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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO - CÂMPUS PIRITUBA

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU ESPECIALIZAÇÃO EM HUMANIDADES ― EDUCAÇÃO, POLÍTICA E SOCIEDADE

“A EXPERIÊNCIA GEOGRÁFICA COMO PERSPECTIVA DE MUNDO”

O chão, sendo algo imóvel e um tanto quanto sólido, constitui um recurso conveniente
quando se tenta organizar as ideias. A experiência do mundo – mergulhada no caldo das
sensações, sentimentos, subjetividades, com suas limitações – nos entra desde o nascimento
“pelos sete buracos” das nossas cabeças (no mínimo), (se tivermos sorte). Fica muito
complicado. Complexo, mesmo. As coisas não param. Falar das coisas pedaço por pedaço, a
partir do chão, facilita.

Tenho inveja das pessoas que nesta época do ano vão para as festas na cidade onde
nasceram, porque eu não posso, jamais poderia. Não por nada, porque a cidade onde eu nasci foi pro
espaço, não existe mais. As cidades não param, algumas somem. Nasci numa rua de terra que vimos
asfaltar, ficamos por perto, com as calças salpicadas de preto, brincando o dia todo contrariando
nossas muitas mães que tentavam tomar conta e coincidiam em quase tudo: que três da tarde é hora
do pão com café com leite e se escurecer é hora do banho, e que deveríamos ficar longe do
caminhão de piche, mas nesse caso não teve jeito, aquela novidade era grande, era barulhenta e
fedorenta, era legal demais... As festas eram na rua: São João, a dona Jerônima por vários anos
seguidos, fez todos os nossos vestidinhos de caipira (embora minha mãe e a dona Mariana fossem
costureiras profissionais, também). Fazia um modelo só para todas, de cores diferentes para cada
uma das meninas da rua (que era, e ainda é, só um quarteirão). Ir ser apalpada pela fita métrica da
dona Jerônima que comemorava como crescíamos e experimentar o vestido já eram parte da festa
(ou festas à parte). As mães, cada uma punha uma mesa na calçada, elas combinavam: uma
estourava pipoca, a outra cozinhava espigas de milho, a outra torrava amendoim, outra assava um
bolo. Tudo coisas assim, as coisas mais simples e deliciosas do mundo, os pais punham música e
subiam em escadas e se penduravam nos postes com os barbantes com papel de seda colorido de um
lado a outro da rua. Tudo isso foi embora... com o mascate Salim, o peixeiro, sua carroça e o cavalo,
a dona Maria benzedeira, e a outra dona Maria (“a Gazeta”, porque falava muito), e a “muda”... E a
advertência de que eram diferentes os italianos do cortiço do fim da rua, e os que moravam perto da
avenida (que se estipulavam “italianos do norte”: “favor não confundir”. Hoje nessa rua
desconhecida tem um prédio grudado no outro. Ninguém mais joga taco, ninguém mais pula sela,
nem pula amarelinha, acho que só se escondem, mas não tem a mesma graça: a Secretaria da
Fazenda do Estado de São Paulo construiu um prédio e tem repartições funcionando onde era a casa
da dona Jerônima. Não tem mais a minha cidade. Não tem mais o festival da canção com as crianças
da rua tocando violão, todas, (sabendo tocar direito ou não... ‘Vem cá, Vitu” ou “A Banda”), as mães
com as roupas de domingo, corujas, e os país satisfeitos com a travessura deles de conseguirem
apresentar um festival mais divertido que o da Record. Tudo isso foi para o reino do imaterial,
virou uma noção difusa de uma comunidade muito concreta da cidade de São Paulo. Sobrou um
CEP tucano. 04545-000

O chão continua lá, com coisas muito diferentes por cima, outros jogos, outras trocas,
agora mais dependentes de dinheiro. No geral, as pessoas foram todas para bairros mais distantes
do centro, e pessoas mais ricas do que nós foram ocupar aquele espaço. Trocamos por mais metros
quadrados a proximidade que tínhamos de coisas e lugares valorizados em moeda corrente,
considerados importantes, como podem ser ruas arborizadas; os primeiros shoppings da cidade; o
parque Ibirapuera; mesmo a Sears, o Mappin, o Masp, etc. Coisas que nem todas continuam no
mesmo lugar ou existindo.

A experiência humana é complexa, a gente precisa ancorar essas coisas todas em alguma
coisa mais certa. Pode ser o tempo, que tem a vantagem de poder ser percebido sempre na mesma
direção e sentido: as pessoas morrem mas jamais voltam para barriga das mães, um segundo
depois de nascer já é impossível você voltar pro lugar de onde saiu. Os ovos não se desfritam. O
tempo é também um suporte possível para apoiar as conjecturas sobre as impressões todas que o
mundo nos causa, mas o tempo é imaterial, e nos deixa à mercê de narrativas que nem os próprios
historiadores se atrevem a consensuar como sendo ciência, no máximo um tipo específico de
ciência (BARROS, 2011, p. 4).

Tudo é muita coisa, é contraditório, e não para quieto, se move e se transforma, muda de
tamanho, de grau de relevância, de cor, de tom, de idade e de lugar. Com o chão é diferente:
nossas ideias e o que sentimos sobre ele e o que fazemos nele (e com ele) mudam bastante, mas
ele não sai andando. Ajuda bastante. Ainda que o chão em si, não tenha grande importância: no
globo terrestre qualquer lugar é chão, (mesmo que bem fundo, coberto, portanto por quilômetros
de água medidos na vertical). O que faz diferença – mesmo – são as “geografias imaginárias”
como caracterizou Dunker quando fala da “segregação real” (DUNKER, 2017, p.48).
Separar por pedaços de chão ajuda a pensar sobre todas as coisas, as realmente
significativas, que são as imaginárias, as ficções todas que emprestam à nossa vida concreta
um sentido e dão forma e força às relações:
O Homo sapiens é uma espécie do pós-verdade, cujo poder depende da criação de ficções
e da crença nelas. [...] Somos os únicos mamíferos capazes de cooperar com vários
estranhos porque só nós conseguimos inventar histórias fictícias, espalhá-las e convencer
milhões de outros a acreditarem nelas. Desde que todos acreditem nas mesmas ficções,
todos obedecem às mesmas ordens e, portanto, conseguem cooperar eficazmente.
(HARARI, 2018)

A incumprível tarefa - essa irresistível tentação – de explicar o vivido e o imaginado


pode ser abordada a partir de partes do chão, por mais que convenha abstrair as totalidades
(OSÓRIO, 2012, p. 38): em cima das diferentes texturas dos ladrilhos de cerâmica, dos tacos
de madeira, do frio granito da casa da Rua Arminda, posso falar sobre infâncias, as de hoje e
as de ontem, sobre as músicas, os cheiros, as festas e comidas, sobre as relações e as famílias,
sobre como ser pai e mãe, sobre os casamentos, a monogamia e a hipocrisia, sobre pecado e
punição, sobre fofoca e cuidado, sobre raça, gênero, sexualidade e envelhecimento, sobre a tv
e a ditadura militar; sobre os vários nomes das moedas nacionais brasileiras e os homens
(sempre homens1) dos desenhos das notas dos diferentes dinheiros. Sobre os lugares de onde
vieram todas aquelas pessoas, e o que falavam delas, e para onde fomos e por que. Não é um
esforço de todo impertinente alicerçar as ficções sobre terra firme.

1
Os homens quando dizem ‘Homem’ ou ‘os homens’ estão se referindo de fato a eles próprios e não às pessoas
em geral, como querem fazer crer. Ver a este respeito Susan Bordo em A feminista como o Outro:
“[...] o Homem é realmente o homem, embora encoberto” (BORDO, 2000, p. 7).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARROS, José D'Assunção - "História e ciência: Algumas questões de método e epistemologia". In:
GIANNATTASIO, G. e IVANO, Rogério (orgs.) - Epistemologias da história: Verdade, linguagem, realidade,
interpretação e sentido na pós-modernidade, págs. 137-183. Londrina: EDUEL, 2011.

BORDO, S. A Feminista como o Outro. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, 1. sem. 2000.
Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9853/9086>. Acesso em: 30 nov. 2018.

DUNKER, C. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu, 2017.

HARARI, Y. 21 Lições para o Século XXI. Amadora: Ed. Elsinore, 2018. Citado em SILVA, J. “Yuval Noah Harari:
Quando fores grande talvez não tenhas profissão”. Diário de Notícias. Lisboa, 19 de agosto de 2018. Disponível em:
<https://www.dn.pt/edicao-do-dia/19-ago-2018/interior/yuval-noah-harari-quando-fores-grande-talvez-nao-tenhas-
profissao-9681932.html>. Acesso em: 04 dez. 2018.

FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da
Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012.

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