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PERVERSÃO: NOTAS SOBRE HISTÓRIA E PSICANÁLISE

Tamara Havana dos Reis Pasqualatto; Psicóloga Clínica, Toledo-PR, Brasil*.


Contato: tamarapasqualatto@hotmail.com

Palavras-chave: Perversão. História. Psicanálise

Para as classificações de Krafft-Ebing (1965)1, a perversão se caracteriza pela


excitabilidade das funções sexuais por estímulos inadequados. No entanto, até chegarmos ao
século XIX, quando se publicou a obra Psychopathia Sexualis do referido autor, muita coisa
aconteceu com os perversos e com as perversões: já foram consideradas influências demoníacas,
doença e crime, de modo que a sociedade, em diferentes épocas, solucionou a questão perversa
ora na fogueira, ora em manicômios e ora atrás das grades.
O presente texto pretende fazer uma breve revisão história a respeito do tema da
perversão, contemplando a idade medieval, o século XVIII com Sade e o século XIX, dominado
pela ciência psiquiátrica para então contrastar essa revisão de literatura com a elaboração
psicanalítica a respeito da perversão. Todo esse o caminho permite-nos perceber que por mais
que passem os séculos, as épocas, os credos, ou mesmo a nomenclatura, a “perversão sempre
será sinônimo de perversidade”, ou seja, sinônimo de maldade. Até nossos dias, ela está marcada
pela visão de aniquilamento, desumanização, ódio, domínio, crueldade, gozo, tal como aponta
Roudinesco (2008), ainda que algumas teorias modernas, como a de Freud, por exemplo, tentem
desmitificar essa concepção.

IDADE MÉDIA: O SURGIMENTO DA NOÇÃO DE PERVERSÃO

1
Médico psiquiatra austríaco, contemporâneo de Freud, que efetua a síntese mais rigorosa de todas as correntes da
sexologia em sua obra Psychopathia Sexualis.
Na antiguidade o homem não era considerado perverso como uma modo de constituição,
como um traço de nascença, mas sim, era punido com ela. Descobria-se de repente, perverso,
como um castigo por ter se assemelhado aos deuses. Era uma circunstância que ultrapassava a
capacidade humana de se transformar. Ou seja, ele não podia ser perverso ou deixar de ser por
sua escolha, portanto não havia nada a se fazer por ele.
Com a idade média, no ocidente, a dinâmica das crenças humanas mudou. Agora o
mundo não é mais governado por deuses, mas por um único Deus. O destino do homem estava
em suas próprias mãos. Poderia ele escolher o que fazer com sua vida, possuía o livre arbítrio e
seria julgado por Deus por tudo quanto fizesse aqui na Terra. Por isso, o homem medieval é um
homem divido: entre culpa e inocência, desejo e interdito, queda e redenção.
Diferentemente do homem antigo – cujo destino enquanto manifestação da vontade
divina determinava o que ele seria ou faria, se iria ou não transformar-se em um monstro – o
homem medieval podia “optar” pelo vício ou pela virtude, pelo bem ou pelo mal e se, por
ventura, tivesse se transformado num monstro em consequência dos vícios e do mal a que se
entregara, poderia, pela força da fé, voltar a se restituir, e trilhar novamente o bom caminho. Por
conta dessa nova configuração social que apresentava duas direções a serem seguidas, foi
possível às pessoas começarem a distinguir entre o comum e o incomum, o admissível e o
inadmissível. Dessa forma, o homem, pelo seu sofrimento – consequência do mal a que se
entregou – permitia à comunidade unir-se e aprender a estabelecer a parte errante da sociedade.
A noção de uma face sombria inerente ao homem, portanto, surge no momento em que,
pela dinâmica social regida pela religião, a comunidade tem condições de distinguir aqueles que
conseguem viver de acordo com as regras estabelecidas, e aqueles que não conseguem controlar
seus instintos, entregando-se às práticas proibidas ou deixando-se seduzir pelo demônio.
Essa alternância se mostrar em casos históricos de perversos cuja perversão se mostra
abominável aos nossos olhos, por transformar seus corpos em dejetos, impor a si e a outros
sofrimentos inumanos, e ao mesmo tempo, sublime por permiti-los a isso, permitir a realização
daquilo que lhes confere satisfação. Dito de outro modo: a capacidade de entregar-se
espontaneamente à submissão declara a mais superior das liberdades, uma vez que permite ao
indivíduo alcançar até a mais vil das realizações em nome do seu gozo, atitude que uma pessoa
não perversa jamais conseguiria ter.
Na tradição judaico-cristã, de acordo com Roudinesco (2008), a palavra abjeção admite
dois sentidos opostos: remete tanto ao pior da baixeza, quanto à aspiração à santidade. Por isso, a
imersão na degradação, a travessia do sofrimento e da decadência leva à imortalidade da alma.
Nesse ponto de vista, a salvação do homem está na aceitação de um sofrimento irrestrito e é esse
entendimento que levará às práticas dos mártires e santas cristãs, “que farão da destruição do
corpo carnal uma arte de viver e das práticas mais degradantes a expressão do mais consumado
heroísmo” (Idem, p. 19).
Para alcançar a vida eterna e a salvação da alma era preciso anular o corpo material, fonte
de pecado, vícios e perdição, tirar-lhe a estima e o foco, danificando-o a tal ponto que ele não
tivesse condições de se render às tentações. Por isso, alguns santos medievais impunham-se
grandes sofrimentos corporais, tais como flagelação e ingestão de excrementos, privação de
alimento, conforto, proteção, com o objetivo de exaltar a alma e poder desfrutar da salvação
eterna.
Com os prelúdios do fim da idade média, o misticismo se configura como uma maneira
de restabelecer uma comunicação espiritual que corria o risco de ser extinta, em uma sociedade
que começa a se laicizar. Os místicos eram aqueles que se afastavam das vias normais do
exercício de uma fé comum e seu discurso alimentava-se de desvios, conversões, e buscava
captar uma maneira de perverter o corpo (Idem, p.26).
Os místicos entregavam seus corpos às práticas de emporcalhamento, autodestruição,
flagelação ou ascetismo, desprezo do corpo para assegurar o triunfo do espírito por sofrimentos
físicos. Viviam sem comida, sem sono, sem evacuação, faziam do corpo sexuado um amontoado
de imundices, mutilavam-no e cobriam-no de excrementos. Mais tarde essas práticas serão
identificadas como perversas: gozo da sujeira, da polução, dos excrementos, da urina, da lama.
Outra forma de tortura e subjugação do corpo muito disseminada nesse contexto foi a
flagelação. Os monges cristãos a consideraram instrumento de castigo divino que combatia o
relaxamento dos costumes e transformava o corpo de gozo, julgado abjeto, num corpo místico
capaz de alcançar a imortalidade. Castigar-se significava querer educar o corpo, dominá-lo, mas
também mortificá-lo para submetê-lo a uma ordem divina. No entanto, as práticas dos
flagelantes, por terem assumido um aspecto de transgressão, levaram-nos a romper com a igreja
a partir do fim do século XIII e a se agruparem em confrarias. Um século mais tarde, o
movimento dos flagelantes tornou-se um rito disciplinar de aspecto semipagão, depois
abertamente diabólico. Por se perderem em exageros, os flagelantes acabaram sendo vistos como
possuídos por paixões demoníacas. No fim do século XIV, se voltaram contra a Igreja para
anunciar o advento de um Anticristo. Deixando de ser uma oferenda a Deus, a flagelação foi
então considerada um vício ligado a uma inversão sexual ou a um travestimento
(ROUDINESCO, 2008, p.31).

O DIVINO MARQUÊS

Com o iluminismo, a pergunta sobre a origem da parte obscura do homem irá abandonar
Deus como hipótese e se deslocar para outros âmbitos: seria ela expressão de uma natureza
bárbara do homem? Seria fruto de uma má educação que perverteria a boa natureza humana?
Não seria a perda de todas as inocências? (Idem, p.42).
A resposta escolhida por Sade à pergunta sobre a natureza da parte obscura do homem é
seu fundamento natural. Para o maior representante do discurso perverso, o mal, o prazer, as
pulsões de morte eram inerentes ao homem, faziam parte da sua natureza e por isso não deveriam
ser controladas, ao contrário, precisariam ser expressas, levadas a cabo, satisfeitas. Por julgar a
perversão como algo natural da espécie humana, ele constrói seu próprio mundo, governado por
leis específicas e exclusivas criadas por ele (ROUDINESCO, 2008, p.42).
Donatien Alphonse Françoise de Sade nasceu em 1740 na França, numa época em que a
libertinagem encontrou sua forma política mais apropriada, a ponto de marcar o século inteiro e
ser uma das causas da Revolução Francesa. O gosto pela prostituição, pelo luxo, pelo
desperdício, pelos escândalos, orgias, blasfêmias, especulação econômica, apego à chibata e à
transgressão eram práticas libertinas que levavam a um questionamento dos valores da tradição.
Foi nesse núcleo do ideal libertino que Sade cresceu, cercado por grandes devassos, procedentes
de uma nobreza arrogante e sem limites no exercício de seus prazeres (Idem, p.45-46).
Em suas obras prevalecem o princípio de uma sociedade perversa pela total inversão da
lei dos homens. Tal sociedade não está fundamentada no espírito libertino – pois este assumia os
prazeres do corpo sob o risco de perder suas almas – mas sim, num direito natural. Como se
fosse inerente à natureza do homem a criação de uma sociedade perversa. “Sade constrói uma
Enciclopédia do mal fundada na necessidade de uma rigorosa pedagogia do gozo ilimitado”
(Idem, p.47).
Fundador da noção moderna de perversão, Sade desvirtua o projeto iluminista que coloca
toda sua ênfase na razão como único fundamento e norte da ação humana. Ele estabelece uma
nova ordem disciplinar, sem limites, que irá se fundamentar na abolição da lei divina.
Além de descrever as mais extravagantes e exóticas cenas sexuais, Sade se esforça para
dar a elas um fundamento que as justifiquem. O apelo à negação da lei divina é da mesma forma
justificação para os atos perversos, pois se não há Deus, não há julgamento, portanto não há
transgressão. Daí Sade recorrer à lei natural, que permitiria e explicaria o crime, possibilitando
criar um modelo social fundamentado na generalização da perversão. Se a natureza é criminosa,
o crime é natural no homem, e não deve ser interditado, nem punido.
Com esse sistema, Sade pretende-se o grande domador das perversões. Ele propõe
eliminar a perversão para torná-la algo habitual, algo corriqueiro que não se contrapusesse à lei.
Dessa forma, tenta eliminá-la enquanto parte obscura da existência humana, no entanto, não
consegue fazer isso, porque faz da perversão uma norma.
Nessa época, a psiquiatria iniciava uma longa jornada em direção à definição da loucura e
sua possível cura. Nesse processo, Sade era uma grande pedra no sapato dos juristas e
psiquiatras. A lei não possuía recursos para acusar seus atos de criminosos e a psiquiatria não
conseguia definitivamente diagnosticar como louco um homem que desfrutava de todas as
faculdades mentais.
Justamente por não ser nem criminoso nem louco, e muito menos, admitido pela
sociedade, Sade foi considerado um doente de um novo gênero para a psiquiatria, um perverso.
De acordo com Roudinesco (Idem), o neologismo “sadismo” surgiu em 1838 para designar
aqueles cujos comportamentos assemelham-se ao do divino marquês. Criminoso, louco ou
perverso, fato é que Sade e suas inclassificáveis obras foram um marco na história da perversão e
dos perversos, obrigando as autoridades médicas-legais da época a criarem um novo espaço para
alojá-lo.
A PERVERSÃO E A PSIQUIATRIA DO SÉCULO XIX

Século XIX. A perversão deixa de ser um objeto de horror para se tornar um objeto de
estudo. Com a mudança no código penal francês – que por sua vez influencia todos os países
europeus – as práticas sexuais são laicizadas. Não é mais competência da lei a forma que as
pessoas escolhem para obterem prazer. As únicas condições eram praticar a sexualidade fora do
alcance dos olhos da sociedade, ou seja, sem exposição, de modo a não ferir a moral pública, e
que a prática sexual fosse realizada entre adultos com o assentimento de ambos.
À lei caberia, portanto, a proteção aos menores, punir os escândalos, e condenar abusos e
violências contra parceiros não consentâneos. Desse modo, práticas sexuais outrora julgadas
perversas, como bestialidade, sodomia, inversão, fetichismo, felação, flagelação, masturbação,
violências consentidas e outras, não são mais passiveis de condenação. A lei não mais é
responsável por elas, desde que sejam observadas as condições em que acontecem. Agora a
sexualidade considerada desviante está a cargo da ciência médica.
Como as práticas sexuais não foram mais julgadas legalmente, foi necessário criar novas
regras que permitissem condenar as perversões. Daí ocorre efetuar uma distinção entre o bom
perverso e o mau perverso, ou seja, entre aqueles passíveis de serem tratados e curados, capazes
de se reintegrar à sociedade, e aqueles considerados ameaçadores, provenientes de uma “classe
perigosa”. Estes, portanto, deveriam ser afastados do convívio social.
Nesse contexto, a palavra perversão toma sentido geral e é adotada pela psiquiatria.
Torna-se o nome genérico de todas as anomalias sexuais e tem seu primeiro uso médico em
1842, no Oxford English Dictionary. Na França, a palavra é inaugurada em 1849, com o
psiquiatra Claude-François Michéa e, a partir daí, é incorporada a todas as línguas européias
(ROUDINESCO, 2008, p.79, [nota de rodapé]).
Agora, no discurso da medicina psiquiátrica do século XIX, é considerado perverso e,
consequentemente patológico,
aquele que escolhe como objeto o mesmo que ele (homossexual), ou ainda a parte ou o
desejo de um corpo que remete ao seu próprio (o fetichista, o coprófilo). (...) aqueles
que possuem ou penetram por efração o corpo do outro sem seu consentimento
(estuprador, o pedófilo), os que destroem ou devoram ritualmente seus corpos ou o de
um outro (o sádico, o masoquista, o antropófago, o autófago, o necrófago, o necrófilo, o
escarificador, o autor de mutilações), os que travestem seus corpos ou sua identidade (o
travesti), os que exibem ou apreendem o corpo como objeto de prazer (o exibicionista, o
voyeurista, o narcísico, o adepto do auto-erotismo). É perverso, enfim aquele que desfia
a barreira das espécies (o zoófilo), nega as leis da filiação e da consangüinidade (o
incestuoso) ou ainda contraria a lei da conservação da espécie (o onanista) (Idem, p.82).

A função dessa nova classificação, bem como da criação de novas terminologias para
designar as perversões, é dar um “fundamento antropológico” ao sexo e ao crime sexual, que
permita distinguir a sexualidade dita normal da patológica. Para isso, a semiologia2 e a
taxonomia3, à serviço do desejo da elite dominante da época, identificavam, rastreavam,
mensuravam e controlavam todas as práticas sexuais. Mas mesmo os estudiosos, pioneiros da
sexologia, tinham dificuldade de chegar a um consenso sobre os fundamentos, e as causas da
perversão. As opiniões divergiam. Uns acreditavam que era um fenômeno natural no reino
animal, resultante de uma organização biológica ou fisiológica particular. Outros, ao contrário,
pensavam que a perversão era adquirida e exclusiva da espécie humana. Outros ainda
sustentavam que era resultado de uma patologia hereditária transmitida na infância por má
educação. No entanto, em um ponto todos concordavam: que os perversos sofriam com suas
perversões, por isso deveriam não só ser punidos (caso transgredisse a lei), mas tratados e
reeducados.
Durante o século XIX e quase todo o XX, a noção de perversão andou nessa direção:
quanto mais era definida como uma patologia de origem biológica, hereditária, orgânica, mais
era dessacralizada, e menos vista como necessária à civilização. Afinal, a perversão era
entendida como uma doença que poderia ser curada graças aos avanços da ciência, por isso, o
perverso perde seu lugar de representante de uma parte heterogênea obscura da humanidade e,
portanto, não é mais necessário à civilização. Os perversos passaram a ser vistos apenas como
um contingente de doentes, semiloucos, tarados ou degenerados, pertencentes a uma classe ruim,
uma classe perigosa. Por conta disso, foram intimados a se comportarem convenientemente sob
pena de serem excluídos não do convívio social, mas da espécie humana. (ROUDINESCO,
2008, p.99).

FREUD: UM NOVO OLHAR PARA A PERVERSÃO

2
Descrição dos símbolos (Idem, p.82).
3
Classificação das entidades (Ibidem).
Freud nunca pretendeu domesticar ou curar as perversões, pelo contrário. A elaboração
do pensamento psicanalítico a respeito da perversão vai na contramão das teorias sexuais em
voga na época. Freud recupera a perversão das noções psiquiátricas, marcadas por julgamentos
morais, para lhe conceder um estatuto específico. Elas passam a ser por ele consideradas
expressão de uma posição subjetiva, galgando lugar ao lado das neuroses e psicoses.
Encontramos uma das primeiras elaborações de Freud a respeito desse tema já na
interpretação dos sonhos. Ao analisar os “Sonhos embaraçosos de estar despido”, destaca o
psicanalista que é possível observar que “[...] as crianças frequentemente expressam um desejo
de se exibirem”, continua: “[...] entre as pessoas que permanecerem no estágio da perversão, há
uma categoria na qual esse impulso infantil alcança o nível de um sintoma – a categoria dos
‘exibicionistas’” (FREUD, 1900/1996a, p. 272).
Essa concepção freudiana de “permanecer perversa” em oposição à de “tornar-se
perversa” ganha uma elaboração mais desenvolvida no caso Dora. Nesse texto, Freud tece uma
observação de grande alcance, que refuta todas as teorias degenerativas e evolutivas admitidas na
época. Afirma: “as perversões não são bestialidades nem degenerações no sentido patético dessas
palavras. São o desenvolvimento germes contidos, em sua totalidade, na disposição sexual
indiferenciada da criança”. E continua: “Portanto, quando alguém se torna grosseira e
manifestamente pervertido, seria mais correto dizer que permaneceu como tal, pois exemplifica
um estágio de inibição do desenvolvimento” (FREUD, 1905 [1901]/1996c, p. 56)4.
Freud percebe na análise dos neuróticos que estes são seres cujas inclinações perversas
são consideravelmente destacadas, porém recalcadas e tornadas inconscientes. Isso quer dizer
que os conteúdos das fantasias inconscientes de um neurótico são muito semelhantes às ações
documentadas dos perversos, que foram relatadas na primeira parte desse escrito. Desse modo
ganha sentido a afirmação freudiana de que “As psiconeuroses são, por assim dizer, o negativo
das perversões5” (FREUD, 1905 [1901]/1996c, p. 56). Ao colocar todo o processo sexual à
deriva das variações pulsionais, Freud pode assim estabelecer uma aproximação direta entre

4
Grifos de Freud.
5
A tese freudiana segundo a qual ‘a neurose é o negativo das perversões’ se encontra numa nota de rodapé à
Psicopatologia da vida cotidiana (1901) uma clara explicação: “as fantasias dos histéricos sobre maus-tratos sexuais
e cruéis correspondem, às vezes nos mínimos detalhes, às queixas dos paranoicos perseguidos. É curioso, mas não
ininteligível, que encontremos um conteúdo idêntico, em forma de realidade, nos artifícios criados pelos perversos
para a satisfação de seus apetites sexuais” (FREUD, 1901/1996b, p. 251).
neurose e perversão. Afirma: “mesmo no processo sexual mais normal reconhecem-se os
rudimentos daquilo que, se desenvolvido, levaria às aberrações descritas como perversões”
(1905/1996d, v. 7, p. 141).
É importante ressaltar que, ao tratar esse assunto, Freud tem em vista seu projeto de
elaborar um compreensão do sujeito a partir da descoberta do inconsciente. Esse fato faz com
que com que sua concepção de aparelho psíquico coloque-se cada vez mais longe da perspectiva
genética e daquilo que esta implicaria em termos de maturação instintual. Embora Freud sempre
tenha sustentado o enraizamento do psiquismo no biológico, sustenta Valas (1990, p. 21) isso
sempre foi feito “numa relação de hiância e não de confusão”. Assim, desde o começo da
psicanálise, Freud procura destacar as perversões das “noções instintuais confusas para lhes dar
uma estrutura específica, distinta da neurose e da psicose.”

CONCEPÇÃO FREUDIANA DAS PERVERSÕES

A noção freudiana de pulsão sexual6 é um dos elementos fundamentais do processo


perverso. Nos Três Ensaios sobre a Teoria da sexualidade a consideração sobre a pulsão é
inaugural e vai determinar da tônica desse escrito, especificando por esse conceito o que se quer
dizer ou o que se deve entender por “sexual” em psicanálise. Para Freud (1905/1996d), o
pressuposto de uma “pulsão sexual” se manifesta através do fato de haver necessidades sexuais
no homem, da mesma forma que existem necessidades nutricionais. Ou seja, o fato de o homem
buscar se alimentar e ter relações sexuais, expressa que há algo que vem do corpo e o impulsiona
a isso. Esse algo Freud denomina “pulsão”7.
É em relação à essa pulsão que Freud especifica duplamente as “aberrações sexuais”: seja
como um desvio em relação ao objeto da pulsão, seja como um desvio em relação ao seu fim. As
perversões do objeto são entendidas como uma fixação em um único objeto em detrimento dos

6
A partir de 1905, Freud dá um estatuto conceitual bastante consistente à pulsão. Aí ela é definida como
“representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente” (FREUD, 1905/1996d,
p. 159). A pulsão está, portanto, no limite entre o psíquico e somático.
7
Do alemão Trieb: “um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como representante psíquico dos
estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência feita à mente
no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo” (FREUD, 1915/1996e, p. 127). Na edição que
estamos utilizando (Imago) a tradução para Trieb é instinto, no entanto, a substituiremos por “pulsão”, uma vez que,
conforme Laplanche e Pontalis (1992) é mais próximo daquilo que o termo expressa nos escritos de Freud.
demais. Esse desvio inclui incluiu, por um lado, as relações sexuais com um parceiro humano
(incesto, homossexualidade, pedofilia, auto-erotismo) e, por outro, as relações sexuais com um
objeto não humano (fetichismo, zoofilia, travestismo).
É interessante notar que a respeito desse desvio, Freud não fala em perversão, porém em
“inversão”. O que esse estudo revela é que não é quanto ao objeto sexual que a “aberração” deve
ser definida porque o estudo das “inversões” demonstra que a ligação entre pulsão sexual e
objeto sexual não é tão intima como se poderia pensar. Afirma Freud (1905/1996d, p. 140):
A experiência obtida nos casos considerados anormais nos ensina que, neles, há entre a
pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda, que corríamos o risco de não ver em
consequência da uniformidade do quadro normal, em que a pulsão parece trazer consigo
o objeto. Assim, somos instruídos a afrouxar o vínculo que existe em nossos
pensamentos em a pulsão e o objeto. É provável que, de início, a pulsão sexual seja
independente de seu objeto, e tampouco deve ela sua origem aos encantos deste.

Valas (1990, p.25) vê no desenvolvimento dessa ideia “uma descoberta profundamente


nova, cuja manutenção será exercida ao longo de toda sua obra [de Freud]” acrescentando ainda
que graças a essa ideia, a psicanálise pôde dar um “desenvolvimento fecundo à conceitualização
das perversões sexuais, e notadamente, extraí-las do domínio reservado à pura patologia”.
A resolução de Freud em Pulsões e suas vicissitudes (1915/1996e, p.128) de acordo com
a qual os desvios em relação ao objeto sexual demonstram que “o objeto é o que há de mais
variável numa pulsão”. O caráter e o valor do objeto sexual estão em segundo plano, e isso
permite tanto o exercício das “aberrações sexuais”, quanto da sexualidade “normal”. Por isso é
preciso concluir que o que constitui o essencial e constante da pulsão sexual não é o objeto, mas
alguma outra coisa.
O segundo aspecto desviante diz respeito ao alvo sexual, ou seja, à ação para qual a
pulsão impele. O alvo sexual “normal8” seria a união dos genitais no coito, que proporcionaria
descarga da tensão sexual e extinção temporária da pulsão. Entretanto, mesmo no processo
sexual mais normal, é possível identificar traços que, se desenvolvidos, transformam-se em
perversão.

8
É importante ressaltar que a teoria de Freud a respeito das perversões conserva um tanto de ambiguidade, como
assinala Roudinesco e Plon (1998, p. 584): “por um lado, ele estende a ‘disposição perverso-polimorfa’ ao homem
em geral, e com isso, rejeita todas as definições diferencialistas e não igualitárias da classificação psiquiátrica do fim
do século, segundo a qual o perverso seria um ‘tarado’ ou um ‘degenerado’, porém, por outro lado, ele conserva a
ideia de norma e de um desvio em matéria de sexualidade”. Optamos por manter a terminologia utilizada por Freud,
naquilo que ele considerava o suposto “normal e anormal”.
Antecedente ao coito é comum o toque, o olhar, o beijo – como estimulante para o ato
sexual ou como objetivos sexuais preliminares – embora estas partes do corpo não pertençam ao
aparelho sexual. Este fator conecta novamente as perversões à vida sexual normal. Isso porque,
nesse processo preliminar, é possível que ocorram desvios quanto ao objetivo sexual que podem
ser caracterizados como transgressões anatômicas quanto às regiões do corpo destinadas à união
sexual ou demoras nas relações intermediárias com o objeto sexual (fixações de alvos sexuais
provisórios).
As transgressões anatômicas quanto às regiões do corpo estão ligadas à uma
supervalorização do objeto sexual que, como afirma Freud (1905/1996d, p. 142), “não suporta
bem a restrição do alvo sexual à união dos órgãos genitais propriamente ditos” e que contribui
assim para “elevar as atividades ligadas a outras partes do corpo à condição de alvos sexuais”.
Acontece que, as forças inibidoras como a vergonha ou o asco, que conduzem a pulsão para seu
objetivo normal falham, e o sujeito pode ser assim conduzido, como entende Valas (1990, p. 26),
a uma “fetichização de certas partes do corpo do parceiro, chegando às vezes a renunciar ao ato
sexual e fixar-se nos objetivos preliminares para a obtenção de prazer”. Porém, a perversão
fetichista, propriamente dita só se estabelece no momento em que “o anseio pelo fetiche se fixa
[...] e se coloca no lugar do alvo sexual normal e ainda, quanto o fetiche se desprende de
determinada pessoa e se torna o único objeto sexual. São essas as condições gerais para que
meras variações da pulsão sexual se transforme em aberrações patológicas”, diz Freud
(1905/1996e, p. 146).
Nas fixações de alvos provisórios Freud distinguiu certas espécies de práticas como o
prazer visual (exibicionismo, voyeurismo), o prazer de sofrer ou fazer sofrer (sadismo,
masoquismo), assinalando que nesses casos o objetivo sexual pode se manifestar sob uma dupla
forma: ativa e passiva. Freud toma o sadismo e o masoquismo como perversões cardeais porque,
afirma ele (1905/1996e, p. 150) “o contraste entre atividade e passividade que jaz em sua base
pertence às características universais da vida sexual”.
As manifestações sexuais humanas apresentam, portanto, uma vasta gama de variações.
No entanto o que permite distinguir a normalidade da prática sexual de uma perversão, de acordo
com Valas (1990, p. 28) é que a perversão “se caracteriza por uma fixação prevalente, até mesmo
total, do desvio quanto ao objeto, e pela exclusividade da prática quanto ao desvio com relação
ao objetivo”.
O que Freud faz as tratar das perversões, diferentemente de outros autores de sua época, é
elevá-las à dignidade de uma posição subjetiva, quando ao tecer considerações gerais sobre as
perversões afirma: “Talvez justamente nas perversões mais abjetas é que devamos reconhecer a
mais abundante participação psíquica na transformação da pulsão sexual” (FREUD, 1905/1996e,
p. 153). É importante relembrar que Freud descobre que pulsão e objeto são coisas diferentes.
Ora se a pulsão elege um determinado objeto, nesse movimento é preciso reconhecer a obra de
um trabalho psíquico. Com isso, Freud invalida a ideia de uma sexualidade bruta, ou de uma
satisfação imediata da pulsão como instinto, no sentido animal do termo, para sustentar que a
perversão é antes uma posição subjetiva.
A ideia de uma perversidade polimorfa9 presente na sexualidade infantil é tema do
segundo ensaio e reforça o vínculo entre neurose e perversão. Essa noção apoia-se no fato de que
as pulsões sexuais ao longo do desenvolvimento da sexualidade infantil são pulsões parciais, já
que se apoiam todas numa fixação em determinado objeto (estádio oral: sucção; sádico-anal:
retenção/expulsão; fálico: masturbação). Esses componentes parciais da sexualidade, serão
organizados posteriormente, quando do advento da puberdade, em torno do primado da zona
genital. Portanto, afirma Kaufmann (1996, p.416), “a sexualidade infantil é [...] necessariamente
‘perversa’ uma vez que impõe outros objetos e outros fins que não o objeto e o fim sexual
‘normal’”.
Freud mostra como as pulsões parciais se constituem na criança pela erotização das
necessidades: o prazer de sugar, o prazer de reter a matéria fecal, prazer obtido com a micção e a
masturbação. É possível identificar três características essenciais na sexualidade infantil: apoia-
se numa função fisiológica essencial à necessidade; é auto-erótica; o seu objetivo é determinado
pela atividade da zona erógena correspondente à pulsão parcial.
De acordo com a teoria freudiana, a evolução da sexualidade infantil se dá em função das
pesquisas sexuais da criança, como o mistério do nascimento dos bebês ou a concepção sádica
das relações sexuais. Freud vai formular como um princípio da evolução da sexualidade, o
primado da assunção fálica, que faz da posse ou não do falo o elemento diferencial primordial na

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A disposição perverso polimorfa da sexualidade infantil não deve ser confundida com a perversão no adulto.
organização genital do sexos. Valas (1990, p.35) entende que essa problemática é “central para
compreender a perversão [pois] vai demarcar todas as etapas da elaboração freudiana da
perversão”. Com isso assinala-se que a perversão, enquanto posição subjetiva, se constitui no
Édipo e portanto está relacionada com a castração.
Desde a infância é feita a escolha a escolha de um objeto, escolha esta que se faz em dois
tempos, separados por um período de latência. Explica Freud (1905/1996e, p.188): “a primeira
delas começa entre os dois e os cinco anos e retrocede ou é detida pelo período de latência;
caracteriza-se pela natureza infantil de seus alvos sexuais. A segunda sobrevém com a puberdade
e determina a configuração definitiva da vida sexual”.
A perversão no adulto é então compreendida, nesse primeiro momento, como a
reaparição de um ou vários componentes parciais da sexualidade infantil. Embora na sexualidade
adulta de um neurótico as pulsões parciais podem persistir como tendências perversas no ato
sexual normal, sob a forma de prazer preliminar, as perversões propriamente ditas, seriam
resultado de uma regressão da evolução libidinal do sujeito a um estádio anterior ao genital, ao
qual ele permaneceria fixado. Para Kaufmann (1996, p. 416), nessa etapa da reflexão freudiana,
“a sexualidade perversa é, por conseguinte, menos uma marginalização do processo sexual que o
próprio fundamento da sexualidade normal como disposição inevitável no desenvolvimento
psicossexual de todo sujeito”.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund [1900]. A Interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: EBSB, Imago, 1996a.

______ [1901]. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro: EBSB, Imago,
1996b.

______ [1905(1901)]. Fragmento da análise de um caso de histeria. Rio de Janeiro: EBSB,


Imago, 1996c.

______ [1905]. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: EBSB, Imago,
1996d.

______ [1915]. Os instintos e suas vicissitudes. Rio de Janeiro: EBSB, Imago, 1996e.
KRAFFT-EBING, Richard Von. Psychopathia Sexualis: with especial reference to the
antipathic sexual instinct. Translated Franklin Klaf. New York: Bell Publishing Company, 1965.

KAUFMANN, Pierre. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud a Lacan.


Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes,


1992.

ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Rio
de Janeiro: Zahar, 2008.

ROUDINESCO, E; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Trad. Vera Ribeiro, Lucy Magalhães.


Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

VALAS, Patrick. Freud e a perversão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

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