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O cantar é o princípio e a
alma da música. A
população brasileira der- .
)~ l?ij~j~:',
rama sua paixão, suá dor; seu
sonho, sua história, sua angústia,
seu amor, sua sátira, SU~crítica WW1 F dM ~ RR,~.~
através da canção popular urbana
ou anônima. Aescuta e o olhar de
Luiz Antonio Mil/ecco, Maria ~.
Regina Brandão e Ronaldo
Mil/eeco nos traz aspectos muito'
significativos da utilização da
Música Popular na compreensão
UNW~~~'~~
de uma leitura musicoterápica
que nos ajuda a entender o ser ~.
humano na sua trajetória de vida.
Desderecém-nascida a criança se
expressa por sons e logo cedo
experimenta balbucios, pequenas
melodias enquanto brinca,
inventa histórias cantadas e
l(.-J)&
quando não encontra a palavra itW/àJOtl
entoa um Ia-Ia-lá ... , criando
ritmos e sonoridades inusitadas. I
Quando neste livro os musico-
terapeutas escolhem caminhos
para sugerir algumas funçôes do
canto, que irão apoiar o trabalho
de uma leitura
musicoterapêutica, outros
públicos também serão seduzidos:
! :
I,
I
E Preciso Cantar
Musicoterapia, Cantos e Canções
ENELlVROS
Rio de Janeiro
Copyright@2001,LuísAntônioMilleccoFilho.
Maria Regina Esmeraldo Brandão, Ronaldo Pomponét Millecco
Direitos exclusivos desta edição para a língua portuguesa
ISBN: 85-7181-044-3 concedidos à
ENELlVROS EDITORA E LIVRARIA LTDA.
Av. Henrique Valadares 146, Sobreloja 201
CBP: 20231-031 - Rio de Janeiro. RJ - Brasil.
Telefax: (2 I) 242-3484
e-mail: enelivros@pontocom.com.br
www.enelivros.com.br
Capa:
Ricardo Paes
Ilustração de Capa:
Mariana Milleco Ribeiro ... Viver, e não ter a vergonha de ser feliz
Editoração Eletrônica: Cantar e cantar e cantar
Dilmo Milheiros
Produção Editorial:
A beleza de ser um eterno aprendiz ...
Mar.ia Cláudia Chagas (O que é, o que é - Luiz Gonzaga Júnior)
Produção Gráfica:
Mário Salvador Faillaee
CDD 615.85154
SUMÁRIO
PRIMEIRA PARTE
O Cantar Humano 1
2. A Importância do Cantar 7
4. A Diversidade do Cantar , 33
4.1. Cantos de Trabalho 34
4.2. Canções Anônimas 36.
4.2.1. Acalantos 37
4.2.2. Jogos Infantis 41
4.2.3. Folguedos 45
4.3. Cantos Sacros ou Religiosos 48
viii É PRECISO CANTAR
PREFÁCIO
4.4. Canto Carnavalesco ..............•.......... 50
4.4.1. O Cantar Carnavalesco no Rio de Janeiro 52
4.5. Cânticos Guerreiros 63
4.6. Canto como Intervenção Política 70 Mauro Sá Rego Costa
4.7. Canções de Amor 74 Doutor em Educação pela UFRJ. Professor da FE}3F/UERJ e
Conservatório Brasil.eiro de Música.
SEGUNDA PARTE
Musicoterapia 77
5. O Cantar na Musicoterapia 79
6. Algumas Direções
7. O Músico-Verbal
85
91
U
.
m livro que dá vontade de cantar. Você vai lendo e o
tempo todo o texto é atravessado por letras de canções.
Muitas que você conhece e a leitura é imediatamente
musical. Muitas de que você não lembrava mais e que provo-
cam como uma memória involuntária, e você é deslocado, de
8. Funções do Canto 95 repente, pela lembrança de um pedaço perdido da tua vida.
8. L Canto Falho 95 Canções dos velhos carnavais; canções de protesto, de tua época
8.2. Canto como Prazer 97 dy estudante; cantigas de roda, das brincadeiras infantis; can-
.. 8.3. Canto como Expressão de Vivências Inconscientes. 98
8.4. Canto como Resgate 100
ções de amor, canções de guerra ... De repente, o mundo é
repovoado por essa camada sonora que o acompanha meio sem
8.5. Canto Desejante 102 se perceber, meio naturalmente, como o calor do verão e as
8.6. Canto Comunicativo 103 cores fortes do mês de maio. Com a descrição detalhada de
8.7. Canto Corporal 105 todos os tipos, motivos, e modos das canções, desde as mais
antigas - de trabalho e de devoção - às mais recentes, que
Epílogo ; 109 você acaba de ouvir no rádio do carro, o texto nos passa essa
sensação: alérn dos carros, dos outdoors, das árvores e dos
Bibliografia 113 passarinhos, vivemos, desde sempre, cercados de canções.
Essa é uma sensação nova e surpreendente, porque nossa
Índice Remissivo i17 relação imediata com as canções, até porque elas sempre esti-
veram aí, não é com algo de fora - um objeto - mas com
partes nossas - partes muito especiais, que tem uma existên-
cia física pouco clara ao lado desse seu caráter memorial,
afetivo. Os afetos existem no tempo, como a música, e o tem-
x É PRECISO CANTAR,
PREFÁCIO xi
po passa, não há como pegá-lo, estancá-lo. Há, sim. As can- Ronaldo Millecco, Luís Antônio Millecco e Maria Regina
ções seriam uma das formas privilegiadas de fazer isso. Elas Brandão nos impelem a fazer ao longo de "O Cantar Huma-
guardam blocos de tempo, de memória. E com seu formato no", a primeira parte. Essa viagem aponta, também, a impor-
circular, de eterno retorno, voltam sempre, resgatando a carga tância que tem para o musicoterapeuta poder habitar o mun-
afetiva com que as associávamos - sem o perceber, e daí vem do cultural em que vive (ouve e canta) seu paciente, com o
oseu poder - na época em que as ouvíamos ou cantávamos. conhecimento da riqueza e vnriedade de elementos musicais
Quando uma canção nos volta à mente, nesse modo da me- (e poético-musicais) o mais vasto possível. Mostra como é ne-
mória involuntária - nota que involuntário também é ouvi-la cessário mergulhar neste universo, e, com o domínio desta gran-
sem pedir, ou ler sua letra nas páginas que seguem -, ela traz, de diversidade, aproximar-se de um tempo imemorial, ou "pas-
COmosua paisagem, os traços marcantes de nossa arquitetura sado puro", que, como mostra Proust, seria a fonte de possibi-
afetiva daquele momento. Somos transportados para o pas- lidade das experiências do passado ou da memória.
sado, não tal como era quando o vivemos, mas tal como o De outro modo, como ser capaz de influir na mudança do
sentíamos. passado ou da memória de seu paciente? Proust aponta que
Daí a riqueza da utilização das canções como material este "passado puro" teria na literatura e na música sua morada
terapêutico, na musicoterapia, que é a questão da segunda par- predileta. Mudar nosso passado - e nosso futuro - como
te do livro. Toda terapia é, de certo modo, rescrever a nossa pretende o trabalho terapêutico, aprende com essa possibilida-
história. As dificuldades com que lidamos por não conseguir de da memória de um tempo que nunca foi vivido, um "cristal
dar conta do que sentimos, pelos conflitos entre valores, o con- de tempo", de que nos falam as canções antes que as fixemos
flito entre nossos ideais e a "realidade" que temos que enfren- arbitrariamente a um momento de nossas vidas.
tar, os bloqueios em relação a espaços de experiência afetivos,
profissionais, expressivos etc., todos aparecem como determi-
nados modos de nos "contar" ou nos "cantar". E o trabalho
terapêutico pode então ser pensado como aprender a cantar
novas canções, ou mais ainda, chegar a ouvir e cantar as mes-
mas canções que estão em nossa memória mudando a carga
afetiva com que as fixamos. Este é, às vezes, um enorme e
difícil trabalho: um trabalho de intérprete, quando "interpre-
tar" será mudar um andamento, um clima, um modo de dizer
(os gestos, a atitude, que o acompanham, como lembram os
autores, citando Luiz Tatit), levando junto uma arquitetura de
nossa vida, de nossos afetos, nossos modos de sentir.
Os relatos dos procedimentos terapêuticos desta segunda
',.
parte não seriam tão marcantes, no entanto, sem a viagem que
COMENTÁRIO DOS
AUTORES
D
esde os primeiros passos de nossas atividades clínicas,
temos uma preocupação central: quais as funções tera-
pêuticas do canto? Em que medida fala ele das necessi-
dades e conflitos humanos? De que maneira pode o musicote-
rapeuta servir-se dele como instrumento de trabalho? A esse
propósito, levantamos uma série de reflexões e questões.
A necessidade de criar cultura; a arte como expressão da
dimensão simbólica; o choro e a vocalização como primeiras
manifestações, antecedendo a aquisição de linguagem; o can-
to como linguagem primitiva; as canções presentes na infân-
cia, no folclore, no trabalho, nas religiões, nas festas popula-
res, na política e na história. São estes os diversos caminhos
por nós percorridos na reflexão sobre a importância do cantar
humano. O Canto é a linha de costura que uniu os retalhOs
desta colcha de assuntos. Alguns pontos men;ceram um espa-
ço maior, decorrente da importância que acreditamos terem
para a Musicoterapia: uma pequena história do canto, os
acalantos, as canções infantis, as canções folclóricas, as can-
ções carnavalescas e os cantos como intervenção política, fo"
ram assuntos mais desenvolvidos.
No campo da Musicoterapia, também encontramos alguns
camfnhos que caracterizam o trabalho singular de cada
terapeuta. Independe da linha teórica de cada um, a perspecti-
va de que o Canto é um elemento terapêutico de grande valor
é concepção comum a todos. Finalmente, refletindo sobre nossa
experiência clínica, propomos algumas funções terapêuticas
do canto .
PRIMEIRA PARTE
o CANTAR
HUMANO
]
I
I
í
D
O HOMEM COMO
CRIADOR
presentes em todas as culturas humanas de todos os tempos. além disso, saber o quanto o pensador ou o escritor, indivi-
Isso permite o intercâmbio e o registro de experiências, a dualmente, devem ao estímulo do grupo em que vivem, e se
expressão de sentimentos, o deslizamento e a complexificação eles não fazem mais do que aperfeiçoar um trabalho mental
da cultura. em que os outros tiveram parte simultânea. 2
cantador não escolhe o seu cantar Por sua vez Jung, estudando os arquétipos e o inconsciente
canta o mundo que vê coletivo, fala da dinâmica dessas forças influindo de maneira
(O Cantador - Dory Caymmi e Nelson Motta) decisiva em todos os movimentos inconscientes da humanida-
de, principalmente na criatividade humana.3
meu caminho pelo mundo
eu mesmo traço é um lamento, um canto mais puro
a Bahia já me deu que me ilumina a casa escura
régua e compasso é minha/orça, é nossa energia
(Aquele Abraço - Gilberto Gil) que vem de longe para nos fazer companhia
(Raça - Milton Nascimento e Fernando Brant)
--~i>~ O ato criador é um ato de ruptura, de mergulho no caos mas se eu tiro do lamento
em busca de uma forma. Criar é um ato individual e coletivo. um novo canto
Diz-nos Helio Pellegrino que o artista sonha de novo o seu outra. vida vai nascer
sonho, quando o exprime e, assim, consegue transformá-lo (Outubro - Milton Nascimento e Fernando Brant)
em canto geral (... ) Arte é sonho' compartilhado, comunica-
do, dialógico.1 Segundo Mário de Andradé, os elementos formais da mú- -I
---:'>? O coletivo gesta a idéia e o artista parteja a obra. A cultura
dá os referenciais, os instrumentos materiais e simbólicos que
o artista utiliza para criar seu caminho e orientar o nosso.
sica, o Som e o Ritmo, são tão velhos como o homem, por ~"{I..\I
estarem presentes nele mesmo, nos movimentos do coração,'
no simples ato de respirar, no caminhar, nas mãos que percu- ~
u:
Movimento dialético de mútua influência. Segundo Freud, tem e na voz que produz o som. Quando o homem se percebe .J
como um instrumento, como um corpo sonoro, e descobre que
a mente grupal é capaz de gênio criativo no .campo da inteli- estes sons podem ser organizados, nasce a música. Começa,
gência, como é de,?,onstrado, acima de tudo, pel~ própria ele, então, a manejá-los, combiná-los, convertendo-os em ma-
linguagem, bem como pelo folclore, pelas canções popula- téria nova, em um fantástico veÍCuloexpressivo.
res e outros atos semelhantes. Permanece questão aberta,
n
6
É PRECISO CANTAR
o compositor me disse
que eu cantasse distraidamente esta canção
e que eu cantasse como se o vento soprasse ••
pela boca vindo do pulmão
A IMPORTANCIA
e que eu ficasse ao lado pra escutar DO CANTAR
o vento jorrando as palavras pelo ar
(O compositor me disse - Gilberto Gil)
de angústia nesta fragmentada iniciação vital. Expressamos Quando a criança ainda não aprendeu afalar, mas já perce-
o desconforto, dilatando os pulmões e chorando: nosso pri- r beu que a linguagem significa, a voz da mãe, com suas melo-
meiro som.
dias e seus toques, é pura música, ou é aquilo que depois
O alimento nos chega e experienciamos o primeiro gozo, continuaremos para sempre a ouvir na música: uma lingua-
que faz da boca a primeira zona erógena. O enlace amoroso gem onde se percebe o horizonte de um sentido que no en M
mãe/bebê é o chão que vai permitir o desenvolvimento emo- tanto não se discrimina em_signos isolados, (1U1S que só se
cionaI, o "holding" que resgata, provisoriamente, a unidade intui como uma globalidade em perpétuo recuo, não-verbal,
-----7 uterina. É pelo princípio de prazer que vivemos nossa pre- intraduzivel, mas. à sua maneira, transparente. A música vi-
maturidade cultural. Deparamos com um oceano sonoro: ru- e' vida enquanto hábitat, tenda que queremos armar ou redoma
ídos, silêncios, sons vocais, melodias da linguagem, seqüên- em que precisamos ficar, canta em surdina ou com estridência
cias rítmicas, variações temáticas, tensões e espessuras so- a voz da mãe, envelope sonoro que foi uma vez (por todas)
noras, pausas e intervalos. Estamos no meio de um movi- imprescindível para a criança que se constitui como algo
mento sinfônico e, aos poucos, aprendemos a interagir com para si, como l'self",8
ele. Balbuciamos, brincamos com sílabas, choramos por ne-
cessidades ou artifícios. É pela música que começamos a Y
decifrar o mundo.
Existe um fenômeno intrigante conhecido porGção deJiD
nome dado a um tipo fundamental de melodia, cantada por
Conforme se observa, se é verdade que temos que nos crianças em todo o mundo, independente da cultura a que per-I
deparar com todas as perplexidades relativas à evolução hu- tencem. De dezoito meses à dois anos e meio de idade, as cri- ~
mana, também é certo que dispomos de um vasto potencial anças cantam espontaneamente fragmentos melódicos com in- ~\
para o enfrentamento dessas perplexidades. Aqui, o racio- tervalos de segunda, terça menor e terça maior. Até os três
nal e o irracional se unem e se completam, e desse casa- anos, passam a incluir intervalos de quarta e de quinta, e à
mento surge de maneira exuberante, uma nova maneira de
partir daí, começam a ser influenciadas pelo estilo musical
expressar o ritmo e a música,já existente, por exemplo, nos particular da própria cultura. Segundo Leonard Bernstein, a
pássaros.
Canção de Dr seria um padrão arquetípico9. Este fenômeno
parece representar um importante elemento nó processo psi'
por isso uma força me leva a cantar
cológico de desenvolvimento, demonstrando uma possível
por isso essa força estranha
por isso é que eu canto, não posso parar
relação entre os processos mentais e o fluxo natural da cons-
por isso essa voz tamanha ciência tonal.
(Força Estranha - Caetano Veloso)
José Miguel Wisnik nos instiga a pensar mais profunda- 81989, p.27.
mente na presença da música em nossos primórdios: 9 Tame. 1984. p. 251.
-(I
10
É PRECISO CANTAR A IMPORTÂNCIA DO CANTAR I1
Cantar
filogenética. Do choro ao canto cultural, uma longa estrada
é mover o dom
do fundo de uma paixão
sonora. Cantando, criamos ordenações no espaço/tempo, pro-
seduzir jetamo-nos combinando notas, expressamos o que sentimos e
as pedras, catedrais, coração ... o que sabemos sobre o sentimento humano. Nossos sonhos,
(Seduzir - Djavan) utopias e desventuras, são compartilhados. Atr~vés do canto, ~O
resgatamos a unidade, o território analógico, a ,I,ntenslda,~edo c.Q..~
a voz de alguém viver. Criando o nosso canto, rnterfenmos na srnfoma: ex-
quando vem do coração pressando nossa experiência e espelhando o mundo. Ate que
de quem detém toda beleza ponto o nosso futuro cantar nos vai rerneter a esta rnten~ldade,
da natureza
a esta prevalência do prazer? Não será o canto, e.mmunas de
onde não há pecado nem perdão suas manifestações, uma forma de resgate da umdade Imagi-
(Alguém Cantando - Caetano Veloso)
nária e recostura ao Cosmo?
PEQUENA HISTÓRIA
DO CANTO
D
esde os longínquos tempos da pré-história, o homem
foi desenvolvendo a comunicação com seus semelhan-
tes através da mímica e da fala, tendo na voz o primei-
ro instrumento capaz de emitir sons. Mário de Andrade nos
fala da relação do homem primi tivo com os sons produzidos
pelo órgão vocal, que se distinguem em sons orais e sons
musicais,
11 1987, p. 113.
14
É PRECISO CANTAR PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 15
O canto vigoroso ou chorado, a dança e os rituais religio- Nós somos os cantores do rádio
sos,.significaram, para muitos negros, a sobrevivência ao ban- levamos a vida a cantar
zo, ao tédio. Seus descendentes, negros e mestiços filhos de de noite embalamos teu sono
escravos, passaram a assimilar os hábitos musicais dos bran- de manhã nós vamos te acordar. ..
(Cantores do Rádio - Lamartine Babo, João de Barro e
cos, criando músicas e estilos musicais que marcaram uma
Alberto Roberti)
ruptura generalizada em relação à música européia que impe-
rou até o século XIX.
O surgimento do rádio, nos anos vinte, propiciou, princi- Is\(.,~
A articulação lundu-maxixe-samba, a partir do final do sé- .
paim ente na década de trinta, o aparecimento d.'
os Interpre-.\\.~_rVí\.
culo passado, é comentada por Muniz SodréJ7 corno rudimen-
teso Com eles, modi:ica-se o fazer,musical, ressurge o Ro- cf::;lY" .
to do processo de síntese urbana das diversas expressões mu- mantismo europeu e e retomada a musIco recepttva, para usar-
sicais na formação social brasileira. Em contraposição à músi- mos a expressão de Roland Barthes J 8 Esta, em contraposição
ca operística, valsas e modinhas da elite, o batuque e suas de- à música muscular, realizada e vivida pelo povo, era apenas.
rivações tomaram progressivamente as ruas, em festas popu- executada por um grupo de "iluminados':. Daí por diante, a
lares ao ar livre. O jazz e o blues, nascidos nos campos de eles competirá "interpretar" os sentimentos da "massa". Essa
algodão, às margens do Rio Mississipi, foram o desabafo emi- realidade é, na época, bem caracterizada pelo nível de segun-
tido pelo negro para suportar a ,dureza do trabalho e o exílio V do plano a que ermTIreduzidos os compositores. Aparecesse,
forçado em que vIvia. O blues e fruto do casamento do grito por exemplo, urna valsade sucesso cantada por Orlando Sil-
escravo com a harmonia européia.
va, Sílvio Caldas ou Carlos Galhardo, e ninguém guardaria
17Cf. J 979.
IR Cf. Barthes, 1.990.
22
É PRECISO CANTAR
PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 23
~
26 É PRECISO CANTAR PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 27
, I'
28
É PRECISO CANTAR
PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 29
l
30
É PRECISO CANTAR, PEQUENA HISTÓRIA DO CANTO 31
retoma o vozeirão, ao lado de Maria Bethania. Iis Regina ...meu Deus, vem olhar
consegue passear tranqüilamente entre a bossa nova mti- vem ver de perto
mista e o vozeirão extrovertido, o que a caracteriza, real- uma cidade a cantar
mente, como uma cantora sui gene ris. a evolução da liberdade
Os festivais foram interrompidos no início dos anos seten- até o dia clarear. ..
ta, sendo esvaziados pelo o recrudescimento da repressão e (Vai Passar - Chico Buarque de Holanda)
censura. Nessa época, frutificam as sementes lançadas no pe-
ríodo anterior, quer através da consolidação do prestígio de Toda expressão cultural estabelece uma estreita r~lação com
um Milton Nascimento ou de uma Rita Lee, quer através de o processo histórico. Principalmente a partIr d:ste seculo~com
outros valores como os Novos Baianos, Raul Seixas ou Alceu o avanço tecnológico em matéria de gravaçao e dlfusao de
Valença. Nos anos oitenta, houve uma tentativa de reativação som e imagem, as canções populares têm tido um papel pre-
dos festivais, o que não foi adiante. Ao contrário dos anos ses- ponderante em todo o mundo. A vida cotidiana de nossa gen-
senta, quando tudo fervia, quando havia uma sede incontida te, suas alegrias, frustrações, esperanças, dores e festas, tu~o A ~
de novidades, os anos oitenta apresentam uma "indústria cul- isso é transformado em canções. Podemos c~ntar nossa hlsto'D~~
tural" já consolidada. Os festivais, antes, vitrine de valores, ria através dos cantos de nossa cultura. As musicas atravessam ""íA""v
agora se transformam em balcão de comércio. Por trás deles fronteiras, dimi,luem distâncias geográficas. Se ISto, por um
estão as gravadoras; cabe a elas determinar quem aparece e lado, informa sobre outros cantos, outras visões de m~ndo,
quem não aparece. Hoje acontecem festivais em cidades de por outro, torna possível a massificação ah~nante. Este mt:r-
médio porte, como eventos 'alternativos'. câmbio tem tido um efeito de influência mutua, de consclen-
Os grandes concertos são um marco dessas últimas déca- cia planetária, de estreitamento efetiv~ntre os homens. VIve-
das, onde as canções são cantadas em uníssono por dezenas de mos um momento curioso e inédito no mundo. Com o acelera-
milhares de pessoas. Além disso, desponta agora a música do movimento de unificação política e econômica dos contI-
transnacional. Não só os Rolling Stones ou a Madona, mas nentes, que papel terão as canções?
também os próprios artistas brasileiros percorrem o mundo todo
a divulgar sua obra. Enfim, os maiores movimentos musicais.
cantados hoje pelo mundo, têm origem na mistura cultural de
brancos, negros e índios.
A DIVERSIDADE
I
DO CANTAR
D
e uma forma geral, o CANTO é definido como o somcflrrJ~'
musical produzido pela voz do homem ou de outro ani-':Y~
mal. Os pássaros se destacam de outros animais por
.duas características singulares: o vôo e o canto. Quanto ao
vôo, as diferentes espécies de pássaros apresentam diferen-
i
ii'
tes estilos. O sonho de Ícaro é uni "representante simbólico"
Ir de um antigo desejo do homem: ter asas, voar. Os balões di-
J
I rigíveis, 0$ aviões, as espaço naves e as asas delta, são reali-
zações do século XX, em que o homem mais se aproximou
deste desejo.
: ;.
Quanto ao cantar, é difícil, hoje em dia, estabelecer-se com-
paração definida entre pássaros e homens. Sabe-se atualmente cJÚ-fI1
que homens e pássaros não só cantam mas também são infini- e-::
tamente criativos na variedade de seus cantos. Talvez a única
diferença seja a de que, para os pássaros, o canto tem como O~561
um de seus objetivos, preservar o espaço de cada um. No en- J~l
tanto, no momento mesmo em que levantamos essa hipótese, 1 I10
A
lembramo-nos de que, entre os homens, também existem os ~flS5
desafios dos cantadores e as competições artísticas.
"" O canto está presente no universo simbólico de todas as \'jIl1;fiJ
culturas. Na magia dos feiticeiros, nos festejos e funerais, na Ci\tJ'
expressão de afetos e desafetos, na melodia dos idiomas, na
variedade de sotaques, nas rodas de amigos, nos pregões de
feira, nas casas de espetáculo, nas arquibancadas dos estádio'
34
Ê PRECISO CANTAR,
A DIVERSIDADE DO CANTAR. 35
1 38
, ' É PRECISO CANTAR
39
'I'"
A DIVERSIDADE DO CANTAR
I
1 '1.
I Desce Tutu
de cima do telhado Aqui, a mãe exorciza e expulsa o monstro que poderia per-
!I: vem ver se este menino turbar o sono da criança.
li dorme um sono sossegado
I] AMEAÇADORES
-J..~ O pesquisador de folclore infantil, Veríssimo de Me1025,
~.
~'IW chama a atenção para o fato de que se, por um lado, a função
I .I i Boi, boi, boi
dos fantasmas é necessária para "amansar os rebeldes", por boi da cara preta
I:, outro, é contraproducente à educação da criança, gerando pa-
~<1 pega esse menino
'il vor, intimidando-os e favorecendo a formação de complexos e
II que tem medo de careta
I,
,
I ~recalques. Acreditamos ser esta possibilidade, bastante relati-
;'1 va. O que pode aumentar o pavor no bebê, a ponto de gerar A letra sugere uma espécie de aliança entre a mãe e o mons-
Il
!I
)[
~
"complexos e recalques", é exatamente a falta do enlace amo- tro para que a criança seja obrigada a adormecer.
r' roso mãe/bebê, do holding, da maternagem, condição básica
!
I para que a criança se sinta suficientemente amada para prosse-
AFETIVOS
guir desenvolvendo-se. Traçando uma analogia com o aleita-
mento, mais do que o leite materno ou a mamadeira, o que V
o neném é pequenino
parece realmente Importar na amamentação é a carga afetiva do tamanho de um vintém
que envolve a criança. mesmo sendo pequenino
Para nós, existem vários tipos de acalantos e podemos não dou ele pra ninguém
, ~, classificá-los segundo suas características:
Expressa-se aqui o afeto incondicion~1 da mãe, que deseja
EXORCIZADORES o filho junto de si, como quer que ele seja.
Bicho-papão
sai de cima do telhado TRANQUILIZADORES ou DESMITIFICADORES
deixa o menino
dormir sossegado Dorme neném
dorme meu amor
Tutú marambá
não ve.nhas mai.\' cá que a faca que corta
que o pai do menino
dá golpes sem dor
te manda matá
I-l
são brincadeiras completas, do ponto de vista pedagógico.
Brincando de roda, a criança desenvolve o raciocínio e a me-
mória, estimula o gosto pelo canto e exercita naturalmente seu
J, Com base em Ferraz26, que desdobra o pensamento de \'P\"\
corpo. Poesia, música e dança unem-se em uma síntese de ele-
mentos imprescindíveis ao processo educativo.
Preud, podemos concluir que o pai surge na relação mãe-bebê t7 Veríssimo de Melo27 distribui nossas cantigas em cinco
como continência, e mais tarde como interdição da célula
grupos, segundo o espírito e o estado de ânimo: amorosas,
narcísica (mãe-bebê). Em outras palavras, pai é a leI. Ele
satíricas, imitativas, religiosas e dramáticas.
estabelece o equilíbrio garantindo o desenvolvimento a crian-
ça e impedindo que esta se perca na relação com a ~ãe. Amorosas
"A Margarida"
Lá no céu foram se deitar
"Na mão direita tem uma roseira"
Os anjinhos deixam de cantar
"Mamãezinha precisa descansar "Você gosta de mim"
Dorme anjo "O Cravo brigou com a Rosa"
Papai vai lhe ninar "Terezinha de Jesus"
"Eu sou pobre, pobre, pobre"
26 Lima, 1986. 27 Melo, 1985.
I ,
J.
! i 42
É PRECISO CANTAR
I A DIVERSIDADE DO CANTAR
43
I
, I
,! Satíricas
"importância da brincadeira infantil, como recurso para tl?~
"Dona Chica" lidar com sentimentos de angústia ou de ansiedade,fatores6~
"Fui à Espanha" constituintes e, muitas vezes, dominantes, da atividade
"Lagarta Pintada" lúdica" 28.
"Pai Francisco" Acriança pode manifestar a sua entrada na telação triangu-
"O caranguejo" lar, ou seja, na trama edípica, através dos jogos infantis.
A carrocinha pegou
"Capelinha de melão"
três cachorros de uma vez (bis)
j tlVamos Maninha, vamos"
tra-Ia-Iá
:! "
É PRECISO CANTAR
A DIVERSIDADE DO CANTAR 45
29 Millecco, 1987.
30 Dados extraídos da coleção Brasil: Histórias, Costumes e Lendas.
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46
É PRECISO CANTAR, A DIVERSIDADE DO CANTAR, 47
É PRECISO CANTAR
A DIVERSIDADE DO CANTAR 49
50
É PRECISO CANTAR
A DIVERSIDADE DO CANTAR 51
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54 É PRECISO CANTAR A DIVERSIDADE DO CANTAR 55
Se é pecado sambar ;
É hoje que eu vou me acabar
A Deus eu peço perdão
i Só voltarei
Eu não posso evitar l~
I Quando o dia clarear
A tentação i
Você acha...
De um samba dolente
Que eu não tenho direito
Que mexe com a gente
Mas não há jeito
Fazendo endoidecer (...)
Hoje eu vou me acabar. ..
(Se é Pecado Sambar- Manuel Santana) 1950
Levo o ano trabalhando
Eu chorarei amanhã Pro nada lhe faltar
Hoje eu não posso chorar Sou um chefe de família
Um dia pra gente sofrer Que não deixa a desejar
O outro pro desabafar Mas você não compreende
Eu chorarei amanhã Vive sempre a reclamar
Hoje o que eu quero é sambar. Já que não me enten~e
Hoje eu vou me acabar.
(Eu Chorarei Amanhã - Raul Sampaio e Ivo Santos) 1958
(Vou me acabar - Carvalhinho e Romeu Gentil) /945
Chora depois
Mas agora deixa sangrar
É hoje que eu vou me acabar
Deixa o carnaval passar (...) Com chuva ou sem chuva eu vou pra lá
(Deixa Sangrar - Caetano Veloso) 1977 Eu vou, eu vou pra Jacarepaguá
Mulher é mato e eu preciso me arrumar
"'----S> O specto libertino de ruptura com a ordem habitual, está (lacarepaguá - Marino Pinto, Romeu e Paquito) 1949
presen em ou ras tantas canções:
Com todo respeito a Mário de Andrade, cremos exagerada É nossa tem dono e ninguém põe a mão, não, não, não
a afirmação de que "a guerra ensina a cantar". A nosso juízo, é nossa toda essa imensa nação
ela apenas canaliza para a música a nossa agressividade indi- (Isso aqui tem dono - Benedito Lacerda e
viduaI ou coletiva. Canalizar, aliás, não é bem o termo, já que Darci de Oliveira)
a agressividade, nesse caso, é fortalecida e não drenada pela
música. Se a pátria querida for envolvida pelo perigo
Por ocasião da entrada do Brasil na segunda grande guerra, na paz ou na guerra, defende a
úrra contra o inimigo ...
(Canção do Soldado - Ulisses Sarmento e Cícero S. Braga)
o rádio teve duas funções importantíssimas. I) Noticiar o con-
flito em seus mínimos detalhes; 2) Cantá-lo tão intensamente
Filho meu muito querido e adorado
quanto possível. Quando não se divulgavam marchas milita-
que a graça de Deus contigo esteja
res propriamente ditas, dava-se ênfase às canções populares as mãos de tua mãe estão tremendo
que, ora exaltavam o ufanismo criado pelo Estádo Novo, ora pedindo a Deus que muito te proteja ...
incitavam a revolta popular contra o. "inimigo", ora falavam (A Carta - Custódio Mesquita)
dos dramas afetivos e humanos provocados pela guerra (sepa-
rações entrepais e filhos, esposas e esposos, etc.). Também não faltavam canções em que o inimigo era
A propósito, vale ressaltar a canção Lili Marlene. Compos- ironizado, ridicularizado. Nesse sentido, o eixo, Roma -
ta na Alemanha por ocasião da primeira guerra mundial, fez Berlim - Tóquio, especialmente a Alemanha de Hitler, foi
sucesso em todo o mundo. Tal sucesso se repete por ocasião alvq..<Jaironia implacável de compositores populares:
da segunda grande guerra. Lili Marlene, cujo ritmo é marcial,
cujo tempo é lento, foi vertida em vários idiomas e fala da dor À los toros, a los toros
profunda causada a um casal que teve que separar-se em razão Adolfito mata mouros
da fatalidade irracional do conflito. Ele, o soldado, despedia-se (Adolfito Mata Mouros - João de Barro e Alberto Ribeiro)
dela, Lili Marlene, porque o dever o obrigava a partir e, para
preservar sua honra de soldado, era obrigado a sufocar seus Quem é que usa cabe linho na testa
sentimentos em função da guerra. Há aqui, talvez, uma espé- e um bigodinho que parece mosca
só cumprimenta levantando o braço
cie de ambivalência que não deve escapar à nossa observação:
ê ê ê, palhaço.
a guerra obrigava o homem a reprimir-se em favor do soldado;
(Quem é o Tal- Ubirajara Nesdan e A. Teixeira)
o homem sofria por não poder optar pela vida, o soldado era
compelido a matar ou morrer. Nãb haverá na canção Lili Mar- Certa vez um rio valente
lene, e em outras do gênero, uma espécie de protesto latente, quis descer um pouco mais
quase manifesto, contra a brutalidade e a insânia da guerra? porém encontrou 'pelafrente
Note-se que essa canção fez sucesso tanto nos países do eixo, quem lhe rasgasse o cartaz
quanto nos países aliados. (O Danúbio Azulou - Nássara e Frazão)
I
j
J
I
Numa espécie de guerra "limpa", os esportes vêm se tore Meu nome é o mais belo
S nando, cada vez mais, um grande campo de batalha, possibili- dos nomes do mundo
oa-(fO tando a sublimação de instintos agressivos ou selvagens. Nos meu nome é 'Brasiiiiiiiiiiiiiil',
"D&~~ embates entre club~s ou.sel~ções, ~s torcidas criam .seus gritos (Meu Cabloco - Laurindo de Almeida e J. Larival)
Gv0j1.. de guerra e podem mflUlrpSicologIcamente no rendImento das
'b~""'"{) equipes e no resullado dos jogos. Aqui, as frases de efeito mobilizam profundamente a emo-
_j,pY)...(>- Os gritos de guerra das torcidas chamam a atenção pela ção, enquanto os agudos lembram, tanto quanto as canções de
. ..
Vr, a manifestação pnmltlva d os gntos
. d e guerra 37 .
I( ~:~9'Jl'{orça e apelo ao espírito guerreiro de seus esportistas. Ge-
fP!" ralmente buscam uma palavra dissílaba que simbolize de Lamartine Babo compôs os hinos da maioria dos clubes
cariocas, onde procurou sublinhar as características de cada
alguma forma o clube, e a multidão passa a cantar em mo-
agremiação esportiva38. Sobre o Flamengo, achava que devIa
mentos estratégicos do jogo, usando um intervalo de terça
lembrar um hino de guerra, por ser um clube de massa:
menor descendente, que tem um apelo primitivo fortíssimo.
Assim é: com o "men-go" que abrevia Flamengo; com o Uma vez Flamengo. sempre Flamengo
"ga-lo" simbolizando o galo-de-briga do Atlético Mineiro; Flamengo sempre eu hei de ser
com o "fo-go" que está presente em Botafogo etc. Não ig- é meu maior prazer
noramos, é claro, os excessos atuais que não caracterizam vê-lo ,brilhar
propriamente .os esportes, mas refletem a violência geral e seja na Terra, seja no mar
crescente, a acentuada subversão de valores em que toda vencer. .. vencer. .. vencer. ..
sociedade mergulha. uma vez Flamengo,
Flamengo até morrer
Quanto à guerra ropriamente dita, não se observa a pre-
~ sença das anções de V mas a incidência das frase de efeito e
Sobre o Fluminense, um toque lírico, devido às caracterís-
dos agudos:
ticas refinadas do clube:
72 É PRECISO CANTAR
A DIVERSIDADE DO CANTAR 73
...Meu Brasil
"eque eu vivo pra cantar
que sonha com a volta do irmão do Henfil
na avenida girando
com tanta gente que partiu
o estandarte na mão. pra anunciar
num rabo de foguete ...
(Porta Estandarte - Geraldo Vandré)
Mas sei que uma dor assim pungente
não há de ser inutilmente
As campanhas políticas em épocas eleitorais, utilizam o
a esperança
canto como uma importante estratégia na busca de votos. Má-
dança na corda bamba de sombrinha
em cada passo dessa linha
rio de Andrade, em crônica de 1930, descreve um comício em
pode se machucar São Paulo, da campanha presidencial de Getúlio Vargas e João
azar Pessoa:
a esperança equilibrista
sabe que o show de todo artista um povo de certamente mais de cem mil pessoas, vibrando
tem que continuar num cortejo gritador, todo ele tomado duma raiva dionisíaca,
religiosado pela precisão de crer em alguém. É num momim-
to desses que o povo, para esquecer que éfeito de indivíduos
7 :..i!.-..
Uma canção, pode ser cantada com diferentes intenções, independentes uns dos outros~generaliza os hinos; as mar-
dependendo da situação. em que está inserida, assumindo chas, as cantigas, as dinamogenias rítmicas, que abafam o
conotações políticas diversas. a Hino Nacional Brasileiro, por individualismo e despertam o movimento e, consequentemen-
exemplo, executado em uma parada de sete de setembro, ou te, o sentir em comum.4J
cantado numa solenidade oficial do governo, tem uma
conotação oposta à de quando era cantado em algum ato pú- É admirável a leitura sociológica de Mário de Andrade,
blico ou manifestação política de oposição ao governo militar. mostrando como a música pode ser um elemento fortíssimo,
a primeiro tinha uma intenção de defesa do "status quo" e da contribuindo para a desindividualização da massa. Existe uma
a
ordem instituída. segundo denotava a afirmação dos valores grande semelhança entre essa visão e aquilo que Freud cha-
cívicos de quem desejava uma outra ordem institucional, com mou de "burrice da massa", em "Psicologia das Massas e Aná-
maior sentido de justiça. lise do Ego"42, trabalho editado nove anos antes da crônica.
Em 1989, a eleição presidencial nos mostrou fatos impor- sem impedimento. O amor é também simbiose, perdição: "se
tantes, dignos de reflexão. Em contraposição aos demais can- já perdemos a noção da hora / se juntos já jogamos tudo fora
didatos, que utilizaram músicas de campanha que tinham como / me conta agora como hei de partir / (...) se entornaste a
características, o tom maior e as letras otimistas e/ou críticas, nossa sorte pelo chão / se na bagunça do teu coração/ meu
o candidato vencedor utilizou o seu sobrenome (dissílabo) com sangue errou de veia e se perdeu" 6, "como te perder / ou
intervalo de terça menor descendente, característico da Can- tentar te esquecer / ainda mais que agora eu sei que somos
ção de Ur, fragmento melódico primitivo e regressivo, tam- iguais / e se duvidares tens as minhas digitais I como esse
bém utilizado nos esportes como grito de guerra das torcidas. amor pode ter fim?" 7
Perguntamo-nos que peso pode ter tido este elemento sonoro, Mas "sempre na vida / chega o momento em que se desa-
aparentemente sem importância dentro do quadro geral certa- tam os nós" 8, pois "o amor muda tanto / parece que o encan-
mente mais amplo e complexo, na definição do resultado final to/ o cotidiano desfaz" 9 e "chega um dia que a gente entende
das eleições. Sabemos que uma decisão coletiva como essa, / que o amor teve um ponto final" 10. "Tinha cá pra mim! que
ainda mais em um país com uma prática de eleições livres e agora sim / eu vivia enfim o grande amor" 11, "mentira, foi
di~etas tão fragmentada e descontínua, não se restringe à capa- tudo mentira I você não me amou" 12, "mas há que se louvar
cidade crítica e lógica de toda a população. Concorrem nessa I entre altos e baixos I o amor quando traz tanta vida I que até
escolha, fatores subjetivos de avaliação difícil. Mas levanta- pra morrer leva tempo demais" 13. "Quando o meu amor /
mos a possibilidade de que o uso de um elemento melódico disse adeus pra mim / eu perdi a voz" 14, e onde antes havia
regressivo possa ter ajudado a criar, em torno do candidato, a "um cantinho, um violão I esse amor, uma canção"15, agora
mística de proteção e segurança de que a "massa" necessita há um "tudo se transformou / nem as cordas do meu pinho /
para acreditar que alguém representa a alternativa de mudança podem mais amenizar, a dor" 16
mais segura. Canções se eternizaram chorando as dores de um amor ter-
minado: "Ah, você está vendo só/ do jeito que eufiquei I e que
tudo ficou" 17, "volta! vem viver outra vez ao meu lado / não
4.7. CANÇÕES DE AMOR consigo dormir sem teu braço / pois meu corpo está acostu-
mado" 18 "Quando olhaste bem nos olhos meus / e o teu olhar
As coisas do amor e suas vicissitudes, são cantadas e era de adeus Ijura que não acreditei "19, ."quis morrer de ciú-
reencantadas através dos tempos. "Amar / e não ter vergonha mes / quase enlouqueci / mas depois como era de costume,
de ser feliz" I, pois "bom mesmo / é amar e cantar junto" 2. Já obedeci" 20 e "caprichosamentefui esquecendo que te amei" 21.
que "não há amor sozinho / é juntinho que ele fica bom" 3, e Passa o tempo e é hora de redescobrir o amor; "Vem nós dois /
se "eu sei que vou te amar / por toda minha vida" 4, pois vamos tentar / só um novo amor pode a saudade afastar"22,
quem ama conhece o futuro mesmo que seja ilusoriamente, é "pois o amor é que é capaz I de dar a luz onde é demais / a
possível a promessa de "ser somente tua / e amar-te como escuridão no coração,,23. Já se sabe então que "o amor é como
nunca ninguém jamais amou" 5. Eis aí o amor correspondido, a rosa no jardim (...) e a rosa do amor / tem sempre que cres-
,
/~
76
É PRECISO CANTAR
cer / a rosa do amor não vai despedaçar / pra quem cuida bem
da rosa / pra quem sabe cultivar" 24, pois "o amor é um gran-
de laço / um passo pr 'uma armadilha" 25.
Enfim, uma infinidade de nuances sobreo amor podem ser
cantadas e decantadas pelas paixões de todos nós, "e há sem-
I
, pre uma cançãiJ para contar / aquela velha história de um
desejo / que todas as canções têm pra contar" 26. SEGUNDA PARTE
Canções Citadas:
A
té aqui, tudo nos levou a deduzir que a música é uma
forma de organização que reúne som, silêncio e ruído, (
numa determinada sequência, dentro de um determina--fJ"IcJ"~
do espaço/tempo, sendo infinitas as possibilidades de combit<,f) {,~,
nação de seus elementos constitutivos, Acreditamos que a prin- C' ~y~t<
cipal função da música esteja relacionada com a necessidade VJ~L.
humana de expressar seu mundo interno, subjetivo, onde as
emoções têm nuances, movimentos que estão à margem de
uma descrição discursiva, É uma outra forma de linguagem,
um esperanto de emoções43, uma espécie de representação sim-
bólica análoga ao sonho, à fantasia e ao chiste, Suzane Langer
assinala que:
Perguntamo-nos sobre os critérios que fazem com que as A apreciação da letra, pode obedecer aos critérios linear ou
canções surjam em nosso pensamento e ocupem um espaço no aberto, o que determina as funções dos hemisférios esquerdo e
\:\ t 1\<1 fluxo das idéias. O canto que se canta sem pensar, que vem à
direito respectivamente. Tentemos perceber outros aspectos
Cc. f,0 mente, seja ele um refrão, um pedaço de estrofe, uma frase dessa dinãmica. Suponhamos que nos venha à mente uma can-
;;;;(#melódica repetindo-se insistentemente, de onde ele vem? Como ção como" A deusa da minha rua", especialmente o trecho que
~b \'l\' podemos em um determinado tempo-espaço, pinçar dentre as diz ....ela é tão rica I e eu tão pobre ... Aqui, há uma linguagem
~l"Y(,mllharesde canções já escutadas e arquivadas na memória, co;creta que se refere à impossibilidade do amor em razão das
1
')Ç. \) esta, exatamente esta?
diferenças sociais. Nesse texto há, portanto, um conteúdo ma-
~0V\ Pensamos haver duas formas de lembrança que nos des- nifesto, correspondendo à linguagem concreta. Perguntamos:
velam a canção. A primeira é a lembrança "exterior", de- não haverá também, em certos casos, um conteúdo latente?
~~n~adeada por um estí~~lo musical externo: um intervalo Ao cantarmos ... ela é tão rica I e eu tão pobre ... , não estare-
,\A~~ ~uslcal ou mes,~o a au~~çaorecente desta canção. A segunda mos inconscientemente, aludindo à riqueza, por exemplo, como
f.B ~tjté a le~branç~ ~ntenor , desencadeada pela livre associação símbolo de poder? Nesse c~so, o c~nteúdo manifesto ~objeti- I O
\?VG a partir do propno fluxo do pensamento, musicante que se in- \~/racional) "frustração" nao estana mascarando ou slmboll- ~fJ1'j)E
~ ~romete'na cadeia de significantes, como um lapso, uma fresta ~~ando o conteúdo latente (subjetivolirracional), "medo". ? Se BlJ~E.ljt '
.çft.;\ aparentemente casual, que aponta um caminho, explicita ao ~\ Ç0>'~ssim for, arriscamos a hipótese de que o conteudo mamfesto}.'" ~
(,~'\ pensamento algo sobre o sentimento relacionado a determina- oU se refira ao hemisfério cerebral esquerdo e o conteúdo latente, H ; ~-i:1J
da idéia, palavra, frase, imagem ou situação vivenciada mo- C9J" '\\ d'lrelto..
. 'D\ R .
, -\l.\)ao . .
mentaneamente. ~ (d.,.JC Luiz Tatit, em trabalho intitulado O CanClOnlsta - compo-
Podemos observar queas canções que lembramos não têm, sição de canções no Brasil, faz uma interessante reflexão so-
necessariamente, correspondência com o gosto musical. Mui.- bre a canção, relacionando-a com a linguagem falada. Defme
tas vezes, é o trecho de uma canção da qual não gostamos que o cantar como "uma gestualidade oral, ao mesmo tempo con-
vai surgir na cadeia do pensamento, como um fragmento in- tínua, articulada, tensa e natural, que exige um permanente
sistente ou passageiro. ~ equilíbrio entre os elementos melódicos, lingüísticos, os
Ao pensarmos no conceito "musicante" (significante musi- tA li:'\ - parâmetros musicais e a entonação coloquial ". O:fímcionista:> -
cal)46, nos vemos frente a novas interrogações. Se existe uma CJ5tJíE:; é então "um gesticulador que manobra sUfl oraltdade, e ca-
distribuição geográfica cerebral que registra em hemisférios tiva, melodicamente, a confiança do ouvinte" 47. Parte da hi-.
diferentes, "sons e análise de palavra", onde se situam as le- pótese de que toda e qualquer canção popular possa ~er.sua
tras das canções? Fazem parte do musicante ou da cadeia de origem na fala, sendo esta, camuflada em tensões ~elo~l~as.
significantes? Enquanto a fala, em suas diferentes modahdades (ntuahstlca,
84
É PRECISO CANTAR
__ --"~
••arguITo'entativaou ~ elativa), é descartável e irregular quanto à ~
~,onondade, cançao ordena o discurso gerando um lastro que
estabcilza as freqüências entro de um percurso harmônico ALGUMAS DIREÇÕES
regula uma pulsação e distribui acentos rítmicos, criando zo:
nas de tensão que edificam uma estabilidade e um sentido pró-
~no para a melodia ,,48.Este é o trabalho do cancionista, que
~ ampliado pelo tImbre da voz, pela intensidade e pelo afeto
investIdo por quem canta.
O
canto, como recurso terapêutico, apresenta-nos um cam-
po vasto de pesquisa e reflexão. Algumas direções são
apontadas por diferentes autores:
48 Ibid., p. 12.
49 Watson e Drury, 1990, p.n.
86 É PRECISO CANTAR
ALGUMAS DIREçõES 87
o MÚSICO-VERBAL
• rádio imaginário - propõe-se ao cliente que, sonhando tos. Há aqui, Uma circunstância digna de nota. Quanto mais
acordado ou revivendo momentos significantes ou traumáti- apreciado o cantor, com maior intimidade é tratado pelo cli-
cos, imagine um rádio por perto a iocar dúerri'linadas can- ente. Ex.: N. referia-se à Elis Regina como Elis Regina, à Rita
ções. Caberá, então, ao cliente, identificá-las; Lee como Rita Lee. Nana Caymmi, no entanto, era íntima e
• experimento ou associação livre :-----
() terapeuta canta, ou carinhosamente chamada 'a Nana '. Quer nos parecer que não
executa, ou assobia as canções trazidas pelo cliente, solici- se trata aqui, tüo somente dos dotes artísticos do cantor. Cer-
tando-lhe que, de olhos fechados, sonhe acordado ou deixe tamente 'a Nana' interpretava com maior clareza qae as ou-
fluírem livremente, imagens, idéias e emoções; tras cantoras, os sentimentos mais profundos da cliente. Para
• dedicatória musical do terapeuta - o terapeuta dedica reforçar este argamento, relataremos osegainte fato: houve
ao cliente uma cançüo. Essa cançüo emergirá naturalmente uma sessüo em que a cantora citada foi Rita Lee. A cliente,
dambjetividade do terapeuta em razüo de SUainteração COrft após lembrar a letra da melodia, sensivelmente mobilizada,
o cliente e da importância do momento vivido por ambos. envolveu Rita Lee com muito ternura, desejando inclusive, ()
pronto restabelecimento da artista, que na época estava en-
No que se refere às melodias trazidas pelo cliente, a músi'
ferma. A nossOjuízo, a reaçüo da cliente deriva-se do fato de
ca será inteiramente aleatória, ou seja, () cliente não escolhe-
rá as melodias, mas buscará identificá-las, já que, de acordo
que naquele instante, Rita, e nüo Nana, expressou com f/deli-
dade os anseios mais íntimos de N. Para Marly Chagas, o~~
v::..
com as circunstâncias, elas surgem espontâneas de dentro dele.
Em momentos estratégicos da sessüo, solicito ao cliente
canto do terapeuta é o suporte p~ra entrega por parte de ~~us "i><
clientes. Estes, regredindo emoclOnalmente a fases pnmanas \A
que deixe surgirem de maneira espontânea, algumas canções
de sua vida, sentem-se 'protegidos', quer pela canção popu-
(no máximo cinco). Em seguida, canto algumas dessas can-
lar, quer pela folclórica, trazidas ambas pelo terapeuta. Per-
ções, pedindo ao cliente que se disponha a sentimentos, ima-
guntamos: nüo haverá, também, essa entrega da parte dos
gens elou recordações. Essa interaçüo terapeata I cliente, pro-
ouvintes ou fãs aos seus cantores prediletos, embora em nível
voca dois fenômenos, a saber:
inconsciente? Nüo será esse o caso da cliente N., quando
• O terapeata atua como facilitador da emersüo de conteú-
~~umw; . revela uma certa intimidade emocional com Nana Caymmi,
• () cliente os lihera.
chamando-a simplesmente NANA?
_ Alguns clientes improvisam música e letra, deixando fluir
Verifiqaei que parte das canções entoadas têm a mesma emoções. Outros improvi..\'am apenas a letra, sobre uma can-
temática, e que há sempre uma complementaridade de assun- çüo conhecida.
tos, constituindo o todo da vida emocional do cliente naquele _ Nas canções alheias, as pessoas têm maior facilidade
momento. Observei, a partir do emprego desta técnica, alguns de expressar, tanto a linguagem simbólica (conteúdo latente),
aspectos interessantes: quanto a concreta (conteúdo manifesto). As canções improvi-
- Em geral o cliente recorre a músicas compostas por ou- sadas são acompanhadas, mais constantemente, de linguagem
tras pessoas ("os artistas"), para expressar os seus sentimen- concreta.
94
m
É PRECISO CANTAR.
C
ornojá dissemos, a música pode ser reveladora e/ou res-
Atualmente, são utilizadas dramatizações musicais sobre tauradora da alma humana. As canções, por sua vez,
as canções trazidas pelo cliente, ampliando-se a técnica mú- podem ser usadas como recurso terapêutico, apresen-
sico-verbal com elementos da Gestalt, procurando-se com isso, tando um leque de funções que dependem dos objeti vos a se-
manter o diálogo ao nível do processo primário e facilitando rem alcançados. Passamos a desenvolver uma categorização
a percepção, por parte do cliente, do sentido latente do seu das funções do ca~to. A subdivisão tem um caráter didático e,
cantar. " podemos encontrar muitas vezes, mais de uma das funções
referidas num mesmo ato de cantar.
96 É PRECISO CANTAR, 97
FUNÇÕES DO CANTO
canção, quando esquecemos um trecho ou a letra inteira, quan- afastada, onde ela teria sido .quase violentada, mas.nüo tinha
do só nos lembramos de um fragmento, como podemos pen- certeza. Seu sentimento, relativo a esta cena de sedução, era
sar esses lapsos?' bastante confuso.
Acreditamos serem estes, assim comooutros tipos de lap- Pedi, certa vez, que dedicasse uma cançüo para sua difi-
so, reveladores de um duplo movimento. Por um lado, tentati- culdade afetiva:
va de mascaramento defensivo, principalmente nos casos de
esquecimento. Por outro lado, uma falha na repressão de al- .um amor assim -violento ...
gum pensamento ou desejo inconsciente, mais notável nos ca-
sos de troca de palavras da letra, ou da lembrança insistente de -Y:, Repentinamente me perguntou se o amor, na letra de Cae-
algum fragmento da canção. De qualquer forma, muitas vezes,' B1"'- tano Veloso, era violento ou delicado. Os dois aparecem em
cantar é corno mudar de registro, trazendo à consciência inaí~'- . Queixa, de Caetano. Cantamos juntos, e refletimos sobre sua
atenta, informações sobre o processo primário. Os lapsos ou dúvida, articulando isto com a cena de sedução. "
cantos falhos, corroboram e sublinham o que é mais significa'
tivo na canção lembrada.
8.2. CANTO COMO PRAZER
98 É PRECISO CANTAR 99
FUNÇÕES DO CANTO
~ .
Um fator Importante a ser levado em conta na canção brava duas músicas, mas que não tinham relação com seus
emergente, é o aspecto analógico, ou seja, a expressividade problemas:
que acompanha o ato de cantar. Assim como a linguagem
discursiva. não se restringe aos códigos da língua, a lingua- você foi o maior dos meus casos
gem musical também vai ganhar colorido com a interpreta- de todos os abraços
ção de quem canta. As ênfases, as variações de andamento, o que eu nunca esqueci
o tom e o timbre da voz, a postura corporal, enfim, toda a você foi dos amores que eu tive
carga afetiva que acompanha o canto; fala da intenção o mais complicado
subjacente, motivadora do cantar. A partir dessa leitura e mais simples pra mim.
analógica é que podemos aproximar-nos. do seu sentido, (Outra Vez- Isolda)
compreender algo sobre sua decifração. Isto é necessaria-
ciranda, cirandinha
mente ligado ao contexto onde o canto se insere, seja por
vamos todos eiralUJ.ar (.)
livre associação espontânea, seja por associação proposta
o anel que tu me destes
pelo terapeuta.
era vidro e se quebrou
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou(.)
8.3. CANTO COMO EXPRESSÃO DE VIV~NCIAS (Cirandaciralldinha- cantiga de roda)
INCONSCIENTES
Pudemos trabalhar, a partir daí, a relação ambivalente com
Há momentos de entraves, bloqueios, onde não consegui- a mãe, e como sua angústia contemporânea se referia à estru-
mos traduzir em palavras o que sentimos. As canções podem tura edípica. Esta revelação musical, induzida pela técnica mú-
permitir, então, o emergir dos conteúdos bloqueados. Passe- sico-verbal, propiciou a dissolução de um nó, que permitiu à
mos novamente a palavra a Ronaldo MiIlecco: A ., redimensionar as imagens materna, paterna, e sua própria
imagem como mulher."
"A., cliente individual, em crise no casamento, vIvia com Convém ressaltar, aqui, um fato digno de nota: quando o
angústia e insegurança sua condição de esposa e mulher. Sen- cliente é solicitado a dedicar músicas a alguém ou a algo,
tia-se pequena e inferiorizada. Identificava seu marido com a observam-se duas tendências distintas -.:..-I) escolha consci-
figura paterna. Tivera com o pai,jáfalecido, uma relação per- ente que, em muitos casos, não passa de racion~lização; 2)
missiva e dependente. A imagem quefazia de sua mãe era a de emersão de conteúdos latentes. Nesses casos, o cliente se sur-
uma rival, de quem tinha muita dificuldade de se aproximar preende e não raro exclama: "Está me chegando aqui u~a • ./
afetiva e corporalmente. Toda vez que falava dela, sentia-se canção que não tem nada a ver". Ora, ~m geral, as ca~çoes4!>
paralisada. Sugeri que dedicasse algumas músicas à sua mãe. que "não têm nada a ver", são as que maIs falam da realIdade
Após um breve silêncio, sorriu levemente e disse que só lem- do cliente.
i
100
É PRECISO CANTAR
FUNÇÕES DO CANTO 101
o canto
também pode ser um elemento importantíssimo, são, perguntamos ao grupo e, mais enfaticamente, à M., se
em casos de perda de memória, ajudando neste resgate. Maria gostaria de falar alguma coisa, ao que ela respondeu com um
Regina Brandão traz um outro exemplo: não reticente. Após o caos sonoro inicial, que caracteriza a
dinâmica habitual dos grupos de musicoterapia, o primeiro
"f., músico, cantor e compositor, sofre um Ave e tem como momento de coesão se deu com M. cantando:
seqüela, além da hemiplegia, uma perda de memória. O res-
gate da memória foi realizado através de suas próprias com- Eu tenho andado tão sozinho ultimamente
posições. Foi feito um levantamento de todo seu repertório e e nem vejo à minha frente
iniciamos o trabalho. f. ia se iluminando a cada composição nada que me dê prazer
lembrada (música e letra), e cada criação sua remetia a al- Sinto cada vez mais longe a felicidade
gum momento, alguma etapa de sua vida. Relatava-nos suas vendo em mim a mocidade
pequenas histórias e 'causos', e aos poucos ia reconstruindo tanto sonho perecer
Seu mundo. " Eu queria ter na vida simplesmente
um lugar de mato verde
pra plantar e pra colher
Ter um casinha branca, de varanda
8.5. CANTO DESEJANTE
um quintal e uma janela
só pro ver o sol nascer
As canções podem remeter-nos ao futuro, a algo que ainda (Casinha Branca - Gilson e Joran)
esperamos viver.Dessa forma, estaremos expressando sonhos,
fantasias, devaneios, que, através do conteúdo da canção, nos O grupo inicialmente ouviu em silêncio, acompanhando-a
informam sobre certos desejos de transformar o presente em em seguida. Observamos como M. expressou pelo canto, o
algo mais prazeroso. E esses desejos tanto podem apontar para desejo de mais harmonia, bem estar e liberdade em sua vida, e
possibilidades concretas de transformação do futuro, como
como isto cóntrastava com a realidade social em que viviam,
podem estar relacionados com a ilusão de que, no futuro, en- ela e seus companheiros de infortúnio. E como era simples e
contraremos o paraíso perdido, fim de todos os sofrimentos e básico o seu desejo. "
conflitos.
Ronaldo Millecco e Maria Regina Brandão, estagiando no
IPUB (Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil) em 8.6. CANTO COMUNICATIVO
1978, relatam uma passagem que se deu em um grupo de Mu-
sicoterapia: Os diálogos musicais entre terapeuta e cliente, ou entre mem-
bros de um grupo terapêutico, possibilitam momentos de inten-
"Sabíamos ser esta a última participação de M. no grupo, sidade expressiva e comunicativa. Surge nestes diálogos, o mo-
pois receberia alta naquele mesmo dia. Ao iniciarmos a ses- vimento dinâmico estabelecido através da associação livre.
104
É PRECISO CANTAR
FUNÇÕES DO CANTO 105
Repentinamente ela pára, olha para o grupo, dá um pe- Como no caso de M., que ao cantar, tomou consciência de
queno sorriso e volta a cantar: que estava a despedir-se do grupo, aqui, G., cantando, também
se deu conta dos conflitos vividos em relação ao mando. Isto
onde vocês estiverem se torna claro quando observamos que G. relatou à terapeuta,
não se esqueçam de mim ... não só o fato propriamente dito, mas o 'insight' por ele pro-
vocado.
Este foi um momento de muita intensidade afetiva, e foi o
gancho que nos permitiu trabalhar a sua saída junto ao gru-
po. Chamou-nos a atenção o 'insight' que M. teve. Ao cantar 8.7. CANTO CORPORAL
pela primeira vez, ela se deu conta de que sua canção tinha
um endereço certo. Isso ficou claro, quando, cantando pela deixa eu dançar
segunda vez, ela substituiu o singular você, pelo plural vocês. pro meu corpo ficar odara
É como se dissesse: minha cara, minha cuca ficar odara
deixa eu cantar;
- A vocês dedico essa música! É a minha despedida .•
que é pro mundo ficar odara
praficar tudo jóia rara
Acreditamos que tenha havido aí, uma passagem do 'canto
qualquer coisa que se sonhara
como expressão de vivências inconscientes' para o 'canto co- canto e danço que dará
municativo'. Maria Regina Brandão traz um outro exemplo: (Odara - Caetano Veloso)
J
tristeza
'carrinho' (cadeira de rodas) por seus pais, que tinham tam-
bém por função cuidar de toda a parte alimentar e de higiene.
Havia uma grande dificuldade de comunicação por conta de
uma séria afasia. Seu desânimo era evidente.
por favor vá embora Após uma tentativa tensa e difícil de estabelecermos um
minha alma que chora contato verbal, perguntei-lhe sobre suas preferências musi-
está vendomeufim cais. Com um grande esforço para articular as palavras, me
fez do meu coração a sua moradia respondeu: Rock, Rita Lee e Roberto Carlos. Passamos a uti-
108 É PRECISO CANTAR
EPílOGO
lizar O canto como nosso instrumento de comunicação, onde
nos alternávamos na escolha do repertório. Sua emoção vi-
nha à tona a cada música que o remetia a lembranças signifi-
cativas, provocando mudanças importantes em sua postura
corporal. Nesses momentos, apesar das dificuldades, conse-
guia manter sua coluna mais erguida e sua cabeça mais le-
vantada.
Em pouco tempo, C. já chegava ao setor de Musicoterapia
com outro ânimo. A postura corporal mais ereta, o olhar mais
expressivo, maior participação nas atividades da sessão, me-
lhor articulação vocal e maior movimentação corporal, eram
sinais de que o trabalho estava acontecendo.
O
Canto é um elemento estruturante para o ser humano,
Mais tarde, quando já era nítida a sua melhora e havia . quer em sua história filogenética, cola~orando. na c,ons-
uma perspectiva de evolução em seu quadro, seus pais o reti- trução cultural, fazendo parte do universo slmbolJco
raram do setor de musicoterapia, alegando questões econô- de todas as culturas, quer em sua história ontogenética, graças
micas. Perguntei-lhes se C. havia participado dessa decisão, à qual, cada indivíduo, ao nascer, utiliza vocalizações pata ini-
ao que responderam: "Perguntar para ele é o mesmo que per- ciar o intercâmbio com O mundo. O homem vem, então, ex-
guntar a uma porta ".
pressando-se musicalmente através da voz: nos cantos de tra-
o
Acredito que suas escolhas de repertório e caminho afetivo
balho, nos cânticos guerreiros, nos cantos religiosos ou sa-
das canções, o tenham ajudado a sair de sua posição de de-
cros, nos acalantos de mães ou pais embalando filhos, nas fes-
pendência absoluta dos pais, tal qual um bebê, para se colo-
tas, nos jogO$,na crônica social de época, nas óperas associan-
car como uma pessoa ainda capaz de escolhas, de alguma
do dramas e.mitos ao canto, nas canções populares ... Enfim,
autonomia, de dizer sim ou não, de ser desejante. Talvez isso
em suas atividades, talvez as mais significativas, o ser huma-
tenha ameaçado ou confundido seus pais, que não sendo tam-
bém trabalhados, preferiram preservá-lo" como uma porta". no lança mão do cantar.
Mas esta é uma outra questão, que foge ao nosso tema. " A necessidade de expressar seu mundo interno, subjetivo,
! onde as emoções têm nuances que ficam à margem da lingua-
De qualquer forma, acreditamos que as canções, quando gem discursiva, fez o homem desenvol ver outras formas de ~í2-
trabalhadas terapeuticamente, podem abrir caminhos inusita- linguagem. Suzane Langer chama a música de análoga tonal ~~r
dos, mobilizando aspectos diversos das pessoas, incluindo seu do sentimento humano. O canto, como um instrumento que
corpo como totalidade. " 1;-.\"\'0 habita nossos corpos, faz com que funcionemos co~o caixas
C f\; \ , de ressonância, de onde expressamos todo o movImento do
[ que é vitalmente sentido.
110
É PRECISO CANTAR EpJLOGO
111.
íNDICE REMISSIVO
~-STEWART, RJ.- Música e Psique -As Formas Musicais e os Esta-
dos Alterados de Consciência. São Paulo: Cultrix, 1987.
~ TAME, David - O Poder Oculto da Música. São Paulo: Cultrix, 1984.
c TATIT, Luiz - O Cancionista, Composição de Canções no Brasil.
São Paulo: Edusp, 1996.
• TINHORÃO, José Ramos - Música Popular. De Índios, Negros e
Mestiços. Petrópolis: Vozes, 1972.
_____ - Música Popular. Um tema em debate. Rio de Janeiro:
JCM,1969.
VALENÇA, Suetônio Soares - Tra-la-lá. Rio de Janeiro: Funarte,
1981.
• WATSON, Andrew e NEVILL, Drury. - Musicoterapia, Um Cami- ato falho 95
A
nho Holísfico para Harmonia. São Paulo: Ground, 1990. autores e cantores 80
aboio 35
. WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet H.; JACKSON, Don D. -Prag- acalanto 37,40
mática c{a Comunicação Humana. São Paulo: Cultrix, 1967. acalantos 36,37,38,40,41,44, B
• WISNIK, José Miguel ~ O Som e () Sentido. São Paulo: Companhia 106, 109 baião 24
das Letras, 1989. anéis funcionais de tensão 86 barroco 17,18
_____ - Música, Problema Intelectual e Político. In Teoria e anos cinqüenta 23, 25 batuque 20
Debate, Rev. Número 35,jul./ago.lset., Perseu ,1997, pp. 58-63. anos oitenta 30 Beatles 28, 29
anos quarenta 22,23, 24, 28 blocos 52
anos quarenta e cinqüenta 27 blues 20
PERiÓDICOS CONSULTADOS anos sessenta 27,28,29,30,62 bossa nova 24,25,26,27,28,
anos setenta 30 29
Coleção Brasil: Histórias Costumes e Lendas - São Paulo: Editora anos trinta 22, 57 breque 23
Três. anos trinta, quarenta e
Revista O Correio da Unesco: O Mundo dos Sons - Editora da FGV, cinqüenta 23 C
Ano 4 - Número I, Jan. / 1977. anos vinte 21, 22 canção 17, 72, 104
antigüidad.e 14 canção de Ur 9, 74
Revista O Correio da Unes co: Espaços Musicais - Editora da FGV,
apreciar letras 81 canção emergente 97, 98
Ano 14 -Número 6, Jun.11986.
arquétipos 5 cancionista 83, 84
Revista Música Popular Brasileira ~ Festivais - São Paulo: Editora articulação lundu-maxixe- canções 70,75,80,82,87,89,
.,
samba 20
aspecto liberiino 56
associação livre 95, 103
atividade vibratória organizada
92,95,98,99,100,102,108,
110
canções arquivadas em nossa
memória 100
106 canções carnavalescas 54, 58
ato criador 4 canções da América Latina 21
118
É PRECISO CANTAR íNDICE REMISSIVO 119
.1 IMPRZSSAo B ACABAKllNTO
EDITORA LIDADOR LTDA.
R. Hllál'1o Ribeiro, 184 . Pça.. da Bandetrl!.
Rio de Janetro • RJ
Tel.: (021) 669-0694. Fax: (021) ~04-0684