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Escada do amor: síntese da educação filosófica em Platão

Parte I

Yuri Galvão Oberlaender de Almeida

1. Filosofia é filha da crise

A crise psicológica abre um caminho duplo: fuga ou enfrentamento. Esse é o


próprio significado da palavra grega krísis: momento de decisão. A luta por tomar
decisões, as mais conscientes possíveis, é uma constante da natureza humana, talvez o
seu cerne. A filosofia é filha da crise, surge do parto doloroso no ventre do caos.
Transmutar a noite da ignorância no dia da compreensão é a jornada fundamental por
nosso ouro. A filosofia é a tradição de conhecimento que busca, o mais fielmente
possível, encarnar o desejo humano por decisões cada vez mais conscientes, cada vez
mais sábias.

Minha jornada filosófica começou, de maneira mais autoconsciente, quando


tinha dezessete. Naquela época, começava a experimentar o que alguns chamam de
crise dos vinte, que é, a meu ver, a percepção da iminência de um sacrifício inevitável: o
jovem adolescente, com sua miríade de possibilidades brilhantes, terá de ser sacrificado
em prol de um homem que não nasce pronto, que deverá fazer-se, construir-se (muitas
vezes, através de choques dolorosos com a realidade). Amadurecer é escolher; escolher
é renunciar; um sim à concretização de uma possibilidade é, inevitavelmente, um não a
milhares de outras. Aqui lembro dos versos de Adriano 1 (imperador romano que
precedeu Marco Aurélio, o filósofo):

Pequena alma terna flutuante

Hóspede e companheira de meu corpo,

Vais descer aos lugares pálidos duros nus

Onde deverás renunciar aos jogos de outrora...

Os “jogos de outrora”, os folguedos da infância e adolescência deverão ser deixados


para trás, será preciso descer aos lugares “pálidos duros nus”, ou seja, encarar a crueza
cotidiana, na qual os sonhos não deixam de existir, mas o suor e o sangue são
reconhecidos como matérias-primas indispensáveis à sua concretização. A crise dos
vinte anos é um chamado para a maturidade.

Vivenciei essa tensão como a maioria dos jovens brasileiros de classe média: a
angústia de ter de escolher um curso universitário, pelo qual me preparasse para uma
profissão. Tal dilema colocou-me em cheque, trazendo a tona, desconfortavelmente,
uma realidade interna que preferiria ignorar: o despreparo para tomar decisões
responsáveis. Em meio ao desconforto, perguntas que me pareciam essenciais para
qualquer tomada de decisão minimamente consciente, surgiram como dedos em riste, a
apontar o vazio do desconhecimento: Que critérios utilizar para a tomada de decisões?
Que valores ou parâmetros existenciais deveriam pautar minha conduta? O que é uma
vida bem vivida? Que vida vale a pena ser vivida?

Diante de tais questionamentos que, àquela época, nem mesmo sabia formular
com clareza em meu diálogo interior, encontrei um livro, que considero minha iniciação
filosófica: Da brevidade da vida e Da vida feliz, do filósofo estóico Sêneca. Senti-me
magneticamente atraído àquele livro, impressionou-me a clareza, a propriedade e a

1
Margarite Yourcenar.
ordem com as quais o filósofo tratava de questões humanas como a felicidade e o
sentido da vida. As reflexões do autor davam voz e forma às minhas angústias, bem
como caminhos pelos quais apaziguá-las e respondê-las. Lembro-me de perguntar a
mim mesmo: “o que alguém deveria estudar para escrever a respeito das questões
humanas com tamanha propriedade?” A resposta recebida do próprio Sêneca, através de
seu livro, foi: a Filosofia.

A crise do vestibular despertou-me para o desconforto de aperceber-me


ignorante. A filosofia, através de Sêneca, apresentou-se como um antídoto. A ideia de
estudar mais profundamente a filosofia foi tomando corpo, até que decidi estudá-la em
um curso universitário. Não abri mão de minha limitação, nem fugi à necessidade de
escolher: abracei ambas, por mais contraditórias que pudessem ser. Da faculdade, um
fato destaca-se: meu encontro com a obra platônica.

Antes da universidade já havia tido notícia de Platão, através de meu pai. Dizia
ele: “Leia os clássicos! Leia Platão! Eles farão sua cabeça”. A ideia que tinha de Platão
era a de um clássico cultural e isso, nos idos de meus quinze, dezesseis anos, não me
soava lá muito convidativo. Tendo entrado para a graduação de filosofia na UFSC, logo
de início fui iniciado a Platão, através da Apologia de Sócrates. A leitura foi marcante.
Senti uma admiração profunda pela figura de Sócrates, por sua coragem frente à morte,
sua fidelidade à Verdade e sua argúcia argumentativa. Seduzido por seu caráter, passei a
ler outros diálogos platônicos. O que mais me agradava (e continua agradando) nos
diálogos de Platão, é a arte e a ironia com as quais Sócrates refuta aqueles que se julgam
sábios. Com alegre surpresa, encontrei uma passagem na Apologia onde o próprio
Sócrates afirma: “Mas então, por que algumas pessoas apreciam passar muito de seu
tempo em minha companhia? (...) Gostam de ouvir o questionamento das pessoas que
julgam serem sábias e não o são. Isto é divertido” (Apol. 33c). Pensava com meus
botões: Afinal de contas, não estou, a cada instante, prestes a pensar que sou sábio,
quando, na realidade, não sou? Como defender-me do impostor que mora dentro de
mim?

A leitura da obra platônica levou-me, finalmente, àquele que muitos consideram


seu livro central: A República. O constante estudo desse diálogo também teve grande
impacto em minha formação. À diferença de alguns intérpretes dessa obra, minha
leitura levou-me a considerar como seu tema central não a política, mas a educação.
Afinal de contas, a construção da cidade ideal, ali relatada, não passa de um recurso
pedagógico para compreender a alma humana. Ela será (como veremos na segunda
parte desse texto) a protagonista da educação platônica, entendida como uma reviravolta
da alma, conforme vemos na alegoria da caverna.

2. A filosofia é um projeto
Frente à inevitável crise da vida, que surge com a percepção da invencível
ignorância humana, Platão elabora um projeto. Um caminho que vem sendo trilhado por
ignorantes como eu, há milhares de anos: a Filosofia.

Muitos outros encontraram, e vem encontrando, esse mesmo caminho. Gregos,


ingleses, norte-americanos, árabes; pessoas de diferentes épocas e com diferentes
configurações existenciais. Essa tradição milenar, um dos pilares da civilização
ocidental, foi fundada com a obra platônica. Nesse ponto, estou de pleno acordo com
Whitehead:

“A caracterização geral mais segura da tradição filosófica europeia é que


consiste em uma série de notas de rodapé a Platão”.

E também com Emerson, brilhante ensaísta norte-americano do século XIX:

"Platão é Filosofia; e Filosofia, Platão".

Mas, trocando em miúdos, o que compõe esse projeto, a Filosofia? Em resposta a que
crise ele foi criada, em sua origem? Para explorar essas perguntas, será preciso uma
breve incursão ao contexto cultural do qual a obra platônica emergiu.

3. Platão, o médico da Pólis

Platão, em seu díalogo Górgias, compara o filósofo ao médico. A analogia é


interessante e serve de molde para a compreensão do projeto platônico. De maneira
geral, para se tratar uma doença, o médico emprega três ações: diagnóstico, solução e
aplicação. O diagnóstico significa uma leitura dos sinais apresentados no paciente, de
modo a que se encontre a doença, ou seja, a raiz daquilo que lhe aflige; a leitura correta
desses sinais leva o médico a um correto diagnóstico. Em seguida, consciente do que
aflige o paciente, o médico buscará uma solução, ou seja, o que precisa ser feito tendo
em vista a cura daquele mal. Tendo encontrado essa solução, será a vez de definir,
através dos recursos disponíveis, uma maneira de aplicar essa solução. A doença
encontrada por Platão em sua cidade é de ordem política. E assim como o médico, ele
procurará as raízes, a solução e o tratamento dessa doença.

Diagnóstico: uma crise cultural


A filosofia platônica parte de um profundo desgosto frente à decadência política
de Atenas. A condenação de Sócrates serve como símbolo dessa triste situação,
vivenciada amargamente por Platão. Referindo-se às revoluções políticas que
antecederam a condenação de Sócrates, Platão nos relata:
“Levando-se em conta minha mocidade, não é de admirar que eu tivesse ilusões. Por
isso, imaginava que eles [os novos líderes políticos] governariam a cidade fazendo-a
passar das vias da injustiça para as da justiça (...) Ora, o que vi foi que em pouquíssimo
tempo esses homens deixaram parecida a antiga ordem de coisas com a verdadeira idade
de ouro. Como exemplo de suas arbitrariedades, bastará notar o que fizeram com o meu
velho amigo Sócrates, que eu não vacilo em proclamar o varão mais justo de seu
tempo.” 2
Contudo, nosso filósofo não se contenta em constatar a superfície do problema;
como bom médico, percebe que a corrupção política é apenas um sintoma, cuja raiz
repousa em um outro tipo de corrupção, um tipo mais sutil, menos evidente: a
corrupção intelectual. Dadas a decadência da religião tradicional grega e o
desenvolvimento sem precedentes da técnica argumentativa, a nova geração de líderes
atenienses reconhecia como formadores uma nova classe de professores: os sofistas.
Essa classe de professores constituía aquilo que hoje chamaríamos de ensino
superior, ou seja, depois do ensino básico (no caso dos atenienses, a educação na música
(arte das musas) e na ginástica) o ensino sofístico configurava uma continuidade na
formação intelectual dos jovens. Qual é o tom geral da educação sofística? O
treinamento na técnica argumentativa, a retórica e a erística, visando a formar jovens
que, através do domínio da palavra e da argumentação, pudessem destacar-se na vida
pública.
E o que há de errado nisso? O DNA sofístico é corrupto por natureza, UHUL
DA-LE! pois a importância e o desenvolvimento dedicado à retórica baseia-se em um
relativismo moral de consequências desastrosas. A sofística parte do pressuposto de que
não existe verdade objetiva ou valor moral objetivo; tudo quanto há no universo
humano é convenção. Ora, por que então algumas convenções sobrepõem-se às outras,
no caso de uma lei, de uma ideia ou de um costume moral, por exemplo? “Veja bem...”,
responderá o sofista, “ o que prevalece na cultura humana não é graças a seu valor
objetivo, é graças ao poder retórico que o defende”. Na visão sofística, tudo o que existe
no âmbito da cultura humana são embates retóricos entre diferentes discursos; não
existe um certo ou um errado, o que existe é uma boa ou uma má retórica. Quem souber
defender seu ponto de vista adequadamente ganhará o debate e, portanto, estará certo,
será lei. Sendo assim, a ciência régia, a única ciência que importa aprender, é a ciência
da retórica. O que conhecemos por lei, não passa da vontade do mais forte. Quem é o
mais forte? Aquele que domina a retórica, que faz vibrar a assembleia, aquele que
convence. Tudo é discurso (alguém se lembrou de Foucault aí?) e prevalece o discurso
que convence; a verdade é convenção, ou seja, é a meretriz da Retórica. Como exemplo
do espírito sofista, podemos lembrar da célebre frase de Protágoras: “ o homem é a
medida de todas as coisas, das que são e das que não são”.

2
Carta VII, 324 d-e
A consequência política da educação sofística é abominada por Platão como
sendo a pior corrupção possível ao ser humano: a tirania. O tirano é justamente quem
aplica a tese sofística até as últimas consequências. “Não há lei superior”, dirá o tirano,
“a lei é a vontade do mais forte. Eu sou o mais forte; portanto: Eu sou a lei!”. Sob o
jugo de tiranos a gloriosa Atenas, o berço cultural do Ocidente, ruiu.
A morte de Sócrates evidenciou essa ruína, expôs a injustiça e a corrupção
reinantes. O contraste em relação à gloriosa Atenas de Péricles evidenciava que algo
fora perdido. Tornava-se necessário reencontrar um princípio de ordem capaz de
resgatar a civilização grega. Em busca desse princípio, Platão desenvolve um projeto
original de cultura, a filosofia.

Filósofo, o antídoto do sofista

Na mesma carta VII, sua investigação leva-o a conceber os glóbulos brancos, os


anti-corpos, capazes de sanar a doença política ateniense: o filósofo. Eis a famosa tese
platônica:
“ Por fim, cheguei à conclusão de que as cidades do nosso tempo são mal governadas,
por ser quase incurável sua legislação, a menos que se tomassem medidas enérgicas e as
circunstâncias se modificassem pra melhor. Daí ter sido levado a fazer o elogio da
verdadeira filosofia, com proclamar que é por meio dela que se pode reconhecer as
diferentes formas da justiça política ou individual. Não cessarão os males para o gênero
humano antes de alcançar o poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos ou de
começarem seriamente a filosofar, por algum motivo divino, os dirigentes das
cidades.”3
Essa tese traz em si duas mudanças de perspectiva fundamentais: 1- do âmbito
coletivo (a pólis), Platão passa ao âmbito individual (o filósofo); 2- Da ação política,
Platão passa à ação educativa: é preciso formar filósofos verdadeiros. Eis a solução
platônica, segundo a vejo: o princípio de ordem capaz de regenerar a sociedade, a
semente civilizacional da qual a salvação da pólis depende, encontra-se dentro do
indivíduo. Como acessar e atualizar essa semente? Através da educação filosófica.
Portanto, resgatando nossa metáfora médica, encontramos a solução e a aplicação que
seguem ao diagnóstico platônico: o filósofo e a educação filosófica.
O filósofo é a solução para a crise política observada por Platão, pois ele é o
antídoto agindo nas causas últimas daquela crise. Como vimos, é a cultura sofística
quem está na origem da corrupção da pólis. Ela contêm, em germe, a pior das
degenerações políticas: a tirania. De que modo, portanto, a cultura filosófica contrapõe-
se a ela? Por sua própria natureza intrínseca a filosofia combate a sofística. O filósofo,
por definição, reconhece, em primeiro lugar, a existência da Verdade objetiva (existe a
sophia, a sabedoria); em segundo lugar, ele reconhece que essa Sabedoria não se
encontra nele, mas além dele, por esse motivo ele precisa buscá-la (philo, amor, +
sophia, sabedoria). Ao passo que o sofista, por desacreditar na objetividade da

3
Carta VII, 326 a-b
sabedoria, pretende encarná-la em si mesmo, autoproclamando-se sábio (sophos, daí a
palavra sofista); o filósofo é quem, por reconhecer a objetividade da sabedoria,
reconhece sua própria ignorância, ou seja, sua falta de sabedoria e, não obstante, decide-
se por buscá-la amorosamente. Como exemplo do espírito filosófico, podemos lembrar
da célebre frase socrática: “só sei que nada sei”.
Como podemos observar, o projeto de conhecimento da sofística está imbuído
de orgulho, de presunção; dada a inexistência real da sabedoria e da verdade, é a mente
humana quem servirá de régua última da realidade, a capacidade racional-linguística é
quem ocupará o lugar de Deus. Já o projeto de conhecimento filosófico está fundado
sobre a humildade, o reconhecimento de uma fonte de sabedoria superior (ou seja, está
para além de si) e frente a qual só uma atitude é adequada: a busca amorosa. Nesse
projeto, a mente humana, sua capacidade racional-linguística, é apenas um instrumento
capaz de aproximar-se da Verdade. Para o sofista, reconhecer-se plenamente humano é
empoderar-se da mente enquanto criadora da verdade. Para o filósofo, reconhecer-se
plenamente humano, é aceitar, humildemente, que o máximo da mente humana é que
seja o mais transparente possível, de modo a ser um receptáculo da Verdade. Essa
oposição, chave para toda a cultura ocidental, está muito bem expressa nas palavras do
clarividente filósofo francês do século XX, Louis Lavelle:
“ Não há senão duas filosofias entre as quais é necessário escolher: a de Protágoras,
segundo a qual o homem é a medida de todas as coisas, mas a medida que ele se dá é
também sua própria medida; e a de Platão, que é também a de Descartes, para quem a
medida de todas as coisas é Deus e não o homem, mas um Deus que se deixa participar
pelo homem, que não é somente o Deus dos filósofos – o Deus das almas simples e
vigorosas que sabem que a verdade e o bem estão acima delas e jamais se recusam
àqueles que as buscam com coragem e humildade”.4
A aplicação dessa solução é justamente a maneira pela qual formar esse antídoto
ao sofista, o filósofo. Por esse motivo, Platão fundou uma escola, a Academia, e não um
partido político; também é por esse motivo que Platão não foi, ele próprio, um político,
mas um professor.

Aplicação: a educação filosófica

O filósofo é o antídoto do sofista, logo, é preciso formar o filósofo. Como


formá-lo? Com essa pergunta, chegamos ao coração da filosofia platônica. O legado
platônico é, acima de tudo, um legado educacional: “Platão é o filósofo da paideia
[palavra grega para educação], por excelência”. A educação filosófica é, acima de tudo,
um modo de educar cuja finalidade é a formação do filósofo. Qual o conteúdo dessa
formação?
Os documentos concretos desse conteúdo estão reunidos na obra platônica. O
conjunto de seus diálogos é o curriculum de sua escola. Ali estão as informações, as
revelações e os testes necessários à aprendizagem e à formação do filósofo. O princípio

4
LAVELLE, Louis. De L´Être, p. 35.
capaz de dar unidade aos diálogos platônicos deve ser, sobretudo, um princípio
pedagógico.
Dadas a riqueza e complexidade vertiginosas dessa obra, minha proposta é
descrever aquilo que considero a estrutura essencial desse projeto de formação. Platão,
filósofo por necessidade e poeta por estirpe, simboliza esse projeto na forma de um
caminho ascendente, de uma escada do amor; esse será o tema de meu próximo texto.

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