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Parte I
Vivenciei essa tensão como a maioria dos jovens brasileiros de classe média: a
angústia de ter de escolher um curso universitário, pelo qual me preparasse para uma
profissão. Tal dilema colocou-me em cheque, trazendo a tona, desconfortavelmente,
uma realidade interna que preferiria ignorar: o despreparo para tomar decisões
responsáveis. Em meio ao desconforto, perguntas que me pareciam essenciais para
qualquer tomada de decisão minimamente consciente, surgiram como dedos em riste, a
apontar o vazio do desconhecimento: Que critérios utilizar para a tomada de decisões?
Que valores ou parâmetros existenciais deveriam pautar minha conduta? O que é uma
vida bem vivida? Que vida vale a pena ser vivida?
Diante de tais questionamentos que, àquela época, nem mesmo sabia formular
com clareza em meu diálogo interior, encontrei um livro, que considero minha iniciação
filosófica: Da brevidade da vida e Da vida feliz, do filósofo estóico Sêneca. Senti-me
magneticamente atraído àquele livro, impressionou-me a clareza, a propriedade e a
1
Margarite Yourcenar.
ordem com as quais o filósofo tratava de questões humanas como a felicidade e o
sentido da vida. As reflexões do autor davam voz e forma às minhas angústias, bem
como caminhos pelos quais apaziguá-las e respondê-las. Lembro-me de perguntar a
mim mesmo: “o que alguém deveria estudar para escrever a respeito das questões
humanas com tamanha propriedade?” A resposta recebida do próprio Sêneca, através de
seu livro, foi: a Filosofia.
Antes da universidade já havia tido notícia de Platão, através de meu pai. Dizia
ele: “Leia os clássicos! Leia Platão! Eles farão sua cabeça”. A ideia que tinha de Platão
era a de um clássico cultural e isso, nos idos de meus quinze, dezesseis anos, não me
soava lá muito convidativo. Tendo entrado para a graduação de filosofia na UFSC, logo
de início fui iniciado a Platão, através da Apologia de Sócrates. A leitura foi marcante.
Senti uma admiração profunda pela figura de Sócrates, por sua coragem frente à morte,
sua fidelidade à Verdade e sua argúcia argumentativa. Seduzido por seu caráter, passei a
ler outros diálogos platônicos. O que mais me agradava (e continua agradando) nos
diálogos de Platão, é a arte e a ironia com as quais Sócrates refuta aqueles que se julgam
sábios. Com alegre surpresa, encontrei uma passagem na Apologia onde o próprio
Sócrates afirma: “Mas então, por que algumas pessoas apreciam passar muito de seu
tempo em minha companhia? (...) Gostam de ouvir o questionamento das pessoas que
julgam serem sábias e não o são. Isto é divertido” (Apol. 33c). Pensava com meus
botões: Afinal de contas, não estou, a cada instante, prestes a pensar que sou sábio,
quando, na realidade, não sou? Como defender-me do impostor que mora dentro de
mim?
2. A filosofia é um projeto
Frente à inevitável crise da vida, que surge com a percepção da invencível
ignorância humana, Platão elabora um projeto. Um caminho que vem sendo trilhado por
ignorantes como eu, há milhares de anos: a Filosofia.
Mas, trocando em miúdos, o que compõe esse projeto, a Filosofia? Em resposta a que
crise ele foi criada, em sua origem? Para explorar essas perguntas, será preciso uma
breve incursão ao contexto cultural do qual a obra platônica emergiu.
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Carta VII, 324 d-e
A consequência política da educação sofística é abominada por Platão como
sendo a pior corrupção possível ao ser humano: a tirania. O tirano é justamente quem
aplica a tese sofística até as últimas consequências. “Não há lei superior”, dirá o tirano,
“a lei é a vontade do mais forte. Eu sou o mais forte; portanto: Eu sou a lei!”. Sob o
jugo de tiranos a gloriosa Atenas, o berço cultural do Ocidente, ruiu.
A morte de Sócrates evidenciou essa ruína, expôs a injustiça e a corrupção
reinantes. O contraste em relação à gloriosa Atenas de Péricles evidenciava que algo
fora perdido. Tornava-se necessário reencontrar um princípio de ordem capaz de
resgatar a civilização grega. Em busca desse princípio, Platão desenvolve um projeto
original de cultura, a filosofia.
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Carta VII, 326 a-b
sabedoria, pretende encarná-la em si mesmo, autoproclamando-se sábio (sophos, daí a
palavra sofista); o filósofo é quem, por reconhecer a objetividade da sabedoria,
reconhece sua própria ignorância, ou seja, sua falta de sabedoria e, não obstante, decide-
se por buscá-la amorosamente. Como exemplo do espírito filosófico, podemos lembrar
da célebre frase socrática: “só sei que nada sei”.
Como podemos observar, o projeto de conhecimento da sofística está imbuído
de orgulho, de presunção; dada a inexistência real da sabedoria e da verdade, é a mente
humana quem servirá de régua última da realidade, a capacidade racional-linguística é
quem ocupará o lugar de Deus. Já o projeto de conhecimento filosófico está fundado
sobre a humildade, o reconhecimento de uma fonte de sabedoria superior (ou seja, está
para além de si) e frente a qual só uma atitude é adequada: a busca amorosa. Nesse
projeto, a mente humana, sua capacidade racional-linguística, é apenas um instrumento
capaz de aproximar-se da Verdade. Para o sofista, reconhecer-se plenamente humano é
empoderar-se da mente enquanto criadora da verdade. Para o filósofo, reconhecer-se
plenamente humano, é aceitar, humildemente, que o máximo da mente humana é que
seja o mais transparente possível, de modo a ser um receptáculo da Verdade. Essa
oposição, chave para toda a cultura ocidental, está muito bem expressa nas palavras do
clarividente filósofo francês do século XX, Louis Lavelle:
“ Não há senão duas filosofias entre as quais é necessário escolher: a de Protágoras,
segundo a qual o homem é a medida de todas as coisas, mas a medida que ele se dá é
também sua própria medida; e a de Platão, que é também a de Descartes, para quem a
medida de todas as coisas é Deus e não o homem, mas um Deus que se deixa participar
pelo homem, que não é somente o Deus dos filósofos – o Deus das almas simples e
vigorosas que sabem que a verdade e o bem estão acima delas e jamais se recusam
àqueles que as buscam com coragem e humildade”.4
A aplicação dessa solução é justamente a maneira pela qual formar esse antídoto
ao sofista, o filósofo. Por esse motivo, Platão fundou uma escola, a Academia, e não um
partido político; também é por esse motivo que Platão não foi, ele próprio, um político,
mas um professor.
4
LAVELLE, Louis. De L´Être, p. 35.
capaz de dar unidade aos diálogos platônicos deve ser, sobretudo, um princípio
pedagógico.
Dadas a riqueza e complexidade vertiginosas dessa obra, minha proposta é
descrever aquilo que considero a estrutura essencial desse projeto de formação. Platão,
filósofo por necessidade e poeta por estirpe, simboliza esse projeto na forma de um
caminho ascendente, de uma escada do amor; esse será o tema de meu próximo texto.