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.:se as cançõesprimam por


explicitar em suas letras, o tema
da junção, em forma de rupturas
e encontros afetivos, suas melOdias I
riforçam consideravetmente o
processo de reintegração das
diferenças recuperanda, também
.do ponto de vista musical, ofluxo
interrompido ". ~
EMusicoterapia,
PrecisoCantosCantar
e Canções .
Luiz Tatit '.

O cantar é o princípio e a
alma da música. A
população brasileira der- .
)~ l?ij~j~:',
rama sua paixão, suá dor; seu
sonho, sua história, sua angústia,
seu amor, sua sátira, SU~crítica WW1 F dM ~ RR,~.~
através da canção popular urbana
ou anônima. Aescuta e o olhar de
Luiz Antonio Mil/ecco, Maria ~.
Regina Brandão e Ronaldo
Mil/eeco nos traz aspectos muito'
significativos da utilização da
Música Popular na compreensão
UNW~~~'~~
de uma leitura musicoterápica
que nos ajuda a entender o ser ~.
humano na sua trajetória de vida.
Desderecém-nascida a criança se
expressa por sons e logo cedo
experimenta balbucios, pequenas
melodias enquanto brinca,
inventa histórias cantadas e
l(.-J)&
quando não encontra a palavra itW/àJOtl
entoa um Ia-Ia-lá ... , criando
ritmos e sonoridades inusitadas. I
Quando neste livro os musico-
terapeutas escolhem caminhos
para sugerir algumas funçôes do
canto, que irão apoiar o trabalho
de uma leitura
musicoterapêutica, outros
públicos também serão seduzidos:
! :

I,
I

E Preciso Cantar
Musicoterapia, Cantos e Canções

Luís Antônio Millecco Filho


Musicoterapeuta clínico com formaçtlo
em Gesfa't~Terapill.
Criador da técnica Músico- Verbal.

Maria Regina Esmeraldo Brandão


Musicoterapeuta clfnica comfornzação
em Vegetoterapia.

Ronaldo Pomponét Millecco


Musicoterapeuta e Psicólogo, com
especialização em Musicoterapia.
Mestre em Educação Musical e Professor do
Conservatório Brasileiro de Música.

ENELlVROS
Rio de Janeiro
Copyright@2001,LuísAntônioMilleccoFilho.
Maria Regina Esmeraldo Brandão, Ronaldo Pomponét Millecco
Direitos exclusivos desta edição para a língua portuguesa
ISBN: 85-7181-044-3 concedidos à
ENELlVROS EDITORA E LIVRARIA LTDA.
Av. Henrique Valadares 146, Sobreloja 201
CBP: 20231-031 - Rio de Janeiro. RJ - Brasil.
Telefax: (2 I) 242-3484
e-mail: enelivros@pontocom.com.br
www.enelivros.com.br

...Vai, triste canção


Reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou reprodução deste Sai do meu peito e semeia a emoção
volume, no todo ou em pa],"te,sob quaisquer formas ou por quaisquer meios Que mora dentro do meu coração ...
(eletrônico, mecânico, gravação, fqtoc6pias ou outros), sem permissão expres-
sa da Editora.
(Modinha - Tom Jobim e Vinicius de Moraes)

Capa:
Ricardo Paes
Ilustração de Capa:
Mariana Milleco Ribeiro ... Viver, e não ter a vergonha de ser feliz
Editoração Eletrônica: Cantar e cantar e cantar
Dilmo Milheiros
Produção Editorial:
A beleza de ser um eterno aprendiz ...
Mar.ia Cláudia Chagas (O que é, o que é - Luiz Gonzaga Júnior)
Produção Gráfica:
Mário Salvador Faillaee

M646 ...toma esta canção


MilIecco Filho, Luís Antônio,
É preciso cantar - Musicoterapia, cantos e cançõesl como um beijo
Luís Antônio Millecco Filho, Maria Regina Esmeraldo
Brandão, Ronaldo Pomponét MiIlecco. - Rio de Janeiro:
(Menino do Rio - Caetano Veloso)
Enelivros, 2001.
136 p.

Inclui Índice e bibliografia


ISBN - 85-7181-044-3

I. Musicoterapia. 2. MediCina Alternativa. 3. Terapia-


música. I. Millecco, Ronaldo Pomponét. 11. Brandão, Ma-
ria Regina Esmeralda. 111.Título

CDD 615.85154
SUMÁRIO

Prefáció - Mauro Sá Rego Costa ix

Comentário dos Autores xiii

PRIMEIRA PARTE

O Cantar Humano 1

1. O Homem como Criador 3

2. A Importância do Cantar 7

3. Pequena História do Canto 13


3.1. Do Período Pri mi ti vo aos Tempos do Barroco 14
3.2. Colonização: O Encontro das Etnias 18
3.3. Os Cantores e Cantoras do Rádio 21
3.4. Do Cantar Intimista à Massificação 25'

4. A Diversidade do Cantar , 33
4.1. Cantos de Trabalho 34
4.2. Canções Anônimas 36.
4.2.1. Acalantos 37
4.2.2. Jogos Infantis 41
4.2.3. Folguedos 45
4.3. Cantos Sacros ou Religiosos 48
viii É PRECISO CANTAR

PREFÁCIO
4.4. Canto Carnavalesco ..............•.......... 50
4.4.1. O Cantar Carnavalesco no Rio de Janeiro 52
4.5. Cânticos Guerreiros 63
4.6. Canto como Intervenção Política 70 Mauro Sá Rego Costa
4.7. Canções de Amor 74 Doutor em Educação pela UFRJ. Professor da FE}3F/UERJ e
Conservatório Brasil.eiro de Música.
SEGUNDA PARTE
Musicoterapia 77

5. O Cantar na Musicoterapia 79

6. Algumas Direções

7. O Músico-Verbal
85

91
U
.
m livro que dá vontade de cantar. Você vai lendo e o
tempo todo o texto é atravessado por letras de canções.
Muitas que você conhece e a leitura é imediatamente
musical. Muitas de que você não lembrava mais e que provo-
cam como uma memória involuntária, e você é deslocado, de
8. Funções do Canto 95 repente, pela lembrança de um pedaço perdido da tua vida.
8. L Canto Falho 95 Canções dos velhos carnavais; canções de protesto, de tua época
8.2. Canto como Prazer 97 dy estudante; cantigas de roda, das brincadeiras infantis; can-
.. 8.3. Canto como Expressão de Vivências Inconscientes. 98
8.4. Canto como Resgate 100
ções de amor, canções de guerra ... De repente, o mundo é
repovoado por essa camada sonora que o acompanha meio sem
8.5. Canto Desejante 102 se perceber, meio naturalmente, como o calor do verão e as
8.6. Canto Comunicativo 103 cores fortes do mês de maio. Com a descrição detalhada de
8.7. Canto Corporal 105 todos os tipos, motivos, e modos das canções, desde as mais
antigas - de trabalho e de devoção - às mais recentes, que
Epílogo ; 109 você acaba de ouvir no rádio do carro, o texto nos passa essa
sensação: alérn dos carros, dos outdoors, das árvores e dos
Bibliografia 113 passarinhos, vivemos, desde sempre, cercados de canções.
Essa é uma sensação nova e surpreendente, porque nossa
Índice Remissivo i17 relação imediata com as canções, até porque elas sempre esti-
veram aí, não é com algo de fora - um objeto - mas com
partes nossas - partes muito especiais, que tem uma existên-
cia física pouco clara ao lado desse seu caráter memorial,
afetivo. Os afetos existem no tempo, como a música, e o tem-
x É PRECISO CANTAR,
PREFÁCIO xi

po passa, não há como pegá-lo, estancá-lo. Há, sim. As can- Ronaldo Millecco, Luís Antônio Millecco e Maria Regina
ções seriam uma das formas privilegiadas de fazer isso. Elas Brandão nos impelem a fazer ao longo de "O Cantar Huma-
guardam blocos de tempo, de memória. E com seu formato no", a primeira parte. Essa viagem aponta, também, a impor-
circular, de eterno retorno, voltam sempre, resgatando a carga tância que tem para o musicoterapeuta poder habitar o mun-
afetiva com que as associávamos - sem o perceber, e daí vem do cultural em que vive (ouve e canta) seu paciente, com o
oseu poder - na época em que as ouvíamos ou cantávamos. conhecimento da riqueza e vnriedade de elementos musicais
Quando uma canção nos volta à mente, nesse modo da me- (e poético-musicais) o mais vasto possível. Mostra como é ne-
mória involuntária - nota que involuntário também é ouvi-la cessário mergulhar neste universo, e, com o domínio desta gran-
sem pedir, ou ler sua letra nas páginas que seguem -, ela traz, de diversidade, aproximar-se de um tempo imemorial, ou "pas-
COmosua paisagem, os traços marcantes de nossa arquitetura sado puro", que, como mostra Proust, seria a fonte de possibi-
afetiva daquele momento. Somos transportados para o pas- lidade das experiências do passado ou da memória.
sado, não tal como era quando o vivemos, mas tal como o De outro modo, como ser capaz de influir na mudança do
sentíamos. passado ou da memória de seu paciente? Proust aponta que
Daí a riqueza da utilização das canções como material este "passado puro" teria na literatura e na música sua morada
terapêutico, na musicoterapia, que é a questão da segunda par- predileta. Mudar nosso passado - e nosso futuro - como
te do livro. Toda terapia é, de certo modo, rescrever a nossa pretende o trabalho terapêutico, aprende com essa possibilida-
história. As dificuldades com que lidamos por não conseguir de da memória de um tempo que nunca foi vivido, um "cristal
dar conta do que sentimos, pelos conflitos entre valores, o con- de tempo", de que nos falam as canções antes que as fixemos
flito entre nossos ideais e a "realidade" que temos que enfren- arbitrariamente a um momento de nossas vidas.
tar, os bloqueios em relação a espaços de experiência afetivos,
profissionais, expressivos etc., todos aparecem como determi-
nados modos de nos "contar" ou nos "cantar". E o trabalho
terapêutico pode então ser pensado como aprender a cantar
novas canções, ou mais ainda, chegar a ouvir e cantar as mes-
mas canções que estão em nossa memória mudando a carga
afetiva com que as fixamos. Este é, às vezes, um enorme e
difícil trabalho: um trabalho de intérprete, quando "interpre-
tar" será mudar um andamento, um clima, um modo de dizer
(os gestos, a atitude, que o acompanham, como lembram os
autores, citando Luiz Tatit), levando junto uma arquitetura de
nossa vida, de nossos afetos, nossos modos de sentir.
Os relatos dos procedimentos terapêuticos desta segunda
',.
parte não seriam tão marcantes, no entanto, sem a viagem que
COMENTÁRIO DOS
AUTORES

D
esde os primeiros passos de nossas atividades clínicas,
temos uma preocupação central: quais as funções tera-
pêuticas do canto? Em que medida fala ele das necessi-
dades e conflitos humanos? De que maneira pode o musicote-
rapeuta servir-se dele como instrumento de trabalho? A esse
propósito, levantamos uma série de reflexões e questões.
A necessidade de criar cultura; a arte como expressão da
dimensão simbólica; o choro e a vocalização como primeiras
manifestações, antecedendo a aquisição de linguagem; o can-
to como linguagem primitiva; as canções presentes na infân-
cia, no folclore, no trabalho, nas religiões, nas festas popula-
res, na política e na história. São estes os diversos caminhos
por nós percorridos na reflexão sobre a importância do cantar
humano. O Canto é a linha de costura que uniu os retalhOs
desta colcha de assuntos. Alguns pontos men;ceram um espa-
ço maior, decorrente da importância que acreditamos terem
para a Musicoterapia: uma pequena história do canto, os
acalantos, as canções infantis, as canções folclóricas, as can-
ções carnavalescas e os cantos como intervenção política, fo"
ram assuntos mais desenvolvidos.
No campo da Musicoterapia, também encontramos alguns
camfnhos que caracterizam o trabalho singular de cada
terapeuta. Independe da linha teórica de cada um, a perspecti-
va de que o Canto é um elemento terapêutico de grande valor
é concepção comum a todos. Finalmente, refletindo sobre nossa
experiência clínica, propomos algumas funções terapêuticas
do canto .
PRIMEIRA PARTE

o CANTAR
HUMANO

]
I
I
í
D
O HOMEM COMO
CRIADOR

"A arte é necessária


para que o homem se torne capaz
de conhecer e mudar o mundo.
Mas a arte também é necessária
em virtude da magia
que lhe é inerente. "
Ernest Fischer

N o início era o caos e o som. Um mundo incógnito intri-


gava o homem, munido dos sentidos e da inteligência.
Partindo da percepção descontínua, o homem começou
a criar ordenações, mitologias e rituais, que aplacassem um
pouco a sua incompreensão e desproteção frente a natureza
que ora o acalentava, ora o aterrorizava. Criando seus símbo-
los, pôde expressar valores e interpretar a realidade vivida. O
universo físico e simbólico já inerente a nós ganha nova di-
mensão, e como seres humanos, tornamo-nos animais um tan--
to mais sofisticados.
Na mitologia grega, Prometeu rouba o fogo dos deuses
para dá-lo aos mortais, daí originando a civilização e o ato
criador. Pudemos, assim, transformar a matéria, o alimento,
o pensamento, o sentimento, a cultura. Na mitologia judai-
co-cristã, Adão e Eva provam o fruto da árvore do Bem e do
Mal, do conhecimento, desencadeando a aurora da consciên-
cia humana. A linguagem, o mito, a arte, a religião, estão
4 É PRECISO CANTAR o HOMEM COMO CRIADOR 5

presentes em todas as culturas humanas de todos os tempos. além disso, saber o quanto o pensador ou o escritor, indivi-
Isso permite o intercâmbio e o registro de experiências, a dualmente, devem ao estímulo do grupo em que vivem, e se
expressão de sentimentos, o deslizamento e a complexificação eles não fazem mais do que aperfeiçoar um trabalho mental
da cultura. em que os outros tiveram parte simultânea. 2

cantador não escolhe o seu cantar Por sua vez Jung, estudando os arquétipos e o inconsciente
canta o mundo que vê coletivo, fala da dinâmica dessas forças influindo de maneira
(O Cantador - Dory Caymmi e Nelson Motta) decisiva em todos os movimentos inconscientes da humanida-
de, principalmente na criatividade humana.3
meu caminho pelo mundo
eu mesmo traço é um lamento, um canto mais puro
a Bahia já me deu que me ilumina a casa escura
régua e compasso é minha/orça, é nossa energia
(Aquele Abraço - Gilberto Gil) que vem de longe para nos fazer companhia
(Raça - Milton Nascimento e Fernando Brant)

--~i>~ O ato criador é um ato de ruptura, de mergulho no caos mas se eu tiro do lamento
em busca de uma forma. Criar é um ato individual e coletivo. um novo canto
Diz-nos Helio Pellegrino que o artista sonha de novo o seu outra. vida vai nascer
sonho, quando o exprime e, assim, consegue transformá-lo (Outubro - Milton Nascimento e Fernando Brant)
em canto geral (... ) Arte é sonho' compartilhado, comunica-
do, dialógico.1 Segundo Mário de Andradé, os elementos formais da mú- -I
---:'>? O coletivo gesta a idéia e o artista parteja a obra. A cultura
dá os referenciais, os instrumentos materiais e simbólicos que
o artista utiliza para criar seu caminho e orientar o nosso.
sica, o Som e o Ritmo, são tão velhos como o homem, por ~"{I..\I
estarem presentes nele mesmo, nos movimentos do coração,'
no simples ato de respirar, no caminhar, nas mãos que percu- ~
u:
Movimento dialético de mútua influência. Segundo Freud, tem e na voz que produz o som. Quando o homem se percebe .J
como um instrumento, como um corpo sonoro, e descobre que
a mente grupal é capaz de gênio criativo no .campo da inteli- estes sons podem ser organizados, nasce a música. Começa,
gência, como é de,?,onstrado, acima de tudo, pel~ própria ele, então, a manejá-los, combiná-los, convertendo-os em ma-
linguagem, bem como pelo folclore, pelas canções popula- téria nova, em um fantástico veÍCuloexpressivo.
res e outros atos semelhantes. Permanece questão aberta,

2 Freud. 1980 (1921), p.108.


3 Cf.Jung, 1964.
J Pell~grino, 1988, p. 52.
'Cf. 1987.

n
6
É PRECISO CANTAR

o compositor me disse
que eu cantasse distraidamente esta canção
e que eu cantasse como se o vento soprasse ••
pela boca vindo do pulmão
A IMPORTANCIA
e que eu ficasse ao lado pra escutar DO CANTAR
o vento jorrando as palavras pelo ar
(O compositor me disse - Gilberto Gil)

e nunca o alo mero


de compor uma canção eu preparo uma canção
pTa mim foi tão desesperadamente necessário em que minha mãe se reconheça
(Noite de Hotel- Caetano Veloso) todas as mães se reconheçam
e que fale como dois olhos (...)
Darwin relacionava as principais funções da música nas so- eu preparo uma canção
ciedades primitivas, às celebrações e rituais de sexo e fertilida- que faça acordar os homens
de ..O" canto seria um dos atrativos com vistas ao acasalamento, e adormecer as crianças
(Canção Amiga - Carlos Drummond de Andrade e
e a fala surgiria mais tarde, como um desenvolvimento da "lin-
Milton Nascimento)
guagem sexual", aplicada à comunicação entre as pessoas5
Garcia-Roza, em seu livro "Palavra e Verdade"6, investiga a
i'-~ origem da palavra. Recorre a%etzs#, que atribui a origem da
5\'0
~\)0
poesia aos cantos mágicos e religiosos, que teriam por objetivo,
constranger tanto a fúria dos deuses, como a dos homens, "amo-
lecendo-os" pela cadência do canto. A palavra cantada tinha um
caráter ritual, o que a distinguia da palavra escrita.
T odas nós atravessamos um caminho similar ao da hu-
manidade como um todo, quando nascemos e nos lan-
çamos à aventura de existir. A ontogênese repete a fi- It::"
logênese. Hélio Pellegrino dizia que o ser humano é o ser
para o qualo mundo, tal como está, não basta7. Somos a
As opiniões sobre a origem do canto, podem ser polêmicas,
única espécie que nasce prematura, recortada do Cosmo. So-
às vezes até divergentes. Mas, seja para exorcizar temores,
fremos um corte, para cujo preenchimento não temos equiC
como linguagem sexual, ou como parte dos atos litúrgicos, o
pamentos instintivos. Vivemos, assim, uma experiência de
fato é que, desde muito cedo, a organização humana se utiliza
aguda insuficiência biológico-ontológica. Nos vemos mer- ]
do canto, da expressão vocal, criando novos universos e ex-
gulhados em vertiginosas e explosivas exci.tações internas e
pandindo sua comunicação.
externas, sem condições de decifrá-Ias. Temos uma percep-
ção descontínua do fluxo de estímulos e vivemos crivados
5 Apud Muggiati, J 973.
6 Cf. 1990.
71987, p.3J6.
8
É PRECISO CANTAR A IMPORTÂNCIA DO CANTAR 9

de angústia nesta fragmentada iniciação vital. Expressamos Quando a criança ainda não aprendeu afalar, mas já perce-
o desconforto, dilatando os pulmões e chorando: nosso pri- r beu que a linguagem significa, a voz da mãe, com suas melo-
meiro som.
dias e seus toques, é pura música, ou é aquilo que depois
O alimento nos chega e experienciamos o primeiro gozo, continuaremos para sempre a ouvir na música: uma lingua-
que faz da boca a primeira zona erógena. O enlace amoroso gem onde se percebe o horizonte de um sentido que no en M

mãe/bebê é o chão que vai permitir o desenvolvimento emo- tanto não se discrimina em_signos isolados, (1U1S que só se
cionaI, o "holding" que resgata, provisoriamente, a unidade intui como uma globalidade em perpétuo recuo, não-verbal,
-----7 uterina. É pelo princípio de prazer que vivemos nossa pre- intraduzivel, mas. à sua maneira, transparente. A música vi-
maturidade cultural. Deparamos com um oceano sonoro: ru- e' vida enquanto hábitat, tenda que queremos armar ou redoma
ídos, silêncios, sons vocais, melodias da linguagem, seqüên- em que precisamos ficar, canta em surdina ou com estridência
cias rítmicas, variações temáticas, tensões e espessuras so- a voz da mãe, envelope sonoro que foi uma vez (por todas)
noras, pausas e intervalos. Estamos no meio de um movi- imprescindível para a criança que se constitui como algo
mento sinfônico e, aos poucos, aprendemos a interagir com para si, como l'self",8
ele. Balbuciamos, brincamos com sílabas, choramos por ne-
cessidades ou artifícios. É pela música que começamos a Y
decifrar o mundo.
Existe um fenômeno intrigante conhecido porGção deJiD
nome dado a um tipo fundamental de melodia, cantada por
Conforme se observa, se é verdade que temos que nos crianças em todo o mundo, independente da cultura a que per-I
deparar com todas as perplexidades relativas à evolução hu- tencem. De dezoito meses à dois anos e meio de idade, as cri- ~
mana, também é certo que dispomos de um vasto potencial anças cantam espontaneamente fragmentos melódicos com in- ~\
para o enfrentamento dessas perplexidades. Aqui, o racio- tervalos de segunda, terça menor e terça maior. Até os três
nal e o irracional se unem e se completam, e desse casa- anos, passam a incluir intervalos de quarta e de quinta, e à
mento surge de maneira exuberante, uma nova maneira de
partir daí, começam a ser influenciadas pelo estilo musical
expressar o ritmo e a música,já existente, por exemplo, nos particular da própria cultura. Segundo Leonard Bernstein, a
pássaros.
Canção de Dr seria um padrão arquetípico9. Este fenômeno
parece representar um importante elemento nó processo psi'
por isso uma força me leva a cantar
cológico de desenvolvimento, demonstrando uma possível
por isso essa força estranha
por isso é que eu canto, não posso parar
relação entre os processos mentais e o fluxo natural da cons-
por isso essa voz tamanha ciência tonal.
(Força Estranha - Caetano Veloso)

José Miguel Wisnik nos instiga a pensar mais profunda- 81989, p.27.
mente na presença da música em nossos primórdios: 9 Tame. 1984. p. 251.

-(I
10
É PRECISO CANTAR A IMPORTÂNCIA DO CANTAR I1

Cantar
filogenética. Do choro ao canto cultural, uma longa estrada
é mover o dom
do fundo de uma paixão
sonora. Cantando, criamos ordenações no espaço/tempo, pro-
seduzir jetamo-nos combinando notas, expressamos o que sentimos e
as pedras, catedrais, coração ... o que sabemos sobre o sentimento humano. Nossos sonhos,
(Seduzir - Djavan) utopias e desventuras, são compartilhados. Atr~vés do canto, ~O
resgatamos a unidade, o território analógico, a ,I,ntenslda,~edo c.Q..~
a voz de alguém viver. Criando o nosso canto, rnterfenmos na srnfoma: ex-
quando vem do coração pressando nossa experiência e espelhando o mundo. Ate que
de quem detém toda beleza ponto o nosso futuro cantar nos vai rerneter a esta rnten~ldade,
da natureza
a esta prevalência do prazer? Não será o canto, e.mmunas de
onde não há pecado nem perdão suas manifestações, uma forma de resgate da umdade Imagi-
(Alguém Cantando - Caetano Veloso)
nária e recostura ao Cosmo?

As sereias, encantando fatalmente os aventureiros do mar,


são entidades míticas com corpo de mulher e rabo de peixe,
que têm no canto seu maior poder. Dizem as lendas que aquele
que ouve seu canto, é de tal forma seduzido, que se vê con-
denado a morrer no mar procurando encontrá-la. Da mesma
forma Iara, a mãe-d'água, arrasta os índios para o fundo dos
rios e lagos, com sua beleza e seu canto mavioso O canto
como sedução, como feitiço fatal, nos fala de urna de suas
facetas. Podemos fazer uma analogia destes mitos com a ima-
gem que o bebê tem, quando é tornado nos braços pela mãe e
embalado por um acalanto, fazendo com que se entregue a
este encantamento, a este arrebatamento, até mergulhar no
mundo dos sonhos, "morrendo" temporariamente de seu es-
tado de vigília. Sobre acalantos, voltaremos a falar em outro
momento.
Os hindus dos tempos antigos afirmavam que o canto era a
primeira artelO Arte primeira, expressão primitiva onto e

10Cf. Khan, 1978.


,
. 1

PEQUENA HISTÓRIA
DO CANTO

I mesmo que os cantores


sejam falsos como eu
serão bonitas, não importa
i são bonitas as canções
mesmo miseráveis os poetas
I os seus versos serão bons...
(Choro Bandido - Chico Buarque e Edu Lobo)

D
esde os longínquos tempos da pré-história, o homem
foi desenvolvendo a comunicação com seus semelhan-
tes através da mímica e da fala, tendo na voz o primei-
ro instrumento capaz de emitir sons. Mário de Andrade nos
fala da relação do homem primi tivo com os sons produzidos
pelo órgão vocal, que se distinguem em sons orais e sons
musicais,

Os sons orais criaram as palavras convencion.ais das Un- ~


guagens que a inteligência compreendia imediatamente. Os
sons musicais criaram as melodias rítmicas que o corpo com-
preendia imediatamente. li

Embora respeitemos o valor didático dessa opinião, cre-


mos difícil o estabelecimento de um limite rígido entre as ori-

11 1987, p. 113.
14
É PRECISO CANTAR PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 15

gens da mímica e da fala, da música e da poesia. Quer nos


e os assírios, há uns seis mil anos, na Mesopotâ.!lia, já pos-
parecer que o homem pode ter unido instintivamente música e 0 \lv:. suíam um método de leitura musical e se utilizavam de instru-
palavra, prazer e mtelecto, integrando os sons vocais. Prova- ~\) \\'<•.•• mentos para acompanhar seus cânticos.
velmente é a partir daí que o canto se faz presente nas mais S~"O Na Grécia surgiram cantores ambulantes, os Rapsodos, que ~
dlversascu!turas, e sua função social tem se transformado junto O,tl'0
com a hlstofla. se acompanhavam na lira de quatro cordas, dandomigem ao ~f~G
Lirismo, união de poemas, melodIas e dança. NoLmsmo Co- (J';Y~
ral, Ditirambo, celebravam as aventuras de Dionísio, protetor e"fll-l, (
3.1. Do PERíODO PRIMITIVO AOS da Arte Sonma. Originam-se daí, a Tragédia e a Comédia. OS\l-ONóD\
TEMPOS DO BARROCO cantos usados no Teatro Grego ou fora dele, eram sempre
=~=. ~
todo dia Segundo a Bíblia, Moisés, após cruzar o Mar Vermelho c\l(~,.,
o sol levanta com os hebreus, reuniu-os para entoar um cântico de agra-~~ \\-0
e a gente canta decimento a Deus, onde cada frase musical era respondida
ao sol de todo dia pelos demais. Isto, mais tarde, ficou conhecido como "Can-
(Canto do povo de algum lugar- Caetano Veloso) to Antifônico" ..Com o início do c;ristianismo, houve uma
grande mudança na música. Não obstante a "mensagem da
A ~úsica dos primitivos se caracterizaria pela repetição ressurreição", que por si só seria um cântico de alegria, o (GI
em umssono, geralmente coral, de motivos rítmico-melódicos. que de fato marcou os primeiros tempos da cristandade foicP~íf\ ~
Raramente apareceriam pequenas polifonias, com movimen- a cruz, o sacrifício. Assim, a trágica morte de Cristo fez ~"\.\
tos paralelos de quarta e de quinta, no que Mário de Andrade . -'
com que as ceflmomas re 1"
IglOsas trocassem o fi't mo e a sen- GO,.""~ií
~ chama de intuição instintiva dos sons harmônicos. 12 Para Con- sualidade musical, por um tom nostálgico e solene. A cons-:rjJ~' "
ceição Rezende, estes rudimentos de polifonia vão aparecer ciência, que até então era mais coletiva, começa a ser subs-
no fIm da Idade Média13 tituída por uma consciência individual. A música mais (/"..0"
-7 Na€tigüida~ocorre o descobrimento da música. ritmada, que coletivizava facilmente os seres com suas~""\W'1
As civilizações desenvolvem a Arte Musical: uma criação 7 dinamogenias muito fortes, é su~stituída pel?s cant~s me- ~-j"
sOClal, com função estética, dotada de elementos fixos, for- J lodiosos. Recorreu-se então aos cantlcos. hebraicos, retIrando loI!
mas e regras -: uma técnica, enfim 14. Sabemos da presença os instrumentos acompanhantes e o cromatismo "sensual".
do.canto nas maISantigas civilizações. Os sumérios, os caldeus A música adquiria uma forma exclusivamente vocal e
monódica. ----
--;;. Durante a~ade Méd;i>o canto coral ganha impulso. No
12 Ibid., p. 18. século VI, o Papa Gregório Magno desenvolve o que ficou
"1971.
14Andrade, 1987, p. 22.
conhecido como "Canto Gregoriano" ou "Cantochão", onde
os fiéis cantam em uníssono estribilhos vocais, de forma
16
É PRECISO CANTAR
PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 17

monódica. Com o desenvolvimento das escolas de canto co-


... deixa cantar de novo
raI, surgem o contracanto de quartas ou quintas paralelas, e
o trovador
a_polIfonIa, que é a combinação de várias melodias simul- à merencória luz da lua
ta~e~s. Nos primeiros dez séculos, predominou a música ~ toda canção do meu amar..,
rehglOsa sem acompanhamento instrumental. A voz huma- (Aquarela do Brasil- Ary Barroso) ,
na foi ~ instrumento soberano e nesse longo período a pala-
vra muslca pouco mais era do que sinônimo de canto. A
Havia, desde há muito, na Europa' eon' ental, uma espé-
superação da linearidade do Canto Gregoriano e' da modes-
cie de cantadores estradeiros. Eram os Histriõe , tocadores de
ta polifonia cristã, abre espaço para a evolução da música instrumentos populares. José Ramos Tinhorão nos diz que a
profana vocal e instrumental. Surgem o "Conducto" (canto partir da Idade Média o Canto Coral se refugia nas igrejas,
a três vozes, com ritmo e texto diferentes) e o "Cânone" (a enquanto os velhos cantos coletivos de caráterprofano cami-
mesma melodia, repetida por todas as vozes, cada uma "ata- nhavam para a Canção, em processo de criação por jograis,
cando" por sua vez). Palestrina, só com recursos da voz menestréis e trovadores, desde o século XI 15
huma.na, cri~u obras sublimes que tornaram-se modelo para ~ A~ de~envolvida e aprimorada_ no século XVI, ",foj
as compOSlçoes sacras. A música e a palavra - à capela- era um tipo de mUSlcaerudita, de msplraçao popular, asso- Cp., I'i,,:>C
formavam um todo perfeito, numa simplicidade cristalina e ciando poesia e canto. A "Chanson" francesa base,ava-se(,\\~ \&'
majestosa, levando a polifonia católica ao seu apogeu. Vale ~ no lirismo grego e nos cantores trovadorescos. Na ItalIa, as",I\~~:\:
notar que o desenvolvimento da polifonia coincide com a canções foram denominadas "Madrigais" e eram compos- \.J 0"
evolução da liberdade de expressão do pensamento ou seja tas de várias vozes. Na Alemanha, o "Lied" era uma canção
do diálogo. ' , para piano e canto, sendo escolhidos textos dos mais con-
O longo período de poder supremo da Igreja, com seus abu- sagrados poetas.
sos e distorções, começa a ser superado a partir do século XVI As transformações sócio-econômicas da Europa, deram
com o descontentamento popular e uma grande crise interna: origem à burguesia mercantilista e, com ela, a figura do
Surge a Reforma e, com ela, uma corrente musical própria que "mecenas", que investe em arte e no artista. O aparecimento
culmmou no Coral Protestante, onde os moti vos musicais po- da harmonia, que abriu espaço para a música barroca, e a
pulares foram amplamente utilizados. retomada do "espírito grego", dá origem ao Melodrama (do
grego meios = canto + drama = ação), antecessor da ópera. O
Sonhei que eu era um dia um trovador
'---» Barroco criou um efeito decorativo, enfeitador da expressão
artística. Os cantadores passam a rebuscar as melodIas com
dos velhos tempos que não voltam mais
vocalizações, trinados e impostaçôes vocais diversas. A ópe-
cantava assim a toda hora
as mais lindas modinhas ...
(O Trovador - Jair Amorim e Evaldo Gouveia)
15 1972, p. 33.
II
I
18 É PRECISO CANTAR .. PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 19

ra, de origem italiana, difunde-se pela Europa, através de seus


na lavoura foi. exigido, pois os índios não compreendiam a
grandes compositores e cantores, eternizando esse estilo de iI" forma de divisão e os moldes comerciais do trabalho. 16
cantar, em espetáculos dramáticos ou cômicos. Do canto
primitivo ao barroco, o canto ocidental desenvolveu-se te- Rubras cascatas
órica e tecnicamente, chegando a um nível altíssimo de so- jorravam das costas dos santos
fisticação. entre cantos e chibatas
inundando o coração
do pessoal do porão
3.2. COLONIZAÇÃO: O ENCONTRO DAS ETNIAS que a exemplo dos feiticeiros
gritavam então ...
As selvas te deram na noite (Mestre-Sala dos Mares - Aldir Blane e João Bosco)
seus ritmos bárbaros
e os negros trouxeram de longe Ao arrastarem da A'f'fica enormes contmgentes
. de povos, V
reservas de pranto sem perceber, os europeus estavam abrindo espaço para a
os brancos falaram de amor maior revolução da história da música ocidental, que explodi-
em suas canções ria alguns séculos mais tarde. O europeu reencontrava, assim, ,"'Ao>
e dessa mistura de vozes o canto primitivo, natural e espontâneo, com enorme varieda- -.\\S';" ~
nasceu O teu canto ... de de emissões vocais, das Américas e da África. Mas su~ óti-,eil1%c}
(Canta Brasil- David Nasser e Aleyr Pires Vermelho) ca etnocêntrica de dominador enxergava apenas uma mamfes-
tação exótica e atrasada culturalmente. Já o negro e o índio,
A partir do final do século XV, o Velho Mundo ganharia os
com o tempo, tiveram acesso ao conhecimento musical desen-
mares, "descobrindo" novas terras, acreditando serem "Edens volvido e acumulado pelo branco, enriquecendo seus batuques,
perdidos" prontos para serem ocupados e explorados, passan- seus cantos "bárbaros e mágicos".
do, assim, a terem direito a participar do "Mundo Civilizado". No Brasil, a troca de informações culturais entre as várias
Grandes expedições levaram os ares do Renascimento para o "nações" de negros e os heterogêneos grupos da Península
Novo Mundo. O movimento expansionista europeu, ao che- Ibérica, portugueses em maior número e espanhóis, precisava'
gar às Américas, encontra populações indígenas com seus va- de tempo para se efetivar. A Igreja Católica teve um papel
lores muito singulares e seus ritmos bárbaros. importante neste intercâmbio, criando várias oportunidades
O processo de colonização do Brasil, iniciado pelos padres para um relativamente livre exercício das criações culturais
jesuítas, teve como arma mais poderosa, a atração de seus hi- do negro, transformando as procissões em um verdadeiro tea-
nos e cantos, tornando possível a obra de catequese dos indí- tro ambulante. Podemos encontrar, ainda hoje, um grande nú-
genas. Estes hinos eram aprendidos e entoados pelos índios, e mero de festas católico-pagãs no calendário folclórico. Como
se contrapunham aos seus cantos e danças de caráter mágico.
A reação à colonização se deu quando o trabalho organizado 16Cf. Tinhorão, 1972.
20
É PRECISO CANTAR
PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 21

exemplo, podemos citar os Reisados, a Festa do Divino Espí-


Um dos aspectos mais interessantes dessa união, foi o res-
rito Santo e a Lavagem do Bonfim.
surgimento da voz natural, do espontâneo e da variedade das
A tristeza é senhora emissões vocais. Outro aspecto interessante da união, é a
Desde que o samba é samba é assim integração corpo-música, a interdependência da música com a
A lágrima clara sobre a pele escura dança, a ginga, o requebrado, o swing, o ritmo sensual. São
À noite, a chuva que cai lá fora muitos os frutos que hoje podemos colher, originários dessa
Solidão apavora união. Os c~ntos indígenas e espanhóis deram origem às c~n- \À0~\c..~
Tudo demorando em ser tão ruim ções da Amenca Latma: zamba, chacareta, mllonga, canClOn, co'iJ
Mas alguma coisa acontece entre outras. . . ,lI!'
I'V
No quando agora em mim
Cantando eu mando a tristeza embora
(Desde que o samba é samba - Caetano Veloso) 3.3. Os CANTORES E CANTORAS DO RÁDIO

O canto vigoroso ou chorado, a dança e os rituais religio- Nós somos os cantores do rádio
sos,.significaram, para muitos negros, a sobrevivência ao ban- levamos a vida a cantar
zo, ao tédio. Seus descendentes, negros e mestiços filhos de de noite embalamos teu sono
escravos, passaram a assimilar os hábitos musicais dos bran- de manhã nós vamos te acordar. ..
(Cantores do Rádio - Lamartine Babo, João de Barro e
cos, criando músicas e estilos musicais que marcaram uma
Alberto Roberti)
ruptura generalizada em relação à música européia que impe-
rou até o século XIX.
O surgimento do rádio, nos anos vinte, propiciou, princi- Is\(.,~
A articulação lundu-maxixe-samba, a partir do final do sé- .
paim ente na década de trinta, o aparecimento d.'
os Interpre-.\\.~_rVí\.
culo passado, é comentada por Muniz SodréJ7 corno rudimen-
teso Com eles, modi:ica-se o fazer,musical, ressurge o Ro- cf::;lY" .
to do processo de síntese urbana das diversas expressões mu- mantismo europeu e e retomada a musIco recepttva, para usar-
sicais na formação social brasileira. Em contraposição à músi- mos a expressão de Roland Barthes J 8 Esta, em contraposição
ca operística, valsas e modinhas da elite, o batuque e suas de- à música muscular, realizada e vivida pelo povo, era apenas.
rivações tomaram progressivamente as ruas, em festas popu- executada por um grupo de "iluminados':. Daí por diante, a
lares ao ar livre. O jazz e o blues, nascidos nos campos de eles competirá "interpretar" os sentimentos da "massa". Essa
algodão, às margens do Rio Mississipi, foram o desabafo emi- realidade é, na época, bem caracterizada pelo nível de segun-
tido pelo negro para suportar a ,dureza do trabalho e o exílio V do plano a que ermTIreduzidos os compositores. Aparecesse,
forçado em que vIvia. O blues e fruto do casamento do grito por exemplo, urna valsade sucesso cantada por Orlando Sil-
escravo com a harmonia européia.
va, Sílvio Caldas ou Carlos Galhardo, e ninguém guardaria
17Cf. J 979.
IR Cf. Barthes, 1.990.
22
É PRECISO CANTAR
PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 23

os nomes dos autores dessas músicas. Elas eram apenas men-


cionadas como "aquela valsa do Sílvio Caldas, do Carlos Ga- cas de que tanto se fala ainda hoje. Por sua vez, Emilinha, com
lhardo ou do Orlando Silva". Note-se que isso se dava apesar "Chiquita Bacana", transmite alguma informação, embora
de o rádio jamais omitir o nome dos compositores desta ou muito incompleta, a respeito do existencialismo.
daquela obra musical. Talvez a única exceção à essa regra
... existencialista com toda razão
tenha sido Noel Rosa, conhecido tanto como intérprete quanto
como compositor. só faz o que manda o seu coração.
(Chiquita Bacana ~ João de Barro e Alberto Ribeiro)
Já vimos que o rádio, surgido nos anos vinte, propiciou,
nos anos trinta, a projeção dos intérpretes. Estes se caracte-
rizavam por dois grupos principais: O dos chamados "vo- O que terão significado essas duas artistas? Estávamos há
zeirões" e aqueles a quem poderíamos denominar "melo- poucos anos do fim da guerra. Embora já se pudesse senti~ as
dramáticos". Pode-se dizer que estes últimos, além de, tan- primeiras lufadas do vendaval que seria a guerra fna, respira-
to quanto os vozeirões, serem "descendentes" diretos dos va-se um clima de liberdade. Marlene e Emilinha pareciam
estilos europeus (óperas, operetas etc.), são também o pro- expressar esse espírito, uma vez que eram cantoras eminente-
mente do povo. Aliás, elas não cantavam apenas para ele, o
duto de uma circunstância bem objetiva e concreta: a reali-
dade dos acetatos, que surgiram com o gramofone ou povo, cantavam também "com ele" no auditório da Rádio Na-
cional.
fonógrafo. Para que a cera pudesse reter as vozes gravadas,
Com os anos cinqüenta. iniciou-se um certo declínio dos
os cantores eram praticamente obrigados a gritar. Isso pode
ser notado em gravações como "Pelo Telefone", em que chamados "vozeirões", declínio esse que já se havia verifica-
Francisco Alves, embora predominantemente "vozeirão", do com os agudos no fim dos anos quarenta. Os vozeirões (mas-
canta emitindo agudos. culinos e femininos) eram possuidores do que na época se cha-
mava "o dó de peito". Em outras palavras, eram, como disse-
Cabe aqui uma breve reflexão sobre Marlene e Emilinha
mos acima, ou francamente adeptos do agudo, ou detentores
Borba. Do fim dos anos quarenta até quase metade dos cin-
de vozes que, além de "poderosas", eram também "acalenta-
qüenta esses dois valores se impuseram. Cantando ora român-
doras". Sobre estes dois aspectos, gostaríamos de fazer algu-
ticas, ora maliciosas, elas despertavam o delírio das multidões.
mas reflexões. Não teriam as gerações dos anos trinta, quaren-'
Há com relação a ambas, duas coisas que devemos ressaltar:
ta e cinqüenta (em sua primeira metade),- sido realmente em-
1) a forma como eram chamadas - MARLENE e EMILINHA
baladas por essas vozes? É verdade que durante esse período,
-já denota a essa altura, uma certa intimidade entre ouvinte
havia a brejeirice de um Ciro Monteiro e o "breque" de um
e artista da qual falaremos um pouco mais tarde; 2) já aparece
Moreira da Silva e de um Jorge Veiga. No entanto, os chama-
na bagagem musical de ambas, um certo conteúdo político,
dos "vozeirões" ou "dó de peito", pareciam ir mais fundo na
social e filosófico. Marlene, quando canta "Lata d'Água na
alma popular. Havia, segundo nos parece, a presença pat~rnal
Cabeça" e "Sapato de Pobre" (Luiz Antônio e Jota Junior),
de um Francisco Alves, de um Orlando Silva e de um SIlVIO
reflete, já àquela época, as desigualdades sociais e econômi-
Caldas, bem como o embalo "maternal" de uma Linda Batista,
24
É PRECISO CANTAR
PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 25

de uma Dircinha Batista e de uma Isaurinha Garcia. Que signi-


Gonzaga. Este, ao lado de compositores como Humberto
ficariam essas pessoas para seus ouvintes? Apenas intérpretes J!é'
das emoções e sentimentos que os caracterizavam, ou também
Teixeira e Zé Dantas, não se limitava a cantar músicas nor- Y
destinas. Sua arte espelhava toda a estrutura psicológica e
"suportes" para os momentos de crise existencial por eles vi-
sócio-cultural de sua gente.
vidos? Mesmo um Dick Farney e um Lúcio Alves que, a nosso
juízo, prenunciam a bossa nova, eram, ao que nos parece, vo- Dê serviço ao nosso povo
zeirões francamente paternais. Por sua vez, maternal era a voz ~ enche os rio de barrage
de Elisete Cardoso, que surgiria mais tarde, igualmente pre- dê comida a preço hão
nunciando a bossa nova. não esqueça a açudage
livre assim nós da esmola
Eu vou mostrar pra vocês que no fim dessa estiage
Como se dança o baião lhe pagamo inté os juro
E quem quiser aprender sem gastá nossa corage
É favor prestar atenção (Vozes da Seca - Luiz Gonzaga e Zé Dantas)
. Morena chegue pra cá
Bem junto ao meu coração Em Vozes da Seca, é exposto um autêntico programa de
Agora é só me seguir assistência ao nordeste. A música foi lançada em 1953. Nessa
Pois eu vou dançar o baião .j. época o nordeste foi vítima de uma das maiores secas de sua
(Baião - Lauro Maia) história, o que mobilizou os estados do sul para uma campa- ~
nha intitulada "Ajuda teu Irmão". Essa, a origem do protesto,
A figura de Luiz Gonzaga impõe-se por sua presença em fins embora tímido, contido na letra acima citada.
dos anos quarenta e início dos cinqüenta. Atuando inicialmente
como instrumentista, Gonzaga torna-se cantor e traz para o 3.4. Do CANTAR INTIMISTA À MASSIFICAÇÃO
sul toda a musicalidade do nordeste. Destaca-se nessa época
~ o ritmo do baião. Esse gênero musical, de tal maneira empol- Um cantinho
gou a opinião pública, que obteve a adesão imediata de artis- um violão
tas de MPB, como o conjunto Os Quatro Ases e Um Coringa esse amor, uma canção
e os cantores Emilinha Borba, Marlene, Dalva de Oliveira, e prafazer feliz a quem se ama ...
i' (Fotograflll - Tom Jobim)
[I até mesmo Fancisco Alves. Com o baião, emergiram alguns
I ritmos antigos e já quase esquecidos: toadas, cocos, rojões, ~
No inícioda segundametade dos anoscinqüenta, surgea Bossa
emboladas, xotes etc. Outros quadros nordestinos como
Nova. A palavra bossa já era bem conhecida entre os sambistas.
Jakson do Pandeiro, Zé do Norte, Maria Inês e Sua Gente ,
Significava esperteza, "swing", "know how" ou jogo de cintura.
etc., surgiram em consequência do aparecimento de Luiz
I Tais significados aparecem, por exemplo, com Noel Rosa.

~
26 É PRECISO CANTAR PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 27

o samba, prontidão e outras bossas


jato pro dentista", cantava "isso é viver como se aprova / é ser
são nossas coisas
um presidente bossa nova",
são coisas nossas
(Coisas Nossas - Noel Rosa)
~ O que desejamos assinalar nesse movimento, mais do que
~~ ',>'\~s dissonâncias, mais do que o caráter slllcopado das balidas,
,,' mais do que o conteúdo jazzístico acrescentado ao samba e a r-
Tendo como precursores, Nora Ney quanto ao cantar inti- --l> outros ritmos, é o cantar intimista, Parece-nos que, em tese, cJ1.-J\
mista, Dick Farney e Lúcio Alves quanto ao cantar em estilo os chamados vozeirões o~ dó de peito, cantam por seus ou- po~
Frank Sinatra, Elizete Cardoso quanto às concessões franca- vintes, ao passo que os IIlterpretes da bossa nova cantam com cJJ
mente dissonantes dos arranjos, Johny Alf e o conjunto Os seus ouvintes, É bem verdade que o 'cantar com' já caracte-
Cariocas quanto ao emprego de harmonias eminentemente rizava o fim da era dos vozeirões. Emilinha e Marlene canta-
jazzísticas, o movimento conhecido como Bossa Nova surgiu vam literalmente 'com' suas fãs. Notemos porém que esse
na Zona Sul, à partir de reuniões (samba sessions) realizadas canto vinha da euforia dos auditórios, o que não se deu exa-
'por João Gilberto, Nara Leão, Carlos Lira, Tom Jobim e ou- ,/ t~mente com a bossa nova, Não se interprete essas palavras
tros, O batismo do movimento como 'bossa nova' parece ter.te como crítica aos que vieram antes da bossa nova, até porque,
surgido com João Gilberto cantando Desafinado, não podemos afirmar que o 'cantar com' tenha sido intenção
consciente dos que a fizeram e o 'cantar por' tenha sido in-
se você disser que eu desafino, amor, tenção deliberada dos vozeirões antes dos anos quarenta e
saiba que isso elrl mim provoca imensa dor cinqüenta. Desejamos ressaltar, apenas, que as músicas de
só privilegiados tem ouvido igual ao seu bossa nova parecem ter redundado num "'aprofundamento
eu possuo apenas o que Deus me deu
de intimidade" entre artistas e ouvintes,
se você insÍSte em classificar
Segundo Wisnik, desde a década de trinta, foi-se construin-
, meu comportamento de anti-musical
,
do, como um símbolo nacional, a música popular urbana. No
\ eu mesmo mentindo devo argumentar
entanto, a partir dos festivais dos anos sessenta, surge a sigla
que isso é bossa nova, isso é muito natural...
(Desafinado - Tom Jobim e Newton Mendonça)
MPB - Música Popular Brasileira -, criada pela geração () ••.t!~
pós-bossa nova, Conforme afirma Wisnik, a bossa nova era é (!,05E
"dotada de urna nova concepçao - harmolllca,
, ' --
poetlca, n't'mIca, y,J,;,ri
tJoV\
A propósito, essa foi uma resposta de Tom Jobim e Newton vocal, e que teve enorme conseqüência sobre as gerações se-C
Mendonça às críticas que já àquela altura se fazia à voz inti- guintes"19 Não podem~s ignorar um fenômeno que também e"
mista e às dissonâncias, No entanto, a expressão bossa nova pode ser considerado pos-bossa nova: Clementma de Jesus.
era também uma espécie de estado de espírito, o que aliás Seu canto era eminentemente negro, Uma de suas pnmelras
pode ser verificado na frase' ".isso é bossa nova / isso é muito
naturaL' Por sua vez, Juca Chaves, criticando, em Jusceli-
no Kubitschek, certas extravagâncias como "levar parente à 19Wisnik,1997,
,

, I'

28
É PRECISO CANTAR
PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 29

criações musicais foi "Benguelê", 'Iundu africano' de Pixingui-


sica!, tornando-se de tal maneira contestador e revolucionário,
nha,já gravado pelos Anjos do Inferno durante os anos quaren-,
--?- que foi uma das fontes de inspiração para o Tropicalismo. Vale
ta. Clementina de Jesus, aos 63 anos, destaca-se na cena artísti-
notar que, mesmo nessa fase, por alguns conSiderada de sofiS-
ca, trazendo características especiais: embora de certa forma,
ticação, os Beatles não deixaram de ser um fenômeno de mas-
retome o vozeirão, ela é descompromissada com padrões rígi-
sa. Por todo o mundo eclodiam movimentos genencamente
dos de afinação, o que, também de certo modo, a coloca em
chamados 'hippies'. Esses movimentos, no entanto, embora
contato com a bossa nova. Clementina tinha a força da negritude
tivessem o mesmo substrato ideológico de contestação, cami-
e da brasilidade, produzindo agradável impacto, não só em seus
nhavam em direções diversas. Quer desfraldassem a bandeira
ouvintes, mas também em seus colegas do meio artístico.
de paz e amor, quer partissem para as ações mais violentas {
-? Enquanto isso, o rock and roll, nascido nos Estados Unidos
no pós-guerra e desenvol vida como uma das vertentes do blues,
através, por exemplo, dos 'happenings', todos contestavam ~ iJ!5!
moral conservadora vigente. Como cantavam esses grupos.
também redes cobre a voz humana, mas como grito, irreverên-
Suas canções iam desde o rock como grito de "Revolution" e
cia. Trouxe a proposta de ruptura com valores e costumes, e,
"Help" (Lennon e McCartney), onde preponderavam os tim-
apoiado pela mídia, encontrou grande repercussão em signifi-
bres agressivos da percussão e da guitarra, até às baladas de
cativas parcelas da população. Desde o rock and roll, nos anos ¥ tempo mais lento e expressões timbrísticas mais suaves, de
cinqüenta, começam a surgir os movimentos de rebeldia e pro-
"Blowing in the Wind" (Bob Dylan) e "Yesterday" (Lennon e
testo que desembocariam na música dos Beatles e dos Rollings
McCartney). . ..
Stones. Elvis Presley constitui aqui um fenômeno a parte. Per-
A efervescência cultural dos anos sessenta no BraSil tmha
cebendo a força do Rock, a mídia norte-americana teve neces- , .
!, outros contornos. Os festivais surgidos após o golpe de esta-
sidade de aproveitar essa força a fim de, paradoxalmente, di- !
do de 1964, funcionam como uma grande vitrine de novos
lui-Ia, fabricando um ídolo. Enquanto Bill Harley, Chuck Berry
valores musicais, misturando várias tendências, como a bos-
e Jerry Lee Lewis refletiam toda uma dinâmica de contestação
sa nova e o rock, assim como suas inúmeras derivações, o
à sociedade norte-americana, E/vis, galâ de boa aparência, se-
que imprime à este momento uma rara efervescência cultu-
dutor e romântico, era o tipo do escândalo assimilável. Sua
ral. Na vitrine a que nos refenmos aCima, ressaltam-se as
música, adocicava o caráter revolucionário do rock , por isso ,
figuras de Chico Buarque, Geraldo Vandré, Caetan~ V:loso,
era devidamente capitalizada pela mídia, conquistando os es-
paços dos "mal comportados". Gilberto Gil e Milton Nascimento, além de quatro mterpre-
tes femininas: Nara Leão, Maria Bethania, Gal Costa e Elts
Os anos sessenta foram marcados pela efervescência revo-
Regina. Sobre essas intérpretes, gostaríamos de assma!ar
lucionária. Na Inglaterra, os Beatles, após serem condecora- r
alguns -menos que interessam de perto ao nosso traba-
dos pela rainha, dão entrevista fazendo elogios eróticos ao
lho. ara Leão atravessando as duas fases da bossa nova e ri!¥'
corpo de "sua majestade". Àquela altura, esse conjunto, que,
chegan o ao Tropicalismo, é a expressão vivado cantar 10- ~
de início, tanto em suas melodias quanto em suas letras, inspi-
timista. Gal Costa, embora de início, adote o IOtImlsmo no
rava a nossa Jovem Guarda, aprofundava sua experiência mu-
cantar, pouco depois, assumindo por modelo Janis Joplin,

l
30
É PRECISO CANTAR, PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 31

retoma o vozeirão, ao lado de Maria Bethania. Iis Regina ...meu Deus, vem olhar
consegue passear tranqüilamente entre a bossa nova mti- vem ver de perto
mista e o vozeirão extrovertido, o que a caracteriza, real- uma cidade a cantar
mente, como uma cantora sui gene ris. a evolução da liberdade
Os festivais foram interrompidos no início dos anos seten- até o dia clarear. ..
ta, sendo esvaziados pelo o recrudescimento da repressão e (Vai Passar - Chico Buarque de Holanda)
censura. Nessa época, frutificam as sementes lançadas no pe-
ríodo anterior, quer através da consolidação do prestígio de Toda expressão cultural estabelece uma estreita r~lação com
um Milton Nascimento ou de uma Rita Lee, quer através de o processo histórico. Principalmente a partIr d:ste seculo~com
outros valores como os Novos Baianos, Raul Seixas ou Alceu o avanço tecnológico em matéria de gravaçao e dlfusao de
Valença. Nos anos oitenta, houve uma tentativa de reativação som e imagem, as canções populares têm tido um papel pre-
dos festivais, o que não foi adiante. Ao contrário dos anos ses- ponderante em todo o mundo. A vida cotidiana de nossa gen-
senta, quando tudo fervia, quando havia uma sede incontida te, suas alegrias, frustrações, esperanças, dores e festas, tu~o A ~

de novidades, os anos oitenta apresentam uma "indústria cul- isso é transformado em canções. Podemos c~ntar nossa hlsto'D~~
tural" já consolidada. Os festivais, antes, vitrine de valores, ria através dos cantos de nossa cultura. As musicas atravessam ""íA""v
agora se transformam em balcão de comércio. Por trás deles fronteiras, dimi,luem distâncias geográficas. Se ISto, por um
estão as gravadoras; cabe a elas determinar quem aparece e lado, informa sobre outros cantos, outras visões de m~ndo,
quem não aparece. Hoje acontecem festivais em cidades de por outro, torna possível a massificação ah~nante. Este mt:r-
médio porte, como eventos 'alternativos'. câmbio tem tido um efeito de influência mutua, de consclen-
Os grandes concertos são um marco dessas últimas déca- cia planetária, de estreitamento efetiv~ntre os homens. VIve-
das, onde as canções são cantadas em uníssono por dezenas de mos um momento curioso e inédito no mundo. Com o acelera-
milhares de pessoas. Além disso, desponta agora a música do movimento de unificação política e econômica dos contI-
transnacional. Não só os Rolling Stones ou a Madona, mas nentes, que papel terão as canções?
também os próprios artistas brasileiros percorrem o mundo todo
a divulgar sua obra. Enfim, os maiores movimentos musicais.
cantados hoje pelo mundo, têm origem na mistura cultural de
brancos, negros e índios.

cantar será mais bonito


se o som da voz do cantor
lavar as almas feridas
sangrar de riso e de dor
(Na magia dessas canções - Reinaldo A rias e P. Tapajós)
I
j',

A DIVERSIDADE
I
DO CANTAR

D
e uma forma geral, o CANTO é definido como o somcflrrJ~'
musical produzido pela voz do homem ou de outro ani-':Y~
mal. Os pássaros se destacam de outros animais por
.duas características singulares: o vôo e o canto. Quanto ao
vôo, as diferentes espécies de pássaros apresentam diferen-
i
ii'
tes estilos. O sonho de Ícaro é uni "representante simbólico"
Ir de um antigo desejo do homem: ter asas, voar. Os balões di-
J
I rigíveis, 0$ aviões, as espaço naves e as asas delta, são reali-
zações do século XX, em que o homem mais se aproximou
deste desejo.
: ;.
Quanto ao cantar, é difícil, hoje em dia, estabelecer-se com-
paração definida entre pássaros e homens. Sabe-se atualmente cJÚ-fI1
que homens e pássaros não só cantam mas também são infini- e-::
tamente criativos na variedade de seus cantos. Talvez a única
diferença seja a de que, para os pássaros, o canto tem como O~561
um de seus objetivos, preservar o espaço de cada um. No en- J~l
tanto, no momento mesmo em que levantamos essa hipótese, 1 I10
A
lembramo-nos de que, entre os homens, também existem os ~flS5
desafios dos cantadores e as competições artísticas.
"" O canto está presente no universo simbólico de todas as \'jIl1;fiJ
culturas. Na magia dos feiticeiros, nos festejos e funerais, na Ci\tJ'
expressão de afetos e desafetos, na melodia dos idiomas, na
variedade de sotaques, nas rodas de amigos, nos pregões de
feira, nas casas de espetáculo, nas arquibancadas dos estádio'
34
Ê PRECISO CANTAR,
A DIVERSIDADE DO CANTAR. 35

• nos cama vais da Grécia antiga e nos desfi les de Escolas de


Samba. As canções são antigas companheiras do ser humano .
Cantamos nas mais variadas situações.
Podemos encontrar melodias rítmicas nos cantos de soc~r
pilão, nos cantos de cortar cana e cacau, nos cantos de ferreI-
ro etc.
Debulhar o trigo
4.1. CANTOS DE TRABALHO
recolher cada bago do trigo
forjar no trigo o milagre do pão
A passagem do homem nômade para o homem fixado em e se fartar de pão
um território, deu-se com a criação de'processos econômico-
sociais de trabalho. Como reflexo da regularidade rítmica, sur- decepar a cana
gem canções mais ou menos articuladas e entoadas em con- recolher a garapa da cana
.roubar da cana a doçura do mel
junto, aumentando a força coletiva e produtiva do homem.
se lambuzar de mel
-~?',..Mário de Andrade nos fala da tendência universal para reves-
tir de sons o ritmo facilitador dos gestos musculares20. Note- afagar a terra
se aqui o termo universal significando uma só função exercida conhecer os desejos da terra
s05 várias formas, segundo cada cultura (unidade na diversi- cio da terra, propícia estação
dade). A melodia rítmica e o ritmo socializado, seriam, então, e fecundar o chão. .
intensificadores do trabalho, sustentando a igualdade e regu- , (Cio da Terra - Milton NascImento e
,I Chico Buarque de Holanda)
;1
laridade dos gestos, funcionando como incitador, tornando,
assim, o trabalho mais leve e mais ativ021 . - ~~
Existem, no entanto, outros cantos de trabalh~, que nao sey C't\'l
Nas proximidades do Himalaia, na Índia, vivem os Gujads, ca;acterizam pelo ritmo da atividade muscula~.Sao ch~~ados).p
um pequeno e antigo povoado que tem no plantio uma de suas "intelecção", por terem uma destinação utlhtan~ defimda. Os •.•
mais importantes atividades econômicas. As camponesas, en- . re ões por exemplo, são cantos onde se anuncia a venda de g;O
quanto carregam pesadas "tufas" de trigo nas costas, cantam ;Ig~m ~'roduto. Todos nós conhecemos o som do~ vendedores 9f-!
em seu dialeto: mbulantes nas praias e dos vendedores de feira-livre. Os can-
:05 de pedinte apelam para a nossa solidariedade para com o
...0 trabalho não é tão pesado assim ...
sofrimento alheio. . d p.~Q\O
O aboio, é um tipo de canto melancólico, geralmente agu ~,
Uma canta e outra responde, repetindo o verso, como se entoado em falsete e cheio de vocalizaçõe~, com que os vaqueI-
quisessem convencer às demais, que acabam cantando junt022
ros ordenam a marcha das boiadas e mantem os bOIS em calma.
F arte dos Cantos de Pastoreio, de uso universal, desde o
20 Andrade, J 980, p. 26. azem P 'T -23
21Cf. ibid. período mais selvagem até os da chamada CIVI lzaçao
22 Dados colhidos de um documentário sobre a cultura africana (TVE) .
" Cf. Andrade, 1980. p. 30.
36
É PRECISO CANTAR A DIVERSIDADE DO CANTAR 37

Boiadeiro muito tempo


laço firme, braço forte 4.2.1. Acalantos
muito gado, muita gente
... Quando, enfim, eu nasci, minha mãe
pela vida segurei
embrulhou~menum manto
seguia como num sonho
Me vestiu como se eu/asse, assim
e boiadeiro era um rei ...
Uma espécie de Santo
(Disparada - Theo e Geraldo Vandré) Mas, p.or não se lembrafde acalantos
A pobre mulher
... Vai boiadeiro que o dia já vem Me ninava, cantando cantigas de cabaré .
leva o teu gado e vai pra junto do teu bem... (Minha História - Dalla-Pallotino, versão de
(Boiadeiro -Armando Cavalcante e Klécius Caldas) Chico Buarque de Holanda)

Os acalantos são cantados por mães do mundo todo para


4.2. CANÇÕES ANÕNIMAS
embalar seus filhos, criando um clima afetivo de segurança,
geralmente associado ao contato corporal. É interessante no-
, .Chamamos assim os acalantos, as canções infantis e os tar, pelo menos quanto ao Brasil, o contraste entre as melodt~s
j' cantos que acompanham os folguedos populares. Geralmen- sempre simples, doces e suaves dos acalantos, e o seu conteu-
te de autores desconhecidos, estas canções atravessam o tem- do poético, em muitos casos, assustador. Como entender esta
po, sendo transmitidas de geração a geração, por meio da aparente' contradição?
difusão oral, mantendo, assim, algumas tradições. Fazem parte O psicanalista Jeremias Ferraz Lima, em seu estudo "Con-
da cultura espontânea, decorrente da experiência de vida de siderações Psicanalíticas sobre os Aca I antos B'lrasl elros
.' ,,24
,
qualquer coletividade humana. Contrapõem-se à moda, à levanta algumas questões interessantes. Sendo o ninar, uma
ciência e às técnicas eruditas, ainda que estas lhes possam forma da mãe dar continência ao seu bebê, o acalanto teria sua
dar origem. As canções folclóricas nascem da vocalidade que origem na percepção que a mãe tem de que o que ameaça o
emana dos impulsos criadores, tanto individuais como cole- bebê são os "perseguidores" internos, daí o choro. Stmbohca-
tivos.
mente, "o sono é irmão da morte", um movimento narcísico e.
~ O folclore é a expressão do sentir, do pensar e do agir do regressi vo que tende à "morte". Estes per~eguidores represenc
ser social, do homem na sociedade em que vive. Não só pelo tam perigos na fantasia da criança, e são muito pequenos os
que possui de sabedoria, de beleza, de técnica, mas ainda pelo seus recursos internos para lidar com essa ameaça. O acalanto,
que condensa de traços fundamentais da continuidade tradici- então, supriria essa deficiênciã, reinstalando um estado em que
onal, as manifestações folclóricas (folk = povo; lore = sabedo- ~ a mãe, ao acalentar, "sonha" para a criança poder lidar com os
ria) dão perfil às coletividades. Os povos que as esquecem e as movimentos regressivos do desejo de "dormir".
desprezam, acabam perdendo a consciência de seu próprio
destino. '
24 Cf. Lima, 1986.
, ,

1 38
, ' É PRECISO CANTAR
39
'I'"
A DIVERSIDADE DO CANTAR

I
1 '1.
I Desce Tutu
de cima do telhado Aqui, a mãe exorciza e expulsa o monstro que poderia per-
!I: vem ver se este menino turbar o sono da criança.
li dorme um sono sossegado
I] AMEAÇADORES
-J..~ O pesquisador de folclore infantil, Veríssimo de Me1025,
~.
~'IW chama a atenção para o fato de que se, por um lado, a função
I .I i Boi, boi, boi
dos fantasmas é necessária para "amansar os rebeldes", por boi da cara preta
I:, outro, é contraproducente à educação da criança, gerando pa-
~<1 pega esse menino
'il vor, intimidando-os e favorecendo a formação de complexos e
II que tem medo de careta
I,
,
I ~recalques. Acreditamos ser esta possibilidade, bastante relati-
;'1 va. O que pode aumentar o pavor no bebê, a ponto de gerar A letra sugere uma espécie de aliança entre a mãe e o mons-
Il
!I

)[
~
"complexos e recalques", é exatamente a falta do enlace amo- tro para que a criança seja obrigada a adormecer.
r' roso mãe/bebê, do holding, da maternagem, condição básica
!
I para que a criança se sinta suficientemente amada para prosse-
AFETIVOS
guir desenvolvendo-se. Traçando uma analogia com o aleita-
mento, mais do que o leite materno ou a mamadeira, o que V
o neném é pequenino
parece realmente Importar na amamentação é a carga afetiva do tamanho de um vintém
que envolve a criança. mesmo sendo pequenino
Para nós, existem vários tipos de acalantos e podemos não dou ele pra ninguém
, ~, classificá-los segundo suas características:
Expressa-se aqui o afeto incondicion~1 da mãe, que deseja
EXORCIZADORES o filho junto de si, como quer que ele seja.
Bicho-papão
sai de cima do telhado TRANQUILIZADORES ou DESMITIFICADORES
deixa o menino
dormir sossegado Dorme neném
dorme meu amor
Tutú marambá
não ve.nhas mai.\' cá que a faca que corta
que o pai do menino
dá golpes sem dor
te manda matá

I 25Cf. Melo, 1985.


Aqui a letra procura tranqüilizar a criança, capacitando~a ~
enfrentar perigos. A faca, ao exercer sua função, não constitUi
nenhuma ameaça à integridade física da criança.
40 É 41
PRECISO CANTAR A DIVERSIDADE DO CANTAR

RELIGIOSOS Tentemos captar a mensagem subliminar e bem paterna desta


letra: Mamãezinha precisa descansar / Dorme anjo / Papai
Senhora Santana
é madrinha de João vai lhe ninar. É como se dissesse: "não se apegue demais à sua
eu também sou afilhado mãe, ela agora não pode cuidar de você, eu estou aqui para
da virgem da Conceição isso, não há perigo".
Desejamos, porém, ressaltar que permeando todos esses
É como se a mãe revestindo, enquanto canta, a personali- acalantos, seja qual for a sua forma, há a presença, a voz suave
~ade da cnança, dissesse: "- Assim como a Senhora Santana e o abraço de quem acalenta. Mesmo os perigos 'aparentes con-
e madnnha de João, a virgem da Conceição é minha madrinha tidos nas letras mais ameaçadoras, são neutralizados por essa
logo, estou bem protegida". ' presença~ por esse abraço, por essa voz.
Geralmente associamos o acalanto, ao contato fundamen-
tal existente entre a mãe e o bebê. No entanto; encontramos 4.2.2. Jogos Infantis
em alguns acalantos a presença da figura paterna. Mais tarde, as cantigas e danças dos jogos infantis, contri-
buem para a elaboração de aspectos do desenvolvimento
Foste bem nascido
psicossocial e para a socialização da criança. Os jogos infantis
e também criado
filho de uma rosa
e um cravo encarnado
"1
"

I-l
são brincadeiras completas, do ponto de vista pedagógico.
Brincando de roda, a criança desenvolve o raciocínio e a me-
mória, estimula o gosto pelo canto e exercita naturalmente seu
J, Com base em Ferraz26, que desdobra o pensamento de \'P\"\
corpo. Poesia, música e dança unem-se em uma síntese de ele-
mentos imprescindíveis ao processo educativo.
Preud, podemos concluir que o pai surge na relação mãe-bebê t7 Veríssimo de Melo27 distribui nossas cantigas em cinco
como continência, e mais tarde como interdição da célula
grupos, segundo o espírito e o estado de ânimo: amorosas,
narcísica (mãe-bebê). Em outras palavras, pai é a leI. Ele
satíricas, imitativas, religiosas e dramáticas.
estabelece o equilíbrio garantindo o desenvolvimento a crian-
ça e impedindo que esta se perca na relação com a ~ãe. Amorosas
"A Margarida"
Lá no céu foram se deitar
"Na mão direita tem uma roseira"
Os anjinhos deixam de cantar
"Mamãezinha precisa descansar "Você gosta de mim"
Dorme anjo "O Cravo brigou com a Rosa"
Papai vai lhe ninar "Terezinha de Jesus"
"Eu sou pobre, pobre, pobre"
26 Lima, 1986. 27 Melo, 1985.
I ,

J.

! i 42
É PRECISO CANTAR
I A DIVERSIDADE DO CANTAR
43
I
, I

,! Satíricas
"importância da brincadeira infantil, como recurso para tl?~
"Dona Chica" lidar com sentimentos de angústia ou de ansiedade,fatores6~
"Fui à Espanha" constituintes e, muitas vezes, dominantes, da atividade
"Lagarta Pintada" lúdica" 28.
"Pai Francisco" Acriança pode manifestar a sua entrada na telação triangu-
"O caranguejo" lar, ou seja, na trama edípica, através dos jogos infantis.

Imitativas o meu chapéu tem três pontas


tem-três pontas o meu chapéu;
"Carneirinho, carneirão" se não tivesse três pontas,
"Escravos de 1ob" não seria o meu chapéu.
"O pião"
A agressividade é um tema freqüentemente associado à
mecanismos de defesa.
Religiosas

A carrocinha pegou
"Capelinha de melão"
três cachorros de uma vez (bis)
j tlVamos Maninha, vamos"
tra-Ia-Iá
:! "

I. que gente é esta


Dramáticas tra-Ia-lá
::"
que gente má!
"Obaú"
"A machadinha" Atirei o p~u 110 gato-Iô
"Seu lobo" mas o gato-tô não morreu-rreu-rreu
dona Chica-cá admirou-se-se
do be-rro, do be-rro que o gato deu:
r<n ivQ
A psicanalista Angela Maria Bouth, fez um estudo sobre
miau!
&~as Cantigas de Roda Brasileiras, onde articula alguns as-
i. ª,'GClN\\ pectos interessantes para o nosso trabalho. Recorrendo a
A criança pode, ainda, manifestar suas ansiedades não re-
!I )f-r
1cP Bruno Bettelhein, diz ~ue as Cantigas de Roda, assim como
solvidas diante de separações e tentativas de elaboração do
1>0 os Contos de Fadas, alImentam a imaginação e estimulam a luto pela perda da relação mãe-bebê.
cff) fantasia, oferecendo à pessoa em desenvoI vimento a chance
c)llJ I de encontrar sua própria solução para os. conflitos internos
neste momento da vida. Referindo-se a Winnicott, fala da
28 Bouth, 1989, p.72.
I
'!.

É PRECISO CANTAR
A DIVERSIDADE DO CANTAR 45

o anel que tu me deste


era vidro e se quebrou canoa, expressa tanto a inversão da roda evolutiva quanto o
o amor que tu me tinhas retorno a ela, bem como o exercício de solidariedade grupal,
era pouco e se acabou de apoio a quem "sofre".

Nessa rua, nessa rua 4.2.3. Folguedos


tem um bosque
que se chama Os folguedos são manifestações folclóricas universais, que
que se chama solidão associam a dança, a música, a fantasia e o imaginário popular
Dentro dele peculiar de cada cultura.
dentro dele mora um anjo Em virtude da superposição de culturas em todo o Brasil,
que roubou
formou-se um variado e opulento repertório de folguedos po-
que roubou meu coração
pulares ao longo de nosso território. Para exemplificar, fa-
laremos de algumas manifestações folclóricas, não as mais
As Cantigas de Roda dão continuidade ao trabalho de ela- importantes, mas certamente aquelas que consideramos bem
boração de conflitos e à estruturação da pessoa em desenvol- significativas no contexto geral 30,
vimento, iniciado com os acalantos.
Já um dos autores desse trabalho, o musicoterapeuta Luiz Folia do Divino - O Brasil nos fins do século XVIII,
Antônio Millecco, em seu estudo sobre o folclore brasilei- era colônia, mas de há muito existia, nas vilas e freguesias,
29
ro , aponta para o lado oculto da cultura popular onde o o Império do Divino. Por ocasião das festas que lembram a
simbolismo é compreendido como revelador da sabedoria la- descida do Espírito Santo, encontramos grandes, tradicio-
tente da alma do povo. A roda aparece como uma representa- nais e populares festejos: Cavalhadas, Touradas, Congadas,
ção da Mandala, expressão geométrica do Self. "A canoa vi- Caipó, Jongo, Batuque e Cateretê, de acordo com as re-
rou", por exemplo, remeteria à "Lei do Carma", onde a roda giões. Como a festa é do povo, o festeiro contrata um grupo
da evolução dos seres humanos estaria representada nas crian- de cantadores - os foliões do divino --'--para percorrerem
ças de mãos dadas; a canoa seria a embarcação que cada um todo o município, pedindo prendas e doações para a festa.
de nós conduz, remadores sujeitos ao destino e aolivre-arbí- Como símbolo, carregam uma bandeirà com a figura do
trio; o fundo do mar simbolizaria as regiões profundas de Divino - uma pomba. Quando a Folia do Divino visita a
casa de umdevoto, a Bandeira abençoa os doentes e as crian-
nossa alma, onde às vezes nos vemos mergulhados; e o sen-
ças, enquanto o Mestre se junta aos seus músicos e inicia a
tido da brincadeira, onde cada criança vira e desvira com sua
cantoria.

29 Millecco, 1987.
30 Dados extraídos da coleção Brasil: Histórias, Costumes e Lendas.
,
'i,

46
É PRECISO CANTAR, A DIVERSIDADE DO CANTAR, 47

Meu senhor dono da casa


Eu chamei você"Roldão
Deus veio lhe visitar
pra vir se armar
salve a sua saúde
e em campos de batalha
e a família como está?
com os turcos pelejar. ..

o Divino também pede


um lugar no seu altar
Reisado - Esse folguedo popular das festas .de Natal e
que esta pomba verdadeira Reis, foi introduzido pelos portugueses. No Nordeste, a partir
está cansada de voar de 24 de dezembro, saem os vários Reisados, cada bairro com
o seu, cantando e dançando. Os músicos tocam sanfona, pan-
A todos desta casa deiros, caixas e zabumba. Ao chegar nas portas das casas ou
veio (} Divino visitar nas praças, cantam pedidos de licença, fazem louvações aos
e pra sua grande festa donos da casa ou dos cercados e agradecem os comes e bebes
uma esmola vem tirar oferecidos. Depois cantam a retirada ou despedida.
Acreditam ser continuadores dos Reis Magos que vieram
Agradecemos sua esmola do Oriente para visitar o menino Jesus, em Belém. O grupo
dada de bom coração tem uma função religiosa, devocional. É um rancho alegre que
o Divino concederá sai tocando e cantando, repetindo a história de Jesus. Saudan-
a todos salvaçlio
do a quem visitam e pedindo contribuições para a festa, per-
correm as cidades nordestinas, como um teatro ambulante.
Congada - É uma adaptação da "Canção de Rolando",
epopéia francesa, trazida pelos colonizadores, através dos je- Senhor dono da casa
suítas. A Congada, no passado, tinha a função de sublimar o olhos de cana caiana
instinto guerreiro do negro, criando uma luta irreal entre cris- quanto mais a cana cresce
tãos e pagãos (Mouros). Dois grupos de negros entram em luta: mais aumenta a sua fama

o Bem (cristãos) vestindo roupas azuis; e o Mal (mouros) ves-


Senhor dono da casa
tindo roupas vermelhas. Há lutas, danças e cantos, e sempre os
talhada de melancia
cristãos vencem os mouros, que são batizados. Todos juntos, sua mulher, estrela d' alva
então, fazem festa em louvor a São Benedito, padroeiro dos sua filha, luz do dia.
negros em todo Brasil.
As violas, os ganzás, as caixas e tambores acompanham os Convém notar aqui a extrema semelhança, em alguns luga-
cantadores. A Congada é um dos mais notáveis bailados popu- res, entre os Reisados e as Folias do Divino. Ambos percor-
lares, sendo grande atrativo das festas do Divino Espírito San- rem casas solicitando prendas e esmolas, tecendo elogios ao
to, na região Sul do país. chefe da família.
I",

É PRECISO CANTAR
A DIVERSIDADE DO CANTAR 49

4.3. CANTOS SACROS OU RELIGIOSOS


mos encontrar nas "giras", ou "sessões", uma seqüência de
rituais:
Por isso uma força
me leva a cantar
por isso essa força estranha no ar
- Canto de abertura dos trabalhos e, às vezes, algumas
orações;
por isso é que eu canto
não posso parar
.- Defumação;
por isso essa voz tamanha ... ~Saudação;
(Força Estranha - Caetano Veloso) - "Pontos" cantados de descida - acompanhados por
atabaques ou palmas - para a primeira Linha que vai traba-
Talvez seja o canto, uma das mais antigas maneiras do I
I lhar. Os médiuns, tomados por suas entidades, trocam sauda-
homem entrar em contato com o transcendente, com as for- ! ções entre si, cantam, (lançam e começam a dar consultas;
ças divinizadas da natureza, com a idéia de um ser supremo. i - "Pontos" cantados de subida para os espíritos da "linha"
As canções e danças indígenas, os cantos Gregorianos, os ,I. que acaba de trabalhar. Imediatamente chama-se outra
. \\~S\llj\ mantras, as ladainhas, os spirituals, os "pontos" de terreiro; "falange", e assim sucessivamente;
" as incelênças, enfim, as evocações religiosas, funcionam - Saudação final: como no início, canto de encerramento
,~i'r\".
r ,"'v como um cana ld e comunicação entre céu e terra, entre ho- e orações.
mem e Deus.
a Pajé ameríndio, seguindo uma tradição absolutamente Santo Agostinho explicava que as vocalizações aleluísticas L~
universal, não age sem cantoria. Mário de Andrade31 nos do canto Gregoriano, .são momentos em que a alma, liberta de
. 'C(I mostracomo música e feitiçaria são inseparáveis, numa parce- suas prisões terrestres, se colocava cantando sem palavras, sem
K~~\na instintIva e necessária, tendo na força hipnótica e catártica, consciência, em contato direto com o Senhor.
.tP (~~ um grande poder de atuação sobre o físico, entorpecendo e A música no Oriente, sempre foi entendida como parte da
'f0 levando tanto a estados de letargia, COlnOa estados de fúria. religião e assim foi preservada por milhares de anos, através
O acompanhamento musical na vida religiosa do Candom- da tradição.
blé e da Umbanda, fornece estímulos sonoros aos diferentes
, rituais, funcionando, sobretudo, como verdadeira sustenta- o Som Fundamental, o OM, "Vibração Divina", possuía ele-
, \j#'" ~ãOdo culto, podendo-se afirmar que a liturgia dos terreiros mentos de ordem-celestial que governava o universo inteiro,
e assim como o som primordial, mantinha a ordem e a har-
).J'l\C'lí\- e musIcal. Os co~heclmentos sobre os objetivos do cantar e a
monia dos céus, o som audíveL. em sua/arma musical, trans-
\l-'J J forma de utl!Jzaçao dos Instrumentos musicais, denotam pres-
mitia um reflexo dessa ordem na Terra.
tígio e acesso às questões fundamentais da religião. Pode- (Memorial da Música Chinesa;32.

31 Andrade, 1983, p.46.


32 Fregtman, 1989 b, p. 40.
(
I~

50
É PRECISO CANTAR
A DIVERSIDADE DO CANTAR 51

Segundo C. Fregtman, os mantras pertencem ao reino do


natureza, no período de plantio, tornava-se provocante e sedu-
não-pensamento, e são evocadores e assimiladores das forças ~
tora. Osíris, seu parceiro conquistado, teria direito a gozar, tem-
universais de que são símbolos. O canto desenvolve a respira-
porariamente, todos os prazeres presumíveis, saciando o mais
ção, aumentando a oxigenação do cérebro e, por conseguinte,
íntimo de seus desejos, sendo sacrificado em seguida por sua
levando a um particular estado de consciência chamado Su-
amante, para que cessasse a turbulência dos dias de prazer,
pra-Consciente.
renascendo no ano seguinte para mais um período "extraordi-
A utilização iitúrgica da música e do canto se faz presente, nário. Essa era a base mitológica da festa popular egípcia, onde
enfim, em todos os povos e civilizações, sendo esta uma for-
os mortais se reuniam, ciclicamente, rendendo graças à vida,
ma do humano resgatar a unidade cósmica, o sentimento de
em brincadeiras, cantos e danças, para que as sementes cres-
pertinência com o Todo.
cessem e os frutos fossem bons.
Por outro lado, achamos que o canto com letra, talvez mais
adequado aos ocidentais, provoca, com o próprio significado o rei mandô cair dentro da folia
de suas palavras, o mesmo estado de comunhão com a "divin- Eh! lá vou eu (...)
dade", podendo mesmo chegar ao êxtase a que se refere Santo Eu vou tomar um porre de felicidade
Ago'stinho já por nós citado. Vou sacudir, eu vou zoar foda cidade
Eh! Boi Ápis
Lá no Egito, festa de Ísis
4.4. CANTO CARNAVALESCO
Eh! Deus Baco, bebe sem mágoa
VA~A ". . Vocêpensa que esse vinho é água?
r ~)n maIS ImpresSIOnantecatarse SOCIalque conhecemos em
, LF' t nossa cultura acontece no carnaval. Podemos encontrar, nas
É primavera!
Na lei de Roma, a alegria é que impera
\\'\~ diversas culturas que habitam o território brasileiro, variadas (Festa Profana - J. Brito e Bujão)
C cR)(;\Ç\\..formasdeste festejo. Mas o carnaval tem origens muito anti-
;;; gas. Suas raízes estão ligadas à agricultura. Alguns elementos que ainda hoje caracterizam o Carnaval,
parecem já estar presentes na antigüidade. O tempo extraordi-
Pensando que afio da história é como uma longa serpentina
nário, ou "tempo da alegria", rompendo a rotina; o "gozo" so-
jogada no tempo, um dos extremos do carnaval pode estar
cial e a liberação de desejos antecedendo a "morte"; o ciclo
na antigüidade egípcia e outro em nossos dias. Entre os dois.
um universo de histórias.33
anual de Um breve tempo de euforia e um longo período de
resignação (fecundidade e gestação).
José Carlos Sebe inicia assim seu estudo sobre o carnaval e As festas Gregas e Romanas, também eram marcadas por
suas origens. Conta a lenda que lsis, jovem deusa protetora da um tempo extraordinário de alteração da ordem, desrecalque e
culto aos prazeres - fartura, comida, bebedeira, dança, músi-
ca e liberação sexual. Nas tradições mitológicas ocidentais,
"Sebe, 1986, p.9.
também encontramos a noção da terra como fêmea fecundada
52 É PRECISO CANTAR
A DIVERSIDADE DO CANTAR 53

e responsável pela vida, contrapondo-se a um ser masculino,


Aos poucos porém, segundo Edigar de Alencar34, o maxi-
um rei ou deus fecundador, cuja morte encerraria o período de
xe foi ganhando cidadania até chegar ao Teatro de Revista,
festa, marcando o início da fase de resignação, recolhimento,
fazendo sucesso inclusive em Paris. De início, tratava-se ape-
mortificação, "cinzas" que inicia a quaresma.
nas de uma dança, surgindo mais tarde como composição mu-
O Carnaval, também derivado das raízes Greco-Romanas, sicaI graças ao talento de Caninha, Sinhô e Lamartine Babo,
, } oJ> permite o recurso analítico das suas duas linhas opostas: a entre outros. Voltando ao fim do século passado, surge
lX\'''}~ionisíaca. e. a apolínea. A linha dionisíaca, desarticuladora, Chiquinha Gonzaga. Ao receber por parte do bloco Rosa de
~ ,nos remete à questão da inversão absoluta dos valores. A linha
Ouro, encomenda de uma canção carnavalesca para o desfile
~\~~polínea, harmonizadora, nos diz que o Carnaval seria uma da agremiação, em 1899, ela compôs o seu antológico "ó Abre-
f'e oportunidade de combinação de valores sócio-culturais. O Alas".
Carnaval, então, remete a uma base residual mitológica, sendo
fácil perceber no Brasil as duas correntes. Ó Abre-Alas
Jth~Guardadas as diferenças regionais que caracterizam o Car- Que eu quero passar
'SL-"~,,..Qnav~1 brasileiro, sua origem se dá no sincretismo cultural, evo- Eu sou da Lira
~- luindo, a partir do "jogo de entrudo" e incorporando aspectos Não posso nego:r
de várias festas populares. Os Ranchos, os Blocos (de "índi-
os", de "sujo", de frevo etc.), os bailes, as Grandes Sociedades 6 Abre-Alas
e as Escolas de Samba, são algumas das formas de organiza- Que eu quero passar
ção social. Rosa de Ouro
É quem vai ganhar
4.4.1. O Cantar Carnavalesco no Rio de Janeiro
Embora não nos caiba nesse trabalho um estudo mais pro-
Se é nosso objetivo o levantamenio de questões sobre o fundo sobre a vida de Chiquinha Gonzaga, não temos nenhu-
cantar, o carnaval carioca nos oferece excelente oportunidade ma dúvida quanto a sua posição pré-feminista, já que as lutas
de refletir sobre o assunto. por ela travadas em favor do seu espaço, comprovam estar,
Até 1899, não havia propriamente canções de carnaval. Nos ela, à frente de sua época. Ora, quais são os primeiros versos
salões, a elite, brincando à moda européia, usava máscaras e de sua marcha para o carnaval de 1899? .
entoava a polca. 'Nas ruas o que havia era um amálgama de
Ó Abre-Alas
ritmos constituídos, além das polcas e valsas importadas, dos
Que eu quero passar. ..
I 'Iof; lundus e chulas compostos por brasileiros. Entre 1870 e 1880,
:f.~
yll"'",Q,onrsurge o maxixe, primeiro estilo musical e rítmico urbano ge-
! )'- ~~~ nuinamente brasileiro de carnaval. Causando perplexidade, o
,~~:fV'J.
i . f"" ~
maxixe era usado em bailes "menos familiares". 34 Alencar, 1979.

lr
54 É PRECISO CANTAR A DIVERSIDADE DO CANTAR 55

Recorde-se que estávamos a dez anos da República e a II Sapato de pobre é tamanco


da Abolição. Assim, perguntamos: não seria o 'ó Abre-Alas' Almoço de pobre é café, é café
uma espécie de manifestação inconsciente, da necessidade de Maltrata o corpo como que: Porque
se dar passagem ao novo? O pobre vive de teimoso que é (...)
As canções carnavalescas, cantadas ao longo do século XX, (Sapato de Pobre - Luiz Antônio e Jota Jr.) 1951
!
mostram aspectos interessantes. Podemos, por exemplo, en-
contrar o espírito crítico da realidade social: É com esse que eu vou
Sambar até cair no chão
Você conhece o pedreiro Valdemar? "É com esse que eu vou
Não conhece Desabafar na multidão
Mas vou lhe apresentar Se ninguém se animar
Eu vou quebrar meu tamborim
De madrugada toma o trem da Circular
Faz tanta casa e não tem casa pra morar. Mas se a turma gostar
(Pedreiro Valdemar- Roberto Martins e Vai ser pro miin
Wilson Batista) 1949 Quero ver o ronca-ronca da cuíca
Gente pobre, gente .rica,
Deputado e Senador
Quatro horas da manhã
Oi quebra, quebra
Sai de casa o Zé Marmita
Quero \!er cabr.0cha boa
Pendurado na porta do trem
No piano da patroa batucando:
Zé Marmita vai e vem
É com esse que eu vou! ...
(Zé Marmita - Brasinha e Luis Antônio) 1953
(É com esse que eu vou - Pedro Caetano) 1953

Há quanto tempo Reluziu. É ouro ou lata


Não tenho onde morar, Formou a grande confusão
Se é chuva apanho chuva Qual areia na farofa
Se é sol apanho sol! É o luxo e a pobreza
Francamente No meu mundo de ilusão (.)
Pro viver nessa agonia (Ratos e Urubús, larguem a minha fantasia -
Eu preferia ter nascido caracol Betinho, Glyvaldo, Zé Maria e Osmar) 1989
(Marcha do Caracol- Peter Pan e Afonso Teixeira) 1953
A idéia de que o tempo extraordinário do carnaval, de
Algumas canções apontam contradições sociais, como po- império do prazer, é gerador de culpa, ou possibilita a fuga
brezalriqueza, lixo/luxo, que ficam temporariamente suspensos de uma realidade cruel, aparece em canções de diferentes
ou escamoteados durante o período carnavalesco: épocas:
56
É PRECISO CANTAR A DIVERSIDADE DO CANTAR 57

Se é pecado sambar ;
É hoje que eu vou me acabar
A Deus eu peço perdão
i Só voltarei
Eu não posso evitar l~
I Quando o dia clarear
A tentação i
Você acha...
De um samba dolente
Que eu não tenho direito
Que mexe com a gente
Mas não há jeito
Fazendo endoidecer (...)
Hoje eu vou me acabar. ..
(Se é Pecado Sambar- Manuel Santana) 1950
Levo o ano trabalhando
Eu chorarei amanhã Pro nada lhe faltar
Hoje eu não posso chorar Sou um chefe de família
Um dia pra gente sofrer Que não deixa a desejar
O outro pro desabafar Mas você não compreende
Eu chorarei amanhã Vive sempre a reclamar
Hoje o que eu quero é sambar. Já que não me enten~e
Hoje eu vou me acabar.
(Eu Chorarei Amanhã - Raul Sampaio e Ivo Santos) 1958
(Vou me acabar - Carvalhinho e Romeu Gentil) /945
Chora depois
Mas agora deixa sangrar
É hoje que eu vou me acabar
Deixa o carnaval passar (...) Com chuva ou sem chuva eu vou pra lá
(Deixa Sangrar - Caetano Veloso) 1977 Eu vou, eu vou pra Jacarepaguá
Mulher é mato e eu preciso me arrumar
"'----S> O specto libertino de ruptura com a ordem habitual, está (lacarepaguá - Marino Pinto, Romeu e Paquito) 1949
presen em ou ras tantas canções:

Só porque cheguei em casa Na temátiCa do aspecto libertino, destaca-se o ~ é


Pouco depois da hora Pelo menos até fins dos anos trinta, ele é uma constante nas
Meu amor fechou a porta letras de carnaval:
E me deixou de fora
Vou aproveitar
Quebrei a jura que fiz, quebrei
Eu vou cair no samba e me espalhar Em deixar a orgia
Se meu amor quiser
E me regenerar. ..
Que eu volte ao nosso lar Orgia, orgia
Que venha me procurar (.) Sempre foi e será o meu lugar
(Depois da Hora - Arlindo Marques Jr. e (Quebrei a Jura - Haroldo Lobo e
Augusto Garcez) /944 Milton de Oliveira) /938
58 .É PRECISO CANTAR 59
A DIVERSIDADE DO CANTAR

Abre ajanelaformosa mulher...


Mulata latifundiária
E vem dizer adeus a quem te adora
Pra que tanta ambição
Apesar de te amar como sempre amei
Faz logo a reforma agrária
Na hora da orgia eu vou-me embora Reparte o teu coração
(Abre a Janela - Arlindo Marques ir. e (Reforma Agrária -Antônio Almeida e Elpídio Viana) 1963
Roberto Roberti) 1938
Outras vezes, a "libertinagem" ou iberaçãosexual apare-
Se você jurar ce de forma explícita: ~_
Que me tem amor
Eu posso me regenerar Sá-sassaricando
Mas se é para fingir, mulher Todo mundo leva a vida no arQme
A orgia, assim não vou deixar Sá-sassaricando
A viúva ... o brotinho ... e 'a madame
(Se Você Jurar -Ismael Silva e Nilton Batista) 1931
O velho, na porta da Colombo
É um assombro
-----::::>O onteúdo malicioso é um marco na história de nossas Sassaricando ...
canções carnava escas, onde o duplo sentido é a característica Quem não tem seu sassarico
básica: Sassarica mesmo só
Porque sem sassaricar
Essa vida é um nó
Yes, nós temos banana (Sassaricando - Luiz Antônio, Zé Mário e Oldemar) 1952
Banana pra dar e vender
Banana menina -A história da maçã
Tem vitamina É pura fantasia
Banana engorda Maçã igual àquela
E faz crescer Papai também comia
(Yes, Nós Temos Banana - João de Barro e (História da Maçã - Haroldo Lobo e
Alberto Ribeiro) 1938 Milton de Oliveira) 1954

Meu amor me chamou


Empurra, empurra. empurra
Pra fazer um bigú... ô... ô
Empurra a carrocinha Bem juntinhas no trem
Avança minha gente A viagem ia hem
Que a pipoca tá quentinha Mas o guarda chegou
(Marcha da Pipoca - Luís Bandeira e E a viagem acabou . .
Arcênio de Carvalho) 1955 (Bigú _ Sebastião Gomes, Paquito e Romeu Gentd) 1965
62
É PRECISO CANTAR
A DIVERSIDADE 00 CANTAR 63

Quero uma mulher que saiba lavar e ,cozinhar


Que de munhã cedo me acorde na hora de trabalhar
mais veiculados pela mídia, algumas canções adaptadas para
Só existe uma, e sem ela eu não vivo em paz o carnaval, e antigos sambas e marchas.
Emília, Emília, Emília
Eu não posso mais 4.5. CÂNTICOS GUERREIROS
(Emília - Wilson Batista e Haroldo Lobo) 1942
a voz que canta uma canção
Quem vai lavar minha roupa se for preciso
Quem vai fazer minha sopa canta um hino
Só pode ser você Quiomar louva a morte ...
Não acredito que a nossa amizade (Viola Enluarada - Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle)
Vá se acabar
Meu Deus do céu, nem é bom pensar A face bárbara do homem se tem manifestado em diferen-
(Guiamar - Haroldo Lobo e Wilson Batista) 1945 tes tempos de nossa história. Segundo David Tame, uma can-
ção patriótica, emocionalmente, em tempos de guerra, codifi-
o campo, como podemos ver, é vastíssimo e não. é nosso ca, unifica e intensifica os pensamentos de uma nação inteira.
, .~ objetivo aprofundá-lo, embora sejamos tentados a seguir al- .v E quando se combinam palavras com música, muitos concei-
~~w~~umas ~i~eções, como P?r exemplo, o estudo de letras tristes tos podem ser codificados como nunca o foram até entã035
~ü\l'iC~m musIcas alegres ,e vlce-_versa,o,que revela uma contradi- Mário de Andrade, em uma crônica de 1944, faz uma reflexão
r,t,nyt~ çao (quem sabe, mamfestaçoes mamacas de conflitos latentes sobre a utilização da música em tempos de guerra:
f) ~'"
f' na alma popular), Como dissemos acima, o campo é vastíssimo
A guerra ensina a cantar, é uma fatalidade ... Não deixa de
e, acrescentamos agora, fascinante,
soar macabramente irônico que música e guerra andem ne-
Desde o fim da década de quarenta, podemos observar uma
cessariamente juntas, não tanto como gêmeas que são na
queda na produção de músicas carnavalescas no Rio de Ja- irracional idade e na incompreensibilidade, mas por nos repo-
neiro. As marchas-rancho, as marchinhas com sentido român- rem ambas em nossas formas coletivas de ser. De maneira que
tico o~ malicioso, vão dando lugar às canções interpretadas quando a guerra vem, os povos de consciência coletiva ... bo-
por ammadores de auditório, comunicadores de TV e artistas tam a boca no mundo, e com seus agrupamentos sinfônicos e
de teatro. Essas canções trazem letras que vão revestindo ca- as suas bandas principalmente, se desma~am no que, sem
ráter de liberação sexual cada vez mais flagrante. Ao final trocadilhos. com a maior legitimidade desse mundo, se cha~
dos anos sessenta, evidenciam-se os frevos e surgem os rit- morá de "música de pancadaria". ( ..) As escolas de guerra
mos afro-brasileiros, trazendo uma nova safra de composito- carecem cantigas tanto com palavras e músicas originais, como
res de carnaval, principalmente da região nordestina (Bahia com textos novos so b re me I od.las ja"fiaml'1'lares. 36

e Pernambuco). No eixo Rio/São Paulo, com raríssimas ex-


35 Tame, 1984, p, 161.
cesQões, o que predomina hoje em dia são os sambas-enredo 36 Andrade, 1963, p, 368/369.
64
É PRECISO CANTAR A DIVERSIDADE DO CANTAR 65

Com todo respeito a Mário de Andrade, cremos exagerada É nossa tem dono e ninguém põe a mão, não, não, não
a afirmação de que "a guerra ensina a cantar". A nosso juízo, é nossa toda essa imensa nação
ela apenas canaliza para a música a nossa agressividade indi- (Isso aqui tem dono - Benedito Lacerda e
viduaI ou coletiva. Canalizar, aliás, não é bem o termo, já que Darci de Oliveira)
a agressividade, nesse caso, é fortalecida e não drenada pela
música. Se a pátria querida for envolvida pelo perigo
Por ocasião da entrada do Brasil na segunda grande guerra, na paz ou na guerra, defende a
úrra contra o inimigo ...
(Canção do Soldado - Ulisses Sarmento e Cícero S. Braga)
o rádio teve duas funções importantíssimas. I) Noticiar o con-
flito em seus mínimos detalhes; 2) Cantá-lo tão intensamente
Filho meu muito querido e adorado
quanto possível. Quando não se divulgavam marchas milita-
que a graça de Deus contigo esteja
res propriamente ditas, dava-se ênfase às canções populares as mãos de tua mãe estão tremendo
que, ora exaltavam o ufanismo criado pelo Estádo Novo, ora pedindo a Deus que muito te proteja ...
incitavam a revolta popular contra o. "inimigo", ora falavam (A Carta - Custódio Mesquita)
dos dramas afetivos e humanos provocados pela guerra (sepa-
rações entrepais e filhos, esposas e esposos, etc.). Também não faltavam canções em que o inimigo era
A propósito, vale ressaltar a canção Lili Marlene. Compos- ironizado, ridicularizado. Nesse sentido, o eixo, Roma -
ta na Alemanha por ocasião da primeira guerra mundial, fez Berlim - Tóquio, especialmente a Alemanha de Hitler, foi
sucesso em todo o mundo. Tal sucesso se repete por ocasião alvq..<Jaironia implacável de compositores populares:
da segunda grande guerra. Lili Marlene, cujo ritmo é marcial,
cujo tempo é lento, foi vertida em vários idiomas e fala da dor À los toros, a los toros
profunda causada a um casal que teve que separar-se em razão Adolfito mata mouros
da fatalidade irracional do conflito. Ele, o soldado, despedia-se (Adolfito Mata Mouros - João de Barro e Alberto Ribeiro)
dela, Lili Marlene, porque o dever o obrigava a partir e, para
preservar sua honra de soldado, era obrigado a sufocar seus Quem é que usa cabe linho na testa
sentimentos em função da guerra. Há aqui, talvez, uma espé- e um bigodinho que parece mosca
só cumprimenta levantando o braço
cie de ambivalência que não deve escapar à nossa observação:
ê ê ê, palhaço.
a guerra obrigava o homem a reprimir-se em favor do soldado;
(Quem é o Tal- Ubirajara Nesdan e A. Teixeira)
o homem sofria por não poder optar pela vida, o soldado era
compelido a matar ou morrer. Nãb haverá na canção Lili Mar- Certa vez um rio valente
lene, e em outras do gênero, uma espécie de protesto latente, quis descer um pouco mais
quase manifesto, contra a brutalidade e a insânia da guerra? porém encontrou 'pelafrente
Note-se que essa canção fez sucesso tanto nos países do eixo, quem lhe rasgasse o cartaz
quanto nos países aliados. (O Danúbio Azulou - Nássara e Frazão)
I
j
J
I

66 É PRECISO CANTAR A DIVERSIDADE DO CANTAR 67

Numa espécie de guerra "limpa", os esportes vêm se tore Meu nome é o mais belo
S nando, cada vez mais, um grande campo de batalha, possibili- dos nomes do mundo
oa-(fO tando a sublimação de instintos agressivos ou selvagens. Nos meu nome é 'Brasiiiiiiiiiiiiiil',
"D&~~ embates entre club~s ou.sel~ções, ~s torcidas criam .seus gritos (Meu Cabloco - Laurindo de Almeida e J. Larival)
Gv0j1.. de guerra e podem mflUlrpSicologIcamente no rendImento das
'b~""'"{) equipes e no resullado dos jogos. Aqui, as frases de efeito mobilizam profundamente a emo-
_j,pY)...(>- Os gritos de guerra das torcidas chamam a atenção pela ção, enquanto os agudos lembram, tanto quanto as canções de
. ..
Vr, a manifestação pnmltlva d os gntos
. d e guerra 37 .
I( ~:~9'Jl'{orça e apelo ao espírito guerreiro de seus esportistas. Ge-
fP!" ralmente buscam uma palavra dissílaba que simbolize de Lamartine Babo compôs os hinos da maioria dos clubes
cariocas, onde procurou sublinhar as características de cada
alguma forma o clube, e a multidão passa a cantar em mo-
agremiação esportiva38. Sobre o Flamengo, achava que devIa
mentos estratégicos do jogo, usando um intervalo de terça
lembrar um hino de guerra, por ser um clube de massa:
menor descendente, que tem um apelo primitivo fortíssimo.
Assim é: com o "men-go" que abrevia Flamengo; com o Uma vez Flamengo. sempre Flamengo
"ga-lo" simbolizando o galo-de-briga do Atlético Mineiro; Flamengo sempre eu hei de ser
com o "fo-go" que está presente em Botafogo etc. Não ig- é meu maior prazer
noramos, é claro, os excessos atuais que não caracterizam vê-lo ,brilhar
propriamente .os esportes, mas refletem a violência geral e seja na Terra, seja no mar
crescente, a acentuada subversão de valores em que toda vencer. .. vencer. .. vencer. ..
sociedade mergulha. uma vez Flamengo,
Flamengo até morrer
Quanto à guerra ropriamente dita, não se observa a pre-
~ sença das anções de V mas a incidência das frase de efeito e
Sobre o Fluminense, um toque lírico, devido às caracterís-
dos agudos:
ticas refinadas do clube:

Felizmente nessas horas tristes Sou tricolor de coração


dolorosas e bem amargas Sou do clube tantas vezes campeão
temos um homem de fibra que é fascina pela sua disciplina
o Presidente Vargas. o FLuminense me domina
Debaixo de suas ordens
quero empunhar meu fuzil 37 Jorge Coli, em artigo publicado .na Folha de S. Paulo de 24 d~ março de
para lutar; vencer ou morrer 1998 nota que nas, grandes Óperas, o papel de mocinho, de herÓI, é sempre
reser~ado aos tenores, ou seja, às vozes masculinas que e.mitem os agud?s
pela glória do 'meeeeeeeeu' Brasil. mais altos e fortes. .
(Diplomata - Henrique Gonçales) 38 Cf. V.lença, 1981.
68 É PRECISO CANTAR,
A DIVERSIDADE DO CANTAR 69

eu tenho amor ao tric%r


. Mas se ergues. da justiça a clava/orte
salve o querido pavilhão
Verás que umfilho teu não foge à luta
das três cores que traduzem tradição
Nem teme quem te adora à própria morte
a paz! a esperança! e O vigor
. Terra adorada
unido e forte pelo esporte
Entre outras mil
eu sou tricolor.
És tu Brasil...
(Hino Nacional Brasileiro - Francisco Manuel da Silva e
Sobre o América, por quem torcia apaixonadamente: Osório Duque Estrada)

Dois acontecimentos na Copa do Mundo de 1998 chama-


Hei de torcer. .. torcer. .. torcer. .. ram a atenção e merecem nosso comentário. Inicialmente, a
hei de torcer até morrer...
França, que sediou e venceu o torneio, recebeu um comentário
morrer. .. morrer. ..
de Tostão, em coluna de jornal, no dia da final contra o Brasil:
pois a torcida americana é toda assim
o grande perigo são os primeiros vinte minutos, quando os
.u c:omeçar por mim
a cor do pavilhão jogadores ficam arrepiados após ouvirem o seu empolgante
é a cor do nosso coração hino e pressionam o adversário em seu campo. O melhor
jogador da França não é Zidane e sim o seu hino - a
Marselhesa39. É claro que não foi exatamente o hino que defi-
Sobre o Botafogo: niu o resultado dessa partida, o que já é uma outra história.
Mas vale o comentário, que valoriza a canção comOestimula-
Botafogol Botafogol dora dos brios de uma equipe.
campeão de J 9J OI O segundo fato, refere-se aos "hooligans" ingleses e ale-
és um herói mães que invadiram a França durante o campeonato, criando
em cada jogo algumas cenas de confronto pelas ruas de Paris. Ojornalista
Botafogo (...) Sítio Boccanera teceu um comentário em sua coluna, afirman-
do que nos dois casos (ingleses e alemães), o futebol é apenas
um pretexto. O que realmente os atrai é a presença da mídia do
O! hinos dos clubes e a cantoria das torcidas, têm como
mundo inteiro, para divulgar o que fazem e que idéias represen-
funçao, exacerbar o sentimento e o narcisismo agremiativo. Já
tam: ódio e intolerância, estimulados pela atmosfera naciona-
os hmos nacionais, exacerbam o narcisismo patriótico e em
lista (hinos, bandeiras, cores) de uma competição esportiva40
períodos críticos, podem transformar-se em important~s ele-
mentos moblhzadores, aglutinando povos ou grupos ideológi-
39 Artigo de Tostão, intitulado "A Grande Final", O Globo, Caderno Esporte,
c,ose~ defesa de uma causa (ver Canto como Intervenção Po-
12 de julho de 1998.
htlca, Hem 4.6, a seguir). 40 Coluna de Sílio Boccanera, O Globo, Primeiro Caderno. 2 de agosto de 1998.
70 É PRECISO CANTAR
A DIVERSIDADE '00 CANTAR 71

4.6. CANTO COMO INTERVENÇÃO POLíTICA


Vem, vamos embora
que esperar não é saber
Já choramos muito quem sabe faz a hora
muitos se perderam no
caminho não espera acontecer
mesmo Q"Ssimnão custa inventar
uma nova canção que venha nos trazer
sol de primavera Quando Geraldo Vandré, em 1968, executou dois acordes
(Sol de Primavera - Beta Guedes e Ronaldo Bastos) no violão e cantou "Pra Não Dizer que Não Falei de Flores",
alguns focos de luta armada já pipocavam pelo país, e os estu-
A dinâmica da história é pano de fundo e base para que a dantes, organizados, marchavam pelas ruas pedindo mudan-
produção cultural se desenvolva nas suas diversas linguagens, ças. A voz de Vandré ecoou como convocação para uma resis-
desdobrando-se em diferentes aspectos. Em uma sociedade tência mais efetiv'l ao movimento militar que havia tomado o
complexa como a nossa, o sistema cultural desenvolve seus poder alguns anos antes. A reação foi imediata: recrudesci-
apare.1hossimbólicos de forma heterogênea, refletindo assim, mento do arbítrio, censura, exílio. A canção se tornou "peri-
cAN\ Q a divisão social do trabalho, a coexistência de grupos de ori- gosa". Chico Buarque de Holanda retrucou, algum tempo de-
~. gens étnicas e regionais muito variadas. O canto, como qual- pois, em 1970:
:,,\i<'í~111~ quer outra expressão cultural, estabelece uma íntima relação
" com o processo histórico. As canções registram aspectos de
Hoje você é quem manda
seu tempo, como crônicas sociais de época, espelhando e di-
falou lá falado
fundindo a experiência específica e os valóres culturais dos 'não tem discussão, não
diversos segmentos sociais.
a minha gente hoje anda
Certas canções se tornam peças políticas fundamentais, em falando de lado
determinados momentos históricos: e olhando pro chão (.)
Você vai pagar e é dobrado
Os amores na mente cada lágrima rolada
as flores no chão neste meu penar. ..
a certeza na frente (Apesar de Você - Chico Buarque de Holanda)
a história na mão
aprendendo e ensinando
Anos mais tarde, o movimento pela anistia ganharia seu
uma nova lição
hino. Aldir Blanc e João Bosco, na voz de Elis Regina, fize-
caminhando e cantando'
ram da anistia uma bandeira nacional, tornando irreversível o
e seguindo a canção
processo iniciado em 1979.
'. , ,

72 É PRECISO CANTAR
A DIVERSIDADE DO CANTAR 73

...Meu Brasil
"eque eu vivo pra cantar
que sonha com a volta do irmão do Henfil
na avenida girando
com tanta gente que partiu
o estandarte na mão. pra anunciar
num rabo de foguete ...
(Porta Estandarte - Geraldo Vandré)
Mas sei que uma dor assim pungente
não há de ser inutilmente
As campanhas políticas em épocas eleitorais, utilizam o
a esperança
canto como uma importante estratégia na busca de votos. Má-
dança na corda bamba de sombrinha
em cada passo dessa linha
rio de Andrade, em crônica de 1930, descreve um comício em
pode se machucar São Paulo, da campanha presidencial de Getúlio Vargas e João
azar Pessoa:
a esperança equilibrista
sabe que o show de todo artista um povo de certamente mais de cem mil pessoas, vibrando
tem que continuar num cortejo gritador, todo ele tomado duma raiva dionisíaca,
religiosado pela precisão de crer em alguém. É num momim-
to desses que o povo, para esquecer que éfeito de indivíduos
7 :..i!.-..

Uma canção, pode ser cantada com diferentes intenções, independentes uns dos outros~generaliza os hinos; as mar-
dependendo da situação. em que está inserida, assumindo chas, as cantigas, as dinamogenias rítmicas, que abafam o
conotações políticas diversas. a Hino Nacional Brasileiro, por individualismo e despertam o movimento e, consequentemen-
exemplo, executado em uma parada de sete de setembro, ou te, o sentir em comum.4J
cantado numa solenidade oficial do governo, tem uma
conotação oposta à de quando era cantado em algum ato pú- É admirável a leitura sociológica de Mário de Andrade,
blico ou manifestação política de oposição ao governo militar. mostrando como a música pode ser um elemento fortíssimo,
a primeiro tinha uma intenção de defesa do "status quo" e da contribuindo para a desindividualização da massa. Existe uma
a
ordem instituída. segundo denotava a afirmação dos valores grande semelhança entre essa visão e aquilo que Freud cha-
cívicos de quem desejava uma outra ordem institucional, com mou de "burrice da massa", em "Psicologia das Massas e Aná-
maior sentido de justiça. lise do Ego"42, trabalho editado nove anos antes da crônica.

eu vejo a barra do dia


e não cantava se não fosse assim
surgindo, pedindo
levando pra quem me ouvir
pra gente cantar
tristezas e esperanças pra trocar
tô me guardando pra quando o carnaval chegar
por dores e tristezas
(Quando o Carnaval Chegar- Chico Buarque)
que bem sei
um dia ainda vão findar
41 Andrade, 1963, p.105.
um dia que vem vindo
42 Cf. Freud (1921 l, vol. XVII.
74 É PRECISO CANTAR A DIVERSIDADE DO CANTAR 75

Em 1989, a eleição presidencial nos mostrou fatos impor- sem impedimento. O amor é também simbiose, perdição: "se
tantes, dignos de reflexão. Em contraposição aos demais can- já perdemos a noção da hora / se juntos já jogamos tudo fora
didatos, que utilizaram músicas de campanha que tinham como / me conta agora como hei de partir / (...) se entornaste a
características, o tom maior e as letras otimistas e/ou críticas, nossa sorte pelo chão / se na bagunça do teu coração/ meu
o candidato vencedor utilizou o seu sobrenome (dissílabo) com sangue errou de veia e se perdeu" 6, "como te perder / ou
intervalo de terça menor descendente, característico da Can- tentar te esquecer / ainda mais que agora eu sei que somos
ção de Ur, fragmento melódico primitivo e regressivo, tam- iguais / e se duvidares tens as minhas digitais I como esse
bém utilizado nos esportes como grito de guerra das torcidas. amor pode ter fim?" 7
Perguntamo-nos que peso pode ter tido este elemento sonoro, Mas "sempre na vida / chega o momento em que se desa-
aparentemente sem importância dentro do quadro geral certa- tam os nós" 8, pois "o amor muda tanto / parece que o encan-
mente mais amplo e complexo, na definição do resultado final to/ o cotidiano desfaz" 9 e "chega um dia que a gente entende
das eleições. Sabemos que uma decisão coletiva como essa, / que o amor teve um ponto final" 10. "Tinha cá pra mim! que
ainda mais em um país com uma prática de eleições livres e agora sim / eu vivia enfim o grande amor" 11, "mentira, foi
di~etas tão fragmentada e descontínua, não se restringe à capa- tudo mentira I você não me amou" 12, "mas há que se louvar
cidade crítica e lógica de toda a população. Concorrem nessa I entre altos e baixos I o amor quando traz tanta vida I que até
escolha, fatores subjetivos de avaliação difícil. Mas levanta- pra morrer leva tempo demais" 13. "Quando o meu amor /
mos a possibilidade de que o uso de um elemento melódico disse adeus pra mim / eu perdi a voz" 14, e onde antes havia
regressivo possa ter ajudado a criar, em torno do candidato, a "um cantinho, um violão I esse amor, uma canção"15, agora
mística de proteção e segurança de que a "massa" necessita há um "tudo se transformou / nem as cordas do meu pinho /
para acreditar que alguém representa a alternativa de mudança podem mais amenizar, a dor" 16
mais segura. Canções se eternizaram chorando as dores de um amor ter-
minado: "Ah, você está vendo só/ do jeito que eufiquei I e que
tudo ficou" 17, "volta! vem viver outra vez ao meu lado / não
4.7. CANÇÕES DE AMOR consigo dormir sem teu braço / pois meu corpo está acostu-
mado" 18 "Quando olhaste bem nos olhos meus / e o teu olhar
As coisas do amor e suas vicissitudes, são cantadas e era de adeus Ijura que não acreditei "19, ."quis morrer de ciú-
reencantadas através dos tempos. "Amar / e não ter vergonha mes / quase enlouqueci / mas depois como era de costume,
de ser feliz" I, pois "bom mesmo / é amar e cantar junto" 2. Já obedeci" 20 e "caprichosamentefui esquecendo que te amei" 21.
que "não há amor sozinho / é juntinho que ele fica bom" 3, e Passa o tempo e é hora de redescobrir o amor; "Vem nós dois /
se "eu sei que vou te amar / por toda minha vida" 4, pois vamos tentar / só um novo amor pode a saudade afastar"22,
quem ama conhece o futuro mesmo que seja ilusoriamente, é "pois o amor é que é capaz I de dar a luz onde é demais / a
possível a promessa de "ser somente tua / e amar-te como escuridão no coração,,23. Já se sabe então que "o amor é como
nunca ninguém jamais amou" 5. Eis aí o amor correspondido, a rosa no jardim (...) e a rosa do amor / tem sempre que cres-
,
/~

76
É PRECISO CANTAR

cer / a rosa do amor não vai despedaçar / pra quem cuida bem
da rosa / pra quem sabe cultivar" 24, pois "o amor é um gran-
de laço / um passo pr 'uma armadilha" 25.
Enfim, uma infinidade de nuances sobreo amor podem ser
cantadas e decantadas pelas paixões de todos nós, "e há sem-
I
, pre uma cançãiJ para contar / aquela velha história de um
desejo / que todas as canções têm pra contar" 26. SEGUNDA PARTE

Canções Citadas:

I É a vida - Luiz Gonzaga ir.


2 Mundo melhor - Pixinguinha I Vi~lfcius de Morat;s
MUSICOTERAPIA
3 Primavera - Carlos Lyra / Vinícius de Moraes
4 Eu sei que vou te amar - Tom Jobim I Vinicius de Moraes
:;Por toda minha vida - Tom Jobim / V,'nícius de Moraes
6 Eu te amo - Tom Jobim / Chico Buarque
7 Doce presença -Ivan Lins / Vitor Martins
8 Voz e suor - Sueli Costal Abel Silva
9 Velho piano - Dori Caymmi I Paulo César Pinheiro
10 Depois do Natal- João Danara / Usyas Enio
11 Samba de um grande amor - Chico Buarque
12Cansei de ilusões _ Tito Madi
IJ Altos e baixos - Sueli Costa / A/dir H/ane,
14 Sem fim - Novelli I Cacaso
15 Corcovado - Tom Jobim
161bdo se transformou - Paulinho da Viola
17 Por causa de você - Tom Jobim / Dolores Duran
18Volta - Lupiscfllio Rodrigues
19Atrás da porta - Chico Buarque
20 Olhos nos olhos - Chico Buarque
21 Basta de clamares inocência _ Cartola
22 Caminhos cruzados - Tom Jobim / Newton Mendonça
23 Fantasia _ Stella
24 Amor até o fim - Gilberto Gil
25 Faltando um pedaço _ Djavan
26 Fotografia - Tom Jobim
O CANTAR NA
MUSICOTERAPIA

solto a voz nas estradas


já não quero parar
meu caminho é de pedras
como posso sonhar?
(Travessia - Milton Nascimento e Fernando Brant)

A
té aqui, tudo nos levou a deduzir que a música é uma
forma de organização que reúne som, silêncio e ruído, (
numa determinada sequência, dentro de um determina--fJ"IcJ"~
do espaço/tempo, sendo infinitas as possibilidades de combit<,f) {,~,
nação de seus elementos constitutivos, Acreditamos que a prin- C' ~y~t<
cipal função da música esteja relacionada com a necessidade VJ~L.
humana de expressar seu mundo interno, subjetivo, onde as
emoções têm nuances, movimentos que estão à margem de
uma descrição discursiva, É uma outra forma de linguagem,
um esperanto de emoções43, uma espécie de representação sim-
bólica análoga ao sonho, à fantasia e ao chiste, Suzane Langer
assinala que:

as estruturas tonais que chamamos música, gu~rdam u~


íntima semelhança lógica com as formas do sentimento hu-
mano, formas de crescimento e atenuação, fluência e

43 Ruud, 1990, p. 37.


80
É PRECISO CANTAll. o CANTAR NA MUSICOTERAPIA 81

alentamento, conflito e resolitçao, 'velocidade e parada; ex-


micro-computador-ambulante que trazemos em nossa caixa
citação e calma, ou ativação sutil e lapsos de sonho _ não
craniana. Encontramos uma interessante reflexão feita por
alegria ou tristeza, mas a pungência, a brevidade e a eterna
fugacidade de tudo que é vilalmente sentido. (...) A música é
Muggiati:
um análogo tonal da vida emotiva. 44
Outro importante ponto a ser investigado é a inter-relação de
palavra e música durante o pr:óprio ato sonoro, ou seja, no
A música é nossa principal ferramenta de trabalho. Utiliza-
momento ex.ato em que se ouve a canção. Ainda que o ouvinte
mo-Ia terapeuticamente por acreditarmos em seu alcance e em .não consiga ou não queira captar as pálavras numa primeira
suas possibilidades como reveladora e restauradora da alma audição. o seu incons~iente raramente deixa de ~egistrar a y\.Jl-
humana. A Musicoterapia pode ser definida como uma terapia mensagem do compoSItor. No plano da percepçao, tudo se .5'0 I' d"
a~to-expressiva, que estimula o potencial criativo e a amplia- ~ ,'"
~J-I"'"
..
passa c.0mo se as duas
.'
unções esttv,essem. perfeitamente 0- O:>~ v'
çao da capacIdade comunicativa, mobilizando aspectos bioló- fP O~ dissociadas: a matéria verbal e encaminha dlretame~te para JJ> {j\J ~
gICOS,psicológicos e culturais. . ~rff- "'¥P o lóbulo tempora, esqaer. 0_ enqu~nto 0ee_a",uSlca)se --(GtlÍ0t<.,
:GY, dirigem para o lobulo(temporal dlTelti) EXIste portanto no 1)\ f (j\\"
,.. vl!?mos homenagear cérebro humano uma área específica para a apreciação dos
todo aquele que nos empresta - e ana'I.Ise da pa Iavra. 4S
sons e outra para a percepçao
a sua testa
construindo coisas pra se cantar. Acreditamos que essa 'dissociação', nem sempre é padro-
(Festa [modesta""': Caetano Veloso) nizada. É verdade que para determinadas pessoas, "ouvir mú-
sica" prepondera sobre o "apreciar letras". É também certo
As canções nascem da capacidade criativa de pessoas que que para um segundo grupo, o "apreciar letras" prepondera
desenvolveram esse potencial. Autores e cantores nos "em- sobre o "ouvir música". Há porém pessoas, para quem essas
prestam suas testas construindo e expressando coisas pra se duas atividades cerebrais parecem operar simultaneamente.
cantar". Atualmente as canções populares, quando "ganham a Observamos aqui uma espécie de síntese harmônica, na qual,
rua", difundidas pela mídia, passam a ter vida própria, ou seja, os dois hemisférios cerebrais funcionariam em conjunto.
passam a fazer parte do repertório cultural dos povos. Interagem
com o mundo subjetivo das pessoas, sendo arquivadas na me- olhos nos olhos
mória. Se levarmos em conta a quantidade de canções que es- quero ver o que você jaz
cutamos e cantamos desde o início de nossas vidas, podemos ao sentir que sem você eu passo bem demais
imaginar a dimensão desse arquivo. Algumas questões que e que venho até remoçando
levantamos dizem respeito às leis de funcionamento desse me pego cantando, sem mais f1:.empor que
(Olhos nos olhos - Chico Buarque)

44 Langer apud Muggiati. 1973, p. 106.


4' Muggiati, 1973, p. 102.
82 É PRECISO CANTAR
o CANTAR NA MUSICOTERAPIA 83

Perguntamo-nos sobre os critérios que fazem com que as A apreciação da letra, pode obedecer aos critérios linear ou
canções surjam em nosso pensamento e ocupem um espaço no aberto, o que determina as funções dos hemisférios esquerdo e
\:\ t 1\<1 fluxo das idéias. O canto que se canta sem pensar, que vem à
direito respectivamente. Tentemos perceber outros aspectos
Cc. f,0 mente, seja ele um refrão, um pedaço de estrofe, uma frase dessa dinãmica. Suponhamos que nos venha à mente uma can-
;;;;(#melódica repetindo-se insistentemente, de onde ele vem? Como ção como" A deusa da minha rua", especialmente o trecho que
~b \'l\' podemos em um determinado tempo-espaço, pinçar dentre as diz ....ela é tão rica I e eu tão pobre ... Aqui, há uma linguagem
~l"Y(,mllharesde canções já escutadas e arquivadas na memória, co;creta que se refere à impossibilidade do amor em razão das
1
')Ç. \) esta, exatamente esta?
diferenças sociais. Nesse texto há, portanto, um conteúdo ma-
~0V\ Pensamos haver duas formas de lembrança que nos des- nifesto, correspondendo à linguagem concreta. Perguntamos:
velam a canção. A primeira é a lembrança "exterior", de- não haverá também, em certos casos, um conteúdo latente?
~~n~adeada por um estí~~lo musical externo: um intervalo Ao cantarmos ... ela é tão rica I e eu tão pobre ... , não estare-
,\A~~ ~uslcal ou mes,~o a au~~çaorecente desta canção. A segunda mos inconscientemente, aludindo à riqueza, por exemplo, como
f.B ~tjté a le~branç~ ~ntenor , desencadeada pela livre associação símbolo de poder? Nesse c~so, o c~nteúdo manifesto ~objeti- I O
\?VG a partir do propno fluxo do pensamento, musicante que se in- \~/racional) "frustração" nao estana mascarando ou slmboll- ~fJ1'j)E
~ ~romete'na cadeia de significantes, como um lapso, uma fresta ~~ando o conteúdo latente (subjetivolirracional), "medo". ? Se BlJ~E.ljt '
.çft.;\ aparentemente casual, que aponta um caminho, explicita ao ~\ Ç0>'~ssim for, arriscamos a hipótese de que o conteudo mamfesto}.'" ~
(,~'\ pensamento algo sobre o sentimento relacionado a determina- oU se refira ao hemisfério cerebral esquerdo e o conteúdo latente, H ; ~-i:1J
da idéia, palavra, frase, imagem ou situação vivenciada mo- C9J" '\\ d'lrelto..
. 'D\ R .
, -\l.\)ao . .
mentaneamente. ~ (d.,.JC Luiz Tatit, em trabalho intitulado O CanClOnlsta - compo-
Podemos observar queas canções que lembramos não têm, sição de canções no Brasil, faz uma interessante reflexão so-
necessariamente, correspondência com o gosto musical. Mui.- bre a canção, relacionando-a com a linguagem falada. Defme
tas vezes, é o trecho de uma canção da qual não gostamos que o cantar como "uma gestualidade oral, ao mesmo tempo con-
vai surgir na cadeia do pensamento, como um fragmento in- tínua, articulada, tensa e natural, que exige um permanente
sistente ou passageiro. ~ equilíbrio entre os elementos melódicos, lingüísticos, os
Ao pensarmos no conceito "musicante" (significante musi- tA li:'\ - parâmetros musicais e a entonação coloquial ". O:fímcionista:> -
cal)46, nos vemos frente a novas interrogações. Se existe uma CJ5tJíE:; é então "um gesticulador que manobra sUfl oraltdade, e ca-
distribuição geográfica cerebral que registra em hemisférios tiva, melodicamente, a confiança do ouvinte" 47. Parte da hi-.
diferentes, "sons e análise de palavra", onde se situam as le- pótese de que toda e qualquer canção popular possa ~er.sua
tras das canções? Fazem parte do musicante ou da cadeia de origem na fala, sendo esta, camuflada em tensões ~elo~l~as.
significantes? Enquanto a fala, em suas diferentes modahdades (ntuahstlca,

46 Cf. Costa, 1989.


47 Tatit, 1996, p. 9.
I. j

84
É PRECISO CANTAR

__ --"~
••arguITo'entativaou ~ elativa), é descartável e irregular quanto à ~
~,onondade, cançao ordena o discurso gerando um lastro que
estabcilza as freqüências entro de um percurso harmônico ALGUMAS DIREÇÕES
regula uma pulsação e distribui acentos rítmicos, criando zo:
nas de tensão que edificam uma estabilidade e um sentido pró-
~no para a melodia ,,48.Este é o trabalho do cancionista, que
~ ampliado pelo tImbre da voz, pela intensidade e pelo afeto
investIdo por quem canta.

O
canto, como recurso terapêutico, apresenta-nos um cam-
po vasto de pesquisa e reflexão. Algumas direções são
apontadas por diferentes autores:

Watson e Drury, terapeutas australianos, associam o tra-


balho musical aos sete chakras, unindo filosofia oriental e
psicologia ocidental, objetivando o equilíbrio energético. O
quinto chakra, localizado na altura da sétima vértebra cervical,
é o chakra laríngeo, cujo órgão de manifestação é a glândula
tireóide; controla o maxilar inferior, o pescoço, a voz, as vias
aéreas e OS pulmões. Afirmam Watson e Drury que é a partir
do centro da garganta que podemos emitir o som de todos os
outros centros49 Apontam a voz humana como um dos me-
lhores instrumentos musicais, tanto por sua extensão razoa-
velmente grande, como pela expressão tonal capaz de trans-
mitir toda forma de sentimento. Vêem o canto com um pode- .
roso elemento terapêutico: para o cantor pela expressividade,
e para o ouvinte, pelas imagens e sentimentos que vai asso-
ciar à música. Notemos: I) o cantor já foi ouvinte; 2) quando
se expressa cantando, ele assume, ao mesmo tempo, os dois
papéis.

48 Ibid., p. 12.
49 Watson e Drury, 1990, p.n.
86 É PRECISO CANTAR
ALGUMAS DIREçõES 87

Carlos Fregtman50 assinala a importância do timbre da voz


~ • Função integradora: como fechamento de uma sessão
como representante de uma personalidade básica (per-sona /
muito mobilizante, ela pede ao cliente que cante algo, o que
pelo som): A música da fala pode, então, segundo o autor,
vier à cabeça, para que ele entre em contato com o Self.
servir de base para se efetuar um diagnóstico da pessoa. Apont~
• Função suporte para a entrega: é traçado um paralelo
a emissão e a exploração de sons vocaIs como dois possíveis
entre o som da voz da mãe para o bebê, e o som da voz do
camm os de es loqueamento de afetos reprimidos e arcai-
terapeuta. A voz da mãe é para a criança como o leite, preen-
cos. Acredita que os gritos, rugidos, zumbidos, soluços, pran-
chendo, alimentando e aconchegando. A voz e o canto do
tos, guinchos, gemidos, entre outras manifestações vocais/cor- .
terapeuta é parte do campo organizacional para o cliente.
porais, são elementos importantes quando surgidos esponta-
----) enenZQn 3 vê o corpo humano como o instrumento mu-
neamente e com certo grau de intensidade e compromisso
sica completo. A voz e o canto, são para ele, os. ele- t/SoO D(
afetivo. Citando Lowen, descreve as três áreas possíveis de
mentos mais regressivos e ressonantes, devendo por ISSO,Q01VíO (
desenvolvimento de aneis funcionais de tensão que podem
ser usados com cautela ereservados para emergentes tera- DfJ v02
obstruir ou estreitar a emissão vocal: em torno da boca, 'na
Pêuticos complicados e difíceis de maneja,.54. Fala também,C ~7
união da cabeça com o pescoço e na união do pescoço com o .
Rolando Benenzon, da importância da muslcoterapla I a- fjv &,'
. d'd'
tórax: Cita, ainda, o Roy Hart Theatre, que trabalha o desen-
tica, como forma de um musicoterapeuta reconhecer como
volvimento do potencial humano através do grito, do canto e
sua voz e seu canto estão ligados ao seu ISO (identidade
do som, canalizando e libertando a voz de suas cadeias e ata-
musical). É a partir do reconhecimento dessa identidade,
duras, vendo-a como o meio ideal de colocar os sentimentos
que ° musicoterapeuta vai poder funcionar como uma am-
em contato direto com a sua expressão5J.
pla tela de projeção dos complexos não-verbazs do paClen-
Marly Chagas52 aponta a emissão vocal como um interes- - 55 .
te em sua evo I uçao
sante recurso terapêutico, pois a vibração da voz faz vibrar o ~ Clarice Moura Costa e Martha Negreiros Vianna56, utili-
corpo, ajudando a desbloquear os anéis de tensão. É uma mas- ar
zando técnicas ativas com grupos de esquizofrênicos, falam
sagem vibratória, de dentro para fora, a partir do próprio
da emergência da música do paciente. As canções são livre-
sujeito. Algumas funções do canto na prática clínica, são refe-
mente escolhidas, surgindo espontaneamente, ligadas ao pro-
ridas por Marly:
cesso psíquico que se desenvolve no momento na mente dos'
--p . Função c1arificadora: por ser a música de expressão não- participantes do grupo, no exercício de Ii.vreassociação. Costa
convencional em terapia, o ato de cantar possibilita a mobili- chama a atenção para o fato de que ate mesmo os paCIentes
zação emocional, quando o cliente expõe mais intimamente as com graves distúrbios de pensamento e de ligação com a rea-
suas feridas.

50 Cf. Fregtman. 1989 a. ,) Cf. Benenzon, 1985.


51 Ibid., p. 69.
54lbid., p. 60.
52 Cf. Chagas, 1990. " Ibid.
56 Cf. Costa e Vianna, 1985.
88 É PRECISO CANTAR ALGUMAS DIREÇÕES 89

lidade, cantam corretamente as letras das músicas57.


Ao to- - Uma canção que descreva minha personalidade;
car e/ou cantar, eles estarão veiculando pulsões, direcionadas - Uma cançiio que diga como me sinto interiormente;
para uma ação psicomotora e representadas pela linguagem - Uma cançüo que de maneira constante circula na mi-
musical de forma significante, através dos musicantes; Estes, nha mente;
podem corresponder a vários significados num amplo mas'não - Uma canção que eu detesto;
ilimitado leque de significações, elaboradas pelo cliente, pelo - Minha canção favorita.
grupo e pelos terapeutas, A 'música do paciente' revelará o
início do reencontro com a própria identidade, colocando-o As canções devem ser gravadas pelo cliente e por ele ouvi-
como agente e sujeito da ação, aumentando a percepção de das juntamente com o terapeuta. As respostas a esse questio-
seus próprios sentimentos, emoções e conflitos, e consequen- nário provoca várias conseqüências: I) um conhecimento maior
temente, possibilitando o relacionamento com o outro e a in- por parte do terapeuta com relação ao seu cliente; 2) o caráter
serção no discurso cultural. mobilizante da audição conjunta terapeuta-cliente; 3) em vir-
tude dessa mobilização, um emergir mais fluentes de conteú-
Kel)neth Bruscia, diretor dos cursos de musicoterapia (em dos profundos da personalidade do cliente.
nível de pós-graduação) da Temple University, esteve no Rio
de Janeiro em julho deste ano administrando o curso
'Musicopsícoterapia'. Dentre as várias técnicas apresentadas,
uma chama a nossa atenção, dadas as suas implicações relati-
vas ao canto: trata-se do 'Questionário de Canções Projetivas'
(Projective Song Questionnaire58). Ei-Io: .
- Uma canção que lembre a minha infância;
- Uma canção que recorde minha müe;
- Uma cançüo que me recorde meu pai;
- Uma canção que vem comigo desde a adolescência;
- Uma canção que me rec0r.de um romance antigo;
- Uma cançüo que me torna melancólico;
- Uma canção que me traz bom ânimo;
- Uma canção que expresse minhas opiniões sobre a vida;
- Uma cançüo que expresse minhas crenças religiosas;

57 Costa. 1989. p. 80.


58 Extraído do material didático utilizado no curso promovido pelo CBM entre
os dias JO e 14 de julho de 2000.
~

o MÚSICO-VERBAL

L uiz Antônio Millecco, um dos autores desta obra, desen-


volveu, a partir da experiência clínica, uma técnica musi.
coterápica chamada músico-verbal 59. Passemos a ele, mais
especificamente, a palavra:

"Inicialmente, parto do princípio de homeostase ou equilí-


brio. Segundo esse princípio, ninguém canta por acaso. Cada
qual busca na música, aquilo de que necessita para a expres-
são de seus sentimentos e emoções.
Como aplicar o Músico-verbal? Embora essa aplicação
varie ao infinito, de acordo com a sessão ou o momento
terapêutico, pode-se estabelecer o seguinte critério básico:
• diálogo consigo mesmo - solicita-se ao cliente imagi-
nar-se diante de um espelho, ou de sua fotografia. Se o cliente
ou terapeuta dispuserem de um desses recursos concretamen-
te, tanto melhor. Em seguida, solicita-se ao cliente visualizar
a imagem do espelho ou da fotografia, cantando, em retorno,
uma canção;
• dedicatória musical do cliente - solicita-se ao cliente
que dedique uma canção a algo ou a alguém significativo;

59 Começa a tratar do tema em trabalho não publicado intitulado "A Lingua~


gem do Canto", apresentado no 11Simpósio Brasileiro de Musicoterapia. Rio
de Janeiro, 1985.
92 o MUSICO-VERBAL 93
É PRECISO CANTAR

• rádio imaginário - propõe-se ao cliente que, sonhando tos. Há aqui, Uma circunstância digna de nota. Quanto mais
acordado ou revivendo momentos significantes ou traumáti- apreciado o cantor, com maior intimidade é tratado pelo cli-
cos, imagine um rádio por perto a iocar dúerri'linadas can- ente. Ex.: N. referia-se à Elis Regina como Elis Regina, à Rita
ções. Caberá, então, ao cliente, identificá-las; Lee como Rita Lee. Nana Caymmi, no entanto, era íntima e
• experimento ou associação livre :-----
() terapeuta canta, ou carinhosamente chamada 'a Nana '. Quer nos parecer que não
executa, ou assobia as canções trazidas pelo cliente, solici- se trata aqui, tüo somente dos dotes artísticos do cantor. Cer-
tando-lhe que, de olhos fechados, sonhe acordado ou deixe tamente 'a Nana' interpretava com maior clareza qae as ou-
fluírem livremente, imagens, idéias e emoções; tras cantoras, os sentimentos mais profundos da cliente. Para
• dedicatória musical do terapeuta - o terapeuta dedica reforçar este argamento, relataremos osegainte fato: houve
ao cliente uma cançüo. Essa cançüo emergirá naturalmente uma sessüo em que a cantora citada foi Rita Lee. A cliente,
dambjetividade do terapeuta em razüo de SUainteração COrft após lembrar a letra da melodia, sensivelmente mobilizada,
o cliente e da importância do momento vivido por ambos. envolveu Rita Lee com muito ternura, desejando inclusive, ()
pronto restabelecimento da artista, que na época estava en-
No que se refere às melodias trazidas pelo cliente, a músi'
ferma. A nossOjuízo, a reaçüo da cliente deriva-se do fato de
ca será inteiramente aleatória, ou seja, () cliente não escolhe-
rá as melodias, mas buscará identificá-las, já que, de acordo
que naquele instante, Rita, e nüo Nana, expressou com f/deli-
dade os anseios mais íntimos de N. Para Marly Chagas, o~~
v::..
com as circunstâncias, elas surgem espontâneas de dentro dele.
Em momentos estratégicos da sessüo, solicito ao cliente
canto do terapeuta é o suporte p~ra entrega por parte de ~~us "i><
clientes. Estes, regredindo emoclOnalmente a fases pnmanas \A
que deixe surgirem de maneira espontânea, algumas canções
de sua vida, sentem-se 'protegidos', quer pela canção popu-
(no máximo cinco). Em seguida, canto algumas dessas can-
lar, quer pela folclórica, trazidas ambas pelo terapeuta. Per-
ções, pedindo ao cliente que se disponha a sentimentos, ima-
guntamos: nüo haverá, também, essa entrega da parte dos
gens elou recordações. Essa interaçüo terapeata I cliente, pro-
ouvintes ou fãs aos seus cantores prediletos, embora em nível
voca dois fenômenos, a saber:
inconsciente? Nüo será esse o caso da cliente N., quando
• O terapeata atua como facilitador da emersüo de conteú-
~~umw; . revela uma certa intimidade emocional com Nana Caymmi,
• () cliente os lihera.
chamando-a simplesmente NANA?
_ Alguns clientes improvisam música e letra, deixando fluir
Verifiqaei que parte das canções entoadas têm a mesma emoções. Outros improvi..\'am apenas a letra, sobre uma can-
temática, e que há sempre uma complementaridade de assun- çüo conhecida.
tos, constituindo o todo da vida emocional do cliente naquele _ Nas canções alheias, as pessoas têm maior facilidade
momento. Observei, a partir do emprego desta técnica, alguns de expressar, tanto a linguagem simbólica (conteúdo latente),
aspectos interessantes: quanto a concreta (conteúdo manifesto). As canções improvi-
- Em geral o cliente recorre a músicas compostas por ou- sadas são acompanhadas, mais constantemente, de linguagem
tras pessoas ("os artistas"), para expressar os seus sentimen- concreta.
94

m
É PRECISO CANTAR.

- Através da linguagem simbólica das canções, as defesas


neuróticas parecem enfraquecidas, permitindo a expressão
mais livre de certos conteúdos. FUNÇÕES DO CANTO
Existem pontos de encontro entre a linguagem do psiquismo
expressa no canto, e o conteúdo si,izbólico dos sonhos. O
'músico-verbal' pode facilitar a compreensão desse conteú-
do. Aqui, podemos recorrer a dois processos: J) pedimos ao
cliente que reviva o sonho e cante, a cada momento do drama
onírico; e 2) recorrendo ao método interpretativo Gestalt, pe-
dimos ao cliente, que imagine cada elemento do sonho a emi-
tir um canto.

C
ornojá dissemos, a música pode ser reveladora e/ou res-
Atualmente, são utilizadas dramatizações musicais sobre tauradora da alma humana. As canções, por sua vez,
as canções trazidas pelo cliente, ampliando-se a técnica mú- podem ser usadas como recurso terapêutico, apresen-
sico-verbal com elementos da Gestalt, procurando-se com isso, tando um leque de funções que dependem dos objeti vos a se-
manter o diálogo ao nível do processo primário e facilitando rem alcançados. Passamos a desenvolver uma categorização
a percepção, por parte do cliente, do sentido latente do seu das funções do ca~to. A subdivisão tem um caráter didático e,
cantar. " podemos encontrar muitas vezes, mais de uma das funções
referidas num mesmo ato de cantar.

8.1. CANTO FALHO

A definição clássica de Ato Falho, diz respeito à forma-


ção de compromisso entre a intenção consciente do indiví-
duo e o recalcado60 Muitas vezes, o desejo inconsciente
desencadeante da Filha, torna-se manifesto, inteligível. Ou-'
tras vezes merece uma investigação mais cuidadosa. Já vi-
mos como as canções surgidas a partir da associação livre do
pensamento, podem estar relacionadas ao conteúdo latente
de determinada idéia. E quando cometemos certas falhas no
próprio ato de cantar? Quando trocamos palavras da letra da

60 Brenner. 1975, p. 142.


J

96 É PRECISO CANTAR, 97
FUNÇÕES DO CANTO

canção, quando esquecemos um trecho ou a letra inteira, quan- afastada, onde ela teria sido .quase violentada, mas.nüo tinha
do só nos lembramos de um fragmento, como podemos pen- certeza. Seu sentimento, relativo a esta cena de sedução, era
sar esses lapsos?' bastante confuso.
Acreditamos serem estes, assim comooutros tipos de lap- Pedi, certa vez, que dedicasse uma cançüo para sua difi-
so, reveladores de um duplo movimento. Por um lado, tentati- culdade afetiva:
va de mascaramento defensivo, principalmente nos casos de
esquecimento. Por outro lado, uma falha na repressão de al- .um amor assim -violento ...
gum pensamento ou desejo inconsciente, mais notável nos ca-
sos de troca de palavras da letra, ou da lembrança insistente de -Y:, Repentinamente me perguntou se o amor, na letra de Cae-
algum fragmento da canção. De qualquer forma, muitas vezes,' B1"'- tano Veloso, era violento ou delicado. Os dois aparecem em
cantar é corno mudar de registro, trazendo à consciência inaí~'- . Queixa, de Caetano. Cantamos juntos, e refletimos sobre sua
atenta, informações sobre o processo primário. Os lapsos ou dúvida, articulando isto com a cena de sedução. "
cantos falhos, corroboram e sublinham o que é mais significa'
tivo na canção lembrada.
8.2. CANTO COMO PRAZER

eu minto mas minha voz


não mente
Podemos traçar um paralelo entre o conceito de chiste e a
minha voz soa exatamente canção en1ergé~te em momentos específicos do processo
de onde 110 corpo da alma terapêutico, ou fora dele. O prazer é um elemento co~um ao
de uma pessoa chiste, expresso no riso, e ao ato de cantar, quando ha mten- c.{. C
se produz a palavra eu sidade emocional. Segundo Brenner, o prazer do chiste pro-cf"
(Drama - Caetano Veloso) vém de duas fontes. A primeira é ",nasubstituiçüo regressi-
va do pensamento de processo secundário pelo primário. A
A propósito, ouçamos mais especificamente Ronaldo segunda é a consequência da liberaçüo ou da fuga de impul-
Millecco, um dos autores dessa obra, a fim de que ele nos fale sos que em outras circunstâncias seriam controlados ou prOl-
de sua experiência. bidos61. As duas fontes também podem ser observadas na'
canção emergente. Tanto a troca de processos (secundário
"v., cliente
individual, falava muito da dificuldade de se para primário), como o afrouxamento das defesas, permlte~
ver numa refaçüo afetiva, julgando-se vítima e sentindo-se que o canto seja mobilizador emocional e revdador. de senti-
confusa. Esta dificuldade também aparecia em suas relações do, trazendo consigo uma forma de gozo, de 111tensldadeex-
familiares e de amizade. Rej~ria-se muito a um/ato marcante pressiva.
. em sua vida: aos quatorze anos,fái paqueruda por um homem
mais velho que a levou para passear de carro para uma praia 61 8rener, 1975, p. 158.
: J

98 É PRECISO CANTAR 99
FUNÇÕES DO CANTO

~ .
Um fator Importante a ser levado em conta na canção brava duas músicas, mas que não tinham relação com seus
emergente, é o aspecto analógico, ou seja, a expressividade problemas:
que acompanha o ato de cantar. Assim como a linguagem
discursiva. não se restringe aos códigos da língua, a lingua- você foi o maior dos meus casos
gem musical também vai ganhar colorido com a interpreta- de todos os abraços
ção de quem canta. As ênfases, as variações de andamento, o que eu nunca esqueci
o tom e o timbre da voz, a postura corporal, enfim, toda a você foi dos amores que eu tive
carga afetiva que acompanha o canto; fala da intenção o mais complicado
subjacente, motivadora do cantar. A partir dessa leitura e mais simples pra mim.
analógica é que podemos aproximar-nos. do seu sentido, (Outra Vez- Isolda)
compreender algo sobre sua decifração. Isto é necessaria-
ciranda, cirandinha
mente ligado ao contexto onde o canto se insere, seja por
vamos todos eiralUJ.ar (.)
livre associação espontânea, seja por associação proposta
o anel que tu me destes
pelo terapeuta.
era vidro e se quebrou
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou(.)
8.3. CANTO COMO EXPRESSÃO DE VIV~NCIAS (Cirandaciralldinha- cantiga de roda)
INCONSCIENTES
Pudemos trabalhar, a partir daí, a relação ambivalente com
Há momentos de entraves, bloqueios, onde não consegui- a mãe, e como sua angústia contemporânea se referia à estru-
mos traduzir em palavras o que sentimos. As canções podem tura edípica. Esta revelação musical, induzida pela técnica mú-
permitir, então, o emergir dos conteúdos bloqueados. Passe- sico-verbal, propiciou a dissolução de um nó, que permitiu à
mos novamente a palavra a Ronaldo MiIlecco: A ., redimensionar as imagens materna, paterna, e sua própria
imagem como mulher."
"A., cliente individual, em crise no casamento, vIvia com Convém ressaltar, aqui, um fato digno de nota: quando o
angústia e insegurança sua condição de esposa e mulher. Sen- cliente é solicitado a dedicar músicas a alguém ou a algo,
tia-se pequena e inferiorizada. Identificava seu marido com a observam-se duas tendências distintas -.:..-I) escolha consci-
figura paterna. Tivera com o pai,jáfalecido, uma relação per- ente que, em muitos casos, não passa de racion~lização; 2)
missiva e dependente. A imagem quefazia de sua mãe era a de emersão de conteúdos latentes. Nesses casos, o cliente se sur-
uma rival, de quem tinha muita dificuldade de se aproximar preende e não raro exclama: "Está me chegando aqui u~a • ./
afetiva e corporalmente. Toda vez que falava dela, sentia-se canção que não tem nada a ver". Ora, ~m geral, as ca~çoes4!>
paralisada. Sugeri que dedicasse algumas músicas à sua mãe. que "não têm nada a ver", são as que maIs falam da realIdade
Após um breve silêncio, sorriu levemente e disse que só lem- do cliente.
i

100
É PRECISO CANTAR
FUNÇÕES DO CANTO 101

8.4. CANTO COMO RESGATE


intensidade, que geralmente se contrapõem ao desânimo e à
desvalorização social sofrida e introjetada. Maria Regina
se tluma noite eu viesse ao clarão do luar
Brandão relata o seguinte caso:
cantando e aos compassos de uma cançiio te acordar
talvez C0111 saudades cantasses também
"£., uma senhora de quase sessenta anos, dois filhos casa-
relembrando aventuras passadas
dos, vivia sozinha em seu apartamento e se mantinha do seu
ou um passado feliz com alguém
('antar quase sempre !lOS faz reco~darsem querer trabalho como .fúncionária pública. Sofreu um acidente
um beijo, um sorriso ou uma outra aventura qualquer vascular cerebral (AVe) que a deixou hemiplégica e emocio-
cantando aos compa,\'.w:\'de uma canção nalmente deprimida. Participou de um grupo de Musicotera-
é que mando depressa ir:.se embora pia na ABBR, onde inicialmente não conseguia se comunicar,
a saudade que mora/lO meu coração expressando-se de .forma inibida, com grande dificuldade de
(Cantar - Go80lfredo Guedes) se locomover e re.alizar os exerc£cios f£sicos. A voz era
inexpressiva, não demonstrando alegria ou raiva.
En.tre as milhares de canções arquivadas em nossa memó- Sua vida - antes do AVe - era preenchida, além do tra-
ria, pinçamos apenas uma em determinado tempo/espaço. Esta balho, por idas a boates, onde costumava dançar e fazer pro-
canção lembrada, por vezes, nos remete a situações vividas, gramas com turistas. Dizia ter tido uma vida intensa. Em uma
nos possibilitando o resgate de um momento passado. sessão de musicoterapia, toquei Besame Mucho ao piano. A
O educador Jorge Luís de.Souza e Silva, escreveu um arti- essa altura disse ela admirada: "- Olha, o meu braço sol-
go intitulado "Musicoterapia para ... ex-adolescentes" 62, onde tou!". Naquele miJlnento, a espasticidade de seu braço dimi-
faz uma interessante reflexão sobre a importância das canções nuiu, o tônus passou de hipertônico para hipotônico. A partir
de nossa adolescência. Fala da intensidade com que vivemos daí, a relação com a musicoterapeuta estava estabelecida. Seu
essa fase da vida, marcada geralmente por impulsividade, con- crescimento, em todos os níveis, teve início nesse momento.
testação, idealismo, paixões arrebatadoras e primeiras experi- Passou a cantar e a chorar ao ouvir a referida canção,
ências amorosas. As canções que registram"essa época; quan- revivendiJ muitos instantes significativos. Ao fazer essa volta
do são relembradas, passam a trazer consigo, recordações da ao passado, pôde viver o presente com maior aceitação de
,I
fase mais bonita da vida. É muito comum, em grupos de Mu- suas limitações, descobrindo novas possibilidades que lhe eram
sicoterapia para a terceira idade, que aspessoasdediquem gran- desconhecidas.
de parte das sessões às canções e histórias que marcaram suas £., passou a ser líder do grupo, cantando todas as músicas
respectivas adolescência e juventude. Acreditamos serem es- de sua época, brincando, contando histórias, movimentando-
tas canções, uma forma de resgatar um pouco da potência e da se com desenvoltura, estimulando os colegas, etc. Passou a se
produzir, embelezando-se e se tornando sedutora. Dispensou
sua acompanhante particular e iniciou uma vida noturna de
62lnfarmativa da AMT-RJ. Número XVIlI _ JUBhal9l.
teatros, shows etc. "
102
É PRECISO CANTAR FUNÇÓES DO CANTO 103

o canto
também pode ser um elemento importantíssimo, são, perguntamos ao grupo e, mais enfaticamente, à M., se
em casos de perda de memória, ajudando neste resgate. Maria gostaria de falar alguma coisa, ao que ela respondeu com um
Regina Brandão traz um outro exemplo: não reticente. Após o caos sonoro inicial, que caracteriza a
dinâmica habitual dos grupos de musicoterapia, o primeiro
"f., músico, cantor e compositor, sofre um Ave e tem como momento de coesão se deu com M. cantando:
seqüela, além da hemiplegia, uma perda de memória. O res-
gate da memória foi realizado através de suas próprias com- Eu tenho andado tão sozinho ultimamente
posições. Foi feito um levantamento de todo seu repertório e e nem vejo à minha frente
iniciamos o trabalho. f. ia se iluminando a cada composição nada que me dê prazer
lembrada (música e letra), e cada criação sua remetia a al- Sinto cada vez mais longe a felicidade
gum momento, alguma etapa de sua vida. Relatava-nos suas vendo em mim a mocidade
pequenas histórias e 'causos', e aos poucos ia reconstruindo tanto sonho perecer
Seu mundo. " Eu queria ter na vida simplesmente
um lugar de mato verde
pra plantar e pra colher
Ter um casinha branca, de varanda
8.5. CANTO DESEJANTE
um quintal e uma janela
só pro ver o sol nascer
As canções podem remeter-nos ao futuro, a algo que ainda (Casinha Branca - Gilson e Joran)
esperamos viver.Dessa forma, estaremos expressando sonhos,
fantasias, devaneios, que, através do conteúdo da canção, nos O grupo inicialmente ouviu em silêncio, acompanhando-a
informam sobre certos desejos de transformar o presente em em seguida. Observamos como M. expressou pelo canto, o
algo mais prazeroso. E esses desejos tanto podem apontar para desejo de mais harmonia, bem estar e liberdade em sua vida, e
possibilidades concretas de transformação do futuro, como
como isto cóntrastava com a realidade social em que viviam,
podem estar relacionados com a ilusão de que, no futuro, en- ela e seus companheiros de infortúnio. E como era simples e
contraremos o paraíso perdido, fim de todos os sofrimentos e básico o seu desejo. "
conflitos.
Ronaldo Millecco e Maria Regina Brandão, estagiando no
IPUB (Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil) em 8.6. CANTO COMUNICATIVO
1978, relatam uma passagem que se deu em um grupo de Mu-
sicoterapia: Os diálogos musicais entre terapeuta e cliente, ou entre mem-
bros de um grupo terapêutico, possibilitam momentos de inten-
"Sabíamos ser esta a última participação de M. no grupo, sidade expressiva e comunicativa. Surge nestes diálogos, o mo-
pois receberia alta naquele mesmo dia. Ao iniciarmos a ses- vimento dinâmico estabelecido através da associação livre.
104
É PRECISO CANTAR
FUNÇÕES DO CANTO 105

Muitas vezes, ao lembrar determinada canção, o grupo ou a


"G., vindo de um matrimônio tumultuado, onde se alter-
pessoa podem se dar conta imediatamente do sentido desse
navam momentos de paixão e raiva, amor e ódio, se depa-
canto no momento em que ele é entoado. Em tais casos o ato
rava com uma nova realidade. Estava só, em consequência
de cantar é intencional, havendo então, uma clarificação es-
da perda irreparável de. seu companheiro, em um acidente
pontânea do desejo inconsciente, explicitada pelo próprio ato
automobilístico. Ele era boêmio, namorado r e adorava a
de cantar. Citaremos a mesma cliente do exemplo anterior (Can-
noite.
to Desejante).
Passado um mês, houve a sua primeira saída noturna, um
jantar na casa de um amigo do casal. Ao sair, de madrugada,
"Na referida sessão, mais para o final, M. começa a andar • .
ela começou a cantara I ar:
pela sala, dançando ao som do grupo. Sobe no palco vazio
que havia no salão, e numa brecha de silêncio, canta:
De noite eu rondo a cidade
onde você estiver a te procurar sem encontrar
não se esqueça de mim ... bebendo com outras mulheres (...)
(Niío se Esqueça de Mim - Roberto Carlos e Erasmo Carlos) (Ronda - Paulo Vanzolini)

Repentinamente ela pára, olha para o grupo, dá um pe- Como no caso de M., que ao cantar, tomou consciência de
queno sorriso e volta a cantar: que estava a despedir-se do grupo, aqui, G., cantando, também
se deu conta dos conflitos vividos em relação ao mando. Isto
onde vocês estiverem se torna claro quando observamos que G. relatou à terapeuta,
não se esqueçam de mim ... não só o fato propriamente dito, mas o 'insight' por ele pro-
vocado.
Este foi um momento de muita intensidade afetiva, e foi o
gancho que nos permitiu trabalhar a sua saída junto ao gru-
po. Chamou-nos a atenção o 'insight' que M. teve. Ao cantar 8.7. CANTO CORPORAL

pela primeira vez, ela se deu conta de que sua canção tinha
um endereço certo. Isso ficou claro, quando, cantando pela deixa eu dançar
segunda vez, ela substituiu o singular você, pelo plural vocês. pro meu corpo ficar odara
É como se dissesse: minha cara, minha cuca ficar odara
deixa eu cantar;
- A vocês dedico essa música! É a minha despedida .•
que é pro mundo ficar odara
praficar tudo jóia rara
Acreditamos que tenha havido aí, uma passagem do 'canto
qualquer coisa que se sonhara
como expressão de vivências inconscientes' para o 'canto co- canto e danço que dará
municativo'. Maria Regina Brandão traz um outro exemplo: (Odara - Caetano Veloso)
J

106 É PRECISO CANTAR


FUNÇÕES DO CANTO 107
\ j,t-
,a. V,IIf!
\ /,ç...... A' mUSlca,
. . 'd ade VI'b ratona
como atIVI ,. orgamza
. d a. aleta
" o
já é demais o moeu penar
\I'~ corpo de duas maneiras: objetivamente, como efeito do som quero voltar aquela vida de alegria
. lfJ sobre as células e os órgãos;.e subjet~vamente, agindo sobre as quero de /lOVO CQntar. ..
j') emoções, que, por sua vez, mfluenclam numerosos processos (Tristeza- HaroldoLobo e Niltinho)
corporais. Temos aí um modelo de retroalimentação, onde o
organismo influi nas emoções e as emoções influem no orga- Em pacientes adultos que-apresentam comprometimento
nismo. Estudos comprovam que a atividade muscular, a respi- motor, a utilização do canto oferece maiores possibilidades no
ração, a pressão sangüínea, a pulsação cardíaca, o humor e o desenvolvimento de trabalhos corporais, induzindo a um esta-
metabolismo, são afetados pela música e pelo som. Podemos do de relaxamento, tornando mais fáceis, agradáveis e rápi-
perguntar, então, em que medida o ato de cantar mobiliza con- das, as aquisições motoras. Tanto no trabalho corporal, quanto
cretamente o nosso corpo. Este, funciona como caixa resso- no reaprendizado, o canto leva à gratificação, desenvolvendo
nante onde o som é produzido e de onde é lançado no espaço. nas pessoas, o processo de reabilitação. Ronaldo Millecco traz
~ O corpo é um instrumento, e o canto, o som singular de cada o seguinte exemplo:
um de nós.
A Musicoterapia pode lançar mão de técnicas que envol- "Em conseqüência de um acidente automobilistico, c., 23
vem o canto, facilitando ü processo de reabilitação. Em paci- anos, chegou à ABBR para se tratar de uma tetraplegia com
entes portadores de paralisia cerebral, por exemplo, o canto afasia. Em uma cadeira de rodas, com a coluna cervical cur-
desperta .0 interesse, estimula a percepção, a atenção, a con- vada para frente, seu rosto pendido, sem controle de esfíncteres
centração e torna mais agradável a movimentação corporal e demais agravantes caracterfsticos de seu quqdro clínico,
reforçando as manobras fisioterápicas. A dramatização das C. parecia bastante assustado com o corte brusco sofrido em
canções, também torna possível as noções de esquema corpo- seu projeto de vida, e sem condições de reagir. O encaminha-
ral e orientação espacial.
mento para a Musicoterapia tinha por objetivo, o fortaleci-
Outra importante função do canto relaciona-se com os pro- mento egóico.
blemas da fala. Crianças que não falam, ou que têm atraso no Simbólica e concretamente, C. havia retornado a um está-
desenvolvimento da linguagem, conseguem, através dessa téc- gio primitivo da vida. Como um bebê, era conduzido em seu

• nica (cantar acalantos e músicas de roda; ouvir discos e fitas),


desenvolver o processo de aprendizado.

tristeza
'carrinho' (cadeira de rodas) por seus pais, que tinham tam-
bém por função cuidar de toda a parte alimentar e de higiene.
Havia uma grande dificuldade de comunicação por conta de
uma séria afasia. Seu desânimo era evidente.
por favor vá embora Após uma tentativa tensa e difícil de estabelecermos um
minha alma que chora contato verbal, perguntei-lhe sobre suas preferências musi-
está vendomeufim cais. Com um grande esforço para articular as palavras, me
fez do meu coração a sua moradia respondeu: Rock, Rita Lee e Roberto Carlos. Passamos a uti-
108 É PRECISO CANTAR

EPílOGO
lizar O canto como nosso instrumento de comunicação, onde
nos alternávamos na escolha do repertório. Sua emoção vi-
nha à tona a cada música que o remetia a lembranças signifi-
cativas, provocando mudanças importantes em sua postura
corporal. Nesses momentos, apesar das dificuldades, conse-
guia manter sua coluna mais erguida e sua cabeça mais le-
vantada.
Em pouco tempo, C. já chegava ao setor de Musicoterapia
com outro ânimo. A postura corporal mais ereta, o olhar mais
expressivo, maior participação nas atividades da sessão, me-
lhor articulação vocal e maior movimentação corporal, eram
sinais de que o trabalho estava acontecendo.

O
Canto é um elemento estruturante para o ser humano,
Mais tarde, quando já era nítida a sua melhora e havia . quer em sua história filogenética, cola~orando. na c,ons-
uma perspectiva de evolução em seu quadro, seus pais o reti- trução cultural, fazendo parte do universo slmbolJco
raram do setor de musicoterapia, alegando questões econô- de todas as culturas, quer em sua história ontogenética, graças
micas. Perguntei-lhes se C. havia participado dessa decisão, à qual, cada indivíduo, ao nascer, utiliza vocalizações pata ini-
ao que responderam: "Perguntar para ele é o mesmo que per- ciar o intercâmbio com O mundo. O homem vem, então, ex-
guntar a uma porta ".
pressando-se musicalmente através da voz: nos cantos de tra-
o
Acredito que suas escolhas de repertório e caminho afetivo
balho, nos cânticos guerreiros, nos cantos religiosos ou sa-
das canções, o tenham ajudado a sair de sua posição de de-
cros, nos acalantos de mães ou pais embalando filhos, nas fes-
pendência absoluta dos pais, tal qual um bebê, para se colo-
tas, nos jogO$,na crônica social de época, nas óperas associan-
car como uma pessoa ainda capaz de escolhas, de alguma
do dramas e.mitos ao canto, nas canções populares ... Enfim,
autonomia, de dizer sim ou não, de ser desejante. Talvez isso
em suas atividades, talvez as mais significativas, o ser huma-
tenha ameaçado ou confundido seus pais, que não sendo tam-
bém trabalhados, preferiram preservá-lo" como uma porta". no lança mão do cantar.
Mas esta é uma outra questão, que foge ao nosso tema. " A necessidade de expressar seu mundo interno, subjetivo,
! onde as emoções têm nuances que ficam à margem da lingua-
De qualquer forma, acreditamos que as canções, quando gem discursiva, fez o homem desenvol ver outras formas de ~í2-
trabalhadas terapeuticamente, podem abrir caminhos inusita- linguagem. Suzane Langer chama a música de análoga tonal ~~r
dos, mobilizando aspectos diversos das pessoas, incluindo seu do sentimento humano. O canto, como um instrumento que
corpo como totalidade. " 1;-.\"\'0 habita nossos corpos, faz com que funcionemos co~o caixas
C f\; \ , de ressonância, de onde expressamos todo o movImento do
[ que é vitalmente sentido.
110
É PRECISO CANTAR EpJLOGO
111.

certas canções que ouço


cabem tão dentro de mim epílogo e para que essa posição fique bem clara, propomos ao
que perguntar carece leitor o seguinte questionamento:
como não fui eu. que fiz • Até que ponto a música reflete, influencia ou dinamiza o
(Certas Canções - Tunoi e Milton Nascimento) mundo interno de quem canta e/ou de quem ouve?
(;Q • Não será o canto, em muitas de suas manifestações, uma
forma de resgate da unidade imaginária e recostura ao Cos-
. (j~ 'l;.\ Nossa memória, como um microcomputador, funciona re- mo?
)\\ç.~\» 'gistrando e arquivando as canções que nos chegam aos ouvi-
• Em que momento o ser humano utilizará com mais inten-
';. ,dos desde os período_Lmais remotos de nossa existência. Dife-
sidade a música: na alegria ou na tristeza?
I ,'(JjTindo do@isctll~~ verb~ onde a(l!íi~ll~g~ digita!)é mais
• Em um mundo globalizado, que papel terão as canções:
\ !,:Gj'; facilmente manipuTãvel, por seu relativo con_troleraci?nal e ',Ir") acomodar ou levar à consciência crítica?
(. \1 ç',"- consCIente, o canto, em momentos e sltua~oes especIficas, ~k:
• Qual a influência real do Princípio de ISO nas manifesta-
Cc

\.! parece estar maIS apOIado no processo primaria, em uma ex-'" ,


ções do canto?
pressão mais arcaica, primitiva, analógica, daí seu poder~'I{' .. <" . • O que reflete com mais profundidade o sentimento huma-
reveladorAde sentidos e sua importância dentro de um traba- k'~"',,0, no através do canto e da música em geral: o modo menor ou
lho terapeutIco. 1,,/ '.' ",'
maior ?; o tempo lento ou rápido?
Definimos Musicoterapia, em sua forma "ativa", como um~'~-.f',-,
• De que maneira poderão, a música e o canto, influenciar e
terapia auto.-expressiva, que estimula o potencial criativo e a
até determinar mudanças na área política e social?
ampliação da capacidade comunicativa. Acreditamos ser o
• Como determinar essa mesma influência, na vida de cada
canto, um recurso que pode abrir um vasto leque de funções,
pessoa?
dentro do trabalho musicoterápico: cantos falhos, canto como
• Em que medida a voz do cantor ou da cantora serve de
prazer, canto como expressão de vivências inconscientes, canto
suporte para entrega63, da parte de seus admiradores?
comunicativo, canto como resgate, canto desejante e canto
corporal.
Não pretendemos esgotar o assunto, que consideramos
amplo e cheio de possibilidades de investigação. Nossa inten-
ção foi refletir sobre um instrumento de trabalho que acredita-
mos ser importante, na prática da Musicoterapia.
O objetivo desta obra foi despertar reflexões e inquieta-
ções. É verdade que expusemos nossas crenças. No entanto,
essas crenças não constituem um sistema fechado e dogmático.
Muito ao contrário, o que elas pretendem é, como dissemos 63 Conhecemos o caso de alguém que entrou em depressão ao ouvir o boato de
que Francisco Alves deixaria de cantar. Seria essa depressão semelhante a de
acima, despertar reflexóes e inquietaçóes. Assim, a título de alguém que perdeu o pai? Sobre SUjJorte para Entrega, ver Chagas, 1990.
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Debate, Rev. Número 35,jul./ago.lset., Perseu ,1997, pp. 58-63. anos oitenta 30 Beatles 28, 29
anos quarenta 22,23, 24, 28 blocos 52
anos quarenta e cinqüenta 27 blues 20
PERiÓDICOS CONSULTADOS anos sessenta 27,28,29,30,62 bossa nova 24,25,26,27,28,
anos setenta 30 29
Coleção Brasil: Histórias Costumes e Lendas - São Paulo: Editora anos trinta 22, 57 breque 23
Três. anos trinta, quarenta e
Revista O Correio da Unesco: O Mundo dos Sons - Editora da FGV, cinqüenta 23 C
Ano 4 - Número I, Jan. / 1977. anos vinte 21, 22 canção 17, 72, 104
antigüidad.e 14 canção de Ur 9, 74
Revista O Correio da Unes co: Espaços Musicais - Editora da FGV,
apreciar letras 81 canção emergente 97, 98
Ano 14 -Número 6, Jun.11986.
arquétipos 5 cancionista 83, 84
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.,
samba 20
aspecto liberiino 56
associação livre 95, 103
atividade vibratória organizada
92,95,98,99,100,102,108,
110
canções arquivadas em nossa
memória 100
106 canções carnavalescas 54, 58
ato criador 4 canções da América Latina 21
118
É PRECISO CANTAR íNDICE REMISSIVO 119

canções de amor 74 dedicatória musical do H marchas-rancho 62


canções de Ur 66, 67 terapeuta 92 Hino Nacional Brasileiro 72 marchinhas 62
canções folclóricas 36 desafios dos cantadores 33 hinos 18,27,67 maxixe S3
canções infantis 36 desejo inconsciente 104 hinos dos clubes 68 melodia rítmica 34
candomblé 48 diálogo consigo mesmo 91 hinos nacionais 68 melodias da linguagem 8
cãnone 16 diálogos musicais 103 histriões 17 melodias rítmicas 35
cantar intimista 29 Ditirambo 15 melodrama 17
cantigas de roda 42, 44 dó de peito 23, 27 I mitologia judaico-cristã 3
canto antifônico 15 dramatização das canções 106 Idade Média 14, 15 modinhas 20
canto coral 16, 17 duplo sentido 58 Igreja Católica 19 música da fala 86
canto gregoriano 15, 16,49 inconsciente coletivo 5 música do paciente 87, 88
canto primitivo lS, 19 E intensidade expressiva e música e feitiçaria 48
cuntochão '15
emboladas 24 comunicativa 103 música em tempos de guerra 63
cantores trovadorescos 17 ênfases 98 ISO (identidade musical) 87, 1II musicante 82
cantoria das torcidas 68
escolas de samba 52 músico-verbal 91,94,99
cantos de pastoreio 35 espírilo crítico da realidade J musicopsicoterapia 88
cantos de trabfilho 34,35, 109 social 54 iazz 20 musicoterapia 80, 100, 106,
cantos falhos 96 jogo de entrudo 52
evocações religiosas 48 107, 108, 110
cantos gregorianos 48 experimento ou associação jogos infantis 41,43 musicoterapia para a terceira
cantos mágicos e religiosos 6 livre 92 Jovem Guarda 28 idade 100
capacidade criativa 80
carnaval 51, 52 ;-' L N
F
catarse social 50 ladainhas 48 narcisismo agremiativo 68
fazer musical 21
chanson 17 Lamartine Babo 53 narcisismo patriótico 68
festas católico-pagãs 19
Cbiquinha Gonzaga 53 lapsos 96 ninguém canta por acaso 91
festas gregas e romanas 51
chiste 97 liberação sexual 59
festivais 29, 30
cocos 24 Lili Marlene 64 O
folclore 36
conducto 16 linguagem simbólica das oceano sonoro 8
folguedos 36, 45
congada 46 canções 94 ontogênese 7
folia do Divino 45, 47
contradições sociais 54 lirismo 15 óperas 22
formas de lembrança 82
coral protestante 16 lundu africano 28 operetas 22
frevos 62
cristianismo l5 órgão vocal 13
funções do canto 86 M
crônicas sociais de época 70 ouvir música 81
madrigais 17
G mandai a 44 p
D gestualidade oral 83 manifestações vocais/corporais palavra cantada 6
décnda de quarenta 62 Grandes Sociedades 52 palestrina 16
86
década de trinta 21, 27 gritos de guerra 66, 67 polifonia cristã 16
mantras 48, 50
dedicatória musical do cliente 91 grupo de Musicoterapia 101,102 marchas 63 "pontos" de terreiro 48
120 É PRECISO CANTAR

postura corporal 98 spirituals 48


preconceito 60 surgimento do rádio 21
pregões 35 swing 21
primitivos 14
principal função da música 79 T
princípio de homeostase 91 Teatro de Revista 53
Teatro Grego 15
Q técnicas ativas com grupos de
Questionário de Canções esquizofrênicos 87
Projetivas 88 tempo extraordinário 55
terapia auto-expressiva 80
R timbre da voz 84, 86, 98
"rádio imaginário" 92 toadas 24
ranchos 52 tom 98
rapsodos 15 transformação do futuro 102
reisados 47 Tropicalismo 29
renascimento' 18
representante simbólico 33 U
ritmos afro-brasileiros 62 Umbanda 48
rock 28, 29, 107
rock and roll 28 V
rojões 24 valsas 20
romantismo 21 variaç~es de andamento 98
vibração da voz 86
S voz da mãe 87
sambas 63 voz humana 85
sambas-enredo 62 voz iritimista 26
Self 44,87 vozeirão 28, 30
sereias 10 vozeirões 22, 23, 24, 27
sete chakras 85
Sinhô 53 X
sons vocais 8, 86 xotes 24

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