmente, a de 1988 (SILVA, 2011a).
Ao se examinar o desenvolvimento histórico da ordem constitucional brasileira
constata-se, a cada nova carta constitucional, a subsistência de alguns de seus elementos
(embora não raro modificados) e a substituição de outros, de modo que apesar dos termos
enfáticos da Teoria do Poder Constituinte, percebe-se que de fato a ordem constitucional
atual é fruto não apenas de ampla criatividade do Congresso Constituinte (MIRANDA,
2003) de 1986-1988, mas também de um lento desenvolvimento e consolidação de
instituições constitucionais ao longo das sucessivas cartas – o que não significa negar
importância às várias inovações promovidas pela Constituição atual.
Buscaremos resgatar no presente tópico em primeiro lugar a evolução gradual da
ordem constitucional brasileira, por meio dos elementos recepcionados pela Constituição
de 1988 das constituições anteriores (recepção temporal), e, após, destacar brevemente
alguns dos principais elementos de inovação promovidos por aquela.

~ 251 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A Constituição do Império de 1824, primeira constituição formal do Estado


brasileiro, possui diversas características conhecidas e diversas peculiaridades (MARCOS;
MATHIAS; NORONHA, 2014). Trata-se de um momento em que a principal influência
estrangeira sobre nosso Direito Constitucional é europeia, nomeadamente inglesa, francesa,
portuguesa e espanhola. Consequentemente esta constituição ostenta alguns traços
importantes.
A primeira carta política brasileira adota, como forma de governo, a monarquia
hereditária (art. 3º) formalmente constitucional, e a forma de Estado unitária (SILVA,
2011a), carecendo as províncias de autonomia (ao menos em princípio). Tal constituição
adota o catolicismo como religião oficial do Estado brasileiro (art. 5º). Por inspiração no
constitucionalismo inglês, é uma das primeiras constituições a adotar um rol de direitos
fundamentais, em seu artigo 179.
Sob influência do constitucionalismo francês, adota a quadripartição dos poderes
(art. 10) e o poder moderador (art. 98) (MIRANDA, 2003), que relativiza a monarquia
constitucional formalmente estabelecida, na medida em que permite uma hegemonia do
monarca sobre os demais poderes. O Legislativo (Assembleia Geral) é bicameral, composto
por Câmara dos Deputados e Senado aristocrático (art. 14).
A Carta de 1824 é semirrígida, ao prever procedimento agravado de revisão
apenas de alguns de seus dispostivos (arts. 174 a 177), e não de todos (art. 178), tal como se
verificava com diversas constituições do século XIX. Não contempla limites materiais
(“cláusulas pétreas”) nem controle de constitucionalidade, havendo quem o vislumbre no
exercício do poder moderador pelo monarca, o que não parece correto.
Durante o século XIX, ainda sob a égide desta constituição, é concedido certo
grau de autonomia às províncias (MIRANDA, 2003), de modo que alguns identificam um
quase-federalismo (Ato Adicional de 1834) embora enfraquecido posteriormente sob
tendências centralizadoras (Lei de Interpretação do Ato Adicional, Lei n. 105 de 1840).
Além disso, nesse período experimenta-se, no Segundo Reinado, uma experiência
parlamentarista paraconstitucional e consuetudinária de mais de 4 décadas. (MARCOS;
MATHIAS; NORONHA, 2014).
O sistema eleitoral durante o império é sabidamente marcado pelo sufrágio
restrito (censitário, masculino e etário), pelo voto indireto e aberto e pelo seu caráter
distrital, sem representação das minorias (SILVA, 2011b). Quanto ao controle das eleições
adota-se o sistema de verificação de poderes, ficando seu controle a cargo do legislativo
(GOMES, 2017).

~ 252 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Após a proclamação da república e com o advento da legislação revolucionária de


1890 e da Constituição de 1891, naturalmente diversos desses traços desaparecerão,
mudando também os paradigmas no Direito Constitucional estrangeiro. A principal fonte
de inspiração do Direito Constitucional pátrio passará a ser, claramente, o dos Estados
Unidos da América (MIRANDA, 2003), embora se reconheçam também outras influências,
como a Suíça e a Argentina (MARCOS, MATHIAS; NORONHA, 2014; SILVA, 2011a).
Entre os elementos da ordem constitucional do império sobreviverá
especialmente o rol de direitos e garantias fundamentais (art. 72) e, em reforma operada no
ano de 1926 o habeas corpus, remédio existente já no período anterior e dotado de escopo
amplo, passa a tutelar apenas a liberdade ambulatória. Diversos elementos sofrerão
mudanças importantes. A Constituição passa a ser rígida, estabelecendo-se procedimento
agravado modificação formal, conforme inspiração estadunidense (art. 90 e parágrafos). A
forma de governo passará a ser republicana e a forma de Estado federal (art. 1º); o sistema
de governo adotado será o presidencialismo (art. 41).
Sob a constituição republicana de 1891, a quadripartição dos poderes será
substituída pela tripartição dos poderes (art. 15), igualmente inspirada na concepção dos
checks and balances (SILVA, 2011a). O bicameralismo é mantido, mas verificam-se
importantes alterações no Senado. Institui-se o controle judicial de constitucionalidade,
inicialmente na modalidade difusa (MENDES, 1995). Em síntese, opera-se uma recepção
global e por imitação (CAETANO, 2009) do conjunto das instituições constitucionais dos
EUA, realizada com adaptações, naturalmente.
Outra mudança relevante operada pela nova ordem política e constitucional é a
introdução do princípio da laicidade estatal no Brasil (art. 11 § 2º, art. 72 §§ 3º, 4º e 6º)
(MIRANDA, 2003), deixando doravante de existir religião oficial e de o Estado brasileiro
caracterizar-se como confessional (MARCOS; MATHIAS; NORONHA, 2014).
Sob a primeira constituição republicana a democracia representativa ostenta certas
características que a fragilizam, tal como o sistema distrital e o sistema de verificação de
poderes, além do voto aberto, como regra, entre outros problemas amplamente
conhecidos. De todo modo o voto torna-se direto (SILVA, 2011b; GOMES, 2017).
Os elementos principais introduzidos com a primeira constituição republicana
serão mantidos doravante na tradição constitucional brasileira, como reconhece
MIRANDA (2003, pp. 228-229), que assevera que, “no essencial, o esquema da
Constituição de 1891 passaria para todas as Constituições posteriores, mais ou menos
aperfeiçoado ou atenuado.”

~ 253 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Da constituição de 1891 à Constituição de 1988, do ponto de vista formal, serão


mantidos a rigidez constitucional, o catálogo de direitos e garantias, a forma federativa de
Estado, a forma republicana de governo, o sistema presidencialista, o controle judicial de
constitucionalidade difuso, entre outros. Alguns desses elementos poderão ser
momentaneamente eclipsados, tal como ocorreu como o presidencialismo, no breve
período de adoção de um governo de tipo parlamentarista ou semipresidencialista entre
1961 e 1963 (MIRANDA, 2003), mas, de modo geral revelar-se-ão, ao longo do tempo,
elementos relativamente permanentes no arranjo de instituições constitucionais do Brasil,
embora passíveis de transformações, maiores ou menores. Outros elementos serão
mantidos doravante e reiteradamente complementados e atualizados, tal como ocorre com
o sistema de controle de constitucionalidade, como se verá.
É evidente que muitas ponderações deveriam ser feitas quanto a tal constatação.
Primeiramente, há que se reconhecer que as normas constitucionais brasileiras padecem de
severa síndrome de ineficácia, revelando-se as não raro nominais, na classificação
ontológica de LOEWENSTEIN (1976). Além dessa observação, é evidente que diversas
dessas constituições possuíram vida efêmera, situação cujo caso mais emblemático é o da
Constituição de 1934, examinada a seguir. Os interstícios autoritários das décadas de 1930 e
1960-1980 igualmente são dignos de nota. Há que se reconhecer, por conseguinte, que as
normas constitucionais com frequência nem sempre se traduziram em prática no cotidiano
das instituições nacionais, e muitos dos traços aqui frisados ostentaram existência
preponderantemente formal, em nível de texto constitucional, como, por exemplo, o
federalismo, sabidamente centralizado no Brasil.
A Constituição promulgada em 1934, de caráter compromissório, democrático e
com aspiração socialista (MARCOS; MATHIAS; NORONHA, 2014), mantém o arranjo
institucional legado pela Constituição de 1891, com transformações, e introduz diversos
elementos novos. São mantidos o republicanismo, o federalismo, o presidencialismo, a
tripartição de poderes (arts. 1º, 2º e 3º, art. 51 e ss.), e o rol de direitos e garantias
fundamentais, que é ampliado (art. 113). Criam-se a ação popular e o mandado de
segurança (art. 113, 33 e 38) (MIRANDA, 2003), importantes inovações no sistema
processual de tutela da constitucionalidade.
Em face da questão social (SILVA, 2011a) e sob influência do constitucionalismo
social que começava a se delinear a partir de cartas como a Mexicana de 1917 e a de
Weimar de 1919 (MIRANDA, 2003), a constituição em comento desenvolve os direitos

~ 254 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

sociais (arts. 120 e 121, entre outros), introduz o princípio da função social da propriedade
(art. 113, 17), e cria a Justiça do Trabalho (art. 122).
Sob tal carta constitucional verifica-se o aprimoramento da democracia e do
sistema político e eleitoral se verifica sob tal carta constitucional. Alguns aspectos dignos de
destaque são a instituição do voto secreto aos 18 anos, a adoção da representação
proporcional, a constitucionalização do voto feminino (introduzido pelo Código Eleitoral
de 1932) e, por fim, a constitucionalização do sistema de controle judicial das eleições, em
substituição ao sistema de verificação de poderes, ficando aquele a cargo da Justiça
Eleitoral (igualmente criada pelo Código Eleitoral de 1932) (MIRANDA, 2003), o que se
revelará, ao longo do tempo, fator importante de redução de abusos e fraudes nas eleições
(SILVA, 2011b). Adota o Brasil, doravante, o sistema de controle judicial das eleições, sob
o modelo de justiça especializada (GOMES, 2017). Também a representação proporcional
é instituída no período para a maioria dos cargos do legislativo, sendo o mesmo verdadeiro
para o sufrágio feminino.
É ainda sob esta carta constitucional que começam a surgir elementos importantes
de nosso sistema constitucional, como, por exemplo, novas instituições no âmbito do
controle de constitucionalidade. Sob tal constituição nasce a representação interventiva (art.
12 § 2º), primeiro ensaio de controle de constitucionalidade a caminho do controle
abstrato, possibilitando a intervenção federal por violação aos princípios constitucionais
sensíveis (e, posteriormente, ampliado para em outras hipóteses, como recusa à execução
de lei federal) (MENDES, 1995).
Entre outras inovações importantes promovidas pela Constituição de 1934 em
nosso sistema constitucional destacam-se a cláusula de reserva de plenário (art. 179), e a
resolução suspensiva do Senado Federal (art. 91, IV c.c. 96), ambas relevantes para a
racionalização do sistema de controle judicial difuso introduzido em sistema em sistema
jurídico romanista, no qual os precedentes não são, em regra, vinculantes. Assim, a cláusula
de reserva de plenário é relevante ao impedir a vacilação de jurisprudência em matéria de
constitucionalidade no âmbito do mesmo tribunal, enquanto a resolução suspensiva é
relevante ao permitir a ampliação dos efeitos do controle realizado em concreto,
conferindo eficácia ampla à decisão originalmente restrita às partes no processo
(MENDES, 2008). Estes dois elementos permanecerão presentes no sistema constitucional
brasileiro até a constituição atual.
A constituição outorgada de 1937, influenciada fortemente pelo anticomunismo
(MARCOS; MATHIAS; NORONHA, 2014) sabidamente representou retrocesso em

~ 255 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

termos de direitos, liberdades e garantias e de democratização, tendo o rol constitucional


sido reduzido (art. 122) e fragilizado. De modo geral, sabidamente constituiu uma
constituição semântica (LOEWENSTEIN, 1976), destinada a dar vazão ao regime
ditatorial de Vargas. A despeito disso, a Constituição manteve alguns elementos de sua
efêmera predecessora. O arranjo institucional geral do republicanismo, do federalismo, do
presidencialismo e da tripartição de poderes foram formalmente mantidos (arts. 1º, 3º, 38,
74, 97, entre outros), embora, dado o regime de exceção em vigor, tais elementos fossem
em grande medida profundamente modificados ou desfigurados. Houve significativa
redução da autonomia dos Estados, e a eleição presidencial tornou-se indireta, por colégio
eleitoral (MIRANDA, 2003).
Apenas para citar dois casos, recorde-se que no período de vigência de tal carta
constitucional extinguiu-se a Justiça Eleitoral, além de ter se verificado fragilização da
autonomia do judiciário e do controle judicial de constitucionalidade, na medida em que se
previa a possibilidade de superação, por decisão do congresso mediante provocação do
presidente, das decisões do Supremo Tribunal Federal que declarassem a
inconstitucionalidade de leis (art. 96 parágrafo único), instituto de cariz antidemocrático
posteriormente abolido e não mais restabelecido nas cartas que a sucederam. A separação
dos poderes era fragilizada, também, pelo expediente da legislação pelo executivo, por meio
de decretos-lei (art. 180).
Com a redemocratização, após o fim da Segunda Guerra mundial, sobreveio a
Constituição promulgada de 1946, de caráter progressista e democrático, inspirada em suas
antecessoras de 1891 e 1934 (SILVA, 2011a), que promoveu ampliação no rol de direitos e
garantias fundamentais (art. 141), restabeleceu a Justiça Eleitoral (art. 109), restabeleceu a
separação dos poderes (art. 36), além de aperfeiçoar e manter diversos dos elementos
presentes na Constituição de 1934. Assim como esta, ostentava caráter compromissório, e
contemplava, além dos direitos civis e políticos, direitos sociais (MARCOS; MATHEUS;
NORONHA, 2014).
O Estado brasileiro continua a adotar a forma republicana de governo (art. 1º), o
sistema presidencialista (art. 78), a forma federativa de Estado (art. 1º), a tripartição dos
poderes (art. 36), a rigidez constitucional (art. 217), o controle difuso de
constitucionalidade, a cláusula de reserva de plenário (art. 200), a resolução suspensiva da
decisão declaratória de constitucionalidade (art. 64). A Constituição de 1946 consagra o
sufrágio universal, o voto direto, secreto, universal e periódico, a representação

~ 256 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

proporcional (art. 134) (SILVA, 2011b). A representação interventiva é mantida (art. 8º) e
suas hipóteses são ampliadas (MENDES, 1995).
É ainda sob a vigência formal da Constituição de 1946 – subordinada que estava
aos Atos Institucionais, como recorda MIRANDA (2003) – que o sistema brasileiro de
constitucionalidade conhece importantes avanços, notadamente a criação da representação
de inconstitucionalidade pela EC n. 16/1965, que alterou a redação da alínea “k” do inciso
I do art. 101. A ação, de iniciativa exclusiva do Procurador Geral da República e da
competência originária do STF, tendo por objeto lei ou ato normativo federal ou estadual,
passa a constituir um meio de controle abstrato de constitucionalidade, paralelamente ao
sistema de controle difuso e concreto existente, constituindo o precedente imediato das
ações diretas atualmente existentes (MEDINA, 2010).
As decisões, originalmente submetidas mesmo sistema da resolução suspensiva do
Senado Federal previsto para o controle difuso, passaram a ser compreendidas como
dotadas de eficácia geral e vinculante, sem prejuízo da sistemática da resolução suspensiva
para as decisões proferidas em controle concreto (MENDES, 1997).
Diante disso, foi sob a vigência formal da Constituição de 1946, emendada em
1965, que o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade passou a ostentar seu
caráter eclético ou misto, ao contemplar controle judicial concreto e abstrato, um traço
fundamental.
Com as constituições outorgadas de 1967 e 1969, sabidamente o regime
democrático e o sistema de direitos fundamentais sofrem retrocessos (BONAVIDES,
2009), tendo sido ambas influenciadas pela carta de 1937 (SILVA, 2011a). A fragilização
dos direitos e garantias e a restrição das liberdades públicas, entre outros fatores, acabam
por modificar severamente o sistema constitucional. Do ponto de vista formal, o conjunto
de instituições continua o mesmo: republicanismo (art. 1º em ambas), presidencialismo (art.
74 e 73, respectivamente), federalismo (art. 1º em ambas), tripartição de poderes (art. 6º,
em ambas), controle judicial de constitucionalidade, entre outros traços já existentes nas
cartas anteriores. Como ensina Jorge MIRANDA (2003, p.; 233),

“aspectos a salientar num e noutro texto são o sentido centralizador, o aumento


dos poderes financeiros da União, o reforço do Poder Executivo, a eleição do
Presidente por sufrágio indireto (colégio composto pelos membros do
Congresso e pro representantes dos Estados), o cuidado posto no processo de
elaboração das leis, a extensão da justiça militar, a noção de segurança nacional e
a prefixação do sistema partidário.”

~ 257 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Evidentemente, de fato, inexiste democracia (na medida em que ocorrem severas


supressões nas dimensões de participação e oposição) apesar das eleições para diversos
cargos serem mantidas formalmente em ambiente de bipartidarismo artificial (SILVA,
2011a). Entre outros destaques do período cabe lembrar a concentração de poder no
executivo e sua capacidade legislativa por meio de decretos-lei (art. 58 CF 1967; art. 55 EC
n. 01/69), a concentração do poder na União a despeito do federalismo formal, o
estabelecimento de pena de morte para crimes contra a segurança nacional (§ 11 do art.
150, na redação conferida pelo Ato Institucional n. 14/69), o estabelecimento da censura,
entre outras, além dos diversos Atos Institucionais e Complementares (em número de 17 e
105, respectivamente) com suas amplas consequências. Rememorem-se, ainda, a tomada do
Supremo Tribunal Federal por meio do aumento do número de ministros para 16,
permitindo o controle do executivo sobre o órgão por meio da nomeação dos novos
ministros e formação artificial de maioria simpática ao regime (MARCOS, MATHIAS;
NORONHA, 2014).
Com o esbatimento do regime, dão-se as condições para o surgimento da
Constituição de 1988, fruto do processo de redemocratização iniciado em 1985 e
formalizado pela EC n. 26/85 à Constituição de 1967 (69), bem como dos trabalhos do
congresso convolado em constituinte no período entre 1986-1988 (MIRANDA, 2003). A
nova carta política resgata diversas as instituições tradicionalmente existentes em nosso
sistema constitucional, introduzidas ou mantidas especialmente sob as Cartas de 1891, 1934
e 1946, além de buscar, em fontes estrangeiras, paradigmas normativos, e de promover
diversas inovações na ordem constitucional brasileira.
A Constituição de 1988 adota o republicanismo (art. 1º), o presidencialismo (art.
76), o sistema de tripartição de poderes (art. 2º), o federalismo, (art. 1º) o sistema misto de
controle de constitucionalidade, a soberania popular e o sufrágio universal (art. 1º § ún. e
art. 14), baseado no voto direto, secreto, universal e periódico (art. 60 § 4º, II), a
representação proporcional, entre outros elementos de amplo conhecimento. Direitos,
liberdades e garantias são mantidos, restabelecidos e ampliados, especialmente no Título II,
compreensivo dos artigos 5º a 17.
Diversos novos direitos fundamentais são instituídos e sua importância é frisada
pela nova localização topográfica no texto (MIRANDA, 2003), e novas garantias
fundamentais são criadas (tais como o habeas data e o mandado de injunção, além do
mandado de segurança coletivo). Esta constituição agrega aos direitos individuais e
coletivos os direitos de terceira geração (MARCOS; MATHIAS; NORONHA, 2014). A

~ 258 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Constituição enfatiza os direitos de igualdade ou econômicos e sociais, prevendo extenso


rol (art. 6º e 7º, entre outros) e, ainda, normas tributárias (como a tributação de grandes
fortunas, a progressividade e as transferências de receitas tributárias) e de outra natureza
(como as que buscam fomentar o desenvolvimento econômico) como meios de
consecução de seu projeto social.
Esta carta ostenta também caráter principiológico, programático e compromissório,
tentando conciliar o capital e o trabalho por meio de normas garantidoras da propriedade
privada (art. 5º, caput e inciso XII) e da livre iniciativa, mas também da função social da
propriedade (art. 5º, XIII), do valor social do trabalho (art. 1º, IV) e da erradicação da
pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, I e III).
No que diz respeito à democracia a constituição de 1988 reintroduz os elementos
de participação e oposição (notadamente as liberdades públicas), contemplando pluralismo
político (art. 1º, V) e a liberdade partidária (art. 17), consagrando o sufrágio universal,
direto, secreto e isonômico (art. 14), prevendo mecanismos democracia semidireta (art. 14,
I a III), contemplando representação majoritária e proporcional, entre outras coisas.
Transformações institucionais importantes se verificam igualmente, pela criação de
órgãos tais como as defensorias públicas (art. 134) (MIRANDA, 2003), ou pela
transformação do Ministério Público, até então vinculado ao executivo, em órgão
constitucional autônomo (art. 127) ao qual são cometidas funções de guardião da
constitucionalidade, da legalidade e dos valores democráticos, entre outras (SILVA, 2011a).
O sistema de controle de constitucionalidade continua a ser misto, mas passa por
profundo aperfeiçoamento. É introduzida a ação direta de inconstitucionalidade (art. 102,
I, “a”) em substituição às antigas representações de inconstitucionalidade, e tais ações não
mais constituem monopólio do Procurador Geral da República, podendo ser ajuizada por
diversos órgãos e entidades (art. 103). Continua a ser da competência do STF e suas
decisões dotadas de eficácia geral e vinculante (art. 102 § 2º). A seu lado, criam-se novas
figuras, tais quais a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (art. 103 § 2º) e a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (art. 102 § 1º), bem como,
posteriormente, por Emenda Constitucional, a Ação Declaratória de Constitucionalidade,
como se verá adiante (SIQUEIRA JR., 2010). Elementos como a cláusula de reserva de
plenário (art. 97) e a resolução suspensiva do Senado Federal (art. 52, X) são mantidos.
Convém registrar, por relevante, que desde 1891 a República brasileira adotou
constituições rígidas. Assim, previram procedimentos agravados de modificação de normas
constitucionais as constituições de 1891 (art. 90 §§ 2º), 1934 (art. 178), 1937 (art. 174 §§ 1º

~ 259 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

e 2º), 1946 (art. 217 §§ 2º e 3º), 1967 (arts. 50 e 51), 1969 (art. 47 e 48) e, finalmente, 1988
(art. 60 § 2º). Todas, exceto as de 1937, previram limites materiais: a de 1891 em seu art. 90
§ 4º; a de 1934 em seu art.178, caput e § 5º; a de 1946 em seu art. 217 § 6º; a de 1967 em seu
art. 50 § 1º; a de 1969 em seu art. 47 § 1º e, por fim, a de 1988 em seu art. 60 § 4º inciso IV.
O conjunto das ações diretas estabelecidas pela ou sob a Constituição de 1988 e das
garantias fundamentais por ela mantidas ou incorporadas delineia um sofisticado sistema de
controle de constitucionalidade que conjuga elementos judiciais e políticos e, no âmbito do
controle judicial, controle difuso e abstrato.
Como se vê, do breve escorço histórico aqui traçado, a Constituição Federal de
1988 possui fortes traços inovadores, mas igualmente recupera, reintroduz ou mantém na
tradição constitucional brasileira institutos e características forjadas ao longo do tempo,
embora com transformações maiores ou menores.
Uma vez rememoradas tais características, convém resgatar o papel desempenhado
por algumas das principais constituições estrangeiras que influenciaram o texto
constitucional de 05 de outubro de 1988, o que se fará no item seguinte.

2 CONSTITUIÇÕES ESTRANGEIRAS E SUA INFLUÊNCIA SOBRE A


CONSTITUIÇÃO DE 1988.

O presente capítulo pretende, como anunciado, analisar a Constituição vigente a


partir de aspectos históricos e comparativos. Assim, além de compreender o
desenvolvimento de aspectos centrais de nosso Direito Constitucional positivo atual por
meio das sucessivas constituições que vigoraram no país, trabalho levado a cabo no tópico
anterior, convém examinar alguns dos principais paradigmas do Direito Constitucional
estrangeiro utilizados pelo constituinte na elaboração do texto de 1988.
As influências estrangeiras são comuns em todos os ramos do direito, inclusive no
Direito Constitucional, como é sabido. Boa parte da construção de instituições
constitucionais decorre de processos de recepção de direito e de circulação de modelos,
complexos fenômenos estudados especialmente pelo Direito Comparado.
A circulação de modelos consiste no processo de difusão de institutos, normas ou
de outros elementos entre diferentes sistemas jurídicos, que tem grande importância na
formação e nas transformações dos sistemas jurídicos. A recepção de direito corresponde à
introdução em um sistema jurídico de norma, instituto ou outros elementos oriundo de
sistema jurídico distinto, podendo ser levada a cabo por meio do legislador (constituinte ou

~ 260 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

ordinário) ou mesmo da doutrina e da jurisprudência. (SGARBOSSA; JENSEN, 2008). Os


processos de circulação de modelos ou recepção de direitos, inclusive no campo
constitucional, podem dar-se de maneira global ou parcial, e de maneira espontânea ou
forçada (MIRANDA, 2003).
É extremamente comum a busca de paradigmas no direito estrangeiro nos
processos constituintes, sendo freqüente a realização, pela assembleia, convenção ou órgão
constituinte equivalente, ou por suas comissões, de incursões no Direito Constitucional
comparado com vistas à adoção de modelos ou instituições alheios, adaptados ou não.
Evidentemente tais incorporações de elementos alienígenas podem ser ou não bem-
sucedidas, em maior ou menor grau.
As influências estrangeiras sobre o Direito Constitucional brasileiro são variadas
no decorrer de sua história. Ao longo do século XIX verificou-se marcante influência do
Direito Constitucional europeu, notadamente francês, inglês, português e espanhol, como
já mencionado. A Constituição de 1824 possui, entre suas principais fontes de inspiração,
institutos oriundos do constitucionalismo britânico (direitos fundamentais e writs
constitucionais) e da constituição lusitana de 1822 e das constituições francesas de 1791 e
1814 (MIRANDA, 2003), bem como da constituição de Cádiz de 1812 (TAVARES, 1991).

Após a proclamação da república, parece ter-se tornado marcante a influência


norte americana (desde 1891), assim como alemã (após 1934), entre outras. Na
Constituição de 1988 as influências alienígenas são variadas, como se verá, sendo em regra
ecléticos os transplantes jurídicos realizados para o Direito Constitucional e sistema
jurídico brasileiros, ou seja, oriundos de diferentes sistemas jurídicos e constitucionais.
A influência estrangeira na Constituição de 1988 já se verifica no próprio
procedimento constituinte, pois a doutrina identifica influência de práticas utilizadas em
Portugal para a criação da Constituição lusitana de 1976 sobre os trabalhos e
procedimentos adotados pela assembleia constituinte brasileira, notadamente a adoção de
uma comissão de sistematização para harmonizar o resultado do trabalho das numerosas
comissões e subcomissões que operaram na mesma, como recorda Ana Lúcia de Lyra
TAVARES (1991). Aliás, MIRANDA (2003) recorda que a Constituição portuguesa de
1822, fruto da revolução de 1820 e anterior à independência brasileira, fora votada por
Cortes Constituintes das quais participaram brasileiros.
Na impossibilidade de identificar todas as fontes de inspiração dos criadores da
constituição brasileira vigente, buscar-se-á no presente tópico identificar os principais

~ 261 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

modelos estrangeiros influenciadores de tal carta política, sem pretensão de exaustão, até
porque, considerando-se o caráter analítico da carta, referida tarefa aqui seria impossível.
TAVARES (1991) identifica influências portuguesas, espanholas, italianas,
francesas, latino-americanas, anglo-americanas, principalmente, ressalvando, além da já
mencionada ecleticidade, a predominância (sem exclusividade) de uma fonte sobre as
demais em diferentes áreas ou matérias. MARCOS, MATHEUS e NORONHA (2014)
identificam influências norte-americanas, francesas, italianas, alemãs, portuguesas e
espanholas.
A influência portuguesa é uma das predominantes se fazendo presente em
diversas cartas além da de 1988, como na de 1824, influenciada pela constituição lusitana de
1822 e a de 1937, influenciada pela lusitana de 1933, entre outras. Embora a influência
lusitana tenha sido reduzida após a independência, posteriormente volta a se fazer sentir
com maior intensidade novamente (WHITAKER, 1987). Jorge MIRANDA (2003, p. 225)
igualmente faz referência a tais influências:

“Em contrapartida, ultrapassando o autoritarismo, as Constituições actuais de


ambos os países – a de 1976 em Portugal e a de 1988 no Brasil – apresentam
muitos traços em comum: a extensão das matérias com relevância
constitucional, o cuidado posto na garantia dos direitos de liberdade, a promessa
de numerosos direitos sociais, a descentralização, a abundância de normas
programáticas. E a Constituição brasileira consagraria regras ou institutos
indiscutivelmente provindos da portuguesa: a definição do regime como ‘Estado
Democrático de Direito’, alguns direitos fundamentais, o estímulo ao
corporativismo, o alargamento dos limites materiais da revisão constitucional, a
fiscalização da inconstitucionalidade por omissão (...).”

A Constituição brasileira de 1988 demonstra ter sofrido influência da constituição


portuguesa de 1976 em diversos aspectos, tais como a ordenação das matérias ao longo do
texto constitucional, nos princípios fundamentais, nos direitos e garantias fundamentais, na
organização dos poderes, em elementos do controle de constitucionalidade, em disposições
relativas à ordem econômica e social e na revisão constitucional (TAVARES, 1991).
Exploraremos algumas dessas influências.
No tópico dos princípios fundamentais, ambas as constituições estabelecem
Estados democráticos de direito (art. 1º da brasileira, art. 2º da portuguesa), com mera
diferença de expressão (Estado democrático de direito na primeira; Estado de direito
democrático na segunda).
A análise comparativa evidencia similitude também no rol de direitos
fundamentais, embora se discuta aqui tratar-se de caso de real inspiração no direito
português ou de mero paralelismo. TAVARES (1991) esposa a segunda visão,

~ 262 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

vislumbrando a influência imediata em outros documentos (Declaração Universal dos


Direitos do Homem de 1948, e Pactos de 1966, da Organização das Nações Unidas).
Outras influências parecem ser plausíveis na matéria, igualmente.
Entre outras coisas, Ana Lúcia de Lyra Tavares identifica influência portuguesa na
cláusula de abertura, expressão do princípio da não-tipicidade, consistente no § 2º do art. 5º
da Constituição de 1988, cuja origem imediata, para a autora, seria o art. 16,1, da
Constituição de 1976, e cuja origem mediata radicaria no direito francês (TAVARES,
1991).
Com o devido acatamento diverge-se, aqui, da autora, dado que cláusula
equivalente existe em nosso direito constitucional desde a carta de 1891 (art. 78), tendo
sido repetido nas cartas de 1934 (art. 114), 1937 (art. 123), 1946 (art. 144), 1967 (art. 150,
35) e 1969 (art. 153, 36), ou seja, em todas as posteriores. A origem da cláusula de abertura
no direito brasileiro parece radicar, contrariamente, na IX Emenda à Constituição norte-
americana de 1787, de 1791, tendo sido incorporada à nossa primeira constituição
republicana e dela sido mantida em todas as sucessoras.
Situação diversa é a da cláusula de aplicabilidade imediata das normas definidoras
de direitos fundamentais, § 1º do art. 5º da Constituição brasileira, plausivelmente
consistente em recepção do dispositivo análogo da Constituição portuguesa vigente, a
saber, seu art. 18,1, como sustenta a autora, entre outros fatores por não se registrar
disposição semelhante nas constituições brasileiras anteriores.
No âmbito da organização dos poderes, a doutrina identifica influência
portuguesa no Conselho da República previsto nos arts. 89 e 90 da constituição pátria, que
teria sido inspirado no Conselho de Estado português, previsto no art. 144 da Constituição
de 1976, assim como a comissão representativa do Congresso no recesso legislativo
prevista no art. 58 § 4º da constituição pátria, cuja fonte seria o art. 182 da constituição
lusitana. A eleição pelo sistema majoritário de dois turnos ou franco-alemão é também
considerada de inspiração imediatamente portuguesa (art. 126 da CRP/76) e mediatamente
francesa (TAVARES, 1991).
Uma influência portuguesa importantíssima, desta feita sobre o sistema de
controle de constitucionalidade, é a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art.
103 § 2º CRFB/88), derivada de instituto homólogo do direito constitucional lusitano (art.
283 CRP/76). TAVARES (1991) identifica como fontes mediatas dessas disposições
normas da Constituição iugoslava de 1974 e da Constituição alemã de 1949.

~ 263 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A revisão constitucional brasileira também parece ter sido influenciada pelo


Direito Constitucional português, embora a carta de 1976 preveja revisões gerais a cada 5
anos (art. 284) e a brasileira a tenha previsto apenas uma vez (art. 3º do ADCT)
(TAVARES, 1991).
A influência da constituição espanhola de 1978 sobre a brasileira atual, embora
mais modesta que a portuguesa, também é relevante. Aqui se identificam igualmente
pontos de contato, notadamente no que tange a mecanismos de democracia semidireta e,
no âmbito das garantias, na criação do habeas data (TAVARES, 1991).
Segundo essa autora, a iniciativa popular prevista no art. 14, III e no art. 61 § 2º
da Constituição brasileira parece ter tido como provável fonte imediata de inspiração o art.
87, 3, da Constituição do Reino da Espanha de 1978, e como fonte mediata a Constituição
italiana de 1948 (art. 71). O referendo previsto no art. 14, II, também teria sua fonte de
inspiração direta no Direito Constitucional espanhol.
Uma influência espanhola importante, desta feita no âmbito do Direito Processual
Constitucional brasileiro e, mais especificamente, na jurisdição constitucional da liberdade,
consiste no remédio do habeas data, mecanismo de proteção do direito de acesso à
informação (embora haja diferenças no modo como a expressão é compreendida na
Espanha – sinônimo do direito material de direito ao controle de circulação dos dados
pessoais – e no Brasil – remédio constitucional, garantia fundamental) (SILVA, 2011a).
Assim, o art. 18, 4, da Constituição espanhola vigente seria a fonte de inspiração para a
criação do habeas data pelo inciso LXII do art. 5º da Constituição brasileira. Deve-se
ressalvar, no entanto, que a fonte de inspiração pode ter sido, também, o art. 35 da
Constituição portuguesa.
Quanto à influência da Constituição da República Italiana de 1948, identificam-se
recepções diretas como o processo legislativo de tipo comissional, com dispensa de
submissão de certas matérias à apreciação do plenário e as medidas provisórias, fruto de
recepção direta dos provvedimenti provisorii da constituição peninsular, além de possíveis
influências indiretas ou mediatas (TAVARES, 1991).
O processo legislativo de tipo comissional confere poder de aprovação definitiva
de atos legislativos sem necessidade de sua apreciação no plenário, como é sabido, e
encontra seu assento no art. 58, § 2º, da Constituição pátria, ressalvada a interposição de
recurso por 1/10 dos membros da casa legislativa. A recepção de tal procedimento
legislativo simplificado teria sua origem imediata no art. 72 da Constituição italiana vigente,

~ 264 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

de acordo com a doutrina. Realmente, examinando-se a similitude das normas (embora não
idênticas), a posição parece ser acertada.
No que diz respeito às medidas provisórias inexiste razões para dúvida da fonte
ser mesmo a vigente constituição italiana. O artigo 62 da Constituição brasileira reproduz
parcialmente com bastante fidelidade o art. 77 da Constituição italiana, e o regime jurídico a
que estão sujeitas entre nós as medidas provisórias e entre eles os provvedimenti provisorii –
provimentos provisórios – é quase idêntico. Confira-se o texto estrangeiro:

Il Governo non può, senza delegazione delle Camere, emanare decreti che abbiano valore di legge ordinaria.
Quando, in casi straordinari di necessità e di urgenza, il Governo adotta, sotto la sua responsabilità,
provvedimenti provvisori con forza di legge, deve il giorno stesso presentarli per la conversione alle Camere che,
anche se sciolte, sono appositamente convocate e si riuniscono entro cinque giorni.
I decreti perdono efficacia sin dall'inizio, se non sono convertiti in legge entro sessanta giorni dalla loro
pubblicazione. Le Camere possono tuttavia regolare con legge i rapporti giuridici sorti sulla base dei decreti non
convertiti

Há distinções importantes de qualquer modo, como o fato de no sistema italiano


o ato normativo somente poder ser editado por decisão colegiada do Conselho de
Ministros e sob responsabilidade ministerial (HORTA, 1990), mas a inspiração é clara.
A constituição francesa de 1958, por sua vez, teria influenciado a Constituição
brasileira da Nova República com elementos tais quais o sistema eleitoral majoritário de
dois turnos (ballotage), e no imposto sobre grandes fortunas, previsto na carta gaulesa.
Identifica-se, ainda, influência francesa nos trabalhos do congresso constituinte brasileiro
no que diz respeito à proposta de um sistema de governo misto (semiparlamentar),
rechaçado ao final (TAVARES, 1991). Entre as influências anglo-americanas, podem-se
citar, a título ilustrativo, o devido processo legal (due process of law) e o mandado de injunção
(writ of injunction) (TAVARES, 1991).
Percebe-se que a tentativa de traçar uma genealogia das influências alienígenas
sobre o direito constitucional pátrio é árdua e pode induzir a equívocos ou resultado
dúbios, sendo mesmo impossível, em alguns casos, assegurar-se da efetiva origem de certos
institutos incorporados do direito constitucional estrangeiro.
De todo modo, o exame de tais aspectos de conformação da carta constitucional
da Nova República é interessante e lança luz sobre fenômenos importantes correlatos à
configuração de nosso Direito Constitucional em seu estado atual. Examinados assim
sucintamente algumas das principais influências, convém passar ao terceiro e último tópico
do estudo, que versará sobre as modificações sofridas pela Constituição brasileira em seus
três decênios de vigor.

~ 265 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Não é possível esgotar o tema da recepção de paradigmas jurídicos alienígenas por


nossa atual ordem constitucional no presente estudo, de modo que resta examinar, no
próximo tópico, conclusivo, algumas das principais transformações por ela sofridas durante
sua vigência até os dias de hoje.

3 TRANSFORMAÇÕES NOS 30 ANOS DE CONSTITUIÇÃO: EMENDAS,


MUTAÇÕES E TRANSFORMAÇÕES.

Examinados, brevemente, o desenvolvimento histórico que conduziu a algumas


das instituições e normas consagradas na Constituição Federal de 1988 e parte das
influências estrangeiras que originaram importantes institutos por ela igualmente
estabelecidos, parece oportuna a realização de um breve resgate das diversas modificações
sofridas pela carta política da Nova República, sejam elas formais, sejam elas informais.
Como é sabido, o direito em geral, assim como o Direito Constitucional, em
particular, alteram-se por procedimentos formais – emendas, reformas, revisões
constitucionais, notadamente – ou por procedimentos informais – manifestações do poder
constituinte originário e mutações constitucionais, especialmente (JELLINEK, 1991).
Pelos procedimentos formais a constituição, a despeito de sua rigidez relativa e
por meio dela, permite a atualização de seu texto. Submetendo tais modificações a
procedimentos supermajoritários, baseados em maiorias qualificadas, a carta política busca
garantir sua estabilidade sem cristalizar-se e sem pretender-se imutável.
De todo modo, é inegável que as normas constitucionais podem ser postas em
vigor, alteradas e mesmo revogadas por processos formais e por processos informais de
modificação do sistema jurídico. Assim, como observa KELSEN (2003), entre tantos, o
critério basilar para aferir a vigência de uma ordem jurídica é sua eficácia (sociológica, no
sentido empregado por aquele autor), e a ordem jurídica vigora apenas e tão somente sob
condição de revelar-se eficaz e enquanto ostentar eficácia (de modo geral) (ALEXY, 2009).
Desse modo, ao lado dos fenômenos formais de alteração da constituição surgem
os informais, nos quais a força normativa dos fatos pode reconfigurar e modificar normas
constitucionais, por meio da alteração da norma sem alteração do texto, fenômeno
amplamente conhecido pela designação de mutação constitucional e estudado, entre tantos,
por JELLINEK (1991).
Há que se reconhecer também que os tribunais e cortes possuem importante
atividade paraconstitucional, ao decidir sobre a validade ou invalidade constitucional de

~ 266 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

normas e atos do poder público e ao conformar as normas constitucionais e sua


interpretação por meio de diversos mecanismos que vão desde a interpretação conforme
até as decisões manipulatórias (SGARBOSSA, 2016).
Assim, importante papel é desempenhado pelo judiciário na produção de uma
jurisprudência constitucional, não raro modificadora ou estabelecedora de normas
constitucionais, particularmente em sistemas em que a modificação formal da constituição
por meio de emendas revele-se particularmente difícil, como ocorre nos EUA em face do
art. V de sua constituição (MIRANDA, 2003; CAETANO, 2009).
Tal fenômeno é apreendido na Teoria do Direito de KELSEN sob a forma do
construto teórico da cláusula alternativa tácita, segundo a qual, segundo o autor, toda vez
que o ordenamento estabeleça um órgão jurisdicional de única ou última instância,
conferiria ao mesmo, tacitamente, competência para modificar as normas do sistema
jurídico e inclusive normas constitucionais (KELSEN, 2003).
Por fim, deve-se reconhecer ainda que mesmo em sistemas de constituição rígida
e unitextual parece ocorrer o fenômeno das normas constitucionais consuetudinárias
(OROZCO HENRÍQUEZ, 1993), ou seja, do surgimento de normas estabelecidas pelo
uso prolongado e pela crença em sua observância obrigatória, de modo que importantes
normas constitucionais podem surgir de tais processos fáticos de produção jurídica.
Dito isso, resta evidente que a Constituição brasileira sofreu inúmeras
modificações nas três décadas de vigência, não apenas promovidas por processos formais
como também por processos informais.
Na impossibilidade de examinar todas as transformações formais e informais
sofridas pela Constituição de 1988, propõe-se o presente tópico apenas a resgatar algumas
das principais modificações provocadas por Emendas constitucionais ao longo da vigência
da carta, sem qualquer intenção de taxatividade, deixando para outro momento a análise
das alterações informais na constituição e de eventuais processos de mutação
constitucional, de possível incidência da cláusula alternativa tácita (notadamente por força
de decisões contra legem do STF) e de normas constitucionais consuetudinárias.
Entre 1992 e 2017 a Constituição Federal foi emendada formalmente 105 vezes,
sendo 6 vezes por Emendas Constitucionais de Revisão, conforme o procedimento
previsto no art. 3º do ADCT, e as demais 99 vezes pelo procedimento de emendas previsto
no art. 60 daquela carta política. Como se percebe, trata-se de um número elevadíssimo de
alterações, superando amplamente aos modificações formais das cartas anteriores.

~ 267 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A tarefa de destacar as mudanças mais significativas da Constituição por tais


procedimentos é quase impossível, mas se fará aqui um esforço no sentido de sublinhar
algumas das alterações mais importantes ou significativas.
A Emenda Constitucional n. 3/93, entre outras alterações variadas envolvendo de
questões relativas à previdência dos servidores públicos a questões tributárias, criou a
controvertida Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADECON, figura sui generis nos
sistemas de controle de constitucionalidade (SILVA, 2011a). Ainda no mesmo ano, a
Emenda Constitucional n. 16/93 promoveu alteração da redação do art. 16, que estabelece
o princípio da anualidade ou anterioridade eleitoral, importante norma para a autenticidade
e legitimidade das eleições.
A Emenda Constitucional de Revisão de n. 3/94 promoveu alteração parcial do
direito de nacionalidade (art. 12 da CF), favorecendo o reconhecimento de nacionalidade
estrangeira jus sanguinis. No mesmo ano a ECR n. 4/94 alterou o § 9º do art. 14, relativo ao
estabelecimento de inelegibilidades infraconstitucionais pelo legislador complementar; bem
como a ECR n. 5/94 alterou, salutarmente, a duração do mandato presidencial, reduzindo-
o de 5 para 4 anos, ao conferir nova redação ao art. 82.
A Emenda Constitucional n. 14/96 promoveu importantes alterações em matéria
de educação, entre elas a previsão de normas relativas à aplicação do mínimo de receitas
como princípio constitucional sensível, art. 34 “e”. Em 1997, a EC n. 16 introduz
modificação relevantíssima no sistema constitucional, ao estabelecer a reeleição para o
executivo (art. 14 § 5º), norma esta que parece ter provocado profundas mudanças no
sistema constitucional e efeitos imprevistos na história política recente do país.
No ano seguinte, a EC n. 19/98 promoveu a reforma administrativa, buscando
superar o modelo burocrático pelo gerencial, introduzindo expressamente o princípio da
eficiência no caput do art. 37 e regulando amplas temáticas, tais como subsídios de
governadores, prefeitos, deputados e vereadores (artigos 27 § 2º, 28 §§ 1º e 2º, art. 29 V e
VI), limites de despesa com pessoal (art. 169), entre outros. No mesmo ano e na mesma
toada, realizou-se a reforma da previdência com a EC n. 20/98, com ênfase no equilíbrio
financeiro e atuarial.
A EC n. 24/99 promoveu alterações na Justiça do Trabalho, notadamente pondo
fim à figura dos juízes classistas. No ano seguinte, a EC n. 25/2000 regulou aspectos
relativos aos limites de despesa com o legislativo (art. 29 VI e 29-A) e a EC n. 26/2000
introduziu no rol dos direitos fundamentais sociais do art. 6º o direito fundamental à

~ 268 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

moradia. Ainda no ano de 2000, a EC n. 28/2000 modificou os prazos de prescrição para


ação reclamatória trabalhista, art. 7º, XXIX, unificando-os.
A EC n. 29/2000 veiculou importantes modificações referentes à saúde, versando
sobre vinculação de receitas, repasse de receitas tributárias e temas conexos; ao passo que a
EC n. 31/2000 criou o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, introduzindo os arts.
79 a 83 ao ADCT.
A EC n. 32/2001, por sua vez, versou sobre diversas questões legislativas e
atinentes ao processo legislativo, inclusive quanto ao regime jurídico das medidas
provisórias (art. 62 CF). Ainda em 2001, a EC n. 35 tratou das inviolabilidades dos
parlamentares federais, e, entre outras coisas, extinguiu a necessidade de prévia licença da
casa legislativa para a instauração de processo criminal contra parlamentar, embora tenha
previsto a possibilidade de sustação posterior do processo pelo órgão legislativo.
No ano de 2003, a EC n. 41 alterou a redação do inciso XI do art. 37, que
estabelece como teto da remuneração e do subsídio dos ocupantes de cargos, empregos e
funções da administração pública direta e indireta de todos os níveis, o subsídio mensal em
espécie dos Ministros do STF. Referida emenda tratou também, novamente, da temática da
previdência dos servidores públicos e do regime geral.
Destaque especial cabe à EC n. 45/2004, apelidada de reforma do Poder
Judiciário, que promoveu numerosas e importantes alterações no sistema constitucional.
Entre outras, mencionem-se: a) previsão expressa do direito fundamental à razoável
duração do processo (art. 5º, LXXVIII); b) introdução de norma sobre a
constitucionalização de instrumentos internacionais de direitos humanos e sobre o Tribunal
Penal Internacional (art. 5º §§ 3º e 4º); c) criação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ e
do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP (arts. 103-B e 130-A), com
competência para realizar o controle externo da magistratura e do MP; d) alterações de
competência de tribunais superiores e da Justiça do Trabalho; e) criação da Súmula
Vinculante (art. 103-A), entre outras alterações.
Em 2005, entre outras matérias, a EC n. 47 promoveu novas alterações atinentes à
previdência social, alterando diversos dispositivos constitucionais, tais como os artigos 37,
40, 195 e 201. Em 2006 a EC n. 52, por sua vez, alterou o regime jurídico das coligações
partidárias, pondo fim à verticalização.
A EC n. 53/2006 promoveu importantes alterações em matéria de educação e a
EC n. 54/2007 promoveu alterações no direito de nacionalidade, visando favorecer a
aquisição da nacionalidade brasileira por filhos de pai ou mãe brasileiros nascidos no

~ 269 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

estrangeiro. Em 2008, a EC n. 57 convalidou atos de criação, fusão, incorporação ou


desmembramento de municípios realizados sem observância das formalidades estabelecidas
pela Constituição (art. 96 ADCT).
A EC n. 52/2009 alterou a redação do inciso IV do art. 29 para estabelecer
minuciosamente limites máximos ao número de vereadores em proporção ao número de
habitantes dos municípios. Alterou, ainda, o art. 29-A, introduzido, como visto, pela EC n.
25/2000, que trata dos limites máximos de despesa com o Poder Legislativo municipal.
A EC n. 61/2009 alterou a composição do CNJ; A EC n. 64/2010 introduziu no
rol do art. 6º o direito fundamental à alimentação; a EC n. 66/2010 alterou a matéria do
divórcio, facilitando-o ao suprimir o requisito da prévia separação judicial por mais de 1
ano ou de fato por mais de 2. A EC n. 67, do mesmo ano, prorrogou a vigência do Fundo
de Combate e Erradicação da Pobreza, criado, como visto, pela EC n. 31/2000.
A EC n. 72/2013 acrescentou direitos aos empregados domésticos, aproximando
seu regime jurídico daquele dos demais trabalhadores urbanos e rurais, por meio de
alterações promovidas no parágrafo único do art. 7º. Ainda em 2003, a EC n. 73 promoveu
importante alteração na estrutura da Justiça Federal, criando os Tribunais Regionais
Federais da 6ª, 7ª, 8ª e 9ª Regiões, aumentando para nove o número de TRFs. De todo
modo, a inovação foi suspensa por decisão liminar do então presidente do STF, Ministro
Joaquim Barbosa, em sede da ADI n. 5017/2013, encontrando-se o mérito pendente de
julgamento.
A EC n. 76/2013, por sua vez, alterou a redação dos artigos 55 e 66 da
Constituição para tornar abertos os votos dos parlamentares nas votações de perda de
mandato parlamentar e na apreciação do veto executivo. No ano de 2014 a EC n. 80
alterou a redação do art. 134, passando a qualificar a defensoria pública como instituição
permanente e essencial à função jurisdicional do Estado e como instrumento do regime
democrático, cabendo à instituição “a orientação jurídica, a promoção dos direitos
humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e
coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados”. Explicitou ainda os princípios de
tal órgão (unidade, indivisibilidade e independência), além de prever a adequação do
número de defensores públicos à demanda e à população (art. 98 do ADCT).
A EC n. 88/2015 alterou a idade da aposentadoria compulsória de servidores
públicos, elevando-a para 75 anos para proventos integrais (art. 40 § 1º, II), estabelecendo a
mesma idade para a aposentadoria compulsória dos ministros do STF, ministros de
tribunais superiores e do TCU (art. 100 ADCT).

~ 270 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

EC n. 90/2015 ampliou uma vez mais o rol de direitos fundamentais sociais do


artigo 6º, na senda das ECs ns. 26/2000 e 64/2010, já referidas, nele incluindo o direito
fundamental ao transporte.
No ano de 2016, a EC n. 92 alterou a Constituição para prever o Tribunal
Superior do Trabalho entre os órgãos do Poder Judiciário e ao prever sua composição,
além de versar sobre sua competência para conhecer e julgar reclamações constitucionais
(art. 92, II-A e art. 111-A).
No ano de 2017, a EC n. 97 alterou o regime jurídico das eleições, vedando a
celebração de coligações em eleições proporcionais (art. 17 § 1º) a partir de 2020 (art. 2º da
EC n. 97/2017). Estabeleceu ainda cláusula de barreira ou desempenho, restringindo o
acesso de partidos políticos que não atingirem o desempenho estabelecido nos incisos II e
II do § 3º do art. 17 aos recursos do fundo partidário e ao acesso gratuito em rádio e
televisão (a partir de 2030, conforme o art. 3º da Emenda, havendo regra de transição
prevista no mesmo artigo, com critérios de desempenho progressivamente exigentes a
partir de 2018).
Estas parecem ter sido algumas das principais alterações promovidas por emenda
ou revisão ao texto constitucional de 1988. Seria relevante examinar, sem sombra de
dúvidas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, notadamente em certos julgados
que podem ser considerados como leading cases e mesmo que podem ter promovido
alterações informais em nosso sistema constitucional.
Citem-se, apenas exemplificativamente e sem qualquer pretensão de exaustão, a
ADPF n. 45 (2004), relativa à judicialização do direito fundamental à saúde e à reserva do
possível; a ADPF n. 187 (2011), que reconheceu a licitude da “marcha da maconha”; a
ADPF n. 54 (2012), relativa à interrupção da gestação em caso de feto portador de
anencefalia; a ADPF 186 (2012), que afirmou a constitucionalidade das cotas para acesso à
universidade pública; a ADPF n. 347 (2015), que reconheceu o estado de coisas
inconstitucional relativamente ao sistema carcerário brasileiro; a ADPF n. 378 (2015), que
tratou do impeachment; a ADPF n. 548 MC (2018), que assegurou a livre manifestação do
pensamento nas universidades; o MI 670 (2007), que, entre outros, consagrou a posição
concretista quanto à eficácia do mandado de injunção; o HC 87.585-8/TO (2008), que pôs
fim à prisão civil do depositário infiel e reconheceu a tese da supralegalidade dos direitos
humanos em tratados não aprovados pelo procedimento estabelecido no § 3º do art. 5º
(EC n. 45/2004); entre inúmeras outras.

~ 271 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A despeito disso, será impossível, nos limites do trabalho, explorar mesmo que
minimamente tal temática, de modo que o presente estudo restringe-se a registrar as
principais alterações formais do texto, relegando a outra oportunidade uma análise das
modificações informais, de crescente importância.

CONCLUSÃO

O presente capítulo buscou proporcionar ao leitor uma visão panorâmica do


desenvolvimento e da situação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 a
partir de uma perspectiva histórico-comparativa.
O estudo permitiu perceber que, sem negar, de modo algum, a originalidade e o
caráter singular da Carta Política de 1988, diversos elementos dela integrantes originam-se
em momentos anteriores de nossa História Constitucional, ingressando no texto vigente
com modificações mais ou menos intensas em cada caso. Tais elementos constituem
legados de um processo lento e gradual desenvolvimento institucional, de um complexo
processo histórico de experimentação, permeado de avanços e retrocessos.
Como visto, alguns dos principais elementos introduzidos com a primeira
constituição republicana serão mantidos na tradição constitucional brasileira, embora
transformados, total ou parcialmente, em maior ou menor grau.
Da constituição de 1891 à Constituição de 1988, do ponto de vista formal, serão
mantidos o catálogo de direitos e garantias, a forma federativa de Estado, a forma
republicana de governo, o sistema presidencialista, o controle judicial de
constitucionalidade difuso, a rigidez constitucional, os limites materiais à reforma da
constituição, entre outros.
Alguns desses elementos poderão ser momentaneamente eclipsados, como visto,
mas, de modo geral revelar-se-ão, elementos relativamente permanentes no arranjo de
instituições constitucionais do Brasil ao longo do tempo. Diversos elementos do sistema
constitucional serão mantidos e reiteradamente complementados e atualizados, tal como
ocorre com o sistema de controle de constitucionalidade, como visto.
Nota-se, portanto, que a ordem constitucional vigente atual é fruto não apenas de
ampla criatividade do Congresso Constituinte de 1986-1988, mas também de um lento
desenvolvimento e consolidação de instituições constitucionais ao longo das sucessivas
cartas – o que não significa, repita-se, negar importância às várias inovações promovidas
pela Constituição atual.

~ 272 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Da análise juscomparativa, focada no processo de circulação e recepção de


modelos estrangeiros, percebeu-se também que a carta política brasileira vigente é tributária
de diversas ordens constitucionais estrangeiras, como, aliás, foram todas as suas
antecessoras.
Constataram-se diversas influências, tanto norte-americanas (ou anglo-americanas)
quanto da Europa continental, notadamente portuguesas, francesas, italianas, entre outras.
De modo geral pode-se constatar que de fato embora o texto brasileiro possua sua
identidade e sua originalidade, não constituindo, de modo algum, cópia de qualquer carta
política estrangeira, em diversos momentos surgem pontos de contato, inspiração ou
recepção indisfarçáveis, nas mais variadas áreas, desde o processo constituinte e a
disposição da matéria no texto constitucional até institutos concretos, tais como princípios
constitucionais, direitos e garantias fundamentais, mecanismos de controle de
constitucionalidade e da jurisdição constitucional da liberdade, revisão constitucional,
cláusula de abertura e de aplicabilidade imediata, processo legislativo, entre outros.
Por outro lado, ao longo da análise, percebe-se que a tentativa de traçar uma
genealogia das influências alienígenas sobre o direito constitucional pátrio é árdua e pode
induzir a equívocos ou resultado dúbios, sendo mesmo impossível, em alguns casos,
assegurar-se da efetiva origem de certos institutos incorporados do Direito Constitucional
estrangeiro.
De todo modo, o exame de tais aspectos de conformação da carta constitucional
da Nova República é interessante e lança luz sobre fenômenos importantes correlatos às
origens mediatas e imediatas de nosso Direito Constitucional em seu estado atual.
Por fim, constata-se que a presente Carta foi fruto de inúmeras mudanças, muitas
de grande abrangência, por meio de processos de modificação formal e informal.
Elencaram-se algumas daquelas que podem ser consideradas como modificações formais
principais, embora tenham sido deixadas de lado, no presente estudo, um sem número de
modificações informais e de decisões judiciais em matéria constitucional que também vão
paulatinamente reconfigurando o sistema constitucional brasileiro.
Entre as diversas modificações enfatizadas no texto (notadamente as que
trouxeram modificações no próprio sistema constitucional), podem ser rememoradas a
criação da ADECON, do CNJ e do CNMP, das súmulas vinculantes, as Emendas à
Constituição que acrescentaram direitos fundamentais sociais ao texto, as que modificaram
o mandato presidencial ou normas relativas às imunidades parlamentares, as que alteraram
o processo legislativo, entre inúmeras outras.

~ 273 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Reconhece-se aqui, de todo modo, sem poder aprofundar, que as mudanças


informais, especialmente por jurisprudência contra legem parecem estar tomando a dianteira
na alteração de nosso sistema constitucional. A atual crise política e institucional, no
entanto, deixa dúvidas sobre se a capacidade de resistência da ordem constitucional
instaurada em 1988 será suficiente para manter tal carta vigente pelos próximos anos ou
pelas próximas décadas. Apenas o futuro poderá dizer.

REFERÊNCIAS

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~ 276 ~
A ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA
EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAUDE:
UMA ANÁLISE SOB O ENFOQUE DA SUPREMACIA JUDICIAL

Kélvia Faria Ferreira*


Waleska Marcy Rosa**

1 INTRODUÇÃO

Em 2018 é comemorado o trigésimo aniversário da Constituição brasileira.


Promulgada em 1988, a Constituição é reflexo da reação contra os abusos cometidos
durante a ditadura militar, podendo-se salientar, entre outras, as opções constitucionais por
um Estado de Direito, Democrático e Social.
É em virtude da opção pelo Estado Social que se conta com a presença de direitos
sociais no texto da Constituição. A Constituição de 1988 é conhecida como Constituição
Cidadã, justamente em virtude da profusão de direitos sociais existente em seu texto e
elevados à condição de direitos fundamentais.
Em decorrência da natureza prestacional destes direitos, os quais dependem da
atuação estatal para que se concretizem, é que se observa, desde fins da década de 1990, o
fenômeno da judicialização dos direitos sociais no Brasil. Trata-se da concessão de tais
direitos através de decisões judiciais, situação na qual o Poder Judiciário determina a
obrigação dos entes da federação em prestar a tutela específica do direito requerido.
Este fenômeno é especialmente observado no que se refere ao direito à saúde.
Verifica-se que os tribunais, sob a outorga do Supremo Tribunal Federal (STF), pacificaram
o entendimento de que cabe ao Poder Público assegurar a assistência integral do direito à
saúde. Assim,épossível a tutela específica de medicamentos e tratamentos que não estejam
disponíveis através do Sistema Único de Saúde e que sejam considerados indispensáveis
para a garantia da vida e da saúde do requerente.

* Mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e graduada em Direito pela
Faculdade Metodista Granbery. kelviafaria@hotmail.com
** Professora de Direito Constitucional na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atua na graduação e

no Programa de Pós-Graduação stricto sensu (mestrado) em Direito e Inovação e desenvolve pesquisas no


Grupo de Pesquisa Direito e Argumentação. waleska.ufjf@gmail.com

~ 277 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Entretanto, a judicialização dos direitos sociais, muito embora pacificada no


Brasil, ainda é tema que merece ser debatido, haja vista a sua intrínseca relação com a
existência de orçamento público, com a separação de poderes e a atribuição de
competências específicas para cada um deles. A presente contribuição pretende analisar o
tema sob esta última perspectiva.
Muito embora o STF entenda que a concessão judicial de prestações relativas ao
direito à saúde não ofende a separação de poderes, há posicionamento de pesquisadores em
sentido contrário. Jeremy Waldron, por exemplo, possui vasta obra destinada a discutir o
papel de cada um dos Poderes constituídos e à necessidade de que se mantenha a divisão
de competências.
Desta forma, o objetivo do presente trabalho é analisar empiricamente decisões
proferidas pelo STF, nas quais houve pedido de tutela específica de prestações relativas ao
direito à saúde, a fim de se responder à pergunta de pesquisa, ou seja, a fim de se verificar
se sua atuação tendeu à supremacia judicial. Para alcançar tal objetivo, adotou-se como
marco a afirmação teórica de Jeremy Waldron que conceitua a supremacia judicial como
uma das formas de expressão de um sistema de revisão judicial forte.
A metodologia de pesquisa adotada é a empírico-qualitativa, tal como descrevem
Lee Epstein e Gary King, através da qual se analisa o conteúdo das decisões, utilizando-se
o marco teórico como medida para aferição dos resultados e realização das inferências.
O artigo está estruturado da seguinte forma: na primeira seção será apresentado o
tratamento dispensado aos direitos sociais na Constituição brasileira de 1988. Será feita
breve digressão a respeito das características do Estado Social e apresentado o regime
jurídico atinente a tais direitos, observando-se as divergências que a temática apresenta
quanto à autoexecutoriedade e à concretização desta categoria de direitos.
Na segunda seção, debruçar-se-á sobre o marco teórico eleito. Assim, será
apresentada a afirmação teórico de Jeremy Waldron que se utiliza para medir as decisões
analisadas, bem como aproximada a teoria do autor da realidade brasileira.
Finalmente, na terceira seção, serão analisadas empiricamente as decisões do
Supremo Tribunal Federal, proferidas entre 1999 e 2017, dentro da temática de
judicialização do direito à saúde, a fim de se apurar se a Corte brasileira recaiu em
supremacia judicial, na perspectiva de Waldron.

~ 278 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

2 O TRATAMENTO DISPENSADO AOS DIREITOS SOCIAIS NA


CONSTITUIÇÃO DE 1988

Historicamente, o Estado Social surge como alternativa ao Estado Liberal. Este


último é caracterizado pelo abstencionismo estatal e pela primazia dos interesses burgueses,
logo, o escopo desta configuração estatal é a produção de bens e riquezas e o
enriquecimento das classes mais abastadas.
O Estado Liberal permitiu o pleno desenvolvimento do capitalismo, mas trouxe
consigo o aumento da exploração das classes menos favorecidas da sociedade, que não
tinham a quem recorrer, haja vista a predominância do Estado mínimo 177. No entanto,
especialmente após a Primeira Guerra Mundial, ideais socialistas e anarquistas ganham
força, o que, somado à crise econômica da década de 1920, contribuem para a mitigação do
regime puramente liberal.
Temendo perder o monopólio do poder, principalmente após a implementação
do socialismo na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e observando a
insustentabilidade do regime puramente liberal, em virtude da crise econômica ocorrida nos
anos 1920, o capitalismo burguês admitiu fazer concessões ao proletariado, assegurando
alguns direitos trabalhistas, como, por exemplo, a redução da jornada de trabalho e a
limitação ao trabalho infantil.
É neste contexto que surge o Estado Social. Os próprios juristas começaram a
defender a necessidade de maior atuação estatal e a extensão de certos direitos, antes
pertencentes apenas à burguesia, às demais parcelas da população. Portanto, o Estado
Social abandona a postura negativa e abstencionista, passando a atuar como agente cuja
finalidade era conter as demandas populares – através da asseguração de alguns direitos – e,
ao mesmo tempo, garantir a continuidade do regime capitalista.
Portanto, o Estado Social perde a nota de neutralidade, passando a intervir
ativamente na economia e na sociedade. Neste sentido, como ressalta Fernandes (2011, p.
56), o Estado assume o papel de agente conformador da realidade social:

O Estado Social, que surge após a Primeira Guerra e se afirma após a Segunda,
intervém na Economia, por meio de ações diretas e indiretas; e visa garantir o
capitalismo por meio de uma proposta de bem-estar que implica a manutenção
artificial da livre concorrência e da livre iniciativa, assim como a compensação
das desigualdades sociais por meio da prestação estatal de serviços e da
concessão de direitos sociais.

177NoEstado mínimo,as competências estatais reduzem-seà organização do Estado e à garantia de direitos


fundamentais (da burguesia), em especial direitos fundamentais negativos – direitos contra o Estado.

~ 279 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Observa-se, assim, que os direitos sociais surgem como resposta às desigualdades


advindas do capitalismo, visando coibir revoltas através da concessão de certos direitos
essenciais às parcelas menos favorecidas da sociedade.
A Constituição brasileira de 1988 tem como opção política a adoção do Estado
Social. Sendo assim, o Estado brasileiro, através de seus poderes constituídos, tem a
intenção de assegurar direitos à população que visem diminuir as desigualdades sociais e
econômicas, garantindo a prestação, ao menos, do mínimo necessário à vida digna do
indivíduo.
Os direitos sociais estão elencados no art. 6º da Constituição (1988), sendo eles: a
educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.
Eles integram o Título II, que trata Dos Direitos e Garantias Fundamentais
(BRASIL, 1988). Todavia, em que pese estarem os direitos sociais localizados
topograficamente no Título que trata especificamente dos direitos fundamentais, a
fundamentalidade daqueles não é tema imune a controvérsias, entendendo, parte dos
estudiosos, que o regime jurídico aplicável aos direitos de liberdade não seria o mesmo para
os direitos sociais, a exemplo de Fernando Átria (2005), que questiona a própria existência
de direitos sociais178.
O debate é devido à própria natureza de tais direitos que, à luz da tradicional
divisão dos direitos fundamentais em gerações ou dimensões, pertencem à segunda
dimensão dos direitos fundamentais, o que lhes confere caráter prioritariamente
prestacional, demandando, portanto, uma atuação positiva do Estado, através do
fornecimento de bens e serviços.
Contudo, vale ressaltar que, atualmente, reconhece-se a existência de uma
dimensão positiva nos direitos de liberdade, bem como uma dimensão negativa nos direitos
sociais. Isso porque, aqueles dependem de um fazer estatal para sua plena garantia, a
exemplo da necessidade de segurança pública para garantia da liberdade de ir e vir. Por sua
vez, os direitos sociais apresentam dimensão negativa quando imposto ao Estado que se
abstenha de frustrar o acesso dos indivíduos aos bens e serviços decorrentes dos diversos
direitos sociais.

178 Salientando a controvérsia, mas em defesa da fundamentalidade, veja-se, de Robert Alexy (2008), o

capítulo 9 da obra Teoria dos Direitos Fundamentais, de Ingo Wolfgang Sarlet, o capítulo 4 da obra A Eficácia dos
Direitos Fundamentais (2012), bem como o artigo Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais: contributo para um
balanço aos vinte anos da Constituição Federal de 1988 (2008).

~ 280 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Apesar da existência de posicionamentos em contrário, como salienta Ingo


Wolfgang Sarlet (2008, p. 6), os direitos sociais devem ser considerados direitos
fundamentais, tanto no seu aspecto formal, quanto material. No que se refere ao aspecto
formal, são considerados fundamentais por estarem inscritos no título do texto
constitucional que elenca tais direitos. Por outro lado, são materialmente constitucionais,
pois devem ser reconhecidos inclusive os que não constam do mencionado Título e os
decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, conforme preceitua o art. 5º, §
3º da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Reconhecida a fundamentalidade dos direitos sociais, ponto ainda mais
controverso é aquele que se refere ao regime jurídico dispensado a tais direitos. Pela
própria nota de fundamentalidade, tais direitos mereceriam tratamento jurídico-
constitucional diferenciado. No entanto, há diversos questionamentos sobre tal regime.
O primeiro deles é relativo à eficácia das normas que preceituam direitos sociais.
Sabe-se que o §1º do art. 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988) estabelece que as
normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata. Com
isso, quis o constituinte afastar a necessidade de intervenção legislativa posterior para dar
concretude a tais normas. Fernando Átria (2005) e João Pedro Gebran Neto (2002),
exemplificativamente, defendem que o mencionado dispositivo apenas seria aplicável aos
direitos de liberdade elencados no art. 5º do texto constitucional, dada sua localização
topográfica. Por outro lado, Ingo Sarlet (2008, p. 12)entende que tal argumento não é
suficiente para afastar a imediatidade da aplicação das normas que definem direitos sociais,
tendo em vista que o constituinte não fez distinção entre direitos de liberdade e direitos
sociais ao dispor o §1º do art. 5º (BRASIL, 1988). Assim, a mera localização topográfica de
tal enunciado não seria motivo para renegar os direitos sociais à necessidade de integração
legislativa.
Contudo, Sarlet (2012, p. 258) também ressalta que, dada a natureza prestacional
destes direitos, a aplicabilidade imediata encontra certos limites, tendo em vista que
inevitavelmente dependem de um agir do poder público. Assim, de imediato, a consagração
dos direitos sociais como direitos fundamentais afasta normas em sentido contrário, bem
como gera uma obrigação ao poder público, que deve atuar na concretização de tais
direitos.
Esta contribuição dedica-se especialmente ao debate concentrado em torno da
concretização dos direitos sociais. Por se tratarem de direitos que dependem de um agir
estatal para sua concretização, questiona-se se a norma constitucional que institui o direito

~ 281 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

social geraria obrigação de legislar aos poderes constituídos, de modo a garantir a


efetividade do direito. Questiona-se, também, qual o limite de vinculação do legislador
infraconstitucional, uma vez que as normas constitucionais possuem, naturalmente, textura
aberta, não delimitando o alcance exato do direito. Questiona-se, ainda, se a parcela
efetivada pode vir a ser retirada em caso de insuficiência de recursos, tendo em vista a
inevitável dependência entre a concretização dos direitos sociais e o orçamento público.
Sabe-se que as normas constitucionais, especialmente aquelas que definem direitos
sociais, possuem textura aberta, estabelecendo diretrizes gerais a serem especificadas pela
atividade legislativa e postas em prática pela atividade executiva. Assim, a Constituição
Federal (BRASIL, 1988) se incumbiria de apontar direçõesa serem seguidas, com base nas
escolhas políticas feitas pelo constituinte, de modo que, caberia ao legislador
infraconstitucional e à Administração Pública dar plena eficácia às normas, conferindo-lhes,
portanto, concretude.
É em decorrência de tal configuração que, conforme salientado acima, há certa
divergência quanto à aplicabilidade imediata dos direitos sociais, já que necessitam de um
fazer estatal para que sejam efetivamente garantidos. Sendo assim, o entendimento inicial é
de que a concretização dos direitos sociais caberia ao legislador ordinário, competindo ao
Poder Judiciário apenas solucionar as controvérsias decorrentes da aplicação da lei
emanada por aquele poder.
Todavia, no caso brasileiro, vem ocorrendo, há alguns anos, fenômeno que ficou
conhecido como judicializaçãodos direitos sociais,que corresponde ao recurso ao Poder
Judiciário para a tutela individual de prestações positivas de direitos sociais.
Em caso paradigmático julgado pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2000,
cuja relatoria coube ao Ministro Celso de Mello (Agravo Regimental no Recurso
Extraordinário 271286/RS), decidiu-se que incumbia ao Poder Público a entrega de
medicamentos para tratamento de portadores do vírus HIV, independentemente de lei ou
política pública que assim definisse, afastando o Tribunal a natureza programática da
norma insculpida no art. 196 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Desde então, ficou
sedimentado na jurisprudência brasileira o entendimento de que os direitos sociais,
enquanto direitos individuais subjetivos, são passíveis de tutela específica, podendo, assim,
serem judicializados.
Passados dezoito anos da paradigmática decisão, e mais de duas décadas desde
que se iniciou o fenômeno, o que se observa é que, de lá para cá, a atividade judicial
referente à concretização dos direitos sociais, especialmente o direito à saúde, vem se

~ 282 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

mostrando cada vez mais intensa, deixando os tribunais apenas de suprir as lacunas
deixadas pelo legislador, mas efetivamente interferindo em políticas públicas instituídas
pelo administrador público, sendo de todo pertinente a advertência de Luís Roberto
Barroso (2009, p. 35): “O sistema, no entanto, começa a apresentar sintomas graves de que
pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da falta de critérios e de voluntarismos
diversos”.
Esta possibilidade de se buscar judicialmente a tutela específica de um direito
social traz consigo o debate em torno da legitimidade do Poder Judiciário para tomar tais
decisões, gerando discussões a respeito da possível ofensa à separação dos poderes, através
da supremacia judicial.

3 A APLICAÇÃO DO CONCEITO DE SUPREMACIA JUDICIAL NO CASO


BRASILEIRO

Muitos autores se dedicam ao estudo dos direitos sociais, ao papel das cortes
constitucionais na garantia destes e à teoria da separação dos poderes. Neste trabalho,
optou-se por adotar como marco teórico parte da construção de Jeremy Waldron,
professor de Direito nos Estados Unidos da América, nascido na Nova Zelândia, cuja
produção acadêmica é conhecida por voltar-se à crítica do judicial review (revisão judicial da
legislação)179.
O foco principal do argumento de Waldron contra o judicial review está no alegado
caráter antidemocrático da jurisdição constitucional. Toda sua obra é desenvolvida em
torno de argumentos que salientam a primazia das decisões tomadas pelos poderes
eleitosdemocraticamente (especialmente em temas relacionados aos direitos fundamentais)
sobre as decisões tomadas por juízes não comprometidos com esta questão democrática, já
que não se submetem ao voto popular.
Em artigo publicado no ano de 2006, intitulado The core ofthe case against judicial
review, traduzido para o português como A essência da oposição ao judicial review (2010), o
autor estabelece uma diferença essencial quanto ao tipo de controle judicial que pode ser
exercido sobre a legislação.
Segundo Waldron (2006, p. 1354), existe um judicial review forte e um judicial review
fraco. Este tem como característica a impossibilidade de o Poder Judiciário deixar de
aplicar determinada lei por considerá-la inconstitucional. O judicial review fraco não afasta a

179 Neste trabalho, serão feitas menções tanto à expressão original quanto à sua tradução para o português.

~ 283 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

competência do Poder Judiciário para analisar toda a legislação, no entanto, o juízo emitido
não é vinculante, cabendo apenas aos poderes eleitos modificar os efeitos ou revogar a lei.
Por outro lado, o judicial review forte é aquele no qual os tribunais podem deixar de aplicar
uma lei ou modificar os seus efeitos quando entenderem que essa padece de
inconstitucionalidade.
O autor esclarece que sua crítica é dirigida ao judicial review forte, apenas. Em suas
palavras:

In a system of strong judicial review, courts have the authority to decline to apply a statute in a
particular case (even though the statute on its own terms plainly applies in that case) or to
modify the effect of the statute to make its application conform with individual rights (in ways
that the statute itself does not envisage). Moreover, courts in this system havethe authority to
establish as a matteroflawthat a given statute or legislative provision Will not be applied, so
that as a result of stare decisis and issue preclusion a law that they have refused to apply
becomes in effect a deadletter (WALDRON, 2006, p. 1354)180.

Sendo assim, o sistema de controle de constitucionalidade adotado pelo Brasil


recai na crítica de Waldron (2006), na medida em que o Supremo Tribunal Federal possui
competência para revogar leis ou modificar seus efeitos. Contudo, a finalidade da presente
pesquisa não é dirigir uma crítica ao modelo de jurisdição constitucional brasileiro, sob a
perspectiva de Jeremy Waldron, mas analisar a atuação desta Corte constitucional no que se
refere à concretização de direitos sociais.
Para tanto, é necessário aprofundar-se no conceito de judicial review forte e
suasimplicações, o que Waldron faz em artigo escrito a partir de conferência proferida em
Lisboa181, no ano de 2014. O autor ressalta que permanece como opositor ao modelo de
jurisdição constitucional adotado por Portugal (país onde foi proferida a conferência) e
pelos Estados Unidos da América (país onde vive e atua), todavia, naquela ocasião, seu
objetivo é explorar se há algum espaço entre a prática do judicial review e a ideia de
supremacia judicial (WALDRON, 2014, p. 4-5). Segundo Waldron (2014, p. 5), a
supremacia judicial implica que:

180 Em tradução de Adauto Villela, publicada pela Lumen Juris: “Em um sistema de controle de
constitucionalidade forte, os tribunais têm autoridade para deixar de aplicar uma lei em um processo (mesmo
que a lei em seus próprios termos se aplicasse claramente a tal processo) ou para modificar o efeito de uma lei
para deixar sua aplicação em conformidade com direitos individuais (de modo que a lei por si não vislumbra).
Além disso, os tribunais nesse sistema têm autoridade para instituir como matéria de direito que uma dada lei
ou disposição legislativa não será aplicada, de modo que, em consequência da força vinculante dos
precedentes e da preclusão da questão, uma lei cuja aplicação foi recusada pelos tribunais torna-se para todos
os efeitos letra morta” (WALDRON, 2010, p. 100).
181 O artigo foi publicado pela New York UniversityPublic Law and Legal TheoryWorkingPapers.

~ 284 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

the judges should be supreme or even sovereign in the polity and that all other powers in the
constitution should be subordinated to them. I believe that whatever we say for or against
judicial review, it is not the same as judicial supremacy. And it is judicial supremacy that I
want to consider today; I want to explore the ways in which judicial authority might rise to
level of supremacy and ways in which that particular sortof judge-based rule may be
prevented182.

Portanto, ainda que a oposição de Waldron aos sistemas de controle de


constitucionalidade forte permaneça, o autor se dedica a observar diferenças dentro de um
sistema forte de revisão judicial, que pode ser apenas um sistema de revisão judicial da
legislação ou caracterizar verdadeira supremacia judicial, sendo particularmente
problemático, na visão do autor, esta última configuração.
Assim, não basta existir um sistema de controle de constitucionalidade forte para
que se considere existente a supremacia judicial, é necessário que tal sistema preencha
determinados requisitos, é necessário que a autoridade judicial cresça e subjugue os demais
poderes à sua soberania. Segundo Waldron (2014, p. 11):

It is tempting to say that the distinction between weak and strong judicial review corresponds to
the distinction between mere judicial review of legislation and assertions of judicial supremacy.
Maybe strong judicial review amounts to a muscular assertion of judicial supremacy. If someone
Said this, I guess we would know what they meant. The term judicial supremacy has no
canonical definition, so people are bound to use it in diferente ways. But in the America debate,
I don’tthis use of it has been found helpful. Instead it is assumed that even among practices of
strong judicial review, or ways of practicing strong judicial review, we might want to identify a
subset of them that amount to judicial supremacy. And then we might want to urge or counsel
those entrusted with the Power of judicial review to avoid any move in the direction of judicial
supremacy. I am not saying that the American courts have never tilted towards judicial
supremacy. Actually, I think in various ways they have. But it is not Just because they have
practiced strong judicial review. It is because of the way they have practiced strong judicial
review183 (grifo no original).

Deste modo, é importante ter em mente que o controle de constitucionalidade


forte não é uma forma de supremacia judicial, mas que, dentro daqueles sistemas que

182 Em tradução livre: “os juízes devem ser supremos ou mesmo soberanos na política e todos os outros
poderes devem se subordinar a eles. Eu acredito que, o que quer que se diga a favor ou contra a revisão
judicial, não significa a mesma coisa para a supremacia judicial. E é exatamente sobre tal supremacia que eu
quero refletir hoje; quero explorar as formas pelas quais a autoridade judicial pode alcançar a supremacia e as
formas em que este tipo particular de regra baseada na autoridade judicial pode ser evitada”.
183Em traduçao livre: “É tentador dizer que a distinção entre revisão judicial fraca e forte corresponde à

distinção entre mera revisão judicial da legislação e afirmações de supremacia judicial.Talvez a revisão judicial
forte represente uma asserção muscular da supremacia judicial. Se alguém dissesse isso, acho que saberíamos
o que eles queriam dizer. O termo supremacia judicial não tem uma definição canônica, então, as pessoas o
usam de maneiras diferentes. Mas durante o debate na América, eu não o utilizei da melhor forma. Em vez
disso, presume-se que, mesmo entre as práticas de revisão judicial forte, ou em suas práticas, podemos
identificar um subconjunto que represente a supremacia judicial. E então, podemos instigar ou aconselhar os
responsáveispela revisão judicial para evitar qualquer mudança na direção da supremacia judicial. Não estou
dizendo que os tribunais americanos nunca se inclinaram para a supremacia judicial. Na verdade, penso em
várias maneiras. Mas não é apenas porque eles praticam revisão judicial forte, é devido ao modo comoa
praticam”.

~ 285 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

adotam o judicial review forte, podem existir práticas de supremacia judicial. Sua ocorrência
depende muito mais da forma como se pratica a revisão judicial do que da sua simples
existência.
Jeremy Waldron (2014) sugere três tipos de atuação dos tribunais que implicariam
a ocorrência da supremacia judicial. Segundo ele, o judicial review se transformaria em
supremacia judicial quando as cortes atuarem de forma a perseguir um programa social ou
uma política específica, “ratherthanjustrespondingto a particular abuses identified as suchby
a Bill ofRights as theycropup184” (WALDRON, 2014, p. 27); quando os juízes
considerarem, em suas decisões, apenas seus próprios entendimentos sobre determinado
tema, agindo como se fossem donos da Constituição
“andtheotherbranchesofgovernmentandthepeople in general werenotentitledto a view185”
(WALDRON, 2014, p. 32); e quando os tribunais acreditarem ser a voz da Constituição ou
do povo que a fez (WALDRON, 2014, p. 37).
Quanto à primeira sugestão de Waldron (2014, p. 28), o autor ressalva que sua
intenção não é dirigir um ataque à existência de cláusulas sociais nos textos constitucionais,
mas salientar que a presença dessas não deve autorizar o Poder Judiciário a perseguir a
justiça social como finalidade. Nas palavras do autor:

So: judicial review should not be understood as na opportunity to implement a broad social
program through decisions in sucessive cases. [...] The task of the judges is simply to spot and
identify particular abuses, to oppose the program as a whole, which is none of the
irresponsability186 (WALDRON, 2014, p. 31).

É especialmente neste sentido que a teoria de Jeremy Waldron será adotada como
marco teórico da presente pesquisa. Não se adotará a clássica oposição de Waldron à
revisão judicial da legislação, porém, adotar-se-á, aqui, a distinção que o autor estabeleceu
entre revisão judicial e supremacia judicial.
O objetivo é identificar se, dentro do sistema de judicial review forte adotado pelo
Brasil, há atuação doSupremo Tribunal Federal que tenda à supremacia judicial. Para tanto,
serão adotadas como medida duas das três sugestões de Waldron expostas acima. Logo, a
pergunta que guiará a pesquisa é a seguinte: a atuação do STF, no que se refere à tutela

184 Em tradução livre: “ao invés de apenas responder, à medida que surgirem, aos casos particulares de abusos
aos direitos especificados nas declarações”.
185 Em tradução livre: “e os outros ramos do governo e o povo em geral não tivessem direito a um

entendimento”.
186 Em tradução livre: “Assim: a revisão judicial não deve ser entendida como uma oportunidade para

implementar um programa social amplo através de decisões em casos sucessivos. [...] A tarefa dos juízes é
simplesmente reconhecer e identificar abusos particulares, não é sua função se opor ao programa como um
todo”.

~ 286 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

específica do direito à saúde, caracteriza-se como supremacia judicial? A resposta a tal


pergunta será encontrada através da análise de decisões do tribunal, nas quais procurar-se-á
observar se a Corte perseguiu um programa social coerente como objetivo e se os
Ministros consideraram apenas seu próprio entendimento sobre a Constituição ao decidir.

4 ANÁLISE DAS DECISÕES DO STF NA PERSPECTIVA DA SUPREMACIA


JUDICIAL

Para alcançar o objetivo proposto no presente trabalho, qual seja, verificar se o


STF atua com supremacia judicial na tutela do direito à saúde, buscou-se incluir no recorte
de análise decisões de todo o período em que o fenômeno da judicialização da saúde é
observado no Brasil. Sendo assim, o recorte temporal estende-se do ano de 1999 até o ano
de 2017. A finalidade é observar, através dos argumentos utilizados nos acórdãos, se o
tribunal segue uma política ou programa social específico e se adota apenas o seu próprio
entendimento a respeito do texto constitucional.
Foram selecionados nove acórdãos, julgados nos seguintes anos: 1999, 2000,
2000, 2006, 2010, 2013, 2015, 2016, 2017. Os critérios escolhidos para seleção dos
acórdãos foram: a) que fosse debatido o mérito da questão, sendo excluídas aquelas
decisões de caráter puramente processual; b) em virtude do extenso número de decisões
existentes para o período, optou-se por selecionar poucas decisões, mas que fossem
representativas de todo o período do recorte temporal, assim, evitou-se selecionar mais de
uma decisão para o mesmo ano; c) todavia, em um caso,foram escolhidas duas decisões
para o mesmo ano, em virtude do conteúdo destas, haja vista que, o terceiro critério de
seleção foi tratarem as decisões de prestações diversas. Logo, no ano em que foi escolhida
mais de uma decisão, a justificativa está no fato de a tutela concedida tratar de
medicamentos ou tratamentos diferentes.
Os dados coletados podem, num primeiro momento, ser resumidos da seguinte
forma:

Tabela 1 – Tutelas pleiteadas e decisão do STF


Data de
Processo Tutela pretendida Recorrente Decisão do Tribunal
Julgamento
Negado provimento ao
AI 238328 Medicamentos para Município de
16/11/1999 agravo, mantida a decisão do
AgR tratamento de HIV/AIDS. Porto Alegre
tribunal inferior que deferiu a

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Direitos Humanos & Fundamentais

entrega do medicamento.
Não conhecido o Recurso
Medicamento para
Estado do Rio Extraordinário, mantida a
RE 195192 22/02/2000 tratamento de criança com
Grande do Sul decisão inferior que deferiu a
fenilcetonúria.
entrega do medicamento.
Negado provimento ao
RE 271286 Medicamentos para Município de agravo, mantida a decisão do
12/09/2000
AgR tratamento de HIV/AIDS. Porto Alegre tribunal inferior que deferiu a
entrega do medicamento.
Medicamentos para
Negado provimento ao
tratamento de
RE 393175 Estado do Rio recurso, mantida a decisão
12/12/2006 esquizofrenia paranoide e
AgR Grande do Sul inferior que deferiu a entrega
doença maníaco-depressiva
do medicamento.
crônica.
Medicamentos para Negado provimento ao
STA 328 tratamento de Doença agravo, mantida a decisão do
24/06/2010 União
AgR Pulmonar Obstrutiva tribunal inferior que deferiu a
Crônica (DPOC) entrega do medicamento.
Negado provimento ao
RE 626382 Fornecimento de fraldas Estado do Rio agravo, mantida a decisão do
27/08/2013
AgR descartáveis. Grande do Sul tribunal inferior que deferiu a
entrega do material de higiene.
Negado provimento ao
Medicamentos para
SL 815 Município de agravo, mantida a decisão do
07/05/2015 tratamento da Hepatite C,
AgR São Paulo tribunal inferior que deferiu a
sem registro na ANVISA.
entrega do medicamento.
Fornecimento de alimento Negado provimento ao
ARE
especial a criança Estado do Rio agravo, mantida a decisão do
947823 28/06/2016
portadora de Grande do Sul tribunal inferior que deferiu a
AgR
fenilcetonúria. entrega do alimento.
Fornecimento de alimento Negado provimento ao
ARE
especial a criança Estado de agravo, mantida a decisão do
1049831 27/10/2017
portadora de alergia Pernambuco tribunal inferior que deferiu a
AgR
alimentar. entrega do alimento.
Fonte: Dados colhidos pelas autoras

A partir desta primeira tabulação dos dados, observa-se que o Supremo Tribunal
Federal decide de forma idêntica para todos os casos nos quais são pleiteados
medicamentos ou tratamentos de saúde. Independentemente da figura processual utilizada
para levar o feito ao julgamento da Corte constitucional, a decisão foi sempre no sentido de

~ 288 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

negar o pedido do recorrente (o ente público: município, estado ou União) e manter a


concessão da tutela específica pleiteada pelo particular.
Observa-se, ainda, que não importa o conteúdo da tutela requerida, sendo
mantida a obrigação do ente público de fornecer os medicamentos/tratamentos/itens de
higiene para as mais diversas enfermidades. Nota-se que, até o ano de 2010, são ratificadas
decisões que determinam o fornecimento de medicamentos, quer seja para o tratamento da
AIDS, da fenilcetonúria, de doenças psiquiátricas ou respiratórias. Todavia, a partir de
2013, tem-se também a ratificação de decisões que determinam não somente o
fornecimento de medicamentos, mas a entrega de materiais de higiene (fraldas
descartáveis), bem como o fornecimento de alimentação especial.
Conjugando-se tais dados com a teoria de Jeremy Waldron (2014), é possível
realizar as primeiras inferências. Foi mencionado que o autor entende por supremacia
judicial a atuação do tribunal que persiga um programa ou política social específica e que
considere apenas seu próprio entendimento a respeito do texto constitucional.
Embasando-se apenas nos dados resumidos na Tabela 1, pode-se inferir que a
corte constitucional brasileira possui entendimento consolidadoa respeito do que considera
obrigação dos entes públicos no que se refere ao direito à saúde. Esta inferência decorre do
fato de que o Supremo decidiu da mesma maneira em todos os casos utilizados no recorte,
a despeito do tipo de recurso usado, da tutela específica pleiteada, das condições pessoais
do recorrente e do recorrido. Em se tratando de recorrentes diversos, razoável inferir que
os argumentos levados à sua análise não foram os mesmos em todos os casos, haja vista
tratarem-se de entes federados distintos, com representação processual distinta, portanto;
além de se tratarem de enfermidades distintas, o que levaria a argumentação distinta para
cada caso. No entanto, o STF não acolheu a argumentação do recorrente em nenhum caso,
o que permite inferir que a Corte possui um entendimento próprio a respeito do texto
constitucional, o qual, a princípio, não sucumbiu a nenhum argumento trazido para sua
análise.
Logo, poder-se-ia inferir que o Supremo Tribunal Federal recai na crítica de
Waldron, isto é, adota postura de supremacia judicial, na medida em que em nenhum
momento acolheu os argumentos suscitados pelos recorrentes. Todavia, para que se
confirme tal inferência, deve-se analisar o conteúdo das decisões, para que seja possível
concluir pela ocorrência de supremacia judicial nos dois aspectos eleitos da teoria de
Waldron.
Os argumentos utilizados pelo Supremo nas decisões estão tabulados na Tabela 2:

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Direitos Humanos & Fundamentais

Tabela 2 – Relação de argumentos utilizados pelo STF em cada decisão


Processo Argumentos utilizados pelo STF como razão de decidir
“No mais, reporto-me aos fundamentos da decisão atacada. Saúde “é direito de todos e dever
do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua
promoção, proteção e recuperação”. A referência, contida no artigo 196 da Constituição
AI 238328 Federal, a Estado, apanha a União, os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e
AgR os municípios”.
“No caso dos autos, assentou-se a impossibilidade material de o Agravado adquirir os
medicamentos excepcionais próprios ao tratamento da Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida (SIDA/AIDS). Aliás, a Corte de origem deixou consignada a existência de lei
obrigando o Estado a fornecer os medicamentos”.
“Quanto ao tema de fundo propriamente dito, além de ter-se o apoio na assistência do
Estado previsto na Lei Maior, consideradas a vida, a saúde e o bem-estar da criança e
do adolescente, constata-se que o acórdão proferido está lastreado, também, em interpretação
de normas locais. A própria autoridade apontada como coatora, ou seja, o Excelentíssimo
Senhor Secretário da Saúde, teria reconhecido a obrigatoriedade de aquisição e fornecimento de
RE 195192 medicamentos excepcionais de alto custo para o Ministérios da Saúde, INAMPS e para o
próprio Estado. Isso decorre do Sistema Unificado de Saúde. No caso, restou constatada
enfermidade rara e que alcança cerca de vinte crianças em todo o Estado do Rio Grande do Sul
com sérios riscos para a saúde e o desenvolvimento das mesmas. O Estado deve assumir as
funções que lhe são próprias, sendo certo, ainda, que problemas orçamentários não
podem obstaculizar o implemento do que previsto constitucionalmente”.
“Na realidade, o cumprimento do dever político-constitucional consagrado no art. 196 da
Lei Fundamental do Estado, consistente na obrigação de assegurar, a todos, a proteção à
saúde, representa fator, que, associado a um imperativo de solidariedade social, impõe-se ao
Poder Público, qualquer que seja a dimensão institucional em que este atue no plano
de nossa organização federativa”.
“[...] entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como
direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º,
RE 271286
caput e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse
AgR
financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões
de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o
respeito indeclinável à vida e à saúde humana, notadamente daqueles que têm acesso, por
força de legislação local, ao programa de distribuição gratuita de medicamentos, instituído em
favor de pessoas carentes”.
“O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política [...] não pode
converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público,

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Direitos Humanos & Fundamentais

fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira


ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de
infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado”.
“O sentido de fundamentalidade do direito à saúde – que representa, no contexto da
evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes
das liberdades reais ou concretas – impõe ao Poder Público um dever de prestação
positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estar
adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da
determinação ordenada pelo texto constitucional”.
“Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um
direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito,
seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles
casos em que o direito – como o direito à saúde – se qualifica como prerrogativa
jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de
prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional”.
“Na realidade, o cumprimento do dever político-constitucional consagrado no art. 196 da
Lei Fundamental do Estado, consistente na obrigação de assegurar, a todos, a proteção à
saúde, representa fator, que, associado a um imperativo de solidariedade social, impõe-se ao
Poder Público, qualquer que seja a dimensão institucional em que este atue no plano
de nossa organização federativa”.
“[...] entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como
direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º,
caput e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse
financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões
de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o
respeito indeclinável à vida e à saúde humana, notadamente daqueles que têm acesso, por
força de legislação local, ao programa de distribuição gratuita de medicamentos, instituído em
RE 393175 favor de pessoas carentes”.
AgR “O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política [...] não pode
converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público,
fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira
ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de
infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado”.
“O sentido de fundamentalidade do direito à saúde – que representa, no contexto da
evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes
das liberdades reais ou concretas – impõe ao Poder Público um dever de prestação
positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estar
adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da
determinação ordenada pelo texto constitucional”.
“Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um
direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito,

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Direitos Humanos & Fundamentais

seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles


casos em que o direito – como o direito à saúde – se qualifica como prerrogativa
jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de
prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional”.
“Assim, não se sustentam as alegações da agravante, pois a decisão exige condições
específicas dos portadores da moléstia (DPOC), a saber, residência no âmbito territorial
STA 328 delimitado (municípios integrantes da Subseção Judiciária de Maringá) e indicação em
AgR receituário expedido por médico vinculado ao SUS”.
“A análise por profissional do Sistema Único de Saúde na prescrição de drogas [...] é
suficiente à comprovação da necessidade de tratamento”.
“A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que a responsabilidade pelo
fornecimento de medicamentos pelo Estado é solidária, podendo o requerente pleiteá-los
de qualquer um dos entes federativos – União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, desde
que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá-los com recursos
RE 626382 próprios”.
AgR “Emerge do acórdão que ensejou o manejo do recurso extraordinário que o Tribunal regional
decidiu que o Estado deveria proporcional, gratuitamente, as fraldas descartáveis, para efeito de
se assegurar a saúde da ora agravada. Concluir de forma diversa demandaria desta Corte, a
reelaboração da moldura fática delineada no acórdão de origem, procedimento que não
pode ser adotado em recurso extraordinário”.
“Consta nos autos, além disso, que os tratamentos inicialmente indicados não surtiram os
efeitos desejados, de modo que o profissional médico prescreveu a utilização combinada dos
medicamentos Sofosbuvir 400 mg, Simeprevir 150 mg e Ribravirina 250 mg, todos via oral,
como única forma viável de evitar o agravamento da doença”.
“O uso do Sofosbuvir foi aprovado em 6/12/2013 pela FDA (U.S.
FoodandDrugAdministration) para o tratamento de infecções causadas pela hepatite crônica.
Por isso, em que pese a ausência de registro do medicamento pela ANVISA, sua
utilização foi aprovada pela entidade governamental dos Estados Unidos da América,
SL 815
responsável pelo controle dos alimentos, suplementos alimentares, medicamentos e demais
AgR
produtos da mesma espécie. Tal entidade, assim como a congênere brasileira, testa e estuda os
medicamentos antes de aprovar a comercialização desses fármacos”.
“Isso não quer dizer que as normas brasileiras referentes à comercialização de medicamentos
devam ser ignoradas. No entanto, pontualmente, quando há comprovação de que uma
medicação ainda não aprovada pela ANVISA é a única eficaz para debelar determinada
enfermidade que coloca em risco a vida de paciente sem condições financeiras,
entendo que o Estado tem a obrigação de custear o tratamento se o uso desse mesmo
medicamento for aprovado por entidade congênere da agência reguladora nacional”.
“É firme o entendimento deste Tribunal de que o Poder Judiciário pode, sem que fique
ARE
configurada violação ao princípio da separação dos Poderes, determinar a
947823
implementação de políticas públicas nas questões relativas ao direito constitucional à
AgR
saúde”.

~ 292 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

“O acórdão recorrido está alinhado à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, reafirmada


no julgamento do RE 855.178-RG, Rel. Min. Luiz Fux, no sentido de que constitui obrigação
solidária dos entes federativos o dever de fornecimento gratuito de tratamentos e de
medicamentos necessários à saúde de pessoas hipossuficientes”.
“Para se chegar a conclusão diversa daquela a que chegou o Tribunal de origem,
quanto à necessidade, ou não, do fornecimento do alimento especial pleiteado, seria
necessário o reexame de fatos e provas”.
“Inicialmente, ressalta-se que, o tratamento médico e, em consequência, o fornecimento
de medicamentos pelo ente estatal se insere no rol dos deveres do Estado, sendo
responsabilidade solidária dos entes federados, podendo figurar no polo passivo qualquer
um deles, em conjunto ou isoladamente. Esse entendimento foi reafirmado pelo Plenário desta
Corte no julgamento do RE 855.178-RG, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 16/3/2015, Tema nº
793”.
“Ademais, tal como constou da decisão agravada, a Turma Recursal de origem concluiu que os
elementos probatórios constantes dos autos demonstram a necessidade da parte autora
fazer uso da alimentação especial pleiteada, em virtude de alergia alimentar à proteína do
ARE leite de vaca. Consignou que o SUS não oferece tratamento alternativo que tenha o mesmo
1049831 efeito que o alimento requerido”.
AgR “Observa-se que esta Corte, no julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada 175-AgR, Rel.
Ministro Gilmar Mendes, Pleno, DJe 29.04.2010, firmou entendimento no sentido de que a
análise de questões dessa natureza deve ser feita caso a caso, considerando-se todos os
elementos normativos e fáticos da matéria jurídica debatida”.
“Além disso, é firme o entendimento deste Tribunal de que o Poder Judiciário pode, sem
que fique configurada violação ao princípio da separação dos Poderes, determinar a
implementação de políticas públicas nas questões relativas ao direito constitucional à
saúde. A jurisprudência da Corte tem se orientado no sentido de que é possível ao Judiciário
determinar o fornecimento de medicamento não incluído na lista do SUS, quando
comprovada a inexistência de tratamento eficaz para o caso”.
Fonte: Dados colhidos pelas autoras

Através da análise dos argumentos constantes na Tabela 2, pode-se observar


como o Supremo Tribunal Federal lida com a tutela específica do direito à saúde no
decorrer destes quase vinte anos.
Observa-se que o Tribunal entende ser obrigação solidária do Poder Público
fornecer os tratamentos e medicamentos pleiteados. Assim, pode o particular demandar
contra a União, o Estado federado ou o Município, isoladamente, contra os três em
litisconsórcio ou, ainda, contra dois deles. Esta solidariedade decorre da interpretação que o
STF faz do art. 196 da Constituição (BRASIL, 1988), o qual consigna ser dever do Estado

~ 293 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

assegurar o direito à saúde. Neste sentido, a Corte entende que a expressão Estado é
utilizada de forma genérica, abrangendo os três níveis da organização política.
Tal ponderação está presente em seis dos nove acórdãos analisados (AI 238328
AgR; RE 271286 AgR; RE 393175 AgR; RE 626382 AgR; ARE 947823 AgR; ARE
1049831 AgR) e o motivo de sua recorrência está no fato de os entes federados alegarem
sua ilegitimidade passiva, em razão da divisão de competência estabelecida na própria
Constituição. Assim, entendem que a cada nível da federação, caberia um tipo específico de
tutela no que se refere ao direito à saúde. Todavia, o Supremo não acolhe este argumento,
entendendo da mesma forma durante todo o período, no sentido de que a obrigação é
solidária aos três níveis federativos.
Portanto, depreende-se que o STF deu interpretação ao texto constitucional que
se mantém a mesma durante todo o período do recorte, não acolhendo as razões expostas
pelos recorrentes. Também é interessante observar que esta interpretação não se respalda
em nenhum argumento senão no próprio entendimento da Corte. Não há recurso à
doutrina ou ao direito comparado, por exemplo, mas apenas ao posicionamento do próprio
Tribunal, sendo comum expressões como: “A jurisprudência desta Corte firmou-se no
sentido de que [...]” (RE 626382 AgR); “O acórdão recorrido está alinhado à jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal [...]” (ARE 947823 AgR); “Esse entendimento foi reafirmado
pelo Plenário desta Corte [...]” (ARE 1049831 AgR).
Tal constatação correlaciona-se com a teoria de Waldron (2014), na segunda
sugestão feita pelo autor a respeito do que considera atuação dos tribunais tendente à
supremacia judicial. Conforme explicitado nasegunda seção, em sua segunda sugestão,
Waldron (2014, p. 32) aduz que a atuação judicial, na qual o tribunal considere apenas seu
próprio entendimento a respeito da Constituição, agindo como dono dela, caracteriza-se
como supremacia judicial.
Nos casos de tutela do direito à saúde julgados pelo STF, especificamente no que
se refere à obrigação solidária dos três níveis federativos, pode-se inferir que a Corte recai
em supremacia judicial. Isso porque interpreta o texto constitucional com respaldo apenas
em seu próprio entendimento, o qual, após ser firmado, torna-se praticamente impassível
de mudanças, haja vista que o Tribunal restringe-se a utilizar como argumento suas
próprias decisões, alegando a consolidação da jurisprudência da Corte.
Observe-se que o lapso temporal entre a primeira e a última decisão é de quase
duas décadas. Neste período, a composição do Supremo modificou-se, bem como
modificaram-se as variáveis sociais, econômicas e políticas, mas o entendimento firmado na

~ 294 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

virada da década de 1990 permanece o mesmo. Logo, pode-se concluir que o STF não
considera os argumentos levados ao seu julgamento como aptos à modificação do seu
entendimento, não permitindo que os demais ramos do Poder (recorde-se que os
demandados são parte do Poder Executivo brasileiro) também realizem uma interpretação
do texto constitucional.
Tal situação não seria disparatada, haja vista que, se o artigo 196 da Constituição
(BRASIL, 1988) enuncia de forma genérica o Estado, o artigo 198 prevê que as ações e
serviços de saúde serão prestadas de forma descentralizada. Logo, o próprio texto
constitucional permite a divisão de obrigações, no que se refere à tutela da saúde, entre os
entes federados. Percebe-se, portanto, que a Constituição brasileira permite as duas
interpretações, no entanto, o STF apenas faz prevalecer o seu próprio entendimento,
motivo pelo qual recai na crítica de Waldron.
Por outro lado, Jeremy Waldron (2014, p. 27) pondera que a atuação de um
tribunal também tende à supremacia judicial quando este, ao julgar os processos levados ao
seu conhecimento, decide de forma a perseguir um programa ou uma política coerente. O
autor salienta que o tribunal deve limitar-se a decidir pontualmente a alegação de ofensa ao
direito ou princípio constitucional em questão. Ressalta, ainda, que “the program in
question might embody a broad progressive or liberal vision, or perhaps an overall vision
of a conservative free market society”187.
Todavia, em seguida, pondera que, nas configurações constitucionais que definem
os direitos sociais e econômicos como direitos fundamentais, os julgadores devem ser ainda
mais cautelosos ao decidir casos que os envolva, tendo em vista que, nestas situações, a
possibilidade de o tribunal se comportar de forma a perseguir uma política ou um
programa social são maiores, “because it may be more difficult to hold social and economic
rights apart from a programmatic vision”188 (WALDRON, 2014, p. 28).
O autor elucida que sua crítica, naquela ocasião, não se dirige à consagração de
direitos sociais no texto constitucional, mas à forma como os tribunais se comportam
perante estas cláusulas sociais. Assim, esclarece que a tomada de decisões pelos tribunais
constitucionais deve considerar apenas a alegação de violação ao direito naquele caso
específico, sendo problemática a atuação que, ao julgar um caso particular, preocupe-se
com um objetivo geral perseguido pela corte.

187 Em tradução livre: “o programa em questão pode incorporar uma ampla visão progressista ou liberal, ou
talvez uma visão geral de uma sociedade conservadora do livre mercado”.
188 Em tradução livre: “porque pode ser mais difícil manter os direitos econômicos e sociais afastados de uma

visão programática”.

~ 295 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A crítica de Waldron (2014) coaduna-se perfeitamente com o observado no Brasil,


relativamente ao direito social à saúde. A partir das decisões levantadas, é possível observar
que o Supremo Tribunal Federal não tem se limitado a analisar a ofensa pontual ao direito,
ao contrário, tem buscado implementar políticas sociais e interferido nas opções políticas
tomadas pelos poderes eleitos.
Analisando-se as decisões objeto do recorte, percebe-se que aquela dita
paradigmática, julgada no ano de 2000, cujo relator foi o Ministro Celso de Mello (RE
271286 AgR), é a decisão que mais se preocupou em definir o alcance do direito à saúde.
Também a decisão proferida em 2006 (RE 393175 AgR), de relatoria do mesmo Ministro,
usa exatamente os mesmos argumentos, inclusive condenando o recorrente ao pagamento
de multa por considerar o recurso meramente protelatório, sob o argumento de que este
possuía conhecimento da jurisprudência do Tribunal.
Nestes acórdãos, há ponderação quanto ao conflito de interesses entre a proteção
do direito à saúde e a possibilidade econômica do Estado de arcar com a entrega da
medicação pleiteada. Os Ministros, seguindo o voto do Relator, entenderam que, ante tal
conflito, deve prevalecer o direito à saúde, independentemente de o medicamento pleiteado
ser dispensado pelo, à época, Sistema Unificado de Saúde.
O debate a respeito da concretização dos direitos sociais, mencionado na primeira
seção, é decidido pelo STF, entendendo a Corte que o direito à saúde apenas será
respeitado como direito fundamental na medida em que for promovido em plenitude.
Logo, o Tribunal entende que o direito social à saúde não estará garantido senão quando
assegurada todas as demandas necessárias para a manutenção da vida saudável dos
particulares.
Sendo assim, infere-se que, à luz deste entendimento do STF, não importa quais
as políticas públicas para a saúde os poderes eleitos adotem, podendo os particulares
buscarem a tutela judicial de todas aquelas prestações que não estejam abrangidas pelas
opções políticas.
Esta inferência se confirma através da análise dos argumentos constantes nos
acórdãos de 2016 e 2017 (ARE 947823 AgR e ARE 1049831 AgR), nos quais o Supremo
salienta o entendimento de que “o Poder Judiciário pode, sem que fique configurada
violação ao princípio da separação dos Poderes, determinar a implementação de políticas
públicas nas questões relativas ao direito constitucional à saúde”, ressaltando tratar-se de
entendimento firme da Corte.

~ 296 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Percebe-se, portanto, que o Tribunal entende possuir o Poder Judiciário


competência para instituir políticas públicas de atendimento ao direito à saúde, entendendo
que esta possibilidade não ofende a separação de poderes. A Corte está claramente
perseguindo um programa ou política social, como explicitamente admitiu.
Apesar de assim entender o Tribunal, este posicionamento vai de encontro com a
concepção de Jeremy Waldron (2014), caracterizando a atuação do STF perfeitamente o
que o autor entende por supremacia judicial, na perspectiva de perseguição de um
programa ou política social coerente.
Entendendo o Supremo que o direito à saúde apenas estará devidamente
protegido quando assegurada a completude das prestações necessárias à garantia da saúde
dos indivíduos, não terá nenhuma valia a escolha de políticas públicas pelos Poderes
Executivo e Legislativo, uma vez que, sempre será possível ao particular buscar a tutela
judicial do direito.
Além da própria admissão pela Corte de sua postura de supremacia judicial,
percebe-se a perseguição de um programa social a partir do conteúdo dos direitos
concedidos pelo Supremo.
Como mencionado, inicialmente as decisões eram relativas à entrega de
medicamentos de alto custo para tratamento de doenças raras ou muito graves
(HIV/AIDS, fenilcetonúria, esquizofrenia paranoide e DPOC). No entanto, nos últimos
anos tem sido deferida a entrega de fraldas descartáveis, de alimentação especial e de
medicamentos experimentais. Mais do que perseguir uma política social, o STF tem
efetivamente expandido o alcance deste direito.
O fenômeno que se iniciou como exceção, termina por virar regra. Se antes
apenas se recorria ao Poder Judiciário para buscar a tutela de medicamentos não fornecidos
pelo Sistema Único de Saúde cujo custo era demasiado elevado para que o demandante
pudesse arcar, hoje exige-se do Poder Público que custeie medicamentos ainda não
regulamentados pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), tratamentos no
exterior e fornecimento de produtos de higiene pessoal.
Quanto ao fornecimento de fraldas geriátricas pelo Poder Público, importa
ressaltar que tal produto está abrangido pelo Programa Aqui tem Farmácia Popular, que
concede descontos de até 90% na compra destas, conforme se observa no sítio do Portal
da Saúde na Internet (BRASIL, 2016). Portanto, o Executivo, no uso de suas atribuições,
estabeleceu política pública para a saúde, não se tratando de omissão do Poder Público apta
a gerar a interferência judicial.

~ 297 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Esta perseguição de política social pelo Poder Judiciário não tem passado
desapercebida, gerando nos estudiosos verdadeira preocupação quanto à possibilidade de
que este excesso de ativismo gere, na verdade, a inviabilização das políticas públicas e
impeça o acesso de outra parcela da população aos bens e serviços necessários para sua
existência digna. Conforme Barroso (2009, p. 35):

Trata-se de hipótese típica em que o excesso de judicialização das decisões


políticas pode levar à não realização prática da Constituição Federal. Em muitos
casos, o que se revela é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em
detrimento da generalidade da cidadania, que continua dependente das políticas
universalistas implementadas pelo Poder Executivo.

Portanto, o que se observa hoje no Brasil é a concretização de direitos sociais pelo


Poder Judiciário não apenas nos casos de omissão dos Poderes Legislativo e Executivo,
mas verdadeira interferência na competência dos demais poderes, atuando o Poder
Judiciário de maneira a expandir o alcance da garantia de prestações sociais.
Efetivamente, entende o STF que sua atuação é legítima, todavia, conforme
salientado, recai a Corte em supremacia judicial, usurpando a competência originariamente
atribuída aos poderes eleitos, bem como, considerando apenas seu próprio entendimento
do texto constitucional. Sendo assim, recai o Supremo nas duas situações analisadas no
presente trabalho que Jeremy Waldron (2014) considera supremacia judicial, cenário que
deveria ser evitado, de acordo com o autor.

5 CONCLUSÃO

Através da análise das decisões do Supremo Tribunal Federal, utilizando-se como


medida a afirmação teórica de Jeremy Waldron a respeito do que constitui supremacia
judicial, foi possível verificar que a Corte brasileira recai na crítica do autor.
A judicialização da saúde no Brasil obriga os entes integrantes do Poder Executivo
a arcarem com o custo de medicamentos e tratamentos que não previram em seus
orçamentos, para os quais não instituíram políticas públicas de atendimento à população.
Os poderes eleitos democraticamente têm a legitimidade de prever quais
medicamentos serão dispensados gratuitamente à população e quais tratamentos serão
fornecidos pelo Sistema Único de Saúde. De certo, são consideradas razões de cunho
financeiro e de prioridade quanto à concretização dos direitos sociais, além de razões
técnicas, como a opção por determinado medicamento em detrimento de outro. No
entanto, as instâncias judiciais, alheias ao debate político que permeia a questão, vêm, desde

~ 298 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

o fim dos anos 1990, determinando o fornecimento de medicamentos e a realização de


tratamentos não previstos pelos entes públicos, quer do panorama orçamentário, quer do
panorama da opção política de instituir determinada política pública. Sendo assim, o Poder
Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal, instituiu política pública de
assistência à saúde, através das inúmeras decisões proferidas em casos sucessivos.
Neste sentido, a concessão judicial de prestações de assistência à saúde demonstra
a persecução de um programa social, na medida em que os tribunais arrogam para si a
competência de interferir na materialização de tal direito. Esta interferência ocorre quando,
ao determinar o fornecimento da medicação ou do tratamento médico, as cortes modificam
o grau de concretização de direitos sociais, sob o argumento de que assim define o texto
constitucional. Ou seja, o tribunal assume a postura de poder definir o nível de prestação
social devida pelo Estado.
Verificou-se que o STF entende possuir competência e legitimidade para efetivar
direitos sociais através de suas decisões. Como demonstrado, o Supremo assume o papel de
instituir políticas públicas de assistência à saúde, entendendo inexistir ofensa à separação de
poderes quando assim atua. Neste tipo de atuação, observa-se claramente que a corte elege
um programa social que pretende colocar em prática, recaindo no que Waldron considera
supremacia judicial.
Neste sentido, nas decisões analisadas, não houve apenas a identificação de
ofensas particulares, mas a implementação de um amplo programa social, o que se reforça
pelo fato de que os tipos de medicamentos para os quais foi deferido o fornecimento e os
tipos de tratamento para os quais foi deferida a prestação cresceram notavelmente desde a
primeira decisão relativa ao tema. Assim, a atuação da Corte brasileira recai em supremacia
judicial, uma vez que, mais do que evitar retrocessos em níveis concretizados do direito
social à saúde, tratou de ampliar este espectro, indo muito além do nível até então
concretizado do direito.

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~ 302 ~
REFLEXÕES SOBRE O PODER DE REFORMA AOS 30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Hugo César Araújo de Gusmão*


Bruna Santos de Queiroz**

1. INTRODUÇÃO

Em certos aspectos as constituições envelhecem como as pessoas, pois assim


como cada indivíduo atende a certas prioridades, ao longo das várias etapas de suas vidas,
também as Cartas Políticas manifestam a proeminência de certos aspectos ao longo de sua
vigência.
Por esta razão, numa “infância” constitucional, pode-se vislumbrar questões
relativas aos aspectos políticos basilares se destacando. É o tempo de se aprimorar forma e
regime de governo, forma de Estado, e separação dos poderes. Já numa “adolescência”
constitucional, as garantias que conferem estabilidade ao projeto constitucional costumam
ganhar especial relevância, enquanto a “maturidade” constitucional, em geral, revela-se
como a verdadeira era dos direitos.
Por outro lado, esta comparação claudica quando se trata da cronologia.
Enquanto 30 anos representam uma idade de amadurecimento para a maioria das pessoas,
para as constituições, o mesmo período dificilmente revela-se suficiente para se chegar à
maturidade. Destarte, muito embora a nossa Constituição esteja completando três décadas
de vigência, a realidade é que o seu amadurecimento opera-se muito vagarosamente, já que
nem sempre a Carta Magna está imune aos efeitos deletérios das crises políticas.
Independentemente de como se avance ou se retroceda, no entanto, um ponto
nevrálgico de qualquer Constituição é a forma como ela se abre à modificação. A cláusula
de reforma proporciona equilíbrio a uma delicada dualidade: a necessidade de assimilar
mudanças ao longo do tempo e a necessidade de se manter fiel ao projeto político adotado.

* Doutor e Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Granada, Professor Doutor

Associado do Departamento de Direito Público do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual da


Paraíba, atuando nas disciplinas de Teoria da Constituição e Direito Constitucional Positivo. E-mail:
hcesar_gusmao@yahoo.com.br
** Graduanda em Ciências Jurídicas pela Universidade Estadual da Paraíba, bolsista de iniciação científica do

CNPq / UEPB. E-mail: brunasantos_lattes@outlook.com

~ 303 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Por esta razão, o exercício do poder de reforma da Constituição goza de uma


posição tão destacada no seu desenho normativo, pois é o critério fronteiriço que
diferencia o que é constitucional daquilo que não tem tem natureza constitucional e,
portanto, não pode pretender atingir o texto consagrado pelo Constituinte.
Este artigo, intitulado Reflexões sobre o poder de reforma aos 30 anos da
Constituição, tem como objeto os contornos normativos da previsão de mudança formal
da Constituição após três décadas de vigência.
Partimos aqui de uma problematização básica: a essência do modelo de reforma
constitucional adotado em 1988 se mantem intacta ou encontra-se sujeita a pressões
políticas que transformam sua essência?
Para responder a esta pergunta problematizante, sugerimos a seguinte hipótese de
trabalho: muito embora a cláusula constitucional de reforma ainda represente um aspecto
central da Constituição de 1988, não se pode ignorar desafios políticos que apontam para
mudanças fundamentais na natureza, alcance e rigidez de seus conteúdo.
A fim de verificar a veracidade desta afirmação, abordaremos nosso objeto da
seguinte forma: num primeiro momento faremos uma exposição básica sobre o advento do
poder constituinte derivado, em razão da necessidade de extinção do poder constituinte
originário, uma vez promulgada a Constituição. Num momento seguinte, a fim de lançar
luz sobre a verdadeira dimensão normativa das cláusulas de mudança formal da
Constituição, resgataremos alguns dos principais aspectos da discussão sobre a reforma
constitucional na Subcomissão de Garantia da Constituição, Reformas e Emendas ao
longo da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88. Finalmente, apontaremos alguns
desafios normativos que colocam em xeque o modelo previsto e descortinam uma nova
configuração ao longo da três décadas de vigência da Carta Política.

2. DO PODER À AUTORIDADE: O ESGOTAMENTO DO PODER


CONSTITUINTE ORIGINÁRIO E O CARÁTER ESTABILIZADOR DO
PODER CONSTITUINTE DERIVADO

Não cabe dúvida de que, enquanto magnitude política, o Poder Constituinte, que
“(...) no es un mecanismo de las épocas tranquilas, de las pacíficas transformaciones de los
sistemas constitucionales, sino un acto revolucionario que adquiere su mayor significación
en los períodos de crisis” (NADALES, 1981, p. 177), não pode se perpetuar
indefinidamente. Seu exercício traz consigo o indissociável signo da ruptura e não pode

~ 304 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

tardar em engendrar uma ordem político-jurídica nova ao se desencadear, sob pena de fazer
soçobrar a coletividade sob seus próprios fundamentos. Portanto, soa no mínimo inusitado
que se proponha a permanência de uma manifestação tão refratária ao controle, à
estabilidade, após promulgada a Constituição.
O processo de fundação, por mais revolucionário que seja, não se dirige a outro
objetivo que o da instauração de uma ordem política estável e perene. A relação entre
Poder Constituinte e Constituição e a dúvida acerca da capacidade daquele de, não só criar,
como de conferir sustentação a esta última, não foi ignorada por aqueles que, pela primeira
vez, protagonizaram seu exercício. Este problema, enfrentado no âmbito da Revolução
Americana, foi solucionado, em parte, pelo recurso ao conceito romano de autoridade
(auctoritas) — etimologicamente derivada da palavra augere (aumentar, fazer crescer) —, por
meio do qual a mudança e a permanência passavam a configurar uma mesma realidade
(ARENDT, 1990, p. 201).
Com efeito, as nuanças doutrinárias sobre o tema são variadas e dignas de nota.
Carl Schmitt defende a continuidade do Poder Constituinte, amparando-se na constatação
de que a Constituição não pode se voltar contra seu sujeito ou destruir sua existência
política (SCHMITT, 2001, p. 108). Por outro lado, Pedro de Vega (1985, p. 75-76) também
defende a idéia de permanência, embora parta do pressuposto de existência de uma
Constituição material que se conservaria latente ao longo da vigência da Constituição
formal, representando a perenidade da essência do conjunto decisório manifesto no
fenômeno constituinte. Esta suposta continuidade do Poder Constituinte deveria ser lida,
na verdade, como continuidade da Constituição material, isto é, continuidade da harmonia
entre esta e a Constituição formal, resultante do processo de fundação. Uma posição
semelhante é defendida por Jorge Miranda (1983, p. 83), que chega inclusive a dividir o
Poder Constituinte entre material e formal, propugnando a precedência lógica e histórica
daquele, ressaltando, ademais, a necessidade de pautar a invocação do Poder Constituinte
por critérios que respeitem limites materiais bem definidos, desconfiando de radicalizações
arbitrárias e equivocadas do principio democrático.
Perspectiva distinta é defendida por Alessandro Pace, segundo a qual o Poder
Constituinte poderia surgir a qualquer tempo, dada sua ilimitação jurídica, não perdurando,
porém, ao longo de toda a vigência da Constituição sem provocar uma indistinção entre a
capacidade fundacional e a organizativa, sendo esta de natureza jurídica e aquela, fática
(PACE, 1997, p. 24-25). Com efeito, a manifestação deste suposto Poder Constituinte seria

~ 305 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

contrária ao que significa em essência: um processo direcionado à instauração de uma


ordem político-jurídica estável e permanente.
Contemporaneamente, esta questão ganha em relevância diante dos peculiares
efeitos que a relação entre tempo e direito (MARTIN, 2003, p. 20-21) provoca no âmbito
do Direito Constitucional — sobretudo se levarmos em conta que, ao longo do
constitucionalismo, consolida-se uma tendência a abarcar a “totalidade do tempo histórico”
(MARTIN, 2003, p. 21-22) — estendendo-se à dicotomia Poder Constituinte
Originário/Poder Constituinte Derivado na medida em que esta expressa a singular
condição da Constituição enquanto fenômeno que pretende a permanência através de
mecanismos formais de câmbio e de sua amplitude material, (MARTIN, 2003, p. 22), mas
que é, ao mesmo tempo, produto de contingências muito específicas de um determinado
momento histórico (MARTIN, 2003, p. 23).
A tensão entre a norma que, por ter uma natureza estática, não pode mais que
expressar, no seu conteúdo, uma determinada realidade, mas que se pretende permanente, e
o caráter dinâmico desta mesma realidade que, a partir de sua entrada em vigor, desvela as
deficiências que lhe são intrínsecas, ao ser produto de um tempo de transição, só pode ser
compatibilizada pela abertura da Norma Fundamental à reforma, único meio de reverter as
deformações provocadas pelo vínculo a um contexto de instabilidade que deixa sua marca
através da imperfeição técnica e da abertura das quais padecem muitas normas
constitucionais (MARTIN, 2003, p. 23).
O fato de que o processo constituinte culmine com o surgimento de uma
Constituição portadora de uma superioridade hierárquica e um mecanismo de proteção de
seu conteúdo e forma, através do qual simultaneamente se abre à modificações segundo as
exigências que se apresentem num contexto cambiante, sem se desconectar de seus
fundamentos estruturais, torna lógica a conclusão de que o quadro que se estabelece é o de
um poder que viabiliza a perenidade de um projeto normativo. Esta situação só pode
conduzir à consideração da dicotomia Poder Constituinte Originário/Poder Constituinte
Derivado à luz de um determinado momento histórico, livre dos condicionamentos aos
quais se sujeitava em etapas anteriores do constitucionalismo. E precisamente porque se
impõe esta perspectiva, deve-se condicionar esta polêmica, em torno da intermitência ou
permanência do Poder Constituinte, aos parâmetros impostos pelo perfil normativo, e
democrático adquirido, contemporaneamente, pela Constituição.
Direcionado ao estabelecimento de uma ordem estável e permanente, o Poder
Constituinte encontra na Constituição um instrumento apto para tal finalidade. Inobstante,

~ 306 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

uma vez exercido, o fenômeno constituinte se esgota no que tange à sua capacidade de,
irrompendo num determinado ordenamento, provocar a ruptura com a estrutura vigente,
instaurando uma nova. Esta característica que marca de forma indelével tal fenômeno, não
pode ser mantida num contexto no qual a Constituição presida — como norma suprema
— um ordenamento jurídico. Encontramos uma paradigmática defesa deste
posicionamento no pensamento de Martin Kriele.
Segundo sua argumentação a incompreensão da dialética provocada pela tensão
entre poder e Direito no Estado constitucional democrático constitui a base de sua crise de
legitimidade. Embora não erga objeções à caracterização de uma soberania jurídica ligada
ao Estado constitucional, argumenta que, uma vez promulgada a Carta Magna e criado um
contexto no qual só existam competências, não caberá mais qualquer argumento a favor da
soberania, posto que nem sequer resulta possível atribuí-la à Constituição, já que o poder
efetivo não emana de normas jurídicas. Ademais, esta, por estar sujeita à incidência de
reforma de seu conteúdo, não poderia se apresentar como soberana, condição que somente
seria possível se fosse considerada imutável.
O povo, segundo Kriele, é soberano ao exercer o poder constituinte, rompendo a
estrutura vigente em favor de um novo sistema constitucional. Porém, após o momento
fundacional já não caberia tratar de rupturas ou câmbios operados numa mesma ordem
jurídica (KRIELE, 1980, p. 152). O Poder Constituinte representaria, pois, uma ineludível
manifestação de soberania, que, como tal, se localizaria fora da ordem constitucional
vigente. Instaurado o Estado constitucional, exclui-se a possibilidade de existência de um
ente ainda soberano, já que a única atuação possível em tal contexto é a de um exercício de
competências, impossibilitando, ao mesmo tempo, a defesa da permanência do Poder
Constituinte (KRIELE, 1980, p. 152-153).
De forma semelhante se manifesta Francisco Balaguer Callejón, para quem não
cabe falar de permanência do Poder Constituinte durante a vigência de uma Constituição
normativa. A efemeridade, enquanto marca indelével daquela manifestação política, não
pode conduzir a um contexto distinto, impondo sua extinção após a culminação do seu
exercício. A partir daí, presidida a ordem jurídica pela supremacia da Constituição, que
representa o fundamento de validade formal e material das demais normas, não cabe a
manifestação de outros poderes que não sejam poderes constituídos (CALLEJÓN, 1992, p.
29). Por outro lado, se cabe afirmar que o Poder Constituinte se caracteriza como ilimitado
juridicamente, sendo expressão da soberania, admitir sua manifestação dentro de uma
ordem jurídica, encabeçada e limitada por uma Constituição, nos conduziria a uma situação

~ 307 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

na qual a própria força vinculante desta última se perderia no vazio, por estar sujeita
sempre aos condicionamentos provocados pela possibilidade de manifestação soberana de
uma força política superior. Tal ordem constitucional seria uma ficção, pois perderia uma
característica fundamental que a caracteriza: a capacidade de limitar e condicionar a
manifestação do poder político (CALLEJÓN, 1992, p. 33-35).
No exercício do Poder Constituinte, segundo o catedrático granadino, a
democracia se concretizaria conforme o modelo tradicional, reproduzindo o povo
enquanto unidade homogênea cuja atuação social conduz à instauração da Constituição.
Por outro lado, com o advento desta, o princípio democrático seria condicionado pelo
pluralismo, com base no qual se impõe um equilíbrio entre a prevalência da vontade da
maioria e o respeito aos interesses da minoria. Não haveria negação recíproca entre ambas
as formas de democracia, na medida em que, enquanto a primeira fomentaria a segunda,
esta representaria uma mudança qualitativa daquela. Este equilíbrio entre uma concepção
tradicional de democracia e a democracia constitucional representa o fundamento das
limitações que, durante a vigência de uma determinada Constituição, se impõem ao
exercício do poder. Em suma, o poder soberano que pressupõe uma homogeneidade sócio-
político não pode se manifestar continuamente num contexto marcado pela limitação
jurídica, pelo conflito de interesses e pelo pluralismo (CALLEJÓN, 1992, p. 32-33).
No entanto, a qualquer tempo poderá ressurgir um processo imbuído do poder de
ruptura. E precisamente para evitar o recurso a este poder, a abertura que o constituinte
estabelece para a reforma da Constituição pretende sua neutralização, evitando que
reivindique sua natureza revolucionária e subverta a ordem jurídico-política. Com efeito, a
partir do momento em que se engendra a relevante distinção entre criação e reforma da
Constituição, consolida-se um contexto no qual o Poder Constituinte desaparece com a
promulgação da Carta Política, já que esta, expressão das decisões resultantes da vontade
constituinte, só expressa superioridade material e formal enquanto manifesta
normatividade, garantismo e natureza democrática — “(...) las tres fuentes principales de
las que surge el caudal histórico del constitucionalismo (...)” (CALLEJÓN, 1992, p. 31) —,
que se veriam esvaziadas caso dividissem espaço com um Poder Constituinte permanente
(HÄBERLE, 2001, p. 132).
O poder de reforma adquire, portanto, a característica definitiva de mecanismo de
estabilidade do sistema constitucional, possibilitando a mudança como alternativa à ruptura
político-jurídica, fomentando uma continuidade que coopta o câmbio radical,
transformando-o em parte do projeto político que se pretende perene, porém ao mesmo

~ 308 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

tempo, mitigando a rigidez deste e sujeitando-o ao dinamismo que os imperativos sociais


impõem (SILVA, 2002, p. 263). Voltando os olhos para a experiência dos primeiros
constituintes da história, não parece que a essência deste mecanismo tenha sofrido uma
dramática modificação nos nossos tempos, já que, nas palavras de Hannah Arendt (1990,,
p. 202), a fórmula utilizada para dotar o projeto político americano de perpetuidade
consistira precisamente na ampliação (augmentation) da fundação através de emendas à
Constituição, o que consolidava a autoridade num contexto político no qual o poder
pertencia ao povo.

3. A ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE E A DISCUSSÃO SOBRE A


REFORMA CONSTITUCIONAL

A Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foi projetada a partir da promulgação


da Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, que a convocou
formalmente.189
Instalada em primeiro de fevereiro de 1987, nos termos da Resolução Senatorial
nº 2, de 25 de março de 1987, contou com oito comissões temáticas, que se subdividiram
em outras vinte e quatro subcomissões, de acordo com assuntos específicos a serem
desenvolvidos. Dentre estas, estava a “Subcomissão de Garantia da Constituição,
Reformas e Emendas”, que buscou debater sobre os contornos da reforma
constitucional brasileira e as suas possibilidades de aperfeiçoamento para a Constituição
que viria tão logo a ser promulgada.
Desta subcomissão, em relação às discussões travadas pelos constituintes quanto
ao mecanismo de reforma constitucional, podem ser extraídas várias diretrizes para o
modelo pretendido.

3.1. Do estudo comparativo com Constituições estrangeiras, juristas convidados


e assuntos mais debatidos

Inicialmente foi feito um estudo de Direito Comparado com outras Constituições


e seus mecanismos de reforma. A subcomissão convidou notáveis juristas do quilate de

189
BRASIL.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc26-85.htm

~ 309 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

José Afonso da Silva, Célio Borja, José Paulo Sepúlveda Pertence, Paulo Brossard, entre
outros.
Dentre os assuntos debatidos, um dos temas mais suscitados foi o do Tribunal
Constitucional. Não havia certeza quanto a pertinência temática da matéria na
Subcomissão, mas o assunto logo sempre se insurgia entre as reuniões. Outros assuntos
relevantes igualmente abordados foram o Estado de Sítio e o Estado de Emergência.

3.2. Da reforma constitucional como garantia constitucional

O primeiro convidado a se manifestar foi o jurista José Afonso da Silva,


abordando o fato de que a Constituição também é garantida através da reforma
constitucional. O constitucionalista também ressaltou que de acordo com o mecanismo de
reforma constitucional adotado por cada Constituição é que se pode medir o autêntico grau
de rigidez atribuído à Carta Magna, uma vez que são essas normas, na história
constitucional, que distinguem Constituições rígidas e flexíveis e a respectiva maior ou
menor dificuldade de alteração de seu Texto.
Silva também salientou que a supremacia constitucional é um atributo
constitucional das Cartas Magnas decorrente da diferenciação de planos existentes entre
Poder Constituinte Originário e Derivado. Então, a existência de diferentes escalões
hierárquico-normativos nos ordenamentos constitucionais e o controle de
constitucionalidade seriam consectários dessa dicotomia (BRASIL, 1987, p. 10).

3.3. Da nomenclatura do procedimento de alteração formal da Constituição

Debate interessante promovido pelos constituintes se voltou para a nomenclatura


que deveria ser atribuída ao instituto de alteração formal da Constituição, se revisão,
reforma ou emenda constitucional. A intenção inicial de distinguir as designações ficou
nítida e, muitas vezes, na constituinte, referia-se à Emenda Constitucional como um
procedimento ordinário em relação à Reforma Constitucional (BRASIL, 1987, p. 19).
Do ponto de vista de João Gilberto Lucas Coelho, ex-deputado e ex-vice-
governador do Estado do Rio Grande do Sul, não havia distinção ontológica entre as
denominações. Para ele, a emenda, apesar de mais célere, encontrava maiores vedações, ao
passo que a Reforma constitucional não teria o rito tão ágil, mas poderia fazer alterações
mais profundas (BRASIL, 1987, p. 20).

~ 310 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Quando indagado sobre a diferenciação dos institutos pelo Constituinte Nilson


Gibson, o ex-Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos também não vislumbrou diferença
essencial entre eles (BRASIL, 1987, p. 54). O que se percebe, portanto é que havia uma
miscelânea conceitual quanto à tipologia dos processos formais de alteração constitucional,
em parte fomentado pela doutrina, que também era divergente quanto à nomenclatura.
Para os congressistas não ficou claro que havia uma relação de gênero e espécie
entre essas categorias, apesar de alguns convidados e juristas haverem estabelecido essa
distinção, como José Afonso da Silva: “ Em primeiro lugar, quanto à reforma, a doutrina
tem dito que ela é gênero, comportaria os dois tipos – a emenda e revisão”. (BRASIL,
1987, p. 11).
Ao distinguir a relação de gênero e espécie existente entre reforma e emenda
constitucional, o constitucionalista afirmou que a questão da nomenclatura já não possuía
mais tanta importância como em outrora, como na Constituição brasileira de 1934.
Contudo, foi enfático ao dizer que seria essencial dissociar o processo de emendas do
processo legislativo, porque se tratam de normas com fundamentos diferentes de validade
(BRASIL, 1987, p. 11).
Dessa forma, a percepção equivocada por parte de alguns deputados e senadores
da Subcomissão em relação aos institutos citados pode ter contribuído para a errônea
apreensão da reforma e revisão constitucionais, sua finalidade e valor, alçando-as ao
patamar ordinário, como se processo legislativo fossem, como se depreende de algumas
propostas dos constituintes na Subcomissão, como a do Constituinte Ruy Nedel, que
acreditava ser viável a facilitação do processo de emenda constitucional, em detrimento do
procedimento de reforma (BRASIL, 1987, p. 93).
Por outro lado, havia constituintes que entendiam a importância do procedimento
de reforma constitucional para empreender alterações profundas no sistema constitucional
e a necessidade de diferenciação em relação ao processo formativo da legislação ordinária,
como o parlamentar e relator Nelton Friedrich (BRASIL, 1987, p. 93).

3.4. Debate sobre a viabilidade ou não de Emendas Constitucionais serem inseridas


no Processo Legislativo

Devido à ausência de unanimidade quanto à denominação e o significado dos


institutos, também se discutiu a viabilidade ou não de as emendas constitucionais serem

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Direitos Humanos & Fundamentais

tratadas no processo legislativo ou se seria necessário estruturá-las em um capítulo à parte,


como se faz em algumas Constituições estrangeiras.
Na visão de José Afonso da Silva, seria necessário tratar da reforma constitucional
em um capítulo à parte, intitulado “ Da Estabilidade Constitucional”.
Diferentemente do que ocorre com a Constituição espanhola, que possui um
título próprio (Título X, arts. 166 a 169) para o processo de alteração formal de seus
dispositivos, denominado “De la reforma constitucional”, a Constituição brasileira apenas
designa o procedimento como “Emenda à Constituição”, no art. 60, inserindo-o como
Subseção relativa ao Processo Legislativo.
No que tange à revisão constitucional, o Constituinte Originário apenas destinou
o art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, muito breve, que dispôs tão
somente sobre o tempo, a forma procedimental e o exaurimento dessa forma de alteração
da Carta Maior, sem detalhar maiores possibilidades, sem permitir, inicialmente, mais de
uma revisão constitucional.

3.5. Discussão sobre a possibilidade de criar de “leis constitucionais”

Quanto à hierarquia das normas constitucionais, na ANC foi cogitada a


possibilidade de existência de uma lei constitucional, que teria a finalidade de
complementar a Lei Fundamental. José Afonso da Silva logo afastou tal possibilidade,
tendo em vista a existência da Lei Complementar no direito brasileiro.
Salientou que apenas o constitucionalista alemão Carl Schmitt é que propunha
essa distinção, mas que, por vezes, até o doutrinador alemão confundia ambos os termos,
ora se referindo à Constituição como se Lei Constitucional fosse, ora se remetendo à Lei
Constitucional como se quisesse falar da Constituição.

3.6. Possibilidade de iniciativa popular das reformas constitucionais

Outro assunto tratado foi sobre a possibilidade de inciativa popular no


procedimento de reforma constitucional.
O jurista José Afonso da Silva não foi reticente quanto a essa possibilidade,
apenas asseverou que seria uma questão de conveniência do constituinte.

3.7. Debate sobre o controle de constitucionalidade preventivo por parte de

~ 312 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Tribunal Constitucional na elaboração de Propostas de Emendas à


Constituição

Ainda em sua palestra, José Afonso da Silva deu importante contribuição ao


propor a apreciação abstrata de constitucionalidade de leis ou mesmo de emenda
constitucional pelo Tribunal Constitucional brasileiro eventualmente criado.
Seria uma espécie de “julgamento de controle”, lastreado em uma análise
preventiva de constitucionalidade, chegando, até mesmo, a refletir sobre projetos
legislativos em formação. No mesmo sentido foi a sugestão do convidado João Gilberto
Lucas Coelho, ao propor a utilização do controle de constitucionalidade prévio para dirimir
eventuais controvérsias decorrentes da discussão acerca do controle de constitucionalidade
de atos normativos decorrentes de tratados e convenções internacionais (BRASIL, 1987, p.
19).

3.8. Discussão acerca da conveniência ou não de se dificultar


demasiadamente o procedimento de reforma constitucional

Em relação à possibilidade de tornar excessivamente rígido o procedimento de


reforma, o professor de Direito Constitucional José Afonso da Silva salientou seu aspecto
negativo, tendo em vista que a dificuldade deveria ser relativa (BRASIL, 1987, p. 15).
De outra banda, os constituintes se mostraram favoráveis a dificultar o
procedimento de reforma constitucional, no sentido de que, em o fazendo, pudesse-se
conferir estabilidade e durabilidade à Constituição, apenas se permitindo a veiculação de
reformas constitucionais que implicassem alterações profundas no sistema constitucional
(BRASIL, 1987, p. 85).

3.9. Da possibilidade de criação de institutos de salvaguarda da Constituição em


contexto de pós-ruptura

Também foi advertida a possibilidade de criação de institutos de salvaguarda do


Texto Magno para ocasiões pós-ruptura (BRASIL, 1987, p. 18).

3.10. Debate sobre o “detalhismo constitucional”, o caráter analítico da Carta


Política brasileira e sua influência para a Reforma Constitucional

~ 313 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Não passou ao largo dos debates na ANC a extensão, o tamanho e a eventual


minudência dos dispositivos constitucionais. Houve até mesmo quem fizesse uma distinção
ontológica entre “Constituição Detalhista” e “Constituição Extensa”, como o Sr. João
Gilberto Lucas Coelho. Ficou estabelecido que a existência de uma Norma Fundamental
que desce a minudências pertinentes à legislação infraconstitucional estaria fadada à alta
reformabilidade de seus dispositivos. 190
Por outro lado, Paulo Brossard de Souza Pinto, ex-Ministro do Supremo Tribunal
Federal e convidado da Subcomissão, falou que a Constituição deveria conter tudo que

190 João Gilberto Lucas Coelho afirmava corroborando esse entendimento: “De repente, precisa se alterar a
Constituição detalhista que, muito provavelmente, nós teremos mais uma vez, precisa-se alterar o dispositivo
sobre a aposentadoria do funcionário público, sobre coisas factuais, não de se submeter a todo um processo,
a exigências, que tocar no voto universal, por exemplo, necessitaria. ” (BRASIL, 1987, p.18). O relator,
Nelton Friedrich, no entanto, fazia uma crítica contundente às palavras do jurista (...) “Começaria, nobre ex-
Deputado João Gilberto, fazendo uma observação – e o próprio constituinte Evaldo Gonçalves tocou nesta
questão – de que já se estabelece uma preocupação há muitos dias, sobre esta Constituição sintética ou não,
enxuta ou não, quando, na verdade, pela sua própria exposição, fica evidente que talvez não cheguemos a esta
posição primorosa. Ao mesmo tempo, muitas vezes esse mero enunciado de princípios facilita a fuga do seu
cumprimento. Fala-se muito na Constituição dos Estados Unidos, mas sabemos que se é a mais longa em
termos de existência e aplicabilidade, na verdade já tem 26 emendas e, praticamente, a Constituição americana
não é a Constituição americana, é a Suprema Corte que, a cada geração, acrescenta um elenco de mudanças.
Se pegarmos outras Constituições da Europa, como por exemplo, a da Suíça, que, embora com cento e
poucos artigos, tem artigos com mais de 16, 20 itens. Por isso, não me preocupa realmente com essa questão.
Parece-me muito mais importante que tenhamos uma Constituição para este País Continental e com o
máximo de instrumento de alta aplicabilidade.” (BRASIL, 1987, p. 23). Gilberto Lucas Coelho, então, fez
uma distinção pertinente entre Constituição extensa e Constituição detalhista, para explicar sua posição
anterior: “(...) a constituição para o país europeu é uma declaração, e não está submetida a regras tão rígidas
de técnicas legislativas como as que submetemos o nosso texto. Por exemplo, para nós brasileiros, o artigo
perfeito, tecnicamente, é aquele que é apenas uma frase, ou seja, que se esgota no primeiro ponto; quando
tem que retomar um ponto adiante, ele já ficou imperfeito. Se consultarem e temos aí a excelente publicação
que o Senado Federal fez sobre constituições, verificaremos que algumas são uma página inteira com vários
parágrafos, mas com parágrafos ortográficos, dentro do mesmo caput do artigo, ou seja, com várias linhas.
Sem nenhuma preocupação por esse lado, pelo caráter que e dado à Constituição como documento político,
temos mais o aspecto da Constituição como documento legal. Então, em parte, essa discussão se dá num
campo falso por causa disso. (...) E, em segundo lugar, não tenho medo de Constituição extensa; tenho um
pouco de preocupação com Constituição detalhista. O que é Constituição detalhista? É aquela que desce a
aspectos que o próprio ritmo da vida vai necessariamente ter que modificar e que, então, se obriga a muitas
alterações. Temos uma tendência a colocar na Constituição, aspectos que não são Constituição. Há dias, um
órgão de imprensa me jogava a seguinte crítica: a Constituição vai frustrar a população, porque as coisas que a
população espera da Constituição não vão estar na Constituição. Nós não estamos olhando a Constituição
como um estatuto. Foi interessante porque até um rapaz me citou o tema da descriminação da maconha. A
Constituinte não está discutindo a descriminação da maconha. Independente do mérito que isso possa ter,
pois existem até opiniões científicas a favor e contra. Respondi a ele: "Escuta, em algum lugar da Constituição
está escrito que homicídio é crime? E homicídio e muito mais grave que fumar maconha. Onde é que está
escrito, na Constituição que homicídio é crime?" Ele levou um susto. E eu continuei: "Para o crime, há o
Código Penal". Então esta questão de saber se fumar maconha deve estar autorizada ou não, não é uma
matéria constitucional, não tem por que estar sendo incluída neste processo. (...) Acho que a constituição
brasileira deverá, inclusive, ser extensa – não acredito numa Constituição sintética. Esse extenso não significa
número de artigos, porque se nós resolvermos escrever a Constituição sem estas restrições que nós hoje
usamos no processo legislativo brasileiro, nós podemos fazer uma Constituição de 200 artigos e dizer multo
mais do que, uma Constituição de 600 ou 700 artigos, escrita à moda como escrevemos hoje, isto é, cada
artigo é uma frase. São questões que outros países não levam em conta na hora de escrever a Constituição”.
(BRASIL, 1987, p. 23-24).

~ 314 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

fosse necessário às vicissitudes do Estado Constitucional, embora reconhecendo que o


Texto Fundamental, naturalmente, é mais sintético que a legislação ordinária, e mesmo que
fosse um texto analítico, não conseguiria prever todas as situações decorrentes de
necessidades da complexidade social (BRASIL, 1987, p. 31).
Brossard, ao se referir à Constituição sintética, falava no âmbito de evitar alçar ao
patamar constitucionais disposições constitucionais de eficácia programática: “(...) Quando
falo em sintética, eu me refiro a não pretender colocar na Constituição tudo, especialmente
normas programáticas; inclua-se a Constituição, não se dá força à Constituição. ” (BRASIL,
1987, p. 39).
Outro ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal que deu sua contribuição à
Subcomissão foi Célio Borja. Em suas pontuações, não esqueceu de ressaltar a importância
do equilíbrio no grau de rigidez que deveria ser atribuído à Carta Fundamental.
Para ele, existiam dois tipos de Constituição, a “Constituição de Princípios” e a
“Constituição Regulamentar”. A primeira disporia apenas sobre o conteúdo essencial à
sociedade, sendo dotada de relativo grau de elasticidade normativa, devido às suas normas
de conteúdo majoritariamente principiológico. A segunda, ao revés, disporia de forma
minudente sobre assuntos que não guardam pertinência constitucional material, isto é,
conteria muitas matérias apenas formalmente constitucionais, o que levaria,
inequivocamente à flexibilização do procedimento de reforma, apesar da disposição do
constituinte em agravá-lo. Nesse sentido, o detalhismo constitucional contribuiria para a
alteração de sentido da autêntica rigidez do procedimento de reforma estabelecida pelo
constituinte originário (BRASIL, 1987, p. 42-43).
Apesar de abordar sobre a importância de uma Constituição principiológica, Célio
Borja ressaltou que a escolha desse tipo de estruturação da Carta Magna não poderia se
descurar quanto às preocupações sociais, sendo necessário o fornecimento, por parte do
Texto Fundamental, de uma instrumentalidade específica voltada apara a efetivação dessas
aspirações populares (BRASIL, 1987, p. 46).
Sepúlveda Pertence, ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, também falou
sobre o assunto. Asseverou, contrariamente, que seria utópico promulgar uma Constituição
sintética em um Estado Social, que tem como objetivo salvaguardar prerrogativas
fundamentais dos sujeitos de direito por meio de prestações positivas. Não esqueceu,
porém, que, nesse ponto, surgem complicações decorrentes das normas constitucionais
programáticas (BRASIL, 1987, p. 61).
No mesmo sentido, o constituinte Ruy Nedel, preocupado com a eficácia das

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Direitos Humanos & Fundamentais

normas programáticas da Constituição, afirmou que a viabilidade de uma Constituição de


princípios apenas poderia ser confirmada pela imediata promulgação da legislação
infraconstitucional regulamentadora correspondente, sob pena de ineficácia dos
dispositivos referentes a direitos sociais. Esse fator, para Nedel, seria substancialmente
impeditivo para a elaboração de uma Constituição de Princípios em detrimento de uma
Constituição Regulamentar (BRASIL, 1987, p. 45).
Mormente a situação fosse crítica o bastante para permitir a promulgação de uma
Constituição de princípios, seria imperioso observar a seguinte reflexão: uma Constituição
analítica, necessariamente, teria seu procedimento de reforma constitucional mais facilitado
que outras Constituições mais sintéticas, sendo flexibilizado materialmente, de forma
inequívoca, apesar de a Constituição ser formalmente rígida.
Atento a essas observações, Sepúlveda Pertence, reconhecendo o problema da
eficácia jurídica de uma Constituição principiológica, contribuiu para a discussão ao propor
a criação de uma instância prolongadora do trabalho do Constituinte, incumbida de
aperfeiçoar a Constituição, depois de promulgada (BRASIL, 1987, p. 64).
O problema dessa sugestão reside na discussão doutrinária sobre a permanência
do Poder Constituinte depois de promulgada a Constituição. Para os autores que defendem
tal possibilidade, não haveria, necessariamente, uma distinção significativa entre Poder
Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado, cabendo a ambos a função de
complementar a Carta Política.
Acertadamente, para outros autores, a latência do Poder Constituinte não somente
não é possível, como indesejável, pois, se o fundamento da supremacia constitucional é a
magnitude do Poder Constituinte Originário que a elabora, é necessário distingui-lo do
Poder Constituído, limitado, jurídico e condicionado pelas delimitações estabelecidas pelo
outro Poder Originário, pré-jurídico, ilimitado e incondicionado.
De qualquer forma, ficou ululante para os constituintes que uma Constituição
analítica sofreria a incidência de muitas emendas constitucionais, o que pode ser sintetizado
pelas palavras de Euclides Scalco à Subcomissão (BRASIL, 1987, p. 85).

3.11. Discussão sobre a possibilidade de reforma das normas sobre reforma

Em uma das poucas ocasiões, na ANC, abordou-se sobre a (im)possibilidade de


alteração das normas sobre reforma constitucional, de acordo com a teoria clássica e com a
doutrina majoritária relativa à dicotomia Poder Constituinte/Poder Constituído.

~ 316 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Quem trouxe à tona a discussão foi o Sr. João Gilberto Lucas Coelho,
propugnando a impossibilidade de reforma das normas sobre produção jurídica da
Constituição. Asseverou que a decisão de estabelecer os limites do procedimento de
reforma caberia exclusivamente ao Poder Constituinte Originário, como limitação natural e
implícita a esse processo (BRASIL, 1987, p. 20).

3.13. Debate sobre rigidez, flexibilidade e estabilidade constitucional

Na Constituinte, o jurista Paulo Brossard falou acerca da estabilidade das


Constituições como consectário da rigidez constitucional, ressaltando a função das normas
sobre reforma como parâmetros de concretização daquele atributo da Carta Magna
(BRASIL, 1987, p. 28).
Fazendo uma retrospectiva histórica, Brossard ainda relembrou interessante artigo
da Constituição Imperial de 1824, que dispunha sobre a possibilidade de reforma
constitucional a depender da norma tratada (BRASIL, 1987, p. 28).
De acordo com o art. 178 da Constituição acima, se o assunto fosse material e
formalmente constitucional, sua reforma se procederia mediante um quórum qualificado;
se, do contrário, a norma fosse apenas formalmente constitucional, isto é, disposição que
poderia ser regulamentada pela legislação infraconstitucional por não possuir materialidade
constitucional, seu processo de alteração poderia ser efetuado como se fosse legislação
ordinária.191
Nessa mesma perspectiva, o então Ministro do Supremo Tribunal Federal Célio
Borja também rememorou o dispositivo da Constituição do Império, ressaltando o caráter
semirrígido daquela Carta Magna em razão do dispositivo antes mencionado (BRASIL,
1987, p. 42).

3.14 Discussão acerca da revisão constitucional

No que tange ao assunto da revisão constitucional, o tema foi pouco debatido.


Restou evidente que a ausência de discussão mais aprofundada sobre a matéria ensejou
algumas perplexidades para o sistema constitucional brasileiro.

191 De acordo com o artigo 178 da Constituição Imperial de 1824 havia uma nítida divisão entre normas
apenas formalmente constitucionais e materialmente constitucionais: “Art. 178. E' só Constitucional o que diz
respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes
dos Cidadãos. Tudo, o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas
Legislaturas ordinarias.” (1824, CONSTITUIÇÃO IMPERIAL)

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Direitos Humanos & Fundamentais

A disposição contida 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias


(ADCT) sobre revisão constitucional, além de pouco debatida na ANC, em especial na
Subcomissão de Garantia da Constituição, Reformas e Emendas, restou muito incipiente e
não condizente com o que se espera do instituto.
Por exemplo, houve uma limitação temporal desnecessária à revisão, porque
apenas ficou permitida sua realização uma única vez.
A razão disso pode estar no fato de que os constituintes possuíam muito temor
quanto à má utilização da revisão constitucional, tendo em vista a história de instabilidade
das Cartas Políticas pretéritas (BRASIL, 1987, p. 45).
Se por um lado o receio quanto à alteração constitucional desmesurada ficou
evidente nessa limitação temporal, acrescido do fato que a Constituição não pôde ser
alterada por revisão constitucional, de nenhuma forma, até cinco anos da promulgação da
Carta Magna, para que se tentasse conferir estabilidade ao Texto Constitucional, por outro
lado, a utilização do instituto em 1994 não empreendeu as reformas depurativas necessárias
à Constituição, que poderiam evitar a prática do “emendismo constitucional”, termo
cunhado por Wellington Márcio Kublisckas em sua obra “Emendas e mutações constitucionais:
análise dos mecanismos de alteração formal e informal da Constituição federal de 1988”.
A maior parte das seis emendas de revisão constitucional alterou dispositivos de
ordem apenas formalmente constitucional, e, havendo a limitação de seu uso, como norma
constitucional de eficácia exaurida, em tese, não se pode mais cogitar a possibilidade de
revisão constitucional.
Mormente essa consideração, em um dos poucos momentos em que o assunto da
revisão constitucional foi trazido à baila, pôde-se notar a preocupação com a sua utilização,
se seria um mecanismo esporádico, regular ou mesmo usado uma única vez.
Nesta senda, Paulo Brossard sugeriu importante contribuição de se estabelecer, a
cada decênio, uma Comissão especial incumbida de estudar a história constitucional e as
transformações por que passaram o Estado, contribuindo, eventualmente, com a sugestão
de Propostas de Emenda à Constituição, que possuiriam nítido caráter de revisão
constitucional, uma vez que certos preceitos constitucionais se tornam obsoletos com o
passar do tempo.192

192 Brossard sugeria interessante possibilidade de instauração de comissões especiais para estudar as reformas
constitucionais por que passariam o Texto Magno e, assim, sugerir eventuais modificações na forma de
reformas depurativas: “(...) o conveniente seria estabelecer um processo que não ossificasse a lei
constitucional, mas que também não facilitasse em demasia a sua mudança. Talvez fosse uma regra
estabelecer que, de 10 em 10 anos, uma Comissão especial estudaria ou apresentaria o resultado da
experiência constitucional de 10 anos, sugerindo modificações, e o projeto que fosse apresentado tivesse um
tratamento regimental privilegiado. Por quê? É óbvio que, salvo determinados preceitos, pode ocorrer que

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Direitos Humanos & Fundamentais

4. O MODELO BRASILEIRO DE REFORMA CONSTITUCIONAL

A Constituição Federal de 1988 trouxe, afinal, um modelo de mudança formal do


seu texto que podia seguir duas vias: a primeira delas era a da reforma ordinária, cuja
cláusula foi positivada no Art. 60; a segunda era a da revisão constitucional, consagrada no
Art. 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Como norma que se pretendia permanente, certas limitações ao exercício do
Poder Constituinte Derivado, contidas no Art. 60 eram extensivas ao processo de revisão
constitucional, muito embora a recíproca não fosse verdadeira. Ainda assim, certas
características do exercício do Poder Constituinte Derivado Revisor eram bastante
peculiares. Tais como as limitações processuais, consideravelmente mais flexíveis que
aquelas do procedimento ordinário de reforma. Neste sentido, o quórum era de maioria
absoluta, já não dos membros de cada Casa Legislativo, senão do Congresso Nacional, que
em sessão unicameral processaria e aprovaria ou não as propostas. O Poder Constituinte
Derivado Revisor, ademais, se sujeitava a uma limitação material que lhe era própria, tendo
que ser exercido cinco ano após a promulgação da Constituição.
Por seu turno, o Art. 60 da Constituição Federal trouxe limitações processuais,
circunstanciais e materiais de grande relevância. As primeiras se destacavam já nos seus três
primeiros incisos, que introduzem o poder de iniciativa de reforma da Constituição.
Circunscrita ao Presidente da República, a um terço dos membros de cada Casa Lagislativa,
ou a mais das Assembleias Legislativas dos Estados, esta prerrogativa engatava
formalmente o poder de reforma da Constituição com os princípios democrático e
federativo. No primeiro, porque todas as figuras institucionais capazes de desencadear o
processo de reforma constitucional manifestavam legitimidade democrática, sendo eleitas
pelo povo. No segundo, por ser o Senado Federal uma câmara de representação territorial,
enquanto, por outro lado, os Estados federados poderiam ver sua vontade política atendida

certas normas envelheçam com o tempo. Afinal de contas, os legisladores são homens e, como tais, são
limitados e não atingem, jamais atingiram, creio que nunca vão atingir, a perfeição, a sabedoria plena. De
modo que nada mais natural que uma lei que hoje nos pareça sábia, que hoje nos parece adequada à realidade
nacional, dentro de alguns anos venha a mostrar as suas falhas, as suas deficiências e até as suas
inconveniências. Poder-se-ia estabelecer que uma Comissão da Câmara, do Senado, do Congresso, teria a
incumbência de acompanhar o funcionamento da lei constitucional e, de 10 em 10 anos, apresentar o
resultado. Não quer dizer que antes dos 10 anos não possa ser feito, mas num trecho, num período de 10
anos, ou de 10 em 10, isso seria como que uma rotina, uma apresentação, uma experiência: o que funcionou
bem, o que não funcionou, onde está o defeito, onde está a excelência, faltou isso, uma interpretação
duvidosa sobre tal preceito, qual é a orientação correta, porque, às vezes, um parágrafo ou um inciso corrige
uma deficiência. ” (BRASIL, 1987, p.30).

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Direitos Humanos & Fundamentais

pela reunião das Assembleias Legislativas.


As limitações processuais ao poder de reforma da Constituição alcançavam,
ademais, a imposição de dois turnos de votação e discussão, a aprovação sujeita ao quórum
de 3/5 e a vedação de rediscussão da emenda rejeitada numa mesma sessão legislativa.
As limitações circunstancias encontram-se no § 1º do art. 60, e eram referentes à
vedação de emenda à Constituição na vigência de Intervenção Federal, Estado de Defesa e
Estado de Sítio. Sobre esta limitação, nos deteremos mais, ao final deste artigo.
As limitações materiais ao poder de reforma, por seu turno, constituíam um
aspecto central da cláusula de reforma, extensível ao exercício do Poder Constituinte
Derivado Revisor. Tais limitações voltavam para a salvaguarda de eixos normativos
emancipatórios que podem ser compreendidos como fundamentais numa Carta Política: a
forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e períodico, a separação de
poderes e os direitos e garantias individuais.
A proteção a tais matérias pode ser entendida a se considerar que o Brasil
encerrava, com a promulgação da Constituição, mais de duas décadas de um sistema
político fechado e repressivo. Neste sentido, todas as matérias resgauardadas no rol de
cláusulas pétreas expressavam um aspecto emancipatório resgatados pela nova Carta
Magna: a forma federativa de Estado aproximava o cidadão do poder político, favorecendo
o controle deste e a cobrança de responsabilidades, a proteção ao voto direto consolidava o
princípio democrático, enquanto a separação de poderes ajudava a reduzir a projeção do
Poder Executivo e garantir o reequilíbrio institucional; finalmente, consagrava-se também
os direitos e garantias individuais, aspecto medular de qualquer Constituição que pretenda
realmente merecer tal título.
Realizada a Revisão Constitucional, com o cumprimento do previsto no Art. 3º do
ADCT, apenas a reforma ordinária da Constituição, por meio do Art. 60, permaneceu no
horizonte normativo. E a partir daí, podemos indicar algumas indagações fundamentais que
merecem nossa atenção.

5. QUESTÕES NORMATIVAS RELEVANTES PERTINENTES AO


EXERCÍCIO DO PODER DE REFORMA CONSTITUCIONAL AOS 30 ANOS
DE VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Um aspecto que se destaca nos questionamentos possíveis é o da resiliência


normativa do que está disposto na cláusula de reforma da Constituição de 1988. Ou seja,

~ 320 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

faz-se necessário compreender até que ponto aquilo que está previsto no Art. 60 sofreu
alguma erosão ao longo das três décadas de vigência da Carta Magna. Para desdobrar esta
reflexão sugerimos os seguintes questionamentos: a cláusula de reforma prevista no Art. 60
persiste como única modalidade de reforma constitucional? Ocorreu ao longo do tempo
alguma flexibilização do seu conteúdo?
Contrastados com o pano de fundo até aqui apresentado, os mecanismos de
alteração formal da Constituição de 1988 apresentam peculiaridades dignas de nota. Em
primeiro lugar, cabe salientar que não há, no mecanismo de reforma previsto no Art. 60 da
Carta Política de 1988, qualquer elemento que possa denunciar, de forma imediata, uma
possibilidade de desequilíbrio no seu exercício. Inexiste brecha explícita para sua
flexibilização, como no caso da Constituição brasileira de 1824 (FERREIRA FILHO, 1999,
p. 129), ou uma via para sua petrificação, como no caso do Art. 168 da Constituição
espanhola de 1978. E no entanto, trinta anos após sua promulgação, podemos indicar o
poder de reforma como um dos capítulos mais afetados da Constituição de 1988. Situação
resultante não de uma prática que afronte formalmente a previsão contida no Art. 60, já
que nenhuma das emendas acrescidas ao texto originário de 1988 foi concebida e
promulgada à margem do procedimento previsto constitucionalmente, mas que chama
atenção em decorrência de uma autêntica banalização do seu exercício.
Esta banalização fica patente diante das cento de cinco emendas até o momento,
produzidas num espaço de trinta anos, numa razão de mais de três ao ano. O fato é
assombroso porque, em perspectiva, e se nos dedicássemos à tarefa, encontraríamos com
facilidade certas leis ordinárias e complementares dotadas de maior estabilidade normativa
que a própria Carta Política que lhes confere fundamento de validade.
Apresenta-se portanto, por força de uma combinação de circunstâncias, uma
situação limite na qual o exercício formalmente lícito do poder de reforma pode suscitar a
vulnerabilidade material da própria Constituição. Um problema de difícil solução, posto
que, embora possa se argumentar que o constituinte originário tenha idealizado a Carta
Política como um projeto perene, e sujeito, portanto, ao mínimo de modificações possível,
não lhe foi dado o poder de delimitar um número razoável de reformas, além do qual se
chegaria à ruína normativa da sua obra política, cabendo questionar se, à medida em que as
reformas se aprofundem e aumentem, o projeto político do constituinte originário de 1988
não ficará mais e mais ininteligível diante de uma Constituição que não poderá ser
compreendida desvinculada da incessante atividade do Poder Constituinte Derivado, até
que finalmente, não reste dúvida de que durante um bom tempo, o advento de emendas

~ 321 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

constitucionais já não guardava relação com um exercício intermitente de um poder de


reforma e sim com o perene, ainda que atípico, exercício de um Poder Constituinte
Originário dentro da suposta ordem constituída.
Neste sentindo, um questionamento da relação entre a mutação constitucional e a
dinâmica do poder constituinte derivado reformador na Constituição de 1988, é deveras
pertinente, mormente quando nos damos conta de que esta Constituição supera os 25 anos
de vigência, e de que, em retrospectiva, e sobretudo no que tange à estabilidade normativa
que poderia ser proporcionada pelo mecanismo de reforma consagrado no Art. 60 da nossa
Norma Fundamental, o resultado, até o momento, não tem sido satisfatório.
Já sabemos que a reforma constitucional expressa um delicado equilíbrio entre a
abertura e a resistência à mudança. Abertura porque nenhuma obra humana, sobretudo na
esfera política, está dotada da capacidade de cristalização no tempo. Resistência por que
através da rigidez constitucional normativiza-se a vontade constituinte de permanência da
sua obra e da relativa imunidade desta às transformações.
Podemos deduzir que o constituinte brasileiro tinha plena noção desta tensão
constante das democracias constitucionais pelo simples fato de ter consagrado um
mecanismo de rigidez constitucional. Noutras palavras, o constituinte brasileiro criou uma
Constituição projetada para perdurar, na medida do possível, inalterada. Por isso, dificultou
sua modificação. Pois somente mudanças de grande relevância social deveriam ser filtradas
pelo procedimento dificultoso consagrado no Art. 60.
É certo que na ausência de reformas constitucionais as mutações, dentro dos
limites impostos pelo próprio texto constitucional, podem desempenhar um papel
fomentador de uma acomodação que dispense a manifestação constituinte derivada, cuja
formalidade sempre pressupõe a necessidade de um consenso político amplo. O problema
se apresenta quando uma prática política que atende às prescrições textuais acaba dotando a
norma constitucional de um sentido distinto daquele desejado pelo constituinte originário.
Noutras palavras, quando uma prática política, sem infringir a Constituição frontal e
formalmente, torna-se com ela incompatível por outras circunstâncias, como na hipótese
de sua constante repetição, ou mesmo quando sua incidência afete um aspecto tão
nevrálgico da Carta Política como suas normas sobre reforma, que condicionam seu
dinamismo e sua capacidade de acomodação às novas demandas sociais e de filtragem da
legitimidade de tais demandas.
Revela-se, portanto, imprescindível uma análise mais detida, por parte da
comunidade jurídica, do impacto do fenômeno de mutação constitucional especificamente

~ 322 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

sobre os limites do poder de reforma da Constituição, que representam a fronteira última


de constitucionalidade formal e material do sistema. Impõe-se saber quais aspectos de tais
limites sofreram algum tipo de alteração no seu significado e no seu alcance e de que forma
e em que medida tais alterações se configuraram.
Por outro lado, conforme afirmamos anteriormente, após a Revisão
Constitucional de 1993/1994, apenas a previsão normativa do Art. 60 da Constituição
oferecia a possibilidade de reforma, nos termos já expostos. Esta é uma constatação fática.
À primeira questão colocada, no entanto, temos que responder com apresentação de uma
diferenciação elementar entre norma sobre reforma e norma de reforma.
A norma sobre reforma é aquela que dispõe o procedimento de reforma e suas
limitações. Neste sentido, a Constituição de 1988, trouxe duas normas sobre reforma no
seu texto: o Art. 60 e o Art. 3º do ADCT. As normas de reforma são aquelas resultantes do
processo prescrito pelas normas sobre reforma, ou seja, são as próprias emendas
constitucionais.
Para responder ao primeiro questionamento, e partindo da constatação de que o
Art. 3º do ADCT tornou-se uma norma com eficácia exaurida com o advento da Revisão
Constitucional resta saber, em primeiro lugar, se uma norma de reforma que seguisse as
prescrições da única norma sobre reforma existente a partir de 1994 poderia introduzir
uma nova norma sobre reforma, e, em segundo lugar, se esta nova norma sobre reforma
poderia introduzir um procedimento mais flexível do que aquele prescrito pela norma
sobre reforma vigente.
Para exemplificar esta problemática poderíamos expor dois exemplos concretos:
uma emenda constitucional poderia introduzir uma nova previsão de reforma
constitucional nos moldes daquela já realizada, ou então introduzir uma nova modalidade
de reforma que mitigasse a rigidez do Art. 60 da Constituição Federal?
A resposta a tais questionamentos exige uma tomada de posição no sentido de
compreender que a cláusula de reforma não é, ela mesma, uma parte intangível da
Constituição Federal. Se é bem verdade que nela se encontram aspectos fundamentais da
normatividade constitucional, que limitam a incidência do poder político sobre a Carta
Magna, é verdade também que ela não poderia se revestir de rigidez absoluta sobre o risco
de se tropeçarmos na autorreferência.
O Art. 60 da Constituição de 1988, portanto, não está resguardado pela mesma
proteção que confere a certas matérias constitucionais já mencionadas neste trabalho. E tal
afirmação não deve ser motivo de espanto. Não poderia ser diferente, afinal de contas não

~ 323 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

é possível imaginar o Constituinte prescrevendo que o próprio Art. 60, que regula a
reforma seja imune à reforma.
Uma objeção previsível é aquela que afirma ser o Art. 60 seja um exemplo de
cláusula pétrea implícita. Este tipo de afirmação, no entanto, deve ser veementemente
combatido no âmbito da dogmática constitucional. Isto porque não deve se dar espaço ao
que poderíamos chamar de “mediunidade constitucional”, que consiste em querer ver, no
texto constitucional, aquilo que não foi afirmado pelo Constituinte.
Ora, por que temos que recorrer a uma ideia invisível para defender um
argumento? O Consituinte estipulou e plasmou os limites do poder de reforma no próprio
texto constitucional. Não há espaço para subjetivismo aqui. Se o sentido da própria
Constituição é consolidar o Estado Democrático de Direito, e se este consiste basicamente
naquela forma política na qual o poder político submete-se ao império do Direito, como
imaginar que o poder de reforma da Constituição esteja sujeito a um critério tão subjetivo e
invisível, vago e impreciso, como o de “cláusula pétrea implícita”? Se o poder constituinte
originário não engendrou um contexto normativo, como supor que ele seja fruto de algo
que não está no horizonte visível e objetivo do Direito Constitucional Positivo?
Não se pode pretender assegurar a normatividade da Constituição, e muito menos
a solidez e estabilidade do exercício do poder de reforma da Constituição por meio de tal
critério, e sim através da disciplina do poder político, submetido àquilo que Konrad Hesse
denomina de força normativa da Constituição.
O Art. 60 da Constituição Federal, portanto, não pode ser compreendido como
uma cáusula pétrea implícita e, não podendo estar incluído entre as cláusulas intangíveis
que nele mesmo estão listados, não haveria, nenhum impedimento na inclusão de uma nova
norma sobre reforma por meio de uma norma de reforma.
Esta constatação, no entanto, nos conduz a outro questionamento: a introdução
de uma nova modalidade de alteração formal do texto constitucional poderia flexibilizar o
que já estivesse disposto no Art. 60? Ou seja, seria possível o advento de uma emenda
constitucional que introduzisse uma modalidade de reforma com procedimento menos
dificultoso?
A possibilidade de flexibilização do mecanismo de rigidez constitucional previsto
na Carta Política é um tema delicado. No entanto, acreditamos que sua abordagem é
necessária para lançar luz sobre a amplitude do poder constituinte derivado reformador.
Conforme afirmamos, o Art. 60 pode ser um veículo para introdução de uma
outra modalidade de mudança formal da Constituição. A questão agora é saber se esta, por

~ 324 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

meio dele, pode ver desencadeada sua própria flexibilização.


Esta flexibilização, é bom que se diga, poderia ocorrer de duas formas: a primeira,
por meio de uma emenda que revogasse ou mitigasse limitações já contidas no próprio Art.
60; a segunda, por meio de uma emenda que introduzisse uma nova modalidade de reforma
cujo procedimento fosse menos dificultoso que aquele disposto naquele dispositivo
constitucional.
Para ambas as hipóteses vale a argumentação já destacada de que o Art. 60 não
pode ser considerado uma cláusula pétrea implícita. Porém, mais que isso, é importante
destacar que o procedimento previsto para a reforma constitucional não pode servir à
finalidade de sujeitar a sociedade a obstáculos normativos intransponíveis.
É importante compreender que, ao consagrar uma cláusula de reforma, o
Constituinte pretende o equilíbrio entre duas pulsões que se contrapõem
permanentemente: a de se manter fiel ao projeto político originalmente pactuado e aquela
de ceder às mudanças que eventualmente sobrevenham. O delicado equilíbrio entre tais
pulsões é essencial para garantir a normatividade constitucional, posto que, uma resistência
absoluta às mudanças pode acabar por fragmentar a Constituição por meio de sua ruptura.
Por outro lado, a reforma contínua do texto constitucional, também acaba conduzindo a tal
afastamento do pacto político fundamental que também acaba por gerar condições para o
surgimento da ruptura.
A necessidade de consagrar matérias constitucionais como imutáveis pode ter sido
uma preocupação da geração que participou do exercício do poder constituinte, mas nada
garante que será a mesma preocupação que comprometerá as gerações futuras. Neste
sentido, não se pode pretender que direitos individuais, forma federativa de Estado,
separação de poderes e voto direto, secreto, periódico e universal sejam matérias protegidas
e consagradas no universo político apenas' porque figuram num dos parágrafos do Art. 60,
e sim porque a normatividade da Constituição deve ser respeitada e entendida como
especialmente delicadas no trato com tais matérias. Não é a rigidez que garante estabilidade
a tais matérias e sim a vontade de Constituição que preserva o projeto político nela
consagrado.
Entendememos, portanto, que o mecanismo de rigidez constitucional está sujeito
à mudança. Inclusive aquela que venha a eliminar aspectos supostamente absolutos como
as cláusulas de intangibilidade. Nesse aspecto vale a máxima de que nenhuma geração pode
agrilhoar as gerações futuras a uma modalidade de alteração formal da Constituição.
Já no que tange à hipótese de introdução de uma nova modalidade de reforma

~ 325 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

constitucional, mais flexível que a que existe atualmente, é preciso ressaltar que saímos do
terreno do raciocínio abstrato, posto que tal fenômeno ocorreu com a introdução do § 3º
ao Art. 5º, por meio da Emenda Constitucional N.º 45/04.
Com o advento da Emenda Constitucional N.º 45/04 uma seríssima modificação
foi introduzida na Carta Política brasileira através do conteúdo do § 3º, agora acrescido ao
Art. 5º.193 Confirmando um antigo entendimento decorrente da leitura doutrinária do § 2º
do mesmo dispositivo constitucional,194 o legislador inseriu uma legítima cláusula de
abertura constitucional à dimensão internacional, permitindo que tratados sobre direitos
humanos ingressem na ordem interna com a qualidade de normas constitucionais. Um
pioneirismo que não se vê sequer em países como a Espanha ou Itália, nos quais um
processo de integração intenso, como o europeu, tem exercido uma forte pressão sobre as
cláusulas do poder de reforma das respectivas constituições nacionais. No caso brasileiro, a
previsão contida no Art. 5º, § 3º, embora avançada, veio desacompanhada de quaisquer
cláusulas de controle que estabelecessem um filtro normativo que não o político, para
inserção de tais normas no plano interno, cabendo portanto questionar se, nos termos da
atual Constituição, abre-se a possibilidade para legitimar um autêntico poder constituinte
derivado reformador internacional, através do qual possamos identificar parte do processo
de mudança formal da Constituição acontecendo fora do Estado e outra no seu interior.
Depreende-se do processo de elaboração da emenda n. 45/2004, que o legislador
não se revestiu dos devidos cuidados quanto a apreciação sobre a proposta de inserção do
art. 5º, §3º, haja vista que não existiu qualquer discussão acerca dos reais efeitos jurídicos
que uma emenda desta relevância ocasionaria no ordenamento jurídico, limitando-se
apenas a seguir o modelo adotado na Argentina. O resultado desta total negligência
parlamentar foi à construção de mais uma anomalia referente à figura do Poder
Constituinte.
Não resta dúvida que a titularidade do poder de reforma da Constituição, ainda
que indiretamente ligada à vontade popular, por meio dos titulares do poder de iniciativa da
Proposta de Emenda Constitucional, mantem um caráter democrático essencialmente
nacional. Os tratados internacionais, por seu turno, são elaborados obedecendo a uma
sistemática que, em parte, foge ao controle do povo. Além de introduzir o corpo

193 Constituição Federal, Art. 5º, § 3º: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que
forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos
respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
194 Constituição Federal, Art. 5º, § 2º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ella adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte.”

~ 326 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

diplomático na equação, que atua como negociador do mesmo, tem-se, ainda, a figura das
partes signatárias que plasmam seus interesses na formação do tratado, fugindo, no todo ou
em parte, ao controle popular, podendo ensejar, por conseguinte, influências de entidades
externas no corpo da Constituição que mitiguem a soberania do Estado. Além do mais,
nesta instância não há qualquer controle jurídico, mas tão somente político, estando
permeado pela discricionariedade do corpo político e da conveniência das relações
internacionais.
Outro problema oriundo dessa alteração legislativa tem um caráter doutrinário,
uma vez que por não serem os tratados instrumentos elaborados apenas internamente, não
cabe qualquer discussão ou modificação de seu objeto após a ratificação. Numa eventual
contradição entre este e o texto constitucional, destarte, a consequência seria a derrogação
de normas constitucionais. Dessa forma, o tratado não estaria sujeito ao procedimento de
rediscussão nem poderia ter o seu conteúdo modificado, exatamente por não ser
instrumento elaborado internamente, o que implicaria descurmprimento das obrigações
assumidas internacionalmente pelo Estado (GUSMÃO, 2005, p. 110-111).
Portanto, o que se percebe é a institucionalização de uma competência
reformadora parcialmente vinda de fora, cuja vontade normativa atende a entidades não
assentadas inteiramente numa legitimidade democrática.
Uma última questão para a qual cabe especial atenção, sobretudo à luz de recentes
eventos políticos é a delicada relação entre o poder de reforma e as circunstâncias de
anormalidade político institucional, a saber, Intervenção Federal, Estado de Defesa e
Estado de Sítio.
O art.. 60, § 1º é bastante taxativo quanto à proibição de se emendar a
Constituição na vigência das três situações de normalidade acima destacadas. Porém, a
manifestação do Presidente da República e de seu Ministro da Defesa quando da assinatura
do Decreto de Intervenção Federal no Rio de Janeiro, revelando a intenção de suspender a
medida a fim de aprovar a PEC N.º 287/16 (Reforma da Previdência), abriu uma capítulo
novo no âmbito da Dogmática Constitucional.
A peculiar conformação do poder de reforma constitucional dentro da ordem
constituída consolida a normatividade da Constituição, mitigando o caráter político em prol
da feição fundamentalmente jurídica da incidência constituinte derivada. Exatamente por
isto, a previsão do poder constituinte derivado manifesta evidentes limites de variado perfil:
processual, material e circunstancial.

~ 327 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A estabilidade normativa da Constituição num contexto cambiante é portanto, o


maior benefício derivado da existência de uma cláusula de reforma no seu texto.
Estabilidade esta que, ademais, pretende-se perene a despeito das oscilações políticas que
um determinado Estado possa sofrer.
A pretensão de estabilidade normativa, no entanto, não se deduz apenas da
expressão textual do Poder Constituinte Derivado na cláusula de rigidez constitucional.
Outro setor da Constituição pretende também preservá-la em face de situações limítrofes
nas quais o projeto político-normativo possa soçobrar. Trata-se do conjunto de
mecanismos que visam remediar crises político-institucionais de variadas dimensões ou que
afetem o projeto federativo: a intervenção federal, o Estado de Defesa e o Estado de Sítio.
É importante que se ressalte que a vigência destas situações de anormalidade
político-democrática revelam, antes um processo de cura do que a ruptura da Constituição.
Por meio deles, portanto, busca-se, utilizando instrumentos previstos no próprio texto
constitucional, a restauração da normalidade política, com o primado da Carta Política.
A relação de tais circunstâncias de anormalidade político-institucional com o
poder de reforma da Constituição foi contemplada pelo Constituinte com suma precisão
no Art. 60, § 1º. Neste dispositivo encontra-se plasmado o entendimento de que o poder
de alteração formal do texto constitucional deveria ficar fora do alcance da esfera política
na vigência de tão delicadas situações políticas.
O texto constitucional, no entanto, salienta que a Carta Magna não será emendada
na vigência das três circunstâncias, e deixa mais perguntas que respostas: a tramitação de
uma Proposta de Emenda Constitucional seria possível na vigência da Intervenção Federal
ou dos Estados de Defesa e de Sítio? Entendendo-se como possível tal tramitação, poder-
se efetuar a manobra de suspender tais circunstâncias de anormalidade para levar à cabo a
promulgação de emendas, restaurando, em seguida, os estados de anormalidade? A
intenção verbalizada pelo Presidente da República e seu Ministro da Defesa seria, portanto,
viável no contexto de uma Constituição normativa? São perguntas que parecem não mais
esperar.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O poder de reforma constitucional, sem dúvida, representa um dos alicerces da


normatividade da Constituição. A forma como se manifesta o seu exercício denota a

~ 328 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

solidez do pacto positivado nos dispositivos da Carta Política e expõe a relação que um
povo e, sobretudo, suas elites políticas mantem como as limitações jurídicas ao poder.
Ao longo dos trinta anos de vigência da Constituição Federal fenômenos diversos
têm incidido sobre a forma como foi concebido o recurso ao poder constituinte derivado.
Tantas foram as reformas constitucionais em tão pouco tempo, que cabe se questionar se a
essência do projeto inicial não foi comprometida, e se, a rigor, não jaz uma mutação
constitucional sobre a própria norma sobre reforma que é o Art. 60 da nossa Constituição.
Ao mesmo tempo, desafios jurídicos e políticos parecem assomar desafiadores
para a Carta de 1988. Do ponto de vista jurídico cabe questionar a exclusividade do Art. 60
como única norma sobre reforma no texto constitucional, e quais parâmetros deveriam ser
seguidos para eventual inclusão de outras modalidades. Do ponto de vista político, por
outro lado, resta claro que a perturbadora relação entre norma sobre reforma e
circunstâncias de anormalidade político-institucional, descortina a necessidade de manter
firma uma interpretação que garanta o império do Direito sobre a política.
Em todo caso, parece certo que não os limites de qualquer pretensão de resgate da
verdadeira essência do poder de reforma na Constituição Federal não pode se fiar de
encontrar nele mesmo os instrumentos de sua preservação. É no exercício da política, e na
penetração da percepção da normatividade da Constituição que se encontra qualquer
esperança para a preservação do projeto político de 1988.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Constituinte. Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições.
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nossos dias?. In: Revista Brasileira de Direito Constitucional, v. 6, São Paulo: Escola
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Constituição). São Paulo: Malheiros, 2002.

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~ 330 ~
GESTÃO DEMOCRÁTICA DO ENSINO NA JURISPRUDÊNCIA
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: 30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

Michelle Asato Junqueira

Eu sabia que cidades eram construídas


Não fui até lá.
Isso pertence à estatística, pensei
Não à história.
Pois o que são cidades, construídas
Sem a sabedoria do povo?
(Bertold Brecht)

1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 recebeu o título de “Constituição Cidadã” por


valorizar os mecanismos de participação política e elevar a cidadania a fundamento do
Estado Social e Democrático de Direito por ela inaugurado. Desde o seu artigo 1º, a
Constituição declara a República Federativa do Brasil como constituída em Estado
Democrático de Direito, pautada nos fundamentos da soberania, cidadania, dignidade da
pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político.
Em sendo assim, na interpretação do texto constitucional, não podemos nos
desvincular de tais fundamentos, deixando claro que a cidadania é conceito vinculado do
princípio democrático, sendo, nas palavras de José Afonso da Silva, “tributária da soberania
popular”195.
O conceito de cidadania, segundo a teoria de Hannah Arendt, explorado por
Celso Lafer196, é, em princípio, o “direito a ter direitos”. Neste contexto, a liberdade que se


Doutora e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista
em Direito Constitucional com Extensão em Didática do Ensino Superior. Professora nos Cursos de
Graduação e Pós-Graduação “Lato Sensu” da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Vice-líder do Grupo de
Pesquisa Emergente – CriaDirMack- Direitos da Criança do Adolescente no Século XXI da Faculdade de
Direito da UPM Vice-líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Políticas Públicas como Instrumento de Efetivação
da Cidadania” e do Grupo de Estados “Criança e Adolescente no Século XXI”. Pesquisadora no Grupo de
Pesquisa “Estado e Economia no Brasil”. Avaliadora de diversos periódicos nacionais e autora de diversos
artigos e livros jurídicos. Email: michelleasato@mackenzie.br.
195 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 35.
196 LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 154-159.

~ 331 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

filia à cidadania não é apenas a que permite gozar certos direitos, mas sim aquela de ser co-
participante do governo.
Como esclarece o Professor Dalmo Dallari197, a expressão “cidadania” tem origem
na Roma antiga e servia para designar a condição social, política e jurídica de uma pessoa,
implicando em forte participação na vida social e no governo. Era um critério
discriminatório na medida em que o cidadão era aquele pertencente à classe superior da
sociedade, sendo excluídos, por exemplo, as mulheres e os escravos.
O conceito de cidadania evoluiu muito até atingir a formulação enunciada na
Constituição Federal Brasileira de 1988. Esta trajetória vem sintetizada na seguinte
afirmação de Gianpaolo Poggio Smanio198:

A cidadania deve ser concebida como um direito, como já vimos, um direito


fundamental, mas que também implique em intersubjetividade entre os
cidadãos, de forma que exista dever de solidariedade entre os cidadãos. A
cidadania, além de participativa, deve ser ativa, na busca da construção de uma
sociedade mais livre e igualitária, através da solidariedade.

É o conceito de cidadania compreendido de forma ativa e participativa que


constitui fundamento do Estado Democrático de Direito adotado na Constituição Federal
Brasileira de 1988.
Em sendo a democracia o regime político adotado, o que se pretende é a
convergência entre as liberdades formais clássicas, como o direito à vida e à liberdade de
expressão e a busca por melhores condições sociais, fundadas na soberania popular.
Tal convergência deve ocorrer, pois o Estado caracterizado em nossa ordem
constitucional, além de democrático, como explicitado no artigo 1º do texto constitucional,
é também social, “estabelecendo um regime de garantias concretas e objetivas, que tendem
a fazer vitoriosa uma concepção democrática do poder”199.
Segundo Paulo Bonavides200, “o Estado Social, em seu mais sabido grau de
legitimidade, será sempre, a nosso ver, aquele que melhor consagrar os valores de um
sistema democrático”.
A opção pelo Estado Social é clara quando analisamos os artigos 3.º e 170 da
Constituição de 1988, os quais trazem os objetivos fundamentais da República, buscando a
197 DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado de Direito e Cidadania. In: Direito Constitucional. Estudos em
homenagem a Paulo Bonavides. Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho (orgs). São Paulo:
Malheiros, 2001, p. 197.
198 SMANIO, Gianpaolo Poggio. A conceituação da cidadania brasileira e a Constituição Federal de 1988. In:

Os 20 anos da Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, Organizador: Alexandre de Moraes,
2008, p. 337.
199 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 157.
200 Id., ibid., p. 159.

~ 332 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

compatibilização do sistema econômico capitalista (livre iniciativa), com a melhoria das


condições sociais, por meio da atuação estatal.
O Estado que tem por fundamento o valor social do trabalho, por objetivo a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I do art. 3º da Constituição
Federal), a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das igualdades sociais e
regionais (inciso III do art. 3º da Constituição Federal) constitui claramente um Estado
Social de Direito.
Além disso, a Constituição Federal de 1988 consagra uma série de direitos sociais
em seu artigo 6º, dentre eles, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, bem como confere ao Título VIII, a missão de tratar “Da Ordem Social”.
O reforço conferido aos direitos sociais pode ser percebido, ainda, pelo acréscimo
do direito à alimentação (cf. Emenda Constitucional nº 64/2010) e do transporte (cf.
Emenda Constitucional nº 902015), no rol dos direitos sociais previstos no artigo 6º.
Com ênfase nesta Ordem Social, o texto constitucional dedica um Capítulo
exclusivo à Educação, estabelecendo, inclusive, princípios específicos a basear o ensino 201,
dentre eles o da gestão democrática do ensino público.
Dada a relevância do tema, não à toa, o mesmo mereceu destaque na Constituinte
e foi reiteradas vezes objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal, na qualidade de
guardião da Constituição.
O presente artigo visa realizar uma análise da interpretação do princípio da gestão
democrática do ensino na visão dos julgados do Supremo Tribunal Federal, que declaram a
inconstitucionalidade da previsão de eleições diretas dos dirigentes de escolas públicas.
Para a finalidade deste artigo, foram analisados os textos das Constituições dos
Estados Federados com o objetivo de se verificar se foram ou não objeto de discussão
acerca de sua constitucionalidade, e doze acórdãos do Supremo Tribunal Federal que se
relacionam diretamente com a questão da gestão democrática do ensino.

201Educação constitui o ato ou o efeito de educar-se, por sua vez, o ensino designa a transmissão de
conhecimentos, informações ou esclarecimentos úteis ou indispensáveis à educação (RANIERI, Nina.
Educação Superior, Direito e Estado: na Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.394/96). São Paulo: Edusp, 2000, p. 168.

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Direitos Humanos & Fundamentais

2. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DE


ENSINO

A educação, consagrada como direito social fundamental, deverá, à luz do art. 205
da Constituição Federal, ser promovida e incentivada pela sociedade, tendo por objetivo o
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.202
Depreende-se que a opção pelo modelo de Estado Democrático rege toda a
estrutura do sistema educacional constitucional e, desta forma, conforme já salientado, a
gestão do ensino deve ser participativa.
Isso porque, em nosso Estado Social e Democrático de Direito, o princípio
democrático implica a democracia participativa, a estruturação de processos que ofereçam
aos cidadãos efetivas possibilidades de aprender a democracia, participar do processo de
decisão, exercer controle crítico na divergência de opiniões, produzir inputs políticos
democráticos.203
Tal como outros conceitos históricos, não há uma única definição de democracia,
no sentido estritamente jurídico-político. Marcello Caetano204 a conceitua como: “Forma de
governo em que os governados são considerados titulares do Poder Político e o exercem
directamente ou mediante representantes temporários periodicamente eleitos”.
Se pudermos relacionar a garantia da liberdade individual como preocupação
precípua do Estado Liberal e o objetivo de conciliação do Estado com a sociedade ao
modelo de Estado Social, acrescendo os valores ligados ao princípio da igualdade, é
conveniente citarmos que, neste, a democracia205 caracteriza-se “como coletivista, social,
onde a compreensão dos valores humanos terá de fazer-se sempre com referência a grupos
e não a indivíduos206”.
Norberto Bobbio207 também não destoa desta forma de interpretação do modelo
de Estado adotado em nossa Constituição, quando salienta que “a justificação da
democracia, ou seja, a principal razão que nos permite defender a democracia como a
melhor forma de governo ou a menos ruim, está precisamente no pressuposto de que o
indivíduo como pessoa moral e racional, é o melhor juiz de seu próprio interesse.”

202 Texto do artigo 205 da Constituição Federal de 1988.


203 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Almedina: Coimbra, 2006, p. 288.
204 CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e de Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1996, p. 331.
205 O grande desafio atual do Estado Democrático e Social de Direito é justamente o de combinar a

participação coletiva com o respeito às liberdades individuais.


206 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 300.
207 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. São Paulo: Campus, 2002, p. 424.

~ 334 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Conforme salienta Canotilho208, há de se distinguir o Estado de Direito e o Estado


Democrático, que constituem dois modos diversos de ver a liberdade, o primeiro relaciona-
se à liberdade negativa, à defesa do indivíduo contra o Estado, enquanto o segundo, dentre
outros princípios, à liberdade positiva, à participação política.
O Estado Constitucional Democrático é mais que o Estado de Direito, nele há a
preocupação com a legitimação do poder político fundado na vontade popular.
Esclarece, ainda, o referido autor, que o princípio democrático não é apenas uma
decisão para a adoção de uma teoria em abstrato, mas a procura de uma ordenação
normativa de um país e uma dada realidade histórica, concluindo que “o princípio
democrático é um princípio jurídico-constitucional com dimensões materiais e dimensões
organizativo-procedimentais”209.
Não desconhecemos as críticas que apontam para algumas consequências
indesejadas da adoção do princípio democrático, especialmente no que se refere à
possibilidade de enfraquecimento do poder estatal. Assevera Maria Estela Dal Pai Franco 210
que “a economia neoliberal prefere uma sociedade civil forte e um Estado fraco, pois lhe é
conveniente pensar o Estado como inerentemente limitativo da sociedade civil”.
O princípio democrático, porém, constitui-se no regime adotado pelo Poder
Constituinte Originário e deve reger a interpretação de todas as normas inerentes ao
ensino.
Nesse sentido, relacionando a educação e a democracia, oportunas as palavras de
Edgar Morin211, em texto que descreve o que denomina os “sete buracos negros” que
necessitam ser supridos para a educação do futuro:

O último aspecto é o que vou chamar de antropo-ético, porque os problemas da


moral e da ética diferem a depender da cultura e da natureza humana. Existe
um aspecto individual, outro social e outro genético, diria de espécie. Algo
como uma trindade em que as terminações são ligadas: a antropo-ética. Cabe
ao ser humano desenvolver, ao mesmo tempo, a ética e a autonomia pessoal (as
nossas responsabilidades pessoais), além de desenvolver a participação social
(as responsabilidades sociais), ou seja, a nossa participação no gênero humano,
pois compartilhamos um destino comum. A antropo-ética tem um lado social
que não tem sentido se não for na democracia, porque a democracia permite
uma relação indivíduo-sociedade e nela o cidadão deve se sentir solidário e

208 CANOTILHO, op cit, p. 99-100.


209 Id., ibid., p. 287.
210 FRANCO, Maria Estela dal Pai e MOROSINI, Marilia Costa. Gestão Democrática e Autonomia Universitária:

Educação Superior no Brasil e o Mercosul. Disponível em http:


www.publicacoes.inep.gov.br/arquivos/%7B595186B4-34FF-4479-BFA7-
429BBE0F0986%7D_MIOLO_TEXTO%20DISCUSSÃO%20Nº%2020.pdf. Acesso em: 08. jun. 2018, p.
34.
211 MORIN, Edgar. Sete saberes necessários à educação do futuro. Disponível em: <
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/EdgarMorin.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2018.

~ 335 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

responsável. A democracia permite aos cidadãos exercerem suas


responsabilidades através do voto. Somente assim é possível fazer com que o
poder circule, de forma que aquele que foi uma vez controlado terá a chance de
controlar. Porque a democracia é, por princípio, um exercício de controle. Não
existe, evidentemente, democracia absoluta. Ela é sempre incompleta. Mas
sabemos que vivemos em uma época de regressão democrática, pois o poder
tecnológico agrava cada vez mais os problemas econômicos, mas na verdade, é
importante orientar e guiar essa tomada de consciência social que leva à
cidadania, para que o indivíduo possa exercer sua responsabilidade.

Se é certo que a democracia não se resume às eleições diretas, também é certo que
a gestão democrática do ensino deve ser efetivada pela participação da sociedade em
diferentes canais, como nos Conselhos de Ensino e em diferentes instâncias de decisões em
que estão previstas a participação da coletividade. Neste contexto, afastar a comunidade da
escolha dos dirigentes escolares é, sem dúvida, negar a soberania popular.
Vale salientar que o próprio artigo 14 da Constituição de 1988 esclarece que a
soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com
valor igual para todos e, nos termos da lei.
Na oportunidade, reforçando a idéia da inafastabilidade da participação popular,
tem-se que:

Os argumentos favoráveis à participação baseiam-se na natureza do poder


decisório das comunidades em geral, do Estado em particular, em seu
compromisso necessário para com a justiça e a liberdade; e às vezes no ideal dos
homens em serem agentes autônomos, que só podem afirmar suas próprias
autenticidades, se decidirem por si mesmos o que fazer. [...] Ao avaliá-los, nós
muitas vezes necessitamos considerá-los do ponto de vista tanto da comunidade
como um todo quanto dos indivíduos separadamente. Simplesmente porque o
poder decisório é o que é. A participação pode resultar em melhores decisões,
porquanto são baseadas em informações mais completas. Dois pares de olhos
são melhores do que um, e se todos fossem consultados, provavelmente
nenhuma peça de informação seria omitida. [...] Particularmente, se todos
participassem, nós maximizaríamos as chances de termos segundas avaliações de
qualquer esquema que possa ser insensato; e na ocasião da decisão final nós
teríamos tido a oportunidade de ponderar sobre todos os argumentos sérios de
ambos os lados. Assim, quanto mais pessoas estiverem envolvidas no poder
decisório, haverá maiores informações e maior troca de idéias, o que é bom.212

Os princípios consagrados constitucionalmente têm por função orientar a


interpretação constitucional e traçar o caminho da base normativa infraconstitucional,
prestando-se a garantir a consecução dos objetivos da educação, previstos no caput do
artigo 205, quais sejam: o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício

212FRAGALE FILHO, Roberto. Educação e Constituição. In: QUARESMA, Regina; OLIVEIRA, Maria
Lúcia de Paula (Cord.). Direito Constitucional Brasileiro: perspectivas e controvérsias contemporâneas, Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 695.

~ 336 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Nestes termos, prescreve o texto


constitucional:

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
[...]
VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica,
administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio
de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

Por sua vez, a Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1966 213, também prevê:

Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:


[...]
VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação
dos sistemas de ensino;
Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do
ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e
conforme os seguintes princípios:
I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto
pedagógico da escola;
II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou
equivalentes.
[...]
Art. 56. As instituições públicas de educação superior obedecerão ao princípio
da gestão democrática, assegurada a existência de órgãos colegiados
deliberativos, de que participarão os segmentos da comunidade institucional,
local e regional.
Parágrafo único. Em qualquer caso, os docentes ocuparão setenta por cento
dos assentos em cada órgão colegiado e comissão, inclusive nos que tratarem
da elaboração e modificações estatutárias e regimentais, bem como da escolha
de dirigentes.

Importante frisar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional repete os


dispositivos constitucionais, reforçando a sua natureza interpretativa e fundamental,
acrescendo que a participação da sociedade na gestão democrática se dará por meio da
elaboração do projeto pedagógico das escolas e nos conselhos escolares. Por sua vez, o
artigo 56 da referida lei regulamentadora esclarece que a gestão democrática também se
aplica às instituições públicas de educação superior.
José Afonso da Silva, ao comentar o dispositivo referente à gestão democrática do
ensino, assevera:

Essa gestão democrática também depende da forma da lei. E a lei, aqui, é a de


cada sistema de ensino, que tem liberdade de organização. Mas a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional determina que os Sistemas de Ensino
definirão as normas de gestão democrática do ensino público na educação
básica (educação infantil, ensino fundamental e médio), de acordo com suas

213 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

~ 337 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

peculiaridades e conforme os seguintes princípios: participação dos profissionais


da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e participação da
comunidade escolar e local em conselhos escolares e equivalentes. As
instituições públicas de ensino superior também deverão observar os princípios
da gestão democrática, assegurada a existência de órgãos colegiados
deliberativos, de que participarão os segmentos da comunidade institucional,
local e regional (Lei de Diretrizes, art. 58). O que se quer é uma estreita
articulação da escola com as famílias e a comunidade, criando processos de
integração da sociedade com a escola. Veja-se que só se trata de gestão
democrática do ensino público, não no ensino privado, que também deveria
sujeitar-se aos mesmos princípios. 214

A regulamentação, portanto, do dispositivo constitucional existe. O que se


pretende é a discussão acerca de sua extensão.
Ocorre que, embora a lei a que se refere o texto constitucional já exista, na medida
em que a educação foi regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases, é preciso chamar a
atenção para o fato de não existir óbice para que, uma vez que o texto constitucional deixa
a cargo da lei o exercício da gestão democrática do ensino, a referida matéria seja
regulamentada também pelos dispositivos da Constituição Estadual, conforme mais adiante
argumentaremos.
No âmbito pedagógico, a primazia das eleições diretas como efetivação da
participação democrática também é relevante:

Vários estudos sobre gestão democrática abordam a participação como


temática principal. Ao abordar aspectos da gestão democrática do ensino
público ligados à participação, foi possível constatar que, ao contrário do que
se idealiza sobre a convivência entre membros da comunidade escolar, os
mecanismos adotados pelos sistemas não lograram pôr termo à guerra entre
segmentos. Diretores, professores e funcionários, com prevalência dos
primeiros, ainda monopolizam os foros de participação. A escola pública ainda
é vista pelos usuários como propriedade do governo ou do pessoal que nela
trabalha. O professor comporta-se como dono do seu cargo, dos alunos e de
suas classes. O diretor funciona como guardião dessa concepção, evitando
interferências de servidores e de pais. As legislações têm funcionado como
mecanismos reguladores dessa prevalência, uma vez que impõem critérios de
proporcionalidade na participação aos segmentos organizados da comunidade
escolar. Isso não impede, no entanto, que permaneçam existindo
comportamentos e atitudes de dominação dos docentes sobre os demais
membros, sob argumentos que, em geral, se baseiam em questões ligadas à
competência pedagógica. Apesar das várias tentativas legais de correção das
distorções que privilegiam os segmentos docente e administrativo, observam-
se algumas legislações que chegam a legitimar a restrição à participação dos
pais e responsáveis. 215

Como evitar distorções como as acima narradas? Como fazer com que a
comunidade escolar como um todo se sinta parte da escola, evitando que o diretor seja o

214SILVA, op. cit., p. 789.


215MENDONCA, Erasto Fortes. Estado patrimonial e gestão democrática do ensino público no Brasil. Educ.
Soc. [online]. 2001, vol. 22, n.75, p. 84-108. ISSN 0101-7330. doi: 10.1590/S0101-73302001000200007.

~ 338 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

monopolizador da instituição de ensino, afastando a participação dos pais e responsáveis?


Como fazer com que a comunidade sinta-se parte da instituição de ensino, tornando-se
capaz de participar, sugerir, exigir? A indicação pelo chefe do executivo ou a nomeação por
concurso para dirigente de instituição de ensino público serão mecanismos suficientes e
adequados para trazer o mais preparado tecnicamente para exercer o cargo?
A resposta é negativa e, nesta linha, discutiremos as razões, a nosso ver,
distorcidas, da interpretação que o Supremo Tribunal Federal concede ao princípio da
gestão democrática do ensino.

3. DA PREVISÃO DE ELEIÇÕES DIRETAS NAS INSTITUIÇÕES DE


ENSINO PÚBLICAS. FUNDAMENTOS DA JURISPRUDÊNCIA DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Como já salientado, a Constituição Federal estabeleceu o princípio da gestão


democrática do ensino público, que deve ser regulamentado “na forma da lei”.
O princípio democrático deve pautar toda a estrutura estatal, não há como
desvinculá-lo do microcosmo que é o Sistema de Ensino, refletindo-se em toda a estrutura
do Estado, aplicando-o de forma irrestrita.
A problemática central que envolve a aplicação do princípio encontra-se nos
dispositivos das Constituições Estaduais ou leis que as regulamentam e que determinam as
eleições diretas como decorrência desta mencionada gestão democrática do ensino.
De fato, como anteriormente citado, a gestão democrática do ensino não se
resume às eleições diretas. Conforme salienta J. J. Gomes Canotilho216:

O sufrágio é um instrumento fundamental de realização do princípio


democrático. Através dele, legitima-se democraticamente a conversão da
vontade política em posição de poder e domínio, estabelece-se a organização
legitimante de distribuição dos poderes, procede-se a criação do “pessoal
político” e marca-se o ritmo da vida política de um país. Daí a importância do
direito de voto como direito estruturante do próprio princípio democrático e a
relevância do procedimento eleitoral justo para a garantia da autenticidade do
sufrágio.

O conceito amplo de democracia traz também a amplitude da participação


popular. Os argumentos do Supremo Tribunal Federal que pautam a inconstitucionalidade
das normas que prevêem as eleições diretas para dirigentes de instituição de ensino públicas

216 CANOTILHO, op.,cit., p. 288.

~ 339 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

baseiam-se no conflito com outros dispositivos constitucionais que, segundo sustentam


seus Ministros, deveriam sobrepor-se ao princípio da gestão democrática.
O principal deles encontra-se nas disposições dos artigos 37, inciso II e 84, incisos
II e XXV, todos da Constituição Federal que se relacionam, respectivamente, com a
investidura de cargos da administração pública direta e indireta e a direção da administração
pelo Chefe do Executivo.
Segundo referidos dispositivos, os cargos da Administração Pública somente
comportam dois tipos de provimento. O primeiro deles é o concurso público e o segundo,
a nomeação de cargo em comissão, competência exclusiva, em se tratando de direção
escolar, do Chefe do Executivo, o que decorre da sua competência para prover e extinguir
cargos públicos.
Aliás, outra questão levantada nas decisões da Corte é que as eleições diretas
inviabilizariam a demissão ad nutum, própria dos cargos de confiança e em comissão,
afastando, mais uma vez, a atuação do Chefe do Executivo.
Os cargos devem ser providos por concurso e, neste caso, a demissão decorre do
devido processo administrativo ou, por nomeação do Chefe do Executivo, que pode
demitir a qualquer tempo. Contudo, se provido mediante eleições diretas, qual o titular do
direito à destituição do cargo? Sem dúvida, o eleitor.
A incompatibilidade arguida, portanto, é material. Ou seja, conflitam os princípios
que regem a Administração Pública e a gestão democrática do ensino, ambos previstos
constitucionalmente.
A escolha do Supremo Tribunal Federal, buscando a harmonização, foi a de
sobrepor às regras que prevêem as formas de provimento dos cargos públicos.
Contudo, as regras da Administração Públicas são gerais para todo o
funcionalismo e os princípios do ensino, resumem-se à educação. Não é regra geral de
hermenêutica jurídica que norma especial se sobrepõe à geral?
Além disso, a nosso sentir, não há incompatibilidade entre as regras, mas, sim,
uma situação em que o Supremo Tribunal Federal parte de premissa equivocada, qual seja,
a de que não há a possibilidade de que o Sistema de Ensino, nos termos da lei (que pode
ser a Constituição dos Estados), criar, se assim entender, diante do exercício do Poder
Constituinte Decorrente, nova forma de provimento de cargo para diretor de instituição de
ensino, notadamente a realização de eleições diretas.

~ 340 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal217, reiterado em diversas


Ações Diretas de Inconstitucionalidade, a gestão democrática pode ser exercida de diversas
formas, não se justificando, contudo, eleições diretas, que afrontam diretamente os
dispositivos referentes ao provimento de cargos públicos.
Neste ponto, oportunas as palavras do Ministro Carlos Velloso no julgamento da
ADI 123-0-Santa Catarina, em 03 de fevereiro de 1997:

Pessoalmente, penso que o sistema de eleição de diretoras de escolas públicas


não é o melhor e de democrático só tem a aparência. O que se exige de um
diretor de escola é o saber abrangente de uma série de questões científicas e do
conhecimento humano. A eleição, por parte de toda comunidade – professores,
alunos, pais de alunos, servidores – muita vez tem presente menos o
conhecimento científico e mais a capacidade de agradar e de fazer promessas
vazias.

O voto do Ministro Carlos Velloso, todavia, não se refere a um problema adstrito


à democracia formalizada nas instituições de ensino. Ninguém desconhece que as eleições
diretas podem conter carga de promessas, sejam vazias ou concretas, mas esse problema
está no desvio da legitimidade democrática, está nos candidatos mal intencionados e não no
sistema escolhido.
A tendência, após estudo dos julgados sobre o tema, é a reiteração, por parte dos
Ministros, dos argumentos utilizados nos acórdãos precedentes218. Vale citar, inclusive, que
a segurança jurídica trazida pela jurisprudência assente do Supremo, é citada como
argumento para a suspensão da vigência de dispositivos que prevêem as eleições diretas dos
dirigentes escolares, conforme se denota, por exemplo, no voto do Ministro Cezar Peluso,
ao apreciar a medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.997-Rio de
Janeiro.

217 Acórdãos e votos de relatoria dos Ministros Cezar Peluzo, Celso de Mello, Octavio Gallotti, Carlos
Velloso, Néri da Silveira, Maurício Correa, Paulo Brossard e Sydney Sanches.
218 Outro exemplo, na mesma linha de interpretação, refere-se à nomeação do Diretor-geral do Colégio Pedro

II, mantido na órbita federal por força do artigo 242, § 2º do texto constitucional, conforme ementa:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. COLÉGIO PEDRO II. NOMEAÇÃO
DO DIRETOR-GERAL. GESTÃO DEMOCRÁTICA NO ENSINO PÚBLICO. INTERPRETAÇÃO
DO ARTIGO 20 DA LEI 5758/71. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ARTIGO 37, INCISO V: REGRA
NÃO AUTO-APLICÁVEL. RECONDUÇÃO AO CARGO POR UMA VEZ. DIREITO ADQUIRIDO:
INEXISTÊNCIA. 1. A Constituição Federal, ao preconizar a gestão democrática no ensino público, remeteu
à lei ordinária a forma, as condições e os limites acerca do seu cumprimento. 2. A Congregação tem o dever
de sugerir ao Presidente da República seis candidatos ao cargo de Diretor-Geral do Colégio Pedro II, não
estando o Chefe do Poder Executivo adstrito à lista sêxtupla. Inteligência da expressão "de preferência"
contida no § 1º do artigo 20 da Lei 5758/71. 3. Cargos em comissão a serem preenchidos por servidores
efetivos. A norma inscrita no artigo 37, V, da Carta da República é de eficácia contida, pendente de
regulamentação por lei ordinária. 4. Compatibilidade do ato impugnado com o § 2º do artigo 20 da Lei
5758/71, que veda a recondução sucessiva e não a manutenção do Diretor-Geral no cargo por mais uma vez.
Segurança denegada. (RMS 24287, Relator: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em
26/11/2002, DJ 01-08-2003 PP-00142 EMENT VOL-02117-40 PP-08641).

~ 341 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Assim, especialmente no âmbito da apreciação da liminar, sob o argumento da


jurisprudência já sedimentada, a questão não é reexaminada, sendo repetidos argumentos
anteriormente levantados.
Vale ainda ressaltar que os Ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence
possuem entendimentos divergentes sobre o assunto, defendendo a constitucionalidade das
eleições diretas, mas mesmo estes, em sede liminar, costumam suspender a vigência da
norma, sob o fundamento da segurança jurídica das decisões da Corte.
Ocorre que, em se tratando de princípios, eles devem pautar toda a interpretação
e também a atividade legiferante sobre o assunto e, nas palavras do próprio então Ministro
Sepúlveda Pertence219:

Entendo que à regra geral da competência do Chefe do Poder Executivo para


prover os cargos públicos e, de modo especial, para prover livremente os cargos
em comissão, se antepõe, no caso, uma regra especial, a do art. 206, VI, da
Constituição, a prever a ‘gestão democrática do ensino público, na forma da lei’.
Creio que esse dispositivo permite ao legislador ordinário experimentar formas
de participação da comunidade escolar na escolha da direção dos
estabelecimentos.

Considera, portanto, a nosso ver, acertadamente, que o princípio da gestão


democrática do ensino não colide com a forma de provimento de cargos públicos prevista
no texto constitucional.
Quando a Constituição de 1988 previu que o ensino seria ministrado com base na
gestão democrática, “na forma da lei”, ampliou a possibilidade de a norma
infraconstitucional prever outras formas de participação popular, uma vez que não é
vedado “à lei” proceder à previsão de novas formas de atuação da comunidade e de
efetivação desta gestão.
E, ainda, no mesmo julgamento, quando o Ministro Sepúlveda Pertence foi
questionado pelo Ministro Nelson Jobim se a gestão poderia ser democrática, ainda que se
efetivasse sem a participação do Executivo, na medida em que o Provimento de cargos
seria de competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo, respondeu:

Mesmo sem a participação do Executivo. Aliás, é notório, na história da


democracia americana, que a democracia local teve início precisamente nas
eleições das direções escolares. Temos que dar algum sentido útil a um
dispositivo, este sim, votado pela Constituinte.

219 Constante da revisão de apartes dos Srs. Ministros Sepúlveda Pertence, Nelson Jobim e Cezar Peluso no
julgamento da Medida cautelar, ADIN 2.997-5.

~ 342 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Depreende-se que a posição do Ex-ministro Sepúlveda Pertence era clara: é


possível, para se aplicar o princípio da gestão democrática do ensino, nova forma de
provimento de cargo para dirigente de instituição de ensino pública.
Por sua vez, o Ministro Marco Aurélio 220 argumenta que, tendo em conta que o
provimento de cargos pelo Chefe do Poder Executivo deve dar-se nos termos da lei, não
há qualquer vício na norma da Constituição estadual que estabelece que o provimento de
Cargos de Dirigentes Escolares dê-se mediante eleições diretas.
Como negar que a Constituição Estadual tem força de lei? Nessa linha, vale citar
trecho do voto do Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento da ADI 123-O, com
observação deveras interessante, em que menciona o decidido na Representação de
Inconstitucionalidade nº 1.473221, julgada ainda sob a égide da Constituição Federal de
1969, assim ementada:

Representação de inconstitucionalidade. Nomeação para cargo em comissão de


diretor de escola pública, mediante eleição pelos professores, alunos e pais de
alunos. Sendo o cargo em comissão conformado a confiança do poder
nomeante, não se conciliam a livre nomeação com a escolha por eleição. A
Constituição limita o provimento dos cargos públicos às formas previstas no
artigo 97, parágrafos 1º e 2º, não deixando margem a que seja criado processo
eletivo para os cargos em comissão. Não tendo as escolas públicas de primeiro
grau a autonomia administrativa e financeira conferida à Universidade, não há
que cogitar da investidura em seus cargos de direção por eleição. Representação
julgada procedente e declarada inconstitucional o artigo 1º da Lei n º 6.709, de
12 de setembro de 1985, do Estado de Santa Catarina.

O voto proferido pelo Ministro Carlos Madeira ainda esclarece que “não tendo as
escolas públicas de primeiro grau a autonomia administrativa e financeira conferida à Universidade, não há
que cogitar da investidura em seus cargos de direção por eleição”.
Contudo, procedendo-se com o que o Ministro Sepúlveda Pertence denomina de
“interpretação retrospectiva da Constituição”222, a invocação do artigo 37, inciso II, como
impossibilitante das eleições diretas nas instituições públicas de ensino, se coaduna com a
Carta Constitucional pretérita. Porém, ao introduzir o dispositivo que prevê como princípio
a gestão democrática do ensino, o artigo 206, inciso VI, da Constituição Federal de 1988,
autorizou nova modalidade de provimento de cargos de gestão dos estabelecimentos de
ensino.

220 ADI 123-0 SC e ADI 640-MG.


221 Rp 1473, Relator: Min. CARLOS MADEIRA, TRIBUNAL PLENO, julgado em 14/09/1988, DJ 14-10-
1988 PP-26380 EMENT VOL-01519-01 PP-00035.
222 ADI 123-0, p. 25: Consiste em amoldar-se a Constituição nova aos assentamentos da ordem constitucional

pretérita, de modo a que, não obstante a mudança, tudo continue exatamente como era.

~ 343 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

O dispositivo inserido pelo poder constituinte originário deve prevalecer em


relação às regras inerentes à Administração Pública, por sustentar o regime próprio do
direito educacional.
A interpretação sustentada pelo Supremo Tribunal Federal, que impossibilita a
adoção de eleições diretas para dirigentes de instituição de ensino públicas, se identificava
com a da Carta de 1967, uma vez que exclui a gestão democrática do ensino como
princípio que deve nortear todo o Sistema Educacional, bem como enfraquece o
federalismo cooperativo223, restringindo a autonomia dos Estados Membros.
Neste ponto, importante salientar, como bem observa Leonardo Marins224, na
análise dos limites ao princípio da simetria constitucional, que a Constituição de 1988:
“buscou resgatar o federalismo cooperativo da Constituição de 1946. À medida que a
Ditadura Militar retirou dos Estados Membros toda a sua autonomia, o esforço do
constituinte originário dirigiu-se precipuamente, em restabelecer as competências locais.”
E, ainda, o mesmo autor conclui225, ecoando aos argumentos do presente artigo:

A capacidade de expedir mandamentos de organização, preencher e


desenvolver o ordenamento jurídico dos entes políticos deve derivar do sistema
constitucional como um todo, e qualquer ingerência de um ente sobre o outro
deve ser regularmente sanada pela Corte Constitucional – cujo papel é
exatamente a guarda dos valores contidos na Constituição.
Oportunamente, será visto que nem sempre o Supremo Tribunal Federal tem
exercido essa atividade adequadamente. Ao contrário, seu ativismo caminha na
contramão da descentralização de poderes, sobretudo no que tange à liberdade
de atuação do Poder Constituinte Decorrente. Sob o fundamento de que
devem ser preservados dos princípios contidos na Constituição (art. 25) o
Supremo Tribunal Federal tem esvaziado o federalismo brasileiro, o que
impede que os Estados membros exerçam regularmente a sua autonomia.

Quanto à regulamentação da matéria por parte dos Estados Membros, vale


ressaltar que as Constituições dos Estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais,
Paraíba, Piauí, Rio Grande do Sul e Sergipe repetem exatamente as palavras da
Constituição Federal no que se refere à gestão democrática do ensino.
A Constituição do Acre226 acresce a necessidade da gestão democrática ao ensino
privado, decisão mais acertada na visão de José Afonso da Silva 227, na medida em que os

223 O federalismo cooperativo se contrapõe ao federalismo centralizado, neste os membros se submetem ao


controle total e centralizador do Estado Nacional, por sua vez, o federalismo cooperativo importa em certa
autonomia aos Estados de gestão e financiamento. A escolha constituinte pelo federalismo cooperativo resta
clara pela análise dos artigos 23 e 24 da Constituição Federal que estabelece as competências comuns e
concorrentes entre União e os Estados da Federação.
224 MARINS, Leonardo. Limites ao Princípio da Simetria Constitucional. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira

de; SARMENTO, Daniel e BINENBOJM, Gustavo (coord.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2009, p. 697.
225 MARINS, op.cit., p. 699.

~ 344 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

princípios que regem o ensino se aplicam tanto ao ensino privado como ao público, a teor
do disposto no artigo 209 da Constituição Federal de 1988.
Por sua vez, a Constituição de Pernambuco elenca em seu artigo 178, inciso VII,
o princípio da gestão democrática nas escolas públicas e, mais adiante, em seu artigo 183,
esclarece que “a lei assegurará às escolas públicas, em todos os níveis, a gestão democrática,
com participação de docentes, pais, alunos, funcionários e representantes da comunidade”.
O parágrafo único ainda esclarece que “a gestão democrática do ensino público será
consolidada através dos Conselhos Escolares”.
Na Constituição do Rio Grande do Sul, embora o artigo 197, inciso VI, tenha
apenas disposto acerca da gestão democrática do ensino público, o artigo 213, § 1º, deste
diploma, inovou ao determinar que “os diretores das escolas públicas estaduais serão
escolhidos, mediante eleição direta e uninominal, pela comunidade escolar, na forma da
lei”.
As leis gaúchas foram editadas em 1991 (Leis estaduais nºs 9.233/91 e 9.263/91)
e, em conjunto com o dispositivo constitucional estadual, foram declaradas
inconstitucionais, nos termos da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 578, de
relatoria do Ministro Maurício Corrêa, nos termos da ementa abaixo transcrita, cujos
fundamentos do voto serão objeto de análise mais adiante:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.


CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, ARTIGO
213, § 1º. LEIS GAÚCHAS NºS 9.233/91 E 9.263/91. ELEIÇÃO PARA
PROVIMENTO DE CARGOS DE DIRETORES DE UNIDADE DE
ENSINO. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. É competência privativa do
Chefe do Poder Executivo o provimento de cargos em comissão de diretor de
escola pública. 2. Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, artigo 213, §
1º, e Leis estaduais nºs 9.233 e 9.263, de 1991. Eleição para o preenchimento de
cargos de diretores de unidade de ensino público. Inconstitucionalidade. Ação
Direta de Inconstitucionalidade procedente.228

Na mesma linha, foram declarados inconstitucionais dispositivos que previam


eleições diretas para dirigentes escolar, das Constituições dos Estados do Amazonas 229,
Mato Grosso230, Minas Gerais231, Paraná232, Rio de Janeiro233 e Santa Catarina234.

226 Art.190. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: [...] VII. gestão democrática do
ensino público e privado, na forma da lei.
227 SILVA, op. cit., p. 789.
228 ADI 578, Relator: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 03/03/1999, DJ 18-05-2001

PP-00429 EMENT VOL-02031-01 PP-00068.


229 ADI 490, Relator: Min. OCTAVIO GALLOTTI, Tribunal Pleno, julgado em 03/02/1997, DJ 20-06-1997

PP-28466 EMENT VOL-01874-01 PP-00093 RTJ VOL-00163-01 PP-00015.


230 Pet 518, Relator: Min. ILMAR GALVÃO, TRIBUNAL PLENO, julgado em 30/10/1991, DJ 06-12-1991

PP-17825 EMENT VOL-01645-01 PP-00119 RTJ VOL-00138-01 PP-00045.

~ 345 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Quanto ao Estado de Rondônia, a situação foi semelhante, na medida em que,


embora não tenham sido previstas eleições diretas em seu texto constitucional, as mesmas
foram objeto de lei específica, a qual também foi afastada em razão da alegada
inconstitucionalidade da matéria235. Em relação à Constituição do Paraná, o texto original
previa:

Art. 178. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
[...]
VII - gestão democrática e colegiada das instituições de ensino mantidas pelo
Poder Público estadual, adotando-se sistema eletivo, direto e secreto, na
escolha dos dirigentes, na forma da lei.

Curiosamente, em 24 de abril de 2000, a Emenda Constitucional nº 07 revogou o


inciso VII do art. 178, renumerando o inciso seguinte, para prever:

VII - asseguramento da pluralidade de oferta de ensino de língua estrangeira na


rede pública estadual de educação.

Na Constituição do Estado do Paraná, não há atualmente menção à gestão


democrática do ensino.
O Estado do Ceará também é um caso único. O artigo 230, § 1º 236 de seu texto
constitucional teve sua eficácia suspensa237, sob os mesmos fundamentos dos demais casos,

231 A lei 10.486/91 do Estado de Minas Gerais regulamentou o dispositivo da Constituição e ambos foram

declarados inconstitucionais. ADI 640, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Relator p/ Acórdão: Min.
MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 05/02/1997, DJ 11-04-1997 PP-12177 EMENT VOL-
01864-01 PP-00090.
232 ADI 606, Relator: Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 25/03/1999, DJ 28-05-1999

PP-00003 EMENT VOL-01952-01 PP-00028.


233 ADI 2997 MC, Relator: Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 29/10/2003, DJ 06-02-2004

PP-00022 EMENT VOL-02138-04 PP-00778 e ADI 2997, Relator Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno,
julgado em 12/08/2009, DJe-045 DIVULG 11-03-2010 PUBLIC 12-03-2010 EMENT VOL-02393-01 PP-
00119.
Em relação ao Rio de Janeiro houve também a discussão acerca da iniciativa da lei regulamentadora que
previu as eleições diretas para os cargos dos dirigentes das instituições de ensino. A referida lei foi de
iniciativa do então deputado Carlos Minc. Entendeu o STF que haveria inclusive vício de iniciativa, uma vez
que o provimento de cargo público é de iniciativa exclusiva do chefe do executivo.
234 ADI 123, Relator: Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/02/1997, DJ 12-09-1997

PP-43713 EMENT VOL-01882-01 PP-00001 RTJ VOL-00163-02 PP-00439.


235 Lei Complementar Estadual nº 36/90, artigo 4º, § 2º. ADI 387 MC, Relator Min. CELSO DE MELLO,

Tribunal Pleno, julgado em 01/03/1991, DJ 11-10-1991 PP-14247 EMENT VOL-01637-01 PP-00084 RTJ
VOL-00135-03 PP-00905.
236 Art. 230. O Conselho de Educação do Ceará, órgão normativo, consultivo e deliberativo do sistema de

ensino do Estado do Ceará, será entidade autônoma e constituir-se-á em unidade orçamentária e de despesa.
§ 1º O Conselho de Educação do Ceará será integrado por educadores, indicados na seguinte proporção: um
terço pelo Secretário de Educação do Ceará e dois terços pelo Legislativo.
237 EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
CONSTITUIÇÃO DO CEARÁ, art. 230, § 1º. NOMEAÇÃO DE MEMBROS PARA O CONSELHO DE
EDUCAÇÃO. I. - As nomeações para os cargos da Administração, ressalvadas as hipóteses inscritas na
Constituição, são da competência do Chefe do Poder Executivo (C.F., art. 84, XXV), facultadas as delegações

~ 346 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

impossibilidade de nomeação de cargos por pessoa outra que não o chefe do Executivo.
Contudo, não há, na Constituição do referido Estado, previsão para eleições diretas, mas
sim normas rígidas de composição do Conselho de Educação.
Outra questão que se coloca é saber se, na qualidade de norma principiológica,
seria a gestão democrática do ensino público norma de repetição obrigatória nas
Constituições dos Estados Brasileiros?
A referida discussão não está contida expressamente nos argumentos das ações
em curso no Supremo Tribunal Federal, que versam sobre a gestão democrática do ensino,
embora a ADI 340, que declarou a inconstitucionalidade do dispositivo da Constituição de
Minas Gerais, conforme já salientado, tenha servido de exemplo a Leonardo Marins de
aplicação, pelo Supremo Tribunal Federal, do denominado princípio da simetria 238, que
constitui na necessidade de identidade absoluta entre a norma central da Constituição
Federal e o ordenamento estadual.
A certeza é que, para os que repetiram o texto constitucional, a vigência e eficácia
foram preservadas, aos que inovaram, a inconstitucionalidade foi certeira.
Todavia, mais uma questão deve ser salientada: a gestão democrática do ensino
visa, sem dúvida, à ampliação da participação popular. Nesta linha, o próprio Supremo
Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que o princípio constitucional do sufrágio
direto, como um “mandamento de otimização” deve ser realizado na maior medida
possível, mas dentro das circunstâncias históricas e jurídicas vigentes.239
As decisões de inconstitucionalidade não seriam, portanto, incongruentes com a
necessidade de se ampliar a participação popular?
Vale lembrar que, a Constituição, nos termos do artigo 60, pode ser emendada
mediante proposta: “I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados
ou do Senado Federal; II – do Presidente da República; III – de mais da metade das
Assembleias Legislativas nas unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela
maioria de seus membros”.

indicadas no parágrafo único do mesmo artigo 84, C.F. II. - Cautelar deferida para suspensão da eficácia, no §
1º do art. 230 da Constituição do Ceará, que cuida da nomeação dos membros do Conselho de Educação, das
expressões: "indicados na seguinte proporção: um terço pelo Secretário de Educação do Ceará e dois terços
pelo Legislativo".
(ADI 143 MC, Relator: Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 06/05/1993, DJ 30-03-2001
PP-00080 EMENT VOL-02025-01 PP-00001).
238 O princípio da simetria é tratado em diversos julgados do Supremo Tribunal Federal, v. g. ADI 1353/RN,

Relator: Ministro Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJU de 16/05/2003; ADI 738/GO, Relator: Ministro
Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJU de 07/02/2003 e RE 223037/SE, Relator: Ministro Mauricio Corrêa,
Tribunal Pleno, DJU de 02/08/2002).
239 ADI 4298 MC, Relator: Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 07/10/2009, DJe-223

DIVULG 26-11-2009 PUBLIC 27-11-2009 EMENT VOL-02384-01 PP-00093.

~ 347 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Por outro lado, as Constituições dos Estados do Acre, Alagoas, Amapá,


Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Sul,
Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe previram a possibilidade de serem emendadas
por iniciativa popular.
Referidos dispositivos ainda não foram objeto de declaração de
inconstitucionalidade (se é que serão). O Supremo Tribunal Federal ainda não se
manifestou sobre o tema. Espera-se que o entendimento seja o de ausência de
inconstitucionalidade em dispositivo de texto constitucional decorrente que amplia a
participação popular.
Outrossim, para encerrar o presente tópico, vale citar as curiosas palavras do
Ministro Francisco Rezek:

[...] ainda que se admita que a intenção de normas dessa natureza seja generosa
e, quem sabe, progressista, o que aqui se encontra é um aberto desafio à lógica
constitucional e ao próprio princípio democrático. Numa instituição pública de
ensino, onde tudo rigorosamente depende do tesouro público, onde tudo é pago
por recursos tomados ao contribuinte e administrados pelo Estado, não se
compreende que as pessoas que em determinado momento ocupam funções
docentes, ou lá se encontram realizando seus estudos ou prestando trabalho
administrativo, assumam essa prerrogativa autárquica. Teríamos aí uma
instituição autárquica financiada por outrem. Teríamos uma forma sutil e curiosa
de soberania universitária – numa universidade, entretanto, que não se
sustenta, porque depende do tesouro público. Depende, portanto, daquela
comunidade contribuinte que se confunde com o colégio eleitoral que conduziu
ao poder as pessoas às quais o sistema confere a prerrogativa de fazer essa
escolha. (grifei) 240

Vale lembrar que alguns dispositivos das constituições estaduais referiram-se a


eleições para escolha de dirigentes das universidades, mas estes não foram objeto de
arguição de inconstitucionalidade, a exemplo da Constituição de Santa Catarina 241, cuja
ADI 123-0, que declarou a inconstitucionalidade para as eleições diretas de dirigentes de
ensino, limitou-se ao artigo 162242, a proteção encontra amparo na autonomia universitária,
também conferida constitucionalmente.
Vale ressaltar que o princípio da gestão democrática do ensino rege toda a
estrutura da educação nacional. Contudo, às instituições de ensino superior, ou seja, às

240 ADI 123-0 – SC e ADI 490-AM.


241 Art. 169: As instituições universitárias do Estado exercerão sua autonomia didático-científica,
administrativa e de gestão financeira e patrimonial na forma de seus estatutos e regimentos, garantida a gestão
democrática do ensino através de:
I - eleição direta para os cargos dirigentes.
242 Art. 162: O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

[...]
VI- gestão democrática do ensino público, adotado o sistema eletivo, mediante voto direto e secreto, para
escolha dos dirigentes dos estabelecimentos de ensino, nos termos da lei.

~ 348 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

universidades foi concedida, pelo texto constitucional, uma autonomia própria, a fim de
assegurar a liberdade de aprender e ensinar.

4. CONCLUSÕES

O Estado Social e Democrático de Direito é um modelo consolidado em nossa


Constituição. Participação, emancipação, educação, liberdade e igualdade caminham juntas
para o desenvolvimento humano e social.
Gerir significa carregar, chamar a si, administrar, exercer, executar. A gestão para
ser democrática pressupõe participação. Participar, por sua vez, é ter ou tomar parte em.
Assim, democracia participativa é um pleonasmo. Não existe democracia sem participação
e esta não se resume, por certo, à possibilidade de escolha de seus dirigentes, mas
pressupõe o diálogo, a abertura, a possibilidade de interferir, sugerir, questionar. Não há
dúvidas que os Conselhos Estaduais e Municipais se prestam ao papel democrático, porém,
se o Poder Constituinte albergou como princípio a gestão democrática do ensino, por que
não o interpretar de maneira ampla, de maneira a possibilitar as diversas formas de
instrumentalização da Democracia, como a mais evidente: o voto.
Assim, se o Poder Constituinte Decorrente, que é a manifestação do povo daquele
Estado Federado, definiu as eleições diretas como forma de gestão democrática, como
concluir que os dispositivos constitucionais que regem a Administração Pública se
sobrepõem à possibilidade de voto? De escolha?
Além disso, “se uma Constituição é o que dela fazem os seus intérpretes, todo e
qualquer processo educacional é o que dele fazem os seus agentes. E, quando a imagem
modelada emerge, tudo o que eu desejo é que ela contribua para o processo de
emancipação vivenciado por cada um de nós em seu cotidiano”243.
No processo educacional e no caminho trilhado pelo Estado Brasileiro, a única
conclusão possível na interpretação da Constituição é o primado máximo de que “Todo
Poder emana do Povo”.

REFERÊNCIAS

243FRAGALE FILHO, Roberto. Educação e Constituição. In: QUARESMA, Regina; OLIVEIRA, Maria
Lúcia de Paula (Cord.). Direito Constitucional Brasileiro: perspectivas e controvérsias contemporâneas, Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 695.

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OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula (Coord.). Direito Constitucional Brasileiro: perspectivas e
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MORIN, Edgar. Sete saberes necessários à educação do futuro. Disponível em:


<http:www.portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/EdgarMorin.pdf>. Acesso em: 07 jan.
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SMANIO, Gianpaolo Poggio. A conceituação da cidadania brasileira e a Constituição


Federal de 1988. In: Moraes, Alexandre de (org.). Os 20 anos da Constituição da República
Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, 2008.

~ 351 ~
DEMOCRACIA E REPRESENTATIVIDADE EM UM
PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO:
BREVE ANÁLISE DO CASO BRASILEIRO

Lizziane Souza Queiroz Franco de Oliveira*


Gustavo César Machado Cabral**

1. INTRODUÇÃO

No ano de 2018, a Constituição da República Federativa do Brasil comemora 30


anos de vida (ou sobrevida?). Muitas foram as conquistas mas não o suficiente para garantir
tantos dos direitos que em seu corpo foram contemplados. O estudo de seus dispositivos
deve ser constante pois a Constituição segue sendo interpretada diariamente. As intricadas
relações entre os poderes estabelecida e seu contexto democrático, por exemplo, é um tema
que merece total atenção à luz dos acontecimentos contemporâneos.
A democracia como uma forma de exercer o poder em Estados é um conceito
antigo, mas os problemas a ela relacionados são atuais e cada vez mais presentes. Uma
sociedade complexa e heterogênea em suas relações sociais, a priori, é o cerne de inúmeros
destes problemas que atualmente os cientistas políticos devem lidar, especialmente, no
quesito de exercício deste poder por esta mesma sociedade.
As relações institucionais observadas no cenário político brasileiro atual denotam
certa insegurança nos rumos que o país possa tomar. A crise econômica e política agrava
ainda mais a situação, quando se revela que interesses privados tem se sobreposto aos
interesses públicos.
A relação que há entre Poder Executivo e Poder Legislativo coloca em cheque o
denominado presidencialismo de coalizão; não há uma “harmonia” entre poderes, mas uma
disputa política por poder que desestabiliza toda organização estatal. Neste contexto, há
que se pensar: como o presidencialismo de coalizão pode explicar a instabilidade que se
observa nas relações institucionais hoje no país? Será que o presidencialismo de coalizão
ainda é o meio adequado para a relação entre os poderes executivo e legislativo?

* Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Professora de Direito Constitucional e
Financeiro na Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA.
** Doutor em História do Direito pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutor pelo Max-Planck-Institut für

europäische Rechtsgeschichte (Alemanha). Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceara – UFC.

~ 352 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

No presente artigo, buscará analisar, de modo sucinto, como a democracia


representativa se apresenta em sociedades complexas, especialmente no que se refere à
atuação dos partidos políticos, via utilizada para tornar viável a representatividade.
Outrossim, esta análise servirá de mote para o debate sobre o presidencialismo de coalizão.
Ao fazer as devidas considerações sobre o exercício este regime político, pretende-se
analisar como a relação entre poderes executivo e legislativo pode ser viabilizada mediante
coalizões entre partidos. Em seguida, será analisado, de modo sucinto, o presidencialismo
de coalizão que ocorre no Brasil e a atual relação entre o executivo e o legislativo nacionais
sob a ótica desses arranjos institucionais.
Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica com análise crítica de alguns
institutos essenciais, como democracia, representatividade e presidencialismo, tendo sido
um referencial teórico sobre o qual serão trabalhadas as ideias aqui apresentadas.

2. DEMOCRACIA E REPRESENTATIVIDADE EM SOCIEDADES


COMPLEXAS: UMA BREVE ANÁLISE

Democracia não é uma palavra de fácil definição. Talvez nem sequer possa
afirmar que uma só uma expressão dê conta da imensidão semântica que o termo demanda.
Giovanni Sartori (1987, p. 17) alerta que “ideias erradas sobre democracia fazem a
democracia dar errado”. Para o autor, “definite la democrazia è importante perché
stabilisce cosa ci aspettiamo dalla democrazia” (2007, p. 11).
Teóricos políticos buscam nas reminiscências históricas do termo alguma pista do
que viria a ser democracia. Bobbio (2003), por exemplo, se dedica a descrever democracia
percorrendo a evolução etimológica da palavra – kratos– poder e dêmos – povo. Conclui que
“a democracia dos antigos se distingue da dos modernos pela maneira como o povo exerce
o poder” (2003, p. 235).
Democracia como o poder do povo é a mais simples conotação que se possa
empregar ao termo, e talvez a mais fidedigna. Os desdobramentos desta definição a partir
dos problemas do cotidiano ensejam maiores teorizações acerca do tema. Por exemplo,
como se dá o exercício deste poder pelo povo? A partir da delimitação de espaço e tempo,
o exercício deste poder pode se dar diretamente, na praça, como faziam os gregos antigos;
ou por meio de representantes, nos Estados modernos. É sobre esta definição de
democracia que iremos nos debruçar neste trabalho: o poder exercido pelo povo, por meio
de representantes; a denominada democracia representativa.

~ 353 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A democracia representativa retira seu fundamento de legitimidade pelo


movimento ascendente do poder – vislumbrando o sistema de poder como uma pirâmide.
O oposto a esse movimento seria o que se denomina autocracia, pois o poder emana do
superior como imposição para os que se encontrariam, supostamente, em um nível inferior
desta pirâmide. Para Bobbio (2003, p. 236) “é legítimo o poder que em ultima instancia
repousa no consentimento daqueles que são seus destinatários”. No caso da democracia
representativa, o consentimento se expressa por meio de intermediários, os denominados
representantes, diferentemente da democracia direta, cujo consentimento se dá sem
mediações.
A democracia representativa foi o meio encontrado para que pudesse haver
exercício deste poder voltado à organização e satisfação de interesses comuns. Não é tão
difícil imaginar o exercício do poder diretamente em pequenas comunidades ou em tempos
remotos, cujo núcleo social restringia-se a poucas pessoas. No entanto, pensar a
democracia dos tempos atuais em um plano mais amplo – o nacional, por exemplo, leva-se
a crer na inviabilização deste sistema de governo244. Neste cotejo, o problema que surge é
quais interesses serão satisfeitos, quais benefícios serão concedidos, como tomar decisões
em prol de toda uma comunidade.
A democracia, como um ideal de poder do povo exercido pelo povo, carrega em
si a concepção de igualdade, ou seja, de que todos são iguais em seu nascimento, todos são
seres humanos; portanto, qualquer pessoa estaria legitimada a exercer este poder (BOBBIO
2003, p. 238). Inclusive, por este princípio norteador que a democracia foi, durante muito
tempo, apontada como uma péssima forma de governo. Mas essa dicotomia desaparece
com o avançar da história, chegando aos dias atuais a ponto de considerar os regimes
democráticos como a continuação dos Estados Liberais; passou-se a entender que a
igualdade tinha a ver também com os direitos de liberdade.

Hoje a interdependência entre a liberdade liberal e a democrática é tal que há


boas razoes históricas para considerar que: (a) a participação democrática é
necessária para salvaguardar as liberdades civis; (b) a proteção dos direitos de
liberdade é necessária para uma correta e eficaz participação. (Bobbio, 2003, p.
238)

Nesta perspectiva, a democracia passa a se consolidar como uma forma de


governo na qual o povo exerce o poder por meio de seus representantes (no caso da

244Cumpre ressaltar que não se está aqui a afirmar que a democracia é inviável em sua mais pura forma.
Acredita-se que em planos menores, como o municipal ou até mesmo em conselhos comunitários, por
exemplo, a democracia em sua modalidade participativa é viável e pode ser eficiente.

~ 354 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

democracia representativa), pautando-se por ideias de igualdade e liberdade. Mas isto não é
garantia que as escolhas tomadas sejam as mais adequadas ou as melhores, nem se, de fato,
há uma identificação com a vontade geral do povo. Aliás, esta é a grande problemática da
democracia representativa, especialmente em sociedades complexas e heterogêneas como
são as atuais.
É natural que haja discordâncias de interesses entre os mais variados setores da
sociedade. A democracia busca lidar com tais situações de modo pacífico e não violento, a
fim de estabelecer um ambiente de convivência entre as diferenças. Um dos meios
encontrados foi o de atribuir valor a manifestação do povo e, na soma destes valores,
alguns interesses devem ceder àquele que alcançou maior valor em suas manifestações.
Atualmente, uma forma de mensuração deste valor tem sido feita por meio dovoto,
através do qual o cidadão manifesta qual representante terá direito de tomar decisões em
seu nome. Nesta disputa de interesses, há a preponderância de uns sobre os outros. Este é
o meio formal de manifestação de vontade e condução de políticas em Estados que
consideram democráticos245.
Oportuno destacar que a representatividade não é o único meio de viabilizar um
sistema de governo democrático. É equivocada a noção de que, necessariamente, todo
governo democrático deve ser representativo.
Entretanto, a necessidade de operacionalização do exercício desta soberania
popular forjou uma necessária vinculação entre o princípio democrático e o princípio
representativo. Inicia-se, assim, a era da democracia liberal na qual aqueles que se dizem
representantes do povo exercem o poder para o bem comum.
Ao analisar a democracia parlamentar, Schimitt (1996) conclui que se trata de um
regime inviável, pois acredita que a identidade entre governante e governado, que é a base
de uma democracia, não seria possível em um regime que tem como parlamento o centro
das decisões políticas. Para o jurista alemão, democracia parlamentar trata-se de conformar
dois princípios bem singulares e distintos: o da identidade, típico da democracia, e o da
representatividade, típico das monarquias.
A noção de democracia schmittiana não se coaduna com a noção de democracia
que as sociedades plurais e complexas demandam. A perfeita identificação entre
governantes e governados, com uma identidade una, é irreal para um contexto tão
complexo quanto o da modernidade. Mas as análises do jurista alemão chamam atenção de
245Há outras formas de manifestação de poder; mesmo em democracias representativas, há mecanismos de
democracia direta que possibilitam ao cidadão fazer parte do processo decisório das políticas de sua
comunidade. No entanto, como o foco do presente estudo é o da democracia representativa, dedicaremos
especial atenção a esta modalidade de democracia.

~ 355 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

que não se deve confundir representatividade com democracia, ou ainda, que não se
entenda o exercício da democracia apenas por meio da representatividade, ainda que este
seja o meio mais difundido.
A democracia representativa, largamente difundida no mundo ocidental, pode ser
vislumbrada no exercício da função legislativa, por exemplo. O parlamento é formado por
representantes, via de regra, eleitos para representar determinados grupos da sociedade.
Outrossim, se por um lado a representatividade foi a solução para administrar eventuais
conflitos, por outro passou a ser um dos grandes problemas da moderna democracia.
Aliás, a pluralidade e heterogeneidade típicas das sociedades atuais elevou,
também, “o numero de indivíduos que atuam em política ou que colaboram direta ou
indiretamente na formação das decisões coletivas isso tornou o ‘espaço político’ mais
amplo, embora mais fluido ou menos definido e com limites mais diluídos” ( BOBBIO,
2003, p. 289).
As mudanças que foram ocorrendo acarretaram novas demandas das mais
diversas ordens, especialmente a social e econômica; por conseguinte, “a multiplicação de
demandas exacerba a tendência histórica de intervenção ampliada do Estado”
(ABRANCHES, 1988, p. 6).
Por representatividade, foi disseminada a ideia de que se baseia em uma relação de
confiança dos eleitores no escolhido para representar interesses, e não de mandatário, a
qual exige fidedignidade ao mandante. Para Bobbio (2003), trata-se de uma evolução das
concepções acerca do locus da soberania.

Assim, a ideia de um Parlamento que represente os interesses gerais, não


corporativos, se acrescentam o ostracismo dos órgãos intermediários,
considerados resíduos do antigo Estado, e a afirmação de que não devem existir
mais ‘vazios políticos’ entre os cidadãos e o soberano: a soberania se desloca do
rei para o Parlamento, cabendo aos cidadãos, pura e simplesmente, escolher este
ultimo. (BOBBIO, 2003, p. 295)

Tomando como premissa a democracia representativa traçada ao longo dos anos,


é fato que o que se tem nos dias atuais é um cumprimento fiel à máxima de que não há
relação de mandato quando se fala em representatividade; o mandato parlamentar não está
vinculado em hipótese alguma aos interesses daquele que o elegeram. Há uma primazia da
representação política em detrimento à representação de interesses.
No caso da representatividade, há um intermediário entre o titular do poder
soberano e aquele que o exerce: são os partidos políticos. Criados com o intuito de agregar

~ 356 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

interesses convergentes a fim de sua melhor defesa, os partidos tem sido destaque no
cenário político de grande parte dos Estados democráticos.
Os partidos políticos são uma realidade incontestável e inevitável nas democracias
modernas (BONAVIDES, 2000, p. 455). Embora tenha havido rejeição à ideia de uma
democracia partidária, em especial pelos liberais, a acolhida constitucional nas democracias
sociais do sistema partidarista foi inevitável. Viabilizar a representatividade mediante
sistema de ideias, que não personificassem o indivíduo mas os interesses a serem
representados era o grande atrativo da proposta de uma política partidária – mas também, o
motivo de tanta resistência como na visão de Schmitt acima mencionada.
O fato é que os partidos passaram a ser utilizados como viabilização do sistema
democrático representativo. Algumas nações possuem um sistema cuja atuação partidária
se destaca em apenas duas frentes –, a exemplo do que ocorre na Inglaterra e Estados
Unidos; enquanto outros se destacam por uma atuação partidária com múltiplos partidos,
sendo denominado de multipartidarismo, como é o caso do Brasil.

Com efeito, a democracia parlamentar e representativa do liberalismo sucumbe,


conforme se deduz das observações de Heller, toda vez que, mediante o
emprego da nova técnica eleitoral, o partido político toma o lugar do indivíduo
na qualidade de titular do direito de representação proporcional. (Bonavides,
474)

O que se passou a denominar de Estado de Partidos (CHUECA RODRIGUES,


1988) tinha comopremissa que os partidos se preocupassemtornar hegemônicas suas ideias
e concepção de mundo, sem perder de vista os princípios da democracia e da disciplina
intrapartidária.
Embora os partidos políticos tenham sido a via eleita para materializar a teoria da
representatividade, não raro estes partidos se corrompem.O arranjo de interesses comuns
em prol da efetivação e conquista de ideais foi dando espaço para transações em busca da
conquista do poder, compensação pessoal e vantagens outras. As intenções de sucesso do
partido devem ser seguidas pelos seus componentes, ainda que possivelmente contrárias aos
seus pensamentos individuais – até porque acredita-se que tal hipótese não ocorre, pois as
intenções do partido contemplariam coletivamente a de seus membros.

A coação partidária modernamente restringe a liberdade do parlamentar. A


consciência individual cede lugar à consciência partidária, os interesses tomam o
passo às idéias, a discussão se faz substituir pela transação, a publicidade pelo
silêncio, a convicção pela conveniência, o plenário pelas antecâmaras, a
liberdade do deputado pela obediência semi-cega às determinações dos partidos,
em suma, as casas legislativas, dantes órgãos de apuração da verdade, se

~ 357 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

transfazem em meros instrumentos de oficialização vitoriosa de interesses


previamente determinados. No Estado partidário (Bonavides, 2000, p. 362)

Para que uma democracia funcione plenamente, é necessário que suas instituições
atuem em consonância com suas funções, observando a sua inserção em uma sociedade
plural e complexa. O debate é necessário, a manifestação de opiniões é preciso e tudo isto
só é possível se houver uma liberdade de consciência do homem político que integra estes
poderes. A arena de debates (parlamento) deve ser utilizada para que o pluralismo da
sociedade possa ter vez e voto. Se este espaço é utilizado de modo indevido, para satisfação
de interesses pessoais ou puramente partidários, há desvio de finalidade da função pública
na qual o parlamentar está investido, o que compromete, diretamente, os direitos e
garantias da sociedade.
Vivemos em sociedades plurais, complexas. As diferentes formas de agir e pensar
acarretam diferentes valores a serem considerados relevantes. A representatividade dos
diferentes grupos de uma sociedade tendem a ser viabilizados mediante representatividade
no espaço público de discussões. Na via política, a existência de diversos partidos com
linhas ideológicas diversas parece ser o caminho eleito.
No entanto, convém ressaltar que este mesmo pluralismo de valores que
predomina em uma sociedade múltipla pode vir a culminar em insatisfações de ordem geral
na política (ABRANCHES, 1988, p. 6). A bem da verdade, não se trata de um pluralismo
de valores, mas uma “disparidade de comportamentos desde as formas mais atrasadas de
clientelismo até os padrões de comportamento ideologicamente estruturados”, fruto de um
desenvolvimento econômico-social desordenado (ABRANCHES,1998, p. 6).

Preconizando essa solução, supõem ser a crise dos partidos em larga parte
determinada pela incapacidade em que se acham eles de reduzir ao interesse
geral certos anseios de classe, que ficam portanto desatendidos ou postos à
margem, quando não chegam a ser — o mais comum, aliás — indevidamente
apropriados por grupos, cuja legitimidade para representá-los é mais duvidosa
que a dos próprios partidos. (Bonavides, 2000, p. 481)

Cumpre destacar que a democracia representativa pura e simples deve ser


direcionada para um projeto de bem comum decidido pelo poder soberano. Esse projeto
está previsto na Constituição – aliás, o projeto é a Constituição, que irá definir as regras de
atuação do jogo político. Os limites à definição do que pode ser considerado como uma
atuação justa ou arbitrária são por ela traçados.
A democracia representativa por meio de partidos determina diretamente como se
dá a dinâmica da relação entre poderes, especialmente entre os poderes executivo e

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Direitos Humanos & Fundamentais

legislativo. Tendo como delimitação de espaço um Estado Democrático com forma de


governo presidencialista, os mandatos eletivos do chefe do executivo e dos membros do
parlamento se dará, mediante a escolha, pelo povo, dentre cidadãos filiados a partidos 246,
geralmente por meio de sistema majoritário ou proporcional de eleição.
No caso do Brasil, a representatividade por meio de partidos dita os rumos do
jogo político nacional. Até junho de 2016, conta-se no Brasil 35 (trinta e cinco) partidos
registrados junto ao Tribunal Superior Eleitoral – TSE. Teoricamente, estes representam os
mais diversos setores da sociedade. Destes, 28 (vinte e oito) possuem representatividade no
Congresso Nacional na legislatura que vai de 2015-2018247.
Esse multipartidarismo presenciado no Brasil reflete a heterogeneidade da
população. A tendência é que cada setor da sociedade queira ser representado por um
programa político que se coadune com seus interesses, acarretando o surgimento de novos
partidos. A consequência de sociedades com múltiplos interesses e conflitos é a de
formação de alianças que permitam maior capacidade de negociação.
Para que o Presidente da República possa por em prática seus programas de
governo, necessita da anuência do Congresso Nacional, mediante a aprovação de projetos
de lei que implementem as denominadas politicas publicas, por exemplo, para aprovar o
orçamento, dentre outros aspectos inerentes à governabilidade de um país. Assim, é
necessário que o chefe do poder executivo articule-se com os parlamentares para que possa
executar seus projetos; isto é feito mediante articulação com os partidos, no que se chama
de presidencialismo de coalizão, que será tema do tópico a seguir.

3. O PRESIDENCIALISMO NO BRASIL E AS COALIZÕES PARTIDÁRIAS

O presidencialismo como sistema de governo surge nos Estados Unidos da


América como uma alternativa ao sistema monárquico de governo. Tem como
características a conservação da separação de poderes, o exercício da função executiva com
irresponsabilidade perante o parlamento, sendo todo o poder emanado da nação mediante,
via de regra, sufrágio (BONAVIDES, 2000, p. 385).

246No caso brasileiro, exige-se filiação partidária para que se possa concorrer em uma eleição, nos termos do
artigo 14, §3o, V da Constituição Federal. No entanto, há países, como é o caso dos Estados Unidos da
América, em que o cidadão pode concorrer a cargos políticos de modo avulso, não sendo obrigada a filiação
partidária.
247Fontes Câmara dos Deputados e Senado Federal. Disponível em:
<http://www.camara.leg.br/Internet/Deputado/bancada.asp> e
<https://www.senado.gov.br/senadores/senadoresPorPartido.asp> Acesso em 12 de junho de 2016.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Mais uma vez, tem-se o princípio da representatividade no exercício do poder,


agora, na execução dos mandamentos estabelecidos pelo parlamento.
No sistema presidencialista, o chefe do executivo atua de modo independente em
relação ao legislativo; entretanto, como preza a máxima da harmonia entre poderes, é
necessário que a atuação de um poder não perca de vista os demais. Isto quer dizer que em
uma democracia representativa, com processos constitucionalmente orquestrados para que
cada poder faça parte de um todo da estrutura governamental, o exercício das funções
constitucionais exige uma atuação coordenada entre todos os poderes.
O chefe do poder executivo, no caso o/a Presidente, necessita encontrar uma via
de acesso ao poder legislativo para que possa colocar em prática seu plano de governo. As
políticas governamentais só podem ser implementadas mediante lei, elaborada pelo
legislativo.
Esta ideia de atuação coordenada entre poderes serviria, em tese, para que não
houvesse excessos no exercício de suas funções. Vislumbrar a efetividade desta máxima
teria razão de ser se afirmar que há, no mínimo, empenho de todos os poderes em prol de
um bem comum, do bem da sociedade. No entanto, enquanto o chefe do executivo é
apenas um representantedos interesses de toda uma nação, no legislativo, são diversos
representantes, vários interesses de vários segmentos que, em tese, estão sendo
representados no parlamento.
Se a tese da representação de interesses, como citada por Bobbio (2003) prevalece,
não haveria maiores problemas pois todos deveriam atentar para o bem maior da nação,
sempre buscando preservar seus interesses. No entanto, na prática, a representação cede
espaço para os arranjos políticos a fim de garantir o que se denomina de governabilidade
do presidente.
No Brasil, o sistema presidencialista foi o adotado a partir de 1889, com exceção
para o período de 1961 a 1963, no qual vigorou o regime parlamentarista. Desde então, a
condução dos rumos do país a frente do poder executivo coube a um indivíduo.
Ernest Hamblock (2000) em estudo sobre o presidencialismo brasileiro no
período de 1889 a 1934, analisa também alguns países da América do Sul e conclui que o
presidencialismo implantado abaixo da linha do equador, embora baseado no modelo
norte-americano, tem como principal característica a consolidação de alguma figura de
notória autoridade, com atuação independente em relação ao Congresso. A política
centralizadora que predominou no período pré-republicano foi consolidada de vez com a
Constituição.

~ 360 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A forma presidencialista do governo foi o resultado lógico do domínio arbitrário


dos caudillos, em forma constitucional.
[...]
O que alcançaram, na prática, foi colocar os poderes ilimitados nas mãos de um
que o Congresso não podia controlar, e que, por meio de sofismas ou da
violência, algumas vezes obedecendo à letra da Constituição e sempre traindo o
seu espírito, quando isso lhe convinha, agiu despoticamente em seu próprio
interesse e no de seus satélites, sem qualquer consideração pelas liberdades do
povo (2000, p. 37)

Esta forte tendência a centralização observada por Bloch é percebida não apenas
por quem exerce o poder executivo, mas de certo modo, pelos que exercem o poder
legislativo também. Assiste razão a Bloch quando afirma

Os fins políticos na Republica sempre forma, e não menos em épocas de


progresso material, enevoados pelas maquinações de egoístas e peculatórios,
assim como pelas aberrações de uma espécie de teologia peitoral aplicada ao
governo (2000, p. 40)

A figura do presidente era de um homem248 centralizador, totalitário, preocupado


apenas em satisfazer seus interesses, com atuação independente do Congresso, sem com ele
se importar (BLOCH, 2000). Com o excesso de competências nas mãos do executivo, o
parlamento, em estado de apatia, apenas se preocupava em garantir um outro mandato.
Em um país com presidencialismo centralizador, o legislativo deve ser mais
resistente a fim de equilibrar as instituições. Entretanto, não é o que tem se observado em
diversos momentos da história. Uma rápida análise do processo de elaboração e execução
do orçamento ao longo das constituições brasileiras, percebe-se uma tentativa de equilibrar
a dinâmica entre os poderes com uma elaboração mista de competências a cargo dos
poderes executivo e legislativo.
No entanto, o equilíbrio estava no papel, mas não na realidade; o legislativo e o
executivo oscilaram quanto ao predomínio de suas funções um sobre o outro. (SABAG,
2007; GUIMARÃES FILHO, 1999; CARVALHO ROCHA, 2008). O auge da
centralização de poder nas mãos do executivo se deu durante o período de ditadura militar,
mediante a “retirada do legislativo a prerrogativa de apresentar leis ou emendas que
criassem aumento de despesa, inclusive relativos à matéria orçamentária” (CARVALHO
ROCHA, 2008, p. 159).
Nos dias de hoje, a Constituição da República previu competências a serem

248Aquiestá caracterizada a figura do homem, no masculino, por fidedignidade à fonte utilizada. No entanto,
oportuno ressaltar que homens ou mulheres podem exercer qualquer cargo no sistema político brasileiro.

~ 361 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

exercidas harmonicamente pelos três poderes. Nos poderes executivo e legislativo, a


atuação harmônica entre eles, mais uma vez, continua no papel e pouco se vê na realidade.
Em virtude do período sombrio vivenciado pelo legislativo no período ditatorial, a
constituinte de 1985-1987 estabeleceu competências rígidas ao executivo, tendo em sua
grande maioria que atuar coordenadamente com o legislativo. Assim, a governabilidade do
poder executivo depende, em grande medida, de uma boa relação estabelecida com o poder
legislativo.
No caso brasileiro, o multipartidarismo como sistema adotado robustece ainda
mais a figura do presidente, pois aproveitando-se de partidos pequenos, oferece
oportunidade de efetivação de interesses, de modo a arregimentar forças e garantir um
mínimo de governabilidade (BONAVIDES, 2000, p. 473; FIGUEIREDO, 2012, p. 45).
Por outro lado, a falta de um relacionamento mínimo com o parlamento pode implicar
“numa casa de resistência ao executivo, que cai prisioneiro de um Congresso hostil,
dominado por maiorias facciosas e passionais, cuja ação lhes tolhe os passos à
administração e frusta-lhe o programa governativo” (BONAVIDES, 2000, p. 473-4).
O fato é queo presidente não governa sozinho. Neste cotejo, tem-se os arranjos
institucionais a fim de garantir governabilidade ao chefe do poder executivo. Como bem
observado por Sérgio Abranches, “o Brasil é o único país que, além de combinar a
proporcionalidade, o multipartidarismo e o ‘presidencialismo imperial’, organiza o
Executivo com base em grandes coalizões” (1988, p. 21), o que autor denomina de
“presidencialismo de coalizão”.

É um sistema caracterizado pela instabilidade, de alto risco e cuja sustentação


baseia-se, quase exclusivamente, no desempenho corrente do governo e na sua
disposição de respeitar estritamente os pontos ideológicos ou programáticos
considerados inegociáveis, os quais nem sempre são explícita e coerentemente
fixados na fase de formação da coalizão (ABRANCHES, 1988, p. 27)

No caso brasileiro, as coalizões se formam a partir de dois eixos: o partidário e o


regional, este ultimo a partir da política de governadores. Para Abranches, a coalizão
promovida pelo executivo tem por foco partidos que lhe permitam controlar a maioria
qualificada, apta a promover ou bloquear mudanças constitucionais (1988, p. 22). Nessas
coalizões, são “negociadas” entre os partidos pastas dos diversos ministérios à disposição
do executivo. Assim, cada partido que anui com a coalizão toma parte no comando dos
principais assuntos do governo nacional.

~ 362 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

No sistema parlamentar do moderno Estado partidário, o multipartidismo


conduz inevitavelmente aos governos de coligação, com gabinetes de
composição heterogênea, sem rumos políticos coerentes, sujeitos Portanto pela
variação de propósitos a uma instabilidade manifesta. Não obstante, esses
governos por sua natureza mesma são dos mais sensíveis aos reclamos da
opinião pública. No sistema presidencial, indica-se ordinariamente a
pulverização partidária como fator de enfraquecimento do regime,
determinando-lhe, não raro, o colapso. (Bonavides, 2000, p. 473)

Esse denominado presidencialismo de coalizão foi a via encontrada pelo


executivo para viabilizar sua governabilidade em meio a uma estrutura social bastante
diversa. Uma estrutura multipartidária pressupõe uma sociedade plural e heterogênea com
diversos valores e ideais a serem consagrados. A tarefa de reunir apoio a partir de diversas
frentes partidárias é, sem duvida, um meio de se garantir a implementação de um projeto
de governo.

O dilema institucional brasileiro define-se pela necessidade de se encontrar um


ordenamento institucional suficientemente eficiente para agregar e processar as
pressões derivadas desse quadro heterogêneo, adquirindo, assim, bases mais
sólidas para sua legitimidade, que o capacite a intervir de forma mais eficaz na
redução das disparidades e na integração da ordem social (Abranches, 1988, p.
7-8)

Nesse contexto plural e heterogêneo, a tendência é de se formar uma grande


coalizão, que inclui um maior numero de parceiros e admite maior diversidade ideológica
(ABRANCHES, 1988, p. 27). “If democracy is to work – indeed, if it is to last – the government in
general and the president in particular must build and keep winning coalitions249” (MELO E
PEREIRA, 2012, p. 161).
A questão é que essas coalizões podem ser positivas ou negativas250; são cargos de
direção do mais alto escalão do governo central que são colocados à disposição dos

249Em livre tradução: “se a democracia deve funcionar –na verdade, se for para durar, o governo em geral e o
presidente, em particular, devem construir e manter conquistando coalizões”.
250Argelina Figueiredo (Um estado para aparelhar. Revista Insight Inteligência,Rio de Janeiro: Insight

Inteligência, Ano XV, n. 58, p. 40 – 49, Jul/ Set. 2012) em artigo sobre o aparelhamento do Estado
brasileiro, argumenta que essas coalisões, por vezes, caracterizam-se como uma necessidade governamental, o
que não quer dizer se tratar de algo negativo para o funcionamento da máquina governamental. Seu texto, de
Jul/set de 2012 inicia com o seguinte questionamento: “O chamado loteamento de cargos é oexercício do
governo partidário, seja petistaou tucano. Que mal há nisso?” (FIGUEIREDO, 2012, p. 41). Ao longo de seu
texto, a autora explica que há um estigma que paira sobre a ocupação de cargos públicos no Brasil, que seria
uma “partidarização dos cargos no governo, com reflexos ideológicos sobre a eficiência administrativa da
gestão pública” p. 42. A autora argumenta que alguns governos, como o do ex-Presidente Lula, aumentou a
burocracia – considerando a quantidade de cargos públicos, por exemplo – a fim de tornar o Estado mais
eficiente, como foi o caso citado da previdência social com inúmeros benefícios concedidos sem uma análise
mais acurada. A autora denomina “loteamento de cargos” como sendo um “exercício de um governo
partidário”, o que seria típico de governos representativos . “Votamos num partido para exercer o governo.
É legítima, portanto, a nomeação de quadros partidários para o exercício do governo”(p.44).
Um dos pontos positivos realçados pela autora neste jogo de nomeação decorrente desse governo
representativo é o fato de a burocracia nem sempre responder aos obejtivos em termos de preferências

~ 363 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

partidos para garantir uma margem mínima de aprovação de seus projetos no Congresso,
sem garantia de êxito.Há que se levar em consideração, também, que os parlamentares
podem se deixar levar não pela fidelidade aos ideais do partido, mas inclinados a obtenção
de vantagens, inclusive de caráter pessoal, como cargos públicos e apoio do prestígio
presidencial em suas bases territoriais.
Argelina Figueiredo (2012, p. 40-49) analisa a participação de partidos e políticos
na esfera governamental como algo típico do jogo político. Argumenta que a divisão de
cargos na estrutura governamental faz parte de um governo representativo e que o partido,
ao ser convidado a participar da base de coalizão do governo, analisa o que receberá em
troca a fim de cumprir seus objetivos, seja para ter uma fatia de poder ou para aumentar os
votos de seu partido, por exemplo. No entanto, os que escolherem a adesão apenas por
prestígio social tendem a ser excluído da política.
Para Abranches (1988), a articulação entre os poderes deve ser feita de modo
responsável, considerando os interesses defendidos por cada partido. Para o cientista
político, as lideranças, ao negociarem, deve atentar que as coalizões frequentemente
consideram a “inclusão de políticas contrárias aos princípios diretivos dos partidos” e
devem calcular corretamente “a amplitude de sua legitimidade e autoridade junto às bases e
de sua credibilidade perante a opinião pública” (1988, p. 28-9).
As coalizões estabelecidas entre o executivo e o legislativo podem ser de
segurança máxima, na qual tenta-se angariar o maior número possível de partidos para
garantir a quantidade máxima de votos e, assim, a viabilidade dos projetos de governo; e a
de segurança mínima, em que se estabelece coalizão com um número mínimo de partidos
que garantam os votos necessários à aprovação de projetos. A diferença em estabelecer um
ou outro são os compromissos firmados pelo poder executivo; quanto mais compromissos
com partidos que se distanciam de suas ideologias e premissas, mais comprometido fica o
governo com projetos que podem deturpar a proposta inicial de seu projeto político.
Para Wanderley Guilherme dos Santos (2013, p. 29-30), uma coalizão de
segurança máxima exige do presidente um enorme custo de benefícios antecipados,
distribuídos pela multiplicidade de interesses que ela integra. Assim, se por um lado a
coalizão é essencial para garantir sua governabilidade, por outro, ela pode comprometer
significativamente o projeto político do executivo, em virtude do excesso de compromissos
assumidos com os partidos.

políticas, servindo, assim, a nomeação política para corrigir as distorções decorrentes da falta de
responsividade da burocracia (p. 45).

~ 364 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

O fato é que em sociedades plurais e complexas, com sistema presidencial em um


contexto de multipartidarismo, o presidencialismo de coalizão é inevitável (PEREIRA,
2012, p. 161). Para que possa ser bem sucedida, Carlos Pereira e Marcus André Melo
sugerem que se tenha (1) constitucionalismo forte, (2) bens – no sentido de benefícios ou
vantagens – que possam ser utilizados para negociar apoios, (3) programas
institucionalizados e um controle efetivo das ações presidenciais (2012, p. 159).
Inclusive, discordando de alguns estudiosos da área, Pereira e Melo acreditam que
a chave para promover uma democracia sustentável em países como o Brasil é a
consagração de rígidos controles de um poder sobre o outro, os denominados checksand
balances [...] “governability requires that each of the three branches of government be
strong251” (2012, p. 162). Deve haver um rígido controle das ações entre os poderes,
inclusive pelo poder judiciário.
O caso do presidencialismo de coalizão em um ambiente multipartidário como o
Brasil chama atenção dos estudiosos pelas diversas características que, aparentemente,
deveriam ser incompatíveis: multipartidarismo, presidencialismo e democracia. Aliás,
porque detém estas características que se afirma que a coalizão é necessária e inevitável. No
próximo tópico, analisaremos como é o presidencialismo de coalizão no Brasil e quais as
suas implicações governamentais sob a ótica da representatividade.

4. REPRESENTATIVIDADE, MULTIPARTIDARISMO E
PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO NO BRASIL

Até agora, percebemos a importância da democracia participativa nas sociedades


modernas e como o multipartidarismo tem se tornado um caminho viável para a
representatividade dos mais diversos setores sociais. Outrossim, em Estados que adotaram
o sistema presidencialista, viu-se que um presidente forte nem sempre é suficiente para que
se possua governabilidade e se execute os programas de governo. Por vezes, os poderes
que deveriam atuar independentes uns dos outros precisam se aliar para que haja
viabilidade política dos projeto de governo eleito.
No Brasil, tem-se o presidencialismo de coalizão, no termo cunhado por
SérgioAbranches, no qual o presidente eleito deve se preocupar em garantir sua
governabilidade por meio de arranjos institucionais entre partidos de sua base aliada.

251Em livre tradução: “governamibilidade exige que cada um dos três poderes do governo seja forte”.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Quando da formação dos governos de coalizão, há três momentos bem definidos:


a fase da aliança no período eleitoral, a fase de formação do governo e a fase da conversão
de aliança para coalizão com a definição da agenda real de políticas e sua implementação
(ABRANCHES, 1988, p. 29). No caso brasileiro, as coalizões formadas para garantir a
governabilidade do chefe do poder executivo foram extremamente complexas e, ainda
assim, comprometeu significativamente as relações com o Congresso Nacional.
A análise das vantagens e desvantagens a serem observadas por cada lado quando
da coalizão permite concluir que é fundamental que o chefe do poder executivo
disponibilize de um diálogo amistoso com o parlamento. Se o executivo detém o poder de
agenda, goza de prestigio nacional (ao menos aparentemente, já que foi eleito pela via
majoritária) e pode destinar verbas orçamentárias as mais diversas regiões do país
(favorecendo a base de apoio local dos parlamentares), por outro lado, o parlamento goza
do poder de maioria, necessário para que o programa de governo do executivo seja
viabilizado.
A articulação entre estes dois poderes se faz mediante uma concessão de
benefícios recíprocos, o que inclui, além do que já foi citado, a alocação de membros dos
partidos dentre os cargos de primeiro escalão, que são os Ministérios. Daí porque no inicio
de cada governo, as atenções estão voltadas a composição dos Ministérios, que demonstra
qual tipo de coalizão foi firmada e permite fazer conjecturas sobre quais os rumos que a
politica governamental do executivo seguirá.No entanto, não há garantias de que as partes
envolvidas irão cumprir o acordo feito na coalizão.
Ao optar por uma coalizão de segurança máxima, o governo compromete-se
antecipadamente com o parlamento por meio de concessão de benefícios, sem saber, ao
certo, se haverá retorno. É um risco imenso. Guilherme dos Santos, em análise do governo
da Presidente Dilma, em 2013, afirmou que “há um hiato entre o apoio que ela (Dilma) em
tese deveria ter e aquele que de fato ela tem” (2013, p. 30).
Um dos riscos possíveis em um presidencialismo de coalizão é a propensão que
há de uma oposição forte, disposta a qualquer custo tomar o poder. Scott Mainwaring
(1990, p. 22),aoanalisarosriscos de um presidencialismo com coalizões, afirma que “this
structural characteristic of presidential majoritarian systems helps shape a golpista political
culture, in wich a coup os the main perceived way of defending interests when a hostile
osincompetentepresidente is in office252”.

252Livretradução: “Esta característica estrutural do presidencialismo do sistema majoritário colabora com a


formação de uma cultura política ‘golpista’, na qual um golpe é percebido como a principal maneira de
defender seus interesses quando um presidente hostil ou incompetente está no gabinete (poder)”.

~ 366 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

No caso brasileiro, analistas políticos afirmam que o presidencialismo de coalizão


no Brasil foi bem sucedido durante os governos Fernando Henrique e Lula devido à
capacidade de articulação de cada um. A negociação com o Congresso para que pudessem
obter aprovação de seus projetos fez com que seus governos fossem avaliados com taxa de
sucesso considerada relevante (CARLOS PEREIRA, 2012).
Já no governo Dilma, especialmente em seu segundo mandato, iniciado em 2015,
percebe-se uma fragilidade nas relações havidas entre o executivo e o legislativo. As
coalizões feitas logo começaram a dar sinais de ruptura. Crise econômica, instabilidade nas
bases partidárias e uma politica de austeridade severa desestabilizou o apoio que o
executivo possuía junto ao Congresso Nacional.
Sobre as ligações que envolvem uma coalizão, especialmente em momentos de
crise, SérgioAbranches analisou em 1988 que a desestabilização maior com a ruptura desta
coalizão reside na presidência. Para o autor, o maior risco do presidencialismo de coalizão é
a sua ruptura, que pode se dar pelo abandono de parceiros ou pelo rompimento do
presidente com o seu partido. No caso do governo Dilma, a ruptura se deu pela primeira
via, especialmente quando o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB)
rompeu com o governo presidencial. Se considerarmos a teoria de SérgioAbranches, houve
falta de arbitragem por parte das lideranças governamentais para conter o abandono de
parceiros. É o que ele chama de “mecanismo de arbitragem adicional” (ABRANCHES,
1988, p. 31).
Mas há que se atentar para o fato de que uma coalizão não significa que o
Presidente deve ser refém do Congresso, retirando-lhe a liberdade de direção do governo.

Mais que do peso da oposição dos de ‘fora’- sobretudo em se tratando de


grandes coalizões – o destino do governo depende da habilidade dos ‘de dentro’
em evitar que as divisões internas determinem a ruptura da aliança.
[...]
A submissão do Congresso ou a submissão do presidente representam, ambas, a
subversão do regime democrático (Abranches, 1998, p. 28- 31).

Ao analisar a coalizão realizada entre os poderes executivo e legislativo no Brasil,


percebe-se a importância deste arranjo para a estabilização da política brasileira. Se por um
lado, o presidencialismo de coalizão foi uma alternativa a falta de estrutura política no
Brasil, fruto de anos de centralização oligárquica de elites, por outro lado virou um
verdadeiro estigma, difícil de se conter.
O poder de coalizão do presidente da República deve ser forte para que possa
aprovar seus programas de governo; mas também é preciso de mecanismos que garantam

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Direitos Humanos & Fundamentais

que essa coalizão seja efetivada na prática. Entretanto, alguns instrumentos a favor do
presidente foram sendo enfraquecidos com o passar do tempo. A edição da Emenda
Constitucional no 86 e a imposição de execução de emendas parlamentares no orçamento e
a interpretação dada ao sistema de trancamento de pauta provocado pela edição de medidas
provisórias253 são alguns fatores que enfraqueceram o presidencialismo de coalizão no
Brasil nos últimos anos. Acrescente a isso o fato de a presidente eleita não gozar de tanta
popularidade quanto o seu antecessor, e uma série de escândalos de corrupção envolvendo
diversos setores do planalto central podem explicar um pouco da relação entre executivo e
legislativo nos últimos anos.
O fato é que se o presidencialismo de coalizão, no Brasil, já foi sinônimo de um
executivo forte, com poder de barganha, chegando até a passar uma imagem de legislativo
que acata cegamente os comandos do presidente, hoje já não é mais o que se presencia.
Estamos diante de um executivo esfacelado, com um vice-presidente atuando como ator
principal de um roteiro supostamente escrito por ele e seus aliados. A verdade, é que o
mesmo luta para garantir seu papel principal, mas não passa de um coadjuvante.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente artigo, buscou-se problematizar sobre a relação entre democracia


representativa multipartidária em um contexto de presidencialismo. A história
constitucional brasileira revela certas peculiaridades que são típicas e exclusivas da nossa
realidade nacional. Desde 1988, com a edição da Carta da República, os atores políticos
tentam se adequar às novas regras, mediante arranjos que garantam governabilidade aos
seus mandatos.
Falou-se sobre alguns conceitos atribuídos ao termo “democracia” e como a
mesma foi sendo viabilizada nos estados modernos através da figura da representatividade.
Viu-se também que a representatividade do poder soberano do povo se deu por
intermédio de partidos políticos, os quais, via de regra, deveriam refletir ideais e objetivos
que angariasse simpatizantes. Este seria o objetivo do exercício do poder soberano por
alguns representantes.

253Em 2009, o então presidente da Câmara dos Deputados, vice-presidente durante os mandatos da

presidente Dilma Roussef, e atual presidente em exercicio, Michel Temmer emitiu parecer sobre a
interpretação dada ao dispositivo constitucional que estabelece o trancamento da pauta do legislativo
enquanto não apreciar as medidas provisórias emitidas pelo presidente da república. Com essa interpretação,
que passou a ser adotada no Congresso Nacional, a pauta que a não apreciação da medida provisória tranca é
a da legislação ordinária, única com mesmo conteúdo das medidas provisórias. Com esta interpretação, o
poder do executivo em relação aos trabalhos do legislativo ficou mais restrita.

~ 368 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Em outro momento, viu-se também sobre o presidencialismo como um sistema


de governo com a figura do chefe do poder executivo comandando a direção política e
governamental do país. Em um contexto de atuação harmônica entre os três poderes, um
não deveria se sobrepor ao outro, o que na realidade tem sido bem diferente. Viu-se que no
Brasil, a figura do presidente sempre teve uma tendência à centralização e concentração de
poderes. As atribuições traçadas pelas Constituições indicam uma tendência de
centralização na figura do presidente.
No caso do presidencialismo de coalizão, a realidade nacional demonstra que o
presidencialismo, no Brasil, difere do presidencialismo originado nos Estados Unidos da
América. A necessidade de uma harmonia entre os poderes executivo e legislativo vem
sendo garantida à base de arranjos institucionais entre partidos, com a garantia de cargos e
troca de favores.
De fato, o presidente não pode governar sozinho; a necessidade do parlamento
para aprovar seus programas de governo em forma de lei ressaltou o papel do legislativo,
dando inicio ao que Sérgio Abranches denominou de presidencialismo de coalizão. Neste
cenário, o presidente da República, quando eleito, chama os partidos de sua base aliada –
ou que a ela queiram se aliar – para fazer arranjos que viabilizem uma maioria no
Congresso, garantindo assim a aprovação de seus projetos políticos.
No caso brasileiro, pode-se apontar como casos de sucesso os mandatos dos
presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Já o mandato da ex-
presidenteDilma Rousseff, foi considerado um caso fracassado de presidencialismo de
coalizão, não apenas pela minoria parlamentar alcançada nas ultimas eleições, mas também
por diversos fatores, dentre outros, a crise instaurada entre as lideranças partidárias, como
o rompimento entre o PMDB e PT. Credita-se também à falta de diálogo entre a
presidência e a casa legislativa o fracasso da coalizão formada desde 2011, início de seu
primeiro mandato.
O fato é que não se pode afirmar com certeza quais os motivos que resultaram na
atual crise do presidencialismo de coalizão instaurado hoje no Brasil. Mas é fato que talvez,
este modelo não seja possível em um ambiente tão heterogêneo e diverso como tem se
demonstrado o país. Se por um lado tais fatores levaram a esse presidencialismo de
coalizão, por outro, estes mesmos fatores estão exigindo da política nacional uma mudança
no modo de representatividade.
O modelo político que foi adaptado à nossa realidade plural foi desvirtuado há
tempos. O multipartidarismo foi necessário a fim de representar os diversos setores da

~ 369 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

sociedade; entretanto, ao reunir-se em uma coalizão, não desvirtuaria de seu propósito


inicial? No final das contas, o presidencialismo de coalizão não levaria o país a um grande
bipartidarismo? São reflexões dignas de nota.
Após 30 anos da edição da Constituição da República, em 05 de outubro de 1988,
as regras do jogo político ainda estão sendo interpretadas – e reinventadas. Uma
Constituição recente, se considerarmos o tempo de vida que o Brasil enquanto República
possui, nos leva a questionar a que se deveu tantas modificações e mutações254: qual
interesse está por trás de um presidencialismo de coalizão, que aparentemente desvirtua a
ideia do multipartidarismo proclamado pela Carta Magna? Trata-se de um instrumento de
adaptação da realidade para que se possa haver governabilidade – mas governabilidade para
quem e para quê?.
A única certeza que se pode concluir de todo este cenário confuso que se
apresenta a política brasileira atual é que uma reforma política se faz necessária e urgente. A
comemoração dos 30 anos da Carta Magna deve ser acompanha de problematização e
questionamentos sobre a melhora da atuação política e partidária em prol da sociedade. A
discussão com setores de base, com os menores núcleos de associação civil deve ser
estimulada a fim de que toda a sociedade possa participar no processo de decisão dos
rumos que se pretende conferir a muitos outros anos de existência desta já tão maltratada
Carta balzaquiana.
Que a celebração de 30 anos da Constituição se converta em um momento de luta
e debate para a garantia e efetivação de direitos, controle, responsabilidade e responsividade
da atuação do poder público.

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254Em consideração à denominada teoria alemã da mutação constitucional, que prevê a alteração do sentido
da Constituição sem a modificação de seu texto.

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DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NO CONTEXTO
CONSTITUCIONAL:
EFETIVAÇÃO PLENA PELA PARTICIPAÇÃO E FISCALIZAÇÃO DO
POVO AOS ATOS DO ESTADO NA PERSPECTIVA DO PROCESSO
DEMOCRÁTICO

Tiago Henrique Torres*

INTRODUÇÃO

O exercício de poder pelo Estado é algo que faz parte da sua própria existência,
quer seja para uma possívelautoafirmação perante o povo, componente de sua formação e
concepção, ou para manutenção de sua soberania perante os demais Estados. Em outras
palavras, o Poder se torna “elemento essencial constitutivo do Estado” (BONAVIDES,
2010, p. 133), que tem o condão de encaminhar para inúmeras consequências, relacionadas
à forma pela qual é exercido, por quem é exercido e com quais objetivos é exercido.
Apesar das situações e comportamentos humanos que, por vezes, deturpam o
poder como elemento essencial para a formação do Estado, este Estado deve exercê-lo de
forma legítima, assentada em leis, notadamente em sua Constituição, existente como sua
pedra fundamental de organização e estruturação. Além disto, é preciso que o exercício de
poder pelo Estado se legitime pelos componentes de seu próprio território, ou seja, o seu
povo.
Contudo, este “legitimar” do povo não pode ocorrer de forma inconsciente e
impensada, sob pena de que todo e qualquer esforço empreendido em torno da legitimação
dos atos do Estado se perca diante da inexistência de esforço daqueles que, em regra, são (e
devem ser) os maiores interessados no bom funcionamento de suas engrenagens. A
importância do povo nesta relação mencionada passa pela existência de direitos que ele
próprio deve gozar e fruir, porquanto inseridos na Constituição como fundamentais para a
garantia de sua própria dignidade, a partir de sua previsão na Declaração Universal dos
Direitos Humanos.

*Mestrando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG).
Especialista em Direito Processual Civil pela Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC/MG).
Bacharel em Direito pela Fundação Pedro Leopoldo (FPL).

~ 374 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

O resultado desta equação só pode permear à certeza de que o povo se entenda


como sujeito de direitos, os exercendo de forma indelegável e impostergável, já que o papel
a que deve ser destinado ao povo é de agir “como instância global da atribuição de
legitimidade democrática” (MÜLLER, 2003, p.60). Daí advéma necessária modificação da
concepção de exercício de poder do Estado como sinônimo de violência, encontrada em
outras épocas, para concepções que toquem em poder no sentido de dever do Estado, de
respeito às leis escritas e ao próprio ordenamento, criados e legitimados pelo povo (DEL
NEGRI, 2008, p. 45).
Dentre os direitos conferidos ao povo nas Constituições democráticas, lastreados
na Declaração Universal dos Direitos Humanos, se insere a existência de uma Jurisdição
Constitucional, movida pelo Processo Constitucional, de onde todos os demais direitos
poderão ser garantidos e efetivados, assim como a legitimidade dos atos do Estado poderá
ser viabilizada. Tudo isto, advindo das garantias conferidas ao povo, e de sua atuação
estrita, concreta e direta sobre os atos do Estado, são as balizas necessárias para que se
conceba a necessária legitimidade democrática estes atos, sejam legislativos ou
jurisdicionais.
As proposições acima inferidas são o objeto deste estudo, a ser desenvolvido mais
pormenorizadamente nas linhas que se seguem.

1. BREVE INCURSÃO SOBRE O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E A


NORMATIVIDADE DA CONSTITUIÇÃO

Antes de falarmos propriamente de uma legitimação democrática, os atos aos


quais se vincula e quem são os agentes que legitimarão tais atos, necessário tecer algumas
considerações acerca da Democracia, e o que se entende, ou se busca entender, por tal
determinante tema.
É preciso se ter em mente a premissa inicial de que Democracia não é meramente
uma forma de governo, estanque, ou mesmo um sistema político de escolha de
representantes, ou ainda umregime de regramentos que conduzem determinado meio de
vida. Estas concepções, conjuntas ou em separado, já foram significações do conceito
primordial de Democracia, como se concebe do magistério de De Plácido e Silva, ao
afirmar que nas grandes democracias ocidentais “o poder do povo se expressa no voto
direto, através do qual os cidadãos elegem os representantes dos poderes Legislativo e

~ 375 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Executivo para defender os seus interesses e através da decisão do próprio titular do poder
através do plebiscito, referendo e outros meios.” (1999, p. 249).
Concepções como esta refletem muitas vezes o entendimento raso sobre
institutos que, desde sua gênese, já surgem com objetivo muito mais amplo, conforme
advertiu Alexis de Tocqueville, ao afirmar que falava de um governo que segue a vontade
exclusiva e real do povo, não se limitando a se consolidar em um governo que comandasse
em nome de tal povo (TOCQUEVILLE, 2005, p. 249).
Fato é que a Democracia e o próprio Constitucionalismo despontam com real
importância em tempos modernos já em meados do século XX, com o fim da Segunda
Guerra Mundial e, consequentemente, com o fim dos regimes totalitários de cunho
nazifascista, os quais dizimaram milhões de pessoas em razão do exercício de poder de
forma despótica. A partir de tal momento histórico,os Estadosque se denominaram
democráticos retiraram de si a carga autocrática que lhes era peculiar em momento
pretérito, passando a primar pela normatização de direitos básicos para garantir uma vida
digna e plena ao povo, bem como da participação deste nos rumos da própria atividade do
Estado, atitude primordial para se livrarem definitivamente da mácula ditatorial que lhes
distinguia de qualquer outro Estado (ABBOUD, 2016, p. 103-105; BRÊTAS, 2015, p. 87-
88).
Muitos destes direitos que garantiriam condições mínimas de vida ao povo,
surgidos a partir da ruptura com os regimes ditatoriais, tais como educação, saúde,
segurança e moradia surgiram ainda no período do chamado WelfareState, ou Estado de
Bem-Estar. No entanto, houve notada a incorporação de outra gama de direitos que
atribuiriam ao povo a possibilidade de atuar mais concretamente nos rumos do próprio
Estado, ofertando verdadeira releitura dos atributos de povo, sociedade, jurisdição,
interesse público, cidadão, direitos fundamentais, direito à vida digna, dentre outros, como
bem relembra André Del Negri (2008, p. 39).
Esta eclosão de novos direitos ao povo foi viabilizada justamente pelo conteúdo
democrático que passou a ser identificado nas constituições dos Estados Nacionais no
período pós Segunda Guerra Mundial, notadamente com o advento da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, caracterizando estes Estados pelas premissas
básicas de realização da função legislativa mediante a participação de representantes do
povo, divisão do Estado em funções primordiais (legislativa, administrativa e jurisdicional),
atuação do Estado em conformidade com a lei e sob controle jurisdicional, além do
necessário reconhecimento de direitos e liberdades fundamentais ao povo (BARACHO,

~ 376 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

1977, p. 126; BRÊTAS, 2015, p. 60-61). Apesar da inserção de conteúdo democrático, ou


seja, viabilizador da participação do povo nos atos do Estado, e da própria concessão de
direitos que garantiriam ao povo condições de vida digna, seria necessário balizar a forma
com que a Democracia seria guiada pelo povo, algo que já advertia Simone Goyard-Fabre
ao sentenciar:

Cabe à história da democracia julgar a democracia. Ora, ela mostra que,


justamente pelo pluralismo que é sua alma, a democracia é particularmente
vulnerável. Por causa da diversidade das individualidades que, ao se exprimirem,
tentaram e continuam tentando dar uma unidade à vontade geral do povo, a
democracia secretou ilusões de que, hoje, se tem consciência e pelas quais ela é
severamente censurada. Em outras palavras, as virtudes da democracia são
também suas fraquezas, sua força é também o que produz sua impotência.
(2003, p. 342).

Fato é que o conteúdo democrático das constituições do século XX, nesse


contexto, acompanhou a ideia da própria normatividade das Constituições, vislumbrada
pela positivação255 dos Direitos e Garantias Fundamentais, da inserção de conteúdo
organizacional ao Estado, bem como mecanismos para o próprio controle dos atos estatais
pelo povo, visando coibir o abuso de poder e a mitigação das Garantias Fundamentais.
Peter Häberle advertia que o cidadão é o intérprete da Constituição, e por esta razão,
“tornam-se mais relevantes as cautelas adotadas como objetivo de garantir a liberdade: a
política de garantia dos Direitos Fundamentais de caráter positivo, a liberdade de opinião, a
constitucionalização da sociedade.” (2002, p.37-38).
No entanto, como já observado alhures em menção à Goyard-Fabre, as garantias
concedidas ao cidadão somente poderiam estar adstritas à existência de deveres que
preservassem a própria normatividade da Constituição, bem como o caminhar harmonioso
das relações do povo dentro do Estado, sob pena de se incorrer na perda das próprias
virtudes que o conteúdo democrático inaugurou. Nesta senda, Konrad Hesse, ao dissertar
sobre a Força Normativa da Constituição, já asseverava:

A Constituição não deve assentar-se numa estrutura unilateral, se quiser


preservar a sua força normativa num mundo em processo de permanente
mudança político-social. Se pretende preservar a força normativa dos seus
princípios fundamentais, deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderação,
parte da estrutura contrária. Direitos fundamentais não podem existir sem
deveres, a divisão de poderes há de pressupor a possibilidade de concentração
de poder, o federalismo não pode subsistir sem uma certa dose de unitarismo.

255 Entenda-se “positivação” no sentido de vigência do direito, ou posto à existência concreta e objetiva na
legislação, em contraposição ao direito natural, mas não se relacionando efetivamente com a doutrina
Positivista. De igual forma, adoraremos esta concepção ao mencionarmos esta palavra ao longo do texto.
(ABBAGNANO, 2007, p. 778.).

~ 377 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Se a Constituição tentasse concretizar um desses princípios de forma


absolutamente pura, ter-se-ia de constatar, inevitavelmente -no mais tardar em
momento de acentuada crise – que ela ultrapassou os limites de sua força
normativa. A realidade haveria de pôr termo à sua normatividade; os princípios
que ela buscava concretizar estariam irremediavelmente derrogados. (1991, p.
21).

A advertência do constitucionalista alemão é bastante pertinente, ao entender que,


na balança de atos do Estado, não poderia haver a concessão de direitos em demasia sem a
existência de deveres como contraprestação, estes conformados no respeito aos direitos
alheios, como baliza natural para o gozo saudável de seus próprios direitos, bem como o
necessário respeito ao Ordenamento Jurídico. No entanto, embora Konrad Hesse tenha
pontuado sobre a necessidade de “uma dose de unitarismo”, como mencionado acima, é
preciso se ter em mente que a existência no Estado de um ordenamento jurídico,
notadamente de uma Constituição que exista como verdadeira pedra fundamental do
próprio Estado, concomitantemente com a adoção do Princípio Democrático, este
conformado na concessão de Garantias Fundamentais ao povo, bem como a possibilidade
deste atuar diretamente para a realização dos atos do Estado, seja propondo ações ou
controlando tais atos estatais em prol do desempenho das suas funções de forma legítima,
já configura em si uma balança entre direitos e deveres que permite ao povo a plena
normatividade da Constituição. Trata-se, indelevelmente, da junção entre o necessário
respeito ao ordenamento jurídico (Estado de Direito) e a possibilidade de ampla
participação do povo nos atos do Estado, conforme Garantias Fundamentais lhe
conferidas (Princípio Democrático).
Inclusive, ao mencionar-se a existência de um Princípio Democrático, adota-se
integralmente o posicionamento de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, ao entender que a
marca indelével do Estado Constitucional Democrático de Direito é justamente a junção
dos princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, com uma verdadeira
amalgama propiciada pelas normas constitucionais. Afinal, conforme se afirmou ao início
deste item, com arrimo nas lições de Ronaldo Brêtas, a Democracia vai muito além de uma
mera forma de Estado e de governo, se configurando em princípio consagrado nos
ordenamentos constitucionais como fonte de legitimação ao exercício do poder, que se
origina no povo (BRÊTAS, 2015, p. 68-69). Importante registrar, ainda, entendimento
asseverado por André Del Negri, de que “a Democracia deve aparecer como uma espécie
de qualidade, de característica, de paradigma jurídico, de eixo teórico adotado pela
Constituição.” (2008, p. 40). Portanto, estas concepções indicam que o Estado
Democrático de Direito é calcado na legitimidade democrática conferida pelo povo, bem

~ 378 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

como pelo respeito ao ordenamento jurídico posto, obviamente, entendendo como


democraticamente legitimada e construída a sua existência.
Postas estas considerações, necessário se pontuar a forma segundo a qual as
Garantias Fundamentais são viabilizadas, além de entender o que são estas Garantias
Fundamentais, e a sua razão de existência em favor do povo.

2. A VIABILIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS MEDIANTE AS


GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Conforme já asseverado, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos,


positivada nas Constituições Democráticas, a existência de Direitos e Garantias
Fundamentais do povo passou a ser observada em profusão nunca dantes vista. Em razão
da Segunda Guerra Mundial, da adoção posterior dos Estados por uma Jurisdição
Constitucional e, na experiencia alemã, do Tribunal Constitucional (SCHWABE, 2005, p.
161), é que se inicia um entendimento pela necessidade de viabilização destas Garantias
Fundamentais ao povo, já que, embora postas nos textos constitucionais, careciam de
operacionalização para tornarem-se identificáveis por todos.
Ao se falar de Direitos Fundamentais do povo, não necessariamente estamos
falando de Garantias Fundamentais, havendo distinção, ainda que tênue, entre ambos.
Afinal, ainda que se entenda que ambos são considerados como normas256 de conteúdo
assecuratório postos no ordenamento jurídico, os Direitos Fundamentais são os Direitos
Humanos expressamente constantes e enumerados pelo ordenamento jurídico, enquanto as
Garantias Fundamentais são garantias processuais descritas no texto constitucional,
existentes exclusivamente para a proteção e efetivação dos Direitos Fundamentais, algo que
será a seguir melhor delineado.

2.1. Direitos Fundamentais: importância e necessidade

256 Por “norma”, procurou se basear nos ensinamentos de Norberto Bobbio, o qual indica como norma todo
e qualquer conteúdo regulatório da vida humana, positivado no ordenamento jurídico ou não. “A nossa vida
se desenvolve em um mundo de normas. Acreditamos ser livres, mas na realidade, estamos envoltos em uma
rede muito espessa de regras de conduta que, desde o nascimento até a morte, dirigem nesta ou naquela
direção as nossas ações. A maior parte destas regras já se torna tão habitual que não nos apercebemos mais de
sua presença. Porém se observarmos um pouco, de fora, o desenvolvimento da vida de um homem através da
atividade educadora exercida pelos seus pais, pelos seus professores e assim por diante, nos daremos conta
que ele se desenvolve guiado por regras de conduta.” (BOBBIO, 2001, p. 23-24).

~ 379 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Conforme observado acima, os Direitos Fundamentais são os Direitos Humanos


inseridos no texto constitucional, cuja observância e eficácia passa a ser melhor
vislumbrada pelo povo. Esta concepção, inclusive, é abordada por BRÊTAS, ao afirmar
que:

Em exame da doutrina constitucional contemporânea – à unanimidade – revela


propensão em se chamar de direitos fundamentais os direitos humanos que
tenham adquirido positivação no ordenamento jurídico-constitucional do
Estado, atingindo, por conseguinte, grau maior de certeza e efetiva possibilidade
de serem garantidos. (2015, p. 91-92)

Neste sentido, importante se conceber os Direitos Fundamentais como


verdadeiras necessidades do povo para garantia de uma vida minimamente digna, ante os
eventuais arbítrios do Estado, que os deve garantir, ou mesmo ante o sem-número de
mazelas sociais existentes nosdias atuais. Trata-se não do que se espera ter para uma
melhoria de vida, mas sim o mínimo básico necessário para que a dignidade de cada um do
povo exista. Por esta razão, Gustavo Binenbojm adverteque “a Constituição assume, a
feição de uma Constituição-garantia, que especifica um procedimento político justo e
incorpora as restrições pelas quais os direitos e liberdades fundamentais serão protegidos e
terão assegurada sua prioridade.” (2014, p. 80). Esta priorização dos Direitos Fundamentais
e sua inserção nos textos constitucionais é estratégica, objetivando justamente o maior
alcance de aplicação e efetivação junto ao povo, se esculpindo como objetivo necessário de
um Estado que se diga democrático.
José Alfredo de Oliveira Baracho relembra que os Direitos Constitucionais
tiveram início no século XVIII, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789, na qual os direitos humanos tornaram-se “direitos dos cidadãos” e
“garantias constitucionais”, reconhecidos aos elementos nacionais em seus Estados. O
mesmo jurista relembra ainda a lição de Héctor Fix-Zamudio, o qual esclarece que a
expressão “garantias constitucionais” já era utilizada no direito da América Latina como
significado de direitos do homem, consagrados na Constituição (BARACHO, 1984, p.
139). Por esta razão, o mesmo José Alfredo de Oliveira Baracho foi firme ao sentenciar:

A proclamação que advinha da Declaração Francesa dos Direitos do Homem,


em seu artigo 16 (as sociedades em que a separação de poderes não está
assegurada e os direitos do homem não estão reconhecidos carecem de
Constituição), torna-se cada vez mais importante para os dias de hoje. A
recepção dos direitos fundamentais, pelas constituições, leva-nos aos
mecanismos essenciais à efetiva proteção dos mesmos, tornando-os
eficazes.”(2008, p. 53).

~ 380 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

As lições ora transcritas reforçam o entendimento de quea positivação dos


Direitos Fundamentais com status de norma cogente nos textos constitucionais, seja
buscando garantirsua eficácia concreta, ou mesmo possibilitando a proteção destes contra o
arbítrio ou uso abusivo do poder pelo Estado, trouxe maior possibilidade de efetivação em
prol do povo, como mínimo necessário à garantia de sua dignidade, sempre em busca da
sua superação das mazelas sociais e do próprio abuso do Estado, em razão dos “variados
acontecimentos histórico-culturais que se lhe antepõe” (GUSTIN, 2014, p. 10), sobretudo
relativos aos regimes ditatoriais. Em igual sentido, Canotilho já delineava:

Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos


sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas
de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente
as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano
jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais
(liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar
agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). (2000, p. 408).

Portanto, a partir do momento em que os Direitos Fundamentais postos para a


existência digna do povo passem a integrar as constituições dos Estados, necessariamente
há de se instituir mecanismos hábeis para sua real concretização no cotidiano. Afinal, “a
validade, eficácia e legitimidade dos Direitos Fundamentais do Estado Democrático de
Direito só pode ser vislumbrada através da discursividade processualizada.” (COSTA, 2016,
p. 108). Por esta razão, necessário entender de que forma a viabilização de tais direitos
ocorre em um ambiente de integral processualidade democrática257.

2.2. Direito Fundamental à Jurisdição Constitucional e Processo Constitucional


como Garantia Fundamental

O cerne da questão atrelada à uma legitimação dita democrática passa


obrigatoriamente pela análise da Jurisdição Constitucional e sua relação com o Processo
Constitucional, notadamente quando se entenda de necessária observância a garantia de
que os Direitos Fundamentais sejam efetivamente implementados e observados em favor

257 Por “processualidade democrática”, vale lembrar o que já escreveu Dierle José Coelho Nunes, delineando
de forma bastante precisa: “A percepção democrática do direito rechaça a possibilidade de um sujeito solitário
captar a percepção do bem viver em sociedades altamente plurais e complexas e, no âmbito jurídico, a
aplicação do direito e/ou proferimento de provimentos, fazendo-se necessária a percepção de uma
procedimentalidade na qual todos os interessados possam influenciar na formação das decisões. Assim, toda
decisão deve ser resultado de um fluxo discursivo balizado por um procedimento embasado nos princípios
fundamentais (processo) que permita uma formação processual de todo exercício de poder. (NUNES, 2012,
p. 203).

~ 381 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

do povo. Isto porque a prestação da função jurisdicional pelo Estado a seu povo não pode
ter outra função essencial senão a de conceber estes Direitos Fundamentais. No entanto, a
Jurisdição não pode fazer brotar de seu exercício funcional a dita efetivação de direitos,
notadamente por também se configurar em Direito Fundamental, devendo ser guiada por
um instituto que os torne viáveis.
Neste sentido, importante relembrar sobre a inserção do direito à jurisdição como
fundamental ao povo, notadamente na Constituição de 1988 em seu artigo 5º, (inciso
XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), de
forma com que o povo possa buscar junto ao Estado a tutela e preservação de seus
direitos. Por esta razão, é de clareza solar o entendimento de que a Jurisdição
Constitucional é Direito Fundamental do povo (BRÊTAS, 2015, 90-92). A função
jurisdicional é inerte, como é cediço, sendo praticada pelo Estado apenas quando
provocada por atuação direta e concreta do povo, sobretudo quanto se insere no texto
constitucional expressamente esta possibilidade como mecanismo de concretização e
salvaguarda de Direitos Fundamentais. Por esta conclusão lógica, apenas e tão somente por
intermédio do processo é que a viabilização de tais direitos poderia ser conseguida, já que,
como pontuado anteriormente, a Jurisdição não poderia dar origem e realizar, por si só, tais
Direitos Fundamentais.
Há quem entenda que a Jurisdição Constitucional atua como uma espécie de
“legislador constitucional”, na medida em que o exercício do controle de
constitucionalidade culminaria na geração de novas bases normativas para regulação das
relações sociais (CRUZ, 2014, p. 128-136). Por outro lado, há quem entenda que a
Jurisdição Constitucional é um espaço de destaque para tratamento específico das questões
constitucionais de um Estado (ABBOUD, 2016, p. 104). Contudo, respeitando as vertentes
contrárias, entende-se como mais correta a lição de que:

No Estado Democrático de Direito, a jurisdição é direito fundamental das


pessoas naturais e jurídicas, sejam estas de direito público ou de direito privado,
porque positivado ou expresso no texto da Constituição Federal de 1988 (artigo
5º, inciso XXXV). Exatamente por isto, se é direito fundamental do povo, em
contrapartida, é atividade-dever do Estado, prestada pelos seus órgãos
competentes, indicados no texto da própria Constituição, somente possível de
ser exercida sob petição daquele que a invoca (direito de ação) e mediante a
indispensável garantia fundamental do devido processo constitucional (artigo 5º,
incisos LIII, LIV e LV).(BRÊTAS, 2015, 94-95).

Nesta senda, atuando a jurisdição como Direito Fundamental disponibilizada para


defesa do arbítrio e abuso de poder do Estado em face do povo, necessária a concepção de

~ 382 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

um processo guiado pelas disposições constitucionais, que viabilize a proteção e efetivação


deste e de tantos outros Direitos Fundamentais previstos na Constituição. Por esta razão, o
Processo Constitucional e todo o bloco de princípios a ele entrelaçados, formando o
Devido Processo Constitucional, garantirão que se torne viável a efetivação dos Direitos
Fundamentais. Neste sentido, é o que novamente pontua Ronaldo Brêtas:

(...) o devido processo legal, principal alicerce do processo constitucional ou


modelo constitucional de processo, considerado este a principiologia
metodológica de garantia dos direitos fundamentais, deve ser entendido como
um bloco aglutinante e compacto de vários direitos e garantias fundamentais
inafastáveis, ostentados pelas pessoas do povo (partes), quando deduzem
pretensão à tutela jurídica nos processos perante os órgãos jurisdicionais. a)
direito de amplo acesso à jurisdição, prestada dentro de um tempo útil ou lapso
temporal razoável; b) garantia do juízo natural; c) garantia do contraditório; d)
garantia da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela (defesa) inerentes,
aí incluído o direito à presença de advogado ou de defensor público; e) garantia
da fundamentação racional das decisões jurisdicionais, com base no
ordenamento jurídico vigente (reserva legal); garantia de um processo sem
dilações indevidas. (2015, p. 165-166).

Portanto, indelevelmente concebido como Garantia para efetivação dos Direitos


Fundamentais em uma concepção democrática, o Processo Constitucional e todo o seu
conteúdo principiológico, se traduzem na forma pela da qual o povo pode efetivar
concretamente os seus Direitos Fundamentais. Importante registrar que “o direito
processual constitucional abrange, de um lado, a tutela constitucional dos princípios
fundamentais da organização judiciária e do processo; de outro lado, a jurisdição
constitucional” (BARACHO, 1984, p. 125-126), demonstrando a relação entre processo e
efetivação dos Direitos Fundamentais. E, de igual sorte, importante a conclusão de
Rosemiro Pereira Leal:

Assim, na teoria da democracia os direitos fundamentais são inafastáveis não


porque já estejam impregnados na consciência dos indivíduos, mas porque são
requisitos jurídicos da instalação processual da movimentação do sistema
democrático, sem os quais o conceito de Estado Democrático de Direito não se
enuncia. (2016, p. 27).

Não se pode olvidar que a procedimentalização democrática pressuposta pelo


Processo Constitucional deve ser aplicada a todo e qualquer meio em que se observe o
exercício de função primordial pelo Estado ao seu povo, notadamente em razão do Estado
indiscutivelmente exercer poder. Contudo, necessário observarmos sob qual forma este
poder é utilizado, bem como viabilizado o seu exercício, por intermédio de suas funções
essenciais.

~ 383 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

3. EXERCÍCIO DE PODER PELO ESTADO E SUA LEGITIMAÇÃO

Desde o limiardo presente estudo, deixou-se implícita ou explicitamente claro que


o Estado exerce poder, sendo este um dos pilares básicos de sua própria atuação funcional.
Neste prisma, necessário avaliar o significado de Poder aqui discorrido, os destinatários e
possuidores deste poder e a sua relação com o exercício funcional do Estado e a respectiva
legitimação.

3.1. Ponderações sobre Poder

Conforme sobredito, o exercício de poder é uma das prerrogativas do Estado, se


configurando como um dos pilares básicos em sua estruturação e atuação. Este exercício
está atrelado ao fortalecimento de uma vontade em detrimento de outras tantas, algo que,
obrigatoriamente, precisa ser observado sobre o prisma da legitimidade de quem exerce o
poder, bem como quem concede a legitimação para seu exercício. A conceituação de poder
revela sentidos bastante amplos ao se buscar a sua significação, e, muitas vezes, a sua
utilização. Isto porque, conforme adverte Rosemiro Pereira Leal:

Estado, hoje, não pode mais ser concebido como a figura hobbesiana do
Leviatã, o monstro exibido por Jeová a Job para demonstrar o seu poderio.A
criação do mito do Leviatã foi o esforço político imaginativo da unidade do
poder no âmbito de um determinado território, isto é, do poder do Estado
soberano de declara, uma única e exclusiva instância, a positividade jurídica com
estatização das fontes do direito. (2016, p. 56).

A menção à Hobbes demonstra justamente o contrário do que se pressupõe para


o poder em uma concepção democrática. No entanto, é algo ainda arraigado desde
períodos anteriores ao de busca pela efetivação do Estado Democrático de Direito, embora
esforços doutrinários já viessem sendo empreendidos para eliminar a relação entre poder e
tirania, como lecionou José Alfredo de Oliveira Baracho:

O poder é encontrável em todos os estágios sociais, podemos configurá-lo


desde a simples relação interindividual até as estruturas complexas. Como
característica fundamental do poder político aceita-se a coação que o respalda,
através da possibilidade de inclusive apelar para processos que o tornam eficaz.
Entretanto não se deve concluir que ele se reduz ao mero emprego da força,
mas objetiva-se em esquemas de unificação e coordenação da vida social. (1977,
p. 135).

~ 384 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

De igual sentido, adverte Ronaldo Brêtas:

O poder pode ser compreendido como relação sociopsicológica, fundada no


efeito recíproco das ações daqueles que o detêm e o exercem e das ações de seus
destinatários, ou seja, daqueles perante os quais o poder é exercido. (...) Como
controle social, deve-se entender a função de se tomar determinada decisão e a
capacidade que os detentores do poder têm de obrigar os destinatários deste
mesmo poder a obedecê-la. (2004, p. 62).

O mesmo Ronaldo Brêtas é firme ao indicar que não há estudo aprofundado no


Brasil acerca do Direito Político, que cuida justamente do estudo ao equilíbrio harmonioso
entre o exercício de poder pelo Estado, a preservar a sua ordem e autoridade, e a garantia
da liberdade aos destinatários deste poder. O estudo do Direito Político,tem seu objetivo
de primar pelo controle aos abusos e arbítrios do poder, e concomitantemente possibilitar e
assegurar a plenitude das liberdades fundamentais do povo (BRÊTAS, 2015, p. 12). Em
direção semelhante também expunha EduardoCouture, ao mencionar sobre jurisdição, por
entender que a noção de poder está intimamente atrelada à noção de dever do Estado, em
verdadeira realização de suas funções mediante exercício de poder258.
Inclusive, as presentes ponderações nos encaminham para a seguinte questão:
onde se insere o povo no exercício de poder pelo Estado? É o que se buscará desmistificar
a seguir.

3.2. Povo: destinatário ou possuidor do Poder?

Segundo célebre lição de Friedrich Müller, “o povo é instância global da atribuição


da legitimidade democrática, já que dele decorreria a estrutura de legitimação.” (2003, p. 76-
77). Neste sentido, o primeiro pensamento que se tem a respeito da relação existente entre
povo e poder é aquele advindo do texto da Constituição Brasileira de 1988, que, no
parágrafo único de seu artigo 1º, já enfatiza que “todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição”.
Esta noção dada pela Constituição de 1988 já denota que, em um Estado que se diga
democrático, o poder só poderá derivar do povo, e não de uma pessoa específica, entidade
ou órgão que utilize de métodos contrários aos Direitos e Garantias Fundamentais

258 “Em algunos textos legales se utiliza el vocablo jurisdicción para referirse a la prerrogativa, autoridade o poder de
determinados órganos públicos, especialmente losdel Poder Judicial. Se alude a la investidura, a la jerarquia, más que a la
función. La noción de jurisdicción es um poder-deber. Junto a la facultad de juzgar, el juez tiene el deber administrativo de
hacerlo. El concepto de poder deve ser substituído por el concepto de función.” (COUTURE, 2007, p. 25)

~ 385 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

expressos no texto constitucional e derivados da Declaração Universal dos Direitos


Humanos.
Ao tecer considerações sobre a Teoria do Poder Constituinte, Paulo Bonavides a
estabelece totalmente distinta do Poder Constituinte, este entendido como ato de uma
sociedade em prol de viabilizar a sua própria organização (tal como ocorre com o próprio
Estado, e a criação de sua “lei de organização”, tal como a Constituição). A teorização
deste Poder, formulada no final do Século XVIII, teria contribuição necessária para se
aclarar e distinguir a figura do poder legitimamente consentido e a condensação material do
poder, importantes para uma posterior fundamentação de um Estado de Direito inspirado
em valores da liberdade humana. Bonavides ainda reforça que, sem o poder constituinte, as
figuras de povo e nação não teriam vingado, assim como provocariam a criação de uma
versão de soberania contida no próprio poder constituinte (BONAVIDES, 2005, p. 141-
143).
Tal raciocínio encaminha para a ideia de que o poder constituinte manifesta um
conceito de legitimidade, bem como virtudes e valores que são intimamente relacionados
com o seu titular. Sendo o poder constituinte atributo essencial de soberania,
estatuinovamente Bonavides que:

O poder constituinte se presta pois a toda sorte de dificuldades se não


desviarmos os escolhos que resulta da inobservância ou desconhecimento de
semelhantes aspectos básicos. Sendo, contudo, atributo essencial da soberania,
converte-se ele em noção-chave de toda a Teoria do Estado em virtude de
marcar com a máxima clareza a ocasião culminante em que a titularidade do
poder é colocada numa instituição: o Estado, pessoa jurídica, e não em uma
divindade, pessoa sobrenatural ou num indivíduo, pessoa física. Vem assim esse
conceito completar ou coroar, juridicamente, o processo de institucionalização e
despersonalização do poder, alicerce de todo o Direito Constitucional Moderno
(BONAVIDES, 2005, p. 144).

As concepções ora transcritasconduzem para uma dicotomia de compreensão


acerca da própria titularidade do poder constituinte, a qual é ressaltada de forma bastante
clara por Bernardo Gonçalves Fernandes:

Sobre a titularidade do Poder Constituinte originário devemos ainda tecer


algumas considerações. (1) Para a compressão clássica – que corresponde ao
paradigma liberal – o Poder Constituinte originário, como criador de um novo
texto constitucional, encontrava na figura da Nação o seu ‘titular’. Tal ideia
decorre da obra do Abade Sieyès, ‘O que é o Terceiro Estado?’, e irá buscar
afirmar uma identidade entre o povo e seus representantes que, por sua vez, se
reuniriam com o único propósito de formar uma Assembleia Constituinte para
redação do texto constitucional. (...) (2)Já a versão moderna a partir das lições de
Jelinek, irá conceber o titular do Poder Constituinte na figura do Povo – como

~ 386 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

conceito jurídico –, ao invés da Nação – conceito este fortemente ligado a


noções sociológicas e antropológicas (2013, p. 131-132).

Nesta quadra de raciocínio, ao se buscar compreender o papel do povo em sua


relação com o poder, poderíamos concebê-lo tanto como fonte do poder, quanto como
destinatário do poder. Quantoao primeiro aspecto, estaríamos sob o pálio da própria
Constituição Brasileira de 1988, donde se atribui ao povo emanar o próprio poder, por sua
própria legitimação. Quanto ao segundo aspecto, na medida em que é sujeito de deveres, tal
como advertiu Konrad Hesse259, perante as funções do Estado, bem como da própria
representatividade democrática que confere por meio do sufrágio universal 260.
Segundo leciona Canotilho, “o povo concebe-se como povo em sentido político,
isto é, grupo de pessoas que agem segundo ideias, interesses e representações de natureza
política.” (2000, p. 75). Portanto, poderíamos conceber o exercício de poder direto pelo
povo via das ações constitucionais e demais mecanismos de garantia dos Direitos
Fundamentais colocados à sua disposição, e de forma indireta por meio de seus
representantes, escolhidos por maioria de votação em pleitos democraticamente
organizados. Fato é que não há como se conceber o poder do Estado, e certamente a sua
origem, sem entender o povo como a própria nascente deste poder do Estado.
Deste modo, encaminhamos a entender como se realiza a atuação Estatal, por
meio de seus órgãos, bem como a legitimação necessária para que sejam praticados e
respeitados pela comunidade do seu território, o povo.

3.3. Poder ou Função? A necessária Legitimação aos atos do Estado e o


Processo Constitucional

Todo o descrito até aqui nos encaminha para a certeza de que o Estado exerce
poder, viabilizando-o em seus atos. Contudo, baseando-se na célebre doutrina de
Montesquieu, não se pode partir da premissa equivocadamente conduzida por alguns
doutrinadores de que o Estado se divide em poderes (MAUS, 2009, p. 140-143; PEREIRA,
2012, p. 140-143), sendo comumente creditadaao filósofo francês sobre a criação desta
concepção rígida e estática.
Diferentemente, é preciso que se faça a leitura das ideias de Montesquieu não de
forma rígida, mas sim concebendo uma distribuição do poder do Estado, de forma

259Sobre a posição de Hesse, conferir citação direta contida no item 1 deste estudo.
260“(...) deve-se, compreender, de imediato, o sufrágio universal como o direito de votar concedido a todos os
nacionais, natos ou naturalizados, homem ou mulher.” (DEL NEGRI, 2016, p. 176.)

~ 387 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

equilibrada e visando resguardar as liberdades individuais do povo, mediante funções


competentes e qualificadas para este mister. José Alfredo de Oliveira Baracho, inclusive,
afirmara que “a teoria rígida e inflexível não está no próprio Montesquieu, mas em muitos
intérpretes que lhe deram contornos rigorosos.” (1984, p. 27). Em mesmo sentido,
Ronaldo Brêtas é enfático ao pontuar:

(...) desejamos considerar que esses mencionados Poderes do Estado, na dicção


constitucional brasileira, em visão tripartida e antiquada – Poder Legislativo,
Poder Executivo e Poder Judiciário – só podem ser compreendidos, segundo
concepção doutrinária mais atual, como sistemas ou complexos de órgãos aos
quais as normas da Constituição atribuem competências para o exercício das
qualificadas funções fundamentais do Estado. (2015, p. 26).

A partir desta premissa,em concepção atual (ou pós moderna), o exercício dos
atos do Estado deve sempre observar os ditames básicos que lhe apregoa o Estado
Democrático de Direito. Em outras palavras, tais atos devem observar tanto o princípio do
Estado de Direito, ou seja, balizar-se estritamente no conteúdo de sua Constituição e todo
o Ordenamento Jurídico, bem como o princípio Democrático, pelo respeito à efetiva
participação do povo e, sobretudo, do respeito aos Direitos e Garantias Fundamentais a
que este povo faz jus. Estas condicionantes nos encaminham à certeza de que,
concebendo-se um ambiente de necessária processualidade democrática, há de se inserir o
Processo Constitucional como forma de viabilizar a legitimidade dos atos do Estado, quer
seja pela atuação direta e concreta do povo, quer seja pela procedimentalidade por ele
guiada, com estrita observância das normas constitucionais. Por esta razão, definiu
Rosemiro Pereira Leal:

A cidadania, como direito-garantia fundamental constitucionalizado, só se


encaminha pelo processo, porque só este reúne garantias dialógicas de liberdade
e igualdade do homem ante o Estado e na criação e reconstrução permanente
das instituições jurídicas, das constituições e do próprio modelo constitucional
de processo. (...) O processo, como instituição jurídica deste mesmo
ordenamento, define-se como bloco de condicionamentos do exercício da
jurisdição na solução dos conflitos e da validade da tutela jurisdicional, que, não
mais sendo um ato ou meio ritualístico, sentencial e solitário do Estado-juiz é o
provimento construído pelos referente normativos da estrutura institucional
constitucionalizada do processo. (2016, p. 62).

Por tal razão, o Processo Constitucional é meio pelo qual a legitimação dos atos
do Estado pode ser concretizada, viabilizando, de forma direta ou indireta, a participação
do povo, já que os atos do Estado não podem surgir de uma vontade única, mas sim de
uma intensa participação e fiscalização do povo interessado, porquanto considerado como
a própria origem do poder Estatal. Apesar de toda a questão conjectural que muitos
~ 388 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

possam pensar, ao conceber o povo como fonte do poder do Estado, investido de Direitos
e Garantias Fundamentais e legítimo soberano em uma democracia, é preciso que se utilize
do Processo Constitucional, que também se configura em Garantia Fundamental, para que
não se incorra na advertência dada por Friedrich Müller, acerca do agir do próprio povo
(ou sua inércia) o colocar sob o signo de um ícone261, face a todo e qualquer arbítrio que o
Estado possa cometer em seu desfavor. Apesar desta ressalva, o mesmo Mülleré enfático
ao ressaltar que o povo deve sempre ser visto como “instância global da atribuição da
legitimidade democrática”, porquanto estrutura a própria legitimação do agir do Estado
(2003, p. 76-77).Por isto, André Del Negri ressalta:

Essa classificação de Friedrich Müller poderia se encaixar na redação do art. 1º


da Constituição Federal, parágrafo único, que destaca que ‘todo poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos diretamente, nos termos
desta Constituição’. Neste enfoque, teria o povo direito de ‘revolta’
(desobediência civil) contra o ordenamento jurídico, mesmo os não-votantes ou
os eleitores vencidos nas eleições, pois o povo exerce a dominação legítima,
mediado, evidentemente, pelas normas que permitem a qualquer interessado
fiscalizar e reivindicar (2016, p. 15).

Como já se ressaltou alhures, o trecho da Constituição já dá o próprio caráter


democrático do Estado Brasileiro, ao conceber como legítimo apenas aquele poder que
derive do povo, e, por conseguinte, legítimos os atos do Estado que garantam a estrita
participação do povo, direta ou indiretamente, fazendo com que seus Direitos
Fundamentais sejam permanentemente obtidos e garantidos pela via de um Processo
Democrático.
Seguindo o raciocínio, concebendo-se o poder emanado do povo, e este como um
dos principais aspectos de formação do Estado, há de se avaliar a legitimidade dos atos do
Estado, notadamente os legislativos e jurisdicionais, sob a ótica de uma
procedimentalização que inclua a participação do povo de forma definitiva, notadamente,
pela única via que garanta esta inserção: uma processualidade constitucional democrática.

261 “A instância prolatora da sentença com caráter de obrigatoriedade, que não se pode basear em textos de
norma de modo plausível em termos de método, exerce contrariamente uma violência que ultrapassa esse
limite, uma violência selvagem, transbordante, consistente tão somente nesse ato que já não é constitucional;
ela exerce uma violência ‘atual’. Neste caso a invocação do povo, a ação ‘em nome do povo’ é apenas icônica.
Diante de tal configuração não se trata nem do ‘povo’ ativo nem também apenas do ‘povo’ de atribuição; e
muito menos aí o povo está exercendo a dominação real. Mas fala-se como se ele estivesse exercendo a
dominação real, como se tivesse agido de forma mediada, como se legitimasse por meio da lealdade mediada
por normas. Nesse caso usamos o povo como sucesso da justificativa pré-democrática, supramundana: eis o
legitismo ‘por obra e graça do povo’.” (MÜLLER, 2003, p. 67)

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Direitos Humanos & Fundamentais

4. LEGITIMIDADE DOS ATOS LEGISLATIVOS E JURISDICIONAIS SOB


UMA ÓTICA DEMOCRÁTICO-CONSTITUCIONAL

Encaminhando-se para o final destas considerações, e, já tendo como premissa


essencial para a obtenção de legitimidade democrática aos atos legislativos e jurisdicionais a
participação do povo por via do Processo Constitucional, embora até aqui as conclusões já
saltem ao entendimento de qualquer leitor, há que se observar de forma específica como se
atinge a dita legitimidade. Afinal, se busca a verdadeira e efetiva construção do Estado
Democrático de Direito, algo que, indelevelmente, passa pelo caráter legítimo do exercício
de poder pelo Estado, bem como pelo respeito aos Direitos e Garantias Fundamentais do
povo.

4.1. Constituição como baliza essencial

Considerada como verdadeira pedra fundamental de um Estado, a Constituição


deve ser considerada como baliza essencial de toda e qualquer atividade do Estado. Esta
ideia é endossada pelo constitucionalista português Jorge Miranda, no momento em que
afirma que a vinculação dos órgãos do poder às normas constitucionais ocorre tanto em
relação à necessária vinculação e conformidade de cada lei ou ato do Estado aos preceitos
constitucionais (como manda o artigo 3º, n. 2, da Constituição Portuguesa), quanto ao
necessário respeito dos atos públicos à criação de condições objetivas que possibilitem aos
cidadãos fruírem efetivamente de seus direitos no âmbito do Estado Democrático de
Direito (MIRANDA, 2009, 70).
Considerando a menção à Constituição Portuguesa, é interessante observar como
262
seu artigo 3º é fundamental para se entender sobre a necessária vinculação de todo e
qualquer ato do Estado ao que nela esteja prescrito, sob pena de que o mesmo não seja
sequer válido. Em um Estado Democrático de Direito, é premissa essencial para que todos
os atos praticados, desde simples memorandos até a edição das mais complexas leis, atos
decisórios em qualquer grau de instância, enfim, todo o agir do Estado, esteja em
conformidade com a Constituição. Afinal, conforme ressaltou Clèmerson Merlin Clève:

262“Artigo 3.º. Soberania e legalidade:


1. A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.
2. O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática.
3. A validade das leis e dos demais actos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer
outras entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição.”

~ 390 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

As Constituições, hoje, são documentos normativos do Estado e da sociedade.


A Constituição representa um momento de redefinição das relações políticas e
sociais desenvolvidas no seio de determinada formação social. A Constituição
não apenas regula o exercício do poder, transformando a potestas em auctoritas,
mas também impõe coordenadas específicas para o Estado, apontando o vetor
de sua ação. A Constituição opera força normativa, vinculando, positiva e
negativamente, os poderes públicos. Os cidadãos têm, agora, acesso direto à
normativa constitucional, inclusive para buscar proteção contra o arbítrio ou a
omissão do Legislador (2012, p. 38).

Neste prisma, José Alfredo de Oliveira Baracho já colocava o processo como


verdadeiro princípio e Garantia constitucional posta em favor do povo, já que “é um
princípio que decorre da juridicidade do Estado e que serve para eliminar todos os resíduos
de discriminação em favor do poder público” (1995, p. 19). Por esta razão, não se pode
conceber a lei pura e simples como aspecto legitimador, ainda que seja uma Constituição.
Afinal, como concebeu Max Weber em suas linhas, a dominação legal, como um dos 3
tipos puros de dominação legítima, demonstra que “qualquer direito pode ser criado e
modificado mediante um estatuto criado e sancionado corretamente quanto à forma.”
(2003, p. 128). Diversamente, há que se observar a Constituição não como mecanismo de
dominação, mas sim mecanismo de controle à tal dominação do povo por atitudes
despóticas do Estado, ou de quem esteja comandando os seus atos, já que, como advertiu
Karl Lowenstein, “siendolanaturaleza humana como és, no cabe esperar que eldetentador o
losdetentadoresdel poder seancapaces, por autolimitación voluntaria, de liberar a los
destinatários del poder y a si mismodel trágico abuso del poder.”263.
Por tais razões é que a Constituição é sim a baliza essencial para o agir do Estado,
mas, para que se garanta a real legitimidade democrática que se espera, há de se conceber a
processualização de todo e qualquer ato que emane de seus ditames, esta condicionada à
atuação do povo por meio do processo. Ademais, a própria Constituição deve, por primor
à sua legitimação aos atos do Estado, ser erigida também a partir de uma processualização
democrática, pois, como já advertiu Rosemiro Pereira Leal:

(...) a permitir que o Estado seja o mesmo em sua ortodoxia opressiva e todista,
a açambarcar todos os níveis de liberdade e privacidade em nome de uma
segurança pública, a CONSTITUIÇÃO em que esse ESTADO estivesse
inserido não teria sido construída a partir do espaço-tempo-processualizado, não
se revestido de qualificação jurídico-democrático-econômica na concepção pós
moderna de DEMOCRACIA aos moldes teóricos aqui desenvolvidos” (2010, p.
65).

263“A natureza humana sendo como é, não há de se esperar que o titular ou titulares do poder sejam capazes,
por auto-limitação voluntária, para liberar os destinatários de poder e a si próprios do trágico abuso de
poder.” (LOWENSTEIN, 1973, p. 149).

~ 391 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Tais afirmações derivam de uma posição democrática, que considera o processo e


os princípios dele derivados (devido processo legal, devido processo legislativo) como
Garantias Fundamentais, em uma perspectiva de ampla aplicação dos Direitos Humanos.

4.2. Participação do Povo na Criação e Fiscalização dos atos do Estado por meio
do Processo Constitucional

A atuação concreta do povo em uma Democracia é ponto crucial, conforme já se


vislumbrou até aqui. Esta participação deve ser identificada em todo e qualquer ato do
Estado, ao se conceber que, num Estado Democrático de Direito, o princípio Democrático
é de obrigatória observância para que se distinga como tal, assim como o próprio princípio
do Estado de Direito, percebido principalmente por meio da legalidade e organização
promovida pelos textos constitucionais.
Um ato jurisdicional se torna legítimo quando o povo atua concretamente para
sua efetivação, mediante o Processo Constitucional. Por esta razão, assim definiu Ronaldo
Brêtas:

Assim o é, porque a decisão jurisdicional (sentença, provimento) não é ato


solitário do órgão jurisdicional, pois somente obtida sob inarredável disciplina
constitucional principiológica (devido processo constitucional), por meio da
garantia fundamental de uma estrutura normativa metodológica (devido
processo legal), a permitir que aquela decisão seja construída com os
argumentos desenvolvidos em contraditório por aqueles que suportarão seus
efeitos, em torno das questões de fato e de direito sobre as quais controvertem
no processo. (2015, p. 164).

De igual sorte é a posição de Rosemiro Pereira Leal:

É o devido processo legal, como co-extenção procedimental do devido processo


constitucional, que vai estabelecer o espaço discursivo legitimador da decisão a
ser neste preparada por todos os integrantes da sua estrutural procedimental. A
atividade processual reconstrutiva neste modelo de decidir, desde a criação da lei
até sua aplicação, supressão ou regulação, é que implicará concreção
fundamentada do projeto constitucional democrático na contrafactualidade do
mundo da vida ou mediante a problematização dos eventuais conteúdos de
legalidade hostil ao paradigma do Estado Democrático de Direito. (2016, p. 89).

Portanto, não há espaço para decisionismo ou protagonismo do Estado na prática


de seus atos, estando-se um ambiente de processualidade democrática. Refutam-se ideias de
que“a função jurisdicional é exercida por magistrados nomeados e obedientes à lei. A
legitimidade deles não está assentada no respaldo popular. Em outras palavras, a
legitimação democrática do juiz não tem comprometimento com as maiorias. O juiz a nada
~ 392 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

e a ninguém representa” (BECATTINI, 2013, p. 25). A afirmação ora transcrita é


totalmente antidemocrática e despótica. Ainda que se entenda a nomeação de magistrado
(investido no poder concedido pelo Estado) posterior à árduo procedimento seletivo, e a
impossibilidade de se tendenciar para um ou outro lado, devendo manter-se a inércia e
imparcialidade do Estado, a legitimidade democrática dos atos do Estado-juiz advém sim
do povo, ao se considerar que as decisões só podem serentendidas como democráticas se
propiciarem ao povo ampla e irrestrita participação em sua construção. Isto porque, ao se
considerar o devido processo legal como conjunto de vários Direitos e Garantias
Fundamentais do povo, tais como o direito de ação, as garantias do juízo natural, da ampla
defesa, do contraditório e da fundamentação racional das decisões (BRÊTAS, 2016, p. 43-
44), consequentemente tem-se de asseverar que a legitimidade do ato jurisdicional do
Estado tenha concreta e indiscutível legitimação pelo povo. Do contrário, não se estaria
concebendo um ato como legítimo, ainda que adstrito à uma legalidade posta.
De igual sorte, a atividade legiferante do Estado se legitima pela inafastável
participação do povo, por intermédio do Processo Constitucional, já que este fortalece a
legitimação democrática de tal ato estatal ao garantir que “o povo pode fiscalizar e
participar do controle democrático de constitucionalidade da elaboração da norma
jurídica.” (BRÊTAS, 2015, p. 30). Afinal, como já dissertou André Del Negri:

Não é plenamente demonstrável que, na instauração do procedimento, somente


os parlamentares é que podem ter legitimidade ad causam. Observe-se que em
sendo o devido processo legislativo de interesse de todos, a exclusão de
‘terceiros estranhos’ à instituição parlamentar (cidadãos?) do controle
jurisdicional preventivo difuso, afasta a legitimidade de os destinatários
(cidadãos e instituições democráticas) fiscalizarem projetos que ferem direitos
líquidos e certos já assegurados na Constituição. Pensamos que as instituições
públicas e cidadãos podem propor mandado de segurança coletivo (art. 5º,
inciso LXX, CB/88), pois na democracia todos têm o direito líquido e certo de
não serem ofendidas com projetos de lei que afrontam direitos fundamentais de
seus membros e associados. (2011, p. 91).

Por tal desiderato é que já se afirmou no presente estudo que não há como se
assegurar que a lei, por si só, garanta a legitimidade de um ato do Estado, já que este ato
normativo pode conter vício antidemocrático desde sua gênese. Não se pode olvidar que
não é incomum que ocorram situações de criação de normas ilegítimas, ou, totalmente
contrárias ao que anseia o povo, sobretudo quando afrontam Direitos Fundamentais. De
forma contrária, o desconhecimento da possibilidade, ou verdadeira necessidade, de
participação do povo no processo legiferante do Estado colima para que muitos de tais
Direitos Fundamentais sejam diuturnamente tolhidos em ambiente legislativo. Apesar desta

~ 393 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

realidade, é preciso se ter em mente que, aqueles designados para a realização da função
legislativa, mediante a escolha do povo por sufrágio universal, devem necessariamente
observar os anseios, necessidades e carências do próprio povo, e não realizarem o seu
mister tolhendo a vontade de quem lhes deu a possibilidade de representa-los. Sobre estas
situações descritas, Rosemiro Pereira Leal já dissertou:

O fato de uma lei ser produzida num parlamento não torna democrático o
direito dela derivado, mesmo que se trate de um Estado constitucional e
declaradamente democrático. É que regimes de dominação estratégica em
variáveis e engenhosas normatividades adotam rótulos constitucionais de ênfase
retórico-democrática como formas patrióticas (cívicas) de gerir o povo icônico
numa cadeia de razões infinitamente messiânicas. (2010, p. 97).

Ao avaliar a atual atividade legiferante no Brasil, e a atuação do Congresso


Nacional, notadamente partindo-se de uma produção precária de normas e da supressão de
Direitos e Garantias Fundamentais, sentencia André Del Negri:

Mas, afinal, quem sofreria o dano maior, a Casa ou o povo? O povo seria a
resposta mais adequada. A preocupação com o levantamento desses desacertos
tem em mira o propósito de demonstrar que o parlamentar, quando atua
divorciado do devido processo, colabora para a produção de
inconstitucionalidades e a violência no sentido derridariano. (2015, p.41).

Por estas razões, a ausência do Processo Constitucional, devidamente


operacionalizado pelo povo, e de uma consequente processualidade democrática,
deslegitima todo e qualquer ato do Estado, notadamente os atos jurisdicionais e legislativos.
Por esta razão, tem grande respaldo o magistério de Rosemiro Pereira Leal:

É que, quando escrevemos, em direito democrático, sobre cidadania como


conteúdo e processualização ensejadora de legitimidade decisória, o que se
sobreleva é o nivelamento de todos os componentes da comunidade jurídica
para, individual ou grupalmente, instaurarem procedimentos processualizados à
correição (fiscalização) intercorrente da produção e atuação do direito
positivado como modo de auto-inclusão do legislador-político-originário (o
cidadão legitimado ao devido processo legal) na dinâmica testificadora da
validade, eficácia, criação e recriação do ordenamento jurídico caracterizador e
concretizador do tipo teórico da estabilidade constitucionalizada.(2016, p. 130).

Nessa quadra de raciocínio, o Controle da Constitucionalidade das normas, seja


no momento da sua criação pelo exercício da função legiferante, seja no momento de sua
aplicação no exercício da função jurisdicional, é de curial importância para que se mantenha
a própria legitimidade de tais atos legislativos ou jurisdicionais, calcada na garantia de
manutenção do mínimo para a vida digna do povo, ou seja, os Direitos Fundamentais.Não

~ 394 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

apenas a norma posta, apreciada em casos concretos pela função jurisdicional, mas também
entendida como regra de conduta (BOBBIO, 2001, p. 24) a todos do povo, donde se
espera do ordenamento jurídico, principalmente, o respeito aos Direitos e Garantias
Fundamentais. Esta estrita fiscalização da constitucionalidade “recai sobre um ato do Poder
Público lato sensu, ou seja, ato de um órgão estatal, titular de uma das três funções estatais
por excelência: da legiferante, executivo-administrativa ou jurisdicional” (MARTINS, 2011,
p. 11), possibilitando ao povo um amplo controle sobre a atividade do Estado, partindo-se
de uma necessária observância àquelas normas que tenham disposições e conteúdo de
Direito Fundamental (ALEXY, 2008, p. 65-66). Conforme pontuou Charley Teixeira
Chaves, nunca é demais relembrar que:

No Brasil existem duas formas de fiscalidade: o controle concentrado ou também


denominado de abstrato e o controle difuso ou incidental. O controle incidental pode
surgir como incidente ou pela via recursal. O reconhecimento da inconstitucionalidade
pela fiscalidade difusa tem como parâmetro o caso concreto (discutido em juízo). (...)
Em regra, a fiscalidade concreta diz respeito ao controle difuso ou incidental e reflete
estritamente as partes interessadas; no caso do controle abstrato, deve ser feito via Ação
Direta de Inconstitucionalidade onde a análise é puramente objetiva, sem lide e com
efeitos que ultrapassam o interesse individual; daí por ser erga omnes e de eficácia
vinculante.” (2016, p. 28-29).

Fato é que, concebendo-se um ou outro meio de controle de constitucionalidade,


este visa, sobretudo, garantir a proteção dos Direitos Fundamentais do povo por via do
exercício da Jurisdição utilizando-se do Processo Constitucional, sem os quais a legitimação
dos atos do Estado não estaria satisfeita. Estas concepções são claramente demonstradas
no magistério de José Alfredo de Oliveira Baracho, citado por Ronaldo Brêtas, de que “o
controle de constitucionalidade das leis não é senão um dos aspectos da jurisdição
constitucional, sendo mais importante, na contemporaneidade, a tutela eficaz que é feita,
por seu intermédio, dos Direitos Fundamentais consagrados no texto da Constituição.”
(2015, p. 54). Igualmente expõe Marcelo Cattoni de Oliveira:

Se compreendermos, portanto, a Constituição democrática como um sistema de


direitos fundamentais, expressão da autonomia pública e privada dos cidadãos, a
Jurisdição Constitucional, no exercício do controle de constitucionalidade, deve
garantir o devido processo legislativo e o devido processo constitucional, no
sentido da garantia dos direitos fundamentais como condições jurídicas de
institucionalização da democracia. (2016, p. 131).

O raciocínio aqui delineado faz crer que o povo precisa atuar em Controle de
Constitucionalidade no momento da edição e também da aplicação das normas, sob pena
de não ser observada nos atos do Estado a legitimidade que o próprio povo deve conferir,

~ 395 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

juntamente com o regramento constitucional. No entanto, como já pontuou André Del


Negri, “o que mais se lamenta, é saber que só poderá haver, no entendimento
jurisprudencial do STF, um controle de constitucionalidade jurisdicional quando leis, atos
normativos ou emendas à Constituição já estiverem em vigência” (2008, p. 173), por
intermédio dos procedimentos constitucionais disponíveis (ADI, ADC, ADPF, dentre
outros). Contudo, este controle não pode se limitar ao campo da movimentação da
Jurisdição Constitucional somente, devendo o povo, concomitantemente, atuar diretamente
junto aos seus representantes políticos no momento da elaboração das normas pela função
legislativa, buscando a garantia de que o mínimo de direitos que permita uma vida digna
seja observado. Enquanto este agir, possível, pode ser viabilizado, há o indelével desejo por
um controle preventivo como instituto constitucional disponível ao povo, controlando o
agir do Estado sob intensa fiscalização (DEL NEGRI, 2008, p. 174-175), pois, conforme já
pontuou Canotilho: “as grandes etapas do homem não foram os juízes que as fizeram, foi o
povo.” (COUTINHO, 2005, p.26).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As observações feitas no presente estudo encaminham à concluir que todo e


qualquer ato do Estado deve observar os Direitos Humanos, sobretudo relativos aos
Direitos e Garantias Fundamentais do povo, positivados nas Constituições. Em segundo
momento, deve-se conceber a estrita participação do próprio povo, notadamente na criação
e fiscalização destes atos Estatais, tornando efetivos seus Direitos e Garantias
Fundamentais. Esta é a única via de legitimação que pode existir para um ato do Estado,
sob pena de não ser considerado genuinamente democrático, mas sim um exercício de
poder fundado em raízes arbitrárias.
O povo, sendo detentor, provedor e destinatário do Poder, deve colocar-se em
posição ativa quanto aos atos Estatais, notadamente os Legislativos e Jurisdicionais,
utilizando-se do Processo Democrático não apenas para movimentar tais funções, mas,
principalmente, garantir que os seus Direitos Fundamentais positivados na Constituição
sejam implementados, garantidos e resguardados. Afinal, são estes direitos aqueles que lhe
garantirão condições dignas de vida, fugindo das mazelas sociais que assolam os tempos
pós-modernos. Ainda que identificada a ausência de procedimentos de fiscalização dos atos
do Estado (sobretudo os legislativos), é preciso que o povo atue junto aos seus

~ 396 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

representantes, garantindo que estes mesmos direitos sejam resguardados desde a gênese de
um conteúdo legislado.
Em síntese, legitimar um ato do Estado pela atuação do povo vai muito além de
identificar validade ou eficácia de efeitos de um ato. É, verdadeiramente, buscar extrair do
povo o caráter de transformador de sua própria realidade, por meio de procedimentos
igualmente legítimos que justifiquem o seu agir como detentor do verdadeiro poder em um
Estado, sobretudo quando este se auto denomine Democrático de Direito. É efetivar
Direitos e Garantias Fundamentais pela plena atuação do povo nesta perspectiva
democrática.

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A RESSIGNIFICAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE:
DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL À
LEI N. 13.456/2017

Livia Pitelli Zamarian Houaiss*


Caroline Buarque Maciel Andrade**

INTRODUÇÃO

A propriedade espelha a relação de domínio do homem sobre a natureza. Dada a


sua relevância na composição socioeconômica e cultural, o instituto exerce papel
fundamental na ascensão do desenvolvimento da sociedade.O conteúdo da propriedade
édefinidopela conjuntura de cada momento histórico vigente, propenso a transformações
conforme o complexo de valores do tempo, do espaço, e de suas respectivas demandas
sociais.
Durante os trinta anos de vigência da Constituição da República Federativa a
delimitação da propriedade sofreu várias influências, em especial reforçando sua
socialização, porém, seu conceito ainda permanece muito atrelado àquele privatista da
doutrina clássica. Opresente estudoobjetiva investigar este novo viés do direito de
propriedade consolidado nos dias atuais, cotejando sua definição tradicional com a previsão
legal vigente, e, considerando a análise do processo evolutivo da sociedade a partir do
desempenho legislativo e jurisprudencial do ordenamento jurídico brasileiro, a fim de que
sejam compreendidas as extensões intrínsecas do seu próprio conteúdo.

CONTORNOS TRADICIONAIS DO DIREITO DE PROPRIEDADE

A propriedade é uma instituição jurídica contemplada no âmbito do direito


público e do direito privado, que desde a antiguidade atende as necessidades dos indivíduos
e se destaca pela sua importância em determinar e organizar a ordem econômica, política e
social dos Estados. Em sentido amplíssimo, Pontes de Miranda define a propriedade como

*Doutouranda pelo PPGSD (UFF). Mestre em Direito (ITE).


**Discente do curso de Direito da UFRRJ/IM; membro do grupo de pesquisa DIALOGOS (CAPES/CNPq)
na linha "Direito Civil Além do Judiciário".

~ 403 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

uma forma de domínio ou qualquer direito referente a questões patrimoniais, constituído


em virtude de ter incidido regra de direito das coisas sobre bens corpóreos e incorpóreos.
(MIRANDA, 1957)
Entendida como forma de aquisição de domínio, é necessário compreender que a
posse é o conteúdo da propriedade. Para Savigny (1866), a posse se constitui pela junção de
dois elementos: corpus e animus. O elemento corpus, caracteriza o elemento objetivo
equivalente a detenção física da coisa, ao passo que o animus consiste no elemento
subjetivo, isto é, na vontade de exercer poder sobre a coisa, protege-la de terceiros e agir
como se proprietário fosse.
Matriz dos direitos reais e âmago da relação de pertencimento, o direito de
propriedade conjecturou a sua essência sob a influência da organização política e dos
sistemas econômicos contemporâneos ao cenário histórico em que foi concebida a sua
configuração. A propriedade moderna é, pois, produto resultante de um procedimento que
sofreu mutações ao longo da história até chegar a sua concepção atual.
Dentre as principais fases em que o instituto foi constituído, destacam-se o
sistema jurídico romano, o sistema medieval e a influência da Revolução Francesa e do
regime do Estado liberal e capitalista.
Como observam Rosenvald e Farias, desde a Antiguidade, os homens procuraram
atender suas necessidades através da apropriação de bens e fizeram do verbo ter um indício
para o direito subjetivo de propriedade:

Inicialmente, o homem pertencia à terra; com o tempo a terra passou a


pertencer ao homem, em um processo que inicia com a busca por bens de
consumo imediato; com o tempo, o domínio de coisas móveis, até perfazer-se a
noção de propriedade, progressivamente complexa e plural (ROSENVALD,
FARIAS, 2015, p.212)

Antecedendo à época romana, os povos primitivos associavam a propriedade para


coisas móveis, principalmente sobre objetos de uso pessoal, como os utensílios de caça,
utensílios de pesca e os vestuários. O solo era de pertencimento da coletividade e sobre ela
não havia o sentido de senhorio. (VENOSA, 2013)264. No decorrer da história, a utilização
contínua do território pelo mesmo povo criou uma ligação entre o homem e a terra que
habitava, advindo, assim, a percepção de propriedade individual, que foi deixando
gradativamente sua forma coletiva. Essa consciência de propriedade individual e perpétua,
considerando o domínio de forma absoluta, enraizou-se no período romano.

264Observa Silvio Venosa que a propriedade coletiva primitiva é,por certo, a primeira manifestação de função social. (VENOSA, 2013, p.
158)

~ 404 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

O sistema jurídico romano foi responsável por determinar a estrutura da


propriedade, sem, contudo, qualificá-la como o que a doutrina denomina de ius in re. Isso
significa dizer que os romanos não aludiram a propriedade como direito real por
excelência, tampouco elaboraram um conceito para representar esses direitos. 265 Os
romanos, contudo, estabeleceram as formas de aquisição da propriedade, visto que era
admitido a aquisição da propriedade por mera tradição, como também a aquisição por
transferências de hipotecas, além da projeção dos atributos do ius utendi, fruendi et abutendi
previstos na Lei das XII Tábuas.
Com efeito, no período medieval a propriedade rompe o caráter unitário da
propriedade, valendo-se do que Orlando Gomes (2012) assenta de dissociação através do
binômio: domínio eminente e domínio útil. No sistema feudal, as relações de vassalagem
permitiam que o senhor do domínio eminente concedesse em favor do seu vassalo a
utilização econômica de uma parcela de terra, em troca de serviços e fidelidade. A
propriedade na Idade Média tornou-se sinônimo de poder, tendo em vista que, aquele que
podia dispor e ceder o solo era aquele que conservava o poder político e podia o exercer
sem restrições.Os vassalos não detinham o senhorio da terra e figuravam apenas como
meros servos do senhor feudal. Quanto aos plebeus, muitas vezes eram obrigados a se
retirar de suas terras pelos mais poderosos.
A partir do século XVIII, o caráter unitário tradicional da propriedade romana é
restaurado e a propriedade deixa de ser um monopólio da nobreza. Por meio da expansão
dos ideais do iluminismo e da ideologia liberal, a concepção individualista da propriedade
foi reforçada, representando o êxito da racionalidade humana e da sua manifestação de
liberdade. Com o advento da Revolução Francesa e a promulgação da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o instituto teve seu reconhecimento como um
direito fundamental, “sagrado”, de âmbito universal, inviolável e acima dos interesses do
particular, do qual ninguém “[...] pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública
legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização” (art. 17º).
A primeira dimensão de direitos fundamentais se compôs nas garantias das
liberdades individuais, com conteúdo de caráter negativo, assegurando direitos inatos aos
indivíduos e impondo o dever de abstenção do Estado. A propriedade se elevou a condição
de direito natural, em pé de igualdade com as liberdades fundamentais (GOMES, 2012) já
que ao seu exercício não se defrontavam restrições. Dentre os direitos garantistas, a
265 Esta noção formou-se a partir do século XVIII, com Pothier, transpassando aos romanistas do século
XIX como também, a uma parcela de autores modernos. (PEZZELLA, Maria Cristina Cereser. Propriedade
privada no direito romano. Porto Alegre: Fabris, 1998. p. 131 apud GOMES, Orlando. Direitos Reais, 2012,
p.111)

~ 405 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

propriedade se destaca como o mais relevante, principalmente sob o ponto de vista


econômico liberal, contornado pela ideia do laissez faire.266
A influência dos ideais burgueses passou a limitar o poder estatal e a regular as
relações privadas. A liberdade individual, a propriedade privada e a máxima da autonomia
da vontade são provenientes dos fundamentos teóricos e ideológicos do Estado Liberal,
que passou a interferir no campo principiológico do direito. A liberdade de contratação
tornou-se um meio de viabilizar a manifestação da autonomia de vontade, partindo da
premissa de que a liberdade contratual traria igualdade formal entre as partes e igualdade
econômica para o acesso à propriedade.
Segundo Orlando Gomes, o “contrato converteu-se em instrumento por
excelência da autonomia da vontade, confundida com a própria liberdade, ambas
impensáveis sem o direito de propriedade privada.” (GOMES, 2012, p. 111). Neste
seguimento, a escola jusnaturalista passou a pleitear leis a fim de delimitar a propriedade.
No Código de Napoleão de 1804, a propriedade foi considerada como um fato econômico
de utilização da coisa (FARIAS, ROSENVALD, 2015) e manifestou-se o seu caráter
extremamente individualista e absoluto. Nos termos do artigo 544 do mencionando código:
"a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que
não se faça uso proibido pelas leis ou regulamentos".
Sucessivamente, o individualismo extremo foi perdendo força, sobretudo em
razão da Revolução Industrial e da disseminação de doutrinas socializantes, influenciadas
fortemente pelo marxismo. A propriedade passou a buscar o seu aspecto social, visando o
equilíbrio dos interesses do homem proprietário e das necessidades da sociedade. O
enfoque do aspecto da função social da propriedade, foi demonstrado a partir da Encíclica
do Quadragésimo Ano, onde Pio XI apresentou a premência do Estado em reconhecer a
propriedade e resguardá-la, porém, em função do bem comum. (GONÇALVES, 2012)
Embora a propriedade tenha sido elevada a regra fundamental própria dos
indivíduos, com o tempo, este direito deixou de ser absoluto e de exercício incontestável.
O poder do proprietário recebeu restrições, revelando assim, a proeminência do interesse
coletivo sobre a vontade privada.

266A respeito do laissez faire, apontam Farias e Rosenvald que “a função estatal primordial era a de defender
a segurança do cidadão e da sua propriedade. Os demais problemas sociais seriam solucionados pela ‘mão
invisível’ do mercado.” (FARIAS, ROSENVALD, 2015, p.213).

~ 406 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

CONCEITO LEGAL DE PROPRIEDADE NO DIREITO BRASILEIRO

No ordenamento jurídico brasileiro, a propriedade já era garantida na Constituição


de 1824, muito embora à época, com o conceito absolutista, que só veio a ser atacado com
a Constituição de 1934, primeiro texto constitucional pátrio a prever a noção de função
social da propriedade ao determinar seu exercício conforme o “interesse social ou coletivo”
(Art. 113, inciso 17), sob influência da Constituição alemã de Weimar. A previsão não foi
repetida na autoritária Constituição de 1937, mas voltou a ser objeto constitucional na
Constituição de 1946 que condicionava o uso da propriedade ao “bem-estar social” (art.
147). A expressão “função social” só foi introduzida expressamente na Constituição de
1967 (art. 157), mantida na Constituição de 1988, sem seu artigo 5º inciso XXIII que “a
propriedade atenderá a sua função social”. (GOMES; ZAMARIAN, 2011).
Constitucionalmente, a propriedade é consagrada como um direito fundamental
do indivíduo, inserida no rol extenso de direitos e garantias fundamentais, previsto no
artigo 5º, inciso XXII. Em razão da sua condição de direito fundamental, a propriedade
compreende o conjunto de direitos basilares da ordem política e socioeconômica do
Estado. Deste modo, o instituto acarreta consigo o caráter de direito inviolável, universal,
efetivo, indisponível, perpétuo, exclusivo, com proteção à interferência estatal. Com fulcro
na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, suas características estão
relacionadas às ideologias de liberdade e trabalho relativas à condição humana, oriundos da
primeira dimensão de direitos fundamentais.
A segunda dimensão de direitos fundamentais acentuou valores sociais,
econômicos e culturais, de titularidade coletiva e caráter positivo, tendo em vista que não
mais exigem a abstenção do Estado, mas sim a sua atuação. Esses valores foram arrojados
no texto constitucional de 1988 ao positivar o princípio da função social, limitando o poder
de exercício do proprietário e visando o bem-estar comum da sociedade e a igualdade
material entre os homens.
A propriedade pode então, ser compreendida sob duas perspectivas, na qual
Rosenvald (2018) estipulou como “tensão entre direito de propriedade e direito à
propriedade” O direito de propriedade vem a ser a garantia institucional e direito
fundamental do indivíduo motivado pela noção de liberdade do homem e pela concessão
de direitos de apropriação de bens, com caráter exclusivo e erga omnes. Por sua vez, o
direito à propriedade volta seu olhar para o direito fundamental social, com respaldo no
princípio da igualdade material, que confere a todo ser humano de não ser privado do

~ 407 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

direito de possuir alguma coisa. O direito à propriedade justifica não somente direitos
envolvidos ao bem-estar da coletividade, mas também, direitos que se destinam a auferir
justiça social e a universalização do acesso à propriedade.
Na esfera do direito privado, a primeira codificação civil brasileira, o Código Civil
de 1916, trouxe as regras gerais nos arts. 524 a 529. A doutrina clássica à época, já entendia
a propriedade comoplena in re potesta, direito real por excelência (PEREIRA, 2014),
considerada pelos civilistas como a matriz dos direitos reais e núcleo central dos direitos
das coisas.
Orlando Gomes prelecionava que o direito de propriedade é o mais amplo dos
direitos reais e seu conceito por ser delimitado a partir de três critérios: o sintético, o
analítico e o descritivo:

Sinteticamente, é de se defini-lo, como submissão de uma coisa, em todas as


suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir e dispor de
um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. Descritivamente, o
direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica
submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei. (GOMES, 2012,
p.103)

Em sua problemática conceitual, Caio Mário da Silva Pereira entende que “todos
os bens são apropriáveis, ou que o homem, como sujeito da relação jurídica, tem a
faculdade de dominação sobre todas as coisas dentro dos limites e com as restrições
instituídas em lei” (PEREIRA, 2014, p. 81)
As regras gerais da propriedade privada foram reformuladas no Código Civil de
2002 (arts. 1228 a 1232), sob influência da função social prevista expressamente na
Constituição de 88e passou a adotar um viés muito menos individualista.
Neste plano legal, não foi estabelecido uma definição concreta a respeito da
propriedade. Entretanto, o Código Civil Brasileiro disciplinou em seu artigo 1228 os
poderes facultativos do proprietário de usar, gozar, dispor e reaver a coisa do poder de
quem quer que a injustamente a possua ou detenha. Aproximando-se do Direito
Constitucional e da preocupação com o coletivo, o artigo 1228 § 1º do Código Civil passou
a aduzir:

Artigo 1228 [...]


§ 1º: O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas

~ 408 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A manifestação exagerada do individualismo dos dois últimos séculos e o


reconhecimento de direitos naturais universais, imutáveis e invioláveis, desvirtuaram o bom
senso do que se espera dos direitos subjetivos, tornando-se necessário a introdução do
princípio da função social no ordenamento e a revisão do direito de propriedade
propriamente dito.
A histórica sobrelevação das correntes jusnaturalistas e positivistas trouxeram
reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. A perspectiva pós-
positivista e axiológica do direito, flexibilizaram a concepção de garantias incontestáveis,
trazendo para Constituição princípios materiais, instrumentais e específicos, propiciando
uma forma moderna de hermenêutica constitucional. (BARROSO, 2001)
Barroso afirma que o direito é um sistema de normas harmonicamente articuladas,
mas que em determinados momentos enfrenta antagonismos imperiosos, “como os que
existem entre a liberdade de expressão e o direito de privacidade, a livre iniciativa e a
intervenção estatal, o direito de propriedade e a sua função social” (BARROSO, 2001,
p.35). Nessa conjuntura, a propriedade deixa de ser um direito subjetivo absoluto e atenta
para sua função social, que pode ser compreendida como um instituto relacionado ao
cumprimento de exigências inerentes às finalidades precípuas da coisa.
A ordem jurídica é, pois, movida por fins, tendo como objetivo proporcionar a
adequação do direito ao bem-estar comum. Acentuam Farias e Rosenvald que “aausência
de finalidade provoca a perda da base de legitimidade substantiva do ordenamento.”
(FARIAS, ROSENVALD, 2015, p. 256)
O conteúdo correlato ao direito de propriedade deve ser tutelado pela utilidade
pública e pelo interesse comum da sociedade. A função social figura como um mecanismo
de controle da vontade privada e, como umas das principais restrições do direito de
propriedade, demonstrando que em determinados casos, é necessário sacrificar interesses
individuais em prol do bem geral da coletividade. Nesse sentido, as interpretações das
normas jurídicas, devem corresponder ao meio que os cerca, se adaptando aos seus confins
e necessidades.
Nota-se que a função social foi prevista no texto constitucional não como um
limite da propriedade, mas como um componente que baliza o seu exercício, conforme
doutrina de Duguit, “para quem a propriedade já não é o direito subjetivo do indivíduo,
mas uma função social a ser exercida pelo detentor da riqueza” (apud MALUF, 2011, p.
73), e nesse mesmo viés foi replicada no citado art. 1228, §1º, do Código Civil.
O legislador de 2002 optou por utilizar uma cláusula aberta, técnica que permite

~ 409 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

adaptar os conceitos abstratos às necessidades atuais da coletividade conforme o caso


concreto, impedindo o engessamento da real função almejada, para concretizar a função
social em seu duplo viés (ASCENSÃO, 2000), jurídico-positivo e jurídico-negativo.
Na legislação civil, a propriedade é ainda restringida por imposições de não fazer
como o direito de vizinhança, institutos e imposições de direito administrativo, que se
configuram como limites negativos e externos que devem ser observados no exercício da
propriedade.

OS 30 ANOS DA PROPRIEDADE: DA FUNÇÃO SOCIAL AO DIREITO DE


LAJE

Muito embora a Constituição Federal de 1988 tenha consagrado o direito de


propriedade com natureza de direito fundamental do indivíduo, não alude-o a um direito
ilimitado, como visto, posto que deve ser exercido de acordo com seus compromissos
econômicos e sociais, imprescindíveis ao bem-estar coletivo e a segurança jurídica do país,
contornos estes que já fazem parte do próprio conceito atual de propriedade.
A delimitação constitucional da matéria aliada às disposições na redação original
do Código Civil de 2002 relatadas já trazem indícios do movimento de “socialização
progressiva da propriedade” identificado por Maluf (2011, p. 73-74), que passa a ser
orientada pelo “critério da utilidade social para a maior e mais ampla proteção aos
interesses e às necessidades comuns”.
A evolução histórica e social revela que a noção de propriedade e de função social
se transformam em razão do tempo e das demandas contemporâneas de cada caso
concreto. Em que pese o seu caráter progressivo, observa Gustavo Tepedino (1997, p. 321-
322) que “a função social modificar-se-á de estatuto para estatuto, sempre em
conformidade com os preceitos constitucionais e com a concreta regulamentação dos
interesses em jogo.”
A implementação da função social do direito de propriedade, vem se ampliando e
se intensificando de tal forma, que é possível afirmar, nestes trinta anos da Constituição
Cidadã, o esforço do ordenamento jurídico em geral, pela via legislativa e decisões judiciais,
de mitigar o absolutismo da propriedade de outrora privilegiando sua adaptação às
demandas sociais, aos interesses coletivos. A tendência de concretização desse novo viés da
propriedade, é comprovada na atuação jurisprudencial e legislativa como os diversos
exemplos elencados ao longo deste período.

~ 410 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

O RECONHECIMENTO JUDICIAL: OS CASOS DA FAVELLA


PULLMAN E A RAPOSA DO SOL

Aos longos destes trinta anos de vigência constitucional a jurisprudência vêm


desempenhando importante papel na concretização deste viés atual de propriedade,
gradativamente deixando de lado aquela compreensão eminentemente privada. O caso
Favela Pullman pode ser apontado com paradigmático, já foi um dos julgados mais
significativos do Superior Tribunal de Justiça sobre os limites impostos ao exercício do
direito de propriedade e seu próprio delineamento, atentando para a autonomia da
funcionalização da posse e do domínio.
Situada em Vila Andrade, zona sul da cidade de São Paulo, a Favela Pullman
dotava uma área particular loteada, sem utilização por parte de seus proprietários. Diante
dessa situação, diversas famílias de baixa renda ocuparam o local visando a moradia.
Segundos dados apresentados pela associação de moradores do local, relatados pela Folha
de São Paulo, a favela no ano de 2005 contava com cerca de 1.100 moradias e
aproximadamente 6.000 habitantes.
Após a consolidação plena da ocupação dos loteamentos, os proprietários de
alguns dos terrenos ocupados pleitearam ação reivindicatória, que em primeira instância foi
julgada procedente. Os proprietários alegaram nos autos que possuíam o domínio da área
entre 1978 e 1979, sendo a ação proposta no ano de 1985. A sentença repeliu a alegação de
usucapião, condenando os réus à desocupação da área, sem direito a retenção por
benfeitorias, cabendo o pagamento de indenização pela ocupação desde o ajuizamento da
demanda
Os moradores interpuseram recurso de apelação ao Tribunal de Justiça de São
Paulo (são Paulo, 1994). Nas razões, os sucumbentes pretenderam caracterizar a existência
da usucapião urbana, visto que, incontestavelmente todos habitavam o local há mais de
cinco anos, ocupando áreas inferiores a duzentos metros quadrados, sendo que não eram
proprietários de outro imóvel. Em seguida, pretenderam o reconhecimento da boa-fé e do
consequente direito de retenção de benfeitorias e, alternativamente, o deslocamento do dies
a quo de sua condenação da data da propositura da demanda para a data em que a citação
foi efetivada. A decisão julgada procedente em primeira instância, foi reformada em sede de
apelação dos ocupantes, provida pelo Tribunal de Justiça, tendo como relator do acórdão o
Desembargador José Osório.

~ 411 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Dentre os argumentos utilizados pela relatoria, sustentou-se que o objeto do


direito transmudou, de maneira que a realidade concreta prepondera sobre a “pseudo
realidade jurídico-cartorária”. Os lotes dos terrenos reivindicados, dentro do contexto
urbanístico, foram consideradosmera abstração jurídicaem comparação a realidade urbana
consolidada na favela. A área ocupada ganhou vida própria, com famílias exercendo
direitos civis e com estrutura reconhecidapelo poder público, contando com água, luz
domiciliar e iluminação pública. Quantoaos lotes, estes perderam as suas qualidades
essências do ponto de vista urbano.
Ademais, a existência física da coisa não mais se considera como fator decisivo
para o jus reivindicandi. Para tanto, é necessário que a coisa seja dirigida a uma finalidade
viável, jurídica e econômica, dado que a dimensão normativa do direito brasileiro não deve
se separar do conteúdo ético-social. De fato, a Constituição Federal tutela a propriedade
privada, mas também a submete ao princípio da função social:

[...] 9- O atual direito positivo brasileiro não comporta o pretendido alcance do


poder de reivindicar atribuído ao proprietário pelo art. 524 do CC. A leitura de
todos os textos do CC só pode se fazer à luz dos preceitos constitucionais
vigentes. Não se concebe um direito de propriedade que tenha vida em confronto
com a Constituição Federal, ou que se desenvolva paralelamente a ela. As regras
legais, como se sabe, se arrumam de forma piramidal. Ao mesmo tempo em que
manteve a propriedade privada, a CF a submeteu ao princípio da função social
(arts. 5º, XXII e XXIII; 170, II e III; 182, 2º; 184; 186; etc.). Esse princípio não
significa apenas uma limitação a mais ao direito de propriedade, como, por
exemplo, as restrições administrativas, que atuam por força externa àquele direito,
em decorrência do poder de polícia da Administração. O princípio da função
social atua no conteúdo do direito. Entre os poderes inerentes ao domínio,
previstos no art. 524 do CC (usar, fruir, dispor e reivindicar), o princípio da
função social introduz um outro interesse (social) que pode não coincidir com os
interesses do proprietário. Veja-se, a esse propósito, José Afonso da Silva, 'Direito
Constitucional Positivos', 5ª ed., p. 249/0, com apoio em autores europeus).
Assim, o referido princípio torna o direito de propriedade, de certa forma,
conflitivo consigo próprio, cabendo ao Judiciário dar-lhe a necessária e serena
eficácia nos litígios graves que lhe são submetidos.
10 - No caso dos autos, o direito de propriedade foi exercitado, pelos autores e
por seus antecessores, de forma anti-social. O loteamento - pelo menos no que
diz respeito aos nove lotes reivindicandos e suas imediações - ficou praticamente
abandonado por mais de 20 (vinte) anos [...] O jus reivindicandi fica neutralizado
pelo princípio constitucional da função social da propriedade. Permanece a
eventual pretensão indenizatória em favor dos proprietários, contra quem de
direito. Diante do exposto, é dado provimento ao recurso dos réus para julgar
improcedente a ação, invertidos os ônus da sucumbência, e prejudicado o recurso
dos autores(SÃO PAULO, 1994)

Inconformados com a decisão, os proprietários interpuseram o Recurso Especial


n. 75.659/SP alegando que promoveram ação reivindicatória com base no art. 524 do
Código Civil anterior c/c art. 274 do antigo CPC, postulando o reconhecimento do seu
direito de propriedade sobre os lotes e o deferimento de sua posse. O Superior Tribunal de

~ 412 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Justiça reafirmou a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, julgando improcedente o


pedido de reivindicação de posse, sustentando ainda ser impossível reconhecer que os lotes
ainda existiam em sua configuração original, em razão do abandono da área pelos donos.
(BRASIL, 2005) Assim, restou perdida a identidade do bem, o seu favor econômico e a
impossibilidade da recuperação do bem jurídico naquele contexto, ocasionando o
perecimento do direito de propriedade.
Diante do conflito entre ocupantes e proprietários titulares dos loteamentos, a
decisão judicial demonstrou preocupação com os moradores, sobrepondo interesses sociais
aos individuais. O caso Favela Pullman afasta, deste modo, a concepção individualista e
absoluta do direito de propriedade, concretizando princípios como a função social da terra,
dentre outros valores superiores tal como a dignidade da pessoa humana, o direito de
moradia, a solidariedade e a redução de desigualdades.
Outro caso oportuno que demonstra a importância da função social da
propriedade é o Raposa Serra do Sol (BRASIL, 2010). No ano de 2005 decreto presidencial
homologou a Portaria n.534 do Ministério da Justiça, demarcando áreas de hectares como a
Terra Indígena Raposa Serra do Sol no Estado de Roraima.
Em 1992, a Fundação Nacional do Índio (Funai) deu início ao relatório de
identificação da terra para demarcação, definindo a extensão da posse indígena e
assegurando a proteção dos limites demarcados, impedindo que terceiros ocupem o espaço.
Contudo, produtores de arroz alegaram possuir título de posse das respectivas terras,
impedindo a conclusão da reserva para fins de demarcação.
A Portaria n.534 conta com seis artigos que delimitam a reserva. O primeiro artigo
declara as terras de posse permanente da comunidade indígena Ingarikó, Macuxi,
Taurepang e Wapichana. O segundo artigo determina a extensão da área da reserva que
conta com 1,7 milhão de hectares de áreas, localizadas nos munícios de Roraima. O quinto
artigo proíbe o ingresso, o trânsito e a permanência de pessoas ou grupo de não-índios
dentro da reserva, salvo autoridades federares e particulares autorizados. Além disso, o
parágrafo único fixou prazo de um ano para que os não-índios se retirem da terra.
Após a edição da Portaria e da homologação presidencial, a demarcação não foi
efetivada em razão dos litígios entre os índios e grupos favoráveis à demarcação e não
índios, favoráveis à demarcação descontínua da reserva. A Portaria aponta que o Parque
Nacional do Monte Roraima pode ser considerado como bem público da União designado
à preservação ambiental e ao exercício dos direitos constitucionais dos índios.

~ 413 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Entre 2005 e 2006, o Supremo Tribunal Federal extinguiu as ações que


contestavam a demarcação e manteve o decreto estipulando a reserva das terras indígenas.
Em 2007, o STF preceituou a retirada de ocupantes não índios da área autenticada.
Sucessivamente, o Tribunal julgou ação popular ajuizada por Senador da
República em desfavor da União, a fim de impugnar a contínua demarcação das terras
Raposa Serra do Sol e pleitear a nulidade da Portaria 534/2005 e do Decreto presidencial
homologatório. O grupo dos não índios ocupantes, alegaram em sua defesa, que a
exploração latifundiária do local sustenta a economia do Estado de Roraima e que a reserva
da área contínua traria consequências ruins no ponto de vista comercial, econômico e social
até mesmo para os interesses nacionais, já que compromete a segurança e a soberania do
país. Ademais, a área demarcada poderia provocar o desequilíbrio da Federação posto que,
a passagem da área para o domínio da União ofende o princípio da razoabilidade ao
priorizar um grupo de índios em prejuízo a iniciativa privada e as demais pessoas que
residem no local.
O ministro Menezes Direito, julgou parcialmente procedente o pedido formulado
para que sejam observadas algumas condições267 acerca do usufruto dos índios sobre as

2671) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser suplantado
de maneira genérica sempre que houver, como dispõe o art. 231, § 6º, da CF, o interesse público da União, na
forma de lei complementar; 2) o usufruto dos índios não abrange a exploração de recursos hídricos e
potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional; 3) o usufruto dos
índios não abrange a pesquisa e a lavra de recursos naturais, que dependerá sempre de autorização do
Congresso Nacional; 4) o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, dependendo, se o
caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira; 5) o usufruto dos índios fica condicionado ao interesse da
Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções
militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico
e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes — o Ministério da Defesa
e o Conselho de Defesa Nacional —, serão implementados independentemente de consulta às comunidades
indígenas envolvidas ou à FUNAI; 6) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no
âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta às comunidades indígenas
envolvidas ou à FUNAI; 7) o usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de
equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias
à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação; 8) o usufruto dos
índios na área afetada por unidades de conservação fica restrito ao ingresso, trânsito e permanência, bem
como a caça, a pesca e o extrativismo vegetal, tudo nos períodos, temporadas e condições estipulados pela
administração da unidade de conservação, que ficará sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade; 9) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá
pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação
das comunidades indígenas da área, em caráter apenas opinativo, levando em conta as tradições e os costumes
dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da FUNAI; 10) o trânsito de visitantes e
pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e
condições estipulados pela administração; 11) deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não-
índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela FUNAI; 12) o
ingresso, trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou
quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; 13) a cobrança de tarifas ou quantias de
qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização de estradas, equipamentos
públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a
serviço do público, tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não; 14) as terras indígenas não
poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico, que restrinja o pleno exercício

~ 414 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

suas terras. Em seguida, os Ministros restantes da Suprema Corte procederam com o voto
em favor do julgamento imparcial da ação popular.
O caso Raposa Serra do Sol expõe a complexidade em questões antagônicas que o
direito de propriedade e a aplicação do princípio da função social podem enfrentar. A
decisão judicial buscou adequar estes institutos jurídicos a conservação dos valores culturais
e das tradições da comunidade indígena, assim como, a preservação do sentido econômico
da terra, acudindo os não índios ocupantes da área em reserva.
Ambos os casos demonstram importantes ressignificações do conceito clássico de
propriedade, muito embora não se deve negligenciar que tantas outras decisões268,
atendendo a este viés contemporâneo, possam ser encontradas no Judiciário brasileiro.

4.2 A CONTRIBUIÇÃO LEGISLATIVA E AS NOVAS ESPÉCIESDE DIREITO DE


PROPRIEDADE

A redação original do Código Civil já trouxe novos contornos à propriedade coma


previsão de institutos como a desapropriação judicial privada prevista nos parágrafos §§ 4.º
e 5.º do artigo 1228 do Código Civil.

Artigo 1228, [...]


§ 4º: O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco
anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em
conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse
social e econômico relevante.
§ 5º: No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida
ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do
imóvel em nome dos possuidores.

A previsão gerou discussão sobre a constitucionalidade desta possibilidade, que


foi reiterada pelo Enunciado n. 82 da I Jornada de Direito Civil. O enunciado reforçou o
objetivo do dispositivo em atender a função social da propriedade diante das hipóteses em

da posse direta pela comunidade jurídica ou pelos silvícolas; 15) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer
pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutos,
assim como de atividade agropecuária extrativa; 16) os bens do patrimônio indígena, isto é, as terras
pertencentes ao domínio dos grupos e comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e
das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto nos artigos 49, XVI, e 231, § 3º, da
Constituição da República, bem como a renda indígena, gozam de plena isenção tributária, não cabendo a
cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns e outros; 17) é vedada a ampliação da terra
indígena já demarcada; 18) os direitos dos índios relacionados as suas terras são imprescritíveis e estas são
inalienáveis e indisponíveis. (BRASIL, 2010).
268 É o caso, por exemplo da sentença proferida em 27 de abril de 2017, nos autos n. Autos n.º 0001128-

90.2013.8.16.0030, da 2ª Vara da Fazenda Pública de Foz do Iguaçu, em que se negou a reintegração de posse
dos proprietários registrais em loteamentos populares já constituídos, favor do interesse social dos ocupantes
de loteamentos populares faticamente já constituídos.

~ 415 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

que a posse não cumpre a finalidade do interesse comum. Sucessivamente, foi aprovado o
Enunciado n. 496 possibilitando o pedido de desapropriação privada por posse trabalho
em ação autônoma, o que facilitou ainda mais a reivindicação do instituto.
A IV Jornada de Direito Civil aprovou o Enunciado n. 304 estabelecendo que são
aplicáveis as disposições dos §§ 4.º e 5.º do art. 1.228 do CC às ações reivindicatórias
relativas a bens públicos dominicais. Isso significa dizer que até mesmo o Estado está
sujeito a ser privado de sua propriedade em desuso quando houver interesse social
relevante em discussão.
Esses entendimentos consolidados nos enunciados doutrinários das Jornadas de
Direito Civil demonstram a interferência do ordenamento jurídico no setor do domínio
privado e a preocupação contundente com os aspectos sociais. A funcionalização da
propriedade é testemunha de que, mesmo a sua configuração demarcada pelo Direito
Privado, o instituto exerce um papel ideológico social.
Além desta previsão, que já constava na redação original, é importante observar
que mais recentemente o legislador reconheceu mais uma espécie de propriedade: o direito
de laje.
O direito sobre laje constata como a funcionalização da propriedade se modifica e
se adapta aos fatos sociais. A atenção à proteção humana e a preocupação com a
coletividade se intensificou de tal modo, que foi criado uma nova classe de direitos onde se
discute se a natureza é de um direito real sobre coisa própria, sobre coisa alheia ou se se
trata de uma ampliação dos contornos do direito de propriedade.
A Lei n. 13.465 de 11 de julho de 2017 disciplinou o direito de laje, que até então,
era objeto da Medida Provisório n.759 de 22 de dezembro de 2016. Com a vigência desta
lei, o direito de laje foi inserido no rol de direitos reais, tipificado na redação do artigo 1225
do Código Civil. O artigo 1510-A do Código Civil (acrescentado pela Medida Provisória no
Código Civil), estabelece o conceito do direito laje:

Art. 1510-A: O direito real de laje consiste na possibilidade de coexistência de


unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma
área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção
a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída
sobre o solo.

A nova lei visou regulamentar uma questão social presente na realidade social das
cidades brasileiras, onde o crescimento urbano desordenado, sucedeu em ocupação de
imóveis urbanos irregulares, principalmente em locais onde residem moradores de renda
mais baixa. A construção erguida para moradia em propriedade de terceiro é uma prática

~ 416 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

corrente que se tornou um fenômeno social, gerado pelos diversos problemas estruturais
em razão da ausência de regramento jurídico sobre o tema.
O direito de laje, veio então, positivar um costume já existente, possibilitando de
forma legal, a edificação de uma ou mais unidades imobiliárias no espaço aéreo ou no
subsolo, dotadas de autonomia funcional, conservando na mesma área duas titularidades
reais diferentes e com matrícula própria, desde que haja autorização do proprietário da
construção-base. Assim, estima-se a regularização fundiária urbana, o atingimento das
funções socioeconômicas das cidades e a concessão para todo cidadão à dignidade de
moradia e direitos de se apropriar de bens.
No tocante a natureza jurídica do direito de laje como um direito real, há quem
defenda que se trata de um direito real sobre coisa própria, já que é aberta uma matrícula
própria na constituição desse direito. Este é o posicionamento de Nelson Rosenvald
(2018)e Carlos Eduardo Elias de Oliveira (2017), assessor no Senado Federal e um dos
autores da lei.Em contrapartida, outra corrente doutrinária, seguida por Flávio Tartuce
(2017), Pablo Stolze (2017), entre outros, entende tratar-se de um direito real sobre coisa
alheia, sendo uma modalidade de superfícies.
O legislador foi impreciso quanto à natureza jurídica da laje, entretanto, o artigo
1510-A do Código Civil dispõe que o proprietário da construção base pode ceder a
superfície superior ou inferior de sua construção para que o titular da laje possa edificar sua
moradia, distinta daquela originalmente construída sobre o solo. Atenta-se que o texto legal
menciona a palavra superfície.
O posicionamento adotado pelo STJ trata o direito de laje como direito real sobre
coisa alheia, visto que a construção-base é do proprietário cedente, havendo, deste modo,
um direito real de gozo ou fruição. Conforme o voto do ministro Luís Felipe Salomão:

[...] A presente hipótese, apesar de também ser conhecida como “laje” não se
tipifica ao novel instituto, já que se está, em verdade, diante de uma projeção de
uma parte ideal do mesmo apartamento – o terraço cobertura (espécie de
acessão/benfeitoria) de titularidade única, com o mesmo número de matrícula,
sem desdobramento da propriedade, não se tratando de unidade autônoma nem
funcionalmente independente. [...] O foco da norma foi o de regulamentar
realidade social muito comum nas cidades brasileiras, conferindo de alguma
forma, dignidade à situação de inúmeras famílias carentes que vivem alijadas de
uma proteção específica, dando maior concretude ao direito constitucional à
moradia (CF, art. 6). Criou-se, assim, um direito real sobre coisa alheia (CC, art.
1510-A), na qual se reconheceu a proteção sobre aquela extensão – superfície
sobreposta ou pavimento inferior – da construção original, conferindo destinação
socioeconômica à referida construção. (BRASIL, 2017)

~ 417 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Outrossim, a importância da nova legislação aponta para o acesso à propriedade


da laje, como superior à posse. Segundo a lição de Nelson Rosenvald (2018, p.257),
“enquanto a existência da posse demanda efetividade e aparência – o constante exercício e
fruição – o direito de propriedade é um signo cadastral, vínculo formal de exclusividade
entre o bem e a pessoa, deferindo-lhe titularidade mesmo que não exercite a posse”.
Apesar de ser consagrada como direito real e ser-lhe atribuída as faculdades de
usar, gozar, dispor e reivindicar, o direito de laje não pressupõe direito de propriedade
ilimitado em seu conteúdo, devendo ser exercido conforme disposições dadas pela lei,
como o direito de preferência e regras para realização de obras.
Por ser um direito recente, o tema ainda está aberto para muitas discussões quanto
a sua natureza e aplicabilidade, mas desde já, é possível notar que o direito de laje é uma
nova manifestação do direito de propriedade, que rompe com o entendimento de
propriedade imóvel vinculada ao solo, predominantemente negativista, privatista e cerrada
em suas tipificações. As necessidades econômicas e sociais se transformam em função
social, abrindo caminho para novas incidências de direitos reais, construindo uma forma
democrática do direito de propriedade, na medida em que mitigam suas concepções
tradicionais e voltam-se para proteção do direito de moradia e ao acesso à vida digna para
população.
Ainda, não se pode deixar de reafirmar que o passar dos anos exibe novas
necessidades que à época não subsistiam, de modo que, pensar no direito de propriedade
apenas como um direito real atrelado as suas taxatividades legais e classificações, dificultam
o caminho para atender as inúmeras demandas que ainda estão por vir.
A era digital, junto com as inovações legais mencionadas, é a prova da
ressignificação da noção de propriedade. O mundo moderno apresenta outras formas dos
indivíduos produzirem, consumirem e adquirirem a titularidade proprietária. A título
ilustrativo, a compra de um livro antes da revolução tecnológica e da popularização da
internet, expressa a ideia de posse material de um bem corpóreo, mas, atualmente é
possível ter o domínio do mesmo livro através do armazenamento de dados, descartando o
domínio físico em si.
Uma série de outros desmembramentos da propriedade que não somente os
provenientes da era digital podem ser verificados, como àqueles presentes no campo da
propriedade intelectual e industrial, tais como as marcas, as patentes, os direitos autorais,
entre outros bens desmaterializados. Nelson Rosenvald observa que a desintegração da

~ 418 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

propriedade deslocou o cerne do domínio da posse de coisas e do capital físico para a


criatividade humana e o capital intelectual:

A propriedade clássica é aquela caracterizada pelo poder de ingerência


socioeconômica sobre a coisa e a visibilidade de sua exteriorização pelo exercício
dos atributos do uso e fruição. Na propriedade incorpórea o artífice da criação
intelectual é remunerado pela cessão da técnica, reservando para si a titularidade
do bem. (ROSENVALD, 2018, p. 269)

As propriedades incorpóreas desafiam a aplicabilidade dos atributos e das


características da propriedade. As faculdades do proprietário de usar, gozar, dispor da coisa
são exercidas de maneira diferente das formas tradicionais, havendo, ainda, o
distanciamento do poder de reivindicar da coisa. Ademais, deve-se levar em consideração a
mitigação de princípios como o da perpetuidade, já que se revelam direitos de propriedade
com natureza transitória. O conteúdo digital, por exemplo, fica à disposição do usuário
proprietário por tempo limitado e não possibilita a transmissão hereditária.
As demandas do fenômeno contemporâneo são mais uma demonstração de como
a propriedade tem o potencial de evoluir, se renovar e se adaptar aos interesses da
sociedade que mudam com o tempo. Cabe ressaltar que o modelo de propriedade moderna
e sua constante evolução de forma alguma abolem a clássica propriedade, cada qual atua
conforme as suas particularidades, devendo sempre corresponder às necessidades dos
indivíduos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A qualificação do direito de propriedade não ostenta mais a sua forma absolutista


privada e fundada em sua concepção individualista. O instituto apresentahoje novos
significados e novas maneiras de se manifestar. Seu conteúdo passou a ser limitado e com
restrições ao modo de seu exercício, haja vista o seu comprometimento com valores como
a função social, a dignidade humana e o princípio da solidariedade. O aspecto garantista e
fundamental do direito de propriedade deve ser consagrado em consonância com o seu
caráter social em proveito do bem-estar da comum.
As novas manifestações de propriedade decorrentes da evolução temporal da
sociedade, assim como, a intensificação da aplicação do princípio da função social no
posicionamento legislativo e judicial, acarretam a ressignificação dos contornos do direito
de propriedade, no qual persiste a prerrogativa em atender o interesse coletivo em
detrimento do viés particular.

~ 419 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

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~ 422 ~
UMA PERSPECTIVA AGNÓSTICA PARA A (DIFÍCIL)
CONVIVÊNCIA ENTRE A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A
PRISÃO PREVENTIVA

Cesar Augusto Ferreira São José*


1 INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende discutir uma proposta de redução de danos para a


convivência entre um princípio da presunção (ou estado) de inocência mais eficaz e as
prisões preventivas previstas pelo artigo 312 do Código de Processo Penal, tendo em vista
a exorbitante quantidade de presos sem condenação no Brasil, fruto de uma excessiva
mitigação àquele princípio ao longo dos últimos 30 anos de promulgação da Constituição
Federal de 1988. Para tanto, pressupõe-se um referencial teórico fundado sobre a crítica
criminológica ao sistema penal; o modelo garantista de Luigi Ferrajoli; e a teoria agnóstica
da pena de Eugenio Raúl Zaffaroni.
As denúncias feitas pela criminologia crítica à criminologia tradicional, a partir do
paradigma da teoria do etiquetamento (ANDRADE, 1995) e à luz da crise de legitimidade
do sistema penal, contextualizam a difusão da criminologia da reação social na América
Latina e a sua consequente denúncia da falsidade do discurso jurídico-penal, tendo esta
alcançado maior evidência na região em razão da notória violência operativa de seus
sistemas penais marginais (ZAFFARONI, 2001).
Segue-se a isso que a matriz teórica do garantismo penal, que cumpre importante
papel nas pretensões de redução e contenção do poder punitivo, pela elaboração um
modelo axiomático ideal de direito e processo penal garantista (DUCLERC, 2016). Nele
será traçada uma tabela analítica e sistemática dos princípios sobre os quais se fundam boa
parte das constituições e ordenamentos jurídicos desenvolvidos, fruto da tradição jurídica
iluminista e liberal – a exemplo da presunção de inocência – sendo a estrita observância de
cada um deles uma condição necessária para a legítima responsabilização penal
(FERRAJOLI, 2006).
É justamente na legitimação da pena imposta pelo poder punitivo, de que se vale
o utilitarismo reformado proposto por Ferrajoli, que reside a necessária crítica elaborada

*Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Aluno da Pós-Graduação em Ciências
Criminais da Faculdade Guanambi.

~ 423 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

pela teoria negativa ou agnóstica da pena em Zaffaroni, reduzindo-a a um mero ato de


poder para o qual não se admite outra explicação racional diversa da explicação política
(ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003). Por isso os operadores das agências jurídicas
atuam racionalmente quando assumem a função de limitar e conter o poder punitivo,
assim, exercem um poder (judicial) que só se legitima quando contém o exercício de um
outro poder (punitivo) ilegítimo (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003).
A partir dos pressupostos apresentados esboçam-se as condições para uma teoria
agnóstica do processo penal capaz de propor uma distinção entre os fenômenos do
processo civil e do processo penal. Trata-se de fator fundamental para a construção – não
mais adaptação acrítica – dos fundamentos deste, os seus conceitos operativos básicos e os
princípios que regem o processo penal. Desdobra-se disso a necessidade de se reconstruir
também elementos importantes do Direito Processual Penal – neste artigo, a prisão
preventiva – para que atuem como tecnologia de minimização da violência intrínseca ao
exercício do poder punitivo (DUCLERC, 2016), ao passo que reforçam a eficácia de
importantes princípios constitucionais como a presunção de inocência.
Toma-se essa espécie de prisão (dita) processual como um desdobramento lógico
(elemento) da jurisdição (ou ação ou processo) cautelar (DUCLERC, 2016), e ao mesmo
tempo, também do princípio da presunção ou estado de inocência, a ser abordado logo a
seguir. Quanto a este último caso, é intuitivo perceber o conflito instaurado entre a
imposição de prisões preventivas e a eficácia da presunção de inocência, diante da difícil
coexistência entre ambas (LOPES JR., 2013), especialmente no âmbito de um verdadeiro
sistema penal cautelar que abarca grande parte da criminalização (ZAFFARONI, 2011).
Assume-se, assim, como hipótese principal que uma crescente limitação das
prisões preventivas seria importante fator de redução de danos a possibilitar a convivência
deste instituto processual com o princípio da presunção de inocência. Desse modo,
conferir-se-ia a este a eficácia que tem lhe faltado nos últimos 30 anos, apesar de sua
expressa previsão constitucional, diante do quadro excessivo e crescente de presos sem
condenação no Brasil. A saber, em Junho de 2016, a população prisional brasileira chegou a
726.712 pessoas presas – o que representa um aumento da ordem de 707% em relação ao
total registrado no início da década de 90 – e, deste total, 40,2% são presos sem
condenação, segundo dados do Levantamento Nacional de informações penitenciárias
divulgado pelo Ministério da Justiça (2017, p. 7-8).
Aqui a pretensão de um processo penal limitadorda prisão preventiva –
modalidade de prisão anterior ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória –

~ 424 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

surge para garantir a eficácia do elementar princípio da presunção de inocência, mas não só
por isso. A quantidade assustadora de presos sem condenação no Brasil está envolvida no
cenário de ilegitimidade sem volta dos sistemas penais latino-americanos atuais
(ZAFFARONI, 2001), que buscam a irracional imposição de pena a todo custo: mesmo
antes de se decidir ou não pela absolvição do acusado, mesmo que ela não cumpra com
nenhuma das funções que alega cumprir.

2 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: HISTÓRICO E


CONTEÚDO

Qualquer estudo sobre prisões sem condenação torna-se impossível sem que se
tenham em mente o conteúdo da garantia fundamental da presunção de inocência e a sua
importância reconhecida pela positivação na Constituição Federal de 1988 e em diversos
diplomas internacionais.
O princípio da presunção ou o estado de inocência – daqui em diante, tomados
como sinônimos – surge, para Duclerc (2016, p. 51-52), como o “mais importante” dos
princípios de aplicação específica para o processo penal e que deve ser compreendido
como “consectário lógico do princípio da liberdade, ao passo que Lopes Jr. (2016, p. 95-96)
o considera o “princípio reitor do processo penal”, cujo nível de observância (eficácia)
permite verificar a qualidade de um sistema processual.
Retomando o pensamento de Ferrajoli (2006, p. 503) os valores da jurisdição
penal podem ser identificados, entre outros aspectos com “a imunidade dos cidadãos
contra o arbítrio e a intromissão inquisitiva e com a defesa dos fracos mediante regras do
jogo iguais a todos”. Na medida em que propõe a jurisdição como atividade necessária à
obtenção da prova do cometimento de um crime, “nenhum delito pode ser considerado
cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a pena”, desde que
tal prova tenha sido produzida regularmente em juízo (FERRAJOLI, 2006, p. 505). A
referida imunidade dos cidadãos, em especial frente ao exercício do poder punitivo (uma
potentia puniendi) torna-se mais evidente ao considerarmos a jurisdição, de fato, um contra-
poder, como no capítulo anterior. O ponto central da questão é que o princípio da
submissão à jurisdição 269 “postula a presunção de inocência do imputado até a prova
contrária decretada pela sentença definitiva de condenação” (FERRAJOLI, 2006, p. 505).

(1) O princípio da submissão à jurisdição expressa-se, em sentido lato, pelo axioma nulla culpa sine judicio, ou seja, exige que
não há culpa sem juízo. Já em sentido estrito, exige que não pode haver juízo sem que a acusação se sujeite à
prova e à refutação (FERRAJOLI, 2006).

~ 425 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Binder (1999, p. 123) destaca o Juízo prévio e a presunção de inocência como garantias
básicas do processo penal a partir e sobre as quais se começa a construir “el escudo protector”
frente ao poder arbitrário, ao passo que “son dos caras de una misma moneda”.
A presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade e representa o
fruto de uma opção garantista a favor da tutela dos inocentes, mesmo que se tenha de arcar
com a impunidade de algum culpado (FERRAJOLI, 2006). Trata-se de uma opção
ideológica em que se elege como valor o maior interesse na tutela de todos os inocentes,
sem exceção (LOPES JR., 2013). Sujeita-se, portanto, às marchas e contra-marchas da
história. O princípio da presunção de inocência tem origens no direito romano e foi
ofuscado – ou praticamente invertido – pelas práticas inquisitórias da Baixa Idade Média,
somente recuperando relevância na modernidade (FERRAJOLI, 2006). Entre outros, já
afirmava Beccaria (2016, p. 41-42) que “um homem não pode ser considerado culpado
antes da sentença do juiz” e que “perante as leis, é inocente aquele cujo delito não se
provou”.
Na esteira desse percurso histórico, a presunção de inocência foi consagrada em
diversos diplomas e Cartas de direitos, a exemplo da Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, marco da Revolução Francesa de 1789, ao versar que “cada homem é
presumido inocente desde que não tenha sido declarado culpado”. O estado de inocência
ainda foi submetido aos ataques da Escola Positiva Italiana e, de maneira mais grave, pela
orientação fascista de Vicenzo Manzini expressa na Itália pelo Código Rocco de 1930 – que
inspira o código de processo penal brasileiro vigente desde 1941, durante o regime do
Estado Novo.
A revaloração da presunção de inocência no pós-guerra toma força na Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, ao versar que “toda pessoa acusada de um ato
delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido
provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas
todas as garantias necessárias à sua defesa”. Zaffaroni e Batista (2003, p. 94) pontuam que
“a positivação dos direitos humanos em nível internacional constitui um extraordinário
esforço universal em favor do estado de direito”, ainda que esta seja uma luta por um
modelo ideal e que até hoje não foi consumado.
A superação dos retrocessos autoritários no Brasil, após o fim da Ditadura Militar,
começa a se manifestar na consagração expressa do princípio da presunção de inocência na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, positivada em seu art. 5º, inciso
LVII, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de

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Direitos Humanos & Fundamentais

sentença penal condenatória”. Ainda é imprescindível a menção ao art. 8º, nº 2, da


Convenção Americana sobre Direitos Humanos (o Pacto de São José da Costa Rica), em
vigor para o Brasil desde 1992, que entre suas garantias judiciais prevê que “toda pessoa
acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove
legalmente sua culpa”. Se o reconhecimento da presunção de inocência compõe uma opção
ideológica, está mais que evidenciada a orientação política assumida pelo Estado brasileiro
para a sua proteção, mesmo que ainda enfraquecida pelas heranças autoritárias.
São associáveis à presunção de inocência dois significados garantistas. O primeiro
deles, no sentido de uma “regra de tratamento do imputado”, exclui – ou ao menos
restringe ao máximo – a limitação da liberdade pessoal. O segundo significado, no sentido
de “regra de juízo”, impõe o ônus da prova à acusação, além da absolvição em caso de
dúvida (FERRAJOLI, 2006, p. 507).
De maneira similar, porém diversa, Lopes Jr. (2016, p. 96-97) compreende que a
presunção de inocência impõe um dever de tratamento que atua em uma dimensão interna
ao processo e em outra externa. Na dimensão interna, a presunção de inocência é um dever
de tratamento imposto inicialmente ao juiz. Engloba tanto a integral atribuição da carga
probatória ao órgão acusador, e a inexorável absolvição em caso de dúvida; quanto as
severas restrições ao (ab)uso das prisões cautelares. Na dimensão externa, “a presunção de
inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do
réu”, como uma espécie de limite democrático à exploração midiática e sensacionalista em
torno do crime e do processo penal.
Posição diferente mantém Nucci (2015, p. 33-34), para quem o objetivo
primordial do estado de inocência (ou da não culpabilidade) é garantir que cabe à acusação
o ônus da prova, ao evidenciar a culpa do réu com provas suficientes. Por outro lado, ainda
afirma que a presunção de inocência “confirma a excepcionalidade e a necessariedade das
medidas cautelares de prisão, já que os indivíduos inocentes somente podem ser levados ao
cárcere quando realmente for útil à instrução e à ordem pública”. Tal discurso afasta-se
habilmente do ideal de exclusão ou restrição máxima e severa da limitação à liberdade
pessoal. Deixa a sutil impressão da exceção que confirma a regra.
De qualquer modo, certo é o status de norma constitucional a que foi alçado o
princípio do estado de inocência. Suas repercussões são notáveis em diversos institutos do
Direito Processual Penal. Assumido como regra de juízo e de tratamento 270, tal princípio

(2) É coerente a adoção dos significados garantistas associados à presunção de inocência, mas sem que se
deixe de reconhecer a importante construção do dever de tratamento que atua na dimensão externa ao
processo.

~ 427 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

traz repercussões importantes no que se refere à disciplina jurídica da prova e ao sistema de


prisões processuais. Da primeira repercussão, apesar de sua reconhecida importância, não
convém a este trabalho uma abordagem pormenorizada para que não se furte ao
aprofundamento de seus objetivos. Esta se reflete na regra de juízo que atribui à acusação
todo o ônus da prova, ou seja, “a verdade corresponde à inocência do acusado” até que a
sentença penal condenatória forme coisa julgada, de modo a não haver necessidade de um
inocente comprovar o estado de inocência que já recai sobre si (DUCLERC, 2016, p. 52-
53). Mais ainda, decorre dessa regra o princípio do in dubio pro reo ou princípio do favor rei,
pois, “la situación básica de libertad debe ser destruída mediante una certeza”, caso contrário –
havendo dúvida – “permanece el status básico de libertad” (BINDER, 1999, p. 127).
A regra de tratamento associada à presunção de inocência traz também
importantes repercussões no sistema de prisões processuais, pois até o trânsito em julgado
da sentença penal condenatória, o acusado deve ser tratado como inocente (DUCLERC,
2016). Tal tratamento exige, como já antecipado, a exclusão ou pelo menos a restrição ao
máximo de qualquer limite à liberdade pessoal do acusado enquanto não houver
condenação definitiva, o que evidencia o conflito entre o princípio da presunção de
inocência e as modalidades de prisão sem condenação previstas no ordenamento jurídico
brasileiro, em que pese aquele não tenha abolido estas – já que o inciso LXI do artigo 5º da
Constituição Federal prevê a possibilidade de prisão “em flagrante delito ou por ordem
escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”.
Do estado de inocência decorre que, até a condenação em definitivo, ninguém
poderá sofrer antecipadamente os efeitos de uma eventual condenação (DUCLERC, 2016).
Para Karam (2009, p. 2-3), enquanto ainda admitidas as prisões provisórias, estas só
poderiam ser impostas excepcionalmente, uma vez que a irreparável privação de liberdade
nesses casos deve ser demonstrada como o único meio de assegurar a possibilidade e a
eficácia de eventual pronunciamento final condenatório. O sacrifício da liberdade, se ainda
admitido, só poderia ocorrer excepcionalmente, nos casos absolutamente necessários. Caso
contrário, viola-se a regra de tratamento e “haverá clara antecipação da punição, imposta
durante o transcorrer da investigação criminal ou do processo”. Isso porque a finalidade da
presunção de inocência, enquanto garantia processual penal, é tutelar a liberdade do
indivíduo (MINAGÉ, 2016, p. 86-87).
Afirmar a universalidade dos inafastáveis princípios garantidores, como o do
estado de inocência, expresso nas declarações de direitos humanos e nas Constituições
democráticas, é necessário para que se cumpra a urgente tarefa de contenção do poder

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Direitos Humanos & Fundamentais

punitivo e a inversão dos rumos repressivos tomados pelo eficientismo penal do discurso
oficial da Lei e Ordem (KARAM, 2006). A regra de tratamento, como significado garantista
associado à presunção de inocência, talvez seja “el núcleo central de esta garantía”. Por conta
dele o imputado não pode ser tratado como culpado e não se pode lhe antecipar a pena,
que é consequência direta da comprovação de sua culpabilidade. Nesse ponto se revela a
problemática questão das prisões preventivas que são rotineiramente utilizadas como pena
(BINDER, 1999, p. 129).
É fundamental a este trabalho a denúncia de Binder (1999, p. 129-131) de que a
realidade do processo penal está muito distante de cumprir o programa constitucional da
presunção de inocência, que muitas vezes mais parece uma ficção. Um dos sinais evidentes
de que o estado de inocência é um programa a se realizar, uma tarefa pendente, é o
fenômeno dos presos sem condenação. Estes formam a maior parte da clientela
aprisionada pelo poder punitivo latino-americano (ZAFFARONI, 2011). É certo que não
se pode ignorar tal quadro com considerações simplesmente exegéticas ou dogmáticas,
porém, do mesmo modo, não se pode também deixar de compreender a dogmática posta,
em especial quando se pretende instrumentalizá-la para uma estratégia de redução de
danos, para a máxima contenção do poder punitivo, com o urgente “resgate de um
processo penal orientado pela supremacia da tutela da liberdade sobre o poder punitivo”
como caminho necessário a uma futura abolição do sistema penal (KARAM, 2006, p. 111-
113).

3 A ILEGITIMIDADE DAS PRISÕES PREVENTIVAS E A BUSCA PELA


EFICÁCIA DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

O conflito entre a garantia do estado de inocência e a restrição à liberdade do


cidadão acusado de um crime antes de sua condenação toma grandes proporções tanto no
plano teórico, pelas constantes e necessárias análises da dogmática em torno das prisões
preventivas, de seus requisitos e de seus fundamentos; quanto no plano prático, diante da
banalização de seu uso com fins por (muitas) vezes diversos daqueles que são declarados
pela legislação. Motivos não faltam para que se discuta sua legitimidade, considerando-se
que “a prisão preventiva, na grande maioria dos casos, fere a presunção de inocência e, por
conseguinte, configura-se como uma pena anterior à sentença” (ZAFFARONI; BATISTA;
et. al., 2003, p. 292).

~ 429 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Ainda assim, Zaffaroni e Batista (2003, p. 292-293) apontam a existência de duas


correntes que tentam, por vias distintas, viabilizar a legitimação discursiva das prisões
preventivas. São elas as teorias substantivistas e as processualísticas. A primeira delas
corresponde aos modelos de direito penal autoritário da Escola Positiva de Ferri e
Garófalo, do fascismo de Manzini e do próprio nazismo. Tal corrente reconhece o caráter
de pena das prisões preventivas e trata de legitimá-las como tal, restando o princípio da
presunção de inocência subordinado à necessidade de ordem. Apelam, de tal modo, para
conceitos como “a satisfação da opinião pública, a necessidade, a necessidade de intimidar,
a urgência para controlar o clamor público, a dissuasão e a exemplaridade social”. As
teorias processualísticas, por sua vez, não admitem o caráter punitivo das prisões
preventivas, e tentam legitimá-las enquanto medidas, de fato, processuais. Incorrem tais
teorias, porém, na grave falha de recorrer ao processo civil ao identificar ao identificarem a
prisão preventiva com as medidas cautelares de que se vale o modelo reparador. Mais uma
vez o problema da importação acrítica de categorias do processo civil. Trata-se de um
formalismo que faz pouco caso da presunção de inocência e não se dá conta da radical
diferença entre a limitação patrimonial e a perda de liberdade, em especial nas suas
consequências: o patrimônio é reparável ou recuperável, já a devolução do tempo que se
passa preso, não.

3.1 Perspectiva e proposta do garantismo

Na contramão dessas teorias, ganha força a aquela que reconhece a essência penal
da prisão preventiva para que possa reduzi-la ou suprimi-la. Tal perspectiva encontra-se
apta a oferecer importantes contribuições a um processo penal que se proponha a limitar e
conter o exercício do poder punitivo. Como expoente dessa teoria, Ferrajoli (2006, p. 507-
508) reafirma a importância da presunção de inocência ao sustentar que tal princípio impõe
a ilegitimidade e a inadmissibilidade da prisão preventiva. A história dessa prisão sem
condenação está intimamente ligada com o percurso histórico da presunção de inocência,
em especial na Europa Ocidental, como brevemente narrado no tópico anterior. Chegou a
ser admitida e proibida na Roma Antiga, tomada como pressuposto da instrução em
procedimentos inquisitórios na Idade Média, e novamente estigmatizada pelo Iluminismo e
pela redescoberta do processo acusatório (FERRAJOLI, 2006).
Ponto controverso nesse percurso histórico é que, mesmo de certo modo
estigmatizada, a prisão preventiva seguiu legitimada pelo pensamento iluminista, que a

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Direitos Humanos & Fundamentais

denuncia, exige sua limitação, mas não a suprime: é tratada como se fosse uma espécie de
“injustiça necessária” e acabou sendo justificada por todo o pensamento liberal clássico,
numa posição precária e incapaz de conter o seu desenvolvimento patológico.
(FERRAJOLI, 2006). Representa essa posição processualística o “sofisma segundo o qual
ela seria uma medida ‘processual’, ‘cautelar’ ou até mesmo ‘não penal’, ao invés de uma
ilegítima pena sem juízo”. (FERRAJOLI, 2006, p. 509). Ferrajoli (2006, p. 511) contrapõe-
se ao dito sofisma ao apontar-lhe a seguinte inconsistência: ao admitir o encarceramento de
um cidadão presumido inocente por necessidade processual, “nenhum jogo de palavras
pode impedir que tal fato também se dê por ‘necessidade penal’”.
Portanto, grave consequência dessa legitimação precária – nesse caso, em especial,
por Carrara – está na perversão da prisão preventiva pelas teorias substantivistas ao deixar
de ser exclusivamente instrumental às finalidades do processo e passar a ser tomada como
instrumento de prevenção e defesa social. Atribui-se, assim, à prisão preventiva “as mesmas
finalidades e o mesmo conteúdo aflitivo da pena” e lhe priva o argumento utilizado pelas
teorias processualísticas, Segue-se a isso o advento do fascismo, em que o Código Rocco a
assume como “uma verdadeira medida de prevenção contra perigosos e suspeitos ou, pior,
de uma execução provisória, ou antecipada, da pena” (FERRAJOLI, 2006, p. 510).
Mais recentemente, vislumbram-se previsões normativas que incluem – junto às
hipóteses de perigo de fuga do acusado e risco de interferência na produção de provas – a
possibilidade de ser decretada a prisão preventiva com base na periculosidade social do
imputado, no risco de reiteração delitiva ou pela análise de suas condições pessoais.
Exemplo brasileiro consta no atual Código de Processo Penal, com o genérico fundamento
na garantia da ordem pública incluído em seu artigo 312 pela Lei nº 5.349 de 1967,
sancionada durante a Ditadura Militar – pouco mais de um ano antes da edição do Ato
Institucional nº 5 – em alteração ao texto original concebido pelo Estado Novo e mantida
ainda hoje, apesar das diversas reformas pelas quais passou o Código. Pavimenta-se, assim,
a transformação da prisão preventiva de medida processual em medida de polícia.
Passa a ser pertinente a preocupação de Ferrajoli (2006, p. 511-512) de que a
presunção de inocência seja reduzida a um mero engodo e sua busca por demonstrar a
ilegitimidade da prisão preventiva e sua aptidão a provocar o esvaecimento não só do
estado de inocência, mas de todas as outras garantias penais e processuais. Para tanto,
pergunta-se se a prisão preventiva é realmente uma “injustiça necessária” ou se é produto
de uma concepção inquisitorial de processo em que se busca presumir a culpa do
imputado. A resposta para tal pergunta admite dois pontos de vista: um externo e outro

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Direitos Humanos & Fundamentais

interno. O ponto de vista externo prescinde a análise da Constituição, para que não se
submeta à falácia de que tudo o que ela permite é justo e incontestável, enquanto o ponto
de vista interno leva em conta o que prevê a Constituição.
Ferrajoli (2006, p. 512-513) concebe que é preciso questionar qual seria a
necessidade a ser satisfeita pela prisão preventiva. De plano, são manifestamente
inconcebíveis as prisões preventivas voltadas para finalidades substantivistas de prevenção
e defesa social, já que ignoram a presunção de inocência e antecipam indevidamente a pena.
Quanto às finalidades de tutelar a prova e evitar a fuga, estas atribuem finalidades
estritamente cautelares e processuais, mas ainda devem ter sua necessidade questionada e
serem substituídas por meios menos gravosos. Defende Ferrajoli (2006, p. 513-515) que a
não deterioração das provas antes do interrogatório poderia justificar somente uma breve
condução coercitiva para crimes mais graves, o que ensejaria menor repercussão pública e
menor efeito difamatório e infamante que a prisão, em especial se adotado um julgamento
mais célere. Enquanto para o risco de fuga, reduzir ou abolir as penas de detenção, bem
como as próprias prisões preventivas, que seriam, em primeiro lugar, o motivo de temor
que levaria o acusado à fuga. Desse modo, sustenta que a contraditória prisão preventiva
poderia ser suprimida, ao menos, até o primeiro grau de jurisdição pela necessidade
processual de que o imputado, em sua defesa, esteja em igualdade de condições com a
acusação.
É questão de coerência, contudo, explicitar pontos problemáticos na concepção
de Ferrajoli quanto à ilegitimidade das prisões preventivas, em especial porque decorrem
das próprias críticas atribuídas aos pressupostos ético-políticos do garantismo, tratadas no
capítulo anterior. Ferrajoli (2006, p. 512) aponta que tratar a prisão preventiva como
medida processual é espécie de “trapaça na formalidade” usada para dissolver “a função de
tutela do direito penal e o papel mesmo da pena enquanto medida preventiva exclusiva”.
Para superar tal impasse, propõe que

eliminando o medo e reabilitando as funções cognitivas em relação às funções


potestativas da jurisdição, a supressão do cárcere sem processo valeria, em suma,
mais que qualquer outra reforma, para resolver a crise de legitimação do Poder
Judiciário e devolver aos juízes o papel, hoje descuidado, de garantidores dos
direitos fundamentais dos cidadãos (FERRAJOLI, 2006, p. 516).

É certo que Ferrajoli não corrobora com a ideia de deslegitimação do sistema


penal pela sua irracionalidade vigente e operante, na perspectiva do realismo marginal
(ZAFFARONI, 2001). A partir de uma teoria negativa ou agnóstica, a pena não cumpre
com qualquer de suas funções manifestas, inclusive as de prevenção, e não pode ser

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Direitos Humanos & Fundamentais

tomada como uma medida preventiva exclusiva. Nos modelos atuais de sociedade, apenas
em caráter excepcional a pena assume a função que minimalismo penal 271 – portanto,
também o garantismo – imagina para ela em uma sociedade futura (ZAFFARONI;
BATISTA; et. al., 2003, p. 128-129). Reflexo dessa perspectiva voltada para o futuro está na
própria conclusão de Ferrajoli (2006, p. 516) sobre a abolição das prisões preventivas: “não
escondo que a perspectiva aqui proposta pode parecer, a curto prazo, uma quimera”. É
inócua a oposição de um “sentimento comum de justiça”, a orientar as agências penais na
defesa da presunção de inocência, contra uma opinião pública formada pelo autoritarismo
midiático que se propaga pelas campanhas de Lei e Ordem, fruto do eficientismo penal em
plena expansão. Ponderadas essas questões, não se pode desconsiderar a importância da
abordagem de Ferrajoli em sua intenção de estender ao máximo possível o alcance da
presunção de inocência, bem como na sua imediata retaliação à concepção de qualquer
prisão preventiva voltada para fins de prevenção e defesa social, em evidente antecipação
ilegítima da pena.

3.2 A perspectiva e proposta da teoria agnóstica

É preciso buscar uma via que responda à pergunta de Ferrajoli sobre a


necessidade das prisões preventivas, dos pontos de vista externo e interno, para que oriente
as decisões que as agências jurídicas devem adotar no presente, especialmente ante a
realidade marginal de perda de legitimidade do sistema penal e exercício irracional do poder
punitivo. Afinal, no caso das prisões preventivas, torna-se “ainda mais irracional, vendo-se
habilitado antes mesmo de afirmar a existência do delito, ou seja, impondo uma pena pela
mera acusação” (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003, p. 292).
Esse quadro se percebe como ainda mais grave pela evidência de que a principal
característica do poder punitivo latino-americano na atualidade, quanto ao encarceramento,
reside em a maioria dos presos serem processados não condenados (ZAFFARONI, 2011). O
Brasil, ao menos até o ano de 2011, mantinha média similar aos outros países da América
Latina quanto à relação entre presos sem condenação e o total de sua população carcerária,
mesmo sem ter submetido seu Código de Processo Penal a uma ampla reforma
(LORENZO, 2011). Trata-se do país com a 3ª maior população prisional do mundo em
números absolutos, com mais de 700 mil pessoas presas, das quais 40,2% são pessoas
presas sem condenação definitiva, que podem ultrapassar os 50% em nove estados

(3) Nesse ponto fala-se em minimalismo penal em um sentido mais amplo, em que Zaffaroni e Batista
incluem tanto o garantismo de Ferrajoli, quanto o modelo de direito penal mínimo de Baratta.

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Direitos Humanos & Fundamentais

brasileiros – seis deles nordestinos, conforme o Levantamento Nacional de informações


penitenciárias divulgado pelo Ministério da Justiça (2017, p. 14).
O contexto do encarceramento latino-americano constitui, ao menos numa
perspectiva formal, uma inversão do sistema penal, mas do ponto de vista da realidade
descrita pela criminologia, trata-se de um poder punitivo que preferiu se exercer pelo uso
de prisões preventivas, admitindo uma presunção de periculosidade. A medida cautelar
possui caráter de pena cautelar, cumprida em sua maioria pelos pequenos delinquentes
comuns – os indesejáveis – que enfrentam alto grau de mortalidade, paralela às execuções do
sistema penal subterrâneo (ZAFFARONI, 2011, p. 70-71). Expressa-se nesse contexto o
eficientismo penal de matriz norte-americana, responsável pelo discurso publicitário e
simplista do autoritarismo cool, inserido na América Latina pela globalização. Na esteira do 11
de setembro de 2001, o autoritarismo norte-americano encontrou no chamado terrorismo o
inimigo capaz de suprir o vazio deixado pelo fim da Guerra Fria, evocando uma nova
emergência para justificar a imposição internacional de legislações penais e processuais
penais autoritárias por todo o mundo (ZAFFARONI, 2011, p. 64-70). Por resultado dessa
nova emergência, com reflexo no grande encarceramento cautelar de presunção de
periculosidade, “Na América Latina, todo suspeito é tratado como inimigo” (ZAFFARONI,
2011, p. 189).
Conforme Zaffaroni (2011, p. 109-111), nessa região, sempre levando-se em conta
o fator seletividade, é a legislação processual que legitima os confinamentos cautelares e
esgota a maior parte do exercício do poder punitivo repressivo. Legislação essa que regula
todo um sistema penal oficial que opera antes da condenação: o sistema penal cautelar,
muito mais importante que o sistema penal de condenação. Esse sistema cautelar é pautado
pela seriedade da suspeita do cometimento de um crime e por considerações de periculosidade
e dano. Trata-se aqui de uma periculosidade da suspeita, em que os critérios adotados para o
encarceramento cautelar (ou outras medidas dessa natureza) não têm natureza processual,
mas sim claramente penal, muitas vezes observados na análise das consequências jurídicas
do crime. A natureza do sistema penal cautelar latino-americano é penal.
Do ponto de vista externo à Constituição, a resposta de Zaffaroni (2011, p. 113-
114) à questão sobre as prisões preventivas permite reconhecer que sua legitimação implica
um problema sem solução, para o qual a única saída possível é o reconhecimento de sua
natureza punitiva e consequente ilegitimidade, no que se assemelha ao diagnóstico de
Ferrajoli, em especial por também fazer a advertência em que “a possibilidade de um
processo penal sem confinamento preventivo pareça distante”. Mas vai além por denunciar

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Direitos Humanos & Fundamentais

o tratamento penal de inimigo que se emprega de maneira generalizada na realidade do


sistema penal cautelar latino-americano e postular que, “antes de chegar à abolição da
prisão preventiva, urge pressionar fortemente por um reducionismo radical”.
Quanto ao ponto de vista interno ou constitucional, não se pode perder de vista
que a presunção de inocência, consagrada no inciso LVII do artigo 5º da Constituição
Federal (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória”), não foi suficiente para abolir as prisões preventivas. Motivo para tanto é
que o inciso LXI expressamente admite a possibilidade de prisões processuais (DUCLERC,
2016). Ressalvada a exceção das transgressões ou crimes militares, prevê este dispositivo
constitucional que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente.
Ao se deparar com conflito similar na Constituição Argentina, Binder (1999,
p.197) parte de uma visão realista para admitir que se pode e se deve estabelecer claramente
os princípios que regem a aplicação da prisão preventiva, observando-se que

Si vivimos una realidad que distorsiona continuamente el sistema constitucional, no por ello
debemos distorsionarlo para adecuarlo a la realidad. Uma de las funciones del Derecho
consiste, también, en mantener una relación de tensión respecto de la realidad en un intento
permanente por configurarla según sus principios, aunque esto sea una utopía siempre
inalcanzable.

Para que se evite a “distorção da distorção”, é interessante a menção ao


argumento de Carvalho (2015, p. 259-261) de que é possível verificar na Constituição
brasileira uma perspectiva agnóstica em relação à pena, que se manifestaria na ausência de
qualquer discurso legitimador da pena, isto é, em não haver no texto constitucional
qualquer previsão de fundamentação da pena. Por causa desse silêncio, projeta-se na
Constituição uma política punitiva de redução de danos, assim como pretendido por uma
teoria agnóstica do processo penal, pois não se ignora sua ilegitimidade, mas ao mesmo
tempo não os juristas não têm o poder de extingui-la. A origem de ambicionada política de
redução de danos remonta não só à ausência de um discurso legitimador, mas também ao
direcionamento dos esforços dos dispositivos constitucionais em se referirem
exclusivamente às espécies de pena e aos limites impostos à punição (incisos XLV, XLVI,
272
XLVII, XLVIII e XLIX, do artigo 5º ), ressaltando-se, de maneira exemplar, o princípio
da proibição do excesso punitivo pela vedação às penas cruéis do art. 5º, XLVII, alínea “e”.

(4) XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a
decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas,
até o limite do valor do patrimônio transferido; XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará,

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Direitos Humanos & Fundamentais

Não parece haver óbice nenhum em replicar tal perspectiva constitucional


agnóstica em relação à prisão preventiva, pois, assim como a pena: também consiste em
exercício (ainda mais) irracional do poder punitivo; também não pode ser extinta pelo
poder dos juristas, já que expressamente previstas no texto constitucional as prisões
processuais no inciso LXI do artigo 5º; mas também é limitada pelos incisos seguintes –
LXII, LXIII, LXIV, LXV e LXVI 273.
Jardim (1999, p. 292) afirma que “a própria Constituição prevê expressamente a
possibilidade de decretação judicial de prisão provisória, desde que resultante de ordem
escrita e fundamentada de juiz competente”, de modo que “o art. 5º, inc. LXI, não faz
qualquer restrição à oportunidade processual de tal medida cautelar”. É imprescindível,
porém, notar que não há previsão constitucional de fundamentos para a imposição de
prisão preventiva – ela deve resultar de decisão fundamentada, mas fundamentada em quê?
A redação do inciso não manifesta opção por teorias substantivas ou processualísticas para
tentar legitimar a prisão preventiva.
Carvalho (2015, p. 260) aponta que “a perspectiva absenteísta sobre os discursos
de justificação impõe critérios limitativos à interpretação, aplicação e execução das penas”.
A imposição também desses critérios limitativos à decretação de prisões preventivas
compactua com a pretensão expressa por Zaffaroni (2011, p. 114) de, antes de aboli-la,
pressionar-se com urgência por sua redução radical a hipóteses mínimas, conforme uma
lógica de redução de danos pretendida por uma teoria agnóstica do processo penal.
Essa redução radical importará em assumir a construção de Zaffaroni e Batista
(2003, p. 295), para os quais “a prisão preventiva, salvo os poucos casos em que a coerção
administrativa direta a legitima, é uma pena antecipada, que às razões que deslegitimam o
poder punitivo em geral soma a flagrante e incontestável violação ao princípio da
presunção de inocência”. A ressalva dos casos de coerção administrativa direta é essencial
ao próprio conceito negativo de pena, já que não seria pena a coerção que repara ou restitui
– atribuída ao modelo reparador de solução de conflitos – bem como também não seria

entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social
alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos; XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de
guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de
banimento; e) cruéis; XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a
natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade
física e moral;
273 LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz

competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada; LXIII - o preso será informado de seus direitos,
entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; LXIV - o
preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial; LXV - a
prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; LXVI - ninguém será levado à prisão ou
nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;

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Direitos Humanos & Fundamentais

pena a coerção que “detém as lesões em curso ou neutraliza perigos iminentes”


(ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003, p. 99). Em parte, ao mesmo tempo em que se
conceitua negativamente a pena, conceitua-se coerção direta. Desde que diante de um
perigo, esta coerção implica uma intervenção legítima, instantânea ou diferida no tempo.
Especialmente, esta última é frequentemente confundida com a pena. A coerção pode ser
mantida para impedir o retorno imediato da situação de perigo, mas a partir do momento
que este cessa, passa a ser punitiva. (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003, p. 102-105).
Ressalte-se que “enquanto uma atividade lesiva perdurar, a força empregada para detê-la
não constitui pena, mas coerção direta” (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003, p. 105).
Para determinar se essa interferência constitui pena ou coerção direta, é
importante relembrar a já mencionada implicação do conceito de pena obtido
negativamente: ideia ampla de pena, “como categoria que permite ao direito penal
distinguir entre penas lícitas e ilícitas mas o impede de ignorar a punitividade das coerções
ilícitas, o que traz consequências práticas para as decisões orientadoras de casos
particulares” (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003, p. 100-101).
Por isso, convém apontar a existência de leis penais eventuais como “aquelas que
habilitam a coerção direta policial, que adquire caráter punitivo quando excede o necessário
para neutralizar um perigo iminente ou interromper um processo lesivo em curso”, por
exemplo, “qualquer privação de liberdade anterior à sentença pode ter por objeto evitar a
continuidade da lesão ou impedir um conflito maior, mas ela também pode ser utilizada
como pena antecipada”. Dessas constatações decorre a necessidade de precisar os
momentos em que essas leis penais eventuais habilitam o poder punitivo para que seja
possível excluí-los, “orientando as decisões das agências jurídicas às quais toca controla-los
através de habeas corpus, mandados de segurança, habeas data, declarações de
inconstitucionalidade ou ações internacionais” (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003, p.
88-90).
Desse modo, é da determinação desses momentos punitivos que se pode concluir
que a prisão preventiva “só poderá assumir eventualmente o caráter de coerção direta
naqueles casos em que serve para prevenir a iminência de outro conflito ou evitar que
perdure a atividade lesiva”, para além da função excepcional de, eventualmente, prevenir a
vingança, mas como coerção administrativa direita de execução diferida, e de modo algum
como argumento legitimante do poder punitivo (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003, p.
107).

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Direitos Humanos & Fundamentais

CONCLUSÃO

Com o presente artigo foi possível compreender que discussão sobre um processo
penal limitador das prisões preventivas como tática de redução de danos deve,
necessariamente, enfrentar o quadro de irracionalidade e ilegitimidade que impera no
sistema penal cautelar latino-americano, com o evidente caráter punitivo das prisões
impostas sob esse parâmetro, em violação sistemática e crescente à presunção de inocência
nos últimos 30 anos.
Tal tarefa tomou como premissa o marco teórico da criminologia crítica, do
garantismo penal e da teoria agnóstica da pena, pressupostos de uma teoria do processo
penal capaz de construir conceitos que não se omitam a esse quadro de irracionalidade e
ilegitimidade, sem recorrer aos atalhos metodológicos do fenômeno distinto que é o processo
civil.
Assim, a perspectiva agnóstica de deslegitimação da prisão denuncia o tratamento
de inimigo conferido a todo suspeito na América Latina, cujo sistema penal se caracteriza
pelo número significativo de presos sem condenação, um verdadeiro sistema penal cautelar
que opta por atuar antes da condenação, em especial no combate às pessoas vulneráveis e
indesejáveis.
Diante de tal quadro, antes da necessária abolição das prisões preventivas, deve-se
pressionar com urgência por sua redução radical a hipóteses mínimas, como, por exemplo,
as fundamentadas na tutela da prova e no risco de fuga, conforme uma lógica de redução
de danos pretendida por uma teoria agnóstica do processo penal.
Pode-se dizer que são hipóteses, de certo modo, (ainda) toleráveis. Remetem-se às
teses processualistas “que tendem a negar o caráter punitivo (da prisão preventiva) para
reduzir seu âmbito de aplicação”, mas que “não podem impedir o inevitável dano ao
princípio de inocência violado por todo o sistema penal cautelar” e, ao menos até o
momento, “não têm tido êxito no são propósito de reduzir a sua amplitude”
(ZAFFARONI, 2011, p. 113).
No entanto, dada a impossibilidade constitucional de abolir as prisões preventivas,
seguem admitidos tais fundamentos do art. 312 do CPP, desde que atuem como coerção
direta para prevenir outro conflito iminente ou evitar a continuidade de uma lesão em
curso, por se tratar, de fato, de hipóteses que se apresentam como lei penal eventual.

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Direitos Humanos & Fundamentais

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~ 440 ~
DEMOCRATIZANDO A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
NO BRASIL: ESTAMOS NO CAMINHO CERTO?
(OU: AINDA SOBRE A VIGIA DOS VIGILANTES)

Luiz Augusto da Silva*

INTRODUÇÃO

Estados Unidos, década de 1980. Auge da Guerra Fria. O medo de um confronto


nuclear direto com a União Soviéticaassombra a população mundial.Numa sociedade cada
vez mais desiludida e sem esperanças na capacidade de seus líderes para contornar o
desastre iminente, aventureiros mascarados tomam conta das ruas para fazer justiça com as
próprias mãos. “Vigilantes”, é como passam a ser conhecidos. No começo, os vigilantes
foram muito bem recebidos pelo público.Virtuosos e corajosos, os novos
combatenteseram capazes de fazer com firmeza aquilo que as autoridades oficiais não
fariam, seja por incompetência, seja por descaso puro e simples. Fama, riqueza, prestígio,
influência: os vigilantes logo conquistaramseu lugar nos corações dos homens e mulheres
ao redor do país.
Até um deles cometer um erro e abordar um transeunte inocente. Até um outro se
valer da imunidade que suas vestes lhe conferiam para perseguir um caso de vingança
pessoal. Com o tempo, episódios como esses serviram para mostrar às pessoas que,
diferente do que quiseram crer no início,admitir a presença de vigilantes vagando pelas
cidades e agindo acima da lei acarretava um preço alto – preço que teria de ser pago, cedo ou
tarde. Em Nova Iorque, o mais importante centro urbano do país, os policiais entram em
greve; a criminalidade novamente se alastra sem freios. Revoltada, a população vai às ruas,
dessa vez para reivindicar que o governo coloque um fim à patrulha dos vigilantes. O mote
dos protestos é sempre o mesmo: afinal, se os vigilantes vigiam a todos, então quem vigiaria
os vigilantes?
Tudo o que foi relatado até aqui, evidentemente, é fruto da imaginação. Mas não
de qualquer imaginação: esse é o cenário distópico explorado por Alan Moore e Dave

*Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Mestrando em Direito do Estado na
Universidade Federal do Paraná – UFPR.

~ 441 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

274
Gibbons (2011) no famoso romance gráfico Watchmen . A proposta dos autores, com a
narrativa, é a de conjecturar sobre quais seriam as repercussões políticas, econômicas e
sociais da existência real de heróis mascarados na história mundial do século XX, trazendo
mais verossimilhança ànoção do “super-herói”, tão presente na cultura pop. O que
aconteceria se indivíduos dotados de habilidades extraordinárias realmente caminhassem
entre nós? E a reposta a essa pergunta significa a própria subversão do conceito popular de
“super-heroísmo”: sujeitos excessivamente poderosos, quando deixados livres de quaisquer
amarras para agir além da lei e segundo seus juízos de bem e mal, ao invés de salvadores do
povo, acabam se tornando as causas,não de sua glória, --mas de sua decadência.
A história é fictícia, mas os temas filosóficos e políticos que ela aborda não
poderiam ser mais concretos.Pois na vida real parece,cada vez mais, que certas pessoas ou
instituições apresentam uma tendência para de tempos em tempos serem elevadas à
categoria de “heróis”. Os grandes heróis de hoje, é claro, não usam capas nem máscaras,
mas togas. Não rondam os recantos escuros das ruas, mas reúnem-se em espaços solenes
chamados tribunais, ou cortes. Seus poderes? Derrubar atos dos representantes eleitos pelo
povo com base na sua contrariedade à linguagem muitas vezes ampla e abstrata dos
preceitos expressos, explicita ou implicitamente, num documento de índole especial que
chamados de Constituição.É a ascensão dos juízes, do Poder Judiciário, e o advento da
jurisdição constitucional e das práticas de controle de constitucionalidade (HIRSCHL,
2004, p. 5): verdadeiros vigilantes – para prosseguir com ametáfora – da conformidade das
leis e dos demais atos do Estado em face da Constituição.
O dilema que todo esse cenário jurídico-político envolve é bastante conhecido, e
tem tirado o sono dos constitucionalistas e dos cientistas sociais: como é possível conciliar
o ideal democrático de autogoverno do povo com o fato de que uma elite não eleita de
juízes detém poderes assim tão impressionantes? Como compatibilizar um sistema no qual
as cortes são constantemente provocadas a expressar seus juízos sobre assuntos polêmicos
e decisivos com a liberdade de um povo para moldar, por si e pelos representantes que
escolhe, o caráter moral de sua comunidade?Está aí o difícil desafio de encontrar um
equilíbrio aceitável entre os ideais de representação e separação dos Poderes, pedras
angulares de toda a democracia, e a missão conferida às cortesde fazer valer a
Constituição.Está aí o problema básico do controle judicial de constitucionalidade
(BEATTY, 2014, p. 61; ELY, 2016, p. 08).É preciso, de alguma forma, compatibilizar a
chamada tensão entre democracia e constitucionalismo (VIEIRA, 1997, p. 55):democratizar o

274A história, originalmente publicada como uma série de quadrinhos ao longo de 1986 e 1987, ganhou uma
adaptação cinematográfica de mesmo título em 2009, sob a direção de Zack Snyder.

~ 442 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

controle de constitucionalidade e a interpretação constitucional passa a ser uma meta


jurídico-política valiosa.
É com essa convicção em mente, em homenagem aos trinta anos de promulgação
da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que se desenvolve a análise do
presente artigo. Seu objetivo precípuo é o de avaliar, à luz das teorias do constitucionalismo
popular e do constitucionalismo democrático, se e em que medida certas propostas de
democratização da jurisdição constitucional no Brasil –as audiências públicas e os amici
curiae – podem ser consideradas verdadeiramente dignas desse nome. Como proposta
alternativa, em seguida, o texto busca contribuir para a construção de um mecanismo
possível de diálogo institucional já previsto na Constituição brasileira: a participação do
Senado no controle difuso de constitucionalidade (art. 52, X, da Constituição) – muito
embora o Supremo Tribunal Federal, como se verá, tenha sinalizado em sentido contrário
quando do julgamento da Reclamação n°. 4.335/AC, concentrando ainda mais a
prerrogativa de interpretar o texto constitucional em suas próprias mãos.

O SISTEMA DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO,


O PAPEL DO SUPREMO, E A CHAMADA “SUPREMOCRACIA”

“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos
ou diretamente, nos termos desta Constituição”. É o que consta no parágrafo único logo
do primeiro artigo da Constituição brasileira. De fato, uma das premissas básicas do
constitucionalismo contemporâneo é a de que a Constituição expressa os compromissos
mais fundamentais de uma determinada comunidade; ela é redigida pelo e para o povo. É
no caráter democrático das constituições que reside sua fonte de legitimidade e, logo, de
autoridadesobre os cidadãos e sobre os agentes oficiais do Estado. Seria apenas natural,
portanto, esperar que as divergências interpretativas sobre o significado do texto
constitucional, inevitáveis numa sociedade minimamente livre, democrática e pluralista,
fossem solucionadas de modo compatível com as compreensões que o povo – seu redator
e destinatário – tem a respeito dele.
Acontece que no Brasil, seguindo o influxo mundial de constitucionalização de
direitos e de adoção de formas de revisão judicial das leis, a Constituição parece ter sido
entregue, para todos os fins e efeitos práticos, aos ministros do Supremo Tribunal Federal.
Asituação é tão viva que dispensa grandes introduções. Baseado na propalada retórica do
“guardião último” e da supremacia do Poder Judiciário, supostamente derivada do art. 102

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Direitos Humanos & Fundamentais

do texto constitucional (“compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da


Constituição”), o Tribunal tem acumulado, sob seumanto, poderes formidáveis para
determinar,sozinho, o sentido da Constituição. Basta um breve correr de olhos pelos
noticiários para perceber que, constantemente, o STF é convocado a expressar seus juízos
“definitivos” acerca de questões políticas e morais absolutamente controversas: biografias
não autorizadas, aborto, pesquisas com células-tronco, fidelidade partidária, porte de
drogas para consumo pessoal, limites da presunção de inocência, direito ao esquecimento –
e são apenas alguns dos exemplos que vêm à memória recente.
Boa parte desse cenário, é bem verdade, pode ser atribuída ao próprio arranjo
institucional consagrado pela Constituição Federal de 1988: como se sabe, um documento
denso e altamente analítico, bastante propenso à chamada judicialização da política
(BARROSO, 2010, p. 08).Apostou-se muito, à época de sua edição, no papel do Poder
Judiciário, e do Supremo em específico, para efetivar as promessas do texto recém-
promulgado. Foram criadas novas ações constitucionais, com destaque para as ações de
controle abstrato de constitucionalidade; o rol de legitimados ativos para a propositura
dessas ações de controle abstrato foi consideravelmente ampliado, passando a incluir
também entidades da sociedade civil (sindicatos, partidos políticos, associações, ordem dos
advogados); positivou-se um extenso e minucioso rol de direitos fundamentais, cuja
aplicabilidade jurídica é direta e imediata; além disso, o texto constitucional contempla em
minúcias inúmeros aspectos da ordem econômica, social, tributária, administrativa... Enfim,
sendo muitas matérias políticas e morais também matérias constitucionais, não é de se
estranhar que elas eventualmente cheguem ao exame do Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, reconhece-se de modo unânime que o Tribunal emergiu como
instituição significativamente fortalecida após o processo constituinte de 1988
(ARGUELHES; RIBEIRO, 2016, p. 407). Combinando elementos dos sistemas
concentrado e difusode controle de constitucionalidade, a Constituição estabelece que
compete ao STF processar e julgar as ações diretas de constitucionalidade, examinando a
compatibilidade em abstrato de leis e outros atos normativos federais e estaduais em face
Constituição (atuação à la“Corte Constitucional”); bem como julgar em última instância os
casos concretos versando sobre temas constitucionais, em sede de recurso extraordinário
(atuação à la“Corte Suprema”). Por conta desse sistema misto, bem rico e complexo, são
diversos os canais de acesso à jurisdição constitucional do STF, que pode ser instado a
exercitá-la por vários atores e em vários contextos diferentes.

~ 444 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Após a Emenda Constitucional n°. 45/2004, esses poderes foram incrementados


e expandidos. Além da inclusão doteste da “repercussão geral” como critério de
admissibilidade dos recursos extraordinários (art. 102, § 3°, da CF), conferiu-se ao Supremo
o poder singular de editar súmulas vinculantes, a partir de seus julgados reiterados (em
teoria, ao menos) sobre um dado assunto constitucional. As teses consolidadas nas súmulas
passam a seroponíveis a toda a estrutura do Poder Judiciário e à Administração Pública, das
três esferas da federação: União, estados e municípios (art. 103-A da CF) – o que em si já
não é pouco. Some-se a tudo isso, ainda, o poder autorreconhecido pelo Tribunal de
declarar inconstitucionais até mesmo as normas emanadas do poder constituinte
reformador – a inconstitucionalidade de emendas constitucionais em face das cláusulas
pétreas (art. 60, § 4° da CF)275 – e chega-se ao que temos hoje: um modelo de controle de
constitucionalidade dito “ultraforte” (KOZICKI; ARAÚJO, 2015, p. 107; SILVA, 2009, p.
217).
Um jurista, de maneira sugestiva e um tanto chocante, denominou o fenômeno
brasileiro de “Supremocracia” (VIEIRA, 2008, p. 445) 276. E com boa dose de acerto: desde
1988, confia-se no Supremo Tribunal Federal para proferir a “última palavra” sobre aquilo
que a Constituição significa e sobre aquilo que ela exige de nós enquanto comunidade.
Tudo indica que a Constituição se tornou aquilo que o Supremo diz que ela é. Em se
tratando de interpretação constitucional, estamos todos vivendo à sombra do Supremo
Tribunal Federal.

AS PROPOSTAS DO CONSTITUCIONALISMO POPULAR E DO


CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO: O QUE PODE EXISTIR PARA
ALÉM DA “SUPREMOCRACIA” NO BRASIL

Seria esse contexto “supremocrático” compatível com a democracia e com o


autogoverno do povo? Nos Estados Unidos, tido como o berço da doutrina do controle
275 A propósito, vide o julgamento pioneiro no assunto: BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de
Inconstitucionalidade n°. 939/DF. Requerente: Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio.
Relator: Ministro Sidney Sanches. Brasília, 18 de março de 1994. Diário Oficial de Justiça da União. Disponível
em: <https://goo.gl/jwRAq9> Acesso em 03/02/2018.
276 Expressão cunhada por Oscar Vilhena Vieira para designar o acúmulo de atribuições do Supremo Tribunal

Federal, com a Constituição de 1988, especialmente em matéria constitucional: “[...] o termo supremocracia
refere-se à expansão da autoridade do Supremo em detrimento dos demais poderes. [...] Foi apenas com a
Constituição de 1988 que o Supremo deslocou-se para o centro de nosso arranjo político. Esta posição
institucional vem sendo paulatinamente ocupada de forma substantiva, em face da enorme tarefa de guardar
tão extensa constituição. A ampliação dos instrumentos ofertados para a jurisdição constitucional tem levado
o Supremo não apenas a exercer uma espécie de poder moderador, mas também de responsável por emitir a
última palavra sobre inúmeras questões de natureza substantiva, ora validando e legitimando uma decisão dos
órgãos representativos, outras vezes substituindo as escolhas majoritárias.”

~ 445 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

judicial de constitucionalidade das leis, os constitucionalistas têm se confrontado com um


dilema semelhante. Espantados com a força institucional que a Suprema Corte assumiu no
decorrer das décadas, eles se perguntam: “Porque devemos atribuir aos juízes a autoridade
interpretativa final para nos dizer o que a Constituição significa?”. Uma boa questão. E
segundo uma corrente teórica de proeminência nos últimos anos, a resposta é:
simplesmente não devemos. Esse é o argumento do movimento chamado de constitucionalismo
popular.
O grande arauto do constitucionalismo popular é Larry Kramer, cujo livro The
People Themselves, publicado em 2004, abriu novos horizontes para o debate constitucional
norte-americano (KRAMER, 2004). Em sua obra, Kramer busca resgatar as origens do
judicial reviewna história dos Estados Unidos para demonstrar que, diferente do que costuma
afirmar o senso comum, a prática do controle judicial da constitucionalidade dos atos do
governo não foi acompanhada, em seus primórdios, de um princípio como o da
supremacia judicial – princípio que hoje tende a ser aceito com absoluta naturalidade. Na
tradição americana autêntica, afirma Kramer, era o povo – e não os juízes – o principal
encarregado de definir os significados de sua própria Constituição, na convivência e nas
disputas do dia-a-dia. Tal prerrogativa era utilizada para contestar os atos oficiais do
Estado, inclusive os atos provindos do Judiciário, com base nos entendimentos do povo
sobre aquilo que a Constituição exigia dele próprio.
Considerações historiográficas à parte, o fato é que a obra de Kramer acendeu
uma forte mobilização teórica contra a ideia de supremacia do Poder Judiciário e, em
especial, da Suprema Corte. O vetor comum dos teóricos do constitucionalismo popular é,
com efeito, o de que o povo em si deve, numa democracia, assumir um papel mais proativo e
decisivo na interpretação constitucional – proativo o suficiente para se contrapor, se
necessário, aos julgamentos provindos do Poder Judiciário. É possível sintetizar, assim, a
agenda política do constitucionalismo popular, de um modo geral, em duas partes
essenciais: uma de reformas institucionais e outra de renovação cívica (DONELLY, 2012,
p. 162). A primeira parte da agenda pretende conceber arranjos de organização do Estado
que viabilizem um maior diálogo entre as instituições e o povo na leitura da Constituição,
retirando-a do monopólio judicial; a segunda parte volta-se a revigorar o interesse da
população pela política, de modo que ela possa expressar opiniões esclarecidas e bem
informadas sobre os assuntos constitucionais.
Mas é claro que uma teorização tão ambiciosa assim não passaria ilesa. A maior
dificuldade do constitucionalismo popular sempre foi, segundo apontado por seus

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Direitos Humanos & Fundamentais

opositores (SERROTA, 2012, p. 1646) e confessado por seus adeptos (DONELLY, 2012,
p. 170), a de como operacionalizar na prática o ideal de participação popular que o
movimento conclama na teoria. Pois se, por um lado, a comunidade deve deter um papel
maior na determinação dos significados constitucionais, por outro, a grande dúvida que
permanece em aberto é: o que significa dizer que a “comunidade” deve ser mais proativa?
Como fazer com que isso aconteça? Os caminhos são vários; e é aqui que mesmo os
partidários da teoria divergem entre si. O próprio Kramer veio a reconhecer isso, em texto
posterior ao seu livro The People (KRAMER, 2006, p. 08) 277. Não obstante, passado o
momento inicial de resistência quase raivosa à supremacia do Judiciário, o “segundo ato”
do constitucionalismo popular, como afirma Tom Donelly (2012, p. 177), tem se focado,
exatamente, nessa implementação prática da teoria.
Por mais interessantes que sejam os contributos teóricos do constitucionalismo
popular, algumas ponderações merecem ser feitas. De fato, sua importação para solo
brasileiro não pode ser feita de maneira acrítica, sem ter em vista nossas peculiaridades
institucionais. Discutir a legitimidade do judicial reviewnos Estados Unidos é diferente de
discutir a legitimidade do controle de constitucionalidade das leis no Brasil. Lá, a prática foi
consolidada a partir de uma decisão da própria Suprema Corte acerca do alcance de seus
poderes para invalidar os atos do governo que reputava inconstitucionais – lembre-se do
conhecido caso Marbury versus Madison, julgado no ano de 1803. Aqui, ela é fruto de
reformas institucionais relativamente recentes em termos históricos – o controle
concentrado no Supremo Tribunal, por exemplo, foi inaugurado só em 1965 (BARROSO,
2012, pp. 85-90)278–, e encontra-se hoje, em boa medida, consagrada expressamente no
texto constitucional(art. 102, CF).
À luz da vivência ainda jovem do nosso constitucionalismo, portanto, abdicar
totalmente da importância do Poder Judiciário na leitura constitucional – “tirar a

277 São as palavras do autor: “For there is no one theory. Popular constitutionalism, as such, is just a general

concept or broad idea. As noted above, basically it’s the idea that final authority to control the interpretation
and implementation of constitutional law resides at all times in the community in an active sense. A ‘theory’
of popular constitutionalism involves showing how this idea works or could be made to work. But there are
countless institutional arrangements by which popular control can become meaningful.”
278 No Brasil, o controle de constitucionalidade foi introduzido com o advento da República, pela

Constituição de 1891, sendo inexistente durante o Império. Foi consagrado um modelo difuso e concreto de
controle, inspirado na experiência norte-americana. Na Constituição de 1934, foi prevista uma forma
embrionária de controle concentrado no STF: a chamada “representação interventiva”, cujo legitimado único
era o Procurador-Geral (um instrumento de garantir um federalismo centralizado na União). Enfim, o
controle concentrado e abstrato surgiria entre nós apenas com a Emenda Constitucional n°. 16/1965, durante
a vigência da Constituição de 1946: por meio dela, atribuiu-se ao STF a competência para julgar a
constitucionalidade de leis e atos normativos federais, mediante representação do Procurador-Geral da
República. Desde então, convivem os dois modelos – concentrado e difuso – de controle de
constitucionalidade, mantidos pela Constituição de 1988.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Constituição das Cortes” por completo (TUSHNET, 1999), por assim dizer – soa extremo
demais. Em nossa cultura jurídico-política, na cultura brasileira, esse papel de fato existe e é
sem dúvida importante – tanto que foi positivado num textode caráter jurídico superior(art.
102, CF). Renunciar a ele seria uma guinada drástica em face da organização institucional
disposta na própria Constituição. Em outras palavras: se o Supremo Tribunal se apresenta
como o vigilante – o “guardião” – de nossa Constituição, é porque nós mesmos, de certo
modo, conferimos a ele esse encargo.
É preciso, portanto, discernir qual deve ser o real papel dos tribunais – e do
Supremo inclusive – na tarefa de interpretar e aplicar a Constituição. Mas devemos fazê-lo
sem cair na retórica simplista da “última palavra” ou da supremacia. Para tanto, podemos
enriquecer nosso entendimento sobre o valor da jurisdição constitucional com outro aporte
teórico normativo: o constitucionalismo democrático, tal como elaborado por Robert Post e Reva
Siegel. Vamos a ele.
A principal premissa da teoria do constitucionalismo democrático é a de que a
autoridade da Constituição depende, fundamentalmente, de sua legitimidade democrática
(POST; SIEGEL, 2007, p. 04). Baseia-se na tradição de que as reivindicações a respeito do
significado constitucional autorizam os cidadãos a contestar os atos do governo – inclusive
as decisões judiciais. A autoridade das decisões do Judiciário, assim como a autoridade da
Constituição, depende, em última análise, da confiança que inspira nos cidadãos. No
entanto, costuma-se confundir supremacia da Constituição com a supremacia judicial, de
modo que qualquer contestação às decisões das cortes seria uma afronta à própria
Constituição. O constitucionalismo democrático se opõe a essa opinião corrente. Segundo
a teoria, a mobilização popular contra determinadas decisões das cortes pode, em verdade,
ter efeitos construtivos no sentido da reafirmação da Constituição e do incremento dos laços
sociais – é o que Post e Siegel chamam de backlash(2007, p. 16).
A razão disso é fácil de ser apreendida. Ao criticar decisões das cortes com
argumentos constitucionais, os cidadãos estão não negando, mas sim reafirmando seu
comprometimento com a Constituição. Deve-se reconhecer, por isso, a importância do
governo representativo e da participação popular na efetivação da Constituição, mesmo
numa comunidade que atribui aos tribunais a relevante tarefa de interpretá-la por meio do
raciocínio jurídico profissional [professional legal reason](POST; SIEGEL, 2007, p. 02). Talvez
esteja aí um ponto relevante de diferença entre o constitucionalismo democrático e o
popular em sua forma “pura”, digamos: a teoria não pretende retirar totalmente a
Constituição do Poder Judiciário. Mas ela se diferencia, de modo igualmente significativo,

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Direitos Humanos & Fundamentais

das visões juricêntricas [juricentric] predominantes, por levar em conta o engajamento


popular e as demais instituições enquanto elementos a serem considerados no processo de
legitimação do judicial review.
Aí estão, em linhas gerais, constitucionalismo popular e constitucionalismo
democrático: dois meios de se alcançar alguma harmonia na tensão incessante entre
constitucionalismo e democracia. Do primeiro, a crítica à arraigada supremacia judicial; do
segundo, o reconhecimento de que o Judiciário tem algum ofício respeitável, embora não
exclusivo, na interpretação da Constituição. O balanço que se extrai disso tudo é: não se
pode confundir a supremacia da Constituição – essa sim, a base do constitucionalismo –
com a supremacia do Poder Judiciário. A força das decisões judiciais deve advir não de uma
tese artificial como a da “supremacia” – o adjetivo é oferecido, mais uma vez, por Larry
Kramer –, mas sim da qualidade de sua argumentação em termos deliberativos, e do
convencimento que elas são aptas a provocar no público e nas demais instituições
(KRAMER, 2006, p. 84).
Estabelecido esse panorama normativo, voltamos à pergunta de antes: como
instrumentalizar toda essa teoria “abstrata” na prática “supremocrática” que parece ter se
enraizado no Brasil? Talvez as possibilidades estejam mais próximas do que imaginamos –
e veremos o porquê em seguida. Na atual conjuntura, no entanto, para saber aquilo que
devemos fazer para democratizar a interpretação constitucional no Brasil, precisamos saber,
antes, aquilo que não é democratizar a interpretação constitucional. É a isso que nos
dedicaremos a partir de agora.

O QUÃO DEMOCRATIZANTES SÃO AS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS E OS


AMICI CURIAE?

Quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n°. 3.510 – a


primeira a se utilizar de uma audiência pública na história do Supremo Tribunal Federal – o
ministro relator Carlos Britto qualificou, em seu voto, as audiências como sendo “um
notável mecanismo de democracia direta ou participativa”279. O processo discutia a
constitucionalidade do art. 5° da Lei de Biossegurança (Lei n°. 11.105/05), que autoriza o
uso de células-tronco embrionárias de embriões humanos para fins de pesquisa científica e
terapias. Um assunto inegavelmente complicado e causador de divergências acaloradas:

279Conferir: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n°. 3.510/DF.
Requerente: Procurador-Geral da República. Relator: Ministro Carlos Aires Brito. Brasília, 28 de maio de
2010. Diário Oficial de Justiça da União. Disponível em: <https://goo.gl/VHGsCR> Acesso em 03/02/2018.

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Direitos Humanos & Fundamentais

para além das dificuldades enfrentadas pela ciência em definir quando começa a vida
humana, ele remete ao próprio significado do valor da vida, e do que é exigido de nós para
trata-la com respeito e dignidade – questões filosóficas e morais profundas, por natureza
(DWORKIN, 2009, passin).
O caso é emblemático porque, de largada, deu a tônica do que viriam a
representar as audiências para o STF: instrumentos de participação da sociedade em
processos relacionados a intensas polêmicas constitucionais. E de fato, desde então, as
audiências públicas percorreram um longo caminho; é seguro dizer que elasse consolidaram
na atividade institucional do STF, hoje com expressa previsão no art. 9º da Lei n°.
9.868/99. Praticamente todos os grandes temas que chegaram à apreciação do Supremo,
nos últimos anos, tiveram uma audiência pública convocada pelos ministros no intuito de
subsidiar seus julgamentos.Num breve retrospecto, a lista é longa, mas elucidativa:
importação de pneus usados (ADPF n°. 101); interrupção de gravidez de fetos
anencefálicos (ADPFn°. 54); sistema de saúde e judicialização da saúde (STA n°. 36 e
outros); cotas raciais em universidades públicas, ou ação afirmativa (ADPF n°. 186);
financiamento de campanhas eleitorais (ADI n°. 4.640); publicação de biografias não
autorizadas (ADI n°. 4.815); ensino religioso em escolas públicas (ADI n°. 4.439), dentre
vários outros casos que poderiam ser mencionados. Só o ano de 2017, seguindo essa
tendência, foi repleto de audiências sobre tópicos constitucionais dos mais relevantes:
armazenamento de perfis genéticos de condenados por crimes violentos (RExt n°.
973.837); possibilidade de suspensão de aplicativo de comunicação por decisões judiciais
(ADPF n°. 403); aplicabilidade do chamado “direito ao esquecimento” na esfera cível
(RExtn°. 1.010.606).
Assim como as audiências, popularizou-se no âmbito do STF a convocação de
amici curiae – os “amigos da corte”, numa tradução simpática do latim – para auxiliar a
tomada de decisão. Instituto de inspiração norte-americana, o amicus curiae é um órgão ou
entidade, dotado de “representatividade adequada”, capaz de contribuir de algum modo
com os julgamentos do Tribunal, geralmente a partir de elementos técnicos ou de
informações acerca de controvérsias de relevância social (art. 7º, § 2º, Lei nº. 9.868/99; art.
138 do CPC). O objetivo da atuação processual dos amici curiae, em princípio, é modesto:
auxiliar, instruir o Tribunal em seus julgamentos, com opiniões especializadas sobre
assuntos técnicos ou complexos sob algum ponto de vista (científico, cultural, econômico,
etc.).

~ 450 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Mas diz-se “em princípio” por um motivo: o Supremo tem encarado os amicicuriae
como muito mais do que simplesmente experts técnicos. Veja-se, a propósito, o que pensa o
Ministro Celso de Mello: “a intervenção processual do ‘amicus curiae’ tem por objetivo
essencial pluralizar o debate constitucional, (...) visando-se, ainda, com tal abertura
procedimental, superar a grave questão pertinente à legitimidade democrática das decisões emanadas
desta Corte.” (ADI n°. 5.022-MC - destacamos). Acompanham-no, certamente, a Ministra
Rosa Weber, para quem “a intervenção de amicus curiae no controle concentrado de atos
normativos primários destina-se a pluralizar e a legitimar social e democraticamente o debate
constitucional (...)” (RExt 592.891/SP - destacamos), e o Ministro Gilmar Mendes, que está
convencido de que “a admissão de amicus curiae confere ao processo um colorido
diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto” (ADI n°. 2.316 - destacamos).
Todas essas citações permitem constatar o seguinte. O enorme apreço pelas
audiências públicas e pelos amici curiae deriva, em boa medida, da percepção que os próprios
ministros do STF passaram a cultivar a respeito desses procedimentos (MEDINA, et al.,
2013). Reconhece-se, com frequência, que tais instrumentos caracterizam formas
importantes de engajamento popular no processo decisório do Tribunal, os quais
contribuiriam para conferir maior legitimidade democrática às decisões – algo que, ninguém
discorda disso, é particularmente relevante em matéria constitucional. Pelo simples fato de
se estar oportunizando a palavra a certos segmentos da sociedade civil – sejam os inscritos
nas audiências públicas, sejam as entidades admitidas como amicus curiae – o STF teria se
tornado um ambiente propício ao pluralismo e ao debate público: uma “Casa do Povo”.
Seriam, então, as audiências e os amici curiae maneiras autênticas de contrabalancear o tão
anunciado déficit democrático que marca a jurisdição constitucional.
Muitos juristas têm acompanhado e endossado a postura do STF. Há quem
afirme, como Miguel Godoy, que a intensificação do uso de audiências públicas a dos amici
curiae nos seus julgamentos revelaria uma “tentativa de abertura do Supremo Tribunal
Federal a um diálogo direto com outras instituições e com o povo” (2017, p. 170). No
mesmo sentido, Clèmerson Clève e Bruno Lorenzetto sustentam que “os mecanismos da
audiência pública e do amicus curiae são instrumentos potenciais para o aprimoramento
substantivo da formação das razões públicas que devem ser apresentadas pelos ministros
na fundamentação de suas decisões.” (CLÈVE; LORENZETTO, 2016, p. 144). Outros
reconhecem que a capacidade de influência da participação do povo, veiculada pelas vozes
das audiências e dos amici curiae, traria um maior grau de legitimidade ao processo decisório
perante o Supremo, tornando-o mais participativo e aberto às aspirações sociais – uma

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Direitos Humanos & Fundamentais

espécie de legitimação pelo procedimento (MORAES, 2011, passin; PEREIRA E SILVA, 2010,
passin).
É claro que mesmo os defensores das audiências públicas e dos amici curiae
admitem que esses instrumentos não são perfeitos. Realmente, ainda há muito o que fazer
para aprimorar os mecanismos de participação popular no controle judicial de
constitucionalidade (GODOY, 2017, pp. 200-213). Primeiro problema: a escolha de quem
participa e quem não participa é feita por decisão discricionária, irrecorrível, do relator do
processo. Segundo problema: a forma como as audiências são conduzidas não propicia um
diálogo efetivo entre os participantes; as exposições costumam ser feitas de maneira
isolada. E mais um problema, esse já há muito denunciado: o modelo decisório no STF não
permite identificar um posicionamento do Tribunal; os julgamentos são tomados com base
no somatório dos votos individuais dos ministros, cujas fundamentações nem sempre são
compatíveis entre si (SILVA, 2009, p. 219) – o que dificulta a análise sobre se e como as
discussões prévias contribuem substancialmente para o julgamento.
Seja como for, a tese subsiste. O desafio, para essa linha de pensamento, é de
ordem prática: como melhorar a qualidade das audiências e da intervenção dos amici curiae. Se
é verdade que o STF tem se preocupado em se valer de audiências e doamicus sempre que
possível – e a experiência recente mostra que ele de fato tem essa preocupação – logo,
segundo as opiniões dos ministros e de juristas respeitáveis, estaríamos num bom trajeto
rumo à democraciada nossa interpretação constitucional. Basta melhorar o que já se está
fazendo.
Será mesmo? Retomemos as propostas básicas do constitucionalismo popular e
do constitucionalismo democrático: a leitura da Constituição deve ser compatível com as
expectativas que o povo, seu autor e destinatário, projeta sobre ela; para tanto, a
interpretação constitucional merece ser compreendida como um empreendimento
conjunto, dialógico, que envolve as diferentes instituições democráticas e a comunidade de
um modo mais amplo. O fato de o Poder Judiciário avocar para si a “última palavra” sobre
os significados constitucionais – o fato de o Judiciário proclamar sua posição de
“supremacia” perante as demais instituições – indica, assim, que algo merece ser revisto na
distribuição de poderes dentro do sistema democrático. O diagnóstico da “Supremocracia”
é prova de que o Brasil se enquadra perfeitamente nesse perfil.
Só que isso, contudo, vem sendo pouco questionado, seja pelos ministros do STF,
seja pela maioria da doutrina jurídica entusiasta da recente abertura democrática
experimentada pelo Tribunal. Na realidade, as limitações das audiências e dos amici curiae

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Direitos Humanos & Fundamentais

são mais cruciais do que se pensa. Elas não decorrem dos obstáculos práticos – ou, ao
menos, não só de obstáculos práticos – que assolam essas técnicas de “democratizar” a
jurisdição constitucional; existem também limites conceituais que dificilmente poderiam ser
superados no atual esquema de organização do Estado. Ora, tanto as audiências quanto os
amici são, por definição, instrumentos de subsídio aos julgamentos do Supremo: visam a
incrementar, de algum modo, a qualidade das decisões proferidas pelo Tribunal sobre o
conteúdo da Constituição; agora, o quê, exatamente, significa esse incremento decisório
“qualitativo” é uma questão em aberto (alvo das teorias hermenêuticas e da adjudicação).
Todo esse esforço é benéfico e merece ser feito. Mas não questiona, perceba-se –
e nem tem a pretensão de questionar – a posição do STF como “guardião último” da
Constituição: a autoridade interpretativa final permanece concentrada em suas mãos. O
grau de influência das manifestações nos julgamentos fica à mercê, ainda, muito mais da
opção teórica de cada ministro (LEAL, 2015) do que de um efetivo contrapeso
institucional, capaz de infirmar, se necessário, as posições argumentativas da Corte.Os
mecanismos participativos na jurisdição constitucional, nesse sentido, não contestam, mas
antes reafirmam a autoridade solitária do Tribunal. A aposta excessiva nas audiências e nos
amici curiaedeixa de lado, portanto, um aspecto relevantíssimo da interpretação
constitucional, e que temos razões para repensar: o ideal de supremacia do Poder
Judiciário, que no Brasil se manifesta como um ideal “supremocrático”, mantem-se
inabalado. O vigilante segue sua patrulha, sem que alguém possa verdadeiramente vigiá-lo.
Por isso, não se deve supervalorizar o potencial dito democratizante das
audiências públicas e dos amici curiae. Deve-se, apenas, trata-los como aquilo que
efetivamente são. E eles são, há que se reconhecer, instrumentos que exercem uma função
epistemológica não desprezível na tomada de decisão constitucional pelo STF (CLÈVE;
LORENZETTO, 2016, p. 67). Numa sociedade cada vez mais técnica, dependente da
tecnologia, como a nossa, assuntos científicos tornam-se assuntos jurídicos; e estes, não
raro, tornam-se assuntos constitucionais: contendas sobre o uso de células tronco para
pesquisas, o bloqueio judicial de aplicativos e a proibição do amianto – todas na pauta do
STF – são exemplos disso. Espera-se, nessas circunstâncias, que os julgadores possam se
munir de fundamentações técnicas com um grau razoável – ainda que não absoluto,
obviamente – de aceitabilidade e objetividade científica, inclusive por exigência de uma
razão pública que deve pautar os julgamentos (MENDONÇA, 2014, p. 151). Aí, quem
sabe, “teremos a garantia mínima de que ao menos tecnicamente as apreciações serão
perfeitas” (SOARES, 1969, p. 158).

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Direitos Humanos & Fundamentais

Fizemos algum progresso; mas até aqui nossa análise permaneceu em grande
medida desconstrutiva. Qualquer abordagem que se prese necessita também de uma parte
de pretensão construtiva. Pois bem: seriam as audiências públicas e os amici curiae, realmente,
as únicas possibilidades de democratizar o controle de constitucionalidade no arranjo
institucional brasileiro? Temos insistindo desde o início que não. É hora de desenvolver
melhor esse argumento.

O JULGAMENTO DA RECLAMAÇÃO N°. 4.335/AC PELO STF E O PAPEL


DO SENADO NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: UM
DIÁLOGO INSTITUCIONAL POSSÍVEL

Vimos que uma parte básica da agenda política do constitucionalismo popular


reside em conceber vias possíveis para reformas institucionais. Discute-se de que maneira a
leitura da Constituição pode ser compartilhada, de formas proveitosas, entre as diferentes
instituições que compõem uma democracia – sendo o Poder Judiciário apenas uma delas.
No Brasil, o desenho institucional inscrito na Constituição parece indicar, no entanto, que a
opção normativa feita pelo povo teria sido a de efetivamente concentrar a interpretação
constitucional no Judiciário e no STF: afinal, o julgamento das ações de controle abstrato é
competência exclusiva do Supremo; em sede de controle difuso, a última palavra também é
dele, por meio do julgamento de recursos extraordinários e outros feitos de sua
competência originária. Certo?
Apenas parcialmente certo. O controle concentrado, de fato, foi entregue em
regime de monopólio ao STF – numa tentativa de replicar o modelo de cortes
constitucionais europeu –; mas, em se tratando de controle difuso, nossa Constituição
estabelece uma distinção peculiar e que merece ser enfatizada. Como se sabe, em sede de
controle difuso, o STF julga casos concretos, nos quais a constitucionalidade de uma norma
figura como questão prejudicial ao julgamento do mérito. Na ausência de uma doutrina do
stare decisis, ao estilo norte-americano, o constitucionalismo brasileiro desenvolveu ao longo
de sua história (a partir da Constituição de 1934, para ser mais exato) um outro mecanismo
direcionado a assegurar o efeito erga omnes das decisões tomadas na esfera do controle
difuso: a participação do Senado Federal no processo de fiscalização de
constitucionalidade.
Atualmente, essa participação consta no art. 52, inciso X, da Constituição:
“Compete privativamente ao Senado Federal (...) suspender a execução, no todo ou em parte, de lei

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Direitos Humanos & Fundamentais

declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. Por meio do
dispositivo, atribui-se ao Senado Federal a competência para expedir resoluções
suspendendo a execução das leis declaradas incompatíveis com a Constituição pelo STF,
nos julgamentos proferidos em recursos extraordinários e demais processos de sua alçada;
ou seja, no exercício do controle difuso e concreto de constitucionalidade.
Não é isso, entretanto, o que parece pensar o STF – os motivos são conhecidos e
tem sido objeto de inúmeros comentários na literatura jurídica nacional. Estamos falando
da controvertida tese sustentada na Reclamação n°. 4.335/AC, particularmente nos votos
do ministro Gilmar Mendes e do então ministro Eros Grau. É a tese da “mutação
constitucional” do art. 52, X, da Constituição brasileira. A proposta dos ministros no
julgamento da Reclamação n°. 4.335/AC não foi simplesmente a elaboração de uma nova
norma a partir da atribuição de um sentido diferente a um mesmo texto normativo – nada
disso. Foram além, e proclamaram a substituição de um texto – positivado pelo poder
constituinte originário – por outro texto, criado pelo próprio STF280. A prevalecer o
argumento, a função do Senado teria se reduzido à de meramente conferir publicidade às
decisões do STF tomadas em sede de controle difuso; o efeito vinculante e erga omnes já
seria consequência automática da autoridade de uma decisão plenária do Tribunal. Na
prática, acabariam igualados, em nosso sistema, os efeitos das decisões proferidas em
controle abstrato e em controle concreto de constitucionalidade (SANTOS, 2014, p. 606).
O resultado do julgamento foi nebuloso. Por conta da superveniência da Súmula
Vinculante n°. 26 (que tratou do mérito do caso), a “mutação constitucional”
aparentemente não vingou, embora o acórdão faça referência ao “caráter expansivo” das
decisões em controle difuso – o que é outro tópico delicado (BACHA E SILVA, 2017, p.
113). O impacto simbólico dos votos, no entanto, persiste, com consequências práticas
significativas.
Não é o espaço, aqui, de aprofundar o debate sobre a ocorrência ou não de uma
“mutação constituição” no julgamento, ou mesmo sobre se é possível atribuir algum valor
normativo-decisório a uma categoria como essa (HORTA, 1992, p. 14; SANTOS, 2015, p.
80). Num estudo sobre democracia interpretativa e diálogos institucionais, devemos chamar

280Sobre o assunto, o argumento sustentado pelo então Ministro Eros Roberto Grau foi o seguinte:
“Passamos em verdade de um texto [pelo qual] compete privativamente ao Senado Federal suspender a
execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal
Federal, a outro texto: ‘compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução,
operada pelo STF, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do
Supremo.’” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n°. 4.335/AC. Reclamante: Defensoria Pública
da União. Reclamado: Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco. Relator:
Ministro Gilmar Mendes. Brasília, 22 de outubro de 2014. Diário Oficial de Justiça da União. Disponível em:
<https://goo.gl/A1LHxT> Acesso em 03/02/2018.

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Direitos Humanos & Fundamentais

atenção para um fato muitas vezes encoberto: por trás da teoria da mutação constitucional,
anunciada como descritiva – afinal, o discurso dos julgadores se resumiria a constatar
alguma incongruência entre o texto constitucional e a realidade que o circunda (daí a
“mutação”) –, existe o que podemos chamar de uma metateoria sobre quais devem ser os
atores envolvidos na leitura da Constituição – normativa por excelência.
As manifestações dos ministros Gilmar Mendes e Eros Grau na Reclamação n°.
4.355 são sintomáticas de uma filosofia mais profunda, e eminentemente juricêntrica, que
vem tomando conta do imaginário da Corte Constitucional brasileira: a de que a função de
“guarda da Constituição” confere ao Supremo, invariavelmente, a última palavra sobre o
significado dela. Mais do que isso, ao interpretar e aplicar o texto constitucional, o Supremo
atuaria não apenas para preservá-lo, mas disporia também da prerrogativa excepcional de
modificá-lo, “atualizá-lo”, de acordo com seus próprios entendimentos 281 – uma espécie de
“sentimento constituinte tardio” (SUNDFELD, 2012, p. 54). É o vigilante tornando-se
dono do bem encarregado de vigiar. Essa é a única premissa que explica a compreensão
dos ministros de que não haveria mal político algum – não seria uma perda democrática – na
supressão da competência privativa do Senado mediante uma decisão do STF. O raciocínio
decorre do equívoco teórico revelado a partir do constitucionalismo democrático: o de
confundir a supremacia da Constituição com a supremacia do Judiciário, ou melhor, do
Supremo Tribunal Federal.
Vale insistir: a força da Constituição decorre de sua legitimidade democrática. Por
isso, processos igualmente válidos de interpretação constitucional podem e devem ter lugar
nas outras instituições, e na comunidade em geral – não só no Judiciário. E a intervenção
do Senado, nesse sentido, representa um instrumento relevante para oportunizar a
verificação política das decisões de inconstitucionalidade proferidas pelo STF na instância de
controle difuso de constitucionalidade (ABBOUD, 2014, p. 452; STRECK, 2014, p. 551).
É um meio de permitir que representantes eleitos pelo povo possam dar sua contribuição
dialógica ao juízo de (in)constitucionalidade emanado do STF, seja chancelando-o, seja se

281 A propósito, confira-se a seguinte passagem emblemática do ministro Celso de Mello, no julgamento da

ADI n°. 3.345/DF: “A interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pelo STF – a quem se
atribuiu a função eminente de ‘guarda da Constituição’ (CF, art. 102, caput) – assume papel de essencial
importância na organização institucional do Estado brasileiro, a justificar o reconhecimento de que o modelo
político-jurídico vigente em nosso País confere, à Suprema Corte, a singular prerrogativa de dispor do
monopólio da última palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental”; ao que
complementa que “[n]o poder de interpretar a Lei Fundamental, reside a prerrogativa extraordinária de
(re)formulá-la, eis que a interpretação judicial acha-se compreendida entre os processos informais de mutação
constitucional, a significar, portanto, que ‘A Constituição está em elaboração permanente nos Tribunais
incumbidos de aplicá-la’. [...]” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n°.
3.345. Requerente: Partido Progressista. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 20 de agosto de 2010.
Diário Oficial de Justiça da União. Disponível em: <https://goo.gl/CvDZBP> Acesso em 02/02/2018).

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Direitos Humanos & Fundamentais

opondo a ele, ao negarem-se a editar a resolução suspendendo a execução da lei ou do ato


normativo discutido. Trata-se, enfim, de um mecanismo de participação indireta da
sociedade civil na tomada de decisão constitucional, através da representação legitimada
pelo voto popular.
Essa dinâmica entre STF e Senado, se bem orientada, pode promover um diálogo
interessante e potencialmente enriquecedor entre as duas instituições. Judiciário e
Legislativo seriam convidados a expressar conjuntamente, a partir de suas diferentes
perspectivas – uma política (BERCOVICI, 2004, p. 24), e outra jurídica (“professional legal
reason”)282 –, suas percepções sobre o significado da Constituição e sobre a compatibilidade
de uma determinada norma em face desses entendimentos. Promove-se, aqui sim, um
diálogo institucional – um diálogo (com o perdão da redundância) travado entre instituições,
Poder Legislativo e Poder Judiciário, em proveito da concretização e da revitalização dos
significados constitucionais (SILVA, 2009, p. 209). A ideia é a de que ambas as instituições
melhorem seus argumentos e que, ao fim (provisório) do diálogo, prevaleça aquele que
tiver a melhor substância – aquele que for mais democraticamente persuasivo.
Veja-se que as audiências públicas e os amici curiae, por sua própria natureza,
teriam dificuldades grandes para alcançar um diálogo como esse – se é que o alcançarão,
um dia. Afinal, seus participantes não são eleitos pelo povo, e não possuem peso
institucional para divergir da Corte, sinalizando quando ela for longe demais. A autoridade
final remanesce unicamente no Judiciário, que pode ou não seguir os argumentos que lhe
são expostos no curso do procedimento, a depender do grau de sensibilidade de cada
julgador individual.
E qual a vantagem dessa proposta em termos de operacionalização prática? A
mais evidente delas parece ser a seguinte: a revitalização do papel do Senado no controle
difuso de constitucionalidade não depende, em tese, de mudanças institucionais radicais – o
que implicaria uma igualmente radical mudança da Constituição: a competência já se
encontra positivada no documento. Só que a locução em tese não foi fortuita: conforme
analisado, foi o próprio STF quem, por meio de uma decisão sua, intencionou ferir de
morte esse possível mecanismo de diálogo previsto no texto constitucional. Disso sobressai
uma sugestão: ao invés de o Supremo insistir na obsolescência do artigo 52, X, da
Constituição Federal, aumentando ainda mais seus próprios poderes, por que não discutir

282 Aqui entra em cena, conforme sustenta Gilberto Bercovici, a difícil relação – embora essa seja uma relação

necessária – entre política e Constituição (2004, p. 24): “Não se pode, portanto, entender a Constituição fora
da realidade política, com categorias exclusivamente jurídicas. A Constituição não é exclusivamente
normativa, mas também política; as questões constitucionais são também questões políticas. A política deve
ser levada em consideração para a própria manutenção dos fundamentos constitucionais.”

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Direitos Humanos & Fundamentais

maneiras de dar maior vigor à função do Senado no sistema de controle de


constitucionalidade das leis? Os resultados podem ser mais entusiasmantes para o
aprimoramento do nosso sistema democrático – e, com o tempo, do nosso
constitucionalismo.
Devemos fazer uma ressalva indispensável, contudo. É claro que o impacto
democratizante da competência do Senado, em matéria de interpretação constitucional, é
de certo modo limitado em nosso sistema. Ainda coexiste todo um aparato robusto de
controle concentrado de constitucionalidade que permanece na exclusividade do STF, e
isso para não falar do trunfo poderoso que são as súmulas vinculantes. Sua aplicação não
nos leva, pois, a um modelo de controle de constitucionalidade que poderíamos chamar de
“fraco”, tal como teorizado por Mark Tushnet, um outro teórico do constitucionalismo
popular283.
Não é de se menosprezar, porém, a importância e as dimensões do controle
difuso: muitos temas de grande magnitude, com repercussões políticas e sociais
significativas, chegam ao Tribunal precisamente por essa via. Para ilustrar, eis dois
exemplos marcantes: a mitigação da presunção de inocência (art. 5°, LVII da CF; art. 283
do CPP) – decisão que gerou forte backlash de alguns segmentos da comunidade jurídica –
foi tomada num processo de habeas corpus (HC n°. 126.292); a equiparação entre os efeitos
do casamento e da união estável para fins sucessórios – medida que afeta a vida de milhões
de brasileiros – foi feita no exame de dois recursos extraordinários (RExtnos. 878.694 e
646.721). Será que os representantes do povo não deveriam ter algo a dizer sobre questões
tão decisivas como essas? Espera-se que sim.
De toda forma, a mensagem que merece ser retida é esta: revigorar, fomentar, o
papel do Senado no controle difuso pode servir como bom ponto de partida numa
trajetória, ainda longa, nessa batalha constante entre democracia e constitucionalismo; e,
quem sabe, pode também inspirar reformas das instituições democráticas no
futuro.Ademais, o argumento que sustentamos foi apresentado, por ora, de maneira

283 Num modelo fraco de revisão judicial das leis, a exemplo do que se procura praticar no Canadá desde 1982
com a promulgação do Canada Act, o Poder Judiciário, ao se deparar com uma lei que considera
inconstitucional, não a declara nula e sem efeito (modelo forte); em linhas gerais, a legislação é devolvida ao
Parlamento, que pode reavaliá-la à luz dos argumentos do Tribunal, mediante o processo legislativo ordinário
e em curto prazo. Mas o núcleo da proposta – um diálogo entre Judiciário e Legislativo – parece ser possível a
partir da interpretação construtiva do art. 52, X, da Constituição brasileira. De acordo com Tushnet (2004, p.
17): “Weak-form systems allow the courts to remind legislatures of their constitutional obligations, without making the courts'
specification unrevisable except by constitutional amendment. Legislatures and courts interact on questions of the constitution's
meaning, and proponents of weak-form review suggest that the outcome of the process will advance both self-governance and
constitutionalism, as legislators, instructed but not compelled by the courts, modify the policies they adopt to conform to
constitutional limits on their power, and importantly—as courts, instructed but not compelled by legislators, modify their views of
what the constitution requires”.

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Direitos Humanos & Fundamentais

conceitual e em caráter eminentemente normativo, seguindo as sugestões teóricas do


constitucionalismo popular e do constitucionalismo democrático.Afinal, para saber como
chegar a algum lugar, é preciso saber antes aonde se quer chegar, e por quais razões.Abre-se
agora, por certo, todo um campo para pesquisas mais direcionadas, empíricas e/ou
comparativas, no sentido de constatar como tem se operado na prática o relacionamento
entre Senado e STF no controle difuso, quais os incentivos que influenciam a postura de
ambas as instituições – e como seria possível, numa perspectiva funcional, aperfeiçoar essa
dinâmica em termos democráticos.
Enfim, uma última observação. Há o risco de que estaríamos pretendendo, para
inverter a reprimenda de Rogério Soares (1969, p. 138), contrabalançar mecanicamente o
judicial que não ganhou a confiança da sociedade por um legislativo que a perdeu284. O
alerta é mais do que pertinente no contexto brasileiro atual, marcado por uma gravíssima
crise de representatividade das instâncias democráticas e de perda de confiança da
população na política, de maneira generalizada. Um cínico tem aí um prato cheio para se
opor à proposta apresentada aqui. É verdade, portanto, que a defesa de um desempenho
mais ativo do Senado no controle difuso de constitucionalidade é, bem vistas as coisas,
somente um capítulo dentro dessa história sem fim que acompanha o Brasil: a reforma do
sistema político e a superação das adversidades que assombram o modelo de democracia
representativa, tal como vivenciado hoje. A democratização do controle de
constitucionalidade depende, sobretudo, de uma nova compreensão sobre as formas pelas
quais praticamos a democracia. Esse, porém, já é um assunto para outra oportunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Quis custodiet ipsos custodes?” 285 – quem vigia os vigilantes da Constituição? Numa
democracia, a autoridade interpretativa final sobre a Constituição deve recair sobre o
próprio povo, sobre a comunidade. Oprojeto, aí, passa a ser o de como instrumentalizar do
modo mais fidedigno possível a soberania popular, por meio da organização das
instituições democráticas. Não há “supremacia”, nem do Judiciário, nem de nenhum outro

284 Originalmente uma crítica à excessiva judicialização experimentada nos Estados modernos: “trata-se de

contrabalançar mecanicamente o legislativo que perdeu a confiança da sociedade por um judicial que a não
ganhou”.
285 Frase original em latim atribuída ao poeta romano Juvenal, em sua coletânea de poemas Sátiras. A frase foi

utilizada como referência por Alan Moore e Dave Gibbons no romance gráfico Watchmen, trabalhado na
introdução deste texto.

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Direitos Humanos & Fundamentais

ator: é do diálogo entre todos eles que provém a legitimidade dos significados
constitucionais, em permanente releitura.
Dito isso, o título deste artigo contém uma pergunta, feita como uma provocação
mesmo, e agora é o momento de respondê-la. Chegados os trinta anos de vigência da
Constituição Federal de 1988, estamos no caminho certorumo à democratização da
interpretação constitucional no Brasil? Não deve vir com surpresa, a essa altura, que
odesfecho irá soar um tanto desalentador: não – nós não estamos. Ao menos não enquanto
seguirmos depositando excessivamente nossas esperanças em métodos como asaudiências
públicas e o amicus curiae na qualidade de técnicas de “democracia” interpretativa; não
enquanto acreditarmos nas teses “última palavra” e da “supremacia”; e não enquanto os
membros do nosso Supremo Tribunal Federal continuarem insistindo em que é a ele, e
somente a ele, quem cabe dizer essa“última palavra” sobre o significado da Constituição.
Em épocas de crise, é natural olharmos para o céu na espera de um salvador, de
um herói. Os juízes, e o Supremo Tribunal Federal particularmente, parecem inspirar esse
tipo de confiança naconjuntura brasileira de hoje. Masalgo de valioso se perde numa
democracia, algo intrinsecamente valioso, a partir do momento em que abrimos mão do
desafio de resolver os problemas mais profundos de nossa sociedade por nós mesmos, e
transferimos essa responsabilidade especial aos membros de uma elite técnica. Pois quem
deve, no fim do dia, aprender a conviver de maneira harmoniosa e pacífica somos nós – o
povo.
O tempo dos heróis já se foi; a fé no poder super-heroico dos Vigilantes está
longe de trazer aquilo a que almejamos. Na luta pela realização da Constituição, e da
comunidade que queremos construir com base nela, não há outro caminho a trilhar a não
ser a democracia. Sim: teremos que ser nossos próprios heróis.

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CONSTITUIÇÃO PARA QUEM? TRINTA ANOS DE
INVISIBILIZAÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS LGBTIs
NO BRASIL

Rafael Carrano Lelis*

INTRODUÇÃO

A Constituição brasileira de 1988 se insereno movimento conhecido como o


Novo Constitucionalismo Latino-Americano (NCLA). Leonardo Avritzer (2017, p. 28)
aponta que o NCLA possuiria três características principais. Seriam elas: 1) a forte
ampliação de direitos, isto é, constituições com pautas substantivas alargadas; 2) a expansão
das formas de participação, principalmente por mecanismos democráticos de participação
popular direta e indireta; 3) o exercício de um novo papel pelo Poder Judiciário. Nesse
sentido, o autor aponta que essa nova forma de constitucionalismo se distingue pela grande
ampliação do reconhecimento de direitos a categorias historicamente oprimidas,
avançando, por exemplo, na proteção das comunidades tradicionais e das mulheres
(AVRITZER, 2017, p. 28-29).
Não obstante, embora um avanço na proteção de coletividades oprimidas
realmente possa ser constatado, a nova tradição constitucional parece ter ignorado as
demandas de lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexuais (LGBTI). A Carta Magna
brasileira não só deixa de elencar a orientação sexual e a identidade de gênero no rol que
proíbe práticas discriminatórias, como também constrói um texto de caráter
profundamente heteronormativo nas seções referentes às possibilidades de família,
indicando expressamente a união estável entre “homem e mulher”.
Destaca-se que a ausência de previsões específicas não se deu de forma
inconsciente. Assim como ocorreu em diversos outros países latino-americanos, o
movimento LGBTI brasileiro trabalhou intensamente junto à constituinte para que fosse
incluída a proibição de discriminação por "opção sexual" e, posteriormente, por
"orientação sexual" (SIMÕES; FACCHINI, p. 122). A questão chegou a ser objeto de
diversas propostas de emendas para a inclusão do termo "orientação sexual" ou

* Acadêmico de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF.

~ 465 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

"comportamento sexual" no artigo terceiro da Constituição brasileira. Nesse sentido, uma


busca pelo termo "orientação sexual" nos anais da constituinte indica sua aparição 121
vezes, em quatro comissões diferentes; o que mostra que o assunto não foi simplesmente
ignorado pelos legisladores286.
Desse modo, diante da ausência de previsão expressa, as pessoas LGBTIs têm
dependido do Poder Judiciário para garantir a tutela de seus direitos constitucionais, o que
acarreta grande insegurança jurídica com relação à concretização de sua dignidade. Nesse
sentido, o presente trabalho, partindo do marco teórico da subaltern cosmopolitan
legality(legalidade cosmopolita subalterna), proposta por Santos e Rodríguez-Garavito
(2005), questiona se a Constituição brasileira de 1988 protege de modo suficiente as
pessoas LGBTIs. Isto é, se as previsões constitucionais abstratas têm o condão de garantir
a efetivação dos direitos dessas pessoas. A hipótese inicial indica que não, uma vez que o
reconhecimento de direitos básicos tem dependido do aval do judiciário em ações de
controle de constitucionalidade.
Para o desenvolvimento da pesquisa, de caráter empírico e qualitativo, utilizou-se
o método indutivo de investigação por meio do emprego das técnicas de revisão
bibliográfica e aplicação e análise de questionários. A revisão bibliográfica foi utilizada para
a melhor compreensão do marco teórico e também para uma reconstrução histórica do
papel exercido pelo movimento LGBTI brasileiro. Por outro lado, os questionários foram
empregados para captar a percepção do movimento LGBTI acerca do status da proteção
constitucional de seus direitos, privilegiando a construção de um direito de baixo para cima.
Desse modo, o objetivo geral do trabalho era constatar a suficiência ou não da tutela
constitucional dos direitos LGBTIs a partir da ótica dos movimentos sociais.

1 A LEGALIDADE COSMOPOLITA SUBALTERNA

Seria demasiado pretensioso e arbitrário taxar determinado ordenamento jurídico


como protetivo ou não com base apenas na visão de um pesquisador ou meramente da
literatura voltada para essa temática; o que poderia comprometer, inclusive, a legitimidade
da pesquisa. Dentro da proposta deste trabalho, é essencial que se sustente a construção de

286 A busca foi realizada na versão online dos anais disponibilizada pelo Senado. Disponível
em:<http://www6g.senado.gov.br/apem/search?keyword=orienta%C3%A7%C3%A3o+sexual>. Acesso
em: 31 mar. 2018. As comissões nas quais a questão chegou a ser discutida foram: Comissão da Soberania e
dos Direitos do Homem e da Mulher; Comissão da Ordem Social; Comissão da Família, da Educação,
Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação; e Comissão de Sistematização (tendo sido
nessa última em que se decidiu em definitivo pela exclusão do termo "orientação sexual" do artigo terceiro.

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Direitos Humanos & Fundamentais

um constitucionalismo transformador (desde abajo), que atue de forma contra-hegemônica e


a partir da visão e protagonismo das e dos próprios LGBTIs. Afinal, quem melhor do que
as próprias vítimas da violência para dizerem se se sentem ou não protegidas? Ou ainda, o
que deveria ou não ser proscrito pelo texto constitucional a fim de tutelar seus principais
interesses?
Nesse sentido, é importante que se priorize uma abordagem de construção e
interpretação do direito "de baixo para cima"; ou ainda, nas palavras de Santos e
Rodríguez-Garavito (2005, p. 5), uma "subaltern cosmopolitan legality" (legalidade cosmopolita
subalterna). Adensando essa discussão, Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 59) assevera
que, para se alcançar a transformação de nosso modelo atual de Estado e de sociedade,
seria necessária a apropriação dos instrumentos políticos hegemônicos por aquelas classes e
grupos marginalizados. Assim, classifica o uso contra-hegemônico como contrário à
ideologia dominante e que, para se sustentar, "necesita [...] de la permanente movilización política
que, para ser efectiva, tiene que operar desde dentro de las instituciones y desde fuera" (SANTOS, 2010,
p. 60). No campo constitucional, o autor caracteriza que tal mobilização se daria a partir de
um constitucionalismo transformador desde abajo, contrapondo-se ao constitucionalismo
moderno eurocêntrico e liberal (SANTOS, 2010, p. 72).
Desse modo, a perspectiva de legalidade cosmopolita subalterna procura colocar
as vítimas em evidência, permitindo a elas, que são excluídas do paradigma hegemônico
("top-down"), que remodelem as instituições de forma a serem incluídas e reconhecidas,
estabelecendo um padrão que não mais será hegemônico, mas contra-hegemônico. É dizer:
"a subalternidade cosmopolita clama por uma concepção do campo legal que seja
apropriada para se reconectar o direito e a política e repensar as instituições legais desde
abaixo" (SANTOS; RODRÍGUEZ-GARAVITO, 2005, p. 15).
Além disso, uma abordagem como essa também objetiva superar o paradigma
liberal de autonomia individual, a partir da incorporação de formas alternativas de
conhecimento jurídico. Isto é, interpretações legais que extrapolem os intérpretes do direito
usualmente autorizados e que passem a compreender o campo jurídico enquanto
constituído de "elementos de luta que precisam ser politizados antes de serem positivados"
(SANTOS; RODRÍGUEZ-GARAVITO, 2005, p. 16).
Esses fatores foram, em grande medida, conjugados e estiveram presentes na
maioria dos processos constituintes latino-americanos287. Isso resultou em textos

287 Ochy Curiel (2013, p. 100-108), em trabalho que analisa a formação da Constituição colombiana, chama
atenção para dois pontos importantes: 1) o fato de grande parte das normas incluídas no texto constitucional,
relativas às mulheres, indígenas etc., configurar uma mera igualdade formal, que não encontra

~ 467 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

amplamente transformadores, principalmente no que diz respeito aos direitos dos povos
indígenas e tradicionais, das mulheres e do meio ambiente. Todavia, o mesmo não ocorreu
para a população LGBTI, o que precisa prementemente ser alterado, por meio do
protagonismo dos indivíduos afetados, o qual se ilustra na construção de um
constitucionalismo LGBTI em oposição ao padrão cisheteronormativo hegemônico.
É importante notar que essa atuação contra-hegemônica não deve ocorrer apenas
no momento de criação legislativa do direito, mas também em sua interpretação. Desse
modo, propõe-se uma ampliação da ideia de interpretação pluralista concebida por Häberle
(2002, p. 11-18). O autor alemão propugna a superação do que denominou uma sociedade
fechada de intérpretes (marcada pelo monopólio estatal dessa função, por meio da atuação
jurisdicional) para uma sociedade aberta, que abarcaria uma multiplicidade de atores
interpretativos, para além daqueles tradicionalmente autorizados e legitimados. Segundo
ele, "todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma (...) é, indireta ou, até
mesmo diretamente, um intérprete dessa norma” (HÄBERLE, 2002, p. 15). Portanto,
todos os cidadãos que a vivenciam ou, em muitos casos, que sentem sua ausência, seriam
pré-intérpretes ou cointérpretes do mandamento constitucional.
A construção de uma hermenêutica constitucional pluralista é essencial para a
diversificação da interpretação e para a ampliação da legitimidade interpretativa.
Entretanto, não parece ser suficiente para que se caracterize como uma abordagem "de
baixo para cima". Por isso, defende-se que, quando se trata de violação de direitos
humanos e de direitos fundamentais, aquele que vivencia a norma (ou sua ausência) não
deve atuar apenas como cointérprete, mas sim como intérprete principal e o mais (senão o
único) legitimado para tal interpretação. Assim, a função estatal seria veicular a
interpretação dos indivíduos atingidos. E isso não só nas arenas formalmente legitimadas
para exercer a jurisdição (por meio, por exemplo, dos institutos do amicus curiae eda
audiência pública ou mesmo da realização de uma litigância estratégica), mas também na
interpretação realizada por esses indivíduos em outros campos, como em trabalhos
científicos, doutrinários e em debates políticos. Isto é, ouvir a voz daqueles e daquelas que
realmente devem ser ouvidos, pois são jurídica e materialmente atingidos pelo
ordenamento.

correspondência materialmente concreta; e, por outro lado, 2) o fato de o processo constituinte ter sido
amplamente masculino, heterossexual e branco, por essas serem as características dos legisladores
constituintes colombianos (havia apenas quatro mulheres na assembleia constituinte). Assim, embora tenha
havido uma pressão externa dos movimentos sociais, os grupos oprimidos não encontraram representação
efetiva entre os criadores do texto constitucional, o que não se limita apenas à realidade colombiana, mas à
latino-americana como um todo.

~ 468 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Com esse intuito, este artigo se dedica à construção da interpretação do


movimento LGBTI brasileiro acerca da proteção ou não de seus direitos pelo texto
constitucional. Desse modo, fazendo uso da aplicação de questionário por meio do
autopreenchimento, buscou-se não só traçar um padrão protetivo ideal, mas também
compreender a percepção desse movimento sobre o cenário dos direitos LGBTIs após os
trinta anos de nossa Constituição, suas causas e possíveis alternativas para sua alteração.

2 A TRAJETÓRIA DO MOVIMENTO LGBTI BRASILEIRO

Antes que se parta para a análise feita pelos movimentos sociais acerca do atual
estado de proteção constitucional de seus direitos, é essencial que seja ilustrada sua
importância histórica. Isto é, entender como sua existência e atuação foram fundamentais
para se chegar ao patamar atual, além de compreender as especificidades e contradições de
sua própria formação. Nesse sentido, este subtópico se dedica a uma breve exposição da
trajetória do movimento LGBTI no Brasil, reconstruída a partir de revisão bibliográfica.
Uma ressalva inicial é importante: devido à forma de construção do movimento
que hoje chamamos de LGBTI e também à invisibilização produzida pelo protagonismo
excessivo e excludente dos homens gays brancos no início da politização das identidades
sexuais, boa parte da história do movimento LGBTI a que temos acesso é marcada por um
relato eminentemente homossexual masculino, que só muito recentemente começou a se
diversificar.
Em trabalho sobre a história homossexualidade no Brasil, James Green (2000, p.
454) destaca que o advento de um movimento homossexual, politizado e reivindicatório de
direitos, deu-se tardiamente no país, quando comparado com a realidade latino-americana,
de países como Argentina, México e Porto Rico. Segundo o autor, o motivo para isso teria
sido a eclosão da ditadura militar no ano de 1964, uma vez que as condições brasileiras já
estariam amadurecidas para o surgimento de um movimento organizado de gays e lésbicas
em momento anterior.
Para melhor entender a forma como esse desenvolvimento ocorreu, Regina
Facchini (2005) divide a ascensão do movimento LGBTI brasileiro em três ondas. A
primeira onda e, portanto, o próprio surgimento do movimento, deu-se a partir do final
dos anos setenta. Segundo a autora, foi nessa época que gays e lésbicas passaram a se reunir
com propósitos mais politizados, em contraste aos modelos de "guetos homossexuais"
existentes anteriormente (FACCHINI, 2005, p. 88). Essa referência aos "guetos" remete

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Direitos Humanos & Fundamentais

aos grupos homossexuais existentes desde os anos 1950, que se voltavam apenas "à
sociabilidade, à diversão e à paródia, aglutinando principalmente homens, que promoviam
eventos como concursos de miss, shows de travestis e desfiles de fantasias" (SIMÕES;
FACCHINI, 2009, p. 63).
Assim, fortemente influenciados pelo gay liberation estadunidense, ativistas
brasileiros começaram a se reunir, tendo sido fundado em 1978, em São Paulo, aqueleque é
apontado como o primeiro grupo brasileiro voltado à politização da homossexualidade: o
Somos. Desde sua criação, o grupo enfrentou "uma polarização entre a 'esquerda' e a
'autonomia das lutas das minorias'", um debate que perpassou todos os integrantes do
movimento na primeira onda e que até hoje encontra reverberações (FACCHINI, 2005, p.
93-94).
Por sua eclosão em plena ditadura, a primeira onda do movimento possuía como
característica principal o antiautoritarismo, rechaçando composições hierárquicas dentro de
sua própria organização e exercendo importante papel no combate às repressões militares.
Exemplo singular dessa atuação foi a criação no jornal Lampião, lançado em abril de 1978,
sob a direção do jornalista e escritor Aguinaldo Silva. A proposta da publicação se aliava ao
formato de "imprensa alternativa", fortemente presente à época, mas possuía enfoque
exclusivo na temática da homossexualidade (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 82-83). Pode-
se dizer que o

Lampião se diferenciava também no modo como abordava a


homossexualidade. O jornal procurava oferecer um tratamento que
combatesse a imagem dos homossexuais como criaturas destroçadas por
causa de seu desejo, incapazes de realização pessoal e com tendências a
rejeitar a própria sexualidade. Mas não fazia isso de modo a concentrar-
se exclusivamente nos homossexuais e, sim, apresentando-os como uma
entre as várias minorias oprimidas que tinham direito a voz (SIMÕES;
FACCHINI, 2009, p. 85-86).

Ademais, esse momento também foi fortemente marcado por uma tentativa de
subversão da normalização imposta ao gênero e à sexualidade. Procurava-se retirar o
conteúdo pejorativo de termos como "bicha" e "lésbica", por meio da valorização de sua
utilização cotidiana. Além disso, ganhou especial destaque o combate às assimetrias entre
homens e mulheres, bem como às estereotipizações entre ativo/passivo e
efeminados/masculinizadas (FACCHINI, 2005, p. 96).
Essa primeira onda teria seu fim por volta de meados dos anos 1980, coincidindo
com o momento de eclosão da epidemia da AIDS (Acquired Immunodeficiency Syndrome). O
período foi marcado por uma drástica diminuição no número de grupos LGBTIs

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Direitos Humanos & Fundamentais

organizados, ocasionada não só pela disseminação da AIDS, mas também pelo início do
processo de redemocratização, que retirou o "inimigo comum" da maioria dos grupos que
focavam sua atuação no combate ao autoritarismo (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 61-
117). Ainda que muitos identifiquem o período como de declínio do movimento
homossexual, Facchini (2005, p. 102-119) destaca que se tratou apenas de uma diminuição
quantitativa de grupos, não implicando perda qualitativa na militância, que alterou seu
modo de atuação.
A segunda onda foi marcada pela busca de articulação com o movimento LGBTI
internacional, principalmente por meio da International Lesbian and Gay Association (ILGA), e
pela valorização da formalização das organizações, passando a haver interesse no registro
legal e na aquisição de personalidade jurídica para os grupos. Os militantes dessa época não
encaravam a atuação daqueles da primeira onda como política, mas sim como uma forma
de autoajuda, tendo em vista que os primeiros grupos se encontravam para troca de
experiências e vivências pessoais (FACCHINI, 2005, p. 102-119).
Aliado a isso, o movimento da época teve mais um grande desafio: combater os
discursos de patologização da homossexualidade que vinham ganhando força no meio
científico a partir do alastramento da AIDS. Desse modo, os esforços se voltaram à
desvinculação entre homossexualidade e doença e ao combate à sua caracterização como
forma ilegítima de vivência sexual. Devido ao intenso trabalho dos grupos LGBTIs nesse
sentido, houve também uma importante conquista no período, que foi a retirada da
homossexualidade do Código de Doenças do Instituto Nacional da Previdência Social
(FACCHINI, 2005, p. 53- 61). Em síntese,

Essa nova geração de ativistas tinha pouco ou nenhum envolvimento


com posições ideológicas de esquerda ou anarquistas e se mostrava
muito menos refratária à ação no campo institucional. Essas
características, já presentes no período anterior, embora menos
influentes, tornam-se predominantes na nova configuração do
movimento, mais voltada a estabelecer organizações de caráter mais
formal e mais focada em assegurar o direito à diferença (SIMÕES;
FACCHINI, 2009, p. 117).

Foi nesse momento, também, em que os grupos intensificaram sua atuação junto
ao poder legislativo, trabalhando diretamente na constituinte de 1988, na tentativa de
incluir a vedação à discriminação em razão de orientação sexual na nova Constituição. Os
dois grupos de maior destaque à época e peças fundamentais ao avanço da militância
LGBTI foram o Triângulo Rosa (comandado por João Antonio Mascarenhas) e o Grupo Gay
da Bahia (liderado por Luiz Mott). Ambos representavam características típicas do

~ 471 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

movimento do período, menos focados em transformações sociais, em busca de uma


atuação pragmática na garantia de direitos civis e combate à discriminação e violência
(SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 120).
Mais tarde, a partir do início dos anos 1990, houve uma renovação de fôlego no
movimento homossexual, dando origem à terceira onda, agora marcadamente maisplural e
com maior protagonismo dos representados pelas outras letras que integram a "sopa de
letrinhas". A fase, da qual muitos aspectos prevalecem até os dias de hoje, destacou-se pela
profissionalização do ativismo político por meio da estruturação no formato de
organizações não governamentais (ONGs) e da crescente busca por financiamento.
Ampliou-se também, a partir desse período, a competitividade entre as entidades LGBTIs,
envolvendo disputas por financiamento e visibilidade política.
O período se distinguiu, ainda, por uma intensificação das relações com o Estado,
originando os programas AIDS I (1994-1998), AIDS II (1998-2002), AIDS III (2002-
2006)288 e Brasil Sem Homofobia (2004)289. E também pelo estreitamento, marcado por
diversas tensões, com o mercado econômico, que passou a identificar a população LGBTI
como um grande grupo consumidor em potencial (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 137-
152); iniciando um modus operandi empresarial persistente até hoje, a partir do qual as ações
em prol da população LGBTI, em grande parte dos casos, visa ao auferimento de lucros.
Atualmente, ainda que não se trate propriamente de uma quarta onda, uma vez
que o modelo de ONGs permanece consolidado, podem-se apontar novas peculiaridades
com relação à forma de atuação. Seriam elas o maior enfoque científico dos e das militantes
na temática, buscando validar sua luta a partir de uma perspectiva acadêmica. E, como
apontaremos mais especificamente, uma maior atuação de litigância estratégica, junto ao
Poder Judiciário, para a expansão da garantia de direitos pelo ordenamento.

3 METODOLOGIA E ANÁLISE DOS QUESTIONÁRIOS

Epstein e King (2013, p. 47-56) apontam a "replicabilidade" como regra essencial


a ser observada pelo investigador na pesquisa empírica. Desse modo, é essencial a
exposição, de forma minuciosa, de como se deu a coleta dos dados utilizados na pesquisa.
Nesse sentido, os autores apontam que "o bom trabalho empírico adere ao padrão da

288 Trata-se de acordos firmados pelo Brasil com o Banco Mundial para o financiamento de projetos na área
de saúde, que integraram o Programa Nacional de DST e AIDS (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 140).
289 O programa se voltou ao incentivo de múltiplas ações para o combate da homofobia no país, desde a

capacitação de funcionários de educação nas temáticas de identidade de gênero e orientação sexual até o
lançamento de editais para financiar pesquisas ligadas à temática (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 145-146).

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Direitos Humanos & Fundamentais

replicação: outro pesquisador deve conseguir entender, avaliar, basear-se em, e reproduzir a
pesquisa sem que o autor lhe forneça qualquer informação adicional". Por isso, dedica-se
esta seção à explicitação da forma de aplicação e à análise dos questionários.
Como já mencionado, um dos objetivos desta pesquisa é permitir a construção de
uma interpretação constitucional de baixo para cima, com protagonismo das pessoas
LGBTIs. Nesse sentido, tendo em vista a dificuldade de delimitação da população (em
virtude de diversos fatores, como a própria condição de anonimato em relação à orientação
não heterossexual ou à condição não cisgênera), considerou-se que a melhor forma de
atingi-la seria a partir de organizações que trabalham diretamente com a temática. Além
disso, o recurso às organizações se mostra ainda mais propício em função do perfil de seus
integrantes, em geral mais acostumados à "linguagem dos direitos", devido à experiência de
militância; e, também, por permitir uma percepção mais coletiva e menos subjetiva acerca
de quais seriam as prioridades na agenda LGBTI, ampliando, embora não garantindo, a
possibilidade de obtenção de resultados mais inclusivos, atentos à pluralidade de
experiências LGBTIs.
Com relação ao instrumento utilizado para a produção dos dados, ainda que o
questionário esteja mais usualmente ligado à execução de investigações quantitativas, a
escolha se deu em virtude das limitações físicas e financeiras desta investigação. Como o
recorte da pesquisa é amplo, abarcando organizações de diversos estados brasileiros, não
seria possível realizar entrevistas com os e as representantes de cada uma das organizações
em suas sedes. Além disso, a realização de entrevistas por videochamadas poderia não ser
aceita por todas as organizações ou, ainda, prejudicar a percepção das informações em
virtude de falhas na conexão. Assim, o questionário se mostrou, como instrumento, a
melhor opção metodológica.
Para sua estruturação, o questionário foi dividido em quatro seções,
predominando perguntas de caráter aberto para possibilitar o máximo de captação de
informações e, também, um menor grau de influência nas respostas. A primeira seção
visava apenas à obtenção de informações gerais sobre a organização, tais quais nome, país e
cidade da sede, bem como e-mail de contato. Já na segunda seção, perguntou-se sobre
quais direitos a organização considerava que precisam ser expressamente previstos na
Constituição, independentemente da realidade de seu próprio país. Foi disponibilizado um
espaço para inclusão de até cinco direitos e uma justificativa para cada um deles, sendo
obrigatória somente a inclusão de pelo menos um direito. Na seção seguinte, a única que
contava com uma pergunta de resposta fechada (as opções dadas eram apenas "sim" ou

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Direitos Humanos & Fundamentais

"não"), questionava-se: "a proteção constitucional dos direitos LGBTIs em seu país é
suficiente?". Por fim, a quarta seção variava de acordo com a resposta dada na terceira,
inquirindo: por que a organização considerava a proteção suficiente ou não; quais
acreditava serem os motivos desse status protetivo; e, nos casos em que havia sido apontada
uma proteção insuficiente, questionava-se quais poderiam ser os meios de resolução do
problema.
Para a obtenção de amostragem ampla de organizações brasileiras, optou-se por
utilizar uma lista de organizações que trabalham com a causa LGBTI no país,
disponibilizada pelo "TODXS App", aplicativo de celular criado pela ONG TODXS e
voltado exclusivamente para a população LGBTI290. No app, além de ser disponibilizada a
lista de organizações, tem-se acesso a toda a legislação brasileira referente à temática e
também podem ser realizadas denúncias de casos de homotransfobia que são
encaminhadas diretamente à Controladoria Geral da União (CGU) para investigação.
Diante disso, foi enviado o questionário para um total de 72 organizações, das
quais voltaram 10 respostas. Todos os questionários foram enviados em janeiro de 2018,
tendo como prazo para resposta até metade e fevereiro; mais tarde, foram reenviados em
fevereiro, estendendo-se o prazo de resposta até início de março.
Com relação ao método, guiou-se pela análise qualitativa tripartite de
documentação empírica proposta por Mario Cardano (2017). O método de análise
proposto pelo autor compreende as seguintes etapas: segmentação, qualificação e
individuação das relações. A segmentação se refere ao estabelecimento de marcadores,
"cuja função consiste na identificação de segmentos relativamente homogêneos para
submeter à comparação no interior dos materiais empíricos" (CARDANO, 2017, p. 273).
Nesse sentido, a segmentação seguiu a divisão de perguntas constante no questionário,
separando-se o exame em quatro categorias: os direitos e as justificativas; a suficiência ou
não da proteção no país e o porquê dessa caracterização; as causas da proteção suficiente
ou insuficiente; e as sugestões de superação da insuficiência protetiva, nos casos em que se
aplicavam.
Mais adiante, a etapa da qualificação é conceituada por Cardano (2017, p. 293)
como a “atribuição de uma ou mais propriedades a um determinado segmento da
documentação empírica, úteis à sua caracterização". Desse modo, a técnica permite que se
aprofunde a dimensão de análise do documento por meio de sua maior especificação.
Portanto, para a qualificação dos segmentos, utilizou-se a chamada template analysis proposta

290 Para maiores informações sobre o aplicativo e a organização, acessar: <https://www.todxs.org/>.

~ 474 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

por Nigel King (2012, p. 426-450). O método consiste na composição de uma grade
analítica a partir da caracterização de cada uma das propriedades identificadas para
possibilitar sua comparação. A utilização da template analysis pode se dar a partir de duas
abordagens principais: indutiva (data-drive), sendo a grade composta por meio do observado
na análise do material; ou dedutiva (theory-drive), por meio da qual se encaixa o encontrado
no documento analisado a categorias definidas previamente. A análise dos questionários foi
feita apenas de modo indutivo, sendo a classificação estabelecida a partir das respostas
fornecidas.
Por fim, a individuação das relações consiste na análise a partir da comparação das
qualificações; ou, ainda, por meio da separação de determinada qualificação para análise.
Sendo assim, nessa última etapa, realizou-se a análise por meio do exame cruzado das
qualificações, destrinchando as principais conclusões aduzidas a partir dos dados
produzidos.

3.1 Direitos e justificativas

Como já mencionado, o questionário continha espaço para indicação de até cinco


direitos LGBTIs que a organização considerasse essenciais e que deveriam ser positivados
expressamente nos textos constitucionais, cada um acompanhado de um espaço para
justificativa do porquê daquele direito. A intenção era criar um parâmetro ideal de proteção
que pudesse ser comparado com o texto constitucional. Como também já foi apontado,
apenas era obrigatória a indicação de um direito, sendo os quatro demais opcionais.
A partir da análise das respostas, constatou-se o preenchimento de 44 direitos
diferentes. Indutivamente, cada um dos direitos levantados foi encaixado em 14 diferentes
categorias, em alguns casos havendo a cisão de um mesmo preenchimento em duas
categorias diferentes. A Tabela 01 expõe as diferentes formas de aparição de cada um dos
direitos dentro dos questionários.

Tabela 01 – Formas de Aparição dos Direitos Indicados nos Questionários


Direito Modos de Aparição

Direito à não discriminação não discriminação; direito à não discriminação; direito à não
discriminação em razão da orientação sexual e identidade de gênero;
combate à discriminação

Direito ao trabalho educação e trabalho

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Direitos Humanos & Fundamentais

Direito a uma vida digna/segurança direito à cidadania; proteção do Estado à população LGBT; direito à
segurança de vida; segurança; [proteção de] LGBTs na prisão
Igualdade de direitos e oportunidades A garantia do tratamento igualitário principalmente dos serviços
públicos; direito à igualdade e cidadania; direitos civis; políticas
afirmativas aos transgêneros; direito a isonomia completa como a
dos demais cidadãos heterossexuais

Direito à identidade de gênero Lei da Identidade de Gênero conhecida por João Nery; direito ao
cumprimento da pena privativa de liberdade de acordo com a
identidade de gênero e em ambiente livre de discriminação;
nome social; direito à alteração de registro (nome e sexo); lei de
identidade de gênero; identificação civil; direito à livre expressão
social da identidade de gênero e orientação sexual

Direito ao casamento e união civil direito ao casamento igualitário; casamento igualitário; direito ao
casamento civil e à adoção por casais não heterossexuais
Direito à saúde acesso total à saúde;a saúde de qualidade; direito à saúde; prevenção
a infecções sexualmente transmissiveis; a garantia a saúde plena
LGBT

Criminalização da homofobia criminalização da LGBTIfobia; criminalização da lgbtfobia;


criminalização da LGBTIfobia
Direito à moradia Moradia
Direito a uma educação plural acesso à educação; educação para a diversidade; educação e trabalho
Direito a adoção por casais do mesmo sexo; adoção; direito ao casamento
maternidade/paternidade/adoção civil e à adoção por casais não heterossexuais
Despatologização da transexualidade transsexualidade não é doença

Direito à cirurgia de redesignação e à direito à redesignação e terapia hormonal; o tratamento hormonal e


terapia hormonal cirúrgico em todas as cidades com mais de 300 mil habitantes

Direito à informação sobre a sexualidade direito à informação correta sobre a homossexualidade

Fonte: autoria própria

As aparições destacadas em vermelho são aquelas nas quais dois direitos foram
colocados conjuntamente e que, portanto, sofreram cisão para sua melhor categorização.
Por outro lado, aquelas marcadas em laranja se referem a aparições que, apesar de se
encaixarem em direitos maiores, são tão específicas que poderiam ter recebido uma

~ 476 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

categoria autônoma; o que não foi feito na tentativa de possibilitar uma melhor
comparação e individuação das relações. Na Tabela 02, é possível observar a frequência de
aparição de cada uma das categorias nos questionários.

Tabela 02 – Frequência de Aparição dos Direitos


Direito Brasil
Direito à não discriminação 5

Direito ao trabalho 1

Direito a uma vida digna/segurança 5

Igualdade de direitos e oportunidades 5

Direito à identidade de gênero 7

Direito ao casamento e união civil 4

Direito à saúde 5

Criminalização da homofobia 3

Direito à moradia 1

Direito a uma educação plural 3

Direito à maternidade/paternidade/adoção 3

Despatologização da transexualidade 1

Direito à cirurgia de redesignação e à terapia hormonal 2

Direito à informação sobre a sexualidade 1

Fonte: autoria própria

Um exame rápido das tabelas anteriores nos permite afirmar que a proteção
atualmente existente naConstituiçãobrasileira está infinitamente aquém do cenário ideal,
apontado e esperado pelos movimentos LGBTI. Recortando apenas a partir dos quatro

~ 477 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

direitos mais frequentes (à não discriminação, igualdade de direitos e oportunidades, ao


casamento e à identidade de gênero), é possível destacar que o texto magno pátrio não
apresenta nenhuma previsão específica voltada às pessoas LGBTI com relação a tais
direitos. Isso mostra o quanto o texto constitucional ainda carece de avanço para uma
proteção plena dos e das LGBTIs e seu reconhecimento enquanto seres e sujeitos de
direitos. Desse modo, esses dados ajudam no avanço da compreensão do problema
inicialmente levantado, apontando para a confirmação da hipótese formulada.
Para uma melhor compreensão dos motivos pelos quais as organizações
consideram tais direitos tão essenciais, procedeu-se à análise cruzada das justificativas
apresentadas para aqueles direitos com frequência igual ou superior a 4 (marcados em
verde). Ademais, optou-se por examinar também as justificativas do direito à
maternidade/paternidade/adoção (assinalado em amarelo) em virtude de sua proximidade
(e em alguns momentos até confusão) com a temática do casamento e da união civil.
Com relação ao direito à não discriminação, destacam-se dois grupos de
justificativas. O primeiro deles se baseia no histórico e na intensidade da discriminação,
bem como no número de mortes de LGBTIs. Já o segundo agrupamento de justificativa se
refere ao peso simbólico e à visibilidade ocasionados por essa inclusão, bem como ao
substrato jurídico que forneceria. Nesse sentido, merece realce a seguinte resposta de uma
das organizações:

A Constituição Federal prevê como objetivo fundamental da República


a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). A
inclusão nesse rol da proibição de discriminação em razão da
sexualidade e identidade de gênero não criaria instrumentos legais para a
erradicação de tais práticas discriminatórias, mas daria suporte
constitucional expresso para o tema, além de sua dedução dos princípios
constitucionais.

Voltando-se a análise da categoria “direito a uma vida digna/segura”,


sobressaíram, também, dois grupos de justificativas. O primeiro deles, e mais recorrente,
buscava frisar os números de violência e assassinatos contra pessoas LGBTIs no Brasil em
função de sua orientação sexual e identidade de gênero. Além disso, destacaram-se também
as características cruéis de que se revestem os crimes homofóbicos. Sob outro ângulo,
salientou-se que a perseguição ocorrida contra LGBTIs os impede de exercer sua dignidade
e de usufruir de direitos básico consagrados pelo texto constitucional para todos os
cidadãos e todas as cidadãs.

~ 478 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A próxima categoria cujas justificativas foram analisadas ("igualdade de direitos e


oportunidades”) está intimamente ligada ao direito à não discriminação. Entretanto, esses
dois direitos foram categorizados de forma separada, pois sua aparição se deu de maneira
apartada em diversos dos questionários. Essa segunda análise de justificativas deu origem a
três grupos distintos de argumentos. O primeiro deles identifica que essa categoria abarca
direitos que são negados às pessoas LGBTIs. Sob outro ângulo, o segundo grupo assevera
que essa é uma forma de garantir a inclusão de LGBTIs nos serviços fornecidos pelo
Estado. E, finalmente, o terceiro conjunto de justificativas ressalta que essa seria a forma de
retirar a precarização das vidas LGBTIs.
Avançando para a análise do direito à identidade de gênero, foram identificadas
duas justificativas principais. A primeira delas se refere à necessidade de respeito à
autonomia das pessoas trans de poderem se identificar da maneira que desejarem e sem
imposições pela sociedade. Já o segundo grupo reflete que a identidade de gênero é a porta
de entrada para efetivação de todos os demais direitos fundamentais para as pessoas trans,
garantindo sua dignidade e mitigando sua vulnerabilidade perante o Estado, que não as
reconhece enquanto cidadãs.
Ainda com relação a essa categoria, dois destaques merecem ser feitos. O primeiro
se refere a um direito extremamente específico apontado por uma das organizações
brasileiras, que afirmou a necessidade de “direito ao cumprimento da pena privativa de
liberdade de acordo com a identidade de gênero e em ambiente livre de discriminação”.
Em sua justificativa ao levantamento desse direito, a organização aponta que

atualmente apenas 8 estabelecimentos prisionais masculinos no


Brasil possuem galerias para mulheres trans, travestis e homens
gays. Ao cumprimento da pena privativa de liberdade se impõe
a manutenção do preso em ambiente seguro e, no caso da
população LGBT, a criação de alas, galerias ou espaços
específicos para sua permanência diante da constante ameaça e
lesão a direitos que sofrem nos presídios e penitenciárias
masculinos.

O trecho chama a atenção para uma interseção entre as opressões sofridas pela
população carcerária e pela população trans, amplificando o sofrimento e a violação aos
direitos dessas pessoas.
O segundo ponto diz respeito ao procedimento de alteração do registro. Outra
organização destacou a necessidade de que a alteração se dê pela via administrativa e não

~ 479 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

judicial291. Esse apontamento é de extrema importância, tendo em vista a dificuldade de


acesso à justiça enfrentada pelos LGBTIs e a morosidade dos procedimentos judiciais.
Já no que se refere à demanda pela efetivação do direito à saúde, as organizações
focaram suas justificativas em dois motivos centrais. O primeiro deles diz respeito à falta de
preparo dos profissionais da saúde para lidar com demandas específicas das pessoas
LGBTIs, ligando-se, também, aos frequentes atos discriminatórios perpetrados por
profissionais dessa área com relação a essas pessoas. Por outro lado, ressaltou-se, ainda,
que a ausência de programas voltados à “promoção, proteção e preservação” da saúde
LGBTI tem um importante papel na ineficácia de combate a infecções sexualmente
transmissíveis em meio a essa população. A educação sexual, por exemplo, quando
presente nas escolas, possui uma abordagem e viés notadamente cisheteronormativo.
Finalmente, a análise das últimas duas categorias selecionadas traz algumas novas
reflexões. Um ponto em comum entre os dois grupos de direitos (direito ao casamento e
união civil e direito à maternidade/paternidade/adoção) diz respeito à importância de
positivação desses valores para a população LGBTI. Isto é, independentemente da
conquista dessa garantia pela via judicial, é essencial que ela seja expressamente incluída no
texto constitucional. Essa preocupação das organizações é extremamente relevante. Não só
porque a inclusão textual do direito detém valor simbólico considerável, mas também
porque traz maior segurança jurídica a esses indivíduos, que deixam de depender das
vontades e interpretações judiciais, facilmente cambiáveis.
Aprofundando a análise, é possível perceber que a categoria de direito à
maternidade/paternidade/adoção foca sua justificativa na necessidade de igualdade de
direito e reconhecimento da existência de uma pluralidade de arranjos relacionais. Por
outro lado, os argumentos relacionados ao direito ao casamento e à união civil são mais
diversificados, diferenciando-se em três grupos. A primeira justificativa se relaciona à
possibilidade de garantir visibilidade aos relacionamentos homoafetivos, tirando-os da
esfera privada e alçando-os à vida pública. Um segundo diz respeito à possibilidade de
estabilização desse direito a partir de sua previsão no texto constitucional, não podendo ser
revogado por uma mera aprovação de lei. Por fim, o argumento mais recorrente se refere
aos direitos derivados do casamento ou da união civil, que se mostra etapa necessária, na
maioria dos ordenamentos, para a garantia de diversos outros direitos civis.

291As respostas aos questionários ocorreram antes da decisão do STF no RE nº 670.422 e na ADI 4275, que
autorizou a alteração do registro de nome e gênero das pessoas trans a partir de seu gênero autopercebido e
sem necessidade de procedimento judicial.

~ 480 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Em suma, é possível concluir que todas as justificativas perpassam a necessidade


de reconhecimento das pessoas LGBTIs enquanto vidas que importam e sujeitos de
direitos. Buscam-se a efetivação de sua dignidade e a garantia de acesso aos mesmos
direitos que heterossexuais e cisgêneros; direitos esses que são histórica e
contemporaneamente negados aos e às LGBTIs.

3.2 A (in)suficiência da proteção constitucional dos direitos LGBTIs

O segundo segmento a ser analisado remete também à segunda seção dos


questionários. No instrumento, indagou-se se as organizações consideravam a proteção
constitucional dos direitos LGBTIs em seu país suficiente ou não. Além disso, foi
solicitado que apresentassem as razões em virtude das quais caracterizavam a proteção
como suficiente ou insuficiente. O exame das respostas apontou um amplo
posicionamento com relação à insuficiência da proteção, tendo todas as organizações
respondido que a tutela seria insuficiente no Brasil.
Voltando-se à análise cruzada dos motivos apontados para caracterizara proteção
como insuficiente, foram identificadas cinco diferentes razões. Foram apontadas as
seguintes justificativas pelas organizações brasileiras: ausência de acesso dos LGBTIs a
direitos básicos; avanços na concretização de direitos amparados apenas em decisões
judiciais ou medidas administrativas; privilégios que as pessoas heterossexuais e cisgênero
possuem em nosso sistema democrático; grande índice de mortes de LGBTIs no Brasil; e
não tipificação do crime de homotransfobia. Com relação ao primeiro ponto, destacam-se
as seguintes respostas:

Temas como sexualidade, gênero e identidade de gênero não são


tratados de forma expressa na Constituição Brasileira, o que, somado à
ausência de legislação infraconstitucional adequada, gera desamparo da
população LGBTI frente à ordem constitucional. A constituição
brasileira não faz em seu texto qualquer menção à orientação sexual e
identidade de gênero, corroborando com o processo de invisibilização
da comunidade LGBTI+. Por outro lado, ainda reforça valores
tradicionais de diversidade de sexo no casamento (art. 226, § 3º, CF).

Já o segundo ponto levantado se refere aos riscos e às instabilidades de uma


proteção eminentemente judicial. A falta de previsão de direitos específicos no texto
constitucional, aliada à composição de casas legislativas conservadoras e pouco abertas ao
tema da sexualidade e identidade de gênero, ocasionou uma aposta da militância
majoritariamente no Poder Judiciário, por meio da litigância estratégica. Entretanto, essa

~ 481 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

aposta traz uma série de riscos: não só de a concretização do direito se dar de maneira
incompleta (em virtude da falta de regulamentação ou de abordagem de todas as nuances
da temática pelas decisões judiciais), mas também da insegurança jurídica gerada, por se
depender das interpretações promovidas por um judiciário cambiante. Nesse sentido, uma
das organizações brasileiras frisa que a segurança e proteção dos LGBTIs "depende muito
da interpretação e da boa vontade das pessoas que operam a máquina do Estado". O que
reflete, mais uma vez, a precariedade do atual panorama de reconhecimento de direitos às
pessoas LGBTIs.
O terceiro ponto levantado traduz a estrutura da opressão veiculada por uma
sociedade cisheteronormativa, na qual aqueles e aquelas que transgridem a norma tendem a
ser marginalizados e subvalorizados. O quarto aspecto, por sua vez, à dimensão dos
números de violência contra a população LGBTI.
Por fim, o último pontoapresentado diz respeito à não criminalização da
homotransfobia no ordenamento brasileiro. A ideia de se utilizar do sistema penal, meio de
opressão e perpetuação de discriminações estruturais, para tutelar os interesses dos e das
LGBTIs é tema controverso até mesmo dentro da militância homo e transexual. Ainda que
recorrer ao direito penal possa transmitir a sedutora imagem de que as vidas LGBTIs
passaram a importar para a sociedade, é preciso ter em mente que isso não só não irá
alterar a percepção da maioria da população acerca dessas identidades e sexualidades
desviantes, como também atuará sob um escopo extremamente limitado e enviesado, que já
sobrecarrega negros e negras diariamente no Brasil. É dizer: a criminalização só teria
utilidade para encarcerar aqueles e aquelas que o sistema já enquadra como transgressores
antes mesmo de qualquer julgamento. Desse modo, é necessária profunda reflexão acerca
de sua aplicação.

3.3 As causas dos status de proteção constitucional

Nesta penúltima segmentação, pretendeu-se aferir quais seriam os fatores


causadores insuficiência protetiva. Nesse sentido, sobressaem-se cinco diferentes categorias
de causas levantadas. Contudo, todas elas estão profundamente conectadas, sendo difícil
traçar com precisão o que é abarcado por cada uma. São elas: 1) a conformação de
legislativos conservadores; 2) a matriz sociocultural heteronormativa presente no Brasil; 3)
a matriz religiosa do país e seu desvirtuamento a partir do fundamentalismo; 4) a falta de

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Direitos Humanos & Fundamentais

educação da população em temas de gênero de sexualidade; 5) a ausência de diálogo do


poder público com os movimentos sociais.
A primeira causa remete diretamente à dimensão política da justiça e à ideia de
representação. Como se vê, uma das causas de insuficiência da proteção se liga justamente à
injustiça da falsa representação292. Sendo assim, posto pessoas LGBTIs não conseguem ser
eleitas e ter acesso ao legislativo, as chances de que seus reais interesses sejam levados em
consideração são proporcionalmente menores293. Isso se agrava diante da composição de
casas legislativas eminentemente conservadoras, cujos integrantes, além de não terem a
vivência de uma pessoa LGBTI, esforçam-se para não permitir o avanço de seus direitos.
As duas causas seguintes se referem às matrizes socioculturais heteronormativa e
religiosa, impregnadas em nosso país. Embora integrem um grupo separado, elas não
deixam de se relacionar diretamente com a causa anterior. Isso porque é justamente a
existência de uma tradição cultural heteronormativa que, em grande medida, impede o
acesso de LGBTIs aos poderes públicos e, também, torna a conformação de nossas casas
legislativas conservadora com relação a temas de sexualidade e identidade de gênero. E,
ainda, é a grande presença de atores religiosos que compõem as casas legislativas que acaba
por influenciar negativamente a produção normativa com relação às e aos LGBTIs. Aquilo
que caracterizamos como "fundamentalismo religioso" se trata, na verdade, de uma forma
de desvirtuamento de valores religiosos para embasar a violação a direitos fundamentais das
pessoas LGBTIs; e tem sido com base em argumentos religiosos que propostas
extremamente conservadoras têm se legitimado (VITAL; LOPES, 2012, p. 150-167). Já a
manutenção dessa realidade e a dificuldade de alteração de mentalidade estão diretamente
relacionadas às próximas causas examinadas, encampadas pelo déficit educacional.
Como discorrido, outra causa evidenciada foi a falta de educação da população
nos mesmos temas. Neste ponto, destaca-se um fator fundamental para o avanço na
concretização dos direitos LGBTIs: a educação. Sem que temas como gênero e sexualidade
sejam abordados desde o ensino básico até o ensino superior, não há como promover uma
mudança profunda na compreensão da população em geral acerca dos e das LGBTIs. O
preconceito, muitas vezes movido pelo desconhecimento, precisa ser combatido por meio

292 Nesse sentido, Corrales (2015, p. 7) destaca que, até o ano de 2014, só havia tido 15 pessoas, na história da
formação legislativa nos países da América Latina e Caribenha, que eram abertamente homossexuais e
ocupavam cargos em casas legislativas em nível federal. E isso se restringia aos seguintes países: Argentina,
Aruba, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, México e Peru. Atualmente no Brasil, apenas o
deputado federal Jean Wyllys se enquadra nessa categoria.
293 Em pesquisa empírica conduzida sobre o tema, Andrew Reynolds (2013, p. 259) aponta como resultado a

existência de uma associação entre a presença (mesmo pequena) de legisladores abertamente gays e a
aprovação de normativas que avançam nos direitos dos homossexuais, uma vez que a presença dos gays no
legislativo tem um efeito transformador na visão e votação de seus colegas heterossexuais.

~ 483 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

de um debate mais amplo e de uma educação que desconstrua, principalmente, conceitos


biológicos e religiosos indevidamente naturalizados e cristalizados em nossa sociedade.
O último grupo de causas se sustenta na mesma premissa deste trabalho: a
necessidade de construção de um direito de baixo para cima. Isto é, o pouco avanço na
pauta de direitos LGBTIs se deve à falta de diálogo do poder público com os movimentos
sociais. Isso porque, como já afirmado, são os indivíduos atingidos que possuem maior
legitimidade para o auxílio e para a própria criação de políticas públicas. Dessa forma, é
essencial que tanto legislativo, quanto executivo e judiciário voltem suas atenções ao
movimento LGBTI e às organizações que o representam. Em sua resposta, uma
organização destacou esse ponto com relação assembleia constituinte brasileira:

Durante a Assembleia Constituinte, apesar da preocupação com o


debate democrático, grupos LGBTI+ tiveram menos influência no
conteúdo do texto constitucional. Nos anais da constituinte, por
exemplo, no que diz respeito ao art. 226, § 3º, houve manifestação de
um pastor em prol da expressa substituição de "união estável como
entidade familiar" para "união estável entre homem e mulher como
entidade familiar", a fim de evitar que casais homoafetivos constituíssem
união estável. Desde 1988, grupos LGBTI+ continuaram lutando pela
efetivação de seus direitos e criação de mecanismos de proteção, mas
apenas recentemente alguns governos começaram a efetivamente pautar
questões ligadas à orientação sexual e identidade de gênero. Neste
sentido, ainda existe uma barreira que impede o diálogo entre
movimentos sociais ligados à causa e o poder público (ainda fortemente
atrelado a valores cristãos).

Como se aduz, a falta de diálogo tende a partir do próprio poder público e não
dos movimentos sociais. Pelo contrário, como identificado pelos questionários, o
movimento LGBTI tem se esforçado para atingir e influenciar o poder público de alguma
forma, buscando que suas demandas sejam, ao menos, escutadas e levadas em
consideração.

3.4 Em busca de alternativas

O último dos segmentos individualizados para a análise buscou identificar formas


de superação do atual paradigma de proteção constitucional insuficiente. Para tanto, as
organizações foram questionadas sobre como elas acreditavam que a insuficiência na
proteção poderia ser resolvida.
Explorando as respostas dadas ao questionamento, identificou-se que dois
principais campos englobavam a maioria das sugestões apresentadas:
intervenções/alterações legislativas e políticas educacionais. De forma mais específica,

~ 484 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

destacam-se cinco agrupamentos de soluções: 1) propostas legislativas; 2) elaboração de


políticas públicas; 3) alterações no modelo educacional; 4) realização de pesquisas
relacionadas aos problemas enfrentados pela população LGBTI; e 5) criminalização da
LGBTIfobia.
Com relação às propostas legislativas, foi apontada a necessidade de realização de
advocacy junto ao Poder Legislativo com o intuito de afirmação dos direitos fundamentais
das pessoas LGBTIs, garantindo o status de cidadãos a esses indivíduos. Além disso,
salientou-se a necessidade de inclusão expressa de direitos LGBTIs no texto constitucional,
bem como a "interpretação extensiva dos princípios de não discriminação já previstos para
acolher a proteção da população LGBTI".
Além do enfoque meramente legislativo, levantou-se a necessidade de idealização
e implementação, pelo executivo, de políticas públicas direcionadas às e aos LGBTIs para
que se tornem efetivos os mandamentos legais. É dizer: não basta apenas a edição de lei ou
norma constitucional, se ela não vier acompanhada de uma política pública de qualidade
para sua efetivação e para a conscientização da população.
Nesse sentido, uma das formas de maior efetividade para alteração de um
contexto sociocultural cisheteronormativo está na reestruturação do sistema educacional.
Isso foi apontado por quase a totalidade das organizações. Uma abordagem pedagógico-
educacional é necessária não somente para informar melhor os indivíduos acerca de todas
as questões relacionadas à identidade de gênero e à sexualidade, mas também como forma
de sensibilização e humanização dos futuros legisladores, gestores públicos e juízes. Sem
uma formação interdisciplinar desde o ensino básico até o superior/técnico, não há como
se alterar por completo nossa realidade homotransfóbica.
A quarta proposta analisada se alinha ao próprio objetivo deste trabalho. Foi
suscitada a necessidade de realização de investigações para a produção de dados acerca da
realidade vivida pelos LGBTIs. Como já ressaltado, considera-se essencial o engajamento
científico na temática; não só para fornecer argumentos sobre a necessidade de alteração do
paradigma atual, mas também para aprofundar o conhecimento acerca de uma realidade
que, em muitos pontos, carece de informações mais confiáveis. É isso que esta pesquisa
tem procurado fazer. Nesse sentido, destaca-se o seguinte posicionamento, apresentado
por uma organização brasileira:

O primeiro passo para solucionar a falta de proteção para a comunidade


LGBTI+ é a produção de dados que mostrem a relevância dos
problemas que este segmento enfrenta. Deste modo, será possível
informar o debate e criar uma plataforma sólida para o diálogo com o

~ 485 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

poder público e reivindicação desses direitos. Ainda, o movimento


precisa se organizar para apoiar candidates LGBTI+ e aliades que serão
capazes de influenciar a pauta da comunidade dentro dos poderes
legislativo e executivo, contribuindo para a formação de uma legislação
garantidora dos direitos LGBTI+ e políticas públicas de promoção da
inclusão e combate à violência.

Por fim, foi sugerido por outra organização que o primeiro passo para a alteração
da realidade atual seria a criminalização das práticas LGBTIfóbicas. Como já debatido, o
tema da criminalização é extremamente controverso, até mesmo entre LGBTIs, e deve
sempre ser acompanhado de uma necessária visão crítica do instituto penal. Caso se
considere a criminalização uma saída (uma vez que não parece possível descartá-la a priori),
deve-se, concomitantemente, levantar a discussão acerca da problemática da discriminação
estrutural do sistema penal, bem como de sua utilização enquanto ultima ratio, buscando
evidenciar quais seriam as situações jurídicas que realmente mereceriam ser tuteladas por
esse ramo do direito. Ademais, como destaca Thula Pires (2015, p. 278-279) sobre a
criminalização do racismo, as normas que visam combater a discriminação por meio da
pena podem carecer de efetividade, uma vez que as instituições punitivas naturalizam
padrões de opressão, não enquadrando os atos de discriminação no tipo penal.

CONCLUSÃO

O Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTIs no mundo. Embora se enquadre
em uma tradição constitucional com marcado alargamento da pauta de direitos, a
Constituição de 1988 não possui qualquer disposição específica com relação à tutela dos
direitos LGBTIs. Nesse sentido, o presente trabalho investigou qual seria a abrangência da
proteção fornecida pela Constituição brasileira, a partir da ótica dos movimentos sociais,
privilegiando a construção de um direito de baixo para cima.
Desse modo, foi traçada uma reconstrução histórica da atuação do movimento
LGBTI brasileiro, por meio da técnica de revisão bibliográfica, para a melhor compreensão
da caracterização e formas de atuação desse movimento. Posteriormente, foram analisadas
as respostas de dez organizações brasileiras ao questionário aplicado. A partir da análise
documental, foi possível concluir pela evidente insuficiência protetiva de nossa
Constituição com relação às pessoas LGBTIs, o que foi apontado unanimemente por todas
as entidades que responderam ao instrumento.
Além disso, o exame dos questionários permitiu avançar na compreensão do
porquê da invisibilização das pessoas LGBTIs no texto constitucional e também na busca

~ 486 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

de formas por meio das quais o atual paradigma possa ser superado. Nesse sentido,
concluiu-se, também, que essa superação deve ocorrer para além do campo jurídico, que se
mostra como extremamente limitado para efetivar uma transformação social profunda.
Portanto, é necessária sua articulação com outros campos, como a educação e a saúde a fim
de promover a concretização da justiça para as pessoas LGBTIs.

REFERÊNCIAS

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política. In: AVRITZER, Leonardo et al. O constitucionalismo democrático latino-
americano em debate: soberania, separação de poderes e sistema de direitos. Belo
Horizonte: Autêntica, 2017, p. 19-42.

CARDANO, Mario. Manual de pesquisa qualitativa: a contribuição da teoria da


argumentação. Petrópolis: Vozes, 2017.

CORRALES, Javier. LGBT Rights and Representation in Latin America and the
Caribbean: The Influence of Structure, Movements, Institutions, and Culture. University
of North Carolina: LGBT Representation and Rights Initiative, 2015.

CURIEL, Ochy. La Nación Heterosexual: Análisis del discurso jurídico y el régimen


heterosexual desde la antropología de la dominación. Bogotá: Impresol Ediciones, 2013.

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~ 488 ~
O ESTADO POLUIDOR-PAGADOR:
POR UMA LEITURA CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA DA
RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO NA TRAGÉDIA DA
BARRAGEM EM MARIANA-MG

Tuany Baron de Vargas*

1 INTRODUÇÃO

Em favor das liberdades e da preservação da dignidade da pessoa humana, o


surgimento da Constituição da República de 1988 preconizou a criação de uma
normatização especial para proteção de direitos fundamentais.
No âmbito das responsabilidades, em decorrência das alterações da vida social,
como o surgimento de novostipos de danos, bem como a busca pela proteção da
integridade e da inviolabilidadedos direitos da pessoa, realizaram-se intensas revisões nos
sistemas de justiçae na responsabilidade civil.
Com a constitucionalização desse instituto– e do Direito como um todo, após 88
–,alterou-se a lógica essencialmente patrimonialista da responsabilização, passando este a
cumprir plenamente sua função social, na medida em que se torna eficiente em obstar ou
desestimular aocorrência do ilícito e dos danos que possam desde decorrer, tanto
repressiva, quanto preventivamente.
Na seara ambiental houve a orientação, portanto, de se repensar o instituto
daresponsabilidade civil a luz dos princípios da prevenção e da precaução,
medianteimplementação de mecanismos que garantam uma recomposição previa ao dano.
E nesse caso, a imposição não é restrita aos particulares. O direito fundamental ao meio
ambiente exerce eficácia vertical e horizontal, submete também as condutas da
Administração aos seus ditames.
Entretanto, a leitura equivocada dos delineamentos da Responsabilidade Civil do
Estado posta pela Constituição de 1988 tem, ainda, possibilitado a impunidade da má

* Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Brasil. Graduada em Direito pela
Universidade Federal do Paraná – UFPR, Brasil. Especialista em Políticas Públicas pelo Consejo Latinoamericano
de Ciencias Sociales y Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, Costa Rica. Especialista em Direito do Trabalho
pelo Centro de Estudos Jurídicos do Paraná, Brasil. Pesquisadora do Grupo Trabalho, Economia e Políticas
Públicas da Universidade Federal do Paraná, Brasil. Advogada em Curitiba, Brasil.

~ 489 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

gestão pública nessa esfera. Exemplo disso é o desastre ocorrido na cidade de Mariana, em
Minas Gerais, com o rompimento da barragem da empresa mineradora Samarco. Todas as
esferas do debate e da responsabilização destinaram os esforços a verificar os limites da
culpa da empresa, desprezando, de outro lado, o descumprimento do dever fiscalizatório
do Estado que concorreu para a ocorrência do destrate.

2 O PAPEL INTERVENTOR DO ESTADO NA ATIVIDADE ECONÔMICA


PARA PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE E A EXPLORAÇÃO DE
MINÉRIO NO BRASIL

A superação da ideia de que os recursos naturais fossem juridicamente


considerados como res nullius ou res communes possibilitou o reconhecimento do meio
ambiente como verdadeiro patrimônio comum294, da qual exsurgiram duas consequências:
primeiro, que sobre esses recursos existe uma espécie de comunhão geral, uma
sobreposição e um paralelismo de direitos absolutos, cuja finalidade é a satisfação tanto de
interesses coletivos como de individuais; segundo, que as gerações atuais os detêm apenas a
título fiduciário 295.
No contexto teórico da economia, o desenvolvimento da teoria das externalidades
possibilitou um avanço significativo na compreensão dos fenômenos de degradação
ambiental. As externalidades, ou os efeitos externos de mercado, apontaram a
interdependência entre as decisões dos agentes econômicos e a inexistência de
compensação. Nesse sentido, identificou-se que os preços de mercado se tornaram
insuficientes para demonstrar os reais custos e benefícios da produção. Tais preços só
seriam suficientes se verificassem simultaneamente (i) condições de concorrência perfeita,
(ii) a identificação exata do preço dos bens à avaliação dos consumidores, e (iii) se “o preço
dos factores de produção fossem igual ao valor da produção que estes poderiam produzir
na sua melhor utilização alternativa” (ARAGÃO, 1997, p. 32). Ou seja, os efeitos externos

294 Embora as Constituições equatoriana e boliviana reconheçam a personalidade da natureza (ou da


Pachamama), adota-se, nesse artigo a visão jurídica da natureza como objeto, passível de apropriação e
utilização econômica. Essa é a acepção da Constituição da República Federativa do Brasil.
295 A fidúcia, nesse sentido, significa que as gerações futuras têm o direito de aproveitamento do meio-

ambiente tal como se aproveita agora, seja em termos de variedade, seja em termos de abundância, ou ainda,
em termos de qualidade e conservação dos bens naturais (ARAGÃO, 1997, p. 30). “Significa, de um lado,
instituir uma igualdade entre cidadania atual e futura — ambas objeto de igual proteção — e ainda, de outro,
reconhecer que uma situação hipotética de plenitude do bem-estar presente pode se deslegitimar pelos seus
reflexos adversos nas gerações do por vir; ou pode ser constringida, num verdadeiro ‘trade off’ em favor das
potencialidades futuras de bem-estar” (VALLE, 2011).

~ 490 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

de mercado passaram a analisar as transferências de bens ou prestações de serviço, a partir


de uma ótica externa ao mercado.
Nesse sentido, uma externalidade existirá quando a produção de uma empresa (ou
um consumidor individual) afetar o processo produtivo ou o padrão de vida de outras
empresas ou pessoas, na ausência de uma transação comercial entre elas (MOURA, 2003).
Quando seus efeitos forem negativos, se estará diante de externalidades negativas ou
deseconomias externas, quando os efeitos forem positivos, a correspondência é às
externalidades positivas.
Verifica-se, a partir de então, que as externalidades ambientais negativas
decorrentes da produção não constavam dos cálculos econômicos das empresas tal como
os custos da própria produção. Ao contrário do defendido nas doutrinas liberais clássicas, o
mercado não se autorregulava a fim de promover simultaneamente os interesses privados e
os interesses coletivos.
Daí porque Herman E. Daly afirmar que no aproveitamento econômico dos
recursos naturais o mercado é incapaz de conduzir a economia a um ponto ótimo de bem-
estar social, sobretudo pela inexistência de limites à utilização individual dos recursos
naturais e irresponsabilidade generalizada pela sua degradação. Assim, aponta que tal
mentalidade somente seria freada a partir da intervenção direta do Estado na economia, a
partir de medidas políticas adequadas para tanto (DALY, 1991).
Entretanto, a apreensão dos aspectos ambientais numa perspectiva sustentável foi
desprezada pelas principais correntes desenvolvimentistas do século XX que deram tom ao
modelo econômico adotado pelos países, sendo a proposta da sustentabilidade uma
discussão posta com certa força e seriedade somente a partir do final da década de 1980.
O ataque empreendido à ortodoxia neoclássica pela revolução keynesiana desdea
década de 30 abriu o caminho para que a economia do desenvolvimento emergissecomo
disciplina nos anos 50.Tradicionalmente, na Economia, o debate desenvolvimentista está
inserido no campo dos estudos macroeconômicos296, consolidada em uma base preocupada
a garantir eficiência ao sistema econômico, de forma a ocupar plenamente a capacidade
produtiva e seus recursos humanos (NUSDEO, 2010, p. 349). A nova realidade geopolítica
do pós-guerra, inevitavelmente, passou a impor às ciências sociais (que desde o século XIX,

296 “A Economia também pode ser classificada em Microeconomia e Macroeconomia. Entende-se a


Microeconomia como sendo aquela que se preocupa em analisar as reações e atuações das unidades
econômicas em si, tais como a maneira pela qual os consumidores e sócios da sociedade empresária se
interagem. Por outro lado, a Macroeconomia preocupa-se em relação ao conjunto de atividades, consideradas
dentro de um todo econômico. São os grandes agregados. Assim, estuda-se, por exemplo, a renda, o nível de
emprego, o grau de consumo, o montante de investimentos, índices de inflação, etc”. (PIMENTA; LANA,
2010, p. 99).

~ 491 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

centrou-se na explicação da Revolução Industrial e do surgimento dacivilização ocidental


como um grande processo social criador da modernidade) uma nova reflexão acerca da
realidade, uma reflexão com ênfase nas noções de modernidade e progresso (SANTOS,
2000, p. 15).
Nesse contexto, estruturou-se a Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe (CEPAL), agência ligada às Nações Unidas, que ficou conhecida por sua proposta
política posicionada na contramão do que preconizava a teoria econômica tradicional. Seu
objetivo “inscreve-seno ideário mais amplo que orientou a criação das Nações Unidas,
responsável pelaconsolidação do espaço supranacional em um espaço multilateral de
governançapolítica e, sobretudo, econômica. Portanto, a missão inscreve-se naquilo que
poderia ser identificado como os valores próprios da civilização ocidental” (ALMEIDA
FILHO; CORRÊA, 2011, p. 93).
A Comissão denunciou a ordem internacional hierarquizada que só fazia por
prejudicar os países subdesenvolvidos e contribuiu enormemente para sedimentar um
discurso econômico incentivando a intervenção dos Estados periféricos em suas economias
para uma promoção ativa do desenvolvimento. Para tanto, partiu de premissas
metodológicas estruturalistas para induzir, a partir da realidade latino-americana, as razões
do subdesenvolvimento (CORRÊA, 2007). “Em termos gerais entendia-se, nas análises
cepalinas, que a existente assimetria entre o centro e a periferia seria oriunda da desigual
divisão internacional do trabalho que tendia a se perpetuar, ampliando ainda mais a
desigualdade entre desenvolvidos e subdesenvolvidos” (SILVA, 2011), sendo inaugurada, a
partir dessa agenda, uma teoria estruturalista do subdesenvolvimento periférico.Uma
mistura (com certa inconsistência interna) de ortodoxia neoclássica na técnica e estratégias
heterodoxas naspropostas de modernização.
Nesse sentido, a CEPAL aparelhou-se na América Latina como uma escola de
pensamento dominante que tinha o desenvolvimento como um processo essencialmente
caracterizado por operações de mercado. As influências da Comissão, foram – e ainda são
– fundamentais para a compreensão do tratamento da questão ambiental pelo Poder
Público brasileiro.
Embora o projeto de desenvolvido tenha sido intentado já pelo governo Vargas,
quando da concepção do Plano de Metas no Governo Juscelino Kubitschek (1956-1961)
foi realizado o estudo coordenado juntamente com a Cepal e com o Banco Nacional de

~ 492 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Desenvolvimento Econômico297, que se chamou Grupo Misto Cepal / BNDE. As bases


fundamentais do Plano se deram essencialmente no mapeamento dos principais setores
econômicos a serem desenvolvidos no país, assim como um mapeamento do setor
externo298.Daí porque, alguns autores apontarem aí o marco da “Revolução Industrial
brasileira” a partir de um processo capitalista notadamente tardio.
Desse modo, o Brasil em seu paradigma de crescimento chegou a exaustão

cujas características maiores foram: a internacionalização produtiva da


economia, a intervenção de um Estado competente na distribuição de incentivos
à acumulação privada e na arbitragem entre os blocos de capital domésticos e
forâneos; a incorporação restrita das massas às normas ‘modernas’ de produção
e de consumo; e a completa exclusão política dos mais fracos e menos
favorecidos (GRAU; BELUZZO, 1995, p. 13-18).

Esse é o capitalismo desenhado no país.


“Esse discurso que se assentou no apanágio da industrialização, se pauta, hoje em
dia, num discurso fundado no progresso técnico e organizacional, como mecanismo ainda
atual para a reprodução capitalista” (LENCIONI, 1992, p. 83).
O discurso desenvolvimentista somente começou a incorporar aspectos
multidimensionais, a partir do cruzamento de várias visões sobre o conceito, e pressupor
uma abordagem interdisciplinar, dada a diversidade de componentes que o constituem, no
final do século XX. A conciliação da proteção do meio ambiente com o desenvolvimento
surgiu na década de 1970 e tomou relevo no Relatório de Brundtland – documento da
ONU – em meados de 1980. O desenvolvimento sustentável, entretanto, só foi
definitivamente consagrado como princípio na ECO-92 e com a Convenção de Lugano299,
1993, no âmbito do Conselho da Europa.
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira Constituição brasileira a empregar o
termo “meio ambiente” em sua redação, garantindo-lhe como um bem de uso comum do
povo e um direito de todos os cidadãos. Ademais, relacionou o antropocentrismo ao
biocentrismo, consagrando a expressão “meio ambiente ecologicamente equilibrado” e
buscando o desenvolvimento sustentável e a relação harmônica entre o meio natural e o

297 A Lei nº 1.628, de 20 de junho de 1952, criou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
(BNDE), e atribuiu-lhe a natureza autárquica. Seu objetivo era ser o órgão formulador e executor da política
nacional de desenvolvimento econômico. “Numa primeira fase, o BNDE investiu muito em infraestrutura,
mas a criação de estatais aos poucos liberou o Banco para investir mais na iniciativa privada e na indústria.
Durante os anos 60, o setor agropecuário e as pequenas e médias empresas passaram a contar com linhas de
financiamento do BNDE”. (BRASIL, s. d.).
298 Conforme destaca Fernando Henrique Lemos Rodrigues, tal influência, embora não tenha se dado

exclusivamente no Brasil, se deu principalmente no Brasil. (RODRIGUES, 2006).


299 Embora a posposta da Convenção fosse paradigmática em termos de legislação ambiental, a sua não

ratificação pelos Estados-Membros e pela própria União Europeia, levou-a ao fracasso.

~ 493 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

artificial. Em relação ao direito ambiental econômico, também inovou ao consolidar como


princípio da ordem econômica a defesa do meio ambiente, buscando a convivência de um
desenvolvimento econômico construtivo e ao mesmo tempo saudável.
Entretanto, tal reconhecimento não tem orientação anticapitalista. A Constituição
de 1988, ao mesmo tempo que legitima a existência dodireito de propriedade e de toda a
estrutura legislativa que o tutela, apenas impõe limites ecológicos à sua lógica.
Mas esse, inevitavelmente, tende a tornar-se um campo de interesses sociais
conflitantes, onde nem sempre é fácil que a eficiência econômica de recursos naturais não
renováveis e a prudência ecológica necessária à conservação da biodiversidade sejam de
plano aceitas pela iniciativa privada e pelo mercado. Bem por isso, que a delineação de um
Estado sustentável, tal como o desenho constitucional, deverá, então, operar de modo que
viabilize as economias verdes a partir de uma forte intervenção estatal.
Por outro lado, esse modelo não poderá ser confundido com um “modelo de
Estado patrimonialista, avesso à solidariedade emancipatória, ao planejamento
intertemporal e à gestão de riscos. Impõe-se, no mínimo, a pronta suspensão desse modo
costumeiro de ver as coisas” (FREITAS, 2012, p. 263).
Daí porque a consideração de que o Estado também é responsável pela
degradação do meio ambiente, na medida em que, cabe a ele a tarefa de identificar as
limitações do ordenamento jurídico e do sistema econômico de modo a intervir para
correção dessas deficiências (MARTIN MATEO, 1992). A participação do Estado é
imprescindível, “seja em razão da efetivação de seus deveres constitucionais, seja através da
regulamentação em matéria ambiental e, especialmente, através da implementação de
instrumentos de política ambiental” (FINGER, 2013). Todavia, há cumulusnimbusnesse céu
aparentemente de brigadeiro.
Especificamente no caso da atividade de mineração, o governo brasileiro, quando
do início da industrialização, deu grande atenção à sua exploração. Na estratégia
desenvolvimentista do período era fácil constatar que não haveria indústria sem a plena
exploração dos recursos minerais do país, especialmente a exploração do ferro.
A “legislação mineral” brasileira, reconhecida internacionalmente como
instrumento básico para desenvolvimento econômico dos países,

foi altamente influenciada pelas diretrizes proclamadas pela Resolução 1.803/62


da Comissão Permanente de Soberania sobre os Recursos Minerais das Nações
Unidas, pedra angular da Declaração sobre o Estabelecimento de uma Nova
Ordem Econômica Internacional e da Carta dos Direitos e Deveres
Econômicos dos Estados, adotadas pela Assembléia Geral da ONU em 1974
(ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO, 1994).

~ 494 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Em consonância com a tendência internacional, a Constituição Federal de 1988


incorporou os recursos minerais aos bens da União e atribuiu a ela a integral tutela de sua
exploração. Dessa forma, delineou-se umarelação jurídica de controle do Estado sobre as
jazidas minerais de caráter típico desse tipo de atividade, não possuindo o ente público, por
exemplo, os mesmos direitos de propriedade e atributos do domínio da sua acepção
civilista: apenas o titular da Concessão de Lavra tem direito a usufruir de seu produto;
enquanto estiver vinculado a um direito minerário, apenas o minerador pode dispor dos
recursos minerais. Nem mesmo quando a União retoma o direito minerário não passa a ter
o direito de ampla disposição sobre ele: o direito minerário deve retornar ao setor
produtivo mediante a Declaração de Disponibilidade. Nessa seara,

o Estado tem o dever de assegurar a máxima utilização dos recursos minerais e


de utilizar, para tanto, todos os instrumentos jurídicos ao seu alcance para evitar
a destruição ou o mau uso das riquezas do subsolo, sempre atento ao fim
específico, de utilidade pública, que deve presidir a exploração mineral.
(ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO, 1994)

Essa é uma das determinações do desenvolvimento sustentável, mas não só.


Ainda muito arraigada nas concepções desenvolvimentistas do início do século
XX e com o desenvolvimento ainda incompleto do país, nota-se que a Administração
Pública tem adotado um posicionamento ainda leniente em relação aos impactos
ambientais do setor, que extravasam o aproveitamento dos recursos minerais. Utiliza-se o
discurso constitucional de forma retórica para encobrir um modelo desenvolvimentista
predatório e ainda despreocupado com a sustentabilidade.
A título de exemplo, a atividade de mineração alteraintensamente a área minerada
e as áreas vizinhas, onde são feitos os depósitos de estéril e de rejeito; na maioria dos casos,
implica supressão de vegetação;

a qualidade das águas dos rios e reservatórios da mesma bacia, a jusante do


empreendimento, pode ser prejudicada em razão da turbidez provocada pelos
sedimentos finos em suspensão, assim como pela poluição causada por
substâncias lixiviadas e carreadas ou contidas nos efluentes das áreas de
mineração. (MECHI; SANCHES, 2010)

Essa postura condescendente também é demonstrada diante dos comuns


rompimentos nas barragens das mineradoras, de sorte que, embora seja emblemático por
suas dimensões, o caso da mineradora brasileira Samarco não é exceção.

~ 495 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

2 EXTERNALIDADES AMBIENTAIS NEGATIVAS NA ATIVIDADE DE


MINERAÇÃO: O ROMPIMENTO DE BARRAGENS EM MINAS GERAIS E O
DESASTRE AMBIENTAL CAUSADO PELA MINERADORA SAMARCO

A atividade desenvolvida pelo setor extrativo mineral convive diuturnamente com


o risco de rompimento das barragens. As mineradoras organizam-se a partir de estratégias
tecnológicas voltadas à obtenção de economias de escala, visto que estas enfrentam
limitações, impostas pelo tipo demercado, de baixo valor agregado e amplo volume no que
diz respeito às principais commoditiesminerais (como o minério de ferro)300.
No Brasil, a atividade de mineração é desenvolvida majoritariamente no Estado de
Minas Gerais e o rompimento de barragens não é novidade na região. No ano de 1986, no
município de Itabirito, sete mortes foram registradas em razão do rompimento da
barragem do Grupo Itaminas; já em 2001, o rompimento da barragem da Mineração Rio
Verde, em Nova Lima, foi responsável por outras cinco mortes. Na cidade de Miraí duas
barragens da Mineradora Rio PombaCataguases romperam-se, em 2006 e 2007, inundando
Miraí e Muriaé, desalojando mais de 4.000pessoas. A atividade da Companhia Siderúrgica
Nacional também deixou 40 famílias sem casa em Congonhas. Uma mina de outro em
Itabira também se rompeu em 2008 e em 2014 foram contabilizadas três mortes na
barragemda Herculano Mineração(POEMAS, 2015).
Fundada em 1977, a Samarco tem uma capacidade de produção de 30,5 milhões
de toneladas de pelotas de minério de ferro por ano. A empresa tem representações nos
estados brasileiros de Minas Gerais (Unidade de Germano, em Mariana) e no Espírito
Santo (Unidade de Ubu, em Anchieta), além de escritórios de vendas em Vitória (Espírito
Santo - Brasil), Amsterdam (Holanda) e Hong Kong (China). Além disso, a mineradora é
responsável por empregar cerca de três mil trabalhadores e manter uma cadeia de 3,5 mil
fornecedores. Sua composição acionária agrega a Vale e a anglo-australiana BHP Billiton, a
maior empresa de mineração do mundo, por meio de uma joint venture.
Em novembro de 2015, duas barragens da mineradora romperam e liberaram o
equivalente a 20.000 piscinas olímpicas de água e lama tóxica: foram 50 milhões de metros
cúbicos de rejeitos de minério de ferro a destruir cidades inteiras e todo o bioma por onde
passaram.

300“Em nível mundial, (...) o número de rompimentos com barragens na década de 1990 superou os 30 casos
e nos anos 2000 passou de 20, tendo sido estes em sua maioria eventos com consequências graves ou muito
graves”. (POEMAS, 2015)

~ 496 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Inicialmente, esse rejeito atingiu a barragem de Santarém, logo a jusante, causando


seu galgamento e forçando a passagem de uma onda lama por 55 km no Rio Gualaxo do
Norte até desaguar no Rio do Carmo. Em seguida, a onda de água e lama atingiu a
localidade de Bento Rodrigues, causando mortes e destruição do povoado.
A gigantesca onda de água e lama percorreu os rios Gualaxo e Carmo, entrando
no curso do Rio Doce, onde percorreu cerca de 680 km até sua foz em Linhares, no
Estado do Espirito Santo. No caminho percorrido, a onda de lama destruiu comunidades,
estruturas urbanas, áreas de preservação permanente, alterou de forma drástica a qualidade
da água301, e levou ao extermínio da biodiversidade aquática, incluindo a ictiofauna, e
também de indivíduos da fauna silvestre.302

FIGURA 1 – Caminho da lama na Bacia do Rio Doce

A diferença desse rompimento em relação aos rompimentos anteriormente


apontados se dá única e exclusivamente em termos numéricos. O rompimento da barragem

301 A água coletada pelo SAAE (Serviço de Água e Esgoto) do município de Valadares apontou um índice de
ferro 1.366.666% acima do tolerável para tratamento. Os níveis de manganês, metal tóxico, superaram o
tolerável em 118.000%, enquanto o alumínio estava presente com concentração 645.000% maior do que o
possível para tratamento e distribuição aos moradores. O nível de turbidez regular é 1000 uT, mas chegou a
80 mil uT na passagem dos rejeitos. “Segundo o chefe do Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das
Clínicas da USP, Anthony Wong, a concentração mais preocupante é do manganês: — É um metal tóxico
que, por ser mais pesado, devia estar depositado no fundo. Pode provocar alterações nas contrações
musculares, problemas ósseos, intestinais e agravar distúrbios cardíacos. O alumínio não traz riscos para a
população em geral, mas nestas quantidades pode trazer riscos para diabéticos, pessoas com tumores ou
problemas renais crônicos. O organismo mais ácido absorve mais alumínio”. (SANSON, 2015)
302 Dados constantes na Ação Civil Pública movida em face da Samarco, da Vale e da BHP Billion pela

União, pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, pelo
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, pela Agência Nacional das Águas – ANA, pelo
Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, pelo Estado de Minas Gerais, Instituto Estadual de
Florestas – IEF, pelo Instituto Mineiro de Gestão de Águas – IGAM, pela Fundação Estadual de Meio
Ambiente – FEAM, pelo Estado do Espírito Santo, pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos
Hídricos – IEMA, e pela Agência Estadual de Recursos Hídricos – AGERH.

~ 497 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

de propriedade da Samarco é o maior desastre do gênero na história mundial, se


considerados o volume de lama, o percurso atingido e o prejuízo estimado. “Não há evento
de maior gravidade registrado em 100 anos de mineração no planeta” (LUCENA, 2016).
Embora haja a tentativa de atribuir o desastre a uma fatalidade, o fato é que apesar
dos riscos dessas obras de engenharia, pouca ou nenhuma atenção é dada os repetidos
eventos de rompimento de barragens no Brasil. Não há, sequer, sistematização das suas
causas, impactos ou custos.
De acordo com o art. 2º da Resolução nº 001/86 do Conselho Nacional do Meio
Ambiente, a elaboração de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e respectivo Relatório de
Impacto Ambiental (RIMA), a serem submetidos à aprovação do órgão estadual
competente, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis - IBAMA em caráter supletivo, devem ser realizados para o licenciamento de
atividades modificadoras do meio ambiente, como é o caso da extração de minério.
A Resolução estabelece ainda, no art. 6º, como um dos requisitos mínimos do
EIA a análise dos impactos ambientais “através de identificação, previsão da magnitude e
interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes” com minuciosa
discriminação dos “impactos positivos e negativos (benéficos e adversos), diretos e
indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de
reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e
benefícios sociais” do projeto.
Entretanto, do Estudo de Impacto Ambiental apresentado para o Licenciamento
Ambiental da barragem de Fundão faz uma análise restrita das áreas de influência e
desconsidera a possibilidade de rompimento da barragem ou o extravasamento do rejeito
em grande quantidade. É curioso identificar que o único impactoambiental previsto sobre a
sociedade, na fase de operação do empreendimento, foi o aumento dageração de empregos
e na renda regional, impacto, portanto, positivo. O mesmo é repetido no EIA de
alteamentoda barragem do Fundão e a unificação com a barragem de Germano. A única
diferença se dá na consideração dos impactos sociais, nas fases de operação e fechamento,
como desprezíveis (POEMAS, 2015).

A própria avaliação de risco da barragem do Fundão contida no EIA é bastante


simplista, fundamentada apenas em análises qualitativas e vagas, não contendo
modelagens matemáticas para projeção de um possível acidente que
demonstrasse o alcance espacial máximo dos danos, o contingente populacional
atingido e também o tempo de recuperação dos ecossistemas afetados em caso
de rompimento. (POEMAS, 2015)

~ 498 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Fato é que o desastre tecnológico da Samarco/Vale/BHP se relaciona


intimamente com a dimensão estrutural das operações de extração de mineradoras de todo
mundo, sobretudo com base na expansão. A diferença do restante do globo é que a
atividade de expansão “é intensificada no Brasil pela (in)ação do Estado e seus operadores
no exercício de seu papel regulatório sobre o setor. O Estado brasileiro tem sido incapaz de
definir uma orientação pública e democrática para a política de acesso aos bens
minerais”(POEMAS, 2015), legitimando padrões de comportamento corporativo
incompatíveis com a sustentabilidade.
O Relatório desenvolvido pelo Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e
Sociedade (PoEMAS), da Universidade Federal de Juiz de Fora, acerca do rompimento das
barragens da Samarco, aponta como práticas coorporativas inapropriadas: i. a negligência
em relação aos procedimentos de segurança de barragem; ii. a utilização do próprio rejeito
como elemento construtivo sem controle tecnológico e/ou sem projeto de engenharia; iii. a
amortização dos processos de inspeção a partir da “medição da instrumentação por
controle remoto”; iv. a não observância aos manuais de operação e a não implementação
de projetos de planejamento de longo prazo, recorrendo a soluções pontuais e
improvisadas.(POEMAS, 2015)
“Ineficaz, subdimensionado e pro formasão alguns dos adjetivos usados pela Polícia
Federal para classificar o Plano de Ação Emergencial de Barragens (Paemb) da mineradora
Samarco” (CAMARGOS, 2016). O engenheiro da empresa, Albano Cândido Santos, no
seu depoimento à Polícia Federal afirmou que “orun out (distância a ser percorrida pelo
rejeito) foi minimizado no plano emergencial. O run out pode ser previsto por meio de
cálculos até mesmo antes da construção da obra, o que não foi feito” (CAMARGOS,
2016).Tais práticas e opções das mineradoras, no Brasil, só demonstram a ausência de
regulação pública efetiva por parte do Estado (por razões de inépcia financeira ou
operacional, ou até mesmo por inação seletiva).
Não é à toa que a Comissão Externa sobre o Rompimento da Barragem em
Mariana apresentou, no final de 2015, uma proposta de reformulação parcial da Política
Nacional de Segurança de Barragens – PNSB (Lei nº 12334/2010) explicitando a natureza
limitada e tecnocrática da formulação de políticas públicas no setor mineral. O texto
também menciona o papel do Poder Público em empregar “instrumentos financeiros e
econômicos para promover ações de fomento à utilização de rejeitos e de tecnologias de
menor risco socioambiental”, em detrimento da disposição de rejeitos em barragens, ainda
que não indique quaisquer tipos de ação concreta nesse sentido. O projeto reforça a

~ 499 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

necessidade da regulação, fiscalização e controle por parte do Estado com vistas ao fim de
consolidar uma orientação política que condicione as mineradoras a adotarem novas
matrizes de disposição de rejeitos no Brasil de forma a se alcançar, na maior medida
possível, uma atividade extrativa que cause o menor dano possível ao meio ambiente.

3 RESPONSABILIDADE DO ESTADO POR POLUIÇÃO INDIRETA

Parcela da doutrina ambientalista, ao tratar da reponsabilidade civil e do princípio


do poluidor-pagador, tende a afastar, em maior ou menor medida o regime de Direito
Público. Afirmam que

se a responsabilidade civil e o Direito Privado em que ela se insere, marcaram o


período áureo do Direito Ambiental, o retorno ao Direito Público dá o cunho a
esta fase de retrocesso por que passa o ordenamento jurídico ambiental neste
virar de século, invadindo mesmo o domínio da responsabilidade por danos
(LEITE; BELLO FILHO, 2004, p. 3).

Entretanto, ao contrário do que afirmam tais autores, a temática da reparação não


pode ser focada a partir das teorias centrais da responsabilidade civil, penal ou
administrativa. A temática ambiental dá maior densidade para tais discussões e traz
questões que são desafios para as doutrinas clássicas, como exemplo – bastante claro – é o
caso da responsabilização pelas manchas órfãs. Assim também se dá com a
responsabilização do poluidor indireto, que passará a desafiar tais teorias a pensarem para
além da tradicional concepção acerca do nexo de causalidade, para que em alguns setores
seja permitida a mera alegação de verossimilhança para fazer com que a responsabilidade
seja configurada.
A Convenção de Lugano é paradigmática nesse sentido, mesmo que tenha
perdido forma nos últimos tempos, dentro de um contexto de crise, pela denúncia dos
Estados que anteriormente haviam ratificado. No âmbito europeu, trouxe a
responsabilidade para casos de transportes de materiais perigosos entendendo que em
razão do risco, caso existente o dano, a comprovação da autoria estaria dispensada,
bastando a mera aparência de autoria como caracterizadora da responsabilidade. A teoria
do abuso de direito também tende a contribuir na reformulação das categorias de
responsabilidade civil em matéria ambiental, no sentido de, por uma alegação ambientar,
fazer com que um sujeito que tenha seu direito legalmente reconhecido seja condenado ao
não exercício desse direito.

~ 500 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Juarez Freitas, nesse sentido, aponta que o reconhecimento de um direito ao


futuro, que tutela as gerações vindouras,

supõe redesenhar o Direito Administrativo da Regulação, que não mais


sucumba à omissão causadora de danos inter e intraregionais, sob a alegação de
risco de captura. Supõe que os deveres de precaução e prevenção acarretem,
quando implementados, a completa reformulação da teoria da responsabilidade
civil e penal. Supõe, em síntese, uma nova hermenêutica das relações jurídicas
em geral. (FREITAS, 2012, p. 68)

De tal modo que o direito ao futuro fará aflorar um repensar sobre a teoria da
responsabilidade civil em matéria ambiental como categoria jurídica, e não como dogma
estático, precisão conceitual ou categoria própria de um ramo jurídico autônomo e
autossuficiente. A alegação de que a responsabilidade por danos ambientais ao entrar em
contato com categorias do direito público inaugura seu próprio declínio remonta à
“Constituição do homem privado” que revela uma principiológica incompatibilidade entres
estruturas patrimonialistas e abstracionista do Código Civil em face da estrutura humanista
emergente da Constituição Federal de 1988 (FACHIN, 2015, p. 52).Luiz Edson Fachin
aponta que tal racionalidade ainda está indevidamente calcada no reducionismo entre
inclusão e exclusão, sendo um dos modos pelos quais “o próprio Direito pode provocar
vítimas, afastando-se de uma direção emancipatória”(FACHIN, 2015, p. 52).
Sendo assim, parece claro que o paradigma da sustentabilidade suscita um outro
tipo de olhar sobre o conceito de responsabilidade. No âmbito do Direito Público esse
novo repensar não se restringirá a afirmar que o Estado “não se esconde em supostos
juízos de conveniência e de oportunidade para nada fazer” (FREITAS, 2012, p. 264), mas
incorporará em seu discurso que o Estado existe também como garantia de gerações
futuras. A inovação é presente, “precisamente, na internalização do princípio constitucional
da sustentabilidade, aplicável à íntegra no sistema jurídico-político, não apenas ao campo
avançado do Direito Ambiental”(FREITAS, 2012, p. 265).
A releitura da teoria da responsabilidade estatal, sobretudo a partir do recorte
temático desse estudo, para que não se persista na absurda postura omissiva
inconstitucional e inconvencional. O Estado sustentável é aquele que cumpre a Agenda
ambiental de forma completa e de ofício, cumprindo fazê-los para que antes que seja tarde,
se introduza uma guarda efetiva dos direitos constitucionalmente previstos.(FREITAS,
2012, p. 270)

~ 501 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Assim, três pontos básicos deverão ser revistos: (i) a defesa, ainda substancial, da
responsabilização do Estado de forma subjetiva na modalidade omissiva; (ii) a releitura do
nexo causal e (iii) a mitigação da excludente de responsabilidade por fato de terceiro.
A abalizada doutrina brasileira ainda tem cometido o equívoco de identificar a
responsabilidade subjetiva nos casos de omissão, com a incorporação da tese desenvolvida
e amplamente defendida por Celso Antônio Bandeira de Mello.

Sustentaram tais autores, a posição de que ‘a responsabilidade por [...] faute do


service [...] é a responsabilidade subjetiva porque baseada na culpa (ou dolo)’ e
‘quando a dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o
serviçonão funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de se aplicar a
teoria da responsabilidade subjetivista’. (HACHEM, 2013, p. 1139)

Daniel Wunder Hachem a analisar tal questão descontrói, um a um, os


argumentos de tal corrente. Aqui, vale destacar essencialmente um deles: “os contornos da
responsabilidade estatal dependem do regime jurídico administrativo de cada ordenamento,
e a Constituição Federal de 1988 impõe um sistema de responsabilização objetiva”(2013, p.
1139).
O autor aponta que a doutrina jusadministrativista brasileira desconsidera a teoria
da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, segundo a qual “se uma atividade
administrativa que é efetuada para beneficiar a todos ensejar danos particulares sobre
determinados indivíduos, o equilíbrio normal é rompido e o princípio da isonomia resta
ferido, de sorte que tal antijuridicidade deve ser reparada”(HACHEM, 2013, p. 1139). Isso
implica a incidência dos princípios da equidade e da solidariedade sobre o regime de
responsabilização delineado na Constituição, que irá impor a adoção de um sistema de
responsabilidade objetiva independentemente da natureza da ação, se omissiva ou
comissiva, distinção que, inclusive, a Constituição não faz.
No caso em que se analisa, de dano ambiental, ressalte que a leitura subjetivista da
responsabilidade do Estado fica ainda mais comprometida. Associado ao princípio da
precaução está o Princípio do Poluidor-Pagador no Direito Ambiental, expressamente
previsto no artigo 225, da Constituição de 1988.
Se no Direito Civil, de modo geral, a teoria do risco integral não é adotada, com
exceção das áreas especificadas pelo legislador, no Direito Ambiental a doutrina pátria
adere a essa teoria, especificamente a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei
6.938/1981), e não admite nenhum tipo de excludente nos casos de danos ao meio
ambiente.

~ 502 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Acrescenta-se, ainda, que a ECO-92 determina que “o Estado deverá estabelecer


sua legislação nacional no tocante à responsabilidade e indenizações de vítimas de poluição
e de outras formas de agressão ao meio ambiente”, implicando o reconhecimento de que o
poluidor tem o dever de reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros,
independentemente da existência da culpa, bastando a prova do nexo de causalidade com a
fonte poluidora.
A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente equipara, para fins de
responsabilização o poluidor e o poluidor indireto, fazendo com que o Estado em ambas as
posições seja responsabilizado de maneira objetiva. Isso porque, a natureza complexa do
dano ambiental pode ocasionar prejuízo a uma pluralidade difusa de vítimas, ou se
prolongar no tempo, podendo não manifestar suas consequências imediatamente. Além
disso, pode serocasionado tanto por um ato isolado, como pela reiteração de um
comportamento vindo dediversos agentes, não se fazendo possível, muitas vezes, a
identificação de um responsável direto pela ação ouomissão. Assim, apesar de o poluidor
indireto não darcausa direta e imediata ao dano, seu comportamento vincula-se à
consequente degradaçãoambiental, o que o torna responsável pelo dano causado de forma
solidária (BENJAMIN, 1998, p. 38).Bem por isso é que se arquitetou um regime de
proteção e tutela especial ao meio ambiente que irradia também sobre o regime jurídico-
administrativo.
Assim, para configurar a responsabilidade por dano ambiental bastarão os
elementos dano e nexo causal. Entretanto, em matéria ambiental o nexo causal também
deve ser repensado. A mais moderna doutrina que analisa a reponsabilidade afirma que a
responsabilidade se reveste, primordialmente do direito de reparação de danos, com foco
na vítima, e não no nexo causal.
Especialmente no âmbito da doutrina civilista têm-se discutido a imputação sem
nexo de causalidade na responsabilização por danos. O que na verdade não é propriamente
a exclusão do nexo causal, e sim uma renovação do conceito de causa e, especialmente do
nexo causal:

a imputabilidade tem no centro a preocupação com a vítima; a imputação é a


operação jurídica aplicada à reconstrução do nexo. Da complexidade e da
incerteza nascem fatores inerentes à responsabilização por danos. É da
alteridade e da justiça social que deve se inebriar o nexo de causalidade, atento à
formação das circunstâncias danosas. (FACHIN, 2015, p. 113-114)

Ou seja, a responsabilidade do estado como agente poluidor indireto estará


configurado ainda que o nexo causal seja formado a partir de um juízo de verossimilhança.

~ 503 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Por último, cabe um destaque breve, porém importante a não incidência do fato
de terceiro como excludente do nexo causal para fins de responsabilização Estatal. Marçal
Justen Filho afirma que

se o dano foi acarretado por conduta antijurídica alheia, não cabe a


responsabilização civil do Estado pela inexistência de infração ao dever de
diligencia, exceto quando a ele incumbia um dever de diligencia especial,
destinado a impedir a concretização de danos. Ou seja, pode-se cogitar de
responsabilização do Estado por omissão, a depender das circunstancias. (2014,
p. 1339)

Entretanto, conforme já destacado, a apreensão de poluidor como aquele que


também concorre para a degradação ambiental de maneira indireta, podendo ser
responsabilizado, abre exceção à tal excludente. Não faria sentido poder enquadrar o
Estado como poluidor indireto e, ao mesmo tempo, admitir que como este não age de
maneira direta para ocasionar o dano possa ter excluído o nexo de causalidade da relação
entre sua conduta e o dano.

4 CONCLUSÕES

Tendo em vista o exposto, verifica-se que, por imposição do direito fundamental


ao futuro e dos pilares do Estado Sustentável, no caso do desastre ambiental ocasionado
pelo rompimento das barragens da Mineradora Samarco, o Estado descumpriu com suas
funções constitucionais e convencionais ao negligenciar a atividade de fiscalização e a
análise aprofundada dos Estudos de Impacto Ambiental apresentados pela empresa.
Apontou-se, para tanto, uma mentalidade administrativa ainda arraigada em modelos de
desenvolvimento puramente econômicos que desconsideram a necessidade da
incorporação de aspectos de sustentabilidade nas operações capitalistas.
Delineado o panorama que ensejou a identificação do Estado como poluidor
indireto nesse caso e defendeu-se que este responderá por dano ambiental, sob qualquer
hipótese, de forma objetiva e solidária. Ademais, defendeu-se ainda o elastecimento das
noções de nexo de causalidade nesse caso e se apontou a impossibilidade de configuração
de fato de terceiro como excludente do nexo ao se tratar de enquadramento na categoria de
poluidor indireto.

~ 504 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

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~ 508 ~
A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O DIREITO
CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO INCLUSIVA

André Luiz Pereira Spinielli*

INTRODUÇÃO

Assinada em 1948, logo após o deslinde do segundo conflito mundial armado,


pode-se dizer que Declaração Universal dos Direitos Humanos foi a grande responsável
por trazer às vistas da sociedade uma nova perspectiva do direito à educação, já que, a
partir daí, passava a ser considerado um direito humano, acessível a toda e qualquer pessoa,
independentemente de suas condições pessoais, financeiras e sociais, sobretudo por
congregar a educação ao acesso à cultura e à erudição.
Não obstante, percebe-se que o legislador constitucional brasileiro agiu com
grande acerto ao prever expressamente o direito educacional em capítulo próprio, além de
situá-lo junto aos direitos sociais, ofertando-lhe a devida atenção e conferindo ao Estado o
dever de observância a tais direitos, notadamente por ser ele o encarregado de prover o
ensino primário a todos, comungando os princípios da universalidade de acesso e da
gratuidade do sistema educacional, a título exemplificativo.
Neste ínterim, consequência da inquestionável omissão estatal que por tempos
perdurou, a tutela da educação das pessoas com deficiência passou a integrar o campo dos
maiores desafios a serem enfrentados eficazmente pelo Estado brasileiro. Por este motivo,
exatamente no ano comemorativo do trigésimo aniversário da Constituição Federal de
1988 é que desponta a necessidade de se discutir os avanços que o documento maior
trouxe no campo da educação para as pessoas com deficiência, principalmente no que diz
respeito à educação inclusiva, e como a doutrina contemporânea enxerga a questão.
Para além da vulnerabilidade e estigmatização sofrida pelo grupo vulnerável de
pessoas com deficiência, um censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) foi responsável por apurar que, levando-se em consideração
o número total de habitantes do Brasil, que hoje alcança a marca média de 190 milhões,
pelo menos 45.623,910 pessoas são deficientes, visto que foi o número de pessoas que se

* Acadêmico da Faculdade de Direito de Franca.

~ 509 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

declarou com algum tipo de barreira físico-mental, que acaba por inviabilizar sua plena
participação em sociedade.
Hoje, não restam dúvidas de que milhares de alunos com deficiência são
escolarizados juntamente com outras pessoas pertencentes ao mesmo grupo e, assim, tem-
se que houve um grande crescimento das práticas educacionais inclusivas, partindo-se de
um direito à igualdade constitucionalmente previsto para o implemento deste princípio,
considerado de suma importância na análise das políticas públicas em prol das pessoas com
deficiência.
Dessa forma, valendo-se do método bibliográfico, este artigo busca tecer notas
gerais e dar início a determinadas reflexões sobre a importância e atual condição do direito
constitucional à educação no que tange às pessoas com deficiência, analisando a evolução
do ainda conturbado conceito de pessoa com deficiência, bem como da melhor
nomenclatura a ser utilizada, servindo de base textos de renomados autores da área e da
própria legislação pertinente, e aspectos da chamada escola inclusiva, com incursões na
progressão social e constitucional do direito à educação, verificando seu desenvolvimento
até o marco comemorativo dos trinta anos da Constitucional Federal, especialmente
quando aplicada às pessoas com deficiência.

1. DO CONCEITO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948, logo após


um longo período de conflitos armados e graves transgressões aos direitos humanos
básicos assegurados a todos os cidadãos, proclama que todos os homens nascem livres e
iguais em dignidade e direitos e, por serem detentores de razão e consciência, devem
sempre agir com espírito de fraternidade, uns para os outros. Além disso, ainda ressalta que
ninguém será submetido à tortura, nem a penas, nem a tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes – mandamento este reproduzido, na íntegra, na Constituição Federal brasileira,
adotada no ano de 1988. Na mesma esteira, entende o Pacto Internacional de Direitos Civis
e Políticos (PIDCP) que a pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com
humanidade e respeito à dignidade inerente a toda pessoa humana.
Dentre outros preceitos previstos em cartas internacionais de proteção aos
direitos humanos, o disposto nas acima comentadas surge no âmbito jurídico para
informar, firmar, reconhecer e reafirmar os direitos inerentes a todos os homens, inclusive
às pessoas com deficiência – que, muitas vezes, são vítimas de dupla vulnerabilidade: uma

~ 510 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

por serem deficientes e outra decorrente do gênero feminino, da situação econômico-


financeira, da idade e outros fatores –, devendo garantir o livre exercício de seus direitos
sem qualquer tipo de discriminação.
Porém, esse nem sempre foi o cenário que presenciaram as pessoas com
deficiência, a começar pela nomenclatura utilizada no decorrer da história, com marcas
flagrantes de desrespeito e segregação social daqueles que tinham algum tipo de deficiência,
fazendo sobressair, ao contrário, movimentos em defesa dos direitos das pessoas
superdotadas ou com altas habilidades. A relação com a história é ressaltada por Maria
Aparecida Gugel (2007, p. 03), para quem “os estudos sobre o direito das pessoas com
deficiência não estão dissociados dos fatos históricos, reveladores que são da evolução da
sociedade e da consequente edição de suas leis”.
Em uma primeira fase comumente chamada de “fase da precedência”, as
informações que diziam respeito às pessoas com deficiência estavam contidas, em poucos e
esparsos termos, na literatura grega e romana, além de constarem excertos nos textos
bíblicos e demais escritos de ordem religiosa comuns àquele tempo, como o Corão e o
Talmude, livros sagrados do islamismo e judaísmo, respectivamente.
A fase da precedência atravessou toda a antiguidade clássica e média, sendo
responsável por caracterizar a pessoa com deficiência como fator diretamente relacionado à
religião, como uma verdadeira vingança divina pelos atos dos pais. Tal fato fica claro ao
lermos os relatos de Aristóteles (1965, p. 58) em uma de suas célebres obras:

Quando a rejeitar ou criar os recém-nascidos, terá de haver uma lei segundo a


qual nenhuma criança disforme será criada; com vistas a evitar o excesso de
crianças, se os costumes das cidades impedem o abandono de recém-nascidos
deve haver um dispositivo legal limitando a procriação se alguém tiver um filho
contrariamente a tal dispositivo, deverá ser provocado o aborto antes que
comecem as sensações e a vida (a legalidade ou ilegalidade do aborto será
definida pelo critério de haver ou não a sensação de vida).

A partir dessa visão, era plenamente possível, e até recomendável, que a sociedade
prescindisse de pessoas com deficiência, pois eram indivíduos que possuíam vidas que não
mereciam ser vividas e havia clara legitimação e adoção de práticas excludentes, como o
infanticídio ou o aborto do recém-nascido “disforme”, como era chamado.
O antecessor do citado filósofo grego, Platão, também relatava como eram as
práticas relacionadas aos deficientes nas polis gregas, ressaltando o fato de homens
considerados inferiores naquela organização político-social terem que levar seus filhos
“disformes” e escondê-los em um local oculto, totalmente segregado da sociedade comum,
conforme se vê em breve passagem de uma de suas obras, ao dizer que “(...) pegarão então
~ 511 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

nos filhos dos homens superiores, e levá-los-ão para o aprisco, para junto de amas que
moram à parte num bairro da cidade; os dos homens inferiores, e qualquer dos outros que
seja disforme, escondê-los-ão num lugar interdito e oculto, como convém” (GUGEL,
2006, p. 25).
As crianças deficientes eram lançadas de um abismo denominado Apothetai rumo à
morte, relevando que o tratamento dispensado às pessoas com deficiência na antiga cultura
grega em muito se relacionava ao abandono ou sacrifício, realizado pelo próprio genitor do
recém-nascido ou anciãos encarregados de eliminar a vida do bebê feio e disforme303. Em
outras cidades gregas, os nascituros eram abandonados em locais considerados sagrados e
deixados à própria sorte ou, como acreditavam, ao arbítrio dos deuses. Portanto, percebe-
se a grave necessidade de manter a pessoa com deficiência vivente na época da antiguidade
clássica totalmente excluída do seio social – já bastante seletivo com quem era ou não
considerado cidadão –, muitas vezes ignoradas e escondidas, para que não fossem
“ameaças” à beleza das cidades. 304
Pouco diferente foi a situação da pessoa com deficiência nos tempos de Idade
Média, período bastante caracterizado pelo culto ao divino e formulação de teses filosóficas
e científicas sempre relacionadas à moral cristã, pois passaram a ser encarados como
verdadeiros pecadores e objetos para a prática da misericórdia das pessoas consideradas
normais, geralmente presente em relatos bíblicos, nos quais mostram a cura de deficientes
físicos e visuais, que retornam normalmente às suas atividades depois de operada uma
espécie de “milagre”.
Com a entrada em vigor do Renascimento, a ciência médica passou a caracterizar
a deficiência como doença ou disfunção biológica, asseverando que as limitações e
privações da pessoa com deficiência decorrem de má-formação de sua saúde física ou
mental, considerada fora dos padrões da normalidade, consagrando o período
conhecimento como “médico” ou “biológico”.
A incapacidade individual passou a ser notada como a grande limitadora das
funções do indivíduo, sendo a culpa estritamente sua, que, diante das limitações, sofreria
claramente as restrições do meio em que vivia. No mesmo instante, desenvolvia-se o
assistencialismo, que buscou incessantemente a colocação das pessoas com deficiência no

303 Nesse ínterim, explica Otto Marques da Silva (2009, p. 23) que, os genitores de qualquer recém-nascido
“eram obrigados a levar o bebê, ainda bem novo, a uma espécie de comissão oficial formada por ancião de
reconhecida autoridade, que se reunia para examinar e tomar conhecimento oficial do novo cidadão”.
304 No campo da mitologia grega, algumas divindades eram representadas como pessoas com deficiência em

suas formas humanas, que eram suas características marcantes, como pessoas cegas. Não obstante o cenário
fantástico, a literatura classicista, representada pelo poeta grego Homero, consagrou a figura de Hefesto como
deficiente físico, que fora agraciado pelos deuses com grande maestria na metalurgia e artes manuais.

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Direitos Humanos & Fundamentais

âmbito da sociedade, mas lhes nomeando como “excepcionais”, englobados ali todos os
indivíduos cujas características desviam das normas nos padrões construídos pelos homens
em suas relações sociais.
Não obstante, com a propagação do cristianismo, o tratamento concedido às
pessoas com deficiência tramitava da prestação de caridade ao extermínio, a fim de
expurgar-lhes os pecados. Com a Revolução Francesa, a experiência social com o tema
obteve grandes repercussões, ao passo que a deficiência foi vista como tratável, fazendo
com que surgissem hospitais psiquiátricos e outras instituições totais com o fim de ocupar
o deficiente com trabalhos manuais e iniciar as tentativas de ensino de comunicação para
pessoas surdas e com deficiência mental.
A partir da década de 70 surge o modelo social, invertendo a lógica até então
adotada e buscando as causas da deficiência não no corpo do indivíduo, mas sim nas
barreiras sociais impostas ao deficiente, que agora passa a depender de ações sociais no
meio em que se encontra inserido. Não se trata mais de o indivíduo com deficiência ter o
dever de se adequar ao meio ambiente em que vive, cujo ônus passa a ser da sociedade, que
deve adaptar os locais de convívio social ao deficiente.
Talvez o maior exemplo desse avanço na mentalidade social seja exatamente a
atuação da Organização das Nações Unidas (ONU), que, no decorrer da década de 1970
escreve resoluções contribuindo para que se inicie o processo de inclusão do deficiente na
sociedade, sobretudo após dois conflitos armados que deixaram diversos combatentes
mutilados.
A proclamação da Declaração dos Deficientes Mentais (ONU, 1971) teve o
seguinte teor:

(...) se alguns deficientes mentais não são capazes, devido à gravidade de suas
limitações, de exercer afetivamente todos os seus direitos, ou se tornar
necessário limitar ou até suspender tais direitos, o processo empregado para
esses fins deverá incluir salvaguardas jurídicas que protejam o deficiente contra
qualquer abuso. Esse procedimento deverá basear-se numa avaliação da
capacidade social do deficiente por peritos qualificados.

A partir de então, busca-se a eliminação de barreiras econômicas, arquitetônicas,


comunicacionais e atitudinais. Grandes exemplos de eliminação de barreiras no citado
período é a instituição de ações afirmativas que fazem com que a pessoa com deficiência
desfrute de todos seus direitos fundamentais, dando margem à acessibilidade
indiscriminada e ao direito ao reconhecimento.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Uma vez que o Brasil passa a se preocupar juridicamente com a pessoa com
deficiência no início do século XXI, ainda em plano internacional, a Assembleia Geral das
Nações Unidas, com manifesto objetivo de promover níveis de vida melhores e mais
elevados a todos os indivíduos que compõem o grupo vulnerável em discussão, edita a
Resolução nº 30/84, de 1975, que se institui como base e referência para o apoio e
proteção dos direitos nela previstos. É também a grande responsável pela introdução do
termo “pessoa portadora de deficiência”, ainda em voga, apesar de entendimentos em
sentido contrário, para se referir ao indivíduo que, por força de seus déficits físicos ou
mentais, não se encontra em pleno gozo da capacidade civil, de satisfazer, total ou
parcialmente, suas necessidades vitais e sociais.
Ainda, a citada resolução serviu de base para a futura Emenda Constitucional nº
12/78, que prevê o termo “deficiente” e consagra a melhoria de sua condição social e
econômica por meio da garantia de acessibilidade, assistência e reabilitação, com vistas à
futura integração social por completo, proibindo também a discriminação em diversos
setores da vida comunitária, inclusive na admissão ao trabalho e no pagamento de salários
(GUGEL, 2006, p. 27)
Por outro lado, a grande problemática enfrentada pelo modelo social é a ausência
de análise da situação subjetiva da pessoa, que, por muitas vezes, acaba condicionando o
modo com que ela se comporta na sociedade. Isso quer dizer que as alterações sociais para
incluir o deficiente são genéricas, desprovidas de qualquer análise concreta de casos.
Em 1980, a Organização Mundial da Saúde adota um modelo misto baseado em
três vertentes, sendo elas a biológica, psíquica e social, como escalas pelas quais a pessoa
com deficiência deveria passar para ser caracterizada e assim ter melhor atendidas as suas
necessidades especiais. A grande instauração desse modelo se dá quando o órgão
internacional publica a Classificação Internacional de Impedimentos, Deficiências e
Incapacidades (CIDID), demonstrando que é claramente possível que em uma pessoa
exista concomitantemente os três tipos de especialidades, esclarecendo que tais restrições
não lhe retiram o valor como pessoa humana que é, dotada de dignidade, tampouco obsta
seu poder de tomar decisões que digam respeito ao seu modus vivendi.
Na sequência, no ano de 1981, a Organização das Nações Unidas, por intermédio
da Resolução nº 34/154, proclama aquele ano como o Ano Internacional das Pessoas
Deficientes, elencando como tema principal de suas pautas a participação plena do
deficiente em sociedade, bem como a possibilidade de crescimento dos movimentos sociais

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Direitos Humanos & Fundamentais

encabeçados por pessoas pertencentes ao grupo dos deficientes, rumando sobremaneira as


reivindicações de igualdade de oportunidades.
Oportuna a exposição feita por Maria Aparecida Gugel (2006, p. 28), que assevera
com sabedoria:

A partir desse contexto mundial e da atuação corajosa do movimento nacional


de pessoas com deficiência, nascido simultaneamente em diversas cidades do
País, a designação pessoa portadora de deficiência é introduzida na Constituição
da República de 1988. A partir de então, importantes leis, embora nem sempre
eficazes quanto ao conteúdo, foram editadas dispondo sobre os direitos das
pessoas portadoras de deficiência.

O conceito formulado para se referir à deficiência, nos primeiros tempos, foi


realizado no sentido de se tratar da “perda ou anormalidade de estrutura ou função
psicológica, fisiológica ou anatômica”, sendo denunciado pela doutrina especializada como
de mal interpretação e utilização pelo Poder Executivo brasileiro ao regulamentar normas
que diziam respeito à proteção das pessoas com deficiência, visto que foram feitas
associações de deficiência à doença, confundindo também a incapacidade para o trabalho
com incapacidade oriunda da deficiência305.
Conforme informa Romeu Kazumi Sassaki (2003, p. 8-11), hoje se busca a
eliminação do termo “portadora”, pois a condição de deficiência faz parte da pessoa e ela
não porta sua deficiência, mas sim a tem consigo constantemente. Importante ressaltar que,
a partir da década de 1990, as organizações mundiais que tratam desse grupo vulnerável
elegeram o termo “pessoas com deficiência” para assim se referir a elas. Não obstante, o
termo teve diversas facetas durante a história, sendo o deficiente chamado de “inválido” no
início do século XX, ou de “incapacitado” até meados de 1960.
Posteriormente, já nos anos 1980, o termo utilizado para se referir às pessoas com
deficiência foi alterado – tornando-se mais pejorativo, a nosso ver, visto que carregam
traços marcantes de exclusão social ao tratarem os deficientes como pessoas excepcionais,
ou seja, que não pertencem ao coletivo comum –, sendo chamados a partir de então de
“defeituosos” ou “excepcionais”. Exemplos marcantes do emprego de tais termos se
encontram estampados nos próprios nomes de entidades brasileiras voltadas
essencialmente à assistência do grupo, notadamente a Associação de Assistência à Criança

305Em notável artigo escrito sobre a inclusão escolar da pessoa com deficiência, Fabio Masci (2017, p. 133-
134) explica que “la vulnerabilità è una condizione esistenziale che spoglia l’uomo della propria autonomia e
lo veste di mancanze e dipendenze che velano il suo essere persona”, afirmando ainda que a “persona
vulnerabile” é uma espécie do gênero “pessoa” e seu desenvolvimento reside na proteção da liberdade e da
igualdade, que a torna igual aos demais pelo simples fato de ser homem.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Defeituosa (AACD), hoje adequada ao termo “deficiente”, e a Associação de Pais e


Amigos dos Excepcionais (APAE).
Assim, Maria Aparecida Gugel (2006, p. 32) entende que

“(...) em vista do forte preconceito sobre as potencialidades das pessoas com


deficiência, há dúvidas quanto à forma de designá-las, sem causar
constrangimentos mútuos. Sabe-se que o bom uso das palavras reflete os
avanços de uma sociedade, a mudança de seus hábitos e a ruptura com
preconceitos”.

Aliás, a própria Constituição Federal atentou para o delicado problema da


nomenclatura, adotando a terminologia que parecia mais adequada até o surgimento das
novas convenções sobre o tema, de tal maneira que faz uso de termos hoje já considerados
desmedidos, segundo o melhor entendimento, consagrando palavras como pessoa
portadora de deficiência nos artigos 23, inciso II, 24, inciso XIV, 37, inciso VIII e 203,
inciso IV, além de portador de deficiência física, sensorial ou mental no artigo 227, inciso
II.
Doutrinadores especialistas no tema indicam que é equivocado o termo lançado
no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB),
consistente em “pessoa portadora de necessidades especiais”, pois abarca, além das pessoas
com deficiência, os superdotados, obesos, autistas, indivíduos com distúrbios de atenção
ou emocionais e idosos. Além disso, é impróprio o uso de siglas para designar pessoas de
tal grupo, a título exemplificativo, utilizar a sigla PPD como referencial de Pessoa
Portadora de Deficiência.
De acordo com Luiz Alberto David Araújo (1997, p. 16), incansável defensor dos
direitos das pessoas com deficiência,

Atualmente, a expressão utilizada é “pessoa com deficiência”. A ideia de


“portar”, “conduzir” deixou de ser a mais adequada. (...) A pessoa (que continua
sendo o núcleo central da expressão) tem uma deficiência (e não a porta). Com a
aprovação da Convenção, que tem equivalência com a Emenda à Constituição,
por força do parágrafo terceiro, do artigo quinto, da Constituição Federal, a
terminologia nova revogou a antiga.

A atual definição encontra respaldo primário na Convenção da Guatemala, datada


de 1999, cujo objetivo primordial de sua promulgação foi elevar a condição da pessoa com
deficiência, reconhecendo-a como sujeitos de direitos na ordem civil comum, bem como
determinando expressamente que se elimine toda e qualquer forma de discriminação.
Assim, o conceito moderno utilizado no Brasil tem fulcro em dois diplomas normativos,

~ 516 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

sendo a Convenção de Nova Iorque, que foi promulgada juntamente com um Protocolo
Facultativo, inserido por meio do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, tendo ambos
caracteres de Emenda Constitucional, e a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que instituiu
a lei nacional de inclusão da pessoa com deficiência, vulgarmente chamada de “Estatuto da
Pessoa com Deficiência”.
Assim, pode-se dizer que contemporaneamente, pessoa com deficiência é “aquela
que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o
qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (BRASIL, 2015).
Além disso, a deficiência apenas poderá ser constatada mediante laudo biopsicossocial
confeccionado por equipe multiprofissional e interdisciplinar, considerando os
impedimentos corporais, fatores socioambientais e pessoais, a limitação no desempenho de
atividades e a restrição de participação.
Diferentemente do cenário atual e do supracitado autor, a doutrinadora Nair
Lemos Gonçalves (sem data, p. 3495) emprega o termo “excepcional” e o coloca como
sinônimo de pessoa com deficiência, dizendo se tratar de “desvio acentuado dos
mencionados padrões médios e sua relação com o desenvolvimento físico, mental,
sensorial ou emocional, considerados esses aspectos do desenvolvimento separada,
combinada ou globalmente”.
A visão exarada pela supracitada especialista é atinente à época de seus escritos,
pois a expressão de que se serve ela já se encontra superada pela doutrina e pelos textos
normativos posteriores à Constituição Federal de 1988, apesar de diplomas mais recentes,
como o Código Civil Brasileiro, ainda reportarem ao termo em suas disposições sobre
capacidade absoluta e relativa, o que demonstra claramente a total falta de sintonia entre o
legislador e as preocupações necessárias ao grupo de pessoas com deficiência.
Nesse sentido, necessário mencionar finalmente o entendimento do ilustre
estudioso Lauro Ribeiro (2012, p. 160), citado na obra “Manual dos direitos da pessoa com
deficiência”, que exalta com razão que

O conceito social de deficiência trazido pela Convenção da ONU (...) exige uma
mudança da sociedade, que deve ajustar-se para permitir que a pessoa com
deficiência, que dela já faz parte, usufrua de todos os sistemas sociais em
igualdade de condições com as demais pessoas; é dizer: na atualidade a
sociedade deve ser inclusiva.

~ 517 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Por esta razão, merece demasiados elogios o conceito adotado pela Convenção,
que se mostra muito mais amplo e aberto, fazendo menção à dificuldade de inclusão e,
evidente, bastante condizente com as regras de gramática local.

2. DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA

2.1 BREVES APONTAMENTOS SOBRE O DIREITO À INCLUSÃO SOCIAL

A noção de inclusão diz respeito à possibilidade de participação social em


condições plenas de igualdade com pessoas não pertencentes ao grupo vulnerável em
questão e desprovido de qualquer discriminação. Ou seja, significa possibilitar à pessoa
com deficiência, mesmo que haja impedimento de longo prazo e independentemente da
natureza e do grau de limitação funcional, a participação íntegra e efetiva na sociedade, em
igualdade com os demais integrantes dela.
No caso das pessoas com deficiência, a inclusão se apresenta, ao lado do princípio
da igualdade e outros que decorrem da dignidade da pessoa humana, como peça de
fundamental importância no procedimento de análise de políticas públicas voltadas ao
grupo, não obstante também tome a frente como questão complexa, que envolve desde a
capacitação da pessoa com deficiência até a satisfação de seus direitos sociais, possíveis de
se citar como exemplo o acesso a atividades e serviços educacionais, de saúde, de trabalho,
de cultura e lazer.
Fato é que o processo de inclusão social não se esgota na acessibilidade espacial,
como muitos parecem pensar ao propor que a pessoa com deficiência se encontrará
socialmente incluída a partir do momento em que ela desfruta, em interação com os demais
componentes de uma dada sociedade, de um espaço adequado à modalidade de sua
deficiência, que permita compreender sua função social e permitir que participe das
atividades propostas para os meios em que frequenta. A inclusão vai além e deve abarcar
também mudanças a nível político, social e atitudinal, notadamente para firmar condições
de acesso efetivo a serviços educacionais, sem prejuízo daqueles voltados à saúde e aos
direitos trabalhistas e ao lazer.
Por isso, é possível listar uma série de fatores que constituem a plena efetivação
do direito à inclusão social, tais como a alteração no comportamento sociocultural de
aceitação e eliminação de qualquer espécie de discriminação em relação aos vários tipos de
deficiência; a formação de um sistema de saúde pública especial e voltado ao atendimento

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Direitos Humanos & Fundamentais

médico-hospitalar para a prevenção, tratamento e recuperação de pessoas com deficiência,


não importando o tipo ou o nível; a atividade legiferante em prol de políticas públicas e
ações sociais de inclusão, bem como de direcionamento de recursos financeiros; a criação
de centros de reabilitação, treinamento e educação especial e inclusiva, que forneçam a
possibilidade de o indivíduo com deficiência se desenvolver e melhorar seu desempenho na
realização de atividades cotidianas; a adequação arquitetônica dos lugares públicos e
privados, com vistas à retirar o impedimento ou dificuldade para realização de atividades
desejadas pelas pessoas com deficiência; e a colocação à disponibilidade dos usuários de
tecnologias assistivas, inclusive equipamentos e produtos especializados que garantam
melhoria nas capacidades funcionais de pessoas com deficiência.
Conforme dita Fávero (2004, p. 40), a doutrina mais atualizada se declina no
sentido de que a garantia do direito à inclusão social é de caráter irrestrito. Ademais, é
necessária máxima cautela por parte do aplicador das normas a fim de que não transmute o
princípio da igualdade naquela ideia de justiça que prega o tratamento igual aos iguais e
desigual aos desiguais, querendo dizer com isso que é preciso averiguar e contabilizar a
incidência do princípio da igualdade em casos que digam respeito à diferenciação feita com
base na deficiência, evitando, assim, tratamentos diferenciados e às vezes até mais
benéficos com base tão somente em caridade, solidariedade ou outro sentimento que dê a
falsa impressão do promoção de justiça.
Foi pensando assim que a Convenção da Guatemala, de 1999, trouxe
expressamente dispositivo que indica que as pessoas com deficiência possuem os mesmos
direitos humanos e idênticas liberdades fundamentais que outras pessoas, de tal maneira
que estes direitos, inclusive o direito de não serem submetidas à discriminação com base na
deficiência que têm, são decorrências diretas e lógicas da dignidade e da igualdade inerente
a todo ser humano. Além disso, o documento afirma que as discriminações positivas não
são necessariamente formas de auxiliar a pessoa com deficiência, haja vista que é
plenamente possível, no campo das liberdades inatas, que o deficiente opte por não se
incluir nestas políticas.
Com vistas ao conceito de inclusão social, Fávero (2004, p. 46) apresenta três
requisitos para que não haja transmutação de diferenciação positiva em discriminação,
altamente repudiável, inclusive sob a forma de crime, pelo ordenamento jurídico brasileiro,
já que em algumas situações a diferenciação é necessária para a consecução dos fins
pretendidos, não podendo ser discriminatória sob qualquer fundamento.

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Direitos Humanos & Fundamentais

O primeiro requisito reza que a diferenciação adotada por uma lei, ação social ou
política pública relativa à pessoa com deficiência busque a promoção da inserção social ou
o desenvolvimento individual do diferenciado, fazendo com que haja uma medida positiva,
um meio de acesso facilitado para os integrantes do grupo. O segundo apregoa que, mesmo
que se trate de uma medida positiva, é necessário que a diferenciação se esfacele o direito à
igualdade, significando que a ação perquirida deve ter como base fundamental o direito a
ser exercido por qualquer pessoa, não só os integrantes de determinado grupo. Finalmente,
é preciso que a pessoa com deficiência tenha a autonomia da vontade respeitada, no
sentido de poder ou não acatar a diferenciação que lhe é feita, mesmo que em seu
benefício, proporcionando a opção de utilizá-la ou não.
Em sentido contrário à inclusão social, é importante frisar que as pessoas com
deficiência sofrem dupla exclusão na maioria, senão em todos, os campos do meio social,
incluindo a saúde pública, a educação, a acessibilidade física às edificações públicas e privas,
já que se veem defronte a “restrição ou impossibilidade de acesso aos bens sociais,
incluindo-se aqueles relacionados com uma vida independente e autossustentada” (LIPPO,
2004, p. 37).
Segundo Humberto Lippo (2004, p. 247), a primeira forma de exclusão é advinda
dos próprios mecanismos que constituem a sociedade capitalista, principalmente em países
subdesenvolvidos, que inserem grandes contingentes populacionais a uma condição de
flagrante miserabilidade ou subsistência. Por isso, a classe social de que é oriunda a pessoa
com deficiência exerce grande influência em sua cidadania participativa, já que nas classes
menores e menos privilegiadas, há a formação de uma cultura da normalidade no que versa
sobre as pessoas com deficiência retirarem sua vivência da mendicância e persistirem
mergulhadas no analfabetismo. Nas classes mais ascendentes, o cenário é distinto e as
pessoas integrantes desfrutam de determinados privilégios. Por outro lado, a segunda
espécie de exclusão é decorrente da própria condição pessoal, pelo fato de ter uma
“diferença restritiva” nas áreas físicas, sensoriais, cognitivas ou comportamentais, que se
situam em desacordo com os padrões socialmente estabelecidos como produtivos,
funcionais e eficientes.
Sendo assim, é de se concluir que a acessibilidade não é um direito reconhecido
apenas às pessoas com deficiência, mas também às pessoas que possuem mobilidade
reduzida, independentemente do motivo que a ensejou, seja por própria deficiência física,
por idade ou por estados pessoais, como no caso das gestantes ou obesa. O direito à
inclusão reclama uma reavaliação legal e social, de modo que passe a ser tratado não apenas

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Direitos Humanos & Fundamentais

como a mera remoção de obstáculos arquitetônicos, por exemplo, que outrora eram
considerados os únicos problemas enfrentados pelas pessoas com deficiência numa
sociedade moderna, mas sim estender tal entendimento à extirpação de barreiras
ideológico-sociais, na maioria das vezes de cunho preconceituoso, ofertando uma plena e
sadia inclusão às pessoas pertencentes ao grupo em análise nos mais diversos campos de
atuação humana.

2.2 NOÇÕES SOBRE O DIREITO À EDUCAÇÃO

O conceito de educação não é e tampouco parece caminhar para um


entendimento unívoco em todos os sub-ramos das ciências humanas, existindo dissidência
dentre várias delas, especialmente no âmbito jurídico, em que não há consenso acerca da
existência de uma matéria específica capaz de abarcar todos os institutos próprios do
“direito educacional”, ou seja, para alguns há certa impossibilidade jurídica de firmá-lo
como uma seção autônoma do grande leque da ciência jurídica.
Por outro lado, não há qualquer dúvida de que os conceitos melhores e
primeiramente trabalhados decorrem da sociologia, tendo em vista a especial contribuição
dos sociólogos franceses para a educação. Desse modo, em um primeiro instante, parece-
nos interessante e importante tecer uma análise do conceito de educação erigido do ponto
de vista sociológico, pois, como afirmado anteriormente, é dessa ciência que derivam os
primeiros estudos sobre educação e dela se forma a chamada “sociologia da educação”,
bastante difundida em solo brasileiro, contando com seguidores icônicos, capitaneados por
Paulo Freire e sua pedagogia do oprimido e Darcy Ribeiro com sua tese de que o saber é
instrumento efetivo contra a miséria.
Segundo o sociológico francês Émile Durkheim (1978, p. 41), pode-se dizer que a
educação nada mais é senão

(...) a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se
encontram preparadas para a vida social; tem por objetivo suscitar e
desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais,
reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a
criança, particularmente, se destine.

O conceito acima traçado surge da concepção durkheimiana sobre educação, a


qual, segundo relata o autor, aparece como instrumento responsável pela construção social
do ser humano, uma vez que ele assimilará uma série de normas e princípios, de ordem
ética, moral, religiosa e comportamental, oriundos de diversas ordens, a fim de pautar sua

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Direitos Humanos & Fundamentais

atuação em sociedade através da educação. Por meio da educação o ser individual se


convola em ser social, tratando-se de uma homogeneidade relativa, pois em sociedades
caracterizadas pela alta divisão social do trabalho – especialização –, quanto mais as
profissões são distinguidas e solidárias, mais se torna indispensável uma certa
heterogeneidade.
Trata-se de uma ação exercida pelas gerações adultas e mais velhas sobre aquelas
que ainda não estão preparadas para a vida em sociedade, tendo por objetivo fazer nascer
na criança e no adolescente um sem número de estados intelectuais e morais, de tal maneira
que seja eficaz em sua preparação para a sociedade política em que estará cada vez mais
inserida no decorrer de sua vida. Durkheim (1978, p. 51) ainda firma seu pensamento no
sentido de que “a educação consiste em uma socialização metódica da jovem geração”, de
modo que é o instrumento útil à construção social do ser humano, o qual assimilará uma
série de normas e princípios de diversas ordens, a fim de pautar sua atuação em sociedade.
Em outro campo do pensamento humano, na filosofia, a educação era citada já
nas grandes produções tratadistas antigas, com especial ênfase nos gregos, sendo tratada
como meio hábil à projeção política do indivíduo e à formação de cidadãos plenamente
capazes de opinar e participar ativamente das decisões sociais, com vistas à uma polis ideal.
A filosofia seguiu o estudo da educação durante os tempos que vieram e proporcionou o
surgimento de novas teses voltadas à área em comento, com especial destaque ao norte-
americano John Dewey, conhecido revolucionário do sistema educacional de seu país,
responsável por colocar em prática novas técnicas pedagógicas baseadas num modelo
liberalista e de que o fundamento de existência das escolas estava cravado em sua atuação
enquanto mecanismo edificante da sociedade.
Com efeito, notando-se o panorama filosófico acima descrito, é perfeitamente
cabível dizer que a educação pode ser compreendida como a “transmissão de valores e
experiências entre gerações, permitindo às mais novas alcançar a perfeita interação social”
(SOUZA, 2012, p. 81). Isso quer dizer que a educação se comporta como mola propulsora
da interação social e como importante fonte de recursos para que as gerações mais novas e
as vindouras possam dela usufruir, como que em um loop eterno de aprendizado acerca dos
valores e comportamentos socialmente adequados.
Finalmente, a ciência jurídica nos presenteia com importantes contributos para a
afirmação de um novo ramo específico, cuja formação é resultado natural da evolução das
ciências educacionais no momento contemporâneo e, concomitantemente, do

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Direitos Humanos & Fundamentais

desenvolvimento das ciências jurídicas, que conta com ferramentas necessárias ao combate
de qualquer ameaça ao perfeito funcionamento do sistema de educação.
A existência do direito à educação enquanto ramo autônomo das ciências jurídicas
não é descabido, pois diversos profissionais das áreas jurídica e educacional unem esforços
para apresentar teses que demonstrem a existência de estritas relações entre os
conhecimentos de ambos os campos. Nesse sentido, inclusive, oportuno colacionar que a
jurista Esther de Figueiredo Ferraz assevera que todos os que atuam “na área da educação e
do direito sentimos a necessidade de juntar esses dois elementos, porque percebemos
perfeitamente que a educação é uma área, que deva ser cultivada também pelo direito”
(JOAQUIM, 2009, p. 103).
Levando-se em consideração o contexto apresentado, vem à discussão se o direito
educacional poderia ou não ser creditado como ramo autônomo da ciência jurídica, ou se
ele é pertencente a outro e atua apenas como uma espécie de um grande gênero. Porém,
antes disso já se dizia em sede doutrinária que, ao invés de se questionar pela autonomia
legislativa e científica de um ramo jurídico, deve-se entender que essa divisão serve única e
simplesmente para uma apresentação didática, uma vez que os efeitos jurídicos resultantes
da incidência de um grupo de normas jurídicas podem afetar outros galhos da “árvore
jurídica”.
Por tal motivo, hoje a doutrina e a jurisprudência majoritária protestam pela
autonomia do direito educacional, pois se trata de ramo composto por um conjunto
sistematizado de normas e princípios que o diferenciam das demais ramificações. A
propósito, feliz a contribuição de Renato Alberto Teodoro Di Dio (1982, p. 25), para quem
o “(...) direito educacional é o conjunto de normas, princípios, leis e regulamentos, que
versam sobre as relações de alunos, professores, administradores, especialistas e técnicos,
enquanto envolvidos, mediata ou imediatamente, no processo ensino-aprendizagem”.
É certo também que o maior acervo no que diz respeito à formatação da
educação no Brasil, quando não presente em materiais próprios de ciências mais afins, está
no ordenamento jurídico. Como é cediço, com a derrocada do regime militar de 1964 e a
entrada em vigor da nova ordem constitucional, o momento trouxe consigo legislações
específicas sobre a área educacional, com normas específicas na própria Constituição
Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, as quais contribuem, dia a dia, para que
se amplie a incidência normativa do ramo. Outro ponto manifesto é que,
independentemente da área do conhecimento humano, embora os conceitos e

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Direitos Humanos & Fundamentais

entendimentos gerais sejam distintos, a finalidade da educação parece ser uníssona e se


traduzir na elevação do ser humano como ente social.
Seguindo tal parâmetro, o legislador constituinte reservou para si a competência
para inserir no texto constitucional o direito à educação como uma das várias imposições
oponíveis ao Estado e de necessária observância por parte de suas instituições, sendo de
sua responsabilidade o provimento de ensino primário a todos, promovendo os princípios
da universalidade no acesso à educação e da gratuidade do sistema educacional. É por isso
que alguns autores entendem que a educação, no sentido constitucional, pode ser
interpretada como a “obrigação do Estado de prover, gratuitamente, ensino primário a
todos, de implementar progressivamente o acesso universal e gratuito do ensino
secundário, inclusive técnico e profissional, e igualmente do ensino superior, com base no
mérito” (CASTILHO, 2006. p. 02).
O sistema constitucional da educação é necessário ao disciplinamento dos
princípios e outros preceitos de ordem educacional que discriminam recursos financeiros,
competências para a atuação do Poder Público, diretrizes curriculares que possibilitem a
promoção do ensino. Não sobram dúvidas de que o direito educacional não fica estanque
ao disposto no artigo 205 e seguintes da Constituição Federal, mas sim que se espalha por
todo o texto constitucional, sobretudo ao tratar da competência privativa da União para
legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional ou a competência concorrente para
legislar sobre temas educacionais.
O supracitado artigo constitucional, que firma a educação como direito de todos e
cujo dever de promoção emana do Estado e da família, com vistas ao pleno
desenvolvimento pessoal, bem como ao preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação laboral, traz a palavra educação em seu bojo, a qual parece mais acertada se
interpretada como educação escolarizada, isto é, o processo formalizado e regular de ensino.
Conforme Lammêgo Bulos (2014, p. 1582), três motivos clarificam a opção do constituinte
por tal modelo de educação, sendo eles a oficialização da escola como principal instituição do
processo de aprendizagem, o preparo e capacitação de profissionais, revelando a
importância dos serviços erigidos da escola e reservar a educação informal como última
possibilidade ao desenvolvimento pessoal e intelectual do homem, já que seus resultados
muitas vezes são diversos.
No entanto, independentemente da opção do legislador constituinte, a doutrina
contemporânea que trata especificamente do tema em discussão preza por atribuir ao
direito à educação, além do caráter de direito humano, a classificação concomitante de

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Direitos Humanos & Fundamentais

direito social, econômico e cultural. Aliás, apoiando tal posição, o professor Richard Pierre
Claude (2005, p. 37) especifica que o direito constitucional à educação é também um

(...) direito social porque, no contexto da comunidade, promove o pleno


desenvolvimento da personalidade humana; direito econômico, pois favorece a
auto-suficiência econômica por meio do emprego ou do trabalho autônomo; e
direito cultural, já que a comunidade internacional orientou a educação no
sentido de construir uma cultura universal de direitos humanos.

Quer dizer que ao Estado cabe atuar positivamente, em suas diversas


competências, com a finalidade única de garantir às famílias a liberdade de escolher entre
escolas públicas ou privadas que atendam aos padrões mínimos de ensino aprovados pelos
órgãos estatais incumbidos da organização e tutela da educação. Assim, no contexto
interno, a Constituição Federal de 1988 representou o conjunto de normas capazes de
inserir detalhadamente o direito à educação no sistema normativo brasileiro, demonstrando
uma grande virada de consciência no que diz respeito à concretização deste direito,
sobretudo por introduzir instrumentos jurídico-processuais aptos à sua tutela em juízo.
Oportuno dizer que o documento constitucional anterior ao atual, datado de
1967, previa a educação como direito universal e que deveria ser promovida nas escolas e
nos lares, uma vez que o projeto educacional do regime militar brasileiro agiu sobre
diversos setores da sociedade com o fim único de corporativismo, de gerar força laboral
ativa e mão de obra em potencial. Além disso, o período governado pelos militares buscou
divulgar a imagem do Brasil como um “país que vai pra frente”, exaltando em seus
discursos a valorização da educação como via direta para se atingir o desenvolvimento de
uma nação fortalecida.
A Constituição Federal, que atinge o ápice de seus trinta anos, em se tratando de
direitos fundamentais e sociais, colocou a educação sobre um pedestal e conferiu diversos
cuidados especiais, condicionando-a a decisões de enorme relevância. Com efeito, o direito
à educação deve ser encarado como uma construção coletiva, isto é, encarregada do dever
de compartilhar conhecimentos e valores, de modo que é plenamente possível dizer que se
trata de um

(...) problema político; um problema que diz respeito à tomada de decisões


coletivas, à legitimação e ao exercício do poder nas sociedades contemporâneas,
razão pela qual, em certa medida, a educação também é um direito político. A
forma democrática de vida funda-se no pressuposto de que ninguém é tão
desprovido de inteligência que não tenha contribuição a fazer às instituições e à
sociedade a que pertence (RANIERI, 2013, p. 145).

~ 525 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Portanto, é de rigor evitar a implementação de políticas públicas relativas ao


direito educacional sem que haja uma participação e contribuição democratizada por parte
de estudantes, sujeitos imediatos da educação, da família e da sociedade como um corpo
único, conforme rege o texto constitucional. Cumpre citar, ainda, que a Constituição
Federal em vigência inaugurou o direito à educação sob duas vertentes, sendo uma primeira
ligada aos direitos sociais e a segunda aos direitos culturais, contando com mecanismos
úteis à sua efetivação e a intervenção de órgãos estatais voltados à defesa dos direitos
difusos e coletivos, a título exemplificativo, por meio do inquérito civil, do termo de
ajustamento de conduta e do ajuizamento de ação civil pública.
O fato de existir um direito público subjetivo à educação, conforme garantido
exaustivamente nos diplomas normativos brasileiros e internacionais, faz com que o Estado
atue obrigatoriamente no sentido de entregar devidamente a prestação educacional,
correndo o risco de incorrer em grave e incabível frustração de um mandamento
constitucional. Desse modo, o direito à educação necessita ter eficácia, pois, sendo
considerado um direito público subjetivo dos usuários, sua particularidade reside no fato de
que o particular tem a faculdade de exigir do Estado o cumprimento de certas prestações
na área (FERREIRA, 1986, p. 171-173).

2.3 O DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO INCLUSIVA

O direito à educação das pessoas com deficiência não foge à regra da inclusão e
tampouco se trata de um direito distinto dos demais. É bem verdade que todas as pessoas
com deficiência têm pleno direito à educação e ao acesso à cultura e instrução, de modo
que objetive seu desenvolvimento e o preparo pessoal para o exercício da cidadania, sem se
olvidar da qualificação para o trabalho, nos termos prescritos no artigo 205 da Constituição
Federal, que atribui à educação, em claras palavras, o status de direito de todos, sem fazer
qualquer exceção de ordem econômica, pessoal, étnica ou intelectual.
No campo dessa matriz constitucional, o direito à educação das pessoas com
deficiência não deve ser vítima de qualquer tipo de restrição – como a sociedade está
acostumada a ver, no âmbito escolar, sérios problemas relacionados ao bullying, às questões
de gênero, de deficiência e etnia –, uma vez que é empiricamente aceito que a educação
inclusiva tem permitido que estudantes que façam parte do grupo em análise perfaçam sua
trajetória escolar lado a lado às pessoas que não têm deficiência, constituindo-se uma
verdadeira concretização do direito à diferença. Não menos, a educação inclusiva tem sido

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Direitos Humanos & Fundamentais

pauta indicada e reafirmada nas mais diversas declarações internacionais e, hodiernamente,


nas leis nacionais que tratam direta e especificamente da pessoa com deficiência, tudo isso
somado aos incansáveis esforços dos defensores dos direitos relativos ao grupo.
Aliás, como bem pensado por Luiz Alberto David Araújo (2015, p. 510), a
convivência com a diferença não caracteriza direito apenas daqueles considerados
diferentes, como as pessoas com deficiência, mas é também da maioria, que tem o direito
de conviver com a minoria e aprender sobre tolerância e acolhimento. Exatamente por tal
motivo é que se pode afirmar que hoje existe um aumento paulatino no número de alunos
com deficiência que recebem educação escolar juntamente com colegas de sala que não têm
qualquer tipo de deficiência, e os benefícios ultrapassam aqueles que mais precisam e
atingem também a maioria tida como normal, fazendo com que exerçam a busca pela
sociedade inclusiva.
Evidências oriundas de estudos especializados demonstram que ambientes
educacionais que fomentam a inclusão da pessoa com deficiência terminam por oferecer
inúmeros benefícios, tanto de ordem social, quanto propriamente educacional, já que em
tais localidades os alunos com deficiência desenvolvem fortes habilidades em leitura e
matemática, além de terem baixas ou nulas taxas de ausência da sala de aula e menores
propensões a problemas comportamentais. As benesses de um sistema educacional
inclusivo se estendem também à vida adulta, quando alunos com deficiência incluídos têm
maiores probabilidades de serem matriculados em redes de ensino superior e conseguirem
um emprego posteriormente.
Por outro lado, no aspecto social da inclusão educacional da pessoa com
deficiência, pode-se citar como benefício a existência de disposição legal expressa que exige
que professores e administradores escolares desenvolvam capacidades úteis à superação das
necessidades individuais de alunos com e sem deficiência, bem como a promoção de aulas
inclusivas e que visem à erradicação de opiniões preconceituosas, dando ênfase às ideias
mais receptivas às diferenças.
A Declaração de Salamanca, de 1994 foi fruto de uma conferência sobre educação
para necessidades especiais e hoje conta com a assinatura de representantes de mais de
noventa países e outras vinte e cinco organizações internacionais, cuja importância resta
límpida ao prever que “as pessoas com necessidades educativas especiais devem ter acesso
a escolas regulares”, tal como as escolas inclusivas tradicionais “são os meios mais eficazes
de combater atitudes discriminatórias, criando comunidades acolhedoras, construindo uma
sociedade inclusiva e alcançando educação para todos”. Isso quer dizer que sua relevância

~ 527 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

para o presente tema reside no fato de que o documento foi parte de um movimento global
em prol da educação inclusiva, inclusive oferecendo diretrizes e planos de ação em níveis
internacional, nacional e regional.
O movimento ganhou mais notoriedade ainda quando, no Japão, foi assinada a
chamada Declaração de Sapporo, aprovada no ano de 2002, segundo a qual a participação
plena da pessoa com deficiência tem início ainda na infância, no interior das salas de aula,
nas áreas de recreio e em programas e serviços próprios de educação. Além disso, apregoa
o entendimento segundo o qual “quando crianças com deficiência se sentam lado a lado
com outras crianças, as nossas comunidades são enriquecidas pela consciência e aceitação
de todas as crianças”.
No direito constitucional doméstico, desponta como importante precedente à
educação inclusiva a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5357, ajuizada pela
Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) em face dos
artigos 28 e 30 da Lei nº 13.146/2015, que dizem respeito às normas sobre educação
específica para pessoas com deficiência. A ação questionava a constitucionalidade de
dispositivos que previam medidas de alto custo para escolas privadas, o que as levaria à
bancarrota, com o encerramento de suas atividades, tudo sob o argumento de que havia
ofensa ao princípio da razoabilidade por obrigarem à escola comum, não especializada e
despreparada, receber toda e qualquer pessoa com deficiência, independentemente do grau
de sua deficiência. Isso porque a lei teria ido além do esperado ao prometer à pessoa com
deficiência uma inclusão social eficiente, sobretudo nas escolas regulares, o que seria
humana e economicamente impossível, sem que houvesse graves prejuízos à educação de
outros alunos e à infraestrutura das escolas. Finalmente, lançaram a justificativa de que a lei
lançou sobre a iniciativa privada encargos que são de responsabilidade exclusiva dos
Poderes Públicos.
Com razão, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou constitucionais as
sobreditas normas, estabelecendo a obrigatoriedade de as escolas privadas promoverem a
inserção de pessoas com deficiência no ensino regular, juntamente com outros alunos que
não possuem deficiência, com o ônus de prover as medidas adaptativas necessárias, sem
que tais gastos sejam cobrados indiretamente nas mensalidades, anuidades e matrículas.
Fundamentaram os Ministros no sentido de que a Constituição Federal e outros
documentos incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro dispõem sobre a proteção da
pessoa deficiente e, desse modo, trata-se de dever do Estado facilitar a plena participação
no sistema de ensino e na vida em comunidade, em condições de igualdade, assim como

~ 528 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

assegurar que inexista qualquer limitação da educação das pessoas com deficiência e
estabelecimentos públicos ou privados que prestem tal modalidade de serviço306.
Dessa maneira, desde o ano de 2003, a pauta da educação inclusiva foi inserida na
agência educacional brasileira e tem-se verificado uma forte alteração de comportamento
por parte da administração pública, da sociedade e especialmente dos gestores de escolas
particulares, que hoje se veem com a necessidade de realizar alterações que possibilitem a
inclusão das pessoas com deficiência, em condições de igualdade com as demais pessoas.
Isso não quer dizer que os desafios diários da pessoa com deficiência no âmbito
escolar tenham sido extintos, pois é flagrante a existência de confusões históricas acerca da
capacidade das pessoas com deficiência ou a impossibilidade de alguns estabelecimentos de
ensino promover a inclusão, com a adequação arquitetônica e a capacitação de
profissionais, sem que venham à falência. Por outro lado, são felizes os resultados de
pesquisas que demonstram que muito maiores são os benefícios que a educação inclusiva
proporciona às pessoas com deficiência e aos demais que participam das atividades
educacionais em conjunto, ou seja, incluir um aluno com deficiência propicia um ambiente
de respeito à igualdade e à inclusão social, princípios estes impostos pela legislação
referente ao grupo em apreço.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal de 1988 foi responsável por trazer à tona diversos direitos
relativos à educação, notadamente a fixação da igualdade de condições para o acesso e
permanência na escola, despontando como importante instituto a educação inclusiva,
essencial ao pleno desenvolvimento da pessoa com deficiência em condições paritárias com
outras pessoas que não estejam incluídas no grupo das pessoas com deficiência.
Certo é dizer que a garantia do acesso à educação por parte do grupo em questão
acarreta um processo de inclusão necessário não só ao cumprimento da norma legal, mas
também à erradicação de preconceitos socialmente enraizados e exclusões infundadas, de
modo que qualquer prática que vá de encontro aos ditames legais coloca em risco a ordem

306Não se pode olvidar que, como afirmado por Stephen Holmes e Cass Sunstein (1999), todos os direitos
demandam financiamento, requerem gastos públicos. Com a efetivação do direito à educação das pessoas
com deficiência não é diferente, de modo que a formação de um corpo docente especializado nas questões de
deficiência, capazes de contabilizar e tecer um plano de ensino que abarque o deficiente e o inclua como
aluno comum, e a adaptação de escolas regulares às necessidades do grupo, exigem esforços econômicos
tanto do Estado quanto dos responsáveis pelo ensino particular.

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Direitos Humanos & Fundamentais

constitucional e infraconstitucional no que diz respeito à tutela dos direitos das pessoas
com deficiência, sendo tratado como crime pela lei específica 307.
Como reforçado, a educação inclusiva é prática benéfica às sociedades
contemporâneas que já adotam o modelo social de tratamento à pessoa com deficiência,
vez que tem o condão de ensinar os indivíduos do sistema educacional a como respeitarem
as diferenças a que estão expostos, além de enriquecer o trabalho do educador e facilitar a
promoção de mudanças positivas e cada vez menos preconceituosas no ambiente
educacional. Portanto, a conclusão a que se chega é que a de que a garantia da educação
inclusiva é necessária às sociedades contemporâneas que lutam em prol da extinção das
discriminações e também à consecução dos fins constitucionalmente previstos para que o
direito à educação alcance sua plenitude.

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307 Nos termos do artigo 8º da Lei nº 7.853/1989, “Constitui crime punível com reclusão de 1 (um) a 4
(quatro) anos, e multa: I – recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a
inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos
derivados da deficiência que porta”.

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DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E POLÍTICAS
ECONÔMICAS CONSTITUCIONAIS ESTADUAIS DE TURIMO
DESDE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Fernanda Gurgel Raposo*

INTRODUÇÃO

O federalismo brasileiro, no tocante à ordem econômica e às suas políticas


desenvolvimentistas, é marcado pela autonomia dos seus entes federativos, característica
inerente ao próprio sistema, mas também por uma dose maior de liberdade (comedida) em
algumas matérias que podem interessar à ordem política regional, entre as quais se encontra
o Direito Econômico. Dito em outras palavras, no caso do federalismo brasileiro os
Estado-membros gozam de autonomia enquanto regra da autoadministração, auto-
organização e autogoverno, nos moldes de qualquer federalismo, mas também de
competência concorrente para instituir políticas econômicas locais.
É nesse cenário pós-constituição de 1988 que os Estados têm a oportunidade de
instituir dispositivos constitucionais, nas suas Cartas Estaduais, levando em consideração
suas potencialidades e demandas locais, na instituição de diretrizes de ordem econômica
para atender às orientações da Constituição Federal e contribuir para a superação do
subdesenvolvimento, naquilo que lhe era cabível. Eis então que foi justamente esse o
objeto de uma pesquisa extensa dividida em submetas que interessam à respetiva ordem, e
entre os quais se encontra o turismo.
Mas por que o turismo? A escolha desse segmento de mercado se deu por um
motivo simples. Na investigação a que nos propomos foi possível observar que muitos
Estados-membros litorâneos se preocuparam em tratar desse tema nas suas Constituições,
mas não somente eles. Esse foi um ponto que nos indicou uma temática de investigação
viável, dada a disposição e a quantidade de Estados que se propuseram a tratar do tema,
assim como o encaixe da temática com os debates de Direito Econômico e
desenvolvimento.

*Graduada em Direito e em Letras/Inglês. Mestre em Letras e em Direito Político e Econômico pela


Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo – USP.

~ 533 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Não nos interessou desvendar o porquê, mas nos parece óbvio que o fato jurídico
depende da existência de fatos sociais, assim como o objeto do direito depende da
existência de objetos fáticos no mundo real. É igualmente evidente que o turismo
representa um segmento de potencial exploração econômica, e o Brasil é mundialmente
(re)conhecido pelas suas belezas naturais. Junto com o turismo, percebemos uma tendência
nos Constituintes Decorrentes em abordar temas partindo de recursos naturais disponíveis
nos seus Estados e nas suas regiões.
O objetivo central do presente artigo é descrever de que modo as Constituições
Estaduais brasileiras pós-Carta Magna de 1988 trataram do turismo, e em que medida esse
tratamento efetiva a autonomia dos entes federativos e a competência concorrente para
instituir políticas econômicas estaduais, nos moldes da Constituição Federal de 1988. A
proposta foi mapear o tratamento outorgado ao turismo nessas Cartas para, na sequência,
analisar em que medida esse tratamento efetiva as finalidades da Constituição Federal que
são de competência Estadual, em especial a garantia do desenvolvimento nacional a partir
da instituição de políticas que se preocupassem com o desenvolvimento estadual, local ou
regional. Isso porque entendemos que a instituição de políticas econômicas
desenvolvimentistas estaduais são parte do compromisso estadual com os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil presentes no artigo terceiro da Carta
Magna.
Para tanto, uma pesquisa bibliográfica e legislativo-constitucional foi realizada a
fim de confrontar os debates teóricos sobre Federalismo, autonomia e limites dos entes
para, a partir desses referenciais, iniciar para uma investigação nas Constituições Estaduais
em si, a fim de analisar em que medida a autonomia se efetivou nessas Cartas,
considerando o recorte das políticas que interessam à ordem econômica e ao
desenvolvimento, e que trataram do turismo. Esse recorte foi feito considerando não
somente os títulos “Da Ordem Econômica”, mas as Constituições Estaduais na sua
integralidade, pois percebeu-se no corpo de todo o texto constitucional era possível
encontrar dispositivos que interessavam à política econômica estadual. Desta feita, as
disposições extraídas das Cartas que apresentamos a seguir podem ou não se encontrar no
rol de artigos dedicados formalmente à ordem econômica nas Constituições Estaduais.

~ 534 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

1. A AUTONOMIA DOS ESTADOS-MEMBROS NO CONTEXTO DO ESTADO


FEDERAL

Antes de tratarmos das abordagens das Constituições Estaduais sobre turismo, faz
necessária uma pequena exposição sobre em que contexto se inserem os parâmetros usados
para investigar a efetivação da autonomia e da prerrogativa da competência concorrente
outorgada pela escolha de repartição de competências adotada pela Constituição Federal de
1988. Para tanto, iniciaremos tratando dos papeis dos entes federativos no Estado Federal e
do que a doutrina tradicional sobre o assunto entende por autonomia.
Isso porque é indiscutível que o Estado organizado sob a forma federativa
subdivide-se em unidades menores, chamadas de entes, que são dotadas de autonomia. A
autonomia dessas unidades pressupõe a capacidade de auto-organização, de autogoverno e
de autoadministração. No Brasil, as unidades imediatas ao Estado maior são chamadas de
Estados-membros, e apresentam uma subdivisão decorrente do pacto federativo, em
Municípios. A União é o ente federativo ou a Pessoa Jurídica de Direito Público interno
que representa e administra os interesses da Federação como um todo.
Sobre o conceito de autonomia adotado para fins da análise que segue, ficamos
com algumas das diretrizes da mais respeitada doutrina que tratou da temática, a saber, a
concepção de Bandeira de Mello sobre autonomia, segundo o qual essa está associada à
existência de governo próprio. Para o autor, autônoma é qualquer coletividade pública que
goza de certa capacidade de provimento próprio dos cargos governamentais, observados os
“circuitos prefixados pela coletividade superior”. Some-se a essa característica, a faculdade
de auto-organização dentro dos limites das questões que são de seu peculiar interesse.
(BANDEIRA DE MELO, 1948, p. 95).
Todavia, para fins da pesquisa acerca dos limites à autonomia do Estado-Membro
em matéria de Direito Econômico, o conceito adotado conglomera a acepção de Bandeira
de Mello com uma complementação conceitual da concepção de Horta sobre autonomia,
posto que este trata explicitamente da distinção em relação à soberania, atribuindo aos
Estados-Membros somente a prerrogativa da autonomia que conceitua como sendo um
instituto jurídico que pressupõe um poder não soberano que em decorrência de direito
próprio que estabelece normas jurídicas de cumprimento e observância obrigatórias.
(HORTA, 1964, p. 40)
Dessa forma, entende-se a autonomia enquanto atributo das unidades federadas
que compõem o Estado Federal, atributo esse que lhe confere capacidade de auto-

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Direitos Humanos & Fundamentais

organizar-se, de autogovernar-se e de auto-administrar-se, não se confundindo com a


soberania externa e interna, atributo característico somente do ente político representante
dos interesses de todas as unidades.
Assim como a autonomia é prerrogativa inerente ao próprio sistema federativo, de
igual modo os limites que se impõe às deliberações políticas e jurídicas dessas unidades
também o são, pois igualmente figuram como característica do próprio sistema federativo.
Todavia, esses limites teóricos e gerais, e fazem parte de um conjunto de postulados que
tem por objetivo viabilizar a organização federativa e o exercício da autonomia, e se
impõem para evitar uma descaracterização da estrutura do próprio sistema, conforme as
concepções teóricas do Estado Federal. Lembremos que essas abordagens são necessárias
uma vez que a proposta do presente trabalho é estabelecer um paralelo entre essas
limitações teóricas e aquelas que de fato se impuseram na constituição da auto-organização
dos Estados-Membros, em matéria de política de turismo.
Sobre as propostas teóricas de limitações dos Estados-Membros, Bandeira de
Mello considera que estas são estritamente necessárias para evitar um choque com a
própria estrutura do sistema e, para ele, “o Estado Federal exerce superintendências sobre a
atividade dos estados particulares, impedindo que eles violem a ordem legal estabelecida
pela carta da federação”. (BANDEIRA DE MELO, 1948, p. 69). Nesse sentido, nota-se
que a própria estrutura federativa se caracteriza pela descentralização, e esse caractere é
inerente a essa forma de organização política. Descentralização entendida como uma
repartição de funções, que serão elencadas por normas da Constituição Federal, que
atribuem maior ou menor círculo de ação às pessoas jurídicas internas, que designamos por
entes federativos.
Isso significa que é a Carta Magna que determina o âmbito de ação de
competência da União e dos Estados-Membros, numa relação mesmo de causalidade,
como destacou Horta, de modo que a manutenção do sistema político federativo depende
da permanência de atuação de cada um desses entes estritamente no campo a que lhe foi
atribuída competência, sem interferência na esfera dos demais.Além disso, a
impossibilidade de modificação contínua das atribuições dos Estados-Membros é
característica da Federação, e isso garante a esses entes certa estabilidade em relação às suas
competências e em relação ao próprio sistema. (HORTA, 1985, p. 41)
Segundo Bandeira de Mello (1948), a federação passará por um processo
evolutivo natural resultante das modificações interpretativas do texto constitucional,
constantes das jurisprudências, juntamente com a consolidação de práticas legislativas e

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Direitos Humanos & Fundamentais

administrativas que culminarão num aumento dos poderes dos estados federados. Essa
divisão, entretanto, não descarta a existência de pontos de intersecção entre a competência
da União e a competência dos Estados-Membros, que, entre outras, são as chamadas
competências concorrente e/ou suplementar. É nesse contexto teórico que se inserea
análise mais pormenorizada acerca desse Poder Constituinte dos Estados-Membros, para
análise de autonomia e limites no estudo das constituições, em relação especialmente ao
tratamento outorgado por elas ao turismo, enquanto matéria que interessa ao Direito
Econômico e ao desenvolvimento.
Destaque-se que as previsões sobre uma futura ampliação dos poderes dos
Estados Federados feitas por Bandeira de Mello, entendidas enquanto movimento que
coincide com o que uma evolução dos processos no contexto da Federação, data de 1948.
Todavia, a pesquisa realizada considerando o caso brasileiro, e cujos resultados nesse artigo
se apresentam, demonstram que essa mudança caminha a passos bem lentos. Obviamente é
preciso considerar que a nossa democracia e a nossa Constituição atual são relativamente
jovens, especialmente se considerarmos a maturidade dos debates sobre federalismo e
descentralização da doutrina mais respeitada sobre assunto.
De todo modo, nos propusemos a apresentar os passos dados em direção a
efetivação dessa autonomia federativa, assim como da consolidação dos objetivos traçados
para a República Brasileira, na Carta Magna de 1988, em especial aquele que trata sobre a
garantia desenvolvimento nacional no seu artigo 3º, inciso II, em relação às políticas de
turismo, por entendermos que se trata de um segmento de potencial exploração econômica
e social, considerando-se especialmente as potencialidades culturais e naturais dos Estados-
membros e regiões.

2. O TURISMO E AS CONSTITUIÇÕES ESTADUAIS

O turismo foi escolhido como tema a ser investigado nas Constituições Estaduais
tanto pelo seu potencial em relação a exploração econômica e cultural, quanto pela
identificação de tratamento constitucional estadual outorgado a temática em algumas
constituições. É possível que os Poderes Constituintes derivados ou decorrentes tenham
incluído o tema nas pautas de debates para atender ao artigo 180 da Constituição Federal,
que se insere no título outorgado ao tratamento da Ordem Econômica e Financeira, e no
capítulo designado aos princípios gerais da atividade econômica, segundo o qual: “A
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão e incentivarão o

~ 537 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

turismo como fator de desenvolvimento social e econômico.” (BRASIL, 1988, art. 180).
Vejamos então “se” ou “de que forma” os Poderes Constituintes dos Estados-membros
efetivaram esse dispositivo constitucional no texto das Cartas Estaduais.
Para começar a apresentação dos resultados dessa investigação, traremos os
Estados-membros cujas constituições foram omissas em relação ao assunto turismo. Numa
análise apriorística poderíamos imaginar que há Estados com outros segmentos
potencialmente exploráveis capazes de tornar a exploração turística insignificante. Todavia,
não foi esse o resultado encontrado no tocante a omissão constitucional sobre o turismo
pois, curiosamente, identificamos Estados litorâneos tradicionalmente conhecidos pela
ampla propaganda dos seus atrativos turísticos que não trataram dessa atividade nas suas
Constituições, e foram os Estados do Rio Grande do Norte, Alagoas, Maranhão, Bahia,
Pernambuco e Sergipe, e não somente eles.
Igualmente não contemplaram dispositivos normativos de compromisso estatal
com a atividade - mas agora não se trata mais de Estados-membros amplamente
conhecidos pela exploração turística - as Constituições do Mato Grosso, do Mato Grosso
do Sul, do Pará, do Paraná, de Roraima e de São Paulo, que merecem menção apesar do
turismo não ser atividade de ampla veiculação publicitária entre eles. Mas também não
destacaram artigos nas suas Constituições para tratamento jurídico à matéria.
Não obstante, a omissão do Constituinte Decorrente não implica afirmar que o
Estado-Membro não disponha de uma regulamentação que trate de políticas públicas
voltadas ao desenvolvimento desse setor, haja vista a possibilidade de regulamentação
infra-constitucional sobre a matéria, mas induz à conclusão de que compromissos
constitucionais de política de desenvolvimento do setor enquanto atividade econômica não
foram adotados pelos Estados supracitados. Isso implica na possibilidade de alterações
substanciais nas políticas turísticas de acordo com as prioridades estabelecidas por cada
governo. A defesa - ou o destaque - para a importância de uma abordagem constitucional
sobre os temas que interessam ao desenvolvimento e que podem contribuir com este, é
que dispositivos constitucionais podem orientar ações de governo, instituindo, ainda que
minimamente, políticas de Estado.
De forma distinta dos Constituintes omissos, alguns Estado-membros se
dispuseram a tratar de turismo nas suas respectivas Cartas estaduais, e foram os Estados do
Amapá, do Amazonas, do Ceará, do Espírito Santo, de Goiás, de Minas Gerais, da Paraíba,

~ 538 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

do Rio de Janeiro308, do Rio Grande do Sul, de Rondônia, de Santa Catarina e do


Tocantins. Curiosamente, algumas Cartas optaram por tratar das Ordens Econômica e
Social em títulos separados e, entre elas, somente a Constituição de Santa Catarina cuidou
das políticas de turismo na “Ordem Social”, e o artigo único foi inserido naquela pela
Emenda Constitucional nº 25 de 2003. Isso implica afirmar que o turismo não fora
contemplado pelos Constituintes Decorrentes de 1989, mas somente a partir de 2003309.
Essa inserção da temática no título designado ao tratamento da Ordem Social não
induz à precipitada conclusão de que todas as demais Constituições deram tratamento
econômico à matéria, por inserirem-na entre os dispositivos para tratar “Da Ordem
Econômica”, e nem tampouco que aspectos econômicos do turismo não estiveram
presentes no capítulo designado para tratar da matéria naquela Lei Maior Estadual. Ao
contrário do que poderia ser precipitadamente concluído, o Poder Constituinte Decorrente
de Santa Catarina tratou do turismo como um fator de desenvolvimento econômico e
social, e de preservação do patrimônio cultura e natural do Estado, no seu artigo 192-A,
com a previsão de elaboração de um plano diretor, no parágrafo 3º deste mesmo artigo, a
ser elaborado de forma conjunta com os Municípios, e que tenha por finalidade promover,
especialmente:

I - o inventário e a regulamentação do uso, ocupação e fruição dos bens naturais


e culturais de interesse turístico sob jurisdição do Estado; II - a infraestrutura
básica necessária à prática do turismo, apoiando e realizando investimentos no
fomento dos empreendimentos, equipamentos e instalações e na qualificação
dos serviços, por meio de linhas de crédito especiais e incentivos fiscais; e III - a
promoção do intercâmbio permanente com Estados da Federação e com o
exterior, visando o aumento do fluxo turístico e a elevação da média de
permanência do turista. (SANTA CATARINA, 1989, art. 192-A, §3º)

Além das particularidades já mencionadas, aduz-se do supracitado uma


preocupação com a integração da atividade a bens culturais e naturais do Estado, assim
como com o subsídio infraestrutural para o desenvolvimento do setor, e uma divulgação
dos atrativos dentro e fora do país, para aumento do fluxo e da permanência dos turistas
no seu território. No caso das políticas catarinenses de turismo, o que se verifica nas suas

308 A Constituição Estadual do Rio de Janeiro foi a única Constituição que tratou da atividade, mas não criou
seção ou capítulo próprio, posto que optou por incluí-la no capítulo sobre políticas industriais, comerciais e
de serviços.
309 Sobre essa inserção da temática feita pelos Constituintes Decorrentes Reformadores do Estado de Santa

Catarina, cabe uma reflexão e um destaque sobre a relevância de pesquisas dessa natureza, pois a nossa ordem
jurídica possibilita a inserção de dispositivos constitucionais por esses poderes, ou seja, por aqueles
legitimados a promover alterações no corpo do texto constitucional Estadual através de Emendas
Constitucionais.

~ 539 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

disposições constitucionais é uma autorresponsabilização do Estado no sentido de suprir o


setor dos recursos que lhe compete.
Nessa mesma linha de tratamento, também o Amazonas coloca o turismo como
fator de desenvolvimento social e econômico, e adota a priorização de investimentos em
estrutura que valorize as potencialidades já existentes no Estado, com destaque para o
patrimônio paisagístico e natural, e para o compromisso de apoio à iniciativa privada
voltada para o setor, como forma de investimento estatal em lazer e serviços, vejamos:

Art. 179. O Estado e os Municípios promoverão e incentivarão o turismo como


fator de desenvolvimento social e econômico, definindo sua política,
obedecendo às seguintes diretrizes: I - adoção permanente de plano integrado
com prioridades para o turismo receptivo e interno; II - priorização de
investimentos que visem à formação de estrutura turística voltada para o
aproveitamento das potencialidades existentes no Estado, principalmente a
valorização do patrimônio paisagístico e natural; III - apoio e estímulo à
iniciativa privada voltada para o setor, particularmente no que tange a
investimento de lazer e serviços; 109 IV - fomento à produção artesanal; V -
proteção e incentivo às manifestações folclóricas e culturais; VI- apoio a
programas de sensibilização da população e segmentos socioeconômicos para a
importância do setor; VII - formação de pessoal especializado; VIII - difusão e
divulgação do Amazonas como polo de importância turística; IX -
regulamentação de uso, ocupação e fruição de bens naturais, arquitetônicos e
turísticos; X - conservação e preservação dos valores artísticos, arquitetônicos e
culturais do Estado; XI - manutenção e aparelhamento de logradouros públicos
sob a perspectiva de sua utilização, acessoriamente ao setor. (AMAZONAS, op.
cit., art. 179).

Somem-se às opções político-econômicas adotadas pelo Estado supracitado para


desenvolvimento da atividade, o fomento à produção artesanal, o incentivo às
manifestações culturais e folclóricas, e a preocupação com o desenvolvimento dos recursos
humanos locais, que pode ser extraída do inciso que trata de apoio a programas de
sensibilização da população e de setores socioeconômicos para a importância do segmento.
Diferentemente do que aparece na Carta Constitucional de Santa Catarina, na do
Amazonas, nessa última os constituintes decorrentes optam por estabelecer diretrizes de
política econômica para desenvolvimento do turismo que separa as responsabilidades do
Estado, de apoio ao setor, dos papeis da população e do mercado local, de suporte e auxílio
às políticas públicas estatais e à própria atividade. Dessa forma, os Constituintes
Decorrentes amazonenses criaram objetivos de incentivo ao turismo que institui uma
secção entre aquilo que pode ser feito enquanto decisão político-econômica do Estado, e
aquilo que deve ser feito pelo próprio povo, para desenvolvimento turístico local.
Assim como as duas constituições anteriores, também as Constituições do
Amapá, do Ceará, do Espírito Santo, de Goiás e do Tocantins exploraram o potencial

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Direitos Humanos & Fundamentais

desenvolvimento econômico do turismo nos respectivos Estados, com um rol de “normas


de objetivo” mais ou menos padrão. Todavia, especificamente na Constituição Estadual do
Tocantins (1989) o turismo é tratado juntamente com a indústria, como atividade
econômica capaz de promover o progresso social e cultural do Estado, conforme artigo 93
em redação dada pela Emenda Constitucional nº 07, de 15/12/1998, que determina que “o
Estado e os Municípios promoverão e incentivarão o turismo e a indústria como atividades
econômicas, buscando o desenvolvimento social e cultural”. Novamente verificamos uma
alteração constitucional para inclusão do turismo como área de potencial exploração
econômica e, nesse caso, de potencial promotor de progresso social e cultural da região.
De forma semelhante, a Constituição do Ceará faz menção à necessidade de
desenvolvimento do setor, mas acrescenta que para isso será preciso pensar na
possibilidade de uma descentralização para abrangência de mais de uma região do Estado, é
o que diz o artigo 241-A no seu parágrafo 2º, conforme segue:

Art. 241-A § 2º O instrumento básico de intervenção do Estado, decorrente da


norma estatuída no caput deste artigo, será o plano diretor de turismo,
estabelecido em lei, considerado o potencial turístico das diferentes regiões,
com a participação dos municípios envolvidos, direcionando as ações de
planejamento, promoção e execução da política estadual de turismo. (Grifo
nosso) (CEARÁ, 1989)

Entretanto, até aqui verificamos que os constituintes decorrentes chamaram para


o Estado a responsabilidade pela promoção, pelo fomento, ou mesmo pelo incentivo ao
turismo,. De forma um pouco distinta dessas já apresentadas, a Constituição Estadual do
Amapá, que destaque-se, é a mais recente de todas, promulgada na sua íntegra em 1991,
determina que o desenvolvimento desse setor se dará através de parcerias entre o poder
público e a iniciativa privada e esse compromisso mútuo está no artigo 251 da sua Carta,
vejamos:

Art. 251. O Estado, juntamente com a iniciativa privada, definirá através de lei, a
política estadual de turismo, observadas as seguintes diretrizes e ações: III -
apoio a programa de divulgação e orientação do turismo regional e a
implantação de projetos turísticos nos Municípios; (grifo nosso) (AMAPÁ,
1991).

As razões para essa inovação constitucional da carta supracitada são


desconhecidas e não consistia em finalidade dessa pesquisa a investigação das causas das
formas pelas quais o turismo fora tratado nas Constituições Estaduais. A finalidade do
trabalho cujos resultados aqui se apresentam foi tão somente verificar em que medida os

~ 541 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Estado-membros gozaram das suas autonomias federativas e da prerrogativa da


competência concorrente para instituir normas de Direito Econômico considerando suas
particularidades locais e regionais, nas suas Cartas Estaduais e, sobre isso, verificou-se que
poucos foram os textos constitucionais estaduais de onde se pôde extrair essa correlação
explícita entre os dispositivos das Cartas.
Essa afirmação, todavia, não é regra, pois, de forma distinta da maioria dos
Estados, que ou foram omissos ou não relacionaram o turismo aos recursos naturais,
históricos ou culturais disponíveis para aproveitamento turístico, as políticas adotadas pelas
Constituições de Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Sul e Rondônia trouxeram
propostas de desenvolvimento de atividades a partir do aproveitamento das potencialidades
já existentes nos seus Estados, ou criaram novas possibilidades de exploração do turismo
local.
Sobre elas, comecemos pelas abordagens trazidas pela Constituição de Minas
Gerais, que nas suas diretrizes jurídico-econômicas para o apoio ao turismo, considera esse
segmento como potencial promotor de desenvolvimento cultural, além de econômico e
social, conforme texto do seu artigo 242 que diz que“o Estado apoiará e incentivará o
turismo como atividade econômica, reconhecendo-o como forma de promoção e
desenvolvimento, social e cultural”. (MINAS GERAIS, 1989)
Além disso, nas diretrizes da Política Estadual de Turismo estatuída no artigo 243,
inciso II, essa Carta Estadual traz “o incentivo ao turismo para a população de baixa renda,
inclusive mediante estímulos fiscais e criação de colônias de férias” como medida
necessária a ser adotada pelo Estado, e no inciso VI, do mesmo artigo, trata da criação de
fundo de assistência ao turismo, especialmente para beneficiar cidades históricas, a exemplo
de Ouro Preto, das estâncias hidromineiras e de outras localidades que não disponham de
recursos suficientes para manutenção da atividade, mas que sejam reconhecidas pelo
potencial turístico. Timidamente, a carta mineira faz menção ao apoio municipal de
projetos turísticos, no inciso V desse mesmo artigo, e a necessidade de conscientização da
população sobre a importância do desenvolvimento do setor, no seu inciso XIII.(MINAS
GERAIS, 1989).
De forma distinta, a Constituição do Amazonas trata da necessidade estatal
dessensibilização da população e dos segmentos socioeconômicos para a importância do
setor, como forma de convite à sociedade para integração e envolvimento com as políticas
estatais. A de Minas Gerais fala sobre a divulgação de informações sobre a atividade do
turismo, enquanto medida necessária a ser adotada pelo Estado, e outorga importância ao

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Direitos Humanos & Fundamentais

turismo social, no parágrafo único desse artigo, comprometendo-se a incentivá-lo mediante


benefícios fiscais, mas não define que tipo de atividades turísticas se enquadrariam nessa
modalidade, e oferece, apenas, benefício fiscal aos promotores dela. (MINAS GERAIS,
1989).
A segunda Constituição que merece menção em separado é a Constituição do
Estado da Paraíba que, ao tratar das diretrizes a serem definidas quando da elaboração da
Política Estadual de Turismo, no seu artigo 192, reconhece a necessidade de conservação
de inscrições e pegadas rupestres, e de cavernas existentes no Estado, como potenciais
naturais de interesse turístico. Outras Constituições até fazem menção ao aproveitamento
de recursos naturais, mas a Constituição paraibana é a única que cita um recurso natural
específico, e trata desde como um instrumento de possível exploração econômico-turística.
(PARAÍBA, 1989, art. 192, caput).
Além disso, a referida Constituiçãodefine igualmente metas de estímulo à
produção artesanal típica de cada região como política a ser adotada pelo Estado. Para
tanto, compromete-se à redução de tarifas por serviços estaduais. (PARAÍBA, 1989, art.
192, inciso III). Curiosamente, esse mesmo estímulo à produção artesanal como parte de
um política estadual de incentivo ao turismo, inclusive coma mesma menção à redução ou
isenção de tarifas devidas, encontramos no artigo 185, inciso IV da Constituição Estadual
de Rondônia que, de novidade em relação à Constituição paraibana, contempla a isenção
tarifária como medida de viabilização da atividade, e é a terceira carta estadual que merece
destaque, conforme segue:

Art. 185. O Estado, juntamente com os segmentos envolvidos no setor, definirá


a política estadual de turismo, observadas as seguintes diretrizes e ações: IV -
estímulo à produção artesanal típica de cada região do Estado, mediante política
de redução ou de isenção de tarifas devidas, conforme especificação em lei;
(grifo nosso) (RONDÔNIA, 1989, art. 185, inciso IV).

Curiosamente, na Constituição Estadual da Paraíba, nesse mesmo artigo, há dois


incisos com redação idêntica aos da Constituição mineira, que tratam do fundo de
assistência ao turismo para manutenção de cidades históricas e estâncias hidromineiras,
apesar de o turismo desse Estado não explorar primordialmente esses recursos nas suas
ações voltadas ao segmento como acontece com o Estado de Minas Gerais, a saber:

Art. 243 – O Estado, juntamente com o órgão colegiado representativo dos


segmentos do setor, definirá a política estadual de turismo, observadas as
seguintes diretrizes e ações: [...] VI – criação de fundo de assistência ao turismo,
em benefício das cidades históricas, estâncias hidrominerais e outras localidades

~ 543 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

com reconhecido potencial turístico desprovidas de recursos; ((RONDÔNIA,


1989).

No processo de análise das cartas constitucionais não é raro encontrar normas


idênticas entre elas sem que essas mesmas normas encontrem identidade na Constituição
Federal. Ao tratar de normas de imitação, denominação atribuída por Raul Machado Horta
(1995, pg. 73), amplamente adotada pela doutrina, Gabriel Ivo (1997, p. 151) esses autores
fazem referência a normas da Constituição Estadual que reproduzem dispositivo da
Constituição Federal, e comparam esses artigos com aqueles de reprodução obrigatória.
Entretanto, apesar de não ser exatamente esse o caso, a identidade literal entre dispositivos
de Constituições de Estados diferentes, dada a improbabilidade de ser a cópia obra do
acaso, induz ao uso do termo criado por esse autor para o caso supra exposto. Sendo
assim, é possível encontrar normas de imitação entre as Constituições Estaduais, quando
essas são omissas em relação à tutela a bens jurídicos locais que interessam ao
desenvolvimento econômico regional.
A quarta Constituição Estadual que merece menção em separado é a do Estado
do Rio Grande do Sul, em especial o seu artigo 240, por dois motivos: primeiro pela
atribuição ao Estado do compromisso de fomentar o intercâmbio permanente com outros
Estados e com o exterior, em especial com os países do Prata, e cita o fortalecimento do
espírito de fraternidade, e aumento do fluxo turístico nos dois sentidos, como objetivos
centrais dessa iniciativa. Além disso, menciona a construção de albergues populares em
favor das camadas pobres da população. Mais uma vez temos uma diretriz política cujo
objetivo é o acesso aos menos favorecidos economicamente às atividades turísticas do
Estado.

CONCLUSÃO

Com isso, encerramos as análises específicas sobre turismo nas Constituições


Estaduais brasileiras e, em síntese, as diretrizes estaduais de desenvolvimento regional e
local relevantes foram as políticas de apoio ao usufruto de potencialidades ecológicas e
naturais, as de valorização dos aspectos culturais regionais, sejam eles artesanato, folclore
ou mesmo a história, as iniciativas de descentralização da atividade, com previsão de apoio
ao turismo regional e municipal, e as políticas de inclusão das camadas economicamente
menos favorecidas no acesso aos projetos turísticos dos Estados.

~ 544 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Diante de todo o exposto, e considerando proposta de investigação dessa


pesquisa, cumpre destacar quepoucas dessas Constituições exploraram recursos locais para
estabelecimento de metas de desenvolvimento do setor e da região, nos moldes do que
havíamos pensado ser possível, quando da propositura das análises. Isso não implica
afirmar que o cumprimento das finalidades desenvolvimentistas não tenham participação
da exploração do turismo nas regiões que se dispuseram a tratar do tema nas suas
constituições. O máximo que se pode inferir dessa omissão é que talvez não tenha havido
um planejamento das política inseridas com vistas a promoção o desenvolvimento nacional,
através de uma contribuição local/estadual/regional.
Os debates de Direito Econômico atuais estão direcionados aos mecanismos de
promoção do desenvolvimento nos países subdesenvolvidos e ao papel da intervenção do
Estado na economia para promoção desse progresso. Diante disto, concordamos com os
postulados de Souza ao colocar o Direito Econômico como “legislação para o
desenvolvimento”, entendido esse como o objetivo central da política econômica imbricada
na ideologia constitucional. Ele chama esse tratamento outorgado à superação
dosubdesenvolvimento de “característica de objetivo ideológico”. Nesse sentido é que a
norma jurídica deve assumir o compromisso de tratar de medidas de política econômica a
serem legalmente postas em prática, com o objetivo defazer cumprir os "princípios"
ideológicos definidos no texto da Constituição Federal. Para o autor, é nítida a ligação do
tema com os problemas da "produção", da "circulação", da “repartição" e do "consumo"
dos bens.
O que Souza (2016) defende é que se institucionalize políticas de desenvolvimento
através da normatização, seja ela constitucional ou não, porque essa medida evita que temas
que interessam à superação do subdesenvolvimento deixam de ser tratados apenas na
esfera teórica, ou que deixem de ser enfrentados arbitrariamente, para se inserir no
contexto jurídico da defesa dos "interesses individuais", "interesses gerais", "interesses
públicos", "interesses coletivos", "interesses difusos" e assim por diante.
Considerado dessa forma, defendemos que as Constituições Estaduais têm o
papel primordial de pôr em prática, no âmbito local ou regional, a política econômica
adotada pela Constituição Federal. Esse “pôr em prática” não significa responsabilizar-se
diretamente pela regulamentação dos meios de execução das políticas públicas que
garantirão a referida efetividade, mas implica num compromisso de tratamento regional a
essas políticas garantindo a exequibilidade delas, considerando-se as peculiaridades,
problemas e potencialidades regionais.

~ 545 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

É sabido que os Poderes Constituintes Decorrentes esbarram em diversas


limitações às suas deliberações normativas e são limites de ordem material, vez que devem
observar a repartição de competência, e de ordem formal, posto que nem tudo que reside
na competência legislativa dos Estados pode ser matéria de norma constitucional, a
exemplo da criação de Municípios que deve se dar por lei ordinária atendido os requisitos
do art. 18 §4º da Constituição Federal.
Reitere-se que mesmo que restem preenchidos todos os demais requisitos de
competência, e ainda que as Constituições Estaduais devam ser observadas pelo legislador
ordinário nos processos legislativos estaduais, não compete ao Constituinte Decorrente
tratar em norma constitucional matéria reservada à lei ordinária estadual. Esse é o
entendimento do Supremo Tribunal Federal expresso na Ação Direta de
Constitucionalidade 192310, cujo objeto foi norma dos ADCTs que criava município.
Ainda assim, o sistema federativo brasileiro dispôs da repartição de competências
de modo a viabilizar o tratamento jurídico-econômico a questões de ordem local, ao
designar competência concorrente aos Estados-Membros para legislar em matéria de
Direito Econômico. Observa-se, com isso, uma preocupação do Constituinte Originário
em viabilizar o exercício da autonomia dos Estados-Membros em matérias que são de
interesse local ou regional, e por isso é concorrente a competência para legislar em Direito
Econômico.
É possível concluir, a partir dessa análise, que o planejamento e a execução de
medidas de promoção do desenvolvimento do país passam, necessariamente, por um
espelhamento estadual da política jurídico-econômica adotada ideologicamente pela
Constituição, e isso se torna viável na medida em que o Estado-Membro extrai do
conhecimento seguro da realidade os dados de natureza regional de que precisa para
estabelecer diretrizes locais de política econômica que estejam alinhados à política nacional,
sem lhe extrapolar os limites, e que atendam às necessidades locais de desenvolvimento.
Ademais, coerente e exequível são políticas desenvolvimentistas que consideram as
potencialidades regionais e trabalham para combater fragilidades locais.

310Ação Direita de Inconstitucionalidade. Criação de Município. A criação de Município por lei constitucional
estadual é inconstitucional, uma vez que, tendo a constituição Federal determinado que ela se faria por lei
ordinária, impõe aos estados-membros a participação, em sua feitura, do Chefe do Poder Executivo estadual,
que pode, inclusive, vetá-la. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 192. Relator Moreira Alves.
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Direitos Humanos & Fundamentais

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TOCANTINS. Constituição (1989). Constituição Estadual de Tocantins. Tocantins:


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~ 549 ~
A PROPORCIONALIDADE NO CONTEMPORÂNEO DIREITO
CONSTITUCIONAL BRASILEIRO:
APLICABILIDADE DAS NOÇÕES DE ÜBERMASSVERBOT E
UNTERMASSVERBOT

Leonam Baesso da Silva Liziero*

INTRODUÇÃO: O FETICHISMO PRINCIPISTA NOS 30 ANOS DA


CONSTITUIÇÃO DE 1988

Seriam princípios jurídicos efetivamente princípios do direito? São diretrizes de


raciocínio jurídico transmutados para valores inerentes ao ordenamento jurídico revelados
com a crise teórica do positivismo jurídico, aliadas às transformações em escala global após
a Segunda Guerra Mundial? O debate crítico ao positivismo jurídico teria sido uniforme
nas tradições teóricas de diversos países? Estas são breves indagações ao se estudar a
possível inserção ou existência de princípios de direito no sistema jurídico.
Contemporaneamente, um dos mais acirrados debates na teoria do direito,
especialmenteno âmbito constitucional, referem-se à problemática da construção de um
sistema jurídico composto por regras e princípios, um pressuposto do movimento “pós-
positivista” da segunda metade do Século XX. Desenvolveram-se grandes formulações
teóricas que procuram reintegrar o valor na concepção formalista do direito, aproximando
a moral a um sistema de direito que, conforme o positivismo no geral, com ela não se
confundia. A composição de um sistema jurídico composto por regras e princípios
permitiria uma nova compreensão valorativa do direito.
Grande dúvida acerta do que seriam tais princípios jurídicos esbarram na
confusão semântica com os chamados princípios gerais do direito. Já não bastante a
panaceia principiológica existente no ensino jurídico brasileiro atual, ainda fica mais difícil
para um estudante de primeiro ano do curso de Direito compreender tais sutilezas que
muitas vezes não compreendidas por profissionais já atuantes ou mesmo por professores.

*Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba –


UFPB. Pós-Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Doutor e Mestre em
Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ.

~ 550 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Veja-se um exemplo básico sobre como isso gera certo estranhamento inicial: os
ditos princípios jurídicos não se confundem com os princípios gerais de direito. Em um
clássico livro para alunos de primeiro ano, como Lições Preliminares de Direito de Miguel
Reale, os princípios gerais de direito são descritos como enunciados lógicos como
condições de validade para o conhecimento jurídico, assim como com qualquer campo do
saber filosófico ou científico. Em uma acepção restrita à lógica, Reale (2011, p. 217) define
princípios como “verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais
admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos
de ordem prática de caráter operacional”. Os princípios gerais do direito seriam parte do
que Reale define por princípios monovalentes, ou seja, válidos apenas para um campo
específico do conhecimento.
Por sua vez, Lenio Streck (2014, p. 640) esclarece que tais princípios do Estado
Democrático de Direito, presentes na ordem constitucional não se confundemcom os
“princípios gerais do direito” do positivismo. Estes últimos, oriundos do sistema positivista
de discricionariedade, “não são compatíveis com a principiologia ínsita ao Estado
Democrático de Direito”. Ainda que não mencionados na Constituição, orientam a
conformação da legislação infraconstitucional com o texto constitucional.
O próprio Streck (2014), Marcelo Neves (2013) e Dimitri Dimoulis (2006) são
autores a denunciar o fetichismo principista no Brasil, ainda que por caminhos diferentes.
Fato é que o movimento “neoconstitucionalista” que, no intuito de uma possível
superação do positivismo jurídico, possuem escritos de autores que se supõem pertencer a
um grupo auto-identificado “pós-positivistas”.
Como Dimoulis (2006) observa, praticamente inexiste a designação deste termo
“pós-positivista” fora do Brasil. Trata-se de uma série de deturpações de autores
estrangeiros mal adaptadas no contexto brasileiro. Veja-se mesmo por dois dos autores
mais estudados em Teoria do Direito e Direito Constitucional: Ronald Dworkin e Robert
Alexy, cujas teorias, apesar de críticas ao positivismo jurídico em sentido estrito
(DIMOULIS, 2006) são muito diferentes entre si: não há conversação entre elas, nem ao
menos a respeito sobre o conceito semântico de princípios no direito. Não é incomum
encontrar escritos descuidados sobre a aplicabilidade de tais teorias para no Direito
brasileiro, sob o argumento da defesa uma ordem jurídica fundada em princípios revestidos
de carga axiológica.
O fascínio presente na produção acadêmica brasileiro em direito constitucional,
assim como também na prática forense, segundo observa Neves (2013, p.171), é “uma

~ 551 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

atitude que, com destacada exceções, tem contribuído para uma banalização das questões
complexas referentes à relação entre princípios e regras”. Neves, ao dissertar sobre a
distorcida recepção de teorias estrangeiras no Brasil, identifica a fragilidade da reflexão
jurídica no Brasil, seja na teoria do direito, seja na dogmática jurídica.
Diante deste quadro, é possível pensar em somente duas alternativas: o
continuísmo desta prática jurídica frágil e inconsistente, com efeitos que se mostram
nocivos e que colocam a normatividade constitucional em xeque, ou uma ruptura, com
formulações teóricas consistentemente sólidas para provocar uma vicissitude na prática do
direito (NEVES, 2013), em especial nas decisões judiciais.
Os princípios no Brasil, com todo a deturpação provocada pelas leituras teóricas
equivocadas do “neoconstitucionalismo”, funcionam muitas vezes para os juízes e outros
tomadores de decisões como coelhos retirados da cartola: em seu dever de motivação,
razões políticas ou mesmo a desídia de fundamentação surgem travestidas de princípios. O
fetichismo acerca da designação principiológica é evidente e certeira nestes 30 anos de
promulgação da Constituição de 1988.
A busca pela justiça como um sentido para o direito, como um modo adicional de
superação do modelo positivista, também contribui para a fragilidade do próprio direito.
Segundo Neves (2013, p. 191), a invocação de princípios nas decisões, em nome de uma
suposta justiça, “em uma sociedade complexa com várias leituras possíveis dos princípios,
serve antes à acomodação de interesses concretos e particulares, em detrimento à força
normativa da Constituição”.
A busca pela justiça nas decisões por meio de princípios, no contexto atual no
Brasil, pode ser mostrar lesiva ao Estado Democrático de Direito e à Constituição. Em sua
relação com o direito, a justiça tem funções essenciais de legitimação e correção. Todavia, a
justiça pode possuir um lado perverso quando suas concepções oprimem em nome da
conservação de um poder dominante. Por isso um dos famosos mandamentos do jurista
uruguaio Eduardo Couture parece tão questionável: se a justiça deve ser escolhida quando
entrar em conflito com o direito, a objetividade da norma, que pertence à uma ordem
jurídica que em muitos países são fruto de uma deliberação de pessoas eleitas
democraticamente, pode ser preterida ao solipsismo de uma concepção de justiça.
Ao lado do poder dominante a justiça pode se tornar uma arma terrível de
opressão, sobretudo se a certeza do direito positivo for enfraquecida pelo clamor da ordem
social pela justiça. Atribuir ao direito o caráter de justo para aferir sobre sua legitimidade
pode conduzir à uma tirania social. Não é demais lembrar que sob fundamentos parecidos

~ 552 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

de identificação de decisões com o sentido de justiça, ainda que com propósitos diferentes,
a legalidade no Nacional-Socialismo era afastada em nome da Rechtässigkeit.
É uma relação paradoxal: a justiça dá sentido ao direito, mas pode destruir suas
instituições; a justiça dá a correção à aplicação do direito, mas pode ser deturpada em nome
de decisões individualistas baseadas em concepções de mundo próprias do agente público.
Uma vez expostas tais considerações sobre o cuidado com o uso dos princípios
no Brasil contemporâneo, tanto em relação à prático quanto aos desenvolvimentos
teóricos, é possível uma melhor reflexão acerca da utilização e recepção do princípio da
proporcionalidade no Brasil, especialmente derivadas das considerações formuladas por
Robert Alexy.

A PROPORCIONALIDADE COMO MÁXIMA JURÍDICA

Entre os princípios jurídicos presentes na contemporânea ordem constitucional


brasileira, o da proporcionalidade busca vinculara proteção de direitos fundamentais com a
atividade legiferante. Segundo Barroso (2014, p.328), a origem deste princípio estaria
relacionada com a garantia do devido processo legal, uma vez que a noção de
proporcionalidade expressa a ideia de compatibilidade entre o meio escolhido pelo
legislador e a finalidade visada pela medida normativa. A proporcionalidade, deste modo,
promoveria o equilíbrio entre o exercício do poder e a preservação dos direitos.
Uma vez que a função de tal princípio é evitar excessos entre meios e fins na
atividade legislativa, seu descumprimento é observável de dois modos: o excesso de
legislação de modo a impossibilitar o exercício de algum direito fundamental ou a falta de
regulamentação, de modo a violar direitos também pela ausência.
Para Canotilho (1993, p.382), o princípio da proporcionalidade se encontra como
tal entre os princípios concretizadores do Estado de Direito, “erigido à dignidade de
princípio constitucional”. Com o mesmo entendimento, para Bonavides (2003, p.395) o
princípio da proporcionalidade possui grande prestígio no direito constitucional, já que é
meio para a proteção dos direitos fundamentais.
No Estado de Democrático de Direito, o excesso de regulamentação encontra
limites ao não poderviolar os direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos. A
falta de regulamentação por sua vez também pode gerar violação a tais direitos
fundamentais.É o que se denomina por Übermassverbot, ou seja, a proibição do excesso e por
Untermassverbot, a proteção deficiente (STRECK, 2004).

~ 553 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A inconstitucionalidade pode surgir sempre que uma lei ameaça o exercício dos
direitos fundamentais em razão da desproporcionalidade entre os fins para qual foi criada e
sua eficácia. Segundo Canotilho (2003, p. 384) é uma “questão de «medida» ou «desmedida»
para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim”.
A elaboração legislativa possui fatores tais como os motivos, os meios e os fins. A
ideia de proporcionalidade de cada lei estará presente se houver uma adequação de sentidos
entre esses três fatores. E para tal, é importante a referência à Alexy, sobretudo em sua
Teoria dos Direitos Fundamentais, com o devido cuidado no tocante ao sopesamento, uma
vez que mal utilizado como é no Brasil, representa um álibi para o enfraquecimento da
legalidade, desdita contemporânea da prática jurídica brasileira.
Incialmente, em brevíssimas palavras, a noção de princípio para Alexy (diferente
para muitos autores) envolve a caracterização de normas que podem ser ou não satisfeitas
em diferentes graus. Esta satisfação dependerá de circunstâncias da concretude do caso que
exige decisão, bem como pela colisão provável de normas que ali existirão. Por serem
razões prima facie, os princípios também se caracterizam por sua indeterminação.
Uma vez com esta indeterminação inerentes a eles, os princípios dependem de
atribuição de diferentes pesos em um mesmo caso. Abstratamente, nenhum princípio
colide com outro. Deste modo, conforme Alexy (2015, p. 93), “o que ocorre é que um os
princípios têm precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras
condições a questão de precedência pode ser resolvida de forma oposta”.
A proporcionalidade não é um princípio em si: a tradução em português de Alexy
a denomina como uma máxima (ALEXY, 2015, p. 117). De fato, apesar do nome no
idioma alemão ser Verhältnismäßigkeitsgrundsatz, que literalmente pode ser traduzido por
princípio da proporcionalidade, a proporcionalidade não é um princípio em si, no sentido
da noção de princípio na teoria de Alexy. Razão pela qual é mais adequado tratar a
proporcionalidade e suas três subdivisões como máximas, uma vez que diferentemente dos
princípios, não podem ser sopesadas.
A proporcionalidade, com suas três máximas parciais (adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito), é uma decorrência lógica da natureza dos princípios,
mandamentos de otimização na concepção de Alexy (2015, p. 117). Deste modo, a
proporcionalidade é uma estrutura lógica do raciocínio jurídico em si, mais se aproximando
aquela noção de princípio geral do direito do que destes princípios com carga axiológica. A
confusão semântica se repete neste ponto.

~ 554 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Das três máximas parciais, a adequação e a necessidade são decorrentes dos


princípios enquanto mandamentos de otimização das possiblidades fáticas. Por sua vez, a
terceira máxima parcial, a proporcionalidade em sentido estrito, decorre da natureza de
princípios enquanto mandamentos de otimização das possibilidades jurídicas.
Na atividade legiferante do Estado é possível se verificar os impactos do excesso
de regulamentação ou ainda a ausência desta regulamentação. É possível, por meio da
utilização das máximas parciais da proporcionalidade, verificar se há violação a direitos
fundamentais.
A adequação trata de verificar se há conformidade adequada entre os meios e os
fins da regulamentação, de modo a ser uma possível restrição ser proporcional à finalidade
adequada pela medida legislativa. A intervenção jurígena do Poder Público se mostrará
indevida se, na ineficácia de se otimizar um princípio, houver o empecilho na realização de
outro princípio. Os meios inadequados, deste modo, devem ser eliminados pelo crivo da
adequação.
Por sua vez, a necessidade enquanto máxima determina que entre os meios
regulamentares que sejam adequados para a realização da finalidade, deve ser escolhida a
medida menos restritiva possível. Assim, além de adequada, a restrição deve ser a menos
onerosa aos cidadãos.
A proporcionalidade em sentido estrito verifica a colisão entre uma norma direito
fundamental com caráter de princípio e um princípio antagônico. Deste modo, faz-se
necessário o sopesamento por meio da lei de colisão (ALEXY, 2015, p. 117). Assim,
quanto maior o grau em que um princípio for afetado, maior terá que ser o grau de
satisfação do outro (ALEXY, 2015, p.593). A lei de colisão, neste sentido, “reflete a
natureza dos princípios como mandamento de otimização: em primeiro lugar, a inexistência
de relação absoluta de precedência e, sem segundo lugar, sua referência a ações e situações
que não são quantificáveis” (ALEXY, 2015, p. 99).
O sopesamento, desta forma, pode ser dividido em três estágios. No primeiro,
verifica-se o grau de afetação ou de não satisfação de um dos princípios. No segundo, deve
ser feita a devida reflexão sobre a satisfação do princípio antagônico. No terceiro, é
necessária a avaliação se a afetação ou não satisfação do princípio é justificada pela
satisfação do princípio antagônico (ALEXY, 2015, p. 594).
Alexy (2015, p. 595) dá como exemplo claro de como esse crivo da
proporcionalidade é pensado para se verificar o excesso de regulamentaçãoà venda de
produtos baseados em tabaco: “dever imposto aos fabricantes de produtos derivados de

~ 555 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

tabaco de imprimir em seus produtos informações sobre os riscos do fumo para a saúde é
uma intervenção leve na liberdade profissional”. A proibição total de venda de cigarros
seria considerada séria. Entre estes dois extremos, a proibição de venda em máquinas em
certos estabelecimentos seria um exemplo de medida média (moderada).
Nesse raciocínio, é possível inferior que a máxima da proporcionalidade é
inerente ao aspecto estático de normas emitidas, como as leis, uma vez que se faz
necessária a devida razoabilidade para qualquer medida pretendida.
Uma desproporcionalidade na medida legislativa neste aspecto normativo seria, de
acordo com o exemplo proposto por Barroso (2014, p. 282), uma lei que proibisse o
cidadão de comprar e consumir bebidas alcóolicas durante o carnaval para evitar a
contaminação pelo vírus HIV. Neste caso, há uma ruptura entre o meio e o fim, uma vez
que o consumo de bebidas alcóolicas no carnaval pelos cidadãos não influência na
propagação da AIDS. Assim o fim pretendido pela lei – evitar que as pessoas se
contaminem com o HIV – não se mostra justificável o suficiente para proibir a liberdade
individual dos cidadãos de poderem consumir bebidas alcoólicas durante a época da maior
festa brasileira.
Outro exemplo de como a máxima da proporcionalidade seria afrontada: uma lei
federal que, com a finalidade de reduzir demandas por habitações e demais gastos urbanos,
proibisse migrações para as grandes cidades. Veja-se: mesmo com alguma relação fática
entre o fim pretendido e o meio (a restrição legislativa), são fatores inconstitucionais, uma
vez que haveria certeira violação à igualdade entre os cidadãos e à liberdade de locomoção.
Uma possível violação à Constituição por parte da atividade do Legislativo, ou
seja, em uma lei, coaduna-se com a restrição (ou violação) a direitos fundamentais.Tal
limitação pode ser manifestada quando não houver razoabilidade entre as restrições e os
fins da lei. A inconstitucionalidade se manifestará em inobservância à máxima da
proporcionalidade quando houver uma constatação de que outra medida menos lesiva a
direitos fundamentais pudesse ser tomada.
Ao retomar o exemplo acerca da finalidade legislativa de prevenir a contaminação
dos cidadãos pelo vírus HIV em épocas como a do carnaval, é possível pensar que uma
medida menos lesiva que a proibição do consumo de bebidas alcoólicas seria a adoção de
política pública para conscientização sexual e distribuição gratuita de preservativos, como é
a praxe do Ministério da Saúde (para tal, conferir sua Portaria de Consolidação nº 1, de 28
de setembro de 2017).

~ 556 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

O excesso que caracteriza a inconstitucionalidade é a desproporcionalidade entre a


restrição de direitos o que se pretende alcançar com norma. A principal finalidade de um
método para se aferir a proibição do excesso (Übermassverbot) é permitir a atuação dos
outros poderes para maior efetividade no controle da atividade legislativa, com o fim de se
evitar a violaçãode direitos pela via legal.
Barroso (2014, p. 282) fornece outro exemplo da inconstitucionalidade gerada
pela inobservância da máxima da proporcionalidade: a interdição das atividades em uma
fábrica que provoca danos ao meio ambiente quando for possível minimizar tais danos
com a instalação de filtros. Se era possível a medida menos danosa (a exigência de filtros), o
poder público comete um excesso de proibição ao determinar o encerramento das
atividades, gerando consequências econômicas para os donos e para os empregados.
Na prática do Supremo Tribunal Federal é possível observar a utilização da
máxima da proporcionalidade para salvaguarda de direitos fundamentais. Na ADI855
(1993) houve o questionamento da constitucionalidade da Lei Estadual nº 10.258/93 do
Paraná, que obrigava a pesagem dos cilindros e botijões de gás na frente dos consumidores.
Segundo o texto legal, para entregar gás a domicílio, os estabelecimentos deveriam portar
uma balança apropriada, além de ressarcimento ao consumidor caso houvesse diferença no
peso do conteúdo com a embalagem. O STF entendeu que houve violação à máxima da
proporcionalidade devido à demonstração do INMETRO que era impraticável a exigência
legislativa.
A proporcionalidade pode também ser violada se o Estado for omisso em garantia
a proteção suficiente (Untermassverbot). O Estado neste caso não realiza um objetivo ao qual
é obrigado constitucionalmente. Caso emblemático desta inconstitucionalidade está contido
no Recurso Extraordinário 418.376 de 2007. Nele o STF decidiu sobre a extinção de
punibilidade de um homem que engravidou a tutelada de 12 anos e que pedia o
reconhecimento de união estável com ela.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cenário prático e teórico do direito no Brasil, com exceção de vozes que se


levantam contra a banalização e vilipêndio da normatividade constitucional, é um nebuloso
umbral após 30 anos de vigência da Constituição de 1988. Em tempos de fetichismo
principista, a ressignificação do princípio como imersão moral no direito, realizada de

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Direitos Humanos & Fundamentais

forma caótica e sem o devido cuidado teórico, gera a insegurança que pode significar um
risco para a frágil estabilidade democrática brasileira.
Seriam os ditos princípios jurídicos professados pelos autores do “pós-
positivismo” brasileiro mandamentos de justiça, que estão além do direito positivo e que
devem orientar a decisão judicial? Neste sentido, seria a proporcionalidade mais um destes
princípios com carga axiológica que permeariam o direito? O que se buscou esclarecer
nestas breves palavras é que não. A proporcionalidade, apesar de comumente identificada
como princípio, se aproxima da noção de princípio geral de direito, enquanto condição de
validade do raciocínio para a produção normativa. Por tal motivo, mais apropriado é pensar
a proporcionalidade não como principio enquanto valor, mas como princípio no sentido de
máxima ou axioma. Deste modo, de forma a se evitar confusões semântica no contexto
atual no Brasil, é mais apropriado nomear tal preceito como máxima da proporcionalidade.
Lembra Streck (2014, p. 653) que os princípios, no contexto do Estado
Democrático de Direito, devem ser compreendidos conforme a hermenêutica em
detrimento da compreensão da teoria da argumentação: enquanto para esta compreende os
princípios, como o da proporcionalidade, como mandados de otimização, possibilitando
assim uma abertura interpretativa, a hermenêutica restringe a discricionariedade do
aplicador do direito. Deste modo, a proporcionalidade é um modo de explicar que cada
interpretação deve ser razoável para evitar entendimentos arbitrários que estabeleçam
sentidos além ou aquém do que é determinado pela Constituição.
A invocação retórica de princípios corre em sentido contrário à solidez
constitucional e à força normativa da Constituição. A simplificação da ordem
constitucional para retraí-la a um valor último e supremo (como dignidade da pessoa
humana) abre margem a um moralismo incompatível com o funcionamento do direito em
uma sociedade complexa. Invocar a dignidade da pessoa humana retoricamente para afastar
regras constitucionais que se mostram precisas em nome de uma pretensa justiça serve
muito mais a satisfação de interesses particulares não condizentes com o Estado
Democrático de Direito, projeto de realização constitucional desde 5 de outubro de 1988.
A panaceia principiológica leva à erosão constitucional, pois fomenta o valor
surpresa das decisões judiciais.

~ 558 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2015.

BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 4 ed. São Paulo:
Saraiva, 2014.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Almedina, 1993.

DIMOULIS, Dimitri. O Positivismo Jurídico: Introdução a uma teoria do direito e defesa do


pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006.

NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: Princípios e Regras Constitucionais. São Paulo:
Martins Fontes, 2013.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e Constituição: da Proibição de Excesso


(Übermassverbot) à Proibição de Proteção Deficiente (Untermannverbot): de como não há
blindagem contra normas penais inconstitucionais. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra,
v.80, pp. 303-345, 2004.

______. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. São Paulo: RT, 2014.

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DESAFIO NO ENFRENTAMENTO ÀS VIOLÊNCIAS CONTRA AS
MULHERES: A CONSTITUINTE DE 1988 A EFETIVAÇÃO DAS LEIS
PELOS OPERADORES DO DIREITO

Aimée Schneider*
Rosely Maria da Silva Pires**

INTRODUÇÃO

No contexto da redemocratização da vida política brasileira, as mobilizações


tiveram papel central enquanto alicerces dos debates constitucionais, servindo de palco
para a retomada, pela sociedade, de uma série de movimentos de tônica sociocultural. As
campanhas em torno de uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita são exemplos evidentes desse
estado de mobilização transformadora. As mulheres, por exemplo, além de formarem o
Movimento Feminino Pela Anistia, através do qual reivindicavam o retorno de seus filhos,
maridos e companheiros exilados ou presos, também participaram ativamente na campanha
pelas Diretas Já!311 – e ambas as frentes contribuíram para a formação de um movimento de
luta por um processo constituinte, desaguando em uma etapa inédita no Brasil.
Apesar de não ter havido eleição direta, essa reivindicação acabou por ser um
exercício de aprendizagem que impulsionou o movimento pela Constituinte-Já. Tais
episódios serviram para que as campanhas sociais vislumbrassem o seu potencial de
mobilização em torno de anseios populares, apresentando os primeiros indícios acerca de
como a presença da população na política viria a ser fundamental para os rumos do país.
Um marco na luta por direitos foi a criação, em 1985, do Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher (CNDM), órgão vinculado ao Ministério da Justiça (RODRIGUES, 2005, p. 30).

* Advogada e historiadora. Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em

Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora do Laboratório Cidade e


Poder (LCP) do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da UFF e do Instituto Nacional de
Ciência e Tecnologia História Social das Propriedades e Direitos de Acesso (Proprietas). Membro da
comissão editorial da Revista Cantareira e bolsista do CNPq.
** Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito na

Universidade Federal Fluminense – UFF. Fundadora e Pesquisadora do Programa de Extensão da


Universidade Federal do Espírito Santo – UFES Fordan: Cultura no Enfrentamento as Violências
(FORDAN/UFES).
311 Além destas mobilizações, existem tantas outras. Aqui, destacam-se algumas: o Movimento Contra a Carestia,

em que donas de casa protestavam devido o arrocho salarial e a alta inflação; Movimento Por Creches e Movimento
Estudantil, atuação das mulheres na busca por uma sociedade mais justa e igualitária (BLAY, 1983, pp. 82-83).

~ 560 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Enquanto espaço de deliberação das questões femininas, o CNDM promoveu debates e


campanhas com o intuito de auxiliar na promoção dos direitos das mulheres, garantindo
igualdade de condições no que concerne à participação na vida pública e, em última
instância, servindo de mediador entre movimentos femininos e os Constituintes.
Em novembro de 1985, o CNDM lançou a campanha Mulher e Constituinte, cujo
slogan – Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher – acenava rumo à igualdade entre
homens e mulheres perante a Lei. O objetivo era percorrer o país promovendo debates
com os movimentos de mulheres, visando elaborar propostas a serem levadas ao debate
constitucional. Tais propostas deram origem ao documento denominado Carta da Mulher
Brasileira aos Constituintes, entregue em março de 1987 pela presidenta do CNDM, Jacqueline
Pitanguy, ao Deputado Ulysses Guimarães (PMDB), quando da inauguração do Congresso
Constituinte.312
Mas afinal, qual foi a extensão e a dinâmica de tais mobilizações neste percurso?
Como compreender a relação entre as mulheres e a construção de um novo espaço
público, de maneira a tentar visualizar a dimensão que tomou este movimento? Quais as
contribuições dessas iniciativas para o fortalecimento das mulheres?
Passados 30 anos das iniciativas constituintes, os índices de violência contra a
mulher ainda são alarmantes. Considerando principalmente a atuação dos operadores do
direito na promoção de garantias e acolhimento às mulheres que sofrem violências, cabe
problematizar quais foram os avanços e quais são os desafios a serem enfrentados.

1. A VOZ DAS MULHERES NO CONTEXTO DA CONSTITUINTE DE 1987-


88

Antes mesmo de os trabalhos rumo à nova Constituição terem início,


reivindicações já eram endereçadas à Assembleia Nacional Constituinte (doravante ANC):
o Congresso Nacional vinha recebendo, desde 1986, correspondências de todo o país,
fossem individuais, fossem remetidas por entidades sociais. À guisa de exemplo, entre
março daquele ano e julho de 1987, o ente estatal, através da Comissão de Constituição e
Justiça do Senado, lançou o plano “Diga Gente e Projeto Constituição”, com o intuito de
fazer com que os cidadãos expressassem suas sugestões para a vindoura Lei Maior. Cinco
milhões de formulários foram distribuídos e disponibilizados nas agências dos Correios do

312A mencionada Carta foi o resultado da reunião de diversas mulheres em Brasília, inovando em dois
aspectos: violência doméstica e aborto. No concernente ao segundo tópico, a legalização não era mencionada;
embora a possibilidade de diálogo sobre o tema fosse deixada em aberto.

~ 561 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Brasil, que os encaminhava, sem custos, para o Senado Federal, somando um total de
72.719 respostas (BACKES; AZEVEDO, 2008, p. 73). Pesquisando-se as palavras
“gênero” e “mulher”, foram encontrados 75 e 3.825 registros, respectivamente –
demonstrando, assim, o quão presentes já eram as questões relativas a tais termos dentro
do rol de demandas da sociedade.313
Outro dispositivo fundamental para as manifestações era o de iniciativa por
emenda popular, assegurado no artigo 24 do Regimento Interno da ANC. O mecanismo
das emendas populares exerceu grande influência na organização e mobilização social,
tornando-se um canal aberto para versar sobre diversos temas: “288 entidades diferentes
apresentaram 122 emendas populares que angariaram um total de 12.277.423 assinaturas”
(BRANDÃO, 2011, p. 79). No âmbito dos direitos das mulheres, foram propostos cinco
projetos de emendas populares, quais sejam: a) Projeto de Emenda (PE) nº 016, sobre
garantias dos direitos do homem e da mulher; b) PE nº 019, sobre aposentadoria das
donas-de-casa; c) PE nº 020, voltado para os direitos e garantias da mulher; d) PE nº 023,
sobre a aposentadoria da mulher; e d) PE nº 065, sobre a saúde da mulher (aborto). Cada
proposta contou com algumas entidades responsáveis, entre elas: União das Mulheres, de
São Paulo/SP; Serviço de Informação da Mulher, de Campo Grande/MS; Rede Mulher, de
São Paulo/SP; Grupo de Saúde Nós Mulheres do Rio, do Rio de Janeiro/RJ; e Associação
de Mulheres de Cosme de Farias, de Salvador/BA.314
Em paralelo a essas formas de participação, as mulheres também se manifestavam
por outros meios, tais como o envio de sugestões por entidades sociais, audiências públicas
e cartas pessoais. Os textos escritos e os pronunciamentos orais vinham carregados de
expectativas, e a vida social se projetava neles. A escrita e a fala não eram neutras e, em
inúmeros casos, as manifestantes se referiam a situações próprias, particulares, para
exemplificar questões da órbita geral, expondo valores que, por vezes, eram compartilhados
por outros, em propostas diversas. O espaço social passou a ser utilizado na “busca de um
alargamento das experiências do mundo” (SADER, 1988, p. 206).
Importante registrar que, dentro do movimento feminino, categorias e subgrupos
reivindicavam direitos específicos. Um exemplo digno de registro é o Coletivo de Mulheres
Negras (NZINGA), que promoveu, em 1985, uma campanha para a conscientização da
comunidade negra quanto à importância de se eleger representantes dos grupos de
mulheres e negros, pois a nova “Constituição por si só não resolverá todos estes
problemas, mas, dependendo de como for feita, poderá garantir alguns de nossos direitos”.

313 Fonte: Sistema de Apoio Informático à Constituinte (SAIC).


314 Fonte: Emendas Populares encaminhadas à Assembleia Nacional Constituinte.

~ 562 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Defendia-se que, “Quando colocamos a necessidade de escolhermos nossos representantes


entre os grupos de mulheres e de negros, estamos preocupados com a maioria da
população que é mulher e é negra”.315
Uma das características marcantes do processo constitucional de 1987-88
consistiu na articulação entre inúmeros atores extraparlamentares que se valeram
principalmente de ações como caravanas/lobby, reuniões com Constituintes e encontros de
articulação dos movimentos. Durante os seus 18 meses de atividade, a ANC brasileira
ocupou o centro do cenário político, mobilizando as forças e as atenções de agentes nas
escalas políticas e populares. As participantes da campanha feminina atuaram junto aos
parlamentares, ficando o movimento conhecido na mídia como Lobby do Batom.316 Para uma
verdadeira democracia, os direitos das mulheres deveriam ser contemplados.

Imagem utilizada pela UBM que resgata o lobby do batom de 1988.


Fonte: http://bdbrasil.baderna.cc/tag/reforma-politica/

Na imagem acima, os dois batons representam os prédios verticais que compõem


o Congresso Nacional brasileiro; o prédio na lateral direita se assemelha a um vaso de
flores; e a cor rosa representaria, com suas variações de tonalidade, a presença feminina
naquele espaço. Convém sublinhar que à releitura dessa montagem não escapam reflexões
críticas, uma vez que a inclusão das mulheres em debates políticos da esfera pública ainda
se vinculava a determinadas cores e signos, indicativos de um estereótipo de gênero. Tal
constatação, no entanto, não pretende diminuir a importância da representação da época,
mas reconhecer que, atualmente, a situação pode ser lida e exposta de maneira plural,
afastando-se de visões pré-moldadas.

315 “Ainda em tempo: Sobre a Constituinte”. NZINGA, julho de 1985, nº 02, Ano I, disponível em
<http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PNZINRJ071985002.pdf > Acesso em 03 jun. 2018.
316 O termo Lobby é entendido, aqui, como uma articulação política, organizada por um grupo no intuito de

influenciar legisladores, buscando, junto a estes, o atendimento às suas necessidades.

~ 563 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A ANC de 1987-88 foi composta por 559 congressistas, com 26 Deputadas


Federais317 – e nenhuma Senadora – representando a bancada feminina (PINTO, 2003). A
despeito de este número representar somente 5% do total de parlamentares do Congresso
Nacional, a presença de 26 mulheres no Parlamento brasileiro foi um acontecimento
inédito na história política do país. Por conta de tal ineditismo, optou-se por revelar, neste
artigo, frases proferidas por mulheres durante a ANC de 1987-88 e registradas em atas,
como uma forma de convite ao leitor a encontrar-se com os seus discursos. Constitui-se,
assim, uma provocação sobre as diversas formas de se enxergar o tema enquanto algo
complexo e dinâmico em torno do qual os limites do contexto acabam sendo rompidos.
Gisélia Santana, representante da União das Mulheres, ressaltou a importância da
luta pelos direitos da mulher, entre eles: aposentadoria para a dona-de-casa, salários iguais
para trabalhos iguais, direitos trabalhistas extensivos às domésticas, igualdade de direitos
para as trabalhadoras rurais, considerar crime contra a pessoa humana a violência física ou
sexual contra a mulher, modificação do princípio patriarcal da família brasileira, entre
outros.318
A Deputada Lídice da Mata (PCdoB) trouxe aos debates um subtópico pertinente
à questão das mulheres no espaço político, qual seja, a relação entre igualdade e diferença:
“[t]oda luta de igualdade das mulheres em nosso País – neste momento, particularmente –
é de afirmação da sua diferença, da diferença que temos enquanto mulheres, mas que exige
a condição de igualdade de direitos perante a sociedade”.319 A igualdade representa, a um só
tempo, a humanidade comum a homens e mulheres e a inserção em uma universalidade
que não é neutra, pois compõe-se de aspectos masculinos (MIGUEL, 2014). É nesta esfera
de concepções que a Deputada Raquel Cândido (PDT) reivindicou a plena igualdade de
oportunidade, sustentando que as mulheres, ao invés de serem inferiorizadas, devem
ocupar lugares paralelos aos dos homens: “Somos mulheres e não admitimos a

317 Abigail Feitosa (PSB-BA), Anna Maria Rattes (PSDB-RJ), Benedita da Silva (PT-RJ), Beth Azize (PSDB-
AM), Beth Mendes (PMDB-SP), Cristina Tavares (PDT-PE), Dirce Tutu Quadros (PSDB-SP), Eunice
Michles (PFL-AM), Irma Passoni (PT-SP), Lídice da Mata (PCdoB-BA), Lúcia Braga (PFL-PB), Lúcia Vânia
(PMDB-GO), Márcia Kubitschek (PMDB-DF), Maria de Lourdes Abadia (PSDB-DF), Maria Lúcia (PMDB-
AC), Marluce Pinto (PTB-RR), Moema São Thiago (PSDB-CE), Myriam Portella (PSDB-PI), Raquel Cândido
(PDT-RO), Raquel Capieribe (PSB-AP), Rita Camata (PMDB-ES), Rita Furtado (PFL-RO), Rose de Freitas
(PSDB-ES), Sadie Hauache (PFL-AM), Sandra Cavalcanti (PFL-RJ) e Wilma Maia (PDT-RN). No início dos
trabalhos, a deputada Bete Mendes licenciou-se para assumir o cargo de Secretária de Cultura do Estado de
São Paulo. Com isso, apesar de contar com 26 deputadas na data da posse, a ANC foi composta, na verdade,
por 25 parlamentares mulheres. Fonte: Site da Câmara dos Deputados, disponível em
<http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-
cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/copy_of_index.html>. Acesso em 08 jun. de 2018.
318 Discurso pronunciado em 05 de maio de 1987 – publicado em 06 de maio de 1987, p. 48.
319 Discurso pronunciado em 7 de julho de 1988 – publicado em 8 de julho de 1988, p. 11.911.

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Direitos Humanos & Fundamentais

discriminação. Não queremos estar nem atrás nem à frente, mas lado a lado com os nossos
companheiros, para desempenharmos a nossa função”.320
Abordando o aspecto histórico, a Deputada Rita Camata (PMDB) esclareceu
acerca da sobrecarga das mulheres que, além das atividades profissionais, possuem
obrigações domésticas e familiares: as suas funções não foram repensadas mesmo após a
inserção massiva no mercado de trabalho. Assim, junto à conquista de um direito veio o
acúmulo de incumbências não reconhecidas e nem remuneradas.321 Em harmonia com tal
posicionamento, a Presidenta do CNDM, Jaqueline Pitanguy, comentou que as vozes
femininas foram silenciadas e excluídas do processo histórico de construção da liberdade.
A exclusão – memória do silêncio e da invisibilidade, conforme apontou Pitanguy – se traduziu
nas lutas pela participação na esfera pública e pelos direitos civis e sociais: “[e]ntão, nós
mulheres, trazíamos na nossa memória tanto a experiência da privação quanto a da
resistência, o que, acredito, nos fortalece muito”.322 Nesse sentido, a Constituinte de 1987-
88 é tida como um separador de águas, pois as mulheres se fizeram ouvir, logrando o
reconhecimento, para si, dos mesmos direitos e deveres destinados aos homens: “primeiro
impulso no sentido de uma maior participação da representação parlamentar feminina no
tratamento legislativo da questão feminina aconteceu com a Constituinte de 1988”
(SANTOS; BRANDÃO; AGUIAR, 2004, p. 49).

2. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER PRATICADA PELOS


OPERADORES DO DIREITO

Segundo o Atlas da Violência 2018, os assassinatos de mulheres no Brasil


aumentaram 6,4 %, nos 10 últimos anos, e os estupros denunciados chegam a 50 mil casos
anuais. Diante desses dados, questiona-se: a igualdade jurídica entre homens e mulheres foi
consagrada o suficiente para por fim à violência contra a mulher? Quais são os presentes
desafios para que se vejam efetivadas as politicas públicas com vistas à consolidação da
igualdade constitucional?
Problematizando o atendimento às violências contra a mulher, tem-se que a
primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), na cidade de São Paulo, foi criada
somente em 1985. Em 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha, que trouxe a
possibilidade do tratamento legal contra a violência doméstica e conjugal a partir da prisão

320 Discurso pronunciado em 10 de fevereiro de 1987 – publicado em 11 de fevereiro de 1987, p. 201.


321 Discurso pronunciado em 3 de agosto de 1988 – publicado em 4 de agosto de 1988 p.12.299.
322 Discurso pronunciado em 23 de abril de 1987 – publicado em 24 de abril de 1987, pp. 24-25.

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Direitos Humanos & Fundamentais

do agressor em casos de flagrante ou, ou em outra hipótese, com a detenção de teor


preventiva. Nas políticas de saúde, foi assinado em 2014, pela então Presidenta da
República, o “Protocolo de Notificação Compulsória de identificação ou suspeita de
violência contra crianças e mulheres em todos os serviços no âmbito do Sistema Único de
Saúde (SUS)” (VILLELA. ET AL, 2011, p. 115).
Foram muitos os avanços a partir da ANC de 1987-88; no entanto, as pesquisas
apresentadas abaixo apontam para dados preocupantes em relação a julgamentos morais e
condutas discriminatórias adotadas pelos operadores do direito no atendimento às
mulheres em situação de violência.
Antes desta exposição, porém, faz-se oportuno dialogar sobre a formação de
muitos dos operadores do direito. Pires (2018) analisa o romance Crime e Castigo, escrito
por Dostoiévski, e tece um perfil de seu protagonista, Rodka Raskolnikov, um estudante do
direito. Inicialmente, aborda-se o discurso do personagem sobre a existência de dois tipos
de homens, os vulgares e os extraordinários:

Segundo o jovem escritor, todos os “os legisladores e os fundadores da


humanidade, começando pelos mais antigos e continuando por Licurgo, Sólon,
Maomé, Napoleão, etc. etc., todos” aboliram e promulgaram leis que foram
sagradas por seus antepassados e toda a sociedade. Eles ainda eram criminosos
derramando sangue, pois, em defesa de velhas leis se comportavam como
sanguinários ferozes (p. 281). Embora considerados criminosos esses homens
extraordinários possuem autorização, em suas consciências, para “saltarem por
cima do sangue” e destruir o presente “em nome de qualquer coisa de melhor”
(PIRES, 2018, p. 02).

Tal pretensão de Rodka lhe conferia o direito de se julgar “Extraordinário” e,


portanto, capaz de provocar, sem crises de consciência, sofrimento ou morte aos homens
“Vulgares” – uma constatação que serve de ponto de partida, na análise da obra literária,
para que se evidenciem as permanências históricas do autoritarismo, pragmatismo e
dogmatismo jurídico. Pires problematiza a formação de bacharéis pelo Brasil e, ao dialogar
com pesquisadores como Gizlene Neder, Gisálio Cerqueira Filho, Pierre Legendre e
outros, acusa a necessidade de uma formação jurídica mais próxima à realidade social. Tal
vem ilustrado novamente através de Rodka, que, ao ter contato, no presidio, com pessoas
sem a sua mesma formação privilegiada, descobriu o quão equivocado era o julgamento
que fazia dessas mesmas pessoas. Enfatiza a autora: “Concordamos com Neder (2005) ao
afirmar que a resistência está principalmente em pensar o direito crítico junto às classes
trabalhadoras e negras deste país” (NEDER apud PIRES, 2018, p. 09).

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Direitos Humanos & Fundamentais

Cabe, ainda, comentar uma questão que se projeta a partir da leitura do trabalho
de Pires. A autora registra que o poder mitológico inerente à toga vestida pelo juiz – capaz
de transformá-lo em um homem Extraordinário. Estaria a psique humana apta a lidar com
o poder inerente à persona do operador de direito enquanto julgador?
Analisando as relações de poder nas intervenções sociais, Pires e Rodrigues (2016)
alertam para a compreensão de que a lógica perversa que opera não somente nos regimes
totalitários, mas igualmente no fundamentalismo religioso e, com maior pertinência ao
tema ora discutido, na misoginia, produzem ações que não são apenas conscientes e
formadas por conjunturas politicas, culturais, sociais e econômicas, mas são também
emoções inconscientes – e, portanto, seu controle e análise revelam um grau extra de
dificuldade. A compreensão deste aspecto vem elucidar as contradições entre a lei e a sua
efetivação por seus operadores, formados historicamente por culturas machistas e por uma
sociedade patriarcal. No caso brasileiro, projetam-se, entre normas de um passado não tão
remoto, as Ordenações Filipinas (1602), que permitiam aos homens castigar fisicamente
não somente seus filhos e escravos, mas também suas esposas (livro V, título 36), podendo
recorrer, em casos de adultério, ao cárcere privado, ou mesmo matá-las (livro V, título 29).
Neder (2005), ao pesquisar sobre os primeiros códigos criminais, argumenta que a
permanência cultural de tais posicionamentos está atrelada ao fato de que são constitutivos
de concepções e visões de mundo, tanto tomistas quanto religiosas em geral. Para a autora,

(...) a cultura jurídica é tomada como um dos aspectos constitutivos da formação


ideológica. Mais que permanência cultural, sua presença faz-se ativa nas
formações inconscientes e seu raio de ação é muito maior e desconhecido do que
imaginamos à primeira vista. Essas permanências culturais têm perambulado pelo
acontecer social, através da repetição na qual o retorno do que foi reprimido
anuncia a sua presença (obviamente que não numa forma cultural “pura”, mas
mediada pelas várias apropriações que historicamente o condicionam). (NEDER,
2005, p. 03).

A pesquisa de Laurindo e Queiroz (2014), baseada nas 465 sentenças relativas a


processos criminais decorrentes de denúncias de violência contra a mulher, proferidas entre
os anos de 2012 e 2013, apresenta dados importantes para a presente análise. Segundo os
autores, o uso de linguagem jurídica técnica indicava a ausência de percepção da
complexidade do fenômeno e das questões relativas a gênero, de modo que “a
instrumentalização do discurso jurídico impede a eficácia social e a aplicabilidade da lei” (p.
08). Constata-se, assim, a inexistência, nos discursos presentes nas decisões judiciais, de um
interesse em romper com a postura derivada do machismo dos agressores, ou mesmo de
intervir em questões de gênero: a preocupação se restringe à aplicação de penas, o que,

~ 567 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

ainda segundo os autores, define as mulheres como seres frágeis, passíveis e dependentes
da proteção do Estado, reiterando, assim, uma perspectiva misógina. Nesta esteira, dois
foram os discursos identificados nas sentenças: a concepção de “ser dominada e explorada,
necessitando da proteção do Estado; e aquele que consiste no discurso tecnicamente
neutro, sem comprometimentos e intervenções sociais firmes, em nenhum perfil
reformador” (p. 09).
Além dos juízes, outros profissionais da segurança pública tiveram suas ações
examinadas por meio de pesquisas que investigaram os procederes adotados no
atendimento à vitima de violência doméstica. Em 2009, Vilella et al (2011) problematizou a
atuação de agentes da saúde e da justiça nas ações de atendimento a mulheres vitimas de
violência. O estudo abrangeu os dois maiores hospitais, três unidades básicas de
atendimento à mulher, três delegacias comuns e duas delegacias especializadas em São
Paulo. Os dados extraídos das 21 entrevistas realizadas apontam para uma preocupante
realidade que, em que pese a escala regional da pesquisa, possuem o condão de refletir o
panorama nacional. O recorte aqui adotado abrangerá somente as questões relativas aos
profissionais da Segurança Publica.
No tocante ao acolhimento, em Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), de
denúncias realizadas por mulheres violentadas, tem-se as seguintes problemáticas: a
primeira consiste no fato de tais delegacias atenderem a uma média de 25 casos diários;
para além disso, tem-se que

As DDM estão abertas de segunda à sexta-feira das 9 h às 19h. Isso significa que,
caso a mulher seja violentada às 20 h da sexta-feira, precisa esperar até as 9 h da
segunda-feira para dar queixa, a não ser que faça a ocorrência numa delegacia
comum (p. 118)

Em relação aos Distritos Politicais (DP), muito embora qualquer policial de


plantão esteja apto a prestar atendimento a mulheres violentadas, a pesquisa indica que a
maioria opta por encaminhá-las a uma DDM; contudo, estas fecham nos fins de semana.
Segundo Laurindo e Queiroz (2014), os serviços de segurança pública não estão preparados
adequadamente para atender e acolher uma mulher que acaba de sofrer ou está em
processo de violência doméstica. A maioria crítica, além de já limitadas pelo horário de
atendimento, apresenta ambientes sem privacidade e impessoais.

O funcionamento das DDM apenas em horário comercial dificulta a denúncia por


mulheres que trabalham e impede que esse recurso seja acionado nos períodos
que concentram a maior parte dos episódios de violência, noites e finais de
semana (Mota e col., 2008). Deve-se ter em conta que a decisão de denunciar o

~ 568 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

agressor é demorada, sendo tomada quando se esgotam as demais


alternativas de solução do problema, e implica no reconhecimento da polícia
como a autoridade habilitada a proteger e reprimir um comportamento só
identificado como crime após um longo período de agressões (Prates, 2007).
O limite no horário de funcionamento pode desestimular e contribuir para
postergar ainda mais a denúncia. (grifo nosso, VILLELA. ET AL, 2011).

Observe-se, ainda, o destaque, dado pelas pesquisadoras, ao fato de que as


denúncias são feitas quando já se encontram esgotadas as possibilidades de resolução do
conflito; logo, a denunciante já se encontra em seu limite pessoal, e a forma como será
acolhida pelos profissionais pode determinar a continuidade ou não da própria denúncia.
Neste teor, é igualmente necessário refletir sobre os dados alarmantes apresentados pelas
autoras na precitada pesquisa sobre as sentenças, pertinentes à extinção da punibilidade por
desistência da vitima: dentre as 465 decisões analisadas, chega-se a um total de 118
desistências, ou seja, 25,37% das denúncias contra agressores não tiveram prosseguimento
por este motivo – além de outras 262 sentenças que, atingidas pela prescrição e totalizando
56,35% do escopo pesquisado, apontam para outro sério problema.
A própria fala dos profissionais responsáveis pelo acolhimento a vítimas de
violência em Delegacias e Distritos Policiais foi analisada, cabendo comentar algumas delas.
Primeiramente, tem-se a declaração de que “Dizem que foi estupro, mas tinham usado
droga”, onde cabe observar que “[a] concepção de que a violência é justificável se a mulher
usou alguma substância é reforçada no atendimento de mulheres que sofreram violência
sexual” (VILLELA. ET AL, 2011, p. 119). Também se asseverou que “O relacionamento
humano é muito complexo” – uma observação que, evidenciando a irritação de alguns
policiais em casos onde a vítima já sofria com atos de violência regulares ao longo de certo
período de tempo, justificaria posturas de reprimenda e abandono da denunciante,
completas com declarações como “mulher de bandido tem que aguentar a lei do bandido
até o final”. Ainda em casos de traição, muitos chegavam a defender os maridos agressores,
que teriam sido desrespeitados em sua honra, chegando a recomendar às denunciantes que
agissem com calma em confrontações domésticas, para que não tivessem novos problemas.
A pesquisa de Villela et al (2011) trouxe resultados perturbadores, principalmente
ligados a questões que envolvem relações sexuais e estupro. A conclusão do artigo aponta
para o fato de que o predomínio masculino histórico em ambientes policiais, somado ao
convívio cotidiano com a violência, poderia constituir uma provável razão para a
dessensibilização desses profissionais e operadores do direito. Tal panorama talvez explique
uma das frases mais pronunciadas de acordo com os dados: “depois de ver muito, a gente
acostuma”.

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Direitos Humanos & Fundamentais

A naturalização da violência contra a mulher – seja por descaso, cansaço,


despreparo emocional ou por herança cultural de uma sociedade construída a partir de
bases machistas, misóginas e patriarcais que alcançam, como visto, suas ordenações
normativas – é, assim, fator preponderante para a sua própria manutenção. Importa
investigar as práticas cotidianas dos serviços de segurança pública que reproduzem e
perpetuam essa violência. Tal patamar de atitudes inadequadas dos profissionais

(...) reforça a experiência emocional de vulnerabilidade nas mulheres agredidas,


criando um círculo vicioso entre violência interpessoal e violência institucional, e
impede que os serviços cumpram a sua vocação de interromper a cadeia de
produção de violência (VILLELA. ET AL, 2011, p. 120).

Embora a violência contra a mulher ocorra em todas as classes sociais, pesquisas


mostram que quando, quando a violência se alia a questões de cor e classe social, os
números são mais alarmantes. O estudo do Atlas da violência de 2018 (Ipae FBSP), usando
como dado de análise de raça/cor, aponta que a taxa de feminicídio é maior entre as
mulheres negras, perfazendo uma diferença de 71%.

(...) a taxa de homicídios é maior entre as mulheres negras (5,3) que entre as não
negras (3,1) – a diferença é de 71%. Em relação aos dez anos da série, a taxa de
homicídios para cada 100 mil mulheres negras aumentou 15,4%, enquanto que
entre as não negras houve queda de 8%. Em vinte estados, a taxa de homicídios
de mulheres negras cresceu no período compreendido entre 2006 e 2016, sendo
que em doze deles o aumento foi maior que 50%. (ATLAS DA VIOLENCIA
2018, p. 51).

Considerando fatores de vulnerabilidade como os precitados raça/cor e classe


social, tem-se que a violência institucional pode tomar dimensões ainda mais cruéis.
Almeida (2008) afirma que a violência institucional no Brasil se volta principalmente contra
os moradores dos territórios de pobreza, e Zaffaroni (2007), ao problematizar a relação
violenta entre policiais e população vulnerável, fornece uma reflexão pertinente ao escopo
geral em que situada a temática específica do presente estudo. Para o autor, o aumento da
miséria acarreta o aumento da violência; a repressão sobre a população vulnerável enseja o
que chama de “guerra entre os pobres”, ou seja, a morte entre favelados e policiais. Os
reacionários buscam estimular a destruição recíproca entre esses vulneráveis, pois deste
modo “evitam que tomem consciência da sua circunstancia social e, menos ainda, política”
(p. 130).323

323Eugenio Raúl Zaffaroni, entrevistado por Julita Lemgruber. Revista Brasileira de Segurança Pública | Ano
1 Edição 1 2007, p. 130.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Almeida (2008), fazendo uso de dados da Secretaria de Direitos Humanos do


Brasil, denuncia que os atos de violência institucional possuem uma abrangência que tem
início em uma abordagem denominada pela autora de “truculenta e desrespeitosa”.
Analisando frases como “bandido bom é bandido morto” e “direitos humanos deveriam
ser só para pessoas direitas”, a autora retoma o debate, previamente exposto, sobre o
discurso jurídico acerca do

(...) "homem sagrado", figura obscura do direito romano arcaico, era aquele que,
ao mesmo tempo não podia ser objeto de um sacrifício ritual, mas podia ser
morto. Era o que vivia em um espaço "situado originalmente à margem do
ordenamento", sua vida era "incluída no ordenamento unicamente sob a forma de
sua exclusão (ou seja, de sua matabilidade)". A relação de exceção coloca o
excluído como banido, não posto fora da lei mas simplesmente abandonado por
ela, "daí o banido", ou "bandido", que se vê impossibilitado de "distinguir a
transgressão da lei e sua execução". (ALMEIDA, 2018, p. 17)

Cabe, aqui, apontar um comentário expresso por Villela et al (2011), em cujo


estudo se conclui que os operadores do direito, sobretudo policiais, estão preparados para
lidar com criminosos, mas não com vítimas. Contudo, asseveram, se as mulheres vítimas de
violência, principalmente as de periferia, são tratadas como criminosos e os seus agressores
são vitimizados, talvez o desafio que se impõe na esfera do combate à violência misógina
seja de uma magnitude ainda não percebida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto apresenta os avanços na redemocratização da vida politica brasileira, com


o protagonismo das mulheres nas lutas por direitos historicamente negados a elas e a uma
ampla gama de grupos em situação de vulnerabilidade. A luta feminina esteve relacionada,
em um primeiro momento, a pautas como a do direito à educação, habitação e saúde, bem
como o fim do regime militar. Sua presença em espaços políticos culminou no
reconhecimento de sua força enquanto sujeitos de direitos ainda hoje parcialmente
negados; mas foram os movimentos sociais que consolidaram os espaços em que as
mulheres ganharam maior visibilidade e poder. Tanto o é que, em 2018, o CNDM realizou
reuniões itinerantes com objetivo de oferecer aos Organismos Internacionais de Politicas
para as Mulheres (OPMs) dados reais das realidades das mulheres brasileiras.
A defesa de direitos das mulheres representa uma causa ascendente em escala
internacional, a ponto de agregar colaboradores do sexo masculino. Sua progressão faz
com que o Fórum Econômico Mundial estime em cerca de cem anos o prazo para o fim da

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Direitos Humanos & Fundamentais

disparidade consolidada entre homens e mulheres. Em que pese tal fato, os desafios do
enfrentamento às violências baseada em gênero são alarmantes, de modo que conferir
visibilidade aos movimentos de oposição à cultura machista e patriarcal se revela uma
iniciativa necessária; tal equivale a combater infestações de cupins subterrâneos, em discreta
ação destrutiva dos malhetes, os martelos sentenciantes dos juízes e que, junto à balança e a
Themis – uma deusa egressa da mitologia grega –, conformam um conjunto de símbolos de
direito e justiça.
O inciso I do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
– que completa 30 anos garantindo que “mulheres e homens são iguais em direitos e obrigações”
(grifamos) – depende, para fins de sua efetivação como instrumento de conquista dos
movimentos sociais, sobretudo feminista, de ações efetivas no campo de políticas públicas.
E tal escopo é muito mais amplo do que simplesmente reinventar a abordagem da
segurança: deve-se abranger também investimentos em educação, cultura, saúde e políticas
sociais diversas. Considerando-se o reflexo deste conjunto sobre a questão da igualdade de
gêneros, o fato de o Brasil estar vivendo um momento de redução catastrófica das verbas
públicas tende a comprometer a mencionada estimativa do Fórum Econômico Social para
extinção das diferenciações de gênero.
A violência contra a mulher guarda uma complexidade muito maior do que aquela
que se faz viável neste espaço. Procedeu-se a um recorte que permitiu considerar a
produção de leis e sua implementação no campo penal; todavia, são várias as experiências
substanciais para o fortalecimento da mulher, e consequente redução desta violência, nos
campos educacional, social e cultural. A título de exemplo, Pires, Silva e Gouvea (2017)
apresentam dados importantes do Projeto de Extensão da Universidade Federal do
Espirito Santo, Fordan: Cultura no Enfrentamento à Violência. O projeto, realizado na
periferia de São Pedro, bairro de Vitória (ES), acolhe as famílias, e não apenas as mulheres,
e é feito por uma equipe multidisciplinar de profissionais das áreas de cultura, educação,
direito, assistência social, psicologia, psicanálise e fisioterapia. Um dos grandes avanços
deste projeto tem sido o fortalecimento da capacidade das famílias de reconhecer o que são
relações abusivas – uma iniciativa que contribui para a resolução de conflitos familiares em
ampla escala, problematizando a violência contra a mulher e também contra a criança
enquanto fomenta a reflexão do agressor quanto a sua postura. Embora a denúncia, pela
mulher agredida, em delegacias seja estimulada pelo projeto, o enfrentamento da cultura
machista, misógina e patriarcal e suas hierarquias de poder é centrado em rodas de

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Direitos Humanos & Fundamentais

conversa, debates e projetos potencializadores na área da cultura, abrangendo dança,


musica e arte visuais.
Encerra-se o presente estudo convidando Arendt (2012) para a reflexão final.
Questionando o fato de um julgamento ser dirigido apenas a um homem e não ao sistema em
que inserido, a autora assevera: “eu tenho esperança que o pensar dê às pessoas a força
para evitar catástrofes naqueles raros momentos em que as cartas estão todas à mostra”. 324

REFERENCIAS

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324 Trecho do filme adaptado e traduzido (TROTTA, 2012).

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30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E
INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO: DO
CASO BANESTADO AO RECONHECIMENTO DOS PODERES
IMPLÍCITOS

Lara Pastorello Panachuk*

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como escopo analisar a realização, propiciada com o


advento da Constituição de 1988, de investigação criminal pelo Ministério Público.
Inicia-se com o estudo da questão no âmbito do caso Banestado, cuja escolha
justifica-se pela repercussão social do mesmo e pelo trânsito em julgado de suas decisões.
Interessante que, 15 anos após o início das respectivas ações penais, a temática suscitada
continua a integrar a atualidade, v.g. com o projeto de novo Código de Processo Penal, que
limita a atuação investigatória do Parquet às situações em que houver inércia da autoridade
policial.
A seguir, passa-se a considerar o aspecto doutrinário, com o estudo das
divergências e dos pontos de contato, a fim de compreender, tendo como enfoque a
atuação do Ministério Público, o equilíbrio entre a eficiência e as garantias no âmbito das
investigações criminais, algo necessário para um Estado Democrático de Direito.
Após, será mencionado o entendimento do Supremo Tribunal Federal, cuja
construção, efetuada ao longo do início do século XXI pela Segunda Turma, expandiu-se,
conquistando contornos mais ambiciosos pela conotação decidida pelo Plenário no RE nº
593.727/MG.
Conclui-se que o Ministério Público tem legitimidade para realizar atos
investigatórios criminais, sendo importante destacar a cooperação com as demais
instituições, a fim de ensejar uma persecução apta a enfrentar os desafios de uma realidade
caracterizada pela criminalidade econômica.

*Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR (2017). Pós-graduação em andamento na
Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná – FEMPAR.

~ 576 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

2. O CASO BANESTADO

O caso Banestado envolveu diversas ações penais decorrentes de dezenas de


inquéritos policiais instaurados para apuração de remessas fraudulentas de numerário ao
exterior, durante a segunda metade da década de 1990, via contas CC5.Até a edição da
Circular nº 2.677/96, as contas de não-residentes (pessoas físicas e jurídicas) e as
transferências de numerário para o exterior eram disciplinadas pela Carta Circular nº 05/69,
por isso a denominação. A partir de 1992 (Resolução 2.242/92 do BACEN), profundas
alterações normativas propiciaram a descontrolada evasão de divisas, amplamente
divulgada nos meios de comunicação.
"Nos termos da denúncia, noventa e três contas correntes comuns foram abertas
principalmente em Foz do Iguaçu/PR, no Banco do Estado do Paraná S/A, titularizadas
por “laranjas”, pessoas sem capacidade financeira que realizavam expressivos depósitos
(montante de U$ 1.937.375.902,00) em contas de domiciliados no exterior (contas CC5).
Com tal estratagema, burlava-se a fiscalização do Banco Central, que não obtinha a
informação do real titular do numerário remetido."
Com a Resolução nº 20/2003, da Presidência do TRF da 4ª Região, houve a
especialização da 2ª Vara Criminal Federal de Curitiba para processo e julgamento de
crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem de dinheiro no Paraná. Assim,
apesar dos inquéritos terem sido instaurados em Foz do Iguaçu, a competência para tais
delitos já tinha sido estabelecida anteriormente pelo referido diploma normativo.
Para os fins deste artigo, apenas será mencionada a ação penal nº
2003.70000.39531-9, por constar, nos autos, decisões judiciais referentes à tese de nulidade
suscitada por algumas Defesas, sobre supostas investigações realizadas pelo Ministério
Público Federal. Por oportuno, destaca-se que a propositura desta ação penal, voltada a
apurar a atuação de membros da cúpula do Banco do Estado do Paraná S.A e do Banco
del Paraná emremessas de numerários ao exterior mediante fraude, intermediadas em contas
de laranjas, teve como objetivo, cf. sintetizado pelo Juízo (2003, p. 1938), “racionalizar a
persecução penal através de uma visão global de todo o esquema fraudulento. Até então a
persecução penal estava sendo pulverizada com a propositura de uma ação penal por conta
laranja, o que evidentemente não englobava todo o esquema criminoso. ”

~ 577 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Passa-se à compreensão sobre a investigação criminal pelo Ministério Público. O


tema foi suscitado por algumas Defesas já na primeira peça, denominada, à época, de
defesa prévia. Ao decidir a questão, o Juízo assim manifestou-se:

Alguns dos defensores (...) alegaram em suas defesas prévias a nulidade do


processo em face da realização direta pelo MPF de diligências probatórias, isto
na fase anterior à persecução penal, invocando precedentes de Turma do STF.
Ora, os referidos julgados do STF, embora controvertidos, não podem ser
invocados como meros “slogans”. Devem os defensores apontar quais
diligências específicas padeceriam de invalidade por força de tal vício, a fim de
que este Juízo possa avaliar se há ou não prejuízo da ação penal. Observa-se, por
oportuno, que o material probatório é vasto, contando com inúmeros
interrogatórios de acusados e testemunhas realizados por autoridades policiais,
laudos realizados por peritos policiais, quebras de sigilo ordenadas judicialmente,
não se vislumbrando, em princípio, qualquer comprometimento da ação ainda
que sejam acolhidos os precedentes de Turma do STF. De todo modo, concedo
aos defensores o prazo de 10 dias para indicarem especificamente quais atos
teriam sido prejudicados pelo alegado vício. ” (2003, p. 2073)

Não houve demonstração, pelas Defesas, de quais diligências, provas ou


elementos teriam sido obtidos por investigações do MPF. Porém, como a questão foi
novamente suscitada, na fase do art. 499, do CPP, com a utilização de precedentes do
Supremo Tribunal Federal, mas sem realizar os respectivos apontamentos com o caso sub
judice, o Juízo mencionou que a denúncia foi embasada em dezenas de inquéritos
conduzidos pela Polícia Federal.
Reiterou-se, agora nas alegações finais, a tese de nulidade do processo pelas
supostas investigações do Ministério Público Federal. Ao proferir sentença, o
Juízomanifestou-se indicando provas produzidas, em sua maioria, pela Polícia Federal.
Também mencionou produção probatória por órgãos e entidades não-policiais, assim
como a reiteração de teses apenas em dimensão abstrata, sem demonstração de liame com
o caso sub judice:

Vários defensores argumentaram ser inválido o processo pela prática de atos


investigatórios pelo MPF. Apesar da tentação de incorrer em tal discussão
abstrata, o fato é que, como, aliás, já destacado anteriormente por este Juízo, a
ação penal teve por base os inquéritos policiais relacionados no último parágrafo
da fl. 69 dos autos. O processo ainda tem por base laudos da lavra de peritos da
Polícia Federal, documentos e investigações produzidas pelo Banco Central,
Receita Federal, CPI do Banestado, local e nacional, não se vislumbrando com
facilidade atos investigatórios produzidos diretamente pelo MPF e cuja nulidade
poderia levar ao comprometimento da ação. Ora, não é o caso de discorrer
sobre teses abstratas sem pertinência para o caso. Cumpria aos defensores
indicar especificamente quais atos investigatórios teriam sido praticados pelo
MPF e que levariam ao comprometimento da ação. Aliás, no decorrer do feito,
este Juízo até intimou alguns dos defensores, que haviam arguido tal tese na
defesa prévia, para que prestassem tal espécie de esclarecimento (fl. 2.703, “c”).
quedando-se, porém, eles silentes. Se tal tese não tem pertinência para o caso,

~ 578 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

igualmente não tem a alegação de que os proponentes da denúncia estariam


impedidos por sua participação na fase de investigação, o que, de todo modo,
contraria o disposto na Súmula 234 do STJ. (2004, p. 5853)

Em sede recursal, o parecer do Procurador Regional da República mencionou a


sentença, no tocante ao embasamento da ação penal em inquéritos policiais e demais
provas produzidas no âmbito do Banco Central, da Receita Federal e das CPIs do
Banestado. Além dessa linha de argumentação, é interessante destacar a defesa institucional,
ao referir-se à atuação da Força-Tarefa: “o poder investigatório do Parquet decorre de sua
própria função institucional, a persecução penal. Veja-se que o inciso IX do art. 129 da
Constituição Federal autoriza o Ministério Público a exercer quaisquer funções compatíveis
com sua finalidade. ”(2005, p. 7035). Inclusive, a Procuradoria, ao colacionar os
significados de “investigar” – pois a palavra não se esgota na realização de diligências-,
comenta que “até o momento não se questionou, ainda, a possibilidade de o Ministério
Público ‘examinar com atenção, esquadrinhar’.” (2005,p. 7036).
No julgamento das apelações, o Relator Des. Élcio Pinheiro de Castro afastou a
preliminar de nulidade com o argumento de que a denúncia é fundamentada por diversos
inquéritos policiais, que foram utilizados para formar a opinio delicti ministerial. O
julgamento da 8ª turma do TRF4, com acórdão que teve redação do Des. Federal Paulo
Afonso Brum Vaz, não modificou o entendimento já exposto pelo Juízo a quo e pelo
Relator no tocante às investigações pelo MPF, conforme elucida a parte pertinente da
ementa a seguir colacionada:

PENAL. CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL.


RAZÕES DO PARQUET. INTEMPESTIVIDADE. CONHECIMENTO.
COMPETÊNCIA. VARA FEDERAL ESPECIALIZADA. VALIDADE.
MINISTÉRIO PÚBLICO. ATRIBUIÇÕES. DENÚNCIA. INÉPCIA.
NULIDADES. INOCORRÊNCIA. PROVAS. INDEFERIMENTO.
PERÍCIA. DESNECESSIDADE. SENTENÇA. FUNDAMENTAÇÃO.
PRELIMINARES REJEITADAS. QUADRILHA. ARTIGO 288 DO CP.
ELEMENTOS NORMATIVOS DO TIPO. GESTÃO FRAUDULENTA.
ART. 4º, CAPUT, DA LEI 7.492/86. GERENTE. SUJEITO ATIVO.
ARTIGO 25. PRECEDENTES. EVASÃO DE DIVISAS. CONCURSO
FORMAL.
(...)4. O fato de não poder o Ministério Público presidir diretamente o inquérito
policial (2ª Turma do STF, RHC nº 81.326-DF, relator Min. Nelson Jobim) não
quer dizer que dele dependa para a propositura da ação penal. Hipótese,
ademais, em que não se pode falar em “investigação conduzida pelo Ministério
Público Federal”, porquanto a peça acusatória veio instruída com inquéritos
instaurados e conduzidos pela autoridade policial. (2006, p. 7179)

Por último, em sede de recurso especial (apesar de diversos outros recursos


dirigidos ao próprio TRF4, como embargos de declaração, embargos infringentes e

~ 579 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

embargos de declaração em embargos infringentes, tais não versaram sobre a temática aqui
pertinente), foi suscitada a nulidade do processo, pela realização de investigações pelo
MPF.
No STJ, o feito teve o registro REsp 1.115.275PR. Em seu voto, o Relator Min.
Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ/RJ), colacionou precedentes
para indicar a orientação favorável da Corte aos poderes investigatórios do Ministério
Público, decorrentes da legitimidade constitucional de “titular exclusivo da ação penal
pública -, cabendo-lhe, para tanto, a coleta de elementos de convicção”. (2011, p. 8620).A
ementa do julgamento, na parte aqui pertinente: “PODER INVESTIGATÓRIO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGALIDADE. LEGITIMIDADE DO PARQUET EM
PROMOVER MEDIDAS ASSECURATÓRIAS. ARTS. 127 E 142 DO CP.” (2011, p.
8642).
Após, houve embargos de declaração, assim como embargos de declaração nos
embargos de declaração e EDcl nos EDcl nos EDcl no REsp 1.115275, porém tais
recursos não apresentam relevância aqui, pois não mencionaram novamente os poderes
investigatórios do MPF.
Observa-se, nos autos da ação penal nº 2003.70000.39531-9, que a tese de
nulidade das provas e do processo pela atuação investigatória do MPF foi utilizada
reiteradamente pelas Defesas. Porém, a argumentação defensiva limitou-se a colacionar
teorias que, pela abstração desprovida de elementos concretos, poderiam aparecer em
quaisquer petições de processos diversos. Assim, o Juízo da 2ª Vara Criminal Federal
afastou as alegações, pois, após a concessão de prazo para comprovação do arguido em
defesa prévia, houve ausência de cumprimento do ônus probatório: não houve sequer
menção de quais provas teriam sido produzidas pelo órgão ministerial e quais prejuízos
teriam sido supostamente decorrentes de tal atuação, apenas a repetição das abstrações, na
fase do art. 499, do CPP e, posteriormente, nas alegações finais.
A falta de concretude da referida tese foi considerada no parecer da Procuradoria
Regional da República, bem como na decisão do TRF da 4ª Região, embora, também a
questão, nesta instância, foi abordada em sua dimensão teórica, tanto pelo representante do
Parquet, quanto pelo órgão julgador, a 8ª Turma do TRF4. Já no STJ, o colegiado da 5ª
Turma do STJ reforçou o entendimento teórico acerca da legalidade das investigações
produzidas pelo Ministério Público, em consonância com o ordenamento pátrio.
Assim, após contextualizar a questão em um importante caso, para proporcionar
um melhor entendimento dos contornos fáticos que perpassam o cenário jurídico, passa-se

~ 580 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

a mencionar construção doutrinário-jurisprudencial acerca da atuação investigatória do


Ministério Público.

3. ASPECTOS DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS

Com o advento da Constituição de 1988, iniciou-se o redesenhar de todo o


ordenamento jurídico pátrio. Como a construção, norteada pelo diploma constitucional, de
um Estado Democrático de Direito é empreendimento constantemente prospectivo,
mesmo após 30 anos, continuam a surgir as mais diversas dúvidas interpretativas, inclusive
sobre a atuação investigatória do Ministério Público. Divergências jurídicas prosseguirão
por duas razões: a complexidade e a amplitude da realidade, com gama variada de
intérpretes (HÄBERLE, 1997); o caráter dirigente da Constituição de 1988, que, assim
como as cartas constitucionais europeias do pós-segunda guerra, buscou ampliar a área de
alcance para além do constitucionalismo tradicional, expandindo direitos anteriormente
elencados e inaugurando outros, nem sempre para o ser humano individualmente
considerado.
Assim, ressalta-se que há dois norteadores dos direitos fundamentais, que se
complementam no art. 5º, caput, da Constituição de 1988: de um lado, a proibição de
excesso, oriunda da matriz iluminista e do constitucionalismo tradicional, a fim de
resguardar o indivíduo contra indevidas ingerências do Estado. De outro, a vedação à
proteção insuficiente, “especialmente relevante em relação ao dever estatal de garantir a
segurança, tanto em seu sentido objetivo, de segurança exterior, ou seja, de proteção a
riscos e perigos efetivos, como no sentido subjetivo ou interno, de ausência de medo
(Freisein von Furcht) ” (BALTAZAR JR., 2009, p. 184-185).
Em um Estado Democrático de Direito, iniciado no Brasil com a Constituição de
1988, há uma constante busca por equilíbrio entre a eficiência penal e o respeito às
garantias do investigado/acusado, que “somente poderá ser resolvida ou ao menos
amenizada, por meio da identificação de uma zona de equilíbrio, não tanto de um ponto
exato de equilíbrio como uma regra matemática. ” (GOMES, 2009, p. 105).
Afinal, o Direito não é uma ciência exata e, desta forma, os princípios
constitucionais devem ser adequadamente mensurados com os elementos do caso.
Percebe-se que importante papel é desenhado a partir do princípio da proporcionalidade,
“postulado esse que irá nortear a análise adequada de cada caso concreto em que se busca
encontrar pontos de equilíbrio que conciliem a eficácia punitiva estatal e a preservação das

~ 581 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

garantias e direitos fundamentais do investigado ou acusado. ” (GOMES, 2009, p.


109).Para que a atuação seja de acordo com o espírito da Constituição, é necessário que
proibição de excesso e vedação à proteção insuficiente sejam considerados,a fim de evitar
“absolutizar algumas normas constitucionais em detrimento de outras, buscando-se a
eficiência, portanto, da Constituição como um todo” (BALTAZAR JR., 2009, p. 210).
Considera-se que a investigação criminal pensada em aspectos científicos,
jurídicos e administrativos, no tocante às decisões realizadas e à gestão de instrumentos e
pessoas (BARBOSA, 2014) tem abrangência mais ampla, compreendendo em seu interior a
investigação policial, porque a averiguação de um crime “não compete exclusivamente à
Polícia Judiciária, pois (...) o inquérito policial não é o único meio admitido para a
condução da investigação criminal, eis que a legislação brasileira é bastante clara ao não dar
exclusividade a uma única fonte de informações” (BITTAR, 2009, p. 413).
No mesmo sentido, a considerar que “diversamente do ordenamento português
(por exemplo) e à luz da Constituição Federal vigente, o que não pode é o Ministério
Público dirigir ou presidir o inquérito policial, esse sim meio de investigação (entre tantos outros
existentes) de atribuição exclusiva da polícia. ” (FISCHER, 2009, p. 62). Assim, Fischer
(2009) menciona que, a partir não só de uma interpretação sistêmica do ordenamento, mas
também complementar do diploma constitucional, é possível elucidar a diferenciação, que
propicia atividades investigatórias ao Ministério Público e a diversos outros órgãos e
entidades, v.g. a Receita Federal, o Banco do Brasil e as Comissões Parlamentares de
Inquérito. Pode-se acrescer outros exemplos de atividades de caráter investigatório v.g. no
Banco Central, na Controladoria Geral da União, no setor de fiscalização do INSS, na
notícia-crime do IBAMA (FELDENS, Luciano; SCHMIDT, Andrei Zenkner, 2007, p. 62-
63)
Considera-se que o Parquet, por ser o titular da ação penal, tem poderes
investigatórios implícitos: “ao conceder exclusividade ao Ministério Público para a
propositura da ação penal pública (art. 129, I), a Constituição Federal implicitamente
outorgou à instituição a possibilidade de investigar para respaldar a respectiva peça
acusatória. ” (MOREIRA, 2009, p. 391). Também se constata que suas atribuições não se
limitam às elencadas no art. 129, da CF/1988 (rol exemplificativo), sendo
“consubstanciado no inc. IX, este a permitir o exercício de funções outras que forem
atribuídas ao Ministério Público e que sejam compatíveis com suas finalidades”.
(MOREIRA, 2009, p. 387). Assim, a investigação é “considerada perfeitamente possível,
tanto em decorrência de dispositivos constitucionais, como também pela conclusividade

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Direitos Humanos & Fundamentais

inevitável do sistema processual adotado no Brasil. ” (MENDRONI, 2002, p. 184). No


mesmo sentido, porém com o enfoque direcionado às Leis nº 8.625/93 e Complementar nº
75/93, a tese nº 4, denominada Legalidade da Investigação Criminal pelo Ministério Público
(CANEPARO, Hilton Cortese; Gaspari, Rosângela; BUENO, Vani Antônio; 1999).
Observa-se que o Ministério Público, mesmo sendo parte processual, apresenta
imparcialidade, pois, como representante a sociedade, não tem interesse próprio contra o
acusado/investigado, mas sim deve buscar, dentro das falibilidades e limitações humanas,
as provas dos fatos. Aliás, ao considerar-se a ótica dos sistemas processuais penais,
percebe-se que “o sistema acusatório funda-se na existência de vários sujeitos processuais,
tendo eles funções distintas de acusação, defesa e julgamento, sendo certo que a função
investigativa só não pode ser atribuída ao julgador. ” (FISCHER, 2009, p. 55). Assim, “não há
nenhum óbice de que exista a coincidência e concentração na mesma figura dos poderes de
investigação e de acusação. A contrario sensu, esta circunstância de aglutinação de papéis não
importará qualquer desvirtuamento do sistema acusatório. ” (FISCHER, 2009, p. 56). No
mesmo sentido, não há óbice ao promotor atuar nas investigações e, posteriormente,
durante a ação penal, “pois o Promotor de Justiça é considerado verdadeira parte-imparcial,
tanto na atividade pré-processual como no plano do trâmite do processo criminal. Tem
funções investigativas, que, aliás, são a ele bem próprias e inerentes. ” (MENDRONI,
2002, p. 275).Aliás, a situação supra encontra-se consolidada na Súmula 234, do STJ, que
considera ausência de impedimento ou suspeição ao Parquet investigador oferecer a
respectiva denúncia.
Também há que se considerar que “é a Polícia Investigativa (Judiciária) o órgão da
persecução criminal pré-processual, por excelência, que tem as raízes da sua razão de existir
fincadas na própria investigação criminal. ” (BARBOSA, 2014, p. 64-65). O mesmo autor
(2014, p. 65) menciona que, se houvesse a retirada dos poderes investigatórios cabíveis, v.g.,
ao Legislativo, ao Judiciário e ao Ministério Público, tais instituições permaneceriam com
atribuições, ao passo que “ se se retira a Investigação Criminal da Polícia Judiciária
(Investigativa) esta perde a sua essência, seu rumo e padece por falta de atribuição. ”
Sem esvaziar as atribuições policiais, considera-se que há situações de especial
pertinência para investigação pelo Ministério Público, v.g. quando a Polícia Judiciária
“encontra-se má influenciada pelo poder local, a ponto de tal influência interferir no
desenvolvimento normal de investigações que envolvem interesses, bens ou pessoas
vinculadas com indivíduos detentores de poder político e/ou econômico” (BARBOSA,
2014, p. 65). A inamovibilidade é uma importante garantia assegurada aos membros do

~ 583 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Ministério Público, o que permite agir com maior desenvoltura, sem interferências externas,
ao passo que o máximo assegurado aos delegados, atualmentena Lei nº 12.830, é que a
remoção somente pode ser realizada por ato fundamentado. Porém, como é de praxe que
as decisões administrativas sejam fundamentadas, pode-se argumentar que “poderia a
autoridade superior, com atribuições para remover o delegado de polícia, fundamentar seu
ato na necessidade do serviço público e, mais uma vez, restaria frustrada a investigação. ”
(GRECO, 2017, p. 103)
Outra situação relevante decorre do controle externo da atividade policial, a ser
realizado pelo Ministério Público, nos termos da Constituição de 1988. Aliás, cabe
mencionar que na atuação ministerial para apurar os crimes praticados pelo “Esquadrão da
Morte” houve diligências diretas sob a direção do Procurador de Justiça Hélio Bicudo
(MAZZILI, 2012, p. 241). Atualmente,observa-se que há dificuldades em comprovar, v.g.,
corrupção e enriquecimento ilícito, pelo temor de quem delata sofrer represálias pela
cultura do silêncio interna corporis. Uma saída possível é a partir do ordenamento pátrio,“que
institui um sistema de divulgação/investigação de rendas e ativos, constitui importante
ferramenta à disposição do Ministério Público para levar a cabo um controle externo da
atividade policial eficiente, voltado ao combate da corrupção policial. ” (GUALTIERI,
2016, p. 245). A análise conjunta dos dados patrimoniais e das atividades desenvolvidas
pelo policial pode ser realizada a fim de averiguar se há maior propensão para atos
corruptos v.g. “as atividades de polícia administrativa, com alto grau de monopólio e
discricionariedade, são áreas sensíveis nesse aspecto” (GUALTIERI, 2016, p. 246). Assim,
tais procedimentos visam à eficiência e efetividade do controle externo da atividade policial,
“contribuindo de forma decisiva para o desestímulo de práticas corruptas por agentes
policiais (prevenção) bem como aquilatando as chances de que o ato corrupto (ou ao
menos o seu resultado financeiro) seja descoberto pelo Ministério Público (detecção). ”
(GUALTIERI, 2016, p. 246).
Ressalta-se a atuação dos grupos de Promotorias de Justiça conhecidos como
GAECO, existentes em vários estados brasileiros, com escopo de investigações sobre
organizações criminosas. Aliás, para além de uma simples questão de técnica jurídica, há
que se considerar que “o grande problema não foi o Ministério Público investigar, mas sim
investigar casos de repercussão nacional, que envolviam associações criminosas formadas
por pessoas que, até aquele instante, eram tidas como acima de qualquer suspeita. ”
(GRECO, 2017, p. 102). Afinal, com o redesenhar institucional propiciado pelo advento da
Constituição de 1988, que assegurou ao Ministério Público garantias similares às da

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Direitos Humanos & Fundamentais

Magistratura (vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade salarial, proibição de nomeação


de promotor ad hoc, independência funcional, etc.), iniciou-se o agir contra criminosos de
grande poder econômico e político.
Após as menções supra, comprovou-se que não há monopólio da investigação
criminal. Ressalta-se a importância da atuação interinstitucional acima de corporativismos,
v.g. para tratar com a Polícia Judiciária na investigação (CAVALCANTI, 2012).
Desta forma, ao considerar-se que “a investigação existe não para si própria, ela
funciona e serve a uma acusação formalizada em juízo” (ARAÚJO, 2013, p. 121), busca-se
a harmonia entre a atuação da Polícia Judiciária e do Ministério Público, tanto no tocante
aos poderes investigatórios, quanto no controle externo da atividade policial. Percebe-se
que não se trata de uma tarefa fácil, pois o substrato teórico é constantemente desafiado a
aperfeiçoar-se pela realidade, como bem ilustrado pelas Forças-Tarefas.
Aliás, o papel do Ministério Público, determinado pelos desígnios constitucionais,
pode ser dúplice ou mesmo multifacetado, novamente considerando-se os princípios de
proibição de excesso e de vedação à proteção insuficiente, pois “a Carta Maior lhe atribui
expressamente o dever de proteger a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e
individuais indisponíveis, impôs-lhe o ônus de, promovendo atos de investigação ou ajuizando
ação penal, respeitar os direitos dos cidadãos. ” (FISCHER, 2009, p. 63).
Atualmente, a fim de aprimorar instauração e tramitação do procedimento
investigatório criminal realizado pelo Parquet, o Conselho Nacional do Ministério Público
expediu a Resolução nº 181/2017 (alterada posteriormente pela Resolução nº 183/2018),
com o objetivo de “tornar as investigações mais céleres, eficientes, desburocratizadas,
informadas pelo princípio acusatório e respeitadoras dos direitos fundamentais do
investigado, da vítima e das prerrogativas dos advogados” (2017, p. 1), considerando
“celeridade na resolução dos casos menos graves, priorização dos recursos financeiros e
humanos do Ministério Público e do Poder Judiciário para processamento e julgamento
dos casos mais graves” (2017, p. 2). Em seu art. 1º, §1º, percebe-se o intuito de cooperação
interinstitucional, pois “não exclui a possibilidade de formalização de investigação por
outros órgãos legitimados da Administração Pública. ” (2017, p. 3). Também há hipótese
de investigação conjunta entre membros dos Ministérios Públicos dos Estados, da União e
de outros países, algo necessário para a época presente, em que a criminalidade econômica,
diversas vezes, apresenta ramificações interestaduais e transnacionais.
Quanto às disposições finais da Resolução supra, é pertinente mencionar que, nos
procedimentos investigatórios por ela regulados, de acordo com o art. 21, “serão

~ 585 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

observados os direitos e garantias consagrados na Constituição da República Federativa do


Brasil, bem como as prerrogativas funcionais do investigado, aplicando-se, no que couber,
as normas do Código de Processo Penal e a legislação especial pertinente. ” (2017, p. 19-
20).
Assim, enfatizou-se, com os aspectos doutrinários, a atuação do Ministério
Público, em consonância com as atribuições constitucionais e utilizando os meios
pertinentes, como os poderes investigatórios implícitos, a ser realizada buscando o ponto
de equilíbrio, no caso sub judice, entre a eficiência estatal e os direitos do investigado.A
seguir, passa-se às considerações jurisprudenciais.
Antes de iniciar a análise do leading case, é oportuno mencionar quea teoria dos
poderes implícitos foi desenvolvida pela Suprema Corte dos Estados Unidos no célebre
McCulloch v. Maryland, 17 US (4 Wheat.) 316, 4 L.Ed. 579 (1819), com síntese pelo Chief
Justice Marshall: “Seja o fim legítimo, esteja ele dentro do escopo da Constituição, e todos os
meios que não forem proibidos, mas forem consoantes à letra e ao espírito da Constituição
serão constitucionais. ” (SWISHER, 1964, p. 31).
Ressalta-se que a ciência jurídica apresenta grande complexidade por ser
constantemente construída, em um caminho de vicissitudes e incertezas. Nota-se que no
Supremo Tribunal Federal do início do século XXI, alguns ministros já iniciavam a
utilização da teoria dos poderes implícitos, como na ementa seguinte, cuja parte pertinente
transcrita admite a possibilidade de investigação pelo Ministério Público:“quando a
Constituição Federal concede os fins, dá os meios. Se a atividade fim – promoção da ação
penal pública – foi outorgada ao parquet em foro de privatividade, não se concebe como
não lhe oportunizar a colheita de prova para tanto” (STF. HC 91.661-9/PE, Rel. Min.
Ellen Gracie, Segunda Turma, j. 10/03/2009).
O leading case é um recurso extraordinário interposto contra acórdão do TJ/MG,
com o pleito de anulação da ação penal nº 1.0000.06.444038-1/000. No caso, houve
denúncia, pelo Ministério Público, embasada em procedimento investigativo cuja conclusão
foi que, durante o exercício do cargo de Prefeito Municipal de Ipanema, gestões de
2001/2004 e 2005/2008, Jairo de Souza Coelho teria, em tese, praticado o crime previsto
no art. 1º, inciso XIV, do Decreto-lei nº 201/67. O recorrente alegou que as investigações
realizadas pelo Parquet configuraram violação aos arts. 5º, incs. LIV e LV, 129, incs. III e
VIII, e 144, inc. IV, § 4°, da Constituição Federal.
Em que pese o resultado do julgamento não ter sido unânime, com minoria a
sustentar a impossibilidade da investigação pelo Parquet ou um agir restrito a um rol

~ 586 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

taxativo a ser estabelecido, a decisão foi pelo reconhecimento da legitimidade da atuação do


Ministério Público, em consonância com os poderes implicitamente inscritos na
Constituição.
Como há fundamentos jurídicos interessantes nos votos pela legitimação do
Ministério Público, é oportuno mencionar os mais relevantes, a seguir.
O Min. Ayres Britto, em seu voto, expôs que o inquérito policial é uma espécie do
gênero investigação criminal, e observou que, ao ampliar “o espectro das instâncias
habilitadas a investigar criminalmente, é que o Ministério Público serve melhor à sua
finalidade constitucional de defender a ordem jurídica - defender a ordem jurídica, cabeça
do artigo 127 -, inclusive e sobretudo em matéria criminal. ”(STF. RE 593.727/MG, Rel. p/
ac. Min. Gilmar Mendes, Plenário, j. 14/05/2015. p. 158).
No voto do Min. Luiz Fux, houve cuidadosa compreensão histórica. Ao
estabelecer garantias aos membros do Ministério Público, a Constituição de 1988 protegeu
o agir ministerial – e, por conseguinte, toda a sociedade -, a fim de que sua atuação pudesse
ser realizada sem pressões ou represálias. Situação diferente encontrava-se à época do
Código de Processo Penal de 1941, sob a égide constitucional de 1937, em que apenas dois
modelos de investigação preliminar eram conhecidos: o inquérito policial e o juizado de
instrução. Assim, o Min. considerou que se depreende da Carta de 1988 que o Parquet é
“responsável pelo oferecimento da denúncia, e, por isso mesmo, aquele cuja opinio delicti
deve ser formada no curso das investigações preliminares, não há motivo racional para
alijá-lo da condução dos trabalhos que precedem o exercício da ação penal de que é titular.
” (STF. RE 593.727/MG. Rel. p/ ac. Min. Gilmar Mendes, Plenário, j. 14/05/2015. p. 174-
175).
Assim, percebe-se, a partir das atribuições do Ministério Público da
atualidade,modelo oriundo caracteristicamente de países da Europa Continental,
recepcionado e aprimorado no Brasil pela Constituição de 1988, que não é apenas possível,
mas também necessário o agir investigatório ministerial. É relevante perscrutar quão grave
seria um retrocesso trazido, v.g., por um novo Código de Processo Penal que limitasse a
atuação do Parquet apenas a casos de comprovada inércia policial, acarretando retrocesso ao
pretendido com o advento da ordem constitucional pós-88.
Em seu voto, a Min. Rosa Weber considerou que o art. 144 da CF não estabelece
um monopólio da investigação criminal pela polícia, mas sim distribui atribuições a esta,
sendo que há procedimentos realizados por outros órgãos ou entidades, como a Receita
Federal e o Banco Central que não são expressamente tratados na Constituição.

~ 587 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

A Min. Weber mencionou que até a parte privada pode proceder a investigações
próprias, quanto mais o Parquet, que detém especial condição de parte-imparcial: “Como
órgão público deve agir com obediência à lei e à Constituição, não estando livre para
perseguir interesses particulares. A realização pela instituição do Ministério Público de atos
investigatórios não coloca em risco o devido processo legal. ” (STF. RE 593.727/MG. Rel.
p/ ac. Min. Gilmar Mendes, Plenário, j. 14/05/2015. p. 235).
Nesse sentido, a fundamentação do agir ministerial pela Ministra Weber passa à
teoria dos poderes implícitos, considerando que “incoerente seria interpretar o texto
constitucional como a vedar o emprego dos meios necessários à execução dos poderes
atribuídos pela própria Constituição. ”(STF. RE 593.727/MG. Rel. p/ ac. Min. Gilmar
Mendes, Plenário, j. 14/05/2015. p. 238). Assim, a Ministra realiza profunda explanação
sobre a referida doutrina, sendo mencionado a seguirtrecho pertinente do voto:

A Constituição brasileira atribui ao Ministério Público a responsabilidade pela


persecução penal (art. 129, I, da Constituição Federal). Não lhe atribuiu
expressamente poderes de investigação, é certo. Entretanto, na esteira do
argumento de Marshall, a Constituição não é um corpo de normas fechado, a se
interpretar no sentido de que teria esgotado toda regulação normativa das
relações entre sociedade e Estado. Se cabe ao Ministério Público a persecução
penal, pode ser pontualmente necessária a realização, por via direta, de atos
investigatórios. Parafraseando Marshall, desarrazoado argumentar que seria do
interesse da Nação “barrar e embaraçar sua execução proibindo os meios mais
apropriados”, tornando o Ministério Público refém da atividade investigatória
realizada por outras instituições. Não me parece, data venia, adequado o
argumento de que a chamada doutrina dos poderes implícitos, por só ter
pertinência quando omissa a Constituição, seria inaplicável na espécie, uma vez
atribuído o poder de investigação, pelo texto constitucional, a outra instituição.
E isso por partir da premissa, data venia, equivocada de que a atribuição do poder
de investigar à Polícia teria sido feita em caráter exclusivo pela Constituição, o
que não é correto. Por outro lado, desconsidera a história subjacente a McCulloch
v.Maryland, que envolvia disputa de poder entre o Governo Federal e os estados
federados, não se limitando, portanto, a apenas suprir uma omissão. Tenho, pois,
por plenamente aplicável, no equacionamento do tema em exame, a doutrina
dos poderes implícitos. Assim, se a Constituição atribuiu ao Ministério Público a
persecução penal, implicitamente lhe conferiu os meios para desempenhá-la a
contento, o que inclui a colheita de elementos informativos necessários à
configuração da justa causa para a ação penal. Não comporta, a meu juízo,
dúvida a pontual necessidade de investigação direta pelo Ministério
Público.(STF. RE 593.727/MG. Rel. p/ ac. Min. Gilmar Mendes, Plenário, j.
14/05/2015. p. 239-240)

Assim como em outros votos (Min. Luiz Fux, Min. Gilmar Mendes, Min. Celso de
Mello, Min. Ayres Britto e Min. Cármen Lúcia), a cooperação entre as instituições
foiressaltada pela Ministra Weber:

Sublinho que reconhecer o poder de investigação do Ministério Público em


nada afeta as atribuições da Polícia Judiciária e não representa qualquer

~ 588 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

diminuição do papel relevantíssimo por ela exercido. Em realidade, as melhores


investigações decorrem da atuação conjunta do Ministério Público com a
Polícia, um contribuindo de forma relevante para a atividade do outro. Essa
constatação, pertinente ao domínio da conveniência e oportunidade, de qualquer
forma não justificaria a invalidação da prática de atos investigatórios pelo
Ministério, menos ainda a vedação de forma genérica tal espécie de atividade.
(STF. RE 593.727/MG. Rel. p/ ac. Min. Gilmar Mendes, Plenário, j.
14/05/2015. p. 244-245)

Apesar da menção recorrente, nos votos dos ministros favoráveis à atuação


investigatória ministerial, à importância da cooperação interinstitucional, o senhor Wladimir
Sérgio Reale, advogado da ADEPOL, considerou a possibilidade de “choques
intermináveis” entre as Polícias e os membros do Ministério Público. A fim de tentar
dirimir os receios, o Procurador-Geral da República Rodrigo Janot manifestou-se pela
cooperação entre as instituições.
Após sugestões do Plenário, foi fixada a seguinte tese de repercussão geral com o
reconhecimento dos poderes investigatórios do Ministério Público (transcrição apenas da
parte pertinente):

4. Questão constitucional com repercussão geral. Poderes de investigação do


Ministério Público. Os artigos 5º, incisos LIV e LV, 129, incisos III e VIII, e
144, inciso IV, § 4º, da Constituição Federal, não tornam a investigação criminal
exclusividade da polícia, nem afastam os poderes de investigação do Ministério
Público. Fixada, em repercussão geral, tese assim sumulada: “O Ministério
Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por
prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os
direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob
investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de
reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de
que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º,
notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da
possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do
permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados
(Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição”. Maioria.
5. Caso concreto. Crime de responsabilidade de prefeito. Deixar de cumprir
ordem judicial (art. 1º, inciso XIV, do Decreto-Lei nº 201/67). Procedimento
instaurado pelo Ministério Público a partir de documentos oriundos de autos de
processo judicial e de precatório, para colher informações do próprio suspeito,
eventualmente hábeis a justificar e legitimar o fato imputado. (STF. RE
593.727/MG. Rel. p/ ac. Min. Gilmar Mendes, Plenário, j. 14/05/2015. p. 1-2)

No presente tópico, foram mencionados fundamentos doutrinários e


jurisprudenciais que culminaram no reconhecimento da atuação investigatória ministerial
principalmente com base na teoria dos poderes implícitos, a fim de proporcionar ao Parquet
o cumprimento de suas atribuições constitucionais, como na formação da opinio delicti e no
controle externo da atividade policial. Observou-se que o Ministério Público deve ter
legitimidade e limites de agir norteados pelos princípios de proibição de excesso e de

~ 589 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

vedação à proteção insuficiente, a fim de possibilitar a efetivação do espírito da


Constituição de 1988. E ressaltou-se a importância da cooperação interinstitucional, para
que, acima de corporativismos, esteja a realização dos preceitos constitucionais.

4. CONCLUSÃO

Ao longo deste artigo, foram trazidas várias perspectivas sobre a investigação


criminal realizada pelo Ministério Público: a análise do tema no caso Banestado, após, os
aspectos doutrinários e normativos e, finalmente, a consolidação jurisprudencial, pelo
Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 593.727.
Percebeu-se que a tese de nulidade de investigação pelo Ministério Público foi
utilizada, no âmbito do caso Banestado, de modo meramente abstrato, sem referências
sequer a quais provas teriam sido produzidas pelo Parquet e quais os prejuízos teriam sido
causados pelas mesmas. Tal argumentação também olvidou que parte do material
probatório tinha advindo de outros órgãos ou entidades, como a Receita Federal e o Banco
Central (haveria nulidade por não terem sido realizados pela autoridade policial?).
Frisou-se que a atuação do Parquetemana da própria Constituição, sendo a
investigação criminal um meio decorrente de poder implícito para atingir as finalidades
almejadas pelo constituinte de 88, tais como a formação da opinio delicti e o controle externo
da atividade policial. Assim, o agir do Ministério Público pode ser considerado em sua
dúplice forma, a partir de dois princípios que envolvem os direitos fundamentais: a
proibição de excesso e a vedação à proteção insuficiente.
Considerou-se que a investigação criminal comporta a atuação de diversos órgãos
e entidades, sendo o inquérito policial, presidido pela Polícia Judiciária, uma das
modalidades existentes. Obviamente, não se trata de esvaziar as atribuições da autoridade
policial, mas sim de somar esforços em um contexto complexo, de criminalidade
econômica extremamente hierarquizada, com segmentações e desdobramentos
interestaduais e transnacionais.
Obviamente, para a adequada persecução criminal, é necessário que haja
cooperação interinstitucional, com o agir harmônico acima de corporativismos de qualquer
espécie, pois o interesse público deve prevalecer na atuação estatal, no sentido de efetivar o
espírito da Constituição de 1988.
Conclui-se que a realidade atual é extremamente dinâmica, sendo que a feitura de
diplomas normativos deve compreender o contexto em que se insere, não sendo possível o

~ 590 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

retrocesso para uma época pretérita onde o Ministério Público não podia investigar.
Salienta-se que a atuação legislativa tem como base e limite a própria Constituição e, como
anteriormente mencionado, a mesma concede, implicitamente, poderes investigatórios ao
Parquet.

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HIPERCONSUMO REVELADOR DA INEFICÁCIA
CONSTITUCIONAL

Leonardo José de Araújo Prado Ribeiro*

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho, parcela de obra coletiva em comemoração aos trinta anos da


promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, apresenta a vertente
constitucional do direito do consumidor. Entretanto, essa apresentação não se dá no plano
puramente técnico do direito, tampouco no plano puramente teórico, senão na visão
jurídico-constitucional através da realidade da sociedade brasileira. O viés é, portanto,
sociológico, tentando verificar as expectativas da constituição – e, com isso, do Estado
brasileiro – para o consumo brasileiro, bem como apresentar o encontro dessas esperanças
com as consequências reais do consumo na sociedade.
O ponto de partida, portanto, é apresentar a constitucionalização do consumo,
das relações de consumo e da proteção ao consumidor. Nessa seção, a elevação do
consumidor ao nível constitucional é apresentada com uma parte histórica, mas, sobretudo,
com uma tripartição dentro da própria inserção constitucional: a elaboração do código de
defesa, a inserção do consumo na ordem econômica, a proteção constitucional do
consumidor.
Segue-se pela apresentação do hiperconsumidor e do hiperconsumo, ambos com
base na teoria de Gilles Lipovetsky. Há, porém, uma adaptação da teoria para o Brasil, com
a construção do hiperconsumo de catástrofe. Demonstra-se, também, que houve uma
grande distinção do consumo brasileiro desde a virada do século – com ampliação daquele
–, mas que, ao mesmo tempo, ocorreu uma dependência econômico-social deste consumo.
Ao final, antes de apresentar a devida conclusão, o trabalho preocupa-se em
parear os desejos do Estado brasileiro (expressos na sua Constituição) com a realidade
atualmente apresentada – fruto de movimentos econômicos globais, mas também de

* Mestre em Direito Político e Econômico. Graduado em Direito.

~ 594 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

políticas de governo. É necessário questionar se há coesão entre o que se esperou e o que


se apresenta, bem como verificar a existência de mecanismos que vedassem ou
incentivassem as consequências das políticas de governo.
Utilizou-se de pesquisa bibliográfica como metodologia principal a dar sustendo à
investigação. Porém, colateralmente, fez-se uso de pesquisas socioeconômicas
(populacionais-demográficas e de consumo). A unificação destas pesquisas – para a
literatura do direito do consumidor no Brasil com viés constitucional –torna-se
imprescindível para a construção das visões sociológicas e econômicas do consumo
contemporâneo.

2. ELEVAÇÃO DO CONSUMIDOR NO ORDENAMENTO JURÍDICO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB) trouxe ao


ordenamento jurídico interno um instituto novo até então: o consumidor como um ente
detentor de direitos a seremespecificamente tutelados. Certamente, o consumo por si só –
isto é, como fenômeno sociológico oueconômico – não era qualquer novidade a ser trazida
para o Brasil, tendo em vista que ele é imprescindível tanto para a existência de uma
economia (independentemente de modelo econômico), quanto para a sobrevivência e
existência de indivíduos e desociedades(por simples ou complexas que sejam). Todavia, a
novidade ao inserir o consumo como fenômeno jurídico próprio– isto é, dar significância
singular ao consumo dentro do mundo jurídico – foi justamente a possibilidade de regular
o consumo para além do seu âmbito puramente econômico, garantindo que não houvesse
exageros e abusos por parte dos fornecedores de produtos ou serviços.
Anteriormente à tal inovação – e, na prática, por certo tempo após a promulgação
da CRFB --,a tutela jurídica do consumo advinha unicamente do direito civil, sendo os
conflitos entre consumidores e fornecedores questionados, analisados e resolvidos pelo
direito como se fossem conflitos meramente negociais.Como afirmado, o que se inseriu no
ordenamento jurídico a partir da CRFB foi a tutela do direito do consumidor, vez que a
normatização do consumo se dava conforme a tutela do direito civil (ou direito negocial).
Todavia, em 1988, três normas constitucionais foram alcunhadas, se não com o intuito,
com a capacidade de alterar o cenário previamente estabelecido.Tal cenário – com o
consumo tutelado daquelaforma – era da existência (ainda que não de fato) de uma relação
de igualdadeentre consumidores e fornecedores. ACRFB buscou tornar essa relação

~ 595 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

verdadeiramente igualitária, ao prever tratamento desigual às partes, no sentido de proteger


o mais fraco – previu-se, assim, a existência de umdireito do consumidor.
As referidas normas constitucionais são (a) a constitucionalização da defesa do
consumidor pelo Estado, como direito fundamental (no rol dos incisos do artigo quinto),
(b) a inserção da defesa do consumidor na ordem econômica constitucional e (c) a previsão
da elaboração de um código de defesa do consumidor, no ato das disposições
constitucionais transitórias.Evidente é o que se intentou garantir através desses dispositivos
constitucionais: a defesa do consumidor (ou seja, sua proteção). Com isso, o consumidor
deixa de ser tratado apenas ocasionalmente pelo direito – através de decisões judiciais com
a maioria dos efeitos inter partes – e passa a fazer parte do planejamento do Estado
brasileiro, em todos os seus âmbitos.
O código,cuja elaboração foi constitucionalmente prevista,deveria ter sido
finalizado em até cento e vinte dias da promulgação da constituição – portanto, no mês de
fevereiro de 1989. Contudo a legislação vigente até hoje foi somente publicada emsetembro
de 1990 (através da lei de número 8.078). Essa demora ocorreu apesar de a discussão sobre
uma legislação própria ao consumo existir desde antes mesmo da promulgação da
Constituição. Em texto de 1986, Fábio Konder Comparato já apresentava uma discussão
acerca a viabilidade de se regular o consumo. Em tal discussão, duas vertentes bastante
distintas (verdadeiramente opostas) se colocavam à frente como possibilidades de
estruturação do consumo: uma vertente mercadológica (com base em teorias econômicas
liberais), que acreditava que o mercado deveria regular as relações de consumo sem
intervenção do Estado; uma outra vertente que acreditava que o Estado (através do direito)
deveria regular tais relações. A distinção seria, então, entre o direito regular ou não a relação
de consumo; desta forma, como afirma Comparato (2011, p. 186), "o sentido tutelar o
direito, nesse campo, se dirige ao economicamente fraco".
Por óbvio, ao se discutir o tema a partir da constitucionalização da proteção ao
consumidor, tem-se por elegida pelo ordenamento jurídico brasileiro a vertente que preza
pela a regulação do consumo através do Estado. Conforme afirma Marcelo Sodré (2009,
p. 30-31),

[…] se o mercado por si só não protege os consumidores e existem valores a


serem respeitados, a conclusão é única: é preciso que o Estado se posicione ao
lado do setor social mais enfraquecido no sentido de recompor o equilíbrio
social. […] |Ao tratar com igualdade partes tão desiguais como consumidores e
fornecedores, o direito civil toma partido do mais forte na relação cotidiana. O
direito do consumidor é o direito dos desiguais, e por isso ele supera o direito
civil.

~ 596 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Aprofundando-se nessa vertente, encontram-se outras duas possibilidades: legislar


detalhadamente previsões de situações em que o consumidor poderia vir a se encontrar
(ainda que em mais de uma legislação ou normatização); ou legislar de forma abrangente,
por princípios, prevendo poucas situações reais, mas que a interpretação pudesse adequar a
lei a cada caso específico. Sobre isso, afirma-se que

[…]duas orientações se manifestam, no direito comparado. Existe, de um lado,


toda uma série de sistemas jurídicos em que a lei fixa, de modo taxativo
disposições de ordem pública regendo os contratos em série, nos quais uma das
partes é um empresário e a outra um consumidor privado. De outro lado há
sistemas de direito em que a lei se limita a editar o princípio da vedação das
cláusulas contratuais não-equitativas, deixando à Justiça ou à própria
Administração Pública o encargo de declarar, em cada caso, se está ou não
diante de uma cláusula desse tipo. (COMPARATO, 2011, p. 188)

Ainda que essa discussão fosse necessária no Brasil no início da década de 1980,
em outras localidades já se tornava um assunto consolidado. Em alguns países – de
industrialização anterior à brasileira –, os consumidores tiveram vitórias na proteção dos
seus direitos durante a década de 1960. Tendo foco nesses países cujas economias são
centrais para o capitalismo (países centrais), em uma divisão básica e didática da evolução
do consumo, é possível apontar o aprimoramento das marcas (ainda com acesso
extremamente restritoaos seus produtos) a partir do final do século XIX, e a existência de
uma verdadeira sociedade de consumo somente após o pós-Guerra (na passagem da década
de 1940 para a de 1950). A partir deste momento, com número maior de consumidores e
uma produção massificada e padronizada, surgem conflitos maiores e mais frequentes entre
consumidores e fornecedores325.Todavia, já em 1936 estava a ser fundada a primeira
organização formal de consumidores – a Consumers Union, nos Estados Unidos (EEUU),

325 Importa ressaltar quais relações sociais que fazem surgir esses conflitos. Como afirma Marcelo Sodré
(2009, p. 12), "[d]a relação trabalho-capital nasceu o direito do trabalho. Da relação produção-consumo está
nascendo o direito do consumidor. Mas semelhança não é igualdade: o primeiro surge no fim do século XIX;
o segundo em meados do século XX e ainda está em construção. Além disso, como já afirmado, os
consumidores não formam uma classe social. Só isto já aponta diferenças significativas.". Na clássica
apresentação de Mercadoria (M) e Dinheiro (D) na fórmula M-D-M, a relação capital-trabalho foca-se no
primeiro binômio (M-D), onde o trabalhador que somente possui sua força de trabalho a vende como
mercadoria (M) para obter o salário (D); entretanto, mantendo-se a mesma formulação e focando no último
binômio (D-M), têm-se as relações de consumo, onde o que se troca é um valor em dinheiro (D) por um
produto ou serviço (M). Nota-se, então, que a relação de consumo independe de classe, pois tanto o
trabalhador quanto o proprietário da mercadoria poderão estar no polo consumidor da relação (RIBEIRO,
2018, p. 124). Ao mesmo tempo, essa mesma relação (consumo) distorce outras realidades sociais, como a
ideia de que o acesso a ou consumo de determinados itens gera qualquer igualdade entre indivíduos de
diferentes classes; da mesma forma, essa inexistência de classe comum entre os consumidores faz com que os
próprios consumidores percebam-se carentes de verdadeira organização coesa contra a exploração dos
fornecedores, havendo apenas o rechaço ao abuso por estes perpetrados. Essa ausência de visão dos
consumidores como entes políticosfaz com que haja pouca pressão em favor de alterações nos sistemas de
preços de produtos ou serviços, proteção ambiental ou sustentabilidade, quebra de patentes de fármacos,
entre muitos outros exemplos possíveis.

~ 597 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

muito por conta de serem, então, a vanguarda da inovação mercadológica.A partir da


década de 1950, passam a existir organizações semelhantes em países da Europa (como
Inglaterra, Bélgica, Holanda, França, Noruega e Alemanha Ocidental, com maiores
destaques). A partir de tais experiências – e com exigências semelhantes – organiza-se, em
abril de 1960, a Primeira Conferência Internacional a respeito de Testes de Produtos (em
Haia, na Holanda). Desta organização, originou-se a InternationalOrganizationofConsumers
Union(IOCU), com associações dos EEUU, de Londres, de Haia da Bélgica e da Austrália.
(SODRÉ, 2009, p. 16-24)
A partir dessas organizações, passou-se a pensar na proteção dos consumidores
como um direito a ser implementado – cada cultura a seu modo. As legislações passam a
surgir nas décadas de 1960 e 1970, nos países centrais à época. Entretanto, conforme
exposto, surgem sob duas formas de legislar: específica e prevendo cada uma das situações
(de modo a não deixar dúvidas); e abrangente, por princípios, na forma de uma regra geral
que será interpretada pelos tribunais. Sodré (2009, p. 37-46) explica que tal dualidade, em
termos amplos, dava-se pela possibilidade da constituição de um código em tom genérico,
uma lei geral como ocorreu na Espanha, em Portugal e, de certo modo, na França, ou em
leis esparsas que tratariam de diversos temas específicos das relações de consumo, como na
maioria dos países. Isso significa concentrar princípios ou dispersá-los.
O Brasil manteve-se em uma das posições dentro dessa dualidade, optando por
um código amplo – na forma de lei geral –, a ser interpretado pelos tribunais. Sua
elaboração pós-constituição não é surpresa. Ao contrário dos países centrais, os países
periféricos – mormente, os pertencentes à América Latina – tiveram suas legislações
elaboradas principalmente nas décadas de 1980 e 1990 (SODRÉ, 2009, p. 45), muito por
conta do atraso industrial e tecnológico existentes no período anterior, bem como da ampla
desigualdade social característica (nunca alterada) da região. Essas características
inviabilizaram a ocorrência de uma sociedade de consumo nos moldes europeus e
estadunidense, o que impediu a existência de um verdadeiro conflito social – a ser regulado
pelo direito. Como afirma Celso Furtado (2002, p 20), a disparidade entre o consumo das
classes mais abastadas e das classes menos abastadas sempre foi tanta que – ainda à época
do nascimento do direito do consumidor no Brasile da promulgação da Constituição –até
mesmo a ideia de redistribuição de rendafoi questionada no país, pensando que as classes
menos abastadas criariam um consumo de bens em tamanha proporção que a taxa de
poupança seria irrisória no país.

~ 598 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Relaciona-se, assim, diretamente, amacroeconomia do Estado com o consumo de


seu povo (ou habitantes).Independentemente do modelo econômico que se siga, é
impreterível que haja um mínimo de consumo para produção de riqueza (a ser distribuída
ou acumulada, em exemplos distintos). Tal produção pode, até mesmo, ser intelectual ou
intangível – principalmente, em se tratando de inovação e tecnologia disruptiva para o
século XXI; contudo, nenhuma produção gerará riqueza(ou qualquer tipo de mudança)
sem que seja consumida (pelo contrário, haverá um custo que, sem o consumo, retornará
um prejuízo). Compreendendo tal conceito básico, de maneira inovadora – para os
parâmetros brasileiros –, a CRFB incluiu a proteção ao consumidor dentre os princípios da
ordem econômica do Estado brasileiro.
A inserção da defesa do consumidor na ordem econômica constitucional é algo
que não se deve banalizar – tal como os demais princípios. Tais princípios – dispostos nos
incisos do artigo 170 da CRFB – tem por condão guiar a política econômica do Estado
brasileiro e afetar, consequentemente, sua economia. Os princípios apresentados no
dispositivo constitucional mencionado (a saber, soberania nacional, propriedade privada,
função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio
ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego e auxílio
às empresas de pequeno porte) não são hierarquicamente distintos entre si, tampouco são
independentes. Eles devem observar, sobretudo, o que dispõe o caput de tal dispositivo,
tendo em vista que é este que expõe os objetivos do Estado brasileiro com sua ordem
econômica: "A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social". Portanto, não há como cogitar a inserção da defesa do consumidor na ordem
econômica constitucional, senão considerando como seus objetivos "assegurar a todos
existência digna" e prover "justiça social".
Destarte, conforme afirma Eros Grau (2015, p. 248), ter a defesa do consumidor
inserida nessa seara constitucional-econômica produz efeito sobre todo o exercício da
atividade econômica, principalmente no contextual atual do capitalismo – no qual se
avançou a sociedade de consumo, estando muito longe de superá-la. O dever do Estado
com a organização econômica de seu povo faz com que a defesa do consumidor não seja
apenas uma matéria de ordem pública, mas que haja a devida atuação estatal para
implementação específica de medidas de caráter interventivo, além da normatividade
concernente ao tema (GRAU, 2015, p. 249). Eros Grau (ibidem) ainda ressalta qual seria a
necessidade dessa proteção: a existência de uma forma assimétrica (natural aos mercados),

~ 599 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

na qual o consumidor se encontra em uma posição de debilidade, ou subordinação


estrutural, em relação ao fornecedor (produtor do bem ou serviço de consumo, ou quem
por último lhes oferta ao mercado).
Aqui, chega-se ao derradeiro ponto desta seção do trabalho – após discorrer sobre
a obrigatoriedade na constituição de uma legislação infraconstitucional e a inserção do tema
na ordem econômica constitucional. Trata-se, pois, da constitucionalização da defesa do
consumidor como direito fundamental. Não há como se compreender o direito de
consumir como qualquer potência distinta de um direito essencialmente humano –
portanto, um direito fundamental. Como destaca o antropólogo britânico Daniel Miller
(2007, p. 38) – em uma críticaao modo de se criticar o consumo como cultura material no
ocidente globalizado –,o consumo é essencial ao desenvolvimento humano, seja como
modo de subsistência (consumo de alimentos básicos), seja como vida digna (consumo de
conforto mínimo de habitação e vivência), seja para efetivo progresso pessoal (consumo de
cultura e ensino), ou mesmo outras formas de consumo (como o consumo de transportes e
de remédios, ou de saúde em geral).
Entende-se, pois, que o que a constitucionalização da defesa do consumidor
trouxe foi um novo princípio implícito ao direito brasileiro: o direito ao consumo. Ideia
semelhante é apresentada por João Paulo de Campos Dorini (2010, p. 66-68), que
compreende que há um direito ao acesso ao consumo.Isto é, que todos devem,
independentemente de patrimônio, renda, classe social ou qualquer outro requisito
objetivo, ter acesso ao consumo num grau mínimo essencial para manutenção da dignidade
humana –atingindo-se, assim, não somente o fundamento da CRFB, mas também a base da
ordem econômica demonstrada acima (assegurando existência digna e objetivando a justiça
social). Afirma o autor:

A partir do princípio da solidariedade, todo o direito passa a ser visto sob a ótica
da justiça social. A dignidade da pessoa humana, antes de ser o mais belo
protocolo de intenções, abre suas asas sobre o ordenamento jurídico acolhendo-
o e conformando-o à valorização do humano.
Sobressai-se, nesse contexto, a garantia de um mínimo existencial, um patamar
mínimo de bens jurídicos que necessitam de efetiva concretização para que se
possa atribuir a todos uma vida minimamente digna, permitindo, assim, que
desempenhe o papel ativo que a nova concepção de cidadania para ele
desenhou.
[…] O direito de acesso ao consumo, em seu aspecto formal, significa a efetiva
possibilidade de acesso aos bens indispensáveis para uma vida digna. É o
caminho possível para a erradicação da pobreza. Não se vislumbra a
possibilidade de extinção imediata do capitalismo ou do mercado. A saída,
portanto, para o fim da pobreza é conformar o capitalismo à justiça social, de
modo a deixar de ser um fenômeno de exclusão para tornar-se um mecanismo
de inclusão.

~ 600 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

[…] O acesso ao consumo, direito fundamental implícito na Constituição


Federal, tendo por fundamento a dignidade da pessoa humana e a garantia de
um mínimo existencial, coloca-se, assim, como um novo paradigma de
efetivação dos direitos fundamentais e de consecução dos objetivos da
República, notadamente a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, a
erradicação da pobreza e a diminuição das desigualdades. (DORINI, 2010,
p. 66-68)

Discorda-se desta visão quantoà possiblidade de o capitalismoser instrumento ou


caminho para erradicação da pobreza, mormente pela sua conformação através do direito
(entendendo-se como direito a forma jurídica adotada pela economia capitalista).A busca
pela justiça social pode fazer parte do capitalismo, mas seu atingimento – pensando-se em
um modo de produção que visa a acumulação e se utiliza da exploração de mão-de-obra
para tanto – se torna inatingível e, no limite, ilusório. Assim, utilizando-se do que esboçado
pelo autor, pensa-se não na eliminação da pobreza dentro do capitalismo, mas no
atingimento do consumo básico (supramencionado, pelas ideias do antropólogo Daniel
Miller)independentemente do meio de produção que seja adotado por uma determinada
sociedade (inclusive, o meio de produção capitalista).
Ao constitucionalizar,como direito fundamental,a defesa do consumidor – além
de inserir implicitamente o direito ao consumo –, o Estado brasileiro coloca como tarefa
(própria e de seu povo) a proteção do consumidor em todas as suas potencialidades – isto
é, a proteção do consumidor contra forças vorazes do mercado (como o poder de grandes
fornecedores), mas também contra suas próprias vontades e desejos.Nas grandes cidades
(até mesmo do capitalismo periférico) vive-seem uma época de intenso consumo,
independentemente de classe social. Todavia, nota-se um consumo essencialmente
supérfluo, visando conforto ou distinção, muitas vezes sem garantia dos bens essenciais
presentes (de maneira mais raras) ou futuros (mais corriqueiramente). Pode-se apresentar,
como exemplos dos consumos supérfluos, os altos índices de superendividamento326, a falta
de renda própria (sem contraprestação de trabalho) ou aposentadoria na velhice, e a própria
falta de poupança pelo brasileiro.O contraste social muitas vezes se faz notar pelo nível do
consumo – e tal é o motivo pelo qual muitas pessoas e famílias de classe mais baixa se

326 A série histórica oficial sobre endividamentos dos consumidores utilizada pelo governo brasileiro é
elaborada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviço e Turismo (CNC), denominada
Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC). A análise dessa série histórica
subdivide os consumidores brasileiros em dois grupos: quem ganha até dez salários mínimos (chama-se, neste
trabalho, de G1) e quem ganha mais que dez salários mínimos (G2). Com início da análise em 2010, o ápice
de famílias endividadas que a PEIC registrou para o G1 foi de 67,2% (em fevereiro de 2011), sendo de 58,9%
para G2 (em julho de 2013). A maioria deste endividamento – que varia entre 11 e 50% do rendimento das
famílias – dá-se em razão de dívidas com o cartão de crédito (dinheiro de plástico), sendo de 75,8% para G1 e
de 71% para G2. Isso demonstra que o superendividamento, além de independer de idade e classe social, é
proveniente majoritariamente do desejo pelo consumo de bens e serviços (geralmente supérfluos) cujo
acesso, teoricamente, não seria possível com o patrimônio ou a renda própria.

~ 601 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

endividam para consumir; todavia, impressiona mais notar que dentro da mesma classe
social, há quem muito consuma (endividando-se ou não) e quem nada tenha para consumir.
Tudo isso é reflexo de um sintoma global, mas que se mostra mais nocivo às populações
das nações mais pobres. Tal sintoma é o que é definido por Gilles Lipovetsky como
hiperconsumo e será objeto do próximo capítulo.

3. O HIPERCONSUMO DE CATÁSTROFE

Existem diversas teorias que abordam a expressão "hiperconsumo" – tanto em


sociologia quanto em economia. Contudo, o que se dá por base deste texto, em seus
fundamentos teóricos e analíticos, é o conceito de hiperconsumo trazido por Gilles
Lipovetsky, contemporâneo sociólogo francês. Esse conceito é apresentado dentro de sua
teoria de hipermodernidade, a qual deve ser também apresentada para melhor compreensão
do todo. Ao tratar de tal temática, o sociólogo aponta uma construção histórica e factual –
para se sustentar em exemplos reais; portanto, não é possível falar do modelo de sociedade
de consumo que existe em um tom abstrato para qualquer modo de produção. Trata-se de
um modelo de consumo que somente se adequa ao capitalismo, servindo-se das
contradições deste, bem como o modo de produção capitalista se apoia, atualmente, no
consumo para passar por suas crises e conformações.
Por essas razões, Lipovetsky (2006, p. 7) afirma que a revolução empregada pela
nova modernidade à sociedade de consumo e´ "indissociável das novas orientações do
capitalismo" – ao mesmo tempo em que é necessário consumir mais para manter uma
produção de bens (materiais e imateriais) supérfluos, é necessário, também, manter um
equilíbrio sustentável (pensando em meio-ambiente e em relações interpessoais) para que o
mundo não entre num completo colapso (situação na qual não há motivo para falar em
manutenção de modo de produção).
Essa modernidade é marcada, segundo Lipovetsky (2006, p. 23-32), por três
grandes fases. A primeira fase é o nascimento dos mercados massa nas últimas décadas do
século XIX, desenvolvendo-se e durando até a o final da Segunda Grande Guerra. A
segunda, surge na década de 1950, desenvolvendo-se e durando até a década de 1970, em
cujo final passa a surgir a hipermodernidade – ou sociedade do hiperconsumo –, que seria a
terceira fase. Essas fases são bem características, não podendo ser confundidas entre si no
aspecto proposto (análise do consumo). Para ilustrar de melhor maneira, o sociólogo
apresenta um diálogo entre o consumo e o universo da moda.

~ 602 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Pensando em um maior didatismo, Lipovetsky (2009, p. 24-27) firma a sociedade


europeia dos séculos XIV ao XIX como ponto de início da moda– época em que um
restrito grupo monopolizava a iniciativa da criação das modas em vestuário, conferindo
traço social de distinção e que não deveriam (e em sua maioria, por falta de riqueza, nem
mesmo poderiam) ser mimetizadas pelos estamentos tidos como inferiores. Assim,
almejando se assemelhar a tal grupo, os estamentos inferiores buscavam a mimetização dos
supostos superiores – assim, pela necessidade de distinção, o estamento superior passava a
alterar a moda de seu vestuário com maior velocidade (tanto para fugir da mimetização,
quanto para demonstrar sua capacidade econômica para membros dos mesmos
estamentos), como regulação e pressão sociais (LIPOVETSKY, 2009, p. 43-44). Nasce,
então, uma qualidade da moda que, até então, não se notava: a efemeridade.Por si só, a
razão de ser da moda (e sua qualidade primeira) seria ter para si o conceito de belo. Assim,
há um viés de atração, um inquestionável hedonismo – sendo tal qualidade, junto com a
efemeridade, essencial para o que se tem como moda.
Com isso, torna-se possível ilustrar as fases apresentadas acima para o consumo.
Aos poucos, a busca por destaque deixa de ser coletiva (estamental) e passa a ser individual
– e individualizante –, proporcionando grande investimento na ordem das aparências e
refinamento da estetização. Nisso, já estabelecidas a efemeridade e o hedonismo, o sistema
da moda mantem-se organizado (e relativamente isolado) da segunda metade do século
XIX até a década de 1960 (LIPOVETSKY, 2009, p. 79). Época esta que apresenta (para o
restante do consumo) como a primeira fase, da divisão exposta – nela, havia a possiblidade
de se notar um mercado de vestuário e uma moda de Alta Costura, ainda bastante díspares.
Do mesmo modo que a moda, havia um mercado cuja ampliação poderia ser padronizada e
em larga escala (LIPOVETSKY, 2006, p. 24), mas sem luxo (e de estética não tão apreciada
ou em destaque), e um mercado de alto padrão. Certamente, era bastante reduzida a parcela
da sociedade que conseguiria usufruir destes mercados de alto padrão (no caso da moda, a
Alta Costura), mas a produção padronizada tenta, em razoável proporção, mimetizar o alto
padrão (LIPOVETSKY, 2009, p. 80).
Com as transformações sociais pós-Segunda Grande Guerra, não é lógico que se
mantenha o sistema de consumo que foi até então produzido e estabilizado, o que se reflete
no exemplo-moda aqui trabalhado. Inicia-se a segunda fase (os Trinta Gloriosos), de
abundância e do welfarestate. As massas poderiam, então, aderir a um consumo
psicologizado e individualizante pela primeira vez, principalmente de estilo de vida (bens
duradouros, lazer, férias) que antes era restrito às elites (LIPOVETSKY, 2006, p. 28-29). A

~ 603 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

produção padronizada pode se tornar, nesta época, industrial, o que propicia a ampliação
de produtos mais sofisticados e de melhor estética – como exemplo, apresenta-se o prêt-à-
porter, peças de vestuários que seguem as modas das classes mais alta, mas em ampla e
escala e preço verdadeiramente acessível –ainda que longe do luxo dos mercados de alto
padrão. Porém, pela popularização, o luxo e os valores ostensivos passam a perder um
pouco de espaço na moda – tal qual a maior simplicidade dos traços em moda, houve a
possibilidade de personalização e maior dinamismo criativo (LIPOVETSKY, 2009, p. 126-
132).
A partir de então, consolida-se a sociedade do consumo de massa, sociedade do
desejo – estimulam-se mais os desejos, o hedonismo, a despesa, o humor, a libertação das
tradições (e dos moldes como as famílias eram mantidas) e do tempo presente. Cultua-se
uma cultura jovem – em contraposição à imagem de prosperidade que os mais velhos
(bem-sucedidos) detinham – e mantém-se um imaginário de felicidade atingível pelo
consumo (LIPOVETSKY, 2006, p. 30-31; 2009, p. 139-142). Esse modus vivendi torna-se
central – com o consumo incorporando quase que definitivamente as qualidades da moda.
Em sequência, como tudo que é central, fez-se uma referência para contestação.
Cria-se, nesta época – a virada entre a segunda e terceira fase, na década de 1970 –
, uma aparente (mas forte) contestação social. É nesta época que surgem, também como
cultura de grandes coletivos, as referências hippies, punks, afro e rasta (LIPOVETSKY, 2009,
p. 147). Ainda que se discurse almejar uma ruptura por tais culturas, mais certo é que, ao
negar a cultura vigente, utilizava-se das mesmas formas (principalmente uma estetização
própria, ainda que agressiva se comparada à estetização padronizada das massas) e,
portanto – e por ser controlada pelo modo de produção vigente –, não se poderia cogitar
romper com os padrões capitalistas da época.A tal "virada", Lipovetsky (2004, p. 52-53 e
71) chama de pós-modernidade ou pós-modernismo – isto, pois se trata de uma tentativa
de romper com o que era então entendido como modernidade (primeira e segunda fases),
fugindo-se dos enquadramentos sociais, políticos e ideológicos, buscando e preservando
uma liberdade nova e quase que absoluta. Há, nisso, uma exaltação do tempo presente e
uma tranquilidade descontraída (praticamente utópica) em relação ao futuro. Entretanto,
esse tempo pós-moderno, conforme entendido por Lipovetsky, surgia prestes a se pôr,
anunciando o que lhe sucederia – a hipermodernidade.
Nessa passagem, ao invés da almejada ruptura, há verdadeira intensificação dos
padrões tidos como modernos. É por esse fator que o sociólogo evita adotar a expressão
"pós", dando preferência ao "hiper"-moderno. Como afirma Sébastien Charles (in

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Direitos Humanos & Fundamentais

LIPOVETSKY, 2004, p. 30-31), as duas primeiras fases criaram o consumidor moderno, a


terceira fase estendeu ao infinito o domínio do consumo. As qualidades do consumo (já
tendo incorporado as qualidades da moda) são ampliadas para todos os segmentos de
convivência (individuais ou coletivos), incluindo as relações interpessoais (como família e
trabalho).
Tais qualidades não são as únicas da hipermodernidade, sendo-lhe essencial, ao
menos, uma mais: a globalização. O que é chamado por Lipovetsky (JUVIN e
LIPOVETSKY, 2012, p. 1-4) de cultura-mundo (como um sinônimo de hipercultura, ou
cultura na hipermodernidade), como uma irreversível onda de unificação do mundo, com
padrões culturais semelhantes (uma homogeneização imiscuída com as particularidades
locais ou regionais).Assim, o conceito aqui tratado de globalização (como essência do
hiperconsumo) não pode se confundir com a essencialidade econômica da globalização
como amplamente conhecida, ainda que esta seja o pano de fundo. Tanto por isso é dada
tradução – em outras versões que não a brasileira, incluindo a original em francês – de
mundialização, sendo esse conceito entendido também como ocidentalização.
Essa mundialização éum fenômeno originalmente europeu, vez que a população
de diversos países deste continente colocou para si (seja por convicção ou por motivos
escusos) a missão e o papel de ser uma civilizadora universal – segundo o entendimento
europeu do que era civilização, relativizando as importâncias das demais culturas nos
séculos XIX e XX. Por isso, é que se trata não de uma globalização rumo a uma cultura em
comum (que pesasse todas as culturas de modo igual), mas uma ocidentalização. Todavia, a
ocidentalização do hiperconsumo não é a mesma ocidentalização do neocolonialismo (essa
é apenas a origem que a possibilita). O que confere poder a esta nova ocidentalização é a
supremacia dos centros econômicos (Europa e EEUU) nos domínios científico,
tecnológico, econômico e militar. "Modernizar-se" torna-se sinônimo de "Ocidentalizar-
se", amoldando-se e reestruturando-se à hiperculturacom núcleos provenientes da Europa.
Notou-se, com isso, que foram impostos, junto com a cultura europeia, os valores do
consumo, as leis e a vida econômica "global", a ordem técnico-mercantil e a
individualização dos modos de existência (JUVIN e LIPOVETSKY, 2012, p. 61-63).
Assim, essa ocidentalização mostra suas principais características, sendo elas o consumo (e,
em decorrência, o mercado), o progresso técnico científico, o individualismo e as indústrias
cultural e de comunicação – distingue-se do anteriormente almejado humanismo universal
e abstrato, que se demonstrou como ideal do ocidente entre os séculos XIX e XX (JUVIN
e LIPOVETSKY, 2012, p. 4-8).

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Direitos Humanos & Fundamentais

A ocidentalização proporcionou não apenas a utilização de tecnologia, mas a


transmissão de um estilo de vida, forma de pensar, modo de organizar o trabalho (ou de
produzir) e a educação (JUVIN e LIPOVETSKY, 2012, p. 18-27).Em relação ao estilo de
vida, as principais mudanças da hipercultura expandem-se após absorver o tom
contestatório do que Lipovetsky chamou de pós-modernismo. Com isso, há um maior
desprendimento (ainda que relativo) das tradições e do autoritarismo, buscando-se relações
sociais mais "leves", cuja liberdade individual fosse demasiadamente privilegiada – isso
ocorre nas reações com família, trabalho, partidos políticos e religião (onde não se prende
unicamente a uma só religião e, fazendo-o, o indivíduo dá-se a liberdade de não seguir
todos os seus dogmas) (LIPOVETSKY, 2012, p. 34-37).
Assim se dá a construção da hipermodernidade, cujo alicerce é o hiperconsumo. A
sociedade do hiperconsumo cria um imaginário de paraíso terrestre atingido a partir do
consumo, dos prazeres em possuir bens ou sensações. Apresenta-se, então, uma sociedade
extremamente hedonista e individualizante que busca potencializar sua produtividade e
ganhos. Todavia, havendo forte desejo e ideais semelhantes, o não atingimento destes
ideais (sejam grandes ideais para uma vida, ou momentâneos com consumos esporádicos)
também carrega ao indivíduo a culpa pelo que é entendido como "fracasso" próprio –
gerando frustrações, desilusões.Portanto, Lipovetsky (2006, p. 135-136) afirma que "na
sociedade de hiperconsumo, a insatisfação cresce mais depressa que as ofertas de felicidade.
[…] [O] universo mercantilizado agrava metodicamente o sofrimento do homem,
conduzindo-o a um estado de insatisfação irredutível".
O lado trágico do hiperconsumo possui duas facetas: o hiperconsumidor abonado
e o hiperconsumidor desabonado. O primeiro possui recursos suficientes para, além de
satisfazer suas necessidades básicas, satisfazer seus desejos do hiperconsumo (ou de
consumo imediato); o segundo não possui, quando consegue satisfazer suas necessidades
básicas de consumo (para manutenção de uma vida digna), recurso suficiente para exceder
de modo satisfatório estas necessidades.Entretanto, ambos os hiperconsumidores são
atingidos pelos estímulos do hiperconsumo – não se estimula apenas a necessidade e seus
reflexos, mas são criadas ligações afetivas com as marcas, promovendo-se mais a imagem
que o próprio produto.Na terceira fase, o hiperconsumidor recebe e percebe a publicidade
(em distintas qualidades, quantidades, intensidades e frequências) desde seu nascimento,
fazendo com que haja imersão "na linguagem dos bens de consumo e alimentadas com o
consumo-espetáculo, […] [sendo, então,] por natureza, consumistas, entregando-se
espontaneamente às compras e às evasões, às novidades e ao bem-viver" (LIPOVETSKY,

~ 606 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

2006, p. 155).Deste modo,a publicidade não temmais a necessidade de criar hábitos de


compra em indivíduos desacostumados a comprar, podendo focalizar na afetividade, ou
emotividade, sendo tal feito tão relevante que há possibilidade de se criar publicidade que –
visando criar afeição à marca – incentiva a não comprar.
A necessidade ou afetividade criada para o aqui-agora – essência do
hiperconsumo, em decorrênciada efemeridade da hipermodernidade – gera diversas
sensações no hiperconsumidor, incluindo insatisfação.

Quando o descontentamento existe, e existe de facto, não tem tanto a


ver com a contradição entre conforto e prazer, mas essencialmente com
a situação financeira do consumidor, com a insuficiência do poder de
compra, com a necessidade de conter as despesas. A maior insatisfação
resulta não de um excesso de conforto que asfixia o prazer, mas do
hipoconsumo e das privações que daí advêm. (LIPOVETSKY, 2006,
p. 140)

Imersos na hipermodernidade, os hiperconsumidores desabonados recebem e


percebem a mesma quantidade de publicidade que os demais, com a distinção de que não
conseguirão consumir toda "nova necessidade" criada, vez que, por vezes, nem sequer
conseguem suprir as necessidades básicas. O indivíduo narcisista da sociedade do
hiperconsumo sente culpa por não conseguir satisfazer essas ditas necessidades – culpa que
é transferida da estrutura social para si próprio no inconsciente do indivíduo. Como afirma
Lipovetsky (2006, p. 145), o "que no passado era visto como um destino de classe é agora
encarado como uma humilhação, uma vergonha individual". O hiperconsumo – em razão
da estratificação social e da extensão da idealização do indivíduo por todo corpo social–
cria sensíveis distinções, destoando o desejável e o efetivo, o imaginário e o real, as
aspirações e a vida quotidiana.
Na terceira fase, há a justaposição da proliferação dos bens à exclusão do
consumo, implicando na carência de consumo, inclusive de itens de necessidade básica:

Enquanto uns navegam no mar do consumo desenfreado, outros conhecem a


degradação do seu nível de vida, cortes em parcelas cada vez mais essenciais do
seu orçamento, a saturação das dificuldades quotidianas, a humilhação de serem
socorridos pela segurança social. Se existe aqui o pesadelo do hiperconsumo,
este não se traduz na "crescente insignificância", nem na sede insaciável de bens
de consumo, mas na degradação das condições materiais, no desânimo perante
as limitações, no consumo reduzido ao mínimo enquanto o quotidiano continua
a ser bombardeado com solicitações fascinantes. O inferno não é a espiral
interminável do consumo, mas o subconsumo das populações desfavorecidas no
seio de uma sociedade de hiperconsumo. (LIPOVETSKY, 2006, p. 163-164)

~ 607 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Os signos de consumo(símbolos da sociedade do hiperconsumo) são almejados


por todos e, para quem não os possui plenamente, torna-se signo também do
reconhecimento social – um escape ao desprezo social e a sensação de ser inferiorizado. A
civilização da felicidade pelo consumo pratica, então, violência aos que não a desfrutam
plenamente. Ao se conjugar a socialização através da interiorização das normas e princípios
da hipermodernidade (que retiram a culpa pela compra e a intensifica pelo fracasso), o
resultado é a ampliação do mal-estar psicológico e do sentimento de que não se vive
corretamente.Na sociedade do hiperconsumo, as limitações financeiras geram limitações ao
consumo, privações morais e um sofrimento agudo decorrente da autodepreciação dos
indivíduos.
Não há um elemento concreto que defina a superação do hiperconsumo, mas tal
superação é necessária – e essa necessidade é notada quando se depara com situações de
imenso prejuízo ao indivíduo ou à coletividade. São as pequenas dissonância e
contradições, com a ilusória certeza de que o indivíduo possui livre escolha de seu destino
dentro do capitalismo do hiperconsumo, que impede a criação de uma nova cultura para
fazer frente à hipermodernidade. Ao se permitir a existência dos dois extremos (opulência e
miséria) não se permite jamais a superação, mas apenas acomodação do capitalismo do
hipersoncumo. Para os hiperconsumidores desabonados o consumo mínimo (necessidades
básicas) é prejudicado, muitas vezes, pela compulsão do hiperconsumo – eis o
hiperconsumo de catástrofe: o hiperconsumo não ocorre apenas em sua forma padrão
(estando saciado o consumo necessário), mas em uma forma deturpada (em detrimento do
consumo necessário) para manutenção das estruturas sociais.
O hiperconsumo de catástrofe não é exclusivo, mas é típico das nações da
periferia do capitalismo (capitalismo tardio), tal como o Brasil. Isso se dá pela distinta
formação social do centro do capitalismo nos séculos XIX e XX e a exploração excessiva
que se deu na sua periferia na mesma época. Não houve, na periferia do capitalismo, o
welfarestate que existiu no centro – o que, para tal periferia, torna a terceira fase do consumo
uma mistura das qualidades todas as fases, sem, contudo, ocorrer uma possibilidade de
consumo para as massas da mesma forma que ocorre para as elites (consumo supérfluo
sem comprometimento do consumo básico). A tragédia realizada (mais que anunciada) no
capitalismo de consumo é um dos males que o Estado brasileiro deve combater, ao ter
constitucionalizado a defesa do consumidor como direito fundamental; não sendo possível
falar em conflito entre tal finalidade e a manutenção de uma economia ativa (conforme o
modo de produção atualmente praticado), vez que a defesa do consumidor encontra-se

~ 608 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

entre os princípios da ordem econômica do Estado brasileiro, devendo esta rumar à justiça
social. Nota-se, entretanto, que o este dever do Estado não é cumprido plenamente, sendo
possível e necessário falar em hiperconsumo de catástrofe no Brasil.

4. A INEFICÁCIA CONSTITUCIONAL NA PROTEÇÃO AO


CONSUMIDOR

Os dados sociais brasileiros são reveladores de situações (fotografias


momentâneas) que muitas vezes são esquecidas pelas elites nos grandes centros urbanos do
país. A título de exemplo, aponta-se que, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatísticas) para 2010,90,7% (noventa ponto sete por cento) das pessoas que
declaram renda no Brasil concentram 50,5% (cinquenta ponto cinco por cento) da renda
bruta; assim, resta praticamente metade da renda bruta brasileira concentrada em menos de
dez por cento da população. A mesma coleta de dados mostra que, para bens e direitos
líquidos, a concentração dos 90,7% era de menos de quarenta por cento (37,2%). Nota-se a
inviabilidade em falar de um consumidor padrão no Brasil, vez que parte dos consumidores
conseguem mimetizar a prática de hiperconsumo do centro do capitalismo, enquanto a
grande maioriaé prático exemplo do consumidor desabonado.
A política econômica interna brasileira voltou-se por algum tempo ao consumo de
sua população. Assim, a expansão do crédito nos anos de 2001 a 2011 (IPEA, 2017), que
passou de 5 a 15% do PIB, foi essencial para que houvesse um aumento de 1% no PIB per
capita em decorrência do aumento do consumo. Tal política de crédito ao consumidor
ampliou também o superendividamento (anteriormente mencionado) e levou a uma
impossibilidade de acúmulo de capital para a parte financeiramente mais prejudicada de sua
população (vez que se incentivou demasiadamente o gasto pelo consumo de bens
supérfluos).Portanto, notou-se uma transformação social que inseriu, no mercado de
consumo (em sua forma hedonista, efêmera, narcisista e urgente), uma população antes
excluída de tal fato. Todavia – ainda que essa tenha sido a intenção de tal política –,essa
inclusão não se deu de modo a tornar a sociedade brasileira mais justa, menos desigual. Ao
contrário, houve um aumento na concentração de renda e a efetivação das mazelas do
hiperconsumo de catástrofe (insatisfação por não alcançar os bens desejosos do
hiperconsumo).
Como aduz da teoria constitucional traçada no Brasil, a CRFB não tem o condão
de ser meramente descritiva: o que se dispõe no texto constitucional é uma necessidade a

~ 609 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

ser alcançada pelo Estado brasileiro (GRAU, 2015, p. 192-193). Segundo os objetivos do
Estado, deve-se afirmar que o direito brasileiro tem o dever de, através de seus órgãos
políticos, combater o hiperconsumo. Entretanto, a legislação consumerista produzida não
teve o condão de alterar as relações sociais existentes – não rumou em direção ao destino
constitucional, mas deixou o direito do consumidor aberto ao decisionismo judicial.
Todavia, os questionamentos judiciais dão-se, em grande parte, de modo individual,
buscando minimizar as abusividades dos fornecedores. Quando existentes os
questionamentos coletivos, estes somente têm por fim fazer cessar irregularidades ou
infrações praticadas por determinados consumidores. Portanto, há uma excelente coesão
do Código de Defesa do Consumidor com a natureza capitalista das relações de consumos,
o que fez, na prática, perfeita adequação da sociedade de consumo à legislação protetiva ao
consumidor.
O direito do consumidor, com a prática que se deu à legislação atual, foge da sua
destinação constitucional – de busca por justiça social e redução das desigualdades. Trata-se
de um direito ainda em construção e extremamente recente. Faltam, neste microcosmos
jurídico, elementos concretos que suavizem ou rompam com a cultura ocidentalizada do
hiperconsumo. Com isso, há um incentivo, no direito do consumidor, ao hiperconsumo e à
hiperindividualização. Tal direito, como praticado no Brasil, somente é adequado ao
hiperconsumo de catástrofe para perpetuar suas estruturar; porém, contraria sua origem
constitucional, deixando de promover uma melhor dignidade social ao povo brasileiro.
Nota-se que não há – pensando na inviabilidade da ruptura do modo de produção
capitalista – que se alterar completamente a legislação consumerista. A leitura do direito do
consumidor é que deve ser alterada, devendo ser dada eficácia à CRFB nas regulações
jurídicas e judiciais das relações de consumo. Todavia, isso releva a necessidade da alteração
de relações sociais – que consequentemente alterariam a cultura jurídica, tornando-a mais
conectada à integralidade do povo brasileiro (e não somente à elite brasileira). Para que a
CRFB seja verdadeiramente eficaz aos consumidores brasileiros, há que se fazer uma
aplicação da defesa do consumidor em toda e qualquer política governamental – não sendo
possível falar em política de Estado que contrarie as vontades expressas na Constituição –,
impedindo a adoção de medidas que ampliem a disparidade entre os consumidores das
classes sociais mais altas e os consumidores das classes sociais mais baixas. Sem tal feito
(como se mantém até hoje) não haverá verdadeira proteção constitucional ao consumidor –
e, portanto, não haverá qualquer proteção ao consumidor pelo direito brasileiro.

~ 610 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito do consumidor é, em todo mundo, uma instituição bastante recente,


tendo sua formalização no Brasil há trinta anos, com a promulgação da Constituição de
1988. Portanto, haverá incansáveis discussões sobre o tema até que se chegue num
consenso mínimo, como se alcançou com os direitos sociais (cuja existência fática no
mundo é do século XIX e a existência formal no mundo jurídico é centenária). Todavia, há
situações que não se devem desconsiderar, como o fato de haver uma forte influência da
Europa e dos EEUU na formação cultural – e na cultura de consumo – de países
economicamente mais fracos como o Brasil.
Essa influência não é absorvida sem qualquer impacto, havendo considerável
transformação social (alheias a qualquer controle ou vontade consciente do coletivo
nacional). Essa transformação é sentida muito rapidamente nas relações de consumo, antes
mesmo de serem percebidas em outras relações sociais. Caso tal transformação não fosse
efetivamente prejudicial aos indivíduos, não seria possível questioná-la senão em abstrato,
no seu plano teórico. Contudo, essa transformação é extremamente prejudicial.
Os signos de consumo são propagados excessivamente a todos através da
publicidade, cirando desejos e vontades idênticas em consumidores de diversas classes
sociais. Enquanto alguns consumidores – os quais na população brasileira constituem uma
minoria bastante restrita –conseguem satisfazer tais desejos e vontades sem qualquer
prejuízo colateral; outros consumidores tentaram satisfazer tais desejos (mormente, itens de
tecnologia avançada não produzidos no país) em detrimento do próprio patrimônio
(superendividamento) ou de consumo das necessidades básicas (essenciais à manutenção da
dignidade humana). A isso denominou-se, neste trabalho, de hiperconsumo de catástrofe.
Sem poder mimetizar o hiperconsumo dos centros do capitalismo – o
hiperconsumo que somente se dá após a satisfação das necessidades básicas –, a sociedade
brasileira ampliou seu abismo social em relação à desigualdade. Por sua vez, o
hiperconsumo garantiu a existência de uma consciência individualizante, o que torna a
culpa pelo fracasso do próprio indivíduo – há uma alienação tão sólida que impede que o
grupo prejudicado perceba que o que parece um fracasso individua é, na verdade, uma
realidade coletiva decorrente da estrutura social. Assim, não há mobilização coletiva para
transformação das realidades existentes.
O papel da CRFB nesse cenário seria o de fazer prevalecer as diretrizes do Estado
brasileiro, dispostas na própria Constituição, como a busca pela dignidade humana em sua

~ 611 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

totalidade, a busca pela justiça social e pela redução das desigualdades. É nesse sentido, em
conformidade com sua origem constitucional, que o direito do consumidor deve ser guiado
e interpretado.
Há, contudo, pouca esperança em relação ao preenchimento dos escopos
constitucionais – e ainda menos em relação a transformações sociais positivas – quando se
tem em mente que o direito (forma jurídica adotada em conformação e derivação do modo
de produção adotado) é criado, regulado, aplicado (e, em sua maioria, estudado) pela elite
que pode reproduzir sem prejuízo ou esforço o hiperconsumo dos países centrais.

REFERÊNCIAS

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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm>.
Acesso em: 29 mai. 2018.

______.Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em:


<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 29
mai. 2018.

COMPARATO, Fábio Konder. A proteção do consumidor. Importante capítulo do direito


econômico. 1986.InDoutrinas essenciais de Direito do Consumidor. Vol. 1, p. 185-196.
Abr. 2011.

DORINI, João Paulo de Campos. Direito de Acesso ao consumo.InRevista de Direito do


Consumidor. Vol. 75/2010, p. 43-79, jul./set. 2010.

FURTADO, Celso. Em busca de Novo Modelo: reflexões sobre a crise contemporânea.


São Paulo: Paz e Terra, 2002.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988: interpretação e


crítica. 17ª ed., revista e atualizada.

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Direitos Humanos & Fundamentais

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de Janeiro: Ipea, 2017. Disponível em:
<http://ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2333.pdf>. Acesso em: 14jul.
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JUVIN, Hervé; LIPOVETSKY, Gilles. A globalização ocidental: controvérsia sobre a


cultura planetária. Tradução de Armando Braio Ara. Barueri: Manole, 2012.

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hiperconsumo. Tradução de Patrícia Xavier. 2ª reimpressão, 2015. Edições 70: Lisboa,
2006.

______. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas.


Tradução de Maria Lucia Machado. 5ª reimpressão. 2016. São Paulo: Companhia das
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Rodrigo Pinto. Diretora de Arte: Larissa Camabúva. Diretor de Fotografia: Will
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~ 613 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

TELEPATIA. O Boticário. Direção: Fred Luz. Produção Executiva: Rafael Fortes e Flávia
Zanini. Diretor Geral de Criação: Luiz Sanches. Diretor Executivo de Criação: Bruno
Prosperi. Diretor de Criação: Rynaldo Gondim. Diretor de arte: Vinícius Valeiro. Redator:
Tales Bahu. São Paulo: O2 Filmes, 2017. Filme digital para televisão (1 min), son., color.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EgBhqVBfhXA>. Acesso
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SODRÉ, Marcelo Gomes. A construção do direito do consumidor: um estudo sobre as


origens das leis principiológicas de defesa do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009.

~ 614 ~
A LIBERDADE RELIGIOSA NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988

Silvia Araújo Dettmer*

INTRODUÇÃO

A experiência democrática completa 30 anos e a comemoração evoca a importância da


data da promulgação do texto constitucional e da vida institucional da República Federativa do
Brasil.
A Constituição Federal de 1988 foi capaz de promover a travessia de um regime
autoritário, intolerante e, por vezes violento, para um Estado democrático de direito. Mais do
que isso: a Constituição de 1988 tem propiciado o mais longo período de estabilidade
institucional da história republicana do país. Sob a Constituição Cidadã, o direito constitucional
no Brasil passou da irrelevância ao apogeu em menos de uma geração.327
Alguns acontecimentos das últimas décadas têm vindo a pôr sob pressão o Estado
Constitucional e o princípio da laicidade. Observa-se que a religião voltou a ser uma força que
nenhum governo pode ignorar impunemente. Hoje, é parte essencial da vida moderna e
certamente influirá nas questões nacionais e internacionais do futuro.328
Para comemorar essas três décadas da Constituição Federal o tema liberdade religiosa
foi escolhido pela conotação de natureza social e força vinculativa que o fenômeno religioso traz
ao Direito e, simultaneamente, pelo custo de procurar responder a problemas de justiça que a
própria vida impõe ao Direito; para além das meras elocubrações construtivas do formalismo
jurídico.329
Este artigo tem por objetivo analisar brevemente a evolução jurídico-constitucional do
direito à liberdade religiosa na perspectiva do ensino religioso no Estado laico. Muitas questões

* Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professora Adjunta do curso de Direito da UFMS,
Campus de Três Lagoas/MS. Email: silvia.dettmer@ufms.br
327BARROSO, Luís Roberto. Direito constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção

do novo modelo.São Paulo: Saraiva, 2009, p. 246.


328 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo.

Trad. HildegardFeist. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 9.


329 ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina, 2002, p. 24.

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Direitos Humanos & Fundamentais

se levantam nesse cenário e os consequentes debates se encontram em ordem crescente na pauta


pertinente aos direitos fundamentais.
Diante de um tema tão vasto, verifica-se o lugar central que a religião tem vindo a
ocupar, desde sempre nas sociedades humanas e a presença da história como elemento de
caracterização e fator de tensão.330
A temática é instigante e foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal mediante
importantes desafios na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439 em que a
Procuradoria Geral da República (PGR) pedia a interpretação conforme a Constituição Federal
ao dispositivo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB,caput e parágrafos 1º e 2º, do
artigo 33, da Lei 9.394/1996) e ao artigo 11, parágrafo 1º do acordo firmado entre o Brasil e a
Santa Sé (promulgado por meio do Decreto 7.107/2010) para assentar que o ensino religioso nas
escolas públicas não pode ser vinculado a religião específica e quefosse proibida a admissão de
professores na qualidade de representantes das confissões religiosas. Sustentava que tal
disciplina, cuja matrícula é facultativa, deve ser voltada para a história e a doutrina das várias
religiões, ensinadas sob uma perspectiva laica. 331
Assim, convive-se hoje com o papel bastante significativo desempenhado pela religião
na vida social e política de todas as partes do globo332 retratando também toda a dificuldade em
torno da liberdade religiosa.
Coube ao Supremo Tribunal Federal o papel de atuar na evolução constitucional desse
ambiente democrático que apresenta múltiplas expectativas de concretização de direitos. Porém,
a decisão da Suprema Corte não dialogou com o pluralismo de estilos culturais, a diversidade de
circunstâncias e condições históricas.333

1.Considerações histórico-jurídicas

A Constituição Federal de 1988 que comemora 30 anos é o símbolo da história de


transição de um Estado escravocrata, ditatorial e intolerante para um Estado democrático de
direito cujo território brasileiro, até fins do século XVII, compreendia apenas uma faixa litorânea
limitada pelo famoso Meridiano de Tordesilhas.

330 MACHADO. Jónatas E.M. Estado constitucional e neutralidade religiosa: entre o teísmo e o (neo) ateísmo.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 9.
331Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=356402 – Acesso: 15

mar.2018.
332 GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. Trad. Isa Mara Lando. São

Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 16.


333CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 87,

93.

~ 616 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Foi dessa faixa do litoral atlântico que Portugal tomou posse desse território e
colonizou-o por direitos de descobrimento. Posteriormente, foi reconhecida a imensa expansão
territorial do Brasil, caracterizando-se, portanto, um Estado de formação originária, de
desenvolvimento natural, histórico-geográfico.334
Diante da predominância da colonização dos portugueses, a população que se formava
no território brasileiro foi, no entanto, adquirindo os usos e costumes da mãe-pátria, a
organização política, a língua comum e a tradição religiosa, entre outros traços.
Diante do cenário político-religioso que predominou durante o período do Brasil-
Colônia e Imperial, faz-se necessário considerar os reflexos sobre o direito à liberdade religiosa
em decorrência da relação jurídica da união entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica.
Os apontamentos de Ranquetat335 sobre o Estado constitucional de 1824, denominado
confessional refere-se ao fato da cultura brasileira ter sofrido o influxo do Catolicismo desde
seus primórdios. O Brasil foi descoberto por uma nação católica que, em seu projeto
colonizador e evangelizador, visava estender ao novo mundo as fronteiras da fé e do império.
Era vigente à época, o regime do padroado336, que possibilitava à Coroa portuguesa e,
posteriormente, ao Império brasileiro interferir na Igreja Católica, nomeando bispos, recolhendo
os dízimos, remunerando o clero, construindo igrejas, monastérios, capelas. Era praticamente
impossível viver integrado no Brasil sem seguir ou pelo menos respeitar a religião católica. 337
Cabe lembrar que o Antigo Paço Imperial, no centro do Rio de Janeiro, casarão do
século XVII, foi sede oficial do governo de D.João VI, no Brasil, entre 1808 e 1821; local que
abrigou uma das cortes mais religiosas e carolas da Europa.338
Assim, durante grande parte desse período da história brasileira, o Estado foi
confessional, com estreita relação jurídica com a Igreja Católica. Autoridade espiritual e poder
temporal estavam integrados em um modelo de Cristandade.

1.1 Período republicano

334 MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. Atualizador Miguel Alfredo Malufe Neto. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
386.
335 RANQUETAT JÚNIOR, Cesar Alberto. Laicidade à brasileira: um estudo sobre a controvérsia em torno da

presença de símbolos religiosos em espaços públicos.Tese de doutorado em Antropologia Social. Universidade


Federal de Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Porto Alegre, 2012.
336 Segundo Bruneau, o regime de padroado é a outorga, pela Igreja de Roma, de certo grau de controle sobre uma

igreja local ou nacional, a um administrador civil, em apreço de seu zelo, dedicação e esforços para difundir a
religião e como estímulo para futuras boas obras. RANQUETAT JÚNIOR, Cesar Alberto. Laicidade à brasileira:
um estudo sobre a controvérsia em torno da presença de símbolos religiosos em espaços públicos. Tese de
doutorado em Antropologia Social. Universidade Federal de Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. Porto Alegre, 2012, p. 48.
337 HOONAERT, Eduardo. A Igreja no Brasil-colônia (1550-1800). São Paulo: Brasiliense, 1994.
338GOMES, Laurentino. 1808. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007, p. 17.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Após a Proclamação da República, em 1889, e diante da influência das revoluções


francesa e americana, o ordenamento jurídico brasileiro foi elaborado com o fundamento do
pensamento liberal oriundo do Iluminismo. Implanta-se no país o regime republicano e
federativo339, que põe fim à união entre a Igreja e o Estado.
O Decreto 119-A, de 1890, proibiu a intervenção da autoridade federal e dos estados
federados em matéria religiosa, consagrou a plena liberdade de cultos, extinguiu o padroado 340 e
estabeleceu outras providências.
Esse decreto teve como principal idealizador Ruy Barbosa; sua grande fonte de
inspiração foi a Constituição norte-americana de 1787341, e não o modelo laicista francês.
Estabeleceu oficialmente e de forma expressa a separação entre o poder secular e o poder
temporal342, sem o aspecto de cooperação previsto nas constituições posteriores. Nesse sentido,
delineou, em seu artigo 2º, que todas as religiões tinham igual liberdade de culto segundo a sua
fé.343
Ruy Barbosa não se mostrava contrário à participação da religião na vida pública.
Entendia desde 1876, que escrevia e pregava contra o consórcio da Igreja com Estado; mas
nunca o fez em nome da irreligião, sempre em nome da liberdade. Ora a liberdade e a religião
são sócias, não inimigas. Não há religião sem liberdade. Não há liberdade sem religião. 344
Na Constituição Republicana, havia a previsão de regras, quanto à ação da religião na
esfera pública, que eram contrárias às previstas na constituição imperial. Dentre as disposições
constitucionais de 1891 expressas no artigo 72, §§4º, 5º havia a liberdade de cultos religiosos em
relação aos seus crentes e do ensino leigo.345

339 Art. 1º: “A Nação Brazileira adopta como fórma de governo, sob o regimen representativo, a Republica
Federativa proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitue-se, por união perpetua e indissoluvel das suas antigas
províncias, em Estados Unidos do Brazil.” CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo.
Constituições do Brasil. São Paulo: Atlas, 1994, p. 685.
340 Art. 4º: “Fica extincto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerrogativas.” Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm>. Acesso: 10 mar. 2018.


341 O erro da nossa primeira Constituição republicana foi o de tentar transplantar o texto americano para uma

realidade diferente. O poder se encastelou nas oligarquias estaduais, que, aliadas com o governo federal, dominaram
o cenário político durante toda a Primeira República. O regime democrático do governo não saiu do papel, o poder
estava diluído entre o governo federal e as oligarquias estaduais. AGRA, Walber de Moura. Curso de direito
constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 61.
342Art. 1º: “E' prohibidoá autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou

actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e creardifferenças entre os habitantes do paiz,
ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.”
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm>. Acesso: 10 mar. 2015.
343Art. 2º do Decreto 119-A: “A todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu

culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem o
exercicio deste decreto.” Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm>.
Acesso em 12 mar. 2015.
344 BARBOSA, Ruy. Escritos e discursos seletos. Org. Virgínia Côrtes de Lacerda. Rio de Janeiro: José Aguilar,

1960, p. 664.
345 Art. 72, §4: “A Republica só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”. §5º: “Os cemitérios terão

caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a pratica

~ 618 ~
Direitos Humanos & Fundamentais

Várias questões relacionadas a conotação religiosa foram incorporadas ao texto


constitucional de 1934, e o art. 17, § 3º trouxe uma inovação, que se destaca em relação à
Constituição anterior no quesito separação entre Estado e Igreja. Dentre as vedações à União,
aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, admitiu como exceção a relação de aliança ou
dependência entre Estado e Igreja, sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse
coletivo.346
Assegurava-se constitucionalmente a reintrodução do ensino religioso nas escolas
públicas primárias, secundárias, profissionais e normais. O art. 153 estabelecia, quanto a esse
ensino, que a frequência seria facultativa e que seria ministrado de acordo com os princípios da
confissão religiosa do aluno, desde que manifesta pelos pais ou responsáveis, constituindo,
assim, matéria dos horários nessas escolas.
A Carta de 1937 aparentava conservar os fundamentos basilares da democracia,
mantendo inclusive as garantias dos cidadãos no elenco da Declaração dos Direitos, porém, em
matéria religiosa, vários dispositivos foram retirados de seu texto.
Assegurou-se constitucionalmente, no art. 133, que o ensino religioso poderia ser
contemplado como matéria do curso ordinário das escolas primárias, normais e secundárias.
Não poderia, porém, constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores nem de
frequência compulsória por parte dos alunos.
Quanto ao ensino religioso, a Constituição de 1946347 previu no art. 168, V, o que a
Constituição de 1934 estabelecia em seu art. 153. Dispôs que constituísse disciplina dos horários
das escolas oficiais, fosse de matrícula facultativa e ministrado de acordo com a confissão
religiosa do aluno, manifesta por ele, se for capaz, ou por seu representante legal ou responsável.
A Constituição de 1967 reforçou os poderes do Presidente da República no período da
ditadura militar. O Brasil passava a ser uma República Federativa, não sendo mais denominado,
no texto constitucional, “Estados Unidos do Brasil”, conforme previsto no seu art. 1º.

dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral publica e as leis”. §6º: “Será leigo
o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”. CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo.
Constituições do Brasil. São Paulo: Atlas, 1994, p. 712.
346 Art. 17, §III: “É vedado à União, aos Estados, ao Districto Federal e aos Municipios: ter relação de alliança ou

dependencia com qualquer culto ou igreja, sem prejuizo da collaboração reciproca em prol do interesse collectivo”.
CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil. São Paulo: Atlas, 1994, p.
633. A leitura do artigo 17, II (estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos) e III, à
primeira vista aparece contraditória; tal contradição não deixou de ser discutida no plenário do Congresso.
SCAMPINI, José. A liberdade religiosa nas constituições brasileiras (estudo filosófico-jurídico comparado). Revista
de Informação legislativa, julho a setembro de 1974. Ano IX. Número 43. Brasília: Senado Federal, p. 166.
347 A Constituição de 1946 insere-se entre as melhores, senão a melhor de todas que tivemos. Tecnicamente é muito

correta e, do ponto de vista ideológico, traçava nitidamente uma linha de pensamento libertária do campo político,
sem descurar da abertura para o campo social, que foi recuperada da Constituição de 1934. Com isso, o Brasil
procurava definir o seu futuro em termos condizentes com os regimes democráticos vigentes no Ocidente.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 126.

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Direitos Humanos & Fundamentais

No que tange ao ensino religioso, foi previsto, no art. 168, §3º, IV, do texto
constitucional de 1967, o que a Constituição de 1934 estabelecia em seu art. 153 e a de 1946, no
art. 168, V. Dispôs que constituía disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau
primário e médio, sendo de matrícula facultativa e a ser ministrado de acordo com a confissão
religiosa do aluno, manifesta por ele, se fosse capaz, ou por seu representante legal ou
responsável.
A Emenda Constitucional nº 1/69 foi editada em um período excepcional da história
do Brasil: momentos do constitucionalismo brasileiro mediante a vigência do exercício sem
limites do poder pelos militares, embora procurasse uma aparência de legitimidade pela
invocação de dispositivos legais que estariam a embasar essas emanações de força. Para uns, essa
emenda foi uma nova Constituição; para outros não passou de mera emenda.348
Sobre o ensino religioso, foi previsto no art. 176, §3º, V: constituiria disciplina os
horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio, sendo de matrícula facultativa.
Intimamente ligado ao ensinoreligioso estava o ensino da Educação Moral e Cívica 349, disciplina
tornada obrigatória em todos os graus de escolarização, como disciplina, ou como prática
educativa, pelo Decreto-Lei n.869/69.

2. A LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Infere-se o importante contexto no qual emerge a Constituição Federal de 1988 que


demarca, no âmbito jurídico, o processo de democratização 350 do Estado brasileiro ao consolidar

348 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 87. Dentre
as considerações iniciais da Emenda Constitucional nº 1 de 1969, há a menção de que “feitas as modificações
mencionadas, todas em caráter de Emenda, a Constituição poderá ser editada de acordo com o texto que adiante se
publica, Promulgam a seguinte Emenda à Constituição de 24 de janeiro de 1967”. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>.Acesso: 14
mar. 2018.
349É oportuno mencionar que a disciplina EducaçãoMoral e Cívica aparece pela primeira vez no direito brasileiro em

1934, na emenda proposta por Plínio Tourinho, em substituição ao ensino religioso. Esses limites, mais explícitos
do que em outras constituições, revelam asituação contingente do Brasil e, portanto, a característica da
Constituiçãoatual, que inspira todos os seus artigos, ou seja, "liberdade com autoridade". SCAMPINI, José. A
liberdade religiosa nas constituições brasileiras (estudo filosófico-jurídico comparado). Revista de Informação
Legislativa, julho a setembro de 1974. Ano IX. Número 43. Brasília: Senado Federal, p. 231-232.
350 Embora não haja condições de reproduzir com minúcias o desenvolvimento dos trabalhos da Assembleia

presidida pelo Deputado Ulysses Guimarães, importa registrar a dimensão gigantesca desse processo. Cumpre
averbar que a ausência de um anteprojeto devidamente sistematizado contribuiu de forma decisiva para certa
desordem e insegurança no contexto dos trabalhos da Assembleia Constituinte, que não deixou de se refletir no
campo dos direitos fundamentais. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Uma teoria
geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 63-64.

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Direitos Humanos & Fundamentais

a ruptura com o regime autoritário militar, instalado em 1964. 351 Esse fator enseja impacto
especialmente na esfera dos direitos fundamentais.
E nesse contexto, Canotilho afirma que a dignidade da pessoa humana exprime a
abertura da República à ideia de comunidade constitucional inclusiva, pautada pelo
multiculturalismo mundividencial, religioso e filosófico.352
Dessa forma, delimita uma esfera constitutiva como núcleo essencial da República que
leva em consideração o princípio material subjacente à dignidade da pessoa humana353 como
princípio antrópico que acolhe a ideia pré-moderna e moderna da dignitas-hominis, ou seja, do
indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual.
No texto constitucional de 1988, a liberdade religiosa está incluída entre as liberdades
espirituais e sua exteriorização é forma de manifestação de pensamento, mas, sem dúvida, é de
conteúdo mais complexo pelas implicações que suscita. Cabe lembrar que a liberdade de
manifestação de pensamento assegura o direito de dissentir.
Salienta-se, neste ponto, que o corolário básico do regime democrático é a possibilidade
de os cidadãos se expressarem de acordo com o seu pensamento e as suas convicções, conforme
prevê o art. 5º, IV da Constituição354.
A conquista constitucional do direito à liberdade religiosa é a consagração de
maturidade de um povo e desdobramento da liberdade de expressão do pensamento.
Desde a Constituição de 1891, encontra-se, nas Constituições brasileiras, a separação
entre Estado e Igreja. Assim, o Estado consolidou-se como sendo laico, admitindo e respeitando
as inúmeras vocações religiosas existentes.
Nesse sentido, o direito fundamental à liberdade religiosa localiza-se na esfera jurídico-
constitucional e refere-se à laicidade como princípio do Estado Democrático de Direito, que
“não busca a salvação das almas, mas sim, a máxima expansão das liberdades humanas em um
âmbito de ordem pública protegida”.355

351 A Carta de 1988 institucionaliza a instauração de um regime político democrático no Brasil. Introduz também
indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores
vulneráveis da sociedade brasileira. A partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando-se a
Carta de 1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotados no
Brasil. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2013,
p. 83, 86.
352CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p.236.
353 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra, 1988, v. 4, p. 166.
354 Inciso IV da CF/88: “é livre a manifestação do pensamento”. Constituição da República Federativa do

Brasil. Org. Alexandre de Moraes. São Paulo: Atlas, 2013. A pessoa pode externar seu pensamento sobre qualquer
assunto e da forma que desejar. Se, porém, ao manifestar seu pensamento, a pessoa ferir o direito de outrem, ficará
obrigada a indenizar os danos materiais, morais ou à imagem (art. 5º, V). FACHIN, Zulmar. Curso de direito
constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 262.
355 HUACO, Marco. A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito.In: LOREA, Roberto Arriada

(Org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 43.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Entre outros aspectos referentes à liberdade religiosa, o ensino religioso, conforme


dispõe o art. 210, §1º, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das
escolas públicas de ensino fundamental.
O direito à liberdade religiosa surge como um direito complexo e, neste contexto, as
ideias fundamentais são a diversidade religiosa, a autonomia das confissões religiosas e a sua
igualdade perante a lei, juntamente com o princípio, que dessas ideias decorrea separação das
confissões religiosas do Estado.356
No Estado Democrático de Direito, várias são as implicações quando se pretende
densificar e concretizar positivamente o conteúdo do direito à liberdade religiosa e o princípio da
laicidade do Estado. Surge, com isso, uma enorme turbulência dogmática e teorética, exigindo-se
uma análise sobre elementos de sacralidade e transcendência na esfera pública.
Neste item, apontam-se algumas situações referentes a temas que têm sido bastante
discutidos no Brasil e que motivam o debate acerca da liberdade religiosa no âmbito do espaço
público. Optou-se por adentrar, sem a pretensão de esgotar o tema, em peculiaridades
consideradas na problematização e na ponderação de argumentos deduzidos a partir da Ação
Direta de Insconstitucionalidade (ADI) proposta pela Procuradoria Geral da República/PGR,
em 2010, ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Em 2017, o STF julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
4439 na qual a Procuradoria-Geral da República (PGR) questionava o modelo de ensino
religioso nas escolas públicas de ensino do país. Por maioria dos votos357 (6 x 5), os ministros
entenderam pela improcedência do pedido e assim, o ensino religioso nas escolas públicas
brasileiras pode ter natureza confessional, ou seja, vinculado às diversas religiões.

3. ENSINO RELIGIOSO

A questão do ensino religioso tem sido muito debatida no âmbito das relações entre o
Estado e as confissões religiosas. Para tanto, o texto constitucional de 1988, na esteira das
Constituições anteriores, desde a de 1934, dispõe, em seu art. 210, §1º, que o ensino religioso, de

356 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva:

dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 187.
357O Supremo concluiu o julgamento da ADI 4439. Votaram pela improcedência do pedido os ministros Alexandre

de Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia. Ficaram vencidos
os ministros Luís Roberto Barroso (relator), Rosa Weber, Luiz Fux, Marco Aurélio e Celso de Mello, que se
manifestaram pela procedência da ação. Disponível em
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=357099 Acesso: 14 mar. 2018.

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Direitos Humanos & Fundamentais

matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental.
Quanto ao ensino religioso nas escolas públicas, Jónatas Machado entende que deve ser
equacionado à luz do princípio da neutralidade confessional do Estado, porém essa evolução não
foi bem compreendida e revelou-se ainda muito condicionada pelos dados fáticos e normativos
do sistema tradicional. Para esse entendimento, o autor opera algumas diferenciações
fundamentais:

A tradição multissecular de unidade teológico-política teve como consequência a


conformação do ensino público de acordo com o princípio da coordenação entre a
Igreja Católica e o Estado na afirmação de uma concepção confessional de verdade
objetiva e na realização da ideia de bem comum que a mesma tem subjacente. O
ensino da religião e da moral católica tinha um lugar central no sistema. Tratava-se de
dar corpo aos ideais da liberdade eclesiástica e do Estado Cristão. Neste contexto,
tipicamente pré-moderno, compreendia-se que os poderes públicos se
corresponsabilizassem administrativa e financeiramente na realização da atividade de
ensino religioso nas escolas estaduais.E assim acontecia. O monopólio da coação era
colocado ao serviço dos interesses confessionais, tornando-se o ensino religioso
obrigatório. Além disso, os professores de religião eram pagos pelo erário público.
Estado e Igreja Católica surgiam aos olhos dos cidadãos como entidades divinamente
ordenadas para a prossecução de finalidades transpessoais e transcendentes.358

Nesse sentido, Roseli Fischmann elucida que a existência do ensino religioso em escolas
públicas em si deve ser revista, pois independentemente do formato traz prejuízos à laicidade, ao
papel de construção cidadã da escola e à própria liberdade religiosa (...). E acrescenta: O projeto
político-pedagógico da escola deve contemplar temas como ética e direitos humanos, sem que
seja necessário envolver conteúdos religiosos.359
Verifica-se que o sistema atualmente vigente compreende-se melhor como um esforço
para conservar alguns vestígios do sistema tradicional de ensino religioso nas escolas públicas do
que como uma tentativa séria de adequação aos novos dados constitucionais. 360
A despeito da diretriz da Lei de Diretrizes e Bases, diversos Estados e Municípios têm
elaborado suas regulamentações de forma confessional, entre outros aspectos que podem ser
considerados inconstitucionais em face do princípio da laicidade. Nesse contexto, o Conselho

358 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva:

dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 378-379.
359 FISCHAMNN, Roseli. Escolas públicas e ensino religioso: subsídios para a reflexão sobre Estado laico, a escola

pública e a proteção do direito à liberdade de crença e culto.ComCiência: Revista Eletrônica de Jornalismo


Científico. São Paulo, v. 56, 2004, p. 1-7.
360MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva:

dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 381.

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Direitos Humanos & Fundamentais

Nacional de Educação (CNE) foi provocado diversas vezes a se manifestar sobre os contornos
do ensino religioso nas escolas públicas. 361
Várias questões pertinentes ao ensino religioso de caráter curricular foram levantadas
junto ao CNE362, tais como: o que entender por ensino religioso; a matrícula facultativa supõe
que a escola, em seu projeto pedagógico, ofereça com clareza aos alunos e pais quais são as
opções disponibilizadas pelas igrejas, em caráter confessional ou interconfessional;o
financiamento desta atividade na escola pública; qual deve ser a carga horária e se ela integra o
mínimo legal de 800 horas anuais preconizadas pela Lei de Diretrizes e Bases.363
Os Conselheiros Relatores, após pesquisa e discussão interna nas Câmaras e recurso ao
pensamento de especialistas, submeteram o Parecer364 ao Conselho Pleno, que manifestaria o seu

361 ZYLBERSZTAJN, Joana. O princípio da laicidade na Constituição Federal de 1988. Tese de doutorado.

Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP). São Paulo,
2012, p. 153.
362 O CNE manifestou-se em várias oportunidades sobre o ensino religioso. Posteriormente, o Parecer nº 16/98

versou sobre a consulta sobre a carga horária do ensino religioso no ensino fundamental. O Parecer 97/99 tratou da
formação de Professores para o Ensino Religioso nas Escolas Públicas de Ensino Fundamental. A formação de
professores para o ensino religioso se enquadra na questão mais ampla da oferta de formação religiosa para os
alunos dos estabelecimentos públicos de ensino e está relacionada à separação entre Igreja e Estado, que tem sido,
no Brasil, objeto de permanente debate. O Parecer 26/2007 resultou da consulta sobre a legalidade da criação do
Conselho Municipal de Ensino Religioso, cuja parte interessada foi a Secretaria Municipal de Educação de
Goiânia/GO.
363 Por meio do parecer CNE nº 12/97, a Câmara de Educação Básica pronunciou-se sobre a inclusão do ensino

religioso para efeito da “totalização do mínimo de 800 horas”. O parecer diz que “a resposta é não”, devido ao fato
de a matrícula ser facultativa e a disciplina fazer parte da liberdade das escolas. A mesma Câmara, em resposta à
solicitação da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina, que pedia maior explicitação do assunto âmbito
das 800 horas obrigatórias no ensino fundamental, pronunciou-se por meio do parecer nº 16/98, de modo a
incentivar o ensino religioso interconfessional e ecumênico e a confirmar o desenvolvimento de “um currículo com
840 (oitocentas e quarenta) horas anuais, o que propicia, com grande facilidade, o cumprimento do preceito legal do
ensino religioso. Além disso, no histórico do parecer, o relator enuncia que a normatividade vigente implica a oferta
regular, “para aqueles alunos que não optam pelo ensino religioso, nos mesmos horários, outros conteúdos de
formação geral [...]”. Por sua vez, o Conselho Pleno do CNE pronunciou-se sobre a formação de professores para o
ensino religioso por meio do parecer CP/CNE nº 097/99, porque a nova redação incumbe ao poder estatal a
definição das normas para habilitação e admissão dos professores desta disciplina. Diz o parecer, em vários trechos
importantes: Nessa formulação [da lei nº 9.475/97], a matéria parece fugir à competência deste Conselho, pois a
questão da fixação de conteúdos e habilitação ou admissão dos professores fica a cargo dos diferentes sistemas de
ensino. Entretanto, a questão se recoloca para o Conselho no que diz respeito à formação de professores para o
ensino religioso, em nível superior, no Sistema Federal de Ensino. [...] A Lei nº 9.475 não se refere à formação de
professores, isto é, ao estabelecimento de cursos que habilitem para a docência, mas atribui aos sistemas de ensino
tão somente o estabelecimento de normas para habilitação e admissão de professores. [...] Considerando essas
questões, é preciso evitar que o Estado interfira na vida religiosa da população e na autonomia dos sistemas de
ensino. [...] Esta parece ser, realmente, a questão crucial: a imperiosa necessidade, por parte do Estado, de não
interferir e, portanto, não se manifestar sobre qual o conteúdo ou a validade desta ou daquela posição religiosa, de
decidir sobre o caráter mais ou menos ecumênico de conteúdos propostos [...]; não cabe à União determinar, direta
ou indiretamente, conteúdos curriculares que orientem a formação religiosa dos professores, o que interferiria tanto
na liberdade de crença como nas decisões dos estados e municípios referentes à organização dos cursos em seus
sistemas de ensino, não lhe compete autorizar, nem reconhecer, nem avaliar cursos de licenciatura em ensino
religioso, cujos diplomas tenham validade nacional. CURY, Carlos Roberto Jamil. Ensino religioso na escola
pública: o retorno de uma polêmica recorrente.Disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n27/n27a12.pdf>. Acesso: 12 mar. 2018.
364 A Constituição apenas reconhece a importância do ensino religioso para a formação básica comum do período

de maturação da criança e do adolescente, que coincide com o ensino fundamental e permite uma colaboração entre
as partes, desde que estabelecida em vista do interesse público e respeitando, pela matrícula facultativa, opções
religiosas diferenciadas ou mesmo a dispensa de frequência de tal ensino na escola. Conselho Nacional de Educação.

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Direitos Humanos & Fundamentais

posicionamento: entendia-se não haver contradição entre o art. 19, I, e o art. 210 da Constituição
Federal.
O caput do art. 213 estabelece que os recursos públicos serão destinados às escolas
públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas
em lei.
José Afonso da Silva365 explica que, para o dispositivo, essas escolas serão definidas em
lei, porém a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional não o fez. Limitou-se a reproduzir o
texto constitucional, apenas acrescentando a nova condição de prestação de contas ao Poder
Público dos recursos recebidos. Acrescenta o autor que

O conceito de escola confessional não é difícil de estabelecer, porque se refere a escola


vinculada a alguma crença religiosa. Lembre-se que o art. 19, I, veda à União, aos
Estados, Distrito Federal e Municípios vínculos com qualquer culto religioso ou igreja,
incluindo a subvenção; mas ressalva a possibilidade, nos termos da lei, de colaboração
de interesse público. No dispositivo em comentário, admite-se uma forma de
subvenção à escola mantida por alguma religião ou igreja.

Embora não seja objeto de estudo a ser aprofundado neste momento, é oportuno citar
que o ensino católico e de outras confissões na rede pública de ensino do País foi tratado no art. 11 do
decreto 7.107/2010, que promulga o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil
e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na Cidade do
Vaticano, em 13 de novembro de 2008.366
Após o acordo, a Procuradoria-Geral da República (PGR) propôs, em agosto de 2010, a
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4439,a fim de que o Supremo Tribunal Federal:
1. Realizasse interpretação conforme a Constituição do art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB) para assentar que o ensino religioso em escolas públicas só pode ser de
natureza não confessional, com proibição de admissão de professores na qualidade de
representantes das confissões religiosas; 2. Proferisse decisão de interpretação conforme a
Constituição do art. 11, §1º, do Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé,
relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil; 3. Caso se tivesse por incabível o

Parecer CNE 05/97, de 11 de março de 1997. Publicado no Diário Oficial da União de 17.06.1997. Disponível em
<http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/PNCP0597.pdf>. Acesso: 12 mar. 2018.
365 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 819.
366A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da

pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da
pessoa. §1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina
dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural
religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de
discriminação. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D710
7.htm>. Acesso: 10 mar. 2018.

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Direitos Humanos & Fundamentais

pedido formulado no item anterior, fosse declarada a inconstitucionalidade do trecho “católico e


de outras confissões” constante do art. 11, §1º, do Acordo mencionado.367
Ao justificar a necessidade de discussão mais ampla sobre o tema, o relator Ministro
Luís Roberto Barroso afirmou que tais questões extrapolavam os limites do estritamente jurídico,
demandando conhecimento interdisciplinar a respeito de aspectos políticos, religiosos, filosóficos, pedagógicos e
administrativos relacionados ao ensino religioso no país.
Apontou assim, para a necessidade de ouvir representantes do sistema público de
ensino, de grupos religiosos e não religiosos e de outras entidades da sociedade civil, bem como
especialistas no tema.
Depois de cinco anos aguardando uma decisão do Supremo Tribunal Federal, a
audiência pública368 foi realizada em 15 de junho de 2015.

3.1 Audiência pública de 2015

Na audiência pública sobre ensino religioso nas escolas públicas promovida pelo
Supremo Tribunal Federal, as posições sobre o tema divergiram em dois pontos: os favoráveis
ao ensino religioso, entre os quais se encontram representantes das religiões (separadamente); e
aqueles que defendem a laicidade do Estado brasileiro.
Ao abrir a audiência, o relator Ministro Luís Roberto Barrosoafirmou que a democracia
contemporânea contempla três dimensões que devem ser equilibradas e expôs que três valores
seriam abordados: a liberdade religiosa, o estado laico e o dispositivo constitucional que prevê o
ensino religioso nas escolas públicas. Afirmou ainda na ocasião queestamos falando só de escolas
públicas, não há nada contra escolas (particulares) católicas, protestantes ou judaicas, que continuarão a ministrar
livremente o ensino religioso confessional. Ao todo, foram trinta e uma entidades que se manifestaram e
defenderam suas argumentações.
A audiência terminou com a maioria dos representantes das entidades contrária ao
ensino religioso nas escolas da rede pública.
As apresentações foram efetuadas, em sua maioria, por aqueles que ingressaram na ação
como Amicus Curiae, dentre várias manifestações, destaca-se a apresentação dos representantes da
Confederação dos Trabalhadores em Educação (CNTE); do Conselho Nacional de Educação do
Ministério da Educação; da Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ;

367Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=635016&tipo=TP&descricao =AD


I%2F4439>. Acesso: 10 mar. 2018.
368 Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=293591>. Acesso: 10

mar. 2018.

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Direitos Humanos & Fundamentais

da Amicus DH (Grupo de Atividade de Cultura e Extensão da Faculdade de Direito da


Universidade de São Paulo).
O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) na
época, Roberto Franklin de Leão, foi o primeiro expositor na audiência pública. Ele ressaltou a
importância de um debate democrático sobre o tema e afirmou que a posição histórica da
CNTE, que reúne 48 sindicatos e representa 2,5 milhões de trabalhadores em educação, é que os
cultos e religiões sejam transmitidos em espaços adequados para isso.
Segundo Franklin de Leão, a CNTE não é contra o estudo do fenômeno religioso nas
escolas públicas, mas defendeu que esse estudo seja uma análise da religião por meio das
matérias da grade curricular, como história, geografia, sociologia, entre outras. Portanto, os
professores dessas matérias são os mais adequados a transmitir esse conteúdo. Concluiu
afirmando que “a escola não pode ser um local que privilegie essa ou aquela religião” e
“alaicidade do Estado é fundamental para que possamos manter a unidade da sociedade
brasileira e a escola pública deve ser um espaço que reflita todos os espectros étnicos e religiosos
da nossa sociedade”.
O representante do Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação, Luiz
Roberto Alves, manifestou-se pela negativa de qualquer atitude doutrinária ou confessional
vinculada ao ensino religioso e, conforme parecer da Procuradoria Geral da República, deve ele
ser ministrado de forma laica, sob um contexto histórico e abordando a perspectiva das várias
religiões.
Daniel Sarmento, representante da Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de
Direito da UERJ, ao manifestar-se pelo ensino religioso não confessional, afirmou que existem
cerca de 30 milhões de crianças e adolescentes matriculados em escolas públicas que, quando a
disciplina é ministrada por religiosos, estão expostos a visões dogmáticas e excludentes.
Para ele, a mera possibilidade de o aluno se ausentar das aulas não é suficiente para
garantir a liberdade de crença, em razão das pressões psicológicas, às quais crianças e
adolescentes, como seres em formação, estão sujeitos. Ele destacou também que em muitas escolas
não há nenhuma atividade alternativa às aulas de ensino religioso, e as crianças que não quiserem assistir, além
de serem expostas, ficarão ociosas.
Como representante da Amicus DH (Grupo de Atividade de Cultura e Extensão da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo),Virgílio Afonso da Silva ressaltou que,
desde 1891, todas as constituições brasileiras consagraram o princípio da laicidade estatal. Para
ele, a única forma de respeitar esse princípio seria a ausência de ensino religioso nas escolas
públicas, mas como a própria Constituição de 1988 prevê, a disciplina deve ser não confessional,

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Direitos Humanos & Fundamentais

única forma de se adequar ao princípio do Estado laico. Argumentou ainda que, após pesquisas e
debates, o grupo chegou à conclusão de que a ADI 4439 deveria ser julgada procedente.

4. O VOTO DO RELATOR NA ADI 4439

O voto do Ministro Luís Roberto Barroso369 reconhece a procedência do pedido da


ADI 4439 para assentar que o ensino religioso em escolas públicas somente pode ter natureza
não confessional, com proibição da admissão de professores na qualidade de representantes das
confissões religiosas.
Entendeu o relator que as transformações culturais e científicas dos últimos 500 anos
não levaram ao ocaso das religiões, ao desparecimento do sentimento religioso, nem tampouco
eliminaram a necessidade humana por algum grau de espiritualidade. Embora a religião tenha
sido removida do centro dos sistemas sociais, a decisão do indivíduo em relação a ela, seja para
aderir a uma, seja para rejeitar todas, ainda constitui uma das escolhas existenciais mais
importantes da sua vida.
Acrescenta que a despeito da proeminência das religiões tradicionais, o mundo
contemporâneo caracteriza-se pelo pluralismo e pela diversidade nessa matéria. Estima-se
existirem mais de 4 mil religiões distintas, distribuídas pelas duas centenas de países do planeta.
Diante desta realidade, oEstado deve desempenhar dois papeis decisivos na sua relação
com a religião. Em primeiro lugar, cabe-lhe assegurar a liberdade religiosa, promovendo um
ambiente de respeito e segurança para que as pessoas possam viver suas crenças livres de
constrangimento ou preconceito. Em segundo lugar, é dever do Estado conservar uma posição
de neutralidade no tocante às diferentes religiões, sem privilegiar ou desfavorecer qualquer uma
delas. É nesse ambiente que se insere o debate a respeito do ensino religioso nas escolas
públicas.
A corroborar a legitimidade desta interpretação constitucional, o Ministro ressalta que,
em audiência pública realizada no âmbito desta ação direta, a grande maioria dos representantes
de denominações religiosas, dos especialistas e das entidades da sociedade civil participantes
defendeu a impossibilidade prática de conciliar os modelos confessional e interconfessional de
ensino religioso confessional com a laicidade do Estado.
Em síntese, dos 31 participantes da audiência, 23 defenderam a procedência da ação.
Ainda, do total de participantes, 12 eram entidades de caráter religioso (incluindo posições não

369Disponível em http://luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2017/08/ADI-4439-vers%C3%A3o-
final.pdf – Acesso: 16 mar.2018.

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Direitos Humanos & Fundamentais

religiosas), representativas da diversidade religiosa do país. Destes, 8 defenderam a procedência


da ação.
Como não há parâmetros nacionais para a disciplina, não existe um mecanismo que
contribua para que o conteúdo do ensino religioso seja transmitido sem proselitismo e com
respeito à liberdade religiosa dos alunos em todas as escolas de ensino fundamental no Brasil.
Em decorrência disso, não são raros os relatos de discriminação de cunho religioso, muitas vezes
graves e envolvendo até violência física, em especial relacionados a religiões de matriz africana.
Outro problema decorre da associação entre o ensino confessional e a possibilidade de
custeio da disciplina pelo Poder Público. Como se viu, de um lado, a ausência de parâmetros
curriculares nacionais para a disciplina deu ensejo à adoção de modelos confessionais e
interconfessionais na maior parte dos estados brasileiros. De outro lado, a nova redação do
artigo 33 da LDB, não mais contém a previsão de oferta da matéria sem ônus aos cofres públicos.
Como resultado, produziu-se uma dificuldade em harmonizar a regra do art. 19, I, da
Constituição Federal, que proíbe às entidades federativas a subvenção de religiões, com o ensino
religioso de caráter confessional, adotado em grande parte do país.
Como exemplo, foi citado o caso do Estado do Rio de Janeiro, que optou por adotar o
modelo confessional, mesmo após a revisão da LDB. Em 2004, o Rio de Janeiro realizou
concurso público específico para o preenchimento de 500 vagas de professores de ensino
religioso, sendo 342 para professores católicos, 132 para evangélicos e 26 para outros credos.
De acordo com o edital do concurso, no ato da inscrição, os candidatos deveriam
declarar a opção por um credo e serem credenciados pela autoridade religiosa. Reconheceu-se,
ainda, às autoridades religiosas o direito de cancelar, a qualquer tempo, o credenciamento,
quando o professor mudar de confissão religiosa ou apresentar motivos que o impeçam
moralmente de exercê-la, caso em que para permanecer nessa condição o professor deveria
apresentar novo credenciamento.
O ministro afirma que não há nada mais contrário à laicidade estatal e aos princípios
que regem os concursos públicos do que fazer o cargo de professor depender de manifestação
de vontade de confissões religiosas. E ainda pior: o ensino religioso confessional produziu
relevante impacto para o erário estadual. Em 2004, o ano da realização do concurso, o Rio de
Janeiro gastou cerca de R$16 milhões com a oferta da disciplina.
O voto do relator nessa matéria foi preterido e em sessão plenária realizada em 27 de
setembro de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou improcedente a Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) 4439 proposta pela Procuradoria Geral da República (PGR). Por

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Direitos Humanos & Fundamentais

maioria dos votos (6 x 5), os ministros entenderam que o ensino religioso nas escolas públicas
brasileiras pode ter natureza confessional, ou seja, vinculado às diversas religiões.

CONCLUSÃO

O processo de redemocratização que a Constituição Federal de 1988 ajudou a


protagonizar e trouxe impacto, especialmente, na esfera dos direitos fundamentais.
O texto constitucional institucionaliza a instauração de um regime político democrático
no Brasil. Introduz também indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e
direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira. A partir dela,
os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando-se como o documento mais
abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotados no Brasil. 370
Nesse processo de democratização e de institucionalização dos direitos e garantias
fundamentais, estruturou-se um Estado com as qualidades que fazem dele um Estado
Constitucional, conforme se concebe hoje, pelo constitucionalismo moderno, um Estado de
Direito Democrático. Nesse sentido, o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como
núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico.
Após essas reflexões, abordam-se as disposições constitucionais no sentido de que a
escola pública não é espaço de catequese e proselitismo religioso, católico ou de qualquer outra
confissão; não é local para o ensino confessional, interconfessional ou ecumênico, com prejuízo
das visões ateístas, agnósticas ou de religiões com menor poder na esfera sócio-política.
Assim, a tese da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439 apresentada pela
Procuradoria-Geral da República (PGR) era no sentido de compatibilizar o caráter laico do
Estado brasileiro com o ensino religioso nas escolas públicas através da adoção do modelo não
confessional, em que o conteúdo programático da disciplina consiste na exposição das doutrinas,
das práticas, da história e de dimensões sociais das diferentes religiões, bem como de posições
não-religiosas, como o ateísmo e o agnosticismo, sem qualquer tomada de partido por parte dos
educadores. Estes, por outro lado, devem ser professores regulares da rede pública de ensino, e
não pessoas vinculadas às igrejas ou confissões religiosas.
Este formato de ensino religioso compatível com o princípio da laicidade do Estado
não agradou a maioria dos ministros do STF. Lamentável!

370PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2013, p.
83, 86.

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