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Meu pai, como sabe, era uma espécie de cavalheiro agricultor em — shire¹; e eu,
em razão de seu desejo expresso, o sucedi na mesma silenciosa profissão, não de
bom grado, pois a ambição me induzia a objetivos maiores, e a arrogância me
assegurava que, ao desprezar sua voz, eu estaria enterrando meu talento na terra,
e escondendo minha luz debaixo de um velador². Minha mãe havia feito tudo
para me convencer de que eu era capaz de grandes conquistas; mas meu pai, que
achava que a ambição era o caminho certo para a ruína, e também um sinônimo
de destruição, não daria ouvidos a plano algum que pudesse melhorar minha
condição ou de meus irmãos. Ele me afirmou que era tudo bobagem, e me
persuadiu, em seu último suspiro, a continuar no bom e velho caminho, a seguir
seus passos e os passos de seu pai, sem olhar para esquerda ou para a direita, e a
passar as terras da família para meus filhos em condições, pelo menos, tão
prósperas quanto as que ele deixou para mim.
No entanto, aquele refúgio de felicidade não podia ser adentrado enquanto eu não
trocasse minhas botas lamacentas por um par de sapatos limpos, e meu grosso
sobretudo por um casaco respeitável, e me fizesse apresentável diante de uma
sociedade decente; pois minha mãe, com toda a sua delicadeza, era extremamente
minuciosa em certos pontos.
Ao subir para o meu quarto, encontrei, na escada, uma linda e esperta menina de
dezenove anos, de figura baixa e arrumada, face redonda, bochechas vivas e
rosadas, cachos amontoados e reluzentes, e joviais olhos castanhos.
“Bem! Aqui estão os dois,” exclamou minha mãe, nos examinando sem retardar
o movimento de seus dedos ligeiros e suas agulhas cintilantes. “Agora fechem a
porta, e venham para perto do fogo enquanto Rose prepara o chá. Tenho certeza
de que estão famintos... E me contem tudo o que fizeram hoje! Eu gosto de saber
o que meus filhos fazem durante o dia.”
“Eu treinei o potro cinza – que não é fácil; coordenei a aragem do restolho – já
que o rapaz da aragem não tem o senso de coordená-la sozinho; e desenvolvi um
plano para a drenagem ampla e eficiente das pastagens escassas.”
“Atiçamento de texugo¹.”
“Já era hora de você fazer algo diferente, Fergus,” eu disse, assim que uma pausa
momentânea em sua narração me permitiu falar.
¹ Esporte sangrento, muito popular na época, onde texugos são cercados por cães.
“O que posso fazer?” ele replicou. “Minha mãe não me deixa entrar na marinha
ou no exército; e estou determinado a não fazer nada além disso – exceto ser um
incômodo para todos vocês, para que se sintam gratos em se verem livres de mim
sob quaisquer circunstâncias.”
Nossa mãe acariciou tranquilamente seus curtos e engomados cachos. Ela rosnou
e tentou parecer emburrada, e então todos nos sentamos à mesa, em obediência à
intimação três vezes repetida de Rose.
“Agora peguem seus chás,” ela disse, “e eu contarei o que fiz hoje. Fui visitar os
Wilson; e é uma pena você não ter ido comigo, Gilbert, pois Eliza Millward
estava lá!”
“Oh, nada! Não te contarei nada a respeito dela... apenas que ela é uma coisinha
simpática e divertida quando está de bom humor, e que eu não me importaria em
chamá-la de...”
“Já chega, já chega, minha querida! Seu irmão não tem tal ideia!” sussurrou
minha mãe seriamente, levantando o seu dedo indicador.
“Bem,” continuou Rose, “eu iria contar-lhes sobre uma importante notícia que
ouvi por lá – estou a ponto de explodir desde então. Vocês sabem que foi
anunciado há um mês que alguém ocuparia Wildfell Hall, mas adivinhem só! O
lugar já foi ocupado há mais de uma semana! E nunca soubemos!”
“Oh, não! Isso estraga a história – estava torcendo para que ela fosse uma bruxa,”
observou Fergus enquanto esculpia algo em seu pedaço de pão com manteiga.
“Mas pode acreditar, pois Jane Wilson a viu. Ela foi com sua mãe, que, é claro,
ao saber de uma estranha na vizinhança, teria ficado extremamente ansiosa até
vê-la e descobrir tudo sobre ela. Ela se chama Mrs. Graham, e está de luto – não
com trajes característicos, mas um luto discreto – e é bem jovem, dizem – não
mais que vinte e cinco ou seis anos – mas tão reservada! Tentaram de tudo para
descobrir quem ela era ou de onde veio, e tudo sobre ela, mas nem a Mrs.
Wilson, com sua persistência e pressão impertinente, nem Miss Wilson, com sua
hábil manobra, conseguiu extrair uma única resposta satisfatória, ou mesmo um
comentário casual, ou uma possível fisionomia calculada para acalmar a
curiosidade delas ou lançar um mísero raio de luz sobre sua história,
circunstâncias ou ligações. Além do mais, ela foi pouco civilizada com elas, e
claramente mais contente em dizer ‘adeus’ do que ‘como vai’. No entanto, Eliza
Millward disse que seu pai pretende visitá-la em breve com o intuito de oferecer
conselhos pastorais, que ele teme que ela precise, pois, embora ela tenha
adentrado na vizinhança no começo da semana passada, não apareceu na igreja
no domingo. Eliza suplicará para acompanhá-lo, e está certa de que pode ter
sucesso em obter alguma informação – você sabe, Gilbert, ela consegue qualquer
coisa. E nós devíamos visitá-la em algum momento, mamãe; é simplesmente
apropriado, você sabe.”
“E, por favor, sejam rápidas quanto a isso; e cuidem de me trazer informações a
respeito da quantidade de açúcar que ela põe em seu chá, e que tipos de boina e
avental ela usa, e tudo mais – pois não sei como viverei até saber disso,” disse
Fergus, severamente.
“Não, acredito que não,” observou Rose, “pois ela não pareceu tão inconsolável
afinal de contas... e ela é excessivamente bonita – ou melhor, linda. Você precisa
vê-la, Gilbert; você a definirá como uma perfeita beldade, embora dificilmente
possa fingir achar semelhança entre ela e Eliza Millward.”
“Ora, eu consigo imaginar muitos rostos mais bonitos que o de Eliza, mas não
mais charmosos. Admito que ela tenha pequenas aspirações à perfeição, mas
assim sustento que, se ela fosse mais perfeita, seria menos interessante.”
“Oh, meu querido Gilbert, que bobagens você diz! Eu sei que você não quer
realmente dizer isso – está fora de cogitação,” disse minha mãe, levantando e
apressando-se para fora do cômodo sob o pretexto de assuntos da casa, a fim de
escapar da contradição que estremecia na minha língua.
Depois disso, Rose me privilegiou com detalhes acerca de Mrs. Graham. Sua
aparência, modos, vestimentas e toda a mobília do lugar onde ela vivia foram
expostos a mim com até mais clareza e precisão do que eu esperava. Portanto,
como não fui um ouvinte atento, não poderia repetir a descrição se quisesse.
E lá avistei a figura de uma dama alta, vestida de preto. Seu rosto estava na
minha direção, e havia algo nele que, uma vez visto, me convidava a olhar
novamente. Seus cabelos eram negros, e dispostos em longos e luminosos cachos
– um estilo de penteado bastante incomum naqueles dias, mas sempre gracioso e
adequado. A cor de sua pele era clara e pálida; seus olhos, eu não conseguia ver,
pois, estando ela inclinada sobre seu livro de preces, eles se escondiam embaixo
de seu chapéu caído e suas longas pestanas negras; mas as sobrancelhas acima
eram expressivas e bem definidas. Sua testa era eminente e intelectual; o nariz,
perfeitamente erguido; e os traços do rosto, em geral, inquestionáveis – exceto
por uma fina cavidade entre as bochechas e os olhos; e os lábios, que, embora
bem formados, eram ligeiramente finos demais e firmemente comprimidos.
Havia algo sobre seus lábios que indicava um temperamento não muito brando
ou agradável, achei, e pensei comigo: “Eu prefiro admirá-la a essa distância, bela
dama, a ser companheiro de sua moradia”.
¹ Vermelho vivo.
Nesse momento, me veio como um clarão o fato de que esses pensamentos são
muito impróprios para um lugar de adoração, e que meu comportamento, na
presente ocasião, não foi nada perto do esperado. Antes de direcionar-me ao
serviço, entretanto, olhei ao meu redor para ver se alguém estava me observando,
mas não. Todos que não estavam entretidos em seus livros de orações
observavam a estranha dama: minha mãe e irmã, dentre os outros, Mrs. Wilson e
sua filha, e até Eliza Millward estava astutamente olhando de canto de olho para
o objeto da atenção geral. Então, ela olhou para mim, deu um pequeno sorriso,
corou, voltou modestamente para seu livro de preces, e esforçou-se para compor
sua feição.
Pois bem, Halford, antes de finalizar esta carta, direi a você quem era Eliza
Millward: ela era a filha mais nova do vigário; uma criatura muito agradável, por
quem eu não sentia o mínimo grau de parcialidade – e ela sabia disso, embora eu
nunca tenha dado qualquer explicação direta. Também não tinha nenhuma
intenção em fazê-lo, pois minha mãe, que sustentava que não havia ninguém à
minha altura em um perímetro de vinte milhas, não poderia suportar a ideia de
me ver casado com aquela coisinha insignificante, que, somando com suas
inúmeras outras desqualificações, não possuía nem vinte libras. A aparência de
Eliza era, simultaneamente, leve e rechonchuda; seu rosto, pequeno, e quase tão
redondo quanto o da minha irmã; a cor da pele, parecida também com a dela, mas
mais delicada e decididamente menos corada; o nariz, empinado; traços, no geral,
irregulares – e, em suma, ela era mais charmosa do que bonita. Mas seus olhos...
Não posso me esquecer daqueles notáveis atributos, pois neles repousava seu
principal atrativo – no aspecto externo, pelo menos. Eles eram alongados e
estreitos, íris negras (ou um tom bem escuro de castanho), tinham expressões
variadas e inconstantes, mas sempre sobrenaturais, maldosas – quase diabólicas,
ouso dizer – ou irresistivelmente fascinantes (frequentemente ambas). Sua voz
era gentil e infantil; seu caminhar, leve e calmo como o de um gato. Suas
maneiras lembravam mais frequentemente as de um lindo gatinho brincalhão,
isto é, atrevido e travesso, tímido e modesto, de acordo com sua doce vontade.
Sua irmã, Mary, era muitos anos mais velha, muitos centímetros mais alta, e de
físico maior e mais bruto – uma menina simples, sensata e quieta, que havia
cuidado pacientemente de sua mãe durante seu longo período de doença, e
tomado conta da casa e da família desde então. Ela era valorizada e digna da
confiança de seu pai; amada e cortejada por todos os cães, gatos, crianças e
pessoas humildes; e desconsiderada e negligenciada por todo o resto.
Ele tinha um cuidado louvável com a saúde de seu próprio corpo: acordava muito
cedo, regularmente caminhava antes do café-da-manhã, era minucioso acerca de
roupas quentes e secas, e nunca ouviram dizer que ele tivesse feito um sermão
sem antes engolir um ovo cru – embora tivesse sido abençoado com bons
pulmões e uma voz poderosa. Também era extremamente detalhista a respeito do
que comia e bebia (mas de jeito nenhum abstêmio), e tinha um tipo de dieta
bastante peculiar: desprezava chá e afins, e era freguês de licor maltado, bacon e
ovos, presunto, bife embutido e outras carnes fortes. Essa dieta se adequava
muito a seus órgãos digestivos, e ele garantia que ela era boa e saudável para
todo mundo, recomendando-a confiavelmente aos mais delicados convalescentes
e dispépticos.
Irei falar brevemente sobre outras duas pessoas que mencionei antes, e então
finalizar esta longa carta. Elas são Mrs. Wilson e sua filha. A primeira era a
viúva de um sólido agricultor; uma tagarela fofoqueira de mente fechada, que
não vale a pena descrever. Ela tinha dois filhos: Robert, um rude agricultor de
modos campestres; e Richard, um reservado e estudioso jovem que estava
estudando os clássicos, com a ajuda do vigário, se preparando para a
universidade, com o intuito de se juntar à igreja.
Jane, irmã deles, era uma jovem de alguns talentos e muita ambição. Ela teve,
por desejo próprio, educação escolar em um internato – superior ao que qualquer
membro da família havia tido até então. Aprendeu bem o Polonês, adquiriu
considerável elegância e modos, perdeu bastante de seu sotaque provincial, e
podia gabar-se de ter mais habilidades do que as filhas do vigário. Era
considerada uma beleza nas redondezas, mas nunca, sequer por um momento,
poderia me enumerar como um de seus admiradores. Ela tinha por volta de vinte
e seis anos, era alta e muito esguia; seus cabelos não eram nem castanhos nem
acobreados, mas um ruivo reluzente e claro; a cor de sua pele era notavelmente
branca e luminosa; cabeça pequena, pescoço longo, queixo bem torneado – mas
pequeno; lábios finos e vermelhos, olhos claros de avelã – ligeiros e penetrantes,
mas inteiramente destituídos de poesia ou sentimento. Ela teve – ou deve ter tido
– muitos pretendentes do seu próprio status de vida, mas rapidamente rejeitou
todos, pois ninguém, a não ser um cavalheiro, poderia adequar-se a seu gosto
refinado, e ninguém, a não ser um rico, poderia satisfazer sua ascendente
ambição. Existia um cavalheiro – cochicharam – de quem ela havia recebido
uma atenção especial, e de quem o coração, o nome e a fortuna causavam-lhe
sério interesse. Esse era Mr. Lawrence, o jovem cavalheiro cuja família havia
previamente ocupado Wildfell Hall, mas abandonado o lugar há cerca de quinze
anos por uma mansão mais moderna e espaçosa na paróquia vizinha.
Imutavelmente seu,
GILBERT MARKHAM.