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{ } voz da literatura

n. 7 | novembro | 2018
{CAPA} Angela Leite de Souza. Ilustração
da página 14 do livro PAZ, de sua própria
autoria (Ed. Abacatte, 2018).

{} colaboradores desta edição

Angela Leite de Souza


Ivan Lima Gomes
Eliane Galvão
Maria Amélia Dalvi
Maria Helena de Moura Neves

{} editor

Rafael Voigt Leandro

{voz da literatura}
revista de crítica e divulgação de obras literárias e afins.
independente, mensal, gratuita e distribuída digitalmente.
www.vozdaliteratura.com | facebook | instagram
vozdaliteratura@gmail.com
brasília-df
{voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018 2
ANTONIO CANDIDO 100 ANOS
Maria Augusta Fonseca e Roberto Schwarz (Org.)
Editora 34 | 2018 | 495 p.

O crítico literário Roberto Schwarz possui


extrema afinidade com o pensamento e a obra de
Antonio Candido (1918-2017). É considerado por
muitos um herdeiro intelectual do autor de “Literatura
e sociedade". Schwarz já havia analisado em outros
trabalhos a obra de Candido, como, por exemplo, nos
ensaios “Sobre a Formação da literatura brasileira" e
“Sete fôlegos de um livro". Ao lado de Maria Augusta
Fonseca, organizou Antonio Candido 100 anos.
Schwarz e Fonseca prestam nova reverência ao
ensaísta de “Dialética da malandragem" e se juntam
a tantas outras homenagens oriundas de eventos,
exposições e publicações dedicadas ao centenário do
maior crítico literário do Brasil. A obra publicada pela
Editora 34 já nasce como livro canônico sobre esta
figura de proa de nossos estudos literários. Reúne mais
de 30 pesquisadores brasileiros e estrangeiros, entre
colegas, ex-alunos e novos intérpretes de Antonio
Candido.
Sobre uma personalidade com bibliografia
tão plural e militância política e cultural destacada,
Antonio Candido 100 anos congrega vasta A parte mais longa da obra situa-se no exercício
coletânea de depoimentos e estudos inéditos. crítico do mestre. Nela revelam-se a dialética do
Logo na abertura, há dedicatórias de Mário de localismo e universalismo, a formação do romance
Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e brasileiro, sua análise de Guimarães Rosa ou de
Graciliano Ramos, além de poema de Francisco Alvim Alexandre Dumas, os estudos líricos, a sociologia,
ao homenageado. Em seguida, o livro se divide em a forte presença do tema “realismo", que ajudam
cinco partes que mapeiam as diferentes dimensões de a recompor as tendências do pensamento crítico
Candido, com ênfase em sua atuação como professor, de Candido. O livro reserva ainda espaço para a
militante político e crítico literário, ressaltando os publicação de um texto inédito do próprio Candido:
pensamentos marcantes em sua extensa produção “Como e por que sou crítico".
intelectual. São sempre bastante produtivas e Diante de Antonio Candido 100 anos, tem-se um
singelas as memórias de colegas e ex-alunos de paradigma de personalidade com perfil humanista,
Candido, como Adélia Bezerra, Alfredo Bosi, Davi atuação política e produção intelectual rigorosa
Arrigucci Jr., Flávio Aguiar, Roberto Schwearz, José e genuína, que devem inspirar novas gerações de
Miguel Wisnik, Walnice Nogueira Galvãoi. Esse pesquisadores, críticos e educadores literários no
memorialismo ajuda a reconstruir a figura humana de Brasil.
Candido em sua atuação docente e como intelectual. {} Rafael Voigt

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{ENTREVISTA}

Maria
Helena
de Moura
Neves A linguista Maria Helena de Moura
e a gramática Neves, professora emérita da Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
do português (Unesp) e da Universidade Presbiteriana
Mackenzie (UPM), possui um extenso
revelada em trabalho de pesquisa acerca das relações
entre texto e gramática e sobre a teoria
textos funcionalista da linguagem. Publicou mais
de uma dezena de livros a respeito desses
temas, entre eles: Gramática de usos do
português (Unesp, 2012), Guia de usos do
português (Unesp, 2011), Texto e gramática
(Contexto, 2006) e Que gramática estudar
na escola? Norma e uso na língua portuguesa
(Contexto, 2003). Nesta entrevista,
a {voz da literatura} conversou com a
autora que lançou em junho, pela editora
Unesp, a obra monumental
A gramática do português revelada em textos.

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Como e quando surgiu o projeto de A Gramática do
português revelada em textos?
Na verdade, desde quando iniciei meu trato exercer, a partir da data em que, completando 18 anos,
com língua e linguagem, vejo-me com atenção entrei em sala de aula para nunca mais sair. Passei
especialmente voltada aos textos, na busca (e na praticamente por todos os níveis de atuação escolar
montagem) da gramática da língua. O desiderato em linguagem e língua portuguesa, sempre fixada em
é captar a 'gramática' da língua diretamente no uso leitura (muita literatura), redação e gramática, vistas
linguístico, vendo-a como nada mais do que o cálculo como ingredientes de uma mesma engrenagem de
de produção de sentido em linguagem, e vendo o lida com a língua: foi por aí que minhas aulas sempre
arranjo construcional dos textos como a montagem se desenvolveram com textos abertos em cima da
de peças que responde à projeção de significados e de carteira (muitos literários), nutrindo-se deles as
efeitos que um determinado ato de linguagem teve lições de gramática que iam emergindo.
como propósito. A ‘arte’ da gramática sempre foi meu móvel de busca:
Por outro lado, esse modo de apresentação que minha por exemplo, o que me levou a escolher o Grego para
nova gramática tem (por exemplo, concebendo lições a Licenciatura em Letras foi eu querer descobrir o
gramaticais específicas a partir de um texto mote) não que é que o povo grego tinha de especial que o levou
poderia ser de tal modo tentado se minha experiência a sentir a 'necessidade' de propor uma 'gramática'
não tivesse passado pela reflexão que acompanhou da sua língua, e lhe permitiu a consecução disso.
a elaboração de livros autorais meus, cujos temas Para a tese em Grego que propus, como docente de
ficam transparentes nos títulos: Gramática na escola Língua e Literatura grega que fui, fixei exatamente
(1990), Gramática: história, teoria e análise (2002), esse objetivo, e descobri, por exemplo, que o berço
Que gramática estudar na escola (2003), Texto e dessa prontidão eu encontraria no desenvolvimento
gramática (2006), Ensino de linguagem e vivência de a que a literatura tinha elevado o espírito grego,
língua (2006), A gramática passada a limpo (2012), com a compreensão, já em Homero (e a seguir, na
e, em especial, a Gramática de usos do português filosofia clássica), da essência da condição humana.
(2000). Relevantemente, toda essa experiência se Na verdade, para mim a linguagem da literatura é a
nutriu da atividade docente que nunca deixei de linguagem, exatamente, das essências.

A gramática do português
revelada em textos

Maria Helena de Moura Neves

Editora Unesp

2018

p. 1398

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Foto: Carlos Siqueira. IV SIMELP, UFG, 2013.

Em que esta obra se diferencia de outros livros


Concretamente, a diferença desta gramática com a
de sua bibliografia, como Gramática de usos do
Gramática de usos é o abrigo de textos inteiros, ou
português e Texto e gramática?
partes maiores de textos, o que é imprescindível, na
Meu propósito (segundo meus conceitos teóricos,
proposta. Infelizmente, a massa de textos inteiros
de orientação funcionalista) é sempre o mesmo,
mais recentes inicialmente levantada teve de ser
e está claro nas minhas diversas produções,
reduzida, frente à descomunal despesa que haveria
acredito: é buscar uma explicitação da gramática
com o pagamento de direitos autorais pelos textos
que responda pela língua em função, ou seja, pelas
usados na explicitação das lições: nos últimos cinco
ações de linguagem que recebem empacotamento
anos meu livro foi reformulado quatro vezes, para
e estruturação em uma língua natural (no caso,
contornar-se a impossibilidade da publicação,
particularmente a língua portuguesa): a evidência
chegando-se, afinal, a um montante de gasto ainda
está em que meus estudos de gramática não trazem
alto, mas considerado viável.
'exemplos' que abonem formulações; pelo contrário,
as formulações das lições partem de 'ocorrências'
Na apresentação do livro A gramática do português
recolhidas em textos reais. Nessa linha, o móvel
revelada em textos, a senhora afirma que “pretende
central é sempre buscar imprimir à formação escolar
que ele vá às salas de aula, ou pela leitura direta
esse compromisso com a 'vivência da linguagem'
de suas ‘lições’ (a depender do nível de ensino),
no 'ensino da língua, não isolando a 'gramática' do
ou pela voz dos professores que delas se sirvam
'texto', ou seja, construindo uma 'gramática de usos',
nas suas aulas, mas sempre a partir da leitura
e não recolhendo entidades que, já com rótulos
dos textos/das ocorrências de linguagem que ele
gramaticais, entrem no cenário dos estudos a partir
oferece.” A gramática do português revelada em
daquilo que avulsamente se diz delas em lições não
textos pretende servir como obra de referência
dirigidas para o que elas representam no fazer do
na educação básica para a construção de um novo
texto.
paradigma de educação linguística no país, cada vez
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mais distanciado de uma visão sobre o fenômeno que fizemos em equipe (o mais recente deles, no
linguístico restrita apenas à chamada “gramática prelo), e de minhas gramáticas, acrescentando-se,
normativa”? porém, que, para essa segunda, houve inspiração
Uma gramática da língua é uma obra de referência, muito diretamente derivada de leituras pessoais
sim, e necessariamente com todo um encorpamento (livros, revistas, jornais e os demais veículos).
teórico. Também respondo positivamente quanto
à necessidade de que as ações escolares tenham Nos últimos dez anos, algumas gramáticas
foco na educação básica, e a própria centração de apareceram com novas abordagens, como
minhas propostas na língua em função remete a essa Gramática Houaiss da língua portuguesa (José
destinação. Entretanto, no caso, a destinação é, com Carlos de Azeredo), Gramática Pedagógica do
certeza, indireta: não é aos alunos do ensino básico, Português Brasileiro (Marcos Bagno), Nova
mas é aos professores (“licenciados”) que deve ser gramática do português brasileiro (Ataliba T. de
dada essa formação que os leve a entender que a Castilho), Gramática do português brasileiro
'língua' não existe fora da 'linguagem', portanto o (Mário A. Perini). Essas gramáticas de alguma
'ensino' de língua alheado da visão do uso linguístico maneira estimularam a elaboração de A Gramática
não tem como atuar positivamente no trato escolar do Português Revelada em Textos?
com língua portuguesa. Pela ordenação dos fatos, não é o caso de falar-se
Por outro lado, a proposta passa longe de qualquer em estímulo dessas obras para as minhas, já que
cogitação de estabelecimento de 'paradigmas', no minha primeira gramática de usos foi entregue
campo da educação linguística, o que seria nova para publicação por volta de 1998, e a segunda
distorção. Não se trata, porém, de proposta de (na verdade, um simples passo além, em relação à
um trabalho escolar com linguagem que exclua primeira) foi entregue em 2012. As obras desses
o cuidado com a “norma" funcional, o que seria estudiosos – grandes amigos –, de lúcida e
cegueira de visão: a noção de “norma”, no uso, lá está consistente orientação, são magníficas e fazem
funcionalmente contemplada (como está no Guia história. São novas propostas de explicitação
de uso, 2003). A bandeira erguida é o abandono de gramatical em língua portuguesa merecedoras de
lições que, divorciadas da produção de linguagem, grande destaque positivo, e foi isso que proclamei
se contentem com o recorte de peças isoladas da quando, no IV Simelp (Goiânia, 2013), lancei a esses
inserção em enunciados, simples carimbos sem gramáticos aí relacionados (e também a M. H. M.
contraparte funcional. Mateus, de Portugal, e a E. Bechara, assim como
a mim mesma) esta provocação: cada um de nós
De que modo foram selecionados os textos que deveria completar esta frase "Defino minha obra
compõem o corpus do livro? gramatical como.....". O resultado foi notável, e com
Na Unesp de Araraquara dispomos de um córpus de isso a historiografia linguística passou a contar com
centenas de milhares de ocorrências, constituído de um registro inestimável do que, nos anos recentes
textos, em português, de todos os gêneros e tipos, (em especial no Brasil), se desenvolvera, em relação à
montado para sustentar a elaboração de dicionários, gramática da língua portuguesa*.

* O registro mencionado encontra-se no livro Gramáticas


contemporâneas do português: com a palavra, os autores (Parábola,
2014), organizada por Maria Helena de Moura Neves Neves e
Vânia Cristina Casseb-Galvão.

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{RÚSSIA} :

DOSTOIÉVSKI NA RUA DO OUVIDOR


a literatura russa e o Estado Novo

Bruno Barretto Gomide | EDUSP | 2018 | 464 p.

Bruno Gomide é professor livre-docente de


literatura russa na Universidade de São Paulo (USP).
Sua tese de doutorado (2004) resultou no livro
Da estepe à caatinga o romance russo no Brasil (1887-
1936), lançado pela Edusp (2011). Focaliza o que se
pode chamar de a primeira inavasão literária russa
por aqui. Dostóievski na rua do Ouvidor: a literatura
russa no Estado Novo pode ser considerada como a
continuidade do projeto de pesquisa de Bruno Gomide.
Se no livro anterior o pesquisador debruçava-se
sobre um período de quase 50 anos, dessa vez, passa
em revista, ou um pente fino, em um intervalo de 15 representavam um trânsito de mão dupla entre URSS e
anos, entre 1930 e 45, na primeira Era Vargas, em que Brasil, inclusive tendo traduções russas de suas obras.
definitivamente se vê a literatura russa permeando - São trabalhos como esse de Gomide que
e por que não dizer integrando - o sistema literário deslindam as razões para a regular publicação de
nacional, com presença forte no horizonte de editores, escritores russos em nossa contemporaneidade,
críticos, tradutores, escritores e leitores do país. Neste com importantes tradutores, editoras entusiastas
momento, os nomes de Górki, Gógol, Tchekhov, Tostói, da russofilia, graduações e pós-graduações em
Dostoiévski, Turguêniev, Púchkin, Maiakóvski vão se letras russas como o da USP, leitores passionais...
tornando comuns e palatáveis para o público brasileiro. Neste ano, em particular, em razão da Copa do
Este é o trabalho que resultou na tese de Mundo, o tema Rússia proporcionou uma positiva
livre-docência de Bruno Gomide, desenvolvida avalanche editorial de história e literatura russa. A
entre 2008 e 2015, defendida na USP. No leitura histórica proporcionada por Bruno Gomide
trabalho do autor, observa-se que a russofilia mostra de maneira inequívoca a instalação do
literária entre nós tem sua fase de consolidação espírito literário russo entre nós. Dostóievski na Rua
mesmo diante de uma ditadura como a varguista. do Ouvidor merece estar na estante de todo o amante
Gomide demonstra seu rigor e excelência como da literatura russa e de pesquisadores de literatura
pesquisador que mergulha fundo na reconstrução de em geral, como uma obra de referência, seja pela sua
uma época. Vislumbra-se um amplo cenário literário. perícia como parâmetro de profícua pesquisa, seja pela
De críticos como Brito Broca e Otto Maria Carpeaux amplitude de tantas implicações do universo russo
que escreviam com frequência para jornais da época para a nossa cultura literária e política. O trabalho de
alargando a recepção de autores e temas russo. De Gomide oferta ainda uma minuciosa bibliografia ao
editora engolidas pela poeira do tempo como a Selzoff final, com rico catálogo de obras consultadas em fonte
que desempanharam papel de relevo na difusão dessa primária, ano a ano do período em análise no livro.
literatura. De escritores engajados na atmosfera
soviética como Jorge Amado e José Lins Rego que Rafael Voigt

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: {LITERATURA infanto-juvenil}

Em busca
de pontes
entre leitura
e cultura:
uma reflexão sobre o
livro infantil e juvenil
na contemporaneidade

por Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira

[...] sem questionar as condições


culturais a que está submetida a
criança [e o jovem], sem relacionar a
promoção da leitura e tais situações,
parece difícil criar condições que
facilitem a descoberta de pontes entre
leitura e cultura, ou seja, entre leitura
e o universo de relações, valores,
objetos, concepções que sobrevivem
à nossa precariedade – o mundo.
Edmir Perrotti (1990, p.99)

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:
arte: @vozdaliteratura

A consolidação das redes sociais e da mídia demande reflexão e, por isso, implique certa demora,
deveu-se às inovações tecnológicas da sociedade pós- perde seu significado, pois não há tempo algum
industrial que favoreceram à mundialização da cultura, como seta para medi-la. Por consequência, as relações
da comunicação social e formaram a infraestrutura humanas se estabelecem sob a forma de um jogo curto
material. Para Renato Ortiz (2006), a articulação que significa tomar cuidado com compromissos a
entre ciência e tecnologia implica em transformações longo prazo e fixar-se a um lugar, e/ou a uma vocação
profundas no setor produtivo, criando novas apenas. Produz-se a sensação de que de posse do meio
classes sociais e padrões de racionalidade. As novas – mídia – para se comunicar, todo sujeito é capaz de
tecnologias incidem diretamente sobre as noções de fazê-lo e dispõe de competência para isso. Não importa
tempo e espaço, estimulando a integração e a sincronia. se há domínio de um campo específico, interessam as
Desse modo, com a microeletrônica, a codificação e a impressões pessoais. Assim, o que afeta um indivíduo,
transmissão das mensagens adquirem um caráter de suas crenças e experiências – a sua verdade – deve
transversalidade. Assim, um evento remoto torna-se ser posto em verbo, atuando como guia para os que
próximo, contudo, o que nos rodeia pode estar afastado. ainda não tiveram a mesma “revelação” que ele.
De acordo com Zygmunt Bauman, o tempo já Em relação aos livros infantis e juvenis,
não estrutura o espaço, ele perdeu sua característica questiona-se e observa-se com lupa os que estão mais
de vetor, pois inexistem os conceitos de para frente ou próximos, chancelados pela escola, por um programa
para trás, “o que conta é exatamente a habilidade de pedagógico, por uma política pública de leitura e/ou
se mover e não ficar parado (1998, p.113).” Prevalece a por um professor ou mediador. O livro que adentra a
ideia de adequação do indivíduo, como capacidade de casa pelas mãos do filho, sobrinho ou menor sob os
se mover rapidamente para onde a ação se encontra. cuidados de um adulto, pode representar uma ameaça.
Nesse contexto, toda memória cultural é posta em Conforme Peter Hunt, “para muitos leitores um livro
choque. Assim, qualquer tomada de decisão que tem tamanha autoridade que o simples fato de algo ser

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:
incluído nele confere-lhe marca de respeitabilidade. da cultura, capazes de determinarem, inclusive, no
Há uma mística em torno do livro que aumenta na âmbito do livro, o que pode ser lido – é válido –
mesma medida que a competição entre outras mídias” e o que deve ser rechaçado – excluído, renegado.
(2010, p.203 – destaque gráfico do autor). A mesma Para Arnaldo Cortina, na eleição de uma obra
percepção não ocorre em relação aos títulos dispostos pode ocorrer um processo de identificação “o leitor lê
em listas de “Os mais vendidos”, nem à produção aquilo que julga ser sua própria verdade ou, arriscando
cultural fílmica ou televisiva em canais abertos e mais ainda, aquilo que ele deseja ouvir (ler) para
fechados, com suas séries de elevada audiência. reafirmar sua verdade” (2006, p.30). Em síntese, as
Esses produtos não representam ameaça alguma, questões individuais passam a constituir o horizonte
antes configuram-se como desejáveis, pois sugerem de expectativa do homem urbano da sociedade
uma forma de socialização, em que o indivíduo se contemporânea. Por consequência, obras que põem
sente incluído entre muitos sujeitos, partilhando de em choque uma visão única de mundo ou de “verdade”
um mesmo universo de conhecimento proveniente devem ser evitadas e/ou suprimidas de qualquer forma
da indústria cultural. Há nessa solidariedade do de acesso. Pela observância dos meios de comunicação,
consumo uma integração do imaginário coletivo, muitos leitores constroem seus julgamentos, a
às vezes, mundial, a qual confere certa ordem aos partir de notícias e/ou informações retiradas das
indivíduos e aos modos de vida, de acordo com redes sociais. Aliás, algumas delas tornam-se virais,
uma nova pertinência social (ORTIZ, 2006). como as que se pautam pela condenação de obras
Segundo Jair Ferreira dos Santos (1986), pela temática, pelo emprego da linguagem, pelo
as sociedades pós-industriais, planejadas pela conteúdo ideológico, pela estruturação da trama, pelo
tecnociência (ciência aliada à tecnologia), programam desfecho da narrativa, entre outras características.
a vida social dos indivíduos em todos os detalhes. Em consonância com Hunt (2010, p.267),
Desse modo, embora a produção seja massiva, o “Qualquer valor atribuído ao texto deve ser entendido,
consumo é personalizado, o sistema propõe e o sujeito então, como sendo especificamente um dentre três
dispõe. Há ofertas variadas de produtos, inclusive de tipos: cultural, pessoal ou educacional; e nenhum
livros, entre eles, pode-se escolher um, optar por um, deles deve ser privilegiado.” Se para o crítico (2010,
entretanto, deixar de consumir, não se apresenta como p.267), resulta desse processo social de julgamento o
opção. Nesse cenário contemporâneo de anonimato fato “libertador” de que a literatura infantil, e pode-
das grandes cidades e do capitalismo corporativo, as se incluir também a juvenil, tenham atingido status
relações sociais pulverizam-se, deixando os indivíduos semelhante a de outra literatura, isto não impede a
“soltos” na malha social (ORTIZ, 2001). Justamente, constatação de que a importância de um texto é igual
por isso, a sociedade inventa novas instâncias para a a de qualquer outro, até que se aplique sobre ele um
integração das pessoas. Entre elas, pode-se observar o desses três sistemas de valor. Justamente, a principal
emprego das redes sociais, como meio para diálogo e justificativa para a exclusão dessas obras do universo
expressão de opiniões que se configuram, como forças de leitura de crianças e jovens refere-se ao desconforto
reguladoras. Nesse contexto, a tradição, a pesquisa e a causado aos seus pais e/ou responsáveis. Esse
crítica tornam-se insuficientes para orientar a conduta, sentimento advém da constatação de que, embora a
quem a norteia, então, são os canais de comunicação, literatura possua, conforme Antonio Candido, força
oferecendo informações personalizadas de sujeitos humanizadora,“é artificial querer que ela funcione como
que asseguram deter discernimento e, por causa dele, os manuais de virtude e boa conduta” (2002, p.83).
prometem segurança a quem lhes confere crédito. Vale destacar que a sensação de prazer – obtida
Assim, as opiniões veiculadas por essas redes assumem pela leitura de um livro que atende aos horizontes de
o caráter pedagógico de instâncias de socialização expectativa do leitor, produzindo-lhe a sensação de
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: :

familiaridade e de conforto, ainda, por ser facilmente apresentada como exercício de cidadania. Logo,
compreendido, a de consolo – não é visada pela nesses espaços, o indivíduo exerce a sua “liberdade”,
obra literária. A obra dotada de valor estético busca firmando sua individualidade. Nas redes, ele se
exatamente o desalojar de seu leitor, pelo rompimento identifica com outros sujeitos, quanto ao padrão de
de seus conceitos prévios, a fim de levá-lo à ampliação comportamento e de valores,formando assim um “nós”.
de seus horizontes de expectativas. Nesse contexto, a Pelo exposto, pode-se notar que o repúdio
leitura corre o risco de se esgotar em um uso utilitário, de alguns livros na sociedade contemporânea não
associado à esfera da produção, da necessidade. decorre somente de um precário funcionamento do
Desse modo, afasta-se dos interesses e desejos dos sistema cultural – cujas pontes entre leitura e cultura
jovens, e dificilmente consegue ser vista como ato estão, muitas vezes, obstaculizadas –, o qual atinge a
verdadeiramente cultural. Por consequência, o jovem infância e a juventude, mas também do âmbito social
adquire um repertório cultural reduzido, constituído e político. Apesar de existirem algumas generalizações
basicamente de referências provenientes de seu sobre livros infantis e juvenis, os conceitos de criança
mundo privado, em que prevalecem os interesses e de jovem são inúmeros, aliás, “de uma casa para
da vida sobre os do mundo (PERROTTI, 1990). Em outra, e de um dia para outro” (HUNT, 2010, p.291).
tais condições, os produtos culturais são forjados Em síntese, como bem afirmou Bauman (2003), em
como construção, destinados a modelar o real, e um mundo globalizado – sobretudo pautado pelas
não a dialogar com ele, em um percurso contrário redes sociais –, o destino do livro não depende
ao que se busca durante o desenvolvimento de apenas das tecnologias de impressão, nem pode ser
um trabalho com a formação do leitor crítico. explicado somente por elas ou por sua relação com o
Assim,segundo Perrotti (1990),nega-se ao jovem mercado editorial, ele está condenado a compartilhar
e à criança a experiência direta da multiplicidade. Em da mesma sorte das sociedades a que pertence.
troca, o modelo cultural propõe-lhe atos linguísticos
cujos referentes são outros atos linguísticos, sem
condições de se confrontar com o real: “propõe-lhe a
Referências
linguagem transformada em labirinto sem saída, em
espelho que reflete sempre as mesmas imagens, num BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama, Cláudia
jogo narcisista cada vez mais emaranhado, complexo M. Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. In: ______.
e inconcluso” (1990, p.98-9). Conforme Santos Textos de intervenção: seleção, apresentação e notas de Vinicius Dantas. São
(1986), o exagero narcisista do individualismo é um Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002.
acréscimo da sociedade pós-industrial, mobilizada CORTINA, A. Leitor contemporâneo: os livros mais vendidos no Brasil de
1966 a 2004. Araraquara, 2006. 252p. Tese (Livre-Docência em Linguística)
pelo consumo e pela informação. Aliás, o tipo de – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Universidade Estadual
consumo é um dos fatores que difere a sociedade Paulista.
HUNT, P. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Cid Knipel. São Paulo:
industrial da pós-industrial, a primeira consome Cosac Naify, 2010.
bens materiais; a segunda, serviços, sob a forma de ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria
informações e possibilidades de comunicação (por cultural. 5.ed. 4.reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2001.
PERROTI, E. Confinamento cultural, infância e leitura. São Paulo: Summus,
diferentes meios). Na sociedade pós-industrial, 1990.
a capacidade de se expressar pelas redes sociais é SANTOS, J. F. dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1986.

{
ELIANE APARECIDA GALVÃO RIBEIRO FERREIRA
é professora do Departamento de Linguística na
Universidade Estadual Paulista (Unesp), Câmpus de
Assis-SP.

{voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018 12


: {educação literária}

Formação
de leitores
e educação
literária:
uma base que
desaba Tenho pensado a questão da educação
literária no Brasil como um desafio que excede
por Maria Amélia Dalvi a formação de leitores – embora passe também
por aí. De minha perspectiva, a identificação
quase imediata que fazemos da educação
literária ao ensino da literatura, à leitura
literária e à formação de leitores é uma forma
de reducionismo. Reducionismo tanto da
amplitude da ideia de “educação” (que é muito
mais ampla que as questões do “ensino” e muito
mais ampla que o espaço-tempo formativo
“escolar”), quanto da ideia de “literário” (pois,
como sabemos, o literário está para bem além
das questões disciplinares). Ademais, parece-
me pouco ousado quando fazemos equivaler
a ideia de educar literariamente alguém
com a ideia de formá-lo como um leitor de
literatura – embora reconheça, claro, que
estamos falhando desde esse mínimo. Nesse
sentido, alguém poderia perguntar: “Se não
conseguimos fazer o esse mínimo na educação
literária, que seria formar leitores de literatura,
como poderíamos ousar mais do que isso?”.

13 {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018


:
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil. Arte: @vozdaliteratura

Minha hipótese é: não conseguimos formar entender a importância da literatura na vida social e,
leitores não porque esse objetivo seja difícil por isso mesmo, irá compreender alguns dos sentidos
demais, mas porque, o modo como a ideia de possíveis para ser um leitor de literatura autônomo,
formação leitora é tradicionalmente concebido é crítico, contumaz. Entre esses sentidos, decerto, cabe
restrito e limitador demais. Se quiséssemos mais, aquele que me parece extremamente relevante: pensar
se mirássemos mais longe do que temos feito, seu tempo, sua sociedade, seu lugar no mundo como
penso que, consequentemente, mais pessoas se indivíduo e como partícipe de uma teia de relações.
interessassem em ler (e escrever, editar, ilustrar, Qual seria, então, minha concepção de educação
publicar, mediar, criticar, comerciar...) literatura. literária? Para início de conversa, ela contempla a
Uma educação literária efetiva precisa ir além de educação escolar (no que incluo a educação superior),
ensinar a ler textos literários. É necessário defrontar o mas não se restringe a ela. Minha concepção de
sujeito com a complexidade (cultural, social, histórica, educação literária contempla a disciplina escolar de
econômica...) das práticas atinentes ao literário, para Língua Portuguesa ou o campo universitário dos
que o próprio sujeito possa entender que literatura Estudos Literários, mas também, igualmente, não se
não se reduz à escrita e à leitura de obras: há toda restringe a eles. Por isso, minha defesa da educação
uma intrincada e sedutora teia de trabalho, filiação, literária confirma a escola, a disciplina escolar e o
valoração e escolhas que, se não vem à tona, fica professor de Literatura (seja na educação básica, seja
esquecida, e não mobiliza e engaja os sujeitos que têm no ensino superior) como partícipes privilegiados
diferentes interesses, perfis, modos-de-ser no mundo. do processo de educação literária, mas não alija do
Minha aposta é a de que, uma vez que o sujeito processo outros partícipes sem os quais o literário e
se identifique com uma ou mais das diferentes práticas o processo educativo não acontecem, na amplitude
que constituem a complexidade do literário (práticas da acepção de educação com que trabalho: formação
que passam pela leitura, mas vão além dela), ele irá omnilateral do ser humano pelo desenvolvimento

{voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018 14


:
crítico de sua inteligência, emoção e sensibilidade o revisor, o adaptador, o ator que interpreta um papel
em diferentes campos artísticos, científicos e ou monólogo literário, o mediador de leitura, o crítico,
filosóficos, visando à participação ativa e consciente o ativista, o oficineiro literário, o museólogo e o
na transformação das condições de vida humanas, arquivista dedicado a acervos e instituições de cultura
em um contexto histórico e social complexo. literária, o agente literário, o cineasta, o “mecenas”
Nesse sentido de educação, a educação literária ou “benfeitor” literário, o profissional do marketing,
perpassa o campo artístico-cultural, obviamente, o jornalista cultural, o intelectual que planeja e
mas perpassa também o filosófico (pois há uma o corpo técnico que executa programas públicos
vastidão de questões ontológicas, gnosiológicas e/ou atinentes ao literário, o profissional de vendas...
epistemológicas elaboradas na literatura ou a partir do Desse modo, uma educação literária que faça jus à
estudo da literatura em seus processos) e os diferentes ideia de educação que defendo precisa dimensionar ao
campos do conhecimento científico (pois há um sujeito em formação essa complexidade – e prepará-lo
extenso corpo de conhecimentos especializados e de para atuar de modo crítico, ativo e responsável nela.
práticas e procedimentos produzidos, transmitidos Por isso, não me contenta quando penso em
e transformados ao longo do tempo, por meio uma educação literária a ser realizada por professores e
de diferentes escolhas teórico-metodológicas, estudantes em contexto escolar em afinidade com uma
envolvendo a literatura). Obviamente, essas diferentes Base Nacional Curricular Comum (BNCC) produzida
esferas cambiam entre si todo o tempo, friccionam-se para atender a uma agenda internacional para a educação
com outras, e são constituídas por múltiplos agentes, (da Unesco, do Banco Mundial, da Organização para
que vivem diferentes experiências e se posicionam a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e a uma
nas disputas internas ao campo literário de modos demanda de planificação curricular que interessa à
variados. Para mim, uma educação literária efetiva lógica do controle e responsabilização da “ponta” do
precisa ao menos dimensionar para os sujeitos essa processo (leia-se: das escolas, professores e alunos).
complexidade. De saída, dar noção ao menos dessa Merece um olhar cuidadoso uma BNCC que
complexidade teria o efeito de desfazer aquele equívoco nasce no contexto de uma significativa participação de
tradicional que faz parecer que literatura é uma coisa grupos empresariais privados e grandes corporações
antiga, sem vida, de gente desocupada ou ociosa ou que na assessoria ao Ministério da Educação, com o fito
vive no mundo da lua e se recusa a encarar a realidade. de permitir a definição de objetivos e procedimentos
Por isso tudo, minha defesa da educação literária estandardizados para a educação básica e com o fito
confirma o lugar da escola, da disciplina escolar e de permitir a produção de indicadores quantitativos
do professor de Literatura, mas incorpora também e comparáveis. Penso que, no que tange a uma
outros espaços-tempos educativos e experiências, que proposta de educação literária complexa, ampla,
acontecem em bibliotecas, salas e clubes de leitura, sofisticada, aberta tal como aquela que defendi nas
feiras, jornadas, lançamentos, palestras e mesas- linhas acima, uma Base Comum pode vir a ser nefasta
redondas, teatros, óperas, slam’s, saraus, debates, no médio prazo – de novo, não porque o que propõe
programas midiáticos, batalhas de repentistas e seja muito exigente e difícil, mas justamente porque
rappers, cineclubes (alguns dedicados a recriações pode ser limitador, simplificador, pouco ousado.
cinematográficas de obras literárias) etc. A educação Porém, é preciso ser realista na
literária que defendo e acredito dialoga com toda compreensão do momento presente para
a cadeia de trabalho e agentes que constituem os a educação literária em contexto escolar:
modos de existência do literário em nossa sociedade: a) os currículos de formação de professores
o escritor/produtor, o ilustrador, o tradutor, o (entre os quais os de literatura), seja na graduação,
performer, o editorador, o editor, o projetista gráfico, seja no mestrado, têm sido sistematicamente
15 {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018
:
arte: @vozdaliteratura

reformulados na direção de um esvaziamento de um – e trabalham com fragmentos “com unidade de


corpo sólido e reconhecível de conteúdos, experiências sentido”, de modo que, no que tange ao processo de
e saberes oriundos de diferentes campos do educação escolar/universitária deu-se o esvaziamento
conhecimento e na direção de uma defesa da formação da experiência individual e partilhada de leitura
“prática” ao custo do apagamento da formação e literária integral e a inviabilização da mediação
reflexão “teórica” (inclusive com a redução da carga literária qualificada, em um sistema feito pela
horária a uma carga horária realmente mínima); racionalidade técnica, pela lógica do controle e
b) fomos empurrados, em nome de nossa do lucro que vê nos exames um fim educacional,
culpa e de nossa ausência de reflexão sistemática e não um instrumento de avaliação educacional;
vincada pela dialética entre particular e universal, d) há, como dado constitutivo da história
bem como em nome de nossa incipiente participação do Estado brasileiro, a descontinuidade de
política na esfera pública, à falsa escolha entre políticas para o livro e a leitura no Brasil e uma
etnocentrismo e relativismo cultural, com os riscos ênfase na aquisição de obras em detrimento da
para os mais pobres do empobrecimento da educação formação de mediadores de leitura literária e
escolar no que tange à garantia da apropriação da disseminação de espaços de leitura literária;
de conteúdos e práticas reconhecidamente e) vivemos sob o ideário de projetos como
importantes no desenvolvimento humano; “Escola sem partido” e sob os riscos do avanço desse
c) os exames em larga escala (para a educação ideário por sobre todo o sistema literário (crítica
básica e para a educação superior), via de regra, especializada, circulação de materiais de leitura,
prescindiram da leitura de obras literárias integrais formação de escritores, sistema editorial etc.).

{voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018 16


:
Como vamos nos mover neste cenário? No pela literatura na complexidade de sua existência
Congresso da Associação Brasileira de Literatura nas sociedades, pois alguém que não tenha trânsito
Comparada realizado na Universidade do pelas múltiplas esferas da atividade humana tocadas
Estado do Rio de Janeiro, em 2017, propus o que pela literatura não poderá mediar adequadamente
chamei de um “plano emergencial de trabalho”: o processo de educação literária de sujeitos menos
• Reconhecimento de que toda escolha experientes, menos informados e em processo
literária e educacional é política e é ideológica, de constituição e desenvolvimento subjetivo,
com articulações e desdobramentos históricos identitário, cognitivo, interpessoal e social. De igual
– previstos e imprevistos – na realidade social; modo, alguém desprovido de conhecimentos claros
• Reconhecimento da educação literária como e sistematizados sobre como é possível mediar
trabalho (portanto, intencional) que concorre o processo de educação literária em contextos
para a produção da humanidade no homem; específicos (como é o caso do contexto escolar),
• Defesa da qualidade (que difere de tradição que não se aproprie de um campo profissional com
ou legitimidade), que só se conhece por comparação seu acúmulo de experiências, saberes e conteúdos
e ampliação de repertório e tendo ferramentas não poderá mediar o processo de educação literária.
teórico-conceituais e repertório partilhados, para Finalizando, é preciso, sim, garantir a experiência
que se efetive uma discussão qualificada que, de leitura, de escrita e de discussão literária na escola,
inclusive, questione os saberes até então disponíveis; mas é preciso mais. A literatura é, historicamente, uma
• Defesa de que à relação com os textos antecede dimensão privilegiada da criatividade,questionamento,
a relação entre pessoas, sujeitos humanos sócio- resistência, problematização, tensão. Sua abertura
histórico-culturalmente situados – e que se aprende e sua generosidade com o processo de produção de
por mediação e não por mera interação sujeito-objeto; sentidos devem ser mobilizadas para sofisticar nossa
• Consciência clara de que não basta assegurar a inteligência, nossa emoção e nossa sensibilidade,
circulação dos textos literários; é necessário assegurar para complexificar e lançar adiante nossa vida intra
o ensino-aprendizagem de seus múltiplos modos de e intersubjetiva. Não faz sentido que ela, a literatura
materialização/existência e de seus múltiplos modos – com toda a sua complexidade constitutiva e com
de apropriação/resposta em diferentes situações sócio- sua fluidez que escapa às definições e circunscrições
histórico-culturais com propósitos sociais diversos; limitadoras – não seja central, fundante, estruturante,
• Atuação com conhecimento de causa e com nuclear em nossos processos de educação.
pauta político-estratégica clara no redesenho dos A educação literária que defendo e os leitores
cursos e programas de formação de professores; de literatura que espero que essa educação literária
• Reconhecimento e defesa da especificidade forme não cabem em um rol de competências e
do trabalho do professor de Literatura e de um habilidades, não são mensuráveis a partir de um rol
perfil profissional suficientemente amplo mas de descritores compatíveis com testes padronizados
imediatamente reconhecível: é necessário assegurar de múltipla escolha... mesmo que o nome nos
uma formação pedagógica para a educação literária engane e fale em escolha, e em multiplicidade.
mas que jamais pode prescindir de uma formação

{ MARIA AMÉLIA DALVI é professora de literatura na


Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

17 {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018


{VITRINE}

A VEGETARIANA
Han Kang | Tradução Jae Hyung Woo | Todavia | 2018 | 176 p.

A literatura sul-coreana não é das mais conhecidas pelos leitores brasileiros. Em 2009, pela
editora Landy, apareceu Contos contemporâneos coreanos, por iniciativa da tradutora Yun Jung Im,
professora da USP. A edição preparada por Yun conta ainda com prefácio de Boris Schnaiderman.
Ainda por iniciativa de Yun, outras obras foram publicadas, como O pássaro que comeu o sol:
poesia moderna da Coreia e Sijô, poesia coreana clássica. O romance A vegetariana entra na esteira
da recepção da literatura sul-coreana no Brasil. Publicado pela editora Todavia em setembro,
o livro é de autoria da Han Kang (1970), escritora que vem publicando ficções e ensaios desde
1995. A vegetariana recebeu o Prêmio Internacional Man Booker. A jovem Yeonghye, após sonhos
perturbadores, decide parar de comer carne. Essa decisão impacta em sua relação com o marido
e os demais familiares. Divido em três partes, o romance destrincha um estado psicológico de
alterações de Yeonghye sobre sua relação com a carne, não somente no caráter alimentar, mas
em suas múltiplas manifestações, incluindo a do ser humano como ser carnal. A incompreensão
familiar leva a personagem a ser internada em hospital psiquiátrico e sofrer consequências
gravosas. Essa trama construída com rigor por Han Kang conduz o leitor a um enredo de fundo
altamente filosófico, que descarna as certezas de qualquer um sobre as implicações da carne na
vida humana.

FIGURAS DA HISTÓRIA
Jacques Rancière | Tradução de Fernando Santos | Editora Unesp | 2018 | 79 p.

Figuras da história é a mais nova obra do filósofo Jacques Rancière publicada no Brasil. A obra não
é de toda inédita. Compõe-se de dois textos escritos para a exposição Face à l’Histoire ocorrida
em 1996 no Centro Georges Pompidou (Paris). É o próprio Rancière quem explica a origem dos
textos logo no frontispício da obra. O primeiro ensaio intitulado “O inesquecível” joga com a
ideia das relações entre a lente da objetiva cinematográfica e os fatos históricos. A dialética de
Rancière passa por uma cena de A saída dos operários da fábrica Lumière (1895) a Gente no domingo
(Siodmak e Ulmer, 1929) ou Ivan, o Terrível (Eisenstein, 1944-58). Nas palavras do autor, “(...)
a era em que o cinema toma consciência dos seus poderes é também o tempo em que uma nova
ciência histórica se afirma diante da história-crônica(...)” (p. 25). No segundo ensaio, “Sentidos
e figuras históricas”, o filósofo Jacques Rancière se dedica à imbricação entre as artes pictóricas
e a história, passando pelas obras de diferentes pintores, como Greuze, Kurt Schwitters, De
Chirico, Felix Nussbaum. Para tomar emprestado um dos pensamentos lapidares do ensaísta:
“(...) a desmesura vivida da história encontra incessantemente a sua expressão pictórica.” (p. 78)

{voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018 18


: {HQS}

Sobre
quadrinhos,
livros e
literatura
por Ivan Lima Gomes

A mais recente lista de indicados ao


Man Booker Prize teve repercussão incomum
na mídia especializada. Tido como o mais
importante prêmio literário da Grã-Bretanha,
o prêmio incluiu pela primeira vez uma graphic
novel como melhor obra literária de 2018. A
indicação de Sabrina, de Nick Drnaso, pareceu
chamar mais atenção do que o próprio prêmio
em si ou os outro indicados, merecendo
algumas notícias de jornal a respeito. Em geral,
destacaram o feito inédito de uma graphic
novel – no mundo anglossaxão – ou uma
história em quadrinhos – conforme noticiou
a imprensa local – ter sido indicada ao Man
Booker Prize como livro do ano, na mesma
categoria de um nome como Michael Ondaatje,
com seu Warlight – ele próprio vencedor do
prêmio em 1992, com O Paciente Inglês. No
ultimo dia 16 de outubro, anunciou-se – de
maneira bastante discreta, diga-se de passagem
– o prêmio para Anna Burns, por Milkman.
19 {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018
:
A ênfase na indicação de Sabrina suscitou reações
pra lá de variadas. A partir da constatação de que uma
premiação literária desta envergadura ampliava o
alcance das suas indicações, alguns diagnosticaram o
que seria o sinal de certo cansaço da produção literária
mais recente. Não raro, tais interpretações sinalizaram
para uma “crise da literatura contemporânea”, que
precisa dialogar com formas de comunicação mais
“acessíveis” e “simples”, como os quadrinhos, para
poder continuar existindo. Houve mesmo quem
interpretasse tal diálogo como sinal de decadência
cultural, representativo dos nosso tempos de leituras
breves e sem fôlego e onde a crítica, por meio de
arte: @vozdaliteratura

premiações, precisa fazer todo tipo de concessão para


alcançar um público mais amplo. Outros, por outro
lado, celebraram o ineditismo da indicação, apontando
o dado novo que as novelas gráficas introduzem
nas formas de narrar histórias no nosso tempo.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Capa de Sabrina, de Nick Drnaso.

Ambas as avaliações parecem perdem de vista as


relações históricas entre imagem e texto e, mais belas imagens que acompanham o texto creditado
especificamente, entre quadrinhos e literatura. A a Francesco Colonna. Integrados, imagem e texto
visualidade do texto é uma presença recorrente na assumem atmosfera enigmática como a de um sonho,
produção histórica dos impressos, cujo marco decisivo tornando Hypnerotomachia Poliphili uma daqueles
pode ser apontado, segundo a famosa formulação de obras envoltas em mistérios e que suscitam toda sorte
Marshall McLuhan, a invenção da imprensa moderna de interpretações sobre seu significado ainda hoje.
em meados do século XV. Ali estabeleceram-se as bases Fatores como tipografia, qualidade do
de uma cultura essencialmente voltada para o visual, papel, cores etc. apontam para o importante papel
onde a visibilidade e o olhar ganham centralidade da dimensão material na composição de um livro,
na apreensão e construção do saber letrado. Não incluindo aqui as obras literárias. A visualidade do
por acaso, logo nos anos iniciais que se seguiram à texto literário também pode ser explorada a partir
difusão da nova tecnologia de Gutenberg, as relações do impacto que as transformações tecnológicas e os
entre imagem e texto fizeram-se presente de forma inúmeros dispositivos óticos – do daguerreótipo à
fundamental para a consolidação do livro enquanto fotografia – que se proliferaram ao longo do século
formato, seja a partir do cuidado com a tipografia XIX introduziram sobre os processos criativos de uma
presente numa obra como Champfleury [1525], de série de escritores. a literatura já se mostrara sensível
Geoffrey Tory, dedicada a compor o alfabeto a partir às alterações na sensibilidade promovidas por novas
de cuidados proporções anatômicas; seja a partir tecnologias e artes técnicas como a fotografia e o
de obras que exploraram mais a fundo as interações cinema. Os escritores se mostravam sensíveis ao novo
visuais no texto para a elaboração de narrativas. Um “horizonte técnico” que se desenhava diante deles.
dos incunábulos mais conhecidos a explorar tais Como sintetizou em 1909 o cronista carioca João do
possibilidades é seguramente o Hypnerotomachia Rio “ao demais, se a vida é um cinematógrafo colossal,
Poliphili.Impresso por Aldus Manutius em 1499,contém cada homem tem no crânio um cinematógrafo de que

{voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018 20


o operador é a imaginação”. À guisa de exemplo, é e jornais antigos. Em “A Misteriosa Chama da Rainha
possível identificar um engajamento de boa parte da Loana”, de Umberto Eco, os quadrinhos lidos ao
produção literária americana do século XIX com o longo da infância de Yambo – cujo nome completo,
olhar e a câmera, desenvolvidas a partir de metáforas Giambattista Bodoni, é uma referência direta ao
visuais e terminologias fotográficas, apontando para tipógrafo e editor italiano de fins do século XVIII e
aquilo que se convencionou chamar de realismo. início do XIX – são um recurso gráfico e narrativo para
Porém, resumir o realismo literário a apenas um enfrentar a perda de memória vivida pelo personagem.
esforço para representar o mundo tal como ele é A intertextualidade e a atenção dada à
redutor, quando o que está em jogo é justamente um dimensão visual poderiam conferir à obra a alcunha
poética da representação, envolvendo tanto o que de “novela gráfica”, se esta já não estivesse em voga
pode quanto o deve ser representado – e como fazê-lo. no mercado de quadrinhos desde fins dos anos 1970.
Linguagem que se desenvolveu historicamente E aqui voltamos para “Sabrina”, obra herdeira desta
a partir da mídia impressa, as histórias em quadrinhos tradição editorial que se tornou reconhecida a partir
se alimentaram de fontes bastante parecidas das dos anos 1980 através de nomes como Alan Moore,
descritas até aqui. Que se trata de linguagem Frank Miller e Neil Gaiman, entre outros. Herdeira
visual e gráfica, não restam dúvidas; cabe reforçar, principalmente por se dedicar a explorar a linguagem
porém, que novas tecnologias de impressão – das HQs para desenvolver uma narrativa ficcional
rotogravura e impressora rotativa, por exemplo – de fôlego sobre temas como depressão e boatos. O
logo adotadas pela moderna imprensa de fins do trabalho de Nick Drnaso explora a difusão de uma
século XIX permitiram a impressão em larga escala série de notícias falsas em torno do assassinato
e a cores de suplementos inteiros dedicados aos brutal da personagem-título, e como a circulação
quadrinhos. Aquele que é considerado por muitos destes boatos via imprensa altera as vidas de alguns
como “o primeiro personagem de quadrinhos” dos seus conhecidos. Para além dos super-heróis
ganhou destaque especial em parte pelo interesse que tanto marcaram as revistas em quadrinhos por
dos donos do jornal The New York World em explorar décadas, uma graphic novel como “Sabrina” reforça o
as capacidades de uma recém-adquirida impressora
rotativa em quatro cores. Nascia The Yellow Kid.
A partir de então, os quadrinhos ganhariam
autonomia e alimentariam a imaginação de geração
de leitores. Tal como Ítalo Calvino, muitos devem
ter aprendido a “pensar com imagens” a partir dos
quadrinhos. Outros tantos devem ter lido primeiras
versões de clássicos da literatura mundial e brasileira
em adaptações para a linguagem dos quadrinhos –
para, em seguida, seguirem os conselhos dos editores
e deixarem de lado o “aperitivo” dos quadrinhos e
correrem para “ler o próprio livro” e organizar sua
biblioteca, “porque uma biblioteca é sinal de cultura
e bom gosto”. Leitura fugidia, mas não de todo
esquecida; não raro, os quadrinhos podem vir a se
localizar nas zonas cinzentas da memória, a serem
retomadas a partir de um contato afetivo com revistas fragmento de Sabrina.

21 {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018


:

interesse deste formato de quadrinhos em enfatizar as Se dialoga explicitamente com o contexto americano
vidas de pessoas comuns, anônimas e deconhecidas, e suas fake news, certamente também terá a muito a
quando atravessadas por acontecimentos maiores dizer aos leitores brasileiros. Tal como lá, por aqui nos
e que superam suas capacidades de controlá-los. As vimos igualmente envolvidos numa trama eleitoral
especificidades da narrativa gráfica dos quadrinhos com ares conspiratórios, onde uma série de elementos
conferem a Sabrina especial relevância no debate indicam que houve suporte financeiro ilegal para a
contemporâneo, pois permitem dar corpo a uma série promoção de propagandas ilegais e conteúdo falso.
de sensações – ansiedade, medo, angústia, vazios – que Tais maquinações contribuíram sobremaneira para
experimentamos em nosso dia a dia recente em torno que chegássemos ao atual momento, onde uma
da proliferação de informações e notícias que, apesar de candidatura fundamentada no ódio político e moral e
caberem nas nossas mãos, terminam por nos soterrar carente de propostas concretas - ao ponto de eximir-se
diariamente. Em contraste, a narrativa é lenta e quase do contraditório ao negar-se a comparecer a debates
impessoal: várias páginas não apresentam nenhum no segundo turno - foi declarada vitoriosa pelas urnas.
texto sequer e retratam cenas banais do cotidiano, Num cenário confuso como esse e à beira do colapso,
como diálogos sobre memórias de infância, alguém se talvez seja realmente difícil acompanhar o turbilhão
preparando para dormir ou aguardando um voo. Tudo de reportagens, postagens e memes – afinal, “quem
numa linguagem gráfica minimalista, mais próxima do lê tanta notícia”? Algumas obras – de arte, literárias,
design informativo de manuais de segurança presente em quadrinhos – servem justamente para propor
em aviões do que das tons berrantes em quatro cores que uma leitura criativa do seu tempo, sintetizando
historicamente marcaram a estética dos quadrinhos. muitos dos dilemas que observamos e introduzindo
Não por acaso, Sabrina é uma ótima graphic questões que podem nos ajudar a pensar caminhos.
novel para colocar em questão as formas como Com ou sem prêmio literário, Sabrina é dessas obras.

{
produzimos e consumimos notícias a todo momento.
IVAN LIMA GOMES é Doutor em História pela UFF,
com tese de doutorado premiada no 28º HQ Mix na
categoria “melhor tese de doutorado”. Professor da
Faculdade de História na UFG. Autor do livro: “Os novos
homens do amanhã: projetos e disputas em torno dos
quadrinhos na América Latina” (Prismas, 2018).

{voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018 22


{IRÃ}

Abbas
Kiarostami

O cineasta iraniano Abbas


Kiarostami (1940-2016) projetou-
se internacionalmente com o filme
Onde fica a casa do meu amigo? (1987).
Venceu a Palma de Ouro do Festival
de Cannes com o Gosto da Cereja
(1997). Seu filme O vento nos levará
(1999) foi agraciado com o Leão de
Ouro no Festival de Veneza. A poética
de suas produções cinematográficas
espelha a personalidade do poeta
Kiarostami na antologia de haikus
de Nuvens de Algodão, livro inédito
no Brasil, publicado pela Editora
Âyiné. A revista {voz da literatura}
compartilha alguns dos haikus de
Kiarostami com seus leitores.
23 {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018
Na tua ausência
converso
contigo,
na tua presença
converso comigo.

**

Aproximo meu ouvido


do sussurro do vento
do estrondo do trovão
da melodia das ondas.

**

No silêncio da noite
Trad. de Pedro Fonseca | Edição Bilíngue | Ed. Âyiné | 2018 | 189 p. não me deixa dormir
a nênia dos cupins.

**

A brancura da pomba
perde-se nas nuvens brancas
em um dia de neve.

**
A luz do luar
derrete
o fino gelo de um velho rio.

{voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018 24


{voz de criança}

A arte desta página reproduz um


trecho do livro infanto-juvenil PAZ, escrito
e ilustrado por Angela Leite de Souza,
lançado pela editora mineira Abacatte,
especializada em obras desse gênero.
A revista {voz da literatura} convidou
Angela Leite para compartilhar com os
leitores sua relevante trajetória como
escritora e comentar as possibilidades de
leitura do livro PAZ pelo público em geral e
especialmente nas salas de aula do Brasil.

25 {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018


Angela Leite de Souza:
Pode-se dizer que minha carreira literária começa aos
7 anos de idade, quando fui alfabetizada. A partir daí,
passei a escrever quadrinhas, textos “jornalísticos”,

Foto: Sylvio Coutinho


bilhetes… enfim, tudo o que acontecesse à minha volta
ia para o papel, em forma de prosa ou de poesia. Aos 11,
fiz o primeiro conto - “Confissões de uma bola branca
de sinuca”. E na adolescência começaram a nascer
os primeiros versos líricos, que eu ainda escondia na
gaveta, insegura de sua qualidade. Aos 16, um crítico
literário finalmente teve a disponibilidade de ler esses
poemas e viu neles uma ressonância com Cecília
Meireles. Fiquei mais confiante e passei a mostrá-lo
a outros experts. Mas o maior incentivo veio anos
mais tarde. Houve então um hiato na criação literária,
porque em 1972 me formei em jornalismo pela PUC
do Rio de Janeiro e durante muito tempo exerci meu Nacional do Livro Infantil e Juvenil, entre outros
lado repórter, trabalhando nas redações de O Globo, reconhecimentos. Esse gênero literário também me
Veja e outros importantes órgãos da imprensa. Na abriu outro caminho, o da ilustração, uma área em que
década de 80, surgiu a oportunidade de mostrar fui praticamente autodidata, já que até então havia
minha produção poética aos grandes escritores que dedicado minha formação e prática à palavra escrita.
frequentavam a famosa reunião carioca de literatos Com esse trabalho obtive também reconhecimento, até
que ficou conhecida como Sabadoyle. Lá, ganhei o aval internacional, como a seleção e exposição de minhas
dos poetas Homero Homem e Gilberto Mendonça ilustrações por três vezes na Bienal de Bratislava, na
Teles e entrei em um concurso literário promovido pela Eslováquia. A última aconteceu em 2017, em que foram
Imprensa Oficial de Minas Gerais, que escolhia as dez expostas as ilustrações de “Cantiga dos meninos
melhores obras de vários gêneros e as premiava com pastores”, poema de Adélia Prado. A maior láurea foi
a publicação. Assim nasceu, em 1982, meu primeiro conquistada em 1998 por meu livro “Estas muitas
livro, “Amoras com açúcar”, que Homero Homem me Minas”, de poesia para adultos, que foi o Prêmio Casa
deu a honra de prefaciar. A partir daí, em três décadas de las Américas de Literatura Brasileira, de Cuba.
e meia, foram publicados cerca de 70 títulos meus, Meu livro mais recente, “PAZ” levou um bom tempo
de vários gêneros. Entre os anos 70 e 90, uma feliz para ser elaborado, já que fiz texto e ilustração. Ele
descoberta – a literatura infanto-juvenil, em que acabei tem me proporcionado fortes emoções porque vem
fazendo especialização na PUC de Minas Gerais. Essa sendo lido por um público surpreendente: crianças
nova vertente me deu grandes alegrias, em forma de de três, cinco anos, adultos de todas as idades! Estes,
prêmios - “Deusmelivre!”, Prêmio João de Barro da homens e mulheres, me contam que chegaram às
Prefeitura de Belo Horizonte; “Meus Rios”, Prêmio lágrimas. E os pequeninos, embora não saibam ler,
Carioquinha de Literatura Infantil; “Entre Linhas”, demonstram uma total compreensão do conteúdo.
Prêmio de Poesia Odylo Costa, filho, da Fundação Eis, sem dúvida, o grande “salário” de um autor.

{voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018 26


Capa de PAZ.

Sei de uma professora que se valeu do “PAZ” para possibilidade de fazer um trabalho rico. O livro chegou
literalmente acalmar a turma, que havia voltado com em um momento de grande tensão e desentendimento
toda a energia do recreio. Acho que assim deveria ser em nosso país. Este, penso eu, deve ser o aspecto mais
trabalhado o livro em sala de aula. Ou seja, uma leitura explorado, já que as situações abordadas no “PAZ” se
tranquila, pausada, deixando aos alunos pausas aplicam ao nosso conturbado cotidiano. Como conviver
para reflexão sobre o que foi lido. Isto, claro, com as harmoniosamente, como aceitar o “outro” colocando-
crianças menores. A elas devem ser mostradas as nos em seu lugar, como respeitar quem pensa de modo
imagens correspondentes, porque são parte intrínseca diferente, enfim, fazer a esse outro aquilo que desejamos
da compreensão do texto. E será interessante dar seja feito a si próprios. Questões relativas à cidadania,
a cada criança a oportunidade de manifestar a sua ao meio ambiente, à xenofobia, estas e outras podem
interpretação. Tenho o vídeo de uma menina de dois ser levantadas e gerar debates, murais, dramatizações.
anos e meio que “decorou” o texto e vai folheando o livro A mesma criança pequena que citei, ao chegar
como se lesse. A certa altura, para e aponta com o dedo, à última página do livro, exclamou, enquanto
por exemplo, os botões que representam a indiferença, procurava com o indicador: “Deixa eu ver qual sou
dizendo: “este aqui não quis entrar”. Ou, na página eu!” Escolheu um dos botões e demonstrou, assim,
do medo: “olha, ele está com medo!”, diz indicando o um perfeito entendimento da mensagem final,
pequeno botão “encolhido” no canto escuro da página. já que se incluiu entre aquele “mundo inteiro”.
Com os maiores, acho que é praticamente ilimitada a

27 {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018


{VITRINE}

PEREGRINOS E PEREGRINAÇÃO NA IDADE MÉDIA


Susani Silveira Lemos França, Renata Cristina de
Souza Nascimento e Marcelo Pereira Lima |
Vozes | 2017 | 212 p.

Este livro faz parte da série “A Igreja na História”,


da editora Vozes. Cada um dos autores de Peregrinos
e peregrinação na Idade Média é responsável por
um dos capítulos, que são, na verdade, estudos e
ensaios independentes, mas que guardam uma
forte noção de todo. Susani Silveira Lemos França,
professora livre-docente em História Medieval na
Unesp, tece no capítulo de abertura “Peregrinos
e centros de peregrinação” narrativa instigante
sobre a história quase milenar durante o período
medieval de sucessivas peregrinações e destacados
peregrinos, desde a aristocracia romana, levando
o leitor a conhecer os mais diversos perfis de
peregrinos (monges, armados, letras e urbanos) e
os principais lugares de peregrinação (Jerusalém,
Roma, Santiago de Compostela). O segundo
capítulo, “Nos passos de Cristo e de seus apóstolos
– relatos de viagem e peregrinações”, Renata
Cristina de Souza Nascimento, professora da UFG,
ocupa-se da peregrinação na Antiguidade Tardia,
relembrando a figura de Augusta Helena, mãe
do Imperador Constantino, e sua peregrinação à
Palestina. Renata Nascimento recupera o relato de
Etéria na rota das cenas bíblicas, escrito após o ano
360, bem como outras narrativas, tal qual O livro das
maravilhas, de Marco Polo. Outro ponto de destaque
da reconstrução da figura de São Luís, considerado
como um dos maiores reis-peregrinos. O volume
se encerra com o estudo de Marcelo Pereira Lima,
professor da UFBA. Tem como enfoque a ambiência
jurídica que cercava a figura do peregrino, para
ampliar a visão sobre o direito medieval.

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