Vous êtes sur la page 1sur 189

Revista África[s], v. 04, n. 08, 189 p., jul./dez.

2017
ISSN 2446-7375

Revista África(s)
Núcleo de Estudos Africanos — NEA
Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras – PPGEAFIN
Universidade do Estado da Bahia — UNEB, Campus I, Salvador

Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Estudos Africanos e Representações da África


Universidade do Estado da Bahia — UNEB, Campus II, Alagoinhas
Núcleo de Estudos Africanos — NEA
Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras – PPGEAFIN
Unidade Acadêmica de Ensino a Distância (UNEAD), Campus I
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Av. Engenheiro Oscar Pontes s/n, Calçada, (Edf. Jequitaia) – 5º andar – Salvador/BA
CEP: 40411-220

Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos e Representações da África


Departamento de Educação, Campus II
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Rodovia Alagoinhas-Salvador BR 110, Km 3 – CEP 48.040-210 Alagoinhas/BA
Caixa Postal: 59 – Telefax.: (75) 3422-1139
Endereço eletrônico: estudosafricanosuneb@gmail.com

Editores gerais deste número:


Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima
Prof. Ms. Cândido Domingues

Capa e Editoração eletrônica:


Lino Greenhalgh

Revisão linguística:
Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima
Profa. Dra. Alyxandra Gomes Nunes

Revisão (resumos inglês):


Profa. Dra. Alyxandra Gomes Nunes

Sítio de internet:
www.revistas.uneb.br
www.revistas.uneb.br/index.php/africas

Ficha Catalográfica — Biblioteca do Campus II/UNEB – Bibliotecária: Maria Ednalva Lima Meyer (CRB: 5/504)

África(s): Revista do Núcleo de Estudos Africanos, do Programa de Pós-Graduação em


Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras – PPGEAFIN e do Programa de
Pós-Graduação em Estudos Africanos e Representações da África, Universidade do Estado
da Bahia – v1,
(v 04 - n.8, jul./dez., 2017) – Salvador/Alagoinhas: UNEB, 2017
v.; il.
Semestral
ISSN 2446-7375 online

1.Negros -História 2.África - Civilização 3. Brasil -Civilização – Influências africanas

4.Negros – Identidade racial 5. Cultura afro-brasileira

CDD305.89

© 2017 do Núcleo de Estudos Africanos da UNEB

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora. Todos os direitos reservados
ao Núcleo de Estudos Africanos, ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas
Negras (PPGEAFIN) – e ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos e Representações da África da UNEB.
Sem permissão, nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios
empregados.
Revista África(s), do Núcleo de Estudos Africanos, do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas
e Culturas Negras (PPGEAFIN) - e do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Estudos Africanos e Representações da
África, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus II, AIagoinhas, ISSN 2446-7375 online, v. 4, n. 7, jan./jun.
2017. Disponível em: www.revistas.uneb.br/index.php/africas

Editores: Docentes:
Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima Profa. Dra. Celeste Maria Pacheco de Andrade
Prof. Dr. Moiseis de Oliveira Sampaio (UNEB/DEDC II)
Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho Prof. Dr. Detoubab Ndiaye
Prof. Ms. Cândido Domingues (UNEB/DEDC II)
Prof. Dr. José Jorge Andrade Damasceno
Conselho científico: (UNEB/DEDC II)
Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima
Amarino Queiroz (UFRN)
(UNEB/DEDC II)
Bas’Ilele Malomalo (UNILAB/CE)
Profa. Dra. Joceneide Cunha dos Santos
Carlos Liberato (UFS)
(UNEB/DCHT XVIII)
Celeste Maria Pacheco de Andrade (UNEB, UEFS)
Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho
Christian Muleka Mwema (UNISUL) (UNEB/DEDC I)
Eduardo de Assis Duarte (UFMG)
Prof. Dr. Moiseis de Oliveira Sampaio
Elio Ferreira (UESPI) (UNEB/ DCH IV)
Elio Flores (UFPB)
Eliziário Souza Andrade (UNEB) Coordenação do Programa de Pós-Graduação
Felix Odimiré (University Ife/Nigeria)
em Estudos Africanos, Povos Indígenas e
Flavio García (UERJ)
Flávio Gonçalves dos Santos (UESC)
Culturas Negras PPGEAFIN:
Gema Valdés Acosta (Universidad Central de Las Villas Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima
— UCLV/Cuba) (UNEB/DEDC II)
Ibrahima Thiaw (Institut Français d´Afrique Noire —
Ifan/UCAD/Senegal) Professores permanentes:
Isabel Guillen (UFPE)
Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho - UNEB/ DEDC I
Jacques Depelchian (UEFS)
Prof.º Dr.º Francisco Alfredo Morais Guimarães - UNEB/ DCH I
João José Reis (UFBA) Prof. Dr. Ivaldo Marciano França Lima - UNEB/ DEDC II
João Lopes Filho (Universidade Pública de Cabo Verde) Prof.º Dr.º José Jorge Andrade Damasceno - UNEB/ DEDC II
Júlio Cláudio da Silva (UEA/ AM) Prof.º Dr.º Detoubab Ndiaye - UNEB/ DEDC II
Jurema Oliveira (UFES) Prof. Dr. Moiseis de Oliveira Sampaio - UNEB/ DCH IV
Leila Hernandez (USP) Prof. Dr. Jackson André da Silva Ferreira - UNEB/ DCH IV
Lourdes Teodoro (UNB) Prof.º Dr.º Valter Gomes de Oliveira - UNEB/ DCH IV
Luiz Duarte Haele Arnaut (UFMG) Prof. Dr. José Carlos de Araújo Silva - UNEB/ DCH IV
Mamadou Diouf (UCAD/Senegal; Columbia University/EUA) Prof.ª Dr.ª Cristiane Batista Da Silva Santos - UNEB/ DEDC XIII
Marta Cordiés Jackson (Centro Cultural Africano Prof.º Dr.º Francisco Eduardo Torres Cancela - UNEB/ DCHT XVIII
Fernando Ortiz/Cuba) Prof.ª Dr.ª Joceneide Cunha dos Santos - UNEB/ DCHT XVIII
Mônica Lima (UFRJ) Prof.ª Dr.ª Juliana Barreto Farias - UNILAB/Campus dos
Patricia Teixeira Santos (UNIFESP) Malês (BA)
Raphael Rodrigues Vieira Filho (UNEB) Prof.º Dr.º Karl Gerhard Seibert - UNILAB/Campus dos Malês (BA)
Rosilda Alves Bezerra (UEPB) Prof.º Dr.º Pedro Acosta Leyva - UNILAB/Campus dos Malês (BA)
Roland Walter (UFPE) Prof. Dr. Roberto Mauro Cortez Motta - UFPE
Severino Ngoenha (Universidade São Tomás de
Moçambique — USTM) Professores colaboradores:
Tânia Lima (UFRN) Prof. Dr. Pedro Abelardo
Yeda Castro (UNEB) Prof.ª Dr.ª Cecília Soares
Youssouf Adam (Unversidade Eduardo Mondlane/ Prof.ª Dr.ª Maria Hilda Baqueiro Paraíso
Moçambique)
Venétia Reis (UNEB)
Zilá Bernd (UFRGS, Unilasalle)
Apoio:
Universidade do Estado da Bahia — UNEB
Reitor: Prof. MS José Bites de Carvalho
Coordenação do Programa de Pós- Vice-Reitora: Profa. Dra. Carla Liane Nascimento Santos
Graduação em Estudos Africanos e Pró-Reitor de Pós-Graduação: Prof. Dr. Tania Maria Hetkowski
Representações da África (PPGEAF): Diretora DEDC II: Profa. Dra. Áurea da Silva Pereira Santos
Diretor da UNEAD: Prof. Dr. Jader Cristiano Magalhães de
Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima (UNEB/DEDC II) Albuquerque
Sumário
5 Apresentação
8 DOSSIÊ: “HISTÓRIAS DA ÁFRICA E DA ESCRAVIDÃO NO ATLÂNTICO”
Cândido Domingues; Carlos da Silva Jr.
11 OS “PREGADORES DO ALCORÃO DE MAFOMA” E AS MISSÕES EUROPEIAS
NA SENEGÂMBIA: DESAFIOS ISLÂMICOS AO PROSELITISMO CATÓLICO,
SÉCULO XVII
Thiago Henrique Mota
32 “NÃO CONVÉM NEGRO SEM AMO”: ESCRAVOS, ÍNDIOS E JESUÍTAS NAS
FAZENDAS DA COMPANHIA DE JESUS NA CAPITANIA DE SÃO JOSÉ DO
PIAUÍ, 1750-1800
Mairton Celestino da Silva
46 DE GBE A IORUBÁ: OS PRETOS MINAS NO RIO DE JANEIRO, SÉCULOS
XVIII–XX
Juliana Barreto Farias; Mariza de Carvalho Soares
63 TRAVESSIAS A CAMINHO – TRÁFICO INTERPROVINCIAL DE ESCRAVOS,
BAHIA E SÃO PAULO (1850-1880)
Maria de Fátima Novaes Pires
79 A ESCRAVIDÃO MODERNA: OBJETOS, LÓGICAS E A FORMAÇÃO
HISTÓRICA BRASILEIRA
Josenildo de J. Pereira
91 MODALIDADES TRADICIONAIS AFRICANAS DE CAPTURAS PARA O
TRÁFICO NEGREIRO
Pedro Acosta-Leyva
104 A PRODUÇÃO NECESSÁRIA DAS INTELECTUAIS FEMINISTAS AFRICANAS
NO CAMPO DOS ESTUDOS DE GÊNERO E A AGÊNCIA DO CODESRIA
Michelle Cirne
115 PERCURSOS ETNOGRÁFICOS EM NARRATIVAS COM MULHERES
AFRICANAS EM SÃO PAULO: ATIVIDADES COMO POSSIBILIDADES
ECONÔMICAS
Miki Takao Sato
141 “NÃO SOU RACISTA, MAS...”: MOTIVAÇÕES LINGUÍSTICAS E HISTÓRICAS
DA PROVERBIAL RETÓRICA À BRASILEIRA PARA A NEGAÇÃO DO
RACISMO
Paulo Sérgio de Proença
156 HIBRIDISMOS, SINCRETISMOS E OUTRAS MILONGAS: ALTERNATIVAS
CULTURAIS NA SOBREVIVÊNCIA DO CULTO DOS ORIXÁS NO CANDOMBLÉ
CARIOCA
Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas
181 SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS E O COLONIALISMO
PORTUGUÊS EM ANGOLA
Mariana P. Candido
184 JIHĀD E REVOLUÇÃO NAS DUAS MARGENS DO ATLÂNTICO
Bruno Rafael Véras de Morais e Silva
188 OBJETIVO E POLÍTICA EDITORIAL

4 Revista África(s), v. 04, n. 08, jul./dez. 2017


Ivaldo Marciano de França Lima

Apresentação do mundo, bem como de temas alusivos aos


negros e do que se convencionou nomear por
“suas” práticas e costumes.
Quatro anos de África(s)! Com muito entu- Nas páginas deste periódico passaram
siasmo, bom humor, sorrisos e determinação autores em diferentes níveis de carreira. Ti-
conseguimos construir um periódico reunin- vemos nomes de repercussão internacional,
do autores para refletirem sobre temas di- bem como aqueles que ainda se encontram
versos alusivos ao continente africano, suas em vias de consolidação. Por nossas páginas
representações, ou mesmo aspectos da His- desfilaram, como diria o locutor das passare-
tória dos negros brasileiros. Afinal de contas, las dos concursos carnavalescos do Recife (o
se em nosso programa de pós-graduação há célebre Lima Neto), autores dignos de serem
colegas que defendem o uso conceitual da comparados a maracatus nação de primeira
categoria raça, em meio aos que não vêem categoria, e outros que ainda se encontram
validade no mesmo, por que não fazer com nos grupos intermediários. Poderíamos dizer,
que estas divergências tomem as páginas de em outro jargão, que nesta passarela passea-
nosso egrégio periódico? Há os que vêem os ram as poderosas escolas de samba do gru-
negros como descendentes dos povos africa- po especial, e outras da divisão de acesso. Os
nos, assim como também há os que enxer- olhares, para além dos níveis de experiência,
gam a descendência como algo construído, constituem traços fundamentais para a cons-
entendido como construção cultural... Sim, tituição das traduções que devemos realizar,
pelas nossas páginas autores diversos es- com o intuito de desvendar (ou interpretar,
creveram linhas defendendo a ideia de que como queiram) os fenômenos e eventos que
o conceito de raça não pode ser tomado de permeiam as relações humanas. Afinal de
outra forma que não seja pelos aspectos bio- contas, para que servem os estudiosos, se não
lógicos. Houve também quem mostrasse que para refletirem e traduzirem estes fenôme-
este, para além das marcas naturais, também nos? Sim, olhares múltiplos e contribuições
traz consigo as balizas da cultura. A polêmica diversas! E nós esperamos receber outras
continua! E o debate também, sobretudo por tantas, pois a polêmica contribui e propicia
que estamos em vistas de manter nossas ati- a construção do conhecimento, deslocando-o
vidades cada vez mais presentes entre aque- para novos formatos, como diria o ilustre Mi-
les que se dedicam aos Estudos Africanos, ou chel de Certeau.
ao que se convencionou nomear por Estudos Este volume é o segundo da era “perió-
Raciais. Eis uma das principais razões para dico de programa de pós stricto sensu”. Até
termos construído programas de pós-gra- então nossa revista servia aos propósitos de
duação em dois níveis, um na esfera lato, e nosso programa de pós-graduação lato sen-
outro em stricto sensu. Muito trabalho nos su. O acúmulo dos trabalhos e crescimento
espera, em meio às divergências, polêmicas da equipe propiciou as modificações atuais.
e debates, travados no bom estilo da acade- O plantel foi reforçado com contratações
mia, regados à erudição e paciência. Nesse de peso, como diria o ilustre Silvio Ferrei-
sentido, nossas páginas terão, assim espe- ra, um dos mais destacados dirigentes de
ramos, outros tantos artigos sobre a história um dos maiores clubes de futebol do Nor-
do continente africano, dos seus povos, das deste, o Santa Cruz do Recife, e docente do
representações da África em outras partes Departamento de Psicologia da UFPE. Tive-

Revista África(s), v. 04, n. 08, jul./dez. 2017 5


Apresentação

mos a incorporação da ilustre Dra. Alyxan- almejar contratação pelos clubes de primei-
dra Gomes Nunes, responsável pela revisão ra linha. O dossiê, reunindo artigos sobre
dos textos na língua inglesa. Sua presença é a escravidão atlântica, tem em seu escrete
igual à de um bom zagueiro, que não apa- “atletas de primeira grandeza”, como Thia-
rece tanto nos comentários esportivos, mas go Mota, da UFMG; Mairton Silva, da UFPI;
tem fundamental importância para o êxito Juliana Farias da UNILAB (BA) e colega de
de uma equipe. Maura Icléia Castro, biblio- nosso programa de pós-graduação; Mariza
tecária e responsável pelas indexações, é a Soares, da UFF e Maria de Fátima Pires, da
nossa ponta direita. Faz as jogadas, arma UFBA. Os comentários sobre o dossiê serão
o contra ataque e segura as oportunidades feitos logo a seguir, na apresentação do mes-
para o centroavante finalizar no fundo das mo, por seus organizadores.
redes. Com ela temos vencido jogos de go- O volume tem ainda a participação de ou-
leada! Lino Greenhalgh, nosso diagramador tros “atletas”, ao estilo de Josenildo Pereira,
e também revisor, é o ponta esquerda desta da UFMA, que traz uma instigante discussão
equipe, que junto com Maura garante sem- sobre a escravidão moderna, e os desdobra-
pre os três pontos na “casa do adversário”. mentos que culminaram na formação da so-
O time se completa com as ilustres figuras ciedade brasileira. O autor faz uma procla-
dos doutores Moiseis Sampaio e Raphael mação imperiosa: é preciso desracializar os
Rodrigues, editores desta revista, e centroa- estudos sobre o tráfico Atlântico. Na sequên-
vantes renomados, do calibre de ilustres cia, “sem deixar o jogo esfriar”, Pedro Leyva,
jogadores (como Grafite, Marcelo Ramos e da UNILAB (BA) e também integrante deste
Cláudio Adão, dentre outros), bem como de programa de pós-graduação, joga pelo meio,
nosso “meio campista” Cândido Domingues, com rapidez, e discute sobre as formas como
também editor e que no momento se encon- eram capturados homens e mulheres nas
tra em terras portuguesas, fazendo inveja a diferentes regiões do continente africano.
Cristiano Ronaldo e sendo cobiçado pelos O debate por ele entabulado mostra que as
técnicos Mourinho e Guardiola. A equipe representações sobre a escravidão atlântica
também tem neste missivista seu apoio nos ainda estão longe de se tornarem simples
bastidores, como uma boa torcida que apóia peças de análise, ou eventos ocorridos em
e incentiva nos momentos difíceis. Juntos, um passado distante. Estas representações
somos aqueles que seguram as pontas de ainda movem energias e emoções, tal qual
um “clube de futebol com poucos recursos”, o clube que está jogando para vencer, sem
e que ainda está galgando espaços nas di- dispor da condição simples do empate!
visões inferiores, mas que dispõe de muita Michelle Cirne, da UNILAB (campus
habilidade técnica e carisma junto a sua tor- Redenção – CE) nos brinda com excelente
cida. Somos a África(s)! trabalho sobre a análise da produção inte-
E como não deveria deixar de ser, para lectual de mulheres do continente africano
este volume trazemos mais um plantel de no âmbito dos Estudos Africanos e de gêne-
primeira, de deixar com inveja as torcidas do ro. Suas conclusões mostram como ocorrem
Santa Cruz, Bahia, Vitória e Corinthians. O os processos de invisibilização das questões
dossiê, organizado pelos craques Carlos Silva alusivas às mulheres africanas, e de como
e Cândido Domingues, traz os trabalhos de suas temáticas perdem visibilidade nestas
gente de peso, com expertise suficiente para áreas do conhecimento. Miki Sato, mestre

6 Revista África(s), v. 04, n. 08, jul./dez. 2017


Ivaldo Marciano de França Lima

em Terapia Ocupacional, e notável colabo- O volume tem, portanto, artigos de au-


radora da Casa das Áfricas (Núcleo Ama- tores das mais variadas áreas do conhe-
nar), joga com a torcida, faz embaixadas e cimento, respaldando África(s) como um
tabela com exímia maestria, discorrendo periódico dotado de rara perspectiva inter-
sobre mulheres de diferentes países do con- disciplinar, recurso imprescindível para a
tinente africano que vivem em São Paulo. análise de fenômenos que se relacionam
Seu trabalho mostra como estas mulheres com os Estudos Africanos, Representações
encetam diferentes discursos e ações, prota- da África, ou mesmo aspectos voltados para
gonizando estratégias diversas para o quoti- as práticas e costumes de homens e mulhe-
diano paulista, unidade mais rica deste país res nascidos no Brasil, mas que possuem
chamado Brasil. identidades múltiplas e estão inseridos em
O jogo segue, e agora a bola está com complexas redes de sociabilidade. Como di-
Paulo Sérgio Proença, que em belíssimo ria Obenga em célebre artigo, não há como
“overlaping”, mostra a existência de pro- abrir mão da interdisciplinaridade para
blemas relacionados à convivência entre os compreender os eventos ocorridos no con-
brasileiros de cores diversas a partir da fra- tinente africano. Ao que nos parece, esta ge-
se enigmática “Eu não sou racista, mas...” O ração de estudiosos, aos quais incluiríamos
autor discute diferentes sentidos para esta também Cheik Anta Diop, Joseph Ki-Zerbo,
oração, tomando como parâmetro metodo- Amadou Hampatê Bá, Boubacar Barry, den-
lógico uma competente revisão bibliográfi- tre outros, nos ensinou que o alargamento
ca, mostrando as entrelinhas do texto que da ideia de fontes, objetos e perspectivas, no
teria como sentido, a princípio, a negação campo da História, também é tributário do
de algo que em tese está, conforme o artigo, continente africano. Estes nomes, se compa-
mais do que nunca presente na sociedade rados numa perspectiva metafórica, ao fute-
brasileira. Ainda no tempo regulamentar da bol, possuem a grandeza da equipe formada
partida, temos o belo artigo de Dulce San- pelo Santa Cruz no ano de 1975. Dotado de
toro e Cláudio Cavas, escrito a quatro mãos intensa substância, genialidade e maestria,
em uma dupla que lembra as jogadas magis- poucos se lembram dos feitos deste plantel,
trais de Tostão e Pelé, nos áureos tempos do que por pouco não foi campeão brasileiro
escrete brasileiro. Tendo como tema as reli- daquele ano. Situação análoga aos trabalhos
giões que tem na possessão um dos seus ápi- dos ilustres historiadores que publicaram
ces, os autores discorrem em exímia pers- artigos geniais e magistrais na coleção His-
pectiva interdisciplinar sobre os diferentes tória Geral da África, para o qual devotamos
contextos de transformação, ressignificação aqui nossas homenagens.
e contextualização de fenômenos religiosos O jogo está nos momentos finais, e convi-
ainda carentes de análises e estudos à altura damos você, estimado leitor, a vibrar conos-
de sua importância em nossa sociedade. co, pois a vitória está próxima, e África(s)
Ao fim do volume, duas resenhas de li- caminha para o acesso, subindo para divi-
vros fundamentais para os que se arvoram sões mais nobres dos periódicos brasileiros.
na seara dos estudos sobre a escravidão
atlântica, que tal qual o grito de gol, insiste
em se manter na crista da onda dos historia- Ivaldo Marciano de França Lima
dores e cientistas sociais em geral. Editor de África(s).

Revista África(s), v. 04, n. 08, jul./dez. 2017 7


Dossiê: “Histórias da África e da Escravidão no Atlântico”

DOSSIÊ: “HISTÓRIAS DA ÁFRICA E DA


ESCRAVIDÃO NO ATLÂNTICO”

Cândido Domingues*
Carlos da Silva Jr.**

A historiografia da escravidão é uma das peus e das Américas na disputa pelo merca-
áreas mais ricas e dinâmicas da historio- do de escravos e pela interiorização de sua
grafia brasileira. Desde a década de 1980, presença no continente (principalmente
os historiadores têm investigado a vida dos antes do século XIX). Enfim, o diálogo en-
escravos (e libertos), africanos ou nascidos tre as duas historiografias tem sido profí-
no Brasil, a formação de famílias escravas, o cuo e proveitoso.
processo de construção de identidades étni- No presente número da revista África(s),
cas na diáspora, a agência escrava e formas o leitor terá a chance de conhecer algumas
de resistência à escravidão, entre outros te- abordagens acerca da escravidão no atlân-
mas. O resultado desse interesse na história tico escravista. Os artigos do dossiê, escri-
da escravidão no Brasil, que de alguma ma- tos por historiadores de referência em suas
neira explica alguns dos dilemas brasileiros áreas de pesquisa, exploram os diferentes
contemporâneos, pode ser visto nas disser- contornos e dimensões do escravismo bra-
tações de mestrado e teses de doutorado sileiro ao longo do séculos XVII e se esten-
apresentadas anualmente nos diversos pro- dem até as primeiras décadas do século XX,
gramas de pós-graduação país afora. quando a escravidão já tinha sido extinta,
Ao mesmo tempo, a nossa historiogra- mas os últimos africanos e seus descenden-
fia beneficia-se do diálogo com a produção tes enfrentavam os seus nefastos efeitos. De
historiográfica internacional, sobretudo forma geral, o dossiê envolve questões va-
aquela relacionada à História da África e riadas, de múltiplos temas e momentos da
as dinâmicas mercantis – leia-se, o tráfico história da África, dos africanos e seus des-
de escravos, mas não apenas – na África cendentes através do Atlântico. Da história
pré-colonial. Similarmente, a historiografia africana, passando pela escravidão no Piauí
brasileira da escravidão tem influenciado colonial, da diáspora ocidental para o Rio de
a maneira como os historiadores da África Janeiro, e o sistema de redistribuição de es-
abordam a história do continente, sobretu- cravos no Brasil oitocentista, esse dossiê ilu-
do no que tange à agência das populações mina diferentes perspectivas sobre o estudo
africanas às investidas dos traficantes euro- da escravidão no atlântico.

* Professor Assistente, Colegiado de História, Departamento de Ciências Humanas IV, Universidade do


Estado da Bahia. Este trabalho foi desenvolvido no âmbito da bolsa de investigação atribuída pelo CHAM
– NOVA FCSH – UAc, ao abrigo do projeto estratégico financiado pela Fundação para a Ciência e Tecno-
logia - UID/HIS/04666/2013.
** Mestre em História Social pela UFBA. Doutorando em História pela University of Hull, Inglaterra, com
apoio de bolsa Marie Curie. carlos.ufba@gmail.com

8 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 08-10, jul./dez. 2017


Cândido Domingues; Carlos da Silva Jr.

Abrindo o dossiê, Thiago Motta, douto- do Maranhão, principalmente durante a vi-


rando em História da África pela UFMG, gência da Companhia Geral de Comércio do
analisa os projetos e as dificuldades enfren- Grão-Pará e do Maranhão. Entretanto, nota
tadas pelos portugueses em seu projeto de o autor, maior atenção deveria ser dada ao
catequização e difusão da fé católica entre os papel da Bahia no abastecimento de áreas
africanos da Senegâmbia, na chamada Alta do sertão da América portuguesa, como o
Guiné. O autor destaca ainda a importância Piauí. Na parte final do artigo, Celestino
das rotas de peregrinação a Meca e as rotas analisa as diferentes estratégias dos escra-
comerciais do interior do continente, como vos para forçar “espaços de respiração” e
a rota da noz de cola, no fortalecimento do autonomia no interior daquela sociedade
Islã e dos laços políticos e religiosos de esta- escravista, inclusive a oportunidade de for-
dos desde a costa Atlântica até a Península mação de famílias entre os “parentes de na-
Arábica. Como ressalta o autor, a empreitada ção”, quando possível.
católica na África “evidencia-se um desafio As nações africanas são o objeto do arti-
religioso e político, com dimensões geopolí- go de Mariza de Carvalho Soares e Juliana
ticas em escala global”. O texto de Mota vem Barreto Farias, esta professora da UNILAB,
ampliar uma crescente historiografia sobre aquela docente da Universidade Federal Flu-
a África islâmica, ainda pouco conhecida en- minense. Mais precisamente, as autoras in-
tre a comunidade acadêmica brasileira, cujo vestigam a configuração étnica da população
interesse tem crescimento juntamente com ocidental no Rio de Janeiro no século XIX,
a ampliação dos programas de pós-gradua- conhecida como “minas” na documentação.
ção em história da África, bem como com as Do ponto de vista da demografia do tráfico
bolsas de estudos em outros países. atlântico para o Rio oitocentista, os afro-oci-
O artigo seguinte, de Mairton Celestino dentais eram numericamente inferiores aos
da Silva, da UFPI, lida com a escravidão centro-ocidentais. Entretanto, essa popula-
nas fazendas jesuíticas do Piauí na segun- ção mina destacava-se em certas áreas, como
da metade do século XVIII. A partir de um o mercado de rua e nas alforrias. Do ponto
conjunto variado de fontes – cartas régias, de vista étnico, os afro-ocidentais passaram
listas demográficas, registros de batismos e por uma transformação: de uma população
casamentos –, o autor lança luz sobre a or- gbe (presente principalmente nos territórios
ganização do cativeiro – primeiro indígena, do Togo, Benim e parte da Nigéria), a nação
depois a escravidão de africanos – nas pro- “mina” no Rio converter-se-ia, majoritaria-
priedades de gado dos jesuítas. O estudo de mente – embora não unicamente – em io-
Mairton Celestino é importante por diversas rubá, os conhecidos nagôs da Bahia. Nesse
razões: ele aborda o escravização de indíge- sentido, o texto é uma importante análise
nas e seu papel na organização escravista sobre a construção de identidades étnicas
dessas fazendas na virada do século XVII na diáspora, demonstrando como essas
para o XVIII. Ademais, o autor demonstra fronteiras étnicas eram fluidas. Soares e Fa-
como a escravidão africana via tráfico ne- rias explicam essa mudança a partir da de-
greiro desempenhou um papel crucial no mografia do tráfico atlântico no século XIX,
fornecimento de escravos para o Piauí. Esta pela migração de iorubás oriundos da Bahia
demanda por braços africanos era abasteci- – principalmente após o levante dos malês
da principalmente pelo comércio negreiro em 1835 – bem como por rotas do comér-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 08-10, jul./dez. 2017 9


Dossiê: “Histórias da África e da Escravidão no Atlântico”

cio atlântico que ligavam o Rio de Janeiro que lança luz sobre as dinâmicas entre as
à Costa da Mina. As historiadoras abordam autoridades africanas locais – os sobas – e
ainda a vida dos últimos africanos minas na as autoridades portuguesas em Angola du-
cidade do Rio de Janeiro na virada do século rante dois séculos. Como a resenhista res-
XX, os estereótipos que recaíam sobre eles salta, um dos pontos altos da obra é colocar
nos jornais da época, as rivalidades religio- os africanos no centro da análise. “Por sua
sas entre os diferentes grupos – os adeptos contribuição metodológica e seu constante
da religião dos orixás e os seguidores do Islã. diálogo com as fontes manuscritas e im-
O artigo final, de autoria de Maria de Fá- pressas, o livro deve ser lido por historia-
tima Novaes Pires, professora da Universi- dores interessados em como descolonizar o
dade Federal da Bahia, trata de um momen- passado”, nota Candido.
to importante da história da escravidão: o A outra resenha, de Bruno Véras, dou-
tráfico interprovincial, que ganha muscula- torando em História da África pela York
tura principalmente após o fim do tráfico em University, no Canadá, discute o mais re-
1850. Em seu artigo, Fátima Pires apresenta cente livro de Paul Lovejoy, Jihad in West
alguns dados sobre a demografia dessa mi- Africa during the Age of Revolutions.
gração forçada de escravizados – tanto afri- O trabalho, em grande medida fruto de uma
canos quanto crioulos – do sertão da Bahia discussão iniciada na academia brasilei-
para as áreas cafeeiras do oeste paulista. Lá, ra em 2014, analisa a série de revoluções
escravizados e trabalhadores livres pobres, islâmicas no Sudão Central e Ocidental e
imigrantes, conviviam e experimentavam de seu impacto na diáspora africana, princi-
diferentes maneiras, o trabalho nas grandes palmente na Bahia, mas também em Cuba.
propriedades da região. O uso de um núme- Nesse sentido, o Islã tem papel crucial para
ro variado de fontes – autos criminais, regis- o entendimento das transformações em cur-
tros de compra e venda, matérias e anúncios so na África Ocidental e no mundo atlântico
de jornais – permitiu que a autora forneces- na virada do século XIX.
se um quadro amplo da vida e das agruras Fica assim esboçado o conteúdo do dos-
dessa população desterrada – às vezes pela siê. Os organizadores gostariam de agra-
segunda vez – numa nova área escravista, decer aos autores que se comprometeram
as dificuldades impostas por um novo tipo com esse projeto, entregando textos de alta
de regime servil – a escravidão em largas qualidade, contribuindo assim para a difu-
plantations em comparação com o trabalho são dos estudos sobre a história da África
compulsório em pequenas propriedades do e da escravidão nas Américas. Ao mesmo
sertão baiano – e as estratégias de resistên- tempo, agradecemos aos editores da revis-
cia dessa população. ta África(s) pelo espaço para a divulgação
Fechando o dossiê, Mariana Candido, desses artigos, consolidando a revista como
professora da Universidade de Notre Dame, um fórum importante para discussões sobre
nos Estados Unidos, apresenta uma rese- a história africana e da diáspora no mundo
nha de Sobas e homens do rei, livro de atlântico. E aos leitores/leitoras, desejamos
Flávia Carvalho, professora da UFAL, obra uma boa leitura!

10 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 08-10, jul./dez. 2017


Thiago Henrique Mota

OS “PREGADORES DO ALCORÃO DE MAFOMA”


E AS MISSÕES EUROPEIAS NA SENEGÂMBIA:
DESAFIOS ISLÂMICOS AO PROSELITISMO
CATÓLICO, SÉCULO XVII

Thiago Henrique Mota*

Resumo
Neste artigo, analisamos o estabelecimento de missões católicas na costa oci-
dental africana, entre a bacia do rio Senegal e norte da Serra Leoa, no século
XVII. Nossos objetivos são apontar a presença da fé islâmica nesta região
e o modo como ela influenciou nos rumos da missionação católica, seja na
definição de estratégias ou limitação dos resultados esperados. Analisamos
documentação narrativa e epistolar produzidas por jesuítas, franciscanos e
lazaristas, portugueses, espanhóis e franceses. Somam-se tratados e memo-
riais de comerciantes cabo-verdianos, que visitaram a região no mesmo pe-
ríodo. Ao término, argumentamos que o Islã foi um concorrente de peso no
estabelecimento de relações políticas, econômicas e culturais na Senegâm-
bia, atuando no reduzido alcance das missões católicas.
Palavras-chave: Missões católicas, Islã, Senegâmbia, África Ocidental.

Abstract
THE “PREACHERS OF MAFOMA’S KORAN” AND THE EUROPEAN
MISSIONS IN SENEGAMBIA: ISLAMIC CHALLENGES TO CATHOLIC
PROSELYTISM, 17TH CENTURY
In this article, the stablishment of Catholic missions in West African coast is
analysed face to its relations to Islam. The region studied runs from Senegal
River basin to northern Sierra Leone, during the 17th century. The aims are
to highlight the presence of Islamic faith in the region and to understand how
this African Islamic faith influenced Catholic strategies and missionaries out-
comes. This piece is composed by narrative and epistolar sources produced by
Jesuits, Franciscans and Lazarists from Portugal, Spain and France. Moreover,

* Thiago Henrique Mota é doutorando em História Social e História da África na Universidade Federal de
Minas Gerais e na Universidade de Lisboa (cotutela). Investigador do Centro de História da Universidade
de Lisboa. Contato: thiago.mota@ymail.com. Esta pesquisa contou com bolsa oferecida pela FAPEMIG e
com auxílio oferecido pela Cátedra Jaime Cortesão, às quais o autor remete seus agradecimentos.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017 11


Os “Pregadores do Alcorão de Mafoma” e as missões europeias na Senegâmbia: desafios islâmicos ao proselitismo católico,
século xvii

Cape-Verdean treatises and memorials written by traders who visited the same
region at that time are added to these sources. In the end, we argue that Islam
was an important rival to Catholic interests in economic, political, or religious
matters, whose presence reduced missionaires achievements in Senegambia.
Keywords: Catholic missions, Islam, Senegambia, West Africa.

As narrativas europeias dos primeiros con- que no porto de Recife não se faria “nenhum
tatos entre cristãos europeus e muçulmanos fruto na conversão dos naturais, se Deus não
africanos, a partir de meados do século XV, fizesse um milagre” (BRÁSIO, 1979, p.494).
foram amparadas numa perspectiva de uni- Em 1683, o frei Antônio de Trujillo escrevia
versalidade cristã. Luís de Cadamosto, em a D. Pedro II, príncipe regente de Portugal,
1455, pressupunha a superioridade desta re- apresentando-lhe seu memorial sobre a cos-
ligião e a naturalidade da adesão dos africa- ta da Guiné. O frei dizia que “na banda do
nos a ela, alcançada via contágio (BRÁSIO, norte de Cacheu estão os rios Gâmbia e Se-
1958, p.317-318). O navegante português negal” e descrevia o fracasso missionário
Diogo Gomes de Sintra (2002, p.81), almo- na região, afirmando que, lá, a missionação
xarife de Sintra que foi à Guiné em 1456, cristã era muito difícil devido à presença dos
narrou a conversão de um governante local “pregadores do Alcorão de Mafoma”. A reli-
à fé professada na Europa, acompanhada da gião muçulmana, expressa nos termos Mafo-
expulsão do marabu, o pregador muçulma- ma e Mafamede, referentes a Maomé, tinha
no que lhe vivia na corte, e da proibição do larga abrangência social: conforme o missio-
credo islâmica. Tal perspectiva, no entanto, nário, “são inumeráveis os que a professam e
evidenciava certo reducionismo presente a admitem” (BRÁSIO, 1991, p.491).
nas narrativas europeias sobre Islã na Áfri- Ao longo do século XVII, essa percepção
ca, marcadas pelo desconhecimento da ex- predominou entre os missionários que bus-
pansão islâmica ao sul do Saara. Basta lem- caram converter os muçulmanos da Sene-
brar que um dos mais importantes movi- gâmbia ao catolicismo: a barreira religiosa
mentos político-religiosos do Magrebe, que parecia-lhes intransponível. Os jesuítas por-
alcançou e conquistou a península ibérica, tugueses, franciscanos portugueses, espa-
partiu do vale do rio Senegal, no século XI: a tação institucional deste órgão da Cúria Roma-
expansão dos Almorávidas. na, presente no site do Vaticano, a Propagan-
Se os primeiros navegantes sustentaram da Fide teve (e tem) a competência específica
de “coordenar todas as forças missionárias, de
expectativas positivas quanto à conversão proporcionar diretivas para as missões, de pro-
dos africanos muçulmanos ao catolicismo, mover a formação do clero e das hierarquias lo-
cais, de incentivar a fundação de novos Institu-
este projeto mostrar-se-ia, duzentos anos tos missionários e de prover às ajudas materiais
depois, um grande fracasso. Em 1647, o fran- para as atividades missionárias. A recém-criada
ciscano espanhol Diego de Guadalcanal, par- Congregação se transformara, deste modo, o
instrumento ordinário e exclusivo do Santo Pa-
ticipando da missão dos capuchinhos da Pro- dre e da Santa Sé, para o exercício da jurisdição
paganda Fide1 no estado do Caior, afirmou sobre todas as missões e a cooperação missioná-
ria”. Ver http://www.vatican.va/roman_curia/
1 Criada em 1622 pelo Papa Gregório XV, a Con- congregations/cevang/index_it.htm, acesso em
gregação para Evangelização dos Povos ficou co- 20 de julho de 2017. Através desta instituição,
nhecida como Propaganda Fide, uma vez que a o papado buscava resguardar para si a tarefa
tarefa principal atribuída a ela foi a propagação missionária, até então sob alçada dos padroados
da fé católica pelo mundo. Segundo a apresen- régios português e espanhol.

12 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017


Thiago Henrique Mota

nhóis e franceses, além dos lazaristas fran- Henrique Rema e Nuno Gonçalves, sobre os
ceses, compõem as ordens missionárias que franciscanos e os jesuítas, respectivamen-
atuaram ou passaram pela Guiné, no século te, constituem as principais referências no
XVII, e legaram-nos documentos que nos campo de estudos, sendo fartamente docu-
possibilitam investigar o processo de expan- mentados. O foco de ambos está em analisar
são islâmica na África Ocidental, mormen- a atividade religiosa, suas relações com bu-
te na bacia dos rios Senegal e Gâmbia. Tais rocracias régias e desempenho na conversão
fontes são os principais recursos emprega- da população africana. A atuação missioná-
dos nesta pesquisa. Não obstante, as mis- ria é o centro da questão, discutindo os al-
sões religiosas inserem-se num momento de cances e funcionamento das missões, seus
tensões vivido na Europa diante da compe- desafios e as formas como foram encarados.
tição atlântica e da gênese de um sistema in- Assim, Rema e Gonçalves discutem os dile-
ternacional marcado por relações de poder, mas e êxitos missionários rumo à conversão
conflitos bélicos e diplomacia (SUMMA- da população africana, através de marcado
VIELLE, 2006; SANTOS, 2014). As narra- viés religioso. Nesta direção, segue a disser-
tivas produzidas pelos religiosos devem ser tação de Carlene Recheado, com ênfase no
compreendidas a partir de seus lugares de funcionamento da empreitada capucha na
origem e destino, evidenciando conflitos Guiné seiscentista (REMA, 1968; GONÇAL-
entre Coroas, padroado régio e Sé romana; VES, 1996; RECHEADO, 2010).
e entre ordens missionárias. Neste artigo, A missão jesuíta de Cabo Verde (1604-
buscamos analisar as fontes procedentes da 1642, com atuação no arquipélago e na cos-
missionação católica na África no período ta adjacente) esteve no horizonte de análise
Moderno nesta perspectiva e, através dela, de vários pesquisadores, ainda que poucos
discutimos características da expansão islâ- tenham se dedicado à relação dos padres
mica no território africano inacianos com os muçulmanos, na costa
africana (ALMEIDA, 2007; HORTA, 2006;
O Islã e as missões cristãs na HORTA, 2013). Quanto a este ponto, desta-
Guiné: historiografia camos o trabalho de Maria Emília Madeira
Santos e Maria João Soares que, ainda que
A maior parte das pesquisas que se dedica-
não tenham o Islã como objeto, aponta as
ram ao estudo das missões católicas na re-
restrições impostas pelos muçulmanos à
gião da Senegâmbia, entre o rio Senegal e o
atuação missionária católica na costa afri-
norte da atual Serra Leoa, no século XVII,
cana. As autoras destacam os objetivos ci-
manteve o interesse no processo de funcio-
vis da missão na costa, ligada à ocupação da
namento institucional da empreitada mis-
região, e religiosos, sobretudo na conversão
sionária. 2 Os trabalhos dos padres católicos
da população local diante do manifesto de-
2 O período analisado diz respeito à missão jesuí- sinteresse do clero secular de Cabo Verde
ta de Cabo Verde (1604-1642), com jurisdição
sob a costa adjacente, e às missões franciscanas
pelo continente (SANTOS; SOARES, 1995,
das ordens capuchas, que se desenvolveram na partir de 1657) e da Soledade (a partir de 1674),
Guiné a partir de 1633, ao longo do século XVII. respectivamente. Os franciscanos portugueses
Na Guiné do século XVII, houve quatro missões atuaram em Guiné até cerca de 1770 e em Cabo
franciscanas, duas suportadas pela Propaganda Verde aparecem em documentação até 1814
Fide e duas pelo Padroado português: os fran- (REMA, 1968, p.155; PEDRO, 1970; REMA,
ceses (1633-1638) e espanhóis (1646-1686); e 1982; GONÇALVES, 1991; GONÇALVES, 1996;
os portugueses das províncias da Piedade (a RECHEADO, 2010).

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017 13


Os “Pregadores do Alcorão de Mafoma” e as missões europeias na Senegâmbia: desafios islâmicos ao proselitismo católico,
século xvii

p.442). Argumentam que o principal objeto e oferecer formas de jurisprudência. Assim,


da atuação missionária foi o “gentio da Gui- sua pesquisa traz importantes contribuições
né”, em oposição aos muçulmanos, visto que à história dos povos da Guiné, a partir de do-
a presença islâmica na região foi mobilizada cumentação jesuíta e narrativas de comer-
pelos inacianos como um corte operatório: o ciantes cabo-verdianos, ao destacar relações
rio Gâmbia tornar-se-ia a fronteira ao norte entre religiosidade local e culturas políticas
da qual a conversão seria muitíssimo difícil e jurídicas regionais.
devido à atuação muçulmana, mantendo o No tocante aos conflitos e complemen-
foco nas regiões ao sul. taridades entre jesuítas e muçulmanos, o
Em sua contribuição na coletânea His- trabalho de Fernando Amaro Monteiro e
tória Geral de Cabo Verde, Santos e Soa- Teresa Vázquez Rocha aponta relações en-
res identificam, acertadamente, o Islã como tre a missionação cristã e a expansão islâ-
“principal adversário político-religioso do mica. Os autores argumentam haver gran-
cristianismo” a assombrar o imaginário po- de potencial aculturador nas relações entre
lítico europeu, no período em tela. Na pro- Islã e religiões locais na Guiné. E afirmam
moção da fé católica, os inacianos foram que, somado à “existência de um apostola-
confrontados pela expansão islâmica que, do do clerical muçulmano, [o Islã] propagava-
ponto de vista católico, “urgia a todo custo se, comparado ao Cristianismo, a um ritmo
travar, na sua frente de progressão de norte muito mais impressivo já desde o século XV”
para sul, através da constituição de um só- (MONTEIRO; ROCHA, 2004, p.166-167).
lido núcleo cristão que lhe servisse de pon- Contudo, os autores amparam-se em análi-
to de travagem” (SANTOS; SOARES, 1995, se racialista tardia, chegando a afirmar, afi-
p.443). O interesse das autoras, portanto, nados com as teses do Islã Negro dos anos
acompanha a ação jesuíta diante de popu- 1960 e 1970 (TRIAUD, 2014), que as confra-
lações não-muçulmanas, mostrando-se de rias muçulmanas tiveram papel importante
relevada importância na produção historio- na expansão islâmica africana porque “se
gráfica sobre a região à época tratada como adéquam ao substrato negro, vocaciona-
Guiné, na África Ocidental. do para o associativismo de base religiosa,
Em diálogo com esta produção, novas amiúde representado pelas sociedades se-
pesquisas têm discutido relações entre mis- cretas” (MONTEIRO; ROCHA, 2004, p.166-
sões cristãs e religiosidades de experiência 155). Apesar de apontarem a antiguidade da
local, como as religiões autóctones e o Islã. expansão islâmica na região, desde o século
No primeiro caso, destaca-se o trabalho de XV, e suas disputas com as missões católicas
Jeocasta Freitas (2016). Em sua dissertação posteriores, os autores consideram a ques-
de mestrado, a autora partiu de cartas de tão sem mobilizar documentação ou biblio-
padres jesuítas e tratados de comerciantes grafia especializada para sustentar essa hi-
cabo-verdianos para analisar a religião pra- pótese. A discussão que realizam limita-se a
ticada por povos da costa. Em suas conside- observações sobre o fenômeno das confra-
rações, Freitas parte do princípio de que as rias nos séculos XVIII e XIX.
práticas religiosas locais são elementos cen- Outros pesquisadores têm realizado in-
trais para compreensão de formas de socia- vestigações através das fontes missionárias
bilidade, cultura jurídica e solução de con- para compreender questões pertinentes às
flitos, ao orientar o comportamento social sociedades africanas ou luso-africanas, nos

14 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017


Thiago Henrique Mota

campos da economia, cultura, organização e aqueles praticados pelos muçulmanos, no


social e práticas medicinais. Vanicléia San- mercado de bens religiosos que se estabele-
tos (2011) demonstrou as relações de dis- ceu. Estes temas ocupar-nos-ão neste artigo.
puta entre bexerins e jesuítas, destacando o
envolvimento inaciano nas redes de tráfico Estratégias missionárias:
e questões econômicas na África Ocidental rotas e abordagens rumo à
e em Cabo Verde. Peter Mark (2014) con-
frontou cultura material e documentação
conversão
narrativa inaciana e demonstrou como par- A atividade missionária católica, dotada de
te da produção de arte em marfim que se regularidade institucional, foi ensaiada ain-
acreditava decorrente do Benim foi elabo- da no final do século XVI. No ano de 1584,
rada em oficinas localizadas na região das segundo o cronista cabo-verdiano que pro-
atuais Guiné-Bissau, Guiné Conakri e Serra duziu um tratado sobre a costa da Guiné en-
Leoa. Philip Havik (2016), ao estudar sabe- tre 1592 e 1594, André Álvares de Almada,
res medicinais na Guiné, utiliza fontes fran- estiveram em Guinala, às margens do rio
ciscanas, jesuítas, processos inquisitoriais Grande, “obra de quatro ou cinco meses, uns
e outros recursos e demonstra como a ação frades carmelitas descalços, que com o seu
inquisitorial na região expandiu-se durante modo de vida e doutrina faziam grande fru-
a presença franciscana, trazendo conside- to” (BRÁSIO, 1964, p.330). A escolha de Gui-
rações sobre a atuação jesuíta e sua relação nala não era fortuita: a aldeia atraía muitos
com a população e as religiosidades locais. comerciantes portugueses, pois ali acontecia
Nossa reflexão insere-se nesta crescente uma das maiores feiras da região, “na qual
historiografia. A partir de análise da docu- se ajuntam mais de doze mil negros e negras
mentação jesuíta, franciscana e lazarista, (...) e vendem tudo o que naquela terra há e
apontamos o papel que se atribuiu ao Islã das circunstantes, a saber: escravos, roupa,
e avaliamos os impactos da islamização na mantimentos, vacas, ouro, que há nesta ter-
região. Estas fontes foram acessadas através ra algum e fino” (BRÁSIO, 1964, p.328). Há
das coletâneas documentais organizadas por pouca documentação sobre esta missão e,
Antônio Brásio e por Nize Izabel de Moraes, ao que tudo indica, não obteve continuidade
além de pesquisas na Biblioteca Nacional de (REMA, 1967, p.237).
Portugal, Arquivo Histórico Ultramarino e Em 1585, o padre jesuíta Fernão Rebelo
Biblioteca da Ajuda, localizados em Lisboa. escrevia ao padre Geral da Companhia de Je-
Argumentamos que a presença islâmica e a sus, propondo a criação de uma missão em
islamização foram importantes elementos Cabo Verde e na Guiné, com o objetivo de
na estruturação e limitação do escopo das formar sacerdotes e converter os africanos
missões católicas. Seja pela área geográfica ao cristianismo antes de embarcá-los rumo
de atuação, com reduzidas investidas na re- ao Brasil (BRÁSIO, 1979, p.129). Em 1587,
gião do rio Senegal, entendida com perdida padre Sebastião de Morais escrevia ao padre
para a cristandade; seja pelas estratégias Geral jesuíta, Cláudio Aquaviva, reforçando
de abordagem adotadas pelos missionários o pedido de criação de uma missão inaciana
católicos, através de cooptação de muçul- em Cabo Verde dedicada à formação de clero
manos em peregrinação; ou ainda através local. O jesuíta justifica sua proposta a partir
da associação entre objetos e ritos cristãos da formação sacerdotal de um homem jalofo:

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017 15


Os “Pregadores do Alcorão de Mafoma” e as missões europeias na Senegâmbia: desafios islâmicos ao proselitismo católico,
século xvii

Agora anda aqui um sacerdote de nome Juan busca de recursos para edificar uma igreja,
Pinto que neste reino estudou latim e casos distribuir títulos e rendas e coroar aquele
com os nossos, e ainda que de nação jalofa,
governante, nomeado D. Bernardo, e sua es-
é um homem de muito boa prudência, virtu-
de e zelo pelas almas. E movido deste zelo, posa com coroas de prata. De acordo com o
se veio de São Tomé, onde havia um cano- pregador, isto aumentaria a cristandade na
nicato, a fim de alcançar de sua Majestade Guiné. Ademais, o carmelita evidencia a cir-
que o despachasse e lhe desse comodidade culação de notícias sobre as negociações que
de embarcar e comissão para levar dois sa-
aconteciam em Portugal, pela instituição de
cerdotes à costa que tenho dito, para ali se
empregar na conversão das almas (BRÁSIO, uma missão jesuíta na Guiné, e esforçava-se
1964, p.143). para atrair olhares para a ordem que inte-
grava e compartilhava com o bispo, aquela
Em 03 de setembro de 1587, o rei de Por-
dos Carmelitas. Frei Cipriano diz ao bispo
tugal fazia mercê ao padre jalofo João Pinto,
dom frei Pedro Brandão que:
concedendo-lhe sessenta mil réis a cada ano
“enquanto ele estiver e residir nos sertões Dos padres da Companhia que Vossa Se-
nhoria diz venham a esta terra, me alegrarei
da dita Ilha do Cabo Verde e contingentes
muito; também me parece será [bem] fun-
a ela, na conversão dos gentios da dita ilha”
dar nela um Convento da nossa Ordem, pois
(BRÁSIO, 1964, p.153). Além do envio deste dela saiu Vossa Senhoria Ilustríssima para
padre, prosseguia o trâmite burocrático pela Fundador da Cristandade desta terra e bem
efetivação de uma missão religiosa em Cabo é não faltarem frades de Nossa Senhora nela
Verde. Em 1596, o rei de Portugal e Espanha (BRÁSIO, 1964, p.393).
concordava com parecer da Mesa da Cons- Contudo, foi preciso esperar até julho de
ciência e indicava os jesuítas para que ad-
1604, quando teve início a Missão de Cabo
ministrassem um seminário no arquipélago,
Verde, ao desembarcarem quatro jesuítas no
que deveria oferecer serviços religiosos aos
arquipélago. Em 16 de março de 1604, antes
ilhéus e à costa da Guiné (BRÁSIO, 1964,
do início efetivo da empreitada, padre Balta-
p. 385-386). Muito rapidamente, a notícia
zar Barreira, que já havia atuado na missão
chegou à costa africana. No mesmo ano, o
inaciana de Angola, escrevia ao padre Antô-
carmelita frei Cipriano enviava uma carta
nio Mascarenhas em agradecimento por ter
ao bispo de Cabo Verde, D. Frei Pedro Bran-
sido indicado para superior da missão. Em
dão, também carmelita e que se encontrava
sua opinião, tratava-se de importante inicia-
em Lisboa, informando dos avanços que, em
tiva, uma vez que:
atuação individual, havia galgado na Guiné.
Frei Cipriano atuou na reativação da (...) quanto mais notícia tenho de Guiné,
igreja de Nossa Senhora do Vencimento, tanto tenho maior mágoa do desamparo de
tantos milhares de almas, que nenhum co-
em São Domingos. 3 Na carta, informa que
nhecimento têm do benefício inestimável de
o governante de Caió, uma unidade política sua redenção, porque até agora não chegou a
próxima a Cacheu, o teria visitado com sé- eles a luz do santo Evangelho, estendendo-se
quito de 300 pessoas, buscando conversão cada vez mais por aquelas partes a maldita
ao catolicismo. O frei escreveu ao bispo em seita de Mafamede (BRÁSIO, 1968, p.35).

3 "Rio de São Domingos na costa de Guiné…" [pri- A expansão islâmica foi grande concor-
meiras palavras do ms.], posterior a 1606. Au-
tor: Anônimo. In. Biblioteca da Ajuda, cód. 51- rência aos interesses missionários cristãos na
VI-54, fls. 143-144, Lisboa. região por fiar-se em parâmetros análogos,

16 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017


Thiago Henrique Mota

atuando de forma sistemática e com perfil so- de Biguba para ensinar a Doutrina e a ler e
cial aglutinador. As religiosidades locais, por escrever aos meninos, ao que vinham gran-
não usufruírem de um modelo institucional de número deles e se fez mui grande fruto,
de modo que as crianças de colo e que quase
de divulgação, como o catolicismo e o Islã,
não sabiam falar andavam cantando as ora-
devido ao caráter marcadamente familiar ou ções, cousa de que os Portugueses se espan-
regional (ainda que muitos elementos cen- tavam dizendo nunca imaginar que pudesse
trais da vida espiritual fossem compartilha- haver quem ensinasse a doutrina em Guiné,
dos), colocaram outros tipos de resistência porque os Clérigos que lá passam, não vão
aos projetos jesuítas e franciscanos, acen- buscar senão negros e assim se consolam
muito com os de nossa Companhia, porque
tuadamente no campo da política regional
não vão lá buscar mais que almas (...)(BRÁ-
e das relações de dependência. Contudo, na SIO, 1968, p.630).
dinâmica das disputas num cenário multirre-
ligioso, os missionários europeus utilizaram Embora Pedro Fernandes utilizasse de
várias estratégias de cooptação, aplicadas proselitismo estratégico ao afirmar que os
tanto aos muçulmanos quanto aos pratican- jesuítas não se interessavam mais que por al-
tes de religiosidades locais, sobretudo através mas, é sabido o envolvimento dos inacianos
do uso de analogias diante dos ritos pratica- com a economia (SANTOS, 2011), sendo que
dos por bexerins ou jambacoces, os agentes seu enriquecimento em Cabo Verde foi uma
rituais associados ao Islã e às religiosidades das principais críticas da comunidade insu-
locais, respectivamente. lar à ordem. Ademais, Fernandes comple-
Diante do Islã ou das crenças locais, os menta que, sob sua tutela, encontravam-se
missionários buscaram aproximar-se dos 27 meninos, possivelmente filhos da aristo-
governantes e convertê-los. No tocante ao cracia local, tendo em vista os procedimen-
Islã, adotou-se a estratégia de pregar aos be- tos correntes de educação informal vigentes
xerins, quando possível, estabelecendo diá- na região, através dos quais os potentados
logos através da doutrina comum presente locais davam seus filhos a serem educados
na Bíblia e no Alcorão, divulgado na região por outrem, para estabelecer laços sociais,
por estes últimos. A existência de uma cultu- comerciais e políticos (HORTA, 2006, p.
ra religiosa escrita disseminada pela região 407-418). O método empregado pelo jesuíta
foi instrumento utilizado pelos inacianos em potencializava a conversão ao catolicismo ao
sua autopromoção, diante do valor atribuído mesmo tempo em que fortalecia parcerias
ao livro, enquanto objeto de poder místico, entre europeus e africanos, largamente uti-
pelas populações locais. Neste contexto, os lizadas na conformação do tráfico atlântico.
jesuítas estabeleceram uma pequena escola Outra medida, tomada em 1605, foi a eleva-
no porto de Biguba, no atual rio Grande de ção de Cacheu, na costa da Guiné, à condição
Buba, em 1605. Nesta instituição, ensina- de vila, favorecendo os interesses cabo-ver-
vam a doutrina católica, acompanhada das dianos e aumentando a controle burocrático
habilidades de ler e escrever. O responsável da Coroa naquela região.
pela atividade foi o irmão Pedro Fernandes O desenvolvimento do ensino jesuíta
que, em carta de 30 de abril de 1606, infor- em Biguba dava-se em oposição à presença
mava ao padre provincial: muçulmana naquele povoado, que exercia
Eu quando o Padre [Barreira] se foi para a atração sobre a população local, através do
Serra Leoa, fiquei por sua ordem no porto porte de cultura material religiosa, como

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017 17


Os “Pregadores do Alcorão de Mafoma” e as missões europeias na Senegâmbia: desafios islâmicos ao proselitismo católico,
século xvii

edições manuscritas do Alcorão, bolsas de punha o conhecimento religioso de muitos


mandingas (pequenas bolsas de couro con- bexerins. Ademais, a estratégia discursiva
tendo trechos do Alcorão ou outros objeti- adotada por Fernandes objetivava valorizar
vos aos quais se atribuíam poderes curativos o trabalho inaciano junto à costa e oferecer
e protetores) e peças do tasbih – objeto que uma contra-narrativa, através da qual se
se assemelha ao rosário católico, utilizado apresentariam os jesuítas aos povos locais
em orações e meditações. Em carta de ja- destacando o suposto parecer dado por um
neiro de 1605, ou seja, precedente à escola bexerim, personagem que tinha a confiança
organizada por Pedro Fernandes, Baltazar da população. Assim, os inacianos incorpo-
Barreira afirmava, sobre “Biguba, terra dos rariam o papel de “bexerim dos brancos”.
Beafares” que “a terra me tem parecido mui- Também os franciscanos portugueses, na
to bem e o vigor e cores dos portugueses que segunda metade do século XVII, incorpora-
nela residem declaram bem quão sadia é”. E riam elementos de tradução religiosa para
completa apontando o desafio que se avizi- suportar o processo de conversão de popu-
nhava diante da presença islâmica: lações africanas. André de Faro, ao pregar
E se o Senhor for servido que se abra porta na Serra Leoa entre 1663 e 1664, conseguiu
à conversão dos gentios, desejo fundar a fé batizar um homem chamado Bexari – cujo
em um Reino destes, para que dele se esten- nome sugere uma variação do termo bexe-
da a outros. É verdade que um dos maiores rim, talvez mal entendida pelo cronista fran-
inconvenientes que aqui há para isso é haver
ciscano –, um fidalgo detentor de respeito
já neste Reino negros estrangeiros, que tem
ofício semear a maldita seita de Mafamede, político e espiritual em sua comunidade,
mas poderoso é Deus para vencer esta e as ainda que sujeito ao governante local, que
mais dificuldades (BRÁSIO, 1968, p.58-59). se havia convertido ao catolicismo. Após ser
pressionado pelo governante, Bexari aceitou
Buscando romper a resistência dos afri-
a conversão e despojou-se de elementos re-
canos muçulmanos ao projeto de evangeli-
ferentes tanto à circulação do Islã como às
zação jesuíta, os inacianos buscaram asso-
religiosidades locais, como as bolsas de man-
ciar sua prática àquela desempenhada pelos
dinga. Ao despir o indivíduo de seus diacrí-
bexerins. Assim, Pedro Fernandes afirmava,
ticos religiosos, André de Faro os substituiu
em 1606, que um bexerim Mandinga, estan-
por patuás cristãos, semelhantes na forma,
do em Biguba, tomou conhecimento dos je-
no uso e no objetivo ao se portá-los:
suítas e, ao retornar à sua terra, teria dito
“aos seus companheiros, que são como Reli- e logo me mandou entregar tudo o que ele
giosos entre eles e lhes disse que eles enga- antes mais estimava, e tudo trazia ao pes-
coço, que eram várias castas de nôminas, e
navam o mundo e não eram Bexerins, mas
bolsas de couro do tamanho de uma mão, e
que o verdadeiro Bexerim era o dos brancos outras de três cantos, muito bem feitas por
que ele vira em Biguba; e que só aquele fa- suas traças e muitos chifres e lavores. E de-
lava verdade” (BRÁSIO, 1968, p.630). A fala pois de me ter entregue tudo, tratei de o ba-
atribuída ao bexerim sugere que este reco- tizar e lhe pus o nome de Ventura (…) Logo
lhe pus umas contas ao pescoço, com sua
nhecia uma competência mística desempe-
medalha, com que ficou muito contente, que
nhada pelos padres católicos, associada ao é a sua insígnia por onde são conhecidos dos
domínio da cultura escrita e ao conhecimen- outros cristãos, e acabando de o batizar, me
to da narrativa bíblica e corânica, que com- pus a dar graças àquele soberano e sapien-

18 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017


Thiago Henrique Mota

tíssimo médico, o qual veio à terra a curar as a maldita seita de Mafoma entre a gente bár-
enfermidades de nossas almas: e subindo ao bara, correm todo o sertão de Guiné e todos
Céu deixou em sua misteriosa botica da Igre- os portos do mar, e assim se não achará ne-
ja, mezinhas saudáveis para curar as nossas nhum porto, desd’os Jalofos, São Domingos,
chagas (…) (FARO, 1945, p.70). rio Grande até à Serra Leoa, que neles se não
achem Mandingas bexerins. E o que levam
O exercício da conversão, tal como pro- para vender são feitiços em cornos de car-
posto pelo franciscano, significava a subs- neiros e nóminas e papéis escritos, que ven-
tituição de objetos referentes às religiosi- dem como relíquias e com vender tudo isso
dades locais, sujeitas à influência islâmica, semeiam a seita de Mafamede por muitas
partes, e vão em romaria à casa de Meca, e
por congêneres cristãos. As nôminas encon-
correm todo o sertão da Etiópia (DONELHA,
tradas eram compostas por “papéis escritos
1977, p.160).
com regras às avessas, que os mandingas lhe
tinham dado, que são uma casta de negros O crescimento do consumo da noz de
feiticeiros a quem eles reverenciam por seus cola procedente da África Ocidental acom-
padres”, além de outros elementos, como panhou o processo de islamização, ofere-
chifres e “panos com sangue tão fresco como cendo dinamismo às economias regionais,
se o tiveram posto àquela hora” (FARO, desde a Serra Leoa aos territórios Hauçás no
1945, p.71). Portanto, ainda que o objeto norte da atual Nigéria. Paul Lovejoy, ao es-
não significasse adesão ao Islã, uma vez que tudar o comércio da noz na África Ocidental,
não é acompanhado de declaração de autoi- nos séculos XVIII e XIX, nota que um dos
dentificação como muçulmano associada a relatos mais antigos sobre o consumo deste
práticas do Islã, sua presença e constituição fruto encontra-se num documento produzi-
evidenciam a amplitude da circulação dos do por al-Ghansani, um médico da corte do
bexerins mandingas. A “escrita às avessas” sultão do Marrocos, Ahmad Al-Mansour,
sugere o alfabeto árabe que, associado aos em 1586 (LOVEJOY, 1980, p.02). Neste
religiosos mandingas, reconhecidos como período, a circulação de mercadorias e pro-
pregadores muçulmanos e comerciantes de dutos entre o Marrocos e a África Ocidental
longa distância no trato da noz de cola, indi- era uma constante: foi na mesma década de
ca os caminhos do Islã na Serra Leoa. 1580 que o sultão marroquino enviou uma
O cronista cabo-verdiano André Done- missão muçulmana ao Songhay, com a pro-
lha, que elaborou um memorial em 1625 posta oficial de promover a fé islâmica, além
dedicado ao governador de Cabo Verde para do objetivo escuso de avaliar a possibilidade
bom-governo da costa adjacente, ratifica de expansão de seu sultanato rumo às ter-
a influência muçulmana naquela região, a ras produtoras de ouro, ao sul (SALDANHA,
confrontar missionários católicos europeus. 1997, p.149).
De acordo com Donelha, saberes islâmicos Ao analisar o papel do Islã no estabele-
eram disseminados pela Guiné através dos cimento de redes mercantis hauçás, Love-
bexerins, na rota da noz de cola, de grande joy argumenta que este credo promoveu a
difusão regional. O cronista afirma: integração de centros comerciais dispersos,
mantendo-lhes a autonomia individual e po-
Há-se saber que os maiores mercadores que
há em Guiné são os Mandingas, em especial
tencializando a incorporação de muçulma-
os bexerins, que são os sacerdotes. Estes, as- nos estrangeiros nas comunidades hauçás.
sim pelo proveito que tiram como por semear A peregrinação a Meca e o sistema educa-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017 19


Os “Pregadores do Alcorão de Mafoma” e as missões europeias na Senegâmbia: desafios islâmicos ao proselitismo católico,
século xvii

cional islâmico são reconhecidos pelo au- destes caminhos, através da recolha oral de
tor como instituições-chave no processo de informações, seja na África ou na Europa, os
expansão islâmica. Lovejoy afirma que “tão missionários franciscanos franceses e espa-
cedo quanto em 1740, pelo menos seis mu- nhóis vinculados à Propaganda Fide viram
çulmanos de Gonja fizeram a peregrinação neles a possibilidade de se aproximarem
a Meca”, colocando comunidades mercantis de indivíduos-chave quando estivessem em
dispersas em contato com o mundo islâmico peregrinação religiosa. Assim, fugindo das
(LOVEJOY, 1980 p.39). Acrescentamos que restrições dos portugueses, que impediam
este processo ocorria com frequência des- a entrada de missionários estrangeiros nas
de muito antes: a documentação portugue- terras sob jurisdição lusa, estes franciscanos
sa evidencia os circuitos de noz de cola, da buscaram alternativas para penetrar o con-
Serra Leoa a Meca, já no final do século XVI tinente africano por outras vias que não a
(MOTA, 2016, p.232; 306-308). costa ocidental e, de forma complementar,
Na Senegâmbia, no entanto, o comércio combater a expansão islâmica. Em carta ao
de noz de cola e sua ligação com Meca foi padre Gaspar de Sevilha, provincial dos ca-
bastante anterior. George Brooks (1980) puchinhos da Andaluzia, o secretário da Pro-
destacou a importância econômica e políti- paganda Fide, Francisco Ingoli, sugeria que
ca do produto, desde o século XV, através o melhor caminho para atingir o Regno Ne-
de fontes europeias, embora fontes ára- gritarum era pela costa ocidental africana.
bes indiquem seu comércio desde o século Contudo, uma alternativa viável, segundo o
XIII, procedente da África Ocidental rumo secretário, era o ingresso através do Cairo.
ao norte do continente, conforme o autor. Interessa observar a estratégia adotada no
Brooks aponta relações entre a economia da ingresso missionário pelo Egito: aprender a
cola e o estabelecimento de estados na Se- língua árabe e cooptar os africanos que lá se
negâmbia, mormente na região produtora, encontravam em busca do aprendizado des-
na atual Guiné Bissau. Allen Howard (2007, te idioma:
83) argumenta que povos falantes de língua
Segundo me parece, julgo acertado enviar
Mande, como os mandingas, produziram, primeiro apenas três missionários com um
transportaram e comercializaram a noz de leigo, para tentar a entrada pelo Cairo, ou
cola, procedente da Serra Leoa e partes vi- por outra parte: e se se puder pela Costa Oci-
zinhas, na Guiné, desde pelo menos, o iní- dental da África, passar por agora, seria o
cio do século XVI. No final do século XVI, o negócio mais seguro. Por outra parte parece
melhor o caminho do Cairo: porque naque-
produto já estava profundamente vinculado
la cidade poderão os missionários ter intér-
à expansão islâmica, através das redes de di-
prete e ainda aprender a língua árabe, que
fusão das escolas corânicas e do exercício da lá entendem. Seria a propósito uma carta do
Peregrinação a Meca, no conjunto dos Cinco Embaixador de Veneza, que reside na corte
Pilares rituais realizados pelos muçulmanos do Rei Católico, para o Cônsul Veneziano em
da região, alcançando também o Magrebe Alepo; e procurar tomar uma casa na Rua
(MOTA, 2016). que no Cairo chamam dos Venezianos, para
fazer dela um hospício para a missão, que
As rotas comerciais sobrepunham-se
servirá para fazer amizade com os Negros, e
àquelas que levavam à peregrinação a Meca outros, que são espécie de Negro, que che-
e aos centros de estudo da doutrina islâ- gam ao Cairo, para aprender a língua Árabe,
mica, no Marrocos ou no Egito. Sabedores e tendo paciência de entreter-se naquela ha-

20 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017


Thiago Henrique Mota

bitação alguns anos inteiros, até que se saiba peito à construção de comunidades católicas
língua e se alcance a entrada (BRÁSIO, 1979, que acolhessem aqueles que abandonassem
p.399). o Islã e se convertessem ao cristianismo. Em
Francisco Ingoli explicita seu conheci- 1683, o frei Antônio de Trujillo descrevia
mento acerca das redes de sociabilidades que aquilo que lhe parecia ser o melhor modo
cruzavam os sertões africanos e permitiam de conseguir a conversão dos africanos. Em
que muçulmanos da Senegâmbia se deslo- seu memorial, o missionário apontava a ne-
cassem até o Egito para aprender o idioma cessidade de se criar meios para congregar
vernacular do Alcorão. Sua estratégia visava os neoconversos nas comunidades cristãs
à aproximação com estes homens, a fim de já estabelecidas. Tal medida era necessária
convertê-los e transformá-los em meio para diante da perseguição que muitos sofriam
acessar as populações de sua região de ori- em suas comunidades de origem, o que os
gem, a África Ocidental. Alternativa seria a distanciava do batismo. Ademais, o atrativo
ida dos franciscanos da Andaluzia à Guiné dos costumes muçulmanos também impelia
por terra, pelo Marrocos. Para tanto, contou- os novos cristãos ao retorno à fé islâmica, so-
se inclusive com carta de indicação do rei da bretudo no que tange ao casamento poligâ-
Espanha, solicitando ao Mulei do Marrocos, mico, cujos laços matrimoniais significavam
por meios diplomáticos largamente ami- alianças políticas e ampliavam o número de
gáveis, que lhes fossem dados passagem e dependentes dos governantes, tornando-os
apoio (BRÁSIO, 1979, p.407-408). mais poderosos. Conforme o religioso, o Islã
A documentação evidencia a existência representava um grande desafio aos missio-
de um canal aberto e reconhecido de comu- nários cristãos na Senegâmbia:
nicações correntes entre a África Ocidental, Meu desejo era que esta nova cristandade
o Marrocos e a cidade de Meca, com entre- se fosse agregando aos demais cristãos para
posto em Timbuctu e, possivelmente, no que se aumentasse o número e a defesa fosse
Cairo, vista a localização geográfica desta maior com a união de forças. Desta sorte se
lograriam aos novamente convertidos o am-
cidade, às portas da península arábica. Por-
paro e auxílio necessário contra seus mesmos
tanto, a estratégia de Ingoli, ao eleger a cida-
naturais gentios, os quais os perseguem furio-
de egípcia como meio para acessar a África samente em se fazendo cristãos, e muitos dei-
Ocidental, estava embasada em comprova- xam de receber o santo batismo para não ser
ção do percurso realizado por muçulmanos perseguido e outros se subvertem facilmente
africanos. A proposta visava a aproximar pelas contradições e hostilidades que encon-
missionários católicos e muçulmanos em pe- tram, não sendo menor atrativo para sua
perversão brindá-los com a pluralidade de
regrinação, a fim de convertê-los e transfor-
mulheres e superstições com outras latitudes
má-los em meio para acessar as populações de Mafoma. Com que se encontrando juntos
de sua região de origem. Apesar de se discu- estes e os mais cristãos, gozariam da seguri-
tirem estas alternativas, a via vitoriosa para dade e será acrescentado o número, e a esse
acesso à Guiné foi mesmo marítima: em 07 passo serão também mais fortes os presídios,
de dezembro de 1646, a missão franciscana e os ministros do demônio irão perdendo suas
forças e nosso Deus e Senhor será conhecido e
partiu de Sanlúcar de Barrameda, numa fra-
venerado (BRÁSIO, 1991, p.485).
gata que chegou em Porto de Ale no dia 23
de dezembro daquele ano (BRÁSIO, 1979, A elaboração de uma estrutura social ca-
p.459). Outra estratégia adotada dizia res- paz de abarcar os recém-convertidos seria

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017 21


Os “Pregadores do Alcorão de Mafoma” e as missões europeias na Senegâmbia: desafios islâmicos ao proselitismo católico,
século xvii

condição para o sucesso das missões católi- alcançar este objetivo, frente à expansão is-
cas, seja em decorrência de valores morais lâmica que tomava espaços constantemente.
supostamente advindos da religião ou devi- O padre jesuíta Antônio Vieira, em carta ao
do às restrições dos governantes africanos confrade Antônio Fernandes, de 22 de janeiro
aplicadas as súditos. Essas indicações foram de 1653, fazia coro às palavras Antônio Dias,
dadas por Trujillo em 1683, após o declara- apontando o desejo inaciano de se enviarem
do fracasso dos jesuítas portugueses e dos muitos religiosos à Guiné, onde várias almas
capuchinhos franceses e espanhóis, nas dé- estavam “se perdendo à falta de ministro que
cadas anteriores. Contudo, já se apresentava pregue o Evangelho”. Conforme o jesuíta, “a
no discurso missionário desde o século XVI, verdadeira cavalaria é salvar almas e mandar
quando o carmelita Frei Cipriano, estando muitos missionários” (BRÁSIO, 1991, p.31),
em Cacheu, em 1596, escreveu ao bispo de sugerindo que a fixação na região seria alcan-
Cabo Verde solicitando provisões para con- çada através do aumento da fé pelo envio de
cessão de hábitos de Cristo com o objetivo um exército de missionários, o que resultaria
de melhor estabelecer vínculos sociais, sen- na expansão da defesa.
timentais e políticos entre brancos e negros, Portanto, o desafio islâmico na Guiné mo-
rumo à conversão dos africanos. O frei soli- bilizou a atenção dos missionários católicos,
citava ao bispo intercessão junto ao rei: influenciando na concepção de rotas para
O que pedia (...) a V . S. Ilustríssima é que acesso à região, métodos de tradução reli-
veja se pode haver de S. Majestade uma pro- giosa referentes às religiosidades locais e ao
visão para que os Reis que se converterem e Islã e a necessidade de formação de comuni-
seus filhos moresgados possam trazer o há- dades católicas que pudessem perenizar um
bito de Cristo, e o Cristão branco ou mulato
modo de vida cristão, acolhendo os neófitos.
que casar com sua filha mais velha, ou com
qualquer que o mesmo Rei tiver mais vonta-
Embora estes desafios e estratégias se puses-
de, possa também trazer o hábito de Cristo, sem, também, em relação às religiosidades
e ser Capitão de seu Reino com sua vida, e locais, o confronto com o Islã adquire grande
tantos serviços poderá fazer a S. Majestade proporção quando se nota que, na perspecti-
que depois mereça lhe façam outras mercês, va universalista desta religião, a África Oci-
e isto para que casando algum branco com a
dental tornava-se diretamente ligada a Meca.
filha do Rei novamente convertido, será alar-
gar mais a Cristandade, e terem eles mais Dessa forma, evidencia-se um desafio religio-
amor aos brancos (BRÁSIO, 1964, p.392). so e político, com dimensões geopolíticas em
escala global. Assim, a dimensão geográfica
O jesuíta Antônio Dias, ao explicar as cau- do Islã, que colocava os africanos da Guiné
sas da desistência dos jesuítas da Missão de em contato com a Barbaria e Arábia, lançou
Cabo Verde em 1642, acreditava que a expan- limitações à ação missionária católica e será
são da comunidade católica era condição para
tema da próxima seção.
o sucesso da evangelização dos africanos.
A presença constante de muçulmanos nos
Limitações impostas pelo Islã
portos onde a população ainda não se havia
convertido criava condições para sua adesão à atuação missionária
ao Islã, com a qual os portugueses, em me- O processo de expansão islâmica na Sene-
nor número, não conseguiam competir. Era gâmbia influenciou no fluxo missionário
preciso adensar a comunidade católica para rumo à região da atual Guiné Bissau até a

22 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017


Thiago Henrique Mota

baía de Tagrin. A fragilidade cristã na con- Verde (MOTA, 2013, p.137-160). Logo nos
corrência com os muçulmanos é patente nas primeiros anos, o discurso inicial converte-
escritas jesuítas, figurando entre as causa ra-se em desafio real, uma vez que os ina-
que levaram ao abandono da Missão de Cabo cianos viram-se compelidos pelo efetivo da
Verde, em 1642. Em retrospecto, o inaciano presença islâmica. Em agosto de 1606, Bar-
padre Antônio Dias elencava as causas da reira escrevia ao padre João Álvares expli-
desistência da missão. No memorial escrito cando algumas dificuldades encontradas na
em 1648, afirmava, no tocante à conversão conversão da população da Guiné. Em sua
dos africanos, “que era a principal pretensão carta, o jesuíta destacava os muçulmanos,
do Rei e da Companhia, faltaram esperan- ao afirmar que:
ças”. Dentre as razões “não era a menor a co-
A disposição para se fazer fruto nesta gentili-
municação que com eles tem os Mouros, que dade em uns é grande, e noutros não. Daqueles
por quase toda aquela Costa introduziram a que já receberam a seita de Mafoma, não pa-
maldita seita de Mafoma, tão dificultosa de rece que há que tratar, os outros que somente
arrancar” (BRÁSIO, 1979, p.553-554). Na a cheiraram e ainda têm ídolos que adoram,
documentação, o termo “mouro” frequente- pode haver mais esperança, e já um Rei destes
me deu palavra que se faria cristão e escreveu
mente aparece vinculado ao Islã, como sinô-
sobre isso a Sua Majestade. Mas os que estão
nimo de muçulmano. mais dispostos a receber nossa Santa Fé são
Desde antes do início da missão, os je- estes Reinos da Serra Leoa e outros vizinhos
suítas já vislumbravam o alcance do Islã a eles, por não terem notícias de Mafoma e de
na Guiné. Ao escrever ao prepósito geral da sua Lei (…) (BRÁSIO, 1968, p.172).
Companhia de Jesus, padre Cláudio Aquavi- Segundo o inaciano, era preferível con-
va, o padre inaciano Fernão Rebelo defendia centrar atenções missionárias na Serra Leoa,
a criação da missão elogiando as capacida- onde “não chegou ainda a maldita seita de
des dos povos da região. Em 13 de setembro Mafamede, de que os mais outros Reinos es-
de 1586, o jesuíta informava que: tão iscados” (BRÁSIO, 1968, p.46). Nas ime-
é gentio inumerável e de mais capacidade de diações do rio Grande, a presença islâmica
todos os negros de África, de quem se pode já era marcante, conforme descreveu outro
ordenar sacerdotes e predicadores, para que jesuíta, Manuel Álvares, ao apontar o im-
pelos mesmos naturais se conserve e admi-
pacto das bolsas de mandingas e afirmar que
nistre a Igreja, o que não há no Brasil nem
os mandingas eram propagadores do Islã:
em outras partes, e corre perigo de se faze-
rem todos mouros, pela vizinhança que têm Há nestas partes certa gentilidade a que cha-
com os da Barbaria (BRÁSIO, 1964, p.129). mam Mandingas, que são a pior gente, por-
que guardam a seita dos mouros e confinam
Além da conversão, havia ainda o inte- com eles nos costumes e nas terras com os
resse difuso na formação de um clero nati- Jalofos. Estes andam metidos com esta gen-
vo africano, ao qual se delegaria a função de tilidade e os enganam dando-lhes nôminas e
converter seus conterrâneos (MARCUSSI, uns relicários que trazem ao pescoço, assim
2012). O início da missão, no entanto, foi como os agnus Dei e outras relíquias. São es-
tas nôminas uns pedaços de couros cozidos
marcado pelo combate ao Islã, como tópico
de diversos modos e neles trazem o que estes
narrativo para justificar a iniciativa, empre- mouros lhes dão, e semeiam também a ci-
gado pelo padre Baltazar Barreira, designa- zânea de sua perversa seita (BRÁSIO, 1968,
do para o cargo de superior jesuíta em Cabo p.274).

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017 23


Os “Pregadores do Alcorão de Mafoma” e as missões europeias na Senegâmbia: desafios islâmicos ao proselitismo católico,
século xvii

Em 1647, o franciscano espanhol Gaspar soteriológica cristã, como já observamos


de Sevilha, participando da missão dos ca- com André de Faro. A profusão do significa-
puchinhos da Propaganda Fide, afirmou, do atribuído a estes materiais, contudo, de-
em 06 de fevereiro de 1647, que tinha maio- pendia do adensamento da comunidade de
res esperanças na conversão da população sentido que lhe atribuía valor simbólico. Ao
local em Bissau, Geba e na Serra Leoa, onde passo a comunidade islâmica crescia, o fluxo
“há mais docilidade e menos comunicação de missionários católicos diminuía.
dos Bexerins da má seita de Mafoma e to- Apesar das dificuldades invariavelmen-
dos os práticos da terra o asseguram assim” te relatadas pelos missionários que perma-
(BRÁSIO, 1979, p.466). Meses antes, es- neceram em atividade apostólica na região,
tando nos portos do Niumi4 e do Colmo, no alguns padres franceses da Ordem da Con-
rio Gâmbia, o missionário espanhol diz ter gregação da Missão, em passagem pela cos-
oferecido o sacramento da confissão a cris- ta senegalesa rumo a Madagascar, nutriram
tãos negros e do batismo a muitos outros. esperanças pela conversão da população lo-
Contudo, complementa que devido ao pou- cal e tentaram emplacar uma missão lazaris-
co tempo em que esteve no local, “[à] rudeza ta na Senegâmbia. Em seus escritos, o Islã
de alguns adultos e [à] pouca segurança de aparece mesclado a topos literários ausentes
perseverança, pois logo se pervertiam com no restante da documentação, mormente
as más doutrinas dos bexerins mouros, que quanto à condição de nudez das populações.
há muitos, e são contínuos no ensino de suas Os lazaristas frequentemente descrevem os
falsidades e feitiçarias, não me resolvi a ba- povos africanos da Senegâmbia como “ne-
tizá-los até melhor ocasião” (BRÁSIO, 1979, gros, nus e maometanos” (MORAES, 1995,
p.461). p.379) 5, e solicitam o estabelecimento de
A circulação dos bexerins correspondia uma missão da ordem na região. Em 1648,
desde as imediações do rio Senegal, ao nor- o padre Nacquart afirmava a necessidade de
te, aos confins da Serra Leoa, como indicado se enviarem missionários para atuarem en-
pela circulação de objetos de cunho islâmi- tre os franceses que viviam nas ilhas do Se-
co, como as bolsas com trechos do Alcorão. negal e para converterem a população local.
Não obstante, é preciso destacar que a tais Ao informar-se com o capitão do navio, afir-
objetos, integrantes da cultura material e mava que nos rios Senegal e Gâmbia havia
religiosa local com destacado uso ritual is- “muita segurança e liberdade para pregar o
lâmico, foram atribuídos significados que evangelho, como em Paris. Todas essas po-
lhes reconheciam as capacidades religiosas, bres pessoas são maometanas e boas, muito
protetoras, curativas e de distinção social dóceis” (MORAES, 1995, p.375-376).
(MOTA, 2016b, p.63). Este processo de aco- Escrevendo de Madagascar, em 08 de
modação da cultura material e compartilha- fevereiro de 1655, o lazarista padre Bour-
mento de sentidos é elemento fundamental daise narrava o período que passou pela Se-
à compreensão da islamização. Da mesma negâmbia e destacava, em suas memórias,
forma, os missionários católicos buscaram “que eles tomam muito pouco do maome-
traduzir religiosidades locais na linguagem tanismo” (MORAES, 1995, p.378). Opinião
não compartilhada, cinco anos depois, por
4 Também chamado Barra, ou reino da Barra, na
documentação europeia, por estar localizado na 5 As referências extraídas desta coletânea docu-
foz do rio Gâmbia, era o ponto mais ocidental da mental foram traduzidas do francês para o por-
expansão mande iniciada no século XIII. tuguês pelo autor.

24 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017


Thiago Henrique Mota

seu companheiro, padre Nicolas Estienne. Quanto ao potencial de expansão católica,


Escrevendo no cabo Verde, Estienne infor- Estienne expõe a fragilidade de seu conhe-
mava ao Superior Geral dos Padres da Con- cimento sobre as experiências e práticas re-
gregação da Missão que, em Rufisque, onde ligiosas locais. Ao afirmar que a conversão
permaneceu entre 18 e 28 de fevereiro de da população seria bastante fácil, o lazarista
1660, viviam “Maometanos muito bem ins- explica que “há apenas duas coisas que po-
truídos”, dos quais batizara dois. E acres- dem causar alguma demora na conversão. A
centava desejar profundamente uma mis- primeira é que todos os dias, ao raiar do sol,
são para aquela terra, pois lá viviam “cerca eles o adoram. A segunda é que eles seguem
de cinco ou seis mil habitantes, todos ne- muitos preceitos da seita de Maomé” (MO-
gros, nus e maometanos” (MORAES, 1995, RAES, 1995, p. 410). A um missionário pou-
p.379). No ano seguinte, estando no cabo co familiarizado com a religiosidade oeste
da Boa Esperança, retomava dados da carta africana, que mobiliza um discurso mode-
emitida no cabo Verde. O missionário fazia lar sobre o caráter supostamente primitivo
novo lobby por uma missão lazarista no Se- das populações locais ao fiar-se no tópico
negal, destacando e aumentando o contin- narrativo da nudez (HORTA, 1991; MAC-
gente populacional de Rufisque, apontando GAFFEY, 1994), ausente no restante da do-
as condições favoráveis do clima e a exten- cumentação ao descrever muçulmanos, a
são do Islã naquela aldeia: assimilação da oração da manhã praticada
pelos muçulmanos a um rito de adoração do
Rufisque é uma terra firme, a duas léguas do
sol pareceria adequada.
cabo. A situação do local é bastante agradá-
vel. É um país plano, repleto de quantidade Este tópico já havia sido desenvolvido
de árvores sempre verdes, que se estendem por outro viajante francês, igualmente pouco
a longa distância. Há cerca de seis ou sete conhecedor da religiosidade local. Em 1645,
mil pessoas que lá habitam. Suas residências Guillaume Coppier, que era membro de uma
são casas cobertas de junco. Eles são todos expedição que passou pela costa senegalesa
negros e todos nus. Sua religião é conforme,
provavelmente na década de 1630, publicou
para a maioria, àquela de Maomé (MORAES,
1995, p.380). um relato de suas experiências, em Lyon, na
França. Neste documento, o autor afirma
Estes dados numéricos, que variam en- que “quanto à lei deles, destaca-se que no-
tre cinco e sete mil pessoas, importam à meadamente ao rair da Aurora, eles geral-
compreensão do peso demográfico do Islã mente vêm à orla marítima, se prostram so-
na região, nos séculos XVI e XVII. A análise bre a areia e fazem homenagem ao sol, tendo
da documentação evidencia que Rufisque e este astro por Divindade” (MORAES, 1995,
os entrepostos comerciais do Gâmbia, como p.271). Ao contrário de outros cronistas, que
Cantor e Casão, eram moradia de grande viveram na região ou colheram informações
contingente populacional, mormente de junto a pessoas conhecedoras das culturas
muçulmanos. A desejada atuação dos pa- locais pela experiência, Coppier e Estienne
dres da Congregação da Missão seria abas- atribuem a oração da manhã, marcada pelo
tecida de alimentos a partir da produção ritual de flexões corporais e feita em dire-
local, destacada pelo lazarista em sua mis- ção ao Nascente, ou seja, a leste, posição de
siva, ao tratar da produção agrícola, pecuá- Meca em relação à Senegâmbia, à condição
ria, caça e pesca (MORAES, 1995, p.409). de adoração ao sol (MOTA, 2016, cap.05).

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017 25


Os “Pregadores do Alcorão de Mafoma” e as missões europeias na Senegâmbia: desafios islâmicos ao proselitismo católico,
século xvii

Ao apontarmos a retórica primitivista guesa, entre a península do cabo Verde e o


aplicada à população africana e a pouca in- rio Gâmbia – o predomínio muçulmano era
formação detida por estes enunciadores so- institucional. Em 1610, o porto de Ale era
bre a cultura religiosa em questão, o dado administrado por um alcaide muçulmano,
remetido por eles faz-nos destacar a prática que recebeu Baltazar Barreira abraçando-o
da oração. O desempenho corporal do ato de e “declarando que não se alegrava menos
orar, característico do Islã, faz tal ato obser- com [a visita] que os portugueses” (BRÁSIO,
vável mesmo a um estrangeiro. Ainda que o 1968, p.363). Estes portos eram importantes
sentido atribuído pelo observador à prática regiões comerciais, habitadas por portugue-
não se coadune com aquele aplicado pelo ses, ingleses, franceses e holandeses (BRÁ-
agente que a realiza, sua constatação permi- SIO, 1979, p.288). Eram centros comerciais
te-nos, hoje, visualizar a realização da ora- regidos por grande liberdade religiosa, onde
ção. Inserida num contexto de dados prove- Baltazar Barreira encontrou condições para
nientes de diferentes informantes e somada realizar pregações públicas e, inclusive, or-
à afirmação da presença islâmica, elaborada ganizar uma procissão. O jesuíta informa
pelo próprio Estienne, tal informação agre- que, como “o Rei daquela terra e os que a
ga sentido à compreensão da prática islâmi- governam e os moradores naturais são Mou-
ca na Senegâmbia, observável mesmo por ros [i.e. muçulmanos], e entre eles há muitos
aqueles que não a compreendem. Bexerins, não faltaram alguns temores hu-
Ainda que os lazaristas, que não se esta- manos e pareceres em contrário” (BRÁSIO,
beleceram no Senegal, apontassem poten- 1968, p.375). Contudo, Barreira realizou seu
cialidades para a expansão católica na re- intento, sendo acompanhado pelos muçul-
gião, seus companheiros de outras ordens, manos. O governante, no entanto, exigia o
envolvidos com as missões locais desde respeito à feira franca local, onde a diversi-
longa data, evidenciavam resistências de dade religiosa não poderia ser um problema
todo tipo. Em 1683, o frei Antônio de Tru- (MARK; HORTA, 2011, p.20).
jillo escrevia a D. Pedro, príncipe de Portu- Não obstante a tolerância e apreço pela
gal, apresentando-lhe um memorial sobre a presença cristã, por toda a região havia res-
costa da Guiné, em defesa da missão fran- trições à população local à conversão ao
ciscana espanhola. O frei descrevia o fracas- cristianismo. Baltazar Barreira notou como
so missionário na região dos rios Senegal e
as relações de dependência e vassalagem
Gâmbia, afirmando:
mantidas entre os diferentes estados e rei-
Tampouco tem havido missionário [naquela nos criavam limitações à evangelização. Es-
região], nem eu nem nenhum de meus com- tando na Serra Leoa, onde populações ma-
panheiros que temos lá entrado, ainda que o nes vindas do interior haviam recentemente
tenhamos desejado muito por nos opormos
ocupado territórios, o jesuíta pontuou que:
aos pregadores do Alcorão de Mafoma, cuja
maldita seita se encontra nestas partes mui- Outra dificuldade, que como todos os Reis
to válida e são inumeráveis os que a profes- deste Guiné reconhecem por superiores uns
sam e a admitem (…) (BRÁSIO, 1991, p.491). a outros, até chegar à suprema cabeça, e es-
tes Manes reconhecem os da mesma nação
Na região onde estavam os portos de Ale se que vão seguindo, até o Rei que os man-
e Joala – conhecida como Petite Côte, na do- dou descobrir e conquistar Reinos novos,
cumentação francesa, ou “a costa”, na portu- tem-lhe tanta obediência que com grande

26 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017


Thiago Henrique Mota

dificuldade receberão Lei nova sem seu con- lidade após receber a confirmação da possi-
sentimento (BRÁSIO, 1968, p.173). bilidade de aumento da presença portuguesa
Se, na Serra Leoa, as relações políti- na região, mediante a doação da capitania da
cas entre os reinos implicavam restrições à Serra Leoa a Pedro Álvares Pereira. Confor-
ação missionária, na Senegâmbia o desafio me destaca Nuno Gonçalves, esta mudança
era ainda maior, uma vez que lá os reinos denota a concepção do missionário de que a
jalofos estavam construídos sobre base de evangelização teria eficácia se atrelada à colo-
autoridade na qual o Islã desempenhava nização e à convivência dos africanos com os
importante papel. Na aldeia de Recife, no portugueses, aumentando a defesa diante de
Caior, o padre franciscano Diego de Guadal- represálias locais e, supostamente, instituin-
canal relatava, em carta de 04 de junho de do moralidades cristãs pelo convívio (GON-
1647, que o governante local havia afirmado ÇALVES, 1996, p.166). Contudo, a presença
aos missionários que “não havia de deixar islâmica não apenas inibia a expansão católi-
o que seus antepassados haviam seguido” ca: ela a reduzia na medida em que portugue-
(BRÁSIO, 1979, p.496), ao ser-lhe sugeri- ses lançados aderiam aos ritos e práticas do
da a conversão. Noutros casos, governantes Islã. Antônio Trujillo relatou estes desdobra-
muçulmanos impuseram constrangimentos mentos, destacando o empenho missionário
às missões cristãs, fazendo uso das relações na evangelização acompanhado do fracasso
sociais e jurídicas presentes no contexto da neste projeto, diante da expansão islâmica,
escravidão atlântica. Ao ser-lhes sugerido também através de missões, nas quais o ensi-
que renegassem a fé islâmica, recusaram- no do Alcorão e dos pilares do Islã eram fun-
se e mobilizaram esforços para impedir damentais:
que seus súditos aceitassem o cristianismo, Os sectários de Mafoma têm contaminado
ameaçando-os de escravização. Esta é uma todas aquelas conquistas, pois entram os
das causas elencadas pelos capuchinhos da Mandingas, que são os que a ensinam, fa-
zendo missões por todos os demais reinos
Andaluzia para desistirem da Missão na
e chegam com elas até às nossas. A que nos
Guiné, conforme disse frei Brás de Ardales à
temos oposto ainda que ao custo de muitos
Propaganda Fide, em janeiro de 1650: trabalhos e riscos de vida, os temos desterra-
(...) assim que chegamos a cabo Verde, não dos de todos aqueles confins, sendo tão pes-
encontramos disposição para plantar a fé, tilenciais os que a ensinam que não apenas
porque os negros diziam que se se batizas- enganam com suas más artes àqueles pobres
sem e se fizessem cristãos, o Rei os tomaria bárbaros, mas também muitos vassalos de
por seus escravos. E tendo falado com o Rei Vossa Alteza, que vivem entre os gentios e de
acerca de receber nossa santa fé, respondeu ordinário pior que eles (…) (BRÁSIO, 1991,
que ele havia de seguir o que seus pais o ha- p.484).
viam ensinado e que não se falasse mais na
Também o frade Pablo Herônimo de
matéria (…) (BRÁSIO, 1979, p.573).
Franxenal, escrevendo de Bruxelas ao secre-
A expansão da fé cristã necessitava da ela- tário da Propaganda Fide, em 28 de outu-
boração de estruturas sociais aptas a acolher bro de 1671, destacava a expansão islâmica
e proteger os neófitos, diante dos embargos na Senegâmbia, Guiné e Serra Leoa como
impostos pelos governantes muçulmanos. grande impedimento das missões cristãs.
Na Serra Leoa, Baltazar Barreira somente Conforme o religioso, na região da Serra
passou a conceder o batismo com mais faci- Leoa era possível conseguir a conversão de

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017 27


Os “Pregadores do Alcorão de Mafoma” e as missões europeias na Senegâmbia: desafios islâmicos ao proselitismo católico,
século xvii

vasta população. Contudo, os pregadores is- até o século XIX (CURTIN, 1971; TRIMING-
lâmicos “não cessam de dia nem de noite de HAM, 1964, p.128-129; SANTOS, 2013, p.51;
enganar e reduzir aquela pobre e ignorante LOVEJOY, 2014).
gentilidade”. Acrescenta ainda que várias
populações, entre elas mandingas, jalofas e Considerações finais
fulas, havia pouco tempo que eram passí-
A partir da leitura da documentação missio-
veis da conversão. Todavia, poucos anos se
nária católica sobre a África Ocidental, con-
passaram e os predicadores muçulmanos
cluímos que o Islã praticado pelos africanos,
teriam conseguido grande vantagem na cor-
mormente jalofos, mandingas e fulas, foi
rida missionária rumo à captação de almas:
um grande obstáculo à missionação cristã.
Havendo muito poucos anos que os grandes Os missionários são unânimes na apresen-
reinos, e dilatados impérios dos Mandingas,
tação da Senegâmbia como região de maior
dos Fulos, dos Jalofos, dos Barbacins Banhuns
e outros muitos de Guiné, sendo gentios ou-
concentração de muçulmanos, cuja religião
viam com gosto o que se lhes dizia declaran- decorria do contato estritamente mantido
do-lhes os principais mistérios da nossa santa com comerciantes do Magrebe e das redes
fé em ordem à sua conversão e redução, rece- de peregrinação, que chegavam até Meca.
bendo alguns o santo Batismo com grande ve- Os grandes reinos e dilatados impérios cita-
neração, agora todos os mais professam cega,
dos por Franxenal também figuram na nar-
obstinada e enganadamente a falsa e maldita
seita de Mafoma (BRÁSIO, 1991, p.310). rativa de Antônio Trujillo que, ao descrever
a bacia dos rios Senegal e Gâmbia, afirma
Em tom profético, o missionário com- que lá “os reinos são mais dilatados e menos
plementava que não havia dúvidas de que o os cristãos que habitam neles”. A presença
Islã predominaria como religiosidade prati- missionária naquelas partes era bastante
cada na região, “assenhorando-se até chegar
reduzida, ainda que os religiosos católicos,
ao Mar Vermelho”. Sua sentença foi acom-
como Antônio de Trujillo, afirmem que de-
panhada, anos depois, pela de Trujillo, que
sejariam atuar nestes reinos.
afirmou ao príncipe português que “Se Deus
As estratégias adotadas, ou meramente
principalmente e depois Vossa Alteza com seu
sugeridas, pelos missionários rumo à inser-
grande selo não o remediam, então os desta
ção da religião católica na Senegâmbia, bem
seita infernal infectarão até o Mar Vermelho,
como as limitações impostas pelos muçulma-
pois não é acreditável a ânsia com que soli-
nos a estas missões, indicam que o Islã não
citam sua dilatação” (BRÁSIO, 1991, p.484).
era um elemento secundário ou periférico
As análises produzidas por Franxenal e Tru-
no quadro religioso regional. Estes elemen-
jillo são bastante pertinentes e, ainda hoje,
tos somam-se à autoconcepção dessas po-
não foram exploradas pela historiografia de
forma eficiente. De fato, as missões islâmicas pulações enquanto muçulmanas, expressa
– concebidas como uma forma precisa e efi- na adesão voluntária e consciente aos Cinco
ciente de jihad – possibilitaram os levantes Pilares do Islã, como índice do caráter islâmi-
políticos que ocorreram na Senegâmbia, en- co que atribuíam à sua crença (MOTA, 2017,
tre 1640 e 1670 e, posteriormente, repercuti- p.45). Diante destes dados, acreditamos que
ram por todo o sahel meridional. Como pre- não cabe ao historiador do século XXI deter-
nunciado nas décadas finais do século XVII, minar se e quando as populações da Sene-
o Islã comporia um cinturão ao sul do Saara, gâmbia tornaram-se muçulmanas, ao custo

28 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017


Thiago Henrique Mota

de renegar as concepções que elas tinham metade de seiscentos – uma história de desen-
sobre si mesmas. A tese de um Islã híbrido contros. In. MENESES, Avelino de Freitas de;
COSTA, João Paulo Oliveira e (org.). O reino,
ou “polissêmico” (SANTOS, 2017), que foi o as ilhas e o mar oceano: Estudos em ho-
cerne da compreensão racialista do Islã afri- menagem a Artur Teodoro de Matos, Lis-
cano no discurso de pesquisadores ligados ao boa/Ponta Delgada: Centro de História de Além
colonialismo francês (TRIAUD, 2014), expõe -Mar, FCSH da Universidade Nova de Lisboa,
Universidade dos Açores. 2007.
a compreensão do Islã a partir de um mode-
lo previamente estabelecido, em detrimento BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missiona-
ria Africana, África Ocidental, 2.ª série, vol I,
de reconhecer a prática social baseada na
(1341-1499), Lisboa, Agência Geral do Ultramar,
autoidentificação. Este reconhecimento, en- 1958.
tretanto, encontra-se na documentação, que
BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missionaria
evidencia a forma como os muçulmanos da Africana, África Ocidental, 2.ª série, vol. III,
Senegâmbia viam a si próprios. (1570-1600), Lisboa, Agência Geral do Ultra-
Acreditamos que o Islã na África Ociden- mar, 1964.
tal antes dos jihads guerreiros é um tema BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missionaria
pouco valorizado pela historiografia, anco- Africana, África Ocidental, 2.ª série, vol IV,
rada na tese de que uma verdadeira expan- (1600-1622), Lisboa, Agência Geral do Ultra-
mar, 1968.
são muçulmana na região viria a acontecer
apenas após os levantes, a partir do século BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missionaria
XVIII. Esta tese ergue-se a partir do para- Africana, África Ocidental, 2.ª série, vol. V,
(1623-1650), Lisboa, Academia Portuguesa da
digma que estabelece os jihads guerreiros História, 1979.
como movimento islâmico por excelência,
BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missionaria
cujo vértice político tende a superar a análi-
Africana, África Ocidental, 2.ª série, vol. VI,
se daquele religioso. Os dados aqui apresen- (1651-1684), Lisboa, Academia Portuguesa da
tados sugerem o contrário: a conversão das História, 1991.
populações pela via da pregação religiosa BROOKS, George. Kola trade and State Buil-
foi a primeira e fundamental forma de jihad ding: Upper Guinea Coast and Senegambia, 15th
vivida na região. Os jihads posteriores, im- to 17th centuries. Working Papers, n.38, Afri-
pulsionados pelas questões colocadas pela can Studies Center, Boston University, 1980.
experiência atlântica regional, construí- CURTIN, Philip. Jihad in West Africa: Early
ram-se a partir desta primeira mobilização. phases and Inter-Relations in Mauritania and
Senegal In.: The Journal of African His-
Neste momento, o Islã não a era a força po-
tory. vol. 12, n.01. Cambridge: Cambridge Uni-
lítica que viria a constituir-se. No entanto, versity Press. 1971.
no quadro religioso, sua caracterização já se
DONELHA, André. Descrição da Serra Leoa
revelava indubitável. Por meio deste artigo, e dos Rios de Guiné do Cabo Verde. Org. A.
buscamos destacar que os “pregadores do T. da Mota. Lisboa: Junta de Investigações Cien-
Alcorão de Mafoma” foram verdadeiros e tíficas do Ultramar. 1977
duradouros obstáculos às missões católicas FARO, André. Relação do quanto obraram na
na Senegâmbia, durante o século XVII. segunda missão, os anos de 1663 e de 1664: os
religiosos capuchos da província da piedade, do
Reino de Portugal, em terra firme de Guiné na
Referências bibliográficas conversão dos gentios, e discorrendo da povoa-
ALMEIDA, Carlos. A Companhia de Jesus e a ção de Cacheu, Rio de São Domingos: passando
sociedade crioula cabo-verdiana na primeira ao Rio Grande: Rio do Nuno: Rios do Deponga:

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017 29


Os “Pregadores do Alcorão de Mafoma” e as missões europeias na Senegâmbia: desafios islâmicos ao proselitismo católico,
século xvii

Rios dos Carsseres: Rios da Serra Leoa. Escre- Hausa Kola Trade, 1700-1900. Zaria (Ni-
vendo não só o que obraram no serviço de Deus, géria): Ahmadu Bello University Press and Uni-
e as muitas almas que converteram à fé de Cristo, versity Press Limited in association with Oxford
nos muitos reinos em que estiveram, mas ainda University Press. 1980.
escrevendo alguns ritos e costumes dos gentios
daquelas terras. In: SILVEIRA, Luís (organiza- LOVEJOY, Paul. Jihad na África Ocidental du-
rante a “Era das Revoluções”: em direção a um
ção e comentários). Peregrinação de André
diálogo com Eric Hobsbawm e Eugene Genove-
de Faro à terra dos gentios. Lisboa: Officina
se. In: Topoi (RJ), Rio de Janeiro, v. 15, n. 28, p.
da Tipographia Portugal-Brasil. 1945
22-67, jan./jun. 2014.
FREITAS, Jeocasta Juliet Oliveira Martins de.
MACGAFFEY, Wyatt. Dialogues of deaf: Europeans
A religião dos barbacins, casangas, ba-
on the Atlantic Coast of Africa. In. SCHWARTZ,
nhuns e papéis nos relatos de viagem na
Stuart. Implicit Understandings: Observing,
Guiné (1560-1625). Dissertação (mestrado
Reporting, and Reflecting on the Encoun-
em História). Universidade Federal de Minas
ters Between Europeans and other Peoples
Gerais. Belo Horizonte, 2016.
in the Early Modern Era. New York: Cambrid-
GONÇALVES, Manuel Pereira, A missiona- ge University Press, 1994.
ção dos jesuítas e dos franciscanos nos
MARCUSSI, Alexandre de Almeida. A formação
“Rios da Guiné” no Século XVII. Disser-
do clero africano nativo no Império Português nos
tação (mestrado em História). Universidade de
séculos XVI e XVII. Temporalidades – Revista
Lisboa, Lisboa, 1991.
Discente do Programa de Pós-Graduação em His-
GONÇALVES, Nuno. Os jesuítas e a missão tória da UFMG, Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012.
de Cabo Verde (1604-1642). Lisboa: Broté-
MARK, Peter. African Meaning and European
ria, 1996.
-African Discourse: iconography and semantics
HAVIK, Philip. Hybridising Medicine: Illness, in seventeenth-century salt cellars from Serra
Healing and the Dynamics of Reciprocal Ex- Leoa. IN: TRIVELLATO, Francesca; HALEVI,
change on the Upper Guinea Coast (West Afri- Leor; ANTUNES, Cátia. Cross-Cultural Ex-
ca). Medical History, v.60, n.02, Abril 2016, change in World History, 1000-1900. New
p 181-205. York: Oxford University Press. 2014.

HORTA, José da Silva. A Representação do Afri- MARK, Peter; HORTA, José da Silva. The For-
cano na Literatura de Viagens, do Senegal à Ser- gotten Diaspora: Jewish Communinities
ra Leoa (1453-1508). In.: Mare Liberum. Nº in West Africa and the Making of the Atlantic
2, 1991 World. Nova York: Cambridge University Press,
2011.
HORTA, José da Silva. Ensino e cristianização
informais: do contexto luso africano à primeira MONTEIRO, Fernando; ROCHA, Teresa Vás-
“escola” jesuíta na Senegâmbia (Biguba, Buba – quez. A Guiné do século XVII ao século
Guiné-Bissau, 1605-1606). In: REIS, Maria de XIX: o testemunho dos manuscritos. Lis-
Fátima (org.). Rumos e Escrita da História. boa: Prefácio, 2004,
Estudos em Homenagem a A. A. Marques MORAES, Nize Isabel de. À la decouverte de
de Almeida. Lisboa: Edições Colibri. 2006. la petite côte au XVIIe siècle (Sénégal et
HORTA, José. A “Guiné do Cabo Verde”: Gambie). Tome II: 1622-1664. Dakar: Univer-
produção textual e representações (1578- sité Cheikh Anta Diop de Dakar – IFAN. 1995
1684). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; MOTA, Thiago Henrique. “Sobre o Alcorão e por
Fundação paraa Ciência e a Tecnologia, 2011. Maomé”: Islã, produção intelectual e capital cul-
HOWARD, Allen M.. Mande kola traders of nor- tural na Senegâmbia (séculos XVI e XVII). In.
twestern Sierra Leone, late 1700s to 1930, Man- REIS, R.; RESENDE, T.; MOTA, T. Estudos
de Studies, n.9, 2007. sobre África Ocidental: dinâmicas cultu-
rais, diálogos atlânticos. Curitiba: Editora
LOVEJOY, Paul. Caravans of Kola: The Prismas, 2016b.

30 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017


Thiago Henrique Mota

MOTA, Thiago Henrique. Instrução Islâmica na de Juiz de Fora. Juiz de Fora. 2017.
Senegâmbia e práticas de Muçulmanos Africa-
nos em Portugal: uma abordagem Atlântica (sé- SANTOS, Letícia Ferreira dos. É pedido, não
culos XVI e XVII), Estudos Históricos (Rio tributo: o donativo para o casamento de
de Janeiro), vol.30 no.60 Rio de Janeiro Jan./ Catarina de Bragança e a Paz de Holan-
Apr. 2017. da (Portugal e Brasil, c.1660-c.1725). Tese
(História). Programa de Pós-Graduação em
MOTA, Thiago Henrique. Portugueses e Mu- História. Universidade Federal Fluminense. Ni-
çulmanos na Senegâmbia: história e repre- terói, 2014.
sentações do Islã na África (c.1570-1625). Curi-
tiba: Editora Prismas, 2016. SANTOS, Maria Emília Madeira; SOARES, Ma-
ria João. Igreja, missionação e sociedade. In.
MOTA, Thiago. A missão jesuíta de Cabo Verde SANTOS, Maria Emília Madeira (org.). Histó-
e o islamismo na Guiné (1607-1616). In: Tem- ria Geral de Cabo Verde, volume 02. Lis-
poralidades, Belo Horizonte Vol. 5 n. 2, Mai./ boa: Centro de Estudos de História e Cartogra-
Ago. 2013. fia Antiga, Instituto de Investigação Científica e
Tropical; Praia: Instituto Nacional da Cultura de
PEDRO, Albano Mendes. As missões ultra-
Cabo Verde, 1995.
marinas. Lisboa: Sociedade de Geografia de
Lisboa, Semana do Ultramar, 1970. SANTOS, Patrícia. Fé, Guerra e Escravidão:
uma história da conquista colonial do Su-
RECHEADO, Carlene. As missões francisca-
dão (1881-1898). São Paulo: FAP-Unifesp,
nas na Guiné (século XVII). Dissertação de
2013.
mestrado. Lisboa: Especialização em História
Moderna e dos Descobrimentos, da Universida- SANTOS, Vanicléia Silva. Bexerins e jesuítas:
de Nova de Lisboa, 2010. religião e comércio na Costa da Guiné (século
XVII). In. Métis: história e cultura. v.10, n.19,
REMA, Henrique Pinto. As primeiras missões
p.187-213. jan/jun, 2011.
da costa da Guiné (1533-1640). Boletim Cul-
tural da Guiné Portuguesa, Vol. XXII - 087 SINTRA, Diogo Gomes de. Descobrimento
e 088. Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, Primeiro da Guiné. Estudo preliminar, edi-
1967. ção crítica, tradução e notas de comentário: Ai-
res A. Nascimento. Introdução histórica: Henri-
REMA, Henrique. A primeira Missão Francis-
que Pinto Rema. Lisboa: Edições Colibri, 2002.
cana da Guiné (séculos XVII-XVIII). Boletim
Cultural da Guiné Portuguesa. Centro de SUMMAVIELLE, Isabel Maria Araújo Lima
Estudos da Guiné Portuguesa, Vol. XXIII – n. Cluny. O Conde de Tarouca e a Diplomacia
089 e 090, 1968. na Época Moderna. Lisboa: Estúdios Hori-
REMA, Henrique. História das Missões Ca- zonte, 2006.
tólicas na Guiné. Braga: Ed. Fraciscana.1982. TRIAUD, Jean-Louis. Giving a name to Islam
RODNEY, Walter. A History of the Upper South of the Sahara: an adventure in taxonomy.
Guinea Coast, 1545 to 1800. Oxford: Claren- The Journal of African History, n.55, v.1,
don Press, 1970. p.3-15. 2014.

SALDANHA, António de. Crónica de Alman- TRIMINGHAM, Spencer. The phases of Islamic
çor, sultão de Marrocos (1578-1603). Estu- expansion and Islamic culture zones in Africa.
do crítico, introdução e notas por António Dias In: LEWIS, Ioan. Islam in Tropical Africa:
Farinha. Lisboa: Instituto de Investigação Cien- studies presented and discussed at the fifth In-
tífica Tropical. 1997. ternational African Seminar. Zaria: Ahmadu
Bello University, Oxford University Press. 1964.
SANTOS, Beatriz Carvalho dos. Memórias do
Ultramar: Os escritos sobre a “Guiné de
Cabo Verde” e a influência dos processos
de crioulização (séculos XVI e XVII). Tese Recebido em: 15/04/2017
(Doutorado em História). Universidade Federal Aprovado em: 21/06/2017

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 11-31, jul./dez. 2017 31


“Não convém negro sem amo”: escravos, índios e jesuítas nas fazendas da companhia de Jesus na capitania de São José do
Piauí, 1750-1800

“NÃO CONVÉM NEGRO SEM AMO”: ESCRAVOS,


ÍNDIOS E JESUÍTAS NAS FAZENDAS DA
COMPANHIA DE JESUS NA CAPITANIA DE SÃO
JOSÉ DO PIAUÍ, 1750-1800

Mairton Celestino da Silva*

Resumo
O presente artigo tem por objetivo discutir o cativeiro indígena e, posterior-
mente, o papel estruturante da escravidão africana no interior das fazendas
da Companhia de Jesus na Capitania do São José do Piauí durante a segunda
metade do século XVIII. A proposta busca, portanto, compreender a partir
de um fator econômico – a instalação das fazendas de gado vacum e cavalar,
pública e privada – e, posteriormente, um fator político-administrativo – a
elevação da Vila da Mocha ao status de cidade, Oeiras – como interesses me-
tropolitanos, pretensões de colonos locais e formas de negociação/resistên-
cia escrava e indígena se desenvolveram no interior dessa capitania.
Palavras-chaves: Escravidão; Estado do Maranhão e Piauí; Administração
Portuguesa.

Abstract
“NÃO CONVÉM NEGRO SEM AMO”: SLAVES, INDIANS AND JESUITS
IN THE FARMS OF THE COMPANY OF JESUS IN THE CAPTAINCY
OF SÃO JOSÉ DO PIAUÍ, 1750-1800
This article aims to discuss indigenous captivity and, later, the structural role
of African slavery within the Company of Jesus farms in the Captaincy of
São José do Piauí during the second half of the 18th century. The proposal
seeks, therefore, to understand from an economic factor – the installation of
cattle ranches and horses, public and private – and, later, a political-admi-
nistrative factor – the elevation of the Mocha Village to the status of a city,
Oeiras – as metropolitan interests, pretensions of local settlers and forms of
negotiation/slave and indigenous resistance developed within this captaincy.
Keywords: Slavery; State of Maranhão and Piauí; Portuguese Administration.

* Professor Adjunto do Departamento de História da UFPI, Doutor em História pela UFPE e membro do
NUPEDOCH – Núcleo de Pesquisa e Documentação em História – e do IFARADA – Núcleo de Pesquisa
em Africanidades e Afro descendência, ambos ligados ao Departamento de História da UFPI. E-mail:
mairtoncelestino@hotmail.com

32 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017


Mairton Celestino da Silva

Quando visitou as terras do Maranhão, go discuto essas estratégias e o quanto essas


em fins do século XVII, o padre Miguel de disputas geraria de conflitos entre senhores
Carvalho (ENNES, 1938, p. 370) noticiara a e subalternos em uma região de fronteira
existência do costume comum entre os cur- eminentemente voltada para a criação de
raleiros de incintar seus escravos a viverem gado vacum e cavalar.
conjugalmente com as índias da região em A depender do perfil do seu senhor - au-
suas fazendas de gado vacum e cavalar. Na sente do universo das fazendas (absenteis-
época em que visitou as terras de frontei- ta), religiosos da Companhia de Jesus ou
ras com as “índias de castela”, como assim curraleiros de grande e pequeno porte - em
a definiria o religioso, em 1694, Miguel de cada situação as condições escravistas se es-
Carvalho registrou a presença de “129 fazen- truturavam de maneira peculiar, cabendo
das de gado, que moram 441 pessoas entre aos diretamente envolvidos agirem de acor-
brancos, negros, índios, mulatos e mestiço”. do com seus interesses. No ambiente das
A informação deixada pelo missionário ex- fazendas administradas pelos religiosos da
plicita o caráter escravista dessas primeiras Companhia de Jesus, a solução encontrada
unidades de produção de gado e destaca, ao para resolver o problema do trabalho escra-
mesmo tempo, a estratégia dos colonos em vo foi incentivar a constituição de matrimô-
utilizar-se das índias como instrumento de nios legítimos entre a escravaria. No entan-
reprodução da mão de obra local sem, ne- to, como se observa abaixo, a situação de
cessariamente, recorrer ao comércio negrei- forçar a união partiria do cativo que, agindo
ro (ALENCASTRO, 2000). Dessa maneira, a por rebeldia, fugira do controle dos religio-
estratégia dos curraleiros em incitar uniões sos e se embrenhou nas matas, pressionado
entre negros escravizados e índias demons- os religiosos a efetivarem sua união com a
trou também o caráter marcadamente mas- escrava do seu interesse e, ao mesmo tempo,
culino da atividade pecuarista e sua relação transmitindo aos demais cativos os signifi-
com o universo escravo. cados da sua insubordinação e quanto pode-
A estratégia desses primeiros curraleiros riam ganhar caso tivessem a mesma atitude.
acabaria por engendrar um tipo de socieda- Ficou porém ainda fugido um Jozé Negro da
de escravista profundamente “crioulizada”, Administração, que amancebado com uma
mestiça e diversa social e culturalmente. negra alheia inteirou dez anos nesses ma-
Na formatação dessa sociedade, seria um tos, do que tendo Eu noticiado botei fama [e]
compraria a Negra e os deixaria casar para
equívoco imaginá-la como algo planejado
se salvarem ao que saíram logo eles cumprir
a partir das vontades dos curraleiros e au- a promessa, no que me botei apertar, porque
toridades coloniais, à revelia, portanto, dos diziam os mais haviam de fugir com Negras
interesses dos próprios cativos. Em muitas para terem semelhante fortuna, acudi Eu não
situações, o caráter negocial das decisões ser isso necessário, mas os mandaria a esta
se tornava evidente para o bom funciona- Bahia a casar: não quiseram saber mais e pu-
seram as petições de querer servir a Deus.
mento da fazenda. Os cativos sabiam dos
seus limites naquela sociedade escravista e Nas unidades agropastoris onde predo-
fortemente hierarquizada. Não obstante, ti- minava o absenteísmo, a prática inventa-
nham eles plena consciência daquilo que po- da pelos escravos seria a de atrair para si o
deriam barganhar frente ao tipo de senhor/ exercício da autoridade frente aos familiares
proprietário a quem pertenciam. Neste arti- e demais subalternos. Para isso, o escravo de

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017 33


“Não convém negro sem amo”: escravos, índios e jesuítas nas fazendas da companhia de Jesus na capitania de São José do
Piauí, 1750-1800

maior influência utilizava da sua “fama de a melhor estratégia utilizada seria angariar
vaqueiro” para constituir em espaço branco o apoio dos parentes e, como isso, instituir
e cristão um lugar familiar e culturalmente alianças dentro e fora da escravidão.
seu, onde vizinhos e parentes pudessem re- Esse pensamento dos escravos não era
presentar, material e simbolicamente, seus estranho aos demais religiosos e o próprio
mundos. Sobre o assunto, o padre Domin- Domingos Gomes alertava-os dos perigos
gos Gomes afirmava que, dos casamentos entre escravos.
Aos pretos explicava como em nosso poder Porém advertindo os males temporais, e
trabalham para coisas de Deus, a fortuna de também eternos que costumam provir de
terra nessa de Casa, que muitos brancos a multiplicar casamentos de Negros no Ser-
não tinham no Sertão; E assim foram saindo tão, quais costumam se ficarem os maridos
dos Matos para de 18 que andavam fugidos, embaraçados para o serviço dos longos com
cinco dos quais foram lá mortos no Mocam- ausências as vezes de ano, esvaírem-se pelo
bo pelos brancos que com autoridade do rei- abuso, e durarem pouco, ficarem soberbos
no [ilegivel] lhe foram dar no ano de 718 três com os amos, que não querem mais ter,
ou quatro léguas distantes da melhor Fazen- acender-se nesses o fogo junto as palhas, ha-
da na qualidade dos pastos da Administra- verem ditos contrapõem qualquer líder com
ção chamada Campo Grande na ribeira do a eles, andarem em viagens, a buscar par-
Canindé, que em um só ano, em que esta es- teiras, e curandeiras, por-lhas de olho para
tava sem branco pelo não haver capaz, entre- acudir aquele gado mole; escrevi ao Padre
gue a um Negro da maior fama de Vaqueiro, Manoel Alvarenga não pusesse dúvida dar
e que enquanto foi vivo fez sempre o papel mulher aos que a viessem pedir, mas as dei-
de Rei nas suas festas, se foi para lá esta vi- xasse por cá ficar com elas, mandou-me um
zinhança de seus Parentes para uma Serra, moleque solteiro por cada casado, avista de
que se chama a Cumba, que por comumente que ninguém quis mais casar por não perder
o Sertão.
serve de muitas pares do Sertão, e daí saiam
já as Estradas e fazendas a matar os brancos. Contudo, a partir da segunda metade do
Daqui se firma uma razão; pela qual não con-
século XVIII, o rítmo de crescimento dos
vém negro sem amo.
currais salta para 448 unidades de produ-
Para Domingos Gomes, as fugas de es- ção de gado vacum e cavalar. Somente na
cravos aquilombados, quando não reprimi- capitania do Piauí, o percentual sai das 129
das, ocasionavam um emaranhado de pro- fazendas de gado, no ano de 1694, para 245
blemas; já que com a ausência dos senhores, fazendas, no ano de 1751; quase duplicando
seria um destino previsível. Esse seu pensa- a quantidade de fazendas em pouco mais de
mento será definido quando o missionário 50 anos. No Maranhão, esse aumento é ain-
afirma a origem daqueles escravos que habi- da mais significativo, uma vez que, na parte
tavam as fazendas e suas relações com as fu- sul da capitania, a extração das drogas do
gas e mocambos presentes naquelas matas. sertão e a exploração das matas se apresen-
A artimanha do escravo José Negro- em tavam como as principais atividades.
fugir para as matas com o intuito de forçar Como destacou Maria do Socorro Cabral,
junto a seus senhores a união com sua par- as entradas dos curraleiros ao Maranhão se
ceria- revela bem a estratégia escrava em efetivaria a partir do Piauí; ocupando ter-
manter-se nas fazendas, desde que seus inte- ras próximas ao rio Parnaíba e estendendo
resses fossem igualmente atendidos. Muito seus pastos até os rios Iatapecuru, Mearim e
provavelmente, no ambiente das fazendas, Grajaú. Assim, do montante de 163 fazendas

34 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017


Mairton Celestino da Silva

instaladas no Maranhão, somente na fregue- Mesmo assim, alguns documentos pos-


sia de Pastos Bons serão estabelecidas 44 sibilitam re/desenhar alguns cenários onde
unidades de produção de gado vacum e ca- esses africanos estiveram presentes. Em
valar, com extensão de 120 léguas para pas- 1770, após a expulsão dos jesuítas da Com-
tagem e criação extensiva. Em segundo, vi- panhia de Jesus, o governador da Capitania
nha a freguesia de Aldeias Altas, situada nas do Piauí encomendou aos inspetores das fa-
proximidades do Itapecuru e representando zendas de Nazaré, Piauí e Canindé um levan-
35 fazendas de 100 léguas de extensão. As tamento estatístico dos bens deixados pelos
demais unidades agropastoris seriam distri- clérigos. O objetivo era fazer um apanhado
buídas entre as freguesias de São Bernardo, quantitativo de todos os bens deixados pelos
Icatú e Cumá (AZEVEDO, 1999, 346). jesuítas. Dessa maneira, buscavam conhecer
Provavelmente, essa nova dinâmica de o total de escravos presente nas fazendas,
expansão das zonas agropastoris no Piauí faixa etária, relações conjugais e, por fim,
e Maranhão não foi acompanhada de uma suas habilidades para o trabalho.
maior oferta de escravos de procedência A quantidade de gados e de cavalos, assim
africana, já que áreas economicamente mais como a qualidade dos currais, casas e do tipo
rentáveis como as atividades comerciais li- de frutos presentes em cada fazenda, merece-
gadas à extração do ouro e da produção de ria igual atenção. Das 33 fazendas em domí-
açúcar demandavam maior contigente de nio dos jesuítas foram disponibilizadas infor-
escravos. De qualquer maneira, mesmo ten- mações acerca de 11 propriedades. Os núme-
do que disputar a mão de obra escrava com ros não constituem todo o plantel de escravos
áreas mais atrativas e próximas aos portos existentes na capitania durante a década de
negreiros, isso não significou que as autori- 1760. Seus números estão restritos a algumas
dades coloniais abandonassem o comércio das fazendas sob jurisdição portuguesa. As
Atlântico de escravos. de domínio privado e as pequenas proprieda-
A busca por uma rota atlântica conectan- des em poder dos arrendatários e pequenos
do os portos da África com o Maranhão foi posseiros não constam no levantamento feito
constantemente imaginada pelas autorida- pelo governador da capitania.1 Mesmo assim,
des coloniais. Durante o século XVIII, entre um percentual de 165 escravos, com relativo
1756 a 1789, escravos adquiridos pela Com- equilíbrio entre homens e mulheres, nos pos-
panhia de Comércio Geral do Grão-Pará e sibilita algumas conclusões sobre a vida dos
Maranhão (DIAS, 1971), nos rios de Guiné, escravos - africanos e seus descendentes - nas
Cabo Verde e de Angola eram diretamen- fazendas dos jesuítas no Piauí.
te desembarcados no porto da cidade São O administrador da Capitania de São
Luís do Maranhão com o objetivo de abas- José do Piauí estava igualmente interessa-
tecer as zonas produtora de arroz, algodão
1 Em 22 de julho de 1771, o governador da capi-
e, em menor escala, as áreas produtoras de tania escreve para a Secretária de Estado dos
gado bovino e cavalar (CHAMBOLEYRON, Negócios da Marinha informando a situação
das fazendas administradas pelos regulares no
2006, 79-114). Embora existam dados sobre Piauí. Na sua carta, o governador conta que exis-
a quantidade de escravos desembargados na tiam apenas 33 fazendas em domínio dos cléri-
cidade de São Luís, ainda carecemos de es- gos e um cofre, “conservando-se nele o produto
delas”. APEPI. CAPITANIA DO PIAUÍ. Registo
tudos que apontem a quantidade exata ab- de Cartas. 1769-1771. SPE.COD. 009. ESTN.
sorvida por cada atividade econômica. 01.PRAT. 01. p. 32-33.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017 35


“Não convém negro sem amo”: escravos, índios e jesuítas nas fazendas da companhia de Jesus na capitania de São José do
Piauí, 1750-1800

do em conhecer a possível constituição de Comparando o número de uniões de escra-


uniões escravas no ambiente das fazendas. vos encontradas por Domingos Gomes com
Dos 165 escravos encontrados nas fazendas, aquelas apresentadas nos anos de 1770 per-
existiam 37 uniões, ou seja, um casal de es- cebe-se um aumento significativo nas uniões
cravos vivendo com sua prole. O sexo (filhos entre escravos durante o domínio jesuítico
machos/filhas fêmeas), a denominação ét- nas fazendas.
nico/racial - Angola, Geige/Jeje, crioulo, O cenário não era diferente do encontra-
crioulinha, mestiço, mesticinha e mulato - e do nas unidades de produção agropastoris
a idade aparecem logo em seguida na do- privadas. A documentação encontrada no
cumentação. Embora em menor detalhe, a Arquivo da Diocese de Oeiras permite-nos
documentação faz ainda referência ao tipo vislumbrar em detalhes a influência da cris-
de ofício exercido pelos escravos nas fazen- tandade na vida dos habitantes do Piauí co-
das. A atividade de vaqueiro, bem como a de lonial. Boa parte da documentação diz res-
ferreiro, são as únicas atividades citadas na peito ao número de batismos e de casamen-
documentação. tos envolvendo sujeitos escravos, índios, al-
De todos os escravos relacionados, apenas forriados e sujeitos livres, pobres pertencen-
um tem o sobrenome. João Afonso, escravo tes à freguesia de Nossa Senhora da Vitória
de 80 anos de idade, foi arrolado na fazenda durante os anos de 1760-1790.
Saquinho e mantinha uma união com a es- Em muitos dos casos, a listagem em tor-
crava Luzia, de 42 anos. Da sua relação com no dos casamentos e dos batismos se dava
Luzia nasceram Ângelo crioulo (26 anos), em forma de desobriga; isso acontecia em
Romualdo crioulo (18 anos) e Geralda criou- geral por um vigário que partia do Mara-
linha (12 anos). João Afonso e Cristovão An- nhão para executar suas atividades religio-
gola são os dois únicos escravos com idade sas em fazendas por ele visitadas. Esses re-
igual ou superior a 80 anos e de procedência gistros eclesiásticos estão entre os poucos
africana que ainda viviam na fazenda duran- instrumentos pelos quais podemos ter aces-
te o levantamento desse relatório. so ao número estimado dos habitantes das
Possivelmente, João Afonso e Cristovão fazendas privadas no Piauí.
Angola presenciaram a chegada do P. Do- Como foi dito acima, se no ambiente das
mingos Gomes naquele ano de 1722. 2 Ao fazendas dos religiosos da Companhia de
comentar sobre os laços de conjugalidade Jesus, as procedências étnicas circulavam
dos escravos das fazendas, este jesuíta in- em torno dos angolas, minas e Jejes, nas fa-
formava que, no universo de menos de cem zendas privadas havia uma variação étnica
escravos, eram raros os casados; só encon- maior. Ao que tudo indica, muito provavel-
trando apenas seis casamentos, “dois com mente, os angolas continuaram a prevalecer
índias e três com negras, um com mestiça”. sobre os demais grupos étnicos de proce-
dência africana nas fazendas particulares.
2 Em regra, a documentação explícita apenas o
primeiro nome do escravo, seguido depois da Em seguida, aparecem os Jejes, Minas, Con-
denominação crioulo, mulato ou a procedência go, Ganguela [Benguela], Cacheu, Rebolo,
africana. No caso da documentação em análise,
os africanos de procedências angola (28 escra- Moçambique e Umbaca.
vos), jeje, [gege/geige] (06 escravos) e congo A diversidade de grupos étnicos poderia
(01escravo) figuram como os arrolados na do- variar de inspeção para inspeção. Em algu-
cumentação. Ver, APEPI. MUNICÍPIO: Oeiras,
Anos 1752-1869. Caixa 98. mas, a diversidade étnica definia o perfil da

36 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017


Mairton Celestino da Silva

escravaria, em outras a prevalência termina- ras a possibilidade de re/configurar suas


va por definir o perfil da mão de obra empre- identidades africanas ou re/elaborá-las nas
gada na fazenda. Em geral, esses escravos Américas. Os Angolas e os cativos da nação
de procedência africana aparecem nas listas Mandigas aparecem, tanto nas pesquisas de
como os de idade mais avançada e, muitas Assunção, quanto nas de Meireles, como os
vezes, ocupam a função de vaqueiro, com grupos étnicos de maior representatividade
família estável e certo prestígio com os ad- entre os escravos do Maranhão.
ministradores e demais escravos no interior Durante a vigência da Companhia de Co-
das propriedades. mércio do Grão-Pará e Maranhão, as capita-
Os grupos étnicos de procedência afri- nias do Norte puderam contar com essa rede
cana, encontrados nas fazendas de gado de abastecimento Atlântico de escravos,
vacum e cavalar da capitania do Piauí, não procedentes, sobretudo, de Cacheu e Bissau
se diferenciavam daqueles igualmente pre- (ASSUNÇÃO, 2001). Contudo, com o declí-
sentes nas fazendas e áreas produtoras de nio das Companhias Pombalinas de Comér-
arroz e de algodão do Maranhão. De acor- cio, o tráfico de escravos para o Maranhão e
do com Mathias Rohrig Assunção (ASSUN- Piauí se redefiniria a partir de um comércio
ÇÃO, 2001), durante a vigência do tráfico de terrestre envolvendo donos de escravos e
escravos, a capitania do Maranhão absorveu seus agenciadores/atravessadores que for-
um total de 114.000 mil a 140.000 africa- neciam mão de obra para as áreas produto-
nos, caso as estimativas considerem tam- ras de gado, de arroz e de algodão, próximas
bém o potencial e ainda pouco estudado co- aos rios Parnaíba, Itapecuru e Mearim.
mércio de escravos clandestino que, vindos Enquanto instituição jurídica aceita e
diretamente da Bahia, abasteciam fazendas amplamente disseminada, a escravidão car-
e áreas de mineração dos sertões. regava em si elementos que serviam para
Embora nessa época a costa da Alta-Gui- classificar e hierarquizar os sujeitos que dela
né figurasse como o principal entreposto ne- estavam reféns ou dela se aproveitavam.
greiro do continente africano com as praças Nesse sentido, o lugar de nascimento (Bra-
comerciais do Maranhão e Grão-Pará, cati- sil, Portugal e África) e as categorias/quali-
vos vindos dos portos de Cacheu e Bissau, dades de cor (branco, escravos, índio e mu-
portanto, de procedência étnica própria da- latos) auxiliavam as autoridades coloniais a
quele circuito negreiro - como os Nalu, Pa- distinguir os diversos sujeitos.
pel, Bijagó, Balanta, Mandinga e Cassanges A utilização da categoria/qualidade cor
- entraram no Maranhão e Piauí e compu- (branco, escravos, índio e mulatos), presente
seram os plantéis de escravos, juntamente na documentação e largamente empregada
com Angolas, Fula, Moçambique, Congo, na época, não inválida - assim como a hie-
Benguela e os Minas, nas fazendas e demais rarquização da sociedade a partir de aspectos
propriedades dessas duas capitanias. de classificações étnicos (branco, africano e
Conforme levantamento da documenta- índio) - a compreensão da existência de uma
ção referente aos registros de casamentos sociedade profundamente marcada pelas di-
no Maranhão do século XVIII, Marinelma ferenças de cor. Na verdade, o sujeito classifi-
Costa Meireles consegue vislumbrar um cado como índio ou como africano não se via
ambiente escravista multifacetado por gru- como tal e, em muitos casos, ver-se diferente
pos étnicos que encontraram nessas ter- do outro não só marcava uma posição cultu-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017 37


“Não convém negro sem amo”: escravos, índios e jesuítas nas fazendas da companhia de Jesus na capitania de São José do
Piauí, 1750-1800

ral, mas também assinalava seu lugar naque- também a pele de qualquer nação indígena
le mundo cada vez mais colonial. do Piauí, que misturada ao branco daria ori-
O primeiro esforço de classificação da gem aos mamelucos, ao “caful [cafuzo], ao
população escrava e indígena que vivia no filho de preto e índia; mestiço ao que parti-
ambiente das fazendas, bem como fora dela, cipa de branco, preto e índio; mulato ao filho
partiria do ouvidor José Antônio de Morais de branco e preta; cabra ao filho de preto e
Durão quando, no ano de 1772, produz um mulata; curiboca ao filho de mestiço e ín-
relato descritivo da capitania do Piauí3. Por dia”. Na ausência de uma dessas classifica-
meio desse manuscrito, o ouvidor classifica- ções, o ouvidor os distinguia por condição
ria os sujeitos daqueles sertões a partir de de mestiço, sendo esse sujeito “a mistura de
critérios baseados na cor. Seu interesse no cabras e curibocas”.
assunto era tanto que o início da sua Descri- António José Morais Durão traça no
ção do Piauí, o ouvidor detalha as caracte- mesmo trabalho descritivo da capitania um
rísticas da população, colocando-a na condi- levantamento censitário da população, des-
ção de elemento essencial para se entender crevendo em cada vila da capitania do Piauí
a capitania e para, logo em seguida, afirmar o percentual exato dos seus moradores,
que tal qual a cor da terra – vermelha – seria sexo, condição social e faixa etária.

Relação das Pessoas, Fazendas, sítios que há nesta Capitania de São José do Piauí, até dezembro de 1774.
Mulheres

Fazendas

Fazendas que
Homens

Idades
Almas
Fogos

Cores
Sítios

têm senhorio
fora da
capitania

Brancos – 1885 Menores de


Oeiras 1002 5700 32020 2498 182 103 No Reino – 39
7 – 3320
Mulatos – 2150
De 7 até 14 –
Parnaguá 329 2433 1333 1100 60 11 Na Bahia – 50
Mestiços – 1554 2723
De 14 ate 70 – Em
Jerumenha 253 1531 869 662 69 46 Vermelhos – Pernambuco
556 12644 –4

Mamelucos –
668
De 70 até 90 –
Valença 369 2536 1356 1180 58 46 No Ceará – 6
Pretos – 3856 436

Total – 10669

De 90 até 100
Marvão 190 1326 728 598 39 50 Brancas – 1320
– 45
Mulatas – 1900
Campo No Maranhão
447 2971 1669 1302 91 49 –8
Maior Mestiças – 1554 De 100 até 120
– 13
Parnaíba 444 2694 1512 1182 79 47 Vermelhas – 575

Total 3034 19191 10669 8522 579 352 Total – 8522 Total – 19191 Total – 107

Fonte: Descrição da capitania de São José do Piauí, do ouvidor Antônio José de Morais Durão

3 Ofício do ouvidor do Piauí, António José Morais Durão, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar,
Martinho de Melo e castro], sobre o envio de uma relação dos moradores, fazendas e sítios do Piauí, sexos
e idades. Anexo: 1 doc. AHU_Piauí, Cx. 10, doc. 17. AHU_ACL_CU_016, Cx. 12, D. 684.

38 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017


Mairton Celestino da Silva

Esses dados, embora parciais, parecem perceber a presença das tradições culturais
demonstrar o quão a escravidão estava dis- e re/criações étnicas próprias desses escra-
seminada naquelas fazendas agropastoris, vos; uma espécie de herança africana que
públicas e privadas da época. Entranhada veio para o Brasil e que nunca deixou de ha-
em todo o tecido social, a escravidão se per- bitá-los.
petuava enquanto instituição legitimadora Nos documentos consultados existem
do status social e como elemento potencia- livros de casamentos reservados quase que
lizador dos ganhos materiais dos seus se- exclusivamente para os grupos de procedên-
nhores, uma vez que era no labor diário com cia angola ou os que assim se denominavam.
o gado que estes escravos estavam na sua Possivelmente, os casamentos interétnicos
grande maioria envolvidos. É exemplar des- funcionavam como ferramentas de preser-
se alastramento da instituição escrava na so- vação das suas identidades, uma vez que,
ciedade o caso envolvendo o vigário Dioní- era por meio da família que o escravo pode-
sio José de Aguiar que, em 1771, aproveitou ria conquistar certa autonomia e transmitir
a oportunidade dos batismos coletivos de a gerações futuras suas heranças culturais
escravos e inseriu os seus cativos no ritual (FARIA, 1998, 317).
cristão a fim de receberem a santa unção. Ao que tudo indica, não havia nenhum
tipo de interferência por parte dos senhores.
Na forma do sagrado Concílio Tridentino
nesta freguesia onde os contraentes são na- Diferente do que ocorria no sul do Brasil,
turais moradores fregueses sem descobrir quando, segundo Robert Slenes, os senho-
impedimento algum em minha presença res de escravos praticamente proibiam o
sendo presente as testemunhas Mathias Pin- casamento formal entre escravos de donos
to e Domingos Pereira da Silva pessoas co- diferentes ou entre cativos e pessoas livres,
nhecidas receberam por palavras do presen-
a maioria dos registros de casamento na ci-
te o crioulo Felício, filho legítimo do preto
João Borges de nação Gege e Angela Vieira dade de Oeiras nos mostra o contrário do
de nação Angola, natural e batizados nesta ocorrido naquela parte do Brasil (SLENES,
freguesia de Nossa Senhora da Vitória com 1999).
Joaquina preta de nação Mina ambos os Foi assim com os escravos Antonio de
contraentes escravos do Reverendo Vigário Abreu, preto de nação angola, e a escra-
[grifo meu] abaixo assinado logo lhes deu
va Ana Dias de Almeida, crioula e natural
as bênçãos conforme os ritos cerimoniais da
santa madre igreja do que para constar fiz da freguesia de Nossa Senhora da Vitória.
este assento e assino.4 Ambos eram de propriedade de Gaspar de
Abreu Valadares ao casarem no ano de 1766,
Por estes registros é possível mapear o na Igreja de Nossa Senhora da Vitória da ci-
total de escravos por unidades domiciliares dade de Oeiras do Piauí.
particulares, algo que só nos era possível Esses casamentos eram sempre motivos
com as fazendas do Real Fisco. Pelos regis- para muita festa. Em outubro de 1760, “o
tros de batismos e de casamentos também preto forro gentio da Guiné”, Cristovão do
nos é possível traçar genealogias de famílias Rego, casou-se com a também preta forra
escravas, observar as regras e/as constitui- gentio da Guiné, Thereza, e o reverendo vi-
ções de redes familiares entre escravos e gário responsável pela cerimônia registrou
4 Registros de Batismos 1760-1790. Arquivo da no livro de casamentos da Paróquia que a
Arquidiocese de Oeiras. cerimônia fora festejada por três dias con-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017 39


“Não convém negro sem amo”: escravos, índios e jesuítas nas fazendas da companhia de Jesus na capitania de São José do
Piauí, 1750-1800

secutivos. Seis anos depois, em 1766, seria a decide denunciar os maus tratos que vinha
vez dos pretos forros Francisco de Matos de sofrendo por parte do recém-empossado ad-
Franco, de nação Jeje, e Eugenia, “da mesma ministrador.
nação Jeje”, assumir perante o Concílio Tri- Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da
dentino a condição de casados. Antes disso, administração do Capitão Antônio Vieira do
Eugênia teria que apresentar ao vigário da Couto, casada. Desde que o capitão lá foi ad-
freguesia de Nossa Senhora da Vitória pro- ministrar que me tirou da fazenda algodões,
vas que confirmassem o falecimento do seu onde vivia com o meu marido, para ser cozi-
nheira da sua casa, ainda nela passo muito
antigo cônjuge, o preto Domingos de Souza,
mal. A primeira é que há grandes trovoadas
e que por esta razão estaria ela desimpedida de pancadas em um filho meu sendo uma
e pronta a recomeçar uma nova vida. criança que lhe fez extrair sangue pela boca,
Nesse mundo marcadamente escravis- em mim não posso explicar que sou um col-
ta, missionários, curraleiros e autoridades chão de pancadas, tanto que cai uma vez do
coloniais estavam cientes de que para bem sobrado abaixo peiada; por misericórdia de
Deus escapei. A segunda estou eu e mais mi-
administrar os espaços das fazendas teriam
nhas parceiras por confessar a três anos. E
que ceder, sujeitar-se a alguns interesses uma criança minha e duas mais por batizar.
dos subalternos e, nesse ínterim, buscar Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus
soluções para o problema da falta de mão ponha aos olhos em mim ordinando digo
de obra. No tempo dos jesuítas, acredita- mandar ao procurador que mande para a fa-
va-se que a disseminação dos batismos e zenda aonde me tirou para eu viver com meu
marido e batizar minha filha (MOTT, 2010).
casamentos funcionaria como uma estra-
tégia negociada para evitar e impedir fu- O capitão Antônio Vieira do Couto havia
gas e, como isso, manter índios, escravos sido escolhido para administrar a fazenda
e demais agregados nos domínios das fa- Poções, lugar, portanto, onde Esperança
zendas. Com a expulsão dos missionários, a Garcia estava se transferindo. Na época, a
laicização da posse da terra, deixando-a nas fazenda Poções situava-se entre as próspe-
mãos de militares portugueses ou de mes- ras propriedades deixadas pelos jesuítas. No
tiços nascidos no Brasil, apenas intensifica- rol dos bens deixados pelos jesuítas, havia
ria os conflitos no ambiente das fazendas na fazenda Poções: duas casas, currais e chi-
entre seus administradores e os escravos e queiros para cavalos, bois e porcos, todos
agregados a elas pertencentes (SOUZA JU- bem cercados com riachos e boa terra com
NIOR, 2012, 290). Os governadores seriam bastante plantação de mangas e com boas
constantemente requisitados para solucio- madeiras.
nar esses conflitos e quando não até mesmo A fazenda contava ainda com dez escra-
criticados por suas posturas violentas em vos, entre eles, Supriano [Cipriano] Criou-
relação aos subalternos das fazendas e dos lo, o vaqueiro da propriedade de 44 anos de
aldeamentos indígenas. idade. Junto com Supriano, sua esposa, a
Dois casos ilustram bem o momento de escrava Ana, de 20 anos de idade, e o filho,
desagregação da propriedade jesuítica no José Carlindo, com menos de 2 anos de ida-
Piauí. Em 06 de setembro de 1770, portan- de. Graçião Angola de 45 anos e sua mulher
to, dois anos antes da expulsão dos jesuítas, Graçia, de 38 anos, fecham a lista dos escra-
a escrava Esperança Garcia pertencente a vos casados presentes na Fazenda Poções.
uma das fazendas da Companhia de Jesus Marcelino Crioulo, José Crioulo, Marcos

40 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017


Mairton Celestino da Silva

Crioulo, Francisco Crioulo e Nazário Crioulo nio Vieira do Couto aos seus subordinados,
encerram a lista dos prováveis escravos que independentemente de serem pretos velhos
acompanharam de perto as desventuras da ou moços, todos, na sua administração, tra-
escrava Esperança Garcia e seus dois filhos. balhavam todas as noites e sem descanso.
Quando se viu forçada a sair da fazenda Nesse documento, o autor anônimo afir-
Algodões para a fazenda Poções, a escrava ma que o capitão Vieira do Couto dizia aos
Esperança Garcia tinha como seu adminis- escravos que estava na função de adminis-
trador o tenente de cavalaria José Esteves trador da fazenda Poções para “ensinar os
Falcão. Na época, José Esteves Falcão acu- ditos escravos” a se empenharem em “socar
mulara a mesma função administrativa na mamona, em desmanchar mandioca e outro
fazenda Serrinha e,durante toda a trajetó- serviço”. Ao buscar dirimir a situação, o au-
ria enquanto agente colonial, adquiriu o tor do documento se manifesta como “inter-
respeito de muitos governadores do Piauí; cessor” entre as três partes, ou seja, o gover-
sobretudo, de João Pereira Caldas, que no nador da capitania, o capitão Antônio Vieira
ano de 1760, cogitara seu nome para ocu- do Couto e a escrava Esperança Garcia.
par o cargo de Almoxarife da Fazenda Real, Possivelmente, o intercessor da causa da
posição estratégica na visão do próprio Pe- escrava Esperança Garcia tenha sido José
reira Caldas, uma vez que tal cargo funcio- Esteves Falcão. Assim como no governo de
naria para desvincular as receitas da capi- João Pereira Caldas, José Esteves tinha boa
tania do Piauí às do Maranhão.5 Em 1763, relação na administração do governador
José Esteves Falcão finalmente tomaria Gonçalo Lourenço Botelho de Castro (1769-
posse como Almoxarife da Fazenda Real e 1775). Inclusive, além de administrador das
até o ano de 1765 tem-se notícia da sua pre- fazendas da Nação, José Esteves Falcão
sença no cargo. sempre era nomeado para resolver esse tipo
Tempos depois, José Esteves Falcão dei- de conflito em nome dos interesses da ad-
xaria o almoxarife da Fazenda Real para ministração colonial. Em janeiro de 1772, no
ocupar-se da função de administrador das auge das invasões dos índios Pimenteira nas
fazendas Algodões e Serrinha. Na época em fazendas situadas às margens dos rios Piauí
que a escrava Esperança Garcia foi forçada a e Parnaíba e de fugas dos aldeamentos dos
sair da fazenda Algodões, seu administrador índios Guguê, Jaicó e Acoroá para as matas,
era José Esteves Falcão. Junto à carta que José Esteves recebe uma carta instrutiva
expõe os sofrimentos da escrava Esperança do governador Lourenço Botelho de Castro
Garcia, havia outro documento não datado e autorizando-o a reorganizar os negócios na
sem assinatura do autor. O documento ape- capitania.
nas reforça o conteúdo das arbitrariedades Diante dessa situação, o governador
cometidas pelo procurador e capitão Antô- Lourenço Botelho de Castro se referiria a
José Esteves Falcão como o único vassalo
5 Ofício do [governador do Piauí], João Pereira “bem circunstanciado para o exercício deste
Caldas, ao [Secretaria de estado da Marinha e
Ultramar], Tomé Joaquim da Costa Corte Real,
emprego” na capitania do Piauí. Não resta
sobre a necessidade de um Almoxarifado inde- dúvida de que tais atributos contribuíram,
pendente do Maranhão, e o serviço do recebedor sobremaneira, para colocá-lo na condição
da Fazenda Real, José Esteves Falcão. Anexo: 06
docs. AHU-Piauí, Cx.6, doc. 7, 1/AHU_CU_016, de membro do governo interino da capitania
Cx. 6, D. 380. do Piauí durante o ano de 1775.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017 41


“Não convém negro sem amo”: escravos, índios e jesuítas nas fazendas da companhia de Jesus na capitania de São José do
Piauí, 1750-1800

Outra situação que o deixa na condição Sobre a constituição dos matrimônios


de interventor da pendenga e de provável no mundo da escravidão, Sheila de Castro
simpatizante ao apelo da escrava Esperan- concluiu que para o Rio de Janeiro parecia
ça Garcia em reaver sua família encontra-se haver por parte dos cativos um sentimento
na própria carta quando o autor afirma que favorável ao matrimônio católico; contudo,
soubera do conflito por meio de uma por- isso não significou uma passividade dos es-
taria que chegara “até a fazenda Serrinha” cravos aos ditames e preceitos dos senhores
e que relatava os maus instintos e a forma e missionários, muito menos uma perda das
como o capitão Antônio Vieira do Couto cas- identidades africanas. Com uma rigidez hie-
tigava seus escravos. rárquica, típica das sociedades escravistas
Como vimos, José Esteves Falcão ad- onde as mobilidades estavam continuamen-
ministrava tanto a fazenda Algodões como te atreladas a elementos de ascendência fa-
Serrinha no momento em que a escrava Es- miliar e cor/qualidade, restava aos escravos
perança Garcia inicia sua odisséia pelas fa- e aos demais subalternos aproveitarem as
zendas da Nação. A rede de apoios em so- poucas brechas/oportunidades construídas
lidariedade a causa da escrava não ficaria no interior daquela sociedade para re/estru-
restrita ao administrador da fazenda José turar suas vidas.
Esteves Falcão. Os escravos de ambas as Já no documento que acompanhava a
fazendas parecem que municiaram o inter- carta, as prerrogativas de proteção solicita-
ventor de informações a respeito dos maus das pelo interventor se estendiam a todos
tratos pelos quais estavam sofrendo desde a os escravos. Mais do que isso, o documento
chegada de Antônio Vieira do Couto. Sobre tornava evidente o auxílio que o governador
essas denúncias, embora a carta da escrava deveria ter em relação aos escravos, pon-
Esperança Garcia tenha um conteúdo escri- do-lhes “os olhos de piedade em ver estas
to em primeira pessoa, dando ao documento lástimas porque não tem quem fale por es-
um caráter particular, suas súplicas em re- tes mais que a misericórdia divina de V.Sa.
lação à manutenção dos direitos dos súditos abaixo de Deus, pois os ditos escravos não
em se confessar são exemplificadas de modo têm outro jazigo senão o amparo de V.Sa”.
generalizante, reforçando, portanto, o igual A história de Esperança Garcia não che-
caráter coletivo das suas queixas. garia até os dias atuais se não tivesse o apoio
Para sensibilizar os superiores e se livrar de outros escravos e do próprio administra-
dos maus tratos, Esperança Garcia utiliza dor das fazendas Algodões e Serrinha, José
como prerrogativa as doutrinações impostas Esteves Falcão. Transpor para o mundo do
pelos jesuítas na época em que as fazendas papel as dificuldades que permeavam a vida
estavam em domínio dos missionários da dos escravos não seria algo exclusivo da es-
Companhia de Jesus, ou seja, a necessida- crava Esperança Garcia e, muito menos,
de dos batismos e dos casamentos entre os restrito ao mundo colonial português. Ao
escravos, índios e agregados. Ciente do seu analisarem a trajetória familiar da escrava
mundo e dos limites que sua condição de es- Rosalie da Senegâmbia, no continente afri-
crava podia propiciar, Esperança Garcia uti- cano, passando por Saint-Domingue, San-
lizou a estratégia dos conquistadores para tigo de Cuba e outras regiões das Américas
angariar vantagens e com isso re/planejar até chegar à Europa do século XX, os histo-
seu destino perto dos seus filhos e marido. riadores Rebeca J. Scott e Jean M. Hebrard

42 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017


Mairton Celestino da Silva

(SCOTT; HEBRAD, 2014, 90) perceberam Senhora de Nazaré apresentava baixa diver-
o quanto as relações de poder próprias do sidade étnica no plantel de escravos, com
mundo da escravidão foram entendidas pe- predominância de africanos de procedência
los escravos em associação com a necessi- angola, na ordem de 31 escravos arrolados
dade de incorporar suas reivindicações no com a denominação de angolas dos 101 en-
mundo da escrita. contrados nas unidades de produção. Em
Ao se descobrirem sujeitos escravizados, termos comparativos, os Minas aparecem
muitos deveriam compreender que suas vi- em segundo lugar, com 5 escravos e, em se-
das estariam, a partir daquele momento, guida, 1 africano de procedência Congo. Os
submetidas a uma série de regras solidamen- demais estão inventariados na condição de
te referendadas por distinções hierárquicas crioulos e mestiços.
e de privilégios. Nesse ambiente marcada- Entre as fazendas com o maior percen-
mente de Antigo Regime, muitos súditos do tual de angolas estava a fazenda Guaribas,
vasto império português escolheriam seguir com 7 escravos angolas (13,8%); a fazen-
o caminho da escrita como plataforma de da Mato, que apresentava um plantel total
suas denúncias, daí “a importância dos do- de apenas 4 escravos (4%) - sendo todos
cumentos em uma sociedade escravista”. de procedência Angola- e a fazenda Algo-
Por meio desses indícios documentais dões, com mais 4 Angolas que dividiam as
é que tivemos acesso ao mundo do tenente tarefas do cotidiano da fazenda com mais
José Esteves Falcão. Sua projeção enquan- 14 escravos classificados como mestiços e
to agente colonial o fez elaborar poucos, crioulos.
porém essenciais registros sobre suas ativi- Os escravos das fazendas da Nação ti-
dades como almoxarife e administrador das nham consciências das conquistas adqui-
fazendas da nação. Em relação aos escravos ridas desde o tempo dos missionários da
que viveram nas fazendas Algodões, Poções Companhia de Jesus. Entre os ganhos, es-
e Serrinha e que, porventura, conviveram tavam: as garantias em torno das partilhas
com a escrava Esperança Garcia, a única in- dos animais nascidos nas fazendas, acessos
formação disponível reside na Relação dos aos ritos e cerimônias do catolicismo, como
Escravos das fazendas da Inspeção de Nos- o compromisso dos matrimônios entre os
sa Senhora de Nazaré, um documento deta- escravos, batismos e confrarias religiosas
lhando o percentual de escravos residentes as conhecidas irmandades de pretos (RE-
nas fazendas da Nação no ano de 1778. GINALDO, 2005). Essa percepção da reali-
No final da década de 1770, as fazendas dade escravista impunha-lhes a difícil tare-
pertencentes à inspeção de Nossa Senhora fa em reconhecer a escravidão; contudo os
de Nazaré, antes vinculadas aos missioná- estimulavam, igualmente, a definir a partir
rios da Companhia de Jesus, seriam arrola- dos seus próprios referenciais os limites do
das em inventário dos bens semelhantes ao poder dos seus senhores e dos maus-tra-
ocorrido no ano de 1770 nas fazendas das tos aos quais estavam sujeitos. Nesse caso,
inspeções do Canindé e Piauí. Na relação ha- como fez a escrava Esperança Garcia, op-
via um total de 101 escravos entre africanos, tar pela tradição religiosa do colonizador
mestiços e crioulos presentes nas proprie- não significou tornar-se inerte à escravidão,
dades confiscadas pelo governo português. mas, ao contrário disso, tentou subvertê-la
Diferente das demais inspeções, a de Nossa por dentro, questioná-la a partir daquilo que

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017 43


“Não convém negro sem amo”: escravos, índios e jesuítas nas fazendas da companhia de Jesus na capitania de São José do
Piauí, 1750-1800

uma escrava definia como sendo escravidão, Referências bibliográficas


maus tratos e limites do poder dos senhores
ABREU, Capistrano de. Capítulos de história
sobre seus subalternos. Colonial: 1500-1800. Brasília: Conselho Edi-
Não se tem notícia detalhada do desfe- torial do Senado Federal, 1998.
cho da história envolvendo Esperança Gar- ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Me-
cia; sobretudo quando tomamos os aconte- mória cronológica, histórica e corográfi-
cimentos posteriores à escrita da carta. En- ca da província do Piauí. Teresina: SEDUC,
tretanto, na relação dos escravos da fazenda 2005.
Algodões do final da década de 1770, dos 18 ALENCASTRO, Luís Felipe de. O Trato dos vi-
escravos pertencentes aparecem na listagem ventes. A formação do Brasil no atlântico
Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000;
uma escrava de nome Esperança crioula, de
27 anos de idade e casada com o também ANTONIL, André João. Cultura e Opulên-
escravo africano Ignácio Angola, de 57 anos cia do Brasil. 3 Ed. Belo Horizonte: Itatiaia/
Edusp, 1982.
de idade. Na listagem, aparecem ainda cin-
co escravos com idades entre 1 a 9 anos de ASSUNÇÃO, Mathias Rohrig. “Maranhão, terra
de mandinga”. In: Comissão Maranhense de
idade. Diferente do censo de 1760, em que
Folclore. Boletim on-line nº 20, 2001.
havia o cuidado em associar a cada casual de
escravos a presença ou não de filhos, nesse AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no
Grão-Pará: suas missões e a colonização.
os escravos de menor idade apenas apare- Belém: SECULT, 1999.
cem no final da lista, dando a ideia de uma
CARVALHO, Padre Miguel. “Descrição do sertão
eventual ausência de famílias escravas.
do Piauí remetida ao IHmº.e Rmº Senhor Frei
Esperança Garcia tinha consciência de Francisco de Lima, Bispo de Pernambuco”. In:­
que as ações truculentas do administrador ENNES. Ernesto. As guerras dos Palmares
da fazenda Poções não tinham respaldo (Subsídios para sua história): Domingos
Jorge Velho e a “Tróia Negra” 1687-1700.
nem mesmo na própria instituição escrava; São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.
ainda assim, suas reclamações só teriam efi-
CHAMBOULEYRON, Rafael. “Escravos do
cácia caso outros sujeitos, escravos e livres,
Atlântico Equatorial: tráfico negreiro para o Es-
aderissem a sua causa e compartilhassem tado do Maranhão e Pará (século XVII e início
do mesmo sentimento de insatisfação em do século XVIII)”. In: Revista Brasileira de
relação ao cativeiro, aos maus tratos e à ma- História. São Paulo, Vol. 26, nº 52, p.79-114,
2006.
neira truculenta como Antônio Vieira do
Couto acolhia suas solicitações em querer COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Crono-
viver com sua família na antiga fazenda. Ao logia histórica do Estado do Piauí. 3ª Ed.
V. 01. Teresina: Academia Piauiense de Letras,
conseguir apoio, Esperança Garcia utilizou 2015.
a escrita como ferramenta para criticar as
DIAS, Manuel Nunes. A Companhia Geral
posturas dos inspetores das fazendas nacio-
do Grão Pará e Maranhão (1755-1778). São
nais, sugerindo que os mesmos agissem de Paulo: Secção Gráfica da USP, 1971.
acordo com as regras jurídicas e religiosas
GOMES, Flávio dos Santos. “Um recôncavo,
dos colonizadores que concediam aos sú- dois sertões e vários mocambos: quilombos na
ditos prerrogativas simples como as de se capitania da Bahia (1575-1808)”. História So-
conservarem cristãos, constituírem famílias cial. Campinas-SP. Nº 2. 1995.
e batizarem seus filhos nos preceitos do ca- MOTT, Luiz. Piauí Colonial: População,
tolicismo. Economia e Sociedade. 2ª Ed. Teresina:

44 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017


Mairton Celestino da Silva

APL/FUNDAC/DETRAN, 2010. família escrava, Brasil, Sudeste, século


XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil
contemporâneo. 23ª. Ed. São Paulo: Editora SOUZA JÚNIOR, José Alves de. Tramas do
Brasiliense, 1994. cotidiano: religião, política, guerra e ne-
gócios no Grão-Pará do setecentos. Belém:
PRADO JR, Caio. História econômica do Ed. UFPA, 2012.
Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2006.
PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros:
povos indígenas e a colonização do sertão Documentos
Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Memória de Domingos Gomes sobre a descrição
Hucitec, 2002.
das fazendas existentes no Piauí. AHU- PIAUÌ
REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Ango- – CU- 016, Cx. 7. Doc. 15. 02 de Dezembro de
las: irmandades negras, experiências es-
1722. Os escritos do padre Domingos Gomes
cravas e identidades africanas na Bahia
setecentista. Campinas, SP: [s.n], Tese (Histó- se situam no momento da morte de Domin-
ria). Programa de Pós-Graduação em História. gos Afonso Sertão, em 1711. Fase essa em que
UNICAMP, Campinas, 2005. a Companhia de Jesus encaminhará ao Juiz de
SCOTT, Rebecca J e HÉBRARD, Jean M. Pro- Terras as suas reais pretensões em tomar posse
vas de liberdade: uma odisseia atlântica das fazendas de Domingos Afonso localizadas na
na era da emancipação. Campinas-SP: Edi- Capitania do Piauí.
tora da Unicamp, 2014.
SLENES, Robert. Na senzala, uma flor: es- Recebido em: 25/05/2017
peranças e recordações da formação da Aprovado em: 21/07/2017

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 32-45, jul./dez. 2017 45


De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX

DE GBE A IORUBÁ: OS PRETOS MINAS


NO RIO DE JANEIRO, SÉCULOS XVIII–XX

Juliana Barreto Farias*


Mariza de Carvalho Soares**

Resumo
Ao longo dos séculos de vigência da escravidão, a cidade do Rio de Janeiro reu-
niu um grande número de escravos africanos de diferentes procedências. A do-
cumentação demonstra a recorrente referência aos chamados “minas”, que co-
meçam a ser regularmente registrados no final do século XVII na Bahia e, nos
primeiros anos do século XVIII, no Rio de Janeiro. Nosso objetivo, neste artigo,
é justamente mapear a diversidade da composição linguística e étnica dos africa-
nos designados “minas” na cidade do Rio de Janeiro ao longo dos séculos XVIII e
XIX, chegando mesmo a princípios do século XX, e avaliando assim em que me-
dida, nos limites das fontes disponíveis, esses critérios podem ser considerados.
Palavras-chave: Rio de Janeiro; Africanos; Minas; Escravidão; Etnicida-
de; Língua.

Abstract
FROM GBE TO IORUBÁ: MINA PEOPLE IN RIO DE JANEIRO
The city of Rio de Janeiro concentrated one of the largest African born slave po-
pulation in the Americas. Despite the majority of West Central African slaves the
West African slave population was also significant in the city. The so called Mina
slaves, most of them embarked in the ports of the Bight of Benin. This chapter
demonstrates the diversity of the linguistic and ethnic composition of Mina peo-
ple in the city of Rio during the era of the Atlantic slave trade and beyond, consi-
dering the remaining Mina population in the city until the 1930s.
Key words: Rio de Janeiro; Africans; Minas; Slavery; Ethnicity; Languistic.

Não há como falar dos africanos minas na rentes portos de desembarque ao longo da
cidade do Rio de Janeiro sem pensar o con- costa brasileira. Mesmo se deixadas de lado
junto do comércio atlântico de escravos e a as áreas de menor destaque, Rio de Janeiro
distribuição dos africanos segundo os dife- e Salvador constituíram os dois principais

* Juliana Barreto Farias é professora-adjunta dos Cursos de Licenciatura em História e Bacharelado em


Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB)-BA
e do Mestrado em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras da UNEB-Campus 1. E-mail:
julianafarias@unilab.edu.br.
** Mariza de Carvalho Soares é professora do Programa de Pós-graduação em História da UFF, pesquisado-
ra do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ e curadora da coleção africana do Setor
de Etnologia e Etnografia da instituição. E-mail: marizacsoares@gmail.com

46 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017


Juliana Barreto Farias; Mariza de Carvalho Soares

segmentos dessas rotas e os maiores pon- escravos e mesmo a escravidão, os chamados


tos de dispersão de cativos para o interior “minas” ainda eram reconhecidos na cidade
do Brasil durante toda a vigência do tráfico do Rio, chegando a última geração de africa-
atlântico de escravos. nos vindos da Costa da Mina às primeiras dé-
Na cidade do Rio de Janeiro, onde os afri- cadas do século XX.2
canos da costa centro ocidental eram majori- De modo ainda exploratório a inten-
tários, eles se apresentavam em grupos dis- ção deste artigo é mapear a diversidade da
tintos, entre eles os mais conhecidos foram composição linguística e étnica dos africa-
os congos, os cabindas, os angolas, os ben- nos designados “minas” na cidade do Rio de
guelas, os cassanges, entre outros. Já os afri- Janeiro ao longo dos séculos XVIII e XIX,
canos da costa ocidental, minoritários, se re- chegando mesmo a princípios do século XX,
uniram sob a designação mais geral “mina”. e avaliando assim em que medida, nos limi-
Na Bahia, o oposto acontece: os africanos da tes das fontes disponíveis, esses critérios po-
costa ocidental, em maioria, aparecem sob dem ser considerados.
diferentes designações (nagôs, jejes, haus-
sás, bornus, etc), enquanto os da costa centro Os pretos minas no Rio de
ocidental têm identificações mais genéricas Janeiro
(angolas e benguelas são os mais menciona-
A recorrência da designação “mina” dá a
dos). Isso indica que grupos maiores buscam
esse segmento da população escrava a falsa
estratégias de diferenciação, enquanto os
ideia de uma continuidade e semelhança na
menores tendem a se unir para fazer frente
identificação dos escravos assim classifica-
às dificuldades impostas pela presença dos
dos. Retomando o argumento apresentado
grupos majoritários. Este era exatamente o
acima, investigamos a chamada nação mina
caso dos minas no Rio de Janeiro que, mes-
para além desta designação genérica, iden-
mo demograficamente minoritários, tinham
tificando a variedade étnica e linguística do
grande visibilidade na cidade.
contingente escravo aí contido e traçando
Tal constatação não elimina a urgência de
as rotas de deslocamento dessa população,
pesquisas que trabalhem com maior atenção
desde os prováveis territórios de onde saí-
os três séculos da escravidão africana bus-
ram até seu reassentamento na cidade do
cando as particularidades de cada período e
Rio de Janeiro.3
situação. A cidade do Rio de Janeiro reuniu
No Brasil de um modo geral, e no Rio de
ao longo dos séculos de vigência da escravi-
Janeiro em particular, os escravos identi-
dão um grande número de escravos africanos
ficados como mina foram embarcados nos
de diferentes procedências. A documentação
portos da Baía do Benim, ao longo do lito-
demonstra a recorrente referência aos cha-
ral que hoje corresponde a três países: Togo,
mados “minas”, que começam a ser regular-
Benim e Nigéria. Mas os locais de onde eles
mente registrados no final do século XVII na
2 Para a última referência a um “mina” na histo-
Bahia e, nos primeiros anos do século XVIII,
riografia da cidade ver: FARIAS, 2005, p. 265-
no Rio de Janeiro.1 Já no final do oitocentos, 291. Embora tenha nascido no Rio de Janeiro, fi-
bem depois de extinto o comércio atlântico de lho de pais “minas”, Assumano – até pelo menos
a década de 1930 – ainda era identificado como
1 Sobre os minas na cidade do Rio de Janeiro, “mina” na cidade do Rio.
ver: SOARES, 2000a; SOARES, 2007; GOMES; 3 Para uma abordagem mais detalhada sobre na-
SOARES, 2001; FARIAS; GOMES; SOARES, ções e grupos de procedência, ver: SOARES,
2005; FARIA, 2004; FARIAS, 2015. 2004.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017 47


De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX

efetivamente provinham eram bem diferen- nas, por exemplo, a documentação do século
tes em termos de geografia, grupos étnicos, XVIII informa que esses africanos falavam a
línguas, culturas, meio ambiente em que vi- “língua geral da Mina”, que ao que tudo in-
viam, práticas econômicas e formas de or- dica corresponde a uma mistura de línguas
ganização política. Eram no seu conjunto gbe e ioruba, cuja composição está longe
povos diversos que foram escravizados em de ser decifrada pelos linguistas.4 Entre os
diferentes momentos de suas histórias em membros dessa irmandade, existiam mahis,
função da demanda do comércio atlântico daomeanos e também pelo menos um irmão
de escravos. Pode-se hoje afirmar que a “na- vindo de Dassa, uma pequena localidade já
ção mina” engloba indivíduos que pertence- dentro do território mahi, mas constituída
ram a diferentes povos e que, dentre eles, os por uma população procedente da área ioru-
mais numerosos foram os conhecidos como bá que manteve o uso da língua iorubá em
de línguas do grupo gbe (entre eles o fon e seu novo território. Portanto, são infinitas as
o mahi são as já reconhecidas) e do iorubá. possibilidades de rearranjos dos dois lados
Entretanto, nem sempre essa presença foi do Atlântico que dificultam e limitam a aná-
equilibrada e, embora esse seja um cálculo lise linguística como referência para a identi-
difícil de ser feito pela análise da documen- ficação da procedência dos escravos.
tação disponível, é possível estimar que os O mesmo se pode dizer para a questão
escravos procedentes de regiões onde predo- da identidade étnica. Nessa mesma irman-
minaram as línguas gbe foram mais nume- dade alguns membros se identificam como
rosos no século XVIII, enquanto os escravos “couras” (ou couranos) e “cabus”. Nenhuma
vindos de áreas de língua iorubá começaram dessas designações é conhecida na histo-
a ser importados em maior número a par- riografia africanista, o que traz problemas
tir do final do século XVIII e se tornariam para sua localização. Entretanto, não resta
maioria ao longo do século XIX. qualquer dúvida que no Brasil eles se identi-
O uso do mapeamento linguístico para ficavam como tal, fazendo explícita referên-
identificação da procedência dos escravos cia a uma “terra” coura e cabu, nos mesmos
é um recurso usual na historiografia africa- moldes em que outros grupos se referiam às
nista e, por consequência, também na histo- suas terras (SOARES, 2004). Desse modo,
riografia da diáspora. Contudo, esse método também a questão da identificação étnica se
traz uma série de problemas, na medida em apresenta como um problema.
que, em toda a área do entorno da Baía do O que temos então a nosso dispor para
Benim, essas línguas apareciam misturadas, avançar no esforço de identificar a popula-
muitas vezes em decorrência de desloca- ção escrava africana residente na cidade do
mentos, casamentos interétnicos, etc. Assim, Rio de Janeiro são dados relativos às nações
torna-se impossível estabelecer uma equiva- às quais diziam pertencer (no caso, a nação
lência entre língua, cultura e grupo étnico. mina), às terras onde situam seu ponto de
Esse problema se agrava na identificação da partida (quando conseguimos obter essas
população escrava no Rio de Janeiro, já que informações) e à seus vínculos de ancestrali-
as formas de organização dos africanos na ci- dade (terra dos mahi, dos couras, dos cobus,
dade nem sempre seguiam tal critério. Na Ir- dos daomeanos, dos haussa, etc). Entretan-
mandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, 4 Sobre o letramento e o uso da língua geral da
composta por uma maioria de africanos mi- mina nesta irmandade, ver: SOARES, 2000 b.

48 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017


Juliana Barreto Farias; Mariza de Carvalho Soares

to, é importante deixar claro que essas et- na cidade do Rio de Janeiro, tirando provei-
nias não são transportadas para as Améri- to de uma identidade comum alargada que
cas. Indivíduos podem continuar se identifi- veio a ser conhecida como “mina”.
cando assim porque fazem referência a uma Ao longo do século XVIII, a documenta-
vivência passada e a uma consciência de que ção indica uma predominância de escravos
tal etnia existia e por isso podiam se referir egressos das áreas de línguas pertencentes
a ela, mas o grupo ao qual se diziam per- ao tronco gbe (fon, ewe, mahi, entre outras).
tencer podia estar longe, do outro lado do Já no século XIX, cresce progressivamen-
Atlântico. Trata-se daquilo que o antropólo- te a presença de escravos vindos das áreas
go Johannes Fabian chama de coetaneida- de predominância da língua ioruba. O que
de (“coevalness”), ou seja, a consciência de acontece nesse processo de substituição é
uma existência no mesmo tempo, mas não que, quando esses novos escravos de língua
no mesmo lugar (FABIAN, 2013). No Rio de iorubá começaram a chegar em maior nú-
Janeiro, o mahi era mina. A identidade mina mero à cidade, especialmente a partir da dé-
apontava para um esforço de construção de cada de 1830, adotaram a terminologia mina
uma forma de identificação que reunia um já existente para os demais africanos da cos-
conjunto de desgarrados, ou melhor, dester- ta ocidental, não reivindicando, pelo menos
rados em arranjos precários e provisórios. de modo exclusivo, a identidade nagô, como
Em resumo, o uso do termo “mina” en- aconteceu na cidade de Salvador, onde os
cobria várias modalidades de diversidade e africanos da Costa da Mina até então igual-
resultava de uma estratégia bem estabeleci- mente do tronco gbe eram majoritários.
da para melhor gerir no interior do grupo a De todo modo, as primeiras investigações
nova forma de organização. O presente texto sobre os escravos mina no Rio de Janeiro se-
mostra que, ao longo do tempo, houve uma guiram na contramão dos estudos sobre a es-
variação de predominâncias linguísticas, ét- cravidão e o comércio de escravos na cidade
nicas, e que o que todos tinham em comum do Rio de Janeiro onde, ao longo de toda a vi-
era a procedência da Costa da Mina. Assim gência do sistema escravista, predominaram
sendo, cada um desses indivíduos pertenceu os escravos vindos da costa centro ocidental
(angolas, benguelas, cabindas e congos). Nos
no passado a um grupo étnico, alguns deles
últimos anos, até mesmo de modo despropor-
podiam estar novamente reunidos na cidade
cional do ponto de vista demográfico, cresceu
do Rio de Janeiro, mas o que tinham como
o interesse pelos minas e a historiografia da
perspectiva era a organização de grupos
cidade hoje carece de trabalhos sobre os es-
identitários baseados num passado étnico;
cravos africanos que compuseram a grande
num multilinguismo a que já estavam habi-
maioria da população cativa urbana vindas
tuados em seus territórios ancestrais; e, por
de outras partes da África, especialmente da
fim, na possibilidade de constituir uma nova
costa centro ocidental.
identidade calcada na procedência comum
(Costa da Mina) que lhes foi atribuída pela
A questão da etnicidade na
situação de escravização. Mas, em meio a
essa designação genérica, muitas particula-
diáspora
ridades foram preservadas e são fundamen- No início do século XVII, a população da ci-
tais para uma adequada compreensão do dade do Rio de Janeiro girava em torno de
modo como esses africanos se organizaram 3.850 pessoas: 750 portugueses, 100 africa-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017 49


De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX

nos e 3.000 índios e mestiços. A epidemia de incluía 222 escravos. Os africanos ali identi-
1613 teria afetado gravemente a população ficados por sua procedência aparecem em 14
indígena, levando a uma demanda crescente crianças nascidas na freguesia, cujas mães
de mão de obra africana (CARVALHO, 1994, eram africanas: dez delas eram ditas “de Gui-
p. 32; ARAÚJO, 1948, p. 239-241). Em 1699, né”, três “mina” e uma “fula”. O volume lista
Portugal abriu o comércio entre o Brasil e a ainda o batismo de uma criança mina e de
Costa da Mina, que passou a ser feito através outros sete africanos adultos: quatro mulhe-
de licenças de viagem. Essa rota já era usual res minas, dois homens minas e uma mulher
para a Bahia desde a década de 1670 e, a loango.5 São, ao todo, dez minas num total
partir de então, começavam a ser autorizada de 222 escravos. O importante a ser destaca-
também a viagens a partir do Rio de Janeiro. do aqui é que, muito provavelmente, a com-
Baseado em relatos de época, o histo- posição étnica e linguística desse pequeno
riador Patrick Manning demonstrou que a contingente era semelhante ao encontrado
maioria dos escravos embarcados nos portos por Manning no México. O que nos leva a
da Baía do Benim levados para o México nos reconhecer os minas do Rio de Janeiro tam-
primeiros anos do século XVIII era proce- bém como prováveis procedentes das áreas
dente de áreas de predominância de uso das de população de línguas Gbe, o que – grosso
línguas Gbe. Manning contou 15 Aja (língua modo – correspondia aos territórios do rei-
Aja/Gbe), 6 Calabar (porto de embarque na no do Daomé e seu entorno, onde à época se
Baía de Biafra), 12 Fon (língua Fon/Gbe), desenrolavam constantes conflitos armados
7 Allada (cidade com população de línguas decorrentes da expansão do Daomé em dire-
Gbe), 7 Ouidah (reino/porto com população ção ao litoral, justamente para ampliar sua
de língua predominantemente Gbe), 7 Popo capacidade de articular o comércio de escra-
(reino/porto com população de língua pre- vos com os europeus (LAW, 1991).
dominantemente Gbe) e 1 Oyo (cidade com Nas décadas seguintes, aumentou o de-
população de língua predominantemente sembarque de escravos da Costa da Mina na
iorubá). Excluídos os seis escravos vindos de cidade do Rio de Janeiro, tornando-se então
Calabar e um único indicado como de Oyo, mais fácil reconhecê-los. Dados mais consis-
todos os demais fazem alguma referência às tentes sobre a presença de escravos vindos
línguas gbe e aos territórios e portos desses do entorno da Baía do Benim para o Rio de
povos no entorno da Baía do Benim, onde Janeiro foram encontrados na documenta-
essas populações viviam e onde os escra- ção relativa às irmandades católicas, em es-
vos dessas procedências eram embarcados pecial a Irmandade de Santo Elesbão e San-
(MANNING, 1979, p. 125-129). ta Efigênia, fundada em 1740 por africanos
Tal constatação ajuda a pensar a compo- minas. Essa confraria reunia africanos de
sição da população mina na cidade do Rio várias procedências, excluídos aqueles vin-
de Janeiro e no Recôncavo da Guanabara no dos de Angola, já então reunidos na Irman-
mesmo período. Nos primeiros anos do sé- dade de Nossa Senhora do Rosário. Assim
culo XVIII, cativos identificados como mina sendo, compunham a direção da Irmandade
ainda eram raros na documentação da cida- de Santo Elesbão e Santa Efigenia africanos
de e de seus arredores. A primeira referência oriundos da Costa da Mina, de Cabo Verde,
encontrada até agora foi a de um livro de ba- 5 A transcrição na íntegra do referido livro de ba-
tismo de escravos de Irajá (1704-1708), que tismo encontra-se em: PINTO, 1988, p. 129-173.

50 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017


Juliana Barreto Farias; Mariza de Carvalho Soares

São Tomé e Moçambique. Considerando 1751, a cidade tinha apenas duas freguesias
que seriam necessários de dez a vinte anos (Sé e Candelária). Entre 1718 e 1733, a Sé re-
para um cativo africano se alforriar e jun- gistrou o batismo de 1.074 escravos minas,
tar algum patrimônio de modo a arcar com todos adultos, provavelmente com mais de
o custo da construção de uma igreja, cujas 12 anos.8 Entre eles, estava Pedro Mina, de-
obras se iniciaram em 1746, pode-se estimar pois Pedro Costa, o primeiro rei mina elei-
que os membros do grupo fundador devem to na irmandade de Santo Elesbão. Nada se
ter começado a chegar por volta da década sabe sobre sua vida pregressa, mas por al-
de 1720. Sem mencionar outras guerras me- gum motivo foi comprado e batizado pelo
nos conhecidas, esta foi justamente a épo- então Desembargador Ouvidor Geral do Rio
ca dos maiores conflitos na Costa da Mina, de Janeiro, Manoel da Costa Mimozo. Pedro
quando o reino do Daomé invadiu Allada é citado em dois documentos importantes,
(1724) e Ouidah (1727). Dessa forma, mais seu batismo e também um relato da irman-
uma vez é possível estimar que os escravos dade de Santo Elesbão e Santa Efigênia.9
ditos “minas” que se estabeleceram no en- A documentação dessa irmandade per-
torno da Baía de Guanabara entre 1720 e mite uma identificação mais precisa da
1750 fossem em sua maioria egressos desses composição étnica dos membros da irman-
conflitos. Fica em aberto a identificação de dade vindos da Costa da Mina.10 Haviam en-
alguns subgrupos minas que não só apare- tre eles homens e mulheres procedentes de
cem na documentação do Brasil como de diferentes localidades. Entre os territórios
(por eles chamados “terras”) mencionados
outras partes das Américas, como México,
estão a terra dos maquis (mais conhecidos
entre os quais os já mencionados já cobus e
como Mahi), assim como indivíduos vindos
couras.6
de Savalu, Dassa, Za e Agonli. Todas essas
O reconhecimento dos escravos oriundos
localidades ficavam em territórios ocupados
da Costa da Mina na documentação da ci-
por populações majoritariamente de línguas
dade do Rio de Janeiro e de seu entorno re-
gbe, embora em alguns casos, como Dassa,
sulta do fato de que esses escravos não eram
também sejam encontrados falantes de io-
batizados antes do embarque, sendo neces-
sário que os proprietários o fizessem após 8 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Ja-
neiro. Livros de batismo de escravos da Fregue-
a compra.7 Os registros de batismo desses sia da Sé, 1718-1726 e 1726-1733.
cativos que chegavam aqui adultos e pagãos 9 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Ja-
gerou uma considerável série de assentos neiro. Livros de batismo de escravos da Fregue-
sia da Sé, 1726-1733, setembro de 1727, fl 38;
preciosos para o estudo da composição da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, "Regra
população mina da cidade. O primeiro livro ou estatutos pormodo de hûm dialogo onde,
sedá notiçias das Caridades e Sufragaçoens das
de batismo de escravos disponível para a ci-
Almas que uzam osprettos Minnas, comseus
dade do Rio de Janeiro data de 1718, corres- Nancionaes no Estado do Brazil, expecialmente
pondendo aos cativos da freguesia da Sé. Até no Rio de Janeiro, por onde se hao de regerem
egôvernarem fora detodo oabuzo gentilico e su-
6 Uma hipótese sobre esses grupos – que ainda persticiozo; composto por Françîsco Alvês de
carece de pesquisa complementar – foi apresen- Souza pretto enatural do Reino de Makim, hûm
tada em SOARES, 2007. dos mais exçelentes e potentados daqûela ôriun-
7 O batismo de escravos já regulamentado pelas da Costa da Minna”. fl. 22.
Ordenações Filipinas (1603) foi mais bem de- 10 Para efeitos do presente texto estamos deixan-
talhado em seus objetivos e responsabilidades do de lado os membros da irmandade de outras
pelas Constituições Primeira do Arcebispado da procedências, como os oriundos de Cabo Verde,
Bahia em 1707. Ver: SOARES, 2011. São Tomé e Moçambique.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017 51


De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX

ruba. Um caso ainda não esclarecido é dos desembarcada na cidade. Em 1816, esse
escravos identificados na documentação comércio “desapareceria”, e, a partir de
como “ionnos” (ou “ayonous”, como aparece então, os minas encontrados na cidade
na literatura francesa), provavelmente rela- eram quase todos provenientes do tráfico
cionados a Oyó e de língua iorubá. Restam interno, notadamente da Bahia. De outro
também não reconhecidos no interior da lado, em trabalho que ainda aparece como
irmandade, como os já mencionados cobus a principal referência para boa parte das
e couras. O importante no reconhecimento análises, Mary Karasch avalia que, entre
dessas designações é perceber que a identi- 1800 e 1843, dos mais de 600 mil africanos
dade Mina era extremamente operante na que aportaram no Rio de Janeiro, apenas
cidade, mas que, no seu interior, as pessoas 1,5% era de originários da costa ocidental
se diferenciavam e se agregavam de modo (KARASCH, 2000, p. 67).
bastante flexível ao longo do tempo. Além Dados mais recentes compulsados pelo
disso, os falantes de línguas Gbe ou ioruba projeto The trans-atlantic slave trade
são os mais conhecidos, mas certamente apontam, para o período de 1801 a 1825,
não os únicos. De acordo com a variação da 175.200 iorubás desembarcando na Bahia
oferta de escravos na Costa da Mina, a com- e apenas 1.000 no Rio de Janeiro. Já entre
posição do grupo Mina na cidade do Rio de os anos de 1826 e 1850, 116.200 ficaram na
Janeiro podia variar, e indiscutivelmente foi capital baiana e 28.400 seguiram para o Rio
sendo alterada ao longo do tempo. (ELTIS, 2004, p. 30-31). Certamente, nes-
A documentação da Irmandade de Santa te último grupo estavam tanto os escravos
Efigenia permitiu um melhor entendimen- destinados ao Vale do Paraíba e ao Sul em
to da composição étnica dos africanos mi- geral, como aqueles chegados ilegalmente –
nas na cidade do Rio de Janeiro em meados depois do fim do tráfico – e recolhidos pela
do século XVIII. O que se dirá dos demais Comissão Mista.11 Se pelo menos 10% deles
africanos da cidade na mesma época e em tiverem permanecido na cidade, sua presen-
outros momentos da história do comércio ça já seria bem significativa (SOARES, 2007,
atlântico de escravos? Quem eram efetiva- p. 18-19). A esses se juntavam ainda os es-
mente aquelas pessoas chamadas angolas, cravos que aportavam na Corte como par-
benguelas e cabindas na cidade do Rio de te do “êxodo mina” que partiu de Salvador
Janeiro? De onde vinham? Que vida deixa- após a revolta dos malês, em 1835. Quinze
ram para trás e o que fizeram para recons- anos depois do levante, os minas perfaziam,
truir na cidade do Rio de Janeiro uma nova conforme as análises do historiador Thomas
forma de viver e conviver com seu passado e Holloway, 17% dos cativos africanos e 8,9%
sua nova situação de escravidão? da população geral do Rio.12
11 Sobre os africanos livres no Rio de Janeiro, es-
De nagôs a minas pecialmente minas, capturados após o fim do
tráfico transatlântico de escravos em 1831, ver:
Segundo o historiador Manolo Florentino, MANIGONIAN, 2000.
12 Embora o chamado êxodo mina ainda careça
entre os anos de 1795 e 1811, os cativos da de exames mais sistemáticos, análises sobre
costa ocidental (em especial dos portos de essa migração de africanos ocidentais de
São Tomé, Costa da Mina e Calabar) que Salvador para o Rio de Janeiro, especialmente
após o levante dos malês de 1835, aparecem
vinham diretamente para o Rio represen- em: GOMES; SOARES, 2001; SOARES, 2001.
tavam apenas 3,2% do total da escravaria FARIAS, 2015; HOLLOWAY, 1998, p. 268. Sobre

52 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017


Juliana Barreto Farias; Mariza de Carvalho Soares

Como acontecia no século XVIII, eles fossem “nagôs”, cada um tinha “sua terra”,
quase sempre apareciam, em diferentes re- conforme assinalou o escravo Antônio, acu-
gistros, identificados simplesmente como sado de participar da rebelião dos malês, em
originários da Costa da Mina ou de nação 1835 (REIS, 2003, p. 338).
mina. E mina era um designativo genérico No Rio de Janeiro, como já apontado aci-
que, pouco a pouco, foi ampliando seu cam- ma, esses nagôs da Bahia acabaram optando
po semântico até praticamente se transfor- pela mesma estratégia das gerações anterio-
mar, na virada do século XIX, em sinônimo res, garantindo um grupo coeso e maior, aí
de africano. Contudo, perscrutando fontes denominado mina. Com isso, preveniam-se
diversas e também alguns estudos mais re- contra a possibilidade de dispersão acarre-
centes sobre escravidão urbana e tráfico tada pela afirmação de pequenas identida-
atlântico, é possível constatar que os africa- des diferenciadas. Na capital carioca, uma
nos ocidentais que viviam no Rio de Janei- nação nagô seria francamente minoritária e
ro ao longo do oitocentos vinham de áreas teria mais dificuldade de negociar sua inser-
onde predominava a língua iorubá. Além ção na vida urbana, especialmente no caso
disso, boa parte havia desembarcado pri- dos africanos forros que precisavam se in-
meiro na Bahia e, sobretudo a partir da dé- serir nas redes de trabalho já constituídas.
cada de 1830, e depois passado à capital do Na condição de mina, estabeleceram áreas
Império.13 de ocupação para moradia, lazer, trabalho e
Quando esses homens e mulheres proce- práticas religiosas, minimizando, pela orga-
dentes de diferentes vilas ou reinos da África nização, o ônus de serem um grupo minori-
ocidental chegavam à cidade do Rio, depois tário emuma cidade de maioria de escravos
de passarem pela Bahia, logo se transmuda- vindos da África centro ocidental.
vam em minas. O caso dos nagôs é exemplar. Ainda assim, localizamos, especial-
Em terras baianas, os cativos que falavam o mente para as primeiras décadas do século
iorubá ficaram conhecidos como nagôs, an- XIX, cativos que se identificavam – e eram
tes mesmo de se reconhecerem como iorubás identificados por seus senhores – como na-
no continente africano. Se o termo nagô fora gôs, haussás, minas-nagôs e outras deno-
imposto no circuito do tráfico14, a identida- minações étnicas adotadas na Bahia. Em
de nagô foi elaborada na Bahia (REIS, 2003, 1835, por exemplo, 60 africanos ocidentais
p. 336). Mas, sob o grande “guarda-chuva” foram anunciados na coluna de “Escravos
nagô que ali se formou, estavam também fugidos” do Diário do Rio de Janeiro. Nes-
muitos grupos menores. Ainda que todos te conjunto, 40 foram designados como de
“Nação Mina”; 9, de “Nação Calabar”; e 3,
a revolta dos malês que ocorreu em Salvador em
de “Nação Nagô”. Havia ainda outros 9 com
1835, envolvendo escravos e libertos africanos
muçulmanos, ver: REIS, 2003. identidades conjugadas (algumas de proce-
13 Embora o chamado êxodo mina ainda careça de dência desconhecida), como “Mina Nagô”
exames mais sistemáticos, análises sobre essa
migração de africanos ocidentais de Salvador
(3); “Mina Ussá” (1); “Mina Ajá” (1); “Mina
para o Rio de Janeiro, especialmente após o Ginjá” (1); “Mina Quilombona”(1) e “Mina
levante dos malês de 1835, aparecem em: GO- Docó” (1). Este último, segundo informações
MES; SOARES, 2001; SOARES, 2001.
14 O termo nagô era usado, na África ocidental, de seu dono, era “um preto de nação Mina,
pelos falantes de fon e outras línguas gbe para que se chamava Docó, nome de sua nação”.15
designar o que hoje conhecemos como iorubas
(REIS, 2003, p. 336). 15 Diário do Rio de Janeiro, 13 de julho de 1835.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017 53


De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX

Para o ano de 1845, dez anos após o início do Mariza Soares na constituição das identida-
chamado êxodo mina da Bahia, encontra- des dos mina-maki nas irmandades do Rio
mos, na mesma seção, 41 homens e mulhe- de Janeiro (FLORENTINO, 2002; MAMI-
res procedentes da costa ocidental africana GONIAN, 2000; SOARES, 2001; SOARES,
divididos nas seguintes “nações”: Mina (25); 2000). Seja como for, a partir dos anos 1860
Nagô (4); Calabar (4); Mina Nagô (4); Mina essas “nações compostas” começariam a de-
Ussá (2); e Mina Geyge (1). saparecer, observando-se em apenas 8,8 %
Embora esses registros revelem grupos (25) dos casos. Ao final, todos acabariam ge-
bem específicos e identidades diferenciadas, nericamente identificados como mina.
a análise em conjunto deixa claro o progres- Após a abolição, os africanos que ainda
sivo processo de agregação identitária em viviam no Rio de Janeiro concentravam-se
torno dos minas. A quitandeira Custódia, na área portuária da cidade, nas freguesias
anunciada na coluna de “Escravos fugidos” de Santana e Santa Rita, redutos dos mi-
de 25 de novembro de 1835, foi descrita nas desde meados do século XIX. De acor-
como uma “preta mina, de Nação Nagô”. do com o recenseamento realizado naquele
Já Raimunda, cativa que havia escapado ano, a região abrigava 1.463 indivíduos que
haviam nascido na África, contingente não
da casa do Sr. João Caetano dos Santos, em
encontrado em nenhum outro bairro. Uma
Niterói, era simplesmente “de nação Mina,
nova contagem da população só seria feita
da Bahia”. Mesmo caso de Luiza, uma outra
16 anos depois17. Antes disso, porém, João
quitandeira de frutas, fressura de boi e gali-
do Rio – em suas incursões pelas casas das
nhas, identificada na edição de 5 de agosto
ruas de São Diogo, Barão de S. Félix, Hos-
de 1845 como “uma preta de Nação Mina,
pício, Núncio e da Aclamação18 – estimaria
vinda há pouco da Bahia”.16
Examinando 2.565 alforrias de africanos 17 Em 1890, Santa Rita tinha 43.601 habitantes,
dos quais 16.876 eram estrangeiros (destes,
ocidentais entre os anos de 1800 a 1871, Flá- 12.315 eram portugueses e 1.720 espanhóis). Já
vio Gomes também constatou esse proces- em Santana, encontramos – nesse período – 67.
385 pessoas, entre as quais o maior contigente
so de aglutinação organizacional (FARIAS,
estrangeiro da cidade – 27.074, sendo 16.173
2005). Neste conjunto, verificou que aque- portugueses e 4.844 italianos. Com tantos imi-
les classificados como minas correspondiam grantes vivendo na região, não é de estranhar
que os pretos e pardos fossem minoria. 60,6%
a 75,5% (1.944). Os restantes apareciam dos moradores de Santa Rita e 66,4%, de San-
como nagô, calabar, haussá e jejê, e ainda tana eram brancos. Ver: Recenseamento Geral
com denominações conjugadas, como mina- da República dos Estados Unidos do Brasil em
31 de dezembro de 1890. Rio de Janeiro, Typ.
nagô, mina-calabar, mina haussá e mina-je- Leuzinger, 1895; CRUZ, 2000, p. 243-290. De-
je. Já em 1819 surgia o primeiro registro de pois desse censo em 1890, uma nova contagem
só seria feita no recenseamento de 1906. Mas,
uma mina-hausá. Isso indica – segundo o
refletindo a ideologia oficial e racista do perío-
autor – que a agregação identitária em torno do, que por força pretendia “embranquecer” os
dos minas teria começado bem antes, e não habitantes do país, a população não foi classifi-
cada de acordo com a cor. Cf. Recenseamento do
só a partir da década de 30, como sugerem Rio de Janeiro (Distrito Federal), realizado em
Florentino, Líbano Soares e Magigoniam. As 1906 (CHALHOUB, 2001, p. 43-45).
chaves para essa articulação estavam colo- 18 Todas essas ruas – e também outras visita-
das pelo cronista em 1904, e descritas em suas
cadas já no século XVIII, como discutido por crônicas reunidas no inquérito As religiões no
Rio – ficavam nas freguesias centrais, como
16 Diário do Rio de Janeiro, 25 de novembro de Santana e Santa Rita. Para uma análise dos afri-
1835; 30 de agosto de 1845; 5 de agosto de 1845. canos descritos nos textos do cronista carioca,

54 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017


Juliana Barreto Farias; Mariza de Carvalho Soares

que, em 1904, “da grande quantidade de es- de seus grupos, vilas ou cidades de origem.
cravos africanos vindos para o Rio no tem- Essa informação é, de fato, surpreendente,
po do Brasil colônia e do Brasil monarquia”, já que, desde pelo menos as últimas décadas
restavam apenas “uns mil negros”. Segundo do oitocentos, o termo mina passara a de-
o cronista, eram todos de pequenas “nações signar, genericamente, os cativos e libertos
do interior da África”, como os “igesá, oié, originários da Costa da Mina. No censo de
ebá, aboum, haussá, itaqua, ou se conside- 1890, por exemplo, todos eram simplesmen-
ram filhos dos ibouam, ixáu dos gêge e dos te “africanos”. Mas, curiosamente, ao longo
cambindas”.19 de todos os textos publicados pelo cronista
Decerto estava se referindo a diferentes no período, em nenhum outro momento os
grupos étnicos da África Ocidental, que ha- homens e as mulheres africanos são iden-
bitavam regiões no que hoje é o sudoeste da tificados por aqueles subgrupos. Não há
Nigéria e o sudeste da República do Benim. tampouco quaisquer menções a eles como
Até a década de 1830, os grupos que viviam indivíduos iorubás ou nagôs. Como então se
nessas áreas – como os abinus, auoris, egba- identificavam aqueles homens e mulheres
dos egbás, equitis, ibarapas, ibolas, ifés, ifo- procedentes da África?
ninis, igbominas, ijexás, ilajes, oiós, ondos, Segundo o jornalista da Gazeta, todos
quetos – não se consideravam como iorubás. eles falavam entre si um idioma comum: o
Até então esse era o nome pelo qual os haus- eubá. Como destacara seu guia Antônio, que
sás referiam-se aos oiós, seus vizinhos do havia estudado em Lagos, o eubá era para os
sul.20 Segundo Robin Law, talvez tenha sido africanos o que o inglês era para os “povos
em 1832, com a publicação do livro de J. Ra- civilizados”. Quem conhecia essa língua afri-
ban, A vocabulary of the Eyo, or Aku, a dia- cana podia “atravessar a África e viver en-
lect of Western Africa, que o termo iorubá foi tre os pretos do Rio”.21 Certamente o termo
usado pela primeira vez para designar gru- eubá era uma corruptela do termo iorubá,
pos que falavam variantes do mesmo idioma, ou uma interpretação do que ouvira João do
adoravam os mesmos deuses e tinham uma Rio. De acordo com Nina Rodrigues, na Bah-
cultura bem semelhante (LAW, 1973, p. 208; ia, muitos dos nomes de “nações africanas”
SILVA, 2002, p. 532-533). Também no iní- eram deformados. Era o caso, por exemplo,
cio dos anos 30, na colônia de Serra Leoa, os da palavra Egbá. Muitos negros não pro-
oios, egbás, ibarapas, ijebus e ijexás que ali nunciavam o g. Assim, era comum encon-
se instalaram passaram a ser identificados trar documentos que falavam em negros de
pelos missionários ingleses como iorubas Ebá ou simplesmente de Bá (RODRIGUES,
(SILVA, 2002; REIS, 2003, p. 336). 1988, p. 102-103). É bem provável que algo
Quando retornamos às descrições de semelhante tenha ocorrido com os negros do
João do Rio, inferimos que, no Rio de Janei- Rio. No Grande dicionário da língua por-
ro do início do século XX, ainda havia africa- tuguesa de Antônio de Morais Silva, o eubá
nos ocidentais que se identificavam a partir é identificado como “o nome duma língua
muito falada pelos negros do Rio, que deriva
ver: FARIAS, 2010.
19 João do Rio, “No mundo do feitiço/ Os feiticei- do egbá, nome do povo africano”, “tribo de
ros”. Gazeta de Notícias, 9 de março de 1904, p. 2.
20 Segundo Reis (2003) “os escravos de Oió, boa 21 João do Rio, “No mundo dos feitiços: Os feiti-
parte deles empregados na famosa cavalaria do ceiros”. Gazeta de Notícias, em 9 de março de
reino, eram principalmente de origem nortista. 1904, p.2.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017 55


De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX

indígenas da África ocidental inglesa” (SIL- procedência que os minas que encontramos
VA, 1945, p. 212, 956). Embora, numa reedi- no Rio de Janeiro em tempos pretéritos?
ção da obra no início do século XX, recorra Em primeiro lugar, é preciso ressaltar
ao relato de João do Rio para exemplificar que nem todos os africanos ocidentais que
a utilização do termo, Silva acrescenta que chegaram à cidade do Rio, especialmente
a língua era falada por um grupo étnico es- após o fim do tráfico atlântico, eram nagôs
pecífico, os egbás de Abeokutá, também ge- saídos da Bahia. Ao longo do oitocentos,
nericamente identificados como iorubás, ou chegando até as primeiras décadas do sécu-
como nagôs em Salvador. lo XX, levas de migrantes, incluindo africa-
Em suas crônicas, o jornalista carioca nos e seus descendentes, sairiam da capital
poucas vezes fala diretamente em africanos baiana para aportar no Rio de Janeiro. Mas
mina. Contudo, analisando seus artigos em eles não eram as únicas lideranças religio-
conjunto, é possível concluir que se trata- sas, culturais e políticas da comunidade ne-
va efetivamente de homens e mulheres da gra conhecida como Pequena África. Pelo
Costa Mina. Em todas as chamadas publi- menos é o que se depreende das descrições
cadas na Gazeta no período em que saíram de João do Rio, de alguns registros judiciá-
as reportagens sobre as religiões africanas, rios do período e mesmo a partir de alguns
os textos foram anunciados como regis- depoimentos colhidos por Roberto Moura. 23
tros de incursões e descrições das religiões Em nenhum momento, João do Rio afir-
dos mina. Não sabemos se as notas foram ma que os africanos e crioulos encontrados
redigidas pelo próprio João do Rio, já que naquele início do século XX eram originários
não há qualquer indicação nesse sentido.
da Bahia. Por que, então, tantos estudiosos
De todo modo, em 10 de março, depois da
concluem que os líderes muçulmanos e cul-
publicação da primeira reportagem sobre o
tores dos orixás, muitos dos quais descritos
mundo dos feitiços, o periódico informava
pelo repórter carioca, teriam sido levados de
que continuaria a falar dos “negros minas”,
Salvador para o Rio de Janeiro?24 De fato,
descrevendo as “yauôs”, ou filhas-de-santo.
Cinco dias depois, corrigia alguns equívo- crevendo Os novos feitiços de Sanim, revelados
pelo negro na casinhola de Ojô”. Gazeta de No-
cos mencionados no dia anterior, na crônica tícias, 28 de março de 1904, p. 1. Ver ainda a Ga-
“No mundo dos feitiços/Os feiticeiros”. Em zeta dos dias 10, 13, 19 e 20 de março de 1904.
uma pequena nota destacavam que, como 23 Não obstante a importância e o pioneirismo do
trabalho de Moura (1995), nos parece que, em
os “minas têm apelidos muitos parecidos”, sua análise, os baianos, e somente eles, são os
era compreensível que fizessem uma certa únicos responsáveis pelo florescimento de uma
confusão com o nome de alguns “feiticei- “cultura negra no Rio de Janeiro”. Isso por certo
ocorreu em função dos depoimentos orais co-
ros”. No mesmo texto, o redator indicava lhidos (muitos dos quais de filhos e outros des-
ainda que, na véspera, havia chegado à ci- cendentes de baianos das primeiras décadas do
dade o africano Sanim, um “mina horrendo, século XX).
24 Alberto da Costa e Silva (2003, p. 182) assinala
feiticeiro convicto, que traz mulheres e no- que o Conde de Gobineau descreveu em seu rela-
vos feitiços”22. Mas esse grupo teria a mesma tório, em 1869, que todos os africanos minas do
Rio eram muçulmanos, e muitos deles haviam
22 Cf. Gazeta de Notícias, 15 de março de 1904, p. migrado de Salvador para a Corte. “Quarenta
1. Em 28 de março, sai uma nova nota, agora anos mais tarde”, completa Silva, “João do Rio
informando que, como eram muitos os pedidos confirmaria a informação de Gobineau: muitos
para que se descrevessem os feitiços dos “negros dos moslins do Rio provinham da Bahia”. Nas
minas”, João do Rio daria, no dia seguinte, um crônicas publicadas por João do Rio em 1904,
novo artigo sobre o mundo dos feitiços, “des- não há qualquer referência direta à origem baia-

56 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017


Juliana Barreto Farias; Mariza de Carvalho Soares

ainda que indiretamente, é possível perceber Papagaio, que tem dois filhos doutores e
a presença baiana nas entrelinhas de suas mora num sobrado com escadas adaptadas
reportagens. Quando flanava por uma “rua e cheias de varas de metal, reluzentes como
sossegada” do centro da cidade, numa tarde ouro”.27 Afora essas evidências esparsas,
de junho de 1904, encontrou o “fiel e dedi- somente o fato dos africanos descritos por
cado Antônio”, que andava desaparecido há João do Rio serem iorubás poderia nos levar
dois meses. João do Rio aceitou o convite de a supor que todos teriam saído de Salvador,
seu guia, que o chamara para participar dos já que ali conformavam um grupo majoritá-
festejos juninos que se realizariam na casa rio no conjunto dos africanos da cidade.
do Galiza Vavá, experiência mais tarde des- Contudo, entre os “feiticeiros”, alufás,
crita na crônica S. João entre os africanos, pais e mães-de-santo descritos pelo repórter
publicada pela Gazeta no dia 25 de junho de da Gazeta, encontramos alguns que parti-
1904. Ali soubera que os “negros africanos ram de Lagos diretamente para o Rio de Ja-
trouxeram das nações a que pertencem todo neiro. Em março de 1904 o jornal publicou
o aparato místico da sua ingênua [sic] força uma pequena biografia e um retrato do afri-
religiosa”. Além disso, constatou – não sem cano Emanuel Ojô, atendendo aos apelos dos
um certo espanto – que em seus candomb- ávidos e curiosos leitores que vinham acom-
lés celebravam tanto S. João, como S. Pedro panhando no mesmo periódico os artigos de
e o 2 de julho25. Ora, 2 de julho era a data João do Rio sobre os feiticeiros da cidade28.
em que se comemora, na Bahia, a indepen- Reconhecido como o “chefe de uma espécie
dência do Brasil (ALBUQUERQUE, 2002, de maçonaria geral dos negros”, o “consultor
p. 157-203). Isso evidencia que os baianos técnico dos pretos” da cidade do Rio, o afri-
estavam, de alguma forma, nessas celebra- cano, segundo o relato do jornal, era filho de
ções, influenciando não só suas práticas e ri- relojoeiro na África, “mais ou menos rico”,
tuais, como também o calendário festivo das mas gastava muito, além de ter muitas mu-
casas de culto.26
Sem contar que alguns africanos recor- 27 João do Rio, “Negros ricos”. Gazeta de Notícias,
davam, nas conversas com o cronista, de 13 de maio de 1905, p. 3. Segundo Nina Rodri-
gues, no final do século XIX, o lemano – líder
amigos, festas e outras celebrações que co- dos negros muçulmanos em Salvador – era o
nheciam da Bahia. O alufá Júlio Ganam não nagô Luís, que morava à rua da Alegria, 3, no
Barris. Sua casa funcionava também como “igre-
esquecia dos “negros ricos” da Bahia. Lá os
ja maometana”, que era constituída por uma sala
africanos ganhavam muito: “com mais de interna destinada aos ofícios e atos divinos. Ali
200 contos, o lemano Luiz dos Barris, o Xa- reuniam-se os malês da cidade. Rodrigues nada
fala de sua “fortuna”, apenas registra que ele ti-
by-Ganam que vende pão no mercado, o tio nha muitos filhos e era casado com um “negra
Amando, a tia Adissa Lucrecia, a Joaquina crioula de mais de 30 anos, que esteve por algum
tempo no Rio de Janeiro, onde se converteu ao
na dos líderes religiosos muçulmanos. islamismo” (p. 62-63).
25 João do Rio “S. João entre os africanos”. Gazeta 28 João do Rio, “No mundo dos feitiços/Os Feiticei-
de Notícias, 25 de junho de 1904, p.1. ros”, Gazeta de Notícias, 20 de março de 1904,
26 Em outra crônica, publicada em dezembro do p. 05. Os textos não são assinados, mas, se não
mesmo ano, João do Rio destacaria ainda que, foram escritos por João do Rio, certamente ti-
no período das festas natalinas, as comemora- veram alguma participação do jornalista, já que
ções começavam no dia 15 de dezembro e só ter- os três biografados são personagens abordados,
minavam em 13 de janeiro, quando se celebrava com freqüência, em seus artigos. Além disso, os
Nosso Senhor do Bonfim, uma festa tipicamente ácidos e preconceituosos comentários presentes
baiana. Cf. João do Rio “O natal dos africanos”. na “galeria de feiticeiros” são bem similares aos
Kosmos, dezembro de 1904. que encontramos nos textos de João do Rio.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017 57


De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX

lheres. Era um “preto elegante”, que anda- ser conhecido em Lagos, que desde 1851 era
va sempre a cavalo. Como podemos ver em controlada pela Grã-Bretanha – não acredi-
seu retrato, publicado junto ao texto, as es- tava muito nos feitiços, inclusive os temia
carificações marcadas em seu rosto, típicas muito, mas no Brasil aprendeu o alicuri dos
dos iorubás, evidenciavam sua filiação étni- alufás. Em sua casa, “quase no começo da
ca. Esses sinais, também conhecidos como rua dos Andradas”, reuniam-se os feiticeiros
alajas, eram feitos na infância com lâminas da cidade, resolviam-se as contendas, escre-
muito afiadas, manipuladas por especia- viam-se as cartas e ainda se “decidia quem
listas geralmente devotos de Ogum (REIS, devia morrer”. Sempre na porta do hotel e
2003, p. 311 – 313). Em sua terral natal, restaurante Globo, bem próximo à sua re-
“quando o cobre diminuiu”, Ojô teria come- sidência, ali mesmo ele tomava as decisões
çado a trabalhar “na estiva”. Como nenhum nos momentos de perigo; recebia os africa-
parente seu, “rei de uma tribo do interior, nos recém-chegados, como o negro Sanim,
rei dos Ifé”, conseguisse minorar as agruras um feiticeiro mina que chegara de Lagos em
daquele trabalho, ele decidiu partir para o março de 1904, e ficara hospedado em sua
Brasil. O periódico não fornece maiores ex- casa; e ainda facilitava o estabelecimento de
plicações sobre as circunstâncias em que ele seus patrícios em alguma atividade na ci-
realizara essa longa travessia, mas algumas dade, como ocorrera com Abubaca Caolho,
indicações apresentadas ao longo do texto que também nascera em Lagos, e com seu
nos permitem lançar algumas conjeturas. A auxílio, firmara-se como “feiticeiro”. Diante
se crer nas informações fornecidas pelo jor- de tantos atributos, o redator da Gazeta de
nal, ele residira durante algum período em Notícias não vacilou e afirmou que todos os
Lagos, mas seus parentes eram da cidade de africanos, “feiticeiros” e alufás do Rio, res-
Ifé, a cidade sagrada dos iorubás. Assim, in- peitavam Emmanuel Ojô e diziam-se seus
ferimos que Ojô era um iorubá, que conhe- parentes.30
cia os “candomblés de Lagos” (assim cha- Ainda que não tenhamos como aferir a
mados no texto) e provinha de uma família exata procedência dos “mil negros” e outros
prestigiosa da África Ocidental.29 Mas como mais africanos ocidentais que viviam no Rio,
e porque veio para o Brasil continuam sendo podemos concluir, partindo dos relatos de
um mistério. João do Rio e de outros registros das primei-
De qualquer maneira, no Rio de Janei- ras décadas do século XX – como periódicos
ro, ainda segundo indicações do periódico e processos criminais – que esses africanos
e também de acordo com algumas obser- eram originários de vários grupos e reinos
vações registradas por João do Rio, rapida- iorubás, como Egbá e Ifé, e, especialmente,
mente conquistara prestígio entre a comuni- da cidade de Lagos. Certamente havia ainda
dade de africanos e seus descendentes. Ojô, entre eles nagôs, e quem sabe tapas, haussás
“que entre os ingleses é simplesmente Sch- 30 Cf. “No mundo dos feitiços/Os feiticeiros”, Ga-
midt” – um outro nome pelo qual ele devia zeta de Notícias, Domingo, 20 de março de
1904, p. 05. Gazeta de Notícias, Domingo, 13 de
29 Na festa de São João a que compareceu no can- março de 1904, p. 02; Gazeta de Notícias, Ter-
domblé do Galiza Vavá, na rua Barão de São Fé- ça-feira, 15 de março de 1904, p. 01. De João do
lix, Ojô, “todo de branco”, falava dos “candom- Rio, ver especialmente as crônicas: “No mundo
blés de Lagos, das peças de ouro e referia-se com do feitiço/Os feiticeiros”, Gazeta de Notícias,
ódio aos pretos que fazem fortuna”. João do Rio, 09 de março de 1904, p. 02; e “Os novos feitiços
“S. João entre os africanos”. Gazeta de Notícias, de Sanin”, Gazeta de Notícias, Domingo, 29 de
25 de junho de 1904, p.1. março de 1904, p. 04.

58 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017


Juliana Barreto Farias; Mariza de Carvalho Soares

ou calabar, saídos de Salvador. Mas, aqui, to orixás como alufás achavam-se “relacio-
acabariam todos sendo genericamente co- nados pela língua, com costumes exteriores
nhecidos como minas. mais ou menos idênticos e vivendo da feiti-
E se a língua iorubá os unia, a crença çaria”.33 São muitas as referências feitas pelo
escolhida por cada um deles, por vezes, po- jornalista à presença desses dois grupos em
dia separá-los. Segundo João do Rio, os ne- diferentes cerimônias e festejos realizados
gros africanos dividiam-se, no Rio, em duas pelos africanos e seus descendentes. Nas
grandes crenças: “os orixás e os alufás”. Por comemorações natalinas dos africanos, por
orixás, designava aqueles que, em grande exemplo, que começavam em 15 de dezem-
número, cultuavam os orixás africanos. Já bro e só terminavam em 13 de janeiro, com
os alufás tinham um rito diverso. Consul- “a apoteose do Senhor do Bonfim”, os africa-
tando o glossário de termos muçulmanos e nos, “divididos em orixás e mulsumins, jun-
africanos, anexado ao estudo de Reis, vemos tavam-se nesses candomblés formidáveis”.34
que o alufá era um mestre malê, um clérigo, E não era apenas nesses momentos festivos
segundo a versão em iorubá para o termo que se encontravam.
sudanês-ocidental alfa. Significava ainda o Tantos os filhos de Alá quanto os filhos
mesmo que mu’allim (em árabe), marabout dos orixás viviam da “feitiçaria”. Desde pelo
ou alim (REIS, 2003, p. 605). O jornalista menos a década de 1830, os minas eram
usa a expressão indiscriminadamente, para reconhecidos nas comunidades negras ur-
designar tanto os líderes e mestres muçul- banas como feiticeiros, célebres e mágicos
manos, como outros fiéis e seguidores de adivinhos (GOMES; SOARES 2001). No al-
Alá. Em dois momentos, fala em mussul- vorecer do século XX, João do Rio diria que,
mi, que, segundo ele, viria do “árabe mes- enquanto os orixás faziam sacrifícios, afo-
lemonn” e designava “o homem consagrado gavam os santos em sangue, davam-lhes co-
aa Deus”.31 Ainda de acordo com Reis, mu- mida, enfeites e azeite-de-dendê, os alufás,
sulmi era o termo haussá que identificava os “apesar da proibição da crença, usam do ali-
muçulmanos. genum, espíritos diabólicos chamados para
Além disso, o cronista da Gazeta afir- o bem e o mal, num livro de sortes, marca-
ma que os alufás não gostavam da “gente do com tinta vermelha e alguns, os maiores,
de santo”, a que chamavam de “auadudó- como Alikali, fazem até idams ou as grandes
mágicas, em que a uma palavra cabalística
chum”. Os orixás, por sua vez, desprezavam
a chuva deixa de cair e obis aparecem em
“os bichos [sic] que não comem porco, tra-
pratos vazios”.35 Nina Rodrigues também
tando-os de malés”. Não sabemos ao certo
se João do Rio queria, na verdade, dizer ma- 33 João do Rio, “No mundo dos feitiços/Os fei-
ticeiros”. Gazeta de Notícias, 9 de março de
lês, já que, analisando em conjunto os tex-
1904, p. 2.
tos do cronista, esta é a primeira e única vez 34 João do Rio, “O natal dos africanos”. Kosmos,
em que faz referência ao termo. E malê era dezembro/1904.
35 João do Rio, “No mundo dos feitiços/Os feiticei-
justamente a forma como eram chamados ros”. Gazeta de Notícias, 9 de março de 1904,
os africanos iorubás islamizados.32 De qual- p. 2. O padre Etienne Brazil, um “anti-islamita
quer forma, mesmo com esses conflitos, tan- militante”, nas palavras de João Reis, em artigo
publicado em 1909, apesar de apontar muitos
31 João do Rio, “Negros ricos”. Gazeta de Notícias, “erros” nos registros de João do Rio sobre os
13 de maio de 1905, p. 3. muçulmanos, concorda com ele nesse ponto. Se-
32 (REIS, 2003, p. 606). Malê vem do iorubá ìmále gundo Brazil, os alufás da Capital Federal, não
ou ìmòle. obstante a terminante proibição do Alcorão, se

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017 59


De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX

observou que, no final do século XIX, os quais correspondiam um território e uma lín-
negros baianos consideravam os malês “co- gua) e também dos calabares (nome de um
nhecedores de altos processos mágicos e fei- porto por onde saíram escravos de diferen-
ticeiros” (RODRIGUES, 1935, p. 29). tes etnias e línguas) e que constituíram um
Observamos assim que, apesar de algu- grupo minoritário, mas importante no Rio de
mas divergências quanto à crença escolhida, Janeiro (BEZERRA, 2010).
parte dos “mil negros” descritos por João do É preciso então ter em mente que a com-
Rio, especialmente aqueles que ficaram co- posição da população africana residente na
nhecidos como minas, reconheciam-se como cidade do Rio de Janeiro ao longo dos sécu-
“parentes étnicos”. Além de falarem entre los combinou variáveis diversas, tais como
si uma mesma língua, o iorubá, reuniam-se diferentes territórios, alvos do comércio de
em torno de práticas culturais e religiosas co- escravos na África, diferentes línguas fala-
muns, recriando muito do que, desde meados das nos territórios atingidos, grupos étnicos
do oitocentos, outros minas vivenciavam na que sofreram mudanças ao longo do tempo,
cidade. Além disso, não experimentavam um incluindo misturas, migrações, etc. Essas
absoluto exclusivismo étnico. Suas casas, fes- estratégias de recomposição social são re-
tas e cerimônias religiosas estavam “cheias conhecidas na África e a noção de etnicida-
de baianos e mulatos”. E, como vimos, conta- de já supõe ela mesma esses rearranjos. A
vam com forte companheirismo e solidarie- prática de intercasamentos (seja por língua,
dade. Quando algum conterrâneo chegava à localidade, grupo étnico ou outros) é reco-
cidade, logo encontrava abrigo entre os seus. nhecidamente um mecanismo privilegiado
Se estava difícil conseguir uma vaga de car- de conexão entre grupos e esta estratégia
regador no porto, logo um patrício tratava de foi largamente utilizada na África e também
lhe arranjar “alguma colocação”, de preferên- no Rio de Janeiro.36 Portanto, a questão que
cia na “feitiçaria”. efetivamente diferencia os rearranjos étni-
Assim, partimos do pressuposto que a cos na África e no Brasil dizem respeito, em
identidade mina resulta da construção de primeiro lugar, às dimensões das popula-
uma identidade de nação (a nação mina) ba- ções envolvidas, e, em segundo, à impossibi-
seada numa procedência comum, a Costa da lidade de constituir, no Brasil, um território
Mina, que então abarcava o litoral da costa que desse estabilidade ao grupo e, por fim,
ocidental africana que corresponde hoje à à pressão do Estado no sentido de evitar a
costa de Gana, Togo Benim e Nigéria, se pro- formação de grupos de descendência com
longando para o interior algumas vezes até os identidade própria. Os filhos dos africanos
limites do Sahel. No século XVIII eles proce- nascidos no Brasil eram chamados “criou-
diam majoritariamente de áreas de povos de los”. Tal designação impedia a reprodução
línguas gbe, enquanto no século XIX, a escra- da identidade “mina” nas gerações nascidas
vização se desloca, e os escravos que chegam no Brasil, funcionando como um impedi-
ao Rio de Janeiro correspondem a territórios mento à constituição de um grupo que tives-
mais a leste, onde predominava o uso da lín- se a estabilidade necessária para ao longo do
gua iorubá. Ao lado deles, existiam escravos tempo se reinventar como um grupo étnico.
vindos de outras áreas, como os haussas (aos 36 Para uma análise das estratégias matrimoniais
de africanos no Rio de Janeiro no século XVIII,
entregavam à magia e ao fetichismo. Cf. BRA- ver: Soares, 2000. Para o oitocentos, ver: FA-
ZIL, 1909, p. 79. RIAS, 2012; 2013.

60 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017


Juliana Barreto Farias; Mariza de Carvalho Soares

Referências bibliográficas FARIAS, Juliana B. “Sob o governo das mulhe-


res: casamento e divórcio entre africanos oci-
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. “Patriotas, dentais no Rio de Janeiro do século XIX”. In:
festeiros e devotos... As comemorações da inde- XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana B; GOMES,
pendência na Bahia (1888-1923)”. In: CUNHA, Flávio (orgs.) Mulheres negras do Brasil es-
Maria Clementina Pereira. Carnavais e ou- cravista e do pós-emancipação. São Paulo:
tras f(r)estas. Ensaios de história social Selo Negro Edições, 2012.
da cultura. Campinas, SP: Editora da Uni-
FARIAS, Juliana B.. “Assumano Mina Brasil:
camp, Cecult, 2002, p. 157-203.
personagens e Áfricas ocultas, 1892-1927”. In:
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro de. Farias, J. B.; Gomes, Flávio dos S. SOARES, Car-
Memórias históricas do Rio de Janeiro. los E. L. No labirinto das nações: africanos
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. Vol 2, e identidades no Rio de Janeiro, século
p. 239-241. XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005,
p. 265-291.
BEZERRA, Nielson. Mosaicos da escravi-
dão: identidades africanas e conexões FARIAS, Juliana B.; GOMES, Flávio S.; SOA-
atlânticas no Recôncavo da Guanabara RES, Carlos E. L. No labirinto das nações:
(1780-1840). Tese (Doutorado) – Programa de africanos e identidades no Rio de Janei-
Pós Graduação em História, Universidade Fede- ro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Na-
ral Fluminense - UFF, 2010. cional, 2005.

BRAZIL, Padre Etienne Ignace. “Os malês”. Juliana Barreto. “João do Rio e os africa-
FARIAS,

Revista do IHGB, tomo 74, vol. 124, parte 2 nos: raça e ciência nas crônicas da belle époque
(1909). carioca”. Revista de História (USP), vol. 162,
p. 243-270, 2010.
CARVALHO, Delgado de, História da cidade
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura FARIAS, Juliana Barreto. Mercados Minas:
e Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro, 1994. Africanos ocidentais na Praça do Merca-
do do Rio de Janeiro (1830-1890). Rio de
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e bote- Janeiro: Prefeitura do Rio/Casa Civil/Arquivo
quim. O cotidiano dos trabalhadores no Rio Geral da Cidade do Rio, 2015.
de Janeiro da belle époque. 2 ed. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2001. FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio S.
“Descobrindo mapas dos minas: trabalho ur-
CRUZ, Maria Cecília Vellasco, Tradições negras bano, alforrias e identidades, 1800-1915”. In:
na formação de um sindicato: Sociedade de Re- FARIAS, J. B., GOMES, Flávio S. e SOARES,
sistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, Carlos Eugênio L. No labirinto das nações:
RJ, 1905-1930. Afro-Ásia, Salvador/CEAO, africanos e identidades no Rio de Janei-
UFBA, 24 p. 243-290, 2000. ro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p.
105 - 148.
ELTIS, David. “The diaspora of iorubá speakers,
1650-1865: dimensions and implications”. In: FA- FARIAS, Juliana Barreto. “No governo das mi-
LOLA, Toyin; CHILDS, Matt (orgs). The iorubá nas: vivências e disputas conjugais entre africa-
diaspora in the Atlantic World. Blooming- nos ocidentais no Rio de Janeiro do século XIX”.
ton: Indiana University Press, 2004, p. 30-31. Revista de História Comparada (UFRJ), v.
7, p. 5-46, 2013.
FABIAN, Johannes. O tempo e o outro.
Como a antropologia estabelece seu obje- FLORENTINO, Manolo. Alforrias e etnicidade
to. Petrópolis: Vozes, 2013. no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesqui-
sa. Topoi, vol.3 n.5, July/Dec. P. 09 – 40, 2002.
FARIA, Sheila de Castro. Sinhas pretas, da-
mas mercadoras: As pretas minas nas GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos E.
cidades do Rio de Janeiro e de São João Líbano. “‘Com o Pé sobre um vulcão’: Africanos
del Rei (1700-1850). Tese de professor titular Minas, Identidades e a Repressão Antiafricana
defendida junto ao Departamento de História da no Rio de Janeiro (1830-1840). Estudos Afro
UFF, Niterói, 2004. -Asiáticos, Ano 23, n. 2, p. 335 - 378, 2001.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017 61


De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX

HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Ja- Atlântico: A África no Brasil e o Brasil na


neiro. Repressão e resistência numa ci- África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
dade do século XIX. Rio de Janeiro: Editora
da FGV, 1998. SILVA, Antônio de Morais. Grande dicioná-
rio da língua portuguesa. 10 ed. Lisboa: Edi-
LAW, Robin. “The Heritage of Oduduwa: tradi- torial Confluência, 1945, vol. IV, p. 212, 956.
tional history and political propaganda amog the
iorubá”. The Journal of African History, v. SOARES, C. E. A capoeira escrava e outras
14, n. 2, 1973. tradições rebeldes (1808-1850). Campinas:
Editora da Unicamp, 2001.
LAW, Robin. Slave Coast of West Afica,
1550-1750: the impact of the Atlantic sla- SOARES, Mariza C. (org). Rotas atlânticas da
ve trade on an African society. Oxford: Cla- diáspora africana: da Baía do Benim ao
rendon Press. 1991. Rio de Janeiro. Niterói: Eduff, 2007.

MANIGONIAN, Beatriz. “Do que o preto mina é SOARES, Mariza de Carvalho, “A ‘nação’ que se
capaz: etnia e resistência entre africanos livres”. tem e a ‘terra’ de onde se vem: categorias de in-
Afro-Ásia, nº 24, p. 71-95, 2000. serção social de africanos no Império português
século XVIII” Estudos Afro-Asiáticos, ano
MANNING, Patrick, “The slave trade in the Bi- 26, mai-ago, Vol. 02, p. 303-330, 2004.
ght of Benim, 1690-1890”. In Henry A. Gemery
and Jan S. Hogendorn (eds.) The Uncommon SOARES, Mariza de Carvalho. “A conversão
Market: Essays in the Economic History dos escravos africanos e a questão do gentilis-
of the Atlantic Slave Trade. New York: Aca- mo nas Constituições Primeiras da Bahia”. In:
demic Press, p. 125-129, 1979. FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales. A
Igreja no Brasil. Normas e práticas du-
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no rante a vigência das Constituições Pri-
Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Cia meiras do Arcebispado da Bahia. São Pau-
das Letras, 2000. lo, Unifesp. 2011, p. 303 - 321.
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena SOARES, Mariza de Carvalho. “Apreço e imita-
África no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Secre- ção no diálogo do gentio convertido”. Ipotesi.
tária de Municipal de Cultura, Dep. Geral de Revista de Estudos Literários, Departa-
Doc. e Inf. Cultural, 1995. mento de Letras da Universidade Federal de
Juiz de Fora. v. 4 - n. 1, jan/jun, p. 111 – 123,
PINTO, Bartolomeu Homem d’El Rey, “Livro de 2000 (b).
batismo dos pretos pertencentes à paróquia de
Irajá”. Anais da Biblioteca Nacional, n. 108 SOARES, Mariza de Carvalho. “Indícios para o
(1988), p. 129-173. traçado das rotas terrestres de escravos na Baía
do Benim, século XVIII”. In: SOARES, Mariza
REIS, João José. Rebelião Escrava no Bra- de Carvalho (org.). Rotas Atlânticas da Diás-
sil. A história do levante dos malês em pora Africana: entre a Baía do Benim e o
1835. São Paulo: Cia. das Letras, 2003 (edição Rio de Janeiro. Niterói: EdUFF, 2007, p. 65-
revista e ampliada). 99.
RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista SOARES, Mariza de Carvalho. “Introdução”. In:
dos negros baianos. Salvador: 1935. SOARES, Mariza C. (org). Rotas atlânticas da
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. diáspora africana: da Baía do Benim ao
7 ed. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: Editora Rio de Janeiro. Niterói: Eduff, 2007.
da Universidade de Brasília, 1988. SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da
SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o li- cor. Identidade étnica, religiosidade e es-
bambo: A África e a escravidão de 1500 a cravidão no Rio de Janeiro, século XVIII.
1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Funda- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000.
ção Biblioteca Nacional, 2002.
Recebido em: 13/06/2017
SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado Aprovado em: 02/09/2017

62 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017


Maria de Fátima Novaes Pires

TRAVESSIAS A CAMINHO – TRÁFICO


INTERPROVINCIAL DE ESCRAVOS, BAHIA E
SÃO PAULO (1850-1880)

Maria de Fátima Novaes Pires*

Resumo
Este artigo trata de relações sociais entre escravizados e trabalhadores li-
vres na cafeicultura paulista, na conjuntura do tráfico interprovincial de
escravos. Aborda formas de aproximação entre esses segmentos, identi-
ficando pontos convergentes em suas vidas, essenciais para a criação de
laços afetivos e familiares, quando a migração compulsória de escraviza-
dos das províncias do Norte para o Sul desorganizou modos de vida e for-
jou novas formas de resistência e acomodação. Apoia-se em informações
colhidas em autos criminais, matérias e anúncios de jornais e escrituras
públicas de compra e venda de escravos. Essas fontes jogam luz sobre a
importância do tráfico interno na crise da escravidão brasileira, eviden-
ciando o desgaste das políticas de domínio senhorial nos momentos finais
dessa instituição. Foram realizadas pesquisas a acervos de arquivos dos
estados da Bahia, do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Palavras-chave: Tráfico interprovincial; escravos; trabalhadores livres.

Abstract
CROSSINGS ON THE WAY - INTERPROVINCIAL SLAVE TRAFFIC.
BAHIA AND SÃO PAULO (1850-1880)
This article deals with social relations between slaves and free workers in
São Paulo coffee plantations in the context of interprovincial slave traffic.
It discusses ways of rapprochement between these segments by identifying
converging points in their lives, that are essential for creating affective and
family ties, when the compulsory migration of slaves from the northern
provinces to the south provinces disorganized lifestyles and forged new
forms of resistance and accommodation. It is based on information taken
from criminal procedures, reports and newspapers advertisements, and
public deeds of purchase and sale of slaves. These sources clarify the im-

* Professora Adjunta IV do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia. Este artigo cor-
responde a pesquisas de pós-doutoramento, com apoio (bolsa de estudos) da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). fatimapires90@hotmail.com

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017 63


Travessias a caminho – Tráfico interprovincial de escravos, Bahia e São Paulo (1850-1880)

portance of internal trafficking in the Brazilian slavery crisis showing the


wear of the master domain policies in the final moments of that institu-
tion. Research was conducted in the public archives of Bahia, Rio de Ja-
neiro and Sao Paulo.
Keywords: Interprovincial slave traffic; slaves; free workers.

[...] apagar todos os efeitos de um regímen a segunda metade do Oitocentos, alguns


que, há três séculos, é uma escola de desmo- se destacam por recaírem diretamente no
ralização e inércia, de servilismo e irrespon- crescimento desse tráfico e mesmo por im-
sabilidade para a casta dos senhores, e que
pulsionarem-no: a extinção do tráfico tran-
fez do Brasil o Paraguai da escravidão. (NA-
BUCO, 1977, p. 59) satlântico; debates e mudanças legislativas,
que incidiam diretamente sobre a escravi-
Tráfico interprovincial designa o comér- dão; intensificação de lutas abolicionistas;
cio de escravos entre províncias brasileiras, condenações morais à escravidão, estampa-
ampliado com o fim do tráfico transatlânti- das cotidianamente nos impressos de todo o
co, na segunda metade do século XIX. Esti- Império, além do próprio recrudescimento
mativas apontam que esse comércio trans- da resistência escrava.
portou um elevado número de cativos entre Estudos sobre o comércio interno de
as províncias brasileiras, sobretudo das pro- escravos avançaram em direções impor-
víncias do Norte para as províncias do Sul: tantes. Sidney Chalhoub (1990) abre o seu
“Segundo as estimativas de Robert Slenes, livro Visões da Liberdade com um capí-
esse movimento de população despejou no tulo intitulado “Negócios da Escravidão”.
sudeste, a partir de 1850, cerca de 200 mil Orientado por perspectivas da história so-
escravos. O auge desse movimento de trans- cial, acompanha reações de escravos trans-
ferência interna de cativos ocorreu entre portados pelo tráfico, quando já se encon-
1873 e 1881, quando 90 mil negros, numa travam na Corte, na casa de comissões de
média de 10 mil por ano, entraram na re- José Moreira Veludo, sob a liderança de “um
gião, principalmente através dos portos do mulato baiano de nome Bonifácio” (CHA-
Rio de Janeiro e de Santos” (CHALHOUB, LHOUB, 1990, p. 29). Dentre uma série de
1990, p. 43). Conrad (1975, p. 196-197) nos publicações e estudos mais recentes sobre o
diz que este número parece ter sido maior se tema, destaco os trabalhos de Flávio Motta
considerarmos os movimentos intrarregio- (2012), que realizou amplo levantamento
nais: “[...] Se Slenes estiver certo, mais de em livros de escrituras públicas de compra,
400.000 escravos foram vítimas desse tráfi- venda, doação e permuta dos municípios
co durante aquelas três décadas.” paulistas de Areias, Guaratinguetá, Piraci-
Uma boa quantidade de estudos tem de- caba e Casa Branca, considerando variáveis
monstrado que o tráfico intra e interprovin- de sexo e de idade de escravos negociados,
cial fora responsável por processos migra- estando também atento aos efeitos da legis-
tórios intensos, volumosos e prolongados, lação naquela conjuntura. Scheffer (2006)
quando igualmente se verificaram profun- analisou o comércio de escravos em Des-
das transformações na sociedade brasileira. terro (SC), perscrutando demografias e os
1
Dentre uma série de eventos que marcaram
(2002); Motta (2012); Neves (2000); Slenes
1 Chalhoub (1990); Conrad (1975); Graham (1976, 1986, 1997, 2005); Scheffer (2006).

64 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017


Maria de Fátima Novaes Pires

possíveis impactos do tráfico sobre a popu- Neste artigo, a perspectiva de aborda-


lação escravizada daquela localidade. Ne- gem aproxima-se dos estudos de Sidney
ves (2000) desenvolveu um estudo pionei- Chalhoub (1990) e Richard Graham (2002).
ro sobre o tráfico interprovincial na Bahia, Para além de dados quantitativos do co-
identificando os principais negociantes de mércio interno de escravos, ou mesmo de
escravos no alto sertão e as rotas centrais localidades de origem e de destino de es-
do tráfico para a província de São Paulo. cravizados, ou daqueles que os negociaram,
Sabe-se que a cabotagem fora o meio mais busca-se aqui analisar formas de resistência
usual para as transferências compulsórias, à escravidão naquela conjuntura, apontan-
não obstante as rotas terrestres também te- do a importância das parcerias entre escra-
nham sido buscadas, em geral como meca- vizados e trabalhadores livres na região de
nismo para burlar a cobrança de impostos Campinas (SP). Pesquisas a um razoável nú-
mero de autos criminais 4 atestam a expres-
que incidiam sobre essas transações.
sividade dessas parcerias, significativas na
A despeito de contarmos com um nú-
construção de experiências comuns,5 e que
mero razoável de estudos sobre o comércio
interno de escravos, revelador de um cres- nização um banco de dados com informações de
escrituras públicas de compra e venda de escra-
cente interesse pelo tema, esse comércio vos da cidade de Salvador e municípios do alto
requer sínteses capazes de revelar seus mo- sertão da Bahia. Dentre as informações colhi-
das, constam: nomes de vendedores, comprado-
dos de ação e a sua operacionalidade, so-
res, procuradores e escravizados negociados no
bretudo se considerarmos que tais modos comércio interno. Além de negociantes (pessoa
se articularam a um “conjunto de relações física), o banco de dados documenta a presença
de grandes firmas da Bahia, Minas Gerais e São
mercantis complexas”, e o comércio inter- Paulo, envolvidas em diferentes negócios, inclu-
no já se mostrava vigoroso, antes mesmo sive no comércio interno de escravos. Esse banco
da extinção do tráfico transatlântico (CAR- de dados resulta de trabalho conjunto com meus
orientandos de PIBIC: Valney Mascarenhas de
VALHO, 1998, p. 150). Lima Filho e Bento Chastinet Silva.
Ao contrário do tráfico transatlântico 4 Durante a minha participação no PROCA-
D-UNICAMP/UFBA/UFC (2012), pesquisei
de escravizados, que conta com uma série
jornais oitocentistas e cerca de 50 processos
de informações e catalogação de acervos, a criminais, entre os anos 1850-1880, no Arqui-
exemplo do Trans-Atlantic Slave Trade: a vo Edgard Leuenroth (AEL/UNICAMP). Na
continuidade de meus estudos de pós-douto-
Database – TSTD,2 ainda conhecemos pon- ramento (2014-2015), foram pesquisados 129
tualmente a estruturação e organização do processos criminais das cidades paulistas de
tráfico interprovincial, muito embora seja Ribeirão Preto, Taubaté, Jaú, Rio Claro, São
Carlos, Casa Branca, recentemente transcritos
razoável supor o envolvimento de agentes na íntegra. Também foram realizadas pesqui-
comuns aos tráficos atlântico e interpro- sas a jornais oitocentistas do acervo da Biblio-
teca Nacional/RJ.
vincial: “A movimentação de mão de obra
5 O conceito experiência é aqui tratado numa
escrava de um lugar para o outro seguia o acepção thompsoniana: “Os homens e mulhe-
fluxo normal do comércio negreiro intra e res também retornam como sujeitos, dentro
desse termo – não como sujeitos autônomos,
interprovincial, o qual também se articulava ‘indivíduos livres’, mas como pessoas que expe-
com o tráfico atlântico” (CARVALHO, 1998, rimentam suas situações e relações produtivas
p. 149).3 determinadas como necessidades e interesses e
como antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa
2 Ver banco de dados do tráfico transatlântico. experiência em sua consciência e sua cultura (as
Disponível em: <www.slavevoyages.org>. Aces- duas outras expressões excluídas pela prática
so em: 16 maio 2016. teórica) das mais complexas maneiras (sim, ‘re-
3 Devo informar que se encontra em fase de orga- lativamente autônomas’) e em seguida (muitas

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017 65


Travessias a caminho – Tráfico interprovincial de escravos, Bahia e São Paulo (1850-1880)

uniram de muitos modos esses segmentos.6 de trabalho, mitigando as dificuldades da


Em geral, a aproximação entre esses vida com uma aproximação essencial à so-
segmentos contribuiu para adaptações e brevivência. Mesmo se considerarmos que
reações aos novos ritmos de vida, traba- a maior parte dos escravos transportados
lho e costumes nas longínquas fazendas pelo tráfico interprovincial era formada por
cafeeiras do Sul. Consolidar apoios se tor- crioulos (cativos nascidos no Brasil), con-
nara decisivo para uma sobrevivência me- tando assim com aprendizados da vida sob o
nos oprimida naquelas regiões, estranhas cativeiro, devemos convir que as suas condi-
a muitos deles. São esses aspectos que se ções de sobrevivência foram agravadas nas
observam na maior parte dos autos regis-
novas províncias.
trados na Delegacia de Campinas, “grande
Antes de passarmos a uma análise das
pólo de expansão [da economia cafeeira]”
condições de trabalho e das reações escravas
(LAPA, 1983, p. 28). De acordo com Sle-
na região campineira, convém conhecermos
nes (1997, p. 249), a população escrava
algumas características populacionais e de
saltou, naquele município, de 4.800, em
relações de trabalho na conjuntura de maior
1829, para 14.000, em 1872. Uma eleva-
ção relacionada, sobretudo, à transferên- intensidade do comércio de escravos. Como
cia do tráfico interno de escravos, prove- é conhecido, não foram somente as provín-
niente, sobretudo do Nordeste e do Rio cias do Norte que remeteram escravos para
Grande do Sul. São Paulo:
Nas províncias do Sul, especialmente [...] no extremo Sul o declínio da produção
no Oeste cafeeiro paulista, escravos convi- escravista de charque na segunda metade
veram com trabalhadores livres - dentre os dos anos 1870 também estimulou o tráfico
quais, migrantes e imigrantes -, gente de para o Centro-Sul, ou pelo menos para o oes-
procedência diversa que se deslocou para te paulista. Em Campinas em 1877 e 1878-
79, respectivamente 25% e 17% dos escravos
a região mais próspera do Brasil oitocen-
transacionados eram do Rio Grande do Sul,
tista. Enfrentaram juntos pesadas rotinas proporções muito maiores do que em anos
vezes, mas nem sempre, através das estruturas anteriores (SLENES, 1986, p. 133).
de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre
sua situação determinada” (THOMPSON, 1981, Além disso, estudos indicam que o aden-
p. 182). samento populacional experimentado nas
6 Ver Thompson (1998). Adoto os referenciais
províncias do Sul não resultou exclusiva-
de identidade cultural de Poutignat; Streiff-Fe-
nart, (1998. p. 11-12): “Barth substituiu uma mente do mercado interno de escravos, ape-
concepção estática de identidade étnica por sar da sua expressividade. Aquela foi uma
uma concepção dinâmica. […] essa identidade,
como qualquer outra identidade coletiva (e as-
conjuntura marcada por migrações e imi-
sim também a identidade pessoal de cada um), é grações, sendo as primeiras demonstradas
construída e transformada na interação de gru- estatisticamente nos estudos de Douglas
pos sociais através de processos de exclusão e
inclusão que estabelecem limites entre tais gru- Graham e S. Buarque de Hollanda Filho
pos, definindo os que os integram ou não. […] (1984, p. 17-18). Rigorosas secas e crises nas
escreve Barth, em tais processos 'os traços que
lavouras açucareira e algodoeira do Nor-
levamos em conta não são a soma das diferenças
'objetivas' mas unicamente aqueles que os pró- deste foram responsáveis pelo registro de
prios atores consideram como significativos […] altíssimos índices de migração para outras
os 'traços culturais diferenciadores […] podem
variar no decorrer do tempo e ao sabor das inte-
províncias, conforme se observa nas tabelas
rações com ouros grupos'”. organizadas pelos referidos autores:

66 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017


Maria de Fátima Novaes Pires

Tabela 1 - Índices nacionais de migração expressos em percentagem da


população nos anos iniciais do período censitário: 1872-1920 - Brasil

Período Intercensitário Índice de Migração Líquida

1872-1890 4,67

1890-1900 2,97

1900-1920 3,79
Fonte: Graham e Hollanda Filho (1984, p. 17). A tabela original compreende o
período censitário de 1872 a 1970.

Tabela 2 - Índices regionais de migração no Brasil expressos em percentagem


da população nos anos iniciais do período censitário: 1872-1920.

Região Período Intercensitário

1872-1890 1890-1900 1900-1920

Norte 1,16 24,38 16,66

Nordeste -10,99 -1,42 -1,68

Leste 2,09 -0,64 -4,81

Sul 15,49 -0,97 5,24

Centro-Oeste 3,46 2,64 11,88


Fonte: Graham e Hollanda Filho (1984, p. 18). A tabela original compreende o
período censitário de 1872 a 1970.

Na tabela 1, acompanhamos a intensida- te despovôa e devasta o Ceará. Não há pla-


de da migração brasileira no momento mais nos para prevenir seus efeitos? E o que faz o
intenso do tráfico interprovincial de escra- governo?”7
vos. Já a tabela 2 aponta um fluxo maior de Moura (1998), em pesquisa a jornais e
regiões do “Norte” em direção às provinciais documentação judiciária campineira, anali-
do Sul, naquela mesma ocasião. A migra- sou experiências de homens livres e pobres,
ção interna passou a declinar no período assinalando que aquela região atraiu gen-
de 1890-1900, quando o fluxo da migração te de diversas províncias brasileiras, gente
internacional Europa-Brasil alcançou os ní- também chamada de “nacionais”. Identi-
veis mais altos já registrados na história bra- ficou migrantes procurando por fazendas
sileira. específicas, onde se reuniam parentes já
A migração interna envolveu, além do estabelecidos. Gente que buscava se cercar
deslocamento de cativos, gente remediada de defesas em meio à insegurança gerada no
de toda parte, mas, sobretudo, das provín- novo horizonte incerto e aberto pela fren-
cias do Norte. Uma edição do jornal flumi- te. Dentre os migrantes localizados em sua
nense A Civilisação, datada de 20 de setem-
bro de 1851, traz matéria intitulada O Sul e 7 FBN. A Civilisação. Jornal da Vila de Itabo-
rahy (município do Rio de Janeiro). Anno II.
o Norte, replicando informações vindas das 20/09/1851, n. 81. f. 4. Ref: 416, 2, 4. B- 224430
províncias do Norte: “A seca periodicamen- e 16.637.5.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017 67


Travessias a caminho – Tráfico interprovincial de escravos, Bahia e São Paulo (1850-1880)

pesquisa, Moura destaca o grande número do Norte, sobretudo dos sertões, não esta-
de cearenses, atraídos para o Oeste Paulis- vam acostumados aos ritmos de trabalho das
ta, a partir de 1878: “Um fazendeiro de Rio grandes lavouras e, tampouco, a temperatu-
Claro […] fez notar que sua província natal, ras tão baixas. Cativos dos sertões da Bahia,
o Ceará... tem enviado homens para todos a exemplo, viviam em propriedades menores
os pontos do Império e em sua casa acham- e com culturas bem menos exigentes. Assim,
se 55 cearenses, que trabalham” (MOURA, a adaptação para os que chegavam de fora
1998, p. 168). Sobre as contratações para o se tornara muito mais difícil. Nem mesmo
trabalho, a autora informa sobre os trâmites para escravos nascidos nas províncias do Sul
que envolviam esses deslocamentos: as condições de trabalho se afiguravam mais
amenas. Estes últimos, porém, conheciam a
Ainda no Ceará, toda uma rede de laços vi-
cinais e parentesco viabilizava o intento da região e pessoas com quem, eventualmente,
migração. Homens e mulheres, que se deci- podiam contar:
diam pela viagem, intermediavam a vinda de
[...] respondeo que fugio do seo senhor
outras famílias ou de indivíduos sozinhos, porque não acommodara-se com elle e que
que desejavam também vir para São Paulo, estava assentado nos mattos próximo
através da descrição das possibilidades de de esta cidade. Perguntado porque matou
trabalhar e viver na cidade. Através de car- hoje o preto Domingos, respondeo que ten-
ta endereçada a um agente, encarregado de do tratado com elle para dar-lhe comi-
atender encomendas de trabalhadores, feitas da, hoje fui comer e não achando pronpta
por fazendeiros, pediam o arranjo de serviço encommodou-se e como o preto Domingos
e agasalho para seus parentes, vizinhos e co- lhe dissesse que vinha dar parte delle e
nhecidos (MOURA, 1998, p. 170). lhe dissesse mais umas cousas atôas, elle, res-
pondente como se fosse cousa do diabo logo
Naquele contexto, o trabalho escravo
o estourou. Perguntado para onde foi depois
conviveu com formas contratuais de traba- do tiro, respondeo que metteo-se no mato
lho (camaradas e agregados), em serviços e deitou-se a dormir e que sentio o sacudi-
distintos e com menor mobilidade espacial. rem, acordou-se e não sendo ninguém pos a
Havia ainda o agravante da condição jurí- caminhar pela estrada. Perguntado porque é
que atirou em Manoel José dos Santos, res-
dica para os cativos, uma instância efetiva-
pondeo que ia com destino para o Brás a se
mente restritiva. Em geral, o serviço mais esconder nos mattos de que é conhe-
duro lhes recaía nos ombros: cido, quando encontrou-se com o offendido
Manoel José dos Santos, que o chamou para
Cabe notar que o trabalho nas plantações
que parasse, e já estando desconfiado de
de café não era, por natureza, tão exaustivo
que o queria prender, disse que não se
quanto o da maioria das outras grandes la-
aproximasse, mas como o offendido avans-
vouras. A tarefa mais cansativa era a inces-
sasse para o pegar, elle respondente deo o
sante limpeza do solo, feita com enxadas.
tiro para matar a fim de se escapar.8
Esse era um trabalho para eitos de escra-
vos, supervisionados pelos feitores, que às 8 AESP. Ordem 3973. Processos 1343 a 1360.
vezes também o eram, e mantinham a dis- Maço 087. Autuação 1871. Micro-filme. Neste
ciplina principalmente através de insultos e artigo, optou-se pela manutenção do modo orto-
ameaças, com o chicote como último recurso gráfico com que as palavras foram escritas. Essa
(DEAN, 1977, p. 75). fidelidade se justifica pelo entendimento de que
o estilo narrativo é mais um componente impor-
tante para uma investigação mais sistemática da
No entanto, devemos considerar que
fonte, devendo ser passada em revista pelo his-
muitos escravos, procedentes das províncias toriador.

68 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017


Maria de Fátima Novaes Pires

Nessa passagem dos autos, tudo leva a ambíguas em determinadas circunstâncias.


crer que o desentendimento entre o “preto Também em Campinas, escravos e fei-
Apolinário, solteiro, natural de Campinas”, tores partilhavam roças próprias e comuns:
escravo de Francisco Nogueira, de Santo “a roça onde se achava não fica do lado dos
Antônio da Cachoeira (atual Piracaia), na cafezais e da estrada onde se deo o delicto,
Serra da Mantiqueira (Bragança Paulista), que fica longe além do gramado e da caza da
e o “preto Domingos forro” fora provocado fazenda e para o lado do [...] onde é a roça
pelo descumprimento de um acordo – “ten- dos pretos.”10 Noutra passagem desse in-
do tratado com elle para dar-lhe comida” -, terrogatório, um feitor de nome Faustino
situação agravada pela ameaça de delação. informou “ser Africano, ter cincoenta annos
No interrogatório, realizado em 01 de feve- mais ou menos, ser escravo de Dona Thereza
reiro de 1871, Apolinário alegou que havia Miguilina do Amaral Pompeu e ser cazado”;
sido vendido para um senhor a quem não suspeito de crime passional naqueles autos,
“acommodara-se”. acrescentou:
Esses autos revelam acordos desfeitos
Respondeo que de manhã logo que os escra-
entre pessoas que mantinham relações mui- vos da fazenda forão desocupados da obriga-
to próximas, tal como nos sugere a fonte. ção de varrer terreiro e debulhar milho para
Para escravos vindos de outras províncias, então tratarem de si [...] elle respondente
os planos e as tentativas de fuga os acompa- tambem seguio para roça não tendo hido
nhavam desde as tenebrosas viagens, onde para outra parte e que na roça se conservou
por todo o dia até que nas proximidades
se viam apartados de suas famílias e amigos,
do sol entrar que todos são obrigados
sem efetivo vislumbre dos novos destinos... a revista elle largou de seos afazeres da roça
Ao chegarem às “matas do café”, escra- e recolheo-se para casa.11
vos eram submetidos à vigilância de feitores
e administradores, uma condição pouco co- Condições de vida e de trabalho emergem
mum em áreas do interior da Bahia, de onde de rotinas ordinárias envolvendo cativos e
muitos foram transferidos. Diversificados trabalhadores livres nas lidas das roças, in-
indícios, presentes nos autos, revelam si- clusive, por vezes, em roças próprias, parti-
tuações que envolveram feitores e escravos, lhadas com feitores, aparentemente de igual
inclusive as suas aproximações. Em Campi- condição étnica e com um convívio muito
nas, José Porto, ao depor sobre furto de café próximo. A documentação criminal também
na fazenda onde “vivia de feitoriar”, “disse permite desvendar vários meios, planejados
finalmente que alguns dias antes o mesmo ou improvisados, de escapar às vendas com-
réo também indo convidar a Candido, es- pulsórias, assim como reações coletivas, que
cravo de José de C. Salles, da fazenda que se mostravam, em geral, mais eficientes ante
ele depoente administra, para furtar abusos senhoriais.
café, ao que o mesmo escravo recuzou- No âmbito dessas reações, as fugas foram
se, comunicando esta ocorrência a elle comumente registradas nos autos da região
depoente”. 9 A delação do furto do café por campineira, na segunda metade do Oitocen-
Cândido ao feitor José Porto demonstra que tos. Mesmo revelando-se uma alternativa
essas relações se tornaram demasiadamente 10 AESP. AEL. CO4114 DOC 056. f. 38. Campinas/
SP. Delegacia de polícia. Ano 1878, grifos nossos.
9 AESP. AEL. CO4076. DOC 003. f. 4. Campinas/ 11 AESP. AEL. CO4114 DOC 056. f. 38. Campinas/
SP. Delegacia de polícia. Ano 1870, grifos nossos. SP. Delegacia de polícia. Ano 1878, grifos nossos.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017 69


Travessias a caminho – Tráfico interprovincial de escravos, Bahia e São Paulo (1850-1880)

arriscada para escravizados, foram recor- Testemunha: [...] que tendo o assassino
rentes em diversas situações, especialmente evadido-se na ocasião em que praticou o
diante de ameaças de suas vendas e/ou de delicto, agora sabe-se com certeza que elle
se dirigiu para a Província de Cuyabá
familiares, tanto para dentro como para fora
ou Goiás; tendo-se agregado a uma tro-
de suas províncias de origem. 12 Anúncios, pa que para ali se dirigia.14
como o que se verá a seguir, multiplicaram-
se em jornais brasileiros. Em agosto de 1869, Depois de capturado, Manoel foi incurso
o “[...] escravo Antonio, preto, estatura re- na lei de 1835, em 17 de janeiro de 1873.
gular, 25 annos mais ou menos, bem feito de Essa pena foi comutada para o Artigo 193 do
corpo, ladino, oficial e ferreiro, bons dentes, Código Criminal do Império, “à doze annos
olhar pacífico, rosto redondo, bigodes a ca- de prisão com trabalho”, em 25 de março de
vagnac, natural das províncias do Norte 1873.
[....]”, fugira da fazenda campineira de D. Assim como Manoel, outros escravos
Petronilha Egydio do Amaral Lapa, que es- buscaram as tropas como meio para escapar
tabeleceu a gratificação de duzentos mil réis de modo mais seguro, haja vista os riscos
por sua captura. 13 A exemplo de tantos ou- dos caminhos e a perseguição de capitães do
tros, Antônio fora um escravo transferido do mato. Agregar-se a tropas implicava acordos
Norte, possivelmente no auge do comércio prévios com gente que as conduzisse, em ge-
interno de escravos, como sugere o registro ral, trabalhadores livres, o que se revela uma
do ano de sua fuga. alternativa bastante perspicaz. Eis aí uma
Outros indícios da resistência escrava possibilidade para o bem sucedido retorno
por meio da fuga foram registrados nos au- de Vicente ao sertão da Bahia, como logo ve-
tos envolvendo Manoel, escravo, “filho de remos.
Luiza, pai ignorado, casado, de trinta e seis Havia ainda aqueles que apostaram nas
anos, natural do Ceará”: parcerias para as arriscadas fugas:

No dia 5 do corrente mez de Dezembro João de trinta an nos mais ou menos, sol-
[1872], às 6 horas da manhã mais ou menos, teiro, natural do Maranhão, trabalhador de
na fazenda funil, pertencente à herança do roça, rezidente na fazenda de seu senhor
finado João Ferreira da Silva Gordo, neste Eugenio Sales […] Perguntado como é que
Termo, estando o filho do mesmo falleci- morando seo senhor no Jundiahy ele infor-
do João da Silva Ferreira, administrador mante fora passar adiante do vira-copos, na
da referida fazenda, enfardando algo- estrada que vae para Itú? Respondeo que fu-
dão, ajudado pelo escravo da dita herança gindo do eito do seo senhor conjuntamente
de nome Manoel mulato, e tendo o mesmo com seus parceiros Daniel e Antonio, hiam
administrador dado uma relhada no mencio- pela estrada perguntando o caminho de Itú
nado escravo Manoel, por causa de serviço […]. Foram perseguidos e receberam duras e
mal feito, este enfurecendo-se fez com uma muitas bordoadas.15
faca que consigo trazia, em o dito seo senhor
Os escravos João, Daniel e Antônio eram
moço os ferimentos constantes do auto de
corpo de delicto e inquérito, que se offerece, procedentes, respectivamente, das provín-
do qual resultou a morte imediata do offen- cias do Maranhão, Paraíba e Ceará. Parce-
dido, evadindo-se o denunciado. rias para fugas demonstram resistências
12 Dentre eles, ver: Freyre (1963) e Graham (2002). 14 AESP. AEL/Unicamp. CO 4079, DOC 0006,
13 AEL. Gazeta de Campinas. Campinas-SP. Anno 1873, f. 23 e 46, grifos nossos.
1, n. 1. 31.10.1869. Microfilme PR – SOR 313 (1). 15 AESP. Acervo do AEL/Unicamp. Delegacia de
OUT/1869-DEZ/1892, grifos nossos. Campinas. CO 4076, DOC 0002, 1871, f. 23 e 46.

70 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017


Maria de Fátima Novaes Pires

mais coletivas, e possivelmente, assim con- classe senhorial prepotente e frequente-


duzidas, ampliassem as chances de êxito. mente arbitrária, mas sobretudo ardilosa:
Reações dessa natureza contribuíram para uma classe que brande a força e o favor
reforçar ainda mais a vigilância e o controle para prender o cativo na armadilha de seus
sobre escravos naquelas fazendas. próprios anseios”. E, na esteira de senho-
Ao lado de reações individuais ou coleti- res prepotentes e ardilosos, estavam fei-
vas, bem-sucedidas ou malsucedidas, e que tores e administradores de fazendas, não
apontam para arranjos envolvendo diversos menos arbitrários e violentos, como se vê
segmentos sociais, é notório o número de em profusão em autos criminais. Warren
casos que revelam meios extremos para es- Dean (1977, p. 36) afirma que o “sistema
capar às fazendas de café: social das grandes lavouras era de extrema
Respondeo que na quarta feira, quatro do violência”. Situação que Campinas parece
corrente tendo seo senhor feito viagem para confirmar. Reduto escravista do Centro
o Rio, deixou ordem que fosse para sua fa- -Oeste paulista, “a imprensa carioca estaria
zenda e que mais tarde disappareceo a mes- chamando Campinas de ‘Bastilha Negra’,
ma Leopoldina da caza e procurando elle referência à prisão francesa cuja revolta
respondente e todas as pessoas da caza a
deflagrou a Revolução Francesa em 1789,
mesma escrava forão [...] todos os esforços
empregados, que hontem as quatro horas da pois considerava aquela cidade paulista a
tarde mais ou menos, elle respondente indo mais cruel do país no que diz respeito ao
tirar agua do pôsso notou que o balde enros- tratamento dos escravos e aos violentos
cara em um corpo dentro do pôsso a ponto castigos a eles impingidos” (CARMO, 2011,
de empedir completamente a [...] do balde;
p. 124).
que examinando o pôssô vio então que o
Dentre episódios emblemáticos de rea-
corpo de uma criatura que alli estava reco-
nhecendo nesse momento ser o cadaver de ções ao tráfico interprovincial, destaco a co-
Leopoldina. Disse mais que não sabe o moti- rajosa trajetória de Vicente, escravo natural
vo que levou a mesma Leopoldina a praticar de Caetité (BA), vendido para Casa Branca,
aquelle acto pois que como sempre andava freguesia do município de Campinas, nos
allegre, mas que atribue a ordem que seo
anos 1870. Inconformado com a vida nas fa-
senhor dera de a mandar ir para o si-
tio, visto que desde que foi comprada
zendas de café campinenses, Vicente fugiu e
morou sempre na cidade [...]. 08 de se- retornou para o sertão “onde nascera”, aqui-
tembro de 1878.16 lombando-se em Bonito, atual Igaporã (BA),
cidade próxima a Caetité (PIRES, 2009, 61-
Especialmente nos anos 1870, auge do
70). Um percurso considerável, que talvez
comércio interno de escravos (inter e in-
tenha sido orientado e apoiado por gente
tra- provincial), observa-se uma elevação
de tropas, tal como vimos em autos já docu-
no número de autos dessa natureza. O
mentados neste artigo.
que provocaria tamanha repulsa às fazen-
Os episódios registrados nas passagens
das campineiras? Slenes (1997, p. 236), ao
dos autos criminais, até aqui apresentados,
analisar o trabalho escravo naquela região,
têm algo em comum: referem-se ao período
esclarece: “[...] emerge o retrato de uma
áureo do tráfico interprovincial de escravos,
16 Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). Acervo e direta e indiretamente a ele remetem. São
do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL). CO4114.
DOC 053. Delegacia de Campinas. Auto de Cor-
registros cuja vivacidade revela a necessária
po Delito. Réu: N/C. 1878. f. 9-11, grifos nossos. investigação mais sistemática sobre o tema.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017 71


Travessias a caminho – Tráfico interprovincial de escravos, Bahia e São Paulo (1850-1880)

Escravos, migrantes e Entre 1779 e 1829, a população escrava do


município [de Campinas] cresceu de 156
imigrantes – lado a lado na para quase 4800. Em 1872, já com o café
“onda verde” como a força motriz da economia, ela atin-
gira 14 mil. A maior parte do aumento desde
Para além do crime, autos criminais sugerem 1829 se deu antes do final do tráfico africano.
alianças entre segmentos comuns, e eviden- Entretanto, o comércio interno de escravos,
ciam rotinas de trabalho no interior das fa- já bastante ativo nas décadas de 1850 e 1860,
zendas. Em geral, referências à procedência recrudesceu nos anos 1870, despejando vá-
ou à origem de testemunhas, autores ou réus rios milhares de cativos no Oeste paulista,
são bastante genéricas: “baianos”, “pernam- vindos sobretudo do Nordeste e do Rio Gran-
bucanos”, “cearenses”... Ou seja, dificilmente de do Sul. Foi só a partir de 1881, com a alta
tributação sobre o tráfico interno para
vemos especificadas as localidades de origem
o Sudeste e a crise da escravidão, que os fa-
(Zona da Mata, Agreste, Sertão, Recôncavo zendeiros voltaram-se seriamente para
etc.). Imprecisões muito semelhantes às do trabalhadores imigrantes. Sua mudança
tráfico atlântico, com suas amplas classifi- de atitude coincidiu com uma queda nos pre-
cações para etnias de escravizados de dife- ços agrícolas da Itália, que expeliu de lá um
rentes partes do continente africano. Apesar grande número de trabalhadores do campo
de improvável, no entanto, não é impossível (SLENES, 1997, p. 249, grifos nossos).
localizar registros mais específicos. Tal como Dean (1977, p. 13) enfatiza a diversida-
ocorreu com os autos movidos contra Vicen- de que revestira as relações de trabalho na
te, escravo do sertão de Caetité, vendido para lavoura cafeeira, situação que servira para
Casa Branca, uma documentação localizada adensar as relações sociais naquela região,
no Arquivo Público da Bahia (APEB), no- anteriormente ocupada com a lavoura ca-
vos autos criminais, dessa vez de São Carlos navieira. Para o historiador estadunidense,
(SP), trazem registro de depoimento do feitor aquela região “que se abre em leque desde
Faustino Ferreira de Camargo, “de cincoenta Campinas para o Noroeste, alcançando Rio
annos mais ou menos de idade, Feitor da Fa- Claro e estendendo-se até Bauru e Ribeirão
zenda de David Ferreira de Camargo, casado, Preto, foi, a partir de 1850, aproximada-
morador neste municipio de São Carlos do mente, a de mais rápido crescimento eco-
Pinhal, Natural do Caitete, Provincia da nômico e populacional”. Também assinala a
Bahia”. 17 Além das possíveis alianças, que constante presença de agregados e camara-
esses autos sugerem, a presença de um feitor das nas áreas cafeeiras, ressaltando que tais
caetiteense na documentação de São Carlos segmentos estavam bem distantes do traba-
do Pinhal confirma os trânsitos entre os ser- lho mais regular (DEAN, 1977, p. 35). Refe-
tões da Bahia e a província paulista na segun- re-se, sobretudo, aos camaradas, que viviam
da metade do século XIX. em condições mais precárias e inconstantes,
Estatísticas da região campineira apon- constituindo o grosso da população flutuan-
tam não somente a progressiva elevação do te. A unir ambos os grupos estava a tarefa
número de escravos, mas também o ingres- comum de “Limpar mato, construir estradas
so de trabalhadores imigrantes na região: ou guiar carroças”. Acresce-se a isso outro
17 Arquivo Público e Histórico de São Carlos. Car- aspecto: “[…] Os fazendeiros não podiam
tório do 1.o Ofício. Cx. 298. 21/12/1886. Sumá-
rio Crime e Apelação Crime. Autor: A Justiça. exigir mais deles, não apenas porque eles
Réu: Felisbino Garcia de Jesus, grifos nossos. podiam facilmente abandonar a lavoura,

72 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017


Maria de Fátima Novaes Pires

mas porque tinham necessidade de conser- Warren Dean (1977, p. 69), ao tratar da
var-lhes a lealdade” (DEAN, 1977, p. 35). grande lavoura de Rio Claro, no “Oeste his-
A exploração de trabalhadores (escravi- tórico” paulista, entre os anos 1820 e 1920,
zados e/ou livres) fora uma marca nas fa- afirmava que “as vendas de escravos regis-
zendas de café, sendo bastante pesados os tradas em Rio Claro a partir de 1872 consis-
serviços realizados por camaradas, “um ele- tiam na maior parte [...] de meninos de 10 a
mento inconstante no seio da população”. 15 anos. Raramente eles eram acompanha-
Apesar de administradores e senhores taxá dos dos pais, sendo declarados - quase sem-
-los de preguiçosos e imprevidentes, preci- pre, é provável, falsamente - de mãe desco-
savam deles, por serem “corajosos, resisten- nhecida ou morta”.
tes e resignados a permanecer sem terras” Ao tratar das duas regiões cafeeiras mais
(DEAN, 1977, p. 36). proeminentes no Oitocentos, o Vale do Pa-
Moura (1998, p. 173-174) analisa uma raíba e o Oeste Paulista, Lima (1986) assi-
documentação expedida por agenciador de nala enfaticamente a tônica da violência
trabalhadores, datada de 1878, com regis- empregada contra os primeiros colonos e as
tro da entrada de “cento e tantos” retirantes medidas adotadas pelos governos europeus
cearenses “a fim de seguirem para o muni- para obstar a emigração. Dentre as diversas
cípio de Rio Claro (SP), onde declaram ter notas de parlamentos estrangeiros, uma de-
agasalhos”, e a recusa de cinco dentre eles las expedida pelo governo belga expõe expli-
que, ao chegarem à estação da Luz, pediram citamente a situação: “a triste experiência
passagens para Guaratinguetá (SP). Para a que os nossos compatriotas têm tido do cli-
autora, esses retirantes não estavam alheios
ma do Brasil e da escravidão disfarçada...
às condições de trabalho e de vida nas fa-
deterá o movimento de emigração belga
zendas de Rio Claro, e a recusa devia-se aos
para aquelas paragens” (LIMA, 1986, p. 69).
comentários chegados por meio de cartas e
Além da violência, amargavam-se com
conversas de parentes e amigos.
as baixas temperaturas naquelas fazendas,
Curiosa a identificação de Rio Claro
situação que tantas vezes concorreu para
como um dos lugares mais temidos por sua
agravar o sofrimento daqueles trabalhado-
má reputação. Rio Claro foi justamente o lu-
res, como se verifica na documentação judi-
gar de destino de muitos escravos dos ser-
cial campineira:
tões da Bahia e de outras partes do Norte.
O historiador Erivaldo Neves (2000, p. 117), Ontem deu-se o facto que José Pires se
ao tratar das ações de traficantes no alto enfureceu dando elle parte de madrugada
que estava com frio, eu diçe a elle que
sertão da Bahia, evidencia a preferência por
estava fazendo frio mesmo que isso não é
mão de obra de jovens escravos na região de caso de ficar que fosse trabalhar elle
Rio Claro: “Fenômeno também demonstra- fes serao com os outros de panhar café […] e
do nas escrituras de compra e venda de Rio quando a gente foi para a roça elle ficou mais
Claro, mercado de meninos e jovens caeti- atrás […] então é que elle se enfureceu em
teenses, onde 29% dos escravos naturais da fim como não tendo elle me aparecido athe
despois de almoço então mando o Marcellino
província de São Paulo, em 1872 [‘quando se
a precura delle e vai encontra-lo depindurado
intensificou o tráfico sertanejo’], provinham
no Sipo no Mato quando se achou elle ja era
da Bahia”. Escravos que não tiveram a mes- tarde não teve tempo de mandar […] em fim
ma chance que muitos migrantes cearenses. são das quellas coizas que tem de acontecer

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017 73


Travessias a caminho – Tráfico interprovincial de escravos, Bahia e São Paulo (1850-1880)

e por isso nao deve se comodar muito [...]”.18 marcada por uma mentalidade escravocra-
ta muito arraigada, aspecto que conferiu (e
Maus tratos aliados a duras condições
ainda confere) forte tônica às relações so-
de vida e de trabalho foram mais incisivos
ciais e de trabalho no Brasil.
para escravos, mas não exclusivos a eles. A
Apesar das distinções entre cativos e li-
violência e a exploração atingiram outros
vres pobres, a começar pela condição jurí-
segmentos sociais, gerando solidariedades
dica dos primeiros, os autos e outras fontes
de classe contrárias ao domínio senhorial,
informam que não havia mundos distintos
em planos horizontais e verticais. Novos ar-
a separá-los, fato que sugere uma análise
ranjos aproximaram lentamente escravos da
mais imbricada das relações sociais no de-
diversificada população das províncias do
curso da escravidão, e que, em termos histo-
Sul. Essa aproximação, todavia, exigiu uma
riográficos, permite escapar ao binômio “se-
especial capacidade de entendimento de re-
nhor e escravo”. Outro aspecto, que aparece
gras do jogo no plano das relações sociais ali
relacionado ao primeiro, é a necessidade de
estabelecidas:
estudos mais dedicados às possíveis identi-
[...] Estas modificações na composição da co- dades novas que se formaram (em termos
munidade de escravos alteraram em diversos thompsonianos) com a aproximação entre
aspectos a relação deles com seus senhores. O
esses sujeitos, seja nas árduas jornadas de
historiador Robert Slenes, em artigo sobre o
assunto, mostra que os senhores de escravos, trabalho, seja nos encontros em tabernas e
utilizando a força, por um lado, e o favor, por vendinhas, onde possivelmente tratavam
outro, promoviam diferenças de posição entre entre si do comportamento de senhores, ad-
os cativos: privilégios e promessas de liber- ministradores e feitores, e de onde, por cer-
dade ajudavam a torná-los mais submissos to, emergiram planos de reação.
e, assim, menos perigosos (SLENES, 1997).
Esses laços se constituíram e se estrei-
Este fator influenciava também nas relações
entre os próprios cativos e na formação de taram ao longo da escravidão e depois dela,
suas identidades (COSTA et al., 2008, p. 29). como podemos acompanhar na nossa histo-
riografia.19 Wissenbach (1998, p. 58) alerta
Travessias impulsionadas por eventos para “o processo de mestiçagem” como re-
como o tráfico, migrações e imigrações co- sultado que “vinha mais do convívio social
locaram aqueles sujeitos diante do desafio de homens livres pobres que das relações en-
da organização de novos arranjos de sobre- tre casa-grande e senzala”. Além desse con-
vivência, nada fáceis para aqueles que não vívio, a presença de imigrantes estrangeiros
eram conhecidos localmente: “Os escravos aproximava esses sujeitos em experiências
que não vinham do Sudeste […] eram pro- comuns. Italianos, alemães, portugueses,
movidos com menos frequência e com mais que atendiam pelos sobrenomes de Bretter-
demora, justamente porque suas qualida- nitz, Graner, Deande, Holler, Reinert, Bes-
des e temperamentos eram menos conhe- tintz, Almeida... Também conviveram lado
cidos pelo senhor” (SLENES, 1997, p. 273). a lado com escravos na região campineira.20
Além disso, as oportunidades de conquista Uma proximidade nem sempre harmoniosa:
da alforria se restringiram diante da eleva-
ção de preços dos cativos naquela sociedade, 19 Ver: Wissenbach (1998); Albuquerque (2009) e
Fraga Filho (2006).
18 AESP. AEL/Unicamp. Delegacia de Campinas. 20 AEL/Unicamp. Nomes colhidos na documenta-
Auto de corpo de delicto. CO4114. DOC 043. ção judiciária. Sobre a participação estrangeira
1875. f. 4, grifos nossos. na região, ver Lima (1986).

74 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017


Maria de Fátima Novaes Pires

Respondeo chamar-se Fellippe ter trinta e transformar trabalhadores em dependentes


oito annos, solteiro e natural desta cidade, [acarretou] certas semelhanças com aquele
ser escravo de Joaquim Rivas de Avila, não [contraponto] entre senhores e escravos,
sabe ler nem escrever. Perguntado se sabia
ainda que [expressasse] as novas relações
se foi com effeito o Italiano Bertolucci Gre-
gorio que tentara matal-o com um tiro de de trabalho”.
revólver que errando a pontaria foi dar nas Se considerarmos as ações de governos
folhas da janella do sobrado [onde] elle of- estrangeiros para denunciar maus tratos de
fendido trabalha de carpinteiro, a que seus patrícios e mesmo de obstar emigra-
horas no dia esse facto e as circunstancias da ções; se levarmos em conta a relativa auto-
ação passarão?
nomia e mobilidade de camaradas e agrega-
Respondeo que sabe ser o proprio Italiano dos; e, ainda, se atentarmos para as escolhas
Bertolucci Gregorio quem tentou matal-o facultadas a migrantes, fica mais fácil dedu-
nesse dia com um tiro de revólver e que não
zir o peso e a importância do trabalho com-
atribue outro facto mais do que a má indole
pulsório naquela região. Tal situação agra-
de ser desse individuo que segundo as infor-
mação que teve elle offendido teve mais de vava formas de coação e coerção, amplian-
cinco mortes praticadas e que quanto ao mais do as tormentas na vida de escravos. Mas é
é o que conta do corpo de delito que prezen- preciso considerar que tal situação gerava,
ciou e que deo informação aos peritos.21 em contrapartida, uma resistência escrava,
Além da lide agrícola, escravos como ampliada nos últimos anos da escravidão.
Felipe também se ocupavam em ofícios es- A distância de amigos e parentes levou
pecializados. A nossa historiografia tem de- escravos para variadas formas de enfren-
monstrado como a prestação de serviços e tamento, situação assinalada por Graham
os ofícios especializados uniram e expuse- (2002, p. 153):
ram esses segmentos a ritmos de vida e de Relativamente jovens, desentranhados da
trabalho mais próximos. Essas experiências vida social de uma comunidade, violenta-
comuns têm, em geral, uma função integra- mente impedidos de manter contatos com a
família e amigos — o que poderia ter exerci-
dora, possibilitando a formação de impor-
do uma influência moderadora no compor-
tantes laços de solidariedade. Não nasceram tamento —, os homens assim transportados
de uma hora para outra os costumes de for- provavelmente estavam irados, ressentidos,
mação de adjutórios e mutirões em bairros ansiosos, menos constrangidos por expecta-
rurais, como tão bem analisou Antônio Cân- tivas sociais e certamente prontos a explodir.
dido (1997), em seu clássico Os parceiros Homens sozinhos sempre tiveram menos a
perder por sua resistência ativa. Muitos ob-
do Rio Bonito, fruto de suas pesquisas nas
servadores notaram que os escravos recém
décadas de 1940 e 1950, abrangendo muni-
transferidos eram mais rebeldes que os ou-
cípios paulistas. O quadro da mão de obra tros, sendo uma fonte, como disse o abo-
das lavouras cafeeiras foi, sem sombra de licionista Joaquim Nabuco, de “desordem
dúvidas, vasto e diversificado. e perturbação” na província de São Paulo,
Sobre as relações entre proprietários e ameaçando seu desenvolvimento, que tinha
colonos, R. Slenes (1997, p. 236) analisa sido tão promissor, disse ele, quando ela ti-
nha confiado predominantemente no traba-
que a prepotência senhorial e o “seu afã de
lho livre.
21 AESP. AEL/Unicamp. Delegacia de Campinas. Naquela conjuntura marcada, de par-
Auto de corpo de delicto. CO 4033 DOC 051. 15
de julho de 1878, f. 13. te a parte, por desconfianças quanto à es-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017 75


Travessias a caminho – Tráfico interprovincial de escravos, Bahia e São Paulo (1850-1880)

tabilidade da escravidão, ampliaram-se uma disputa entre Benedicto, ex-escravo de


enfrentamentos individuais e coletivos; Dona Florinda com uma mulher de nome
expandiram-se ações de abolicionistas; for- Joana Maria de Jesus e hindo elle respon-
dente apartar [...] Perguntado quem se acha-
maram-se quilombos (inclusive urbanos)...
va presente na supra occasiao? Respondeo
eventos e circunstâncias que ampliaram a que a dita Leonor, Joana e Elesbão, escravo
repressão sobre cativos, mas também pro- de Dona Gertrudes, viúva de G. da Cunha
moveram acordos no plano cotidiano e na Raposo. Perguntado se elle respondente
esfera legal.22 quer fazer parte contra seu offensor? Que
Para escravos, comercializados pelo trá- não faz parte por ser pobre.24
fico, aproximar-se de gente conhecida na Na vida partilhada na casa de Leonor
região podia servir a uma melhor adaptação eram tênues os limites que separavam es-
às condições do lugar. Espaços como a casa cravos e trabalhadores livres pobres. Os au-
de Leonor, em Campinas, serviram para me- tos criminais, pela natureza dessa fonte, nos
lhor integrá-los: oferecem situações de conflito, de fricções...
Faço saber a Vossa Senhoria que nesta Sub- No entanto, é possível deduzir que naqueles
delegacia corre um processo crime ex-officio lugares ocorressem bem mais encontros...
contra o preto Benedicto escravo de […] cuja É bastante sugestiva a informação de que a
briga foi motivada por Joana Maria de Je- casa de Leonor era “couto de escravos” que
sus, que mora com a mesma Leonor, a casa
“não se comportam com ameaças”... Assim
desta mulher tem sido o couto dos es-
cravos dos arredores, são immensas as como a alegação de Pedro Pires, que disse
brigas que tem feito ahi, feitas por escravos, “não dar parte” de Benedicto escravo por
já me tenho cansado a dar parte destes acon- “ser pobre”... Esses registros evidenciam
tecimentos, e as autoridades não tem dado muito mais que crimes, servem para de-
providência alguma, esta gente deste lu- monstrar resistências, encontros e sociabi-
gar não se comporta com ameaças, por
lidades horizontais e verticais.
isso espero que Vossa Senhoria o faça punir
como entender. […] Quarteirão número de-
Outro ponto de aproximação entre es-
zoito, vinte e três de junho de 1866.23 ses escravos e livres pobres está nas precá-
rias condições de vida. Um administrador
O delegado de polícia da cidade de Cam- de fazendas na região de Campinas depôs
pinas, “Ilustríssimo Senhor Doutor Manoel sobre as condições de saúde daqueles que
Ferraz de Campos Salles”, e o Inspector Ma- trabalhavam sob as suas ordens: “Doentes
noel Bueno de Matos iniciaram judicialmen- tem tido bastantes, esta o Amancio com
te aquele caso, que tivera lugar no dia 23 de dor no lado e escarrando um pouco de san-
junho de 1866. gue, esta o Legario com dor no lado mas
Pedro Pires, ao que parece, foi o mais esta melhor, esta o Antonio criollo com dor
prejudicado daquela contenda. Disse ser na cabeça, [...] está com dor no Peito, mas
solteiro, natural da Villa de Indaiatuba, filho esta melhor, esta a Maria Joana está com
de Vicente de tal, e que “vive de jornaleiro”, dor de Bexiga.”25
acrescentando:
24 AESP. AEL/Unicamp. Apelação crime. CO 4114,
[...] que estando em casa de Leonor, ouviu DOC 028. 23 de junho de 1866. f. 16, grifos nos-
sos
22 Ver Azevedo (1987) e Machado (1994). 25 AESP. AEL/Unicamp. Delegacia de Campinas.
23 AESP. AEL/Unicamp. Apelação crime. CO 4114, Auto de corpo de delicto. CO4114. DOC 043.
DOC 028. 23 de junho de 1866. f. 10, grifos nossos. 1875. f. 4, grifos nossos.

76 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017


Maria de Fátima Novaes Pires

Autos criminais dos últimos anos da es- Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
cravidão revelam que escravos e trabalhado- AZEVEDO, Célia M. Marinho de. Onda Negra,
res livres pobres combinavam entre si pla- Medo Branco. O negro no imaginário das eli-
nos mirabolantes para amealhar alguns tro- tes. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987.
cados; lançavam mão de relações pessoais CANDIDO, Antônio. Os Parceiros do Rio
para se defenderem; “pegavam carona” em Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a
tropas nas suas tentativas de fuga (contan- transformação dos seus meios de vida. 8. ed. São
Paulo: Ed. 34, 1997.
do com apoios externos para tanto); pade-
ciam com os horrores das baixas tempera- CARMO, Daniela do. Questão racial, classe e
turas nos serões das colheitas; reuniam-se gênero: um colégio feminino e a trajetória do
“pardo” Antônio Ferreira Cesario (Campinas,
em “fandangos” (dança de pares, própria
segunda metade do século XIX). Oikos: Revis-
da península ibérica) nas vendinhas e casas ta Brasileira de Economia Doméstica, Viçosa, v.
de mulheres, como a “casa de Leonor”... Es- 22, n.1, p. 111-130, 2011.
sas fontes demonstram amplamente, e com CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: Ro-
ricos indícios, as aproximações entre esses tinas e ruptura do escravismo do Recife, 1822-
segmentos nos arranjos do viver. 1850, Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1998.
Escravizados não formaram um segmen- CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade.
to à parte no curso da escravidão brasilei- São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
ra, ao contrário, suas experiências foram
CONRAD, Robert Edgar. Os últimos anos da
construídas em estreita relação com livres escravatura no Brasil (1850-1888). 2. ed.
pobres, gente que também necessitava de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
parcerias para viver. A uni-los estava o en-
COSTA, Fernando Augusto Pozzobon da et al.
frentamento de toda sorte de obstáculos. No Senhores e escravos no Vale do Paraíba nas úl-
contexto do tráfico intra e interprovincial, timas décadas da escravidão. In: MIZSPUTEN,
muitas travessias se colocaram no caminho Francis (Org.). Inventários das Fazendas
do Vale do Paraíba Fluminense. Rio de Ja-
de escravos e seus parceiros nas províncias
neiro: Instituto Estadual do Patrimônio Cultu-
do Sul. Ali partilharam experiências comuns ral; Instituto Cidade Viva, 2008, v. 1, p. 41-52.
e viveram uma “travessia para uma nova Disponível em: <http://www.institutocidade-
vida”, unindo-se como “malungos” (SLE- viva.org.br/inventarios/sistema/wp-content/
uploads/2008/03/xtoau toral_fernando_poz-
NES, 1991-1992), criando novas identidades
zobon.pdf >. Acesso em: 6 abr. 2016.
na ajuda mútua, nas rotinas de trabalho,
em suas sociabilidades nas vendinhas lo- DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasi-
leiro de grande lavoura, 1820-1920. São Paulo:
cais, nos festejos, nas celebrações... espaços
Paz e Terra, 1977.
de aprendizado de um jeito de viver menos
constrangido pela escravidão, numa conjun- FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios
de jornais brasileiros do século XIX. Reci-
tura de críticas morais contundentes à sua fe: Imprensa Universitária, 1963.
vigência e longa duração no Brasil, como se
observa na fala de Nabuco, em epígrafe no FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da
liberdade: histórias de escravos e libertos na
presente artigo. Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2006.
Referências bibliográficas GRAHAM, Richard. Nos tumbeiros mais uma vez?
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da O comércio interprovincial de escravos no Brasil.
Dissimulação: abolição e cidadania negra no Afro-Ásia. Salvador, n. 7, p. 121-160, 2002.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017 77


Travessias a caminho – Tráfico interprovincial de escravos, Bahia e São Paulo (1850-1880)

GRAHAM, Douglas H.; HOLLANDA FILHO, SLENES, Robert W. The demography and
Sérgio Buarque. Migrações internas no Bra- economics of Brazilian slavery: 1850-
sil: 1872-1970. São Paulo: IPE-USP; CNPq, 1888. 1976. Tese (Doutorado em História),
1984. Stanford University: Stanford, 1976.
LAPA, José Roberto do Amaral. A economia ______. Grandeza ou decadência? O mercado
cafeeira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. de escravos e a economia cafeeira da Província do
Rio de Janeiro, 1850-1888. In: COSTA, Iraci del
LIMA, Sandra Lúcia Lopes. O Oeste paulista e
Nero da (org.). Brasil: história econômica e de-
a República. São Paulo: Vértice, 1986.
mográfica. São Paulo: IPE/USP, 1986, p. 103-155.
MACHADO, Maria Helena P. Toledo. O Plano
______. “Malungu, ngoma vem!”: África co-
e o Pânico: os movimentos sociais na década
berta e descoberta no Brasil. Revista USP, São
da abolição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; São
Paulo, n. 12, p. 48-67, dez./jan./fev. 1991-1992.
Paulo: Edusp, 1994.
______. Senhores e subalternos no Oeste pau-
MOTTA, José Flávio. Escravos daqui, dali e
lista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe; NOVAIS,
de mais além: o tráfico interno de cativos na
Fernando A. (Coord.). História da vida pri-
expansão cafeeira paulista. São Paulo: Alameda,
vada no Brasil, 2: a Corte e a modernida-
2012.
de nacional. São Paulo: Companhia das Le-
MOURA, Denise A. Soares. Saindo das som- tras, 1997, p. 233-290.
bras: homens livres no declínio do escravismo.
______. The Brazilian Internal Slave Trade,
Campinas: Área de Publicações CMU/UNI-
1850-1888: Regional economies, slave expe-
CAMP, 1998.
rience and the politics of a peculiar market. In:
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. 4. ed. JOHNSON, Walter (org.). Domestic Passages:
Petrópolis: Vozes, 1977. Internal Slave Trades in the Americas, 1808-
1888. New Haven: Yale University Press, 2005.
NEVES, Erivaldo Fagundes. Sampauleiros trafi-
cantes: comércio de escravos do Sertão da Bahia THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria
para o Oeste Cafeeiro Paulista. Afro-Ásia, Sal- ou um planetário de erros: uma crítica ao
vador, UFBA, n. 24, p. 97-128, 2000. pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1981.
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da vida:
tráfico interprovincial e alforrias nos sertoins de ______. Costumes em comum: Estudos
sima – BA (1860-1920). São Paulo: Annablume, sobre cultura popular tradicional. São Paulo:
2009. Companhia das Letras, 1998.
POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Da escra-
Jocelyne. Teorias da etnicidade: seguido vidão à liberdade: dimensões de uma privacida-
de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik de possível. In: Nicolau Sevcenko (org.). Histó-
Barth. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, ria da Vida Privada no Brasil. República: da
1998. Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Cia das
Letras, 1998, vol. 3, p. 49-130.
SCHEFFER, Rafael da Cunha. Tráfico inter-
provincial e comerciantes de escravos
em Desterro, 1849-1888. 2006. Dissertação
(Mestrado em História). Universidade Federal Recebido em: 14/05/2017
de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. Aprovado em: 21/06/2017

78 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 63-78, jul./dez. 2017


Josenildo de J. Pereira

A ESCRAVIDÃO MODERNA: OBJETOS,


LÓGICAS E A FORMAÇÃO HISTÓRICA
BRASILEIRA*

Josenildo de J. Pereira**

Resumo
Análise relativa a escravidão moderna verificada no mundo ocidental entre
os séculos XV e XIX sublinhando o seu objeto, lógicas e a sua relação com
o processo de formação histórica brasileira com o objetivo de contribuir no
debate em torno dos fundamentos da consciência negra ao se considerar os
mitos que envolvem a identidade negra no Brasil.
Palavras chaves: Escravidão moderna; África; Brasil; capitalismo.

Abstract
Slavery modern: objects, logic and brazillian society
Analysis of modern slavery in the western world between the fifteenth and
nineteenth centuries, emphasizing its object, logic and its relationship of the
process the Brazilian historical formation, with the aim of contributing to
the debate around the foundations of black conscience when considering the
myths that involve black identity in Brazil.
Keywords: Modern slavery; Africa; Brazil; capitalism.

Em abril de 1981, o historiador Ciro Flama- “Creio que a resposta deve ser negativa, ape-
rion Cardoso ao prefaciar o livro Ser escravo sar da existência de algumas obras de valor
no Brasil, da historiadora Katia de Queiros inestimável” (CARDOSO, 1990, p. 07).
Mattoso, reconhecia que a escravidão brasi- Há quase quatro décadas depois, o pro-
leira era o tema que contava com uma copio- blema e a resposta formulados por este his-
sa bibliografia. Mas, levantou um problema toriador ainda estão atuais, sobretudo no
– “Tal abundância relativa significará, tal- que se refere a relação entre a escravidão
vez, que o nosso conhecimento histórico da moderna e o racismo no mundo ocidental,
escravidão brasileira e temas conexos é pro- pois, títulos de obras e ou expressões como
fundo e adequado? ”Ele, em resposta disse – – “escravidão africana”, escravidão negra”,

* A versão preliminar deste texto foi apresentada na “Semana da Consciência Negra: consciência
para não permanecer em silêncio”, na Mesa Redonda 02 – Escravidão no Brasil: trabalho, socieda-
de, cultura e comércio. Dia 24 de novembro de 2017, na cidade de Pinheiro - MA.
** Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social/PPGHIS da
Universidade Federal do Maranhão/UFMA.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 79-90, jul./dez. 2017 79


A escravidão moderna: objetos, lógicas e a formação histórica brasileira

“tráfico negreiro”, “os negros no Brasil”, entre essa cor de corpo e o trabalho escravo
“raça negra” e “culturas negras”, sugerem e, por conseguinte, da identidade negra,
que os seus autores ainda não conseguiram, a qual, sobretudo, no tempo após abolição
de modo crítico, se libertarem de limites e serviu de fundamento para justificar a pre-
superficialidades criadas pela cultura ra- cariedade material e simbólica de sujeitos
cista ao se considerar que tais títulos e ou de corpos pretos.
expressões são portadores de problemas de A partir dessa perspectiva sublinhei em
método, mas, também, de dimensão política outro lugar (Pereira, p. 2011), que no ima-
e ideológica. ginário ocidental contemporâneo os vocá-
A este respeito, não é demais destacar bulos - “africano”, “escravo” e “negro” são
que as narrativas dos historiadores decor- compreendidos e usados como sinônimos
rem do diálogo entre temporalidades, ou indicando tratar-se de um sujeito com uma
seja, de tempos do historiador com os de identidade definida pelo fenótipo e, por isso
memórias a partir das quais ele tece e urdi mesmo, caracterizado por um modo de ser
o seu tema-problema, bem como, também, muito especifico tendo uma essência onto-
dos que já trataram antes acerca do tema de lógica que demarca, inclusive, o seu lugar
investigação. Logo, se trata de temporali- no cosmos.
dades não isentas de colorações políticas e Ao analisar o discurso corrente em livros
ideológicas. Afinal, como nos ensina Back- didáticos de História utilizados na Educa-
thin (2002, p.123), ção Básica brasileira se verifica o largo uso
de tais representações para qualificar e “ex-
O discurso escrito é de certa maneira parte plicar” o tráfico internacional e a escravidão
integrante de uma discussão ideológica em
moderna com base na cor do corpo dos su-
grande escala: ele responde a alguma coi-
sa, refuta, confirma, antecipa as respostas jeitos tornados escravos. Mas, o mesmo não
e objeções potenciais, procura apoio, etc. fazem com aos escravos dos mundos greco
Qualquer enunciação por mais significativa e -romano antigos nomeando-os de brancos.
completa que seja, constitui apenas uma fra- Não é que devesse se assim! Mas, se trata
ção de uma corrente de comunicação verbal de um instigante problema a ser analisado
ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à
no contexto racial brasileiro. Acerca destes,
literatura, ao conhecimento, à política, etc).
no mundo antigo greco-romano, Campos e
É corrente no imaginário social brasilei- Miranda (2005, p. 77) apenas destacam que
ro e em outras partes do mundo ocidental “os escravos trabalhavam como artesãos,
contemporâneo que a forma de trabalho criados domésticos e, em maior número, na
que deu sustentação ao mundo material e agricultura e na mineração”.
simbólico do período compreendido entre Os autores Koshiba e Pereira (1996, p.
os séculos XV e XIX seja a escravidão ne- 29), embora apoiados em referencial teórico
gra por conta da cor preta do corpo daque- crítico e consistente, não procedem de modo
les que foram o seu objeto, ou seja, sujeitos diferente ao se referirem ao trabalho escravo
de diferentes e diversos grupos étnicos do no processo de formação histórica do Brasil.
continente africano. No longo prazo, esta Estes sublinham que, “o trabalho indíge-
forma de nomeação acrescida de outros na foi amplamente utilizado no processo de
elementos, como o racismo, contribuiu montagem a economia açucareira. À medida
para a noção de que há uma estreita relação que essa economia começou a se expandir”

80 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 79-90, jul./dez. 2017


Josenildo de J. Pereira

foi tomada a “decisão de substituir o índio de africanos negros proliferou em países


pelo africano”. Assim, o “tráfico negrei- como o Brasil e os Estados Unidos, até as úl-
ro solucionou o problema em todas as fren- timas décadas do século XIX” (Idem, 2005,
tes”. A este respeito, Rezende (1994, p. 45) p.145). Ainda destacam que “no Brasil, ini-
destaca que “a presença da mão-de-obra es- cialmente, foram escravizados os nativos in-
crava negra, vinda da África, foi a base de dígenas, mas logo se recorreu ao comércio
sustentação da empresa colonial portuguesa. de negros africanos”. (id. Ibidem, p.155).
Ao refletir acerca da escrita um livro di- Como se pode notar, as representações
dático de História, Rezende (1994) salienta de sujeitos objetos do tráfico internacional
que “escrever um livro de História tem sig- e da escravidão moderna são qualificados
nificados múltiplos (...) Ao historiador res- com base nos termos pautados pela cultu-
ta lidar com uma memória que, muitas ve- ra racista. Trata-se de um discurso presen-
zes, está petrificada (...) Na verdade ele não te em livros escritos antes e depois da pro-
deve se conformar com a existência de uma mulgação de leis anti-racistas como a Lei 10
História que silencia, que elogia e esquece 639/2003 e a Lei 11 645/2008, inclusive,
as contradições”; isto porque, como bem naqueles constituintes do elenco de obras do
salienta, ”vivemos, atualmente numa socie- Plano Nacional do Livro Didático brasileiro
dade penetrada por injustiças, numa socie- (PNLD), o que demonstra contradições do
dade que mantém valores que deveriam ser Estado brasileiro relativas a esta questão e,
sepultados”. também, a necessidade da análise acerca da
Algum tempo depois, na esteira desta relação entre o Estado e o setor privado por-
perspectiva as autoras, Montellato, Cabrini que se trata de um procedimento de “trans-
e Catteli, destacam no prefacio de seu livro ferência” de recursos públicos para o setor
- História Temática: diversidade cultural e privado concentrado, no campo de editora-
conflitos, publicado pela tradicional Editora ção, por poucas empresas como as editora
Scipione de São Paulo, aprovado pelo Minis- FTD, SARAIVA, MODERNA, ÁTICA, no
tério da Educação e Cultura/MEC para in- mercado brasileiro, localizadas no estado de
tegrar o conjunto de livros do Plano Nacio- São Paulo, último reduto do escravismo no
nal do Livro Didático/PNLD - que “o livro Brasil, enquanto província e centro irradia-
didático é um instrumento ímpar. Destina- dor do capitalismo em sua dimensão urbano
se a um público específico, com qualidades industrial.
determinadas (...) Mais do que meramente O Programa Nacional do Livro e do Ma-
informativo, ele deve ser formativo. Ao re- terial Didático (PNLD) é destinado a avaliar
conhecerem a função deste no contexto do e a disponibilizar obras didáticas, pedagó-
sistema formal de ensino, as referidas auto- gicas e literárias, entre outros materiais de
ras sublinham ainda que “por ser um veículo apoio à prática educativa, de forma sistemá-
que difunde a palavra escrita, divulga ideias, tica, regular e gratuita, às escolas públicas
estimula e enriquece o pensamento, o livro de educação básica das redes federal, esta-
acaba se tornando um fetiche. (MONTEL- duais, municipais e distrital e também às
LATO at ali, 2005, p. 3). instituições de educação infantil comunitá-
Acerca dos objetos da escravidão moder- rias, confessionais ou filantrópicas sem fins
na, as referidas autoras argumentam que lucrativos e conveniadas com o Poder Públi-
“entre os séculos XVI e XVIII, a escravidão co (mec.gov.br).

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 79-90, jul./dez. 2017 81


A escravidão moderna: objetos, lógicas e a formação histórica brasileira

Não é demais destacar que, na cultura nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que es-
brasileira, no que se refere ao processo de tabelecia as diretrizes e bases da educação
obtenção de conhecimentos, a leitura e o li- nacional, para incluir no currículo oficial da
vro - a despeito das qualidades teóricas de rede de ensino a obrigatoriedade da temáti-
seus autores e da lógica do que é dito no tex- ca “História e Cultura Afro-brasileira”. Con-
to - ainda estão revestidos pela “autoridade” forme os termos de seu Artigo 1º, o Artigo
iluminista. 26-A da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
Do mesmo modo, convém sublinhar que 1996 passou a vigorar assim,
no contexto do sistema formal de ensino Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino
brasileiro, a Escola com os seus operado- fundamental e de ensino médio, públicos e
res tem uma centralidade nesse processo. privados, torna-se obrigatório o estudo da
E que, para além de professores, o públi- história e cultura afro-brasileira e indígena.
co receptor do discurso contido em livros § 1o  O conteúdo programático a que se re-
didáticos usados na Educação Básica é fere este artigo incluirá diversos aspectos da
constituído por sujeitos em formação, em história e da cultura que caracterizam a for-
geral, qualificados como crianças e adoles- mação da população brasileira, a partir des-
ses dois grupos étnicos, tais como o estudo
centes, os quais ainda estão construindo
da história da África e dos africanos, a luta
a sua compreensão do mundo no qual se
dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a
encontram. Logo, tudo que é lido e ouvido cultura negra e indígena brasileira e o negro
pode ser apropriado por este público, pois, e o índio na formação da sociedade nacional,
o livro didático em sua condição de fetiche resgatando as suas contribuições nas áreas
é um importante passador cultural. Neste social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil. (www.planalto.gov.br).
caso, uma cultura racista!
O discurso dos poucos autores de livros A proposição política e ideológica desta
de História utilizados na Educação Básica, lei é, sem dúvida, de suma relevância por-
aqui referenciados, indica a permanência que potencializa, nos marcos do Estado de-
de representações dos objetos da escravidão mocrático direito, a luta pela desconstrução
moderna ao limite da cultura racista que os do racismo e da invisibilidade de referências
restringem a cor de seu corpo. Ao se consi- de marcas culturais africanas no processo de
derar as instituições como a Pontifícia Uni- formação da cultura brasileira. Ainda assim,
versidade Católica de São Paulo/PUC - SP e a referida lei é permeada por problemas.
a Universidade de São Paulo/USP onde fo- Conforme os seus termos, negros e indíge-
ram formados estes profissionais em Histó- nas são grupos étnicos. Se tal formulação
ria, se verifica que tais representações não para serve para qualificas os indígenas, o
são uma especificidade do livro didático, em mesmo não se pode dizer para os sujeitos de
si, mas, o desdobramento da historiografia corpos pretos, a despeito de sua integração à
racista brasileira, cujos termos são incorpo- sociedade brasileira ser viabilizada por meio
rados por diferentes sujeitos articuladores, de seu histórico empobrecimento e margina-
inclusive, da crítica ao discurso racial tal lização social. Do mesmo modo, a limitação
como se percebe nos termos de leis anti-ra- de diferentes formas de lutas levadas a cabo
cistas como a propalada 11.645/2008. pelos trabalhadores escravizados, de corpo
Esta lei alterou outra, de nº 9.394, de 20 preto, ao ícone negro é animar a reprodução
de dezembro de 1996, modificada pela Lei da insustentável concepção racial que forjou

82 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 79-90, jul./dez. 2017


Josenildo de J. Pereira

a identidade negra baseada no fenótipo. E, lificá-la em seus devidos termos. Segundo,


por extensão, o fortalecimento de perspecti- apresentar a articulação da historicidade
vas políticas baseadas em “divisões perigo- africana com o tráfico internacional de es-
sas” e o fortalecimento do que tem gerado as cravos. Em terceiro lugar apresentar a lógi-
assimetrias socioeconômicas verificadas na ca do tráfico internacional de escravos e o a
estrutura da sociedade brasileira, ou seja, o influência da escravidão moderna no pro-
capitalismo. cesso de formação histórica, sociocultural
O exame crítico da representação da es- da sociedade brasileira. E, por último, numa
cravidão moderna como a escravidão ne- perspectiva de longo prazo, a relação desta
gra com todos os seus derivados demonstra com o capitalismo e o racismo no mundo
que tal formulação é insustentável porque ocidental contemporâneo.
não dá conta de sua engenharia e lógica. Ao
longo do século XX o uso desta, indistinta- Desracializar é preciso...
mente, por brasileiros, em geral, mascara
O biólogo italiano, Guido Barboujani (2007,
os fundamentos do tipo de cidadania a qual
p. 14), a respeito de raças humanas já des-
foram submetidas as gerações de sujeitos de
tacou que “a palavra raça não identifica ne-
corpos pretos no Brasil, a despeito de ini-
nhuma realidade biológica reconhecível no
ciativas e de movimentos articulados, quer
DNA de nossa espécie (...) As raças nós as
fossem a partir do poder público ou ações de
inventamos e nós a levamos a sério por sécu-
particulares, com vistas a sua mudança.
los, mas, já sabemos o bastante para largar
Hoje, a quase duas décadas do século
mãos delas”. Nessa perspectiva, Guimarães
XXI, as suas marcas e ecos ainda são visí-
(Apud, PINHO; SANSONE, 2008, p. 64-65)
veis tal como sugerem os termos de eventos
salienta que,
organizados nas semanas em torno do dia
20 de novembro, cuja agenda central é a de- O que chamamos modernamente de racis-
manda pela “Consciência Negra”. mo não existiria sem essa ideia que divide
os seres humanos em raças, em subespécies,
Em vista disso, o meu propósito com este
cada qual com suas qualidades. Foi ela que
artigo é, revisitando parte da historiografia possibilitou a hierarquia entre as sociedades
deste tema, abrir uma vereda, no contexto e populações humanas fundamentadas em
do debate em torno da “Consciência Negra”, doutrinas complexas. Essas doutrinas sobre-
apontando elementos que possam contri- viveram à criação das ciências sociais, das
buir para a melhor compreensão acerca da ciências da cultura e dos significados, respal-
dando posturas políticas insanas, de efeitos
relação entre o trabalho escravo moderno e
desastrosos, como genocídios e holocaustos.
a formação histórica do Brasil, bem como,
por extensão, as suas implicações materiais Compreende-se que a historicidade do
e simbólicas para a população brasileira de racismo em sua versão religiosa e “cientifi-
corpo preto. ca” é um desdobramento das vicissitudes de
Para tanto, eu compreendo que a confi- agentes do colonialismo moderno levado a
guração da historicidade da escravidão mo- termo por nações europeias por sobre o ter-
derna só é possível seguindo alguns proce- ritório não europeu. Primeiro a “América”
dimentos analíticos. Primeiro, argumentar no século XV e depois a África e a Ásia no
em torno da desracialização do tráfico de século XIX. Noutras palavras, o racismo é
escravos e da escravidão moderna para qua- uma invenção do capitalismo em sua gesta-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 79-90, jul./dez. 2017 83


A escravidão moderna: objetos, lógicas e a formação histórica brasileira

ção, amadurecimento e expansão pelo mun- tidiana quanto as suas formas de sociabi-
do não europeu. lidades entre as gerações, de organizações
A partir desta perspectiva, a necessidade jurídicas, políticas e institucionais, de sua
da desracialização do tráfico internacional economia política, do sagrado, bem como,
de escravos e da escravidão moderna cujo também, da relação com o meio ambiente
objeto foram sujeitos de diversos e diferen- (KHAPOYA, p. 2015).
tes “grupos étnicos” do continente africano Amadou Hampâté Bâ, no esforço de
se impõe pelo fato de a racialização deslocar nuançar especificidades africanas, sublinha
a ocorrência do tráfico de seus fundamentos a importância da tradição oral destacando
econômicos, ideológicos e culturais para o que “nenhuma tentativa de penetrar a his-
corpo daqueles que foram o seu objeto en- tória e o espirito de povos africanos terá va-
capsulando a sua lógica, isto é, os seus reais lidade a menos que se apóie nessa herança
determinantes econômicos num contexto de de conhecimentos de toda a espécie trans-
uma nova cultura econômica em formação mitidos de boca a ouvido, de mestre a dis-
cujo cerne era o princípio de que na circu- cípulo, ao longo dos séculos” (HAMPÂTÉ
lação de mercadorias residia o fundamento BÁ, 2010, p. 167). Para reafirmar os termos
da economia em suas diferentes escalas: in- deste destaque, ele cita o grande mestre tra-
ternacional, nacional, regional, local e indi- dicionalista da ordem muçulmana Tijanyya
vidual, bem como na transformação do tra- Tierno Bokar, segundo o qual, refutando os
balhador, também, em mercadoria. estereótipos do eurocentrismo,
Nestes termos, o tráfico internacional de
...a escrita é uma coisa, e o saber, outra. A es-
escravos da “África” para outras partes do
crita é a fotografia do saber, mas não o saber
mundo a partir do século XIV, e o trabalho em si. O saber é uma luz que existe no ho-
escravo nestes territórios, como base de sua mem. A herança de tudo aquilo que nossos
sustentação material, são variáveis dessa ancestrais vieram a conhecer e que se encon-
nova cultura econômica em gestação; por tra latente em tudo o que nos transmitiram,
isso é que não se sustenta compreendê-la assim como o baobá já existe em potencial
em sua semente (HAMPÂTÉ BÁ, 2010, p.
como negra porque a sua ocorrência não se
167).
explica pela cor da pele daqueles que foram
o seu objeto. Embora, assim, tenham pre- Nestes termos, se verifica que a tradição
tendido os que dela tiravam o proveito quer oral é uma das variáveis estruturante do
na etapa do tráfico, ou do trabalho escravo modo de ser africano por se tratar da “gran-
nas plantations nas Américas. de escala da vida” ainda que pareça “caótica
A redução da diversidade étnica e cultu- àqueles que não lhe descortinam o segredo
ral desses sujeitos a cor preta de seu corpo, e desconcertar a mentalidade cartesiana
definida como o marco referencial da iden- acostumada a separar tudo em categorias
tidade racial do povo negro, além de legiti- bem definidas”. Desse modo, a tradição oral
mar a violência física praticada em relação “é ao mesmo tempo religião, conhecimen-
aos mesmos ainda promove o seu epistemi- to, ciência natural, iniciação a arte, história,
cidio ao retirar-lhe a condição de sujeitos divertimento e recreação, uma vez que todo
que se orientavam a partir de repertórios pormenor sempre nos permite remontar à
culturais traduzidos em suas filosofias e Unidade primordial” (HAMPÂTÉ BÁ, 2010,
cosmogonias orientadoras de sua vida co- p. 169).

84 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 79-90, jul./dez. 2017


Josenildo de J. Pereira

Em linhas gerais, a tradição oral para sobretudo, para as Américas foi um negócio
os diversos povos africanos sedimentava as lucrativo, particularmente, aos europeus. A
suas cosmogoniasa despeito de diferenças este respeito, no início da década de 1960,
de cunho linguísticos e de modos de viver sob uma forma de síntese, David Brion Da-
outros valores em África. Logo, a escravidão vis, ao tratar da formação de sociedades
moderna sustentada pelo tráfico internacio- americanas e de sua relação com a Europa,
nal de escravos de África para os mundos a partir da análise da escravidão na cultura
não africanos não pode ser reduzida a cor do ocidental, sublinhou que,
corpo daqueles que foram tornados escravos
Os investimentos no comércio no comércio
porque estes não eram apenas pretos. triangular trouxeram recompensas deslum-
Desta perspectiva de análise, a escravidão brantes, devidos aos lucros que podam ser
moderna não é negra, mas, um negócio bas- obtidos por meio da exportação de bens de
tante lucrativo porque o trabalhador escravo consumo para a África, da venda de escravos
era, a um só tempo, mercadoria e trabalho para o s colonizadores e, especialmente, do
transporte de açúcar e de outros alimentos
vivo. E, enquanto tal gerava riquezas para
para a Europa. Por volta da década de 1760,
todos os envolvidos nessa rede de negócios, um grande número de ricos comerciantes
ou seja, os “africanos” que tornavam outros da Inglaterra e da França estavam ligados,
“africanos” em cativos; os traficantes, os lei- de alguma maneira, ao comércio das índias
loeiros e os compradores de escravos dos Ocidentais; e o capital acumulado com o in-
quais se tornavam proprietários, mas, nun- vestimento em escravos e no que estes pro-
duziam ajudou a financiar a construção de
ca os plenos donos de seus corpos e mentes
canais, fábricas e estradas de ferro (DAVIS,
como bem atestam as fugas, os quilombos, 2001, p. 25).
as insurreições escravas e outras formas de
intervenção que lhes realçava a subjetivida- Katia de Queirós Mattoso (1990, p. 12),
de por onde a escravidão existiu. embora sob a influência da cultura racista
nos anos de 1980 quando escreveu o seu tex-
O tráfico de escravos como to, se refere ao tráfico internacional de es-
cravos como um negócio porque se tratava
negócio de “sórdidas práticas dos comerciantes atila-
A escravidão moderna foi, em si, a continua dos, especialistas na compra e venda de uma
demonstração da capacidade humana de mercadoria diferente das outras, que pensa,
praticar a violência. Mas, para além desta di- sofre e, arrancada de suas raízes, necessitou
mensão, se trata de uma invenção da moder- de condições muito especiais para sobre-
nidade europeia animada e sustentada pelo viver e produzir o melhor de seus frutos, o
tráfico internacional de escravos da “África” Brasil de hoje.” Nesse sentido sublinha que
para outras partes do mundo conhecido, à “aos que financiaram a viagem de ultramar,
época, cujos protagonistas foram governos, os navegadores devem proporcionar lucros
elites e diversos segmentos de trabalhadores substanciais, sob pena de ver encerrada sua
de Portugal, da Espanha, da França, da In- carreira aventurosa. Eles próprios tampou-
glaterra e da Holanda. co desprezavam o lucro” (MATTOSO, 1990,
Há uma farta literatura que confirma que p. 19).
o tráfico internacional de escravos da Áfri- Acerca da demografia do tráfico, a refe-
ca para outras partes do mundo ocidental, rida autora (1990, p. 19) diz que “entre 1502

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 79-90, jul./dez. 2017 85


A escravidão moderna: objetos, lógicas e a formação histórica brasileira

e 1860, mais de 9 milhões e meio de africa- tugueses, africanos e indígenas, a despeito


nos serão transportados para as Américas, de funções que desempenharam e o lugar
e o Brasil figura como o maior importador que ocuparam. Na historiografia deste tema
de homens pretos”. Mesmo se referindo aos é corrente o argumento de que a gênese da
africanos como “homem preto”, “escravos formação brasileira está articulada ao An-
negros”, esta autora sublinha que “o escravo tigo Sistema Colonial português urdido e
negro tornado mercadoria do século XVI ao mantido pelo monopólio comercial da colô-
XIX (...) não vem de um continente desor- nia pela metrópole no plano internacional,
ganizado, sem cultura, sem tradições, sem e ao latifúndio, a monocultura e o trabalho
passado” (MATTOSO, 1990, p.24). escravo no plano interno da colônia porque
Com o objetivo de qualificar, em termos a função sua função histórica era produ-
culturais, que eram os “homens pretos afri- zir riquezas para a metrópole (NOVAES,
canos trazidos para as “Américas” se utili- 1989).
za de generalidades existentes: sudaneses e A respeito da gênese da forma de coloni-
bantos, sublinhando que “em cada uma delas zação portuguesa nas Américas, Caio Prado
vivem grupos étnicos de grande diversidade”. Jr., compreendeu que a mesma foi consti-
Entre os “sudaneses” identificou os uolof, os tuída como “uma vasta empresa comercial,
bambaras, os mandigas, os haussas, os fon e mais completa que a antiga feitoria, mas
os dualas. Trata-se de povos conhecedores da sempre com o mesmo caráter que ela, desti-
“agricultura de enxada”, do “artesanato do nada a explorar os recursos naturais de um
ferro, do ouro, do bronze, do cobre, com seus território virgem em proveito do comércio
ferreiros mistos de feiticeiros, um tanto mé- europeu”. Por isso concluiu que este era “o
dicos...” (MATTOSO, 1990, p. 24). verdadeiro sentido da colonização tropical,
Esta autora referenda argumentos que de que o Brasil é uma das resultantes; e ele
em África haviam relações sociais e estru- explicará os elementos fundamentais, tanto
turas de poder que propiciaram o tráfico in- no econômico como no social, da formação e
ternacional de escravos. Por isso, “a inter- evolução histórica dos trópicos americanos”
venção europeia dos séculos XV e XVI, sob (PRADO JÚNIOR, 1942, p. 310).
a forma exclusiva do tráfico, não deixará Ao se considerar que o tráfico internacio-
de influenciar fortemente a evolução social nal e a escravidão moderna são variáveis de
dos países nos quais o aparelho de estatal uma nova cultura econômica em formação,
está verdadeiramente desenvolvido”. Desse à qual, o conceito capitalismo confere histo-
modo, “a atração do lucro vai, pois, orien- ricidade, se compreende que as Plantations
tar a maioria deles para a captura e a venda escravistas urdiram uma estrutura e dinâ-
de escravos”, tal como, o reino do Daomé, mica social fundamentada em profundas
que nasceu e viveu do tráfico (MATTOSO, contradições sociais que exigiram para a sua
1990, p. 26). reprodução umrepertorio jurídico, político e
ideológico.
A este respeito, tratando da experiência
A formação histórica
do sul das colônias inglesas na América Eu-
brasileira... gene Genovese destacou,
No longo prazo o Brasil é uma invenção co-
a escravidão deu ao sul um sistema social e
lonial, de cujo processo participaram por- uma civilização com uma estrutura de clas-

86 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 79-90, jul./dez. 2017


Josenildo de J. Pereira

ses, uma comunidade política, uma econo- Em termos estruturais, na sociedade es-
mia, uma ideologia e padrões psicológicos cravista brasileira, em linhas gerais, a con-
peculiares e que, como resultado, o sul dis- dição jurídica das pessoas e a concentração
tanciou-se cada vez mais do resto da nação,
de renda em poucas mãos urdiu hierarquias
assim como de regiões do mundo em rápido
desenvolvimento (GENOVESE, 1976, p. 9). materiais e simbólicas expressas na diver-
sificada experiência de viver: moradia, tra-
No uso do trabalho escravo e no controle balho, diversão de seus sujeitos fundamen-
da terra, bem como o acesso à mesma, com tais.A este respeito, Schwartz (1995, p. 209)
todos os seus desdobramentos estavam o se referindo a dinâmica social do sistema de
padrão de enriquecimento e a geração de grande lavoura, na Bahia, sublinha que “o
prestigio e poder. Este foi o padrão geral de açúcar, o engenho e a escravidão desempe-
produção da riqueza nas sociedades escra- nharam papéis cruciais na definição e con-
vistas, embora, não se deva prescindir de formação da sociedade brasileira” colonial.
diferenças pontuais, em toda a América co- Em relação à Amazônia, Sampaio (2011, p.
lonial. 42) diz-nos que “na contramão de uma his-
Nas colônias inglesas do Sul, o padrão toriografia que, tradicionalmente, minimiza
psicológico que escravidão moderna criou se o peso e a importância da presença negra no
fundamentou no racismo traduzido na con- Pará, insiste-se aqui no esforço de apontar a
cepção da supremacia branca, a qual, por existência de outras possibilidades” porque
sua vez, foi levada a efeito por meio de prá- “os escravos negros do Grão-Pará, negros
ticas violentas e deprimentes, tal como indi- forros, mulatos fizeram valer sua presença
cam os inúmeros linchamentos de homens e de maneira significativa a despeito de um
mulheres de corpos pretos tornados banais número considerado insignificante”.
e objetos de souvenirs tal como demonstram Ao passar pelo Maranhão, o viajante In-
as imagens de cartões postais, sobretudo, ao glês Henri Koster observou o seguinte,
longo do século XIX até aos anos de 1930 A proporção das pessoas livres é pequena.
(ALLEN, p. 2000). Os escravos têm muita preponderância, mas
No Brasil, o discurso jesuítico, teve um essa classe necessita de pouca cousa, no to-
papel singular na justificação do trabalho cante aos gastos, quando o clima dispensa
escravos de povos africanos. Entre os seus o luxo. (...) As principais riquezas da região
estão nas mãos de poucos homens, possui-
protagonistas, se destacou o jesuíta Jorge
dores de propriedades prosperas, com exten-
Benci. A respeito da pedagogia proposta por sões notáveis, grupos de escravos e ainda são
este jesuíta aos sujeitos da sociedade colo- comerciantes (...) A fortuna dessas pessoas e
nial e escravista brasileira, Casimiro, em o caráter de alguns indivíduos fundamenta-
seus estudos concluiu que ram seu grande poder e importância (KOS-
TER, 1942, p. 234).
o jesuíta italiano Jorge Benci foi um dos
ideólogos justificadores e reformadores da No entanto, nesse contexto adverso, no
escravidão colonial, não chegando, porém, campo e na cidade convém destacar que “os
a um grau de consciência cristã compatível escravos, instigados pela contingência da
com princípios evangélicos contrários à es-
continuidade e da mudança de suas condi-
cravidão. Consequentemente, sua proposta
pedagógica funcionou como elemento catali- ções de vida tiveram de inventar estratégias
zador das relações econômicas e sociais (CA- e táticas de sobrevivência, traduzidas em
SIMIRO, 2002, p.7). lutas e conflitos de distintos matizes” (PE-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 79-90, jul./dez. 2017 87


A escravidão moderna: objetos, lógicas e a formação histórica brasileira

REIRA, 2001, p. 38) quer fossem fugas, in- vário”1; um “cancro maldito”2; uma “secular
surreições, quilombos e outras formas de in- instituição que tanto entorpeceu o país”.3
tervenção social legando, assim, para as ge- O jornalista Themístocles Aranha (1885,
rações de futuros trabalhadores, inclusive, p. 03) qualificavaa escravidão como ”um fu-
livres o germe de lutas e de organização de nesto erro, uma planta venenosa que cres-
movimentos sociais de cunho político como ceu no solo da pátria, e precisava ser estir-
atestam a Revolta dos Malês na Bahia do sé- pada pelas raízes, enfim uma mancha no
culo XVIII e a participação na Balaiada, no pavilhão nacional”. Mas, por reconhecer a
Maranhão, no século XIX. sua centralidade na tessitura das relações de
Não é demais sublinhar que a escravidão poder advertia que, embora sendo um erro
para além de ser uma forma de relação de de séculos, não poderia ser dissipada com
trabalho produtora de riquezas, prestigio rapidez, pois “a árvore estendeu raízes pro-
e poder foi, uma instituição que, no longo fundas por baixo dos alicerces do edifício
prazo, urdiu uma cultura política na qual, a social, se a arrancassem, violentamente,
fronteira entre esfera pública e privada, no desabaria o edifício convulsionando o solo
Brasil era bastante tênue, com certa sobre- da pátria”. Nesse sentido, sublinhava:
posição desta última em relação a primeira Essa mancha que conspurca o lábaro da na-
se expressando por meio de práticas carac- ção brasileira não poderá ser apagada com
terizadas pelo mandonismo local, o clien- o emprego de reagentes fortes, porque com
telismo e o despotismo, tanto numa escala ela pode ser destruída a própria bandeira.
Pede senhores, esta reforma muita calma,
macro quanto micro.
pede duas manifestações de coragem cívica
Dada a lógica destas variáveis na repro- – uma, a de dominar e dirigir os sentimen-
dução da sociedade escravista fez com que tos abolicionistas que trazem agitados tan-
postergassem, o quanto possível, o fim desta tos espíritos; a outra afirma francamente as
instituição no Brasil Império. A escravidão nossas convicções, opondo resistência legal
mesmo tendo sido abolida em 1888, o man- aos impulsos valentes desses sentimentos,
e também aqueles que quiserem retroceder
donismo local, o clientelismo e o nepotismo
só assim se servirá patrioticamente ao país
se prolongaram para além de seu tempo, na perigosa situação em que se acha. E seja
embora sob aura da sociedade do trabalho quanto antes tomada uma resolução, porque
livre e republicana. não pode a lavoura continuar no estado afli-
A partir dos anos de 1850, a escravidão tivo em que se vê (ARANHA, 1885, p. 03).
como forma de trabalho, em decorrência de
Emília Viotti (1998, p. 493), numa pers-
mudanças substanciais na própria dinâmica
pectiva ampliada sublinha a dimensão e os
do capitalismo passou a ser objeto de críti-
limites ideológicos de articuladores do mo-
cas com vistas a sua abolição.
vimento abolicionista brasileiro destacando
No Maranhão, na década de 1880, num que,
movimento contraditório, a escravidão foi alvo
de representações bastante pejorativas tais Os componentes das profissões liberais e do
funcionalismo público eram, quase sempre,
como - o “estágio da infância que tanto nos en-
recrutados entre os elementos pertencentes
vergonha em face da civilização do século, que
tem obstado a que marchemos na conquista 1 Jornal Pacotilha, 02 de abril de 1884, p 01.
2 Jornal O Paiz, 20 de fevereiro de 1885, p. 02.
do vellocino de oiro da igualdade humana há 3 Jornal Diário do Maranhão, 04 de abril de
tantos séculos sonhada pelo homem do cal- 1888, p. 02.

88 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 79-90, jul./dez. 2017


Josenildo de J. Pereira

aos quadros rurais e vice-versa e manti-


nham essas vinculações por toda a vida (...)
Considerações finais
A maioria dos estudantes vinha dos meios Reafirmo aqui três teses, as quais considero
rurais e, passado o prurido de independên- bastantes relevantes para que se compreen-
cia da juventude, abandonava as ideias re- da a historicidade contemporânea da popu-
formistas, aderindo à ordem estabelecida, lação brasileira de corpo preto. A primeira
incapaz de negá-la. Por outro lado, advoga-
delas é que, embora não existam as raças
dos, comerciantes, funcionários, médicos,
engenheiros e artesãos viviam, em grande o racismo existe. A segunda é que, por isso
parte, na dependência das camadas domi- mesmo, os problemas materiais e simbóli-
nantes, num regime de verdadeira clientela. cos que envolvem a população brasileira de
Estavam na sua grande maioria comprome- corpo preto não se deve a sua suposta con-
tidos por laços familiares, profissionais e dição racial, pois, a discriminação e o pre-
políticos com a aristocracia rural ou provi-
conceito que os aflige se deve às atitudes de
nham diretamente dos grupos mais abasta-
quem é racista. A terceira é que historicida-
dos ou gravitavam na sua órbita. Os advo-
gados viviam das causas que lhes propiciava de da escravidão moderna e do racismo são
a lavoura. Os funcionários estavam direta- desdobramentos do colonialismo moderno,
mente na sua dependência, pois a nomea- o qual, por sua vez, foi um dos elementos
ção e permanência no cargo eram função da centrais para a gestação, o amadurecimento,
fidelidade aos chefes políticos e às facções a expansão e a consolidação do capitalismo
locais. Casavam-se frequentemente nesse
no mundo ocidental, bem como, para fora
meio, suas relações de amizade, sua profis-
dele ao encapsular mundos não europeus,
são, tudo os ligava à lavoura.
isto é, a América, a Africa e a Ásia.
Logo, ao se considerar o modo como foi Nessa perspectiva tomar a cor do corpo
feita a abolição formal da escravidão no Bra- como sinal diacrítico e demarcador do su-
sil Império, se supõe que os articuladores do cesso ou infortúnio de seu sujeito é ficar na
Movimento Abolicionista não tinham por superfície do problema e legitimar, a des-
horizonte a crítica à esta engenharia social peito da vontade de quem procede assim, os
mediada pela escravidão. Por isso, caso al- fundamentos estruturantes e geradores de
guns abolicionistas tenham pensado a abo- problemas que envolvem a historicidade da
lição da escravatura como uma política de população brasileira de corpo preto, ou seja,
emancipação de escravos e de sua inclusão o racismo, a estrutura de classes e a cultura
social à sociedade liberal, a maioria ficou elitista que animam o capitalismo.
caudatária da tradição escravista.
Em vista disso reafirmo, aqui, a tese de Referências bibliográficas
que o verificado ao longo do século XX e, ALLEN, James. Without Sanctuary: Lyn-
ainda hoje, no que diz respeito a modo de ching Photography in America. Santa Fe/
Califórnia: Twin Palms Publishers, 2000.
vida da população negra brasileira é o resul-
tado disso, ou seja, que a Abolição foi um BAKTHIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia
da linguagem: problemas fundamentais
encaminhamento político-ideológico leva-
do método sociológico nas ciências da lin-
do a termo por articuladores dos interesses guagem. São Paulo: Hucitec/Anablume, 2002.
das antigas classes dominantes brasileiras, a
BARBOUJANI, Guido. A invenção das raças:
despeito do fato de alguns proprietários te- existem raças humanas? Diversidade e
rem perdido parte de sua riqueza. preconceito racial. São Paulo: Contexto, 2007.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 79-90, jul./dez. 2017 89


A escravidão moderna: objetos, lógicas e a formação histórica brasileira

CAMPOS, Flavio de; MIRANDA, Renan Garcia. USP. 2011. In: ANAIS.www.snh2011.anpuh.
A escrita da História. Plano Nacional do Li- org/.../1300689221_ARQUIVO_Texto Simpó-
vro do Ensino Médio/PNLEM (2009 – 2011), 1ª sio Nacional de História. Acessado no dia 20 de
Edição, Volume único, São Paulo: Escala Educa- dezembro de 2017.
cional, 2005.
PINHO, Osmundo; SANSONE, Livio. Raça:
CARDOSO, Ciro Flamarion. Prefácio. In: MAT- novas perspectivas antropológicas. 2ª edi-
TOSO, Katia de Queirós. Ser escravo no Bra- ção Revista. Salvador: ABA/EDUFBA, 2008.
sil. São Paulo: Brasiliense, 1990.
PRADO JÚNIOR, Caio. A formação do Brasil
CASIMIRO, Ana Palmira Bittencourt Santos. contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1942.
Uma concepção pedagógica consistente para os
escravizados da Bahia colonial. www.sbhe.org. REZENDE, Antonio Paulo. Todos contam
br/novo/congressos/cbhe2/pdfs/Tema4/0407. sua História: o Brasil colônia. Recife: Ino-
pdf. Acessado no dia 22 de dezembro de 2017. josa Editores, 1994.

COSTA, Emilia Viotti da. Da Senzala à colô- SAMPAIO, Patrícia Melo. O fim do silêncio:
nia. 3ª edição. São Paulo: UNESP, 1998. presença negra na Amazônia. Belém: Edi-
tora AÇAI/CNPQ, 2011.
DAVIS, David Brion. O problema da escra-
vidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos:
Civilização brasileira, 2001. engenhos e escravos na sociedade colo-
nial. São Paulo: Companhia das letras. 1ª reim-
GENOVESE, Eugene. A economia política pressão. 1995.
da escravidão. Coleção América: Econo-
mia e Sociedade. Rio de Janeiro: Pallas, 1976.
HAMPATÊ BÁ, Amadou. A tradição viva. In: KI- Documentos
ZERBO, Joseph (Editor) História Geral da ARANHA, Themístocles. Discurso na inaugura-
África. Vol. I: Metodologia e pré-história ção da segunda exposição do açúcar e algodão
da África. Brasília: UNESCO, 2010. no dia 21 de fevereiro de 1885. O Paiz, São Luís,
22 de fevereiro de 1885. Coluna: Noticiário, p. 3.
KHAPOYA, Vincent B. A experiência africa-
na. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. Jornal Pacotilha, São Luís, 02 de abril de
1884. Editorial, p. 1.
KOSHIBA, Luis; PEREIRA, Denise Manzi Fray-
se. História do Brasil. 2º grau. São Paulo: OPaiz, São Luís, 20 de fevereiro de 1885. Colu-
Atual, 1996. na Publicações Gerais, p. 2.
KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Diário do Maranhão, São Luís, 04 de abril de
Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacio- 1888.
nal, 1942.
NOVAES, Fernando Antonio. Portugal e Bra-
sil na crise do antigo Sistema Colonial Sites
(1777 – 1808). 5ª edição, São Paulo: Hucitec, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
1989. 2010/2008/lei/l11645.htm. Acessado em 28 de de-
zembro de 2017.
PEREIRA, Josenildo de J. Na fronteira do
cárcere e do paraíso: estudo sobre São http://portal.mec.gov.br/index.php?option=-
Paulo. Dissertação (Mestrado em História) com_content&view=article&id=12391:pnld&-
– Programa de Pós Graduação em História da catid=318:pnld&Itemid=668. Acessado no dia
Pontificia Universidade Católica, São Paulo, 28 de dezembro de 2017.
2001.
______. AFRICANO, ESCRAVO E NEGRO: ar-
mas e armadilhas da identidade racial. ANAIS Recebido em: 19/06/2017
Simpósio Nacional de História, São Paulo: Aprovado em: 04/08/2017

90 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 79-90, jul./dez. 2017


Pedro Acosta-Leyva

MODALIDADES TRADICIONAIS AFRICANAS


DE CAPTURAS PARA O TRÁFICO NEGREIRO

Pedro Acosta-Leyva*

Resumo
Este artigo é uma revisão exploratória das modalidades tradicionais de cap-
tura de escravizados na África, sua dinâmica; e, especialmente, seus agentes,
artifícios e métodos.
Palavras-chaves: África; Escravizados; Modalidades de Captura.  

Abstract
TRADITIONAL AFRICAN CApture MODES FOR DEALER TRAFFIC
This article is an exploratory review of traditionalenslaved in Africa, its dyna-
mics; and especially their agents, devices and methods.
Key-words: Africa; Enslaved; Capture Modalities.

O objeto deste artigo é um dos mais vio- nômenos humanos e portanto ambos os
lentos fenômenos praticados pela huma- grupos devem ser considerados humanos.
nidade: a captura de pessoas para o tráfico Não vejo necessidade de buscar evidenciais
com a finalidade da escravização. Nem o trá- históricas da humanidade do branco e nem
fico nem a escravidão serão objeto de análi- da humanidade do negro. Parto do princí-
se, pois o que se pretende é tentar descrever pio tácito de que todos os sapiens sapiens
minimamente como se processava no âmbi- são de uma única espécie independente do
to local africano as capturas, seus métodos e caminho histórico e cultural que percor-
artifícios. reram. 2) também não me vejo dentro da
Não pretendo dar grandes justificativas linha teórica ou ideológica que pretende
para mostrar a relevância do tema, mas mostrar que negros capturavam seus pró-
gostaria, outrossim, de manifestar que não prios irmãos negros. Na minha compreen-
participo das seguintes linhas teóricas ou são essas linhas estão fora da análise histó-
talvez ideologias: 1) O estudo das capturas rica metodologicamente adequada e longe
endógenas no Continente africano com o das informações sociais, antropológicas e
propósito de “revelar” que os negros e os históricas que as fontes permitem alcançar
brancos compartilham dos mesmos fe- a respeito da África.

* Pedro Acosta Leyva é professor-adjunto dos Cursos de Licenciatura em História e Bacharelado em Hu-
manidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB)-Campus
dos Malês, e Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indíge-
nas e Culturas Negras, UNEB/ UNILAB. Endereço eletrônico: leyva@unilab.edu.br

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 91-103, jul./dez. 2017 91


Modalidades tradicionais africanas de capturas para o tráfico negreiro

Primeiramente, se existe um fenômeno Uma mínima análise histórica assinala


histórico que não revela, eticamente falan- que não são irmãos brancos matando-se uns
do, nossa humanidade é precisamente o ato ao outros. Os exemplos citados são aparen-
de capturar outro ser humano com a inten- temente de pessoas brancas que capturam e
ção de convertê-lo em escravo. Pelo con- matam irmãos brancos, contudo o que estes
trário, é uns dos processos históricos mais exemplos revelam é que se tratam de guer-
perversos que existem, de modo que não ras entre inimigos externos e assassinato e
prova humanidade nem de negros nem de captura entre diferentes agentes políticos
brancos. O ser humano não é humano pelas e sociais numa mesma sociedade. Todas as
atrocidades que comete. sociedades têm suas contradições internas,
Em segundo lugar, a ideia de negros suas clivagens e suas formas desumanas de
capturando seus irmãos negros nunca exis- desapropriação das riquezas e controle do
tiu, como também nunca existiu brancos poder, assim como suas diversas maneiras
capturando seus irmãos brancos. Quando de ajustes e harmonização das práticas e das
uma cidade grega invadia outra cidade-es- representações sociais.
tado grega e capturava seus habitantes para Feitas essas ressalvas, retomo que o obje-
transformá-los em escravos não se tratava tivo é descrever minimamente como se pro-
de irmãos gregos capturando irmãos gre- cessavam no âmbito local africano as captu-
gos, mas de guerras entre inimigos. O mes- ras, seus métodos e artifícios, e, para reali-
mo pode-se afirmar dos ingleses que cap- zar essa tentativa, vou me guiar pelo estudo
turaram irlandeses para serem servos por de Antonio Carrera, revisar as narrativas
sete anos nas colônias do Caribe e no ter- de vários cronistas e completar alguns ele-
ritório que viria a ser os Estados Unidos da mentos com outros autores que se ocupam
América (WILLIAMS, 2012, p. 40). Guer- do tema. Não se trata, portanto de um tema
ras entre espanhóis e ingleses não é guerra novo, mas de uma revisão bibliográfica que
de irmãos, como também não é guerra de permita descrever de forma esquemática o
irmãos entre alemães e franceses. Por outro processo de captura.
lado, quando no dia 24 de agosto de 1572,
em Paris, foram assassinados milhares de A captura violenta
franceses por pessoas francesas não se tra-
tava de irmãos matando irmãos, e sim de
implementada pelos europeus
“franceses huguenotes” e “franceses católi- na periferia dassociedades
cos”. Na Europa Central, entre 1524-1525, A captura de seres humanos na África é um
foram assassinadas 100 mil pessoas pelos processo histórico de longa duração, cuja
alemães, pelos suíços e pelos austríacos; relevância está dada pelas transformações
as pessoas assassinadas também eram ale- econômicas, culturais e sociais assim como
mãs, suíças e austríacas, mas não foi um também pela longa duração dos processos
assassinato de irmãos contra irmãos e sim de tráfico e escravidão que estão intima-
de milhares de camponeses alemães, suí- mente relacionados.
ços e austríacos mal armados que foram
Se a escravatura foi uma prática de todas as
atacados e trucidados por um exército co- sociedades humanas num momento ou ou-
mandado pelas aristocracias alemã, suíça e tro da sua história, nenhum continente co-
austríaca (GONZALEZ, 2000). nheceu, durante um período tão longo (sé-

92 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 91-103, jul./dez. 2017


Pedro Acosta-Leyva

culos VII-XIX), uma sangria tão contínua e Estados Unidos da América, ora quando a
tão sistemática como o continente africano pesquisa aponta a participação dos agentes
(M’BOKOLO, 2012, Tomo I, p.203). africanos na captura, o que suscita a inter-
Pode-se comprovar a existência da cap- pretação de que o pesquisador está isentan-
tura num recuo de, pelo menos, 2 mil anos, do a responsabilidade e violência dos euro-
provavelmente mais. Trata-se de um fato peus no processo; ora quando a pesquisa
complexo devido ao tempo e aos agentes en- coloca todo o dinamismo da captura nos
volvidos em cada momento da história. Aqui europeus, sugerindo que os africanos foram
a temporalidade que importa começa no sé- presas fáceis, que não sabiam se defender
culo XV e se estende ao século XIX. Portan- e que deixaram os europeus fazerem o que
to, uma longa duração em que agentes, mo- bem queriam em seus territórios. Embora
tivações e transformações sociais, militares, não tenho intenção de aprofundar o debate
políticas e econômicas variam por vezes len- de Molefe Kete Asante e Henry Louis Gates,
tamente, por vezes aceleradamente (MEIL- vale a pena dar um exemplo da legitimida-
LASSOUX, 1995). Há ainda que se distin- de da questão. Molefe Kete Asante que de-
guir captura de tráfico: captura é o processo fende que a captura era feita pelos europeus
de obtenção; tráfico é o deslocamento e a ou por africanos constrangidos a cooperar,
comercialização. o caso da primeira e da segunda viagens a
No Brasil, as interpretações da captura costa da Serra Leoa de John Hawkins, em
de seres humanos, por regra, têm questões 1562 e 1564, confirma sua perspectiva. Ha-
inquietantes. Primeiro, com grande velo- wkins relata que capturou as pessoas “indo
cidade se vai da captura para o tráfico em todos os dias à praia, para pegar os habitan-
suas três dimensões: interno na África, para tes e queimar e saquear suas cidades”. A vio-
o mundo árabe e para a América. A segun- lência europeia contra a população africana
da questão, no Brasil, e também em outros foi o meio eficaz de captura. Agora, vamos
espaços, pelo que mostra a disputa entre comparar a perspectiva de Henry Louis Ga-
Molefi Kete Asante e Henry Louis Gates1 nos tes, que defende que os próprios africanos
1 ASANTE, MolefiKete. Henry Louis Gates is tem uma dose de responsabilidade pela cap-
Wrong about African Involvement in the tura. Na terceira viagem de Hawkins, em
Slave Trade. Em: http://www.asante.net/ar-
ticles/44/afrocentricity/. Acesso 10 de Janeiro
1567, talvez da mesma forma violenta como
2017. A discussão parte do problema, que Gates sempre tinha conseguido os cativos “estava
analisa, a “cooperação” dos poderes africanos na prestes a partir de Serra Leoa com uma car-
atividade da captura. Para Gates muitos dos reis
e a nobreza africana se envolveram voluntaria- ga de 150 escravos, quando foi abordado por
mente na captura e no tráfico de seres humanos. dois enviados do rei de Serra Leoa e do rei
Completamente oposta a essa perspectiva, Mo-
de Castros, pedindo-lhe para unir forças em
lefi Kete Asante entende que uns poucos reis e
nobres “cooperaram” com a prática da captura uma guerra”.
e no tráfico e a maioria das autoridades africa- Para não me alongar na narrativa, Ha-
nas envolvidas foram constrangidos através de
diferentes mecanismos como tratados de vas-
wkins aceitou a proposta (destes dois reis
salagens que cobrava impostos em capturados são africanos) e o resultado foi que captu-
e guerras punitivas contra reinos que não eram
aliados e outros. Asante responsabiliza a Gates quanto a contribuição de Asante é veiculada em
por auxiliar aos brancos racistas no ataque e forma de artigo nas Revistas Sankofa que é um
desvalorização do povo negro. Interessante que meio vinculado à tradição do pan-africanista ne-
no Brasil a editora que só publica para a elite gro Abdias Nascimento e na Revista Capoeira da
branca brasileira publicou a obra de Getes, en- UNILAB.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 91-103, jul./dez. 2017 93


Modalidades tradicionais africanas de capturas para o tráfico negreiro

ram dois reinos vizinhos e o Hawkins, graça exemplos: entre os Manjacos, no território
a cooperação dos dois reis africanos que fi- da Guiné-Bissau, antes dos portugueses
zeram a proposta, completou sua carga com chegar se utilizava o termo “Naluk”-sing. e
470 cativos (MEREDITH, 2017, p.134-135). “Baluk”-pl. que significa escravo(s). No ter-
A pergunta que fica no fundo da história das ritório que é atualmente Angola, existiam
três viagens do traficante Hawkins coloca a os “escravizáveis” ou escravo(s), que corres-
Asante e a Gates na mesma mesa a dialogar. pondem ao termo mbundo “kijiku”-sing. e
Quem está interpretando corretamente as “ijiku”-pl. Os mecanismos para a obtenção
viagens de captura/tráfico? A resposta é: os de escravos eram basicamente as guerras, a
dois, porque para as duas primeiras viagens venda e mesmo a autovenda devido à fome
Asante tem a razão histórica e Gates está e à condenação por delitos de várias natu-
completamente errado; mas para a terceira rezas. A presença árabe-muçulmana e eu-
viagem do traficante Hawkins Gates está de ropeia-cristã aumentou a demanda de cati-
acordo com fato histórico e Asante está erra- vos incentivando e introduzindo profundas
do. O debate é rico e já fiz uma contribuição modificações sociais e alterações na inten-
no artigo “As famílias nobres africanas sidade, nos instrumentos, na quantidade e
no tráfico (1500-1850): o mito da cap- nas motivações dos mecanismos históricos
tura” 2, que penso ampliar. Se o debate não do processo de captura (LOVEJOY, 2002;
está adequadamente articulado traz para a MEILLASSOUX, 1995).
discussão a famosa passividade africana, Os árabes chegaram primeiro, porém o
que não se sustenta nem pela pior pesquisa meio de transporte para atravessar o mar
em história. Entretanto, os africanos, como de areia do Saara limitou o volume de ca-
quaisquer outros seres humanos, nunca tivos, permanecendo a quantidade discre-
tiveram nada parecido com imobilidade, ta através dos séculos. O tráfico no ocea-
passividade ou submissão. As sociedades no Índico foi importante para os árabes e
africanas, por meio dos diferentes atores so- por um longo período, inclusive é pré-is-
ciais, em determinados lugares e momentos lâmico; mesmo assim teve uma intensida-
resistiram, outras vezes negociaram, outras de discreta. Quando escrevemos a palavra
se aliaram para barganhar riquezas e outras “discreto” não significa que os árabes tenha
atacaram o invasor europeu com determina- realizado um tráfico menor, porque os nú-
ção e força. meros de escravizados para o mundo ára-
Antes das chegadas dos árabes e dos eu- be ascende a  dezessete milhões enquanto
ropeus, as sociedades africanas tinham uma que o tráfico atlântico europeu oscila entre
diminuta procura por cativos. O trabalho 11 e 15 milhões (M’BOKOLO, 2012, Tomo
escravo era extremamente marginal; isto I, p.204-216). Os europeus, pela rapidez e
é, não existiam sociedades escravistas, de capacidade de carga dos navios, em pouco
maneira que o esforço por capturar pessoas tempo obtiveram um número gigantesco
era injustificável. No entanto, existiam uns de cativos. As sociedades africanas experi-
poucos escravos em quase todas as socie- mentaram profundas transformações para
dades centralizadas. Para ficar em poucos conseguir suprir as demandas de cativos
esperadas pelos árabes e, especialmente,
2 ACOSTA-LEYVA, Pedro. As famílias nobres afri-
canas no tráfico (1500-1850): o mito da captura. pelos navios europeus no Atlântico nos sé-
África(s), v. 2, n. 3, 2015, p. 17 - 40. culos XVIII e XIX.

94 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 91-103, jul./dez. 2017


Pedro Acosta-Leyva

Por sua vez, quando os portugueses che-   Uma população pilhada, assassinada
garam à costa ocidental da África, lançaram- e roubada de suas terras. Uns morreram e
se violentamente contra as populações das outros foram transformados em escravos.
costas e das pequenas ilhas. É necessário Eventos como esses foram comuns nas ilhas
entender que a costa atlântica era a perife- de Cerina, Nar, Tiber, como também nas
ria das sociedades e que somente conseguiu regiões que na atualidade são os países Se-
relevância após o barco ter debilitado o ca- negal, Guiné-Bissau, Serra Leoa, além de
melo. Nenhum europeu teria sucesso se aco- outras partes do continente. Outro relato
metesse um reino do interior do continente mostra a crueldade dos portugueses que não
pois eram sociedades altamente organiza- respeitavam nem mulheres, nem crianças.
das. As populações das margens do Atlânti-
[o capitão português Álvaro Fernandes e
co, entretanto, constituíam-se de pescado- seus homens] viram andar certas mulheres
res, marisqueiras e pequenos agricultores daquelas Guinés, as quais parece que anda-
que sofreram a feroz violência dos europeus vam acerca de um esteiro apanhando maris-
em acontecimentos de verdadeiro terror. co, e tomaram uma delas, que seria de idade
Nuno Tristão, em 1443, segundo conta o até 30 anos, com seu filho que seria de dois,
e assim uma moca de 14, na qual havia assaz
cronista Gomes Eanes de Azurara (p. 81-83),
boa apostura de membros, e ainda presen-
lançou-se sobre a ilha de Arguim (também ça razoada segundo Guiné; mas a força da
pode ser escrito “Gete” ou “Arget”, “Ghir”), mulher era assaz para maravilha, ca de três
causando desespero e choro. Uma tragédia. que se ajuntaram a ela, não havia hi algum
Muitas pessoas afogaram-se na tentativa de que não tivesse assaz trabalho querendo-a
fugir e muitas foram capturadas. O mesmo levar ao batel, os quais vendo a detença que
faziam, na qual poderia ser que sobreche-
cronista relata que o capitão Lançarote e
gariam alguns daqueles moradores da terra
outros como Martim Vicente foram desde houve um deles acordo de lhe tomar o filho
a ilha das Garças até a ilha de Naar, onde e leva-lo ao batel cujo amor forçou a madre
capturaram a desprevenida e pacífica popu- de se ir após ele sem muito esforço (AZURA-
lação. A narrativa diz que: RA,  s.d., p.225-226).

[os portugueses] chamaram por Santiago, A violência dos europeus está, de fato,
São Jorge, Portugal, deram sobre eles, ma- comprovada. A força de três homens não foi
tando quanto podiam. Ali podereis ver mães suficiente para dominar uma jovem mulher
desamparar filhos, e maridos mulheres,
com uma criança; se fez necessário, para seu
trabalhando cada um de fugir quanto mais
domínio, utilizar a desumana alternativa de
podia. E uns se afogavam sob as águas, ou-
tros pensavam de guarcer sob cabanas, ou- capturar o seu filho de dois anos para, dessa
tros escondiam os filhos de baixo dos limos, maneira, capturar a mãe africana. Aprovei-
por cuidarem de os escapar, onde os depois taram-se das populações que estavam traba-
achavam. E em fim nosso senhor Deus, que lhando e que não faziam parte de exércitos
a todo bem dá remuneração, quis que pelo ou de vida militar. Dessa forma, é fácil com-
trabalho que tinham tomado serviço, aquele
preender porque os europeus tiveram algum
dia cobrassem vitória de seus inimigos, e ga-
lardão e paga de seus trabalhos e despesas,
sucesso na captura.
cativando deles, entre homens e mulheres, A captura violenta trouxe respostas das
e moços, cento e sessenta e cinco, afora os populações. O roubo de mulheres e crianças
que morreram e mataram (AZURARA, s.d., que mariscavam na beira do oceano Atlân-
p.87). tico teve uma reação imediata se considera-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 91-103, jul./dez. 2017 95


Modalidades tradicionais africanas de capturas para o tráfico negreiro

mos o relato do mesmo cronista que apre- dor superou o soldado-marinheiro (CAR-
senta mais detalhes sobre esse caso: RERA, 2000, p.79-80). A mudança de cap-
tura violenta para o método de “compra”
E, indo assim seguido sua viagem, vieram
sobre eles quatro ou cinco barcos Guinéus, não é produto da benevolência portuguesa
corregidos como homens que queriam de- nem da súbita sabedoria na cabeça do rei
fender sua terra, cuja peleja os do batel[os de Portugal; é o resultado da forte resistên-
portugueses] não quiseram experimentar cia das unidades políticas dos povos africa-
vendo a grande vantagem que os contrários nos. Isabel Castro Henrique (2000, p.18) o
tinham, temendo sobretudo o grande perigo
afirma nitidamente:
que havia na peçonha com que tiravam. E
começaram de se recolher o melhor que pu- Tal situação força os Portugueses a proceder
deram para seu navio; mas vendo como um a uma reorganização das suas relações com
daqueles barcos se adiantava muito, volta- os Africanos: na primeira fase, tinham eles
ram sobre ele, o qual tornando para os ou- adoptado uma política de razia, que lhe per-
tros, querendo os nossos chegar a ele antes mitia capturar escravos Mouros, Berberes e
que se recolhesse, porque parece que era já Negros. Mas a morte de Gonçalo de Sintra
afastado boa parte de companhia, chegou-se em 1444, no arquipélago de Arguim, depois
o batel tanto que um daqueles Guinéus fez de um combate com os Africanos, obriga os
um tiro contra ele, e acertou-se de dar com responsáveis políticos portugueses a substi-
a fecha a Álvaro Fernandes (AZURARA, s.d., tuir a técnica da razia pelo comércio.   
p. 226).
Quando Cadamosto participou da expe-
A leitura da Crónica de Azurara permite dição na Senegâmbia, em 1455, descreveu
perceber que, a partir de determinado mo- que os reis jalojo (jolofos) vendiam escra-
mento, em qualquer lugar da costa que se
vos para os “azenegues” e para os “cristães”.
aproximassem os europeus estavam sendo
Os portugueses que pela força só podiam
esperados para serem combatidos valente-
na Senegâmbia capturar uns poucos e mui-
mente. Em outras palavras, falar de passi-
tas vezes com perdas irreparáveis. Como a
vidade africana, ou em presas fáceis, é des-
condição de enfrentamento não ofereceu os
conhecer a realidade histórica. Da mesma
resultados esperados, então começaram a
forma, continuar repetindo que os portu-
se integrar no comércio que há séculos dire-
gueses e espanhóis foram motivados pela
cionava-se para o mediterrâneo via deserto
vontade de expandir o cristianismo, ou de
de Saara. Compravam ouro, advindo do in-
encontrar o preste João, é obedecer a uma
lógica que o próprio Azurara tentou impri- terior, especialmente de Bambuk e Buré, e
mir, mas cujos escritos informam o oposto compravam escravos em outros lugares da
se observada a violência contra as popula- costa (COSTA, 2010).  Vendiam e compra-
ções ribeirinhas. vam escravos e ouro ao longo da costa; parte
Em alguma data entre 1450 e 1468, as dos escravos leva para Europa. Essas trocas
estratégias mudaram. Alviseda cá da Mos- comerciais produziam o lucro esperado. O
to, conhecido como Luis de Cadamosto, comércio e o tráfico podem ser os motores,
em 1455, afirma que o infante D. Henrique os novos incentivos para a captura, mas não
proibiu os ataques violentos de captura devem ser confundidos. É evidente que, se
para implementar o método da compra. O não existissem compradores europeus e ára-
comércio substituiu ao método militar de bes, a captura em grande escala perderia a
captura por parte dos europeus; o merca- razão de ser.

96 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 91-103, jul./dez. 2017


Pedro Acosta-Leyva

Modalidades tradicionais ritório da Guiné-Bissau; e (8) as famosas


guerras injustas.
africanas de captura As críticas que podem ser feitas a todas
Aos poucos, quando os portugueses entra- as testemunhas relacionadas às fontes his-
vam alguns quilômetros, onde existiam so- tóricas utilizadas por Antônio Carreira são
ciedades com acentuada organização políti- válidas. Nenhum desses escritos foi feito por
cas, os resultados e as técnicas de aquisição africanos. Há que se assumir que em cada
de capturados foram se modificando, de ma- palavra e ideias existem condicionantes her-
neira que, se antes o ataque violento era uma menêuticos que definem a representação e
comunicação direta com os humildes da a imagem que cada autor cria da realidade
terra, isto é, com os pequenos agricultores, que pretende mostrar. Stuart Hall (1997)
marisqueiras e crianças ilhéus e ribeirinhos, analisando as representações, é dizer as
na nova fase a relação acontecia diretamen- formas como os seres humanos sentimos,
te com os comerciantes e reis africanos. Os dizemos e usamos as coisas, os objetos e sig-
portugueses convenceram-se de que, onde nificamos as relações na sociedade, a firma
existiam sociedades organizadas (centrali- que as ideias expressa através da lingua-
zadas) na África, a violência para a captura gem ela não estão somente na cabeça, mas
era menos rentável que a negociação com os que tem efeitos reais e regulam as práticas
poderosos nobres, com os comerciantes afri- sociais. Portanto, as descrições elaboradas
canos ou diretamente nas feiras comerciais. pelos cronistas que servem de fontes para o
Todos os autores que se ocupam do tema da historiador Antonio Carreira não podem ser
captura analisam as práticas das feiras que, enxergada como a realidade no sentido posi-
um ou dois dias por semana, aconteciam em tivista, concreto. Qualquer escrito ou produ-
diferentes lugares do interior das sociedades ção discursiva, segundo Stuart Hall (1997),
africanas. Nas feiras, também os escravos permanece sendo um conjunto de símbolos,
eram vendidos entre outros produtos. de figuras, de imagens “fabricadas” para
De onde saiam esses escravos? Como construir identidades, para incidir na con-
eram capturados? O historiador Antônio duta e provocar uma interpretação dos pro-
Carrera (2000, p.85-91), baseia-se nos cessos sociais e históricos. Apesar disso ou
cronistas e outros autores da época que pela natureza das representações devemos
testemunharam as práticas de capturas, considerar que foram diversos autores, em
tais como Almada (1594), Lemos Coelho diferentes épocas, com relatos semelhantes,
(1684), Fr. Francisco de la Mota (1686), o que aumenta a probabilidade de alguns
entre outros. Carrera informa que os mé- dos aspectos descritos coincidirem com as
todos de captura eram: (1) interrogatório práticas que de fato ocorreram (CORREIA,
de defunto; (2) prova da “água a ferver”; 2017). Feita essa ressalva sobre a discussão
(3) prova da galinha; (4) condenação por historiográfica ou representações discursi-
adultério; (5) rapto de pessoas em lugares vas possíveis representadas pelos cronistas,
isolados, especialmente crianças; (6) con- são apresentadas algumas ideias sobre as
denados por feitiçaria e por homicídio; (7) práticas de captura elencadas.
vendas indiscriminadas de familiares e das O primeiro método de captura de pessoas
pessoas do povo pelos reis, nomeadamente realizado por sujeitos das sociedades africa-
o rei da ilha de Pecixe, hoje parte do ter- nas é “o interrogatório do defunto”. Essa

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 91-103, jul./dez. 2017 97


Modalidades tradicionais africanas de capturas para o tráfico negreiro

prática consistia em perguntar para o mor- convergem diferentes dimensões e forças. A


to quem era o culpado por sua morte. O rito pessoa humana somente existe no equilíbrio
tem variações, mas, grosso modo, quando da comunidade, na comunhão da vida cole-
uma pessoa morria por qualquer motivo, a tiva. Portanto, quando alguém era condena-
comunidade reunia-se num espaço em for- do pela culpa de “desejar ou fazer algum fei-
ma de círculo (SCANTAMBURLO, 1978). tiço” que provocara a morte de um indivíduo
No meio do círculo quatro pessoas carrega- também era condenado junto com ele a fa-
vam nos ombros, numa rede/caixão, o de- mília, que inclui esposas, filhos e dependen-
funto. A rede ou caixão onde era colocado o tes próximos. O equilíbrio comunitário era
defunto se conhece até os dias atuais como rompido e para restabelecer a harmonia o
“djongago”. A rede/caixão era feita pelos conjunto de seres que estavam ligado àquela
anciões no encobrir da noite e mostrado ao pessoa “culpada” também era extirpada da
amanhecer, após a cerimônia desaparece comunidade. Isso explica porque uma con-
no calar da noite.A “fabricação” da rede/ denação “individual” produzia uma massa
caixão é um mistério que deve ser guardo considerável de cativos.
na obscuridade da noite. Se o segredo for Ficam alguns questionamentos para re-
descoberto a comunidade corre riscos de fletir: se é sabido que existem dois respon-
catástrofes segundo o entender da tradição. sáveis externos – os árabes a camelos e os
Um sacerdote em pé diante da rede/caixão europeus de navios –, quem foram os res-
declamava alguns cânticos misteriosos e ponsáveis no interior da sociedade? Foi o
perguntava para o morto quem era o culpa- sacerdote? A tradição religiosa? Ou o rei e os
do: “quem te matou? Quem provocou a tua comerciantes da comunidade que se benefi-
morte?”. As quatro pessoas que carregavam ciaram com a venda da família “culpada pela
o defunto no “djongago”, na rede/caixão, morte”? Os indícios apontam para a ação de
movimentavam-se, segundo eles, impulsa- agentes externos e de agentes no interior das
dos/dirigidos pelo morto e, se detinham na sociedades. Ambos à procura de recursos, de
frente de uma das pessoas da comunidade. bens materiais. Deve-se elucidar que nas so-
Essa pessoa indicada pelo “morto” era con- ciedades africanas tradicionais da época em
duzida para o tráfico por ser culpada pela questão as transações comerciais de longa
morte do defunto. distância ou com estrangeiros estavam ma-
Como elucida Mbiti (1990) há que se joritariamente controladas e mediadas pelos
entender que nas culturas africanas em ge- reis, mas também por um corpo de comer-
ral o conceito de individuo é mediada pela ciantes relacionados com a nobreza e alguns
noção de pessoa. Na capital da França, em poucos que de forma isolada participavam
1971, no colóquio internacional sobre o das trocas comerciais (PARÉS, 2016).
conceito de pessoa na África participaram O segundo método de captura, “a água
especialistas que pesquisaram diversos po- fervente”, ocorria geralmente quando um
vos e culturas do continente africano. Neste objeto ou animal se perdia. Um sacerdote
colóquio Hampate Bâ (1993), explica que o ou o próprio rei indicava o nome de um sus-
“individuo” nas comunidades tradicionais peito e se procedia a esquentar uma panela
africanas é superado pela noção de “pessoa” de água até o ponto de ebulição. Obrigava-
porque o ser constitui a síntese do universo, se o suspeito a introduzir a mão na água
o ponto de harmonia e equilíbrio para o qual fervente e, caso ele não tivesse relação com

98 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 91-103, jul./dez. 2017


Pedro Acosta-Leyva

o roubo ou a perda do objeto, não sofreria mecanismos pelos quais um grupo se im-
queimadura. Se a água quente queimasse a põe”. Em outras palavras, as representações
mão, o suspeito era considerado culpado e religiosas se combinaram e de certa forma
era conduzido para o mercado como escravo auxiliaram a estruturar as relações econômi-
para ser vendido, ele e sua família. O lucro cas para sustentar tanto as clivagens sociais
da venda era dividido entre o dono do ob- como para “ordenar” ou justificar a prática
jeto perdido, o imposto para o rei e a ofe- da capturar no interior das sociedades afri-
renda destinada ao sacerdote. Conta Fernão canas.
Guerreiro, em 1605, que a maioria das vezes O terceiro método, “a prova da galinha”,
o rei indicava como suspeito “alguns negros era muito simples. Por motivos diversos,
fidalgos e ricos a quem ele [o rei] por alguma tais como perda de objetos, doença e outros
paixão quere matar ou por cobiça tomar a acontecimentos para os quais não se podiam
fazenda” (CARREIRA, 2000, p.87). indicar os responsáveis, chamava-se a co-
O que Fernão Guerreiro chamou de “al- munidade para uma reunião cuja organiza-
guma paixão” provavelmente se enquadra ção dava-se em forma de círculo. É necessá-
no que Selma Pantoja (2011, p. 39) carac- rio, para entender a lógica desta modalidade
teriza a captura ou redução a escravo ou de produção de cativos, assim como as ou-
mesmo venda/tráfico de um membro da tras modalidades, que a metafísica dos po-
comunidade como “um meio de excluir os vos africanos pressupõe que acontecimentos
elementos nocivos à comunidade, como tais como doenças ou qualquer outro têm
uma maneira de reforçar a coesão social e uma causa “espiritual”. Nada acontece pelo
assegurar a estabilidade da sociedade”. Isto princípio de causa-efeito como entendido
é, uma estratégia para controlar as diferen- na física clássica ocidental. Sempre existe
ças políticas, disputas pelo poder no âmbito um ente, uma vontade de um ser por trás de
das intrigas da corte ou tática de elimina- cada acontecimentoe fenômeno, como afir-
ção de um concorrente no comércio ou em ma Bado (1996, p.71): “d’oùson caractèr e
outro aspecto que envolvia prestígio. Na métaphysique qui imprègnela definition des
mesma linha de raciocínio Lovejoy (2002, causes et destraitements des maladies”. O
p.64) explica que em um reino “jalojo, em cronista Almada observou que entre os jolo-
1455”, onde hoje é Senegal, o rei agrediu fos do atual Senegal havia uma relação entre
populações vizinhas e seu próprio povo não doença e a intervenção de responsáveis além
por ambição do lucro do comércio de seres do que podemos chamar hoje de “vírus”, “in-
humanos, mas pelo controle político contra feção” ou doença que afeta unicamente ao
possíveis revoltas que colocariam seu poder corpo. Almada registrou que
centralizado em xeque.
Há outros negros entre eles que servem de
No fundo, parece que a metafísica da cap- adivinhadores, a que chamam Jabacouses.
tura não se limitava às esferas das represen- Estes, quando adoece algum, o vão visitar
tações religiosas e das práticas econômicas, como médico, mas não tomam o pulso aos
mas também a uma fina estratégia política enfermos nem lhes aplicam mezinhas ne-
legitimada pela prática processual jurídica. nhumas; somente dizem que as feiticeiras
e feiticeiros fizeram mal àquele enfermo,
Como diz Chartier (199, p.51), “as lutas de
não lhes parecendo que as pessoas morrem
representação têm tanta importância como quando a hora é chegada e Deus servido,
as lutas econômicas para compreender os senão que os feiticeiros as comem; e fazem

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 91-103, jul./dez. 2017 99


Modalidades tradicionais africanas de capturas para o tráfico negreiro

sobre isto muita diligência (ALMADA, 1994, imposto em escravos (CARVALHO, 2011).
p.34) (2) A formação de um grupo de europeus
O sacerdote-adivinho, ou “Jabacouse”, chamados de lançados que, embora tives-
para descobrir os responsáveis pela doen- sem como atividade principal o tráfico ou a
ça (lembrando que o ritual da galinha era intermediação entre os mercados de escra-
uma “técnica” para descobrir os culpados vos internos (africanos) e o compradores
pela doença ou outros “malefícios”), reunia externos (europeus), algumas vezes prati-
o povo em um grande círculo e depois de cavam a captura. Esses sujeitos conhecidos
cantar e dizer algumas fórmulas misterio- como lançados espalharam-se por toda a
sas, cortava o pescoço de uma galinha e a África e provinham de quase toda a Europa.
colocava no meio do círculo. A galinha de- Muitas vezes eram também intermediários
golada, ainda pulando e se movimentando e representantes dos reis africanos e utili-
com os últimos impulsos de vida, caía morta zavam incontáveis métodos para o sucesso
em frente de alguma pessoa do círculo. A tal do negócio. Um caso pitoresco foi um lan-
pessoa e toda a sua família eram vendidos çado alemão entre os Boulões, contatado
no mercado e encaminhados para o tráfico pelo padre Baltasar Barreira, nos anos de
internacional como escravos. 1600, que usava como técnica de animar
Os outros métodos de captura por parte sua atividade de tráfico a música (CARREI-
dos agentes internos são autoexplicativos. RA, 2000, p.74).
Condenação por adultério, raptos e vendas Os lançados contraiam matrimônio com
despóticas sem motivos aparentes feitas pe- princesas e mulheres da nobreza africana.
los reis. Vale enfatizar que, nessa época e em Essas mulheres, quando enviuvavam, torna-
todo o período que se manteve o tráfico, os vam-se as famosas senhoras, ou, como eram
agentes externos da captura, isto é, os euro- conhecidas na época, “nharas”, “signares”.
peus, não abandonaram completamente a Exemplo de tais “senhoras ou signares” são
captura violenta e os pequenos raptos que a senhora Felipa em Rufisque, em 1635; a
eram comuns nos primórdios descritos por senhora Catarine ou Catti, em 1680, repre-
Azurara. sentante comercial do rei de Caior (um reino
Duas modalidades foram implementa- em Senegal); a senhora Maria da cidade de
das pelos europeus, onde de algum modo Julufre, no reino da Barra, em Gambia por
também os poderes africanos estavam en- volta de 1682 (COSTA, 2011).
volvidos: (1) a utilização do exército for- É importante, entretanto, não confundir
mado por europeus e soldados-escravos traficante ou mercador intermediário com
africanos na configuração de guerra de capturador. Os lançados eram intermediá-
ocupação, como no caso da região mbundo, rios, traficantes. A compreensão geral do fe-
em Angola, e da região dos prazos, em Mo- nômeno da captura leva a pensar que todos
çambique, onde ocorreram as guerras de esses métodos “tradicionais dos próprios
capturas comandadas por europeus e seus africanos” foram ínfimos se comparados às
descendentes mestiços e executadas pelos guerras de capturas comandadas pelos euro-
famosos a-chicundas. Os europeus realiza- peus, pelos reis africanos, pelos comercian-
vam tratados de “amizade e vassalagens” tes africanos e pela alta hierarquia religiosa
com os reis africanos de vários lugares do africana, as chamadas “guerras justas”, e a
continente e os constrangiam a pagar um outros processos a elas vinculados.

100 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 91-103, jul./dez. 2017


Pedro Acosta-Leyva

Primeiramente, a maneira através da qual escravos revela a importância que tiveram


os escravos eram obtidos tendia a destruir os dirigentes tradicionais na sobrevivên-
as estruturas sociais e políticas. Os fora da cia do tráfico de escravos” (ZONTA, 2012,
lei e delinquentes eram reduzidos à escrava-
p.318).
tura. Alguns indivíduos eram vendidos du-
rante os períodos de grande fome ou para a
quitação de uma dívida. Porém, é verossímil Considerações finais
que a maioria dos escravos tenha sido obtida
no decorrer de grandes capturas, incursões A captura é uma prática social que pode ser
ou guerras. Sabe-se igualmente que o sacer- considerada de caráter exógeno, contudo,
dote dos aro vendia as pessoas sempre que pela análise feita neste artigo, pode-se afir-
as julgasse culpadas. Mas a rede comercial
mar que se estruturou também como prática
dos aro estendida sobre a maior parte do
país igbo obtinha a maioria dentre os seus
endógena. Por muito tempo a ideia segundo
escravos em incursões efetuadas pelos seus a qual todo escravo é um cativo me fez pen-
aliados mercenários, os abam, ohaffia, abi- sar que todo cativo era um estrangeiro, uma
riba e edda. Vemos, portanto, que a grande vez que a pessoa propensa à captura sempre
influência exercida pelos aro no país igbo, seria alguém alheio a comunidade. Se as-
por intermédio do seu oráculo, não teve efei-
sim for, a captura seria uma prática social
to unificador. A influência dos aro distingue-
se, conseguintemente, pelo caráter violento exógena, que atinge outros povos ou outras
inerente ao tráfico de escravos, originado na comunidades. Os autores que defendem que
influência religiosa precedentemente exerci- os escravizados são cativos procedentes de
da pelos nri sobre vastas regiões do país igbo outras comunidades ou grupos em via de in-
(ALAGOA et al, 2010, p.  857). tegração provavelmente fazem uma análise
Como afirma Alagoa (2010) no trecho su- adequada, mas este texto não está falando do
pracitado, os métodos tradicionais de captu- escravizado nem do cativo. Pela revisão que
ra foram um importante instrumento para fizemos percebemos que a captura também
produzir escravos, mas nada comparado às é uma prática endógena da sociedade, isto é,
guerras e raptos que por vezes atingiam al- que se estabeleceu em algum momento da
deias inteiras. No caso específico da região história como um fenômeno que tinha como
do delta do rio Níger existia uma tradição alvo as pessoas da própria comunidade.
religiosa muito forte, que embora em certa Esse fato, apresentado erroneamente
época se utilizasse de modalidades rituais de com a frase “irmãos capturando irmãos” traz
captura de pessoas, depois que o tráfico se à tona uma incompreensão das clivagens so-
solidificou na região procederam a capturar ciais que qualquer sociedade ou mesmo pe-
por meio de exércitos mercenários. Logica- quenas comunidades possuem. As socieda-
mente as guerras de capturas não invalidam des africanas que praticaram as capturas en-
a relevância dos métodos tracionais, se jul- dógenas nas modalidades apresentadas não
gamos que a feitiçaria transformou-se numa estavam divididas em classes sociais como
fonte de escravos não depreciável. Pelo re- proposta pelos marxistas ortodoxos, embo-
lato de 1857, redigido pelo ex-governador ra se tenha realizado um profundo esforço,
de Sofala e Tete, Antônio Cândido Pedrosa, como apontou Luis Nicolau Parés (2016,
sabe-se que uma quarta parte do tráfico em p.280), para enquadrar as sociedades no
Moçambique corresponde à punição por fei- “modo de produção asiático”. As sociedades
tiçaria. “Esse caráter punitivo na venda de em análise tinham grupos sociais diversos

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 91-103, jul./dez. 2017 101


Modalidades tradicionais africanas de capturas para o tráfico negreiro

como são os ferreiros, os artesãos, a nobreza ALAGOA, Ebiegberi J.; ELANGO, Lovett
comerciante, a nobreza religiosa, o rei por Z.;  N’NAH, Nicolas Metegue. O delta do Níger e
Camarões In: J. F. Ade Ajayi(editor). História ge-
vezes com uma corte familiar com funções
ral da África, vol. VI: África do século XIX à
burocráticas, os escravizados e os agricul- década de 1880. Brasília : UNESCO, 2010.
tores e pescadores que eram a maioria da
ALMADA, André Álvares de. Tratado Breve
população. Cada um desses grupos sociais dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1594).
elaboraram percepções sociais, traduções Leitura, introdução, modernização do texto e
mentais das vivências e das práticas econô- notas de António Luís Ferronha. Lisboa: Gt do
micas que muitas vezes eram mediadas por Ministério da Educação para as Comemorações
dos Descobrimentos Portugueses. 1994.
noções religiosas, morais, políticas e jurídi-
cas. Sabemos que essas AZURARA, Gomes Eanes de. Crónica do des-
cobrimento e conquista da Guiné. Portu-
(...) percepções do social não são de forma gal: Publicações Europa-América, [s/d]. Esta
alguma discursos neutros: produzem estra- crónica foi escrita em 1448.
tégias e práticas (sociais, escolares, políticas)
que tendem a impor uma autoridade à custa BADO, Jean-Paul. Médecine coloniale et
grandes endémies em Afrique. Lèpre,
de outros, por elas menosprezados, a legiti-
trypanosomias e humaine et onchocercose. Pa-
mar um projeto reformador ou a justificar,
ris: KARTHALA, 1996;
para os próprios indivíduos, as suas escolhas
e condutas. Por isso esta investigação sobre CARVALHO, Flavia Maria de. Do undamento
as representações supõe-nas como estando ao avassalamento: ritos e cerimônias, alianças
sempre colocadas num campo de concorrên- e conflitos entre portugueses e sobas do antigo
cias e de competições cujos desafios se enun- Ndongo. Anais do XXVI Simpósio Nacio-
ciam em termos de poder e de dominação nal de História – ANPUH • São Paulo, julho
(CHARTIER, 1990, p. 15). 2011.
CASTRO HENRIQUES, Isabel. São Tomé e
As representações sociais elaboradas por Príncipe. A invenção de uma sociedade.
cada um dos grupos sociais entravam em Lisboa: VEGA, 2000.
concorrência e mesmo no interior de cada
CARREIRA, António. Cabo Verde. Forma-
grupo havia competições pelo lugar da lide- ção e extinção de uma sociedade escravo-
rança e pelo status de prestígio, o que im- crata (1460-1878). Praia: IPC, 2000.
pulsionou a criação de estratégias como, por
CHARTIER, Roger. A História Cultural: en-
exemplo, as modalidades apresentadas que tre práticas e Representações. Lisboa: DI-
cumpriam seu papel de regularizar as prá- FEL, 1900.
ticas sociais internas ao mesmo tempo em
CORREA, Elias Alexandre da Silva. História
que se adaptavam às novas demandas que de Angola. Vol. I. Lisboa: 1937.
os camelos e os navios lhes colocavam como
CORREA, Silvio Marcus de Souza. A imagem do
desafios. negro no relato de viagem de Alvise Cadamosto
(1455). Revista Politeia: Hist. e Soc., v. 2, n.
Referências bibliográficas 1, p. 99-129, 2002.
ACOSTA-LEYVA, Pedro. África entre africa- HAMPATE BÂ, A. La notion de personneen
nistas e africanólogos no Brasil. Pará de Afrique noire. In: DIETERLEN G. (ed.). La no-
Minas: Virtual Books, 2016. tion de personne em Afrique noire. París:
l’Harmattan, 1993, p.181-195.
ACOSTA-LEYVA, Pedro. História de África
para proletários: África/Atlântico. Pará de HORTA, José da Silva. “Entre história europeia
Minas: Virtual Books, 2013. e história africana, um objeto de charneira: as

102 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 91-103, jul./dez. 2017


Pedro Acosta-Leyva

representações”. Actas do Colóquio Cons- de Angola. Resistência e revoltas 1845-


trução e Ensino da história da África. Lis- 1941. Vol 2. Lisboa: Estampa, 2009.
boa: Linopazes, 1995.
PÉLISSER, René. História de Moçambique.
HORTA, José da Silva. A Representação do Formação e Oposição 1854-1918. Lisboa:
africano na Literatura de Viagens, do Senegal Estampa, 1994.
à Serra Leoa (1453-1508), separata de Mare
Liberum, Revista de História dos Mares, SCANTAMBURLO, Luigi. Etnologia dos Bi-
nº2, 1991. jagós da ilha de Bubaque. n/s: 1978. In://
www.faspebi.com/bijagos.index.html. Acesso
KI-ZERBO, Joseph. História da África ne- em 1 de jun 2017.
gra. Vol I. Lisboa: Publicações Europa-Améri-
ca, 1972. SERRA, Carlos. (Direção). História de Mo-
çambique. Primeiras sociedades sedentá-
KI-ZERBO, Joseph. História da África ne- rias e impacto dos mercadores, 200/300-
gra. Vol II. Lisboa: Publicações Europa-Amé- 1885. Volume I. Maputo: Livraria Universitá-
rica, 1972. ria, 2000.
MBITI, John. African Religions and Philo- SERRANO, Carlos. Angola nascimento de
sophy. London: press, 1990. uma nação. Um estado sobre a constru-
ção da identidade nacional. Luanda: Kilom-
MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da es- belombe, 2008.
cravidão. O ventre de ferro e dinheiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1995. SILVA, Alberto da Costa e. A Manilha e o Li-
bambo. A África e a escravidão, de 1500 a
PANTOJA, Selma. Uma antiga civilização 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
africana: história da África Central Oci-
dental. Brasília: Editora Universidade de Bra- WILLIAMS, Eric Capitalismo e escravidão.
sília, 2011. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
PARÉS, Luis Nicolau. Cartas do Daomé: uma in- HALL, Stuart. “The work of representation”.
trodução. Afro-Ásia, nº 47, 2013, p. 295 – 395, In:HALL, Stuart (org.) Representation. Cul-
2013. tural representation and cultural signi-
fying practices. London: Open University,
PÉLISSER, René. História da Guiné. Portu- 1997.
gueses e africanos na Senegâmbia 1811-
1946. Lisboa: Estampa, 2001.
Recebido em: 09/05/2017
PÉLISSER, René. História das Campanhas Aprovado em: 12/07/2017

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 91-103, jul./dez. 2017 103


A produção necessária das intelectuais feministas africanas no campo dos estudos de gênero e a agência do Codesria

A PRODUÇÃO NECESSÁRIA DAS


INTELECTUAIS FEMINISTAS AFRICANAS
NO CAMPO DOS ESTUDOS DE GÊNERO E A
AGÊNCIA DO CODESRIA

Michelle Cirne*

Resumo
O artigo traz a produção de algumas das intelectuais africanas que se inserem
no campo dos estudos feministas e que contribuem para refletirmos sobre o
modo como as questões que dizem respeito às mulheres das diversas socieda-
des africanas são invisibilizadas tanto no interior do campo dos estudos de gê-
nero quanto nos chamados estudos africanos. Diferentes concepções de gênero
e papéis familiares, além da posição das mulheres nas discussões sobre o de-
senvolvimento, são algumas das questões levantadas pelas autoras estudadas.
Palavras-chave: Ciências Sociais; Feminismo; África.

Abstract
THE necessary PRODUCTION of the AFRICAN FEMINIST
intelectuals IN THE GENDER STUDIES FIELD AND THE
CODESRIA AGENCY
The article brings the production of some of the African intellectuals who are
part of the field of feminist studies and who contribute to reflect on the way
in which the issues that concern the women of the diverse African societies
are invisible both inside the field of studies of gender and in the so-called Af-
rican studies. Different conceptions of gender and family roles, as well as the
position of women in the discussions on development, are some of the issues
raised by the authors studied.
Keywords: Social Sciences; Feminism; Africa.

Este artigo é parte de minha pesquisa de – Conselho para o Desenvolvimento da Pes-


doutorado que contou com financiamento quisa em Ciências Sociais de África (CIRNE,
da FAPESP e mapeou a produção recente de 2016). Uma das questões que perpassaram
ciências sociais realizada pelos intelectuais a pesquisa foi a de compreender as possi-
africanos e africanas, através do CODESRIA bilidades de produção do que é conhecido

* Doutora em Antropologia Social pela USP e docente do IHL/UNILAB. E-mail: michelle.cirne@unilab.


edu.br

104 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 104-114, jul./dez. 2017


Michelle Cirne

como “conhecimento endógeno” – quais os 2011-2015 e Dzodzi Tsikata, eleita na última


caminhos possíveis para criações originais Assembleia Geral), mas sabendo que o car-
nos estudos teóricos das humanidades feitos go da presidência tem um caráter mais ad-
pelas intelectuais africanas e africanos, que ministrativo, podemos perguntar quando a
passa pela articulação de suas experiências instituição terá uma intelectual no cargo da
culturais de origem e a imersão no cânone Secretaria Executiva, de caráter mais estra-
acadêmico ocidental. Na vastidão desse uni- tégico.
verso de estudo, dediquei algumas páginas à Oyeronke Oyewumi é nigeriana, sociólo-
produção de algumas das intelectuais africa- ga e professora na Stony Brook University,
nas que trabalham com temáticas feminis- em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Oye-
tas, que apresento neste artigo. wumi escreveu um artigo intitulado “Con-
ceptualising gender: eurocentric founda-
Feminismo africano e a tions of feminist concepts and the challen-
problemática de gênero ge of African epistemologies” (OYEWUMI,
2004), no qual afirma que a marca da mo-
Tendo as teorias feministas nascidoprimei-
dernidade é a expansão da Europa e a hege-
ramente no hemisfério norte, as intelectuais monia deste continente e dos Estados Uni-
africanas que trabalham com o tema bus- dos sobre todo o planeta, e em setor algum
cam produzir análises voltadas às realidades isto é mais profundo do que na produção de
africanas e que considerem os fenômenos do conhecimento sobre o comportamento hu-
colonialismo e do racismo, ausentes no fe- mano, a história, as sociedades e as culturas.
minismo branco ocidental. Para Oyewumi, este contexto da produção
Em relação às perspectivas feministas de conhecimento precisa ser considerado
nas ciências sociais africanas, alguns dos quando se busca compreender as realida-
nomes que se destacam no CODESRIA são des africanas e a própria condição humana
os de Oyeronke Oyewumi, Amina Mama, (ibid., p. 1).
Fatou Sow e Ayesha Iman, estas três últimas A autora questiona os conceitos usuais
organizadoras da obra Engendering African das teorias de gênero por serem baseados
Social Sciences (1997), editada pelo CODES- em um modelo europeu de núcleo familiar
RIA. O antropólogo francês Jean-Loup Am- – para ela, qualquer estudo sério que pre-
selle considera que esta obra, assim como tenda conhecer o que é “gênero” nas reali-
a realização de uma oficina intitulada “A dades africanas deve interrogar os concei-
análise de gênero e as ciências sociais afri- tos predominantes e as abordagens teóricas
canas”, em 1991, no CODESRIA, “represen- dessa linha de estudos. Logo, o objetivo do
taram uma etapa importante no longo e difí- seu texto é refletir sobre como a pesquisa no
cil processo de reconhecimento dos estudos continente africano pode ser mais informa-
feministas e de gênero no seio da comuni- da pelos interesses e interpretações locais e
dade, essencialmente masculina, dos pes- como as experiências das formações sociais
quisadores africanos” (AMSELLE, 2008, p. africanas podem ser incorporadas na cons-
104). O CODESRIA considera positivamen- trução de uma teoria geral de gênero.
te estar na sua quarta presidenta da institui- Na análise de Oyewumi, o interesse das
ção (Zenebeworke Tadesse 2003-2005, Te- feministas ocidentais estava em transformar
resa Cruz e Silva 2005-2008, Fátima Harrak o que elas percebiam como problemas priva-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 104-114, jul./dez. 2017 105


A produção necessária das intelectuais feministas africanas no campo dos estudos de gênero e a agência do Codesria

dos em questões públicas. Através do viés da centro – uma estrutura que promove “gê-
sociologia do conhecimento, buscando iden- nero” como uma categoria natural e inevi-
tificar a identidade social, as preocupações tável, sem categorias transversais que sejam
e os interesses das investigadoras, demons- desprovidas desta genericização. Para Oye-
tra-se como as experiências das mulheres wumi, esta configuração espacial da família
do hemisfério norte geraram as questões, os nuclear como um espaço isolado é funda-
conceitos e as teorias das pesquisas de gê- mental para compreender as categorias con-
nero. Para Oyewumi, o maior problema em ceituais das teorias de gênero (ibid., p. 4). O
uma perspectiva de estudo feminista seria problema, para a autora, não é a compreen-
assumir como universal a categoria de “mu- são feminista começar através da família, e
lher” – e sua subordinação – formada nessa sim nunca transcender o confinamento es-
ótica ocidental. A autora chama a atenção treito da família nuclear. As teorias feminis-
para o fato de a própria categoria “gênero” tas universalizam a experiência de família e
ser, antes de tudo, uma construção social maternidade a partir da família nuclear e a
(ibid., p. 2). tomam com um fato dado, “portanto alar-
Oyewumi propõe questões para aprofun- gando as fronteiras de sua bem limitada
dar o pensamento na perspectiva feminista, forma euro-americana para outras culturas
tais como “em que extensão as análises de que possuem diferentes organizações fami-
gênero revelam ou ocultam outras formas de liares” (ibid., p. 5).
opressão?”, ou “quais situações de mulheres No continente africano, afirma a autora,
o conhecimento feminista teoriza de forma a família nuclear permanece algo estranho,
adequada?”, e ainda “quais grupos particu- mesmo com sua promoção pelos Estados co-
lares de mulheres são teorizados?”. loniais e neocoloniais, pelas agências de de-
Para a socióloga, uma das mais impor- senvolvimento internacionais, por organiza-
tantes críticas sobre as teorias de gênero ções feministas e ONGs. Oyewumi pesqui-
provém de intelectuais afro-americanas que sou o que ela chama de “tradicional família
demonstram que, pelo menos nos Estados ioruba”. Este modelo familiar pode ser des-
Unidos, “gênero” não pode ser considerado crito como não-generizado, pois os papéis
separadamente das categorias de raça e clas- no interior dos laços de parentesco não são
se; e que há a necessidade de teorizar múlti- diferenciados por gênero, e sim têm como
plas formas de opressão quando as desigual- princípio fundamental de organização a se-
dades de raça, gênero e classe são evidentes. nioridade. Segundo Oyewumi, “ao contrário
“A categoria gênero não pode ser abstraída de gênero, que é rígido e estático, o princípio
do contexto social e de outros sistemas hie- da senioridade é fluido e dinâmico” (ibid., p.
rárquicos” (ibid., p. 3). 5). Nessa formação social, não há palavras
A análise de Oyewumi sobre os concei- que designem menino ou menina, e sim a
tos das teorias de gênero mostram que eles palavra omo, que designa prole, descendên-
emergem da ideia de “núcleo familiar” (oci- cia. A palavra oko, significando esposo/es-
dental) – que é ao mesmo tempo uma con- posa, também é usada para os dois sexos (a
figuração institucional e espacial – compos- autora chama a atenção para o fato de, nas
to de uma esposa subordinada, um marido traduções para o inglês, oko aparecer como
patriarcal, e crianças. Um núcleo de apenas husband, assim como iyawo, que tem o sig-
uma família na qual a união conjugal é o nificado de noiva, ser traduzida como wife).

106 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 104-114, jul./dez. 2017


Michelle Cirne

Ainda segundo Oyewumi, outros estudos ring a child’s place in the family. Thus, these
sobre os laços de parentesco em determi- relationships are primary, privileged and
nadas formações sociais africanas mostram should be protected above all others. In ad-
dition, omoya underscores the importance
que – ao contrário da família nuclear, mode-
of motherhood as institution and as expe-
lo ocidental europeu que tem o centro con- rience in the culture (ibid., p. 6-7).
jugal como princípio (uma dupla) – a linha-
gem é que é considerada a família, como na Portanto, para Oyewumi, a interpreta-
região da África Ocidental pesquisada pela ção das realidades africanas baseada nas
antropóloga Niara Sudarkasa, citada por afirmações ocidentais da oposição homem/
Oyewumi. “The lineage is a consanguinally mulher e no decorrente privilégio masculi-
-based family system built around a core no muitas vezes produz distorções na aná-
of brothers and sisters – blood relations” lise e na linguagem utilizada, já que as ca-
(ibid., p. 6). Nas palavras de Sudarkasa: tegorias sociais possuem padrões distintos.
A autora adiciona alguns outros exemplos
upon marriage, couples did not normally
sobre como a categoria “gênero” é significa-
establish separate households, but rather
joined the compound of either the bride or da em formações sociais africanas distintas:
groom, depending on the prevailing rules na sociedade Igbo, há as filhas masculinas,
of descent. In a society in which descent is e os maridos femininos; na sociedade Sho-
patrilineal, the core group of the compound na, algumas mulheres possuem status “pa-
consisted of a group of brothers, some sis- triarcal”, e são isentas de realizar trabalho
ters, their adult sons, and grandchildren.
“de mulheres”; na sociedade Akan, o porta-
The core of the residential unit was compo-
sed of blood relatives. The spouses are con-
voz do chefe é referido como sendo “a espo-
sidered outsiders and therefore not part of sa do chefe”, mesmo quando o chefe é uma
the family (1996: 81). (SUDARKASA, apud mulher (reconhecida como o marido) e seu
OYEWUMI, 2004, p.6). porta-voz um homem (“this understanding
clearly confounds the Western gendered
No caso dos iorubás, os filhos de uma
unsderstanding that the social role ‘wife’ is
mesma mãe são agrupados como Omoya, os
inherent in the female body” [ibid., p. 7]);
“irmãos de ventre”, e não são generizados.
no reino do Daomé, os reis também “espo-
Oyewumi explana:
savam” homens – estabeleciam laços com
because of the matrifocality of many Africa líderes talentosos e artistas proeminentes
family systems, the mother is the pivot arou- baseados no idioma do casamento.
nd which familial relationships are delinea-
As informações apresentadas por Oye-
ted and organized. Consequently, omoya is
the comparable category in Yoruba culture wumi carregam o entendimento que a ca-
to the nuclear sister in white America cultu- tegoria “mulher” deve ser vista sob novas
re. (…) Omoya also transcends households; análises, privilegiando as categorias das
because matrilateral cousins are regarded próprias sociedades africanas. Estes exem-
as womb-siblings and perceived to be closer plos africanos apresentam vários desafios
to one another than siblings who share the
aos universalismos dos discursos de gênero
same father and who may even live in the
same household. Omoya locates a person
feministas, pois as categorias africanas são
within a socially recognized grouping and altamente situacionais e não determinadas
underscores the significance of the mother- por um corpo específico e fixo. Para a auto-
child connection in delineating and ancho- ra, em muitas culturas africanas o idioma de

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 104-114, jul./dez. 2017 107


A produção necessária das intelectuais feministas africanas no campo dos estudos de gênero e a agência do Codesria

família e casamento é um modo de significar tropologia da Universidade da Integração


relações de patronagem que pouco tem a ver Internacional da Lusofonia Afrobrasileira
com a natureza dos corpos humanos. Em (UNILAB), em março de 2016, ministrada
uma proposição e tipo de trabalho em mui- pelo antropólogo cabo-verdiano, professor
to parecido com o de Archie Mafeje, como na Universidade Federal do Rio Grande do
veremos no capítulo 4, Oyewumi afirma que Sul, José Carlos Gomes dos Anjos. O profes-
“therefore analyses and interpretations of sor Dos Anjos, em sua comunicação, abor-
Africa must start with Africa. They should dou o tema que ele chamou de “agenda dos
reflect specific cultural and local contexts, cuidados”, que se desdobra no fato de que
not imported, often colonial, ideas and con- o trabalho relacionado aos cuidados, e ele
cepts” (ibid., p. 8). está pensando sobre o continente africano,
Manthiba Phalane é professora na Uni- é geralmente executado por mulheres e não
versidade de Limpopo, na África do Sul, e é computado nas estatísticas sobre o mundo
escreveu um dos artigos do livro organizado do trabalho. Se o fosse, afirmou Dos Anjos, o
por Paulin Hountondji sobre a articulação PIB do continente africano poderia aumentar
dos conhecimentos “modernos” e “endóge- em muitas vezes. Manthiba Phalane reporta-
nos” (HOUNTONDJI, 2012). No seu texto se a mesma questão, quando afirma que:
intitulado “Localizar o gênero no discurso o trabalho das mulheres nem sequer é reco-
do desenvolvimento”, Phalane, pensando nhecido nas estatísticas da economia mun-
sobre a articulação entre essas duas proble- dial (um fato frequentemente declarado por
máticas, afirma que a desigualdade de gêne- políticos e investigadores). A investigação
ro abala a eficácia do discurso e das políticas revela que apenas 50% das mulheres são
economicamente ativas, apesar do fato de
de desenvolvimento, e que os debates sobre
todas as mulheres trabalharem 14 horas ou
o desenvolvimento tendem a negligenciar o mais por dia, quando comparadas com as 8 a
fato de que a desigualdade de gênero consti- 10 horas de trabalho atribuídas aos homens.
tui uma questão nuclear do desenvolvimen- Reconhecer estas realidades desiguais é uma
to e é, por si só, um objetivo de desenvolvi- questão de honestidade intelectual tanto
mento. Para a autora, a centralidade do Es- para os investigadores como para os deciso-
res políticos (ibid., p. 245, grifo no original).
tado nos projetos de desenvolvimento expli-
ca-se devido à preponderância masculina na A autora cita organizações feministas
redação dos documentos (PHALANE, 2012, importantes que se constituíram no mun-
p. 243-244). do todo a partir dos anos 70 e os encontros
Phalane destaca as limitadas identida- internacionais que promovem, mas, ape-
des sociais e políticas disponíveis a serem sar de todos os progressos, ela afirma, no
reconhecidas para as mulheres africanas; caso dos países africanos o que se constata
segundo a autora, a única mulher que apa- é uma deterioração das condições das mu-
rece nos textos dos Estados africanos é uma lheres. Além disso, apesar de o discurso de
de origem humilde, eternamente pobre, ge- defesa de gênero estar presente na esfera
ralmente grávida e sem poder. Isto dificulta, pública africana, as ativistas e acadêmicas
por exemplo, a consideração de pesquisas compartilham “um sentimento de desilusão
com novas propostas e abordagens. em relação ao que o discurso se tornou”, e
Tive a oportunidade de estar presente na frustram-se “com o essencialismo e a gene-
aula inaugural do trimestre do curso de An- ralização que se abateram sobre a investiga-

108 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 104-114, jul./dez. 2017


Michelle Cirne

ção e os debates, simplificando-se análises e dental, que ele chamou de desenvolvimen-


colando-se as políticas de gênero e de desen- tismo. Para Dos Anjos, o desenvolvimen-
volvimento a slogans simplistas e redutores” tismo carrega consigo um futurismo, pois é
(ibid., p. 245). sempre uma promessa de algo que pode vir
A literatura ocidental sobre desenvolvi- a se realizar no futuro. A sociedade feminina
mento e gênero, com suas representações er- dos cuidados, ao contrário, tem suas preo-
rôneas do continente africano e da vida das cupações ligadas ao presente. Dessa forma,
mulheres africanas; e as abordagens “tanto repensar como o trabalho feminino de cui-
superficiais como instrumentalistas” das dados é tratado no capitalismo é questionar
organizações independentes, muitas vezes o próprio sistema. Para Dos Anjos, são pos-
guiadas apenas pelos interesses de pesqui- sibilidades abertas pelas formações sociais
sa das entidades financiadoras, contribuem africanas que mostram “a incompletude da
para este estado geral das pesquisas e dis- descolonização como acontecimento prenhe
cursos (ibid., p. 248). Outra questão aponta- de perspectivas” (informação verbal).
da por Phalane é a falta de questionamento A socióloga senegalesa Fatou Sow é tam-
sobre a ideia de desenvolvimento: nas decla- bém um nome importante dentro do CO-
rações e compromissos assinados, toma-se DESRIA nas questões de gênero. Das femi-
como “’adquirida’ a conceitualização econô- nistas que citamos no início da seção, Sow
mica ocidental do desenvolvimento”. Logo, era a única presente na Assembleia Geral do
para Phalane, as discussões sobre gênero e CODESRIA de 2015, e nela teve uma presen-
desenvolvimento tornaram-se “a-históricas, ça marcante e bastante participativa. Sow
apolíticas e descontextualizadas”, manten- escreveu um texto para compor uma cole-
do assim intactas as relações de poder desi- tânea do CODESRIA sobre os estudos de
guais (ibid.). gênero no interior das ciências sociais, cujo
A autora afirma que a integração dos título – do seu artigo – é “The social sciences
conceitos de gênero e desenvolvimento nem in Africa and Gender Analysis”, que vale a
sempre é bem compreendida pelos agentes pena acompanharmos, pois coloca a maio-
políticos, e o que é necessário é a compreen- ria das questões fundamentais do debate de
são da heterogeneidade das mulheres, para gênero, especialmente os problemas rela-
quem as demais variáveis de identidade, cionados às mulheres rurais. Sow sublinha
como a idade, etnia, classe, religião, intera- no início do texto que essa retomada do de-
gem e interferem nas suas realidades (ibid., bate que ela se propõe fazer se dá a partir
p. 251). No capítulo 4, quando tratarmos da da literatura disponível em francês. E, além
experiência na África do Sul, veremos sobre disso, insere um destaque também no iní-
a marcha do orgulho gay e contra a xenofo- cio do texto para afirmar que lamenta pelos
bia organizada por um grupo de mulheres, debates sobre as relações de gênero serem
da qual tive a oportunidade de participar na geralmente “desesperadamente agressivos”,
Cidade do Cabo. em um ambiente intelectual predominante-
O professor José Carlos dos Anjos tam- mente masculino (SOW, 1997, p. 32). Sow
bém se pronunciou, na aula a que aludimos ainda denuncia que a mulher africana inte-
acima, sobre a relação entre a economia fe- lectual é aceita entre os “iniciados”, se ela se
minina dos cuidados e o paradigma do de- conformar ao discurso dominante, que pode
senvolvimento do sistema capitalista oci- tratar das questões mais variadas relativas

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 104-114, jul./dez. 2017 109


A produção necessária das intelectuais feministas africanas no campo dos estudos de gênero e a agência do Codesria

às ciências sociais; entretanto, se direcionar gligência dessas atividades a despeito de sua


seu trabalho para as temáticas de gênero, importância na esfera social e econômica e a
receberá criticas que vão desde falta de ri- depreciação de seu papel e status nas transa-
ções microeconômicas. (ibid., p. 36).
gor científico e objetividade, até a avaliação
de que está contribuindo para perpetuar as Uma mudança no curso das pesquisas
percepções racistas ocidentais (ibid., p. 34). nota-se em virtude da influência do mar-
Nesse texto escrito em 1997, Sow apon- xismo nas ciências sociais, a partir dos anos
ta que os estudos sobre mulheres e questões 70. O surgimento de uma nova problemática
ligadas a gênero provêm especialmente de que trouxe à tona os temas dos novos mo-
agências que promovem pesquisas e ONGs, delos familiares, a interrogação feminista do
mas que ainda não alcançaram suficiente- capitalismo, do patriarcado, a apropriação
mente a academia. A socióloga afirma que social do trabalho das mulheres, incluindo
é imperativo discuti-los nas salas de aula e o reprodutivo, os novos olhares para as rela-
nos debates políticos, a fim de possibilitar a ções de gênero e parentesco, trouxeram re-
construção de um outro tipo de desenvolvi- percussões que também foram sentidas nos
mento. Sow ressalta que introduzir a análise African studies, afirma Sow (ibid., p. 37).
de gênero nas ciências sociais não é somente No continente africano, relembra Sow,
estudar mulheres como um grupo separa- as lutas anticoloniais orientaram as mulhe-
do, mas sim questionar simultaneamente os res em direção a perspectivas mais políti-
papéis e o status de homens e mulheres na cas do que feministas. Elas eram militantes
estratificação social (ibid.). nos partidos nacionalistas e na luta armada
Fatou Sow retoma as diferentes pers- como vítimas oprimidas do poder colonial,
pectivas analíticas nos estudos de gênero, e sem fazer menção a sua opressão como mu-
critica os trabalhos dos anos 70 que se dedi- lheres. Como membros partidárias ativas,
caram a pensar o papel das mulheres e que raramente questionaram o poder masculi-
são hoje consideradas clássicas, mas que as no e patriarcal encarnado nas figuras dos
identificam sempre como mães e esposas, “pais da independência”, tais como Jomo
“mitificadas ou depreciadas” na esfera do- Kenyatta, Sékou Touré e Léopold Sédar
méstica, e são cegas para a participação fe- Senghor, entre outros. A postura das mu-
minina em processos de aquisição de conhe- lheres africanas era de rejeição ao discurso
cimento, na economia ou em qualquer outra feminista europeu, acusado de querer es-
área (ibid., p. 35). Mas mesmo nos anos 60 tender sua experiência histórica ao conti-
e 70, a autora destaca, podem-se encontrar nente africano. Ao decorrer dessa fase, as
algumas raras pesquisas que se interessa- avaliações críticas trazidas pelos proces-
ram por outras atividades relacionadas às sos de independência abriram um espaço
mulheres, na economia, na política e na re- para o pensamento feminista que conse-
ligião, combatendo a visão estereotipada. guiu, pelo menos na África francófona en-
Esses trabalhos já trazem as questões apon- tre 1975 e 1980, como lembra Fatou Sow,
tadas por José Carlos dos Anjos: levantar questões sobre a opressão social
a invisibilidade das atividades essenciais das mulheres, vivenciada nos casamentos
executadas pelas mulheres; a sua ausência forçados, nos casamentos infantis (com
das estatísticas de trabalho, produção ali- mulheres ainda crianças), na poligamia, na
mentar e econômica; a marginalização e ne- exigência da fertilidade, em pesadas tarefas

110 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 104-114, jul./dez. 2017


Michelle Cirne

domésticas, na baixa frequência escolar e direcionados a mulheres em organismos


no desemprego (ibid., pp. 39-41). africanos e internacionais, como as Nações
Sow conta que em 1978 Awa Thiam, do Unidas, a Organização da União Africana
Mali, lançou seu livro “La Parole aux Né- (OUA), as organizações não-governamen-
gresses”, que “estourou como uma bomba”, tais internacionais e os órgãos públicos afri-
pois esta autora denunciava os males das ex- canos; culminando com a conquista da es-
cisões, da poligamia, da iniciação sexual e do colha pela ONU da Década das Mulheres,
clareamento da pele, afirmando que às mu- entre 1975 e 1985.
lheres era imposta uma luta dupla, contra as A socióloga relembra, entretanto, que
desigualdades de classe e gênero (ibid.). O os planos de desenvolvimento continuam
livro foi criticado como pertencendo a uma a definir as mulheres como donas-de-casa
variante africana da “teoria feminista bur- e a referir-se ao seu trabalho como “ativi-
guesa”, mas progressivamente os debates dades domésticas”, perpetuando a imagem
sobre gênero foram-se inserindo nas ciên- do homem como único provedor da famí-
cias sociais africanas e na esfera pública, em lia, quando, na realidade, em um contexto
uma “turbulenta evolução do pensamen- de crise econômica, o número de mulheres
to intelectual e do debate político” que nos chefes de família aumenta e aumentou no
anos 70 esteve sob o tema de “Mulheres e continente africano. Assim forma-se uma
Desenvolvimento”, e nos anos 80 e 90 foi realidade construída que podemos chamar
alterado para “Gênero e Desenvolvimento” de feminização da pobreza, pois as mulhe-
(ibid., p. 42). res representam a maioria da população
Dentre os trabalhos que se destacam,
mundial pobre, em razão de seu trabalho ser
Sow cita Leslie Omolara Ogundipe, que em
geralmente não remunerado, subestimado
1987 ressaltou “as seis montanhas que pe-
ou mal pago (ibid., p. 43).
sam fortemente nas costas das mulheres”:
As feministas, como vemos, contribuem
a opressão externa, a herança da tradição,
com a politização dos debates sobre o de-
o atraso1, o homem, a raça e ela mesma. E
senvolvimento, pois nas abordagens desen-
também uma publicação de 1992 da ORS-
volvimentistas as mulheres estão invariavel-
TOM – Office de la recherche scientifique
mente confinadas em setores marginais e
et technique outre-mer – intitulada Gen-
secundários. O desenvolvimentismo assume
der Relations and Development, Women
uma significação política também quando
and Society, que na avalição de Fatou Sow
legitima e reforça as estruturas de domina-
acarretou um salto epistemológico no con-
ção e a autoridade estatal sobre as mulheres.
ceito de gênero, por considerar imprescin-
Trazemos uma citação utilizada por Fatou
dível para o entendimento das mulheres do
Sow em seu texto, mais uma vez relembran-
“Terceiro Mundo” a reflexão sobre as teorias
do a economia dos cuidados abordada pelo
feministas desenvolvidas nos vinte anos an-
teriores (ibid., pp. 38-42). antropólogo José Carlos dos Anjos:
Sow cita as profissionais e ativistas – to begin with, let us not forget one thing:
sem nomeá-las, no entanto – que inseriram women were also integrated into the old
a temática de gênero no interior da questão strategy of development. Their unpaid or
low paid labour as farm workers, as hou-
do desenvolvimento, elaborando projetos
sewives had also been the base of what has
1 Backwardness, no original. been called modernization in developing

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 104-114, jul./dez. 2017 111


A produção necessária das intelectuais feministas africanas no campo dos estudos de gênero e a agência do Codesria

countries. But this labour had remained in- etária e de classe, ao contrário da crítica feita
visible; it provided a lot of the subsistence pelas pesquisadoras e pesquisadores africa-
basis on which male-labour could emerge. It nos e do Terceiro Mundo: “whether Marxist
subsidized the male wage (Deere, 1976). But
or not, many of them still consider women’s
now something else was meant, ‘integrating
women into development’ means, in most liberation as having arise from a false Eu-
cases, getting women to work in some so- rocentric feminist debate transferred to the
called income-generating activities, that is, continent via political and economic libera-
to enter market-oriented production, it does tion” (ibid., p.45). A análise de gênero não
not mean that women should expand their é um estudo das mulheres como um grupo
subsistence production, that they should try social tampouco como um grupo homogê-
to get more control over land and produce
neo; trata-se especialmente da análise de
more for their own consumption, more food,
more clothes, etc…, for themselves. Income grupos sociais como entidades sexualmente
in this strategy means money income. And investidas, que através dessa variável aces-
money income can be generated only if wo- sam diferentemente recursos, conhecimen-
men produce something which can be sold to, tecnologias, poder social e familiar, etc.,
in the market. As purchasing power among afirma Sow.
poor Third World women is low, they have
A análise de gênero, portanto, alinha-
to produce something for people who have
se bem a uma abordagem militante, afirma
this purchasing power. And such people live
in the cities in their own countries, or they Sow, pois o reconhecimento das desigualda-
in the western countries. This means that des de gênero carrega consigo, inseparavel-
the strategy of integrating women’s work mente, a necessidade de transformá-las.
into development also amounts to export-
It assumes that we recognize not only ine-
or market- oriented production. Poor Third
quality, but its inherently social nature as
World women produce not what they need,
well. Men and women are the products of
but what others can buy (Mies 1986:118).
their culture, their values and their history.
(SOW, 1997, p. 44).
As Simone de Beauvoir wrote more than
A seguir, no seu artigo, Fatou Sow traz fifty years ago, ‘We are nort born women,
we become then’ (De Beauvoir 1942). This
uma definição de gênero da historiadora
remark is equally applicable to men. (ibid.)
branca estadunidense Joan Scott (gênero
é “the fundamental relation between two Sow chama a atenção para o fato que as
proposals: gender is an integral part of so- relações entre os seres humanos são sempre
cial relations based on perceived diferences baseadas em disputas de poder, construídas
between the sexes, and gender is one of the sobre autoridade, conflito, negociação e diá-
first ways of signifying power relations” logo. Mas que, seja no Sul ou no Norte, as
[Scott apud SOW, 1997, p. 45]), e notamos mulheres tendem sempre a ter relações de-
que as feministas negras dos Estados Uni- siguais com os homens. Nesse ponto do tex-
dos não aparecem em seu texto em referên- to, Sow volta a tratar sobre as questões que
cias ou comentários. envolvem as mulheres dentro do quadro dos
A socióloga senegalesa faz a defesa dos projetos de desenvolvimento, questionan-
princípios das teorias feministas, afirmando do se os planos e planificações levaram em
que as análises de gênero não rejeitam ou- consideração as relações sociais e desiguais
tras variáveis, tais como o contexto históri- entre homens e mulheres e se contribuíram
co, econômico e político, a pertença cultural, para efetivar as mudanças necessárias. A au-

112 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 104-114, jul./dez. 2017


Michelle Cirne

tora afirma que “we know that the biggest as hortas ‘de mulheres’ e as áreas irrigadas
criticismo has rightly been the need to re- ‘dos homens’. As primeiras, mesmo com os
construct the cultural models of the African esforços das organizações de ajuda, não se
beneficiam dos mesmos equipamentos e
tradition” (ibid., p. 46), mas não explana
treinamentos das últimas. Isto leva a uma
sobre o que seria e como seria essa “recons- inefetividade e baixa produtividade notórias
trução”. (ibid., p. 51).
Sow repete que a pesquisa com análise
de gênero não escapa de ser uma pesquisa O acesso a terra é uma questão central,
compromissada, com um objetivo político, pois ele determina o status social e o padrão
e que as análises de gênero revelam os me- de vida das comunidades rurais, para quem
canismos de dominação que pesam sobre as a terra é a principal fonte de renda e subsis-
mulheres e as armam com ferramentas para tência, explica Sow. A questão da proprieda-
lutar contra a opressão. Uma de suas críticas de de terra está sempre presente, pois nunca
é contra a característica sexista e viricêntri- antes o continente africano foi tão envolvido
ca historicamente presente nos campos da por projetos de desenvolvimento quanto no
ciência e do conhecimento. período a que a socióloga se refere, com a in-
Nas zonas rurais, Sow chama a atenção, tervenção de empresas ligadas a agricultura,
um dos problemas principais está no fato de reflorestamento, pecuária, energia, constru-
que “são homens falando com homens”: os ção de barragens, programas de segurança
técnicos, os agricultores e os trabalhadores alimentar, entre outros. No caso das mulhe-
rurais, “que ignoram ou dificilmente consi- res, o acesso a terra ainda depende das rela-
deram o impacto das posições de gênero nos ções de autoridade e subordinação no meio
seus estudos e atividades práticas” (ibid.). familiar (ibid., p. 52-53). O papel das mu-
Precisa-se de “uma dose de consciência de lheres nas questões agrárias é preeminente,
gênero” nas práticas para o desenvolvimen- afirma Sow, mas “suas funções são obscure-
to, para que, inclusive, os projetos obte- cidas pela organização hierárquica nas re-
nham sucesso. Sow novamente ressalta que lações de gênero no interior do seu núcleo
os núcleos familiares (households) chefia- familiar” (ibid., p. 54).
dos por mulheres aumentam cada vez mais, Sow encaminha sua análise para o final,
também nas zonas rurais, em função do exô- reafirmando o quanto as análises de gênero
do masculino crescente na época. “Quantos renovam os debates em muitas áreas, e de
projetos rurais falharam em decorrência do forma especial no debate sobre democracia.
papel dos sexos na produção, especialmente Quando toca no ponto dos direitos huma-
nos setores predominantemente femininos, nos, a autora ressalta uma das mais “sensí-
ter sido ignorado”, questiona a socióloga? veis questões” que afetam as mulheres, que
(ibid., pp. 48-49). o é controle do corpo, da sexualidade e da
Apesar das pesquisas mostrarem que suas fertilidade. “O poder masculino ainda resi-
condições de vida permanecem as piores de de largamente no controle e apropriação da
todos os índices sociais, as mulheres estão fertilidade das mulheres”, afirma Sow (ibid.,
tendo cada vez mais iniciativas que resistem p. 56). As mulheres, no continente africano,
ao sistema de dominação, afirma Sow. En- não conseguirão controlar o número de nas-
tretanto, há diferenças explícitas, como por cimentos “enquanto as pressões culturais,
exemplo, as que se podem notar entre religiosas, ideológicas e políticas continua-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 104-114, jul./dez. 2017 113


A produção necessária das intelectuais feministas africanas no campo dos estudos de gênero e a agência do Codesria

rem a pesar sobre elas” (ibid., p. 57), e en- Referências bibliográficas


quanto forem condicionadas a se sentir cul-
AMSELLE, Jean Loup. L´Occident décro-
padas se a sua fertilidade não corresponde ché. Enquête sur les postcolonialismes.
ao que a sociedade espera delas (ibid.). Paris: Stock, 2008.
Fatou Sow conclui o seu texto propondo CIRNE, Michelle. A produção de ciências
a questão sobre o desenvolvimento que até sociais no continente africano e a agência
então não fora colocada: de que desenvol- do CODESRIA. Tese (Doutorado em Antropo-
vimento estamos falando? Que desenvolvi- logia Social) – Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2016.
mento queremos? Uma das críticas existen-
tes é a de o discurso e as práticas desenvol- HOUNTONDJI, Paulin (org). O Antigo e o
vimentistas estarem utilizando as mulheres Moderno. A produção do saber na África
contemporânea. Luanda: Edições Mulemba;
para se condicionarem a seus propósitos, Mangualde: Edições Pedago, 2012.
mobilizando-as em campanhas de controle
IMAN, A.; MAMA, A.; SOW, F (eds.). Engen-
da taxa de natalidade, vacinação, recomen-
dering African Social Sciences. Dakar: CO-
dações nutricionais, poluição ambiental e DESRIA Book Series, 1997.
reflorestamento.
OYEWUMI, Oyeronke. “Conceptualising gen-
Esse pequeno recorte da produção das der: eurocentric foundations of feminist concep-
cientistas sociais e feministas africanas pre- ts and the challenge of African epistemologies”.
tendeu jogar luz em algumas das questões In: African gender scholarship: concepts,
candentes para as mulheres das diferentes methodologies and paradigms. Dakar: CO-
DESRIA Gender Series 1, 2004.
sociedades africanas, mas que por vezes fi-
cam obliteradas tanto no campo dos estudos PHALANE, Manthiba. “Localizar o gênero no
discurso do desenvolvimento”. In: Hountondji,
africanos como no campo dos estudos de gê-
Paulin (org). O Antigo e o Moderno. A pro-
nero, este último focado nas problemáticas dução do saber na África contemporânea.
vindas das experiências ocidentais. A minha Luanda: Edições Mulemba; Mangualde: Edições
expectativa é que estimule a continuidade e Pedago, 2012.
o adensamento das pesquisas feitas no Bra- SOW, Fatou. “The social sciences in Africa and
sil sobre as questões de gênero no continen- gender analysis”. In: Iman, A.; Mama, A.; Sow,
te africano, que para tal necessita de um es- F (eds.). Engendering African Social Scien-
ces. Dakar: CODESRIA Book Series, 1997.
forço conjunto das pesquisadoras e pesqui-
sadores para a circulação das bibliografias,
especialmente as produzidas pelas cientistas Recebido em: 13/06/2017
sociais africanas. Aprovado em: 20/08/2017

114 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 104-114, jul./dez. 2017


Miki Takao Sato

PERCURSOS ETNOGRÁFICOS EM NARRATIVAS


COM MULHERES AFRICANAS EM SÃO PAULO:
ATIVIDADES COMO POSSIBILIDADES
ECONÔMICAS

Miki Takao Sato*

Resumo
São Paulo vivencia uma presença crescente da migração africana nas últi-
mas décadas, notadamente de mulheres. A vida econômica e a dinâmica das
trocas cotidianas, constituem os eixos da análise de quatro narrativas, cons-
truídas por meio da etnografia, entrevistas e convívio em situações do coti-
diano, principalmente em espaços de trabalho. A discussão do fazer etnográ-
fico configurou-se como elemento norteador importante do trabalho. As suas
narrativas revelam a capacidade de agenciamento em ambientes novos, suas
atividades ganham sentidos e valores plurais, apesar dos desafios e das ten-
sões que se apresentam. Na construção de nova cotidianidade vão encon-
trando recursos, acionando redes e criando estratégias para enfrentamento
de dificuldades, fazer frente a necessidades financeiras e para produzirem
novos espaços de pertencimento.  A dificuldade da comunicação na língua
portuguesa, a xenofobia, o racismo, somam-se aos incontáveis entraves bu-
rocráticos da regularização migratória, são, igualmente, vivenciados.
Palavras-chave: Migração africana; Trabalho; Mulher.

Abstract
ETHNOGRAPHIC NARRATIVES WITH AFRICAN WOMEN: HUMAN
ACTIVITY AS ECONOMIC POSSIBILITIES
São Paulo experiences an increasing presence of African migration in the last
decades, especially of women. The economic life and the dynamic of the daily
exchanges, they constitute the axes of the analysis of four narratives. These
were built through interviews and socializing in everyday situations, espe-
cially in workspaces. The discussion of ethnographic work has become an
important guiding element of the work. Their narratives expose the capaci-
ty for agency in new environments, their activities get plural meanings and
values, despite the challenges and tensions. In the construction of a new daily

* Terapeuta ocupacional, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da Universida-


de Federal de São Carlos. Contato: mikitsato@gmail.com Declaro que o texto submetido é 100% inédito e
não se encontra em processo de julgamento em nenhum outro periódico ou coletânea.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017 115


Percursos etnográficos em narrativas com mulheres africanas em São Paulo: atividades como possibilidades econômicas

life, they find resources, operate networks and create strategies to face the
challenges and to produce new spaces of belonging. The difficulty of commu-
nication in the Portuguese language, xenophobia, racism and bureaucratic
problems in migratory regularization, are also experienced.
Keywords: African migration; Work; Woman.

O presente artigo discute a vida econômica Este trabalho apoia-se em reflexões ela-
e a dinâmica das trocas cotidianas de mu- boradas no contexto da antropologia e da
lheres africanas que escolheram São Paulo etnografia e na escuta culturalmente sensí-
para residir nos últimos anos. No contexto vel (OLIVEIRA, 2000; GONÇALVES; MAR-
da migração africana contemporânea no QUES; CARDOSO, 2012). A pesquisa em
país e na cidade, essas mulheres desenvol- campo é carregada de tensões e incertezas,
vem atividades e trabalhos diversos, recon- exigindo, então, grande atenção a esses ten-
figurando suas trajetórias e dando novos sionamentos, desafios e contradições. Por-
sentidos aos seus fazeres diversos. O traba- tanto, faz-se necessário que a perspectiva e
lho desenvolveu-se por meio de pesquisa de os processos estejam colocados e explicita-
campo em percursos etnográficos com qua- dos, pois, uma das tarefas principais é supe-
tro narrativas dessas mulheres. 1 Os crité- rar a ideia de que a metodologia de pesquisa
rios fundamentais eram que essas mulheres se resume a procedimentos de análise dos
fossem provenientes de países africanos e dados. O desafio amplia-se na complexida-
que estivessem exercendo alguma atividade de da vivência do campo e na necessidade
econômica na cidade de São Paulo. Assim, o
de ir além dessa racionalidade imposta pelo
estudo teve base na observação, em entre-
pensamento redutor, mostrando a riqueza e
vistas abertas, conversas, acompanhamento
a potencialidade da pesquisa etnográfica.
e convívio em situações diversas do cotidia-
A prática e a experiência etnográfica
no e de trabalho das mulheres. A dinâmica
são processos fundamentais do trabalho de
estabelecida com cada uma delas foi cons-
campo (MAGNANI, 2009). Planejar, orde-
truída conjuntamente, em processos e mo-
nar e coordenar as etapas do campo, mas
mentos diferentes e os locais das conversas
também o imprevisto, o problema, a surpre-
e dos encontros, assim como os assuntos e
sa, são ações inerentes à etnografia. O cam-
temas discutidos com cada uma delas foram
po constitui-se de experiências e vivências
sendo negociados e construídos ao longo do
múltiplas, em etapas sobrepostas de ma-
processo.2
neira espiral, descontínua e em processos
1 Trabalho de dissertação do Programa de Pós-
constantes (SILVA, 2006). Fundamenta-
Graduação em Terapia Ocupacional da Univer-
sidade Federal de São Carlos. A pesquisa integra se a partir da sensibilidade do pesquisador
uma construção teórico-prática com o apoio da para suas indagações, transcendendo práti-
Casa das Áfricas — Núcleo Amanar, que, jun-
tamente com o Projeto Metuia/Terapia Ocupa- cas simplistas de entrevistas e observações,
cional — Universidade de São Paulo (USP), tem numa construção relacional com a temática
conduzido, no campo da cultura, da educação e
e as pessoas e no diálogo com pressupostos
dos direitos humanos, diferentes iniciativas de
estudos, extensão universitária, formação e de- teóricos.
bates sobre mobilidade humana, diversidade O trabalho de campo em contextos ur-
cultural, artes e migração africana em São Paulo.
2 Os cuidados éticos foram apresentados e negocia- banos é outra dimensão metodológica que
dos ao longo do processo de trabalho do mestrado. merece ser destacada, pois se propõe uma

116 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017


Miki Takao Sato

leitura reflexiva sobre os arranjos singulares do campo, para as ambiguidades dos pro-
das interlocutoras em sua dinâmica cotidia- cessos de comunicação envolvidos. Foram
na que dialogam com o cenário da cidade de levados em consideração, particularmente,
São Paulo. Magnani (2002) discorre sobre a os debates da antropologia interpretativa a
etnografia no contexto urbano contemporâ- partir de Geertz (1989) e o lugar do concei-
neo, propondo outra possibilidade de pensar to de descrição densa também exposto por
a cidade: identificá-la e a refletir a partir do Geertz (1989), para o qual a compreensão
que chama de olhar de perto e de dentro, em dos fenômenos sociais deve partir de situa-
contraposição ao olhar de fora e de longe, ções definidas para trabalhar a própria con-
que desconsidera e fragmenta os atores so- dição da/do pesquisador/pesquisadora e,
ciais dentro da complexidade das metrópo- via interpretação, elaborar a compreensão
les contemporâneas. Essa outra proposição do fenômeno em estudo por meio das inter-
pressupõe a existência de arranjos, redes, pretações que as pessoas constroem de suas
trocas e pontos de encontros no contexto do experiências. Para ele as descrições etno-
cotidiano da cidade. gráficas são “construções de construções”,
O autor propõe acompanhar esses ato- pois somente o “nativo” faz interpretação
res na sua vida cotidiana em diálogo com as da experiência. Por isto, este conhecimen-
configurações do cenário urbano em cons- to assume-se como construído e modelado
tante mudança (como no caso da migração, (GEERTZ, 1989, p. 25-26).
das minorias excluídas e dos diferentes gru- Desta maneira, há no presente estudo
pos étnicos e religiosos, por exemplo), para, uma forma de análise que interpreta o fluxo
a partir daí, apreender os diferentes arran- do discurso social. Ou seja, das narrativas
jos reconfigurados nessa relação a partir das das mulheres interlocutoras e aquelas que,
esferas múltiplas da vida: trabalho, religião, em primeira mão, conferem sentido às suas
cultura, participação política (MAGNANI, experiências. Neste caminho, esta pesquisa
2002). A partir disso, cria categorias para incorpora a reflexão e a natureza da presen-
entender e possibilitar uma análise reflexiva ça da pesquisadora/autora ao próprio méto-
de como se dá essa dinâmica a partir das ca- do, assume a importância dos detalhes para
tegorias — pedaço, mancha, trajeto, circui- a qualidade da interlocução dos fatos sociais
to — como os atores sociais relacionam-se, a partir da observação e da elaboração do
dialogam e apropriam-se dos espaços cole- trabalho de campo (OLIVEIRA, 2000).
tivos. É fundamental pensar em como o ce- Outra referência teórica organizadora da
nário urbano da cidade de São Paulo dialoga dissertação é Hannah Arendt (2014), sobre-
com os processos individuais e coletivos das tudo para definir os sentidos dos processos
interlocutoras. Cada uma constrói uma re- econômico-sociais adotados que retoma o
lação e uma dinâmica a partir da percepção conceito de “economia de vida”, para traba-
e sentido que dá aos seus pedaços, trajetos lhar a vida econômica das mulheres africa-
e circuitos, ligados seja ao trabalho, seja ao nas em São Paulo. No contexto deste traba-
lazer e à religiosidade, seja ainda a outras di- lho, a proposta é discutir a vida econômica
mensões. dessas mulheres africanas enquanto produ-
Para a dimensão da análise, propõe-se ção de sentido, protagonismo e emancipa-
uma interlocução com as reflexões da antro- ção, em que a organização de suas atividades
pologia para a reflexão sobre a construção gera outras dimensões e potencialidades, e

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017 117


Percursos etnográficos em narrativas com mulheres africanas em São Paulo: atividades como possibilidades econômicas

novas inscrições de vida, onde “um ambien- trabalho, de novas oportunidades e desafios.
te de trabalho polifônico cria valor social” A cidade de São Paulo tem como desafio o
(GHIRARDI, 2012, p. 19). diálogo com novas perspectivas da mobili-
A vida econômica das mulheres africanas dade humana, que interrompem a lógica de
forma importante elemento articulador das uma visão simplista e carregada de estereó-
redes de relações, pois em torno do trabalho tipos relacionados à pobreza e miséria da
e das trocas econômicas também se cons- África, e se voltam para uma abordagem que
troem e se fortalecem relações de pertenci- dialogue com a mobilização política, o pro-
mento, agenciamentos coletivos, trocas so- tagonismo e cidadania.
ciais e de suporte. A premissa inicial da pes- Os processos migratórios no Brasil e na
quisa é que os processos econômico-sociais cidade de São Paulo sempre ocorreram de
devem ser inseridos numa dimensão social, maneira bastante diversa, em função da
articulada à dimensão cultural sensível à di- complexidade da globalização e do cená-
ferença (de gênero, raça, geração, etc.) no rio geopolítico e econômico internacional e
bojo da compreensão e do fazer cotidiano. brasileiro. Serrano (2011) revela que, além
Essas mulheres inserem-se no panorama da migração motivada por fatores econô-
atual da migração africana contemporânea micos, presencia-se também a mobilidade
na cidade de São Paulo, que é marcada por para o Brasil de trabalhadores qualificados,
uma multiplicidade de características. São estudantes de graduação e pós-graduação
diversas nacionalidades, arranjos coletivos através de convênios e cooperação interna-
(nacionalidades, religiosas, econômicas) em cional, pessoas vítimas de tráfico humano,
diálogo com os desafios que a cidade coloca, solicitantes de refúgio e migrantes econô-
como questões da política migratória, servi- micos, entre outros. Nesse sentido, tanto
ços especializados, possibilidades econômi- o Brasil quanto a cidade de São Paulo têm
cas, trocas culturais. buscado diferentes formas de dialogar com
essa nova dinâmica cultural, econômica e
Migração africana e a social, já que a cidade se tornou importan-
presença da migração te destino de fluxos migratórios interna-
cionais.
feminina na cidade de São O Brasil passou a receber grande quan-
Paulo tidade de pessoas oriundas dos conflitos
A migração africana no Brasil tem ocorri- pós-independência dos países africanos a
do em várias dimensões e tem tido cada vez partir da década de 1970 e 1980, e em maior
mais visibilidade nas pesquisas acadêmi- escala, a partir dos anos 2000. O agrava-
cas (KALY, 2001; FRANCALINO; PETRUS, mento das crises econômicas mundiais, o
2008; MUNGOI, 2012), nos meios de comu- endurecimento das fronteiras dos países
nicação, em expressões artísticas e culturais, desenvolvidos, a busca por trabalho, novas
na participação desses migrantes nas esfe- oportunidades e qualificação profissional e
ras públicas, movimentos sociais e em tan- acadêmica também foram fatores que im-
tas outras dimensões inseridas na sociedade pulsionaram essa mobilidade. Entre 2000 e
brasileira (SUBUHANA, 2009; SERRANO, 2012, o número de africanos em situação re-
2011; TELES, 2013; RODRIGUES, 2014). As gular no país teve um aumento de 30 vezes
pessoas têm buscado inserções de estudo, (de cerca de mil para 31 mil), provenientes

118 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017


Miki Takao Sato

de 48 países, a maioria de Angola, Cabo Ver- dos imigrantes e assim, fortalecer suas re-
de e Nigéria.3 des sociais e a inserção social na sociedade
Ester Rodrigues (2014), em sua disserta- brasileira.
ção de mestrado, faz uma análise do proces- Segundo dados da Organização Interna-
so de imigração contemporânea de africa- cional para as Migrações (ORGANIZAÇÃO
nos no Brasil, sob a perspectiva dos direitos INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES,
humanos e dos grandes veículos de comu- 2009), entre 1990 e 2000 a maior parte do
nicação impressos. Ressalta que apesar do fluxo migratório internacional concentrava-
aumento considerável do fluxo de africanos, se nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro,
muitos inclusive trabalhando e contribuin- sendo esta última com concentração expres-
do para o desenvolvimento do país, isso não siva de africanos (37% dos imigrantes). O
resultou necessariamente em políticas espe- mesmo órgão apontava que em relação aos
cíficas, nem na garantia de direitos e inser- refugiados, em 2009 havia cerca de 4 mil
ção social dos mesmos. A autora debruça-se refugiados reconhecidos pelo governo bra-
sobre as notícias veiculadas em jornais de sileiro, sendo que os africanos compunham
grande circulação em algumas cidades bra- 65,3% desse total.
sileiras sobre a temática da imigração afri- Assim, o panorama da migração africa-
cana no país. É possível perceber que na na contemporânea na cidade de São Paulo
maior parte das vezes noticiam-se a vinda de revela-se em uma pluralidade de configu-
imigrantes africanos em situação irregular, rações. Transitando nos espaços urbanos,
muitos através de porões dos navios ou de coletivos, movimentos sociais de direitos
fronteiras clandestinas. Além disso, é visível humanos dos imigrantes e pelos vários ce-
como os meios de comunicação reforçam nários econômicos e culturais, as mulheres
ainda mais o racismo, a violência e a não migrantes, principalmente as africanas, fo-
aceitação dos africanos no país, associando ram ganhando mais e mais interesse. Além
a vinda dessas pessoas a prejuízos às cidades disso, os cenários multiculturais da cidade
brasileiras. de São Paulo expandem-se com a migração
Concomitantemente, também encontra- e, concomitante ao fortalecimento dos mo-
mos na literatura acadêmica, nos meios de vimentos de protagonismo das mulheres,
comunicação, projetos e grupos ligados às ganha destaque nos debates acadêmicos e
universidades e nos vários espaços sociais, no cenário social, cultural e econômico, o
relatos de experiências de projetos que pro- trabalho de mulheres africanas.
curam mudar essa ótica para então fortale- Atualmente na região central da cidade
cer a identidade cultural, inserção social e o é notória a uma presença de comerciantes
protagonismo dos imigrantes africanos no de diversas regiões africanas. Nas imedia-
país. Francalino e Petrus (2008), por exem- ções do bairro da República há lan houses
plo, relatam a experiência da criação de um que oferecem serviços de internet e telefonia
projeto coletivo com congoleses e angolanos para responder à necessidades de comuni-
no Rio de Janeiro, com objetivo de preser- cação ágil com diversos países africanos a
var a identidade cultural e a tradição oral preços acessíveis. Encontramos, também,
3 Cf.http://noticias.terra.com.br/brasil/imigra- alguns restaurantes especializados em co-
cao-africana-no-brasil-aumenta-30-vezes-en- mida típica africana. No comércio de rua da
tre-2000-e-2012,bcdedc77d62e5410VgnCLD-
2000000dc6eb0aRCRD.html praça da República, juntamente com os ven-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017 119


Percursos etnográficos em narrativas com mulheres africanas em São Paulo: atividades como possibilidades econômicas

dedores africanos de produtos eletrônicos, lerias comerciais, e, sobretudo exercendo al-


réplicas de roupas, relógios e artigos espor- guma atividade econômica. Estão presentes
tivos de marcas famosas, há várias barracas nos salões de beleza, restaurantes, comér-
de vendas de objetos de decoração, tecidos, cios, serviços de referência. São circuitos
acessórios de beleza e produtos, todos com que se formam através de identidades cultu-
a temática africana. Diante a valorização rais, arranjos preestabelecidos entre pares e
do movimento de direitos da população redes de apoio, e também por necessidade
afro-brasileira e da chamada estética afro, de dialogar com demandas próprias.
os artigos de beleza, objetos marcadores de O fortalecimento dos espaços afro-brasi-
identidade, adereços e vestimenta são bas- leiros através de coletivos culturais, encon-
tante procurados. Nas próprias calçadas é tros e debates, feiras étnicas, apresentações
possível presenciar vendedores e vendedo- culturais, movimentos sociais e políticos,
ras ensinando a usar os tecidos para montar entrelaça-se com a presença africana em di-
tranças, turbantes e saias. versas situações em que iniciativas dialogam
O maior destaque dessa região é o Cen- com a mobilização do movimento de direitos
tro Comercial Presidente, mais conhecida afro-brasileiro na cidade. O protagonismo
como “Galeria Presidente” ou “Galeria do da mulher negra e africana nesse panorama,
Reggae”, localizada ao lado da “Galeria do destaca-se mais e mais. Ao se estabelecer na
Rock”, famoso ponto turístico da cidade. cidade, a mulheres que chagam atualmente,
Trata-se de uma galeria comercial típica do deparam-se com esse contexto plural e pre-
centro antigo da cidade, com cerca de seis cisam buscar interlocução e possibilidades
andares, muitas lojas, quase que exclusiva- de interação em várias esferas: culinária,
mente gerenciadas e frequentadas pela co- política, estética, econômica, artística.
munidade africana da cidade. A circulação A cidade de São Paulo, também como
de homens, mulheres e famílias é imensa, reflexo de um panorama social maior, tem
durante todo o dia. vivenciado uma discussão importante sobre
Ao vivenciar a dinâmica da Galeria du- as questões de gênero. Assim, coletivos e
rante o trabalho de campo, foi possível per- movimentos feministas, organizações e ser-
ceber o quanto o local serve não só para aten- viços públicos têm proposto uma articulação
der a demandas comerciais, mas também se e mobilização dos direitos das mulheres em
torna ponto de encontro fundamental da várias escalas: saúde, violência de gênero,
comunidade africana. As pessoas marcam cultura, veículos de comunicação, direitos
encontros, reuniões, trocas de informações, humanos.
criando também redes de apoio e referên- Temos presenciado a participação de
cia para os imigrantes. As mulheres que ali mulheres ligadas à temática da mulher ne-
trabalham compartilham seu cotidiano, tro- gra e africana nesses espaços de debates, nas
cam clientela, emprestam produtos, cuidam reinvindicações políticas e sociais. Assim, a
da loja na ausência da outra. Outros fazem cidade de São Paulo configura-se como ter-
reuniões de negócio, reuniões de lideranças, ritório de múltiplas identidades, necessida-
encontram-se para comer, conversar, beber. des e oportunidades para que as africanas
É possível perceber importante presença encontrem aqui possibilidades de cidadania,
das mulheres africanas nesses vários cená- protagonismo e produção de novos sentidos
rios, seja em trânsito, seja agrupada nas ga- para seu processo migratório. Esses coleti-

120 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017


Miki Takao Sato

vos e iniciativas têm ganhado destaque na res humanos imaginam e arriscam pelo seu
programação cultural e nos veículos de co- próprio futuro. Sem esta dimensão de futuro
municação na cidade, dando maior visibi- e de imaginação, não se pode de modo ne-
nhum inscrever o nosso nome próprio ou ar-
lidade ao debate da questão migratória, da
ticular a nossa própria voz (MBEMBE, 2010,
mulher e da África. s/p).
Assim, é nessa configuração da cidade
em que as mulheres africanas deparam-se. A mobilidade não tem sido feita somente
Cenário esse permeado de problemáticas, por necessidades ou motivos de guerras. O
possibilidades, demandas e desafios inscri- autor chama a atenção para outras buscas e
tos na dinâmica do contexto urbano com inserções. A dimensão imaginativa dos seres
que elas irão dialogar e criar novos arranjos humanos compõe uma das bases da mobili-
de trabalho, cotidiano, relações e sentidos dade, em que sonhos, desejos e intenções são
múltiplos para suas vidas. Cada uma das motores da criatividade e das reinvenções
interlocutoras da presente pesquisa intera- das atividades cotidianas e das relações de
ge com esse espaço urbano, com diferentes troca que se estabelecem. O autor faz impor-
atores sociais, demandas múltiplas e respos- tante reflexão crítica sobre a falsa existência
tas às dificuldades encontradas, produzindo de uma única e simplista identidade africa-
trajetórias e narrativas singulares nesses na e a necessidade de superação da lógica
processos diversos. da igualdade e da neurose pela vitimização,
Assim, a temática da África, na perspec- para a possibilidade de formas culturais di-
tiva deste trabalho assume outra dimen- versas dentro da mesma humanidade e den-
são, saindo do lugar-comum de discussão tro de uma relação de alteridade (MBEMBE,
do subdesenvolvimento, do tradicional e de 2001, p. 183). Assim, africanos e africanas
violência e miséria, para um olhar de valo- inventam modos singulares, múltiplos e di-
rização, de contribuição cultural, artística e versos de se inscrever no mundo.
intelectual. Achille Mbembe, pesquisador, Diversos órgãos internacionais apontam
historiador e cientista político camaronês, para um processo de feminização da mi-
faz uma discussão sobre arte contemporâ- gração. Segundo dados da Organização In-
nea e reconhecimento cultural em África, ternacional do Trabalho (ORGANIZAÇÃO
que podemos tomar emprestado para essa INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2008),
reflexão: as mulheres correspondem a 51% das mi-
grações internacionais, podendo percorrer a
Para que a África do Sul atinja plenamente o
viagem com cônjuges, sozinhas, em busca de
seu potencial, o país necessita de se imaginar
como uma nação “afriopolitana” precursora oportunidades, ou para se reunir à sua famí-
de uma versão da modernidade africana já lia. Se antes as mulheres migravam para se
visível na maior parte dos modelos artísticos juntar às suas famílias, atualmente há gran-
e culturais africanos contemporâneos. Do de parcela que migra por motivos econômi-
mesmo modo, o país deve distanciar-se de cos e compõe as grandes forças motrizes e
uma visão da cultura como coisa pertencen-
pioneiras do processo de migração familiar.
te ao passado, limitada apenas aos costumes
e às tradições, aos monumentos e museus.
Embora a migração feminina tenha gran-
Precisamos de tomar consciência de que a de importância em termos quantitativos
cultura não é uma outra forma de “serviço (ASSIS, 2007) e também devido à remessa
de abastecimento”, mas o modo como os se- de fundos financeiros aos países de origem e

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017 121


Percursos etnográficos em narrativas com mulheres africanas em São Paulo: atividades como possibilidades econômicas

à movimentação econômica que gera, perce- irregular, acabam ocupando cargos desqua-
be-se ainda a desvalorização da mulher mi- lificados e não condizentes com sua forma-
grante, principalmente em desqualificação ção educacional e profissional (ORGANIZA-
profissional e de gênero, baixa remuneração ÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO,
salarial, condições precárias de trabalho e 2008). A chamada “fuga de cérebros” é uma
invisibilidade do fenômeno no âmbito dos questão importante nos processos migrató-
direitos humanos e no cenário mundial. É rios, onde há perda de oportunidade de de-
sabido que as mulheres migrantes são cons- senvolvimento tanto para o país de origem
tantemente expostas ao tráfico de pessoas quanto do país de destino. Os fenômenos
4
, à exploração sexual e ao aliciamento para contemporâneos da globalização desenca-
o tráfico de drogas internacional (BAILEY, deiam necessidades econômicas e sociais de
2013). mobilidade humana e impossibilitam o de-
Ainda é bastante recorrente a desquali- senvolvimento econômico e social também
ficação profissional e salarial das mulheres nos países de origem.
(DUTRA, 2013), que são muitas vezes aloca- A migração feminina foi um processo
das em postos de trabalhos irregulares, sem invisível e de pouca repercussão nas ciên-
respaldo de legislação trabalhista e com sa- cias sociais, sendo inserido na discussão
lários incompatíveis com a função e a carga da migração sem qualquer atenção para
horária correspondentes. Quando se encon- questões específicas de gênero, embora em
tram em situação migratória irregular, aca- alguns países, como os Estados Unidos, a
bam ficando ainda mais expostas às viola- população já era composta em sua maioria
ções de direitos e exploração. Há ainda uma de mulheres imigrantes de 1930 a 1979, por
associação entre o trabalho das mulheres exemplo (ASSIS, 2007). A migração é majo-
imigrantes e profissões ligadas ao gênero, ritariamente abordada sob o ponto de vista
como trabalhadoras domésticas, de cuida- masculino e foi somente a partir dos anos
dos e de limpeza. Como muitos destes postos 1960 e 1970, principalmente com o advento
de trabalho pertencem ainda ao mercado in- dos movimentos feministas, que os estudos
formal, as mulheres ficam mais vulneráveis sobre migração começaram a ser inseridos
e são privadas de direitos básicos. Ainda so- nas pautas específicas de gênero. A partir
bre a desqualificação profissional, dado que de então, novos questionamentos e debates
muitas mulheres ainda migram em situação foram colocados para se compreender me-
4 A expressão “tráfico de pessoas” significa o recru- lhor os fluxos migratórios, além da ques-
tamento, o transporte, a transferência, o aloja- tão específica da mulher migrante (DINIZ,
mento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo
2009), em que a migração feminina ganha
à ameaça ou uso da força ou a outras formas de
coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso destaque a partir dos estudos e discussões
de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou sobre gênero (história da família e suas di-
à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefí-
cios para obter o consentimento de uma pessoa ferenciações, participação das mulheres
que tenha autoridade sobre outra para fins de nas universidades e movimento de libera-
exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a ção, entre outros).
exploração da prostituição de outrem ou outras
formas de exploração sexual, o trabalho ou servi- A migração feminina ganhou força ex-
ços forçados, escravatura ou práticas similares à pressiva no contexto da migração contem-
escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.
Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
porânea principalmente a partir da segunda
ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm. metade do século XX. Assis (2007) refor-

122 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017


Miki Takao Sato

çou que as tecnologias de comunicação e das mulheres no mercado de trabalho im-


de transporte foram fundamentais para a pulsionou os fenômenos migratórios, já que
facilitação dessa mobilidade. A autora colo- as mulheres apresentam maior necessidade
ca também que as mulheres da contempo- e responsabilidade no orçamento doméstico
raneidade passaram a ter maior qualificação e têm mais autonomia no seio familiar.
educacional e profissional, contando tam- Assim, nos processos de mobilidade, há
bém com legislações de divórcio mais esta- um rearranjo da composição familiar, no
belecidas, além de já encontrarem uma dis- qual a mulher que migra amplia seu espa-
cussão política mais fortalecida sobre eman- ço de decisões na família e, portanto, am-
cipação de gênero e direitos das mulheres. plia seu poder de decisão e autonomia. A
Entretanto, essas migrantes ainda encon- migração implica a socialização de gênero,
tram muitas resistências e desafios, baixa e as mulheres, ao migrarem e se inserirem
alocação nos postos de trabalho (trabalhos no mercado de trabalho, adquirem papel de
domésticos e de cuidados), discriminação protagonistas nesse processo, na tomada
racial e de gênero (ASSIS, 2007). A autora de decisões da família e no papel de prove-
coloca a importância das redes sociais nes- doras do sustento familiar. A partir disso,
ses processos, formadas por relações de pa- há uma reconfiguração das subjetividades
rentesco, amizades, ajuda mútua, gênero e e das relações de poder, novos papéis e
nacionalidade, e essas redes mostram-se emancipação.
fundamentais para o sucesso do projeto mi- A discussão e a abordagem sobre a di-
gratório, individual e familiar. mensão do gênero na migração feminina na
A partir do início dos anos 1990, a femini- literatura acadêmica foi sofrendo mudanças
zação dos fluxos migratórios acentuou-se de e ganhando novos contornos com a visibili-
forma significativa. Se durante muito tempo dade do fenômeno. Antes era retratada como
a migração das mulheres efetuou-se no qua- migração passiva, na qual a mulher apenas
dro do reagrupamento familiar, atualmente acompanhava a família e era obrigada a mi-
tem como objetivo o trabalho, na sua maio- grar por questões financeiras e políticas.
ria e à semelhança da migração dos homens. Para além do debate sobre violação de di-
Muitos autores atentam à importância do reitos humanos, xenofobia e desvalorização,
aporte financeiro da geração de renda dessas o que nos interessa é transpor essa discus-
mulheres às suas famílias e aos seus países são e propor uma perspectiva do protago-
de origem e ao fato de que, em muitos casos, nismo feminino na mobilidade humana. A
são as mulheres que encabeçam e iniciam o mulher cria não só projetos de vida pessoais
movimento migratório familiar. e familiares, novas possibilidades econômi-
O aumento percentual da migração fe- cas e sociais, mas também novas configura-
minina em escala mundial tem a ver com a ções com o local de destino. Provoca uma
maior participação das mulheres nas esferas interlocução cultural, dialoga com o cenário
públicas (no mercado de trabalho e na ne- em que está inserida, mobiliza outros atores
cessidade de reforço do orçamento domésti- sociais e recria novas identidades e possibi-
co familiar) e também com o aumento da de- lidades.
manda de trabalho para serviços domésticos Sobre identidade, Carole Davies (2010)
e de cuidados (NOVAES, 2014). Marina No- discute a questão no contexto de migração e
vaes (2014) reforça que a maior participação diáspora do Caribe, e como essa identidade

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017 123


Percursos etnográficos em narrativas com mulheres africanas em São Paulo: atividades como possibilidades econômicas

vai se reconfigurando nos processos migra- no mercado de trabalho quando as migran-


tórios, sejam estes forçados ou voluntários, tes assumem novos papéis e outros tipos de
na literatura caribenha. Assim, as autoras trabalho diferentes dos exercidos em seus
estudadas, ao retratarem a questão migrató- países de origem.
ria, trazem não somente questões de confli- A migração feminina é entendida por
tos do não pertencimento e a relação entre Diniz (2009) como investimento material,
migração nos contextos coloniais e pós-co- cultural, social e de relações de interesse,
loniais, mas também assumem posturas crí- em que as condições concretas da migração
ticas de resistência ao racismo e de afirma- (trabalho, moradia, informações, recursos)
ção da identidade. são conseguidas através de acionamentos
No Brasil, só a partir dos anos 2000 o gê- das redes sociais. Mantendo a bagagem cul-
nero aparece como categoria analítica. Thais tural e étnica, enriquecem sua cultura origi-
França (2012) reforça que essa discussão é nal e com a do país de acolhida e se instru-
feita muitas vezes de forma superficial, e o mentalizam para obter o reconhecimento e
debate acadêmico deve ir além da compa- integração necessários para o objetivo mi-
ração dos dados quantitativos ou diferen- gratório (NOVAES, 2014).
ças entre homens e mulheres na migração. O que interessa no presente trabalho, a
Coloca que é essencial identificar e analisar partir dessas reflexões, é discutir o papel da
as diferenças e assimetrias existentes nas mulher no seu projeto migratório e como
relações entre os gêneros e entre grupos de este processo é agenciador de novas expe-
mulheres e identificar os diferentes meca- riências, oportunidades econômicas, so-
nismos de dominação nesses processos. ciais, de reconhecimento e protagonismo.
A autora também ressalta que ainda As mulheres migrantes constroem lugares
são dominantes, nas pesquisas acadêmi- de emancipação e destaque, e é a partir des-
cas, trabalhos que reforçam estereótipos sa perspectiva que este trabalho se propõe
das migrantes com baixa qualificação pro- ao diálogo. Fazem-se necessários a com-
fissional, que se dirigem aos países desen- preensão crítica das experiências migrató-
volvidos e em busca de melhores condições rias e um olhar atento a essa multiplicidade
econômicas. e a essas novas configurações que se estabe-
Na migração feminina, há um processo lecem a partir das suas vivências cotidianas
constante de ressignificação das identidades, e de trabalho. As quatro interlocutoras aqui
dos valores culturais e das relações sociais. apresentadas construíram percursos e traje-
A partir do novo lugar e da nova cultura com tórias plurais, assim como também a cons-
que se deparam, acabam reelaborando, tam-
trução das narrativas e também resultaram
bém, suas identidades, tecendo novas con-
em possibilidades de análises e discussões
figurações e novos pertencimentos. Unda
múltiplas.
e Alvarado (2012) afirmam que o processo
migratório feminino ocasiona autonomia
econômica e reconhecimento das mulheres
Melanito: persistência e
enquanto trabalhadoras e portadoras de sa- empreendimentos
beres, constituindo novas configurações e Melanito, camaronesa, reside no Brasil des-
novos papéis sociais. As autoras enfatizam, de 2003. É chef de cozinha e proprietária de
ainda, que se estabelecem novas dinâmicas restaurante na região central da cidade de

124 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017


Miki Takao Sato

São Paulo. Tem realizado trabalho impor- Ao ouvir Melanito relatar passagens da sua
tante de divulgação da culinária e da cultura história, de sua vinda à cidade, da abertura
africanas através dos veículos de comunica- do restaurante, sua fala vem carregada de
ção e de participação em feiras culturais. muita nostalgia, exprime sentimentos de
O Biyou’z é um restaurante especializado esforço, persistência e lembranças de sua
em cozinha camaronesa, além de oferecer trajetória. Fala sempre de momentos de
pratos de outras regiões africanas, localiza- grandes dificuldades, desafios e incertezas
do no centro da cidade, entre os bairros da para conseguir suas conquistas.
República e Campos Elíseos. Há nas ime- Inicialmente frequentado quase que ex-
diações do restaurante grande circulação de clusivamente por africanos, a virada na vida
africanos, turistas e imigrantes de diversas econômica de Melanito veio com a Copa do
origens e a região configura-se atualmente Mundo ocorrida na África do Sul, em 2010
como referência no cenário gastronômico (lembrando que o restaurante havia sido
de São Paulo. Além de restaurantes tradi- aberto em 2008). Nessa época, o tema da
cionais, nos últimos anos vários outros sur- África estava em destaque nos grandes veí-
giram como os especializados em culinária culos de comunicação devido ao evento es-
peruana, árabe e colombiana, já sendo noti- portivo mundial. O Biyou’z recebeu desta-
ciados em diversos veículos de comunicação que na mídia e acabou por se tornar referên-
da cidade. cia no cenário gastronômico atual da cidade,
Melanito trabalhava em banco no seu marcado por inovações constantes.
país e veio para Brasília para passear, gos- Embora o restaurante ainda seja fre-
tou da cidade e ficou na cidade por cerca de quentado por muitos africanos e tenha so-
quatro anos. Na época, trabalhava como ca- mente funcionários africanos, Melanito pa-
belereira, começou a ajudar no salão de uma rece estabelecer relações importantes com
amiga conterrânea e depois passou a ter outros universos que não os da rede de re-
suas próprias clientes, formadas basicamen- lações referentes à migração: amiga brasi-
te por familiares de diplomatas do Senegal, leira, taxista, fornecedores e compradores,
do Congo, da Nigéria e outros países, e então clientes, vizinhos, em sua grande parte são
passou a atendê-las pessoalmente, em suas brasileiros. Pensando na rede de relações de
residências. interdependência de Elias (1994), Melanito,
Veio então para São Paulo durante suas ao longo de sua trajetória, estabeleceu redes
férias, para passear, conta que gostou mui- múltiplas de extrema importância para seu
to da cidade e que constatou que a percep- projeto de vida, e foi sendo reconhecida e
ção sobre o negro e sobre o continente afri- valorizada por esses laços.
cano era bastante equivocada. Além disso, Além disso, relata que seu cotidiano gira
percebeu também que aqui na cidade ha- em torno do restaurante e seus desdobra-
via uma variedade de restaurantes: italia- mentos. Pouco circula em outros espaços
nos, franceses, japoneses, exceto africanos. que não sejam em atividades voltadas ao
Quis abrir um negócio e ainda criar inicia- trabalho. Tenta frequentar sua igreja re-
tivas em que pudesse falar da beleza e das gularmente e sempre está no restaurante.
culturas africanas. Voltou para Brasília, Como este funciona todos os dias da sema-
trabalhou e reuniu dinheiro suficiente para na initerruptamente e ela mora ao lado, não
sua vinda definitiva para a capital paulista. consegue tirar um só dia de folga ou deixar

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017 125


Percursos etnográficos em narrativas com mulheres africanas em São Paulo: atividades como possibilidades econômicas

de ir ao estabelecimento diariamente; mas Mariama: interfaces culturais


reconhece que é lá que encontra amigos e
pessoas com quem tem mais contato.
e artísticas
A culinária, aqui, constitui elemento Mariama é da Guiné, está desde 2008 no
imprescindível para a construção das iden- país. Trabalha com dança, percussão e can-
tidades culturais dos sujeitos. Para Maciel to, atividades culturais e educacionais. Resi-
(2005), torna-se símbolo da identidade rei- de com o marido e recentemente trouxe sua
vindicada pelos grupos sociais em um pro- filha da Guiné para o Brasil. Tem apresenta-
cesso dinâmico com constantes mudanças do um trabalho de interlocução cultural da
e reconfigurações. A comida é importante dança e da música africanas com a brasilei-
fator na formação de vínculos e das trocas, ra. Também já trabalhou como cabelereira
gera afetos e memórias, recria lembranças aqui em São Paulo. Dá aulas de “dança afri-
e constrói histórias. Além disso, na pers- cana” no Centro Cultural da Juventude, na
pectiva da vida de Melanito, sua história é Fábrica de Cultura Jardim São Luís, na Ação
marcada pela atividade da culinária. Através Educativa e aulas de percussão para grupo
de um conhecimento prévio e de uma expe- Ilú Oba de Min. Além disso, também faz al-
riência vivenciada a partir do seu contexto gumas apresentações artísticas e ministra
cultural e familiar, a culinária aqui se trans- oficinas culturais com a temática da África e
forma em sentidos diversos: agenciamento suas atividades artísticas.
de oportunidades econômicas, valorização Em quase todos os momentos do campo,
da culinária africana, intermediação das seu marido nos acompanhou, seja nas con-
trocas sociais estabelecidas por Melanito e versas, seja aulas e outros momentos com-
sua rede. Masano (2011), em seu trabalho de partilhados. Sua participação conferiu uma
mestrado, faz um resgate histórico da imi- dinâmica muito diferente das outras inter-
gração para São Paulo e como esse fenôme- locutoras. Assim, cabe entender que Maria-
no exerceu influência na diversidade da culi- ma também fez a escolha de inclui-lo nessa
nária e nos hábitos alimentares ao longo do relação estabelecida no campo da pesquisa.
processo. Através de um breve relato histó- Portanto, ele também poderia e deveria fa-
rico e a partir do caráter multicultural, mos- zer parte da colaboração, compondo uma
tra a constituição e a formação dos restau- interlocução com as cenas compartilhadas
rantes na cidade e a transformação de São com Mariama. O respeito e a ética na pes-
Paulo em polo gastronômico de referência. quisa de campo também dizem respeito às
Assim, encontramos a enorme variedade de escolhas e dinâmicas do interlocutor, sendo
opções gastronômicas e turísticas da cida- necessário dar novos olhares e significados
de, a revitalização do seu centro histórico, a para o campo que se constitui para o pesqui-
valorização e a difusão das iniciativas cultu- sador. O campo não só permite como exige
rais relacionadas aos imigrantes contempo- também múltiplos cenários e configurações,
râneos em São Paulo. E assim, ocorre uma onde estar atento às essas possibilidades
“projetualidade” em que Melanito concebe enrique a experiência etnográfica e abre-se
a ideia do Biyou’z a partir desse cenário. O espaço para novas apreensões e encontros.
restaurante, então, se configura para além Mariama foi bailarina da companhia gui-
de oportunidade econômica, também como neana Les Ballets Africains e sempre tra-
projeto de vida. balhou com linguagens artísticas (dança,

126 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017


Miki Takao Sato

canto, percussão) e sua interface com a edu- e impossibilidade na validação de diploma.


cação. Conta que veio ao Brasil a convite de Ambos evidenciam de forma mais clara os
um grande amigo e de uma companhia de entraves comumente enfrentados pelos mi-
danças com projetos ligados à escola france- grantes diante a política migratória brasilei-
sa Liceu Pasteur. Relata que já visitara ou- ra e as dificuldades na inserção social, cultu-
tros países com sua companhia, mas nunca ral e econômica no país.
havia pensado em morar fora de seu país na- Mariama sempre está inserida em algu-
tal até surgir a oportunidade de vir para cá. ma atividade, oficina e aula ou em projetos
Ao chegar a São Paulo, Mariama fre- de apresentações artísticas. Conta que espo-
quentou o curso de português do Serviço radicamente também trabalha como cabele-
Social do Comércio (SESC) Carmo, unidade reira e que sua maior circulação social é en-
situada no centro da cidade que oferece au- tre a própria comunidade africana. Embora
las de idioma a refugiados e solicitantes de mantenha várias relações com outras pes-
refúgio, em projeto de convênio com a Cá- soas por conta do trabalho, vê-se que ainda
ritas Arquidiocesana e o Alto Comissariado é muito vinculada ao cenário dos migrantes
das Nações Unidas para Refugiados. Nessa e dos africanos, preservando relações, cos-
época também Mariama chegou a frequen- tumes, modos de vestir, língua e comida.
tar os serviços oferecidos pela Missão Paz e Mariama convidou-me para acompanhá
a partir de lá, descobriram que era artista e -la em um evento na Galeria Olido. Trata-
foi convidada a fazer uma oficina de dança. se de uma oficina cultural, dentro de um
É interessante observar que, no início do seu programa de formação para jovens ligado à
processo de chegada a São Paulo, Mariama Secretaria Municipal de Educação. Na pri-
recorreu a alguns serviços de referência no meira parte houve uma apresentação de
apoio aos imigrantes. Para algumas mulhe- dança e do trabalho de Mariama, apresenta-
res, esses circuitos configuram-se essenciais ção sobre conceitos gerais sobre a temática
para organização inicial da adaptação e in- África e uma apresentação sobre a presença
serção no novo país. São redes e recursos dos africanos na cidade de São Paulo, focan-
dos quais muitos se utilizam para, a partir do a reflexão sobre questões de preconceito,
daí, traçar novos projetos e engatar novos xenofobia e a importância da diversidade
caminhos, como fez Mariama. cultural da migração na capital paulista. A
Mariama também reforça a necessidade segunda parte do trabalho consiste na ofi-
de ajuda financeira à família que ficou na cina de dança africana e canto e uma roda
Guiné, e que há um imaginário dos familia- de conversa com os alunos sobre literatura
res de que quem está no Brasil está ganhan- africana e tradição oral. Essa oficina teve a
do dinheiro e fazendo sucesso e relata mui- participação dos alunos de Mariama do cur-
tas dificuldades de adaptação ao chegar ao so de dança africana realizado na Ação Edu-
país, estranhamento da cidade de São Paulo cativa. Eles participam da discussão, apre-
e também diversas situações de preconcei- sentação e organização do trabalho. Perce-
to e xenofobia. Seu marido também é bas- bo que compõem redes e laços importantes
tante categórico ao refletir sobre a situação para Mariama e seu marido, na medida em
do negro e do africano na cidade. Pontua a que agenciam trocas, relações e contatos de
dificuldade em conseguir trabalho, a desva- trabalho, fortalecem e dão visibilidade ao
lorização do seu conhecimento acadêmico trabalho. Além disso, inserem as ações do

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017 127


Percursos etnográficos em narrativas com mulheres africanas em São Paulo: atividades como possibilidades econômicas

grupo na discussão do movimento de valo- ganhado destaque no cenário musical con-


rização da cultura afro e africana nos espa- temporâneo em São Paulo.
ços educacionais e culturais. Configuram-se Lenna estudou piano erudito por oito
como pontos de apoio essenciais para o for- anos quando criança, depois começou a se
talecimento de redes de interdependência apresentar em bares, junto a grupos de mú-
(ELIAS, 1994). sica. Chegou a cursar faculdade de Ciências
Além disso, Mariama e seus parceiros Biológicas e refere que, nessa época, come-
de trabalho, através dessas oficinas e ativi- çou paralelamente a se envolver com o uni-
dades, estabelecem diálogo importante na verso da música; entrou para uma banda
interface da cultura e educação. Inserem Nkhuvu, muito conhecida em Moçambique,
a temática da cultura africana, da tradição e a partir daí decidiu se dedicar exclusiva-
oral, dança, direitos humanos e tantos ou- mente à música, desenvolvendo também
tros temas em espaços plurais, fazendo uma seu trabalho solo de compositora, arranja-
interlocução com a Lei nº 10.639 (BRASIL, dora, vocalista e improvisadora.
2003), que inclui a temática da “História e Sobre seu processo de migração para
Cultura Afro-Brasileira” no currículo escolar o Brasil, conta que, em 2012, estava num
em todo o país. momento da vida pessoal em que já queria
Fabião (2011) faz um estudo sobre aulas muito sair de Maputo, sentia a necessidade
de danças africanas ministradas em Portu- de alguma mudança na sua vida. Fez con-
gal e suas propostas pedagógicas, na pers- tato com conhecidos no Brasil, e um amigo
pectiva da interculturalidade como diálogo ofereceu-se para custear sua passagem para
e transformação mútua. A pesquisa reforça São Paulo. Conseguiu agendar previamen-
a importância da dança como ferramenta de te algumas apresentações artísticas aqui e
trocas interculturais, dissolução de práticas chegou a São Paulo no final de 2012. Desde
coloniais e pós-coloniais, ampliação de ex- então foi inserindo-se nos espaços e procu-
periências, e também como uma ação eman- rando oportunidades de trabalho, sempre
cipatória e de autonomia. na sua área de música, com apresentações,
Mariama é valorizada pelas atividades shows e oficinas culturais e artísticas. Atual-
como professora, por seu conhecimento e mente trabalha com dois grupos musicais,
trabalho artístico, fortalecendo simbolica- dá aulas de canto e oficinas culturais sobre
jogos e brincadeiras infantis, além de traba-
mente, ao mesmo tempo, o conjunto das
lho com pesquisas em todas essas interfaces
sociedades e das culturas africanas nesses
artísticas. É categórica em reforçar a in-
espaços.
fluência da cultura brasileira nesse processo
e conta que a partir disso, começou a inte-
Lenna: buscas e ressar-se em estudar mais profundamente a
interculturalidade música brasileira e suas conexões artísticas.
Lenna, moçambicana, reside há cerca de É bastante comunicativa e expressiva,
quatro anos em São Paulo. É cantora lírica, e nossas conversas também acabam sendo
desenvolve trabalhos de música vocal, per- um exercício de autorreflexão. Dantas et al.
cussão e jazz. Também oferece oficinas de (2010) discutem as dimensões subjetivas
vivências e brincadeiras moçambicanas. Re- e identitárias nos contextos da migração,
centemente, gravou um CD no Brasil e tem onde “a identidade não existe senão contex-

128 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017


Miki Takao Sato

tualizada, como um processo de construção pensado em prosseguir daqui para frente,


e pressupõe o reconhecimento da alteridade o quanto foi importante para entender seu
para a sua afirmação” (DANTAS et al., 2010, processo de migração, e o reconhecimento
p. 47). Assim, discutem as negociações e e importância de pessoas que foram funda-
fortalecimentos necessários aos processos mentais nessa história. Explica cada música,
interculturais, permeados de angústias, in- significado e concepção, momento da vida,
certezas, desejos e motivações. Lenna afir- onde um amigo ajudou na sua chegada, sua
ma que somente após apropriar-se desse inserção nos grupos com quais toca em São
processo, de vivenciar a cidade e o espaço Paulo, questões e memórias afetivas. Além
urbano, de experimentar relações diversas disso, fez questão de escolher determinados
com os espaços, pessoas, trabalhos, que sen- parceiros e amigos, além de alguns artistas
tiu necessidade de retomar essas suas raízes. moçambicanos para parceria, para valorizar
Lenna sempre repete uma fala interes- a cultura do seu país e reafirmar sua identi-
sante sobre sua vinda ao Brasil também dade. Era evidente uma necessidade de falar
como um processo de amadurecimento, e criar reflexões sobre esse produto, parece
autoconhecimento e percepção da sua vida também querer falar para si, dar sentido à
pessoal, e traz de forma bastante significa- sua fala e ao processo, à sua vida e ao que
tiva a sua necessidade de vivenciar múlti- tem vivenciado e revisitar suas memórias e
plas experiências: longas caminhadas pela trajetória.
cidade, experimentar comidas diferentes, A concretização do álbum foi um mo-
batalhar pela obtenção da sua documenta- mento crucial na vida de Lenna, permeado
ção (em especial o Cadastro de Pessoa Física por muitas dificuldades, desafios e incerte-
— CPF), conquistar espaços de trabalho, co- zas. Conseguir orquestrar as parcerias, dar
nhecer novos artistas, organizar suas ativi- conta de todas as demandas e desejos que
dades cotidianas para dedicar-se a estudar. queria incluir nas músicas, organizar finan-
Assim, esses desafios são permeados por ceiramente as pendências, revisitar memó-
uma relação dialógica e intercultural, onde rias e trabalhos não finalizados foram pro-
há uma necessidade de reconhecer-se num cessos rememorados durante nossos encon-
cenário novo, criar novas relações, decifrar tros. Entretanto, o fechamento desse ciclo
códigos culturais diversos, vivenciar sua co- também trouxe novas oportunidades e par-
tidianidade em novos territórios, dialogar
cerias e novos horizontes.
com suas identidades, sempre em processo
em constante movimento e mutação.
Apoliana: dimensões estéticas
Na época do trabalho de campo, havia
acabado de lançar o disco, trata-se do seu e religiosas
primeiro trabalho autoral, produzido em Apoliana, congolesa, mora no Brasil há cer-
São Paulo, com parcerias de diversos artis- ca de seis anos. É proprietária de um salão
tas. Explicou-me todo o processo de produ- de beleza na Galeria Presidente. Veio para
ção do álbum, dificuldades financeiras e téc- cursar uma graduação, não se adaptou ao
nicas, concepção, idealização, planejamen- curso e desde então permaneceu no Brasil
to, escolha de repertório, parceiros e nome. por conta do trabalho do marido. Ambos
Mostra o quanto esse trabalho foi um marco têm papel importante no trabalho da igreja
nesse momento da sua vida atual e como tem da qual fazem parte.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017 129


Percursos etnográficos em narrativas com mulheres africanas em São Paulo: atividades como possibilidades econômicas

Uma das minhas primeiras incursões é abordada por outras mulheres. Sempre
pelo trabalho de campo foi no centro da ci- está atenta ao movimento da galeria, ou so-
dade de São Paulo, local que historicamente mos interrompidas por olhares e conversas
sempre comportou múltiplas configurações curiosas.
culturais, econômicas e sociais. Caminhar Apoliana é do Congo, está há quase seis
pelo centro é deparar-se com grandes edi- anos no Brasil e há cerca de cinco trabalha
fícios, construções históricas, pontos turís- na Galeria. Cursou Pedagogia na sua cidade
ticos, intenso comércio de rua, e também natal e então conseguiu uma transferência
pessoas apressadas, executivos, turistas, am- para cursar Farmácia na Universidade Fede-
bulantes, pessoas e crianças em situação de ral do Pará (UFP), em Belém. Ficou alguns
rua, migrantes. As imediações da República, meses por lá, mas não se adaptou e veio en-
concentra vários pedaços, manchas e circui- tão para São Paulo. Pretendia continuar os
tos (Magnani, 2008) por onde circulam as estudos aqui, acabou não conseguindo e en-
mulheres africanas: pequenas galerias, lojas tão começou a trabalhar de cabelereira por
telefônicas, espaços religiosos, restaurantes, uma necessidade econômica. O processo de
salões de beleza, comércios de rua. É nessa migração também ocorreu paralelamente à
interlocução que se encontra a Galeria Pre- vinda para o Brasil do seu marido, que man-
sidente, talvez um dos principais locais de tém uma função religiosa importante.
referência da comunidade africana em São Nunca havia trabalhado com isso, e a vi-
Paulo. Logo no hall da entrada, há várias mu- vência que tinha com a questão da estética
lheres conversando ou tentando atrair clien- do cabelo eram experiências pessoais e de
tes para os salões, e também muitos homens família. Assim como Melanito na culinária
africanos, também conversando, esperan- e o cabelo de Apoliana, as referências cultu-
do outros chegarem, lojistas nas pausas do rais das suas atividades são também da co-
trabalho. Há salões de beleza, comércio de tidianidade, das relações familiares e cultu-
roupas típicas, restaurantes, bares, lojas de rais africanas. Desde então tem um salão de
produtos de beleza especializados em pen- beleza na Galeria Presidente, onde atende
teados afro, tranças, apliques, lojas de músi- turistas, brasileiros, africanos, homens, mu-
ca e de artesanato e temáticas hippies. Seus lheres e crianças, funcionando de segunda a
frequentadores são quase que em sua maio- sábado, em tempo integral.
ria africanos: homens, mulheres e crianças. Aqui, a migração assume diversas di-
As pessoas não fazem uso apenas para o co- mensões enquanto projeto de vida. Estudos,
mércio e trabalho, mas agenciam e articulam reuniões familiares e oportunidades de tra-
reuniões, vão para encontrar-se e conversar balho, a partir dos rearranjos que vão esta-
com amigos, para comer, resolver problemas belecendo-se na dinâmica da sua inserção
e pendências, buscar pontos de apoio. no país. A necessidade econômica é muito
A dinâmica da relação com Apoliana é intensa, mas Apoliana também consegue
um desafio. Aos poucos, estabelecemos uma dialogar com essa demanda a partir das
dinâmica onde quase todos nossos encon- necessidades e oportunidades do mercado,
tros ocorrem no saguão da galeria. Apoliana pois em São Paulo e no contexto da Galeria
então me conta um pouco de sua história, Presidente há grande demanda e visibilida-
mas a todo momento está atenta à movi- de quanto à estética afro. Nilma Lino Gomes
mentação da rua, ao fluxo das pessoas, ou (2003), em sua pesquisa etnográfica sobre

130 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017


Miki Takao Sato

os salões étnicos de Belo Horizonte, discute Assim, pensando na dimensão da mi-


a construção e o fortalecimento da identida- gração, o salão de beleza de Apoliana, jun-
de negra a partir do corpo e do cabelo, não tamente com os demais da Galeria, delimi-
apenas como aspectos estéticos, mas como tam um lugar importante no cenário urba-
elementos identitários. no da cidade de São Paulo, seja pela grande
Era curioso notar que sempre encontra- quantidade, pela visibilidade turística, pelas
va Apoliana produzida. Cada semana estava oportunidades de trabalho e renda e princi-
com um cabelo, tranças, cores ou pentea- palmente pela importância para a comuni-
dos diferentes, e, em algumas ocasiões com dade africana. Também no comércio de rua
roupas características (vestidos com tecidos da República encontramos muitos tecidos,
africanos). Ela, como as outras interlocutoras roupas, adornos e turbantes com temática
e as mulheres da Galeria, estava sempre em africana. As mulheres que trabalham nesses
destaque por sua beleza e cuidado estético. locais, ao venderem e exporem seus produ-
Gomes (2003), em outro trabalho, faz tos, muitas vezes ensinam a fazer os tur-
um breve histórico da importância do cabelo bantes e os penteados, e explicam sobre os
nas sociedades africanas, onde a questão do tecidos. As mulheres africanas estabelecem
cuidado e estética sempre foram presentes, um diálogo de reconhecimento e valorização
e, muitas vezes, era sinalizador de estado ci- dos seus elementos culturais, onde a estética
vil, origem geográfica, religião, posição so- africana aqui é entendida como identidade
cial. A partir de então, a autora coloca tam- cultural.
bém que o cabelo como ícone identitário foi Seu marido é pastor de uma igreja evan-
recriado e ressignificado aqui no Brasil pelos gélica no centro da cidade. Esteve envolvido
negros, e, embora tenha sofrido influências em trabalhos da Igreja por cerca de cinco
sociais, econômicas, culturais e mudanças anos na Índia, Apoliana veio primeiro ao
no decorrer da história, o cabelo ainda per- Brasil e ele veio então em seguida. Mos-
manece, aqui, carregado de africanidade e tra-me fotos e vídeos dos cultos, marcados
instrumento de resistência e identidade. em sua grande maioria pela presença de
Na Galeria Presidente, local que histori- africanos, embora haja alguns brasileiros e
camente sempre foi referência e pedaço fre- outras pessoas que são convidadas a conhe-
quentado pelos jovens negros (MAGNANI, cer a igreja. Fala com muito entusiasmo da
2008), Apoliana e as outras mulheres africa- religião, explica-me alguns princípios. Nas
nas, através dos salões de beleza, dialogam nossas conversas, seus discursos sempre são
com suas identidades africanas, mantendo carregados de religiosidade. Conta também
elementos de continuidade e fortalecendo que há inúmeras atividades relacionadas à
suas redes de relações na comunidade mi- igreja e que procura participar de todas (vigí-
grante africana. Por outro lado, também lias, reuniões de mulheres). Apoliana parece
fazem uma interlocução importante com a envolver-se ativamente nessas questões. Ao
sociedade brasileira, na medida em que ho- final do dia, convida-me para conhecer o es-
mens e mulheres brasileiras também se utili- paço em um domingo, dia de culto principal.
zam dos serviços da Galeria, e cada vez mais O cotidiano de Apoliana é bastante permea-
há uma afirmação da identidade negra, da do por essas atividades religiosas.
valorização e procura crescente de uma es- Debora Galvani (2015), ao estudar sobre
tética que foge à hegemonia predominante. os circuitos religiosos no contexto das re-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017 131


Percursos etnográficos em narrativas com mulheres africanas em São Paulo: atividades como possibilidades econômicas

des de interdependência da população em gados de grandes dificuldades, desafios e


situação de rua, afirma que “interessa essa tensões. A dificuldade da comunicação na
relação entre a experiência religiosa e o que língua portuguesa, entraves burocráticos
desta transborda para o cotidiano, já que nos processos migratórios, necessidades fi-
ninguém vive a totalidade da sua vida em nanceiras, situações de xenofobia também
rituais religiosos” (GALVANI, 2015, p. 23). são aspectos vivenciados constantemente.
O processo de vinda de Apoliana ao Brasil E é também dentro da sua cotidianidade
ocorreu também anteriormente e somente que vão encontrando recursos, acionando
após sua vinda é que seu marido recebeu a redes e criando estratégias para enfrenta-
função de vir para São Paulo para coordenar mento dos desafios e para produzirem no-
o espaço religioso. vas inserções e possibilidades (UNDA; AL-
Embora Apoliana tenha vindo para cur- VARADO, 2012).
sar a graduação e não tenha se adaptado Retomando uma questão já abordada no
ao curso, a permanência no país também início do trabalho sobre as buscas e motiva-
se deve ao papel central da religiosidade na ções dessas mulheres ao decidirem migrar
vida dos dois, já que tanto ela quanto seu para São Paulo. Novamente citando Mbem-
marido têm funções importantes nesse con- be (2010), há uma mobilização do imagi-
texto. Configura-se como uma dimensão de nário e do que é comumente veiculado nas
extrema importância para Apoliana, per- grandes mídias, de associar a migração afri-
meando contextos familiares, relações so- cana e também a temática da África com a
ciais, redes de apoio — enfim, perpassando pobreza, miséria e atraso. A partir das suas
sua vida cotidiana. atividades múltiplas, as mulheres africanas
Muias vezes, Apoliana parece desempe- conseguem inscrever-se nos processos mi-
nhar um papel importante nesses espaços gratórios de forma protagonista e emanci-
religiosos e também no cotidiano da galeria. patória (UNDA; ALVARADO, 2012). As mu-
Durante nossos encontros, era solicitada em lheres africanas conseguem ir além, rom-
diversos momentos para conversas pelas de- pendo essa percepção redutora e estereoti-
mais. A partir da singularidade e trajetória pada, revelam-se em grande capacidade de
de Apoliana e de cada uma das mulheres da agenciamento em ambientes e situações de
Galeria Presidente, a dinâmica das trocas dificuldade, em territórios estrangeiros e
sociais e das redes de sociabilidade estabele- desconhecidos.
cidas ganham uma potência na vida coletiva, Em suas bagagens, as interlocutoras tra-
permeada pelas dimensões econômicas, re- zem conhecimentos anteriores, vivências
ligiosas, culturais e tantas outras. familiares e aqui transformam e reelaboram
esses fazeres. Atividades aqui adquirem sig-
Atividades e o fazer cotidiano nificados múltiplos, de expressões identi-
desenhando relações e tárias (BARROS, 2004). Quando Melanito
traz sua experiência familiar com a culiná-
possibilidades econômicas ria, encontra aqui ressonância com uma de-
A escuta das histórias, narrativas e expe- manda de uma variedade gastronômica na
riências das interlocutoras revela a capa- cidade e um potencial para esse tipo de ati-
cidade de agenciamento dessas mulheres vidade. Não só consegue efetivar seus obje-
em ambientes novos, muitas vezes carre- tivos como abre novos caminhos para outras

132 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017


Miki Takao Sato

pessoas e dá visibilidade a esse projeto no ce- impulsionam e protagonizam as atividades


nário gastronômico da cidade. Mariama uti- e projetos.
liza-se da dança africana para interlocução Os processos de migração das interlo-
com elementos da cultura afrodescendente cutoras são impulsionadores dessas novas
preservando, contudo, a identidade africana identidades e possibilidades. Embora não
nos diversos espaços (aulas, debates e apre- sejam os únicos mobilizadores, elas só pu-
sentações). O cotidiano é constantemente deram reconstruir suas trajetórias a partir
ressignificado através das suas experiências dos percursos de mobilidade, saindo dos
anteriores e também novas oportunidades seus países e vindo para a cidade de São
que vão surgindo na trajetória de cada uma. Paulo, na medida em que encontraram aqui
Hannah Arendt, ao falar do mercado de elementos, oportunidades e demandas para
trocas das atividades humanas, afirmou que reelaborarem seus fazeres e suas histórias.
“o valor é aquela qualidade humana que ne- Cada uma das interlocutoras apresen-
nhuma coisa pode ter na privatividade, mas tou histórias, motivos e percursos total-
que adquire automaticamente assim que mente distintos até chegarem a São Paulo.
aparece em público” (ARENDT, 2014, p. Uma vez aqui, também traçaram diferentes
204). Assim, são reconhecidas na medida em trajetórias até estabelecerem-se. Algumas
que buscam diálogos possíveis e criativos, contaram com redes de apoio previamente
criam soluções novas e demandas diversas, contatadas antes de virem, outras conhece-
reinventam modos plurais de inscreverem- ram seus companheiros aqui. Em relação
se no mundo. Culinária, música, dança, es- aos serviços de referência para a população
tética são reelaboradas pelas interlocutoras, migrante em São Paulo, apenas Mariama
assumem valor e papel importantes de des- recorreu a alguns desses, como já foi relata-
mitificar a ideia de que essas mulheres vêm do, sendo a única da presente pesquisa que
para São Paulo movidas apenas pela falta ou vivenciou a dinâmica de uma rede de assis-
ausência. Além disso, as interlocutoras aca- tência à população migrante. Entretanto, to-
baram abrindo lugares e agenciando novas das, de alguma maneira, acionaram redes de
possibilidades para outras mulheres africa- apoio em todas as etapas dos processos de
nas na cidade, onde suas ações fortalecem- mobilidade e também de inserção na socie-
se na medida em que vão ganhando espaço dade brasileira (UNDA; ALVARADO, 2012).
e notoriedade. Mariama e Apoliana contaram principal-
Sobre a questão de gênero, as interlocu- mente com a rede de africanos residentes na
toras colocam-se num lugar de emancipação cidade, enquanto que Lenna teve pouco des-
e protagonismo nas suas trajetórias e rela- se contato e acionou conhecidos brasileiros.
ções estabelecidas aqui. Soda, por exemplo, Além disso, a cidade de São Paulo tam-
vem de uma estrutura familiar e cultural bém vai reconfigurando-se a partir da inser-
onde a figura masculina tem grande impor- ção dessas mulheres nos diversos cenários.
tância, mas aqui adquire grande visibili- Cenário, aqui, sempre numa relação dialó-
dade por seu trabalho, na qual seu marido gica com seus atores, inseridos nas práticas
não aparece em nenhum momento nesses sociais cotidianas (MAGNANI, 2008). O
espaços. Melanito e Mariama desenvolvem restaurante de Melanito insere-se na cena
relações de parceria de trabalho com seus gastronômica e na revitalização do centro
respectivos companheiros, mas são elas que histórico, Lenna tem ganhado destaque no

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017 133


Percursos etnográficos em narrativas com mulheres africanas em São Paulo: atividades como possibilidades econômicas

circuito musical contemporâneo. O que as e de novas possibilidades, emancipação e


interlocutoras estão fazendo e trazendo para reconhecimento.
São Paulo interfere na cena política, econô- Embora a pesquisa tenha seu foco no
mica e cultural de São Paulo. A Galeria Pre- protagonismo e no empoderamento das
sidente, a calçada da Praça da República, a migrantes, é preciso também atentar para
cena paulistana musical. A cidade adquire contradições intrínsecas aos fenômenos mi-
novos desenhos, é permeada por novas con- gratórios; já que sabemos que nem sempre
figurações e interculturalidades, transfor- isso ocorre dessa maneira. Destacaremos
ma-se e se renova. dois pontos. O primeiro, conforme já rela-
A relação de Lenna com a música, de tado em capítulos anteriores, é que as mu-
Mariama com a dança, Melanito com a culi- lheres muitas vezes ficam em situação de
nária, Apoliana com a estética corporal (por vulnerabilidade no contexto da mobilidade
meio do cabelo). Qual o sentido de cada uma humana, sujeitas a exploração, tráfico de
das atividades na vida dessas mulheres? Há pessoas e dificuldade no acesso a serviços
dimensões econômicas, culturais, identitá- (ASSIS, 2007; BAILEY, 2013). É frequente o
rias, relacionais, onde cada uma estabelece relato de experiências de isolamento social,
uma relação com o seu fazer, e a partir dele, linguístico, cultural. Weintraub (2012) cita
produzem sentidos e oportunidades econô- em seu trabalho a situação das migrantes
micas, tecem suas redes de relação na vida egressas do sistema penitenciário brasileiro,
cotidiana, agenciam novos saberes. muitas condenadas por tráfico internacional
O que o fazer dessas mulheres põem em de drogas, e as problemáticas envolvendo
movimento? Para além de respostas únicas, o sistema judiciário em que se encontram.
suas atividades ganham sentidos e valores Quando condenadas, pelo Estatuto do Es-
plurais e em constante ressignificação: a trangeiro (BRASIL, 1980), devem ser expul-
culinária torna-se projetualidade e se inse- sas do país. Entretanto, a demora do sistema
re num projeto de vida, a dança inscreve-se judiciário faz com que sejam liberadas e pre-
numa dimensão educativa, a música como cisem aguardar os trâmites da repatriação
elemento de reconhecimento e descobertas, em liberdade, mas impedidas de trabalhar
a estética como agenciamentos econômicos, legalmente, o que as obriga a procurar servi-
entre tantos outros. ços da assistência e as sujeita a extrema vul-
E também não se constituem em pro- nerabilidade social (WEINTRAUB, 2012).
cessos fixos e rígidos, há sempre remode- O outro ponto diz respeito às relações de
lações, de acordo com o que cada uma per- poder e alteridade. Ao falar sobre valores
cebe como suas demandas e necessidades. culturais, Fanon (1980) discute as relações
Segundo Stuart Hall (2006), as identidades de alienação impostas pelas potências euro-
são múltiplas, na medida em que as mulhe- peias nas colônias africanas, e define o racis-
res vão construindo e reconstruindo suas mo cultural como mecanismo de dominação
relações e seus fazeres, para então ganha- em que a destruição dos valores, das formas
rem novos espaços, lugares e papéis nos de existir e dos sistemas de referência foi
diversos cenários. É a busca de estar no amplamente utilizada pelo regime colonial.
mundo que está presente em todas as inter- Assim, no contexto da discussão sobre a
locutoras. A recusa da subalternidade e da mobilidade humana, é possível pensar que
falta, e, sim, uma busca de projetualidade o conceito de alienação também se faz pre-

134 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017


Miki Takao Sato

sente, na medida em que: “o opressor, pelo em seus vários espaços sociais, foi uma for-
caráter global e terrível da sua autoridade, ma de criar condições para apreender seus
chega a impor ao autóctone novas maneiras modos de organização cotidianos, suas de-
de ver e, de uma forma singular, um juízo mandas, projetos e desejos. Através dessas
pejorativo acerca das suas formas originais atividades da vida cotidiana, as pessoas
de existir” (FANON, 1980, p. 42). constroem e renovam sentidos e reformu-
Nas dinâmicas dos processos migrató- lam-se em modos de vida diferenciados,
rios, muitas vezes a percepção do outro é constituem ou ampliam redes sociais e afeti-
equivocada, a incompreensão é vivenciada, vas que viabilizam trocas e diálogos. Estabe-
os valores são distorcidos, xenofobia e ra- lecendo-se na movimentação da vida coleti-
cismo são presentes em diversas situações, va do novo cenário urbano de suas existên-
nas relações interpessoais, institucionais cias a vida cotidiana assume seu caráter de
e culturais. Mariama traz em seus relatos inteireza e plenitude.
algumas situações de preconceito, quando Assim, as atividades dão concretude à
certa vez, por exemplo, ao andar de táxi, o construção permanente da pessoa na histó-
motorista afirmou: “Africano no táxi, o Bra- ria, na sua própria história. De forma que,
sil está com crise, eles estão andando de em sua concretude há uma pluralidade de
táxi...”. Uma das questões de debate mais linguagens envolvendo tanto o mundo das
recorrentes nos eventos, reuniões e relatos artes, da culinária, do corpo, da estética. As
dos atores envolvidos na temática foram de atividades e fazeres experenciados pelas mu-
situações de preconceito, despreparo e des- lheres deste estudo circunscrevem espaços
conhecimento da sociedade brasileira para existenciais e criam significação que emer-
lidar com essa questão. Na mobilidade hu- gem da vida cotidiana de cada uma, produ-
mana, a confrontação da alteridade é colo- zindo contradições e emancipação, apon-
cada a todo momento, e há constantemente tando dificuldades e possibilidades econô-
a tensão do desafio da relação com o outro. micas, conflitos e protagonismo na luta pelo
Durante o trabalho de campo, escutei por reconhecimento social e expressivo.
várias fontes, alguns relatos de situações de Atividade aqui assume também uma di-
dificuldades para obter trabalho, despre- mensão criativa e criadora na vida de cada
paro em serviços de saúde e da assistência, uma das mulheres apresentadas, onde tra-
entraves de comunicação, baixa valorização zem seus conhecimentos, saberes e repertó-
profissional e desqualificação de gênero. rios e os reinserem na cidade de São Pau-
As dimensões culturais e existenciais da lo, (re) construindo significados outros. Os
atividade foram abordadas por Castro; Lima universos do cabelo e da estética, da comida
e Brunello (2001). As autoras inserem a ati- africana, da dança e da música são reinscri-
vidade humana no campo da compreensão tos e reelaborados em novas configurações,
cultural e da vida cotidiana, “onde os aconte- e encontram ressonância através das de-
cimentos cotidianos marcam a passagem do mandas e oportunidades que a cidade esta-
tempo, dão consistência à experiência exis- belece: cena cultural e artística em constante
tencial e singularizam” (CASTRO; LIMA; efervescência, polo gastronômico e turístico,
BRUNELLO, 2001, p. 49). Neste estudo, a valorização da cultura afro e visibilidade da
interlocução com observação e acompanha- questão migratória contemporânea, entre
mento do cotidiano das mulheres africanas tantas outras.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017 135


Percursos etnográficos em narrativas com mulheres africanas em São Paulo: atividades como possibilidades econômicas

As atividades compõem-se nos vários ce- saberes das culturas africanas e aqueles dos
nários cotidianos de vida das pessoas, gru- universos culturais brasileiros.
pos ou comunidade em sua pluralidade cul- Neste sentido, os salões de beleza, os res-
tural, onde são mobilizadas para a inscrição taurantes e oficinas de culinária, os serviços
nos novos espaços existenciais, políticos e de de telefonia para países africanos, além da
criação de economia de vida. Elas são poten- venda de artesanato e objetos decorativos
cializadoras de horizontes e projetos de vida, são arranjos e possibilidades que criam na
de relações de trocas no contexto de novas cidade de São Paulo novas dimensões do
formas de economia e cultura. A atividade país: um Brasil que se molda a partir de novo
permanece um conceito intrinsecamente repertório sobre África. Ao criarem seus co-
inacabado e histórico, dotado de dimensões mércios e agenciamentos, as mulheres afri-
socioculturais e políticas complexas que po- canas dialogam com novas formas de traba-
dem ser apoios para a constante luta con- lho na cidade, veiculando, ao mesmo tempo,
tra as desigualdades e para a emancipação e inscrevendo seus modos de vida, experiên-
(BARROS; LOPES; GHIRARDI, 2002). cias culturais e linguagens. E por outro lado,
Os processos migratórios não se redu- as novas redes de trocas sociais constituídas
zem a deslocamentos geográficos, políticos exercem modificações profundas e ampliam
e econômicos, mas indicam, igualmente, as trocas e redes de trocas culturais da cida-
inúmeros significados e desdobramentos de. Esta se vê chamada a se repensar e criar
sociais, estéticos, religiosos, afetivos e rela-
novas possibilidades econômicas, permitir
cionais, e, portanto, culturais. Neles não se
outros pedaços de pertencimento, circuitos
envolvem apenas aqueles que migram, mas
(MAGNANI, 2002) e, enfim, novas confi-
provocam mudanças, encontros, tensões e
gurações relacionais e econômicas, além do
conflitos e novas possibilidades ampliadas
reconhecimento de outras diferentes orga-
de diálogos e interações humanas. Altera a
nizações da vida cotidiana (BARROS, 2015).
própria experiência da cultura que é, afinal,
Presenciamos na cidade de São Paulo
interculturalidade permanente.
essa multiculturalidade, que é permeada
Essa noção de abertura está no centro
por diversos processos: mobilidade huma-
do cosmopolitismo contemporâneo — e das
na, fortalecimento das periferias, movimen-
formas atuais de mobilidade — em suas di-
tos de luta por moradia, mobilização sobre a
mensões dos diversos e múltiplos arranjos
ocupação do espaço urbano, protagonismo
das atividades significativas, das expressões
da juventude, mulheres e população mi-
estéticas e criativas, do trabalho, das redes
grante. São alguns aspectos que remodelam
de relação que modelam constantemente a
cidade. As mulheres africanas presentes em e transformam a cidade.
São Paulo trazem suas histórias, maneiras
de percepção da vida, universos estéticos, Considerações Finais
conhecimentos linguísticos, além de formas A migração contemporânea, especificamen-
diferenciadas de relacionar-se e de compor te, tem emergido também de maneiras plu-
os arranjos familiares. Tais arranjos são, rais. Cabe aqui ressaltar que, apesar de to-
por sua vez, expressões de linguagens, tro- das as contradições e desafios já citados, a
cas culturais em diálogos que necessitam cidade tem vivenciado uma abertura a essas
encontrar passagens e conexões entre os novas possibilidades e ao diálogo intercul-

136 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017


Miki Takao Sato

tural. Assim, restaurantes de diferentes tra- assim, preciso criar uma consciência e uma
dições gastronômicas tem surgido, coletivos identidade para si, onde a cultura é, igual-
culturais e empreendimentos de imigrantes, mente, instrumento de resistência (SAID,
iniciativas de apoio e divulgação da questão 1995).
são colocados numa perspectiva de enri- Portanto, o estudo da cultura nos proces-
quecimento e contribuição para São Paulo. sos migratórios demanda que se aprofun-
São dimensões que se integram ao cenário dem possibilidades e contradições para ir
multirracial e multicultural da cidade. A mi- além da redução ao exótico, à diferença e da
gração está mudando a paisagem da cidade cisão do contexto e processos históricos. Os
e sua pauta tem inserindo-se em diversos modos de vida e os cotidianos são plurais,
espaços, desde a cena cultural, gastronômi- nas várias dimensões já citadas (trabalho,
ca, até no debate político e nos movimentos relações, família, religião, associações, lazer,
sociais. E as interlocutoras e outras mulhe- estética) e se movimentam ainda mais nos
res africanas têm se inserido nessa dinâmica diálogos relacionais. No entanto, os desafios
através das suas atividades, fazeres e ações e são muitos para se ultrapassar os olhares
cotidiano. curiosos ou discriminatórios, as discussões
Em suas trajetórias, circuitos e lingua- reducionistas, as opiniões apressadas e pre-
gens, as pessoas criam e redesenham inscri- conceituosas, o racismo e a xenofonia que se
ções sensíveis, inovam as dinâmicas de tra- fazem no dia-a-dia. A cidade é um campo de
balho e as relações sociais, ampliam o uni- discurso e utopias em disputa, nela os mo-
verso religioso e político, além dos hábitos dos de vida e os arranjos possíveis são ins-
de vestimenta, comida, formas associativas, táveis.
estéticas, lazer, festas, em grande pluralida- As diferentes expressões, atividades e
de de modos de viver. A multiplicidade dos fazeres das mulheres africanas contêm di-
arranjos culturais que os migrantes promo- mensões de fundamental importância para
vem no diálogo com diversos cenários urba- a construção de uma perspectiva aberta dos
nos da cidade, interagindo com outros gru- processos migratórios e para a questão da
pos sociais e com as diversas instituições, África. Neste sentido, ao construírem suas
transforma e desenha encontros e emprésti- histórias, adquirem um reconhecimento
mos interculturais. social e revalorizam sua cultura e suas ori-
Ao pensar nas diferentes dinâmicas cul- gens. Acabam transformando percepções
turais, as atividades e o fazer dessas pessoas e valores, desconstruindo a ideia de que o
devem ser trabalhadas e inscritas na relação único sentido da migração africana está em
com o outro. Nesse diálogo, ampliam-se os situações de extrema pobreza e inserem no-
espaços existenciais, dinâmicos, possibili- vos olhares e perspectivas para a migração
dades plurais de modos de vida, tanto rela- feminina contemporânea na cidade.
cionais como econômicos, sociais, literários
e poéticos. São reinscrições plurais, mas, Referências bibliográficas
plenas de sofrimento e conflitos. Construir ARENDT, H. A Condição Humana. Tradução
novos lugares de pertencimento, rever os de Roberto Raposo. 12 ed. Rio de Janeiro: Fo-
sentidos da cultura exige uma passagem e rense Universitária, 2014.
conexão com o conhecido e vivenciado an- ASSIS, G. O. Mulheres migrantes no passado e
teriormente. Edward Said lembra que é, no presente: gênero, redes sociais e migração

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017 137


Percursos etnográficos em narrativas com mulheres africanas em São Paulo: atividades como possibilidades econômicas

internacional. Estudos Feministas, Florianó- ELIAS, N. Sociedade dos indivíduos. Rio de


polis, v. 15, n. 3, p. 745-772, set./dez. 2007. Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
BAILEY, O. G. Mulheres africanas migrantes: FABIÃO, T. Danças africanas e interculturalida-
histórias de agência e pertencimento. Perspec- de: práticas artísticas e pedagógicas em Portu-
tivas. Revista de Ciências Sociais da UNESP, gal. Revista Angolana de Sociologia, Rama-
São Paulo, v. 43, p. 159-182, jan./jun. 2013. da, n. 8, p. 99-109, dez. 2011.

BARROS, D. D. L’activité humaine dans l’écono- FANON, F. Em defesa da revolução africa-


mie de la vie: le sens dans l’histoire et la culture. na. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980.
In: MOREL-BRAQ, M.; TROURÉ, E.; OFFES-
FRANÇA, T. Entre reflexões e práticas: feminis-
TEIN, E. (Org.). L’activité humaine: un po-
mos e militância nos estudos migratórios. E-ca-
tentiel pour la santé? Paris: ANFE/de Boeck
dernos ces, v. 18, p. 81-105, 2012. Disponível
Solal Paris, p. 283-290, 2015.
em:< http://eces.revues.org/1527>. Acesso em:
BARROS, D. D. Terapia ocupacional social: o 10 jun. 2016.
caminho se faz ao caminhar. Revista de Tera-
FRANCALINO, J. H.; PETRUS, M. R. Dinâmicas
pia Ocupacional da Universidade de São
de afirmação e re-significação de identidades:
Paulo, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 90-97, set./dez.
um projeto cultural em construção com refugia-
2004.
dos e imigrantes congoleses e angolanos. Revis-
BARROS, D. D.; LOPES, R. E.; GHIRARDI, M. ta Interdisciplinar da Mobilidade Huma-
I. G. Terapia ocupacional social. Revista de na, Brasília, v. 16, n. 31, p. 532-544, 2008.
Terapia Ocupacional da Universidade de
GALVANI, D. Circuitos e práticas religio-
São Paulo, São Paulo, v. 13, n.3, p. 95-103, set./
sas nas trajetórias de vida de adultos em
dez. 2002.
situação de rua na cidade de São Paulo.
CASTRO, E. D.; LIMA, E. M. F. A.; BRUNELLO, 2015. 200 f. Tese (Doutorado em Psicologia)
M. I. B. Atividades Humanas e Terapia Ocupa- – Instituto de Psicologia, Universidade de São
cional. In: DE CARLO, M. M. P.; BARTALOTTI, Paulo, São Paulo, 2015.
C. C. (Org.). Terapia Ocupacional no Bra-
GEERTZ, C. A interpretação das culturas.
sil: fundamentos e perspectivas. São Pau-
Rio de Janeiro: LTC, 1989.
lo: Plexus Editora, 2001, p. 19-40.
GHIRARDI, M. I. G. Terapia Ocupacional em
DANTAS, S. D. et al. Identidade, migração e suas
processos econômico-sociais. Cadernos de
dimensões psicossociais. Revista Interdisci-
Terapia Ocupacional da Universidade Fe-
plinar da Mobilidade Humana, Brasília, v. deral de São Carlos, São Carlos, v. 20, n. 1, p.
15, n. 34, p. 45-60, jan./jun. 2010. 17-20, jan./abr. 2012.
DAVIES, C. B. Mulheres caribenhas escrevem a GOMES, N. L. Corpo e cabelo como símbolos da
migração e a diáspora. Estudos Feministas, identidade negra. In: II SEMINÁRIO INTER-
Florianópolis, v. 18, n. 3, p. 747-763, set./dez. NACIONAL DE EDUCAÇÃO ITERCULTURAL;
2010. GÊNERO E MOVIMENTOS SOCIAIS, 2003,
DINIZ, E. C. C. Migração feminina e redes so- Florianópolis. Anais. Florianópolis: Universida-
ciais: brasileiras em Lisboa – Portugal. In: I de Federal de Santa Catarina, 2003a.
SEMINÁRIO NACIONAL SOCIOLOGIA E PO- GONÇALVES, M. A.; MARQUES, R.; CARSO-
LÍTICA, 2009, Curitiba. Grupo de Trabalho SO, V. Z. Etnobriografia: subjetivação e et-
4: Cidadania, controle social e migrações nografia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012. 268 p.
internacionais. Curitiba: Universidade Fede-
ral do Paraná, 2009, p. 2-13. KALY, A. P. O Ser Preto africano no “paraíso
terrestre” brasileiro. Um sociólogo senegalês no
DUTRA, D. Mulheres, migrantes, trabalhadoras: Brasil. Lusotopie, Bordeaux, p. 105-121, 2001.
a segregação no mercado de trabalho. Revista
Interdisciplinar da Mobilidade Humana, MACIEL, M. E. Identidade cultural e alimenta-
Brasília, v. 21, n. 40, p. 177-193, jan./jun. 2013. ção. In: CANESQUI, A. M.; GARCIA, R. W. D.

138 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017


Miki Takao Sato

(Org.). Antropologia e nutrição: um diálo- RODRIGUES, E. F. V. Imigrantes africa-


go possível. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, nos no Brasil contemporâneo: fluxos e
2005, p. 49-56. refluxos da diáspora. 2014. 80f. Disserta-
ção (Mestrado em História Social) – Pontifícia
MAGNANI, J. G. C. De perto e de dentro: notas Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
para uma etnografia urbana. Revista Brasilei-
2014.
ra de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49,
p. 11-29, fev. 2002. SAID, E. Cultura e Imperialismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995. 459 p.
MAGNANI, J. G. C. Etnografia como prática e
experiência. Horizontes Antropológicos, SERRANO, M. L. E. “África” em Río de Janei-
Porto Alegre, v. 15, n. 32, p. 129-156, jul./dez. ro: una cartografía sobre lainmigración contem-
2009. poránea. MEMORIAS: Revista digital de
Historia y Arqueología desde el Caribe
MAGNANI, J. G. C. Quando o campo é a ci-
colombiano, Barranquilla, v. 8, n. 15, p. 272-
dade: fazendo antropologia na metrópole. In:
302, 2011.
______.; TORRES, L. (Org.). Na metrópole:
textos de antropologia urbana. 3 ed. São SILVA, V. G. O antropólogo e sua magia:
Paulo: Edusp, 2008, p. 15-53. trabalho de campo e texto etnográfico nas
MASANO, I. R. A gastronomia paulistana: pesquisas antropológicas sobre religiões
o local e o global no mesmo prato. 2011. afro-brasileiras. São Paulo: Edusp, 2006.
264 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e SUBUHANA, C. A experiência sociocultural de
Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Ur- universitários da África Lusófona no Brasil: en-
banismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, tremeando histórias. Pro-Posições, Campinas,
2011. v. 20, n. 1, p. 103-126, jan./abr. 2009.
MBEMBE, A. Arte contemporânea de África: TELES, T. C. Nzambi ikale ni enhe! Histó-
negociar as condições do seu reconhecimen- rias de vida de imigrantes angolanos em
to - conversa de Vivian Paulissen com Achil- São Paulo. 2013. 301 f. Dissertação (Mestrado
le Mbembe. Tradução: CARTAXO, M. J. 2010. em História Social) – Faculdade de Filosofia, Le-
Disponível em: http://www.buala.org/pt/ tras e Ciências Humanas, Universidade de São
mukanda/arte-contemporanea-de-africa-nego- Paulo, São Paulo, 2013.
ciar-as-condicoes-do-seu-reconhecimento-con-
versa-de-vivian-. Acesso em 10 mai. 2016. UNDA, R.; ALVARADO, S. V. Feminización de
la migración y papel de las mujeres en el hecho
MBEMBE, A. As formas africanas de auto-ins-
migratório. Revista Latinoamericana de
crição. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janei-
Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, Co-
ro, v. 23, n.1, p. 171-209, 2001.
lômbia, v. 10, n. 1, p. 593-610. 2012.
MUNGOI, D. M. D. C. J. Ressignificando iden-
WEINTRAUB, A. C. A. M. Itinerários percor-
tidades: um estudo antropológico sobre expe-
ridos por mulheres migrantes estrangei-
riências migratórias dos estudantes africanos no
ras na cidade de São Paulo: modos de fa-
Brasil. Revista Interdisciplinar da Mobili-
zer a vida na cidade. 2012. 179 f. Dissertação
dade Humana, Brasília, v. 20, n. 38, p. 125-
(Mestrado em Ciências) - Programa de Pós-Gra-
139, 2012.
duação em Saúde Pública, Universidade de São
NOVAES, M. M. Sujeitas de direitos: his- Paulo, São Paulo, 2012.
tória de vida de mulheres bolivianas,
peruanas e paraguaias na cidade de São
Paulo. 2014. 177 f. Dissertação (Mestrado em Documentos
História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
cias Humanas, Universidade de São Paulo, São BRASIL. Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980.
Paulo, 2014. Define a situação jurídica do estrangeiro no Bra-
sil, cria o Conselho Nacional de Imigração. Diá-
OLIVEIRA, R. C. O trabalho do antropólo- rio Oficial da República Federativa do Brasil,
go. 2. ed. São Paulo: Edunesp/Paralelo15, 2000. Brasília, DF, 22 ago. 1980.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017 139


Percursos etnográficos em narrativas com mulheres africanas em São Paulo: atividades como possibilidades econômicas

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRA- MIGRAÇÕES. Perfil migratório do Brasil 2009.


BALHO. 2008. Trabalhadoras e trabalhado- 2009. Disponível em: https://publications.iom.
res migrantes: alcançar a igualdade de direitos int/system/files/pdf/brazil_profile2009.pdf.
e oportunidades. Disponível em: http://www. Acesso em: 10 jun 2016.
ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/
pdf/gender_december.pdf. Acesso em: 25 mar.
2016. Recebido em: 08/06/2017
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS Aprovado em: 16/09/2017

140 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 115-140, jul./dez. 2017


Paulo Sérgio de Proença

“NÃO SOU RACISTA, MAS...”: MOTIVAÇÕES


LINGUÍSTICAS E HISTÓRICAS DA
PROVERBIAL RETÓRICA À BRASILEIRA PARA
A NEGAÇÃO DO RACISMO

Paulo Sérgio de Proença*

Resumo
A expressão “não sou racista, mas...” é muito frequente nas redes sociais.
Quem o utiliza é ou não racista? Este artigo analisa o valor linguístico e his-
tórico da expressão. O caminho metodológico escolhido é a pesquisa biblio-
gráfica. Para a primeira parte da análise serve-se de elementos da Pragmática
e da Retórica; para a segunda, de dados históricos afins. Ao que tudo indica,
ela veicula racismo de forma ostensiva, embora tenha intenção de negá-lo.
Palavras-chave: Negação do racismo; Linguagem; História.

Abstract
“I AM NOT A RACIST, BUT ...”: LINGUISTIC AND HISTORICAL
MOTIVATIONS OF PROVERBIAL BRAZILIAN RHETORIC FOR
DENIAL OF RACISM
The expression “I am not racist, but ...” is very frequent in social networks.
Who uses it is racist or not? This article analyzes the linguistic and historical
value of the expression. The methodological path is bibliographical research.
For the first part of the analysis, it uses elements of Pragmatics and Rhetoric;
for the second, it presents related historical data. In any case, it carries out
ostensibly racism, although she intends to deny it.
Keywords: Denial of racism; Language; History.

Se acessarmos as redes sociais e portais população se reconhece racista. O recurso


de busca na internet, vamos talvez nos sur- linguístico, então, precisa ser examinado.
preender com o uso da expressão “não sou Bakhtin e Saussure, por vertentes teóri-
racista, mas...”, completada de formas di- cas e motivações diversas, já disseram que a
versas, todas com teor marcadamente racis- linguagem é fenômeno social. Em “não sou
ta. Esse procedimento, no Brasil, é curioso, racista, mas...”, particularmente, há fios,
porque, aqui, a maioria reconhecer haver não apenas linguísticos, que desenrolam
racismo, mas apenas uma mínima parte da fatores históricos com os quais dialoga. É

* Doutor, Professor Adjunto na UNILAB-Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Bra-


sileira. E-mail: pproenca@unilab.edu.br

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017 141


“Não sou racista, mas...”: Motivações linguísticas e históricas da proverbial retórica à brasileira para a negação do racismo

exatamente esse o objetivo deste trabalho. cação da presença ou ausência de motivação


Para isso, em primeiro lugar, serão anali- racista dos que dela se servem.
sadas as dimensões linguístico-argumen- Uma pergunta inicial e necessária é
tativas da expressão, em sua constituição esta: qual é o papel do “mas”? Trata-se de
interna e em seus efeitos de sentido. Em se- uma conjunção, classificada pela gramática
guida, serão buscadas elementos históricas como adversativa, por unir duas proposi-
com os quais a expressão está vinculada e ções pelo elo de oposição. A oração intro-
nos quais podem ser encontradas as razões duzida por mas contém sentido contrário à
para explicá-las. anterior e sobre ela prevalece: “não estou
O resultado disso é que o racismo existiu com fome, mas vou comer alguma coisa”.
e continua existindo, apesar dos esforços, Pela nossa experiência de vida e visão de
conscientes ou não, para negá-lo, o que é mundo, sabemos que quando estamos sem
comprovado pelo uso copioso da expressão fome, não comemos; em outras palavras,
“não sou racista, mas...”. estar sem fome e comer são ideias opostas;
além disso, pelo exemplo, percebe-se que
Aspectos argumentativos e prevalece a ideia introduzida pelo conector
linguísticos mas: quem diz isso vai, de fato, comer al-
guma coisa. A propósito, Fiorin apresenta
Nem a matéria linguística da estrutura “não
este exemplo, acrescentando que há uma
sou racista, mas...” nem seu valor argumen-
instrução sobre a maneira de interpretar
tativo podem ser desprezados para a avalia-
o papel que o mas desempenha (2003, p.
ção consistente dos efeitos que ela tem e da
169): a) Marcelinho joga muito futebol,
função que exerce na sustentação e reforço de
mas é desagregador; b) Marcelinho é desa-
princípios racistas. A configuração linguística
gregador, mas joga muito futebol. A estru-
define a relação entre os membros que a com-
tura nos dois casos é a mesma (A, mas B); o
põem, enquanto a dimensão argumentativa
que muda é a ordem das ideias. A diferença
diz algo sobre os efeitos de convencimento e
de persuasão que o conjunto produz sobre o de sentido é a seguinte: no primeiro caso, o
auditório (ouvintes ou leitores).1 falante não quer Marcelinho; no segundo,
sim. Com isso, fica ainda mais evidente a
prevalência da ideia contida na oração in-
Aspectos da estrutura
troduzida por mas.
linguística Neves (2000) diz, a respeito da oposição
A estrutura linguística dessa construção ofe- entre as orações unidas por mas, que há re-
rece elementos indispensáveis para a verifi- lação por ela chamada de desigualdade, na
1 Há diferença entre convencer e persuadir. Para qual coloca-se “o segundo segmento como
Perelman e Olbrechts-Tyteca, a distinção de- de algum modo diferente do primeiro, espe-
pende do ponto de vista. Sob o foco do resulta-
do, “persuadir é mais do que convencer, pois a cificando-se essa desigualdade conforme as
convicção não passa da primeira fase que leva condições contextuais (p. 756). O valor se-
à ação” (2002, p. 30); sob o ângulo do caráter
racional da adesão, “convencer é mais do que
mântico do mas é explicado por essa auto-
persuadir”. Assim, chama-se “persuasiva a uma ra, de forma exaustiva; um de seus sentidos
argumentação que pretende valer só para um possíveis é o seguinte: “Nas relações de de-
auditório particular e [...] convincente àquela
que deveria obter a adesão de todo ser racional” sigualdade há aspectos especiais marca-
(2002, p. 31). dos pelo uso do MAS. A desigualdade é utili-

142 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017


Paulo Sérgio de Proença

zada para a organização da informação jogo de afirmar-negar o racismo é histórico,


e para a estruturação da argumenta- no Brasil, como se verá adiante.
ção. Isso implica a manutenção (em graus Resumindo, pode-se dizer que a estru-
diversos) de um dos membros coordenados tura A, mas B indica a prevalência de B em
(em geral, o primeiro) e (também em graus relação a A e, por causa disso, há oposição
diversos) a sua negação” (NEVES, 2000, p. entre as partes: B nega A. No nosso caso,
757; grifos do original). como A é uma oração negativa (“Não sou ra-
A segunda parte da citação acima é clara: cista...”), a estrutura adversativa a nega; te-
na relação entre duas proposições coorde- mos, então, uma negação da negação, o que
nadas por mas, a segunda nega a primeira. equivale a uma afirmação. Ou seja, quem
Essa relação, estritamente linguística, é de usa a estrutura linguística “não sou racista,
suma importância para a análise da estru- mas...” é racista; e não assumido.
tura “não sou racista, mas...”. Assim, por
exemplo, quando alguém diz “não sou racis-
Aspectos e efeitos linguístico-
ta, mas não gosto de pretos”, fica evidente
a conclusão anteriormente feita: a segunda
pragmáticos
parte (“[...] mas não gosto de pretos”) nega Decorrentes dessa dimensão linguística, há
a primeira (“não sou racista [...]”); portanto, os elementos de natureza pragmática (que
quem diz isso (ou tantas outas coisas nessa são linguísticos e extralinguístico), que vão
estrutura, com a manutenção da primeira aqui separados apenas para efeito de ênfase.
parte) é, sim, racista, por negar que não é Para esta parte, seguimos Fiorin (2003),
racista, por causa da instrução da conjunção que define Pragmática desta forma: “ciência
mas. É, embora diga que não.2 do uso linguístico, estuda as condições que
Ocorre a tentativa de negar, no nível da governam a utilização da linguagem, a prá-
manifestação (parecer) o que não é assu- tica linguística [...] estuda a relação entre a
mido em outro nível (ser). Esse fenômeno estrutura da linguagem e seus usos” (2003,
pode ser atribuído ao constrangimento que p. 166). Há palavras e frases que só se com-
a defesa ostensiva de racismo pode provo- preendem na situação concreta de fala e é
car, além de ser fato politicamente incorre- daí que surge a relevância dessa disciplina
to, punível criminalmente, inclusive3. Mas o linguística.
que está na balança não é somente isso; esse Os filósofos da linguagem John Austin e
2 Essa operação pode ser explicada de outra for- Paul Grice deram o ponto de partida para o
ma, com a negação da inferência (NEVES, 2000, nascimento e desenvolvimento da Pragmá-
p. 762), caso em que ocorre “a negação de um ar-
tica. Para Austin, a linguagem não tem fun-
gumento enunciado anteriormente. No primei-
ro segmento há a asseveração, com admissão ção descritiva, mas prática: é ação, pois os
de um fato; no segundo segmento expressa-se a seres humanos, ao falar, realizam atos; além
não-aceitação da inferência daquilo que foi asse-
verado”. disso, deve-se considerar que a linguagem
3 Oliveira (2004, p. 82) sugere que manifestação comunica mais do que está registrado em
de racismo pode ser inconsciente: “[...] mesmo
enunciados, porque evocam-se conteúdos
quando não se trata de esconder intencional-
mente o preconceito, ele se manifesta frequen- implícitos, conforme enfatiza Fiorin (2003,
temente de maneira irrefletida e a falta de cons- p. 166).
ciência do ator sobre suas atitudes preconcei-
tuosas eventualmente esboçadas não é de todo Nesse sentido, é preciso estudar o uso,
surpreendente”. porque o sentido dos enunciados pode im-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017 143


“Não sou racista, mas...”: Motivações linguísticas e históricas da proverbial retórica à brasileira para a negação do racismo

plicar em outros aspectos extralinguísticos; faces: “Face é o amor próprio do sujeito. Há


daí a importância do contexto, que pode su- uma face positiva e uma negativa. Aquela
gerir, inclusive, que determinados enuncia- deriva da necessidade de ser apreciado e re-
dos não devem ser literalmente compreen- conhecido pelo outro, é a boa imagem que
didos. Falantes podem preferir comunicar o sujeito tem de si mesmo; esta é a neces-
significados de maneira indireta, por diver- sidade de defender o eu, é o seu território”
sas razões. (Fiorin, 2003, p. 175).
Duas distinções importantes devem ser Como as pessoas, em alguns casos, pro-
feitas: significação x sentido; frase x enun- curam salvar sua face e atacar a do outro,
ciado. Frase é o “ato linguístico caracteriza- para isso adotam comportamentos ameaça-
do por uma estrutura sintática e uma signi- dores em relação ao interlocutor; se este tem
ficação calculada com base na significação face negativa, busca-se reforçá-la, por meio
das palavras que a compõem”. Já enunciado da invasão de território, com ordens, conse-
lhos e ameaças; se, por outro lado, a face do
é “frase a que se acrescem as informações
outro é positiva, busca-se a destruição dessa
retiradas da situação em que é enunciada,
imagem, com reprimendas, refutações e crí-
em que é produzida”. A partir dessa diferen-
ticas, se se quer torná-la negativa. É o que
ça, é possível admitir que uma mesma frase
ocorre quando se utiliza a expressão “não
pode estar vinculada a diversos enunciados.
sou racista, mas...” que, na prática, produz o
A significação é o “produto das indicações
efeito pragmático de reforçar a face negativa
linguísticas dos elementos componentes da
dos negros.4
frase”. O sentido, por sua vez é a “significa-
Na nossa expressão, a primeira parte se
ção da frase acrescido das indicações con-
constitui esforço para salvar a face do falan-
textuais e situacionais” A frase é estudada
te que, conscientemente ou não, admite que
pela Sintaxe e pela Semântica; o enunciado, a segunda parte, introduzida por mas, é ra-
pela Pragmática (FIORIN, 2003, p. 168). Em cista (e, por isso, pode ferir a sua face), ante-
nosso caso (não sou racista, mas...), a frase é cipando-se ao raciocínio do leitor ou ouvin-
traída pelo enunciado; o sentido é corrigido te. Quem nega que é racista (embora seja)
pela significação. está defendendo a face; está se antecipando
A estrutura linguística “não sou racista, para anular efeitos negativos do pressuposto
mas...” pode ter seu alcance melhor com- da segunda oração da estrutura A, mas B, na
preendido a partir dessas noções pragmáti- qual o elemento B só pode ser defendido por
cas, sobretudo a partir da ideia de que cer- quem é, de fato, racista.
tos enunciados não podem ser literalmente
4 Esse ataque à face dos negros é marca da dis-
interpretados; no nosso caso, isso se refere
criminação e exclusão social de que eles são ví-
à primeira parte da estrutura, inclusive por timas; é o que Oliveira (2004, p. 82) chama de
razões pragmáticas que serão ainda expos- discriminação cívica: “[...] a discriminação cívi-
ca contra os atores que têm sua dignidade ne-
tas; por ora, fica a indicação de que essa gada no plano ético-moral pode ser revertida no
primeira parte da estrutura A, mas B (não momento em que a identidade desvalorizada é
sou racista, mas...) explicita conteúdo pre- relativizada, e abrem-se perspectivas de (re)in-
tegração no plano da sociabilidade. Desse modo,
conceituoso, em contexto de violência sim- tal quadro caracterizaria não só o racismo, mas
bólica. também a exclusão social à brasileira”. Como se
vê, caso não houvesse esse ataque linguístico,
Elemento pragmático interessante, que haveria condições para a integração do negro ao
contribui para esta discussão é a teoria das convívio mais respeitoso.

144 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017


Paulo Sérgio de Proença

Outros elementos de natureza pragmá- Há diferenças entre pressuposto e suben-


tica que interessam são os pressupostos e tendido: o pressuposto é uma afirmação in-
os subentendidos, dos quais derivam as im- discutível (apresentada como tal); o suben-
plicaturas, que dizem respeito a conteúdos tendido é de responsabilidade do ouvinte.
implícitos. Os conteúdos dos atos de fala Na estrutura analisada, se o ouvinte percebe
podem ser explícitos ou implícitos, que são a contradição do enunciado, reconhece no
as inferências baseadas em pressupostos e enunciador da estrutura A, mas B um racis-
subentendidos, respectivamente. Para eles ta (no conteúdo aqui demarcado), embora o
serem percebidos, devem estar marcados, enunciado procure negar isso. O subenten-
seja no enunciado, seja na situação de co- dido é quem não gosta de pretos é racista
municação. (dedutível da parte B); daí o esforço contido
O conteúdo explícito é denominado pos- na parte A em negar o subentendido; insta-
to e é o alvo da comunicação. O pressuposto la-se a contradição, para cuja neutralização
é a informação que não é abertamente no- é a criação da estrutura A, mas B.
meada e, assim, não é alvo da mensagem, O pressuposto pode ser contestado, mas
mas percebida e desencadeada pelo enun- é formulado para não ser. O subentendido é
ciado em que figura, independentemente da construído para que o falante, caso seja in-
situação de comunicação. terpelado, possa, apegando-se ao sentido li-
Os pressupostos devem ser tomados por teral, negar que tenha dito o que efetivamen-
verdadeiros, o que é necessário para a vali- te quis dizer. O subentendido é um meio de
dade dos enunciados. Os implícitos são cons- o falante proteger-se. 6 No nosso caso, a ten-
truídos pelos pressupostos. Esse mecanismo tativa de proteção reside na primeira parte
é um recurso argumentativo, pois “introdu- da estrutura adversativa.
zir no discurso um dado conteúdo sob a for- Essas considerações, aplicadas à estrutu-
ma de pressuposto implica tornar o interlo- ra A, mas B (“não sou racista, mas não que-
cutor cúmplice de um dado ponto de vista, ro que minha filha se case com um negro”),
pois ele não é posto em discussão, é apre- apresenta resultados interessantes: como
sentado como algo aceito” (Fiorin, 2003, p. o elemento B prevalece e tem pressuposto
182). Os pressupostos não são passíveis de racista, o elemento A, que faz parte do pos-
negação, interrogação e encadeamento dos to, procura negar o pressuposto (quem não
postos. “A pressuposição aprisiona o leitor
quer que sua filha case com um negro é ra-
ou o ouvinte numa lógica criada pelo pro-
cista). Ocorre que o pressuposto sustenta
dutor do texto, porque, enquanto o posto é
a comunicação e não pode ser negado, sob
proposto como verdadeiro, o pressuposto é,
de certa forma, imposto como verdadeiro. nova, desconhecida, se apoia no dado anterior-
Ele é apresentado como algo evidente, indis- mente já conhecido, tomado como pressuposto
para sustentar a adição de elementos novos. O
cutível” (Fiorin, 2003, p. 182). Por exemplo, conhecimento de mundo, o conhecimento par-
quando alguém pergunta se parou de cho- tilhado, a situacionalidade e a contextualização
ver, pressupõe-se que estava chovendo ante- são fatores de coerência; a partir disso é possível
fazer inferências a partir das informações novas
riormente; como se vê, sem a pressuposição (KOCH; TRAVAGLIA, 1990).
a comunicação não se sustenta.5 6 O falante alega não ser racista; se o interlocu-
tor não percebe ou não assume o subentendido,
5 Aqui pode ser feita aproximação com a teoria prevalece o elemento A da estrutura, o que não
do texto, no que diz respeito a aspectos de coe- é previsto na instrução de sentido da conjunção
rência relativos ao dado e ao novo: a informação mas.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017 145


“Não sou racista, mas...”: Motivações linguísticas e históricas da proverbial retórica à brasileira para a negação do racismo

pena de invalidação do enunciado; assim, a que o equilíbrio é apenas estrutural, porque,


negação do pressuposto não alcança seu ob- semanticamente, passa a haver uma contra-
jetivo, instalando uma contradição, pois se dição; ora, se não sou racista, meu filho pode
alguém não quer que sua filha case com um (deve?) ser negro.
negro, então é racista. Como, então, diz que Assim, essa contradição diz respei-
não é racista? to ainda mais à dimensão argumentativa.
Esse fenômeno é discutido por Perelman
Aspectos argumentativos e Obrechts-Tyteca (2000), que discorrem
A contradição apontada tem vínculos não sobre argumentos fundados no princípio
apenas com a estrutura linguística, mas da não contradição (violado pela estrutura
também com a dimensão argumentativa. A A, mas B, em nosso caso). Fiorin, comen-
estrutura A, mas B justapõe ideias opostas; tando o argumento da não contradição, diz
contudo, como vimos, em “não sou racista, “[...] alguma coisa não pode ser e não ser ao
mas...”, há um desequilíbrio de estrutura e mesmo tempo” (2015, p. 139). Esse prin-
de conteúdo, que instaura uma contradição: cípio vale para a amplitude de um mesmo
“Não sou racista, mas eu quero que meu sistema, visto que pode haver essa possi-
filho seja branco”. bilidade, por exemplo, no reino da ficção e
Se a primeira parte fosse afirmativa, te- da religião (por exemplo: ser homem e ser
ríamos: Deus). Além disso, Perelman e Obrechts
“Sou racista, mas eu quero que meu filho -Tyteca fazem distinção entre contradição
seja branco”. e incompatibilidade. Aquela é a oposição
Nesse caso, a primeira parte seria se- de uma ideia e de sua negação e atribuição
manticamente correspondente à segunda e de dois atributos contraditórios (é mau e
a conjunção mas não caberia; teríamos, en- bom); a contradição, por sua vez, diz que
tão: duas proposições não podem coexistir no
“Não sou racista, mas eu quero que meu mesmo sistema, sem negar-se logicamen-
filho seja branco” te. No sistema biológico não se pode dizer
Há, nessa hipótese, equilíbrio de conteú- que uma virgem teve filho (FIORIN, 2015,
do e de estrutura que faz equivaler as duas p. 140). Já no mítico isso pode ocorrer,
proposições: pois um Deus não pode nascer como ou-
“Eu sou racista” = “eu quero que meu fi- tros seres humanos.
lho seja branco” Um princípio retórico importante diz
O grande complicador é que quem se ser- que os argumentos baseados no conflito de
ve dessa estrutura para expressar esse con- interesses devem fundar-se no princípio da
teúdo não quer admitir que é racista (quer não contradição, para que não se tornem in-
proteger a sua face); é por isso que há a ne- validados facilmente. Já vimos que a estru-
cessidade do emprego do advérbio de nega- tura A, mas B, para finalidade racista, fere
ção no início; isso provoca o desequilíbrio esse princípio e, assim, deve ser invalidada.
estrutural e semântico: Outro recurso argumentativo que merece
“Eu não sou racista” ≠ “eu quero que ser lembrado é o da definição (“não sou ra-
meu filho seja branco” cista” é uma definição), vinculado ao princí-
O desequilíbrio, percebido, exige a pre- pio da identidade. Para Perelman e Obrecht-
sença da conjunção mas. No entanto, ocorre s-Tyteca (2000) as definições são fundadas

146 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017


Paulo Sérgio de Proença

no princípio da identidade, porque não há Aspectos históricos, políticos,


uma maneira unívoca de definir uma pessoa
ou um objeto. As definições procuram “con-
literários, científicos e
vencer o interlocutor de que um dado signifi- religiosos
cado é aquele que deve ser levado em conta. Sidney Chalhoub analisa a escravidão no pa-
Por isso, elas podem ser conflitantes” (FIO- norama histórico do país do séc. XIX, prin-
RIN, 2015, p. 118). Um efeito retórico pro- cipalmente em sua segunda metade, a partir
duzido, então, por “não sou racista, mas...” dos escritos de Machado de Assis. Ele apon-
(em que na primeira parte há uma negação ta um recurso da elite política de então, bati-
e a segunda nega a primeira, ou seja, nega zado como a “arte de bordejar”, para indicar
uma negação), pela força da definição, tende o jogo conveniente de negar a escravidão no
a convencer o interlocutor de que o falante nível público e mantê-la vigorosa nas estru-
não é racista. Mas... turas do Império, com o consequente adia-
Fiorin (2015, p. 121) chama a atenção mento sine die da resolução do problema: “o
para o conflito da definição que está na frase Brasil imperial oferecia ao mundo o curioso
“Não sou X, mas...”; ele exemplifica com a espetáculo de um país no qual todos con-
mesma estrutura aqui analisada, mas com denavam a escravidão, mas quase ninguém
outro conteúdo: “não sou homofóbico, te- queria dar um passo para viver sem ela”7
nho muitos amigos gays, mas não posso ver (CHALHOUB, 2003, p. 141). Além disso, o
dois homens andando de mão dada”; con- Brasil era o último país que ainda mantinha
clui o autor que quem diz isso é homofóbico. a escravidão no mundo ocidental, o que o
As dimensões linguística e argumenta- isolava internacionalmente. Como se pode
tiva da expressão “não sou racista, mas...” ver, é antiga a prática de falar uma coisa em
indicam que a estrutura tem descompassos: uma instância e negá-la em outra, o que pro-
vocou esquizofrenia identitária.
o nível linguístico aponta desajustes entre
Quanto à Literatura, é importante lem-
o ser e o parecer: alguém que é racista não
brar que o séc. XIX foi um período de for-
quer ser percebido como tal, apesar de de-
mação da identidade nacional, característica
fender explicitamente ideias racistas. Em
muito marcante no romantismo. É significa-
outras palavras: quem é racista não se assu-
tivo que ao negro não foi permitido entrar,
me. Por que isso?
de forma digna e altiva, na configuração ét-
nica criada pela ideologia romântica, lugar
Motivações históricas para a que é ocupado pelo índio, como se pode ver
negação e a permanência do nos romances de José de Alencar.8 O ro-
racismo no Brasil 7 Isso, na prática, equivale a “não somos racistas”,
As formulações da linguagem mantêm as no nível do parecer.
8 Alencar teve companhias ilustres, como Joaquim
contradições de seus usuários, apesar dos Manuel de Macedo, autor de Vítimas algozes,
ardis criados para mascará-las. Nesse sen- obra que tematiza a virulência dos escravos e o
perigo que isso representa para os brancos, razão
tido, pode haver motivações históricas para
pela qual não eram favoráveis à escravidão; O de-
a criação e utilização da estrutura “não sou mônio familiar, peça de Alencar, se move sobre
racista, mas...”, algumas das quais serão esse mesmo terreno; esses autores não questio-
nam nem condenam a escravidão que, em última
examinadas a seguir; outras serão apenas instância deforma a humanidade; pelo contrário,
sugeridas. abonam a inferioridade dos negros.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017 147


“Não sou racista, mas...”: Motivações linguísticas e históricas da proverbial retórica à brasileira para a negação do racismo

mantismo despreza a presença africana e contrário acontecia. Assim, a volubilidade


sua descendência no Brasil como elemento dos narradores e de personagens de Macha-
fundador da nação: “a ficção romântica é do se homologam à volubilidade da alma
capaz de idealizar uma origem mestiça para nacional, deduzida da esquizofrenia identi-
os brasileiros, porém só a imagem indígena tária, aqui, no que diz respeito à relação com
servirá de estofo literário para os autores a escravidão.
da época. Duas obras fundamentais sobres- A ciência no século XIX muito contribuiu
saem sob esse aspecto: O guarani (1857) e para a construção da suposta inferioridade
Iracema (1865), de José de Alencar” (RUF- dos negros, baseada em dados físicos, dada
FATO, 2009, p. 22). Nessas obras só é re- a primazia epistemológica das ciências bio-
tratada a combinação do elemento europeu lógicas. O darwinismo social (apesar de Dar-
com o nativo, com intencional apagamento win ser antirracista), de certa forma, legiti-
da presença negra. mava a escravidão e o domínio branco.
Machado de Assis, escritor de ascendên- A ciência foi apoio e inspiração para
cia africana, é acusado de fazer vista grossa construção ideológica que assumia a infe-
à questão; mas isso é fruto de desconheci- rioridade dos negros. O francês Arthur de
mento de sua obra ou possível resultado da Gobineau defendia com veemência a de-
forma com que foi pintado pela crítica (in- sigualdade das raças humanas; esteve no
sensível ao tema da escravidão), que teve a Brasil de 1869 a 1870. Para ele, haveria a
intenção de branqueá-lo. A forma de narrar degeneração genética do Brasil em menos
machadiana é marcada por acentuada ambi- de 200 anos; para isso, a única saída se-
guidade e isso pode estar relacionado a essa ria a purificação com o sangue europeu;
esquizofrenia identitária da nacionalidade: para a classe dominante, Gobineau era voz
o país não assume o que é e busca aparen- autorizada a justificar a escravidão. Disso
tar o que não é. Schwarz reconhece (em Ma- nasceu a explicação segundo a qual o atra-
chado) o fenômeno da volubilidade de seus so brasileiro se explicava pela suposta in-
narradores, nas obras da maturidade: “[...] ferioridade racial do povo e não do sistema
o narrador não permanece igual a si mesmo escravista (CHIAVENATO, 2012, p. 153).
por mais de um curto parágrafo” (2000, p. No Brasil, Raimundo Nina Rodrigues assu-
30). Há acentuação deliberada de aspec- me esse ponto de vista. Além dele, Oliveira
tos autoritários e perversos da volubilidade Viana e Silvio Romero (1851-1914) preco-
(que evoca a elite política e econômica). Para nizaram o branqueamento como a solução
o crítico, “o Brasil se abria ao comércio das racial para o Brasil. Chiavenato avalia as-
nações e virtualmente à totalidade da cultu- sim o papel que a ciência desempenhou em
ra contemporânea mediante a expansão de relação à escravidão, no Brasil: “No fim da
modalidades sociais que se estavam tornan- escravidão o racismo adotou uma política
do a execração do mundo civilizado” (2000, efetiva, que avançou pelo século XX, apro-
p. 39). Como o tráfico negreiro era consi- veitando-se da emergência do fascismo.
derado pirataria pelo Direito Internacional Por isso, é importante destacar, mesmo
e condenado pela religião, moral, política e rapidamente, os intelectuais, que repre-
economia, o Brasil, para se projetar e se fir- sentaram a cultura oficial e receberam es-
mar no panorama internacional, prometia a tímulos para abastecê-la ideologicamente:
abolição da escravatura, mas internamenteo antes, para legitimar a escravidão; depois,

148 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017


Paulo Sérgio de Proença

par justificar a exploração de classes, que logia escravista. A Igreja Católica apoiou a
reduziu o negro a cidadão de última cate- escravidão; bulas papais autorizaram a in-
goria” (2012, p. 155). vasão da África; Nicolau V,o grande huma-
O mito da democracia racial também teve nista, que fundou a Biblioteca do Vaticano,
participação decisiva nesse processo; refor- autorizou portugueses a apresar negros, sar-
çou a ideia de que no Brasil não há racismo, racenos e inimigos de Cristo. A justificativa:
apoiado na circunstância de que no Brasil os negros seriam batizados e a escravidão
houve convivência aparentemente pacífica seria para “salvar-lhe as almas”. A Igreja
entre negros e brancos. A tese de Gilberto Católica recebia comissões dos traficantes
Freyre ainda hoje é evocada para a defesa (5%) e os papas concediam indulgências aos
desse princípio. portugueses: se morressem nessa missão
Otávio Ianni (2004) considera que, no estariam limpos de qualquer pecado (CHIA-
Brasil, a ideia de democracia racial se deve VENATO, 2012, p. 77-78). A Igreja e muitos
ao fato de que a escravatura aqui teria sido sacerdotes possuíam escravos; além disso, a
diferente, devido à índole pacífica do povo Bíblia era usada para justificar o sofrimento
brasileiro. Isso seria ideologia das elites do dos escravizados, comparado ao sofrimento
Brasil, resultado de invenção de tradições de Cristo.
e “pasteurização da realidade”. Para Ianni,
Gilberto Freyre foi uma matriz importante, Desdobramentos:
pois estudou a sociabilidade, tendo sido pre- invisibilização e segregação
cursor dos estudos sobre identidade e coti- de negros
diano; contudo,
Em nossa história social formou-se uma cul-
[...] alguns estão valorizando esses estu- tura racista, que teve desdobramentos inde-
dos para contrapô-los às teses de Florestan
sejáveis nos períodos posteriores. A cultura
Fernandes e de Caio Prado, já que estas são
escravista nos eixos escravo-senhor ainda
muito incômodas. As elites sempre foram
contra esses estudos. Ou, frente a eles, ficam vige no Brasil.
indiferentes. Esse pensamento [de Gilberto A estrutura senhorial-escravista está ain-
Freyre] está presente em Jorge Amado, Ro- da arraigada no imaginário do brasileiro;
berto DaMata, Darci Ribeiro etc., todos com além dos espaços simbólicos acima indica-
a melhor das intenções, pensando que apro- dos, expande-se, por exemplo, na organiza-
veitando esse potencial democrático ilusó-
ção espacial de nossas cidades, que repro-
rio, ele se tornaria verdadeiro.
duz o imaginário ideológico do escravismo,
Por fim, é importante registrar que esse figurado na relação casa-grande x senzala,
autor reconhece no Brasil um cenário con- que corresponde hoje à relação centro x pe-
traditório sobre racismo; aqui, o que há é riferia. Os espaços (urbanos e rurais) se or-
uma sociedade injusta, fundada no precon- ganizam nesta lógica: ao centro corresponde
ceito: “É uma negação da ideia de democra- o espaço da casa-grande, com todos os privi-
cia racial porque se ela existe, todos estão légios possíveis (serviços, proteção policial,
participando em situação de igualdade, mas infraestrutura, etc.); à periferia resta o es-
sabemos que não é isso o que acontece”. quecimento na oferta de condições de vida:
A religião não ficou indiferente; foi apoio falta água, asfalto, escolas, transporte, po-
importante para o fortalecimento da ideo- liciamento adequado para a defesa da vida

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017 149


“Não sou racista, mas...”: Motivações linguísticas e históricas da proverbial retórica à brasileira para a negação do racismo

e não para o extermínio a que a população apesar de odiar os escravizados. Programas


negra está condenada. 9 A Abolição foi de- de incentivo à imigração dirigida a europeus
cretada (para inglês ver); a escravidão con- brancos, como alternativa produtiva à Abo-
tinua, como meio de exploração. O liberto, lição, são evidências de que os negros foram
sem profissionalização, ficou à margem da preteridos na composição étnica ideal da
produção. Um ex-senhor afirmou que po- nação; além de ser alternativa econômica,
dia melhor explorar os negros, pagando os apresentava a vantagem de embranquecer o
salários com a venda de alimentos, confor- país. Na prática, isso foi oferta de cotas para
me registra Faoro (2009, p. 572: “Nada lhes europeus virem para o Brasil.Considerados
dou; tudo lhes vendo, inclusive um vintém inferiores, os negros foram vítimas de uma
de couve ou leite (…). Pois bem: esse vintém segregação social, sobretudo porque o ideal
de couve e leite, o gado, que mato, a fazenda de nação que aqui se firmou foi e ainda é o
que compro por atacado, e que lhes vendo de nação branca. Isolar e apagar o elemento
a retalho, e mais barato que na cidade, dão negro foram as estratégias adotadas.
quase para o pagamento do trabalhador. Apesar de ser maioria da população bra-
Assim, sob o ponto de vista econômico, sileira, a nação negra não aparece ainda
a escravidão não acabou (nem o preconcei- hoje; está ausente da mídia, das peças de
to, sob o ponto de vista social). Atestam isso propaganda, dos postos de comando, dos
dois programas federais de combate ao tra- lugares de privilégio; ganham menos do que
balho infantil e ao trabalho escravo. Segun- os brancos. Demonizam a religião e manifes-
do Pontes (2017), ao amparo do PETE-Pro- tações culturais dos negros; depreciam a cor
gramade Combate ao Trabalho Escravo, há da pele, o tipo de cabelo, a forma do nariz –
no Ministério Público Federal 459 inquéri- tudo é feio. Esses princípios são reforçados
tos criminais contra suspeitos de submissão em praticamente todos os ambientes: vias
à escravidão, entre 2009 e 2016. Depois de públicas, clubes, igrejas, locaiss de trabalho;
quase 130 anos da Abolição, o país ainda mas é na escola que encontram eco mais
luta contra esse crime perverso, agravado pernicioso, que produzem desdobramentos
por outro afim, o abuso do trabalho infantil, negativos para a formação da identidade de
combatido também por outro programa ofi- nossas crianças10. Com o bombardeio nega-
cial federal, o PETI-Programa de Combate tivo perene aos negros, eles mesmos aca-
bam achando que o mundo branco é melhor
ao Trabalho Infantil.
e acabam contribuindo para o reforço da
A elite brasileira gostava da escravidão,
branquitude11. Negros e negras constroem
9 Já são fartos os índices que escancaram esta
triste realidade: os negros, principalmente os jo- 10 Recentemente foi percebido o efeito nocivo
vens, são exterminados em nosso país. O Brasil que o bullying provoca nas pessoas, sobretudo
reconheceu o fato em 20/03, na OEA-Organi- crianças. Entretanto, poucos notam que não só
zação dos Estados Americanos, o extermínio de as crianças negras, mas todos os negros sofrem
jovens negros no Brasil (GELEDÉS, 2015). Além bullying, no Brasil, há séculos, com xingamen-
de evidências estatísticas, são fartos também es- tos e desqualificação cotidiana, piadas e outras
tudos que o denunciam. Fernandes e Monteiro ações depreciativas. No tempo da escravidão
(2014), por exemplo, apontam a violência física isso não apenas era permitido, mas também in-
e simbólica que se esconde nas estatísticas poli- centivado.
ciais e carcerárias. Os esforços para branquear 11 A branquitude é um sistema que reproduz e pe-
o Brasil ainda estão vigorosos e seduzem até os reniza as desigualdades raciais. Uma obra que se
negros que, afinal, compõem também em boa ocupa do tema é Psicologia social do racismo.
parte a força policial que aterroriza as periferias Estudos sobre branquitude e branqueamento
negras de nossas cidades. no Brasil, organizado por Maria Aparecida Silva

150 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017


Paulo Sérgio de Proença

novo exílio diaspórico, agora de si mesmos, gau de farinha de milho, a tapioca e o pre-
quando se negam ser aquilo que de fato são. paro do peixe assado na folha de bananeira
A invisibilidade do negro é bem sintetiza- são exemplos dessa herança. No Município
nasceu também Mário Augusto Teixeira de
da por Oliveira (2015, p. 24-25):12
Freitas, idealizador e fundador do Instituto
Por muito tempo os descendentes de africa- Brasileiro de Geografia e Estatística.
nos no Brasil conviveram com o estigma de
que sua cor era uma maldição divina, sua
Considerando o aspecto de síntese (tal-
cultura era obscurantista e bárbara, que sua vez por isso mesmo), é digna de nota a au-
religiosidade era demoníaca, sua inteligên- sência total da presença negra no município
cia limitada, e que sua aparência não corres- (e, além disso, nenhuma referência é feita
pondia aos ideais de beleza do mundo civi- ao fato de o município ter participado de
lizado, branco, ocidental. Negros e negras algumas insurreições populares. De fato, o
foram banidos da televisão, das novelas, dos
município se destaca por ter participado em
comercias, dos filmes e dos livros escolares.
A história contada na escola é branca; a be- diversos movimentos de emancipação po-
leza mostrada nos meios de comunicação é lítica no Brasil, tais como a Revolução dos
branca e tudo que enaltece a nossa sociedade Alfaiates (1798), a Independência da Bahia
é branco. (1823), a Revolta dos Malês (1835) e a Sabi-
nada (1837).
Um exemplo breve, mas tocante, sobre
O que choca, contudo, é o silencia quan-
essa invisibilização pode ser buscado em do-
to à histórica presença negra no município,
cumentos oficiais, como é o caso da página
no portal do IBGE. Isso se torna ainda mais
do IBGE sobre o censo de 2010 da cidade de
chocante porque, no excerto reproduzido,
São Francisco do Conde (BA); na página do
há menção honrosa à presença do índio e
portal do Instituto referente à síntese histó-
do branco. A tabela abaixo registra dados
rica da cidade, temos isto:
do censo de 2010 quanto à população que se
A diversidade de etnias que ajudou a cons- autodeclara preta ou parda:13
truir São Francisco do Conde culturalmente
está presente no cotidiano da cidade. As pal- Tabela 1. Dados do censo 2010 (autodeclaração
meiras imperiais, símbolo da administração quanto à cor da pele)
portuguesa, estão por toda parte, as cons-
Critério Valor: Número
truções coloniais são majestosas e conser-
vam a memória da região. Os Tupinambás e População residente 33.183
os Caetés Negros deixaram de legado, entre
outras coisas, uma rica gastronomia. O min- População residente -
16.878
cor ou raça - Parda
Bento e Iray Carone, Editora Vozes. Fora do Bra-
sil, pontifica Frantz Fanon, filósofo e psiquiatra População residente -
martinicano, que escreveu, dentre outros livros, 13.278
cor ou raça - Preta
estes: Pele negra, máscaras brancas e Os con-
denados da terra. Fonte: IBGE
12 A propósito desta invisibilização, Oliveira nota
que, se o negro é invisível em espaços sociais pri- 13 Há oscilação de referência. Negro, preto, pardo,
vilegiados, em outros ele é presença permanente: mulato, etc., são matizes de uma gradação cujo
“no Brasil das favelas, das periferias, das chacinas, objetivo é apagar o negro; a amplitude linguís-
da violência e da miséria a presença do negro e da tica (como se fosse um tabu a pronúncia ou a
negra torna-se bastante visível e concreta e, desta escrita desses termos) é tentativa eufemística de
forma, a política de segregação mantém o negro fuga, é negação da existência do negro, distan-
invisível e à margem da sociedade apesar de sua ciando-o do branco e projetando-o para o lugar
presença ser maciça” (2015, p. 25). do não-ser, da não-existência.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017 151


“Não sou racista, mas...”: Motivações linguísticas e históricas da proverbial retórica à brasileira para a negação do racismo

Em 2010, 90,87% da população da cida- Pergunta a analista: “O que significam


de se autodeclarou preta ou parda.14 A gran- estes números?”. Ela mesma responde: “o
de concentração de negros no município se que os dados do Censo 2010 nos dizem é que
deve ao elevado número de escravizados que há grande desigualdade entre o rendimento
para aqui foram mandados, sobretudo para segundo a cor dos respondentes, mas infe-
trabalhar no clico do açúcar. São Francisco lizmente nada podem nos dizer sobre as cau-
do Conde é um município negro. sas desta desigualdade e muito menos que o
Apesar da expressividade dos números, racismo é a razão delas”. A primeira parte
a página do IBGE (órgão oficial do Estado, da resposta é óbvia; já a segunda (curiosa-
especialista em estatística) silencia quan- mente introduzida por mas) é, no mínimo,
to à característica étnico-racial do municí- desatenta (não seria uma “mentira”, como
pio, apagando sua composição negra. Não ela diz ser a explicação racial para a desi-
é isso uma contradição? Esse ato falho (se gualdade?): ora, se está sendo comparada a
a omissão não foi consciente) é prova con- renda a partir do critério raça-cor e se índios
vincente do esforço que há, inclusive em e negros ganham menos, a explicação não é
esferas oficiais, para a invisibilização do o critério raça-cor?
negro, no Brasil. Continua a jornalista, fazendo referência
Mas, por que, então, esse esforço tre- à explicação que atribui essas diferenças ao
mendo de apagar a presença negra no Bra-
racismo dos brancos: “Então como explicar
sil? Por que não é assumido o preconceito
a diferença entre pretos e pardos? Se pardos
contra os negros, no Brasil?
ganham menos do que pretos, significa se-
Nesse sentido, vale a pena verificar
rem estes racistas em relação aos primeiros,
uma ocorrência recente na mídia eletrôni-
ou que os pardos sejam mais discriminados
ca. A jornalista-antropóloga Yvone Maggie
do que os pretos?” (insinuando que a dife-
(2016), do portal G1 comenta os resultados
rença de renda entre pardos e pretos seria
do censo 2010 sobre a relação entre raça
consequência do racismo dos pardos), para
e cor e a renda per capta mensal de cada
concluir que as desigualdades não devem ter
segmento, considerando os dados divul-
por explicação as diferenças relativas a ra-
gados em novembro deste ano pelo IBGE.
ça-cor. Isso seria uma mentira que, por ter
Os brancos (R$ 1.020,00) e amarelos (R$
sido repetida muitas vezes nos últimos dez
994,00) ocupam os dois primeiros lugares,
respectivamente; indígenas (R$ 345,00), anos no Brasil, acabou sendo verdade, con-
pardos (R$ 496,00) e pretos (R$ 539,00) clui Maggie.
ocupam os últimos lugares, também res- A articulista demonstra desconhecer a
pectivamente. realidade do racismo no Brasil, suas ra-
zões e motivações históricas; desconhece,
14 Esse percentual é muito significativo, porque há também, esforços de nossa sociedade para
muitos negros que não se definem assim, por
efeito ideológico avassalador da branquitude; branquear a população, criando mecanis-
é por isso que há tentativas de alisamento do mos (inclusive linguísticos), para apagar a
cabelo, cirurgias para embelezamento de boca presença do negro, com criação de termos
e nariz (para quem tem recursos financeiros),
artifícios para alisamento de cabelo e utilização atenuantes, como pardo (categoria menos
de cremes para clareamento da pele. É por isso preta, o que muitos chamam purificação
também que o índice de pessoas que se autode-
claram negros ou pardos, no município indica-
do sangue). Essa postura é bem represen-
do, é extremamente significativo. tativa do dilema do Brasil lidar com ne-

152 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017


Paulo Sérgio de Proença

gros e dos esforços em apagá-los de sua ma, seu raciocínio: “Infelizmente, até ago-
história. 15 ra, as interpretações errôneas do censo no
Continua a jornalista com esta ressalva, Brasil têm levado a políticas públicas que
que muito interessa à nossa discussão: “Não induzem a divisões perigosas”. Ora, a divi-
estou dizendo que não existam racismo e são mais perigosa que sempre vivemos é a
discriminação no País. Estou apenas aler- que existe entre brancos e negros, existen-
tando para o fato de que não se pode dizer te desde os primórdios de nossa história.
que é o racismo o causador das diferenças Introduzir na discussão o tema raça-cor é
de rendimento por cor”. Embora não use o perigo que divide? Para a jornalista, sim.
mas para fazer a junção (feita pelo apenas), Isso é mais um efeito da invisibilização dos
há oposição entre as asserções, o que faz negros.
essa afirmação ser equivalente da estrutu- A natureza da matéria é típica do pen-
ra A, mas B, analisada neste trabalho (não samento predominante na mídia brasileira,
estou dizendo que não existam racismo e que reproduz os ideais dos grupos dominan-
discriminação no País, mas estou apenas tes, de ascendência branca. Não é negada a
alertando para o fato de que não se pode conclusão induzida de que, se os pardos e
dizer que é o racismo o causador das dife- pretos ganham menos, é por que são incom-
renças de rendimento por cor). A intenção, petentes. Não seria por que a sociedade nega
com isso, é defender-se da consideração de a eles as mesmas condições de cidadania que
ela afirmar que o Brasil não haja racismo oferece para os brancos?
ou da presunção de ela ser racista, tudo É isso o que está em jogo. Não é somente
porque foi percebido que as considerações a realidade desigual que interessa, mas tam-
defendidas têm teor racista, não assumido bém as explicações para as desigualdades.
(conforme análise feita na primeira parte A matéria representa o pensamento domi-
deste trabalho). nante no Brasil: naturalizar diferenças que
A jornalista conclui alertando para o devem ser entendidas à luz do preconceito
perigo de ser considerado o fator étnico racial que preside ao tratamento desumano
em estatísticas da espécie, aqui e alhures, que os negros temos recebido de forma re-
porque podem induzir a políticas públicas corrente na nossa história; negar conquis-
equivocadas, dentre as quais está a adoção tas, como a política de cotas, projetando
de cotas, no Brasil, concluindo, desta for- elementos de divisão no grupo dos negros,
sugerindo que pardos seriam preconcei-
15 Maggie escreveu o prefácio ao livro Não somos tuosos contra os pretos, porque têm renda
racistas: uma reação aos que querem nos trans-
maior. Pardos e pretos são a mesma gente,
formar numa nação bicolor, do jornalista Ali
Kamel; Miranda-Ribeiro (2006), ao resenhar divididos pela ideologia do branqueamento
essa obra, faz este comentário: “a leitura do livro vigente no Brasil.
desmente essa hipótese [não somos racistas] e
confirma o inverso: o autor acredita piamente A matéria é eloquente exemplo de racis-
na afirmação que faz no título. Portanto, não me mo não assumido contra os negros (como
resta outra alternativa senão afirmar o contrá- revela a expressão “não sou racista, mas...”,
rio: somos racistas”. O livro atesta a permanên-
cia do racismo, sutil ou ostensiva, que estrutu- analisada na primeira parte deste trabalho),
ra a sociedade brasileira, de que faz parte a sua cujos efeitos perversos se multiplicam pela
negação, como se depreende das ideias e textos
de Kamel e Maggie; mas há tantos outros nessa
sociedade brasileira em geral e pela mídia,
trincheira preconceituosa. em particular.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017 153


“Não sou racista, mas...”: Motivações linguísticas e históricas da proverbial retórica à brasileira para a negação do racismo

Considerações finais de; também foram notados na mídia, em


comentário sobre estatísticas oficias sobre
As práticas linguageiras se desenvolvem média de salários percebidos por diferentes
nos cenários em que as interações humanas segmentos étnicos. Com isso, conclui-se que
ocorrem, sem deixar de mostrar as tensões os negros apanham: da polícia, da mídia, do
e contradições da vida em sociedade, apesar governo; continuam a sofrer violência física
das tentativas que são feitas para esse fim. e simbólica.
É o caso da expressão “não sou racista, Com isso, atesta-se a permanência do
mas...”, estudada neste trabalho. A materia- racismo. Se não for pela ação integrada da
lidade de seus aspectos linguísticos revela polícia, da mídia e do governo, pelo menos
uma contradição em termos, porque quem será pelo uso da expressão “não sou racista,
se serve dessa expressão é, sim, racista, o mas...”.
que também fica evidente a partir dos ele-
mentos retóricos que nela estão investidos; Referências bibliográficas
o efeito de sentido pretendido da primeira CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis his-
parte é negar o racismo, mas a segunda par- toriador. São Paulo: Companhia das Letras,
te da expressão o afirma. 2003.
É tendência em nossa tradição cultural FERNANDES, Gustavo; MONTEIRO, Fernan-
essa esquizofrenia identitária em torno do do. Violência racial – A tentativa de redução do
racismo, que oscila entre negá-lo e afirmá ser negro. 2014. Disponível em: http://www.
geledes.org.br/violencia-racial-tentativa-
-lo. Sua origem recua ao séc. XIX, pelo me- de-reducao-ser-negro/#gs.rtoB9GI. Aces-
nos, época na qual são identificadas motiva- so em: 31 jan. 2017.
ções históricas para isso. Na política, a “arte
FIORIN, José Luiz. A linguagem em uso. In:
de bordejar” foi uma espécie de primeira Introdução à linguística I. Objetos teóri-
manifestação dessa natureza; a literatura cos. São Paulo: Contexto, 2003, p. 165-186.
contribuiu para o apagamento do negrona ______. Argumentação. São Paulo: Contex-
constituição étnica do país nascente; pro- to, 2015.
curou-se explicar a suposta inferioridade GELEDÉS. Brasil reconhece extermínio da ju-
do negro por meios científicos, o que contri- ventude negra em audiência na OEA. Disponível
buiu para a solidificação da ideologia racis- em: http://www.geledes.org.br/brasil-reconhe-
ta; a religião, por sua vez, não se ausentou, ce-exterminio-da-juventude-negra-em-audien-
cia-na-oea/#gs.y8hzGso. Acesso em: 05 fev.
tudo abençoando mediante comissões sobre 2017.
os lucros do tráfico negreiro e uso da Bíblia
IANNI, Octavio. O preconceito racial no
para, por meio do sofrimento, aproximar os
Brasil. Entrevista. Estudos Avança-
escravizados do próprio Cristo. dos. vol.18, n.50. São Paulo. Jan.-Abr. 2004.
Isso tudo não ficou no passado. Como o
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
Brasil cultiva o ideal da branquitude, é pre- ESTATÍSTICAS. IBGE Cidades. Disponível em:
ciso apagar e anular o protagonismo dos http://cidades.ibge.gov.br Acesso em: 18 nov.
negros, relegando-os à invisibilidade ou à 2016.
segregação social, o que, na prática, produz KOCH, Ingedore Villaça; TRAVAGLIA, Luiz
o mesmo efeito. Esses procedimentos fo- Carlos. A coerência textual. São Paulo: Con-
texto, 1990.
ram vistos em uma página do IBGE sobre
uma cidade baiana, São Francisco do Con- MAGGIE, Yvone. Racismo e censo. Disponível

154 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017


Paulo Sérgio de Proença

em: www.g1.globo.com/platb/yvonnemaggie/ PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA,


2011/11/18/racismo-e-censo/ Acesso em: 18 Lucie. Tratado da argumentação. A nova
nov. 2016. retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MIRANDA-RIBEIRO, Paula. Somos racistas. R. PONTES, Felipe. Brasil tem mais de 450 inqué-
bras. Est. Pop., São Paulo, v. 23, n. 2, p. 375-377, ritos sobre trabalho escravo sem solução. Dis-
jul./dez. 2006. Disponível em: http://www.scie- ponível em: https://noticias.bol.uol.com.br/
lo.br/pdf/rbepop/v23n2/a12v23n2.pdf Acesso ultimas-noticias/brasil/2017/01/28/brasil-tem
em: 20 dez. 2016. -mais-de-450-inqueritos-sobre-trabalho-escra-
vo-sem-solucao.htm Acesso em: 28 jan. 2017
NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática
de usos do português. São Paulo: UNESP, RUFFATO, Luiz. À flor da pele. In: RUFFATO,
2000. Luiz. (org.). Questão de pele. Contos sobre
preconceito racial. Rio de Janeiro: Língua
OLIVEIRA, Irene Dias de. Qual a cor da sua Geral, 2009
pele? Povo negro construindo identida-
des na diáspora. São Paulo: Fonte Editorial, SCHWARZ, Roberto. Um mestre na perife-
2015. ria do capitalismo: Machado de Assis. São
Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
OLIVEIRA, Luís R. Cardoso de. Racismo, direi-
tos e cidadania. In: Estudos Avançados 18 (50),
2004, p. 81-93. Disponível em: http://www.
scielo.br/pdf/ea/v18n50/a09v1850.pdf. Acesso Recebido em: 02/06/2017
em: 11 dez. 2016. Aprovado em: 15/08/2017

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 141-155, jul./dez. 2017 155


Hibridismos, sincretismos e outras milongas: alternativas culturais na sobrevivência do culto dos orixás no candomblé carioca

HIBRIDISMOS, SINCRETISMOS E OUTRAS


MILONGAS: ALTERNATIVAS CULTURAIS NA
SOBREVIVÊNCIA DO CULTO DOS ORIXÁS NO
CANDOMBLÉ CARIOCA

Dulce Santoro Mendes*

Claudio São Thiago Cavas**

Resumo
O presente artigo intenciona discutir as alternativas culturais em prática na
formação docosmo religioso do candomblé carioca, e como atuam por hibri-
dismos ou sincretismosna composição de uma casa de santo. Procurou-se
compreender como estas estratégias de convivência, entre divindades antes
cultuadas em diferentes regiões africanas, contribuem para a formação da
identidade dos adeptos desta casa. O terreiro e o indivíduo passam a ser o
universo onde estas alternativas culturais serão negociadas mútua e conti-
nuamente. Os contextos históricos do Rio de Janeiro, desde o período co-
lonial, as transformações sociais, e a mobilidade dos grupos praticantes das
religiões de matrizes africanasapresentados concorreram como panos de
fundo dos cenários aonde surgiram religiosidades particulares, consideradas
como sincréticas ou hibridas.
Palavras-chave: Religiosidades cariocas; candomblé; identidades coleti-
vas e particulares.

Abstract
HYBRIDISM, SYNCRETISM AND OTHER MILONGAS: CULTURAL
ALTERNATIVES IN THE SURVIVAL OF CANDOMBLE ORISHAS’
CULT IN RIO DE JANEIRO
The present article intends to discuss the cultural alternatives in practice in
the formation of the religious cosmo of the candomblé carioca, and how they

* Geógrafa, mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutoranda do programa
Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social EICOS IP UFRJ. O presente texto é parte da pesquisa
de doutorado que tem como tema as religiosidades em comunidades quilombolas em curso na Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro-Instituto de Psicologia-programa de pós-graduação EICOS. Email: issa-
nilu@gmail.com
** Psicólogo, Mestre em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de Paris X, Doutor em Psicos-
sociologia de comunidades e Ecologia social pelo EICOS/UFRJ. Professor do Instituto de Psicologia da
UFRJ onde atualmente orienta a pesquisa que tem como tema as religiosidades em comunidades quilom-
bolas. Email: claudiocavas@gmail.com

156 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017


Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas

act by hybridity or syncretism in the composition of a house of saint. It was


tried to understand how these strategies of coexistence, between divinities
previously worshiped in different African regions, contribute to the forma-
tion of the identity of the adepts of this house. The terreiro and the individual
become the universe where these cultural alternatives will be negotiated mu-
tually and continuously. The historical contexts of Rio de Janeiro, from the
colonial period, the social transformations, and the mobility of the groups
practicing the religions of African matrices, presented as the background of
the scenarios where particular religiosities appeared, considered as syncretic
or hybrid.
Keyswords: Carioca religions; candomblé; collective and private identities.

Epígrafe
...o corpo da yaô tremeu de repente em um até o pé de tempo. Comunica-se com gestos
espasmo medonho, e mesmo sentada no bruscos, bate no peito, não é dado a agra-
chão sentiu a força que a fez levantar de dos. Dizem que se porta como um caboclo,
uma só vez... Em torno dela, as pessoas se um bugre, um índio! Mas...
agitaram e se preparam para a chegada de
Iansã. Estranhamente algo diferente acon- (Oyaissanilu, 2014)
teceu, não era a rainha dos eguns que vinha
visitar o Ilê, na comemoração dos seis meses
de feitura naquele final de semana. O “san-
Muito se fala de sincretismo religioso
to” ao mesmo tempo em que deu um salto
soltou o seu ilá, como se fora um pássaro no Brasil, e como exemplo, utiliza-se a um-
selvagem na mata escura, uma gargalha- banda como modelo único desta que seria
da guturalcortou o espaço da casa de santo a composição tanto controversa quanto po-
desde o pé de tempo até onde ficaria a casa pular de religião sincrética. Mas, o candom-
das Yamins. O susto dos poucos presentes bléapontado como aquele que guarda a origi-
foi grande, não tanto quanto a contrarie-
nalidade e pureza africanas, desde seu inicio
dade demonstrada pelo pai-de-santo. O que
fazia aquela divindade na cabeça daquela na Bahia, constituiu-se a partir de fragmen-
yaô tão nova? Como e porque quebrava o tos da memória dos indivíduos organizados
preceito da casa? Apressadamente, o Ba- em grupos para a prática religiosa, portanto,
balorixá intercedeu e solicitou que Baran- é considerável um grau de misturas, sincre-
guanje tivesse paciência e aguardasse que tismos e hibridismos em sua composição,
no ano seguinte, uma festa seria realizada
mesmo que ao longo do tempo, estas ques-
em sua homenagem. Disse-lhe que estava
quebrando um preceito importante e que tões tendessem para um lado ou para outro.
não tinha o direito de estar ali! Passados A contribuição em maior ou menor grau das
quase trinta anos, o Inquice angolano con- culturas africanas, indígenas, e europeiasfi-
tinua a ter rara presença na casa de santo cou marcada, sobretudo na religiosidade do
que tem tradição queto, e quando aparece povo brasileiro. Esta religiosidade, derivada
são momentos marcados por grande como-
das muitas adequações e proveniências his-
ção, já que se manifesta de forma bruta e
fora dos padrões que a casa está acostuma- tóricas em contextos em que se desenvolveu
da a lidar. Não aceita ficar sob a cumeeira no Brasil, incorporou elementos regionais,
da casa de santo, e sai aos pulos e gritos condições de vida, sociabilidades, cotidia-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017 157


Hibridismos, sincretismos e outras milongas: alternativas culturais na sobrevivência do culto dos orixás no candomblé carioca

nidades, tornando-se diversificada e forma- ço físico da casa de santo, e mutuamente, as


dora de identidades culturais no território entidades de umbanda, os encantados, e os
nacional. orixás do candomblé nele se manifestam e
Neste texto os conceitos de hibridismo, convivem pacificamente. O objetivo deste
sincretismo, justaposições culturais, e as trabalho é discutir esta convivência, e como
“milongas” serão discutidos como alternati- contribuem para a formação da identidade
vas para a manutenção e sobrevivência dos dos filhos de santo da casa.
cultos religiosos de matrizes africanas no
Rio de Janeiro, sob a abordagem dos estu- Sincretismos, Hibridismos,
dos culturais e pós-coloniais. Será, portan- Justaposições e outras
to, possível considerar que, as religiões de
misturas
matrizes africanas encontraram formas pa-
cíficas de convivência entre as divindades O conceito de sincretismo associado à do-
provenientes de diferentes regiões do con- minação colonial há muito tem recebido
tinente africano, que foram aqui reunidas criticas daqueles que preferem utilizar em
no mesmo espaço físicodo terreiro utilizan- substituição, o de hibridismo, que propu-
do-se dediversas estratégias culturais para a nha uma tomada de posição política propos-
sobrevivência dos cultos da forma como são to pela emergência dos estudos culturais e
conhecidos hoje. pós-coloniais. A associação do sincretismo
As religiões brasileiras de matrizes afri- à ideia de “aculturação” foi utilizada com
canas são produtos de contribuições das vá- base em teorias antropológicas norte-ame-
rias naturezas, origens, intensidades e prin- ricanas nos anos de 1950, e os dois conceitos
cipalmente, do meio natural e social em que associados suportaram positivamente, os
se desenvolveram, além disso, não se pode graus de integração entre culturas diferen-
tes (FERRETI, 2014, p. 17). O conceito de
atestar “pureza” e “autenticidade” como
sincretismo em Roger Bastide1 (1898-1974),
únicos atributos possíveis presentes nas
bastante presente na sua vasta produção so-
discussões que polarizam os candomblés de
bre os africanos na América, teve no Brasil
origem “nagô” de um lado e todas as outras
significação especial na análise das religiões
variantes do outro lado. Neste contexto, as
afro-brasileiras.
várias manifestações religiosas, que com-
Na formulação do conceito de sincretis-
põem o escopo místico brasileiro, demons-
mo, Roger Bastide desenvolveu o principio
tram que é perda de tempo insistir que haja
de corte, 2 após abandonar as teorias de Lévy
vantagem de uma prática sobre outra, já que
1 Roger Bastide foi o sociólogo francês que veio
basta uma observação da distribuição geo-
para o Brasil ministrar sociologia na USP em
gráfica dos terreiros, em praticamente, to- 1938. Estudou durante anos as religiões afro
dos os estados brasileiros, para atestar que, -brasileiras, assunto que lhe rendeu anos de es-
tudo e uma vasta obra que serve de referência
fora raríssimas exceções, a mistura, a justa- para as pesquisas sobre o tema.
posição, o hibridismo e o sincretismo estão 2 O princípio de corte foi cunhado por Bastide em
presentes. sua tese de “interpenetração de culturas” para se
opor as concepções da época de que a realidade
Da mesma forma como este cosmo hí- brasileira fora forjada em um conjunto de dico-
brido se constitui nos espaços de convivên- tomias, opondo modernidade e tradição, cidade
e campo, brancos e negros, como se vivessem em
cia do terreiro, se projetou nos corpos dos universos separados. Com seu principio de corte
adeptos. O corpo se tornou reflexo do espa- tentou refutar as teses funcionalistas que defen-

158 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017


Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas

Bruhl3 (1857-1939), sobre o pensamento mesmos espaços, se corresponder, ou não


primitivo em voga na década de 1930 (FER- se corresponder, mas não se opor, e sim se
RETI, 1995, p. 55), que lhe havia servido de complementar.
ponto de partida para os estudos sociológi- Nesse sentido, Bastide (1974, p. 79-83),
cos sobre onegro e as religiões afro-brasilei- entre outras formas de sincretismo, consi-
ras durante o período que ministrou socio- derou esta uma forma de contato entre as
logia na Universidade de São Paulo. A ideia religiões africanas e indígenas que segundo
chave das argumentações de Bastide cor- ele, resultou do tensionamento continuado
respondeu à cisão entre os pensamentos de entre “elementos africanos [que] permane-
Nina Rodrigues4 (1862-1906) e Euclides da cem presos nas estruturas indígenas, ou ao
Cunha5 (1866-1909), que pensavam a socie- contrário, (porque) os elementos índios se
dade brasileira da época buscando interpre- veem presos nas estruturas africanas”. Ao
tá-la pelas dualidades de sua composição, e tecer comparativos entre as vertentes reli-
o arsenal teórico de Lévy-Bruhl para quem giosas africanas e indígenas, alega que na
a lógica primitiva se dava segundo a lei de época estudada, o quantitativo de africa-
associação de ideias, por contiguidade e por nosera pouco significativo em regiões onde
predominou a religião indígena- o catimbó6,
similaridade (BRUHL, 1910). O princípio de
e teria sido por esta razão, que as contribui-
corte estabelecido por Bastide na temática
ções dos negros tenham sido pequenas,
do sincretismo nas religiões afro-brasileiras
correspondeu as suas tentativas de solucio- “Os negros não são muito numerosos nas
nar o problema trazido pela ideia funcio- regiões onde domina esse culto, mas alguns
nalista de aculturação mais utilizada pela deles o frequentam e introduziram, assim, na
lista dos Espíritos que falam pela voz do sa-
antropologia norte-americana, preferindo
cerdote, as almas dos negros falecidos ou de
utilizar a de “interpenetração cultural”, mas negros míticos (como o Pai Joaquim). Mas o
próxima a justaposição cultural observada, sincretismo se confina aí: simples adição de
já que admite que o que parece ser uma úni- Espíritos negros aos Espíritos índios.A es-
ca opção dentro do individuo, que escolhe as trutura do culto não muda; permanece imu-
religiões afro-brasileiras para seguir, é o fato tável, semelhante ao que era desde a coloni-
zação dos índios pelos brancos” (BASTIDE,
de que são separadas, podem conviver nos
1974, p. 79-80).
diam a aculturação conforme preferia utilizar a
antropologia americana. Na análise de Bastide, o catimbó foi um
3 Lucien Lévy-Bruhl, filósofo e sociólogo francês, exemplo de sincretismo que ilustrou a coe-
lecionou filosofia no liceu de Poitiers e depoisno
liceu de Amiens. Doutorou-se em filosofia em xistência sem fusão entre a religião indígena
1884 com a tese a idéia de responsabilidade. que recebeu em sua estrutura, os elementos
4 Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) foi um africanos. Da mesma forma, considerou que
médico legista e psiquiatra que desenvolveu pes-
quisas antropológicas sobre o negro brasileiro. 6 Na definição de Roger Bastide, o catimbó é de
Sua obra, fortemente influenciada, pelas noções origem índia (id.2011,p.146). Entre os seus ele-
positivistas do criminologo italiano Cesare Lom- mentos constitutivos tem-se “o uso da defuma-
broso, defendia a existência de raças humanas, ção para curar doenças, o emprego do fumo para
para as quais deveria haver códigos penais dife- entrar em estado de transe, e a ideia do mundo
rentes. Seu objetivo acadêmico foi demonstrar a dos espíritos entre os quais a alma viaja durante
inferioridade da “raça” negra. o êxtase”. O catimbó é uma variante da umban-
5 Euclides da Cunha (1866-1909), escritor, jorna- da regionalmente contextualizada no nordeste
lista, professor e poeta brasileiro, autor da obra do Brasil, e tem como principal elemento consti-
"Os Sertões" onde relatou a guerrade Canudos, tutivo a bebida de nome “jurema” que auxilia os
cobrindo-a como jornalista. praticantes na entrada do estado de transe.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017 159


Hibridismos, sincretismos e outras milongas: alternativas culturais na sobrevivência do culto dos orixás no candomblé carioca

o candomblé de caboclo7 teria se dado ao acaso das invocações ou dos transes espon-
contrário, “no sentido de a estrutura desse tâneos. No espiritismo de Umbanda, que
culto permanecer essencialmente africana, saiu da macumba, aparece uma dogmática:
os espíritos dos mortos, particularmente dos
e de que são os Espíritos dos índios que vão
velhos negros falecidos e os caboclos que
agora inserir-se nesta estrutura estrangeira” constituem as forças espiritualizadas da na-
(id. ibid. p, 80). Em nenhuma variante reli- tureza formam imensos exércitos chamados
giosa de cultos envolvendo índios e negros, “falanges” e, à frente de cada falange, há um
Roger Bastide admite qualquer espécie de general, que é um Orixá, seja sob seu nome
fusionamento entre ambas. Mesmo quanto africano, seja sob o nome do seu correspon-
dente católico” (id. Ibid. p, 83).
analisa o candomblé de caboclos comparan-
do-o com a pajelança8, que em sua opinião Acusa o sincretismo surgido nas metró-
“o ritual difere pouco das práticas africanas poles de controlador e de impor uma seita
dessas seitas bantos [...]; a estrutura das ce- dentro de padrões de modernização e afas-
rimônias é idêntica à das cerimônias africa- tada das chamadas seitas bárbaras. Nestas
nas – mas não se realizam nem ao mesmo seitas ele se refere à fusão, através do mito
tempo nem no mesmo dia” (id. ibid. p,81). das três raças fundadoras da sociedade bra-
Ele se apega no fato de ser possível a con- sileira recuperando criticamente o mito
vivência entre as duas religiões, e chama de da democracia racial forjado por Gilberto
justaposição entre os cultos de índio e de Freyre (BASTIDE, 1974, p. 83).
africano, inclusive na divisão física do ter- Para o sociólogo francês, o sincretismo
reiro e no calendário litúrgico. existe nas estruturas religiosas sob dife-
Apesar de admitir, a existência de can- rentes formas. O sincretismo espacial, re-
domblés de caboclo como seitas misturadas, ferindo-se aos espaços físicos dos terreiros
conforme descreve, Bastide (1974) consi- de candomblé, seria caracterizado pela “or-
dera que a macumba e umbanda no Rio de dem da própria natureza dos objetos que aí
Janeiro sejam cultos vastos e impulsionados se vão inserir e que são sólidos indeformá-
pelo sincretismo que tende a mistura, já que veis, o sincretismo aqui não pode ser fusão,
ele desenvolve vários tipos de sincretismo permanece sobre o plano da coexistência
nas suas discursões, ele atribui a confusão de objetos discordantes, ou sincretismo em
a excessiva fragmentação dos exércitos de mosaico”, e neste caso, o que ocorre é um
entidades comandadas por orixás, santos processo de justaposição, em que “os pejis9
católicos, índios ou espíritos de pessoas de- africanos e altares católicos se distribuem
sencarnadas como os pretos velhos, para ele sem se encontrar, mas também reconhece
“A macumba do Rio e do Estado da Guana- uma espécie de justaposição nos espaços
bara é uma roda louca de Exu, de Orixá e o maisrestritos como os altares da macumba,
das almas desencarnadas e de caboclos, ao com pedras, garrafas de aguardente, cru-
zes, moringas, terços bentos, círios etc (id.
7 Para Reginaldo Prandi (2011, p.122) os candom-
blés de caboclos surgiram na Bahia, e foram as- ibid.p, 143).
sim denominados para marcar a diferença entre Bastide identificou um tipo de sincretis-
eles e a modalidade de candomblé nagô, já que
mo sem fusão, que a princípio se poderia
em estrutura ritual e litúrgica se assemelha aos
candomblés de nação angola. 9 Os pejis são os lugares reservados em uma casa
8 A pajelança é uma variante de seita de matriz afri- de candomblé onde serão mantidos os elemen-
cana mais difundida na região norte do Brasil, e tos rituais, vestimentas, paramentos que os ori-
tem segundo Bastide (1974), realidade indígena. xás irão utilizar em visita ao terreiro.

160 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017


Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas

imaginar com a associação entre os deuses significa a tendência dos grupos e das identi-
africanos e os santos católicos, nas oportu- dades culturais se combinarem, resultando
nidades que tinham os negros para cultuar em identidades e grupos renovados (SILVA,
seus deuses, enquanto os brancos homena- 2000, p. 67). Por seu caráter ambíguo e “im-
geavam seus santos, e no computo geral, na- puro”, o conceito de hibridismo adequou-se
quele contexto histórico, validou a constru- melhor aos estudos que destacaram a flui-
ção de tábuas de correspondência entre as dez e a instabilidade na formação das iden-
características próprias entre as divindades tidades culturais a partir da valorização de
africanas e europeias. Dessa rápida análi- outros conceitos como: mestiçagem, sincre-
se do conceito de sincretismo em Bastide, tismo, tradução e cruzamento de fronteiras
pode-se começar a entender que talvez, a aplicáveis nesta construção.
incompreensão de seus leitores críticos te- Canclini (1997) foi o teórico pioneiro na
nham o acusado precipitadamente, ou pelo discussão sobre o hibridismo, denominado
menos, faltou prestar mais atenção à grande por ele de hibridação, considerado como
contribuição do sociólogo francês aos estu- um conceito libertário, fertilizador e cria-
dos das religiosidades africanas na América. tivo, próprio para aplicação na análise de
O que Roger Bastide criticou na macum- sociedades multiculturais como as surgidas
ba do Rio de Janeiro não foi o aspecto re- na América após o projeto colonizador eu-
lacionado aos sincretismos, que explorou ropeu. O conceito de hibridação, sugerido
incansavelmente em sua vasta obra, e sim, por Canclini, se refere ao modo pelo qual
a estrutura ritual, a abrangência e admissão “modos culturais ou partes desses modos
de elementos de forma desorganizada, além se separam de seus contextos de origem e
de, no seu entender, a falta de padrão que se recombinam com outros modos ou par-
se pudesse comparar com a emergência do tes de modos de outra origem, configuran-
nagocentrismo10, que estava sendo gestado do, no processo, novas práticas” (CANCLI-
na Bahia sob as ideias de preservação das NI, 1992). O caráter político que encerra o
tradições africanas na América. conceito cancliniano irá fundamentar suas
O mau uso histórico do conceito de sin- discussões a cerca das articulações entre a
cretismo o aproximou da noção de mistura, modernidade e a pós-modernidade, entre a
transformação, deterioração de culturas, de cultura e o poder (id. ibid, p. 264), mas seria
perda de pureza e de autenticidade, e por ultrapassado pelas críticas de servir como
isso, passou a ser um conceito rechaçado “um sucedâneo para o aumento de consu-
pelos religiosos de denominações mais radi- mo dedeterminados bens culturais” (KERN,
cais por um lado, e por outro lado, rejeitado 2004, p. 62).
por teóricos adeptos do conceito de hibridis- A utilização do conceito de hibridismo
mo como uma versão mais ampla e pós-mo- nas temáticas religiosas a partir dos estu-
derna das interações culturais das quais foi dos culturais e pós-coloniais vai ampliar sua
resultante. utilização incorporando os contextos histó-
No contexto da teoria pós-estruturalis- ricos, políticos, sociais e culturais, ao reco-
ta e da teoria pós-colonialista, o hibridismo nhecer mais diretamente as interações entre
10 O conceito de nagocentrismo foi desenvolvido a estes contextos e os fenômenos religiosos.
partir de estudos sobre as religiões de matrizes
africanas com valorização das culturas sudanês
Para Engler (2011), a distinção não é níti-
ou nagôes / iorubás sobre os bantos. da, e na prática; ela aponta para doisextre-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017 161


Hibridismos, sincretismos e outras milongas: alternativas culturais na sobrevivência do culto dos orixás no candomblé carioca

mos de um espectro. Os estudiosos da reli- individuação colonial que reverte os efeitos


gião destacam elementosreligiosos nas suas da recusa colonialista, de modo que outros
análises de formas híbridas, mas, em geral, saberes “negados” se infiltrem no discurso
dominante e tornem estranha a base de sua
o uso do hibridismo destaca uma varieda-
autoridade – suas regras de reconhecimen-
de mais abrangente de dimensões culturais to” (BHABHA, 1998, p. 165).
da modificação religiosa, e complementa: o
sincretismo é geralmente visto como um fe- Mas, as críticas que atingiram Canclini
nômeno interno à religião (ENGLER, 2011, em determinado momento, também alcan-
p.20). çaram Bhabha, e tanto um quanto o outro,
Entre sincretismos e hibridismos cultu- foram acusados de servir à cultura hege-
rais e suas polêmicas aplicações, Stuart Hall mônica com seus conceitos de hibridismo
já havia tentado promover a conciliação (KERN, 2004, p. 64), que para os seus críti-
entre os polos da discussão afirmando que, cos serviram, no final das contas, à domina-
estes conceitos produzem novas formas de ção colonial. As críticas aos conceitos desen-
cultura apropriadas à modernidade tardia, volvidos por Canclini e Bhabha continuam
que às velhas e contestadas identidades do ainda hoje sob a égide da não contemplação
passado (HALL, 1992, p. 91), mas que em dos mecanismos modernos de apropriação
contrapartida, geram custos e relativismo, do arsenal teórico das culturas híbridas pelo
perda de tradições locais e aumento dos fun- poder hegemônico, e os embates entre colo-
damentalismos. nizadores e colonizados continuam sofren-
A insatisfação com as definições e aplica- do os embates travados pelas estratégias
ções práticas do conceito cancliniano foi ali- desenvolvidas por ambos os lados. O colo-
viada com a projeção do pensamento do teó- nizador se apropriando do discurso do colo-
rico Homi Bhabha, que a partir dos anos 90, nizado para marcar sua posição de poder, e
amplia o alcance conceitual de forma mais consumindo o que as culturas híbridas têm
agressiva com a teorização proposta no seu para oferecer, enquanto o colonizado repete
livro: O local da cultura, em que, segundo e banaliza o discurso da “diferença”, e desta
ele, o hibridismo localiza-se no interior dos forma ilusória de resistência, consegue so-
discursos estabelecidos entre colonizador e mente, alimentar as práticas de apropriação
colonizado (1998), rompendo com a ideia de pelo grupo hegemônico.
ser um conceito conciliador e intermediário De forma que, para esta análise em par-
entre culturas. Segundo ele ticular, entre as possibilidades religiosas
do sincretismode Bastide, e a biologizante,
“o hibridismo representa aquele “desvio”
embora cultural, adjetivação do hibridismo
ambivalente do sujeito discriminado em di-
reção ao objeto aterrorizante, exorbitante, de Canclini e Bhabha pretende-se verificar,
da classificação paranóica – um questiona- qual delas se aplica ao estudo das estraté-
mento perturbador das imagens e presenças gias de convivência, entre as divindades de
da autoridade. [...] O hibridismo não tem origens diferentes, no mesmo espaço do ter-
uma tal perspectiva de profundidade ou ver- reiro em candomblés cariocas, e como estas
dade para oferecer: não é um terceiro termo
relações ocorrem no interior dos sujeitos
que resolve a tensão entre duas culturas, ou
as duas cenas do livro, em um jogo dialéti- adeptos destas religiosidades.
co de “reconhecimento”. [...] O hibridismo Desde o período colonial, o contato con-
é uma problemática de representação e de tinuado entre as culturas diversas que apor-

162 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017


Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas

taram no Rio de Janeiro, produziu modifi- canos aprisionados nas regiões centrais da
cações nos sistemas centrais de cada uma África, enviados para o interior do estado
delas. Esta aproximação, entre culturas com ou para ficarem na Corte Imperial, aon-
contribuições maiores ou menores das et- de se aglomeraram nas imediações do Cais
nias africanas e indígenas, estabeleceu um do Porto da cidade. A presença deles e de
campo de forças, que durante algum tempo seus descendentes, durante anos nas regiões
e em determinados ambientes geográficos e centrais da cidade colonial e adjacências,
sociais, teve a cultura europeia como supor- construiu uma espacialidade própria para o
te para o desenvolvimento de uma religiosi- trabalho, festejos e práticas religiosas, que
dade sincrética. desde inicio foram mal vistas pela socieda-
Essa singularidade religiosa do povo bra- de local e autoridades cariocas, que termi-
sileiro, em geral, e do carioca, em particu- naramprimeiro por proibir ajuntamentos e
lar, tem atraído a atenção de estudiosos dos batucadas, e depois, por questões politicas
diversos campos de conhecimento tendo deliberadas, expulsaram estas populações
em vista a sua condição única, e altamente pobres para as periferias, morros e para a
complexa, representada pela confluência de Baixada Fluminense.
dimensões históricas, sociais, econômicas e Enquanto o centro do Rio de Janeiro e
culturais que incidem em sua cotidianidade. adjacências foi polo de encontros com finali-
Incialmente, na tentativa de explicar a gêne- dades religiosas, vários episódios envolven-
se do povo brasileiro, alguns teóricos produ- do a cultura popular que ali nascia, foram
ziram verdadeiros tratados sobre questões registrados na literatura, inclusive do apa-
religiosas, aumentando os “antagonismos recimento do samba carioca (CONDURU,
entre as culturas”: a europeia e a africana, 2010). As crônicas publicadas na Gazeta de
a católica e a maometana, a dinâmica e a fa- Notícias11 no início do século XX por João do
talista (FREYRE, 1932), que Gilberto Freyre Rio (2006), codinome do jornalista Paulo
considerou como sendo caracteres especiais Barreto, apesar do tom “fantasioso” que em-
da colonização do Brasil, e da formação “sui prestou ao personagem “informante”, des-
generis” da sociedade brasileira. creveu pormenorizadamente, cerimônias
A passagem do tempo histórico entre as importantes dos cultos africanos, confir-
duas temporalidades marcadas, entre a che- mando a vocação religiosa diversificada da
gada dos primeiros africanos e a abolição da cidade, registrando que “o Rio, como todas
escravatura no século XIX, foi acompanhada as cidades nestes tempos de irreverência,
pelas discussões sobre os conceitos de sin- tem em cada rua um templo e em cada ho-
cretismo e de hibridismo levando em conta mem um crença diversa” (RIO, 2006, p.15).
os processos socioculturais nos quais estru- Autores como Agenor Miranda (1994),
turas ou práticas discretas, que existiam de em seu livro “Os candomblés antigos do Rio
forma separada, se combinaram para gerar de Janeiro: As nações Ketu – origens, ritos
novas estruturas, objetos e práticas, que po- 11 Periódico que circulou no Rio de Janeiro entre
deriam surgir como resultado imprevisto de agosto de 1875 e 1942, fundado por Manuel Car-
neiro, José Ferreira de Araújo e Elísio Mendes,
processos migratórios na geração de novas introduziu uma série de inovações na imprensa
estruturas (CANCLINI, 2003). O Rio de Ja- brasileira. Promoveu debates de grandes temas
nacionais como: antimonarquistas e abolicionis-
neiro constituiu-se em importante centro tas. Foi em suas páginas que surgiram os primei-
distribuidor de grande contingente de afri- ros artigos a favor da abolição da escravatura.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017 163


Hibridismos, sincretismos e outras milongas: alternativas culturais na sobrevivência do culto dos orixás no candomblé carioca

e crenças”, relata a mobilidade de pessoas 2010, p. 182), é incontestável a preponderân-


vindas da Bahia, de Pernambuco e da Áfri- cia de Pai Joãozinho e sua representatividade
ca para a formação de candomblés em Mes- para o candomblé carioca.
quita12 no ano de 1926. A grande dinâmica
dos africanos e seus descendentes brasilei- O candomblé híbrido de
ros entre Rio de Janeiro e outros estados, Joãozinho da Goméia
assim como, entre o Rio e as várias regiões
do continente africano, teria garantido tam- A presença maciça de mães e pais de santo
bém a troca de saberes e fazeres religiosos, baianos no Rio, nos anos iniciais até a pri-
e as constantes atualizações promovidas meira metade do século XX, tendeu a recriar
por estas viagens, que construíram redes de os seus axés em terras cariocas, mas seria
relações que se mantiveram e [só fizeram] tolo afirmar que mesmo as tradições mais
crescer com o passar do tempo (CONDURU, resistentes não tivessem sucumbido aos in-
2010, p.180). tercâmbios entre as casas do Rio de Janei-
Apesar da ocorrência de ritos de nação ro e da Bahia, que resultaram na adoção de
Quetu marcar a vida religiosa do Rio de Ja- práticas religiosas que lá seriam considera-
neiro até final dos anos 30, tendo Eugênia das pouco ortodoxas.
Ana dos Santos, Mãe Aninha13 (1869 – 1938) Foi no município de Duque de Caxias,
fundadora do terreiro de candomblé do Axé que João Alves de Torres Filho, mais conhe-
Opô Afonjá14 em Salvador e no Rio de Janei- cido como Joãozinho da Goméia, estabele-
ro, e como figura central do candomblé nagô ceu o seu terreiro de candomblé angola no
em terras cariocas divulgou a religião deixan- final da década de 1940, após uma anterior
do suas filhas de santo como responsáveis tentativa frustrada. A história de Joãozinho
pelas casas. A partir da década de 1940, será da Goméia é tão conflituosa quanto contun-
a vez dos candomblés dos bantos se firma- dente, e muito já se produziu sobre esta fi-
rem com Joãozinho da Goméia (1914-1971) gura impar do candomblé brasileiro. A vida
na liderança do terreiro em Duque de Caxias. desse pai-de-santo baiano foi rodeada de
Embora os ritos de angola existissem em ter- polêmica e controvérsia sobre sua maneira
ras fluminenses antes dele, como as comuni- de conduzir e praticar a religião do candom-
dades do Bate Folha de João Lessengue (?- blé, atitudes que marcaram sua trajetória e
1970), fundada por ele em 1941 no bairro de sua vida, porém, a sua maior virtude foi o
Anchieta, e de João Gambá (?) que existia em enfrentamento de preconceitos religiosos,
Pendotiba, Niterói, desde 1910 (CONDURU, raciais, sociais e sexuais. Como grande di-
vulgador da religião afro-brasileira em ter-
12 Mesquita é um município da região metropoli-
tana do Rio de Janeiro, e foi parte do município ras fluminenses conseguiu desagradar a
de Nova Iguaçu até o ano de 1999, quando se todos, utilizando a estratégia de mostrar o
emancipou. No período relatado pelo Prof. Age-
nor Miranda Mesquita pertencia a área de Nova candomblé como um evento social extrain-
Iguaçu. do dele aquilo que seria mais aceito pelo
13 Eugênia Ana dos Santos- Mãe Aninha foi a fun-
público em geral: os cantos, as danças e as
dadora o Ilê Axé Opô Afonjá no Rio de Janeiro e
na Bahia no inicio do século XX. vestimentas (GAMA, 2012, p.101), e que te-
14 Ilê Axé Opó Afonjá, ou Centro Cruz Santa do Axé ria também, continuado a trazer sobre João
do Opó Afonjá, foi fundado por Eugênia Ana dos
Santos, em 1910, no bairro do Cabula em Salva- da Goméia, a desaprovação daqueles que o
dor na Bahia. criticaram anteriormente em Salvador.

164 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017


Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas

O baiano de Inhambupe, iniciado aos como se o Rio de Janeiro tivesse sido o úni-
16 anos por Severiano Manoel de Abreu ou co berço delas.
Jubiabá, promoveu grandes festas no seu Enquanto na Bahia ocorriam os movi-
terreiro, que divulgava em um calendário li- mentos de luta para organizar e padronizar
túrgico distribuído pelo comercio local, em os cultos de matrizes africanas evocando as
idiomas estrangeiros, atraindo desta forma, ortodoxias das casas mais antigas de Salva-
os turistas estrangeiros, além de muitas fi- dor comandadas por mulheres, que tinham
guras da sociedade carioca para o terreiro como padrões indiscutíveis de “pureza” e
em Duque de Caxias. Sob a acusação de fazer “autenticidade” o cumprimento estrito dos
macumba para “inglês ver”, em alusão a ex- ritos e preceitos de acordo com o que fora
ploração turística das suas “performances” instituído a partir das discursões sobre os
religioso-artísticas que transformaram o destinos das religiões de matrizes africanas,
seu terreiro de candomblé, em ponto de re- para evitar principalmente, a degradação
ferência internacional, e para onde afluíam dos ritos, e consequente perda das tradições,
figuras importantes do cenário político e do e em consequência, promover a manuten-
“high society” carioca, fatos abundantemen- ção e continuidade da religião, segundo seus
te registrados em jornais e revistas da época. preceitos e fundamentos. O efeito destes
As críticas dirigidas a Joãozinho da Go- movimentos dasvertentes nagôs foi a oposi-
méia falavam de seus trejeitos pessoais, e ção do que não deveria permanecer no lado
de seu comportamento diante da religião, indesejado das práticas religiosas, incluindo
aspectos considerados inadequados pelas aí, as outras variantes do candomblé, sabi-
grandes Yalorixás15 baianas, e pelos pesqui- damente aos candomblés de caboclos, e os
sadores que com elas fizeram coro. candomblés da nação angola, que amarga-
As pesquisas sobre as origens das reli- ram um espécie de “abafo” no cenário literá-
giões dos africanos basearam-se principal- rio nacional.
mente, nas dicotomias que envolveram a O fato de Joãozinho incorporar o seu ca-
hierarquização étnica contrapondo nagôs boclo de pena, “seu Pedra Preta” 16 rompia
e bantos, com acusações dos primeiros so- de vez com as regras nagocêntricas, que não
bre os segundos, de “falta de pulso” para admitiam a mistura de elementos de varia-
manterem suas tradições. Outras polariza- das nações17 do candomblé, portanto, mistu-
ções alimentaram os debates em torno da
rar orixás – divindades iorubanas, com en-
hierarquização entre cultos do candomblé
cantados18 brasileiros não seria admissível
“tradicionais” X “baixa feitiçaria”, can-
16 O nagocentrismo repudiou o fato de um adepto
domblés nagôs X candomblés de outras na- com o título de Babalorixá incorporasse um ca-
ções, e por extensão, entre a Bahia e o Rio boclo de penas, entre outras atitudes considera-
de Janeiro, comparações que relegaram das fora do padrão.
17 As primeiras tentativas de organização do culto
candomblés angola e de caboclo, à condi- religioso de matrizes africanas em Salvador tive-
ção de ritos menores. E mesmo existindo rammotivação étnica, e por isso, o termo “nação”
casas baianas de culto dessas variantes, a tentou distribuir os seus adeptos de acordo com
a região geográfica de procedência. Embora,
popularidade de João da Gomeia chamou não houvesse certeza sobre estas procedências,
a atenção para estas modalidades de culto serviu para organizar e separar em grupos reli-
giosos. Mais tarde, outras etnias foram incorpo-
15 Yalorixás são designações para as mães-de- san- radas pelas pesquisas ao universo do candomblé
to, assim como, os pais-de-santo são conhecidos brasileiro.
como Babalorixás (N.A.). 18 Os encantados são figuras centrais nas pajelan-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017 165


Hibridismos, sincretismos e outras milongas: alternativas culturais na sobrevivência do culto dos orixás no candomblé carioca

pelas lideranças religiosas baianas da época. em torno de seu comportamento transgres-


As acusações que pesaram sobre Joãozinho sor, que para os padrões estabelecidos pelas
da Goméia iam desde revelação de aspec- mães de santo de Salvador, e para a socieda-
tos que deveriam ser mantidos sob sigilo de preconceituosa que era alimentada qua-
na religião dos orixás à “carnavalização” do se diariamente com as notícias de jornais
candomblé apresentado ao público. Além de grande circulação da época. As lideran-
disso, o fato de ser um sacerdote e homos- ças religiosas baianas, que não admitiram
sexual em uma terra dominada pelo poder o seu comportamento inadequado para um
feminino, colocou Joãozinho da Goméia no pai-de-santo de candomblé, viam o risco
centro das polêmicas sobre como a religião de terem o rigor exigido quebrado, contri-
não deveria ser, seu exemplo, foi quase sem- buindo para o desgaste com as autoridades,
pre, de conotação negativa. Elizabeth Gama que viam nas batidas policiais, uma forma
afirma sobre as críticas sofridas por Joãozi- de impedir a realização das cerimônias. As
nho, que “quando a depreciação não estava atitudes do baiano de Inhambupe feriam os
relacionada a um aspecto lúdico do sagrado, rigores da religião, que ainda levantaram so-
relacionava-se às práticas condenadas pelos bre ele a suspeita de nunca ter passado pelo
guardiões da tradição” (id. 2012, p, 51). processo de iniciação21, embora já iniciasse
Ao chegar ao Rio de Janeiro, a ousadia muita gente na lei dos orixás.
de Joãozinho iria se ampliar ao máximo, re- Ainda, hoje passados mais de 40 anos
petindo o espetáculo das danças dos orixás de sua morte, continuam as polêmicas em
em teatros com grande presença de público torno de João da Goméia ser um sacerdote
como o Cassino da Urca e Teatro João Caeta-
“acusado” de praticar o candomblé de forma
no, sempre com ligações estreitas e frequen-
histriônica, e expor os Orixás aos olhos pú-
tes entre o candomblé e o carnaval, ambien-
blicos de forma quase que profana. Com suas
te tão propício que deu a ele a oportunidade
memórias ameaçadas de descontinuidade,
de ser aclamado como o “rei do candomblé”
a luta atual dos seus filhos de santo, é pela
19
, e se travestir de “Arlete” 20 para desfilar
devolução de seu espólio religioso retirado
pela escola de samba Império Serrano no
do terreiro da Goméia, logo após a sua mor-
ano de 1956 (GAMA, 2012, p. 167), fato que
te em 1971. A indicação da herdeira do seu
gravou para sempre o seu nome na história
axé, não valeu de argumento para o proces-
cultural do Rio de Janeiro.
so que se arrasta na justiça, sob a alegação
A trajetória de Joãozinho da Goméia foi
de não haver documento escrito. Apontada
sempre marcada pelos conflitos e polêmicas
por Joãozinho quando ainda era menina,
ças, e diferem dos espíritos por não se origina- Sandra Regina ou Ceci Caxi foi impedida de
rem da morte do individuo. Não são almas de-
tomar seu lugar mesmo depois que comple-
sencarnadas, são energias que após deixarem
seus “cavalos” vão para o encante (região abaixo tou a maioridade jurídica, porque as pessoas
da superfície terrestre, subterrânea ou subaquá- que passaram a deter os pertences religiosos
tica) (MAUES ET. ALL, 2011, p.17).
19 Título informal dado a Joãozinho pela Rainha
que compunham o seu Axé, não concorda-
Elizabeth II quando visitou o Rio de Janeiro em
1940. 21 A iniciação é um processo que marca a entrada
20 Arlete era a denominação da personagem ve- do adepto na religião do candomblé. Requer
dete assumida por Joãozinho da Gomeia para o reclusão de dias, restrição de alimentação, e
carnaval de 1956 quando desfilou pela escola de aprendizado dos fundamentos e preceitos que
samba, e lhe custou o repúdio da federação um- irão regular a sua vida dentro e fora do grupo
bandista carioca. religioso.

166 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017


Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas

ram com a decisão do Babalorixá22 (GAMA, indígenas e europeias, incorporando tam-


2012, p. 20). O Axé da Goméia23 é objeto de bém, figuras típicas do cenário cultural e
ação judicial que pleiteia a construção de um histórico brasileiro.
memorial à sua obra, e embora tenha desa- A despeito de toda celeuma em torno da
fiado os poderes constituídos da mais alta pureza nagô, na qual não se enquadram os
hierarquia do candomblé baiano, em tem- candomblés angola e de caboclo, a macumba
pos remotos, sem dúvida, Joãozinho da Go- carioca, forma popular de se tratar todas as
méia trabalhou pela divulgação do candom- religiosidades praticadas no Rio de Janeiro,
blé do Rio de Janeiro, tornando-se um ícone seria para Prandi “designação local do culto
da cultura afro-brasileira. Joãozinho da Go- aos orixás que teve o nome de candomblé na
méia se instalou no Rio de Janeiro em plena Bahia, de xangô na região que de Pernam-
efervescência religiosa em plena efervescên- buco a Sergipe, de tambor no Maranhão, de
cia entre a chegada de um maior número de batuque no Rio Grande do Sul” (id. ibid.,
mães e pais de santo provenientes da Bahia p.53). Não se poderia descartar também,
e de outros lugares da região Nordeste, e a que a religiosidade carioca representada por
afirmação da umbanda como alternativa de esta junção de ritos com contribuições di-
uma identidade religiosa mais adequada ao versas, tenha sofrido preconceito por parte
processo de urbanização e modernização da de intelectuais que buscavam sobrevivên-
cidade. Com a fama já conseguida do “rei cias africanas nos ritos religiosos elaborados
do candomblé” não seria difícil imaginar o no Brasil.
campo de forças formado pelas disputas en- A fama de “degeneradas” (DANTAS,
tre o candomblé “difamado” e a umbanda, 1988, p. 21) marcou indelevelmente as reli-
tábua de salvação que agradava aos adeptos, giões praticadas no Rio de Janeiro, atingin-
autoridades e sociedade local. do primeiro, a umbanda, e depois, os can-
domblés fora dos padrões nagocêntricos por
A umbanda como alternativa aqui também disseminados. Por sua vez, o
do ideal europeizado kardecismo24 que integrava a proposta alter-
nativa religiosa do grupo de intelectuais um-
Na tentativa de aceitação e em cumprimen-
bandistas, que haviam tomado às rédeas de
to ao ideal de branqueamento incutido na
alçar esta religiosidade do âmbito local para
população carioca, a principio, surgiram re-
o nacional, já que o projeto se apresentava
ligiosidades que ofereciam elementos cultu-
mais ajustado aos arroubos progressistas
rais representativos de outras categorias, e
para uma capital moderna, indo desta for-
não mais aquelas relativas ou associadas aos
ma, ao encontro dos anseios dos administra-
negros e às referências ao continente africa-
dores cariocas, por não admitir a presença
no. A umbanda, que surgiu no Rio de Janei-
de espíritos negros e caboclos, considerados
ro no principio do século XX, é considera-
como inferiores (PRANDI, 1991, p.54).
da uma religião genuinamente brasileira de
A ambiguidade marcou os momentos de
origem africana (PRANDI, 1991), e nasceu a
profundas transformações da sociedade ca-
partir de elementos das religiões africanas,
24 Doutrina espírita criada por Hippolyte Léon
22 Título atribuído ao pai-de-santo, quando se tra- Denizard Rivail (1804 -1869), pseudônimo de
ta de mãe-de-santo denomina-se Yalorixa. Alan Kardec, que codificou o Espiritismo como
23 Outra forma como é conhecido o Terreiro de alternativa religiosa com base na filosofia e
Joãozinho da Goméia. mediúnica.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017 167


Hibridismos, sincretismos e outras milongas: alternativas culturais na sobrevivência do culto dos orixás no candomblé carioca

rioca daquele inicio de construção da nova propalada pelos discursos racistas e pre-
religiosidade brasileira. Entre a aceitação conceituosos da virada do século XIX para o
e a negação a elite intelectual umbandista XX, a umbanda se reafirma como uma pro-
buscou o meio termo para os seus discur- posta religiosa nova que congrega os valores
sos, de forma que a sua proposta impedisse espiritas aos político-sociais brasileiros no
a memória de uma religião “afirmadora de projeto de desenvolvimento, tendo o modelo
heranças culturais incômodas”, mas que ao europeu de modernidade como meta, e em
mesmo tempo fosse “subvertedora” (ISAIA, contrapartida, combateria o atraso represen-
1999) da ordem, a ponto de admitir que em tado pela herança afro-indígena, pela mar-
seus quadros pudessem “baixar” espíritos ginalidade, prostituição e outras categorias
de marginalizados, agradando aos dois la- desvalorizadas presentes nos cultos anterio-
dos da questão. Ortiz definiu este momento res a tentativa de codificação representada
como um quadro dinâmico em duplo mo- pelo projeto intelectual umbandista. Mas, é
vimento: primeiro, o embranquecimento justamente, com esse discurso ambíguo, en-
das tradições afro-brasileiras; o segundo: o tre negar e aceitar a presença de elementos
empretecimento de certas práticas espíritas representantes dos dois polos de alteridade,
e kardecistas (id.,1999,p.33). Estes dois mo- que a umbanda irá se afirmar como religião
vimentos têm base na negação ou aceitação nacional viável. Analisando a estrutura ini-
de que espíritos africanos ou indígenas “bai- cial proposta para que a umbanda se afir-
xassem” nas sessões de mesa que tinham o masse como alternativa às opções religiosas
kardecismo como base do cosmo místico de- menos admitidas, Isaia (1999) afirma
sejável para aquele momento. “A Umbanda como um valor novo na socie-
A construção discursiva do grupo de inte- dade brasileira da primeira metade do nosso
lectuais da umbanda25, que visou uma nova século e sua luta por identificar-se como reli-
forma de religiosidade conciliadora, mo- gião e como nacional integram-na ao quadro
maior da circulação dos significados sociais.
derna e progressista, em cujos quadros não
Assim, se por um lado ela apresentar-se
cabiam os segmentos negros e mestiços da
guardando uma relação de oposição a alguns
população classificados como supersticiosos discursos será justamente com eles que es-
e atrasados, valeu a eles o rótulo de “deten- tabelecerá nexos de inteligibilidade e signifi-
tores da verdade” atribuído pela elite brasi- cação do mundo. [...] Podemos compreender
leiraapoiada pela Igreja, que condenava as [...] a recorrência da umbanda a produtores
práticas mágicas em processos jurídicos, de bens simbólicos historicamente postados
em posição de ataque diante dela, como o
médicos e assistenciais de todos os tipos.
catolicismo, o kardecismo, o Estado e as eli-
No contexto das modificações significa- tes, uma vez que as lutas pela representação
tivas da sociedade nacional com ideais de da realidade configuram situações não só
progresso para o alcance da modernidade de oposição frontal, como de partilha resse-
mantizada de significados” (id.ibid.p,103).
25 Este grupo de umbandistas era formado por
“brancos e mulatos de “alma branca”, que re- Os ideais progressistas e a aversão às
constituíram as antigas tradições com os instru-
práticas consideradas bárbaras conduziu à
mentos e os valores fornecidos pela sociedade
pela sociedade. Não estamos, pois, mais em pre- construção de uma umbanda afastada dos
sença de um culto afro-brasileiro, mas diante de elementos simbólicos que a alçaram à con-
uma religião brasileira que traz em suas veias o
sangue negro do escravo que se tornou proletá-
dição de religião genuinamente brasileira,
rio” (ORTIZ, 1999, p.33). mas, como não se enquadrava na moder-

168 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017


Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas

nidade da vida urbana tendo em vista que tratégia de afirmação de identidade nacional
mantinha sua estrutura ritual antiga de religiosa, que o grupo da cúpula intelectual
fazer “despachos” e sacrifício de animais, umbandista almejava para o país. A quim-
teve as ações totalmente condenadas pelos banda foi o alvo principal deste enfrenta-
intelectuais da sua cúpula religiosa. Junta- mento, aquela que deveria ser atacada, pois
mente com a propaganda contrária à anti- teimava em relembrar os aspectos africanos,
ga umbanda, almejou-se a estruturação de dos quais se queriam livrar. Acolher no seu
uma nova religião espiritista, mas baseada ritual, elementos das religiões africanas e
em altos valores civilizatórios, que passaram indígenas, além de dar voz e espaço para es-
a ser perseguidos coincidentemente com as- píritos considerados como parte do “mundo
recentes mudançassociais presenciadas pelo instintivo, baixo, esquerdo” (ISAIA, 1999, p.
surgimento da nova forma da religião (OR- 112), além admitir em seus quadros ritua-
TIZ, 1999, p.32) durante o período republi- lísticos, falanges inteiras capitaneadas por
cano pós-abolicionista no Rio de Janeiro. Exus26, o que, no entender do grupo letra-
Os valores africanos e indígenas admi- do da umbanda, perfazia a retomada de um
tidos pela nova concepção de religião um- caminho contrário ao alcance da civilização,
bandista seriam apenas aqueles que refor- da modernidade, e da europeização deseja-
çassem o caráter conciliador e conformista da. Mas, não se poderia valorizar o “bem”
expressos pelos “pretos velhos”, e “caboclos representado pela umbanda sem a oposição
de pena” que proclamassem a crença na paz do “mal” ou quimbanda. Para Ortiz (1999,
e crescimento civilizado da população, ao p.88), “a quimbanda se apresenta, portanto,
contrário de outras correntes rebeldes e in- como a dimensão oposta da umbanda, ela é
subordinadas inconformadas com regras e a sua imagem invertida, tudo que se passa
imposições de raças “ditas” superiores sobre no reino das luzes tem seu equivalente ne-
a maior massa de oprimidos, os pobres e os gativo no reino das trevas”. Com a centra-
marginalizados. lidade na figura de Exu que comanda as le-
A base para o surgimento de uma reli- giões demoníacas da quimbanda, o autor de
gião urbana com arroubos de modernida- “A morte branca do feiticeiro negro” (1999),
de foi oferecida como alternativa nacional deixa de considerar que estes mesmos Exus
para livrar os brasileiros dos barbarismos continuaram a “baixar” na umbanda, sem
atribuídos aos cultos afroindígenas, que na terem necessariamente, que trabalharpa-
segunda metade do século XIX já estariam ra o “mal”. Ainda na atualidade, os Exus se
bem disseminados pelo país. A tentativa de constituem de espiritualidades individuais
desafricanização da umbanda identificou-se sem depender de “espíritos de luz” que os
com a passagem de uma cultura de tradições 26 Exus são entidades cultuadas nas religiões afro
oraispara uma tradição escrita, momento -brasileiras, e sua importância para o culto é
proporcional as diversas denominações. No en-
considerável para a aproximação eficaz da tanto, uma característica entre muitas, desta-
civilização e do progresso almejados pelos ca Exu das demais divindades do candomblé e
intelectuais, que tinham os padrões de re- da umbanda. Ele sempre será o primeiro a ser
tratado, para que não atrapalhe no desenvolvi-
ligião codificada como no modelo francês a mento da cerimônia ou ritual. Confundido com
ser seguido. o diabo cristão, Exu foi por muito tempo, a per-
sonificação do mal, mas, Exu tem um carácter
O embate frontal entre a umbanda e suas dubio, e tanto pode fazer mal quanto pode curar
outras variações também fizeram parte da es- (N.A.).

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017 169


Hibridismos, sincretismos e outras milongas: alternativas culturais na sobrevivência do culto dos orixás no candomblé carioca

mantenham sob controle. O campo religioso vai se estabelecer na cidade do Rio de Janei-
do Rio de Janeiro se compõe, portanto, das ro, como na maioria da região sudeste como
tendências renovadas da religião codificada uma “religião universal, sem limites de geo-
e embranquecida, mas, também, admitiu e grafia, cor e classes sociais” (PRANDI, 1991,
proveu espaços para a vertente mais antiga p.21), e neste contexto que irá se constituir
e “enegrecida” da religião mais sincrética, como uma religião progressista mais alinha-
e próxima da representação da identidade da com os ditames políticos de um país, que
religiosa nacional. Outras variedades reli- tenta ainda hoje, fazer parte do cenário mun-
giosas, como os candomblés de caboclo e da dial como “moderno” sem no entanto, valo-
nação angola, se mantiveram aqui, confir- rizar as tradições dos povos que inicialmen-
mando o Rio de Janeiro como um lugar de te formaram a sociedade brasileira. A um-
múltiplas religiosidades onde estão presen- banda ao apropriar-se da mitologia do can-
tes as misturas culturais iniciadas no perío- dombléem prol de valores cristãos inclusos
do colonial do país. nas suas noções de ética (id.ibid.), buscou a
O candomblé angola e a umbanda cul- aceitação reunindo em seus quadros rituais,
tuaram os caboclos brasileiros, não somente os elementos que julgou em acordo com as
os índios, mas também os boiadeiros, mar- imposições que supunha serem aceitas para
cando a independência dos ritos, que foram que se tornasse de uma vez por todas, a re-
incorporados também por casas nagôs fora ligião codificada, padronizada, branca, e de
do circulo de lideranças baianas ainda nos vez em quando preta, para que não passasse
anos 30 e 40 do século XX (PRANDI, 1991).
totalmente a ideia de estar desconectada to-
Para Reginaldo Prandi, a razão para que as
talmente da realidade da sua origem. Mas,
religiões codificadas e embranquecidas con-
seria a umbanda a representante indiscutí-
seguissem projeção nos estados da região
vel da religiosidade carioca?
sudeste cujas cidades já sofriam os efeitos
do capitalismo e a população efeitos da vida
moderna, então, teria sido desta forma que
O Rio de Janeiro multicultural
a umbanda pode ocupar os espaços deixa- O encontro entre as raças no Brasil não foi
dos pelos candomblés intitulados “nichos” pacífico, e se deua partir de lutas e de su-
da preservação da cultura africana no Brasil. cessivos processos de negociação que de
Ainda segundo Prandi, coube a umbanda, certa forma, garantiram a sobrevivência de
como herdeira universal destes ritos ocupar tradições e costumes. Os processos de sepa-
ração, distribuição e rearranjosde africanos
“os espaços sagrados das grandes cidades do
escravizados, ocorridos durante o período
Sudeste, onde a etnicidade está perdida, onde
os deuses estão envolvidos na trama das rela- colonial no Brasil, criaram sistemas diver-
ções sociais de um capitalismo já em plenitu- sificados de crenças tanto em sua dimensão
de, onde o tempo que controla o trabalho e o nacional como regional e local, e indepen-
ócio já é o tempo do regime de assalariamen- dente do ângulo de observação que se esco-
to, onde as edificações e o asfalto eliminam o lha, verifica-se que a eles foram incorpora-
espaço do mato e do chão batido dos deuses à
das condições naturais, sociais, políticas e
antiga moda baiana” (id.,1991, p.19).
econômicas, resultando em grupos sociais
Tendo o ambiente politico, econômico e regionalizados como os observados no Rio
sócio multicultural a seu favor, a umbanda de Janeiro.

170 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017


Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas

A religião afro-brasileira juntou em um local são forjadas identidades religiosas dife-


mesmo espaço de culto, as suas divindades renciadas com características próprias” (id.
2011.p.29).
que na África eram cultuadas separada-
mente por famílias, cidades e por regiões de Dessa forma, a coexistência entre os Ori-
maior abrangência, e reproduziuem muitos xás – “designação genérica dos deuses afri-
aspectos as religiões originais dos orixás, vo- canos” em um mesmo espaço físico subdi-
duns e inquices africanos herdando o pan- vidido e caracterizado como seu domínio,
teão, aqui reorganizado, as línguas rituais- oferece aos componentes daquele grupo de
de significado esquecido, os ritos, as con- praticantes, elementos formadores de uma
cepções e valores míticos (PRANDI, 2000, identidade religiosa, e este “arranjo ideoló-
p.78). A distribuição dos espaços físicos dos gico” (id. ibid, p.30) propiciou que o mesmo
terreiros, tanto no Rio de Janeiro quanto terreiro de candomblé, independentemente
em outras regiões brasileiras, comprovam a da nação adotada, possa cultuar Orixás, que
convivência pacífica entre as divindades das são divindades dos iorubas. 27 Entre as re-
diferentes “nações” do candomblé. presentações desta convivência pacífica e es-
Com a mudança das casas de culto do tabelecida, nota-se a presença marcante do
centro para o interior da cidade do Rio de tratamento dispensado ao Inquice angola-
Janeiro ainda no final do século XIX, pro- no, Tempo, que é cultuado em muitas casas
piciou melhor distribuição dos espaços dos de candomblé de tradição jeje nagô, símbolo
terreiros, e a recuperação de áreas naturais do contrato mínimo que originou a síntese
para os rituais religiosos que com a urba- do que é hoje o candomblé (BARROS, 2011,
nização haviam sido ocupados por outros p. 32-33).
elementos que não as plantas sagradas, ou Embora as casas de candomblé no início
mesmo, o chão nu. de sua organização na Bahia tenham sido es-
Cultuar no mesmo espaço do terreiro, di- truturadas segundo as tradições, jeje, queto,
vindades provenientes de regiões africanas angola e outras, serviram de modelo para a
diferentes é a marca do candomblé brasilei- constituição de grupos religiosos, quejunta-
ro, forte indício das sucumbências, se não, ram pessoas oriundas da região do Golfo do
do hibridismo entre elas, ou pelo menos, de Benin (Nigéria, ex-Daomé e Togo) falantes
uma justaposição, de convivências pacíficas da língua iorubá, composição básica da “na-
entre as forças da natureza, representando ção” jeje-nagô (VERGER, 1981, p.15), e du-
em o cosmo religioso africano “residual” rante muito tempo foi o padrão adotado pe-
num só espaço físico, o quêrequereu estraté- lamaioria dos terreiros baianos, e também
gias e adaptações. pelas variantes religiosas que se estabelece-
E embora possa haver variações na dis- ram fora da Bahia. Mas, se foi em terras baia-
tribuição dos altares ritualísticos de uma nas que nasceram os interesses pelos pri-
casa de santo, normalmente, o padrão utili- meiros estudos das religiões dos africanos,
zado é bastante usual. Segundo José Flavio base para os pesquisadores da “pureza” e da
Pessoa de Barros “africanidade” (BASTIDE, 1974), os efeitos

“o terreiro é uma associação liturgicamente 27 Os iorubás são grupos linguísticos dos habitan-
tes da região sudanesa correspondente atual-
organizada, em cujo espaço dá-se a trans-
mente aos países Nigéria, Daomei e Costa do
missão e aquisição dos conhecimentos de Ouro. Ao serem trazidos como escravos foram
uma determinada tradição religiosa... Neste tiveram, geralmente, o desembarque na Bahia.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017 171


Hibridismos, sincretismos e outras milongas: alternativas culturais na sobrevivência do culto dos orixás no candomblé carioca

provocados pela adoção deste modelo foram cias, sob as condicionantes discriminatórias
avassaladores para as outras variantes da re- do “descredito”, “mistificação”, “charlata-
ligião, eembora não se possa negar a impor- nismo”, “degenerescência”, “baixo espiritis-
tância das pesquisas da temática religiosa mo”, “feitiçaria” e “magia” marcaram pejo-
negra como contribuição para compreensão rativamente as religiosidades cariocas.
da religiosidade brasileira, devemos admitir A espacialidade das casas e roças de santo
que as acusações de “misturadas” e de serem no Rio de Janeiro foi sendo constituída se-
ritos menores dos candomblés de caboclo e gundo as condições e necessidades de seus
angola, além da umbanda, praticados no Rio componentes, portanto, os filhos de santo de
de Janeiro (PRANDI, 1991) amargaram um cada casa refletem a composição dos cosmos
alto preço, sendo elas relegadas ao segundo religiososfísicos, tornando-se eles mesmos,
planodo sistema religioso nacional. um espaço refletido do terreiro onde as parti-
Como vimos rapidamente em sessão lhas, negociações e adaptações se constroem.
anterior, as religiosidades no Rio de Janei-
ro se desenvolveram sob condições especí- Espaço reconfigurado,
ficas, que envolveram política, economia, adaptações aceitas: o Axé
preconceito, e discriminação, que incidiram
diretamente sobre a população praticante
Palmeirais28
e adepta dos batuques no centro da cidade. Durante os trinta anos de existência, o Ilê
Como centro econômico do poder colonial, Axé– Casa de Palmeirais passou por vários
o Rio de Janeiro supriu as fazendas produ- endereços entre a zona oeste da cidade do
toras de café, e outros produtos agrícolas, Rio de Janeiro à Baixada Fluminense, vol-
com homens e mulheres escravizados vin- tando para zona oeste há mais de 10 anos.
dos em sua maioria das regiões centrais do Agora estabelecido em sede própria, locali-
continente africano, portanto, os bantos são za-se no bairro de Guaratiba em um terreno
o grupo étnico mais numeroso a desembar- de aproximadamente 500 metros quadra-
car na capital colonial da Coroa Portuguesa. dos. O grande portão de entrada da casa de
Esta posição central de mercados e serviços santo é encimado por um grande pote de
do poder português presenciou o trânsito barro pintado de branco, que é a cor domi-
incessante, de pessoas de diversas proce- nante das paredes e muros da casa, e não
dências e objetivos, promovendo trocas cul- poderia ser diferente, pois a casa pertence
turais cotidianas. a Oxalá29, mais especificamente, a Oguiã.30
Em ambientes multiculturais como es- Entra-se no terreiro por uma alameda pe-
tes, em que as diferentes comunidades con- quena ladeada por jardins estreitos atrás
vivem e tentam construir uma vida comum, dos quais se encontram os “quartos” dos
ao mesmo tempo em que retêm algo de sua santos de “fora”. A esquerda do portão de
identidade “original” (HALL, 2003, p.52), 28 A fim de manter o ineditismo da pesquisa, foram
as religiões ditas “sincréticas” encontraram utilizados nomes fantasia para a identificação da
casa de candomblé, do terreiro, e dos filhos de
no Rio de Janeiro, terreno fértil, por sua vo-
santo (N.A).
cação política e cultural, que atraiu pessoas 29 Oxalá sintetiza várias outras divindades conhe-
de todos os lugares do mundo durante um cidas como fun fun. O elemento que distingue
Oxalá é a cor branca, indicativa de paz, união e
grande período de tempo. Mas, as misturas pureza entre os iorubás.
culturais construídas por estas convivên- 30 Diz da qualidade do Oxalá na sua versão jovem.

172 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017


Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas

entrada fica a casa de Exú, que a divide com ampla das paredes brancas enfeitadas por
seus companheiros, observados de perto pe- quadros que relembram aspectos do culto
los exus escravos dos santos, que moram ao aos orixás e cenas dos eventos da casa de
lado, em ambiente separado por uma pare- candomblé. A parede à frente da qual ficam
de. Cada um destes ambientes guardam os as cadeiras do Babalorixá, e outras destina-
objetos ritualísticos dos Exus, assim como, das aos convidados importantes presentes
seus assentamentos. Junto à parede da ao culto, é decorada com grandes quadros
casa de Exu, pelo lado de fora, está o casal com representação dos Orixás Oxum, Oxalá
de Exus de rua, cuja casa é aberta, o chão e fotografias ampliadas do Zelador de san-
é nu, e é coberta por um meio-telhado. Em to. 36 Os símbolos de Xangô que enfeitam
frente à casa dos Exus mora Ogum31 de rua, e suportam a cumeeira em Palmeirais, são
sua casa não tem nenhum obstáculo à visão representados pelo poste central do bar-
de seu imponente assentamento a não ser a racão sobre o qual repousa uma gamela37
folhagem espessa do majestoso dendezeiro. com outros elementos rituais, a exemplo,
Ao lado dele, ficam os quartos de Ogum e das casas tradicionais da Bahia, e contém a
Oxóssi32 da casa, construção de meias pare- mesma simbologia dos “aspectos que ligam
dessubdividida internamente, arejada por a presença destes símbolos aos seus mitos
fileiras de tijolos vazados e com portas de de origem” (BARROS, 2011, p. 33), e sen-
entrada protegidas por mariôs. 33 do Palmeirais uma casa da tradição Queto
Seguindo por este lado direito de quem entrega a cumeeira a Xangô como no Axé
entra no terreiro, se vislumbra um novo am- Opô Afonjá. No entanto, a história da casa
biente aberto com uma vegetação mais va- de Palmeirais começou a ser construída há
riadaservindo de limite, é a casa de Ossãe 34, muitos anos atrás, na tradição de angola,
o orixá detentor do segredo das plantas. Ao fato que será tratado mais adiante.
lado, uma mureta baixa em forma de arco O grande barracão toma o terreno de
limita o pé de Tempo, inquice angolano, e lado a lado, e não se oferece somente às prá-
ainda abriga Oxumaré – a serpente sagra- ticas religiosas, mas também, às reuniões
da da nação jêje. Do outro lado da alameda sociais e comemorações após os toques de
em frente ao pé de tempo, está Azanadô 35 candomblé. No canto esquerdo do barracão
- a árvore sagrada cultuada na nação jêje e foi construído um lago para Oxum38 onde
que recebe dos filhos da casa oferendas de nadam diversas espécies de peixes, que divi-
frutas, doces e comidas secas para proteção dem o espaço com plantas aquáticas e uma
de mazelas e problemas ligados à saúde. fonte central.
Após as casas dos orixás de fora, o gran- Em dias de festa, as laterais do barracão
de barracão, onde acontecem os festejos e são utilizadas para se distribuir cadeiras,
danças, recebe quem entra com uma vista do lado direito o público em geral, e do es-
querdo os convidados mais ilustres e prati-
31 Orixá iorubano guerreiro.
32 Orixá iorubano caçador.
cantes da religião. No fundo a esquerda do
33 Folha de palma desfiada utilizada para prote- 36 O mesmo que Babalorixá ou pai de santo.
ger da presença e influência dos maus espíritos 37 Utensilio feito de madeira utilizado na cozinha
(nota da autora). votiva, além disso, é normalmente, neste reci-
34 Orixá iorubano detentor do segredo das plantas. piente que se oferece as comidas rituais ao orixá
35 Representado por uma árvore consagrada por Xangô.
oferendas e pedidos de saúde pelos componen- 38 Divindade iorubana que no Brasil tem como ele-
tes da casa de santo. mento principal as aguas doces.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017 173


Hibridismos, sincretismos e outras milongas: alternativas culturais na sobrevivência do culto dos orixás no candomblé carioca

barracão, uma construção mais elevada que bém as dos convidados, tanto em datas co-
o nível do chão fica o pepelê39 da orquestra memorativas como também nos frequentes
de atabaques, de onde os Ogãs40 invocam os encontros para o funcionamento cotidiano
orixás através de cantigas e ritmos próprios da casa. As duas portas da cozinha se abrem
a cada um. Os três atabaques, principais ins- para um pátio interno, que é rodeado pelos
trumentos do culto do candomblé, têm no- quartos de santo, onde estão abrigados os
mes específicos, sendo que do maior para o assentamentos dos orixás dos componentes
menor, são denominados “rum”, “rumpi” e da casa, Yaô e abiãns. 46 No primeiro quarto,
“lé”. 41 Os atabaques podem ser acompanha- ao lado da cozinha, moram tanto os santos
dos por outros instrumentos musicais, como cujos ibás47 são de “louça” quanto os santos
o “gã ou agogô” 42 e pelo “bambolon” 43, ins- assentados em peças de “barro”. Os santos
trumentos de percussão, que juntos dão so- cujas representações são em peças de “fer-
noridade às cantigas e marcam o ritmo da ro”, Ogum e Oxosse, Oxumarê e Ossãe, além
dança dos orixás. dos Baras ou Exus, ficam em seus respecti-
Para o barracão, ao lado da cadeira do vos quartos do lado de “fora”, na parte da
Babalorixá, se abre a porta que o liga à parte frente do Ilê.
intima da casa de santo. O primeiro cômodo No outro lado do pátio internose locali-
é o pegi 44 destinado a guardar os pertences zam oquarto de dormir e de trocar de roupa,
dos orixás, vestimentas, paramentos, ob- embora nesta casa a maioria dos compo-
jetos de uso durante as cerimônias. O pegi nentes sejam mulheres, os homens também
está ligado ao roncó45 e separado deste por
fazem uso destes quartos para as mesmas
uma parede que tem uma porta constante-
finalidades. Separando os quartos de ves-
mente fechada. O roncó é um dos espaços
tir do quarto dos assentamentos dos santos
mais sagrados da casa de santo, aonde ocor-
dos filhos de santo da casa, está a morada
rem as obrigações sacrificiais em que se ho-
de Oxalá, onde ficam os ibás dos santos per-
menageiam os orixás. O corredor ao lado do
tencentes ao Babalorixá, cuja centralidade
pegi, pelo lado de fora, leva à cozinha onde
do cômodo reforça a importância do orixá
são preparadas as comidas votivas e tam-
para o culto em geral, e para esta casa em
39 Nicho onde se pode destacar ou guardar ele- particular.
mentos específicos, geralmente, religiosos.
40 Titulo honorifico que tradicionalmente no can-
Nesta sucinta descrição dos espaços do
domblé é designado aos homens para que cui- Axé Palmeirais é possível verificar mais uma
dem e defendam os terreiros de perigos de in- vez, a afirmação de Pessoa de Barros, que
vasão ou outro. Para estes homens há categorias
diferentes de Ogãs atribuídas pelos lideres de relaciona a coexistência de divindades origi-
terreiros. Os Ogãs podem ter atribuições desde nais de lugares diferentes em um só lugar,
tocar os instrumentos até o sacrifício de animais.
quando afirma: “as casas de santo redese-
41 Instrumentos musicais rituais de percussão uti-
lizados nas cerimonias de candomblé. nham, no caso brasileiro, este antigo reinado
42 Instrumento composto de cones de ferro que federativo, onde os quartos de santo, ou Ilês
produzem um som estridente e marcante.
43 Instrumento musical feito de madeira cavada e
-orixás representam as antigas cidades-esta-
tocado com um bastão, que produz um som aba- 46 Denominações que marcam o nível de aprendi-
fado, original da Guine Bissau. zado dos praticantes. Yaos são filhos de santo até
44 Comodo sagrado interno a casa de candomblé os sete primeiros anos de iniciação. Os abiãns
onde são guardados os pertences e paramentos são pessoas que ainda não se submeteram a fei-
dos orixás utilizarem durante as cerimonias. tura de cabeça (N.A.).
45 Comodo sagrado interno onde ocorrem as obri- 47 Representação particular das divindades dos
gações dos filhos de santo da casa. componentes da casa.

174 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017


Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas

dos, inscritas neste território simbólico” (id. sim como o fator de maior polêmica na his-
2011), a coexistência de orixás de diferentes tória dos candomblés de angola no Rio de
“nações” do candomblé em Palmeirais pode Janeiro, se assemelhava a de Joãozinho da
ser considerada como um padrão utilizado Goméia: Ode Coiaci incorporava o caboclo
pela maioria das casas de candomblé no Rio Sultão das Matas, assim como Joãozinho da
de Janeiro. No Axé Palmeirais, a definição Gomeia ficou famoso pelo caboclo incorpo-
para esta coexistência sagrada pacífica esta- rava, “seu Pedra Preta”. Ainda no inicio da
ria mais próxima a definição de milonga48 de década de 1970, Odé Coiaci iniciou a mãe de
Xicarangomo49, ou seja, uma mistura de sa- santo falecida do líder de Palmeirais, quan-
beres e práticas construídas a partir de frag- do este apesar da pouca idade, já trabalhava
mentos de religiões de matrizes africanas com caboclos e exus na umbanda.
mantidas nas memórias recuperadas daque- Essa herança de misturas foi implantada
les aspectos culturais e religiosos deixados no Axé Palmeirais, embora os cultos se rea-
no continente distante. lizem em diferentes datas encaixadas no ca-
lendário litúrgico anual da casa de candom-
A constituição das blé, as festas para os Exus e para os caboclos
identidades no Axé Palmeirais ocorrem anualmente. O Axé Palmeirais é
constituído por núcleos de famílias consan-
Nos mais de trinta anos de existência o Axé
guíneos, inclusive pelos filhos e netos da mãe
Palmeirais recebeu e iniciou muitos filhos
de santo falecida. Os componentes da casa,
de santo, que na maioria das vezes vieram
na sua maioria, chegaram a casa por indi-
para a casa por indicações de familiares que
cação de um parente. Alguns descendentes
já faziam parte do axé, portanto, as ligações
da casa que já atingiram a maioridade reli-
familiares sociais podem sofrer transforma-
giosa fundaram seus próprios Ilês-Axé, e se
ções na lei do santo. A origem do Ilê é bem
não empregam os ensinamentos conforme
“sui generis” tendo em vista queprovem da
receberam reconhecem que prevalece um
raiz de angola, que na década de 1970 esta-
eixo central de conhecimentos adquiridos, e
va no auge dos noticiários sobre o candom-
que, variam os ritos segundo alguns fatores,
blé do Rio de Janeiro. O Axé da Goméia co-
tais como: influências externas, demandas
lhia os frutos do sucesso do seu líder, cuja
modernas e adaptações necessárias a cons-
fama ultrapassou as fronteiras do estado e
tituição e manutenção do seu grupo social.
do país. A roça de Ode Coiaci50 localizava-se
Durante as reuniões na cozinha da casa
no bairro do Campinho entre Madureira e
de santo nos preparativos das comidas e
Jacarepaguá, e a reputação do seu líder, as-
outros afazeres, foi possível verificar, atra-
48 A milonga significa mistura na linguagem ritual
vés das narrativas de algumas mulheres, as
dos candomblés angola, e é assim, referida por
Xicarangomo durante no encontro entre as na- informações que ilustram também, a convi-
ções do candomblé em Salvador. vência pacífica e as trajetórias interessantes
49 Dijina de Emetério de Santana, sacerdote baiano
do candomblé angola, que durante um encontro
de componentes da casa. Nestas ocasiões
de pesquisadores e praticantes do candomblé em que as “egbomins” 51 relataram suas
realizado em Salvador, desenvolveu a ideia do convivências, adaptações, justaposições e
que chamou milonga aquilo que seria uma mis-
tura de saberes dos povos do santo de diversas 51 Pessoas iniciadas na religião do candomblé que
proveniências. (N.A.). já atingiram a maioridade no santo, estando ap-
50 Dijina pelo qual era conhecido João Pedro Ce- tas a abrir suas próprias casas e iniciar seus fi-
lestino, Odé Coiaci – o preto. lhos de santo (N.A.).

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017 175


Hibridismos, sincretismos e outras milongas: alternativas culturais na sobrevivência do culto dos orixás no candomblé carioca

misturas, estavam presentes em Palmeirais que muito se tem que adaptar para suprir as
para as obrigações e afazeres cotidianos na necessidades do “santo” 52 mediante as im-
casa, embora já tivessem constituído seus posições da vida moderna, traduzidas pelas
próprios terreiros. Segundo elas, replicam dificuldades de encontrar objetos, folhas e
em suas casas, as orientações e as práticas outros materiais fundamentais ao culto dos
segundo o aprendizado que obtiveram do Orixás, Voduns ou Inquices. Entre elas, uma
seu Zelador. Com base nas conversas ao pé declarou:
dos fogos, verificou-se que as misturas cul- “Eu sou muito a favor do compartilhamento
turais, são estratégias comuns no cotidia- de conhecimentos dentro da religião, o com-
no das casas daquelas mulheres, como o é partilhamento de competências para se che-
também, em Palmeirais. O tratamento das gar a um objetivo, se um orixá bate a sua por-
qualidades de santo (considerando-se que ta, ele quer ser cultuado por você, pelo seu
axé e é muito valido que busquemos o conhe-
as qualidades são indicativas de nações do
cimento ou a competência de outro zelador,
candomblé), e as formas de reconhecimen- de outra nação para fundamentar a iniciação
to de divindadesde outras nações, que não daquele individuo, é muito rico e importante
aquela que a casa mantém os fundamentos, aprender com o outro, entender o diferente
é questão de sensibilidade e bom senso. Dos ou novo, saber ouvir e aprender com outro
olhar, com o olhar do outro que naquele mo-
ricos detalhes na descrição do arsenal de es-
mento tem as competências necessárias para
tratégias que empregam no culto em suas te subsidiar naquela função” (Egbomin de
casas, pequenas partes foram selecionadas Iansã. Entrevista realizada em 2015).
para compor este texto.
É unanime entre elas, que há acolhimen- Complementado por outra egbomin
to de Orixás, Inquices ou Voduns, ou seja, “Já tive uma pessoa feita do Nkise Kitembo
qualquer divindade, independente da anti- que veio me pedir ajuda espiritual, procurei
ga origem regional no continente africano, orientar como pude, mas expus que não do-
minava o conhecimento para cuidar do Nkis-
e que são encaminhadas de acordo com os
se, e a encaminhei para uma amiga da minha
seus desejos em relação ao filho de santo. total confiança, e ambas, se afinaram muito
Não se constitui, portanto, empecilho para bem. Acredito que temos que reconhecer os
o desenvolvimento das obrigações, suas ori- nossos limites. Então, não vejo problema al-
gens convencionadas. Mas, as egbomins es- gum em encaminhar uma pessoa de outra
clarecem que, para a concretização dos de- nação, a uma pessoa que efetivamente vai
poder ajudá-la” (Egbomin de Oxum. Entre-
sígnios dos Orixás é necessário conhecer os
vista realizada em 2015).
fundamentos, a partir dos quais o tratamen-
to será oferecido. Além de concordarem que, A partir destas falas, outra questão
é necessário ter esse conhecimento, elas con- emergiu dos diálogos na cozinha do terrei-
sideram ir à busca de informações junto aos ro. Como seria possível verificar que Orixá,
mais velhos, ou recorrerem a outras autori- Vodun ou Inquice estava diante da Yalorixá
dades que possam auxiliar nos momentos de durante o jogo de búzios? Na prática, como
dúvida. Evocam para isso, suas qualidades estas diferenças são reconhecidas? A via de
pessoais que definem como: fé, sacrifício, comunicação mais comum entre elas e os
ehumildade, além da cultura que pretendem
52 Designação corriqueira entre os componentes
preservar com o seu ato de solidariedade. da casa de santo para denominar orixás, inqui-
Compreendem que muita coisa se perdeu e ces ou voduns.

176 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017


Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas

orixás, é o jogo de búzios, o oráculo que é um religioso foram estudadas no âmbito da so-
dos elementos centrais da religião dos orixás ciologia das religiões, que se propôs verificar
trazidos pelos escravos iorubanos (PRANDI, como os “efeitos sociais do “pertencimento
1993, p. 82). A confiança e a fé de que o pró- religioso” interferem no comportamento e
prio Orixá encaminha a pessoa para a casa na tomada de decisões do individuo” (NO-
escolhida também apareceu em seus rela- GUEIRA, 2009). Dessa forma, o indivíduo
tos. As egbomins reconhecem também, que passa a desempenhar um papel que foi de-
há diferença na natureza de cada uma das finido e organizado pela religião, que inter-
forças divinas que se apresentam, pois não fere no seu pensamento e na sua forma de
sendo humanas podem ter energias diferen- se ver, tornando-a necessária a ele, e ao seu
tes, e como tal, devem ser cultuadas. Orixás, desempenho frente à humanidade. Na teo-
Voduns, e Inquices, têm a mesma essência, ria de Durkheim (1997), a religião é um “fato
porém, são originariamente cultuados de eminentemente social” e se configura como
formas diferentes, e sob outras condições a forma de explicar o impossível contextua-
sociais e culturais. lizado na vida humana (PEREIRA, 2015).
Da mesma forma como houve interpene- Às crenças cabe à construção das repre-
tração entre culturas, convivência pacífica sentações ou dos “estados de opinião”, e
no espaço dos terreiros, misturas de práti- aos ritos, a organização dos modos de ação.
cas e conhecimentos em certa medida, e as Sendo a religião um fenômeno social/cole-
milongas no final das contas, todas estas for- tivo (DURKHEIM, 1997), como tal, impli-
mas se constituem em estratégiasreinventa- ca na organização social e na elaboração de
das no Brasil para a sobrevivência e manu- mitos e ritos, na modelagem dos indivíduos
tenção do culto religioso. de uma mesma crença, interferindo na sua
Este nível de análise mais abrangente so- visão de mundo, não havendo como anali-
bre a cultura de uma população inteira se re- sar as representações coletivas sem consi-
flete e reproduz, passando do nível coletivo derar, que o todo é formado pelas partes, e
para o particular. Assim, o grupo social reli- que juntas formam o todo, as influências e
gioso projeta sua constituição cosmogônica contribuições identitárias são mútuas e con-
no próprio indivíduo, componente da casa tínuas.
de santo. Se as culturas africanas, indígenas Embora seja difícil separar elementos es-
e europeias se interpenetraram, e sob con- pecíficos de cada uma das religiões originais
dições naturais, econômicas e sociais for- da formação cultural do povo brasileiro, é
maram uma nação, outros elementos mais possível identificar com alguma segurança
específicos formaram os grupos regionais e aqueles pertencentes a uma ou a outra, mes-
locais, que por sua vez são constituídos por mo correndo o risco de incorrer na naturali-
indivíduos que tem suas trajetórias, valores zação que advém desse processo analítico. O
e processos seletivos forjados nos contex- mergulho no universo do ser humano depa-
tos oferecidos por estas condições. Neste ra-se com processos mais complexos como
universo mais reduzido, que se encerra no reflexo das interpenetrações e misturas reli-
individuo a estratégia de sobrevivência reli- giosas que o levam a admitir que, divindades
giosa e cultural, contribui para a formação de “origens” geográficas diferentes podem
de sua identidade particular. As relações conviver pacificamente em um mesmo espa-
entre os indivíduos e seu grupo social ou ço físico, seja o terreiro, seja o próprio corpo.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017 177


Hibridismos, sincretismos e outras milongas: alternativas culturais na sobrevivência do culto dos orixás no candomblé carioca

Na opinião das egbomins entrevistadas ções, a princípio, avassaladoras, se tornaram


estas pessoas sãopossuidoras de duas ener- mais palatáveis à medida que o processo de
gias diferentes, e que as forças espirituais se recolhimento transcorreu tranquilo, e tudo
operam desta forma por “vontade do seu Ori- aconteceu conforme o previsto, com Iansã
xá, Inquice ou Vodun”, e queteriam sido os sendo confirmada, o que não impediu mais
deuses a direcionar aquela pessoa até aquela tarde, que Baranguanje demonstrasse a sua
casa para ser tratado, é porque é assim que insatisfação.
deve ser. Enfim, as egbomins creditam à fé Desde que “virou” a primeira vez, que-
na força dos Orixás e deuses correlatos, à sua brando o preceito estabelecido na casa, per-
própria confiança. Os breves relatos daquelas cebeu-se que aquela força sagrada deveria
mulheres na cozinha do terreiro em Palmei- receber um tratamento diferente. Em uma
rais possibilitaram estas reflexões iniciais so- das poucas ocasiões em que esteve presente,
bre como os Orixás encontraram formas de pediu que seu assentamento fosse “morar”
manterem “vivos” os seus cultos, tradições e fora do quarto destinado a Oxóssi da casa,
costumes nas casas de candomblé, demons- queria morar no pé de tempo, ou no espa-
trando com sinais divinos e materiais o quan- ço reservado a Ogum de rua, a céu aberto,
to estão satisfeitos ou não. sem cumeeira, bem próximo ao dendezeiro.
A razão parater escolhido o Axé Palmeirais
Uma cabeça em duas “nações” ainda não está totalmente desvendada, e o
ato de romper o preceito da casa reflete seu
A confirmação pelo jogo de búzios que Ian-
comportamento pouco amigável, que de-
sã53 como “orixá de frente” dissipou as dú-
monstrou nas poucas vezesque voltou ao
vidas, que durante muito tempo acompa-
Ilê. Baranguanje aparece sem ser chamado,
nharam a abiãn. Mas, a indicação de que
nunca durante o “xirê” 56, e somente quando
Oxosse também requisitava ser “feito”, cau-
é menos esperado. Os comentários dos pre-
sou grande angústia pelo fato, de que ele,
sentes giram em torno de sua natureza pou-
não um orixá iorubano, e sim, um inquice
co afeita a agrados, dizem, que se asseme-
angolano, um Baranguanje. O processo de
lha a um “bugre”, que é selvagem, que pula
iniciação se deu meses depois após longos
para se comunicar. Quando visita à casa de
períodos de incerteza sobre qual o orixá sai-
santo vai pelas dependências pulando, e sai
ria no barracão. Ao descrever este “adjun-
imediatamente de onde está em direção ao
tó” 54, o Babalorixá disse que, embora a casa
ar livre, fora da cumeeira. Nunca se dirige
fosse de nação Queto, e que reconhecesse a
diretamente ao Zelador de Santo, faz gestos
maior possibilidade de Iansã ser confirmada
bruscos, causa estranheza.
na cabeça da futura Yaô, não estava de todo
descartado que o Inquice de angola tentasse
pregar-lhe uma “peça”, e que, se assim fosse, Considerações finais
haveria necessidade incorporar outros pre- O objetivo deste trabalho foi percorrer
ceitos no processo de feitura.55 Estas revela- uma trajetória particular de vida analisan-
53 Conhecida também como Oiá é considerada na
do como as interpenetrações das culturas
religião dos iorubanos como a deusa dos ven- formam os grupos sociais e religiosos e se
tos e tempestade. Também é dela o domínio do
mundo dos mortos chamados de Eguns. 56 Diz da formação em roda que durante as cerimô-
54 Mesmo que o segundo orixá da pessoa. nias publicas do candomblé, os orixás são invo-
55 O mesmo que iniciação. (N.A.). cados para dançar.

178 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017


Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas

articulam para formar as identidades par- tro do sistema convencionado de parentesco


ticulares dos adeptos de cada casa de san- de santo, a possibilidade de Orixas, Voduns
to. Descendo a níveis de análise de grupos e Inquices constituíssem, entre si, religiões
que sofrem influências religiosas regionais sincréticas, famílias e indivíduos híbridos.
e locais, chegou-se ao universo conformado O que tem sido interpretado como rebel-
pelo indivíduo que preenchido por suas re- dia de Baranguanje poderia ser amenizado
presentações reflete as influências recebidas atribuindo-lhe um jeito diferente no en-
dos processos iniciais de sucessivas mistu- frentamento de velhas questões com Iansã,
ras e hibridizações, e que ainda buscam res- a quem combateria em campos ancestrais e
postas que lhe esclareça as dúvidas ou pelo longínquos, guerra na contemporaneidade,
menos lhe abrande as inquietações sobre a que se traduz não pelo perde e ganha, mas
origem dos costumes e das tradições. pela influência e proteção ao individuo que
As culturas originais ofereceram ele- “habitam”determinando-lhe as ações de
mentos e trocaram mutuamente conheci- acordo com assuas necessidades. Às vezes
mentos que foram incorporados as práticas atitudes fortes e temperamentais, outras ve-
da religião, mas ainda assim, alguns destes zes sutis, mas, certeiras como a inevitabili-
elementos continuam sem identificação de dade da flecha do caçador, que abate a caça
origem. Conviver com “energias” diferentes, para prover a mesa de quem dele depende.
originadas de cultos que originalmente se-
riam diferentes, tornou questão de difícil as-
Referências bibliográficas
similação. Por outro lado, seria contraditó-
BARROS, Flavio Pessoa de. O espaço sagrado
rio não admitir que isso fosse possível, ten-
nos candomblés Nagôs. Revista del CESLA,
do em vista que em religiões assumidamente Universidade de Varsóvia. No. 14, p.29-36, 2011.
sincréticas, como a umbanda, por exemplo,
BASTIDE, R. As Américas Negras – as ci-
o indivíduo é constituído de vários “uns”. vilizações africanas no Novo Mundo. São
Portanto, se os Orixás e Inquices foram mis- Paulo: DIFEL, 1974.
turados na sua travessia atlânticae conti-
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo
nuaram a serem, por prolongados períodos Horizonte: UFMG, 2010.
de tempo durantes as interações culturais a
CANCLINI, Nestor G. As culturas híbridas:
que foram submetidos, pode-se admitir que
estratégias para entrar e sair da moder-
estrategicamente, encontraram uma forma nidade. São Paulo: Edusp, 2003.
de fazer com que os seus cultos sobrevives-
CONDURU, Roberto. Das casas as roças: comu-
sem. Esta justaposição e convivência entre
nidades de candomblé no Rio de Janeiro desde
as forças da natureza representadas pelos o fim do século XIX. Topoi. v. 11, n. 21, jul.-dez.,
ambientes caracterizados como seus domí- p. 178-203, 2010.
nios nos terreiros de candomblé do Rio de DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai
Janeiro, sem ordem hierárquica ou privilé- Branco-usos e abusos da África no Brasil.
gio seriam então, estratégias de sobrevivên- Rio de Janeiro: Graal, 1988.
cia dos orixás e deles nos indivíduos. RIO, João do [Paulo Barreto]. As religiões do
O arranjo federativo que congrega nações Rio. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2006.
diferentes, que talvez fossem inimigas numa
DURKHEIM, Emilie. As formas elementa-
África distante, propiciou uma convivência res da vida religiosa: o sistema totêmico
pacífica e a oportunidade de compor, den- na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017 179


Hibridismos, sincretismos e outras milongas: alternativas culturais na sobrevivência do culto dos orixás no candomblé carioca

ENGLER, Steven. A umbanda e a glocalização. PRANDI, Reginaldo. De africano a afro-brasilei-


Debates do NER, Porto Alegre, ano 12, n. 20 ro: etnia, realidade e religião. Revista USP, No
p. 11-44, jul./dez. 2011. Disponível In: http:// 46, 52-65, 2000.
www.seer.ufrgs.br/debatesdoner/article/view-
File/28932/17636. PRANDI, Reginaldo. Hipertrofia ritual das re-
ligiões afro-brasileiras. Novos Estudos CE-
FERRETI, Sérgio. Sincretismo e hibridismo na BRAP, No 56p. 77-88, 2000.
cultura popular. Revista PÓS Ciências Sociais.
PPGCSoc – UFMA.V. 11, p. 15-34, 2014. PRANDI, Reginaldo. O jogo dos fragmentos
africanos. Revista USP No 18, p. 82-91, 1993.
FERRETI, Sérgio. Repensando o sincretis-
mo: estudo sobre a Casa das Minas. São ROCHA, Agenor M. Os candomblés antigos
Paulo: Edusp, 1995. do Rio de Janeiro: as nações Ketu: ori-
gens, ritos e crenças. Rio de Janeiro: Mauad,
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 2000.
São Paulo: Global Editora, 2006.
SALUM, Marta H.L. África: culturas e socieda-
GAMA, Elizabeth Castelano. Mulato, homos- des. Formas de Humanidade – guia temático
sexual e macumbeiro: que rei é esse? Tra- para professores. Museu de Arqueologia e Et-
jetória de Joaozinho da Gomeia (1914- nologia da USP, 1999. Disponível_em http://
1971). Dissertação (Mestrado). Programa de www.arteafricana.usp.br/codigos/textos_dida-
Pós Graduação em História - Universidade Fe- ticos/002/africa_culturas_e_sociedades.html.
deral Fluminense -UFF, Niterói, Rio de Janeiro,
2012. SILVA, Tadeu Tomáz da. Teoria Cultural e
educação – um vocabulário crítico. Belo
HALL, Stuart. Da diáspora Identidades e Horizonte: Autêntica, 2000.
mediações culturais. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2003. VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás – Deuses
iorubas na África e no novo mundo. Salva-
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós- dor: Corrupio, 1981.
modernidade. Rio de Janeiro: DP & A Edito-
ra, 1992.
ISAIA, Artur Cesar. Ordenar progredindo: a Recebido em: 07/05/2017
obra dos intelectuais de umbanda no Brasil da Aprovado em: 24/07/2017
primeira metade do século XX. Anos 90. Julho,
p. 97 – 120, 1999.
KERN, Daniela. O conceito de hibridismo ontem
e hoje: ruptura e contato. MÉTIS: história &
cultura – v. 3, n. 6, jul./dez, p. 53-70, 2004.
NOGUEIRA, Jefferson Gomes. Sincretismo re-
ligioso no Brasil em Casa Grande & Senzala: In-
fluências na religiosidade brasileira. Historia
e-historia, UNICAMP, 2009.
ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticei-
ro negro. Umbanda e sociedade brasilei-
ra. São Paulo: Brasiliense, 1999.
PEREIRA, Rodrigo. Durkheim e Lévi Strauss:
A escola sociológica francesa e uma análise de
aproximações teóricas. 2015, Mimeo.
PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São
Paulo: A velha magia na metrópole nova.
São Paulo: Hucitec, 1991.

180 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 156-180, jul./dez. 2017


Mariana P. Candido

RESENHA

Sobre as Transformações políticas e o


colonialismo português em Angola

Mariana P. Candido*

CARVALHO, Flávia Maria de. Sobas e homens do rei. Relações de poder e


escravidão em Angola (séculos XVII e XVIII). 1a Ed. Maceió: Edufal, 2015, 324 p.
Nos últimos 15 anos, a história da África se os tratados de vassalagem, as relações de
consolidou no Brasil. Durante os governos poder e conflito entre autoridades portugue-
do Partido dos Trabalhadores (2003-2016) sas, africanas e os missionários, assim como
houve apoiou a investigação, financiamento a apropriação da escrita pelas elites africa-
para a organização de eventos e incentivo à nas. Todos esses temas são relacionados à
produção acadêmica sobre a história africa- expansão do comércio de seres humanos es-
na. Lamentavelmente, esse compromisso foi cravizados e seus efeitos nas sociedades da
destruído depois de abril de 2016. O livro So- África Centro-Ocidental. Esses são assuntos
bas e homens do rei, da historiadora Flávia complexos; contudo a historiadora dá aten-
Maria de Carvalho, é o resultado do investi- ção necessária a cada um deles, apresen-
mento e do compromisso que o governo fe- tando um texto bem organizado e acessível
deral teve com o ensino de história da África àqueles não familiarizados com a história de
e com o fortalecimento do departamento da Angola nos séculos XVII e XVIII.
Universidade Federal Fluminense como um O livro é resultado de uma tese de dou-
centro de excelência na formação de africa- torado cuidadosa e criativa, onde fontes pri-
nistas. Flávia Carvalho se debruça, de forma márias já publicadas são revisitadas e novas
fascinante e minuciosa, sobre a conquista e a interpretações são apresentadas sobre te-
presença portuguesa em Angola nos séculos mas adormecidos na historiografia, como o
XVII e XVIII, fazendo uma intervenção im- debate sobre a natureza dos jagas ou a im-
portante na discussão sobre o colonialismo portância das minas de Cambambe para a
português e suas consequências, tema que interiorização da administração portugue-
surpreendentemente segue sendo polêmico sa. Documentos manuscritos disponíveis
no Brasil e em Portugal. Em quatro capítu- no Arquivo Nacional de Angola, no Arquivo
los, precedidos de uma introdução, além de Nacional do Rio de Janeiro e na Biblioteca
uma conclusão, a autora trata de temas tão Nacional de Lisboa, assim como os códices
complicados quanto a ocupação territorial, da coleção Lamego, do Instituto de Estu-

* Doutora em História da África, York University, Canadá. Professora Associada, Universidade de Notre
Dame, Estados Unidos. E-mail: mcandido@nd.edu

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 181-183, jul./dez. 2017 181


Sobre as transformações políticas e o colonialismo português em Angola

dos Brasileiros/USP, são cuidadosamente da metalurgia e do mundo sobrenatural. No


analisados, o que lhe permitiu concentrar a campo político, as narrativas de imigração e
sua narrativa nos agentes africanos. Nesse ocupação do terreno legitimavam o controle
estudo, as autoridades políticas locais – os sobre o território. No campo econômico, o
chamados sobas – e seus súditos ocupam controle da mão de obra dos dependentes,
o centro da análise, e não necessariamente livres ou escravizados, consolidava a pro-
os agentes coloniais que produziram a do- dução de excedentes, capaz de alimentar
cumentação. Por sua contribuição metodo- tanto os súditos do rei quanto os imigrantes
lógica e seu constante diálogo com as fontes recém-chegados. Flávia Carvalho analisa os
manuscritas e impressas, o livro deve ser relatos contemporâneos, como a História
lido por historiadores interessados em como Geral de Angola, de António Cadornega, e a
descolonizar o passado. Em Sobas e homens obra de João António Cavazzi de Montecúc-
do rei a historiografia angolana recebe uma cuolo, Descrição histórica dos três reinos
nova análise, em grande medida inspirada do Congo, Matamba e Angola, assim como
pelos sólidos estudos sobre a escravidão no a correspondência oficial manuscrita para
Brasil. Ao propor um diálogo com clássicos reconstruir a história dos ambundu e de sua
da historiografia africanista, como Joseph organização política, destacando a estratifi-
Miller, Beatrix Heintze, Anne Hilton, John cação social e as diferenças que existiam no
Thornton, Selma Pantoja, e com os novos interior da sociedade. Em diálogo com os
estudos, como os publicados por Roquinal- estudos de Beatrix Heintze, Flávia Carvalho
do Ferreira, Roberto Guedes e os de minha enfatiza o papel da violência nos contatos
autoria, Carvalho insere sua contribuição iniciais entre os portugueses e a população
em vários debates que remontam à década ambundu e examina como os tratados de
de 1960, como a natureza dos estados afri- vassalagem passaram por transformações
canos, o comércio de longa distância e a re- ao longo do tempo.
sistência aos avanços portugueses, entre ou- A trajetória dos governadores portugue-
tros. É importante destacar o compromisso ses é o centro das atenções nos capítulos 2
com a divulgação da investigação histórica e 3, com destaque para os interesses econô-
da editora da Universidade Federal de Ala- micos, sobretudo na exploração das minas
goas, que publicou o estudo. de sal na Quissama e de prata no Cambam-
Depois de uma introdução que apresenta be, e os conflitos com os missionários ca-
a sua intervenção historiográfica, no primei- puchinhos. A autora destaca a reorientação
ro capítulo a historiadora examina os con- da política portuguesa e o papel dos líderes
tatos entre portugueses e o estado Ndongo, políticos africanos nesse processo. Apesar
habitado por povos ambundu nos territórios das fontes primárias priorizarem o ponto
entre os rios Kwanza, Lukala e Bengo, no fi- de vista europeu, ela examina minuciosa-
nal do século XV e começo do século XVI. As mente como as autoridades locais – identi-
histórias de imigração e fundação de novos ficados como sobas, dembos, mani e jagas
centros populacionais, assim como a conso- na documentação – negociavam e reagiam
lidação do soberano como intermediário en- à ocupação portuguesa e sabotavam várias
tre o mundo dos mortos e dos vivos, oferecia iniciativas de exploração comercial. Carva-
aos ambundu um mito de origem assentado lho demonstra que estados centralizados
na figura de Ngola, o rei ferreiro conhecedor e populações em regimes decentralizados

182 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 181-183, jul./dez. 2017


Mariana P. Candido

conseguiram, com variados níveis de suces- dos estados centro-africanos. Ela enfatiza
so, resistir à invasão de suas terras. Os dois ainda a expansão da violência e da instabi-
capítulos também revelam como imagens lidade política dos estados locais frente aos
dos africanos como rebeldes, selvagens e in- ataques e negociações com a administração
civilizados foram lentamente construídas ao portuguesa e a consolidação do comércio de
longo dos séculos XVII e XVIII para deslegi- seres humanos por detrás das reformas ad-
timar a resistência e as expressões políticas. ministrativas portuguesas.
Os capítulos exploram a relação dos ambun- Em Sobas e homens do rei, Flávia Car-
du com seus vizinhos, sejam eles os súditos valho apresenta a história política e social
do Reino do Kongo ou os povos ao sul do Rio da África Centro-Ocidental em diálogo com
Kwanza. Atenção especial é dada à expansão a historiografia e alinhavada com as fontes
das guerras coloniais, aos processos de inte- históricas. Além do mérito de investigar as
riorização e ocupação além do litoral, à apro- relações de poder e sua íntima conexão com
priação do saber africano e à escravização a expansão do tráfico de escravos, Carvalho
de africanos livres. Carvalho destaca como ainda discute a natureza do estado, os sis-
o conhecimento técnico dos ambundus foi temas matrilineares de sucessão, os avassa-
vital para a implementação dos chamados lamentos e a apropriação das instituições e
“grandes projetos Iluministas” e questiona o saberes locais, sem perder de vista as trans-
projeto de governo polido.1 formações históricas que essas categorias
O capítulo 4 interroga o sucesso das re- passaram ao longo do tempo. As questões
formas pombalinas e revela a fragilidade dos abordadas pela autora devem motivar novas
tratados de avassalamento, devido à deser- pesquisas nos arquivos brasileiros, portu-
ção dos sobas e ao não-cumprimento das gueses e angolanos e servir de modelo para
cláusulas do contrato. Ao analisar as fontes contribuições futuras sobre a história de
primárias disponíveis no Instituto Histórico Angola. A publicação de Sobas e homens do
Geográfico Brasileiro e no Arquivo Nacional rei é contribuição importante e disponibiliza
de Angola, a historiadora estuda a expansão para o público brasileiro uma investigação
da guerra e da violência para o interior de de ponta sobre a região do continente afri-
Angola e ao sul do Rio Kwanza durante o cano demograficamente mais afetada pelo
final do século XVIII e o começo do século comércio transatlântico de escravos. E con-
XIX. No processo, Flávia Carvalho defende solida Flávia Maria de Carvalho como espe-
que a colonização de Angola precede a Con- cialista no passado angolano.
ferência de Berlim (1884-1885) e que o pro-
jeto colonial não logrou expandir-se além de Recebido em: 23/06/2017
Luanda graças à intervenção e à força militar Aprovado em: 14/08/2017

1 É importante enfatizar como o trabalho pionei-


ro da Flávia Maria de Carvalho influenciou ou-
tro estudo importantíssimo sobre Angola. Ver
ALFAGALI, Crislayne Gloss Marão. Ferreiros
e Fundidores da Ilamba: uma história so-
cial da fabricação do ferro e da Real Fá-
brica de Nova Oeiras (Angola, segunda
metade do século XVIII). Tese (Doutorado
em História da África) – Unicamp, Campinas,
2017.

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 181-183, jul./dez. 2017 183


Jihād e revolução nas duas margens do Atlântico

RESENHA

Jihād e Revolução nas duas


margens do Atlântico

Bruno Rafael Véras de Morais e Silva*

LOVEJOY, Paul E. Jihād in West Africa during the Age of Revolution. Athens:
Ohio University Press, 2016.
O período entre os anos finais do século te histórica, poisos povos de parte conside-
XVIII e primeiras décadas do século XIX rável da África Ocidental eram muçulma-
foi de intensas transformações estruturais nos desde meados do século XI.1 “Pessoas
na África Ocidental e no Sudão Central. se converteram. Este não é problema, mas
Uma série de Jihād lideradas por líderes quando, onde e porque a conversão ocorreu
religiosos eruditos e reformistas transfor- requerem uma análise de contexto histórico”
mou as instituições políticas e sociais da (LOVEJOY, 2016, p. 05). Para o historiador,
região e contribuiu para as mudanças em a questão relevante não é a da “conversão”,
curso no mundo atlântico. De autoria do mas sim a do impacto do Islã e das Jihād na
historiador africanista Paul E. Lovejoy, o África e no mundo atlântico no período.
livro Jihād in West Africa during the Age Um segundo ponto, importante no decor-
of Revolutions [Jihād na África Ocidental rer do livro, é a reflexão sobre etnicidade. O
durante a Era das Revoluções] pretende in- autor, em prévio artigo (LOVEJOY, 2002a)
serir a África nos debates na chamada Era discorre sobre o que chama de uma análise
das Revoluções. mais sofisticada sobre o conceito de etnia no
O livro se divide em oito capítulos e uma contexto da África Ocidental, o que faz tam-
introdução, sendo a primeira parte do tra- bém em outrosartigos (LOVEJOY, 2002b;
balho dedicada a uma explicação da organi- LOVEJOY, 2014). “Como eu tenho explica-
zação dos conteúdos do livro, de alguns ter- do, etnicidade é um fenômeno complicado e
mos centrais e reflexões conceituais a serem que é situacional” (LOVEJOY, 2016, p. 06).
desenvolvidas no decorrer dos capítulos. A Para esta análise crítica, segundo Lovejoy,
ideia de africano “islamizado”/ “islamiza- referências às etnias nas fontes precisam ser
ção”, muitas vezes correntes em trabalhos explicadas para identificar o que elas signifi-
sobre o Islã na África e na diáspora africana,
1 VÉRAS, Bruno. Viagem e Alteridade: A
é criticada tanto por seu caráter eurocêntri- construção do “outro” na Rihla de Ibn
co quanto por uma incoerência propriamen- Battuta – séc. XIV. Recife: EdUFPE, 2013.

* Doutorando em História pela York University, Canadá. Coordenador do Freedom Narratives Project,
SSHRC, Canadá. Coordenador do Projeto Baquaqua – www.baquaqua.com.br

184 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 184-187, jul./dez. 2017


Bruno Rafael Véras de Morais e Silva

cam e o que elas não significam. E a história obra. O livro é também resultado de vários
da África é chave para tanto. Como aponta anos de trabalho colaborativo junto a inte-
Martin Klein (2017, p. 240) em relação ao li- lectuais de diferentes países e línguas. Este
vro em questão, Lovejoy nos faz lembrar que método de trabalho possibilitou-o acessar
“afro-americanos foram/ eram africanos na dezenas de bancos de dados diferentes, em
América”. Algo que deve ser tomado, obvia- meia dúzia de línguas, o que pode ser perce-
mente, também para o caso do Brasil, Cuba, bido nestae em outras obras do autor.
Haiti e toda a diáspora africana. Paul Lovejoy discute no capítulo 1que
O argumento central do livro – o que a historiografia da chamada Era das Revo-
colocado de maneira clara em diferentes luções não deu a devida importância aos
seções – é de que os líderes das Jihād e os eventos ocorridos no interior do continente
regimes por eles criados posicionavam-se africano (em um pedaço do mapa que vai do
contra a escravização e venda de muçulma- Senegal ao vale do rio Nilo, no atual Sudão),
nos livres para os mercados e entrepostos eventos estes que também ajudaram a dar
cristãos (apesar disto ter, de fato, muitas forma aos episódios históricos e transfor-
vezes ocorrido) e com isso a exportação de mações populacionais do período. Este mo-
muçulmanos via rotas transatlânticas sofreu mento, que segundo Eric Hobsbawm vai de
um declínio no decorrer do século XIX. Para 1789 a 1848, foi de intensas transformações
defender este argumento, Lovejoy vale-se de estruturais e políticas. Exemplos destas fo-
uma extensa bibliografia secundária, bem ram as revoluções liberais e de caráter ilu-
como documentos e fontes primárias es- minista na França e EUA, a revolução em
critas em inglês, francês, hauçá, português, Santo Domingo, pressões abolicionistas no
alemão, kanuri e árabe. atlântico, independências na América Lati-
Boa parte da documentação já era bem na e transformação no mundo da produção
conhecida e fora trabalhada pelo autor em e circulação decorrentes da Revolução In-
diferentes livros e artigos.2 Logo, parte do li- dustrial inglesa.
vro também é dedicada a um esforço de sín- Nos três capítulos seguintes, o autor tra-
tese e de um exercício acadêmico de fazê-las ta propriamente da história das Jihād no
conversar em prol do argumento central da Sudão Ocidental e Central. Ele começa sua
2 Por exemplo: LOVEJOY, Paul E. Caravans of narrativa mostrando como as primeiras
Kola. The Hausa Kola Trade, 1700-1900. Jihād do Fuuta Bundu, Fuuta Jalon e Fuu-
Zaria: Ahmadu Bello University Press; Ibadan:
University Press, 1980; LOVEJOY, Paul E.; LO- ta Toro estavam conectadas através de uma
CKHART, Jamie Bruce (ed.). Hugh Clapper- ideologia reformista comum, bem como
ton into the Interior of Africa: Records of
a circulação de professores e eruditos mu-
the Second Expedition 1825-1827. Leiden:
Brill, 2005; AL‑BAGDADI, Abd al‑Rahman. çulmanos fulanis dentro destes espaços. A
The Amusement of the Foreigner. Trand partir do início do século XIX, estas ideias
Yacine Addoun and Renne Soulodre‑La Fran-
ce. Toronto: Nigerian Hinterland Project, York ganham força no Sudão Central e levaram
University, 2001 (Disponível em: <www.yorku. a construção do Califado de Sokoto em ter-
ca/nhp/shadd/baghdadi.pdf>; acessado em ritório hauçá a partir de 1804. Este Estado
20/11/2017); LOVEJOY, Paul E. The Clapper-
ton-Bello Exchange: the Sokoto Jihād and the foi o coração intelectual, inspiração e mes-
Trans-Atlantic Slave Trade, 1804-1837. In: mo suporte militar para outras várias Jihād,
Christopher Wise (ed.). The Desert Shore:
Literatures of the African Sahel. Boulder:
ainda na primeira metade do século XIX.
Lynne Rienner, 2000, p. 201-228. Este foi o caso, por exemplo, da Jihād res-

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 184-187, jul./dez. 2017 185


Jihād e revolução nas duas margens do Atlântico

ponsável pela guerra no território bambara lhos futuros, assim como Mariana Candido
e a formação do Império do Mancina com (2013) o fez de forma interessante para o
capital em Hamdullahi, em 1820. Um úl- caso da África Centro-Ocidental em An Afri-
timo movimento dentro da cronologia da can Slaving Port and the Atlantic World.
chamada Era das Revoluções iniciou-se em Nesta seção sobre a diáspora africana e o
1848 com a hijra de Al-Hajj ‘Umar, genro de Brasil, Paul Lovejoy pôde revisar alguns pon-
Muhammad Bello de Sokoto. Ele conquistou tos levantados em seu artigo Jihād na África
a região aurífera do Bambuk, entendendo- Ocidental durante a “Era das Revoluções”
se ao Segu e às fronteiras com as colinas de (LOVEJOY, 2014) e respondidos por João
Bandiagara. O estabelecimento de um cen- José Reis (REIS, 2015). As críticas de Lovejoy
tro militar em Dinguiray serviu como apoio com relação à interpretação das etnicidades
para campanhas militares em larga escala em Rebelião Escrava no Brasil (REIS, 2003)
(SMITH, 1961, p. 181), bem como para o ex- são colocadas de forma diferente do debate
tensivo comércio de armasdefogo compra- citado acima, o que torna a leitura dos dois
das de comerciantes franceses. capítulos essencial para um entendimento da
Os capítulos 5 e 6 conectam de forma presença e da concentração excepcional de
mais direta a história das Jihād da Áfri- africanos muçulmanos na Bahia, bem como
da historiografia e das interpretações sobre o
ca Ocidental e a diáspora africana em seus
tema desde o início do século XX.
aspectos culturais, populacionais e de re-
O capítulo 7 conecta a história do Cali-
sistência escrava. O destaque para estes
fado de Sokoto com os esforços britânicos
capítulos está no estudo demográfico das
para o fim do tráfico atlântico de escravos.
populações escravizadas nas Américas em
As negociações diplomáticas para o fim do
relação aos eventos ocorridos no interior da
tráfico entre o diplomata Hugh Clapperton e
África Ocidental e do Sudão Central. Para
o califa Muhammad Bello na década de 1820
tanto, Lovejoy faz uso extensivo – e crítico –
são analisadas em comparação com o fenô-
de diferentes bancos de dados digitais sobre
meno antiescravista (de indivíduos nascidos
a questão. Sete das tabelas dentro do livro
livres e muçulmanos) dentro do próprio ca-
foram elaboradas com a ajuda do The Trans
lifado. Lovejoy argumenta que a “África Oci-
-Atlantic Slave Trade Database (www.sla-
dental poderia ter suprido todos os escravos
vevoyages.org), outras duas através do Sla- que foram enviados às Américas no período
ve Biographies: The Atlantic Database Net- posterior à em torno de 1760, mas não o fez”
work (www.slavebiographies.org) além de (LOVEJOY, 2016, p. 165). A questão do au-
materiais consultados no Liberated Africans mento do número de escravos e o uso de seu
Project (www.liberatedafricans.org). Estes trabalho na produção de commodities co-
são bancos de dados contendo toneladas de nectadas à industrialização em vários espa-
dados sobre a diáspora africana e migração, ços do Atlântico em um período de combate
além de documentos originais que ainda são ao comércio de escravos é colocada dentro
subutilizados no Brasil, tanto para pesquisa de um debate maior na chamada Second
e ensino universitário. O preço para utilizá Slavery [Segunda Escravidão].3
-los é excelente: grátis. Acredito que o mé- 3 KAYE, Anthony E. The Second Slavery: Moder-
todo com o qual Lovejoy faz uso destes ma- nity in the Nineteenth- Century South and the
Atlantic World,” Journal of Southern History 75,
teriais para conectar os dois lados do Atlân- no. 3, p. 175-195, 2009; TOMICH, Dale. The ‘Se-
tico pode servir como inspiração para traba- cond Slavery’: Bonded Labor and the Transfor-

186 Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 184-187, jul./dez. 2017


Bruno Rafael Véras de Morais e Silva

Por fim, o capítulo 8 é de fato o mais inte- não tarde, pois o livro e as discussões nele
ressante em termos metodológicos. No Bra- presente merecem ser lidas e debatidas no
sil, como no Caribe e outros espaços atlânti- Brasil.
cos, é comum olhar para a África no intuito
de entender os fenômenos e práticas sociais Referências Bibliográficas
do outro lado do Atlântico. É um exercício CURTIN, Philip D. (ed.). Africa Remembe-
básico. Porém, neste capítulo, Paul Lovejoy red Narratives by West Africans from the
utiliza documentos biográficos e autobiográ- Era of the Slave Trade. Madison: University
of Wisconsin Press, 1967.
ficos produzidos nas Américas (e em Serra
Leoa) para entender os fenômenos e eventos KLEIN, Martin. Paul Lovejoy. Jihād in West
ocorridos na África Ocidental. Este é o caso Africa during the Age of Revolutions.
Athens: Ohio University Press, 2016. African
de Muhammad Kaba Saghanughu4 do Fuuta Studies Review, 60(3), p. 239-240, 2017.
Jalon (1823), Mahommah Gardo Baquaqua5
LOVEJOY, Paul E. (ed.). Slavery on the Fron-
(1854), entre outros.
tiers of Islam. Princeton: Markus Wiener,
Enfim, o livro tem aspectos comuns 2004.
em volumes de caráter narrativo: eventos,
LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África.
fenômenos e acontecimentos históricos; Uma história de suas transformações. Rio
porém é um livro essencialmente analíti- de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
co, levantando questões e interpretações
LOVEJOY, Paul E. Identidade e a Miragem da
polêmicas. É um livro não só sobre histó- Etnicidade: A Jornada de Mahommah Gardo
ria da África, mas da diáspora em sua co- Baquaqua para as Américas. Afro-Ásia, Vol 27,
nexão com o outro lado do Atlântico. Por p. 9-39, 2002 (b).
fim, pensando com um estudante e prole- LOVEJOY, Paul E. Jihād na África Ocidental du-
tário, o preço do material não é alto: 27,00 rante a ‘Era das Revoluções’ - Rumo a um Diá-
dólares. No mais, espero que o mesmo es- logo com Eric Hobsbawm e Eugene Genovese.
Topoi, Vol. 15, n. 28, p. 22-67, 2014.
teja disponível em mais algum tempo em
“bibliotecas digitais compartilhadas” flu- LOVEJOY, Paul E.Methodology through the
tuando com seus PDFs em nuvens piratas, Ethnic Lens: The Study of Atlantic Africa. In:
FALOLA, Toyin; JENNINGS, Christian (eds.).
nas bibliotecas de nossas universidades e African Historical Research: Sources and
que uma tradução para língua portuguesa Methods. Rochester: University of Rochester
Press, 2002 (a).
mations of the Nineteenth- Century World Eco-
nomy. in RAMIREZ, Francisco (ed.). Rethin- REIS, João José. Rebelião escrava no Bra-
king the Nineteenth Century: Contradic- sil: a História do levante dos Malês em
tions and Movement. New York: Greenwood, 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
1988, p.103–17.
4 DADDI ADDOUN, Yacine; LOVEJOY, Paul E. REIS, João José. Resposta a Paul Lovejoy. To-
Muhammad Kābā Saghanughu and the Mus- poi, v. 16, n. 30, p. 374-389, jan./jun., 2015.
lim Community of Jamaica. in LOVEJOY, Paul
E. (ed.). Slavery on the Frontiers of Is- SMITH [Abdullahi], H. F. C. A Neglected The-
lam. Princeton. Markus Wiener, 2004, p. me of West African History: The Islamic Revo-
201-20 (Disponível em: http://www.yorku. lutions of the 19th Century. Journal of the
ca/nhp/plovejoy/muslim_volume/chap- Historical Society of Nigeria, vol. 2, no. 2,
ter10%20pages%20199-218.pdf Acessado em
p. 169–85, 1961.
20/12/2017).
5 VÉRAS, B. R. et al. Projeto Baquaqua. (Dis-
poníel em: <www.baquaqua.com.br> Acessado Recebido em: 08/07/2017
em 20/12/2017. Aprovado em: 11/09/2017

Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 184-187, jul./dez. 2017 187


Objetivo e Política Editorial

Objetivo e política editorial


A revista África(s) publica artigos originais e resenhas que tenham como foco pesquisas sobre o
continente africano e suas representações. São bem vindos artigos nas áreas de História, Ciências
Sociais, Educação, Economia, Artes, Arqueologia, Literatura e Letras. A revista África(s) tem como
objetivo a divulgação de pesquisas que abordem o continente africano, contribuindo assim para di-
fundir o conhecimento sobre a África e seus povos.

Os originais podem ser enviados em português, francês, espanhol e inglês. Todos os artigos devem
ser acompanhados
A submissão de artigos e resenhas para a revista África(s) só poderá ser feita por mestres e doutores.
Poderão submeter artigos para publicação na revista mestres e doutores nas áreas em História ou
áreas afins. Todos os textos recebidos para publicação serão submetidos a uma avaliação preliminar
quanto à sua adequação aos objetivos mencionados acima, a ser realizada pelos Editores.

Textos
Todos os textos aprovados na avaliação preliminar e que atendam aos requisitos mínimos apontados
nas normas de apresentação de colaborações serão submetidos a dois pareceristas. Havendo parece-
res contrários, recorrer-se-á a um terceiro. 

Cabe ao Conselho Editorial a decisão referente à oportunidade da publicação das contribuições re-
cebidas e aprovadas.

Cada autor só poderá ter um artigo em processo, entre o início da submissão e a publicação final.
Será ainda observado um intervalo de uma edição entre a publicação e o início de um novo processo
de submissão de texto.

Normas para a apresentação de colaborações


1. Todos os trabalhos devem ser apresentados em duas versões, uma com e outra sem a identifica-
ção do autor; não é necessário enviar cópia impressa. O programa utilizado deve ser compatível
com o Word for Windows. Imagens: 300 dpi.

2. Em uma folha separada, devem constar os dados completos do autor (nome completo, filiação
institucional, titulação acadêmica, endereço institucional, telefone com DDD e e-mail para cor-
respondência). O autor deve também declarar que o texto submetido é 100% inédito e não se
encontra em processo de julgamento em nenhum outro periódico ou coletânea.

3. Caso a pesquisa tenha apoio financeiro de alguma instituição, esta deverá ser mencionada.

4. As traduções devem vir acompanhadas de autorização do autor e do original do texto.

5. Os artigos terão a extensão de 15 a 30 páginas em formato A4, digitadas em fonte Times New
Roman 12, com espaço 1,5. As citações de mais de cinco linhas deverão ser feitas em destaque,
com fonte 11 e recuo 2,5 cm. Margens: superior e esquerda: 3,0 cm; inferior e direita: 2,0 cm. Os
artigos serão acompanhados do resumo de no máximo 10 linhas, ou 140 palavras, e 3 palavras-
chave. Os resumos deverão ser acompanhados de uma tradução em inglês, ou nas línguas aceitas
para publicação por esta revista.

188 Revista África(s), v. 04, n. 08, jul./dez. 2017


Objetivo e Política Editorial

6. As resenhas poderão ter entre 1.000 e 1.500 palavras. Fontes e margens seguem mesmas normas
dos artigos. Devem referir-se a livros nacionais publicados até cinco anos anteriores a data da
submissão à revista. Para livros estrangeiros admite-se que tenham sido publicados nos últimos
dez anos.

7. As referências bibliográficas completas devem ser listadas em ordem alfabética, no final do ar-
tigo. Quando citada, a obra deve ser indicada de maneira simplificada no corpo do artigo: (AU-
TOR, ano, p. número).

8. As notas devem ser colocadas sempre no final do texto.

9. Normatização das notas conforme NBR 6023.

Exemplos para as referências


Livro: DAMASCENO, José Jorge Andrade. Vozes eclipsadas, memórias silenciadas. Tradução (se
houver). 1ª Ed. Recife: Bagaço, 2016, 349 p.

Capítulo ou parte de livro: SAMPAIO, Moiseis de Oliveira; FERREIRA, Jackson André da Silva.
Coquí: um coronel negro no sertão baiano (Morro do Chapéu- BA, 1864-1919). In: LIMA, Ivaldo
Marciano de França; DAMASCENO, José Jorge Andrade; SANTOS, Joceneide Cunha dos; VIEIRA
FILHO, Raphael Rodrigues; SAMPAIO, Moiseis de Oliveira; FERREIRA, Jackson Andre da Silva
(Orgs). Áfricas, Índios e Negros. 1ª Ed. Recife: Bagaço, 2016, p. 365 – 399.

Artigo em periódico: LIMA, Ivaldo Marciano de França. Selvas, povos primitivos, doenças, fome,
guerras e caos: a África no cinema, nas histórias em quadrinhos e nos jornais. África(s). V. 01, p. 81-
105, 2014.

Dissertação: SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de
homens e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Dissertação (Mestrado
em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2004.

Tese: VIEIRA FILHO, Raphael Rodrigues. Os Negros em Jacobina (Bahia) no século XIX. Tese
(Doutorado em História do Brasil) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.

Trabalho apresentado em evento: SANTOS, Cristiane Batista da Silva; BISPO, Daniana Oli-
veira. Identidade negra no ensino e aprendizagem de história local e regional nas experiências do
PIBID. In: V Encontro Nacional das Licenciaturas - IV Seminário Nacional do PIBID, 2014, UFRN.
Natal, ENALIC, 2014, p. 10-15. Disponível em: http://enalic2014.com.br/anais/anexos/1247.pdf

Os originais devem ser submetidos pelo endereço: escrever o endereço eletrônico da revista, o cami-
nho da submissão.

Revista África(s), v. 04, n. 08, jul./dez. 2017 189

Vous aimerez peut-être aussi