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Opúsculos sobre
a Natureza
Edição bilíngüe
Volume II
Tradução:
Luiz Astorga
Opúsculos sobre a Natureza - vol. 2, Santo Tomás de Aquino
© Editora Concreta, 2017
Títulos originais:
· De operationibus occultis · De motu cordis
Ficha Catalográfica
Tomás de Aquino, Santo, 1225?-1274
T655o Opúsculos sobre a Natureza - vol. II / tradução de Luiz Astorga, edição de
Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2017.
116p. :p&b ; 16 x 23cm
ISBN 978-85-68962-05-3
CDD-509.4
www.editoraconcreta.com.br
COLEÇ ÃO ESCOL Á STIC A
F
oram características marcantes do período escolástico a elevação da
dialética a um cume jamais superado – antes ou depois, na história
da filosofia –, o notável apuro na definição de termos e conceitos,
a clareza expositiva na apresentação das teses, o extremo rigor lógico nas
demonstrações, o caráter sistêmico das obras, a classificação das ciências a
partir de um viés metafísico e, por fim, a existência duma abóboda teológica
que demarcava a latitude e a longitude dos problemas esmiuçados pela ra-
zão humana, os quais abarcavam todos os hemisférios da ordem do ser: da
materia prima a Deus.
O leitor familiarizado com textos de grandes autores escolásticos, como
Santo Tomás de Aquino, Duns Scot, Santo Alberto Magno e outros, estranha
ao deparar com obras de períodos posteriores, pois identifica perdas de cunho
metodológico que transformaram a filosofia num enorme mosaico de idéias
esparzidas a esmo, nos piores casos, ou concatenadas a partir de princípios
dúbios, nos melhores. A confissão de Edmund Husserl ao discípulo Eugen
Fink de que, se pudesse, voltaria no tempo para recomeçar o seu edifício feno-
menológico serve como sombrio dístico do período moderno e pós-moderno:
o apartamento entre filosofia e sabedoria – entendida como arquitetura em
ordem ao conhecimento das coisas mais elevadas – acabou por gerar inúmeras
obras malogradas, mesmo quando nelas havia insights brilhantes.
Constatamos isto em Descartes, Malebranche, Espinoza, Kant, Hegel,
Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heiddegger, Ortega y Gasset, Wittgens-
tein, Sartre, Xavier Zubiri e vários outros autores importantes cujos princípios
filosóficos geraram aporias insanáveis, verdadeiros becos sem saída.
Na prática, o filosofar que se foi cristalizando a partir do humanismo renas-
centista está para a Escolástica assim como a música dodecafônica, de caráter
atonal, está para as polifonias sacras. Em suma, o nobre intuito de harmonizar
diferentes tipos de conhecimento foi, aos poucos, dando lugar à assunção da
desarmonia como algo inescapável. As conseqüências desta atitude intelectual
fragmentária e subjetivista, seja para a religião, seja para a moral, seja para a
política, seja para as artes, seja para o direito, foram historicamente funestas,
mas não é o caso de enumerá-las neste breve texto.
Neste ponto, vale advertir que a Coleção Escolástica, trazida à luz pela editora
Concreta em edições bilíngües acuradas, não pretende exacerbar um anacrônico
confronto entre o pensar medieval e tudo o que se lhe seguiu. O propósito maior
deste projeto é o de apresentar ao público brasileiro obras filosóficas e teológicas
pouco difundidas entre nós, não obstante conheçam edições críticas na grande
maioria das línguas vernáculas. Tal lacuna começa a ser preenchida por iniciati-
vas como esta, cujo vetor pode ser traduzido pela máxima escolástica bonum est
diffusivum sui (o bem difunde-se por si mesmo). Ocorre que esta espécie de bens,
para ser difundida, precisa ser plantada no solo fértil dos livros bem editados.
No mundo ocidental contemporâneo, plasmado de maneira decisiva na lon-
gínqua dúvida cartesiana, assim como nos ceticismos de todos os tipos e matizes
que se lhe seguiram; mundo no qual as certezas são apresentadas como uma es-
pécie de acinte ou ingenuidade epistemológica; mundo que se despoja de suas
raízes cristãs para dar um salto civilizacional no escuro; mundo, por fim, desfigu-
rado pelas abissais angústias alimentadas por filosofias caducas de nascença; em
tal mundo, não nos custa afirmar com ênfase entusiástica o quanto este projeto
foi concebido sem nenhum sentimento ambivalente. Ao contrário, moveu-nos a
certeza absoluta de que apresentar o Absoluto é um bálsamo para a desventurada
terra dos relativismos.
Vários autores do período serão agraciados na Coleção Escolástica com
edições bilíngües: Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo
de Cantuária, Santo Alberto Magno, Alexandre de Hales, Roberto Grossetes-
te, Duns Scot, Guilherme de Auvergne e outros da mesma altitude filosófica.
Em síntese, a Escolástica é uma verdadeira coleção de gênios. Procurare-
mos demonstrar isto apresentando-os em edições cujo principal cuidado será
o de não lhes desfigurar o pensamento.
Que os leitores brasileiros tirem o melhor proveito possível deste tesouro.
Sidney Silveira
Coordenador da Coleção Escolástica
Sumário
Bibliografia citada 47
S. Thomae de Aquino Opera Omnia 49
Sobre as Operações
Ocultas da Natureza
a um soldado ultramontano
V
isto que em certos corpos naturais surgem ações naturais cujos prin-
cípios não podem ser manifestamente apreendidos, vossa amizade1
requisitou de mim que vos escrevesse meu parecer sobre isto.
Certamente vemos que os corpos obedecem2 aos movimentos dos elemen-
tos neles dominantes: como a pedra, que se move ao meio do planeta segundo
a propriedade da terra (que nela é dominante), e os metais, que, segundo a
propriedade da água, possuem a virtude de resfriar.3 Logo, têm origem evi-
dente, sobre a qual não há nenhuma dúvida, quaisquer ações e movimentos
de corpos elementados4 que ocorram segundo a propriedade e virtude dos
elementos a partir dos quais estes corpos são compostos.
Contudo, há certos movimentos e ações dos corpos que não podem ser
causados pelas virtudes dos elementos, como o fato de que o ímã atrai o ferro,
ou o de que certo remédio sempre purga determinado humor de determinadas
partes do corpo. É necessário, portanto, reduzir tais ações a certos princípios
mais elevados. Devemos considerar que, segundo a virtude de um agente su-
perior, há dois modos pelos quais um agente inferior age ou é movido. De um
primeiro modo, enquanto a ação procede do agente inferior segundo a forma
ou virtude nele impressa pelo superior – assim como a Lua ilumina pela luz
que recebe do Sol.5 De um segundo modo, o agente inferior opera somente
pela virtude do superior, sem que nenhuma forma tenha sido recebida para o
agir, mas apenas pelo movimento exercido pelo agente superior – assim como
1 “Vestra dilectio.” Esta era uma forma de tratamento bastante usada à época de Santo Tomás. Dilec-
tio: dileção, bem-querer. [N. T.]
2 “Sequuntur.” A opção por traduzir o termo latino por “obedecer” deu-se em razão de que o sentido
do texto de S. Tomás, nesta passagem, não é “resultar de”, mas “acompanhar”. Em síntese, os corpos
– que não são outra coisa senão matéria sob determinada forma – operam “com” e “a partir” dos
elementos que os constituem. [N. T.]
3 Conforme esclarecemos na nota 23 ao opúsculo De principiis naturae (que consta do vol. I desta
obra), para os filósofos escolásticos os elementos terra, ar, fogo e água eram contemplados, antes
de tudo, como portadores de certos atributos próprios. Isto fica evidente no começo deste trata-
do, quando Santo Tomás salienta que os metais, segundo a propriedade da água, têm a virtude de
resfriar. [N. C.]
4 “Elementatorum”, gen. pl. de elementatus. São corpos físicos compostos por elementos. O leitor
poderia supor que todos são assim. O autor, porém, refere-se a tais corpos desta maneira não apenas
para realçar a natureza de sua composição e a sua relação com as virtudes próprias dos elementos,
mas para distingui-los dos corpos celestes. Como se verá abaixo, Tomás supõe a célebre distinção
entre corpos sublunares e corpos celestes, que, segundo a Física de sua época, seriam compostos de
matéria distinta – livre da contrariedade dos elementos e atualizada pela forma substancial dos astros,
de modo a não deixar espaço à recepção de outra. [N. T.]
5 A lua não tem a virtude da luminescência, pois apenas participa – ao modo de refletora – da lu-
minosidade do sol.
12 Santo Tomás de Aquino
o carpinteiro utiliza a serra para cortar: este corte é principalmente ação do artí-
fice e secundariamente da serra, na medida em que esta é por ele movida, e não
porque tal ação resulte de alguma forma ou virtude que na serra permaneça
após o movimento do artífice.6
Se, portanto, os corpos elementados participam,7 em certas ações ou mo-
vimentos, de agentes superiores, é necessário que isto se dê de um dos dois
modos mencionados: ou as ações desta natureza resultariam de formas ou
virtudes impressas nos corpos elementados por agentes superiores,8 ou tais
ações resultariam apenas da moção destes corpos elementados, realizada por
tais agentes.
Ora, estes agentes superiores que excedem a natureza de elementos e elemen-
tados não são apenas os corpos celestes, mas também as superiores substâncias
separadas. E encontramos nos corpos inferiores, da parte destes dois agentes,9
algumas ações ou movimentos que não procedem de nenhuma forma impressa
nos corpos inferiores, mas apenas da moção dos agentes superiores: a água do
mar, que flui e reflui, realiza tal movimento à revelia da propriedade do elemen-
to, pela virtude da lua – não por uma forma impressa na água, mas pela própria
moção da lua, pela qual a água é movida pela lua. Surgem também certos efeitos
de imagens10 necromânticas,11 os quais procedem não de quaisquer formas que
6 Vê-se que S. Tomás se refere a dois modos distintos de moção do agente inferior pelo superior:
quando o inferior participa da forma do superior e age por meio dela, como no exemplo da lua, que
participa da luz do sol ao refleti-la; ou quando o inferior não participa da forma do superior, que dele
se vale como mera causa instrumental, como no exemplo da serra usada pelo carpinteiro. [N. C.]
7 O conceito de participação – pegado de empréstimo por S. Tomás a Platão, e expurgado das li-
mitações que possuía na obra do filósofo grego – é peça-chave da metafísica do Aquinate, que não é
outra senão a da “participação em graus intensivos de ser”. Em boa parte deste opúsculo, o Angélico
não alude à participação principal constitutiva (como a das essências no ser, a da matéria na forma dos
entes compostos, etc.), e sim à participação secundária perfectível (caso das formas acidentais agregadas
aos corpos inferiores pelas virtudes operativas dos superiores). A respeito da distinção entre “parti-
cipação acidental” e “participação essencial”, ver Santo Tomás de Aquino, In De Hebdomadibus,
III. [N. C.]
8 Mesmo que se trate de virtudes impressas apenas enquanto o inferior está a receber o influxo do
superior, como no exemplo da lua, citado por S. Tomás. [N. C.]
9 Os corpos celestes e as substâncias separadas.
10 O termo imago (ou, ymago, conforme a grafia da edição original) não se refere aqui ao conceito
gnosiológico de “fantasma”, que, segundo Santo Tomás, é a imagem implicada no modo propriamen-
te humano de conhecer – o qual se dá por abstração das notas individuantes da matéria. Corresponde
à imagem em sentido comum, como dizemos de ícones e ídolos. [N. T.]
11 A grafia “nigromancia” não deriva do termo latino para a cor negra, mas é uma variante de “necro-
mancia”, termo helênico que significa, literalmente, a revelação ou divinação através dos mortos – ou
a invocação ou contato com eles. [N. T.]
Conforme afirma Santo Tomás neste mesmo parágrafo, as “imagens necromânticas” são objetos que
14 Santo Tomás de Aquino
dam effectus, qui procedunt non ex aliquibus formis quas susceperint pra-
edictae imagines, sed a Daemonum actione qui in praedictis imaginibus
operantur: quod quidem etiam quandoque contingere credimus in ope-
ratione divina, vel etiam Angelorum bonorum. Quod enim ad umbram
Petri apostoli sanarentur infirmi, vel etiam quod ad tactum reliquiarum
alicuius sancti aliqua aegritudo pellatur, non fit per aliquam formam his
corporibus inditam, sed solum per operationem divinam quae huiusmodi
corporibus utitur ad tales effectus.
Manifestum est autem non omnes operationes elementatorum cor-
porum occultas rationes habentes esse huiusmodi. Primo quidem, quia
praedictae operationes quae non consequuntur aliquam formam impres-
sam, non inveniuntur communiter in omnibus quae sunt eiusdem speciei:
non enim omnis aqua fluit et refluit secundum motum lunae, nec omnia
mortuorum ossa apposita sanant aegrotos. Quaedam vero operationes oc-
cultae in quibusdam inveniuntur corporibus, quae similiter conveniunt
omnibus quae sunt eiusdem speciei, sicut omnis magnes attrahit ferrum.
Unde relinquitur huiusmodi operationes consequi aliquod intrinsecum
principium quod sit commune omnibus habentibus huiusmodi speciem.
Deinde quia operationes, de quibus supra dictum est, non semper ex
huiusmodi corporibus procedunt: quod est evidens signum tales, opera-
tiones non provenire ex aliqua virtute indita et permanente, sed ex solo
Opúsculos sobre a Natureza · Sobre as Operações Ocultas da Natureza 15
elas tenham recebido, mas da ação de demônios que nelas operam – o que tam-
bém cremos que às vezes se dê pela operação divina ou ainda dos anjos bons;
pois que os enfermos se curassem à sombra do apóstolo Pedro, ou que doenças
fossem repelidas ao toque das relíquias de algum santo, são coisas que não se
deram por meio de uma forma posta nestes corpos, mas somente por uma ope-
ração divina que faz uso destes corpos para tais efeitos.
Todavia, é evidente que não são desta natureza todas as operações de cor-
pos elementados possuidoras de razões ocultas. Primeiro, porque as mencio-
nadas operações que não resultam de uma forma impressa não se encontram
em comum em todos os que são de uma mesma espécie: nem toda água flui
e reflui segundo o movimento da lua, nem todos os ossos dos mortos que
se empregam curam os doentes.12 Contudo, encontram-se em certos corpos
determinadas operações ocultas que convêm igualmente a todos os que são
de uma mesma espécie: como todo ímã que atrai o ferro. Donde resta que as
operações deste tipo resultem de algum princípio intrínseco que seja comum
a todos os que pertencem a tal espécie. Segundo, porque as operações que
mencionamos não procedem sempre de tais corpos, o que é sinal evidente de
que não provêm de alguma virtude interna ou permanente, mas apenas do
sofrem ações não procedentes de suas formas, mas em virtude da ação dos demônios. Os mais di-
versos tipos de trânsito da potência ao ato na doutrina do Aquinate são abordados amiúde por Ana
María Minecan, em: Ana María Carmen Minecan, Recepción de la Física de Aristóteles por Tomás
de Aquino: finitud, necesidad, vacío, unicidad del mondo y eternidad del universo, Madrid, Universidad
Complutense, 2015. [N. C.]
12 Neste ponto, parece-nos conveniente apontar o seguinte: não confundamos “operação oculta da
natureza” com “milagre”. Em síntese, ter uma causa oculta é aspecto acidental de qualquer evento
miraculoso. Se assim não fosse, toda operação ou causa oculta seria simpliciter um milagre – o que,
evidentemente, não é verdadeiro. Em breves palavras, o milagre está para além das potências da
natureza, conforme frisa o Doutor Comum: “Na definição de milagre se põe (...) uma coisa que ul-
trapassa a ordem natural (...), que supera as potências da natureza” (Santo Tomás de Aquino, De
Potentia, q. 6, art. 2). Sendo assim, a circunstância de deixar-nos maravilhados, estupefatos ou atô-
nitos é, tão-somente, um efeito conseguinte do milagre (do latim miror, ari = admirar-se), pois este
é um acontecimento, “fora da ordem observada naturalmente nas criaturas” (cf. Santo Tomás de
Aquino, Suma Contra os Gentios, III, c. 101).
No trecho aqui aludido da Suma Contra os Gentios, Tomás arrola três tipos de milagre: 1) quando
Deus faz uma coisa que a natureza não pode realizar por absoluta impossibilidade ontológica (como
a ressurreição dos mortos, a transubstanciação eucarística, etc.); 2) quando Deus faz algo que, por
princípio, a natureza poderia realizar, mas não na mesma ordem de coisas, neste ou naquele indivíduo
e no momento em que se dá o milagre (que um paralítico volte a caminhar e um cego a ver, consi-
derando-se aqui o seguinte: caminhar e ver são potências naturais inscritas na forma entis humana,
mas que estavam circunstancialmente impedidas em determinado homem); 3) quando Deus faz algo
servindo-se, instrumentalmente, das potências da natureza, com o intuito de apressar um processo
em que ela poderia atuar por virtude própria (como a cura de uma febre, por exemplo). Em todos
estes casos, a causa eficiente é sobrenatural. [N. C.]
16 Santo Tomás de Aquino
motu alicuius superioris agentis; sicut serra non semper secat lignum sibi
coniunctum, sed solum quando ad hunc effectum ab artifice movetur.
Quaedam autem actiones occultae sunt corporum inferiorum, quae quan-
documque adhibeantur suis passivis, similes effectus producunt; sicut
rheubarbarum semper purgat determinatum humorem.
Unde relinquitur, huiusmodi actionem provenire ab aliqua virtute in-
dita et permanente in corpore tali. Restat autem considerandum, quid sit
illud principium intrinsecum permanens a quo huiusmodi operationes
procedunt. Manifestum est autem hoc principium potentiam quamdam
esse: hoc enim dicimus potentiam principium intrinsecum quo agens agit,
vel patiens patitur; haec quidem potentia secundum quod refertur ad ul-
timum in quod aliquid potest, accipit nomen et rationem virtutis. Huius-
modi autem virtus quae est talium actionum vel passionum principium,
manifeste ostenditur ex forma rei specifica derivari: omne enim accidens
quod est proprium alicuius speciei derivatur ex principiis essentialibus
illius speciei, et inde est quod ad demonstrandum proprias passiones de
suis subiectis, accipimus pro causa definitionem designantem essentialia
principia rei. Est autem essentiae et quidditatis principium forma in de-
terminata materia existens. Oportet igitur huiusmodi virtutes procedere a
formis talium rerum secundum quod in propriis materiis existunt.
Deinde, cum natura rei dicatur forma vel materia illius; si qua virtus
alicuius rei ab his non derivetur, non erit tali rei naturalis, et per conse-
quens nec actio vel passio a tali virtute procedens erit naturalis. Huiusmo-
di autem actiones quae sunt praeter naturam, non sunt diuturnae, sicut
Opúsculos sobre a Natureza · Sobre as Operações Ocultas da Natureza 17
dentes. Ora, as ações que ocorrem para além da natureza18 não são diuturnas19
(como a água, que, quando aquecida, ganha o poder de aquecer); já as ações
ocultas de que falamos agora se dão do mesmo modo sempre, ou ao menos
freqüentemente. Logo, às virtudes que são os princípios destas ações cabe,
pois, que sejam naturais e que procedam da forma da coisa segundo existe em
tal matéria.
Os platônicos atribuíam o princípio das formas substanciais às substâncias
separadas, às quais chamavam “espécies” ou “idéias”, 20 cujas imagens diziam
ser formas naturais impressas na matéria. Mas este princípio não pode ser
suficiente. Primeiro, porque é necessário que aquilo que faz seja semelhante
ao que é feito.21 Ora, aquilo que é feito nas coisas naturais não é a forma, e
sim um composto de matéria e forma. Pois algo é feito com o intuito de que
seja.22 Ora, o que se diz propriamente subsistente é o composto; já a forma
diz-se aquilo pelo qual algo é. Portanto, aquilo que é feito não é propriamente
a forma, mas sim o composto. Logo, aquilo que faz as coisas naturais não é
tão-somente a forma, mas o composto. Segundo, porque é necessário que as
formas que existem sem matéria sejam imóveis,23 pois o movimento é o ato
daquilo que existe em potência, o que convém primeiramente à matéria. Don-
de é necessário que tais formas sempre se apresentem do mesmo modo. Assim,
a partir de uma causa que se apresenta do mesmo modo procedem formas
que se apresentam uniformemente – fato que não se dá nas formas dos corpos
inferiores,24 devido à geração e corrupção neles existentes.
Resta, portanto, que os princípios de suas formas são os corpos celestes, que,
dispondo-se de modo diverso segundo sua aproximação e seu afastamento, cau-
sam geração e corrupção nos inferiores.25Nada obstante, as mencionadas formas
[de fato] procedem das substâncias separadas como de seus princípios primeiros,
as quais, mediante a virtude e o movimento dos corpos celestes, imprimem
18 Neste ponto S. Tomás não se refere à absoluta sobrenaturalidade, mas a transcender o que cor-
responde à natureza desta ou daquela coisa (ou espécie de coisas). [N. T.]
19 No sentido de corriqueiras, habituais.
20 Cf. Aristóteles, Metafísica, I, 987b, 6-9.
21 Em termos aristotélicos, o efeito necessariamente tem certa semelhança com a causa. [N. C.]
22 No sentido de que participe do ser. [N. C.]
23 Advirta-se: imóveis quanto ao ser substancial, como é o caso dos anjos. [N. C.]
24 Com “corpos superiores” e “corpos inferiores” S. Tomás se refere, respectivamente, aos corpos
celestes e aos corpos que são por eles movidos. [N. C.]
25 “(...) ut sic caelestia corpora sint media inter Deum et ista inferiora etiam in via creationis quodam-
modo”. Cf. Santo Tomás de Aquino, De Veritate, q. 5, art. 9, ad. 1.
20 Santo Tomás de Aquino
tanto mais excelentes são as virtudes e operações que delas procedem – até o
ponto em que a mais nobre forma, que é a alma racional, tem virtude e opera-
ção intelectivas, o que não apenas transcende a virtude e a ação dos elementos,
mas também toda ação e virtude corporais.
Logo, é a partir das formas em ambos os extremos que se há de empreender
o juízo sobre as intermediárias. Pois, assim como as virtudes de aquecer e de
resfriar estão no fogo e na água como conseqüência de suas formas próprias,
e a virtude e a ação intelectuais estão no homem como conseqüência de sua
própria alma racional, assim também todas as virtudes e ações dos corpos
elementados intermediários34 são conseqüências de suas formas próprias e
reduzem-se, como a princípios mais altos, às virtudes dos corpos celestes – e,
em grau ainda mais alto, às substâncias separadas. E é de tais princípios que
derivam as formas dos corpos inferiores, salvo apenas a alma racional, que
procede de uma causa imaterial – isto é, Deus –, porque de nenhum modo
ela é causada pela virtude dos corpos celestes. Não poderia ela, em absoluto,
receber a virtude e a operação intelectuais a partir de um corpo.
Logo, como as virtudes e ações derivam da forma específica (que é co-
mum a todos os indivíduos de uma mesma espécie), não é possível que certo
indivíduo de uma dada espécie obtenha, por ter sido gerado sob determina-
da posição dos corpos celestes, uma virtude que esteja para além dos demais
indivíduos desta espécie. No entanto, é possível, no caso de indivíduos da
mesma espécie, que a virtude e a operação que dela resultam sejam adquiridas
mais remissamente ou mais intensamente devido a uma diversa disposição da
matéria e a uma diversa posição dos corpos celestes, quando da geração deste
ou daquele indivíduo.
Disto transparece ulteriormente que, como as formas artificiais são acidentes
que não resultam da espécie, não é possível que algo feito artificialmente35 en-
34 Neste ponto do original latino, preferimos ler element[ta]torum (“dos elementados”) em vez de
elementorum (“dos elementos”), como consta do texto. Apesar da ausência de divergência nos ma-
nuscritos, parece-nos menos razoável lê-lo como elementorum, visto que o autor claramente põe os
dois extremos da natureza que devem ser usados como referência para as realidades intermediárias, a
saber, os próprios elementos (que estão no extremo inferior) e a alma racional (que está no extremo
superior). Careceria de sentido conceber como o intermediário dessa escala aquilo que o próprio au-
tor declarou ser o extremo inferior, que é o que ocorreria se lêssemos “dos elementos”. Em vez disso,
lemos “dos elementados”, que é como, no contexto desta obra, se têm chamado os corpos sublunares
em geral, que são compostos dos referidos elementos. Embora não haja nenhuma divergência de
manuscritos, o possível erro – a falta de um “ta” em duas palavras que, no que tange ao restante, são
idênticas – pode ter tido origem até mesmo na anotação original do texto. [N. T.]
35 Na medida em que é feito artificialmente.
26 Santo Tomás de Aquino
36 Indita. Virtude interna ou permanente: primeiro dos dois já descritos modos pelos quais algo pode
manifestar uma potência ativa a partir de outro. Opõe-se ao mero uso do ente como instrumento, tal
qual a serra pelo carpinteiro. [N. T.]
37 Isto é, enquanto artificiais.
38 Também não ocorre por meio de uma virtude interna oriunda do elemento ou matéria que
compõe o artefato, porque, se assim fosse, todas as estátuas daquele elemento ou material teriam de
fazê-lo; nem por uma virtude intrínseca à própria forma artificiada – que é só ordem, composição e
figura –, a qual deveria produzir tal efeito em todos os artefatos com aquele mesmo formato, o que
não ocorre. [N. T.]
39 Cf. Santo Tomás de Aquino, Quodl. XII, q. 9, a. 12 (“Secundo quaesitum est utrum verba huma-
na habeant vim ad movendum bruta, puta serpentes”).
28 Santo Tomás de Aquino
vero quas supra diximus consequi corporum formas, sunt naturales, utpo-
te ex principiis intrinsecis procedentes.
Et haec de operationibus et actionibus occultis ad praesens dicta sufficiant.
Opúsculos sobre a Natureza · Sobre as Operações Ocultas da Natureza 29
Quia omne quod movetur, necesse est habere motorem, dubitabile vi-
detur quid moveat cor, et qualis motus eius sit.
Non enim videtur eius motus esse ab anima. Ab anima enim nutritiva
non movetur, animae enim nutritivae opera sunt generare, alimento uti,
et augmentum et diminutio: quorum nullum motus cordis esse videtur.
Et anima quidem nutritiva etiam plantis inest; motus autem cordis ani-
malium proprius est.
Neque sensitivae animae motus esse videtur, sed nec intellectivae, in-
tellectus enim et sensus non movent nisi mediante appetitu: motus autem
cordis involuntarius est.
Sed neque naturalis esse videtur. Est enim ad contrarias partes: com-
ponitur enim ex pulsu et tractu; motus autem naturalis ad unam partem
est, ut ignis sursum, et terrae deorsum. Dicere autem motum cordis esse
violentum, est omnino extra rationem. Manifeste enim hoc motu subtrac-
to, moritur animal, nullum autem violentum conservat naturam. Videtur
quidem igitur hic motus maxime naturalis esse, vita enim animalis et hic
motus se inseparabiliter consequuntur.
Dicunt autem quidam hunc motum naturalem esse non ab aliqua
Opúsculos sobre a Natureza · Sobre o Movimento do Coração 33
C
omo tudo que é movido necessita de um motor, surge a dúvida sobre
o que moveria o coração, e de que tipo seria seu movimento.
Pois não parece que seu movimento seja proveniente da alma: não
é movido pela alma nutritiva, visto que as operações da alma nutritiva são a
geração, o emprego do alimento, e o crescimento e a diminuição – dos quais
nenhum parece ser o movimento do coração. E há alma nutritiva também nas
plantas, ao passo que o movimento do coração é próprio apenas dos animais.
Tal movimento tampouco aparenta provir da alma sensitiva, nem da inte-
lectiva, pois o intelecto e os sentidos não se movem senão mediante apetite – e
o movimento do coração é involuntário.42
Ora, nem natural ele pareceria ser, uma vez que ruma a direções contrárias:
compõe-se de um pulso e de uma tração.43 Um movimento natural, por sua
vez, atua em apenas uma direção – como o fogo, que se move para cima, e
a terra, para baixo. Porém, dizer que é violento o movimento do coração é
completamente alheio à razão:44 é evidente que, uma vez subtraído este mo-
vimento, morre o animal – e nada violento conserva a natureza. Parece, por-
tanto, que este movimento é maximamente natural, pois a vida animal e este
movimento se seguem inseparavelmente.
Dizem alguns,45 porém, que este movimento natural não procede de uma
42 Ao referir-se ao tema da natureza da alma, Santo Tomás salienta tratar-se de algo difícil que requer
uma diligente e sutil pesquisa (diligens et subtilis inquisitio). Cf. Santo Tomás de Aquino, Sum. Theol., I,
q. 87, a. 1. Logo no começo deste precioso De motu cordis, o Aquinate mostra dar por pressupostamente
certa a tese aristotélica da animação sucessiva. Segundo esta, a alma humana seria co-originada com o cor-
po, em relação ao qual manteria unidade substancial – porém o composto hilemórfico humano passaria
por uma espécie de evolução de suas potências: da alma vegetativa passar-se-ia à sensitiva, e da sensitiva à
intelectiva, considerando-se várias potências intermédias. Diz Santo Tomás: “Na geração do animal não
há apenas uma geração simples, senão que sucedem entre si várias gerações e corrupções, assim como se
diz que primeiro tem a forma do sêmen, depois a forma do sangue, e assim sucessivamente até que a ge-
ração seja finalizada. E, dado que a corrupção e a geração não são possíveis sem perder ou acrescentar uma
forma, é necessário que a forma imperfeita que havia antes se perca e uma mais perfeita se introduza, e
assim até que o concebido tenha uma forma perfeita. Por isso se diz que a alma vegetativa existe primeiro
no sêmen, mas se remove no processo da geração, e a sucede outra, que não é só vegetativa, mas também
sensitiva; novamente, removida esta, agrega-se outra, que é ao mesmo tempo vegetativa, sensitiva e ra-
cional”. Cf. Santo Tomás de Aquino, Quaestio Disputata de Anima., q. 11, ad. 1. Podemos dizer que
este é um tópico da obra do Aquinate caudatário integralmente de Aristóteles, e que caducou. [N. C.]
43 Lat. pulsus e tractus
44 A tese do movimento “violento” do coração é de Alfredo de Sareshel: “Cor (...) extrinseco igitur
principio movetur. Is vero motus violentus est (...)”. Cf. Alfredo de Sareshel, De motu cordis, cap.
9, n. 6. [N. C.]
45 Não se sabe quem seria o autor desta tese criticada por S. Tomás. A Edição Leonina – fonte abali-
zada para resolver questões desta natureza – não o indica com certeza. Cf. Sancti Thomae de Aquino,
Opera Omnia iussu Leonis XIII P. M. edita, Tomus XLIII, p. 127. [N. T.]
34 Santo Tomás de Aquino
46 Tese de Alfredo de Sareshel. A alma causa o movimento do coração, mas não principalmente:
primeiro há certo calor gerado pela alma, este calor “distende o ar e o sangue”, etc. [N. T.]
47 O argumento parte da observação bastante comum de que, quando um animal perece, primeiro
pára seu coração, e só depois o cadáver se esfria (ou, em termos mais precisos, se abandona à tempera-
tura do ambiente). O coração mantém o movimento vital do corpo, e, seja com os próprios processos
metabólicos do animal, seja por sua exposição ao ambiente, obtém e distribui como causa remota
o calor (ou variação de calor) próprio daquela espécie; o coração é mais intrínseco ao animal que a
virtude do calor, o que inclusive confirmamos na observação dos répteis que o recebem do sol. Não
constitui argumento o fato de que, para operar corretamente, uma vida animal em formação já tenha
que se encontrar numa determinada temperatura, visto que o calor necessário à existência do embrião
provém de outro ente formado, da mesma espécie, cujo princípio de movimento corpóreo é, por sua
vez, seu próprio coração. Aquele calor particular, presente no embrião e herdado dos pais, é causa
acidental para a existência do embrião, visto que o embrião prossegue sua vida tendo que manter
ou produzir seu calor possuindo como motor seus próprios movimentos cardíacos, enquanto aquele
calor particular, presente na geração, não tem mais nos pais a sua causa de ser. Veja-se o parágrafo
seguinte desta obra. [N. T.]
48 Aristóteles, Sobre o movimento dos animais, 10, 703a, 24-5.
36 Santo Tomás de Aquino
que é o mais perfeito dos animais, também ser chamado “microcosmo” por
alguns. Ora, no cosmo, o primeiro movimento é o movimento local, que é
causa da alteração e dos outros movimentos. Donde, também no animal, mais
parece que o movimento local é o princípio da alteração do que o contrário.
Por isto, seguindo esta semelhança, diz o Filósofo, no oitavo livro da Física,49
que o movimento é como certa vida para tudo o que existe na natureza.
Ainda: aquilo que existe per se é anterior ao que existe per accidens. O pri-
meiro movimento de um animal é o movimento do coração; o calor, por sua
vez, não move espacialmente senão per accidens: o que é per se próprio do calor
é o alterar; o mover localmente se dá per accidens. Logo, é absurdo dizer que o
calor seria o princípio do movimento do coração; antes é necessário designar-
-lhe uma causa que possa ser princípio per se de movimento local.
Portanto, doravante é necessário tomar como princípio desta investigação
que, como disse o Filósofo no oitavo livro da Física, “de quaisquer coisas que
têm princípio de movimento nelas mesmas, dizemos mover-se por nature-
za. Donde move-se a si mesmo o animal inteiro por natureza; já seu corpo
comporta tanto mover-se por natureza quanto mover-se contra a natureza.50
Difere, pois, segundo qual movimento realiza aquele que se move, e de qual
elemento ele se constitui”.51 Quando um animal se move para baixo, tal movi-
mento é natural tanto ao animal inteiro quanto a seu corpo, porque no corpo
do animal é predominante o elemento pesado. Porém, quando o animal se
move para cima, este movimento é natural ao animal (pois parte de um prin-
cípio que lhe é intrínseco: sua alma), mas não é natural ao seu corpo, que é
pesado – motivo pelo qual o animal se cansa mais durante este movimento.
Nos animais, o movimento local é causado pelo apetite e pela apreen-
são sensitiva ou intelectiva, como ensina Aristóteles no terceiro livro Sobre a
Alma.52 Nos outros animais, todo o processo do movimento é natural, pois
não agem por propósito, mas por natureza: naturalmente a andorinha faz seu
ninho e a aranha faz sua teia. É próprio apenas do homem agir por um pro-
pósito, não por natureza.53 Não obstante, o princípio de qualquer operação
sua é natural. Pois, embora não saiba naturalmente as conclusões das ciências
especulativas e práticas, senão que as encontra raciocinando, são-lhe natural-
mente conhecidos os primeiros princípios indemonstráveis, a partir dos quais
ele chega aos outros conhecimentos. De modo semelhante, da parte do ape-
tite é natural ao homem apetecer o fim último (que é a felicidade) e fugir do
sofrimento;54 já apetecer as outras coisas não lhe é natural,55 mas procede-se ao
apetite das outras pelo apetite do fim último – pois o fim nas coisas apetecíveis
é como o princípio indemonstrável nas intelectuais,56 como consta do segun-
do livro da Física.57 Logo, embora os movimentos de todos os outros membros
sejam causados pelo movimento do coração (como prova o Filósofo em Sobre
o movimento dos animais),58 outros movimentos podem ser voluntários. Mas o
movimento primeiro – que é o do coração – é natural.
É necessário considerar, no entanto, que o movimento para cima é natural
ao fogo porque resulta de sua forma; donde também aquele que gera, que é
quem dá a forma, é o que move localmente per se. E, assim como da forma do
elemento resulta certo movimento natural, nada impede que de outras formas
resultem outros movimentos naturais. Pois vemos que o ferro naturalmente se
move em direção ao ímã, mas este movimento não lhe é natural segundo a razão
do pesado ou leve, mas segundo tem tal forma. Assim, portanto, também no
caso do animal, enquanto tem tal forma (que é alma), nada impede que possua
certo movimento natural; e o motor deste movimento é quem dá a forma.
De minha parte, digo que o movimento natural do animal é aquele do
coração. Porque, como diz o Filósofo em Sobre o movimento dos animais:59
“Deve-se considerar que o animal é como uma cidade bem regida por leis.
Nesta cidade, uma vez tendo sido estabelecida a ordem, não há necessidade
de um monarca em separado que presida a cada uma das coisas que são feitas,
senão que cada um faz o que lhe compete, como ordenado, e faz-se uma coisa
bus autem idem hoc propter naturam fit: et quia natum est unumquod-
que sic constantium facere proprium opus, ut nihil opus sit in unoquoque
esse animam, scilicet inquantum est principium motus, sed in quodam
principio corporis existente alia quidem vivere, eo quod adnata sunt, fa-
cere autem proprium opus propter naturam. Sic igitur motus cordis est
naturalis quasi consequens animam, inquantum est forma talis corporis,
et principaliter cordis. Et forte secundum hunc intellectum aliqui dixe-
runt motum cordis esse ab intelligentia, inquantum posuerunt animam
ab intelligentia esse, sicut Aristoteles dicit motum gravium et levium esse
a generante, inquantum dat formam quae est principium motus.
Omnis autem proprietas et motus consequitur aliquam formam secun-
dum conditionem ipsius, sicut formam nobilissimi elementi, puta ignis,
consequitur motus ad locum nobilissimum, qui est sursum. Forma autem
nobilissima in inferioribus est anima, quae maxime accedit ad similitudi-
nem principii motus caeli. Unde et motus ipsam consequens simillimus
est motui caeli: sic enim est motus cordis in animali, sicut motus caeli
in mundo. Sed tamen necesse est motum cordis a motu caeli deficere
sicut et principiatum deficit a principio. Est autem motus caeli circula-
ris et continuus, et hoc competit ei inquantum est principium omnium
motuum mundi: accessu enim et recessu corpus caeleste imponit rebus
principium et finem essendi, et sua continuitate conservat ordinem in
motibus, qui non sunt semper. Motus autem cordis principium quidem
est omnium motuum qui sunt in animali; unde Aristoteles dicit in tertio
de Part. Anim. quod motus delectabilium et tristium et totaliter omnis
sensus hinc incipientes videntur, scilicet in corde, et ad hoc terminari.
Unde ad hoc quod cor esset principium et finis omnium motuum, habet
quemdam motum non quidem circularem sed similem circulari, compo-
Opúsculos sobre a Natureza · Sobre o Movimento do Coração 41
após a outra, por costume. Nos animais, o mesmo ocorre por natureza: pois
é inato a cada parte fazer seu próprio trabalho, de modo que não se faz ne-
cessário que a alma esteja em cada uma delas (a saber, enquanto princípio de
movimento), mas sim que, em certo princípio existente do corpo, as demais
partes vivam60 [e], porque lhes é inato, façam cada uma seu próprio trabalho
por natureza”. Portanto, o movimento do coração é natural quase como resul-
tado da alma, enquanto ela é forma de tal corpo, e principalmente do coração.
E é talvez neste sentido que alguns tenham dito que o movimento do coração
provém da inteligência, na medida em que afirmaram ser a alma proveniente
da inteligência – à maneira como Aristóteles61 diz que o movimento dos pesa-
dos e dos leves provém daquele que gera, na medida em que lhes dá a forma,
que é princípio do movimento.
Ora, toda propriedade e movimento são resultados de uma forma segundo a
condição específica desta: assim como da forma do elemento mais nobre, o fogo,
resulta o movimento ao lugar mais nobre, que é para cima. Nas coisas inferiores,
a forma mais nobre é a alma, a qual maximamente alcança a semelhança ao
princípio do movimento dos céus. Donde também o movimento que resulta da
alma é o mais semelhante ao movimento celeste; o movimento do coração em
um animal é como o movimento celeste no cosmo. Não obstante, é necessário
que o movimento do coração seja deficiente com relação ao movimento celes-
te, como o principiado é deficiente com relação ao princípio. O movimento
celeste é circular e contínuo, o que lhe compete enquanto princípio de todos
os movimentos do universo: o movimento de aproximação e afastamento62 dos
corpos celestes impõe às coisas princípio e fim de ser, e, por sua continuidade,
conserva a ordem nos movimentos que não existem sempre. O movimento do
coração, por sua vez, é o princípio de todos os movimentos que existem no
animal; donde diz o Filósofo, no terceiro livro Sobre as partes dos animais,63 “que
os movimentos de prazer, de tristeza e de todos os sentidos parecem iniciar-se a
partir dali (isto é, do coração) e parecem lá terminar”. Assim, para o coração ser
o princípio e fim de todos os movimentos, tem ele um movimento não exata-
mente circular, porém semelhante ao circular, composto de um pulso e de uma
tração; donde diz o Filósofo, no livro terceiro Sobre a Alma,64 que “onde princí-
pio e fim são idênticos, ali tem-se algo que move organicamente. Todas as coisas,
pois, se movem por trações e pulsos, visto que é necessário que algo permaneça
como que em círculo, e que deste algo inicie-se o movimento”. É este também
um movimento contínuo durante a vida do animal, exceto quando se faz mister
a intercessão de uma pequena demora entre o pulso e a tração, visto que este é
deficiente com relação ao movimento circular.65
Assim, portanto, facilmente solucionamos quaisquer argumentos que se pos-
sam objetar em contrário. Pois não dizemos que o movimento do coração é natural
a este órgão na medida em que é pesado ou leve, mas sim enquanto é animado por
tal alma; e os dois movimentos que parecem contrários66 são, em verdade, partes
de um só movimento composto por ambos, na medida em que carece da simplici-
dade do movimento circular – o qual, porém, ele imita, enquanto parte de si rumo
a si mesmo. E assim não é inconveniente se ele de certo modo ruma a direções
contrárias, visto que o movimento circular também o faz, à sua própria maneira.
E tampouco é necessário que o movimento do coração seja causado pela apre-
ensão e o apetite, embora seja causado pela alma sensitiva: pois não é causado pela
alma sensitiva por sua operação [própria], mas enquanto ela é forma e natureza
de tal corpo. Já o movimento progressivo do animal é causado pela operação do
sentido e do apetite, e por isto os médicos67 distinguem as operações vitais das
operações animais – também porque, cessando as animais, permanecem as vitais
–, denominando vitais as concomitantes com o movimento do coração. E tal dis-
tinção é razoável. Pois viver, para os viventes, é ser, como consta no segundo livro
Sobre a Alma:68 o ser de cada coisa se dá segundo sua forma própria.
Mas nisto diferem a alma e o princípio do movimento celeste: ocorre que o
Hoc autem differt inter animam et principium motus caeli, quod illud
principium non movetur neque per se neque per accidens, anima autem
sensitiva etsi non moveatur per se, movetur tamen per accidens: unde
proveniunt in ipsa diversae apprehensiones et affectiones. Unde motus ca-
eli semper est uniformis, motus autem cordis variatur secundum diversas
apprehensiones et affectiones animae.
Non enim affectiones animae causantur ab alterationibus cordis, sed
potius causant eas; unde in passionibus animae, utputa in ira, formale est,
quod est ex parte affectionis, scilicet quod sit appetitus vindictae; materia-
le autem quod pertinet ad alterationem cordis, utpote quod sit accensio
sanguinis circa cor. Non autem in rebus naturalibus forma est propter ma-
teriam, sed e converso, ut probatur in secundo Physic., sed in materia est
dispositio ad formam. Non igitur propter hoc aliquis appetit vindictam
quia sanguis accenditur circa cor, sed ex hoc aliquis est dispositus ad iram;
irascitur autem ex appetitu vindictae. Quamvis autem aliqua variatio ac-
cidat in motu cordis ex apprehensione diversa et affectione, non tamen
ista variatio motus est voluntaria, sed involuntaria, quia non fit per impe-
rium voluntatis. Dicit enim Aristoteles in Lib. de causa Mot. Anim., quod
multoties apparente aliquo, non tamen iubente intellectu, movetur cor et
pudendum, et huius causam assignat quoniam necesse est alterari naturali
alteratione animalia; alteratis autem partibus, haec quidem augeri, haec
autem detrimentum pati, ut iam moveantur et permutentur natis haberi
permutationibus invicem.
Causae autem motuum caliditas et frigiditas, quae de foris et intus
existentes naturales. Et praeter rationem utique facti motus dictarum par-
tium, idest cordis et pudendi, alteratione incidente fiunt. Intellectus enim
et phantasia factiva passionum afferunt, ut concupiscentiae, irae et huius-
modi, ex quibus cor calescit et infrigidatur.
Et haec de motu cordis ad praesens dicta sufficiant.
Opúsculos sobre a Natureza · Sobre o Movimento do Coração 45
segundo não é movido nem per se, nem per accidens, enquanto a alma sensitiva
não se move per se, mas o faz per accidens – razão pela qual nela provêm di-
versas apreensões e afeições. Donde se tem que o movimento celeste é sempre
uniforme, enquanto que o movimento do coração varia segundo as diversas
apreensões e afeições da alma. Assim, não são as afeições da alma causadas
pelas alterações do coração; ao contrário, elas as causam.
Daí que, nas paixões da alma – na ira, por exemplo –, seja formal aquilo
que é da parte da afeição, a saber, que haja um apetite por vingança. Por outro
lado, é material aquilo pertinente à alteração cardíaca, isto é, que haja uma
excitação do sangue ao redor do coração.69 De fato, nas coisas naturais a forma
não existe em função da matéria, e sim o oposto, como se prova no segundo
livro da Física; mas na matéria há a disposição para a forma. Assim sendo,
ninguém deseja a vingança porque o sangue se lhe excitou ao redor do coração
– antes, por esta condição, se está disposto à ira. Já irar-se se dá pelo desejo da
vingança. Por mais que se dê certa variação no movimento do coração, prove-
niente de uma apreensão ou afeição diversas, tal variação de movimento não é
voluntária, mas involuntária, pois não se faz por império da vontade. De fato,
diz o Filósofo, no livro Sobre o movimento dos animais,70 que, muitas vezes,
diante de algo que nos aparece, movem-se o coração e as partes íntimas, sem
que o intelecto os tenha comandado; e como causa disto aponta [Aristóteles]
que é necessário que os animais se alterem por certas alterações naturais; e que,
alteradas estas partes, algumas aumentem, outras sofram diminuição, de tal
modo que se movam e mudem mutuamente, mediante permutações inatas.
São causas desses movimentos a quentura e a frieza, existentes naturalmen-
te por fonte exterior ou interior; também os movimentos das mencionadas
partes (isto é, do coração e das partes íntimas) feitos à revelia da razão ocorrem
mediante alteração que incide sobre elas. Pois o intelecto e a fantasia nos tra-
zem coisas que produzem paixões, como a da concupiscência, a da ira, etc., a
partir das quais o coração se aquece ou se resfria.
E seja suficiente, para este momento, o que se disse sobre o movimento do
coração.
69 Note-se que a ira é citada à maneira de exemplo, visto que o aumento dos batimentos cardíacos
não quer dizer predisposição apenas a esta paixão, mas a um conjunto de estados da alma. [N. T.]
70 Aristóteles, Sobre o movimento dos animais, 10, 703b, 7-8.
Bibliografia citada
2017
Agosto A infinitude de Deus, vol. 1 Duns Scotus
Catena Aurea ed. especial (agosto, Ano A) S. Tomás/Diversos
2018
Janeiro Sobre a Profecia, vol. 2 S. Tomás de Aquino
Catena Aurea ed. especial (janeiro, Ano B) S. Tomás/Diversos
Fevereiro Comentários aos Dez Mandamentos, vol. 1 S. Boaventura
Catena Aurea ed. especial (fevereiro, Ano B) S. Tomás/Diversos