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estudos semióticos

www.revistas.usp.br/esse

issn 1980-4016 vol. 14, no 1


março de 2018
semestral p. 12 –21

Por que Greimas?


Elizabeth Harkot-de-La-Taille*

Resumo: Um número reduzido de fatores influencia nossas escolhas acadêmicas. Enquanto estudantes, todos
temos inclinações, tais como as disciplinas preferidas; expectativas, por exemplo, no tipo de qualificação que
queremos desenvolver; um estilo de pensamento, que contribui para que um se sinta confortável, digamos, com
semântica cognitiva, mas não com outras abordagens. Esses fatores orientam nossas escolhas, e contribuem
com a construção de nosso repertório. Porém, isso não é tudo. O imponderável pode surgir e reforçar ou
redirecionar nossas escolhas anteriores. Por acaso, um dia me deparei com Semântica estrutural, de Greimas,
livro que não apenas acalmou minhas inquietações estudantis, mas também apresentou novas perspectivas,
entre as quais o “mundo natural” como tendo papel no “nascimento” do sentido, e uma discussão inicial
sobre a complexidade do conceito de figuratividade, tanto no “mundo natural”, como no discurso. A primeira,
figuratividade no “mundo natural”, dizia respeito à informação que os cinco sentidos nos fornecem sobre o
mundo, enquanto a remetia às imagens evocadas no discurso. Aqui, a complexidade do conceito de figuratividade
é destacada e apresentada por dois pontos de vista. Ademais, sugere-se que a figuratividade é transversal
ao percurso gerativo do sentido, proporcionando a “energia” necessária para a conversão de um nível a outro
superior (em direção à superfície). A intenção de encorajar tal debate subjaz a maior parte desta contribuição.

Palavras-chave: Semântica estrutural, figuratividade, mundo natural, cinco sentidos, conversão

Introdução neira de uma totalidade integral, numa dinâmica de


trabalho em que “[...] a participação de cada um adqui-
O ano de 2017 foi merecidamente palco de um grande ria sentido ao convergir na realização de um objetivo
número de celebrações dos cem anos do nascimento comum [...]” (p. 59): a construção da teoria semiótica.
do pensador lituano Algirdas Julius (Julien) Greimas. Essa belle époque (palavras do autor) do círculo per-
Falecido em 1992, sua obra semiótica sempre foi por durou nos anos 1970-80, até que, antes mesmo da
ele compreendida como uma construção contínua e morte de Greimas, as divisões internas, até então sub-
coletiva. Desde o início de sua carreira na École de sidiárias ao projeto semiótico do círculo, começaram a
Hautes Études en Sciences Sociales, em 1965, investiu se impor, transformando a anterior totalidade integral
em promover encontros periódicos visando a constituir em uma “totalidade partitiva justapondo grupos rivais”.
uma equipe de discussões e reflexões teóricas, a fim Conta o semioticista que o grupo então se fragmen-
de juntos construírem uma teoria da significação. No tou em “clãs adversários”, caracterizados por “jogos
início da década de 1970, o modelo de trabalho coletivo de alianças tácitas entre mandarins, submandarins
se consolidou no estabelecimento do que veio a ser (palavras de Greimas) e seus fiéis, cada um mais pre-
conhecido como “círculo semiótico greimasiano”, cuja ocupado com sua carreira à medida que a atmosfera
função de celeiro teórico coletivo somente começou a de crise econômica que havia se instalado tornava as
sofrer modificações ao final dos anos 1980. Até o pre- vagas e os empréstimos mais raros” (Landowski, 2017,
sente, a tradição de encontros quinzenais do Seminário p. 62). Em sequência à fase de totalidade partitiva,
de Semiótica, um espaço de discussão e criação teó- abordagens internas ao quadro epistemológico com
rica, mantém-se, porém, com características básicas status de unidades partitivas passaram a se propor
distintas das originais. como “alternativas concorrentes na intenção de reno-
var, prolongar ou enriquecer a base teórica comum”
Landowski (2017) descreve a formação do “círculo
(p. 62). Como as correntes mais representativas dessa
semiótico greimasiano” como se constituindo à ma-
*
Professora Livre Docente do Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo (FFLCH, USP) e uma das coordenadoras
do Grupo de Estudos Semióticos da USP (GES-USP). Endereço para correspondência: h beth.harkot@usp.br i.
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tendência, o autor destaca, no mesmo texto, as abor- sua homenagem em São Petersburgo, cerca de um ano
dagens ditas semiótica tensiva, semiótica modular e após sua morte.
sociossemiótica. Acrescento que é preciso adicionar Pictures at an Exhibition [Quadros de uma Exposi-
a essa pequena lista a grande produção de Fontanille ção] é uma suíte para piano escrita a partir da seleção
voltada às formas de vida, ao corpo, aos vestígios, ao de dez quadros expostos nessa ocasião, cada um rece-
plano de expressão, entre outros. bendo um tema musical em harmonia com seu tema
Até hoje, os descendentes teóricos de Greimas en- visual. Assim, a obra descreve, em metáforas musi-
caram a semiótica como em construção. O caráter cais, a visita a uma exposição de quadros. Para tanto,
coletivo é o que mais sofreu modificações, como aponta as dez músicas são unidas por uma mesma melodia,
Landowski e como pode atestar quem hoje acompanha chamada Promenade, executada no tema inicial e em
as atividades do Seminário de Semiótica (Paris, França). quatro intermezzo, a cada momento interpretada com
Ainda local de apresentação e discussão de ideias e instrumentos e harmonias distintas. O ouvinte, nessa
desenvolvimentos, ele abriga uma multiplicidade de excursão musical, é conduzido quadro a quadro, como
abordagens, nas apresentações dos palestrantes, so- se visitasse a exposição, acompanhando o guia-música,
bre um mesmo tema previamente selecionado para cujos passos na passagem de sala em sala (Promenade)
o ano acadêmico. Atualmente, um leque de corren- se deixam contagiar pelos quadros observados.
tes semióticas de origem greimasiana, entre próximas Pictures at an Exhibition interpretada por Emerson,
e distantes, ou mesmo discordantes do cerne desen- Lake & Palmer abriu duas áreas de visibilidade em
volvido pelo “círculo semiótico greimasiano”, antes o meu horizonte: a música clássica, por intermédio de
“clube de iguais” (palavras de Greimas), está ao alcance Mussorgsky, tendo me comovido com sua tradução
de pesquisadores e estudantes. em música daquilo que viu; e as artes plásticas, pela
O estado da arte, e isso concentrando-nos exclu- curiosidade sobre os quadros que teriam impulsionado
sivamente na semiótica francesa, adquiriu tamanha a composição de tal peça musical.
amplitude e complexidade que pode desnortear recém-
chegados ou convidá-los a adotar uma abordagem
(unidade partitiva) como se fosse toda a semiótica, v
sem “descer” à base teórica (totalidade integral) que
a rege. O encurtamento da preparação da carreira
acadêmica, as pressões da CAPES e de outras agên-
cias de fomento, as contingências acadêmicas (onde
Outros quadros em exposição
se estuda qual autor), sem nos deter nas dificuldades
de financiamentos, vão todos no sentido contrário à O que pode ter em comum um artigo inserido no con-
complexidade e amplitude teórica. texto de homenagem aos cem anos de nascimento de
Greimas com as notas preliminares acima?
Portanto, escrevo minha parte de homenagem ao
mestre lituano tendo em mente estudantes como leito- Vou tentar mostrar que essa aproximação pode, sim,
res, da graduação e da pós-graduação. Assim, convido fazer sentido. Transporto-me de volta aos primeiros
o leitor ou a leitora a uma pequena viagem no tempo, semestres de estudo no curso de Letras, relembrados
ladeando-me no caminho até completar a resposta que como tendo algo dessa experiência “musicopictórica”.
ofereço ao título deste texto: “Por que Greimas?” Meu primeiro dia de contato foi ocupado por uma
longa reunião explicativa sobre o funcionamento do
curso, recebimento e leitura de vários livretos contendo
Notas preliminares: quadros de informações sobre o curso de Letras, suas múltiplas
habilitações e currículos. O ingressante podia cursar
uma exposição apenas a habilitação de ingresso, ou escolher mais uma
ou duas, embora seu aceite na segunda ou terceira de-
Era novembro de 1971 quando a banda de rock pro- pendia de sua classificação no vestibular. Linguística
gressivo Emerson, Lake & Palmer (ELP) lançou o álbum entrava no mesmo patamar das línguas estrangeiras,
Pictures at an Exhibition, seu arranjo para a obra homô- divididas em grupos A e B. As línguas do grupo A
nima de Modest Mussorgsky. Nas décadas de 1970 e tinham aulas concomitantes e podiam se compor ape-
1980, muitos adolescentes e jovens amantes de rock nas com alguma do grupo B, língua estrangeria ou
tiveram seu primeiro contato com o músico e compo- linguística, também estas com aulas concomitantes.
sitor Mussorgsky de maneira indireta, por intermédio Escolhendo uma habilitação, seriam necessários “x”
do ELP. Incluo-me entre eles. créditos, duas habilitações, “y”, três habilitações, “z”;
Conta-se que Mussorgsky compôs essa obra em ho- não era possível concluir três habilitações em menos
menagem a um amigo falecido, Viktor Hartmann, após de cinco anos. Hora de preencher o formulário de
visitar uma exposição de quadros deste, montada em matrícula. “– Alguma pergunta?”

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Elizabeth Harkot-de-La-Taille

Havia planejado adicionar linguística à língua es- justo colocar os docentes, todos capazes de habitar a
trangeira pela qual ingressei, mas vi nessa hora que memória de ex-estudantes em associação com paixões
eram incompatíveis, pois do mesmo grupo. Pensei distintas. Um bom professor tem o poder de despertar
em outra língua estrangeira – também incompatível. o interesse de seus alunos para se aprofundarem no
E numa terceira. Idem. O ponteiro do relógio avan- assunto, enquanto um professor ruim (fraco, injusto
çava. O formulário tinha de ser entregue. Tendo sido etc.) pode com facilidade tornar sua matéria desinte-
preenchido dentro da possibilidade de compreensão ressante, indigesta, incompreensível, sem sentido.
imediata de tal universo complexo e entregue, selavam- Contudo, ainda que todos os professores fossem
se os quatro ou cinco anos seguintes, se não houvesse igualmente excelentes e mantivessem relações justas e
reprovações nem desistência. respeitosas com seus alunos, os/as estudantes interes-
Nas primeiras semanas, nas Colmeias labirínticas sados se dispersariam na eleição de suas disciplinas
da USP, o primeiro desafio de todo calouro era encon- preferidas. Isso ocorreria por quatro conjuntos de fa-
trar a sala para a qual deveria se dirigir. O segundo, tores, todos interligados e de importância comparável.
adaptar-se à variedade de disciplinas e enfoques, ta- O primeiro conjunto de fatores diz respeito às in-
refa que levaria no mínimo os dois primeiros anos, clinações de cada aprendiz. Uma aluna pode gostar
mas que poderia não se completar até a conclusão do mais de estudar a fundo língua materna do que língua
curso. estrangeira, enquanto um colega seu se interessa mais
O percurso, dado pelo currículo, composto por mui- por disciplinas de cunho linguístico; um outro colega
tas disciplinas obrigatórias, pré-requisitos e algumas pode se sentir mais confortável em discussões literá-
optativas, oferecia pouca oportunidade de escolha, rias, enquanto outra estudante gostaria de entender
além da cometida no ato da matrícula inicial. As- como, do ponto de vista linguístico, bons textos são
sim, a cada início de semestre, o/a estudante passava construídos etc. O que rege as inclinações é provavel-
de uma nova disciplina a outras conhecendo pouco mente desconhecido do próprio aprendiz e resultante
mais do que seu título, semelhante a um visitante des- de um complexo de experiências.
preparado que passa por quadros de uma exposição O segundo, muito comunicante com o primeiro, é
seguindo setas do percurso, sem conhecimento prévio, composto pelas expectativas discentes. Um aspirante
catálogo explicativo ou mapa dos setores. Língua Por- a tradutor, uma preparadora de livros traduzidos para
tuguesa, Língua Estrangeira, Introdução à Linguística, publicação, alguém inquieto e curioso por questões
Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa, Latim, Li- atinentes à semântica, um futuro professor de ensino
teratura (da língua) Estrangeira (eleita)... Um longo rol médio ou uma estudiosa de obras literárias terão forte
de disciplinas, cujas relações iam-se tecendo, quando tendência de elegerem disciplinas distintas como pre-
se teciam, pelo/a aprendiz, na medida em que apreen- feridas e, possivelmente, nas quais se aprofundarem.
dia e reconstruía para si o ensinado, o estudado e o Em seguida, vem o que chamo de estilos de pensa-
aprendido, tornava seu o conhecimento e, aos poucos, mento, fator que incide sobre a abordagem dos recortes
forjava seu percurso dentro do caminho determinado mencionados dentre as inclinações e as expectativas.
pelo currículo, enquanto ia compondo seu repertório. Por exemplo, tomemos alguém interessado por ques-
Ou, diferentemente, se o/a aluno/a não fazia sentido tões semânticas. Dependendo de onde estuda, o aluno
do conjunto de disciplinas, tendia a ir embora provisó- vai se deparar com algumas das abordagens entre
ria ou definitivamente. semântica formal, semântica lexical, semântica gera-
Para os que permaneciam, várias disciplinas pro- tiva, semântica cognitiva, mas também com análise
vocavam prazer intelectual, outras, arrepios na espi- conversacional, pragmática, teoria da enunciação, AD
nha, outras, ainda, indiferença; havia disciplinas que francesa (análise do discurso francesa), semiótica, en-
exigiam muito – a maioria –, ou exigiam pouco, ou tre outras. Situação equivalente se dará com sujeitos
exigiam não se sabia bem o quê, mas não o que fosse de outros interesses e outras expectativas: dentre as
reconhecido como matéria dada. Havia, enfim, um várias abordagens teóricas, algumas se harmonizarão
microuniverso, o recorte “letras” de uma universidade, mais com o estilo de pensamento de cada um.
conjuminando professores, assuntos e abordagens Por fim, parte consequência e retroalimento dos con-
para todas as expectativas (ou quase1 !) e também juntos de fatores anteriores, parte decorrentes das
para um tanto de frustrações. condições de estudo oferecidas, chegamos aos dife-
As diferentes reações discentes, variando do êxtase rentes repertórios em construção. Da passagem de
intelectual à revolta ou ao tédio, decorriam e decorrem disciplina em disciplina – como de quadro a quadro,
de fatores vários. Em primeiro lugar, é provavelmente na obra musical –, parte dos alunos se distrai e até se
1
Meu primeiro seminário de linguística foi sobre o aparelho fonador. Como é de hábito entre estudantes, dividimos começo, meio e fim
entre as três componentes do grupo. Estudamos o tema, discutimos, elaboramos um roteiro. A colega a tomar primeiro a palavra começou
dando sua contribuição pessoal: O aparelho fonador foi criado por Deus, para que os homens pudessem falar e se comunicar. Silêncio
constrangedor. Rubor. Não descarto que tenha vindo daí meu interesse pela paixão vergonha, desenvolvido muito tempo mais tarde.

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perde no caminho, parte se apodera do percurso e vai sobre o que e como estudar, com literatura era dife-
fazendo-o seu. Elegendo as disciplinas que lhes são rente. Semestre após semestre, a cada novo professor
mais estimadas, como as músicas-quadro que mais de literatura, alguns brilhantes, um outro modo de
os (co-)movem, e obtendo pelas escolhas impulso para encarar o texto literário se colocava. Com um profes-
ir além, sua curiosidade2 vai convidar cada um do sor, o semestre foi dedicado à busca de evidências de
segundo grupo a procurar saber mais, a ver nas dis- crítica social nas obras estudadas. Com outro, um
ciplinas que lhes sugerem confiança em sua própria ferramental psicanalítico guiou leitura e análise. Em
competência, ou músicas-quadro inteligíveis ou aces- outra experiência, o crivo de leitura era a luta de clas-
síveis, uma possibilidade de abertura de horizontes. ses. Em outra, ainda, o foco eram as características
E assim, da semântica alguém pode se encantar pela que faziam com que uma obra fosse categorizada como
semiótica, como das músicas interpretadas em rock romântica, parnasiana, simbolista etc. Em outros
progressivo é possível aproximar-se da música clás- momentos, a leitura e análise das obras seriam gui-
sica, das artes plásticas e da instigante proposta de adas por uma perspectiva antropológica, psicológica,
tradução de quadros em música e, para o ouvinte, do sociológica, histórica, comparativa.
desafio do caminho inverso, o da construção do sentido Meu interesse na literatura era diferente das abor-
dos quadros, sem os conhecer, por sua apresentação dagens oferecidas, pois residia nas obras em si. Eu
musical. queria entender como e porque simpatizamos com uma
Anunciei quatro fatores, mas há um quinto que não personagem e não com outra, porque era doloroso ler
pode ser desprezado: o imponderável. Deixo-o vago Pai Goriot, isto é, porque a leitura dava vontade de
porque condiz com sua natureza. O imponderável tem entrar na obra e chacoalhar o pobre pai abusado pelas
o poder de imprimir uma nova direção ao olhar, ou filhas, para ver se despertava e agia de outro modo.
confirmar a direção que vinha se fixando, ou desviá-la Queria encontrar o que, no texto, fazia com que eu e
em alguns graus... ou, simplesmente, imprimir uma colegas nos alegrássemos com o destino de Elizabeth
direção ao olhar antes dançarino como o beija-flor. e Sr. Darcy, protagonistas de Orgulho e Preconceito.
Está evidente que nos aproximamos da semiótica. A Queria entender o porquê de minha exasperação di-
linha de pensamento traçada até o parágrafo anterior ante da queda contínua e inevitável de Fantine, e de
tem o propósito de sinalizar que uma escolha, por acer- minha revolta contra a rigidez do inspetor Javert, de
tada e satisfatória que seja, não implica diminuição do Os miseráveis. E da tristeza profunda despertada pelo
valor de outras escolhas. Nas ciências humanas, ou sacrifício de Baleia, em Vidas Secas. Perguntava-me
“protociências”, segundo Kuhn (2006), teorias coexis- como alguns autores conseguem, por meio da com-
tem, competem, chegam a se opor, sem que alguma posição de seu texto, por meio de combinações de
adquira hegemonia por “descrever melhor” seu objeto. palavras, construir personagens e histórias que eu e
tantos outros sentíamos tão verdadeiras, tão próximas,
Se aceitamos que inclinações, expectativas, estilos
personagens que quase se materializavam em pessoas
de pensamento e repertórios compõem perfis e promo-
de carne e osso e histórias que praticamente vivíamos
vem percursos próximos de únicos, devemos também
em conjunto.
aceitar que, nas humanidades, não se justificam op-
ções unânimes por uma única vertente teórica, ou Enquanto minhas perguntas permaneciam sem lu-
por um pensamento único – maneira de dizer que gar, desorientava-me tomar a lança do gigante Gar-
deixa mais claro o caráter insensato e perigoso ligado à gantua em guerra por um símbolo fálico, ou ler “O
hipótese. Portanto, ao prosseguir em direção à semió- Vaso”, de Olavo Bilac, procurando luta de classes, ou
tica, destaco motivos relacionados a minhas próprias aproximar uma rosa ao sexo feminino, até mesmo em:
inclinações e expectativas, ligados a meu estilo de pen- “Que há num nome? / O que chamamos rosa, sob
samento e repertório pessoais. Generalizá-los seria outro nome teria igual perfume.”3 (Julieta a Romeu,
vão. sobre ele ser um Montecchio). Ou ainda buscar infor-
mações sobre a vida do autor para explicar sua obra –
Letras foi meu segundo ingresso na USP, quatro
ora, e se o escritor quisesse justamente criar-se outras
anos após o primeiro, em exatas. Durante a gradu-
possibilidades de vida, ainda que fictícias, por meio de
ação, irmanava-me àqueles alunos mais voltados a
seus textos?
línguas e estudos linguísticos. Gostava muito de ler
obras literárias, apreciava muitos dos professores, po- Sendo essa a atmosfera trazida pela memória, em
rém, não raro encontrava dificuldade nos trabalhos uma situação específica todos os estudantes se igua-
de literatura. Enquanto nas disciplinas de línguas lavam. Não importavam as afinidades e o percurso
estrangeiras e de estudos linguísticos eu tinha clareza acadêmico sendo traçado, mais cedo ou mais tarde, to-
2
“Curiosidade” me parece um sinônimo mais simpático de interesse, na medida em que a primeira mobiliza unicamente o saber,
enquanto o segundo pode remeter a alguma forma de poder almejado.
3
Tradução nossa para o trecho original: "What’s in a name? / That which we call a rose by any other name would smell as sweet."
(Shakespeare, Romeo and Juliet, ato II, cena II).

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Elizabeth Harkot-de-La-Taille

dos se encontrariam na fila do xerox, na incontornável mas indicou as dificuldades teóricas e práticas, além
fila do xerox, que consumia quase todos os intervalos. de vislumbrar as possíveis críticas de grupos com quem
Foi numa dessas filas que, à minha frente, um aluno o diálogo era a maior intenção.
não desgrudava os olhos do livro que tinha em mãos. Na primeira leitura, entretanto, foi o item “A primeira
Ao ser atendido, aproveitei a pausa e lhe perguntei o escolha epistemológica” que me encantou e se gravou
que lia com tanta atenção: “– Um livro de semântica.” como início do livro, e ao qual voltarei ao final. Plei-
“– Você parece interessado. É bom?” “– Parece que é, teando poucos pressupostos epistemológicos e gerais,
um professor recomendou. Começa bem.” “– Gosto Greimas prossegue:
de questões semânticas, mas ainda não tive nada, no
curso.” Mostrou-me a capa: Semântica Estrutural, A. É com conhecimento de causa que nos propomos a
considerar a percepção como o lugar não lingüístico
J. Greimas. Ao final do semestre, fui à biblioteca e
onde se situa a apreensão da significação. Assim pro-
retirei o livro para ler nas férias. Despretensiosamente, cedendo, ganhamos a vantagem e o inconveniente de
o imponderável colocara-se em meu caminho. não poder estabelecer, no seu estatuto particular uma
classe autônoma de significações lingüísticas, suspen-
dendo dessarte a distinção entre semântica linguística e
semiologia saussuriana. (Idem, p. 15)
Semântica Estrutural
E, pouco adiante, abria a porta para o lugar que
Parece-nos que o mundo humano se define
minhas perguntas buscavam, até então, em vão, nas
essencialmente como o mundo da significação. Só pode
ser chamado “humano” na medida em que significa incursões literárias. Ao afirmar que “[v]emos também
alguma coisa. que a explicação dos fatos estéticos se situa atual-
(Greimas, 1976 [1966], p. 11) mente sobretudo no nível da percepção da obra, e não
mais na exploração do gênio ou da imaginação” (p. 16),
Greimas propõe para as ciências humanas o de- senti o conforto de quem encontra bons amigos numa
nominador comum da pesquisa sobre a significação. longa viagem solitária.
Enquanto as ciências da natureza investigam o que Os destaques trazidos ocupam nem 5% da obra. Eis
são o ser humano e o mundo, as ciências humanas se que uma descrição qualitativa da semântica é buscada,
debruçam sobre o que cada um significa. Nesse livro conceitos operacionais são apresentados desde o mais
seminal, a semântica é apresentada como “a parente simples, todos de forma transparente, de modo que a
pobre” (Greimas, 1976 [1966], p. 12) da linguística, honestidade da proposta se mostra inquestionável. A
ora deixada para mais tarde, ora hostilizada, ambas semântica, “reconhecida assim abertamente como uma
as situações devidas à dificuldade de definição de seu tentativa de descrição do mundo das qualidades sen-
objeto, ao mesmo tempo em que uma “onda” (p. 13) for- síveis” (p. 16), é definida como tendo por objeto uma
malista dominava a cena. Seu estudo científico exigiria língua natural, tomada como conjunto significante, isto
o enfrentamento de obstáculos teóricos e práticos. é, um conjunto composto de qualidades-significante e
Do ponto de vista teórico, Greimas enunciava como qualidades-significado. As primeiras são atinentes ao
imprescindível encontrar-se o lugar da semântica no plano de expressão, remetem ao mundo natural como
interior da linguística e se elaborarem métodos gerais, acusado por um ou mais dos cinco sentidos (tato, vi-
“compatíveis com qualquer outra pesquisa sobre signi- são, audição, paladar, olfato). As últimas instituem
ficação” (p. 14), métodos, portanto, dotados dos mes- o mundo sensível enquanto significação na medida
mos postulados e utilizando-se de um mesmo corpo em que seus elementos constitutivos, “de diferentes
conceitual. ordens sensoriais”, forem “captados como significados”
No tangente às dificuldades práticas, Greimas pre- (p. 18).
nunciava que a necessidade de uma metalinguagem O livro segue, dividido em doze partes, ou temas,
precisa, unívoca, de definições rigorosas e interliga- cada um subdividido em capítulos rigorosamente con-
das corria o risco de “parecer igualmente pedante e cebidos com o objetivo de clareza e exaustividade. Após
supérflu[a] ao destinatário cujo sistema de referências completar as condições para uma semântica científica,
culturais é literário ou histórico” (p. 14), ou “insu- aborda a estrutura elementar da significação, discute
ficiente e excessivamente ‘qualitativ[a]’ aos lógicos e língua e discurso, discorre sobre o conceito de mani-
matemáticos”. Entre exigências conflitantes, opta pela festação, situa o nível semiológico, descreve o conceito
meia distância, na expectativa de fomentar intercom- de isotopia aplicado ao discurso, versa sobre a orga-
preensão, embora consciente do risco de “descontentar nização do universo semântico, investe na descrição
a todos” (p. 14). da significação, examina os procedimentos de descri-
Relendo as quatro primeiras páginas desse livro, ção, reflete sobre os modelos actanciais, desenvolve
hoje entendo quão visionárias elas são para sua época. modelos de transformação e conclui com uma aná-
Greimas não apenas situou o que se precisava conquis- lise à guisa de exemplo: a descrição do universo de
tar para tornar possível o estudo científico do sentido, Bernanos.

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A obra atribui à percepção o lugar da apreensão da que era esperado de uma análise e, melhor, podíamos
significação, um lugar não linguístico, atenta à gera- discuti-la e refiná-la. Éramos um grupo trabalhando
ção do sentido, ao propor-lhe um percurso gerativo em conjunto sobre um texto, ainda que separada-
e vincula a questão da significação a uma gramática mente. A metalinguagem causava dificuldades, mas,
da narratividade. Semântica Estrutural 4 é de leitura uma vez que nos familiarizássemos, ela nos permitia
árdua, ao mesmo tempo que um clássico imperdível. abordar um objeto com rigor e respeito – sim, respeito
pelo objeto –, ao limitar a possibilidade de leituras
impressionistas ou mesmo idiossincráticas. Tínhamos
Reencontro a chance e a obrigação de “morder o texto”, parafra-
seando Greimas em um de seus célebres bordões: “é
Para ingressar no Mestrado, eu devia escolher um en- preciso morder o real!”.
tre dois projetos, se é que o segundo merecesse esse Aos poucos, a história da semiótica francesa, antes
nome. Por um lado, uma proposta amarrada na prá- semântica, foi se tornando familiar a mim e me per-
tica. Como professora de inglês há anos, havia feito um mitiu compreender algumas das razões pelas quais a
estágio de especialização em Saffron Walden, cidade- teoria me cativou.
zinha próxima de Cambridge, com bolsa do Conselho
Britânico. Era o início do emprego do computador no
ensino, tempo em que nos perguntávamos se determi- Olhar o passado, entender o pre-
nado software educativo era ou não eficiente. Durante
minha estadia, fiz o levantamento de todos os progra- sente
mas dirigidos à aprendizagem de inglês como língua
estrangeira produzidos por Oxford e Cambridge até Conta Dosse (1993, p. 83), sem meias palavras, so-
então. Naquele momento, havia pouco mais de du- bre o desenvolvimento da linguística na França, na
zentos desses programas, divididos em três formatos primeira metade do século XX:
rudimentares de questões e respostas (lacunas, res-
postas sim/não ou múltipla escolha). Com base nesse Na França, a efervecência lingüística tal como se mani-
festa na Europa nos anos 30 não tardou em conhecer
trabalho, eu queria elaborar software educativo mais prolongamentos, mas uma distorção vai causar proble-
inteligente e testar os programas em aulas de inglês mas. A lentidão institucional vai frear a implantação
para brasileiros. Eu tinha parte da pesquisa prévia, universitária da linguística moderna: esta vai sitiar a
fortaleza da Sorbonne mas sem êxito. Será necessária
os alunos, a concordância do responsável pela escola
uma verdadeira estratégia de assédio para lograr uma
de línguas e disposição para aprender a programar. vitória difícil diante das posições bem estabelecidas do
Por outro lado, eu queria estudar “o sentido”. Vago mandarinato acadêmico.
assim mesmo. Almejava entender o que é o sentido.
Se possível, “o sentido da vida”. Não era apenas uma No subcapítulo intitulado “A periferia sitia o cen-
ideia vaga, era também megalômana. tro” (Idem, p. 85-87), Dosse apresenta uma Sorbonne
Nas inscrições, foram abertas duas vagas para “lin- surda às novidades no campo da linguística6 e desin-
guística computacional” e nenhuma para semântica. teressada em formar centros de pesquisas, nos anos
No mestrado, como parte dos créditos, cursei uma 1950, enquanto a dinamicidade dos centros de Es-
disciplina intitulada “Abordagens Semânticas”, ou algo trasburgo (filologia neolatina) e Besançon (lexicologia)
próximo. Estudamos Chomsky, Lyons, Rastier, Rosch, produzirá encontros acadêmicos, mesas-redondas, co-
Rossi-Landi, entre outros. A disciplina durou quase lóquios, atas, revistas. Como afirma o autor (p. 85),
um ano, embora fosse semestral. O grupo permaneceu “essa atividade intensa é ignorada, evidentemente, pela
comprometido até cumprirmos o programa, que era Sorbonne, mas começa a fazer-se conhecer mediante
generoso e ambicioso. Aprendemos muito e entendi suas publicações”.
que “semântica” como um grande guarda-chuva teó- Enquanto esses centros de pesquisa distantes de
rico não me arrebatava. Em nenhuma das abordagens Paris abrem a França para o novo e para encontros
figurava a “semântica estrutural”.5 anuais entre linguistas franceses e estrangeiros, no
Anos depois, já no doutorado, cursei a disciplina outro extremo do eixo abertura-fechamento, no cerne
“Semiótica Narrativa” da professora Diana Luz Pessoa das humanidades clássicas, onde se encontram os
de Barros, hoje, Professora Emérita da Faculdade de estudiosos da literatura – área historicamente privile-
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Semes- giada – vigora o fechamento na tradição de estudos da
tre rico, construí confiança em minha capacidade de história literária. Para estes, sempre segundo Dosse
analisar textos. Pela primeira vez, eu compreendia o (1993), qualquer alusão a método científico ou lógico
4
Lamento, somente, que sua tradução para o português tenha problemas.
5
Que eu entendia como uma vertente semântica, ao lado de semântica formal, funcionalista, gerativa...
6
Não é despropositado sugerir um paralelo com as humanidades da USP, instituição de fundação e tradição francesas.

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Elizabeth Harkot-de-La-Taille

era categoricamente rechaçada, por ser vista como ina- ano, pela perspectiva semiótica encampada pelo apre-
dequada ao campo literário. Esse fechamento, por um sentador. Os encontros serão mais e mais referidos por
lado, impede e atrasa o desenvolvimento da reflexão “seminário de semiótica”. Há quase cinquenta anos,
teórica na literatura e, por outro, freia a ocupação de transformando-se de círculo de semiótica a Seminário
postos de trabalho por linguistas, em universidades. Internacional de Semiótica, parte dos componentes da
Quanto mais tradicional a universidade, maior a resis- formação inicial segue se encontrando quinzenalmente
tência ao novo e o fechamento na tradição; a Sorbonne e discutindo propostas e desenvolvimentos uns dos
representava o ápice desse movimento de clausura. outros. Por quê?
Greimas, que havia estudado Letras em Grenoble Curiosamente, é Eric Landowski, provavelmente o
antes da Segunda Guerra, voltara à Lituânia para membro do antigo círculo cuja rotina de trabalho é a
o serviço militar e lá permanecera durante a guerra. mais individualizada e propositalmente solitária, quem
Retorna à França em 1945 para fazer seu doutorado avança uma resposta coletiva em forma de perguntas.
na Sorbonne. Percebendo o pequeno apreço pela lin- Inquire se o vínculo com a semiótica de Greimas se
guística que a instituição reservava, mergulhou na daria por fé na validade do método, que se provou per-
elaboração de sua tese “La Mode en 1830. Essai de tinente e demandaria apenas aplicação fiel. Sem que a
description du vocabulaire vestimentaire d’après les primeira pergunta o satisfaça, aprofunda a abordagem:
journaux de mode de l’époque”7 , defendida em 1948,
e partiu para o Egito, ocupando o posto de leitor em [...] Ou, na realidade, não seria, antes, um interesse
Alexandria entre 1949 e 1958. É nesse período que razoado e crítico diante de um corpo de proposições,
de conceitos, de hipóteses, de intuições que, por per-
se torna amigo de Barthes, estuda Saussure, desco-
manecer aberto e precisar ser prolongado, nos incita e
bre Hjelmslev e se reúne semanalmente com outros ao mesmo tempo nos ajuda a inventar nosso próprio
pesquisadores, para discussões principalmente de cu- caminho em busca do sentido? Mas não haveria tam-
nho epistemológico. De Alexandria vai para Ankara bém, de nossa parte, mais profundo que tudo isso, uma
afinidade com um estilo de reflexão, com uma visão de
e Istambul, e, em seguida, Poitiers, onde chega em mundo e certa ética do sentido, de tal modo que essa se-
1962. miótica que praticamos tornar-se-ia para nós algo quase
Durante esses treze anos fora da França e mais 3 como uma “forma” ou, pelo menos, um “estilo” de vida?
(Landowski, 2017, p. 13)
em Poitiers, ao cultivar o gosto pelas reuniões sema-
nais com o grupo de Alexandria, manter contato com
o amigo Barthes e frequentar as atividades de verão Acredito que a resposta é sim, principalmente para
do Centro de Pesquisa em Lexicologia, de Besançon, as duas perguntas em citação. É vital o caráter aberto
torna-se um membro ativo e respeitado da “periferia” e rigoroso que o arcabouço teórico oferece, pois, assim,
que vai sitiando o “centro”. prolongamentos teóricos e busca individual do sentido
se alimentam mutuamente, ou, no limite, tornam-se
Chegamos ao momento com o qual abrimos estas
uma e a mesma coisa. Além disso, ter “afinidade com
reflexões, 1965, início da carreira na École de Hautes
um estilo de reflexão” é quase o mesmo que encontrar
Études en Sciences Sociales. Em 1966, Greimas pu-
um estilo de pensamento com o qual se harmonize
blica Sémantique structurale (1966) [Semântica Estrutu-
(ver Landowski, 2017, p. 5), “visão de mundo” é mais
ral, 1976]. No início dos 1970, o círculo de semiótica e
amplo, porém tem uma relação de mão dupla com o
sua dinâmica de trabalho estão estabelecidos. A série
repertório constituído e em construção. Já “uma certa
“Documents” e as “Actes Sémiotiques” são publicadas.
ética do sentido” é algo que entendi e aprendi ao aplicar
Várias análises semióticas – imanentes – da literatura,
com rigor a metodologia semiótica, ao constatar que
em oposição às abordagens históricas ou comparativas,
ela torna possível morder o real ao mesmo tempo em
vêm a público, conquistam adeptos, simpatizantes e
que respeitamos o objeto de análise.
desafetos. A semiótica vai ampliando seu escopo para
além do texto literário, como o âmbito visual, a soci-
edade, práticas etc. O círculo produz regularmente
trabalhos sólidos, e seus achados realimentam as dis- Prolongamento(s)
cussões teóricas. A semiótica francesa está em pleno
desenvolvimento e continuará como construção cole- Aproxima-se a hora de fechar esta homenagem, em
tiva por quase vinte anos, quando suas ramificações forma de um texto curto, mas que espero capaz de
darão sinais de despontar. compartilhar o quão significativo foi para alguém o
encontro com o pensamento de Greimas. Não conheci
Greimas morre.
Greimas pessoa. Minha opção teórica se deu poucos
Gradualmente, as reuniões do círculo se tornarão
meses antes de um dia despertar – uma manhã como
espaço de discussão de um tema selecionado para o
tantas – pegar o jornal e ver noticiado seu falecimento.
7
Defendida como tese principal – “Doctorat d’État de l’Université de Paris”. Republicada em Paris, após revisão de Thomas Broden, pela
PUF, na Coleção “Formes Sémiotiques”, 2000, 255p.

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estudos semióticos, vol. 14, no 1 — março de 2018 (edição especial)

Entro na última etapa deste percurso, seguindo ou- mundo sensível-inteligível9 com o nível fundamental –,
tra daquelas frases fortes de Greimas, significando um enquanto Greimas a exige no nível das análises narrati-
conselho ou ordem: “Levante o olhar!”. Levanto o olhar vas e discursivas, portanto, no âmbito da metodologia
e dedico as últimas páginas à função da percepção na de análise. Entre um e outro, prevê-se a “conversão”,
produção dos sentidos e à figuratividade, conceito que ainda não devidamente compreendida.
pede maior reflexão, por ter papel desde a percepção Se admitirmos que contribuição do mundo exterior
até o nível discursivo e, consequentemente, ter uma ao nascimento ou à emergência do sentido transcende
característica transversal (palavra minha) ao percurso ao nível dos modelos narrativos, encontramos a ‘força
gerativo do sentido. São Greimas e Courtés, no Dici- motriz’, a ‘energia’, ou o ‘necessário’ para a conversão
onário de Semiótica (1983), verbete “mundo natural”, do nível sensível-inteligível fundamental, para os níveis
que dão sustentação à ideia: narrativo e discursivo. Tal hipótese, porém, não cabe
ser desenvolvida aqui.
[...] as línguas naturais basicamente enformam e ca-
tegorizam o mundo exterior procedendo a seu recorte. Voltemos à percepção ainda por um pouco.10 Em ar-
Não seria correto, porém, adotar a atitude extrema que tigo de 1999 sobre o livro de Greimas De l’Imperfection
consiste em afirmar que o mundo natural é um “mundo
(1987), agora traduzido para o português e publicado
falado” que só existiria, enquanto significação, pela apli-
cação sobre ele das categorias linguísticas [...] o mundo em Landowski (2017), intitulado “Da Imperfeição, o
natural é uma linguagem figurativa, cujas figuras – que livro do qual se fala”, o autor avança “a necessidade
encontramos no plano do conteúdo das línguas natu- de superarmos a concepção dualista – ‘sensitivo’ ver-
rais – são feitas das “qualidades sensíveis do mundo e
agem diretamente8 – sem mediação linguística – sobre o
sus ‘cognitivo’ que a mais ampla tradição filosófica
homem. (Greimas; Courtés, 1983, p. 291-292) nos impõe como ponto de partida” (Landowski, 2017,
p. 106), para tratarmos a emergência do sentido na
E reitero, com Landowski (2017, p. 88), citando estesia. Além disso, uma mudança de perspectiva se
Greimas entre suas palavras: impõe, que é a de substituir a ideia de que algo tem
sentido pela de que algo faz/produz sentido, em outras
[...] a figura emana das articulações plásticas imanen-
palavras, é necessário passar do sentido construído
tes ao mundo sensível. Essa redefinição apoia-se exa-
tamente na ideia avançada em Semântica Estrutural, para sua construção (Idem, p. 142), na abordagem do
segundo a qual as qualidades do mundo sensível, or- mundo natural.
ganizadas em “um conjunto de categorias e sistemas
sêmicos situados e apreensíveis ao nível (sic.) da percep-
Greimas (1984, p. 10) não apenas autoriza como
ção (Greimas, 1966, p. 64, grifo nosso), “representam encoraja esse posicionamento, ao aventar o que ocorre
a face externa, a contribuição do mundo exterior ao na semiose que consiste em uma leitura iconizante:
nascimento do sentido” (Idem, p. 65).

O exame mais atento do ato de semiose mostrará bem


O primeiro ponto a destacar é a referência de Grei- que a operação principal que o constitui consiste na sele-
mas à percepção como canal ou lugar pelo qual o ção de certo número de traços visuais e sua globalização,
mundo exterior contribui com a emergência do sentido. a apreensão simultânea que transforma o conjunto de
traços heterogêneos em um formante, isto é, em uma
Alguém pode perguntar: “– Mas e a imanência?”. Lan-
unidade do significante, reconhecível, tão logo se en-
dowski a destaca ao situar as articulações plásticas quadre na grade do significado, como a representação
como atinentes ao mundo sensível. Mas a pessoa po- parcial de um objeto do mundo natural.11
deria insistir: “– Ora, a análise narrativa não está no
nível do mundo sensível, mas dependeria dele?” Nove anos mais tarde, o mestre lituano dedica um
Sim. Em minha leitura, o que ocorre é que Lan- livro inteiro ao sentido em construção, ao processo de
dowski sublinha a imanência no nível do mundo sensí- fazer sentido, na estesia: “eis aí uma sequência de vida
vel – aqui, falta na semiótica reflexão sobre a relação do ‘vivida’ como uma sucessão ininterrupta de escolhas
8
A ideia de que as figuras do mundo natural agem diretamente sobre o homem é sujeita a discussão, sobretudo desde a publicação de
Groupe µ, Principia Semiotica: aux sources du sens (Bruxelas: Les Impressions Nouvelles, 2015) e de Harkot-de-La-Taille, E.; Sentir, saber,
tornar-se: estudo semiótico do percurso entre o sensório e a identidade narrativa (São Paulo: Humanitas, 2015). Se Greimas e Courtés
(1983) empregam “diretamente” apenas como sinônimo de “sem mediação linguística”, inserido como aposto, estamos de acordo, ainda que
a formulação não tenha a precisão costumeira dos autores. Para o Groupe µ (2015) e para Harkot-de-La-Taille (2015), as figuras do mundo
natural são “traduzidas” pelos sentidos do corpo e afetam o ser humano enquanto respostas provocadas pelos estímulos externos. Não
agem, portanto, “diretamente... sobre o homem”, mas passam pela mediação dos sentidos.
9
Embora Greimas e Landowski sempre refiram tão somente o mundo sensível, em nossa relação com o mundo natural, concordo com
Groupe µ (Op. Cit.), que prevê, diferentemente, uma mediação dos sentidos sobre os estímulos permitindo o delineamento de categorias
classificatórias dos traços sensórios. A categorização é necessária e exige recortes do vivido, o que demanda atuação inteligível sobre os
traços sensórios recortados. Por isso, passo a empregar mundo sensível-inteligível.
10
Para uma discussão aprofundada, ver Harkot-de-La-Taille (2015).
11
Tradução nossa para o trecho original: “L’examen plus attentif de l’acte de sémiosis montrerait bien que l’opération principale qui le
constitue est la sélection d’un certain nombre de traits visuels et leur globalisation, la saisie simultanée qui transforme le paquet de traits
hétérogènes en un formant, c’est-à-dire en une unité du signifiant, reconnaissable, lorsqu’elle est encadrée dans la grille du signifié, comme
la représentation partielle d’un objet du monde naturel.”

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Elizabeth Harkot-de-La-Taille

que conduz pouco a pouco à construção de um objeto Landowski (Idem, p. 97) concebe a figuratividade,
de valor” (Greimas, 1987, p. 80, grifo meu).12 no sentido genérico, como atinente ao nível discursivo
De l’Imperfection [Da imperfeição, 2002], ao dirigir e subdividida em duas: a das formas “figurativas”, que
seu foco à estesia e evocar o papel da percepção na “têm” significação, comporiam a “figuratividade stricto
construção do sentido, recoloca a figuratividade na sensu, dita de superfície, que é objeto da “leitura”; e a
arena dos debates semióticos. Como escreve Lan- das formas “plásticas”, que “fazem sentido”, constitui-
dowski (2017, p. 36), “além do ‘prazer do texto’, ele riam a “figuratividade” lato sensu, dita profunda, que
nos dá, entre outras coisas (e sempre em Da Imper- é objeto da “apreensão”.
feição), o esboço de uma teoria da figuratividade. E, De meu lado, entendo a figuratividade, no sentido
sem proclamá-lo, toma semioticamente posição sobre genérico, como transversal ao percurso gerativo do
os problemas da percepção, da estesia, da relação sentido, conforme já dito. A figuratividade relacionada
sujeito-objeto na experiência vivida”. às figuras do mundo natural, a profunda, que contri-
Desde Semântica Estrutural (1976 [1966]), a figu- bui para o nascimento do sentido, enquanto figuras
ratividade é apontada como mais complexa do que de expressão, a que “faz” sentido, ressurge no nível
apenas participante da semântica discursiva. Se De discursivo como figuras de conteúdo, as que “têm” sen-
l’Imperfection (1987) esboça uma teoria para ela, o tido e que resgatam a motivação inicial às figuras de
problema está colocado com clareza crescente já em expressão. Admitindo que tal compreensão se sus-
Greimas (1984), texto na verdade escrito seis anos tenta, a figuratividade genérica se constituiria como
antes, em 1978, “Sémiotique figurative et sémiotique um elemento capaz de dinamizar o percurso gerativo
plastique”. Por exemplo, na página 9 desse texto, e, consequentemente, participar da operação de con-
quando o semioticista se pergunta o que, no espetá- versão.
culo do mundo, é-nos “naturalmente” (aspas do autor) No mínimo, nos “Quadros de uma exposição”, de
dado ou imediatamente legível, avança a ideia de que Mussorgsky, em que estímulos visuais, plásticos fo-
sejam as figuras constituídas pelos traços de sentidos ram “traduzidos” em notas musicais, ritmos e timbres,
(sensórios) distintos. Seria um erro, diz Greimas, con- mesmo sem conhecer “O velho castelo”, de Viktor Hart-
siderar essas figuras objetos, a não ser que o traço mann, a interpretação da música homônima pela Fi-
semântico “objeto” venha se unir a elas, que, então, larmônica de Berlin, conduzida por Claudio Abbado,
transformam-se em objetos. E, mais adiante, numa suscitará a figura de um grande castelo colorido, pos-
colocação ainda mais transparente: sivelmente no verão, cheio de vida; já, interpretado
ao piano, por Evgeny Kissin, um castelo elegante, de
menores dimensões, quieto, talvez vazio; e, finalmente,
[...] se a abordagem figurativa dos objetos é apenas um
meio parcial (de parte e parcialidade) de sua compre- por Emerson, Lake & Palmer, não mais um castelo,
ensão, a figuratividade e as interrogações que a acom- mas suas ruínas, vistas cômodo a cômodo, como por
panham parecem ultrapassar os limites que o suporte alguém sendo perseguido e querendo se esconder.
plano, lugar de sua manifestação, quer lhe atribuir: le-
vando em conta o fato de que as qualidades do mundo
natural, selecionadas, servem à construção do signifi-
cante dos objetos planos, mas que aparecem ao mesmo Referências
tempo como traços do significado das línguas naturais,
vemos que os discursos verbais carregam em si próprios
sua própria dimensão figurativa, só que as figuras que Dosse, François
a constituem são figuras do conteúdo e não figuras da 1993. História do estruturalismo. Volume I: O campo
expressão.13 (p. 11)
do signo (1945-1966). Trad. Álvaro Cabral. São Paulo,
Campinas: Ed. da Unicamp (Ensaios).
Finalmente, para concluir, evoco a concepção das
duas figuratividades, como descritas por Landowski Greimas, Algirdas Julien
(2017, p. 95-97), a partir de sua leitura de “Sémio- 1976 [1966]. Semântica estrutural. Trad. Haquira
tique figurative et sémiotique plastique”, e apresento Osakabe e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix. [Ed.
sucintamente meu modo de as entender, deixando a fr. Sémantique structurale. Paris: Larousse].
questão em aberto, num convite ao leitor e à leitora
para participarem do debate.
12
Tradução nossa para o trecho original: “[...] voilà une séquence de vie, ‘vécue’ comme une suite ininterrompue de choix et aboutissant
petit à petit à la construction d’un objet de valeur.”
13
Tradução nossa para o trecho original: “[...] si l’approche figurative des objets visuels n’est qu’un moyen partiel - et partial - de leur
compréhension, la figurativité elle-même, et les interrogations qui l’accompagnent, semblent dépasser les limites que le support planaire,
lieu de leur manifestation, veut lui assigner : en tenant compte du fait que les qualités du monde naturel, sélectionnées, servent à la
construction du signifiant des objets planaires, mais qu’elles apparaissent en même temps comme des traits du signifié des langues
naturelles, on voit que les discours verbaux portent en eux-mêmes leur propre dimension figurative, à ceci près que les figures qui la
constituent sont des figures du contenu et non des figures de l’expression.”

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estudos semióticos, vol. 14, no 1 — março de 2018 (edição especial)

Greimas, Algirdas Julien Landowski, Eric


1984. Sémiotique figurative et sémiotique plasti- 2017. Com Greimas: interações semióticas. São Paulo:
que. Actes Sémiotiques. Documents, VI, 60. Re- Estação das Letras e Cores, Centro de Pesquisas Soci-
publicado em Actes Sémiotiques, 119, 2016. Dis- ossemióticas.
ponível em:http://epublications.unilim.fr/
revues/as/pdf/5507

Greimas, Algirdas Julien


1987. De l’Imperfection. Périgueux: Fanlac. [Ed. br.
Da imperfeição. Trad. Ana Claudia de Oliveira. São
Paulo: Hacker, 2002].

Greimas, Algirdas Julien; Courtés, Joseph


1983. Dicionário de semiótica . Trad. Alceu Dias Lima
et al. São Paulo: Cultrix, s/d.

Kuhn, Thomas S.
2006. O caminho desde a estrutura 1970-1993 (com
entrevista autobiográfica). Trad. César Mortari. São
Paulo: Editora UNESP.

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Dados para indexação em língua estrangeira

Harkot-de-La-Taille, Elizabeth
Why Greimas?
Estudos Semióticos, vol. 14, n. 1 (edição especial) (2018)
issn 1980-4016

Abstract: A small number of factors influence our academic choices. As students, we all have inclinations, such
as the subjects we like most; expectations, like the kind of expertise we want to acquire; a style of thinking, which
contributes to feeling at ease, say, with cognitive semantics, but not with other branches. These factors orient
our choices and help build up our repertoire, which may in turn substantiate them. That is not all, though. The
imponderable may turn up and reinforce or divert previous choices. By chance, one day I came across Greimas’s
“Structural Semantics”, a book that not only soothed some of my student’s restlessness, but also presented new
perspectives, among which the “natural world” as having a role in the “birth” of meaning and an initial discussion
on figurativity, both in the “natural world” and in discourse. The former, figurativity in the “natural world”, referred
to the information our five senses provide us with about the world, while the latter dealt with the images evoked at
the discourse level. Here, the complexity of the concept of figurativity is pointed out and presented from two points
of view. Besides, it is suggested that figurativity is transversal to the generative trajectory of meaning, and thus
provides the “energy” needed for the conversion from one level upwords (towards the surface). The intention of
encouraging such debate underlies most of this contribution.

Keywords: Structural Semantics ; figurativity ; natural world ; five senses ; conversion

Como citar este artigo

Harkot-de-La-Taille, Elizabeth. Por que Greimas?. Es-


tudos Semióticos. [on-line], volume 14, n. 1 (edição
especial). Editores convidados: Waldir Beividas e Eliane
Soares de Lima. São Paulo, março de 2018, p. 12–
21. Disponível em: h www.revistas.usp.br/esse i. Acesso em
“dia/mês/ano”.

Data de recebimento do artigo: 30/10/2017


Data de sua aprovação: 24/01/2018

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