Conhecimento do simbolismo numérico pitagórico (Mário Ferreira dos
Santos) Sendo a tradição pitagórica uma constante na Historia ocidental e sendo ela a raiz da ciência moderna [297], torna-se urgente compreender o simbolismo numérico. Contudo, as construções matemáticas da ciência moderna tomam os número de forma grosseira, apenas pelo aspecto quantitativo, tornando-os aptos para serem usados em medições, que são a base para construir um mundo “arrumado” em cima do mundo caótico da Natureza. A medida é a comparação de uma coisa com outra, e é alheia à natureza dos entes, não sendo necessário levar em conta com as noções de substância ou de forma substancial. Francis Bacon disse mesmo que a noção de forma substancial é uma fantasmagoria do intelecto, e que devíamos apenas levar em conta os factos. Só que para ele os factos eram constituídos de medições, o que não é aceitável. Facto é aquilo que nos chega através dos sentidos, ao passo que uma medição é uma comparação matemática que impomos ao mundo. Qualquer objecto pode ser medido de infinitas formas, pelo que o sistema de medições é arbitrário em relação ao facto medido. Esta arbitrariedade foi tornada num método por Kant, que disse que o observador força a Natureza a responder a certas perguntas, que são as que ele mesmo faz e que podem nada ter a ver com aquelas que o próprio facto sugere. Kant tinha consciência deste problema, mas ele encontrou uma saída dizendo que o desejo humano de responder a certas perguntas tem predomínio sobre a estrutura do facto. Como para ele as formas a priori do entendimento eram idênticas em todos os homens, elas teriam validade universal, ainda que não coincidissem com a estrutura da realidade externa. Esta coincidência já não importava mais, agora só tinha relevância a exactidão e a formalidade tanto dos cálculos matemáticos como de todas as formas culturais. A ideia de Kant penetrou tanto nas ciências físicas como nas ciências humanas, que podem não levar em conta para nada a noção de veracidade entendida como “coincidência com o facto”, usando apenas noções como “estrutura”, “ordem interna”, “funcionalidade”, etc. Isto desembocou no estruturalismo e no desconstrucionismo, em que as formas culturais (textos, obras de arte, etc.) são consideradas entidades em si mesmas, já sem referência a algo fora delas. Supostamente um texto apenas se refere a outro texto e assim por diante, mas basta reparar que a mediação entre os autores é feita por objectos físicos, seja pelo papel dos livros ou através de um computador. A suposição da independência do texto é válida apenas como hipótese trabalho, para averiguar certas relações, mas não é uma descrição da realidade. Devemos ter sempre em conta que todas as selecções abstractivas são feitas a partir de um mundo natural que não foi criado por nós. 368 Esta progressiva degradação intelectual na modernidade remonta, em última instância, a Pitágoras. Mas ela toma o simbolismo matemático – para com ele enunciar leis que supostamente governariam a totalidade do real – de forma muito grosseira, o que Pitágoras não fazia. Quando se tomam os números apenas como unidades de medição, apagando as formas substanciais, cria-se um abismo entre o mundo das relações matemáticas e o mundo dos entes reais. Só no século XX começaram a ser publicados trabalhos que tentaram recuperar algum do conhecimento perdido, como a tese de Matila Ghika sobre o “número de ouro”, o livro de René Guénon sobre o cálculo infinitesimal, mas sobretudo são de destacar os contributos de Mário Ferreira dos Santos. Este último foi o primeiro autor da História a conseguir dar ao simbolismo pitagórico dos números um sentido coerente com a experiência do mundo exterior. Mário Ferreira dos Santos distinguiu os números no sentido exotérico, vistos apenas em termos quantitativos, dos números considerados em sentido esotérico, ou seja, visto como formas. Estas formas ou fórmulas expressam relações que podem ser observadas tanto externamente, entre os entes, quanto internamente, na constituição destes, ou seja, na forma substancial. Então, uma única forma substancial de um ente contem um conjunto de formas que podem ser expressas numericamente, e cada uma delas é um conjunto de relações internas com uma estrutura numérica. Vemos que tudo o que existe tem alguma unidade, mas é uma unidade problemática, não é a unidade total. Assim, não existe nada no mundo natural que seja indecomponível, ou seria eterno e indestrutível. Em termos de simbologia numérica, podemos dizer que todos os entes têm algo do número 1, mas também algo do número 2, que representa a divisão e a contradição. Mas como estes dois aspectos existem em relação, não se resumindo nenhum ao outro, então, temos uma estrutura ternária. Dentro desta estrutura temos uma relação de proporcionalidade entre os elementos, de onde identificamos o número 4. Expressando o quaternário a totalidade dos elementos antagónicos do ente, vemos uma nova unidade, que não é simples mas complexa, e que é simbolizada pelo número 5. E isto pode prosseguir indefinidamente, e vamos descobrimos novas categorias das quais o objecto participa necessariamente, pelo que idealmente cada ente tem um número. Mário Ferreira dos Santos mostrou que a sequência dos números contém, de forma compacta, as categorias inteiras pelas quais o objecto pode ser examinado e que têm que estar nele para que possa existir. Os números já não são aqui encarados como unidades de medida, como coisas externas que são projectados sobre os entes, mas passam a ser uma linguagem para exprimir a própria fórmula substancial. Mário Ferreira dos Santos diz que o número 5 é a lei de proporcionalidade intrínseca daquele objecto em particular, ou seja, o conjunto de proporções que definem e fazem com que o objecto seja o que ele é. Podemos dizer que Pitágoras tem razão ao dizer que os entes são números se entendermos o número como a fórmula da lei de proporcionalidade intrínseca e como a lei constitutiva de todas as relações que o ente pode ter com todos os demais entes do ponto de vista das possibilidades reais de relação entre aquela substância e as demais. Mas não conseguimos descobrir o número de um ente, porque podemos sempre descobrir novas coisas sobre ele e recompor a sua unidade com níveis de abrangência cada vez maiores, e isto nunca termina porque para chegar “ao fim” seria necessário ter todas as possibilidades de relação entre o ente e todos os outros existentes ou por existir. O conhecimento de um único ente seria indefinido ou inalcançável mas, ao mesmo tempo, finito, dado se tratar de um número. Se quisermos encarar o mundo dos factos como sendo composto por números, o 369 conhecimento destes não é uma questão de medição conferível por experiência mas de penetração na estrutura numérica de cada forma substancial, o que apenas pode ser feito de forma analógica ou simbólica. O ente já é um símbolo e o número dele só pode ser outro símbolo que remete para algo que não vemos, apenas entrevemos. Apesar de apenas termos uma abertura para a apreensão da essência dos entes – e esta apreensão é sempre será incompleta, analógica e simbólica –, de alguma forma podemos conhecer a lei de proporcionalidade intrínseca dos entes. Percebemos que é assim porque conseguimos distinguir um objecto de um outro, o que só é possível porque captamos tanto a forma substancial como algo das condições da sua existência individual presente (que também tem idealmente uma expressão numérica), e podemos nos referir a esta unidade mediante um símbolo numérico desconhecido. Mas se tudo pode ser expresso idealmente por números, as coisas são algo mais do que números, dado também terem existência. A lei de proporcionalidade intrínseca expressa-se por números, seja o objecto existente ou não. Se quisermos expressar a passagem do nada ao ser, o mundo dos números envolvido vai ser tão vasto e inabarcável quanto o mundo físico, pelo que, em última análise, o resultado só tem valor analógico ou poético. Para Mário Ferreira dos Santos, isto é a culminação do saber humano e não tem fim. Ainda assim, não podemos dizer que estes números sejam a linguagem de Deus, dado que esta contém não apenas números mas também coisas existentes, ou seja, Deus tem a linguagem da presença dos seres. Na realidade, Deus fala com uma multiplicidade ilimitada de linguagens, e a dos números é apenas a mais fácil para nós, porque simplifica e cria uma barreira defensiva entre nós e a complexidade do mundo real. Mesmo tendo Mário Ferreira dos Santos feito uma majestosa explicação do mundo dos números (talvez a mais alta realização intelectual já alguma produzida), ele não tinha a pretensão de ter conhecido a “explicação última”, mas Newton teve essa pretensão com a sua matematização grosseira e puramente quantitativa da Natureza. A cultura moderna baseia-se na presunção de decifrar a linguagem de Deus, mas apenas a “visão de Deus” oferece uma resposta final, que não aparece como uma explicação doutrinal mas como uma narrativa do conhecimento de uma pessoa infinita e inabarcável mas, ainda assim, apreensível [294]. Na realidade, se não existisse experiência do infinito não haveria experiência de nada. Enquanto na experiência do finito captamos a explicação deste, na experiência do infinito é este que nos explica a nós, que nos alarga e amplia indefinidamente, embora não infinitamente. A explicação está na totalidade infinita, e todo o esforço intelectual ou criativo apenas pode abrir a perspectiva do saber infinito, que é o saber divino que se mostra como a intencionalidade de um pessoa, e essa intencionalidade é o amor divino. A experiência do amor divino é a experiência final, e ela contém todas as outras (o mundo divino abarca e transcende o universo inteiro), que são apenas seus símbolos muito remotos. α100