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REITORA

Berenice Quinzani Jordão

VICE REITOR
Ludoviko Carnasciali dos Santos

REALIZAÇÃO Manoel Dourado Bastos


LUTAS Londrina – Projeto integrado de extensão, Ricardo Prestes Pazello
pesquisa e ensino nº 2053
PROEX/UEL COMISSÃO ORGANIZADORA
Departamento de Direito Público Ana Clara Torrichelle Martins
Centro de Estudos Sociais Aplicados – CESA Ana Flávia Couto Vilela de Andrade
UEL – Universidade Estadual de Londrina Ana Teresa Corzanego Khatounian
Eliana Cristina dos Santos
COORDENAÇÃO Gabriel Vinícius da Silva
Érika Juliana Dmitruk Guilherme Cavicchioli Uchimura
Julia Vieira
COMISSÃO CIENTÍFICA Manuela Geraldo Gimenez

César Bessa Marilia Coletti Scarafiz

Deíse Camargo Maito Murilo Cruz Pajolla

Eliana Cristina dos Santos Renato Rack de Almeida

Érika Juliana Dmitruk Rodolfo Carvalho Neves dos Santos

Fabio Henrique Araújo Martins Victória Quaglia Morato

Guilherme Cavicchioli Uchimura

Catalogação Elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da Universidade


Estadual de Londrina
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

C749 Congresso Direito Vivo (2. : 2017 : Londrina, PR).


Anais do II Congresso Direito Vivo [livro eletrônico] /
Coordenadora: Érika Juliana Dmitruk; organizadores: Ana Clara
Torrichelle Martins ... [et al.] – Londrina : UEL, 2017
1 Livro digital.

Vários autores.
Disponível em: lutas-londrina.blogspot.com/?m=1
ISBN 978-85-7846-532-2
Bibliotecária: Ivana de Fátima Peres de Oliveira – CRB- 9/1018
PROGRAMAÇÃO
II CONGRESSO DIREITO VIVO

03/05/2017 Direito em tempos de barbárie.


Coordenadora: Erika Juliana Dmitruk
Manhã
Justiça de transição e o direito à memória,
CONFERÊNCIA DE ABERTURA verdade e justiça no Brasil.
Conferencista: Marildo Menegat Coordenador: Fabio Henrique Araújo Martins.
Militarização do cotidiano, grande
encarceramento e o combate à pobreza em Retrocesso social e resistência.
tempos de barbárie. Coordenador: Cesar Bessa.

Tarde Direito e Gênero


Coordenadora: Deíse Camargo Maíto.
OFICINA:
Memória, comunicação e expressão: a Assessoria jurídica popular, educação jurídica
produção áudio-visual como ferramenta de e educação popular.
luta. Coordenadores: Ricardo Prestes Pazello e
Coordenador: Renato Rack Guilherme Cavicchioli Uchimura.

RODA DE CONVERSA: A face repressora do Noite


Estado tem limite?
Articuladores: Marildo Menegat e Ricardo RODA DE CONVERSA:
Prestes Pazello. A Advocacia e o Direito como formas de
resistência – conversas sobre a prática com
Noite advogados populares e defensores públicos
que assumem a linha de frente jurídica pela
CONFERÊNCIA: garantia de direitos. Grande Roda de
Conferencista: Ricardo Prestes Pazello Conversa coordenada por advogados
É possível um Direito Vivo no capitalismo? populares e defensores públicos, debatendo
estratégias jurídicas e o que fazer do Direito,
04/05/2017 suas dificuldades e horizontes.

Manhã 05/05/2017

CONFERÊNCIA Manhã
Conferencista: Marildo Menegat OFICINA:
A Organização do Sujeito Coletivo em tempos Teatro do Oprimido e Direitos Humanos
de barbárie. Coordenador: Fabio Henrique Araújo Martins.

RODA DE CONVERSA: Tarde


O que é barbárie?
Articuladores: Marildo Menegat, Ricardo OFICINA:
Prestes Pazello, Marco A. Rossi. Microcrédito, negócios sociais e
empreendedorismo social em áreas de
Tarde vulnerabilidade social urbanas.
Coordenador: Ítalo Ferreira da Conceição.
GRUPOS DE TRABALHO
Juventudes e direito: expressões de Noite
resistência e (re)conhecimento.
Coordenadora: Eliana Cristina dos Santos APRESENTAÇÃO DO PRODUTO DAS
OFICINAS E ENCERRAMENTO
Democratização e socialização dos meios de
comunicação: a mídia, entre a regulação e as
lutas sociais.
Coordenador: Manoel Dourado Bastos
APOIO
SUMÁRIO

GRUPO DE TRABALHO 1 ........................................................................................ 10

JUVENTUDES E DIREITO: EXPRESSÕES DE RESISTÊNCIA E


(RE)CONHECIMENTO ............................................................................................. 10

AS OCUPAÇÕES DAS ESCOLAS PÚBLICAS DE LONDRINA PELOS ALUNOS


SECUNDARISTAS: UMA RELAÇÃO ENTRE DIREITO, DEMOCRACIA E PODER 11

ESTADO VERSUS ALUNOS: OS “VALORES” EM CONFLITO NAS “OCUPAÇÕES”


DE ESCOLAS PÚBLICAS POR ESTUDANTES ....................................................... 22

O DIREITO DE PARTICIPAÇÃO DOS ESTUDANTES NA UNIVERSIDADE:


ANÁLISE DA LEI ESTADUAL PARANAENSE N. 14.808/2005 E DA ADI 3757 ....... 31

O MOVIMENTO AMBIENTALISTA NO CONTEXTO DOS NOVOS MOVIMENTOS


SOCIAIS .................................................................................................................... 46

OCUPAR E RESISTIR (Canção) .............................................................................. 58

OCUPAR OU RESISTIR? ......................................................................................... 59

RELATO DE EXPERIENCIA DA OKUPAÇÃO DO MARL (Movimento dos Artistas de


Rua de Londrina) ....................................................................................................... 60

SLAM RESISTÊNCIA: A POESIA COMO ARTE DE RESISTÊNCIA ........................ 65

GRUPO DE TRABALHO 2 ........................................................................................ 79

DEMOCRATIZAÇÃO E SOCIALIZAÇÃO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO: A


MÍDIA, ENTRE A REGULAÇÃO E AS LUTAS SOCIAIS .......................................... 79

A ESPETACULARIZAÇÃO DO MOVIMENTO BRASIL LIVRE: UMA ANÁLISE


COMPARATIVA COM A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO DE DEBORD. ............... 80

AGITAÇÃO E PROPAGANDA EM LENIN: O JORNAL POLÍTICO COMO ARMA


REVOLUCIONÁRIA .................................................................................................. 89

FOTOGRAFIA POLÍTICO-DOCUMENTAL COMO PRÁTICA COMPLEMENTAR À


ADVOCACIA EM DIREITOS HUMANOS NA OCUPAÇÃO URBANA MORRO DOS
CARRAPATOS........................................................................................................ 102

MÍDIA NINJA: EXPERIÊNCIA, ATIVISMO E CASOS ENVOLVENDO O AMBIENTE


JURÍDICO ............................................................................................................... 107

O DETERMINISMO TECNOLÓGICO NO SÉCULO XXI: REGULAMENTAÇÃO E


SOCIALIZAÇÃO DAS REDES SOCIAIS ................................................................. 110

O PAPEL SOCIAL E A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA CONDENAÇÃO DE ACUSADOS


NO DIREITO PENAL BRASILEIRO ........................................................................ 127

GRUPO DE TRABALHO 3 ...................................................................................... 146

DIREITO EM TEMPOS DE BARBÁRIE .................................................................. 146

A APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO ANTITERRORISTA E A CRIMINALIZAÇÃO DE


MOVIMENTOS SOCIAIS LATINO-AMERICANOS PÓS 11 DE SETEMBRO ......... 147

NIETZSCHE: JUSFILOSOFIA DA VIOLÊNCIA....................................................... 166

A IMPORTÂNCIA DA TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS EM HERRERA


FLORES .................................................................................................................. 181

NEM CENTRO, NEM CÍVICO: NARRATIVA VIVA E POPULAR DA COMUNIDADE


ESTUDANTIL SOBRE A SEMANA DO DIA 29 DE ABRIL...................................... 195

COMPLEXO INDUSTRIAL-PRISIONAL E ENCARCERAMENTO EM MASSA: A


RESISTÊNCIA DOS TRABALHADORES À ONDA PUNITIVA ............................... 215

CRÍTICA AO PROJETO DE EXTERMÍNIO DOS POVOS INDÍGENAS: UMA


ANÁLISE DAS CHARGES DE CARLOS LATUFF SOBRE A PEC 215 .................. 238

GRUPO DE TRABALHO 4 ...................................................................................... 240

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E O DIREITO À MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA NO


BRASIL ................................................................................................................... 240

COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA APLICADA AO DIREITO ................................. 241

APONTAMENTOS SOBRE A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E O DIREITO À


MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA NO BRASIL..................................................... 242

O RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS E A TOLERÂNCIA RAZOÁVEL ENTRE


POVOS EM UMA ORDEM MUNDIAL PACÍFICA EM RAWLS ............................... 260

GRUPO DE TRABALHO 5 ...................................................................................... 262

RETROCESSO SOCIAL E RESISTÊNCIA ............................................................. 262

ENSAIO SOBRE A TENDÊNCIA À EXTRAÇÃO DE MAIS-VALIA ABSOLUTA NAS


RELAÇÕES DE TRABALHO CONTEMPORÂNEAS .............................................. 263

TERCEIRIZAÇÃO E REFORMA DA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA ...................... 277

TERCEIRIZAÇÃO E REFORMA TRABALHISTA: REFLEXOS NA


REPRESENTAÇÃO SINDICAL ............................................................................... 286

NEGOCIADO SOBRE LEGISLADO: FORMA JURÍDICA E DIREITO VIVO NAS


RELAÇÕES DE TRABALHO................................................................................... 304

POSITIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS E TRABALHISTAS COMO FATOR DE


CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA: UMA ANÁLISE HISTÓRICA E CRÍTICA DA
LUTA POR DIREITOS ............................................................................................ 317

GRUPO DE TRABALHO 6 ...................................................................................... 333

DIREITO E GÊNERO .............................................................................................. 333

LIMITES E POSSIBILIDADES DA UTILIZAÇÃO DO PODER DISCIPLINAR DE


UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS NA RESPOSTA À VIOLÊNCIA DE
GÊNERO OCORRIDA EM SEUS ÂMBITOS .......................................................... 334

PATOLOGIA OU IDENTIDADE: ANÁLISE SOBRE A COMPREENSÃO DO DIREITO


ACERCA DA TRANSEXUALIDADE ........................................................................ 349

RAÇA, RACISMO E A NEGAÇAO DE DIREITOS ÀS MULHERES NEGRAS E


PERIFÉRICAS ........................................................................................................ 361

VIOLÊNCIA VIRTUAL CONTRA ADOLESCENTES: ATÉ AONDE ISSO PODE


CHEGAR? ............................................................................................................... 370

DIREITOS FUNDAMENTAIS E MULHERES: UM OLHAR NA PERSPECTIVA DE


ISABEL ALLENDE .................................................................................................. 382

GRUPO DE TRABALHO 7 ...................................................................................... 394

ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR, EDUCAÇÃO JURÍDICA E EDUCAÇÃO


POPULAR ............................................................................................................... 394

O PROJETO DE UMA EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA POR MEIO DAS


ASSESSORIAS JURÍDICAS UNIVERSITÁRIAS POPULARES: uma análise a partir
da práxis do Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa no curso de Direito da UESB
................................................................................................................................ 395

EMANCIPAÇÃO HUMANA E ORGANIZAÇÃO POPULAR COMO INSTRUMENTOS


DE BUSCA POR DIREITOS FUNDAMENTAIS ...................................................... 413

OCUPAÇÃO JARDIM BELA VISTA: A CONSTRUÇÃO POPULAR E A EXTENSÃO


UNIVERSITÁRIA. .................................................................................................... 414

EU, MORADOR DA OCUPAÇÃO JARDIM BELA VISTA ....................................... 427

UM OLHAR NO JARDIM BELA VISTA ................................................................... 431


APRESENTAÇÃO

O II Congresso Direito Vivo, com objetivo de propor a integração entre as


diferentes áreas e formas de conhecimento, inaugura espaço de comunicação oral
de trabalho e outras formas de registro de experiência e conhecimento para debate
em Grupos de Trabalho.
Com intuito de possibilitar a interdisciplinaridade e a expansão de
metodologias, oferecendo também à comunidade externa ambiente de identidade
com a própria universidade, os grupos de trabalho seguirão a proposta de construir
um evento científico acessível, plural, com inclusão social pautado na ampla
participação.
Deste modo, como inovação, abre-se oportunidade para submissão e
apresentação de trabalhos não apenas na forma de resumos e artigos científicos
escritos, mas, também, poderão ser submetidos relatos de experiência, poesia,
música, registro audiovisual, fotográficos, e outras formas de expressões científico-
cultural-popular que pretendam investigar, discutir e provocar a formação e
participação jurídica frente à atual conjuntura política e social vivenciada.
O II CONGRESSO DIREITO VIVO emerge no horizonte da atual conjuntura
política, social e jurídica – esta, em seu recorte específico e limitado - propondo-se a
questionar o mesmo Direito “morto” (vivo?) de outrora com uma nova perspectiva.
A temática do evento possui dois eixos centrais como problemática: (i)
“Barbárie e Direito”, pretendendo-se analisar se o direito legitima ou não os
processos de barbárie em nossa sociedade e, (ii) “Reforma ou revolução”,
fomentando o debate sobre a necessidade de transformação do atual cenário com
questionamentos acerca de quão profunda deve ser (e se deve haver) tal mudança e
qual o sentido ela deve tomar.
10

GRUPO DE TRABALHO 1

JUVENTUDES E DIREITO: EXPRESSÕES DE RESISTÊNCIA E


(RE)CONHECIMENTO

Ementa: Políticas Sociais para adolescência e juventude; Arte, esporte e cultura


como elementos de resistência; Redução da Maioridade Penal; Repressão x Direitos
humanos; Violência criminalização da juventude; Espaços de luta e participação
(ocupações de escolas, grêmios estudantis, movimento estudantil, conselhos
deliberativos, movimentos culturais, artísticos, esportivos e sociais).

Coordenadora: Eliana Cristina dos Santos (elianacristinasantos@outlook.com).


11

AS OCUPAÇÕES DAS ESCOLAS PÚBLICAS DE LONDRINA PELOS ALUNOS


SECUNDARISTAS: UMA RELAÇÃO ENTRE DIREITO, DEMOCRACIA E PODER

Luana Angelica Merlis Pereira1

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo propor um olhar sobre as ocupações
das escolas públicas de Londrina/PR pelos alunos secundaristas, que ocorreram no
ano de 2016, que as veja como expressão do Movimento Estudantil, na busca da
concretização da democracia e dos valores e direitos fundamentais consolidados na
Carta Constitucional Brasileira de 1988, em consonância com o Estado Democrático
de Direito e com a democracia participativa.
Palavras-chave: Democracia; Direito; Poder.

Abstract: The present work has the purpose of proposing a look at the occupations
of the public schools of Londrina/PR by the secondary students, which occurred in
the year of 2016, that sees them as expression of the Student Movement, in the
search of the concretization of the democracy and of the values and the
Fundamental rights consolidated in the Brazilian Constitutional Charter of 1988, in
consonance with the Democratic State of Law and with participatory democracy.
Keywords: Democracy; Law; Power.

Introdução

Ao final de 2016, mais precisamente em outubro, as escolas públicas de


Londrina/PR viveram dias agitados. Eram os alunos secundaristas destas escolas
que, aderindo a um movimento que já se alastrara pelo Estado do Paraná, ocuparam
seus colégios, reivindicando participação nos processos decisórios da política,
anseio que pode ser traduzido, sobretudo, como reação à conjuntura política do
país, e como forma de se contrapor às propostas legislativas então apresentadas
pelo governo federal, que seriam a Proposta de Emenda Constitucional n° 241/2016,

1
Luana Angelica Merlis Pereira, Universidade Estadual de Londrina, luanamerlis@hotmail.com,
graduanda do 5º ano do Curso de Direito.
12

de limitação dos gastos públicos, e a Medida Provisória n° 746/2016, que propunha


uma reforma nas estruturas do Ensino Médio.
Estas propostas legislativas causaram um furor social que ultrapassou bem
mais do que os portões das escolas. Por todo o país, movimentações sociais
agitaram o noticiário, servidores públicos se mostravam preocupados com seus
direitos adquiridos, universidades públicas entraram em greve, a saber a própria
Universidade Estadual de Londrina, após a realização de Assembleias entre as
classes dos Servidores e Docentes, as categorias optaram pela paralisação como
forma encontrada de tentar, de algum modo, fazer com que o poder público voltasse
seus olhos para a população.
A instabilidade política, as notícias de corrupção, de rombos orçamentários,
foram fatores que auxiliaram a criação de um cenário de insegurança, e a falta de
confiança naqueles que estão a cargo de dirigir um Estado, é desestabilizadora.
Neste ínterim, mais do que fechar escolas, os alunos secundaristas se
organizaram. Fecharam os portões para o desrespeito para com suas vontades e
opiniões, e os abriram para uma nova lição sobre Democracia e participação.
Realizaram Assembleias entre os alunos, promoveram aulas, oficinas, debates,
aprenderam a dividir tarefas, a respeitar opiniões, matérias que dificilmente se
encontram na grade curricular das escolas.
Procuro iniciar o tema tratando de Democracia, assunto em voga diante de
tantas manifestações populares. Isso porque, quando inseridos em um sistema
normativo que, conforme dispõe o Artigo 1º da Constituição Federal de 1988, é
Democrático de Direito, a Democracia deixa de ser mera contabilidade, não se trata
apenas de atender aos anseios da maioria, mas de garantir os direitos também da
minoria, para que, em paridade de condições, possam vir a se tornar maioria.
Esta ideia vai de encontro com a ascensão dos Direitos Fundamentais,
consolidados na Carta Constitucional de 1988 e, neste contexto, as ocupações
poderiam ser entendidas como forma de denúncia em relação à democracia tal qual
vem sendo exercida, à falta de expressão pública, à crise da representação nas
estruturas de poder, e como desrespeito aos direitos fundamentais, fatores que, por
si, atentam contra o Estado que busca ser Democrático de Direito.
Para melhor delinearmos o assunto, se faz necessário um breve histórico de
como se deram as ocupações, quem foram seus atores, quais foram seus frutos,
para, posteriormente, relacioná-las à Democracia, ao Direito e ao Poder.
13

1 Breve Histórico sobre as Ocupações das Escolas Públicas em Londrina/PR

Os protagonistas das ocupações das escolas públicas em Londrina foram os


alunos secundaristas, motivo pelo qual, pelo fato de ter sido um movimento
engrenado por estudantes, entendemos neste trabalho que as ocupações foram
uma expressão do Movimento Estudantil, que se apresenta ao longo da história do
Brasil em momentos conjunturais.
Sobre este assunto, o Movimento Estudantil – ME, se relaciona com a
participação política dos estudantes. Como demonstrado por autores como Antônio
Mendes Junior (1981) que tratam da transitoriedade dos atores do movimento – a
condição de estudante em regra não é permanente, mas sim temporária – o que
poderia levar à ideia de incapacidade de que este movimento cause, de fato, alguma
transformação, desde seus primórdios, possível observar a preocupação do ME com
questões políticas.
Por vezes, essa preocupação proporcionou mudanças políticas significativas,
como quando os estudantes se fizeram presentes na campanha pelas “Diretas Já”, e
no movimento dos caras pintadas. É inegável a participação estudantil no processo
de redemocratização pelo qual passou o estado brasileiro pós Ditadura Militar (1964-
1985), culminando na elaboração da Constituição Federal de 1988 que, por seu
caráter social, foi até mesmo chamada de “Constituição Cidadã” pelo Deputado
Ulysses Guimarães na Assembleia Nacional Constituinte.
A atuação organizada de estudantes veio com a formação da União Nacional
dos Estudantes (UNE), que se deu em meio ao regime ditatorial getulista, como luta
pela democracia. O Movimento Estudantil, assim como o foram as ocupações das
escolas públicas de Londrina/PR, mostraram que são capazes de realizar mudanças
sociais, ainda que restritas ao âmbito daqueles que do movimento participaram.
Contudo, é imperioso ressaltar que as manifestações estudantis dos secundaristas
se mostraram apartidárias e também desvinculadas de órgãos estudantis.
As ocupações mais recentes de escolas públicas por alunos das redes
estaduais de educação do país que chamaram a atenção e que, de certa forma,
serviram como paradigma para as ocupações paranaenses, foram as que ocorreram
no Estado de São Paulo na segunda metade de 2015. Referidas ocupações se
deram em razão da contrariedade à precarização da educação, e como protesto
frente ao projeto de reorganização escolar proposta pelo então governador Geraldo
14

Alckmin, que fecharia 94 escolas e remanejaria seus alunos. O argumento utilizado


pelo governo era a baixa na demanda escolar e o necessário corte de gastos.
Equivocado, o governador não se ateve aos motivos que levam à evasão dos alunos
e, a contrassenso e sem ouvir a classe escolar, propôs a reorganização.
A classe escolar não aceitou, assim, inspirados em manifestações estudantis
que ocorreram no Chile, em um movimento que ficou conhecido como “Revolta dos
Pinguins”, e que se deu em moldes e sob fundamentos parecidos com os do Brasil,
os estudantes optaram pela via direta, pela ação concreta de ocupação. Assim, os
estudantes chilenos inspiraram os estudantes paulistas, que, por sua vez, deram a
ideia aos paranaenses.
No Paraná as ocupações tiveram início no Município de São José dos Pinhais,
e, após, se alastraram pelo restante do Estado. Em Londrina, o primeiro colégio a
ser ocupado foi o Colégio Albino Feijó Sanches, localizado na região norte, mas o
movimento alcançou colégios tanto periféricos, quanto das partes centrais da cidade.
Durante as ocupações os alunos procuraram desenvolver atividades, promover
“aulões” e zelar pelas estruturas do colégio. Entretanto, o sistema jurídico posto
levou as ocupações a serem judicializadas, o Estado do Paraná, no uso de suas
atribuições e, em cumprimento ao disposto na legislação vigente, impetrou ações de
Reintegração de Posse em face dos ocupantes, que, após a ordem judicial de
desocupação, deixaram os colégios.
Quanto aos efeitos das ocupações, muito se questiona a efetividade desta
forma de movimento. Apesar de um aparente “fracasso” do movimento, quando não
se alcança o objeto daquilo que se pleiteia, temos que esta seria uma visão
imediatista. Os efeitos das ocupações podem não ter alcançado os objetivos
principais, de barrar a aprovação das propostas legislativas supracitadas, contudo as
lições deixadas pelos alunos, de força e resistência, hão de reverberar na
sociedade, a força jovem mostrou que não aceita calada e obediente os desmandos
governamentais. Ademais, os próprios alunos fizeram “o dever de casa”: exercer
seus direitos e, mais do que isso, buscá-los.
A estudante que aqui vos fala, juntamente a mais alguns estudantes da UEL,
participamos de forma indireta de algumas ocupações. Convidados pelos ocupantes
de alguns dos colégios, realizamos oficinas interativas com os alunos e a
experiência foi, no mínimo, enriquecedora, para secundaristas e universitários.
A atividade desenvolvida com os alunos consistiu em uma dinâmica, os que
15

estavam presentes se dividiram em grupos, a cada grupo foi dado um papel


cartolina, neste papel os alunos deveriam escrever o que, na visão deles, estava
faltando na escola, cada grupo contava com um universitário para auxiliar nas
decisões, e assim foi feito.
Após, mas ainda durante a dinâmica, os universitários trocaram de grupos e
começaram a opinar nas escolhas dos estudantes secundaristas, tentando remover
algumas das ideias e colocar outras.
A ideia inicial era fazer com que os alunos, primeiramente entendessem o que
estavam fazendo ali, as suas reivindicações, que ultrapassam a esfera do debate
contra as propostas legislativas, e repousa, sobretudo, no anseio por uma educação
pública acessível e de qualidade. Depois, como o aparente poder de alguém de fora
pode intervir nas opiniões e escolhas daqueles que estão, de fato, no movimento. A
desconfiança nos novos “governantes”, que se faziam na rodada de alunos
universitários entre os grupos, gerava um clima de insegurança, pois como poderiam
opinar nas ideias dos alunos, aqueles que nem estiveram presentes durante a
construção?
Ao final, sentaram-se todos em roda para discutir o assunto, e o resultado foi
que, ficou demonstrado, ao menos para aquele pequeno grupo universitário, que os
alunos sabiam sim o que estavam fazendo e o que queriam. Pouco permitiram que
as ideias lhe fossem tomadas, e demonstraram uma capacidade dialógica que não
se vê nas assembleias legislativas.
Coloco este breve relato como informação e conteúdo neste artigo, e não a
título de amostragem, para que o leitor possa, desde já, se familiarizar com o
assunto e conhecer uma visão de participação no movimento. As nossas visões
sobre o mundo fenomênico dificilmente são imunes às convicções pessoais,
contudo, procuro neste breve relato, fornecer uma informação factual, e não
axiológica. Dito isto, passemos ao estudo de como as ocupações se relacionam com
a democracia, com o direito e com o poder.

2 Democracia, Direito e Poder

Por que é tão importante falar sobre democracia? Esta é como um motor, um
instrumento que tem a capacidade de provocar os indivíduos na sua mais profunda
subjetividade e os levar à racionalidade de que, uma vez inserida em um Estado
16

Democrático de Direito (CF/88, Art. 1º), a pessoa humana emana poder, sendo
detentora do direito e do dever de participação nas decisões políticas que serão
tomadas, vez que estas quando transformadas em normas jurídicas, produzirão
reflexos e implicarão em imposições na vida dos indivíduos.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 traz em seu
preâmbulo a instituição de um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, como a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, tendo-os como valores supremos
de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias.
Ocorre que, a democracia tal qual vem sendo exercida, dá sinais de cansaço, e
as manifestações sociais, aqui com recorte no movimento estudantil, mais
especificamente sobre o caso das ocupações das escolas públicas, são uma forma
de reação a esta situação.
O conceito e o entendimento sobre o que é Democracia pode se modificar ao
longo do tempo. Temos que, esta se perfaz em meio e instrumento de realização de
valores essenciais de convivência humana, é um processo de afirmação do povo e
forma de garantir os direitos por estes conquistados (SILVA, 2012).
Com o fim do século XIX, marcado pela Revolução Industrial, a democracia até
então meramente política se mostrou insuficiente, tendo em vista a necessidade de
implantação de um Estado Social que se voltasse ao indivíduo e suas necessidades.
A sociedade purgava por um direito que lhe voltasse os olhos, neste sentido veio a
atual Carta Magna brasileira, que busca consubstanciar um Estado Democrático de
Direito.
Neste cenário a lei tem papel de destaque, devendo-se observar os anseios
sociais quando da sua elaboração, sobretudo em um Estado Democrático de Direito
e em consonância com a Constituição Federal de 1988, que coloca em destaque a
busca pela concretização de direitos fundamentais e a soberania popular. Assim é
que o governo deve ser executor das leis que emanam do povo, o governante tem o
poder de agir, mas de forma a fazer valer a vontade soberana, ou seja, a vontade
geral do povo.
É sabido que na democracia representativa, vivenciada, em partes, no Brasil,
visto que a Constituição contém alguns mecanismos de democracia participativa, a
exemplo do plebiscito, referendo e iniciativa popular, existe uma delegação de
17

representatividade do eleitor para com o eleito, logo, aquele que é investido da


função de representar a outrem, concomitantemente adquire uma forma de poder, o
poder de representar, de tomar decisões, propor leis, sempre com vistas ao
atendimento do interesse público, ou mais precisamente, daquele que lhe outorgou a
representação.
Ocorre, contudo, que é possível observar um distanciamento entre
representantes e representados, as casas legislativas se tornam uma realidade
deveras longínqua daquela vivida no cotidiano da população. O poder que é então
emanado da soberania popular e, através do exercício democrático, é conferido ao
representante, não pode ser utilizado de forma indiscriminada, mas sim de forma
que não se perca o nexo entre os anseios dos que delegam o poder e os atos dos
que podem corresponder a estes anseios.
Etimologicamente, ‘poder’ nos remete ao verbo latino posse, infere dominação
e avoca influência, capacidade, imposição de vontade. Forma-se uma relação de
imposição e obediência. Gurvitch explica a pluridimensionalidade do poder pelas
bases axiológicas, desta maneira, em um esquema que delineia perfeitamente as
relações de poder, nomina as partes como Ego, que seria aquele que dispõe de
poder e que emanará uma imposição de vontade, e Alter, como aquele que se
relaciona com o primeiro e reagirá à ação de se contrapor a ela, ou seja, vai emitir
um posicionamento positivo ou negativo diante da imposição, e isto se dará de
acordo com a confirmação da expectativa ou não-confirmação da expectativa, que
irá se confirmar ou negar pelo sentido de valor norteador das relações.
Neste sistema ambas as partes são plurais, ou seja, formadas por um conjunto
de seres, aqui podemos inserir uma contribuição fundamental de Jurgem Habermas,
para quem a comunicação só tem sentido se objetivar o entendimento. Para que
Alter entenda a mensagem é necessário que este atinja a ideia, caso contrário, pode
haver distorção e, consequentemente, uma reação negativa, ainda que a ideia possa
ser boa ou vantajosa para Alter.
Exemplificando e tomando como exemplo a questão das ocupações,
poderíamos entender o Congresso Nacional como Ego e os estudantes
secundaristas como Alter, uma vez imposta uma vontade, como a Reforma do
Ensino Médio, o Alter emitirá um posicionamento positivo ou negativo de acordo com
a confirmação ou não das expectativas. Em um estado que se diz democrático de
direito, é até mesmo previsível que Alter não aceite uma norma que aparentemente
18

não atendeu ao caminho dialético, não ouviu discutiu com Alter, e assim, não está
em consonância com o que garante a carta constitucional. Segundo Roberto Lyra
Filho (1982, pg. 8), “A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise,
ligada à classe dominante”, e se liga à classe dominante porque o seu processo de
formulação não foi dialógico, mas fruto das estruturas de poder.
Esta falibilidade nas comunicações, são fruto da contaminação das decisões
coletivas por interesses particulares e da racionalização instrumental, por isto se faz
necessário que, para que o poder dos cidadãos possa refletir nos atos que regulam
suas vidas, haja o entendimento entre as partes, de forma que se possa garantir
força aos anseios populares, executando-se, então, a razão comunicativa no lugar
da instrumental (HABERMAS, 2003).
Razão instrumental seria aquela que leva à desumanização do homem e à
manipulação das relações sociais, as ações humanas são tomadas com fins
predeterminados, o que vai de encontro com o sistema econômico capitalista, seria
a mecanização do homem, que pode ser manipulado para que se atinjam
determinados fins. A seu turno, a razão comunicativa, se baseia no mútuo respeito e
na solidariedade, viabiliza a participação democrática dos sujeitos envolvidos no
diálogo, estimulando um sentimento de pertencimento, visto que os sujeitos têm o
mesmo poder de fala, ligando-se assim à integração social. O produto da discussão
não será coincidência, nem fruto de poder ou violência, mas sim um consenso.
Conduz a um processo interativo de ideias.
O momento da construção seria delineado na forma discursiva, ou seja, por
meio da comunicação, com a produção de debates públicos e abertos aos
interessados, este seria um meio fértil, conforme o pensamento habermasiano, para
a busca do entendimento, vez que figuraria entre indivíduos que possuem uma
identidade cultural (Habermas, 2003).
O direito é mediador das relações de poder, atuando para se fazer realizar esta
comunicação. Mas, como o poder se legitimaria então? As teorias foram se
modificando ao longo do tempo, Aristóteles ainda na Grécia Antiga, indicou a “Teoria
da Naturalidade da Hierarquia e Predestinação”. Em seguida, na Idade Média a
religião era o grande motor da vida humana, e na Idade Moderna aparecem os
iluministas, carregados de cientificismo, onde a religião não mais bastava para as
explicações dos fatos da vida humana. Nos séculos XVI ao XVII, com os
contratualistas, a origem do poder seria convencionada pelos homens em algum
19

momento entendido como pacto entre estes, utilizado para gerar um poder político.
Habermas, na busca da explicação do poder político e reconstrução da relação
interna entre direito e política, apesar de crítico dos contratualistas, não consegue
afastar-se da doutrina contratual no que tange à legitimação do poder, considerando
que este emana de um pacto, ou seja, de um momento de racionalidade, quando se
exerce um agir comunicativo, não existe apenas dominação, mas um procedimento
em que se faz possível encontrar um processo democrático, em que se encontra
opinião e vontade, condicionando o pacto à união dos homens.
Desta feita, o poder possui algumas facetas, podendo ser visto como domínio
ou como força da soberania dos indivíduos, dependendo do modo como se dará seu
exercício e no que estará fundado.
Uma vez entendido que o direito é mediador das relações de poder, o que seria
então o Direito? O Direito, apesar da norma positivada, também apresenta uma
interface dinâmica, visto que busca se amoldar às novas realidades e demandas,
justamente para que cumpra seu papel de proporcionar uma convivência humana.
As reflexões socialistas mais modernas têm buscado uma relação dialética do
Direito, o que o tiraria do extremismo de ser encarado como mera ideologia jurídica
ou positivista ou jus naturalista, tendente a buscar assim uma maior flexibilidade
“que o liberte daquela noção de Direito como, antes de tudo, direito estatal, ordem
estatal, leis e controle incontrolado” (FILHO, 1982, pg. 37). Para atingir o fim de
acabar com contradições socioeconômicas e a utilização do direito pelas estruturas
de poder, há de se caminhar para a democracia.
Desta maneira, um direito mais dialógico seria emancipatório e não meramente
descritivo, incorporando reflexões sociológicas na construção do Direito, para que
este não seja apenas instrumento de controle social.

Conclusão

Buscamos neste trabalho entender um pouco sobre os motivos pelos quais os


alunos secundaristas optaram pela ação direta de ocupar seus colégios. Com os
apontamentos do tópico acima, de forma conclusiva, temos que tanto as ocupações
como quaisquer outras formas de manifestação social, estão inseridas em um
sistema democrático em crise.
Esta crise ou falibilidade, se dá pelas relações sociais que não se comunicam,
20

ou, ao menos, não visam o entendimento e a construção coletiva de ideias. Isto faz
com que os indivíduos se questionem em seus direitos e deveres participativos.
Assim é que, deve-se prezar pelo entendimento sobre o mundo factual através
da axiologia de seus atos. As ocupações são uma reação ao exercício do poder,
que, sobre o leito do Direito, se exerce de forma antidemocrática.
Fechar portões neste caso, pode significar abrir muitas janelas, para uma
reflexão geral, não só dos participantes dos movimentos ou do poder público, mas
de toda a comunidade.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em 12.abr.2017.

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posse em Londrina. Disponível em:
<http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/10/justica-comeca-analisar-pedidos-de-
reintegracao-de-posse-em-escolas.html>. Acesso em 19.nov.2016.

HABERMAS, Jurgem. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol II.


2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

INSTITUTO cpfl cultura. Café Filosófico cpfl especial com Luiz Felipe Pondé,
Mario Sergio Cortella e Leandro Karnal. Transmitido ao vivo em 03.out.2016.
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11.nov.2016

LYRA FILHO, Roberto. O que é direito?. São Paulo: Brasiliense, 1982.

MEDEIROS, Alexandro M.; Democracia Participativa. 2014. Disponível em: <


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MELLO, Káthia. Governo não promoveu debate sobre reforma do ensino, diz
conselheiro do CNE. 2016. Disponível em: <
http://g1.globo.com/educacao/noticia/governo-nao-promoveu-debate-sobre-reforma-
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MENDES JUNIOR, Antônio. Movimento Estudantil no Brasil. Editora Brasiliense:


1981.

PRONZATO, Carlos. Acabou a paz! Isto aqui vai virar o Chile! Escolas ocupadas em
SP. Disponível em:
< https://www.youtube.com/watch?v=LK9Ri2prfNw&list=WL&index=4>. Acesso em
21

19.nov.2016.

Portal do Senado Federal. Lei nº 13.415 de 16/02/2017. Origem: MPV 746/2016.


Autor: Presidência da República. Disponível em:
<http://legis.senado.leg.br/legislacao/DetalhaSigen.action?id=602639>. Acesso em:
27.abr.2017

Portal do Senado Federal. Emenda Constitucional nº 95 de 15/12/2016.Disponível


em: <http://legis.senado.leg.br/legislacao/DetalhaSigen.action?id=540698>. Acesso
em: 27.abr.2017.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª Edição.
Malheiros Editores: 2012.
22

ESTADO VERSUS ALUNOS: OS “VALORES” EM CONFLITO NAS


“OCUPAÇÕES” DE ESCOLAS PÚBLICAS POR ESTUDANTES

Flávio Bento2
Marcia Hiromi Cavalcanti3

Resumo: Em 2016, a proposta de reforma do ensino médio apresentada pelo


Governo Michel Temer gerou uma onda de ocupações de escolas públicas por
estudantes. O clima político tenso, especialmente após o impeachment de Dilma
Rousseff, e tantas outras questões econômicas, políticas, sociais, jurídicas e
educacionais levou a esse tipo de conflito direto entre estudantes e Governo,
envolvendo também, direta ou indiretamente, associações estudantis, professores,
demais trabalhadores da área do ensino, pais de alunos, enfim, toda a sociedade.
Esse conflito, Estado versus Alunos, ganhou espaço nas mídias, seja pelos
“problemas” causados, seja no contexto da discussão da pertinência e “validade” da
reforma proposta em momento político tão conturbado. O objetivo desse estudo é
analisar os argumentos invocados pelas “partes” envolvidas, inclusive os que foram
apresentados em alguns processos judiciais em trâmite perante o Poder Judiciário,
em ações ajuizadas em razão da “ocupação” de escolas públicas por estudantes, e
apresentar os principais “valores” e “direitos” que são apontados pelas partes
envolvidas em defesa de seus interesses. No final, o que se espera é contribuir para
a necessária reflexão sobre os direitos e valores em conflito.
Palavras-chave: Conflito. Movimentos estudantis. Reforma do ensino médio.
Ocupação. Direito.

Introdução

Em 2016, a proposta de “reforma do ensino médio” apresentada pelo Governo


Michel Temer gerou uma onda de ocupações de escolas públicas por estudantes. A
Lei n. 13.415, editada em 16 de fevereiro de 2017, antes tramitando como Medida
Provisória, alterou a Lei de diretrizes e bases da educação nacional e outros textos

2
Universidade Estadual do Norte do Paraná, campus de Cornélio Procópio. Doutor em Educação.
prof.flaviobento@gmail.com
3
Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Filosofia Política e Jurídica.
marciacavalcantibento@gmail.com
23

normativos vigentes.
O clima político tenso, especialmente após o impeachment de Dilma Rousseff,
e tantas outras questões educacionais, políticas, sociais, econômicas e jurídicas
levou a esse tipo de conflito direto entre estudantes e Governos, envolvendo
também, direta ou indiretamente, associações estudantis, professores, demais
trabalhadores da área do ensino, pais de alunos, enfim, toda a sociedade.
O objetivo desse estudo é analisar os argumentos invocados pelas “partes”
envolvidas, inclusive os que foram apresentados em alguns processos judiciais em
trâmite perante o Poder Judiciário do Estado do Paraná, ajuizados em razão da
“ocupação” de escolas públicas por estudantes, e apresentar os principais “valores”
e “direitos” que são invocados pelas partes envolvidas em defesa de seus
interesses.
Alertamos que a questão trazida ao debate é bastante complexa, com
repercussões em direitos e obrigações previstos na ordem civil, constitucional e até
mesmo no Estatuto da Criança e do Adolescente, pela “ocupação” envolver
adolescentes.
O termo “ocupação” significa, como regra, apoderar-se de alguma coisa,
apropriar-se de um bem, tomar o controle de alguma coisa, invadir um lugar ou
espaço e lá permanecer de modo arbitrário. É certo que, para os estudantes, o mais
adequado para a situação tratada neste artigo seria apenas “estar em um espaço”,
ou mesmo até mesmo persistir ou insistir na defesa de seus valores e interesses.
Neste estudo, por uma questão de opção terminológica, utilizaremos a expressão
“ocupação”.

1 Dos “direitos” do Estado

Nas ações que envolvem “ocupação” de escolas públicas por estudantes, a


iniciativa em buscar a intervenção do Poder Judiciário é sempre do Estado, diante
de o fato – a simples “ocupação” dos prédios públicos – em tese, desrespeitar
direitos.
O ato considerado agressivo, como regra, é formalizado em um boletim de
ocorrência lavrado junto à Polícia Civil. Em processo que tramitou na Comarca de
Paranavaí, Estado do Paraná, consta no boletim de ocorrência que:
24

1) os alunos haviam passado correntes com cadeados nos três - portões


que dão acesso ao estabelecimento de ensino; 2) tal movimento surgiu em
virtude da organização aparentemente iniciada pela greve estudantil, no
entanto, por volta das 07h30min, foi observada presença de pessoas
estranhas à escola, as quais estavam fazendo uso de uma caixa de som
com microfone, fazendo uso da palavra; 3) por volta das 07h45 min os
alunos abriram um dos cadeados e adentraram ao estabelecimento, vindo a
tomar por completo a primeira parte do prédio; 4) por duas vezes tentou-se
estabelecer contato com o pessoal do grêmio na tentativa de alertá-los
quanto ao risco de motivação para depredação e quanto a presença de
alunos mais novos que os pais haviam deixado no colégio para as aulas.
(PARANÁ, 2017a)

O principal direito invocado pelo Governo é o direito à posse, e o direito ao


exercício dos poderes conferidos pela posse, no que se refere aos edifícios e
prédios públicos.
O Código Civil estabelece que “considera-se possuidor todo aquele que tem de
fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”
[artigo 1.196] (BRASIL, 2017a)
A posse representa “um poder direto ou imediato sobre a coisa e também
absoluto ou erga omnes4” (COSTA, 1998, p. 109).
O Código Civil estabelece ainda que “o possuidor tem direito a ser mantido na
posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência
iminente, se tiver justo receio de ser molestado” [artigo 1.210] (BRASIL, 2017a).
A legislação prevê, ainda, o direito a “atos de defesa” por quem tem a posse
perturbada [artigo 1.210, parágrafo 1º5] (BRASIL, 2017a), direito que não foi exercido
pelo Estado nas ocupações das escolas públicas – até porque seria inviável e até
mesmo impossível devido às circunstâncias. Esse direito a “atos de defesa”
demonstra que tais ocupações podem chegar a situações de fato extremamente
graves, com confronto entre proprietários/possuidores e “invasores”, como ocorre
nos conflitos agrários.
Além de afetarem o direito a posse, as ocupações interrompem o curso normal
das aulas, interferindo no “direito à educação”, direito de todos os alunos (ocupantes
ou não) e dever do Estado, e interferem no direito de se manterem as atividades
educacionais para os alunos que não concordam, por qualquer motivo, com as

4
Que tem efeito ou vale para todos.
5
“O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força,
contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à
manutenção, ou restituição da posse”.
25

ocupações6.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já decidiu que: “PROCESSO.
Bem público. Escola. Reintegração. Posse. Alunos. Ocupação. Legitimidade
passiva. É esbulho a ocupação de prédio público impeditiva do uso normal para o
qual está legalmente destinado” (SÃO PAULO, 2017).

2 Dos “direitos” dos estudantes

Os alunos, por sua vez, invocam os direitos constitucionais à livre manifestação


e expressão, assegurados na Constituição Federal, mediante a utilização de
protestos e ocupações. Estabelece a Constituição Federal que:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: [...]
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; [...]
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de
obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença; (BRASIL, 2017b)

Em uma das ações pesquisadas (PARANÁ, 2017b), o Poder Judiciário do


Estado do Paraná, em decisão preliminar que depois foi revogada, fundamentou
que:
Com efeito, a liberdade de expressão, consagrada no artigo 5º, incisos IV,
VIII e IX da Constituição Federal, configura-se como condição indispensável
para a democracia, pois assegura a participação livre e igual no processo
de discussão e tomada de decisões e também se presta à proteção das
minorias que não serão submetidas à decisão majoritária sem livremente
expressar seu ponto de vista e o dissenso.

Outro direito invocado pelos estudantes é o “direito de reunião”, previsto no


inciso XVI, artigo 5º, da Constituição Federal: “todos podem reunir-se pacificamente,
sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde

6
“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” [Constituição Federal, artigo 205] (BRASIL,
2017b).
26

que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo
apenas exigido prévio aviso à autoridade competente” (BRASIL, 2017b).
Entidades estudantis criticaram a falta de tempo para um debate mais amplo
sofre a reforma do ensino médio. Em nota publicada sobre o adiamento do Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM) a União Brasileira dos Estudantes
Secundaristas (UBES), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Associação
Nacional dos Pós-graduandos (ANPG) assim se manifestaram:

Reafirmamos com a presente nota a luta contra a MP 746 porque achamos


que a Reforma do Ensino Médio não cabe numa medida provisória,
queremos ser ouvidos para a necessária reforma, queremos o envolvimento
de toda a comunidade acadêmica nesse processo. Queremos que pare a
PEC 241 (agora PEC 55 no senado), pois ela congela os investimentos em
educação e junto inviabilizam o Plano Nacional de Educação. (2017).

Em síntese, a crítica dos estudantes foi pela necessidade de um diálogo mais


prolongado e amplo sobre as reformas, especialmente quanto às mudanças no
“currículo” escolar.

Considerações conclusivas sobre os valores em jogo nas “ocupações” de


escolas públicas

Entendemos que um questionamento deve ser apresentado em favor dos


estudantes no caso em análise: a “ocupação” de escolas públicas deve ser tratada
como uma simples questão de “posse”? Pensamos que não, porque para os alunos
o que está em jogo é a livre manifestação e o protesto contra as mudanças na
legislação federal de ensino – que eles entendem inapropriadas no momento.
O objetivo dos estudantes não é o de exercer o direito de posse sobre um bem
do Estado, nem de questionar esse direito que o Estado detém. Tratar as
“ocupações” de escolas públicas como um simples conflito possessório é
desconsiderar, sem razão, todos os aspectos jurídicos que motivaram a “ocupação”,
especialmente o direito de resistência, de protesto, de livre manifestação, dentre
outros que podem ser invocados.
Em decisão preliminar, o Poder Judiciário do Estado de Goiás, em questão de
âmbito estadual (decisão do Governo Estadual de transferir a gestão das escolas
públicas estaduais para as organizações sociais), considerou a “ocupação” de
27

escolas por estudantes como um legítimo movimento de protesto, desde que


pacífica:

A comunidade brasileira vive novos tempos democráticos. As manifestações


de 2013 que se prolongaram até os dias atuais obriga o Poder Público
(inclusive o Judiciário) ao reconhecimento da legitimidade dos movimentos
sociais e de protesto, com sua pauta e voz.
Querer transformar o movimento de ocupação das escolas em questão
jurídica é, com absoluto respeito, uma forma incorreta de compreender a
dimensão do problema. [...]
A judicialização é fato relevante e atualmente o Poder Judiciário tem sido
protagonista dos maiores embates éticos da nação, mas não é a
judicialização a única nem a principal forma de manifestação da sociedade.
Protestos pacíficos, passeatas e ocupações de prédios públicos também
devem ser reconhecidos como meios de manifestação legítimos que devem
levar ao diálogo e à interpretação de que todo o poder emana do povo e
para ele deve ser exercido. (GOIÁS, 2017).

É importante destacar, entretanto, que “ocupações” em edifícios estaduais ou


municipais, quando o protesto se refere à medida a ser adotada na esfera federal,
mostram-se pouco eficazes e até mesmo sem razoabilidade. Tanto que no caso em
análise, a Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, foi sancionada, e o Governo do
Estado nada pôde fazer quanto a isso, porque se trata de ato (edição de lei de
competência federal) que não está dentro da sua competência fixada na
Constituição Federal.
Outro aspecto seria a aplicação de lei editada pelo Congresso Nacional,
naquilo que pode ser decidido pelas políticas educacionais estaduais. Nesse
contexto, editada a lei federal, os estudantes poderiam reivindicar um diálogo mais
amplo com o Governo Estadual, e apresentar suas propostas e reivindicações.
Ainda em favor dos alunos, pesa a postura destes em defender o direito à
educação de forma ampla. A “ocupação” das escolas pode ter tido como motivo
atual o desconforto causado pela “apressada” proposta de “reforma do ensino
médio”, mas a luta pelo direito à educação é mais ampla e envolve vários aspectos.
Essa perspectiva já foi observada por Carmen Sylvia Vidigal Moraes e Salomão
Barros Ximenes, nos debates, no final de 2015, entre estudantes Rede Estadual de
São Paulo contra a “Reorganização Escolar” imposta pelo governo estadual de
Geraldo Alckmin:

[...] os alunos - apesar da precarização das condições de ensino e trabalho


28

nas escolas - mantêm uma relação positiva com a escola pública, nela
reconhecem um fundamental espaço de aprendizagem e de sociabilidade, e
por isso se mobilizaram para salvá-la. Lutaram contra a precarização do
ensino; contra a falta de bibliotecas, de laboratórios destinados ao ensino
das ciências e das artes, de espaços para desenvolvimento do esporte e
das atividades artísticas; mobilizaram-se contra a jornada excessiva e o
baixo salário de seus professores, a ausência de tempo destinado às
atividades lúdicas e culturais; denunciaram a baixa qualidade da
alimentação que lhes é servida. Enfim, reinvindicaram o direito
constitucional à universalidade de uma educação de base de igual
qualidade, comum a todos os brasileiros, com respeito à diversidade de
posições e de interesses de estudantes, professores e comunidades.
7
(2016)

Em favor do Estado – não de suas ações – surge a ideia do abuso de direito:


“também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé
ou pelos bons costumes” [artigo 187, Código Civil] (BRASIL, 2017a).
Na doutrina, destacamos a lição de Silvio Rodrigues:

o abuso de direito ocorre quando o agente, atuando dentro das


prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe concede, deixa de considerar
a finalidade social do direito subjetivo, e, ao utilizá-lo desconsideradamente,
causa dano a outrem. Aquele que exorbita no exercício de seu direito,
causando prejuízo a outrem, pratica ato ilícito, ficando obrigado a reparar.
Ele não viola os limites objetivos da lei, mas, embora os obedeça, desvia-se
dos fins sociais a que esta se destina, do espírito que a norteia. (1994)

Os estudantes possuem o direito à livre manifestação, o direito de se reunirem


pacificamente para protestarem. A questão é considerar se esse direito justifica a
“ocupação” de prédios públicos, com a interrupção das aulas que prejudica outros
alunos que não concordam com as manifestações e que preferem prosseguir com
seus estudos sem interrupção.
Em muitas situações as “ocupações” ocorrem com danos ao patrimônio
público, geralmente danos de pequena monta. E existem os danos relacionados com
o atraso nas atividades educacionais pela ausência das aulas regulares, o atraso no
calendário acadêmico etc.
Consideramos, ainda, que ante as características desse conflito, a melhor
solução na esfera judicial – e obviamente na esfera social e política – seria a

7
Nesse artigo os autores indicam dois outros trabalhos que estudaram o conflito de ocupação de
escolas públicas por alunos no Estado de São Paulo: “Ocupar e resistir: a insurreição dos estudantes
paulistas”, de Ana Paula Corti, Maria Carla Corrochano e José Alves da Silva, e “Escolas de luta,
educação política: reflexões sobre o sentido da ocupação das escolas públicas no Estado de São
Paulo”, elaborado por Carolina Catini e Gustavo Mello (MORAES, XIMENES, 2016).
29

negociação entre as partes envolvidas, e essa é uma das opções que o Poder
Judiciário pode adotar desde o início, antes de decidir por qualquer medida de força,
como a reintegração imediata, geralmente conduzida com apoio policial. A busca da
conciliação é um dos princípios do direito processual moderno.
Nesse contexto, cabe ao Poder Judiciário traçar orientações justas para a
solução do embate, considerando que estamos diante de um evidente conflito de
direitos, no qual deve prevalecer o princípio da razoabilidade.
As poucas ações judiciais pesquisadas neste estudo, entretanto, não nos
permitem apresentar uma posição segura como solução do problema. Há evidente
divergência em decisões de primeiro e segundo graus (juízes das comarcas e
desembargadores dos tribunais), ora a favor da reintegração de posse, ora
considerando válida a “ocupação” como exercício do direito de livre manifestação de
parcela da sociedade. Essa divergência entre decisões do Poder Judiciário também
ocorreu no Estado de São Paulo no ano de 2015, quando das “ocupações” que
combatiam a reorganização da rede de escolas que previa o fechamento de 94
unidades e o remanejamento de alunos de outras 754 unidades:

A reação do governo estadual não tardou, com intensa mobilização de seu


aparato judicial e policial. Os pronunciamentos oficiais sobre o movimento e
a primeira decisão judicial - que concedeu o pedido de reintegração de
posse na noite do dia 12 de novembro [...].
Um conjunto de decisões no âmbito do Judiciário acabou acarretando a
suspensão da reintegração de posse das escolas ocupadas, o que também
contribuiu para fortalecer o processo de ocupações. E, finalmente, no dia 04
de dezembro, o governador suspendeu a reorganização. (CORTI,
CORROCHANO, SILVA, 2016).

Mais do que jurídica, a questão é social e política, e comungamos que decorre


do “perfil conservador e autoritário das recentes propostas de reformas
educacionais” (MORAES, XIMENES, 2016).
Fica aqui, entretanto, a importância do diálogo e dos debates sobre esse
evidente conflito de direitos.

Referências

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 19 jun.
2017a.
30

BRASIL. Constituição de República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em: 19 jun. 2017b.

CORTI, Ana Paula de Oliveira, CORROCHANO, Maria Carla, SILVA, José Alves da.
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v. 37, n. 137, Campinas, out./dez. 2016. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
73302016000401159&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 19 jun. 2017.

COSTA, Dilvanir José da. O sistema da posse no Direito Civil. Brasília a. 35, n.
139, jul./set. 1998. Disponível em:
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GOIÁS. Poder Judiciário do Estado de Goiás. Tribunal de Justiça do Estado de


Goiás. 15 de dezembro de 2015. Disponível em:
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MORAES, Carmen Sylvia Vidigal; XIMENES, Salomão Barros. Políticas


educacionais e a resistência estudantil. Educação & Sociedade, v. 37, n. 137,
Campinas, out./dez. 2016. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
73302016000401079>. Acesso em: 19 jun. 2017.

PARANÁ. Poder Judiciário do Estado do Paraná. Comarca de Paranavaí. Autos n.


0016829-77.2016.8.16.0130. Ação de reintegração de posse. 2017a.

PARANÁ. Poder Judiciário do Estado do Paraná. Comarca de Ponta Grossa. Autos


n. 0027027-21.2016.8.16.0019. Ação de reintegração de posse. 2017b.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral. 24 ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,
1994.

SÃO PAULO. Poder Judiciário do Estado de São Paulo. Tribunal de Justiça do


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Disponível em:
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<https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=OCUPA%C3%87%C3%83O+
DE+PR%C3%89DIO+P%C3%9ABLICO>. Acesso em: 19 jun. 2017.
31

O DIREITO DE PARTICIPAÇÃO DOS ESTUDANTES NA UNIVERSIDADE:


ANÁLISE DA LEI ESTADUAL PARANAENSE N. 14.808/2005 E DA ADI 3757

Caroline Rocha Delmonico8


Isabella Alonso Panho9

Resumo: Trata-se, o presente artigo, de discussão a respeito da iminente ameaça à


permanência no mundo jurídico da lei estadual paranaense n. 14.808/2005, que
protege as representações estudantis nas instituições de ensino superior do estado
do Paraná. A Confederação de Instituições Privadas de Ensino superior ajuizou,
perante a Corte Constitucional, Ação Declaratória de Inconstitucionalidade da Lei, o
que implica algumas discussões sobre qual a realidade da representação estudantil
nos cursos de direito de Londrina e região, bem com a importância da legalidade em
tal circunstância.
Palavras-chave: movimento estudantil, Lei n. 14.808/2008, ADI 3757

Abstract: The presente essay approaches about the imminet threat above the
existence of the n. 14.808/2005 Parana’s state law, wich protects the student’s
representatios rights in all the universities of the state. The Private Universities
Confederation proposed to the Constitucional Court a direct action of
unconstitutionality, whats brings some important discussions about the reality of the
student’s representation in the law graduations in Londrina and above, just as the
legacy in this situation.
Key words: student’s representation, Law n. 14.808/05, ADI 3757

Introdução

A participação estudantil nos espaços institucionais das instituições de ensino


superior, bem como a existência dos órgãos de representação da categoria, no
Estado do Paraná, encontra-se positivada na Lei n. 14.808/2008. Contudo, como

8
Acadêmica do 5º ano do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. E-mail:
caroline.delmonico@hotmail.com
9
Advogada, formada em direito pela Universidade Estadual de Londrina; pós-graduanda do curso de
Especialização em Direito do Estado da Universidade Estadual de Londrina. E-mail:
isabella.alonso17@gmail.com
32

todas as concessões estatais para a proteção de direitos, tal disposição esbarra na


propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade por meio do setor privado de
educação.
Em momentos de crise política e barbárie institucionalizada, o cenário de
representação estudantil não é dos melhores. Analisando-se o panorama
institucional das representações no âmbito dos cursos de direito de Londrina e
região, o que se observa é que, ainda que sob a égide da lei, a maioria das
instituições ainda não possui representação discente organizada dentre os cursos de
direito – recorte com o qual trabalha o presente estudo –, sobretudo nas instituições
privadas.
Tal análise permite uma série de problematizações, a começar pela crise que a
retirada da proteção conferida pela Lei n. 14.808/08 pode causar, até o
questionamento acerca da sua real efetividade na legitimação e na construção do
movimento estudantil – por meio de um paralelo com a institucionalização dos
movimentos sociais, cuja autonomia e autenticidade muitas vezes é cassada pelos
atos de legalização e institucionalidade.

1 Aspectos jurídicos da lei estadual n. 14.808/2005 e da adi 3757

1.1 A lei estadual paranaense n. 14.808/2005

O Projeto de Lei Estadual n. 48/2005, que, aprovado, culminou com a Lei


14.808/2005 (PARANÀ, 2005), é de autoria do ex-Deputado Estadual Natálio Stica
(à época filiado ao Partido dos Trabalhadores – PT) e foi proposto em 24 de
fevereiro de 2005, sob a justificativa de garantir ao movimento estudantil a livre
organização política dentro da Universidade.
O projeto foi aprovado sem modificações pela Comissão de Constituição e
Justiça; Comissão de Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia e
Comissão de Redação. Ao final, no dia 21 de junho de 2005, foi aprovado em sua
redação final, sendo a lei publicada em 28 de julho de 2005.
É importante salientar que, em termos de leis que protegem o movimento
estudantil, especificamente, há apenas a Lei federal n. 7395 de 1985 (BRASIL,
1985), que reconhece e institucionaliza a UNE – União Nacional dos Estudantes
como representação máxima dos estudantes a nível nacional, as UEEs – Uniões
33

Estaduais dos Estudantes como representação a nível estadual e, a nível das


Universidades, o DCE – Diretório Central dos Estudantes, como representação
discente geral, e os Centros ou Diretórios Acadêmicos como representação de
curso. Frise-se que, na época do regime militar, a UNE foi considerada ilegal
(SANTOS, 2009). Contudo, a referida lei traz disposições generalizadas, não sendo,
ainda, suficiente para garantir e assegurar a participação dos estudantes nas
instituições de ensino superior.
Assim, a Lei Estadual n. 14.808/05 do Paraná apresenta-se como uma medida
de prestação positiva do Estado10 que garante aos estudantes tanto o espaço físico
quanto o espaço nos Conselhos Consultivos e Fiscais (art. 3º, III) nas suas
respectivas instituições de ensino superior.
Em seus dispositivos, estabelece o direito à livre organização aos órgãos de
representação estudantil – Centros Acadêmicos (CAs), Diretórios Acadêmicos (DAs)
e Diretórios Centrais dos Estudantes (DCEs) –, na incumbência de representar os
interesses e expressar os pleitos dos alunos (art. 1º), sendo a definição de suas
formas, critérios de organização, estatutos e demais questões de competência
exclusiva discente (art. 2º).
Protege, ademais, o direito a que cada uma dessas entidades possua um
espaço físico nas dependências da instituição (art. 3º), preferencialmente junto ao
prédio correspondente ao curso (art. 4º), de modo que seja possibilitado o fácil
acesso dos alunos ao seu Centro Acadêmico correspondente (UNE, 2017) 11.
Em termos de liberdade de expressão, a Lei 14.808/05 estabelece também que
os CAs, DAs e DCEs tenham direito à livre divulgação de seus jornais e publicações,
bem como acesso às salas de aulas e demais espaços frequentados pelos
estudantes.
Além dos espaços nos Conselhos Consultivos e Fiscais, também garante aos
órgãos representativos estudantis acesso à metodologia da elaboração das planilhas
de custos das instituições, de modo que se possa acessar a forma como se

10
Nota explicativa: Há direitos que, para que se concretizem, pressupõe que o Estado se abstenha, a
passo que, há outros que necessitam que o Estado de alguma forma aja para que possam ser
respeitados. Oportunamente, tratar-se-á desse assunto neste trabalho.
11
Nota explicativa: Apenas a título de esclarecimento, as diferenças entre Centro Acadêmico (CA),
Diretório Acadêmico (DA) e Diretório Central dos Estudantes (DCE) residem na quantidade de cursos
que representam. O CA representa os alunos de apenas um curso, o DA representa os alunos de
dois cursos ou mais de uma mesma área (por exemplo, um DA poderia abranger os cursos de
jornalismo e relações públicas, ambos da área de comunicação social) e o DCE representa todos os
estudantes de uma instituição de ensino superior.
34

conduzem financeiramente.
Por fim, em seu penúltimo artigo (art. 5º), estabelece a Lei que as instituições
privadas de ensino superior, descumprindo as disposições legais então
estabelecidas, sujeitam-se à aplicação de multa cujo valor reside entre R$ 5.000,00
(cinco mil reais) e R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).

1.2 A ADI 37572

Diante dos preceitos estabelecidos pela vigência da Lei Estadual n.


14.808/05, a Confederação Nacional dos Estabelecimentos Privados de Ensino –
CONFENEN ajuizou, perante a Corte Constitucional, a Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) n. 3757, visando obter a sua completa retirada do mundo
jurídico.

Primeiramente, a CONFENEN inicia sua tese fundamentando-a na ideia de


que seria próprio do movimento estudantil – em que pese, por um lado, reconhecer
seu relevante papel nas lutas da história brasileira – surgir pela iniciativa dos
estudantes e contra a vontade das autoridades respectivas. Ademais, ressalta que,
com a tutela prevista pela Lei paranaense 14.808/05, o movimento “deixa de ser
estudantil, para se tornar uma iniciativa do Estado”.

Em seguida, evoca que a Lei questionada legisla sobre matérias que não
seriam de competência do Estado do Paraná. Assim aduz, fundamentando-se nos
artigos 22, inciso XXIV e 211, parágrafos 1º e 3º da Magna Carta (BRASIL, 1988),
segundo os quais a competência para legislar sobre diretrizes e bases da educação
é privativa da União, bem como seria de atribuição desse mesmo ente a
organização do sistema federal de ensino, ao qual as instituições privadas
pertencem – o que respalda também com fundamento no art. 16 da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação (BRASIL, 1996).
Conforme traz a Confederação, a Lei n. 14.808/05 seria eivada de vício de
competência quando da sua elaboração, vez que o legislador paranaense estaria
invadindo a competência de outro ente federativo.
35

Em consequência, evoca o art. 20712 da Constituição a fim de trazer à baila o


princípio da autonomia universitária, o qual, ao que argumenta, seria ferido pela Lei
questionada em sede de ADI, uma vez que as disposições normativas que obrigam
as instituições de ensino a fornecer espaço físico e acesso à metodologia de
elaboração de planilhas de custos seria uma ofensa à autonomia das instituições de
ensino superior em se autogerir.
A CONFENEN também sustenta sua tese argumentando que a Lei
paranaense n.14.808/05 vai de encontro ao princípio da livre iniciativa, disposto
tanto no texto constitucional (artigos 1º, IV; 170 e 209 da Constituição), quanto na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (art. 7º, o qual assim versa: “O ensino é livre
à inciativa privada, atendidas as seguintes condições: [...] I – cumprimento das
normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino” 13).
Finaliza arguindo que a Lei Estadual 14.808/05 do Paraná afronta os
princípios da razoabilidade e da igualdade14. No que diz respeito ao primeiro, é
oportuno o seguinte excerto, que resume os argumentos utilizados:

Com efeito, há instituições de ensino superior que oferecem quase uma


centena de cursos, propiciando a criação de Centros Acadêmicos e Diretórios
Acadêmicos na mesma quantidade. O que está a se impor, portanto, é que os
conselhos fiscais e consultivos de algumas instituições de ensino sejam
formados até por centenas de pessoas, transformando-os em verdadeiras
assembleias. [...] o mesmo se diga para a instalação dos Centros Acadêmicos
[...] A obrigatoriedade do fornecimento de salas nesta quantidade acarretará
um aumento de cursos que certamente serão repassados para as
mensalidades.

No que tange, por vez, à questão de que haveria ofensa ao princípio da


igualdade, fundamenta-se na distinção que traz o artigo 5º da Lei 14.808/05: a multa
de cinco a cinquenta mil reais quando do descumprimento de qualquer disposição

12
Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão
financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e
extensão.

13
Importante ressaltar demais incisos do art. 7º da Lei de Diretrizes e Bases:
Art. 7º O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
I - cumprimento das normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino;
II - autorização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo Poder Público;
III - capacidade de autofinanciamento, ressalvado o previsto no art. 213 da Constituição
Federal.
14
Nota explicativa: A igualdade é um princípio constitucional previsto como um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil (art. 2º da Constituição Federal. O princípio da razoabilidade, por sua
vez, não encontra previsão constitucional expressa, sendo uma construção doutrinária e
jurisprudencial em face da prática de atos autoritários pelo Estado.
36

da referida norma caberia apenas às instituições privadas de ensino superior.


Seguindo-se o regular trâmite processual da ADI, nos autos foi dado vista ao
Governador e a Assembleia Legislativa do Estado do Paraná (ALEP) a fim de que
prestassem suas declarações, uma vez que foram os órgãos prolatores da lei
questionada.
Ambas posicionam-se pela sua constitucionalidade, tendo em vista, sobretudo,
que as entidades estudantis, além da função representativa, exercem significativo
papel de fiscalização das instituições, aduzindo ser notório que muitas instituições,
sobretudo as privadas, além de não oferecerem amparo para as instituições político-
representativas estudantis, frequentemente obstam, dificultam e até mesmo proíbem
a sua formação.
Tal é a posição, ipsis litteris, adotada pela ALEP quanto à questão da
necessidade ou da prescindibilidade de tutela do movimento estudantil por ações
estatais:

Quer nos parecer que a adoção do presente remédio processual foi eleita
como medida de precaução na eventualidade de virem a ser descumpridas
normas advindas justamente para propiciar um amparo ao movimento
estudantil, luta travada igualmente há longa data, permitindo uma
participação absolutamente democrática nas decisões que lhe afetam
diretamente, como incentivo ao exercício da cidadania, amparado
constitucionalmente.

Sobre a questão da livre iniciativa ao setor privado, princípio


constitucionalmente protegido15, sustenta que seria um pressuposto que as
entidades privadas se adequem às normas e requisitos estabelecidos pelo Estado, o
que em nada feriria a sua liberdade de exercício.
Frisa, ademais, a ALEP, que a Lei n. 14.808 seria uma forma de assegurar o
exercício democrático e de garantir a livre organização política do movimento
estudantil, ponto que seria fundamental para o devido exercício do direito à
educação.
Em contrapartida, o Advogado Geral da União, o Ministério Público Federal
(MPF) e o Ministro Relator da ADI, Dias Toffoli, posicionam-se no mesmo patamar,

15
Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:

I - cumprimento das normas gerais da educação nacional;


II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. (BRASIL, 1988)
37

pela procedência dos pedidos contidos na exordial da ação.


Desta forma, o Advogado-Geral da União concluiu que o ideal seria o
julgamento pela inconstitucionalidade parcial da lei, apenas no que tange à inclusão
das instituições particulares, mantendo-se a vigência da Lei Estadual paranaense n.
14.808/05 em relação às instituições de ensino superior públicas do Estado do
Paraná, a passo que o MPF, por sua vez, fundamenta-se primordialmente no fato de
que a Lei n. 14.808/05 feriria, em tese, a iniciativa privada e a autonomia
universitária, pugnando pela integral procedência dos pedidos da ADI.

1.2.1 Voto Min. Relator Dias Toffoli

Na primeira sessão de julgamento da ADI, o Ministro Relator Dias Toffoli


prolatou voto, ainda não publicado, de procedência do pedido liminar de suspensão
da Lei n. 14.808/05, anuindo, desta forma, com todos os argumentos postulados
pela CONFENEN na petição inicial.
Finalizando seu voto, Dias Toffoli teria argumentado que a Lei Estadual 14.808
é materialmente inconstitucional, por ferir a autonomia administrativa e financeira
das instituições de ensino superior. Ademais, qualifica a participação dos órgãos
político-representativos dos estudantes nos conselhos consultivos e fiscais de
“intromissão indevida” e qualifica o direito à voz em sala de aula como “impróprio”.
Afirma, ainda, que seu entendimento não seria denegatório da liberdade de
expressão.
Em que pese o voto do Min. Relator Dias Toffolli, no sentido de julgar
integralmente procedente o pedido, a medida cautelar de suspensão da lei só pode
ser julgada pela maioria absoluta dos membros do STF, nos termos do art. 10 da Lei
n. 9868/99 (Lei da ADC e ADIn) (BRASIL, 1999), razão pela qual a Lei Estadual n.
14.808/05 permanece vigente enquanto não houver decisão na ADI 3757 que
determine o contrário.
Tendo em vista que a sessão foi interrompida por pedido de vista dos autos
pelo Min. Luiz Roberto Barroso – com quem os autos, ainda físicos, estão desde
15/02/2015 –, o voto do Relator não foi ainda publicado. É possível, contudo, ter
acesso ao conteúdo do voto, disponibilizado nas notícias do site do STF (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, 2015).
38

2 Considerações sobre o mérito da questão

A região de Londrina, no norte do Paraná, possui ao todo 9 (nove) instituições


de ensino superior que ofertam cursos de direito. A única pública é a Universidade
Estadual de Londrina. As demais instituições, todas privadas, são: Pontifícia
Universidade Católica do Paraná – campus Londrina; Faculdade Pitágoras
(pertencente ao Grupo Kroton); Universidade Norte do Paraná (Unopar), também
pertencente ao Grupo Kroton; Faculdade Arthur Thomas – FAAT; Faculdade Norte
Paranaense – Uninorte (hoje Unilondrina); Faculdade Catuaí; Faculdade
Paranaense de Rolândia – Faccar; e Universidade Filadéldia – Unifil.
No intuito de se obter um panorama ilustrativo de como tem sido exercido o
direito de representação dos estudantes das instituições de ensino superior de
Londrina e região foi fixado um parâmetro objetivo para possibilitar a comparação
entre as universidades: a existência de órgão representativo estudantil (centro
acadêmico).
Poder-se-ia pesquisar a presença ou não de órgãos representativos estudantis
em todos os cursos e à nível de instituição. Contudo, de modo a delimitar a
discussão e afunilá-la em torno da realidade do ramo ao qual pertence esse
trabalho, optou-se por tratar tão somente da representação estudantil nos cursos de
Direito. Apenas excluiu-se desta pesquisa a Universidade Estadual de Londrina,
instituição à qual pertencem as autoras deste trabalho, cuja representação discente
será abordada mais a frente dessa discussão.
A primeira tentativa de contato foi realizada em 25 de agosto de 2015. Foi feito
contato telefônico com todas as instituições de ensino superior acima listadas. Uma
vez explicado objetivo da coleta de informações, foi solicitado algum contato com o
coordenador do curso de Direito. Apenas PUC, FAAT, Unifil e Uninorte forneceram
os contatos (e-mails) de seus coordenadores e apenas a Unifil permitiu contato
telefônico direto com o coordenador do curso. As demais instituições (Faculdade
Pitágoras, Unopar, Faculdade Catuaí e Faccar) alegaram a ausência da
coordenação no momento.
Aos coordenadores que forneceram seus contatos, foi enviado um e-mail
simples, questionando se na instituição haveria ou não centro acadêmico ativo no
curso de Direito. Nessa primeira tentativa, apenas a Unifil respondeu, no dia
seguinte, 26 de agosto de 2015, informando que existe Centro Acadêmico ativo, com
39

participação nas reuniões de colegiado de curso, programadas para ocorrer 6 (seis)


vezes ao ano. Não foi possível, até a conclusão deste trabalho, obter mais
informações quanto ao CA de Direito dessa instituição.
Em seguida, foi realizado novo contato com as instituições das quais não se
obteve resposta (Faculdade Pitágoras, Unopar, Faculdade Catuaí, Faccar, PUC,
FAAT, e Uninorte) no dia 28 de setembro de 2015. Novamente, foi primeiro realizado
contato telefônico, sendo que forneceram o contato dos coordenadores do curso de
direito as seguintes instituições: PUC, Faculdade Pitágoras, FAAT, Faculdade
Catuaí e Faccar. Apenas na Faculdade Catuaí, nesta data, foi possível contato direto
com o coordenador do curso. Não foi possível obter nenhum contato das instituições
Unopar e Uninorte.
Feito esse segundo contato, foram enviados e-mails às coordenações dos
cursos de direito da PUC, Pitágoras, FAAT, Faculdade Catuaí e Faccar. As
instituições PUC e Faculdade Pitágoras não responderam até a conclusão do
trabalho de conclusão de curso apresentado por uma das autoras.
A FAAT respondeu no mesmo dia, informando que a instituição não possui
centro acadêmico ativo no curso de direito, mas que, contudo, existe uma
articulação entre os estudantes para que houvesse, no futuro, um CA. No mais, a
faculdade informou que existe participação discente no colegiado de curso, cujos
estudantes que dele participam o fazem por meio dos representantes de sala.
Contudo, uma das autoras deste trabalho, na qualidade de ex-diretora do Centro
Acadêmico 7 de Março, do curso de Direito da UEL, já foi procurada por alunos do
curso de Direito da FAAT que intencionam fundar um CA na instituição.
Por sua vez, a Faculdade Catuaí respondeu no dia seguinte, 29 de setembro
de 2015, informando que não há, ainda, órgão representativo estudantil do curso de
direito na instituição, mas que, como forma de garantir de alguma forma a
participação dos discentes, viabiliza reuniões mensais dos representantes de turma
com a coordenação do curso para que sejam discutidos assuntos de ordem
acadêmica. Contudo, uma das autoras deste trabalho, na qualidade de ex-diretora
do Centro Acadêmico 7 de Março, do curso de Direito da UEL, já foi procurada por
alunos da Faculdade Catuaí que intencionam fundar um CA na instituição.
A coordenação do curso de direito da FACCAR também respondeu no mesmo
dia, informando sobre a existência do Centro Acadêmico Treze de Março, que
exerce a função representativa dos estudantes de curso. Em algumas visitas
40

realizadas à instituição, novamente em função das atividades de uma das autoras


relacionadas ao CA de direito da UEL, foi possível observar que o centro acadêmico
da FACCAR frequentemente realiza campanhas de arrecadação, palestras, viagens
acadêmicas para os alunos, agindo com amparo e ao lado da coordenação.
A respeito das instituições Faculdade Pitágoras e PUC, quanto à primeira não
foi possível obter nenhuma notícia de que haja alguma espécie de articulação dos
discentes. Já a respeito da PUC, em que pese a ausência de resposta de sua
coordenação, sabe-se que o curso de direito possui, a título de órgão representativo,
o Centro Acadêmico Seis de Dezembro. Não foi possível obter informações a
respeito do seu exercício de representação nos conselhos e órgãos deliberativos da
PUC, contudo, é uma instituição bastante ativa, que frequentemente promove
debates, atividades acadêmicas, semanas jurídicas, etc 16.
Por fim, quanto às instituições com as quais não foi possível estabelecer
contato (Uninorte e Unopar), não tiveram as autoras acesso a nenhum indício de
que haja alguma organização estudantil.
Sabe-se que o curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina conta
com o Centro Acadêmico 7 de Março (CASM), fundando na década de 60 junto com
a graduação. O CASM, apesar de todas as dificuldades que enfrenta, ainda vive
uma realidade privilegiada em relação às demais instituições: possui uma sala
ampla, na entrada do Centro de Estudos Sociais Aplicados (CESA), prédio em que
se localizam as salas de aula do curso de Direito.
A legislação da UEL prevê, em seu Regimento Geral, que os estudantes
devem ocupar, no mínimo, 15% das cadeiras nos departamentos e colegiados.
Desta forma, o Centro Acadêmico 7 de Março ocupa 7 (sete) cadeiras no
departamento de direito público, 3 (três) cadeiras no departamento de direito privado
e 2 (duas) cadeiras no colegiado do curso, espaços nos quais tem direito a voz e
voto, podendo influir e participar das decisões atinentes à rotina do curso de direito
da instituição.
Desta forma, das 8 (oito) instituições privadas de ensino superior de Londrina e
região, foi possível estabelecer contato com a coordenação de curso de 6 (seis)
instituições (PUC, Faculdade Pitágoras, FAAT, Faculdade Catuaí, FACCAR e Unifil)

16
Interessante observar a página do facebook do Centro Acadêmico de Direito da PUC
Londrina. Em que pese ser um meio informal de comunicação, é um espaço onde suas
atividades são divulgadas. https://www.facebook.com/casd.puc
41

sendo que, destas, 4 (quatro) responderam (FAAT, Faculdade Catuaí, FACCAR e


Unifil).
No total, pode-se concluir que possuem centro acadêmico ativo apenas três
das oito instituições: PUC, FACCAR e Unifil. A FAAT e a Faculdade Catuaí, em que
pese a inexistência de órgão representativo estudantil, de alguma forma viabilizam a
participação de estudantes nos seus órgãos colegiados. A instituição que mais se
aproxima do que estabelece a Lei Estadual n. 14.808/05 é a Universidade Estadual
de Londrina, única pública da região.

2.1 Considerações jurídicas sobre a eficácia e a validade da Lei n. 14.808/05

Em que pese haja dados prejudicados, tendo em vista o ideal que a Lei
Estadual paranaense n. 14.808/05 prevê e a realidade que se apresenta, é bastante
claro que o movimento estudantil nas universidades carece de maior fomento. Frise-
se, ademais, que o quadro que se apresenta é demasiado deficitário diante da
vigência da Lei 14.808/05 – verifica-se que a lei é válida e vigente mas carece de
eficácia.
Apenas a título de reflexão, a validade é o vínculo estabelecido entre a
proposição jurídica e o sistema de Direito posto, a passo que a vigência representa a
obrigatoriedade de observância da norma (COUTO, 2014, p. 7-12). Assim, a Lei
14.808/05 é válida e vigente. Contudo, por que se observa que ainda há instituições
de ensino superior que não possuem Centro Acadêmico ativo e institucionalizado?
Assim se explica – dentre vários outros fatores que também corroboram para
tal quadro – pela ausência de eficácia da norma, que se traduz na sua “idoneidade
para provocar [...] as reações prescritas no seu consequente ou no ordenamento
jurídico” (COUTO, 2014, p. 7-12). A Lei em apreço, vigente e válida, carece de
mecanismos que a tornem mais eficaz, a fim de que, um dia, todas as instituições de
ensino superior, públicas e privadas, possam ter uma representação discente forte e
operante.
A universidade, em decorrência das crescentes privatizações – que acabam
também por influenciar as instituições públicas – e do crescente desvio de sua
finalidade, vem transformando-se em organização social em vez de instituição
social, conceito trazido pela professora Marilena Chaui (CHAUI, 2003) em seus
estudos sobre a função da Universidade. As organizações são práticas sociais
42

determinadas de acordo com sua instrumentalidade, sendo que não se ocupam de


responder às contradições, mas sim de atingir metas e dados de produção para
formar profissionais aptos ao mercado e ao próprio mercado poderem melhor
atender.
Ao contrário, as universidades, conforme traz, deveriam manter-se como
instituições sociais – que têm a sociedade como seu princípio e referência normativa
e valorativa. Na instituição social é fundamental que haja o debate sobre a sua
própria existência, sobre planejamento, gestão, autonomia, seu lugar na luta de
classes. Esses debates, para as organizações (que são, como coloca Marilena
Chaui, administrações, no sentido mercadológico da expressão), não existem, pois
são dados de fato, informações prontas e já colocadas sobre a qual não cabe
reforma ou discussão (CHAUI, 2003).
O direito à participação, por outro lado, é uma decorrência dos direitos
fundamentais de segunda dimensão, o qual, quanto mais influente se torna o
poderio econômico nas decisões políticas e sociais, mais tem necessidade de ser
exercido. Sua consolidação plena pressupõe a satisfação de uma série de
“pressupostos de índole econômica, política e jurídica” (MENDES; BRANCO, 2012,
p. 756), por meio de ações positivas do Estado – quais sejam, medidas que visem
garantir pressupostos materiais que criem condições do exercício do direito em
apreço.
A garantia da participação nas instituições de ensino superior é medida
fundamental para que se não absorvam, aos poucos, as características das
organizações sociais, sob pena de reproduzir dentro de si ambientes em que “Quem
sabe comanda quem não sabe. Quem sabe comanda e quem não sabe obedece,
não tem voz, não pode manifestar sua opinião, mesmo quando o assunto diz
respeito à qualidade de suas vidas.” (GADOTTI, 2014).
A Lei Estadual n. 14.808/05 do Paraná é um mecanismo estatal, uma espécie
de ação positiva, que obriga ao respeito do princípio democrático e da participação
popular – consubstanciada na institucionalização de uma categoria mais específica,
no caso, dos estudantes – dentro do ambiente das instituições de ensino superior.
As universidades, instituições de ensino superior, devem ser locais que
priorizem a construção democrática, que fomentem a “inclusão social, a cidadania,
[...] a valorização e efetivação dos direitos fundamentais” (BAGGIO, 2007), no intuito
de concretizar um ambiente mais justo e solidário.
43

A importância destes apontamentos ultrapassam as questões meramente


formais do academicismo. Eles tocam em uma pedagogia ideologicamente pautada
no modelo capitalista, que tende a preterir os direitos sociais conquistados a altos
custos17, no intuito de impedir o debate e reflexão para que comportamentos
contrários a este sejam adotados e os direitos fundamentais sejam realmente
efetivados.
A representação discente possibilita o enriquecimento intelectual e social em
razão da participação do alunado na estrutura acadêmica – âmbitos de Ensino,
Pesquisa e Extensão – por exemplo, através dos debates da estrutura curricular de
um curso de nível superior, nas políticas de estágios, iniciação científica, ensino a
distância, projeto político pedagógico dos cursos, acesso e permanência dos
próprios alunos na instituição.

Conclusão

O que se vê, pela Lei Estadual do Paraná n. 14.808/05, é uma módica tentativa
de concretizar valores constitucionais como democracia, participação e acesso à
administração pública, ao institucionalizar e proteger a representação discente nas
instituições de ensino superior.
Por ora, não é possível saber qual desfecho Luis Roberto Barroso.
Contudo, deve-se pensar: se na vigência da Lei n. 14.808/05 já se observa, ao
menos na amostra dos cursos de Direito de Londrina e região, que a maioria dos
cursos não possui representação legal institucionalizada, a retirada da lei do mundo
jurídico por meio do julgamento procedente da ADI extinguiria de vez a
representação estudantil/?
Os movimentos sociais, em que pesem alguns fiquem sob a égide do estado
legal, não nascem dele, e não deveriam deste depender para existir. Assim também
é o movimento estudantil.
A legalidade não esgota o direito – muito pelo contrário, frequentemente se
mostra como instrumento de dominação, na exata contrapartida do que é justo.
Em que pese a existência da Lei n. 14.808/05 acarrete alguns ganhos reais

17
Nota explicativa: Assim se coloca porque os direitos sociais, vez que dependem de uma prestação
estatal positiva, geram ônus , gastos, para a sua efetivação. O exercício do ensino pela iniciativa
privada, posto que se mantém como serviço público, não escapa a essas incumbências, das quais
muitas instituições buscam esquivar-se no intuito de manter seus lucros.
44

para o corpo estudantil, as bases do movimento não refletem, necessariamente, as


suas disposições, tendo em vista que são afetadas por inúmeras outras variantes de
ordem social e política – as quais devem ser aprimoradas, mais do que a própria lei,
para que possa se dizer que há eficácia no exercício dos direitos
constitucionalmente protegidos.
Ainda assim, no cenário de graves retrocessos após o golpe de estado de
2016, espera-se ao menos um futuro de permanência da Lei n. 14.808/05 no mundo
jurídico, porquanto afirmação mínima dos direitos dos estudantes. O que não se
pode, todavia, é dependermos dela para nos mobilizarmos.

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46

O MOVIMENTO AMBIENTALISTA NO CONTEXTO DOS NOVOS MOVIMENTOS


SOCIAIS

THE ENVIROMENTAL MOVEMENT IN THE CONTEXT OF THE NEW


SOCIAL MOVEMENTS

Jussara Romero Sanches18

Resumo: Os movimentos sociais são importantes atores políticos na


contemporaneidade. O movimento ambientalista se destaca em relação às
propostas de proteção do meio ambiente. Propõem-se a discutir a localização deste
movimento no contexto dos novos movimentos sociais. A partir de revisão
bibliográfica sobre a temática se observou que, analisando teoricamente os
movimentos sociais, é possível que algumas características sejam atribuídas aos
novos movimentos sociais. Porém, também se percebe que algumas dessas
características, consideradas novas, já poderiam ser encontradas nos antigos
movimentos sociais. Dessa forma, poucos movimentos sociais “novos” poderiam ser,
de fato, considerados como novos, como é o caso do movimento ambientalista.
Palavras-chave: Movimentos Sociais; Novos Movimentos Sociais; Movimento
Ambientalista;

Abstract: The social movements are important political actors in the contemporary
world. The environmental movement stands out in relation to the proposals to protect
the environment. It’s proposed a discussion about the location of this movement in
the context of the new social movements. From a bibliographical review about this
subject, it was observed that analyzing theoretically the social movements it’s
possible that some of these characteristics are attributed to the new social
movements. However, it can also be seen that some of these characteristics that are
considered new, could already be found in the old social movements. That way, few

18
Mestranda do Programa de Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina. Bolsista
CAPES. Especialista em Direito do Estado, área de concentração em Direito Constitucional e em
Gestão, Licenciamento e Auditoria ambiental. Graduada em Direito e em Ciências Sociais.
Pesquisadora vinculada aos projetos de pesquisa: “A aplicação da Justiça Ambiental nos Negócios
Jurídicos Urbanos e Rurais” e “A Propriedade Privada e sua Proteção Ambiental”. E-mail:
jussararomerosanches@gmail.com
47

“new” social movements could be considered as new, as is the case with the
environmental movement.
Keywords: Social Movements; New Social Movemenets; Enviromental Movement.

Considerações Introdutórias

No contexto da teoria dos movimentos sociais, se busca refletir se, de fato, os


movimentos ambientalistas podem ser classificados como novos movimentos
sociais. A hipótese levantada como norte da presente pesquisa é a de que os
movimentos que envolvem questões ambientais são verdadeiramente novos, pois
representam preocupações com o meio ambiente surgidas recentemente na história
da humanidade.
Enquanto os elementos que caracterizam os tidos como novos movimentos
sociais, como questões que envolvem a melhoria da qualidade de vida, as diferentes
formas de organização, as diferentes formas de ação ou dos novos componentes
sociais, como os movimentos étnicos, nacionalistas, de gênero, religiosos,
camponeses, podem, em certa medida, ser encontrados também nos movimentos
sociais considerados clássicos.
Para tanto, se recorreu à pesquisa bibliográfica e, na primeira seção, a
discussão levantada, de forma breve, será a respeito do que se compreende
teoricamente quanto aos movimentos sociais, seus principais elementos e como se
caracterizam. A segunda seção aborda o desenvolvimento teórico sobre os novos
movimento sociais e suas principais características. A terceira seção, por sua vez,
cuida de apontar algumas considerações quanto ao surgimento do pensamento
ambientalista.

1 Breves reflexões sobre a teoria dos movimentos sociais

O conceito de movimento social não possui uma definição única, em função de


diversas interpretações e formas distintas de manifestação. No geral, os movimentos
sociais são compreendidos como ações coletivas de cunho social e político,
compostos por elementos de diferentes classes e camadas sociais. Sendo suas
ações desenvolvidas em torno de temas, problemas e situações de conflitos
compartilhados, que constroem entre seus integrantes, uma identidade
48

compartilhada.
É o que se compreende das palavras de Maria da Glória Gohn (2003, p. 13) ao
afirmar que os movimentos sociais são “ações sociais coletivas de caráter
sociopolítico e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e
expressar suas demandas”. Ainda de acordo com a autora, esses movimentos
sempre existiram e, provavelmente, sempre existirão.
Anthony Giddens (2013, p. 1151) analisa os movimentos sociais a partir do seu
local de atuação e afirma que eles “são esforços coletivos para promover um
interesse comum ou defender um objetivo comum fora da esfera das instituições
estabelecidas”, a saber o Estado e os partidos políticos.
A partir das análises desenvolvidas na Europa sobre os movimentos sociais,
principalmente as que tiveram como inspiração os estudos de Marx, se
convencionou classificar os movimentos sociais da classe trabalhadora e os
sindicais, surgidos principalmente no século XIX, concentrados nos conflitos da
produção e da distribuição das riquezas, como clássicos. A análise teórica
desenvolvida se fundamenta, essencialmente, na perspectiva do conflito, e tem em
Marx sua principal referência.
No entanto, Maria da Glória Gohn (2004, p. 176) adverte que “Marx não se
preocupou em criar uma teoria específica sobre os movimentos sociais, sobre a
classe operária, o Estado ou qualquer outro ponto específico”. Dessa forma, a
análise dos movimentos sociais se embasam em proposições teóricas que não se
referem, especificamente, aos movimentos sociais.
De acordo com a autora, as principais categorias que podem se relacionar com
os movimentos sociais são as categorias de práxis: a práxis significativa, que se
refere à práxis transformadora do social, realizada através da conexão entre
atividade teórica (relacionada à crítica, interpretação e ao desenvolvimento de
projetos de transformação), e a atividade produtiva/política (relacionada
fundamentalmente com o mundo do trabalho) (GOHN, 2004).
Maria da Glória Gohn (2004, p. 177) afirma que Marx explorou mais
intensamente a questão da práxis política dos movimentos, que “surge como
articulação entre a práxis teórica e a práxis produtiva propriamente dita, mediada
pelas condições estruturais de desenvolvimento do processo social”. De acordo com
a autora, para Marx não existe movimento político que não seja, ao mesmo tempo,
social.
49

Nos Estados Unidos, a Escola de Chicago pode ser apontada como uma das
principais referências nos estudos sobre os movimentos sociais desde a década de
1920. De acordo com Anthony Giddens (2013, p. 1153), para os membros da Escola
de Chicago, de forma geral, “os movimentos sociais são agentes da mudança social
e não meramente os seus produtos”, uma das questões centrais dos movimentos
sociais para essa abordagem seria a inquietação social, ou seja, a base de
desenvolvimento deles estaria assentada em uma insatisfação social.
Diante do exposto, é possível perceber que não existe um consenso entre os
autores em torno de uma definição única de movimentos sociais. Dada a diversidade
na qual os movimentos se desenvolvem, a teoria, em certa medida, reflete essa
diversidade. Sendo que, para cada teórico, determinados aspectos dos movimentos
se tornarão mais ou menos significativos, fazendo com que cada um deles traga
elementos distintos para sua caracterização. Porém, ainda é possível pensar em
movimentos sociais como formas de ação coletiva que buscam algum tipo de
transformação social.

2 Aproximações iniciais acerca dos novos movimentos sociais

A partir do final década de 1960 e início da década 1970, tanto nos Estados
Unidos quanto na Europa, as sociedades viveram uma ebulição social. Ângela
Alonso (2009, p. 51) afirma que, inicialmente, os teóricos pensaram em tratar de um
ressurgimento dos movimentos operários, porém estes “não se baseavam em
classe, mas sobretudo em etnia (o movimento pelos direitos civis), gênero (o
feminismo) e estilo de vida (o pacifismo e o ambientalismo) para focar nos mais
proeminentes”.
Estes movimentos sociais, surgidos no contexto de um mundo globalizado, que
abarcam questões de reconhecimento, de etnia, de gênero, de nacionalidade,
ambientais, entre outras, são classificados como novos movimentos sociais, uma
vez que se deslocam da esfera da produção para a esfera da cultura, bem como por,
supostamente, possuírem características novas que os antigos movimentos não
possuíam.
Neste sentido, Ângela Alonso (2009, p. 51) aponta que se tratavam de:

Jovens, mulheres, estudantes, profissionais liberais, sobretudo de classe


média, empunhando bandeiras em princípio também novas: não mais
50

voltadas para as condições de vida, ou para a redistribuição de recursos,


mas para a qualidade de vida, e para afirmação da diversidade de estilos de
vivê-la.

Para analisá-los a autora aponta o desenvolvimento de três vertentes de


teorias dos movimentos sociais. A primeira delas é a Teoria de Mobilização de
Recursos. Para essa corrente, o mais importante era a explicação do processo de
mobilização desses movimentos. Neste sentido, Anthony Giddens (2013, p. 1158)
afirma que, para a teoria da mobilização de recurso, “a insatisfação política não é
suficiente para explicar a mudança social, uma vez que, na ausência de recursos, tal
insatisfação não se transforma em força activa na sociedade”.
Ângela Alonso (2009, p. 54) aponta ainda, quanto as Teoria do Processo
Político – TPP e Teoria dos Novos Movimentos Sociais – TNMS, que “as duas
constroem explicações macro-históricas que repelem a economia como chave
explicativa e combinam política e cultura na explicação dos movimentos sociais”,
porém, “a TPP investe numa teoria da mobilização política enquanto a TNMS se
alicerça numa teoria da mudança social”.
Para Maria da Glória Gohn (2004, p. 121), a teoria dos novos movimentos
sociais surgiucomo uma reação em relação ao paradigma tradicional marxista,
considerada inadequada por alguns teóricos: entre eles Touraine, Offe, Melucci,
Laclau e Moufe, pois “partiram para a criação de esquemas interpretativos que
enfatizavam a cultura, a ideologia, as lutas sociais cotidianas, a solidariedade entre
as pessoas de um grupo ou movimento social e o processo de identidade criado”.
A autora aponta algumas características que estão presentes nos novos
movimentos sociais. A primeira delas é a centralidade da cultura, e a cultura aqui é
compreendida como ideologia, mas não como representação falsa da realidade. A
segunda característica, de acordo com Maria da Glória Gohn (2004, p. 122), seria de
“negação do marxismo, como campo teórico capaz de dar conta da explicação da
ação dos indivíduos e, por conseguinte, da ação coletiva da sociedade
contemporânea”, o marxismo negado aqui, explica a autora, “refere-se a sua
corrente clássica, tradicional, vista como ortodoxa”.
A terceira característica se relaciona com a perspectiva sob a qual o indivíduo
atuante dentro dos movimentos sociais é analisado. Anteriormente visto como
sujeito predeterminado pelas contradições do capitalismo, a partir dessa nova
abordagem, os integrantes das ações coletivas são vistos como atores sociais. A
51

quarta característica está relacionada àesfera política que, de acordo com Maria da
Glória Gohn (2004, p. 123), ganha centralidade e é significativamente redefinida,
“deixa de ser um nível numa escala em que há hierarquias e determinações e passa
a ser uma dimensão da vida social, abarcando todas as práticas sociais”.
Com relação às teorias que analisam os movimentos sociais nas sociedades
contemporâneas, Andréia Galvão (2011, p. 108) afirma que elas surgiram “buscando
negar a relevância da dimensão de classe e a centralidade da luta de classes: quer
seja a teoria dos novos movimentos sociais, da mobilização de recursos, da
mobilização política (em menor medida) e do reconhecimento”. O objetivo se torna
cultural, pós-materialista, no sentido de colocar em foco as identidades, o
reconhecimento, de maneira que não é possível vincular essas questões ao
pertencimento de classe dos atores.
Anthony Giddens (2013) também aponta alguns elementos que caracterizariam
os novos movimentos sociais. O primeiro se refere à introdução de novas questões
nos sistemas políticos, questões que, como já foi apontado, fogem da esfera
puramente material, questões essas que envolvem a qualidade de vida, conforme já
mencionado. Outra característica apontada pelo autor, são as novas formas de
organização, ou seja, muitos deles se organizam informalmente e recusam
organização formal, elemento que os teóricos da mobilização de recursos
identificavam como essencial para o sucesso (GIDDENS, 2013).
A forma de ação também é apontada pelo autor como uma das características
inéditas dos novos movimentos sociais. A adoção de posturas pacifistas em suas
ações diretas e a utilização ostensiva dos meios de comunicação para angariar
apoio. Outra característica apontada por Anthony Giddens (2013, p. 1161), a partir
de estudos realizados sobre os membros desses novos movimentos sociais que
revelam “a predominância da <<nova>> classe média no seu seio, desde
funcionários do aparelho burocrático do Estado-Providência do pós-guerra a
profissionais nos domínios da criação, da arte e da educação, incluindo ainda muitos
estudantes”.
No entanto, o próprio autor já identifica algumas críticas em relação à teoria
dos novos movimentos sociais, pautada nas novas características que foram
elencadas acima. Anthony Giddens (2013, p. 1165) afirma que “todas as supostas
características ‘novas’ acima identificadas foram encontradas nos ‘antigos’
movimentos sociais”. E o autor elenca algumas dessas constatações.
52

A primeira, referente aos valores pós-materialistas, que já podiam ser


encontrados em movimentos de pequenas comunas do século XIX. A questão
concernente à identidade também era possível de ser identificadanos movimentos
nacionalistas e nos primeiros movimentos das mulheres. Em relação à organização,
muitos dos novos movimentos sociais, de acordo com Anthony Giddens (2013, p.
1165), “desenvolveram organizações formais que se tornaram mais burocráticas do
que a própria teoria permitiria conceber”.
É neste sentido que vai a análise desenvolvida por André Gunder Frank e
Marta Fuentes (1989, p. 19), no ensaio “Dez teses acerca dos movimentos sociais”,
a primeira tese desenvolvida pelos autores, além de afirmar que os movimentos
sociais “clássicos” são relativamente novos, aponta que “os ‘novos’ movimentos
sociais não são novos, ainda que tenham algumas características novas”.
Ao desdobrarem esta primeira tese, os autores afirmam que os movimentos
operários, da classe trabalhadora, que foram classificados como “clássicos”,ese
desenvolveram, principalmenteno século XIX, aparecem mais como um fenômeno
transitório. Por outro lado, André Gunder Frank e Marta Fuentes (1989, p. 21)
afirmam que “os movimentos camponeses, de comunidades locais,
étnicos/nacionalistas, religiosos e até de mulheres/feministas existiram durante
séculos e até milênios em muitos lugares do mundo”. Dessa forma, de acordo com
os autores, os “novos” movimentos sociais aparecem de forma numerosa, ao longo
da história europeia, por exemplo.
Alguns dos exemplos que os autores utilizam são: as revoltas de escravos em
Roma; movimentos e guerras camponesas do século XVI na Alemanha; conflitos
étnicos e nacionais em todo o continente europeu; caça às bruxas e repressões
contra mulheres no século XII, e o movimento das Beguinas.
O movimento das Beguinas, por exemplo, se constituiu enquanto um
movimento questionador dos dogmas da Igreja e do modo de vida que era imposto
às mulheres. As primeiras comunidades de Beguinas apareceram entre o século XII
e XIII nos países baixos. De acordo com Amanda Oliveira da Silva Pontes (2015, p.
6), o movimento possuía um “aspecto profundamente emancipatório, as beguinarias
constituíam uma alternativa de vida religiosa leiga no qual as mulheres, não
querendo se vincular à vida monástica, nem tampouco adquirir matrimônio, faziam
dessas comunidades uma opção de vida”. Dessa forma é possível perceber um
caráter forte de contestação e de afirmação de uma identidade feminina e de
53

emancipação do papel social atribuído à mulher da época.


Lieve Troch (2013, p. 7), em relação ao movimento das Beguinas, afirma que
“até o século XVI na Europa Ocidental, este foi um movimento muito influente no
âmbito religioso”, sendo possível encontrar resquícios do movimento na Bélgica,
Alemanha e França. O que demonstra que, guardadas as devidas proporções e
considerando as limitações físicas da época, caracteriza-se por um movimento que
se difundiu pela região da Europa Ocidental.
Diante dos exemplos utilizados pelos autores, André Gunder Frank e Marta
Fuentes (1989, p. 21) afirmam que “só os movimentos ecológicos/verdes e os
pacifistas podem ser chamados de ‘novos’, e isto porque respondem a necessidades
sociais que foram geradas mais recentemente pelo desenvolvimento mundial”.
Diante dessa afirmação a seção seguinte levantará, não de forma exaustiva, alguns
apontamentos a respeito do desenvolvimento desses movimentos considerados
ecológico ou verdes.

3 Movimento ambientalista no contexto dos novos movimentos sociais

Durante muito tempo, a natureza não foi compreendida pelo homem como uma
questão que viesse a ser núcleo de grandes questionamentos práticos.
Filosoficamente, como afirma Paulo de Bessa Antunes (2002, p. 6), ela “foi uma
parceira constante na longa e emocionante epopeia do pensamento helênico, em
todas as suas múltiplas dimensões”. Mas não foi objeto de preocupações que
demandavam cuidados especiais, uma vez que “os recursos ambientais não eram
escassos”.
A modernidade marca sensivelmente uma mudança no modo como o homem
se relaciona com natureza, e diante da insustentabilidade que essa relação
demonstra ter, desperta na humanidade a percepção de que ela deve ser alterada.
Paulo de Bessa Antunes (2002) aponta alguns pensadores que foram precursores
dos movimentos que se preocuparam com a natureza e o primeiro deles é Jean-
Jacques Rousseau.
Paulo de Bessa Antunes (2002, p. 34) afirma que Rousseau “foi, certamente,
um dos críticos mais acerbados do processo de construção do mundo moderno que
se verificou a partir do Século XVI e das grandes navegações, da construção dos
estados nacionais e da paulatina e constante construção da ordem individualista”.
54

Rousseau, como afirma o autor, buscava estabelecer a supremacia da vontade


geral, que, por se tratar da expressão legitima dos interesses da comunidade, deixa
de lado o individualismo e busca o bem comum (ANTUNES, 2002).
É com base no pensamento de Rousseau, que Henry David Thoureau
desenvolveu seu pensamento. Thoureau, para Paulo de Bessa Antunes (2002, p.
38), “é seguramente o principal inspirador do pensamento ecológico moderno”, que
se materializa em movimentos de defesa da natureza e do meio ambiente. A
natureza, bem como a vida selvagem, constituía a base para a preservação da vida
humana e do mundo, e, de acordo com o pensamento de Thoureau, a civilização e a
vida urbana eram os responsáveis pela degradação e pela decadência da vida
(ANTUNES, 2002).
Thoureau aponta que a vontade da maioria não pode ser o método de tomada
de decisões, uma vez que o princípio majoritário se utiliza muitas vezes da força,
oprimindo e submetendo as minorias discordantes. Dessa forma, apesar de
reconhecer o princípio majoritário desenvolvido por Rousseau, Thoureau aponta que
ele somente será legítimo se respeitar as minorias, garantindo sua liberdade de
oposição em caso de discordância com o pensamento majoritário (ANTUNES,
2002).
Para sintetizar o pensamento do autor, em relação à necessidade de respeito
às minorias, inspirado na natureza, Paulo de Bessa Antunes (2002, p. 44) afirma que
“as diferentes formas de vida harmonizam-se baseadas em um princípio que não é o
da maioria, mas, isto sim, o do equilíbrio”.
Em relação ao surgimento do pensamento ambientalista, Selene Herculano
(1992, p. 3) aponta para sua origem no século XVIII e coloca como características
comuns “a crítica à ciência moderna e a um ser humano que, via conhecimento, se
arroga o direito de domar a natureza, dela pretendendo ser independente”. A
natureza, na modernidade, passa ser compreendida como fonte de recursos a
serem utilizados para a satisfação das necessidades humanas.
No século XX, o pensamento ambientalista preserva a crítica em relação ao
mundo moderno e sua ciência, principalmente diante da utilização de bombas
atômicas. Ao final da 2ª Guerra Mundial, Selene Herculano (1992, p. 4) afirma que
“os habitantes do planeta deram-se conta de que o conhecimento humano acabava
de atingir uma etapa pela qual tornava-se capaz de destruir o mundo todo”. Esses
questionamentos, conjugados com o enaltecimento de concepções de vida orientais,
55

resultaram no movimento hippie, caracterizado pela recusa ao mundo moderno e por


uma visão crítica em relação ao Estado, ao industrialismo totalitário (HERCULANO,
1992).
Outra vertente do pensamento ambientalista destacada pela autora é
conhecida como neo-malthusiana, que tem como núcleo a proposta de limitar a
população terrestre, com objetivo de evitar a degradação ambiental e,
consequentemente, da qualidade de vida (HERCULANO, 1992). Outras correntes
ambientalistas são abordadas pela autora, como as perspectivas denominadas
zerista e marxista.
A perspectiva zerista, com inspiração no Relatório intitulado “Limites do
Crescimento”, publicado em 1972, que propunha um crescimento zero. As
perspectivas estabelecidas no documento não eram otimistas. Conforme é possível
verificar nas palavras de Donella H. Meadows et al. (1978, p. 188), “estamos
unanimemente convencidos de que uma emenda rápida e radical na situação
mundial, atualmente desequilibrada e em perigosa deterioração, é a tarefa
fundamental com que se defronta a humanidade”, porém a perspectiva de
crescimento zero, dada sua radicalidade, não convenceu alguns países,
principalmente os que ainda buscavam ou buscam desenvolver-se.
No mesmo período de 1972, Selene Herculano (1989, p. 6) aponta para a
contribuição da perspectiva marxista, que questionava o consumismo extremo
fomentado pelos interesses da indústria capitalista e o responsabilizando pela
degradação ambiental, a “forma de combatê-lo seria combatendo o capitalismo e
não fazendo campanhas anticonsumistas dirigidas aos indivíduos”.
Apesar de terem sido apontadas algumas tendências ambientalistas, a riqueza
e a diversidade do movimento são incalculáveis. No entanto, o que se destaca é a
compressão recente de que a própria sobrevivência do homem depende das
escolhas de como ele se portará diante de um meio do qual ele faz parte.

Considerações Finais

Os novos movimentos sociais possuem algumas características que,


supostamente, tornam possível falar em “novos movimentos sociais”. No entanto,
verifica-se que essas características que os tornariam novos, já existiam no
movimentos sociais considerados antigos. Dessa forma, os que se compreendem
56

como “novos movimentos sociais” não seriam tão novos assim. Apenas alguns deles
poderiam receber de forma adequada essa rotulação e o movimento ambientalista é
um deles.
Os movimentos que se voltam para questões ambientais refletem as
preocupações que surgem no contexto de expansão e consolidação da
industrialização e intenso desenvolvimento tecnológico. Colocam-se como
preocupações recentes na história do homem, marcadas principalmente a partir da
modernidade e intensificadas de forma significativa a partir da década de 1970.
Dessa forma, aspectos que classificariam os “novos movimentos sociais” como
novos, destacando-se o aspecto cultural, questionamentos de gênero e etnia, novas
formas de organização e apelo a novos meios de comunicação, não
necessariamente podem ser utilizados como meios de caracterização de novidade,
uma vez que esses aspectos, em menor ou maior grau, já poderiam ser identificados
nos movimentos sociais considerados como antigos.

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e XIV – as beguinas. Expressões da liberdade de gênero e crença. Anais 2º
Simpósio Nordeste da ABHR – Associação Brasileira de História das Religiões,
Recife, 2015.

TROCH, Lieve. Mística feminina na Idade Média – historiografia feminista e


descolonização das paisagens medievais. Revista Graphos, vol. 15, nº 1. João
Pessoa, 20(13, p. 1-12.
58

OCUPAR E RESISTIR (CANÇÃO)

Wellington Tiago19

Eu ocupei uma escola


Mas queria ocupar, o seu coração
Ficarei na sua cola
na espera de uma integração

Integração de amor
querendo você flor
venha comigo pra onde for
Sinta comigo esse calor

Vooooou, Ocupar e Resistir!


Seu coração vou ocupar
E você não vai resistir

Mesmo com reintegração


daqui não vou sair
Vou, ocupar e resistir.

19
Contato: wellingtonlima85@gmail.com
59

OCUPAR OU RESISTIR?
Wellington Tiago20

Sem dúvida alguma, as ocupações no estado do Paraná e em todo o Brasil


entraram para a história. Todavia, os muitos casos específicos compõem um quadro
heterogêneo. Assim, sem dúvida alguma, as ocupações de Campo Largo. Dos 24
colégios do município, 12 foram ocupados, todos na mesma semana e alguns no
mesmo dia. Era esse o assunto na capa do jornal da cidade, era sobre isso que as
instâncias municipais comentavam. Mas qual era o nosso objetivo? Ocupar? Ou
ocupar, lutar e resistir? Tudo isso tinha um tom de loucura, de intensidade, onde a
todo momento chegavam mensagens no seu celular, fotos dos colégios sendo
ocupados. Eu, na ocasião presente de grêmio estudantil, fui muito pressionado a
realizar a ocupação. Decidimos fazer uma assembleia, na qual o resultado foi
negativo para uma possível ocupação, então fomos às ruas. Queríamos demonstrar
que estávamos na luta. Participei de quase todas as ocupações de Campo Largo, e
vi de perto os problemas com drogas, sexo, brigas etc. Eu gostaria muito de
escrever esse texto feliz, por saber que os 18 dias na luta valeram a pena, porque a
PEC e a MP não passaram, mas infelizmente não foi esse o resultado, e a nossa
luta árdua, sem apoio da maioria da população, fez com que a nossa vontade de
lutar fosse engolida pela vontade de chorar. E choramos, talvez não com lágrimas,
mas com suor, pelo fato de não sabermos se ocupávamos ou resistíamos. Talvez as
duas coisas.

20
Contato: wellingtonlima85@gmail.com
60

RELATO DE EXPERIENCIA DA OKUPAÇÃO DO MARL (MOVIMENTO DOS ARTISTAS


DE RUA DE LONDRINA)

Danilo do Amaral Santos Lagoeiro


Lucas Godoy
Fagner Souza
Herbert Proença
Pedro José
Rafael Avansini
Ruthe Oliveira
Valéria Barreiros
Melissa Campus
Edilson Oliveira
João Paulo Poças
Dayane Anhaia
Fábio José
Sandra Regina
Luis Mioto
Vinicius Kafo
Ana Paula Berehulka
Cláudia Silva
Jaqueline Vieira
Lucas Turino
Ezequiel Solliban21

O texto abaixo é o texto-manifesto da okupação do prédio da Avenida Duque


de Caxias 3241 realizada como estratégia de mobilização popular do Movimento dos
Artistas de Rua de Londrina (MARL). No contexto do II Congresso de Direito Vivo
este manifesto servirá como disparador para o debate, assim como os vídeos:
“Lugar das vivências”, Vídeo-documentário do projeto cultural a Maré, e “Ecoh na
Okupa” produzidos durante os dez meses de okupação no local.

21
Movimento dos Artistas de Rua de Londrina (MARL). Contato: artistasderuadelondrina@gmail.com
61

Okupação permanente e cultural da antiga sede da ULES em Londrina

O Movimento dos Artistas de Rua de Londrina (MARL), junto aos coletivos e


movimentos sociais listados abaixo, comunica à comunidade e aos órgãos públicos
de Londrina que, a partir de agora, dia 27 de junho de 2016 – dia nacional de luta do
teatro de rua – passa a ocupar pacificamente, permanentemente e poeticamente o
barracão da antiga sede da ULES, localizado na Avenida Duque de Caxias, n. 3241.
O MARL surge em 2012, reunindo vários coletivos de teatro, circo, artes
visuais, cinema, música, hip-hop e artesanato, na luta pela ocupação dos espaços
públicos, pela garantia do direito à livre expressão artística, por políticas públicas
para as artes públicas e pela democratização e descentralização do acesso e
produção culturais. As primeiras pautas do Movimento foram a “Lei do Artista de
Rua” – que conseguimos aprovar no final de 2014 – e a cessão de um espaço
público que servisse de sede para os coletivos e como equipamento cultural
comunitário para usufruto da população. Desde 2012, exigimos da prefeitura uma
listagem dos espaços públicos ociosos que poderiam passar a cumprir sua função
social através de uma ocupação cultural. Nunca obtivemos essa lista, nem qualquer
resposta por parte da burocracia municipal. Mesmo assim, nesse período, houve
diversas concessões de terrenos da prefeitura para empresas privadas.
Londrina é reconhecida por uma intensa atividade artística, por uma grande
profusão de festivais, mostras e grupos de diversas linguagens. Por outro lado, é
extremamente deficiente em equipamentos culturais. Existem poucos e os que
existem estão aos cacos. A situação é ainda pior nas periferias, onde praticamente
não existem. É que o forte da cidade não é a arte, mas a especulação imobiliária.
Sendo assim, um shopping fica pronto em 6 meses e um teatro municipal não fica
pronto em 50 anos, e acaba sendo engolido pelo shopping. Diversos espaços
ociosos, que poderiam abrigar coletivos artísticos, ensaios, oficinas, apresentações,
bibliotecas, exibições de cinema, etc., correm o risco de serem arrebatados por
algum empreendimento megalomaníaco, dando muito lucro para poucos, e
erguendo barreiras a quase todos.
Por aqui temos desde 2002 a política de Vilas Culturais, financiadas através do
Programa Municipal de Incentivo a Cultura, que atende uma pequena parte da
demanda de manutenção de grupos e atividades culturais. Entretanto, além do baixo
62

orçamento destinado a essas políticas, as 7 vilas que mantém convênio com a


prefeitura atualmente funcionam em espaços privados alugados. O que faz com que
aproximadamente 70% das verbas de custeio desses projetos seja consumido em
pagamento de aluguel. Não concordamos com essa transferência dos cofres
públicos para a iniciativa privada, uma vez que as Vilas Culturais poderia funcionar
em imóveis públicos cedidos pela prefeitura, garantindo maior estabilidade e
continuidade às suas atividades.
Nesse sentido elaboramos um projeto de ocupação para o prédio em questão,
que vem sendo pensado desde 2014, a partir de reverberações do 14ª Encontro da
Rede Brasileira de Teatro de Rua, sediado em Londrina. Nos inspiramos em várias
experiências semelhantes, recentes e duradoras, que têm dado certo em São Paulo,
Acre, Rio de Janeiro, Pernambuco e outros lugares do Brasil e do mundo. Uma das
experiências mais emblemáticas é da sede do Instituto Pombas Urbanas, que há
mais de 12 anos ocupa o espaço de um supermercado abandonado na Cidade
Tiradentes, Zona Leste de São Paulo. Quando o grupo entrou no barracão, só
haviam as paredes e entulho, em pouco tempo, havia uma sede. Hoje o prédio
abriga uma biblioteca, um teatro, sala de ensaios e sedia vários grupos
independentes formados a partir de oficinas de teatro com a comunidade.
O espaço que estamos ocupando durante muito tempo foi gerido pela entidade
estudantil dos secundaristas, a ULES. Mas está há mais de 10 anos abandonado e
com vários problemas estruturais. O MARL junto aos coletivos parceiros se
compromete a realizar a reforma do barracão de modo a deixá-lo em condições de
abrigar as atividades de ensaio dos grupos, oficinas para a população, eventos,
reuniões, uma biblioteca e uma horta comunitária. O espaço também servirá como
sede para o próximo Encontro Nacional da Rede Brasileira de Teatro de Rua que
acontecerá entre os dias 01 e 10 de dezembro desse ano.
Exigimos imediatamente a cessão oficial do imóvel público ao Movimento dos
Artistas de Rua de Londrina, bem como a imediata ligação de água e energia, para
que possamos dar início às atividades programadas.
Exigimos que a Prefeitura divulgue a listagem de espaços públicos que não
cumprem função social para que outros coletivos culturais, artísticos e educativos
tenham onde realizar seus trabalhos.
Exigimos a permanência e a manutenção, com condições dignas de estrutura,
do Centro Cultural Wãre, que abriga atualmente 30 famílias da comunidade indígena
63

Kaingang, povo originário desta terra, que vem sendo boicotada e pressionada a
deixar o local.
Exigimos a imediata revisão do projeto de reforma da Praça Pedro Bezzarini,
no Jardim Igapó e a apuração das irregularidades que permeiam todo o processo.
Exigimos que as periferias deixem de ser palco de chacinas e violência do
Estado. Defendemos que a violência seja combatida através de políticas pública de
cultura, educação e saúde e não de repressão. Arte pública é saúde pública,
educação pública e segurança pública.
Convidamos todos os fazedores e militantes da Cultura a unir esforços na
garantia da ocupação para que ela se torne um ponto público e autogerido de
fomentação e trocas artísticas.
Convidamos também as autoridades do Município para conhecerem nosso
projeto e abrirmos um canal de diálogo.

“Se não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir em paz”.


Ocupa eu, ocupa tu, ocupa todo mundo. Evoé.

MARL - Movimento dos Artistas de Rua de Londrina


Coletivo Cão sem Plumas
Movimento Cultura Londrina contra o Retrocesso
Cia. Teatro de Garagem
Núcleo Ás de Paus
Cia. Palhaços de Rua
Cia. Curumim Açu
Cia. Boi Voador
Fábrica de Teatro do Oprimido
Maracatu Semente de Angola
Teatro Kaos
Comitê Passe Livre
Frente Anti-Fascista
Comunidade Kaingang
MACUL - Movimento Artesanato é Cultura
Clã Pé Vermelho- Permacultura e Bio-construção
Movimento Punk
64

Fábrica do Teatro do Oprimido


65

SLAM RESISTÊNCIA: A POESIA COMO ARTE DE RESISTÊNCIA

Ana Cláudia Duarte Pinheiro22


Nádilla Marques da Silva23

Resumo: A partir de uma pesquisa qualitativa e exploratória, o estudo pretende


demonstrar o papel da arte, mais especificamente a poesia, como sendo um
instrumento capaz de resistência social. A poesia é aquilo que inspira, comove,
sensibiliza e desperta sentimentos. Nessa perspectiva, a pesquisa abordou versos
divulgados pelos poetas e poetisas do grupo Slam Resistência que utilizam os
espaços públicos com a intenção de debater e divulgar a poesia falada. As letras
autorais retratam diversos problemas sociais, como machismo, homofobia, falta de
políticas públicas, racismo, intolerância às religiões de matriz africana, entre outros.
Os encontros são marcados pela diversidade, todo o segmento da sociedade civil
está convidado a participar, seja criança, idoso, jovem, rico ou pobre. O palco é livre,
portanto, o microfone é aberto para toda e qualquer pessoa que queira participar,
isso demonstra que todo indivíduo é capaz de opinar sobre a arte,
independentemente de seu grau acadêmico, convicção política ou filosófica, gênero,
origem ou classe social. Além dessa atividade, os encontros oportunizam discussões
sobre possíveis intervenções políticas, sociais e culturais. Sendo assim, ao longo do
estudo será possível traçar um paralelo entre as poesias do Slam Resistência, com
o poder da arte em transformar e resistir, seja expondo realidades, criticando,
proporcionando uma reflexão sobre o cotidiano ou sugerindo mudanças.
Palavras-chave: Slam Resistência. Arte. Ferramenta Social. Transformação.

Introdução

O germe desse trabalho nasce da observação do poder da arte, seja expressa


por meio da dança, pintura, música, escultura, teatro ou poesia, em proporcionar
22
Docente do Curso de Graduação em Direito da Universidade Estadual de Londrina, doutoranda em
Geografia Dinâmica Socioambiental da Universidade Estadual de Londrina. Email:
acdphs@yahoo.com.br.
23
Aluna do quinto ano do Curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina-UEL e
colaboradora no projeto “Dissemina Ambiental”, vinculado ao Programa de Formação Complementar
Disseminação de trabalhos de conclusão do curso de graduação em Direito: processo de
integração da comunidade acadêmica interna e externa. Email: nadilla-marques@hotmail.com
66

liberdade e resistência a seus atores. Além do que, espelha as realidades tendo o


poder de atrair os olhares de outros e estimular a reflexão, mesmo que seja à
distância.
A arte é uma forma de refúgio em que muitos encontram abrigo. A arte é um
grito promissor que tem ganhado espaço em meio a tantos muros sociais “invisíveis”,
que se baseiam no individualismo, materialismo e tantos outros “ismos”, gerando
divisões e o fim da convivência.
Neste cenário, boa parte da sociedade continua indiferente. Frente a essa
inércia, o presente trabalho objetiva colocar em foco a discussão sobre a arte de
resistência e ressaltar a importância da poesia, como uma verdadeira ferramenta de
transformação social que promove a reflexão e estimula a participação.
Escolheu-se o trabalho da equipe de poetas e poetisas do Slam Resistência,
grupo conhecido por suas letras de forte cunho social, que proporcionam por meio
da poesia falada uma reflexão sobre o cotidiano de uma parcela da sociedade,
considerada invisível.
As letras retratam diversos problemas sociais, sendo os mais recorrentes:
(ausência de políticas públicas, estigmas preconceituosos, desemprego, machismo,
homofobia, intolerância às religiões de matriz africana, classismo, naturalidade do
estupro e guetofobia).
Deste modo, ao longo da pesquisa será explicitada a contribuição da poesia
ativista difundida pelos apresentadores do Slam Resistência, como um verdadeiro
remédio cognitivo capaz de revolucionar, transformar e resistir.

1 O que é slam

Slam ou poetry slam (batida de poesia) são encontros gratuitos que ocupam
teatros, praças, escolas, presídios, ruas ou centro culturais com a finalidade de
divulgar a poesia falada (spoken word). Assim sendo, “o Slam tem jogado fora as
algemas que dizem quando e como a poesia deve ser apresentada, além de trazer
de volta a prática da arte de ouvir, e da apreciação da riqueza da língua”, (ZAP,
2010, p. 02).
Nesses encontros ocorrem batalhas de poesia com o microfone aberto para
quem quiser participar, não há público-alvo, fazendo-se presentes crianças, jovens e
idosos, com diferentes crenças, orientações filosóficas e posicionamentos políticos,
67

que se reúnem em comunhão para ouvir e divulgar a poesia. Destarte, a diversidade


é uma característica marcante desses encontros.
Nas apresentações não é permitido o uso de adereços, fantasias,
acompanhamento musical, objetos e qualquer outro auxílio visual, isto porque, o
foco está nas palavras e no alcance de sua propagação.
As letras dos poemas podem versar sobre qualquer assunto e estilo, desde que
sejam originais e de autoria do apresentador. Lembrando-se que os poetas podem
citar trechos de obras de outros autores.
Ainda, a repetição de poemas não é possível dentro da mesma competição e, o
tempo de duração de cada apresentação é de três minutos, sendo que depois desse
período existe um tempo de “graça” contabilizando dez segundos, após esse tempo
serão aplicadas penalidades consoante os minutosultrapassados.
As poesias e performances são apresentadas e, logo em seguida, submetidas
ao crivo do júri popular que avaliará, basicamente, dois aspectos: a poesia e o
desempenho da interpretação. As notas variam de zero a dez.
Idealizado na década de 80, em Chicago, Estados Unidos, o Slam trouxe uma
nova cara para os monótonos encontros de leitura de poesias.

Criado por Marc Kelly Smith, trabalhador da construção civil, em Chicago,


nos anos 80, o Slam trouxe uma renovação para a poesia oral e valorizou a
arte da performance poética, crescendo rapidamente e se propagando por
todo mundo. Estima-se hoje que existam pelo menos 500 comunidades de
Slam em países como Irlanda, Inglaterra, Austrália, Zimbabwe, Madagascar,
Israel, Singapura, Polônia, Itália e até mesmo no Pólo Sul, no Hawaí e
agora no Brasil, sendo que as maiores comunidades fora dos EUA estão na
França e na Alemanha. (ZAP, 2010, p. 01).

Na França, esse movimento ganhou força nos anos 90, com a missão de
“promouvoir les performances et les créations de poésie, en cultivant la créativité,
d'ouvrir les esprits, de renforcer l'éducation, d'encourager les artistes, et d'engager
les communautés du monde entier dans l'art du langage”. (FFDSP, 2015, p. 01).24
Embora não tenha sido tema de reflexão do autor Milton Santos, o movimento
se fortalece na descrição por ele apresentada quando discute a mundialização
perversa das transformações do espaço, onde por inferência, se inclui o cenário
urbano com sua carga de opressão e desigualdade que levam a manifestações de
tal natureza:

24
Fédération Française de Slam Poésie
68

Concentração e centralização da economia e do poder político, cultura de


massa, cientificização da burocracia, tudo isso forma a base de um
acirramento das desigualdades entre países e classes sociais, assim como
da opressão e desintegração do indivíduo (...) (SANTOS, 2014, p. 21).

Além das competições, o Slam tem caráter comunitário e inclusivo,


representando uma simbólica e importante ocupação dos espaços públicos, em
especial, urbanos, por meio da resistência e da arte.

2 História do slam resistência

Segundo informações retiradas do site Cidade Lúdica, o Slam Resistência


surgiu em 2014 para fortalecer os movimentos sociais e o enfrentamento político na
busca de justiça, investimentos em questões socioculturais e igualdade, tendo como
precursor e idealizador o artista e poeta slammer Del Chaves.
Desde a infância Chaves demonstrou possuir facilidades em compor rimas e
redações, apaixonado pela poesia, cresceu fazendo paródias de músicas brasileiras
e escutando artistas e bandas como Chico Science, Gabriel o Pensador, Rage
Against the Machine e Racionais MC's.
Antes da criação do Slam Resistência, o poeta frequentava outros Slams como
o ZAP – Zona Autônoma da Palavra, o primeiro do Brasil, fundado no ano de 2008
com o objetivo de celebrar a palavra.
Frequentou também o Slam da Guilhermina, criado no final de fevereiro de
2012, com a proposta de fazer batalhas de poesias e recitais livres.
O nome Slam Resistência faz alusão à reunião entre movimentos sociais e
advogados ativistas denominados de “Quinta Resistência”, que depois de
repressões do governo por meio de policiais militares coibiu a realização de
manifestações, debates e outros atos públicos na Praça Franklin Roosevelt, área
central de São Paulo.
Diante disso, esse movimento convocou a todos para fazer parte da “Quinta
Geração”, desde então, esse coletivo promove encontros na Praça Roosevelt com o
objetivo de ocupar esse espaço público, para assim alcançar a finalidade para a qual
foi criado, isto é, conhecer pessoas, socializar, manifestar, divulgar a arte, praticar
esporte, fazer reuniões e debates, intervenções, trazer vida à cidade e uma nova
concepção sobre a vida comunitária. Celebrando a ocupação cultural e artística pela
69

resistência.
Segundo a página do Slam Resistência nas redes sociais:

Slam Resistência surgiu no fogo da poesia envolvida nas lutas sociais!


Rimando fatos que não rolam no fantástico, mandando ideias de #FOGO
contra esses papos de plástico. Podemos considerar as revoltas sociais que
concorrem para a mudança do panorama social como uma cirurgia
necessária, a fim de depor os regimes totalitários e seus representantes e,
em esfera mais ampla, extinguir o tipo de politica que engendra o padrão
atual de governos e governantes. Trata-se de uma cirurgia de erradicação
de políticos de baixo nível, nocivos as coletividades e ao nosso nível
evolutivo. O Slam Resistência surgiu desse abençoado fluxo humanitarista
de ativistas e de enfrentamento.político.(DEL CHAVES, 2016, p. 01).

Consoante ao que foi dito, a jornalista Bartira Fortes diz:

As vozes das ruas ecoam através dos muros, que embora altos não são
surdos. […] O que resta de gosto das tantas bocas famintas é a fome de
transformação. Mesmo desgostosa, a palavra grita, cria, vocifera o anseio
por libertação. As vozes das ruas podem soar estridentes para os ouvidos
indiferentes. Para os que são silenciados cotidianamente não há grito agudo
suficiente. Poetizar é ação! [...] Slam Resistência é esse ato expurgante,
que transforma por um instante a voz oprimida em palavra ressoante.
(FORTES, 2016, p. 01).

Atualmente, o encontro entre o público e os poetas acontece às 19:00, toda


primeira segunda-feira do mês, na escadaria da Praça Franklin Roosevelt com a
Rua Augusta, na área central da cidade de São Paulo.
O encontro oportuniza a competição de batalhas de poesias autorais no
modelo “spoken word”, isto é, poesias faladas, na qual o poeta apresenta suas letras
num período máximo de três minutos com a proibição de utilização de objetos
cênicos ou acompanhamento musical.
A competição é gratuita e não precisa de inscrição prévia, então o microfone é
livre a todos aqueles que queiram participar, seja mulher, criança, jovem ou idoso, “É
só chegar”.
As notas recebidas pelas letras e performances são dadas por um júri popular
formado espontaneamente por cinco pessoas da plateia, minutos antes das
apresentações.
O valor atribuído aos recitais varia de zero a dez, sendo que a maior e menor
nota são descartadas.
Importante destacar que o grupo preconiza o lema: “seja mídia”, ou seja,
informe, comunique, solte a voz, não importa como, desde que não se cale. É
necessário ser resistência, defendendo e divulgando a realidade sobre a cultura
70

urbana contra os ataques classistas e repressivos.


Os vencedores das batalhas finais reúnem-se numa grande competição, o
Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, que acontece no mês de dezembro,
promovido pelo Slam-BR. O poeta ou poetisa consagrado campeão participa da
Copa do Mundo de Slam, na França, entre slammers de todo o mundo.
Além das batalhas de poesias os encontros oportunizam oficinas, eventos e
discussões sobre possíveis “intervenções sócio-culturais no meio da babylônia de
concreto”. Palavras retiradas da página oficial do grupo, no Facebook.

O Slam Resistência vem na sintonia dos protestos, dos movimentos sociais


e do enfrentamento político ativo em defesas culturais/sociais, sócio-
ambientais e contra truculência do Estado para com os manifestantes!
(SLAM RESISTÊNCIA, 2016, p. 01).

Ressalta-se que o foco do “Slam” não está nas batalhas, mas sim na poesia,
na mensagem passada, na troca de experiências e no aprendizado, “A poesia é
mais importante que a competição e a batalha em si. A poesia sempre vence”,
(CHAVES, 2016, p. 03).
Nessa perspectiva, o Slam Resistência lançou o livro intitulado “Vandalismo
Lírico”, a primeira obra da equipe que reúne as poesias vitoriosas mais importantes
de vinte autores.
Diversos são os temas abordados nas composições: violência policial,
igualdade de gênero, machismo, desigualdade social, racismo e política, sendo os
temas mais recorrentes.
Por meio das composições os apresentadores criticam, sugerem, levantam
denúncias, opinam e criam uma atmosfera reflexiva indicando que as poesias ali
faladas possuem o poder de transformar o mundo.

Imagem 1 - Apresentação na Praça Franklin Roosevelt


71

Fonte: http://cidadeludica.com.br/2016/08/13/slam-resistencia-batalha-de-poesia-conecta-
publico-a-poetas-na-praca-roosevelt/

Imagem 2 - Apresentação na Praça Franklin Roosevelt

Fonte: http://cidadeludica.com.br/2016/08/01/e-dia-de-slam-resistencia-na-roosevelt/

Essas fotografias retratam com fidelidade os encontros de divulgação de


poesias realizados pelo u Resistência, na Praça Franklin Roosevelt, localizada na
área central de São Paulo. O espaço reúne em sua grande maioria jovens, mas
todos são bem-vindos.

3 A poesia como ferramenta de transformação social

A arte é uma manifestação pela qual o ser humano transparece suas


impressões pessoais, emoções, ideias, sugestões com o fito de estimular mudanças
e realizar transferências de conhecimento.
Desde o seu surgimento, a arte tem ganhado importantíssimo espaço na vida
em sociedade.
Pensar em arte é pensar em diversidade, inclusão social, saúde, educação,
meio ambiente e participação. É pensar na vida e na existência, na dignidade, no
passado e no futuro.
Diversas são as formas de expressar-se pela arte: dança, poesia, pintura,
música, literatura, cinema, escultura. Porém, o presente trabalho optou pelo estudo
da arte manifestada pela poesia.
Antes de definir ou conceituar a palavra, importante destacar que para o
72

movimento, a poesia é um momento de encarar as incontáveis crises civilizacionais


de humanidade que o cenário da vida apresenta cotidianamente a cada um dos
indivíduos que reagem de formas tão díspares. A poesia é uma reação dentre as
muitas possibilidades. Quanto às crises da vida contemporânea, Plauto Faraco de
Azevedo contribui:

O desconcerto de nosso tempo reflete uma crise de civilização sem


precedentes, pela sua extensão e profundidade. O que a caracteriza é a
perda de rumos, a falta de perspectivas, sensíveis nas diversas dimensões
do inter-relacionamento humano e nas várias concepções em que
assentam. Vivemos em um mundo dilacerado pela desigualdade e pela
injustiça, em que uma dentre cada quatro pessoas sobrevive abaixo das
condições mínimas indispensáveis à dignidade humana. (...)Tudo evidencia
a insofismável crise civilizacional presente, a tudo permeando – a política, a
economia, o direito, a democracia, a ética, a ciência –, tudo indicando um
paradigma científico superado, em meio à difícil emergência de um outro,
capaz de abranger e compreender a multiplicidade e a interligação de todas
as dimensões da vida. (AZEVEDO, 2014, p. 13).

O vocábulo “poesia” originou-se do latim “poetize”, gênero literário,


caracterizado, em sentido figurado como aquilo que comove, encanta, sensibiliza. É
uma manifestação artística de beleza e estética retratada por meio de palavras.

A poesia é a tradução em palavras do universo desconhecido das


emoções, é uma esfera pouco compreendida, que tenta muitas vezes
transmitir significados nas entrelinhas dos versos. Este edifício constituído
pela magia das palavras revestidas de sonoridades, estruturas rítmicas e
visuais, por significações latentes, desvela a alma humana, dá espaço para
que ela expresse suas inquietações e anseios interiores. Os poemas
pulsam e vibram com uma vitalidade específica, comunicando ao leitor a
própria essência da linguagem. Neles as palavras se combinam compondo
sintaxes, ou seja, um quebra-cabeça onde cada peça se encaixa
perfeitamente, mas sempre pode ser combinada de outra forma, criando e
recriando novas possibilidades. (SANTANA, 2016, p. 01, grifo do autor).

Ao longo do tempo, a poesia foi usada como instrumento para expressar os


mais diferentes sentimentos: tristeza, amor, angústia, saudade, alegria, etc.
Atualmente, além de expressar esses sentimentos, a poesia aborda também, temas
de cunho social, imprimindo a aproximação da realidade e do cotidiano de cada
indivíduo.
Assim sendo, a humanidade imprime seus anseios, preocupações, percepções
e emoções por intermédio da poesia. Contudo, essa manifestação de arte durante
um período permaneceu estrita a determinados grupos e aos poucos está se
73

expandindo.
Combatendo esse pensamento restritivo, a spoken word surgiu numa tentativa
de divulgar a poesia além dos muros que a separavam de toda a coletividade.
Assim, a poesia falada foi criada:

Numa tentativa de resgatar a tradição oral da literatura e, ao mesmo tempo,


de levar a poesia para além dos limites das universidades, bibliotecas e
instituições que a tornavam sacra, os beats produziram uma literatura para
ser recitada e ouvida, como música, e não para ficar restrita aos limites da
folha de papel do livro empoeirado na estante. O costume de ler poesia em
público cresceu muito nos Estados Unidos depois que esses poetas
introduziram essa prática de grande valor social e de enorme potencial
transformador, em razão de sua função coesiva. […] A leitura de poesia em
público nos ajuda a entender a grande repercussão e abalo social causado
pela beat generation. Pensaram que era possível aprofundar a autonomia
da arte e ao mesmo tempo reintegrá-la à vida, generalizar as experiências e
transformá-las em fenômenos coletivos. (SANTOS, 2004, p. 03).

Principiando que a poesia é linguagem universal e também uma ferramenta de


transformação social, percebe-se que o trabalho do grupo Slam Resistência dá voz a
todos, partindo da ideia que toda pessoa é capaz de opinar sobre arte.
Cada obra é rica e possui suas peculiaridades, tendo significado único, o que
pode ser observado a partir das apresentações na Praça Roosevelt.
Deste modo, os Slams são uma grande rede que promove transformação de
pensamentos, atitudes e conceitos, com a missão de fortalecer os coletivos artísticos
e resgatar a integração da sociedade.
Portanto, o Slam – não apenas o Slam Resistência, bem como os demais –
democratizou a poesia promovendo encontros gratuitos em espaços públicos,
praças, bares, ruas e centro culturais, realizando verdadeiras ocupações desses
espaços.

4 Poesias

A seguir será exposto a letra de poemas autorais de três participantes dos


recitais proporcionados pelo Slam Resistência, esses poemas encontram-se
publicados em redes sociais.
Segundo Paulo Leminski o “vídeo-poesia é o futuro da poesia, um suporte
material importantíssimo […] É um poema vivo”, partindo desse pensamento, o Slam
Resistência elaborou uma página nas redes sociais para divulgar os vídeo-poemas e
informar também sobre acontecimentos no Brasil e mundo.
74

Essa ocupação nos espaços virtuais faz com que a poesia ganhe cada vez
mais repercussão, publicidade e força de comunicação, apresentando realidades
esquecidas, por intermédio de mensagens refletivas.
O primeiro poema é da poetisa Jade Fanny, ganhadora das batalhas do mês
de novembro/2016.

Então cença aqui, eles vivem dizendo que sou folgada, mas Ó, hoje até
licença eu pedi. Já ouvi vários deles rimar sobre poder pras minas, mas me
intriga, por que após vem sempre aquela frase … "Ela poderia ser sua filha”
mãe, esposa, irmã, prima. Parece ser algo de 50 anos atrás, mas não, ainda
hoje se estivermos sozinhas no espaço público ou privado, sem que um
homem nos acompanhe, há algo de errado. Até que ponto é inconsciente
seu psiu na rua? Até que ponto é considerada normal sua conduta?
Atração? Imposição, socialização? Impulso? Abuso! Me recuso. Ma tenho
que sair de casa todos os dias traçando rotas mentais mais seguras, tendo
que calcular segundos, minutos, horas. Pra que dê tempo de chegar em
casa ao final do dia sem ter sido violentada FISICAMENTE. Porque no
primeiro passo que dou pra fora, sou bombardeada por agressões, as
faladas, as olhadas, as silenciadas… Mas ok, de acordo com a poesia se eu
não for da sua família, MERECIA. Afinal quem mandou sair de casa
sozinha? Normalmente eu não presto, mas prestei atenção no seu verso
que dizia, se ela quer dar, deixe que dê mesmo, sem dó, sem medo e
entendi nas entrelinhas que você só é à favor disso se também estiver
comendo e cês adora dizer que deve se respeitar uma mulher por ela poder
ser mãe se na real quem merece palmas são vocês que podem ser pais.
Que se não quiser assumir tem liberdade de mete o pé e sai vazado em
paz. Se não fosse trágico, seria engraçado. Chegou no sarau, em uma mão
o mic na outra ergueu o punho serrado, gritou pra todo mundo ouvir que era
pelo "FIM DO PATRIARCADO". Falou de primavera feminista na camiseta?
escrito #ficaquerida. Mas conhece, um cara que quando bebê fica agressivo
já bateu na companheira duas vezes, mas fazer oque se ele é seu amigo...
Faz now pow, deixou a barba crescer, acredita na luta de classes. E pra
lavar uma louça? Os bonito num tem coragem. Já leu Simone de Beauvoir,
admira Dandara, fala de Maria Bonita acredita em Iemanja e não tem
vergonha na cara. Não admite receber não de mulheres e alimenta a
disputa, se é contrariado sai chorando e diz que é tudo puta. Seus
relacionamentos são a base do amor livre Magnetiza mulheres de baixa alto
estima pro ranking. Usa como desculpa pra manter sua masculinidade
aflorada e perfeita, se a proposta dela for com outra mulher tem fetiche e se
for com outro homem não aceita? É, a sua máscara caiu, a sua atuação de
desconstruído faliu, a sua construção te destruiu, tu viu? Que não adianta
querer ganhar biscoito por ser o melhor do coito, pica das galáxias, o rei
delas, porque a gente sabe, o autor do seu livro sobre feminismo é
conhecido como Dado Dolabella. (FANNY, 2016).

Em uma linguagem coloquial a poetisa expressa a angústia diária que tantas


mulheres vivenciam no seu dia a dia e que resultam de uma cultura de valorização
do masculino e que se dissemina por todas as classes sociais. Ao destacar
mulheres que são consideradas expoentes lembra que seus exemplos pouco valem
na cultura de desvalorização do feminino.
A próxima poesia citada pertence ao secundarista, Lucas Penteado Kóka,
75

morador de São Paulo, vencedor da edição dezembro de 2016.

Era uma vez… Não, para! Que isso aqui não é conto de fadas! E a história
que vai ser relatada é só realidade. Conta as memórias de uma vida pacata
que esmagou a maldade. 1996, quatro horas da manhã, dilatação de 4
dedos, mas não tinha parteiros. A saúde onde eu moro me dá nos nervos.
Nome da mãe? Andréia, preta, nesse mundo é treta. Quando madura via
que a vida era dura, parecia que Deus olhava e dizia: - Poucas ideias.
Prazer! Sou sim o desgraçado, como o engravatado tinha me falado. É, mas
ele ficou impressionado, porque além de ser negro drama também sou um
negro estudado. Porém na academia da hipocrisia, a matéria que eu não
entendia eles querem tirar, mas um dia, um dia eu chego na universidade.
Eles nem tão ligado que a vida serviu de faculdade, tinha apenas três
matérias: Miséria, Escravatura e Infelicidade, pois é Brasil, eu nunca tive um
“but” de mil, mas no sistema eu vou tentar dar uma bota, por que eu quero
ver meu bem, quando no ENEM eu tirar 100 eles falarem que foi cota.
(KÓGA, 2016).

Ao expor questões como saúde e educação, o poeta “coloca o dedo na ferida”


da desigualdade econômica e social além de destacar o preconceito de raça, muitas
vezes velado, mas sempre cruel. Traz a realidade vivenciada por grande parte da
população que se encontra em condição de marginalidade sem o direito de ter e de
usufruir direitos.
Ainda, destaca-se a poesia recitada pelo slammer Rafael Carnevali, que
abordou o tema opressão no Brasil.

Extra, extra, extra, extra...morte por ingestão de 25 doses de vodka, deixou


o povo mais chocado do que a distribuição gratuita de balas por
desconhecidos fardados. O outro lado, o lado que é menos visto, o lado que
é mais julgado. Desse lado mais um jovem se foi executado, por falar o que
não devia, mas será que não devia? Se falava o que sentia, o que vivia…
Diz ai como pode julgar ostentação, quem sempre teve brinquedo, os
panos, refeição. Como pode julgar o rancor com os homi, quem nunca se
sentiu oprimido em becos que qualquer neguinho é fácil confundido com
bandido. O muleque iniciava sua caminhada e começava a brilhar. O brilho
nos olhos transmitia que só queria...CANTAR, suas ideias, seus anseios,
suas dores, a verdade cantou. O cano da ponto 40 em meio a seu show
POW POW… Daniel Pelegrine pelegrinou para o outro lado, pelo tráfico,
pelas drogas, pelo destiLADO, por um grupo de extermínio que caça, que
afronta o currupto ligado, foram para o outro lado, por cantarem, por
gritarem os anseios do outro lado do muro. Do Mc boladão, primo, careca,
Amarildo, claúdios, os pixadores, o camelô, eduardo de 10 anos, seres da
oeste, da norte, da sul, da leste. Difícil de entender não é pobre burguês,
você que legitima esses atos, que apoia e ri do outro lado. Alá o gatela
falando tem que matar mesmo, mata mesmo esse tudo neguinho de favela,
vagabundo. Burguês, você não sabe o que é favela, você que nunca pegou
transporte lotado, nunca tomou enquadro abusivo, vice com um copo de
whisky na mão. Você do outro lado dos muros, das grades de condomínios,
da televisão, com medo de andar pela rua e que todos os negros do mundo
te agridam. Mas desse lado as lágrimas caiem, os corações humanos, os
corações iguais que nutrem a terra com a semente da revolta, pois não há
mais volta. Levaram pai, o amigo, o irmão, por mãos que se intitulam a LEI,
76

mas eu sei, vocês sabem quem são. Um salve a todos que nuca deixarão
de cantar ou gritar o que vivem. Contra o genocídio da população preta,
pobre e periférica. Movimento rock, rap, funk, afroreggae, skate, poesia,
porque por mais que não satisfaça, se tem amor, que tenha quem faça. São
mais guerreiros que ficaram na memória e esse é só o outro lado da
história, o que a porra da Globo nunca nos mostra. (CARNEVALI, 2015).

As indicações apresentadas pelo poeta expressam a opressão das grandes


diferenças sociais que colocam seres humanos em lados opostos dos muros. Ao
mencionar o beco escuro e o condomínio, nada mais faz do que demonstrar as
grandes desigualdades que enveredam pela violência fazendo do pobre o bandido e
do rico a vítima, ideia que se dissemina e alcança todos os seguimentos sociais e se
perpetua mantendo a ordem ou desordem vigente.
A intenção desse tópico é demonstrar o poder da palavra rimada e a fertilidade
das poesias levadas em discussão pelos apresentadores, retratando suas lutas,
esperanças, críticas e percepções. Em espaços urbanos os pensadores da vida e do
cotidiano, expressam a sociedade para a sociedade e por meio do conhecimento
disseminado nos encontros, cria-se e estimula-se o respeito e a tolerância,
instrumentos de combate e resistência social.

Conclusão

A arte pode ser expressa nas mais diversificadas formas de manifestação,


porém, mais precisamente por meio da poesia, é uma rica contribuição de
transformação e revolução social, uma vez que trabalha sob os pilares da
diversidade, participação e inclusão, integrando indivíduos que compartilham
pensamentos nem sempre comuns que resultam de experiências suas ou não, mas
que lhes impactam fortemente.
A poética política, por exemplo, é uma verdadeira bandeira de resistência e de
ativismo, é uma poesia que causa impacto social por apontar problemas e discutir
soluções diante da inércia do poder público e da própria sociedade.
Além da ideia de resistir, há também o objetivo de articular novos
pensamentos, visando esclarecer e empoderar o coletivo para promover a
permanência e a integração da diversidade.
A arte de guerrilha retrata a luta e o fortalecimento das manifestações que cada
vez mais se utilizam de espaços públicos, permitindo que a sociedade contribua,
participe e saiba quais são as necessidades, interesses e reivindicações e chegue
77

aos poderes instituídos.


Portanto, o coletivo Slam Resistência, por meio da poesia, como um protesto
pacífico nas atitudes e combativo nas palavras é muito criativo. Além do que,
oportuniza e estimulaum espaço de interação entre diversos segmentos da
sociedade civil e, ainda, possibilita um campo de construção mental onde se
percebe que todos, independentemente de quem seja, têm muito para contribuir com
a coletividade.

Referências

AZEVEDO, Plauto Faraco. Ecocivilização. 3.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais. 2014. ISBN 978-85-203-5287-8

CIDADE LÚDICA. Slam Resistência ocupa a Praça Roosevelt. 2016. Disponível


em: <http://cidadeludica.com.br/2016/07/03/slam-resistencia-ocupa-a-praca-
roosevelt/>. Acesso em: 10 mar. 2017.

CIDADE LÚDICA. É dia de Slam Resistência na Roosevelt!. 2016. Disponível em:


<http://cidadeludica.com.br/2016/08/01/e-dia-de-slam-resistencia-na-roosevelt/>
Acesso em: 20 mar. 2017.

FFDSP. Fédération Française de Slam Poésie. 2015. Disponível em:


<http://www.ffdsp.com/>. Acesso em: 13 mar. 2017.

FORTES, Bartira. O Ativismo Poético do Slam Resistência: Entrevista com Del


Chaves. 2016. Disponível em: <https://caliban.pt/o-ativismo-po%C3%A9tico-do-
slam-resist%C3%AAncia-cb23c4d01234#.opamdljch> Acesso em: 17 mar. 2017.

MIRANDA. Fernanda. Slam Resistência: batalha de poesia conecta público a


poetas na Praça Roosevelt. 2016. Disponível em:
<http://cidadeludica.com.br/2016/08/13/slam-resistencia-batalha-de-poesia-conecta-
publico-a-poetas-na-praca-roosevelt/>Acesso em: 10 mar. 2017.

Outras Rimas. Paulo Leminski Fala Sobre A Poesia do Futuro – Fragmentos 1.


2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Sku9F9KPLRE> Acesso
em: 20 mar. 2017.

SANTANA, Ana Lucia. Poesia. [2016]. Disponível em:


<http://www.infoescola.com/literatura/poesia/>. Acesso em: 14 mar. 2017.

SANTOS, Lucas Moreira. 2004. Beat Bat Bump! Bebop! Dig it?? Ensaiando com
Beatniks: A Musicalidade Jazzística de uma Poética Espontânea.

SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço Habitado: Fundamentos teóricos e


metodológicos da Geografia. Em colaboração com Denise Elias. 6 ed. 2 reimp.
78

São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2014. ISBN 978-85-314-1044-4

SLAM RESISTÊNCIA. 2016. Disponível em:


<https://www.facebook.com/slamresistencia/>. Acesso 10 mar. 2017.

Slam Resistência –Poeta Rafael Carnevalli falando sobre a realidade opressora


brasileira. 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=P3gzwY-
WECo>. Acesso em: 15 mar. 2017.

Sociedade dos Poetas Livres. Slam Resistência – Lucas Penteado Kóka


(Vencedor edição de Dezembro). 2016. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=zRD81DYoMcQ>. Acesso em: 15 mar. 2017.

Sociedade dos Poetas Livres. Slam Resistência – Jade Fanny ganhadora de


Novembro. 2016. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=lgyn9UwYByE>. Acesso em: 15 mar. 2017.

ZAP um Slam Brasileiro. Mas que Raios é SLAM?!? 2010. Disponível em:
<http://zapslam.blogspot.com.br/2009/05/mas-que-raios-e-slam.html> Acesso em: 20
mar. 2017.
79

GRUPO DE TRABALHO 2

DEMOCRATIZAÇÃO E SOCIALIZAÇÃO DOS MEIOS DE


COMUNICAÇÃO: A MÍDIA, ENTRE A REGULAÇÃO E AS LUTAS
SOCIAIS

Ementa: O GT está aberto para receber trabalhos em diversos formatos que


coloquem em questão o papel dos meios de comunicação na sociedade
contemporânea. Interessa particularmente o debate urgente sobre a democratização
dos meios de comunicação. Numa época de crise e lutas sociais tão fortes, será a
regulação o caminho eficiente para inviabilizar o uso da mídia para a manutenção da
dominação e desigualdade sociais? Ou estamos diante de experiências que
apontam para outros caminhos, pautados pela efetiva socialização dos meios de
comunicação? Serão muito bem vindas apresentações que trabalhem com temáticas
relativas ao debate jurídico sobre mídia, mas também aqueles que comentem a
prática de uma outra comunicação.

Coordenador: Manoel Dourado Bastos (manoel.bastos@gmail.com).


80

A ESPETACULARIZAÇÃO DO MOVIMENTO BRASIL LIVRE: UMA ANÁLISE


COMPARATIVA COM A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO DE DEBORD25.

Júlia Frank de Moura26

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo um estudo comparativo do


discurso do Movimento Brasil Livre (MBL) com o livro “Sociedade do espetáculo” de
Debord. Utiliza-se como base e corpus da pesquisa o vídeo de divulgação do canal
do MBL no YouTube, denominado ‘filie-se ao MBL!’. Justifica-se a importância da
pesquisa para auxiliar na compreensão da tamanha dimensão que o coletivo tomou
em pouco tempo, recrutando um público formado principalmente por jovens
brasileiros, os levando a pensamentos e ideais muitas vezes caracterizados por
pontos neoliberais. Utiliza-se a definição de discurso dada por Orlandi, de que com o
discurso se observa o homem falando.
Palavras-chave: Movimento Brasil Livre, sociedade do espetáculo, análise
comparativa.

Introdução

O Movimento Brasil Livre (MBL) surgiu no final de 2014 como um coletivo que
se autodenominava apartidário e a solução para os problemas políticos brasileiros,
pregando pela “liberdade” do país que, segundo os líderes do movimento, estaria
preso pelo governo do PT. O objetivo deste trabalho é fazer uma análise
comparativa do discurso deste coletivo com a sociedade do espetáculo, descrita no
livro “A sociedade do espetáculo” de Guy Debord, apontando as semelhanças dos
mesmos, utilizando como corpus da pesquisa o vídeo de divulgação do canal do
Movimento no YouTube, “filie-se ao mbl!”. Segundo Debord, o espetáculo seria a
relação social de pessoas mediatizadas por imagens e, tendo em vista que o
principal canal de comunicação entre o MBL e seus seguidores é a internet, o
movimento utiliza imagens e vídeos como sua principal fonte de informação e
disseminação de conteúdo, criando assim sua própria sociedade mediatizada, ou
25
Trabalho orientado pelo professor Dr. Manoel Dourado Bastos, Departamento de comunicação da
UEL.
26
Universidade Estadual de Londrina (UEL). juliafdmoura@gmail.com.
81

seja, uma sociedade do espetáculo própria do coletivo. Com mais de 2 milhões de


curtidas no Facebook e mais de 41 mil inscritos no YouTube em menos de 2 anos e
meio, é importante compreender a espetacularização desse movimento para que se
possa entender, até mesmo, o comportamento desta grande fatia jovem do Brasil
que se forma moldada nestas ideologias. Debord aborda na análise de seu livro que
o espetáculo “reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado”, o que traz à
discussão o consumo deste modelo espetacularizado de coletivo enquanto modo de
diferenciação social. Com isso surgem perguntas como: consumiria o jovem a
ideologia do MBL para fazer parte de uma fatia diferenciada da população?

Metodologia e corpus da pesquisa.

Como método de pesquisa, e também para uma melhor organização do texto,


será utilizado o estudo comparativo, apontando as semelhanças entre o texto de
Debord e o discurso do Movimento Brasil Livre. John Stuart Mill, em sua obra
“Sistema de lógica dedutiva e indutiva” propõe duas maneiras de comparação:

Os métodos mais simples e familiares de escolher entre as circunstâncias


que precedem ou seguem um fenômeno, aquelas às quais esse fenômeno
está realmente ligado por uma lei invariável são dois: um consiste em
comparar os diferentes casos em que o fenômeno ocorre; o outro, em
comparar casos em que o fenômeno não ocorre. Esses dois métodos
podem ser respectivamente denominados o método de concordância e o
método de diferença. (MILL, 1984, p. 196)

No seguinte trabalho será utilizado o método de concordância do estudo


comparativo, ou seja, analisa-se os diferentes casos em que o fenômeno da
espetacularização ocorre (no livro, no discurso do MBL), apontando no discurso do
vídeo do MBL semelhanças com o livro de Guy Debord. Aqui, utiliza-se discurso
como Eni Orlandi o descreve em seu livro “Análise de Discurso: princípios e
procedimentos”, etimologicamente definindo “discurso” como “palavra em
movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem
falando” (ORLANDI, 2002, p.15). Ainda segundo Orlandi “[...] o discurso é o lugar em
que se pode observar essa relação entre língua e ideologia, compreendendo-se
como a língua produz sentidos por/para os sujeitos” (ORLANDI, 2002, p. 17).
Importante destacar que nenhum discurso é completamente livre de expor
ideologias, mesmo quando um grupo se coloca e se autodefine como apartidário.
O Movimento Brasil Livre surgiu no Brasil no final de 2014, em um momento
82

conturbado politicamente, logo após a reeleição da presidenta Dilma Rousseff com


51,6% dos votos e a intensificação das movimentações para os pedidos de
impeachment da presidenta. Neste momento manifestações de grupos como o MBL,
“Vem pra Rua” e “Revoltados Online” se intensificava e ganhava mais visibilidade.
Em 2015, o coletivo promoveu uma caminhada de São Paulo a Brasília e
encaminhou um dos pedidos de impeachment. Em 2016 o impeachment aconteceu
de fato, afastando Dilma do poder. Mesmo depois da destituição de Dilma do poder
o movimento continuou a ganhar força, utilizando a ideia de que o Brasil estaria cada
vez mais perto da liberdade, sendo preciso agora focar nas eleições de 2018 e,
segundo o movimento, se afastar cada vez mais de ser uma “nova Venezuela”.
O vídeo escolhido como corpus da pesquisa é o utilizado como divulgação do
canal do MBL no YouTube e tem como título ‘filie-se ao MBL27’. Justifica-se a
escolha deste vídeo pelo fato de ser o mais destacado dentre todos os envios do
canal no momento, e de ser utilizado como propaganda principal do MBL dentro de
seu canal no YouTube. Filie-se ao MBL tem mais de 15 mil visualizações28 em dois
meses de divulgação, foi publicado no dia 1 de fevereiro de 2017 e tem 1 minuto e
38 segundos de duração.
Figura 1 - Print do vídeo escolhido como corpus da pesquisa

27
https://www.youtube.com/watch?v=yf5JRNdaew4
28
Dado coletado no dia 21 de abril de 2017
83

O vídeo começa com a marca d’água do movimento em frente ao congresso,


com time lapses do dia que o MBL acampou em Brasília, provavelmente após uma
marcha promovida pelo movimento no ano de 201529. Em seguida, o vídeo explora
notícias de fatos políticos ocorridos no Brasil, como o impeachment, que segundo o
coletivo foram mudanças positivas que o MBL ajudou a causar no país: “novos
líderes passam a defender ideias liberais e o respeito ao dinheiro das pessoas passa
a ser o centro do debate nacional” é uma das frases proferidas pelo narrador do
vídeo. “Mudamos o país para melhor, mas não paramos por aqui”, “queremos
desmascarar candidaturas que possam levar tudo a perder em 2018”,“queremos
contrapor a imprensa esquerdista”, essas frases são seguidas do pedido para que
os seguidores se filiem e contribuam com o movimento, e então são apresentados
os planos que o filiado pode ter, que variam de R$30,00 a R$250,00 por mês, este
último incluindo jantares com os líderes do coletivo. Todas essas informações são
ilustradas com uma série de imagens, que incluem vídeos de discursos do
movimento em manifestações e líderes do movimento convidando seguidores com
as mãos (figura abaixo).

Figura 2 - líderes do MBL convidam seguidores a se filiarem

29
http://tv.estadao.com.br/politica,movimento-brasil-livre-inicia-marcha-de-sao-paulo-a-
brasilia,398794
84

Análise comparativa

Sociedade do espetáculo é um livro de Guy Debord, publicado em 1967. Mais


tarde a obra também virou um filme30 dirigido pelo próprio autor. Neste trabalho,
Debord aborda que toda vida das sociedades que são comandadas pelas condições
modernas de produção é um conjunto de espetáculos e tudo que antes era vivido
diretamente pelas pessoas, agora é representação. No filme, o autor cita que “sob
todas suas formas particulares, informação ou propaganda, publicidade ou consumo
direto de divertimentos, o espetáculo constitui o modelo presente da vida
socialmente dominante” (Filme Sociedade do Espetáculo, Guy Debord 1973, 4’ 39’’).
E complementa: “Considerado segundo seus próprios termos, o espetáculo é a
afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, isto é, social, como
simples aparência” (Filme Sociedade do Espetáculo, Guy Debord 1973, 5’ 34’’).
Uma das reflexões de Debord no livro Sociedade do espetáculo é a de que:

O espetáculo se apresenta como uma enorme positividade, indiscutível e


inacessível. Não diz nada além de “o que aparece é bom, o que é bom
aparece”. A atitude que por princípio ele exige é a da aceitação passiva que,
de fato, ele já obteve por seu modo de aparecer sem réplica, por seu
monopólio da aparência. (DEBORD, p. 16)
Para os pesquisadores do MBL, e mesmo para quem já tenha algum repertório
sobre o coletivo, não é difícil comparar o seu discurso com o trecho acima de
Debord. Sempre apresentado como um movimento grandioso, que ganha cada vez
mais espaço e seguidores, com ideologias positivas, segundo seus líderes, o MBL
traz a mensagem de que seus ideais são bons, se colocam como o lado certo
indiscutivelmente. Tal colocação do movimento é percebida desde seu slogan, que
atualmente é “faça parte do movimento que está mudando o Brasil”. O MBL se
coloca como algo grandioso, positivo e indiscutível, como o espetáculo de Debord,
ao se auto afirmar como o movimento que está mudando o país. Não é só com
frases que o movimento se afirma grandioso, os frames utilizados nos vídeos
também são escolhidos para transmitirem essa grandiosidade do espetáculo.

30
https://www.youtube.com/watch?v=q0AJ66Rb-1o
85

Figura 3 - Frame do vídeo destaca um dos líderes do movimento na multidão

Sobre a figura apresentada acima, cabe-se destacar a posição do líder,


Fernando Holiday, em relação à multidão de seguidores do MBL. No vídeo,
Fernando se ajoelha perante a manifestação, mas continua ocupando lugar de
destaque, o local de líder, quase como um Messias levando a mensagem do
movimento. Se observado como espécie de messias, o MBL também pode ser
comparado com o seguinte trecho de Debord: “O espetáculo é a reconstrução
material da ilusão religiosa. A técnica espetacular não dissipou as nuvens religiosas
onde os homens tinham colocado os seus próprios poderes desligados de si: ela
ligou-os somente a uma base terrestre.” (DEBORD, p.20). No vídeo analisado,
trechos como “Mudamos o país para melhor, mas não paramos por aqui. O MBL
precisa da sua ajuda para completar sua missão” e “queremos tornar o Brasil, enfim,
livre” carregam certo teor messiânico.
Marilena Chauí, uma das autoras brasileiras que trata do nacionalismo, chama
a ideologia nacionalista dentro do Brasil de verdeamarelismo e, segundo ela, o mito
fundador que forma este verdeamarelismo é dividido em três vertentes. Uma das
vertentes é chamada pela autora de a “vontade de Deus”. A “vontade de Deus”, trata
do poder teocrático, a escolha de um líder pela vontade divina, ou seja, a vontade de
Deus. Segundo Chauí: “De acordo com essa teoria, se algum homem possuir poder
é porque o terá recebido de Deus, que, por uma decisão misteriosa e
incompreensível, o concede a alguém, por uma graça ou favor especial” (CHAUÍ,
2000, p.82). Assim, nos momentos em que o MBL usa mensagens messiânicas e
palavras como “missão”, tratando da libertação de um país (Brasil) e de um povo
86

(brasileiro), pode-se analisar seu discurso segundo esse poder teocrático que torna
o movimento uma espécie de messias.
Como dito anteriormente, o discurso também é o local onde se observa a
relação de ideologia com a língua. Pensando na transmissão de ideologias através
de discursos, pode-se destacar o trecho do livro onde Debord expõe que:

O espetáculo na sociedade corresponde uma fabricação concreta da


alienação. A expansão econômica é sobretudo a expansão dessa produção
industrial específica. O que cresce com a economia que se move por si
mesma só pode ser a alienação que estava em seu núcleo original.
(DEBORD, p.24).

Pode-se pensar este trecho como a produção massiva de conteúdo que a


internet traz. Uma forma de expansão da produção industrial, voltada para
conteúdos. A partir do momento em que o seguidor de um movimento dá atenção a
um conteúdo sem ter referenciais externos, de política e economia por exemplo,
esses textos podem se tornar também uma forma de alienação. A internet traz
muitas informações, verídicas e não verídicas, cabe ao leitor filtrá-las para que não
ocorra a alienação que constitui o núcleo original do crescimento econômico citado
por Debord.
Para ter conseguido este destaque e ganhado todos os seguidores, o MBL fez
uso do ciberativismo31 nas redes sociais, contando com os likes e
compartilhamentos de seus seguidores e simpatizantes para que suas ideias e
manifestações atingissem um maior número de pessoas. Seu principal meio de
transmissão de ideias e manifestação sempre foi a internet. A internet é um meio de
comunicação cada vez mais abrangente, mas ela ainda não está a disposição de
todos, excluindo uma fatia da população (por idade e por renda). O acesso à internet
e a ideias transmitidos por ela já é uma forma hierárquica de transmissão de
informações.

Assim, o espetáculo é uma atividade especializada que responde por todas


as outras. É a representação diplomática da sociedade hierárquica diante
de si mesma, na qual toda outra fala é banida. No caso o mais moderno é
também o mais arcaico. (DEBORD, p.20).
Pode-se pensar o trecho acima no sentido de que o momento do espetáculo
em si é uma atividade que fala pelo conjunto de todas as outras do movimento. É,

31
“por ciberativismo podemos denominar um conjunto de práticas em defesa de causas políticas,
socioambientais, sociotecnológicas e culturais, realizadas nas redes cibernéticas, principalmente na
Internet”. (SILVEIRA, 2010, p.31).
87

também, representação da sociedade hierárquica a partir do momento que utiliza


canais que não são acessíveis a todos; palcos e líderes, espaços e locais de fala
que também não dão acesso a todos os interessados. É moderno, porém arcaico,
assim como coloca Debord. Entende-se sociedade do espetáculo como relação de
pessoas mediatizadas por imagens, pode-se compreender o MBL também como um
espetáculo propriamente dito.
Em um outro momento, no livro, Debord aborda o espetáculo sob o ponto de
vista da mercadoria. Pode-se pensar coletivos e movimentos como MBL também
como mercadorias. O autor afirma que “O espetáculo é o momento em que a
mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a
mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê
é o seu mundo.” (DEBORD, 2003, p.30).

Considerações finais

Segundo Debord a sociedade do espetáculo é a relação de pessoas


mediatizadas por imagens. Movimentos como o MBL, que utilizam imagens e a
internet como principais formas de comunicação e transmissão de ideias são
também um formato de espetáculos próprios que acabam formando um conjunto e
criando a sociedade descrita pelo autor. Durante a análise ficam evidentes diversos
momentos em que o discurso do movimento é compatível com as ideias de
espetáculo do livro de Debord, como sua apresentação como algo grandioso,
positivo e indiscutível ao público e a sua reconstrução da ilusão como a utilizada na
religião, ao se colocar como o Messias que traria a liberdade ao Brasil. O movimento
faz parte deste mundo alienado e hierarquizado descrito pelo autor, e ao ter a
autoridade e atenção necessárias para transmitir seus ideais, e utilizar meios de
comunicação massivos, como a internet, acaba criando espetáculos e contribuindo
para a fortificação deste modelo onde, segundo Debord, o mais moderno é também
o mais arcaico.
Outro ponto de destaque sobre o MBL, é o fato de seus líderes terem se
tornado verdadeiras celebridades. Isto é evidente quando, por exemplo, um dos
pacotes para se filiar ao coletivo inclui jantares com seus líderes. Isso é
característica também do espetáculo, transformando os líderes do movimento em
atores sociais. O movimento já chegou até a ser comparado, por meios de
88

comunicação, uma banda indie32.

Referências

CHAUÍ, Marilena. Brasil, mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo:


Fundação Perseu Abramo, 2000.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. São Paulo: Gallimard, 1992.

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas:


Ponte editores, 2002.

32
http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/12/politica/1418403638_389650.html
89

AGITAÇÃO E PROPAGANDA EM LENIN: O JORNAL POLÍTICO COMO ARMA


REVOLUCIONÁRIA

Willian Casagrande Fusaro33

Resumo: Este artigo analisa a teoria da agitação e propaganda (agitprop), em


Vladimir Ilitch Ulianov (Lenin), como ferramenta política, na figura do jornal do
Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR), para a organização do
movimento operário e camponês durante o período pré-revolucionário na Rússia. O
presente trabalho concentra-se em textos germinais da obra lenineana –Por Onde
Começar? (1901), Que Fazer? (1902) e Carta a um Camarada (1902) – para
discorrer a respeito dos conceitos de agitação e de propaganda, centrais para a
teoria elaborada por Lenin a respeito da organização do partido operário, o qual era
considerado, pelo revolucionário russo, como a “vanguarda da revolução” e “a fração
mais adiantada e esclarecida do movimento comunista e operário”. A metodologia
utilizada nesta pesquisa é a consulta bibliográfica. Serão utilizados, também, textos
de intérpretes e críticos da obra de Lenin, que tanto avaliaram quanto desdobraram
sua teoria da organização partidária através da imprensa do partido. O artigo tem o
objetivo de refletir sobre essa concepção de comunicação radicalmente alinhada aos
interesses dos trabalhadores e, em específico, do proletariado, como ferramenta
ideológica e política para o avanço rumo ao socialismo.
Palavras-chave: agitação e propaganda, agitprop, Lenin

Introdução

A comunicação como ferramenta política do movimento revolucionário dos


trabalhadores tem particular importância para uma das maiores lideranças
revolucionárias da história, Vladimir Ilitch Ulianov, ou, simplesmente, Lenin. Em sua
teoria da formação do partido revolucionário, esboçada nos textos expostos e
analisados a seguir neste artigo, o dirigente bolchevique delineou de forma clara e
precisa o campo de atuação de agitadores e propagandistas na concepção do jornal

33
Especialista em Comunicação Popular e Comunitária pela UEL e graduado em Comunicação Social
– Habilitação em Jornalismo pela mesma universidade. Membro do Comitê pelo Passe Livre de
Londrina. E-mail: williancfusaro@gmail.com
90

revolucionário único para toda a Rússia, que seria produzido pelas mãos dos
militantes mais qualificados para atuarem como agitadores e propagandistas pelo
partido.
Mesmo que de forma não intencional, Lenin lançou as primeiras bases para
uma comunicação voltada aos trabalhadores, sistematizada e afinada com a
ideologia do comunismo. Esse fato torna a concepção lenineana de agitação e
propaganda (agitprop) muito relevante para os estudos e práticas de comunicação
que disputam hegemonia com a comunicação burguesa, pois foi uma das teorias
que embasaram uma tradição de jornalismo militante nas esquerdas em todo o
mundo, durante todo o século XX.
Propor uma análise mais acurada com o objetivo de utilizar-se da agitprop na
atualidade, seja como arcabouço teórico ou como práxis política, traz um duplo
desafio a esta pesquisa, já iniciada pelo autor durante o curso de Especialização em
Comunicação Popular e Comunitária, da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Na ocasião, a agitação e a propaganda em Lenin foram instrumentos de análise e
arcabouço teórico para a construção da monografia de conclusão de curso. Este
trabalho é um excerto da referida pesquisa.
O primeiro desafio é se propor a avaliar uma das teorias que serviram de
embasamento teórico a uma das experiências revolucionárias mais marcantes da
história, a Revolução Russa de 1917, justamente neste momento de rebaixamento
dos horizontes políticos da esquerda socialista, evidenciado por partidos,
movimentos sociais, sindicatos e organizações em todo o mundo. Os socialistas
sabem que são tempos difíceis.
O segundo desafio é propor uma continuidade a essa teoria, utilizando-se da
dialética para esse fim. A agitação e propaganda concebidas por Lenin no início do
século XX não podem e não devem ser replicadas tal qual o revolucionário as
concebeu na época, afinal os marxismos necessitam de contextualização histórica.
Propor uma atualização da agitação e propaganda como alternativa à comunicação
da esquerda socialista significa, portanto, superar dialeticamente as experiências
políticas fracassadas sem ignorar as virtudes da teoria revolucionária.
Este artigo se concentrará, no entanto, somente no ponto de partida: a
definição sistematizada dos conceitos de “agitação” e “propaganda”, tal como
concebidos pelo dirigente do Partido Bolchevique. Para tanto, será preciso recorrer a
autores, além do próprio Lenin, que refletiram criticamente o pensamento lenineano
91

a fim de aperfeiçoá-lo e pô-lo à prova. Antes, contudo, será necessário


contextualizar historicamente a Rússia pré-revolucionária e algumas das etapas
cruciais que desembocaram no processo revolucionário de 1917.

1 A Rússia pré-revolucionária

É na passagem do século XIX para o século XX que se inicia, na Rússia, de


forma mais intensa, a organização de uma comunicação para as classes
trabalhadoras. Nessa época, o país vivia sob o julgo do czarismo, regime de
características feudais em franca decadência e que perdurava por séculos, e do
imperialismo, principalmente francês e japonês. Segundo Victor Serge, no início do
século, a miséria da zona rural levou dez milhões de camponeses russos a
abandonarem os campos rumo às cidades, por conta da intensificação do plantio de
cereais, destinados à exportação. Esse campesinato encontra empregos em
indústrias a salários miseráveis. A carga horária chegava a até 14 horas diárias de
trabalho (SERGE, 1993).
As primeiras organizações operárias socialistas surgem nesse contexto, com
duas frentes opostas: os narodnikis (socialistas populistas, com bases assentadas
no campesinato mais conservador) e os marxistas, que posteriormente dariam
origem aos partidos da social-democracia, tanto bolchevique quanto menchevique e
socialista-revolucionário (SERGE, 1993). Essas organizações, assim como o recém-
criado Conselho de São Petersburgo (Soviet de São Petersburgo), tiveram ativa
participação na Revolução de 1905, uma insurreição fracassada de operários que
terminou em um massacre promovido pela guarda do czar Nicolau II.
A sublevação foi geral, em mais de cem cidades do país, mas o baixo nível de
organização dos operários e dos camponeses, assim como das vanguardas, não foi
suficiente para que a organização tomasse o poder, mesmo com a crise instalada no
Palácio de Inverno, sede da aristocracia czarista. O saldo da revolução foi de 15 mil
mortos, 18 mil feridos e quase 80 mil presos (SERGE, 1993, p. 46). Apesar disso,
Lenin chegou a classificá-la como um “ensaio geral da Revolução de 1917”, sem o
qual esta não poderia ter ocorrido.
Os anos posteriores, até 1914, podem ser resumidos pela expansão do
imperialismo franco-russo. Boa parte dos capitais investidos na Rússia vinha da
França – 60,7% da indústria de fundição e mais de 50% da produção de carvão
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eram dos franceses (SERGE, 1993, p. 50). Entretanto, as organizações operárias


também apresentavam evolução. A partir de 1910, encampam campanhas de
aumento salarial, diminuição de jornada de trabalho, além da fundação de jornais e
revistas, como o Pravda, criado em 1912, principal órgão da imprensa clandestina
operária russa.
Após o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, as organizações operárias
divergem sobre a ideia de apoiar ou não a entrada do país no conflito. Os
bolcheviques, à época uma ala do Partido Operário Social Democrata Russo
(POSDR), posicionam-se contrários, o que os distancia de todos os partidos de
esquerda da época, os quais não concordavam que a guerra prejudicaria
enormemente o proletariado de todos os países envolvidos (SERGE, 1993, p. 54).
Sob esse contexto – uma Rússia empobrecida pela guerra e por forças internas
intencionadas em tomar o poder czarista, enfraquecido ano a ano desde 1905 –,
ocorre a Revolução de Fevereiro de 1917.
Nesse episódio, uma coalizão entre a burguesia e o proletariado derrubou a
autocracia czarista em 27 de fevereiro, segundo o calendário gregoriano (12 de
março, no calendário ocidental). A coalização decidiu por instalar dois organismos
de governo, a Duma e o Soviete. A Duma, o parlamento da monarquia czarista,
reunia basicamente a burguesia e a aristocracia feudal russas, desejosas de uma
constituinte e um governo democrático, que privilegiassem seus interesses de classe
e freasse o avanço constante do movimento revolucionário, crescente desde 1912;
os sovietes, vários conselhos operários distribuídos em municípios russos, reuniam o
proletariado e os trabalhadores em geral, em suas frações partidárias e grupos
anarquistas, além de setores das classes médias comprometidos com a revolução
(SERGE, 1993, p. 52).
Em outubro do mesmo ano, ocorreria a Revolução Russa, que depôs o czar e
colocou o Partido Bolchevique (fração bolchevique do Partido Operário Social
Democrata Russo) no poder, dando início a uma guerra civil entre a burguesia e as
nações imperialistas, Exército Branco, e o proletariado na figura do Partido
Bolchevique e dos sovietes, Exército Vermelho. A guerra civil estendeu-se até 1921,
quando o Exército Branco, capitaneado pelas nações imperialistas (França,
Inglaterra, entre outras) e a burguesia e a nobreza russas, foi derrotado. A partir
desse episódio, o governo revolucionário conseguiu estabilizar-se no poder.
Não é necessário a este estudo discorrer minuciosamente a respeito desse
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período para entender o desenvolvimento da teoria lenineana sobre a comunicação.


Feitos os primeiros apontamentos históricos sobre a Rússia pré-revolucionária,
passemos à exposição e à análise da teoria da agitação e propaganda em Lenin.

2 A comunicação como eixo central: o agitprop russo

A concepção de Lenin a respeito da comunicação como eixo central da


atividade política organizativa do partido revolucionário inaugurou a interpretação
sistemática da comunicação como instrumento político da classe trabalhadora. Para
Lenin (1902), a agitação e propaganda (agitprop), por meios de comunicação como
jornal, panfletos, revistas, peças teatrais, entre outros, deveria ser uma das
principais preocupações do partido durante sua organização, o que confere grande
importância à comunicação na temática da organização partidária lenineana.
De acordo com o autor, “somente com o jornal o trabalho do partido com as
massas deixaria de ser artesanal, ou seja, amador, ocasional e sem abrangência”
(LENIN, 1978c, p. 22 apud VENANCIO, 2010, p. 39). Composto por uma rede de
militantes que produziriam coletivamente um jornal único para toda a Rússia,
divididos em várias regiões, esse veículo de comunicação serviria não só como
“propagandista e agitador coletivo, mas como organizador coletivo” (LENIN, 1978b,
p. 44 apud VENANCIO, 2010, p. 38) do partido revolucionário.
A agitprop russa tem suas origens nos textos Por Onde Começar? (1901)e Que
Fazer (1902), escritos por Lenin durante discussões com integrantes do POSDR.
Nesses textos, o dirigente delineou as primeiras bases do que seria uma
comunicação feita por militantes do partido, pela organização revolucionária, no
sentido de esclarecer às massas o conflito ideológico entre a burguesia decadente e
o proletariado, o que foi classificado pelo dirigente como agitação e propaganda.
Em Por Onde Começar?, texto publicado no jornal do Partido Bolchevique Iskra
(Fagulha, em russo) em 1901, Lenin estabelece as primeiras diretrizes do que seria
a base do pensamento da esquerda marxista a respeito do papel da imprensa como
“um instrumento de agitação e propaganda dos valores socialistas e revolucionários
e também como um fio condutor na organização política dos trabalhadores”
(CASSOL, 2010, p. 53). O jornal, nesse contexto, estabelece-se como um
instrumento de organização política coletiva, criado e mantido pelo Partido Operário
Social-Democrata Russo (POSDR), principalmente durante os períodos de
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organização coletiva da esquerda, ou seja, anteriormente às irrupções


revolucionárias.

Questionar se se deve trabalhar por criar uma organização combativa e


realizar uma agitação política em qualquer situação, em períodos
“cinzentos”, “pacíficos”, em períodos de “declínio do espírito revolucionário”,
quando ao contrário, exatamente nessas situações e nesses períodos é
particularmente necessário esse trabalho, porque nos momentos de
explosões sociais não há tempo hábil para criar uma organização, que
nesses momentos já deve estar pronta para poder desenvolver
imediatamente sua atividade. (LENIN, 1901)

O projeto lenineano de “jornal político para toda a Rússia” exigiria que cada
região do país tivesse um número satisfatório de militantes profissionalizados, que
reservassem uma parte de seu tempo na construção de um periódico para todo o
país. A partir da organização do jornal, uma organização política de vanguarda
surgiria, no interior do partido, com a intenção de realizar a revolução socialista e de
oferecer ao proletariado uma tribuna à qual pudesse falar e ser ouvido. Sobre isso,
escreve Lenin que

Se unirmos nossas forças para desaguar em um jornal de escala nacional,


tal trabalho fará surgir e formará não somente os propagandistas mais
hábeis, mas também os organizadores mais provados, os chefes políticos
mais capazes de saberem lançar no momento exato a palavra de ordem da
luta decisiva e dirigir essa luta. (LENIN, 1901)

Em “Carta a Um Camarada” (1902), Lenin dá prosseguimento à sua teoria


partidária ao debater com um interlocutor – não identificado no texto – sobre a
organização das massas de forma hierárquica em subcomitês de fábrica, comitês
gerais e, por fim, um Comitê Central (CC) e um Órgão Central (OC), que dirigiriam,
respectivamente, a prática política e a ideologia do partido (1902). Todos esses
níveis hierárquicos de organização seriam guiados pela figura do jornal político e
único, o qual seria feito, como foi dito anteriormente, pelos militantes profissionais
dispersos em organizações locais, porém centralizadas no partido (1902).
Toda a divisão hierárquica de que se ocupa Lenin tem um propósito muito
claro, segundo autor. Por ser um movimento totalmente clandestino, devido à
censura czarista, o partido e suas ramificações necessitavam de uma direção clara e
objetiva que, “pela força da autoridade e não pela força do poder”, saibam dirigir a
organização conspirativa (1902). Por outro lado, o autor chega a reconhecer a
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possibilidade de que uma direção inábil possa destruir o trabalho da organização


devido à centralização. Para evitar isso, propõe que essas lideranças sejam
provadas, capazes e experientes, além de constantemente fiscalizadas pelas bases
do movimento (1902).
Sobre a função primordial do jornal na organização russa, Lenin responde ao
interlocutor, em um trecho da carta, que o jornal deveria ser o “dirigente ideológico
do partido, desenvolvendo as verdades teóricas, as situações táticas, as ideias
organizacionais gerais, as tarefas gerais de todo o partido” (1902). Dessa forma, a
propaganda do partido deve ser direcionada de forma uníssona aos seus comitês e
subcomitês de fábrica por um grupo de propagandistas, escolhidos pelo Comitê
Central para essa atividade (1902).
A distribuição desse trabalho propagandístico, em jornais ou panfletos, de
acordo com Lenin, deveria cobrir todas as regiões fabris, articuladas entre si por
meio de seus comitês. Tal trabalho, na opinião de Lenin (1902),

realizaria mais da metade da tarefa de preparação de futuras manifestações


e da insurreição. Em momentos de sublevação, de greves, de agitação, é
tarde para iniciar a distribuição de literatura, pois isso só pode ser aprendido
pouco a pouco, sendo feito necessariamente duas a três vezes por mês.
Não existindo jornal pode-se e deve-se fazer isso com volantes, mas sem
permitir, de modo algum, que o aparelho de distribuição permaneça inativo.
É necessário o esforço de aperfeiçoar a um tal grau esse aparelho de modo
que numa só noite toda a população operária de São Petersburgo possa ser
informada e mobilizada.

Um dos principais objetivos de Lenin, ao propor a unificação de uma imprensa


política para toda a Rússia, era acabar com o “fracionamento” pelo qual a esquerda
organizada passava na época. As divisões entre várias frentes partidárias que
realizavam trabalhos localizados não eram vistas como exitosas. De acordo com
Venancio (2010, p. 50), essa tendência começou a se materializar em 1896, quando
os dirigentes do POSDR unem-se na criação de um jornal único para toda a Rússia,
o Rabótchaia Gazeta. Entretanto, em 1898, apesar do grande salto organizativo, o
movimento se concentra na criação de órgãos de imprensa localizados, os quais
apresentam baixíssimo desempenho durante os dois primeiros anos de criação,
segundo análises do próprio Lenin (VENANCIO, 2010).
Em Que Fazer?, tal questionamento é discutido de forma mais acirrada como
resposta às críticas de outro dirigente político russo, L. Nadejdine, naquele momento
integrante do periódico Rabótcheie Dielo (A Causa Operária, em russo), da União
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dos Sociais-Democratas Russos. Nesse texto, Lenin, na sessão “Plano de um jornal


político para toda a Rússia”, rebate as críticas de Nadejdine, que acusou o líder
bolchevique de centralismo e autoritarismo ao propor a criação de um órgão de
imprensa único para todo o país, em vez de continuar com os jornais locais, e
submeter a criação e direção do Partido a um órgão de imprensa nacional.
Nesse texto, Lenin prossegue na explicação da importância de um jornal
político regular, profissionalizado e mantido pelo próprio partido. Sobre isso, chega a
sugerir que cada célula local “imediatamente reserve um quarto de suas forças para
a participação ativa na obra comum” (1902). Ao exercitar regularmente o ofício, os
revolucionários profissionais manteriam a circulação periódica do jornal político
comum, de forma a preparar o proletariado para a insurreição “mesmo nos períodos
de calma absoluta” (1902).
A respeito da visão lenineana da imprensa política, Cassol escreve que

[…] seria o fio condutor para a ampliação da organização revolucionária,


assim como fazem os pedreiros que constroem um edifício: esticam um fio
que os ajuda a encontrar o “lugar justo” das pedras. Lenin vai dizer que o
partido possuía muitas pedras e pedreiros, faltando-lhe justamente o fio que
fosse visível para todos. (CASSOL, 2010, p. 53)

O jornal enquanto “revelador das verdades ao proletariado”, segundo Cassol, é


uma das características presentes na visão lenineana sobre o jornal. Essa noção de
imprensa como um dos componentes da vanguarda do partido (ou seja, da
organização proletária) está relacionada à capacidade exclusiva destes instrumentos
de luta (o partido, o jornal) de “revelarem as opressões a um auditório de ignorantes”
(CASSOL, 2010, p. 55). Lenin chega a afirmar reiteradas vezes, segundo o autor,
que somente essas revelações poderiam formar a consciência política e suscitar a
atividade revolucionária das massas (2010, p. 56).
De acordo com Venancio, Lenin afirmava que somente com o jornal, o trabalho
do partido com as massas deixaria de ser “artesanal”, ou seja, amador, ocasional e
sem abrangência (2010, 39). O autor também lembra que para a social-democracia
russa eram vedadas todas as formas de interação com as massas, desde a
propaganda nas ruas até a atividade parlamentar, já que estava totalmente na
ilegalidade durante o czarismo. Sobre isso, Lenin explica que

a necessidade de concentrar todas as forças na criação de um órgão do


partido, publicado e distribuído regularmente, está condicionada a situação
particular da social-democracia russa, tão diferente da social-democracia de
97

outros países europeus ou de velhos partidos revolucionários russos. Os


trabalhadores da Alemanha, França e outros países têm, além dos jornais,
uma quantidade de outros meios para organizar o movimento: a atividade
parlamentar, a agitação eleitoral, as assembléias populares, a participação
em instituições locais (no campo e na cidade), o livre funcionamento dos
sindicatos (profissionais e grêmios) etc. Para nós, enquanto não tivermos
nossa liberdade política assegurada, nada menos que totalmente, devemos
usar o jornal revolucionário, sem o qual não nos será possível nenhuma
organização ampla do movimento dos trabalhadores (LENIN apud
VENANCIO, 2010, p. 40).

A insistência de Lenin em usar jornais impressos como forma de propaganda e


agitação revolucionária, mais do que indicar que, para o dirigente, a comunicação
tinha um papel central na estrutura partidária, sinalizava que a agitação e a
propaganda mantinham estreita relação com a concepção de partido revolucionário
em Lenin, que diferia fundamentalmente da concepção marxiana, como veremos a
seguir.
Para Lenin, a consciência política revolucionária do proletariado deveria ser
trazida de fora do movimento, dos sindicatos, pela intelectualidade comunista, a
fração mais adiantada do movimento revolucionário, a vanguarda do proletariado.
Segundo Fernando Claudín, a tese lenineana, apresentada pela primeira vez em
Que Fazer?, baseou-se nos escritos do alemão Karl Kautsky, à época um dirigente
revolucionário bastante influente no debate da social-democracia europeia. Kautsky
foi o primeiro a formular a ideia de que “a consciência socialista é algo introduzido do
exterior na luta de classes do proletariado, não algo que surge espontaneamente do
seu interior” (2013, p. 714).
Isso se corroborava com a experiência prática dos dirigentes políticos russos,
pelo menos para os que aceitaram a tese de Lenin. Quando o marxismo começou a
penetrar na Rússia, no último quarto do século XIX, as organizações revolucionárias
clandestinas que agiam por meio do terrorismo, compostas em sua maioria por
jovens militantes oriundos das camadas mais intelectualizadas, não encontravam
êxito em suas ações diretas. Essa juventude, então, abandonou as fileiras de
organizações como a Terra e Liberdade e partiu para as organizações comunistas.
Porém, durante esse período, o proletariado russo ainda era incipiente e não havia
entrado em cena. As maiores insurreições do período só ocorreriam em 1896,
durante um extenso período de greves nas fábricas (CLAUDÍN, 2013, p. 715).
Ou seja, a “arma material” do movimento comunista russo pouco existia
durante o período em que iniciava a assimilação do marxismo no país. Somado a
98

isso, esse proletariado não tinha experiência alguma na luta de classes, diferente do
proletariado francês ou alemão, que já havia se incursionado por diversos levantes
revolucionários durante o século XIX. Lenin comprovou de forma empírica sua tese
ao confirmar que havia a necessidade de a inteligentsia do movimento revolucionário
– os intelectuais – “elevarem a consciência” do proletariado.
Tal concepção assume outra perspectiva nas formulações de Marx sobre o
partido operário. A figura de um “partido comunista” não aparece como possível:
para Marx, os comunistas são somente “a fração mais adiantada do partido operário,
o setor mais decidido, que conta com uma vantagem teórica de sua clara visão dos
cursos e dos resultados gerais do movimento operário” (CLAUDÍN, 2013, p. 713).
Além disso, e o que é mais importante para estabelecer a diferença entre as duas
visões a respeito do partido operário revolucionário, os comunistas não devem,
segundo Marx, “tentar moldar o movimento operário conforme suas visões e
perspectivas” ou “estabelecer uma ditadura de lideranças antidemocrática”,
aproveitando-se do fato de ter acesso à teoria do socialismo científico (2013, p. 713).
Para Marx, por fim, a consciência de classe proletária se forma no curso das
várias formas de luta, enquanto o partido é só mais uma das formatações da luta de
classes, a mais vital para a tomada do poder político do proletariado e instauração
da sua ditadura de classe como primeiro passo para o comunismo. Tanto que o
autor não chega a formular a ideia de um “partido único”, assumindo que o partido
operário deve, inclusive, dissolver-se sem demora ao constatar que está
“antecipando a revolução”. O partido é, para Marx, uma realização do movimento
comunista, e não o contrário.
Diante disso, estabelecidas as diferenças entre as duas concepções de partido,
marxiana e lenineana, é sintomático que a comunicação tome, para Lenin, uma
função tão importante: como instrumento político centralizado do partido operário e
revolucionário, no sentido de fazer a agitação e a propaganda revolucionária.

3 Definição de agitação e propaganda

E. M. Kuznetsov categoriza a agitação e propaganda como componentes da


atividade político-ideológica do partido comunista, junto do estudo da teoria
revolucionária. O autor ainda traça as diferenças fundamentais das duas atividades,
as quais chegam a ser consideradas, pela falta de rigor metodológico, como
99

sinônimos.

Naqueles trabalhos científicos e populares nos quais se analisa a correlação


dos diferentes aspectos da atividade político-ideológica do partido, não há
uma análise profunda da unidade e das diferenças específicas da
propaganda e da agitação. Inclusive, esboça-se uma integração entre esses
dois tipos de influência ideológica sobre as massas, sem diferenciá-los
(1979, p. 109)

O autor caracteriza a atividade teórica como “o fundamento do trabalho


político-ideológico do partido” (KUZNETSOV, 1979, p. 110). No entanto, para que
essa teoria atinja as massas, é necessário, segundo o autor, que o partido eduque
politicamente os seus membros e as classes trabalhadoras, para que esses
ensinamentos atinjam as massas.
Quanto à diferenciação entre agitação e propaganda, o autor utiliza-se dos
conceitos desenvolvidos por Lenin, para quem as duas contêm diferenças objetivas.
A propaganda explica a essência do socialismo científico, os objetivos e as tarefas
da luta do socialismo e da democracia da classe trabalhadora; já a agitação está
intimamente unida à luta corrente do trabalhador, utilizando-se dos fenômenos da
vida social (KUZNETSOV, 1979, p. 118). Ambos os meios de comunicação das
ideias do partido se completariam: enquanto a propaganda desenvolveria as ideias
do partido, a agitação as propagaria às massas.
A propaganda, ainda segundo Kuznetsov, seria o ensinamento da teoria a um
número reduzido de revolucionários do partido, os quais adotariam a plataforma
política do partido, ao passo que a agitação seria a difusão desses ensinamentos às
massas. Um trecho de uma correspondência do secretariado do Comitê Central do
Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR), de 1917, exemplifica, dessa
forma, a diferenciação entre as duas atividades do partido:

Nossa tarefa fundamental consiste, por uma parte, em atrair o maior número
possível de seguidores e, por outra, em aprofundar as informações e os
conhecimentos daqueles camaradas que adotaram com firmeza nossa
plataforma. Para o primeiro objetivo, é necessário realizar a agitação, tanto
oral quanto mediante a distribuição de literatura e periódicos do partido, e,
para o segundo, é necessário criar um grupo propagandístico para o estudo
das verdades marxistas (1979, p. 119)

Enquanto a propaganda estaria relacionada à explicação da teoria do partido,


de forma estratégica e tática, a agitação se relacionaria como uma tática do partido
100

para a propagação de sua teoria às massas, utilizando-se inclusive de recursos


artísticos e emocionais para cativá-las (KUZNETSOV, 1979, p. 123). Ambas, no
entanto, por serem atividades complementares ao partido, perseguiriam um objetivo
em comum, aliadas ao desenvolvimento da teoria socialista: o desenvolvimento da
consciência do proletariado e de todas as massas trabalhadoras, educadas
politicamente (KUZNETSOV, 1979, p. 124).

Conclusão

Esta pesquisa se propôs a sistematizar o pensamento de Lenin a respeito da


agitação e propaganda como ferramentas da comunicação do movimento
comunista. Para tanto, utilizou-se do arcabouço teórico lenineano e, também, de
reflexões de outros autores e comentadores, como as definições precisas e
sistematizadas de agitação e propaganda para Kusnetsov.
O presente trabalho não é mais do que um ponto de partida para os estudos da obra
lenineana a respeito da comunicação dos trabalhadores, sob uma perspectiva
comunista e revolucionária. Em um contexto de ofensivas reacionárias, tanto nos
plano artístico quanto político, a atualização da teoria lenineana pode trazer à tona
um gosto amargo para quem não vê possibilidades de a utopia estar, novamente, na
ordem do dia. No entanto, para os comunistas, o estudo do legado intelectual de
Lenin, inclusive de seus textos a respeito da comunicação revolucionária, são de
vital importância para o fortalecimento das organizações dos trabalhadores.

Referências

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tempos de crise. 2010. 159 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação)
– Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo.

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Popular, 2013. 736 p.

KUSNETSOV, E. M. La Agitacion Politica. Havana: Orbe, 1979. 297 p.

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SERGE, Victor. O Ano I da Revolução Russa. São Paulo: Ensaio, 1993. 479 p.

VENANCIO, Rafael Duarte Oliveira. Lenin e o Jornalismo Soviético: imprensa


como vanguarda política. São Paulo: Baraúna, 2010. 184 p.
102

FOTOGRAFIA POLÍTICO-DOCUMENTAL COMO PRÁTICA COMPLEMENTAR À


ADVOCACIA EM DIREITOS HUMANOS NA OCUPAÇÃO URBANA MORRO DOS
CARRAPATOS

Ana Teresa Corzanego Khatounian34

Este trabalho é fruto de um estudo sobre a luta pela terra protagonizada


pelosocupantes do Morro dos Carrapatos, ocupação urbana no leste do município
de Londrina, Paraná. A contribuição da fotografia, no contexto da assessoria jurídica
popular,se concretizou por meio da conexão humana entre as partes envolvidas e da
utilização de fotografias no processo judicial frente auma ordem de reintegração de
posse, bem comoatravésdas evidências cronológicas criadas pelas imagens. Ainda
que a fotografiapolítico-documental tenha seu componente artístico, tão essencial
quanto inevitável, o limite editorial e de composição artificial de cenas as diferencia
das fotografias puramente artísticas, motivo pelo qual aplicou-se poucaedição às
imagens. Os registros expostos neste trabalho abrangem oprocesso humano
reivindicatório vivido pelo Morro dos Carrapatos desde a chegada da demandaà
AJUP LUTAS, em agosto de 2014, até fevereiro de 2017. Figuram, em pé de
humana igualdade, ocupantes do Morro, estudantes membros da AJUP LUTAS,e
advogados populares como partes integrantes de um intento de educação popular
no contexto da luta social pela regularização terras ocupadas. Na primeira foto,
“Lutando é que lutamos”,ocupantes e assessores populares se juntam para registrar
o fôlego que acompanhou a manifestação de maio de 2016, no Fórum Estadual de
Londrina. Em “Pra onde foi todo mundo?”, moradora do Morro exige intervenção do
poder municipal eleito na resolução da violação ao direito constitucional à moradia. A
frase escrita no cartaz, criada pelos próprios moradores, representa o descaso
histórico dos políticos em relação à suas promessas pré-eleitorais feitas à
comunidade. “Mas não é bem assim, meus amigos”,por meio do gesto expressivo do
então prefeito da cidade de Londrina, é alegoria aos representantes do Estado;
naquela tarde, manifestantes foram ouvidos pelo prefeito, que quando escutou o
barulho dos tambores pediu que todos subissem para uma conversa.“Te dou aquilo
que eu comeria”materializou a gratidão de um pai de família da ocupação, que
34
Integrante do projeto de extensão LUTAS: Formação e Assessoria em Direitos Humanos. E-mail:
anateresack@gmail.com
103

presenteou os assessores populares com peixe que havia pescado. A conexãoque


aflora entre os humanos, que por insistência da vida, lutam juntos, se fez
especialmente presente nesta ocasião. Por fim, “Estrada larga, chão de terra”
representa ummorador caminhando pelos escombros do que foi seu bairro em busca
de tábuas para montar uma nova casa, resumindo a situação não só atual como
também histórica dos ocupantes, que constroem e logo são obrigados a mudar
novamente. Hoje, por violência e por medo,estes ocupantes estão em diáspora em
diversos pontos da cidade, em busca de um lar e sem nenhum amparopor parte do
poder público. A fotografia, enquanto instrumento isolado, não é capaz de garantir o
acesso de todos aos Direitos Humanos. No entanto, no contexto de um processo
integrado de inciativas convergentes na luta pela terra, a fotografia contribuiu para
dar coesão ao movimento em seus aspectos humanos, jurídicos, históricos e
educativos. As fotografias materializaram o sentido de pertencimento aquela luta,
identificando indivíduos que foram o coletivo do Morro dos Carrapatos, e permitindo
a esse coletivo contar sua história à sociedade.

Palavras-chave: Fotografia Político-documental, Assessoria Jurídica Popular,


Ocupação Urbana, Conexão humana
104

Imagem 1 - Lutando é que lutamos

Fonte: Arquivo pessoal


105

Imagem 2 – Pra onde foi todo mundo?

Fonte: Arquivo pessoal

Imagem 3 – Mas não é bem assim, meus amigos

Fonte: Arquivo pessoal


106

Imagem 4 – Te dou aquilo que eu comeria

Fonte: Arquivo pessoal

Imagem 5 – Estrada larga, chão de terra

Fonte: Arquivo pessoal


107

MÍDIA NINJA: EXPERIÊNCIA, ATIVISMO E CASOS ENVOLVENDO O AMBIENTE


JURÍDICO

Gabriel Pansardi Ruiz35

No Brasil, o surgimento de novas mídias e veículos “midialivristas”, através das


redes sociais, da internet e de dispositivos móveis, teve papel fundamental para o
aquecimento da discussão sobre cultura digital, representação midiática, política,
novas tecnologias e comunicação.
No cerne desse debate, durante os protestos de junho e julho de 2013 contra o
aumento das tarifas de transporte público e também as reivindicações sobre a Copa
do Mundo de 2014, despontam como potências de informação em tempo real,
alguns veículos e coletivos de mídia. Foram veículos que narraram e disputaram o
sentido das manifestações de forma ativa e inédita no país. E fizeram com que as
coberturas fossem realizadas de forma protagonista em relação aos meios de
comunicação de massa, que demoraram para compreender o fenômeno das
manifestações e seu impacto sobre o processo de construção da notícia. Entre
essas novas mídias, algumas emergiram: 12pm, Carranca, Rio na Rua, Voz e a
Mídia NINJA (Narrativas Independentes Jornalismo e Ação) – rede “midialivrista”
fundada pelo coletivo Fora do Eixo36, que se destacou por suas coberturas
dinâmicas através das redes sociais e pelas transmissões audiovisuais ao vivo.
A Mídia NINJA combinou, originalmente, elementos que potencializaram a
viralização de suas mensagens, e criou uma estética que se conectou com o
espaço-tempo de sua geração. Naquele momento, quando a Mídia NINJA estourou,
as pessoas nas ruas não se identificavam com o padrão e com o noticiário da

35
Jornalista. Discente do curso de especialização em comunicação popular e comunitária na
Universidade Estadual de Londrina (UEL). Nos últimos 7 anos participou da rede Fora do Eixo como
articulador nacional e internacional. Participou da fundação e desenvolvimento da Mídia NINJA,
atuando como produtor e repórter em manifestações em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte
e como ativista e articulador em núcleos de comunicação de frentes, em campanhas nacionais e em
movimentos sociais. Contato: mandamailproruiz@gmail.com

36 O Fora do Eixo surge em 2005 conectando produtores de festivais e coletivos culturais de cidades
como Londrina (PR), Rio Branco (AC), Uberlândia (MG) e Cuiabá (MT). Durante vários anos atuou de
forma plena em festivais independentes, ajudando a desenvolver a cadeia produtiva do mercado
médio da música nacional, criando projetos de artes integradas, turnês, shows e redes de alcance
internacional, como o Festival Grito Rock e o ELLA. No início de 2013, o Fora do Eixo funda a Mídia
NINJA com o objetivo de mesclar o ofício da comunicação e do jornalismo à prática ativista, buscando
realizar coberturas sobre movimentos sociais, manifestações e temas ligados aos direitos humanos.
108

imprensa corporativa, passando a procurar por outras fontes nas redes sociais e na
internet que as representassem, que não apenas as chamasse de “vândalos”. Nessa
busca, as publicações em tempo real e a coragem dos ninjas – cinegrafistas,
fotógrafos, ativistas e produtores do Fora do Eixo, designados para cobrir as
manifestações –, ganharam a empatia do público e preencheram um vácuo de
informações sobre os conflitos cada vez maiores.
Entre as chamadas “Jornadas de Junho e Julho”, o movimento “Não vai ter
Copa”, a Mídia NINJA esteve presente na cobertura dos principais levantes sociais
no Brasil e também estabeleceu uma rede e núcleos ninjas em vários outros países.
Dentro desse período podemos citar a cobertura das manifestações durante a Copa
do Mundo realizada no Brasil em 2014; o debate em torno das eleições presidenciais
no mesmo ano; participação na criação dos Jornalistas Livres em São Paulo;
cobertura das manifestações – da “direita” e da “esquerda” no primeiro semestre e
durante todo o ano de 2015; os protestos nos jogos olímpicos Rio 2016; a cobertura
de 1 ano do crime da Samarco, após o rompimento da barragem de rejeitos em
Mariana (MG); os atos “Fora Cunha”; as principais mensagens e manifestações tanto
nas ruas, como nas redes sociais, no Brasil e no mundo denunciando o golpe
midiático e parlamentar que culminou com o impeachment da ex-presidenta Dilma
Rousseff; e a cobertura das votações do impeachment na Câmara dos Deputados e
Senado; os levantes contra a PEC 51; além de dezenas de pautas sobre violações
de direitos humanos e grupos estratégicos, como negros, mulheres, LGBTs,
indígenas, etc.
Hoje, com a ampliação da rede da Mídia NINJA e com núcleos que se
desenvolveram em outros países e em cidades do interior do Brasil, os ninjas são,
muitas vezes, ativistas, manifestantes, videomakers, blogueiros, “midialivristas”,
jornalistas, atores outros. São pessoas de referência conectadas ao núcleo editorial
ninja, que operam pela internet diretamente de suas localidades e amplificam os
temas para além de seus municípios, através das timelines e do site da Mídia
NINJA. É um método que se aproxima do que o escritor e teórico Manuel Castells
denomina de “autocomunicação de massa, baseada em redes horizontais de
comunicação multidirecional, interativa, na internet”. Ou ainda uma percepção a qual
“podemos trocar a estratégia de dar voz aos que não têm voz pela estratégia de
deixar as pessoas falar por si mesmas”, conforme explica o escritor John Downing
em seu livro “Mídia Radical”.
109

Atualmente a Mídia NINJA possui mais de 1,5 milhão de seguidores no


Facebook. E na cobertura dos protestos do último dia 31 de março, contra a reforma
da previdência social, os ninjas ficaram à frente de tradicionais veículos corporativos
da imprensa nacional como Estadão, Folha de São Paulo e Veja, no que se refere
aos números de engajamento do Facebook.
110

O DETERMINISMO TECNOLÓGICO NO SÉCULO XXI: REGULAMENTAÇÃO E


SOCIALIZAÇÃO DAS REDES SOCIAIS

TECHNOLOGICAL DETERMINISM IN THE XXI CENTURY: REGULATION AND


SOCIALIZATION OF SOCIAL NETWORKS

Marcos Antônio Gonçalves Soleo37


Rafael Flavio de Moraes38

Resumo: O cerne deste estudo se caracteriza pela análise das relações que as
inovações tecnológicas, no âmbito da comunicação, possuem com o comportamento
e o cotidiano da sociedade, através do conceito de determinismo tecnológico e do
fenômeno da interação humana pelo ambiente multimídia contido na internet. Desse
modo, sua análise se norteará, portanto, no novo ambiente humano, criado por
inovações tecnológicas dos meios de comunicação, essas consideradas como
extensões do homem, além da capacidade de modificação social contida na ágil
troca de informação pelos usuários, com ênfase nas lutas sociais contemporâneas
impulsionadas pela internet, na socialização da rede e o embate entre as correntes
pró e contra a regulação do meio virtual.
Palavras-chave: Mídia; Redes sociais; Tecnologia; Regulação; Sociedade; Lutas
sociais.

Abstract: The heart of this study is characterized by the analysis of the technological
innovations, about communication, face to demeanor and everyday life of society,
through the concept of technological determinism and the phenomenon of human
interaction through the multimedia environment. Therefore, this study looks for to the
new human environment result of technological innovations, theses considered as
extension of man, besides the social modification capacity being in the nimble
information exchange by the users, with emphasis on the contemporary social fight,
driven by the internet, the network socialization and the discussion between the
regulation of the internet or not.
Keywords: Media; Social networks; Technology; Regulation; Society; Social
37
Universidade Estadual de Londrina; marcossoleo@gmail.com
38
Faculdade Pitágoras; demoraesmazia@gmail.com
111

struggles.

Introdução

O presente estudo se norteia nas relações que as inovações tecnológicas


possuem com as transformações do comportamento social, sob a ótica do conceito
do determinismo tecnológico, levando em conta a expressiva integração humana no
ambiente multimídia e o exponencial número de inovações tecnológicas que se
fundiram ao cotidiano das pessoas, acarretando num crescimento estrutural da
sociedade urbana.
Considerando o progressivo fluxo de inovações tecnológicas que motivou o
aumento do número de acessos à internet nas residências, através de variados
dispositivos eletrônicos, e que proporcionou gradualmente um novo ambiente
humano, que, sob a ótica do filósofo determinista Marshall McLuhan em sua obra
“Os meios de comunicação como extensões do homem” (1964), introduz
consequências psicológicas e sociais na medida em que a mensagem de qualquer
meio ou tecnologia se tem como a mudança de escala, cadência ou padrão que
esse meio ou tecnologia introduz nas coisas, já que acaba por configurar e controlar
a proporção e a forma das ações e associações humanas.
Essa mudança, proporcionada pelo aumento da tecnologia dos meios de
informação, representa o que o filósofo entendia pelo fenômeno do meio (extensões
individuais do homem, que o auxiliam de determinada forma – como a lâmpada, ou o
rádio) se tornando a própria mensagem, ou seja, é o meio, e não apenas a
mensagem que ele transmite, que implica nas consequências sociais que
transformam o cotidiano das pessoas envolvidas com essa inovação tecnológica.
Dessa forma, os meios de comunicação exercem um papel crucial nas
modificações sociais do século XXI, uma vez que se mostram como o cerne da
mudança entre diversas relações sociais. Casos como as redes sociais promovendo
o advento da primavera árabe e a batalha contra a guerra na Síria são exemplos
recentes de como os desenvolvimentos tecnológicos dos diversos meios podem se
tornar alicerces de revoluções nacionais.
Por conseguinte, diante do exponencial alcance das informações através da
internet, surgiu a necessidade de analisar as possibilidades de regulamentação e
socialização do ambiente virtual, além de, consequentemente, a deflagração de
112

teorias e correntes filosóficas acerca do assunto.


Desse modo, em primeiro lugar, serão demonstrados os meios de
comunicação e suas classificações perante a sociedade, posteriormente, o liame
entre os pensamentos difundidos no conceito do Determinismo Tecnológico ligados
ao poder de modificação social embutido no ciberespaço, devido sua notória
agilidade diante da capacidade de transferência de informação, além de expor as
correntes que visam a necessidade de regulamentação da rede, e de socialização
desse meio de comunicação.

1 Desenvolvimento

1.1 Meios de Comunicação

A comunicação social visa o contato entre os indivíduos em um organismo


social, propagando ideologias, como análises políticas, sociais, ou seja, é o canal
onde há a troca de informação entre os homens, de suas concepções políticas,
religiosas e comportamentais.

[…] Segundo Lasswell, o processo de comunicação cumpre três funções


principais na sociedade: a) a vigilância do meio, relevando tudo o que
poderia ameaçar ou afetar o sistema de valores de uma comunidade ou das
partes que a compõem; b) o estabelecimento de relações entre os
componentes da sociedade para produzir uma resposta ao meio; c) a
transmissão da herança social. (apud MATTELART, 2005, p. 41)

À vista disso, é sabido que os meios de comunicação são, sobretudo, o canal


que distribui os padrões sociais, suas formas simbólicas e, assim, concebendo a
concepção estrutural da cultura de um organismo social. Como leciona o sociólogo
John Thompson:

[…] o conceito de cultura pode ser adequadamente usado para se referir, de


uma maneira geral, ao caráter simbólico da vida social, aos padrões de
significado social.
[…] as formas simbólicas estão inseridas em contextos sociais estruturados
que envolvem relações de poder, forma de conflito, desigualdades em
termos de distribuição de recursos e assim por diante. Essa dupla ênfase
define o que eu chamo de “concepção estrutural” da cultura. (THOMPSON,
2000, p. 22)

Desse modo, entende-se que a cultura é responsável pelas modificações


113

sociais e essa, por sua vez, é transmitida através da comunicação social.


Acerca desse tema, o filósofo McLuhan aduz que “o meio é a mensagem”, ou
seja, as concepções transmitidas pelas pessoas, advém de uma nova tecnologia
que deve estar necessariamente munida de conteúdo. Desse modo, geram
consequências sociais as quais modificam a sociedade como um todo:

[…] o meio é a mensagem. Isto apenas significa que as consequências


sociais e pessoais de qualquer meio – ou seja, de qualquer uma das
extensões de nós mesmos – constituem o resultado do novo estalão
introduzido em nossas vidas por uma nova tecnologia ou extensão de nós
mesmos. (MCLUHAN, 1964, p 21)

Portanto, as modificações sociais, no âmbito político, estrutural, cultural,


religioso, são transmitidas e aplicadas através dos meios de comunicação, os quais
transmitem ideologias possibilitando novas concepções aos pensamentos do
indivíduo, o que influencia intimamente no organismo social.

1.2 Classificações dos meios de comunicação

Os meios de comunicação são classificados através dos veículos o qual é


dissipado as informações, como é o caso do jornal, televisão e internet.
Em vista disso, o professor J. B. Pinho classifica os meios de comunicação em
massa por meio do agrupamento das mídias. “[…] essas mídias podem ser
agrupadas em três grandes categorias: a) mídia impressa – jornal, revista outdoor,
b) mídia eletrônica – rádio, televisão e cinema, c) mídia interativa – internet.”
(PINHO, 2001, p. 186)
Especificamente, segundo McLuhan, os meios de comunicação são ainda
classificados como meios quentes ou frios, à medida que é capaz de proporcionar os
sentidos no receptor, criando assim senso crítico ou alienando o usuário.
Como bem explicita:

[…] Um meio quente é aquele que prolonga um único de nossos sentidos e


em alta definição. Alta definição se refere a um estado de alta saturação de
dados.
[…] a fala é um meio frio de baixa definição, porque muito pouco é fornecido
e muita coisa deve ser preenchida pelo olvide. De outro lado, os meios
quentes não deixam muita coisa a ser preenchida ou completada pela
audiência. (MCLUHAN, 1964, p. 38)
114

Ao passo que, “segue-se naturalmente que um meio quente. Como o rádio, e


um meio frio, como o telefone, tem efeitos bem diferentes sobre seus usuários”
(MCLUHAN, 1964, p. 38).
Logo, entende-se que os meios quentes correspondem àqueles que prologam
um de nossos sentidos em alta definição, correspondendo essa, ao estado de
saturação de um sentido, já os meios frios correspondem aos que por transmitirem
uma quantidade menor de informação, permitem uma interação maior do indivíduo,
como é o caso do telefone.
Porém, ao analisar a mídia interativa, internet, sob a ótica de McLuhan, depara-
se com um meio tanto quente quanto frio, ao ponto de saturar os pensamentos do
usuário ao passo de torná-los frios e incapacitados de interagir ou produzir um senso
crítico, ou o oposto, permitindo revoluções de pensamentos e mudar toda uma
sociedade, como é o expressivo advento das revoluções sociais.
No entanto, apesar da internet ainda possuir elevada desigualdade de acesso
entre as camadas sociais, seu mecanismo possibilita grandes mudanças sociais
devido a sua forma de rápida expansão de conteúdo, desse modo, considera-se um
canal de comunicação com uma expressividade colossal.

1.3 Da proporção ao acesso à internet

As primeiras décadas do século XXI estão marcadas pela integração de


inúmeras inovações tecnológicas ao cotidiano das pessoas, consequência direta do
crescimento da infraestrutura dos centros urbanos. O estudo do “Acesso à Internet e
à Televisão e Posse de Telefone Móvel Celular para Uso Pessoal 2015” realizado
pelo IBGE, indicou, no Brasil, o acesso à internet em aproximadamente 57,8% de
seus domicílios.
[…] Em 2014, mais da metade dos domicílios passaram a ter acesso à
Internet, saindo de 48,0%, em 2013, para 54,9%, naquele ano, o
equivalente a 36,8 milhões de domicílios. Em 2015, a expansão continuou
ocorrendo, ao alcançar 57,8%, correspondente a 39,3 milhões de domicílios
(IBGE, 2016, p.40).

O acesso entre a população mundial e em especial pela população brasileira,


acomete-se por meio de diversos aparelhos, como tablets, microcomputador, celular,
televisão, relógios. Logo, devido ao expressivo número de plataformas capazes de
acessar à internet, e a quantidade de usuários conectados à rede, sua capacidade
115

de disseminar os conteúdos, ideias, informações, de forma rápida e com alcance


notório é o que transformou esse meio de comunicação em uma ferramenta capaz
de gerar revoluções, criar ideologias, e possibilitar maior senso crítico aos seus
usuários.

1.4 Determinismo Tecnológico

Os filósofos e pensadores deterministas, no que condiz ao determinismo


tecnológico, diante de seus conceitos de que os acontecimentos em seu todo são
subordinados a leis naturais, elucidam que a tecnologia seria a responsável pelas
futuras mudanças sociais.
À vista disso, e devido ao fenômeno da crescente presença do acesso à rede
mundial de computadores nas residências, é trazido à tona a criação gradual de um
novo ambiente humano, que, conforme o filósofo determinista Marshall McLuhan,
em sua obra “Os meios de comunicação como extensões do homem” (1964),
introduzirá consequências psicológicas e sociais, na medida em que a mensagem
de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, cadência ou padrão que
esse meio ou tecnologia introduz nas coisas, já que configura e controla a proporção
e a forma das ações e associações humanas.

[…]Hoje, se quisermos estabelecer os marcos de nossa própria cultura,


permanecendo à margem das tendências e pressões exercidas por
qualquer forma técnica de expressão humana, basta que visitemos uma
sociedade onde uma certa forma particular ainda não foi sentida ou um
período histórico onde ela ainda era desconhecida. (McLuhan, 1964, p. 35)

Desse modo, entende-se que, na medida em que determinada tecnologia


dissemina-se em uma sociedade, acometerá mudanças comportamentais notórias,
visto que esse contato gera consequências sociais e psicológicas, acarretando nas
transformações sociais.
Não obstante, Manuel Castells, sociólogo espanhol, apresentou a formulação
teórica intitulada de “a cultura da realidade virtual” (Sociedade em rede 1996;2000),
que parte do ponto de vista da própria sociedade de que a comunicação eletrônica é
a comunicação, e que essa, portanto, possui capacidade de incluir e abranger todas
as possíveis expressões culturais, deixando de existir uma efetiva separação entre a
própria “realidade” e a representação simbólica.
116

Na mesma linha, DiMaggio, em seu artigo “Implicações sociais da internet”,


evidencia que a análise das mídias eletrônicas pode se dar conforme seu contexto
teórico, ou seja, uma análise sociológica pode demonstrar os diferentes aspectos
dos impactos da mídia eletrônica. Cita que para teóricos com base nos estudos de
Durkheim, a comunicação direta entre uma pessoa e outra, como telefones ou
aplicativos de chat, reforçam uma solidariedade orgânica, enquanto mídias como
televisão ou rádio manifestam uma intensa representação de um ideal coletivo.
Estudos com foco em Weber seguiriam o rumo de que tais mídias, permitem a
interação direta entre as pessoas, logo trariam um avanço da racionalização pela
redução dos limites do tempo e do espaço, enquanto aquelas de broadcast
(Televisão e rádio) exaltariam os elementos que distinguem os status culturais.
O que se encontra em comum entre tais linhas de estudo é o criar de um novo
ambiente, humano e que engloba uma noção de interdependência e comutação na
resolução de conflitos e de problemas em uma escala cada vez mais global. Essa
escala progressiva de resolução conjunta dos conflitos sociais e humanos se dá pela
quebra do espaço pelas novas tecnologias através do compartilhar de vídeos, fotos,
depoimentos pessoais e transmissões ao vivo que fazem com que o globo passe a
perder a noção de fronteiras e ter uma nova visão de proximidade entre seus
habitantes.

1.4.1 A comunicação como extensão do homem

Conjuntamente com o advento de novas tecnologias, vem a mutação da


sociedade que submete-se a operar as inovações, e, consequentemente, inicia um
organismo favorável e outro resistente, segundo o filósofo McLuhan, a
implementação de uma nova tecnologia afeta todo o organismo social, visto que este
se muda por completo:

[…] Ao se operar uma sociedade com uma nova tecnologia, a área que
sofre com a incisão não é a mais afetada. A área da incisão e do impacto
fica entorpecida. O sistema inteiro é que muda. O efeito do rádio é visual, o
efeito da fotografia é auditivo. Qualquer impacto altera as ratios de todos os
sentidos. O que procuramos hoje é controlar esses deslocamentos das
proporções sensoriais da visão social psíquica. (McLuhan, 1964, p. 84)

Esse entendimento torna-se palpável ao analisar a evolução dos meios de


comunicação, uma vez que o conhecimento, até a revolução ocasionada pela
117

invenção de Gutenberg, era transmitido, em sua grande maioria, através da


oralidade, ou seja, por meio de contos, lendas e ensinamentos.
A criação da prensa por Gutenberg, proporcionou que o conhecimento viesse a
ser notoriamente difundido. Porém, empobreceu as formas de conhecimento, uma
vez que os ensinamentos limitaram-se à escrita, e não mais às experiências.
Acerca disso, há de se destacar o conhecimento transmitido pelos escolásticos
gregos, os quais possuíam notável conhecimento filosófico e, inclusive, quanto ao
seu organismo social, haja vista que seus ensinamentos eram transmitidos através
da oralidade, uma vez que transmitiam o conhecimento por meio das experiências
vividas na própria pólis.
Segundo McLuhan, com o advento da prensa de Gutenberg, deveria, a
sociedade, ter criado um meio que permitisse a educação escrita e oral, no entanto,
se submeteu apenas aos ensinamentos contidos na escrita, no visual.

[…] Se persistirmos numa abordagem convencional a estes


desenvolvimentos, nossa cultura tradicional será posta de lado, como o foi o
escolasticismo no século XVI. Tivessem os Escolásticos, com sua complexa
cultura oral, compreendido a tecnologia de Gutemberg, teriam criado uma
nova síntese da educação escrita e oral, em lugar de submeter-se à
imagem e permitir que à página visual ficasse afeta a missão educacional.
Os Escolásticos orais não estiveram à altura do novo desafio visual da
imprensa: a expansão ou explosão da tecnologia de Gutenberg daí
resultante só serviu para contribuir, em muitos aspectos, para o
empobrecimento da cultura…(MCLUHAN, 1964, p. 92)

Desse modo, por essa ótica, o membro do organismo social, o qual submeteu-
se a usufruir da nova tecnologia, substitui seus sentidos, tornando assim a inovação
uma extensão de seu corpo.

[…] o “fechamento” ou a consequência psicológica mais evidente de uma


tecnologia nova seja simplesmente a sua demanda. Ninguém quer um carro
até que haja carros, e ninguém está interessado em TV até que existam
programas de televisão. Este poder da tecnologia em criar seu próprio
mercado de procura não pode ser desvinculado do fato de a tecnologia ser,
antes de mais nada, uma extensão de nossos corpos e de nossos sentidos.
(MCLUHAN, 1964, p. 88)

Por conseguinte, entende-se que a introdução de uma nova tecnologia é capaz


de proporcionar novas descobertas e alcançar novos patamares, porém, pode tornar
o usuário dependente e alienado somente àquele entendimento, tornando-se
prejudicial para a organização social.
118

1.4.2 Alienação diante da informação

Hodiernamente, o entendimento aludido pelo determinista McLuhan, não se


apresenta como ultrapassado, mas sim como uma forma visionária, ao ponto de
que, com o advento da internet, apesar das diversas possibilidades afloradas, o
organismo social contemporâneo encontra-se dependente de sua funcionalidade.
Desse modo, considerando que o ciberespaço tornou-se extensão dos
homens, os conteúdos que lá se encontram são encarados como verdades
absolutas por uma parte dos usuários, visto que estes confiam cegamente nesse
meio de comunicação. No entanto, há de se salientar que são os próprios usuários
que alimentam esse meio, logo, falácias passam a ser usuais nesse ambiente.
À medida que o desfrutador da internet ignora as fontes e a veracidade dos
conteúdos, esse entranha-se em um universo de invencionices, fato é que essa
circunstância torna esse usuário vulnerável e, portanto, alienado ao universo da
fantasia midiática.
Consequentemente, há de se observar o retrocesso aludido por McLuhan,
diante do modo pelo qual determinados indivíduos da sociedade encaram o advento
de uma nova tecnologia.
No entanto, a criação da rede de comunicação contida no espaço cibernético é
revolucionária, uma vez que essa engloba todos os meios de percepção dos
conhecimentos e é capaz de proporcionar ao usuário notáveis níveis de
conhecimento de maneira instantânea, além de expandir a comunicação entre o
organismo global, diante dessas possibilidades, expandindo ideologias, conceitos,
conhecimento entre as nações.

1.4.3 Revolução

A primavera árabe se mostrou palco de um fenômeno que marcou o início do


século XXI: a derrubada de líderes ditadores do oriente médio por meio de
movimentos sociais que surgiram de forma praticamente espontânea, mas que se
demonstraram portadores de intensa coalizão e eficácia participativa.
As respostas para tal envolvimento, quer seja político, de manifestação,
debate, reuniões diversas de uma grande massa de pessoas em prol de um mesmo
119

objetivo, se encontram nas redes sociais. O Twitter, um dos aplicativos mais


utilizados pelos manifestantes, conseguiu voltar a atenção do ocidente para os
acontecimentos no oriente médio, já que esse possui uma ferramenta chamada de
“hashtags”, espécie de código formado por palavras que fazem referência ao
assunto da postagem e que reúne na tela as mensagens de todos os usuários no
globo que se utilizam do mesmo código ou que simplesmente o pesquisam, além de
um “ranking”, que apresenta os códigos mais utilizados no momento.
Essa ocorrência de expansão e organização acelerada e efetiva, promovida por
um meio, uma expansão do homem, que a utilizou para muito além de seu propósito
original, nesse caso, como arma eficiente na luta social contra um líder autoritário.
Não obstante a revolução por meio da conexão de movimentos coletivos que
agem em prol de objetivos em comum, mas que encontram-se separados por
barreiras do espaço e do tempo, bem como por impedimentos políticos, os meios
atuais podem ser promovedores de uma intensa expansão da compreensão
individual que o ser tem em relação ao planeta em que vive.
Ter consciência da situação passada em uma parte do globo, testemunhada
por seus próprios viventes e compartilhada pelas mídias sociais, influi diretamente
na noção de responsabilidade que a pessoa tem de si sobre o ambiente humano em
que vive, seja por meio de comparações dos comportamentos e das regras
estruturais sociais, políticas, legislativas e judiciais de outros países, ou pela efetiva
intervenção no seu próprio meio através de todas as extensões humanas que
puderem ser utilizadas.
Assim, o determinismo tecnológico se mostra revolucionário, não somente no
cotidiano de cada indivíduo, mas pelas inúmeras possibilidades que o indivíduo
poderá se fazer valer dos meios conforme o seu momento histórico e social vivido.

1.5 Regulamentação do ciberespaço

O espaço cibernético proporciona inúmeras possibilidades aos usuários, ao


passo de ocasionar revoluções sociais.
No entanto, diante do leque viabilizado por esse meio, o crime na internet
tornou-se uma prática constante, o que ocasionou inúmeros debates entre
autoridades visando a necessidade ou não de regulamentação da rede.
Desse modo, deparou-se com um conflito entre a privação da liberdade de
120

expressão e a segurança dos usuários. Visto que a possível regulamentação poderia


ocasionar brechas no que condiz ao direito à privacidade, porém, diante do
crescente número dos cibercrimes, e considerando a vulnerabilidade do usuário, a
necessidade do debate da regulamentação se tornou inevitável.
No Brasil não foi diferente, o debate acerca desse tema ocasionou na
elaboração da Lei nº 12.965/14, conhecida como “Marco Civil da Internet”, essa lei
visa regulamentar o uso da internet no Brasil, e, para alcançar tais objetivos,
ampara-se em direitos e deveres dos usuários, princípios fundamentais e garantias,
além de determinar as diretrizes para a atuação dos entes federados e suas
ramificações no ciberespaço.
O tema acerca da regulamentação da rede provocou uma sensação de
possíveis formas de censura, resquícios de iniciativas de governos como o da China,
Coréia do Norte, Irã, os quais censuram a rede à escusa de motivos políticos e
religiosos, ditando o conteúdo acessado pelo usuário, o que limita as possibilidades
dos internautas, essa prática é mais conhecida como vigilantismo.
Acerca desse tema, Rosemary Segurado em sua publicação na Revista USP,
apresenta o seguinte texto.

[…] Frequentemente, a regulamentação vem associada a formas de


censura ao uso da rede, censura por motivos, no geral, políticos ou
religiosos. A primeira distinção necessária está em entender as iniciativas
que visam censurar o uso da rede, também conhecidas como vigilantismo
na Internet. Esse tipo de prática busca restringir a potencialidade
colaborativa da rede, além de limitar acesso e o compartilhamento de
conteúdos. A censura na internet é praticada por governos de países como
China, Cuba, Irã, Vietnã, Maldivas, Coréia do Norte, Síria, Tunísia e
Uzbequistão.(SEGURADO, 2011, p. 55)

À vista disso, originaram-se algumas formas de pensamento distintas: os


contrários a todo e qualquer tipo de regulamentação, à escusa de que essa
ocasionaria no controle dos usuários da rede; aqueles que são favoráveis ao Marco
Civil da Internet, no entanto criticam a forma de elaboração do projeto; e os que
pensam em um mecanismo diferente no que condiz com a livre propriedade
(Creative Law).
O embate quanto à regulamentação da rede, proporcionou o posicionamento
quanto à “Neutralidade da Rede”, esta por sua vez, trata-se da obrigação dos
provedores em discriminar o seu conteúdo ou origem, tal princípio adveio do Marco
Civil da Internet, uma vez que esse preza pelo tratamento isonômico no que condiz
121

ao acesso à internet.
O cerne dessa discussão orbita na garantia de ampla concorrência,
favorecendo a inovação no que condiz à criação de tecnologias.
Tais pensamentos advieram das teorias acerca da regulamentação da rede,
amparada pelo embate dos pensamentos do Individual, face ao pensamento do
Social, os quais estudam formas diferentes de se analisar os fatos sociais.

1.5.1 Correntes de pensamentos

Diante da necessidade de regulação da internet, iniciou-se uma discussão


filosófica, a qual resultou em diferentes modos de pensar acerca do tema, em vista
disso, criaram-se correntes focalizadas em discutir quanto à necessidade de criação,
ou não, de lei específica para a internet.
As discussões acerca da regulamentação da rede, difundiram algumas teorias,
e entre elas se destacam as correntes Tradicional e a Específica. A corrente
tradicional se fragmenta entre o pensamento Libertário e o Social Democrata. Já a
corrente Específica se fraciona entre os pensamentos voltados para a Arquitetura da
Rede e da corrente de Direito Internacional.

1.5.2 Tradicional

A corrente tradicional libertária se destacou pelos doutrinadores como Post,


Johnson e Barlow, devido a seus questionamentos quanto à eficácia do direito
tradicional no âmbito da regulamentação do ciberespaço.
Essa é considerada pioneira nos estudos sobre a rede, questionando a
regulamentação tradicional, embasando-se na premissa de que a internet possui
uma “soberania” própria.
Desse modo, critica a intervenção do Estado nas relações do ambiente
eletrônico, uma vez que, segundo esse pensamento, o ciberespaço não possui
territorialidade, o que impede a intervenção estatal.
Vale mencionar ainda que o doutrinador Jon Perry Barlow, apresentou em 1996
a “Declaração de independência do Ciberespaço’’ visando justamente evitar a
intervenção estatal.
No entanto, a maior crítica acerca dessa teoria é que essa define o espaço
122

virtual como um novo território, separado do mundo real. Em vista disso, o


doutrinador Carlos Alberto Rohrmann, em sua obra “Curso de direito virtual”,
fundamenta tal crítica. “[…] Não se pode crer no surgimento de um Estado separado
do mundo físico apenas porque se criou em um ambiente de comunicação como a
internet, que interliga vários Estados diferentes.” (ROHRMANN, 2005, p. 21)
Essa corrente ainda se subdivide entre pensamentos de direita, o qual aduz
que diante do livre mercado o Estado não deve intervir nas relações acometidas na
rede, e, ainda, pensamentos de esquerda, que disseminam o pensamento da “Livre
Propriedade”, ou seja, os conteúdos que estão no universo da internet são de
domínio de todos os usuários, sem proibições, pregam pelo “Software Livre”.
Contraposto ao entendimento do pensamento libertário, advém a teoria social-
democrata, composta pela segunda geração de pensamentos da teoria tradicional.
A tradicionalista, corrente social-democrata, argumenta que o direito eletrônico
pode e deve ser regulado através de normas amplas, princípios e regras gerais, a
fim de proporcionar a proteção das partes mais vulneráveis que se relacionam no
meio virtual.
À vista disso, defende a tese de que “a busca da justiça e do bem comum são
as características mais importantes do direito e suas regras.” O que torna o Estado
um espaço interligado com o mundo físico, contrapondo os pontos levantados pela
corrente libertária.
Apresenta, ainda, o pensamento que apenas as regras contidas nos códigos de
programação, são insuficientes para inibir condutas ilícitas, uma vez que os mesmos
criadores dos códigos possuem a habilidade para o burlar.
Ademais, diante desse pensamento, os fatos jurídicos que ocorrem no meio
virtual, podem se enquadrar nas normas contidas no espaço físico, logo o
ciberespaço pode ser regulamentado sem preocupação.
No entanto, a crítica que se revela é que os técnicos que criam as normas para
regulamentar os fatos jurídicos que ocorrem no espaço físico não possuem
experiência capaz de elaborar normas condizentes com as atividades acometidas na
rede.

1.5.3 Específica

A corrente específica quanto à arquitetura da rede, é caracterizada devido à


123

ideologia da necessidade de uma regulamentação flexível, porém, o Estado deve


determinar a natureza tecnológica do espaço virtual para que se possa, através do
direito, regulamentar os atos acometidos na rede.
Segundo essa corrente o Estado deve criar um meio possível para
regulamentar o espaço virtual a fim de evitar que algum usuário de maior “poder”
determine um controle superior ao do Estado, e de forma alheia à sua vontade, fato
esse que prejudicaria os demais usuários tornando-os submissos a esse controle
não estatal.
Aos olhos do pesquisador Lawrennce Lessing, o espaço virtual não possui uma
natureza predefinida, desse modo o controle deverá ser realizado pela linguagem
code, ou seja, pelos códigos que estruturam a rede e seu sistema.
Desse modo, o Estado deve se utilizar da arquitetura dos códigos para tutelar o
espaço virtual, ao contrário do espaço físico que se utiliza das leis como meio de
regulamentar a sociedade.
Por não entender que o direito é a melhor forma de resolução de conflito para o
ambiente virtual, e determinar que o Estado deve deter o controle das atividades da
rede, classificando os conteúdos acessados pelo usuário, e exercendo forte
intervenção em seus atos, a teoria da regulamentação através da arquitetura da
rede não é muito aceita pela comunidade do ciberespaço.
Além do mais, a corrente específica ainda engloba os pensamentos acerca da
corrente do Direito Internacional, esta, por sua vez, aduz que devido à
desterritorialização da internet, as regras devem ser realizadas de maneira
supranacional, ou seja, por entidades ou tratados internacionais.
Desse modo, entende-se que existiria uma forma de controle da rede por meio
de normas, no entanto, ao contrário do pensamento da arquitetura da rede, o
controle estaria em comum acordo, visto que tais normas seriam feitas ao molde dos
tratados internacionais.
No entanto, diante da difícil aplicabilidade prática, uma vez que cada nação
possui seus costumes e algumas relações de conflitos são melhores solucionadas
por norma do direito interno, tornando assim a aplicabilidade da ideia de Direito
Internacional uma prática morosa, o que não condiz com o universo virtual.
124

2 Socialização

Objetivamente, a internet possui elementos capazes de potencializar a


desigualdade na sociedade. Considerando-se as estatísticas brasileiras
apresentadas, praticamente 43% da população não possui acesso em suas
residências, o que, de certa forma, proporcionaria a esses uma dificuldade maior,
em relação aos que tem acesso, de encontrar empregos, de acesso à educação, às
informações sobre o governo, bem como de participação política. Um estudo feito
pela NTIA, entre 1995 e 2000, evidenciou que nos Estados Unidos o acesso à
internet era predominante entre caucasianos, estudantes universitários, pessoas
com menos de 55, homens e habitantes das zonas urbanas. Este estudo indicou
ainda que os não-usuários de internet motivaram sua falta de acesso tanto por não
possuírem computadores, como por não poderem manter o pagamento mensal das
despesas e por não possuírem tempo ou interesse.
Esse fenômeno nem sempre é ocasionado devido à resistência para aceitar a
interação com uma nova tecnologia, como aduz McLuhan, muitas vezes é percebido
tais acontecimentos, uma vez que o sistema econômico predominante na
contemporaneidade é marcado por ser classificado por classes sociais, desse modo,
é palpável a ideia de nem todos possuírem meios para acessar as novas
tecnologias, dependendo assim de políticas públicas a fim de proporcionar o acesso
das classes menos abastadas aos meios de comunicação.

Considerações Finais

Desse modo, diante do todo explanado, tornou-se claro a influência que os


meios de comunicação exercem no organismo social e seu papel fundamental para
a evolução da sociedade, haja vista a necessidade de comunicação entre os
indivíduos.
Ademais, os meios de comunicação podem ser classificados através dos
veículos pelos quais são dissipadas as informações e a capacidade de proporcionar
os sentidos no receptor, criando senso crítico ou alienando os usuários, essa
possibilidade é distinguida pelo filósofo determinista McLuhan como mídias quentes
e frias.
Ainda sob a ótica do determinismo tecnológico, tornou-se compreensível o
125

termo explicitado por McLuhan, “os meios de comunicação como extensões do


homem”, ao passo que novos meios de tecnologia de informação proporcionam uma
extensão que auxilia os homens em seus desenvolvimentos, e tais ferramentas
interagem com seus usuários como se fossem extensão de seus corpos.
O advento da facilidade de troca de informação contida no ciberespaço trouxe
aos seus usuários diversas possibilidades, a fim de disseminar ideologias,
conhecimentos e experiências, no entanto, o fato da dependência do usuário de
modo desvairado, torna-o alienado a certas informações inverídicas que pairam
sobre o universo da internet. Porém, se utilizada de maneira consciente, essa
ferramenta é capaz de ocasionar notórias revoluções sociais, como demonstrado.
Acerca dessas possibilidades, restou necessária a discussão quanto à
regulamentação do meio virtual, com pensamentos favoráveis e contrários, e se
entendeu no Brasil pela criação do marco civil da internet, que, de certa forma, visa
tutelar a parte hipossuficiente do meio virtual, e proporcionar soluções do conflito do
mundo digital. Além da importância da socialização da rede, para abranger todos os
integrantes do organismo social.

Referências

ARMAND; MATTELART, Michèle. História das teorias da comunicação. Trad. Luiz


Paulo Rouanet, 8ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Acesso à internet e a televisão


e posse de telefone móvel para uso pessoa. Rio de Janeiro: Coordenação de
Trabalhos e Rendimento, IBGE, 2016.

LESSIG, Lawrence Lessing. Code version 2.0. New York: Basic Books. 2006,
Disponível em <http://codev2.cc/download+remix/Lessig-Codev2.pdf>Acesso em:
28abr 17.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem.


Trad. Décio Pignatari, 8ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1996.

PINHO, J. B. Comunicação em marketing: princípios da comunicação


mercadológica. Campinas: Papirus, 2001.

ROHRMANN, Carlos Alberto. Curso de direito virtual. Belo Horizonte: Del Rey,
2005.

THOMPSON, John b. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos
meios de comunicação de massa. Trad. Grupo de Estudos sobre Ideologia,
126

comunicação e representações sociais da pós-graduação do Instituto de Psicologia


da PURCS. 4ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
127

O PAPEL SOCIAL E A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA CONDENAÇÃO DE


ACUSADOS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

THE SOCIAL ROLE AND THE INFLUENCE OF THE MEDIA IN THE


CONDEMNATION OF ACCUSED IN BRAZILIAN CRIMINAL LAW

Amália Helena Vivarelli39


Marcos Alessandro Munhoz dos Santos 40

Resumo: Com o decorrer dos anos e a vinda de novas gerações, a mídia ficou cada
vez mais acessível à população, um exemplo disso foi a disseminação da Internet,
meio eficaz de rápida propagação de informação. Contudo, essa ferramenta pode
ser utilizada por pessoas mal-intencionadas ou negligentes. Nesse aspecto, salienta-
se o dano que a mídia pode causar em situações em que as informações são
precipitadas ou não condizem com a realidade, sem qualquer consideração aos
princípios inerentes à pessoa humana, especialmente quanto ao contraditório e à
ampla defesa. Nesse sentido, informações relativas à suspeita de fatos criminosos
têm que ser divulgadas com muita cautela por todo e qualquer meio de veiculação
de informação, sobretudo na mídia virtual, uma vez que uma notícia falsa pode
acarretar em diversos prejuízos para o acusado, que vão desde danos patrimoniais
a cerceamento da liberdade e, em casos extremos, a morte. O objetivo, portanto, do
presente estudo é analisar o impacto social que os meios de informação podem ter
nas relações sociais e, sobretudo, abordar a influência da mídia como fator
predominante para condenações na seara do Direito Penal Brasileiro. Além disso,
através de pesquisa bibliográfica e exploração de casos concretos, busca-se discutir
o papel social da mídia na sociedade.
Palavras-chave: Influência. Mídia. Condenação.

Abstract: With the passing of the years and the coming of new generations, the
media has become more and more accessible to the population, an example of this

39
Bacharela em Direito pela Universidade Filadélfia (UNIFIL), pós-graduanda em Prática em Direito
Penal pela Faculdade Arthur Thomas (FAAT). E-mail: malia_helena11@hotmail.com
40
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), aluno especial de Mestrado da
Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: marcosmunhoz3007@gmail.com
128

was the dissemination of the Internet, an effective means of rapid dissemination of


information. However, this tool can be used by malicious or negligent people. In this
aspect, the media damage can be highlighted in situations where information is hasty
or not in keeping with reality, without regard to the principles inherent to the human
person, especially the contradictory and the ample defense. In this sense,
information regarding the suspicion of criminal acts must be divulged with great
caution by any and all means of disseminating information, especially in the virtual
media, since false news can lead to several damages for the accused, ranging from
Property damage to the curtailment of freedom and, in extreme cases, death. The
aim, therefore, of the present study is to analyze the social impact that the media can
have on social relations and, above all, to address the influence of the media as a
predominant factor for convictions in the area of Brazilian Criminal Law. In addition,
through bibliographical research and exploration of concrete cases, it is sought to
discuss the social role of the media in society.
Key-words: Influence. Media. Condemnation.

Introdução

O presente estudo visa abordar um tema pouco tratado pela doutrina brasileira,
porém vivido diariamente por toda a população: a influência da mídia nas relações
sociais e sua relevância na condenação de acusados no Direito Penal Brasileiro.
Inicialmente, será abordado os aspectos constitucionais acerca do Estado
Democrático de Direito, de modo a diferenciá-lo do mero Estado de Direito, que se
faz mais legalista e objetivo em relação àquele.
Nesse sentido, serão abordados os principais princípios e garantias
relacionados à personalidade dos indivíduos e ao processo penal. Tratará, portanto,
do princípio da dignidade da pessoa humana, base dos direitos humanos, além do
princípio do contraditório e da ampla defesa, que conferem direito de resposta às
acusações imputadas contra o sujeito, e do princípio da presunção de inocência, que
garante a todos o direito de não ser considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória, conforme preceitos constitucionais.
Em contrapartida aos princípios constitucionais supracitados, serão abordados,
ainda, os direitos individuais trazidos pela Carta Magna em virtude do Estado
Democrático de Direito, que concedem a liberdade de expressão individual,
129

garantindo aos indivíduos o direito à livre manifestação, à informação, de


pensamento, etc., ou seja, que legitimam o direito de atuação da imprensa e da
mídia em geral.
Em um segundo momento, será abordado o papel do Poder Judiciário e sua
autonomia, de modo a analisar sua independência e imparcialidade perante
julgamentos que, sobretudo, tenham grande impacto social e midiático.
Nesse sentido, além de analisar a liberdade dos magistrados para conduzir
seus julgados, será abordado a influência e a pressão social que a mídia exerce
sobre a atuação do magistrado incumbido de julgar casos emblemáticos.
Posteriormente, a partir de pesquisa bibliográfica, busca-se analisar o papel
social que, de fato, a mídia exerce na condenação de acusados no Direito Penal
Brasileiro. Para isso, analisar-se-á os principais aspectos acerca da mídia e da
imprensa, destacando o direito constitucional à informação, assegurado no artigo 5º,
incisos IV, IX, XIV, e no art. 220 da Constituição Federal.
Além disso, o presente estudo visa tratar do impacto social que os meios de
comunicação têm sobre a vida das pessoas, sendo, por vezes, o principal meio de
informação da população, o que pode influenciar imensamente a opinião pública de
determinado assunto.
Nesse aspecto, serão tratados dois casos em que uma notícia veiculada de
forma indevida ou de forma negligente pode prejudicar os direitos constitucionais
dos indivíduos, sobretudo aqueles ligados à personalidade e às garantias
processuais.
Por fim, será abordado de forma mais objetiva, casos ocorridos no país, nos
quais a notícia veiculada pela mídia causou graves danos às vítimas, prejudicando
ou ceifando suas vidas diante de sua grande repercussão.
No primeiro caso, analisar-se-á a acusação de estupro não comprovado que
ganhou grande repercussão social. Posteriormente, a acusação falsa a uma dona de
casa, através de uma mídia social, de praticar sequestro de crianças para realizar
magia negra, que, infelizmente, culminou na morte da acusada. Em decorrência
deste último caso, será abordado o Projeto de Lei, em trâmite na Câmara, que visa
majorar a pena das pessoas que incitam crimes pela internet ou outro meio de
comunicação em massa.
Visto isso, busca-se refletir sobre os limites da mídia como um todo, de forma a
garantir os direitos intrínsecos ao ser humano, sobretudo, acerca de sua dignidade e
130

de seu direito de defesa, a fim de evitar casos em que manobras midiáticas e o


“clamor público” acabe prejudicando ou ceifando vidas de inocentes.

1 Do estado democrático de direito e dos princípios constitucionais

A Constituição Federal, em seu artigo 1°, caput, estabelece que a República


Federativa do Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito,
representando, portanto, seu perfil político-constitucional e dele decorre todos os
princípios fundamentais do Estado.
Nesse sentido, cabe esclarecer que o Estado Democrático de Direito é muito
mais do que simplesmente Estado de Direito.
Para Paulo Bonavides (1995, p. 190 apud FERNANDES, 2015, p. 1), o Estado
de Direito se trata de “um ‘status quo’ institucional que reflete a confiança depositada
nos governantes pelos cidadãos, como garantidores de direitos e liberdades
fundamentais do homem e da sociedade”.
Diante disso, entende-se que o termo “Estado de Direito” se inclina para a ideia
de que o indivíduo é detentor de direitos em face do próprio Estado, ou seja, o
Estado deve se submeter aos seus próprios preceitos, a fim de reconhecer e
assegurar os direitos e garantias dos indivíduos, obedecendo aos direitos básicos
para uma vida digna (FERNANDES, 2015, p. 1).
Assim, Fernando Capez (2012) esclarece que o Estado de Direito assegura a
igualdade meramente formal entre os homens, e se caracteriza pela submissão de
todos ao império da lei, pela divisão formal do exercício das funções derivadas do
poder, pelo estabelecimento formal de garantias individuais, além de ter o povo
como origem formal de todo e qualquer poder e lhe garantir a igualdade meramente
formal de todos perante a lei, no sentido de impedir distorções sociais de ordem
material.
Em outras palavras, para o Estado de Direito,

todos são iguais porque a lei é igual para todos e nada mais. No plano
concreto e social não existe intervenção efetiva do Poder Público, pois este
já fez a sua parte ao assegurar a todos as mesmas chances, do ponto de
vista do aparato legal. De resto, é cada um por si (CAPEZ, 2012, p. 22).

Portanto, o legislador, ao afirmar que o Brasil não é apenas Estado de Direito,


mas sim Estado Democrático de Direito, concedeu muito mais amplitude aos direitos
131

e garantias amparados pela legislação.


Afirma-se, portanto, que o Estado Democrático de Direito vai além da
proclamação formal da igualdade entre todos os homens e mulheres, ele se verifica

pela imposição de metas e deveres quanto à construção de uma sociedade


livre, justa e solidária; pela garantia do desenvolvimento nacional; pela
erradicação da pobreza e da marginalização; pela redução das
desigualdades sociais e regionais; pela promoção do bem comum; pelo
combate ao preconceito de raça, cor, origem, sexo, idade e quaisquer
outras formas de discriminação (CF, art. 3 o, I a IV); pelo pluralismo político
e liberdade de expressão das ideias; pelo resgate da cidadania, pela
afirmação do povo como fonte única do poder e pelo respeito inarredável da
dignidade humana (CAPEZ, 2012, p. 23).

Desta forma, o Estado Democrático não impõe a mera submissão de todos ao


império da Lei, mas objetiva a adequação social de seu conteúdo, descrevendo
como infração penal somente fatos que realmente colocam em perigo bens jurídicos
fundamentais para a sociedade (CAPEZ, 2012, p. 23).
Seu objetivo, portanto, vai além do cumprimento estritamente legal, ele surgiu
para
promover a igualdade entre os sujeitos, para que seja assegurado o direito
de todos serem iguais, desde o mais rico até o mais pobre. É para isto que,
com o advento desse novo Estado – um estado mais atuante, que não
somente visa frear o poder como no Estado de Direito – são prestados os
serviços públicos, para igualar os cidadãos, dando, “ao menos em teoria”,
iguais direitos de acesso, a exempli gratia: educação, saúde, etc. visando
assim incluir a todos na sociedade (MAGALHÃES, 2016, p. 9).

Portanto, o Brasil, por se tratar de Estado Democrático de Direito, deve ter


seu direito penal legítimo, democrático e obediente aos princípios constitucionais
que o informam, passando o tipo penal a ser uma categoria aberta, cujo conteúdo
deve ser preenchido em consonância com os princípios derivados deste perfil
político-constitucional (CAPEZ, 2012).
Acerca disso, cabe destacar que do Estado Democrático de Direito partem
todos os princípios reguladores e as diretrizes constitucionais dos mais diversos
campos de atuação humana, sobretudo, no que diz respeito ao Direito Penal
brasileiro.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o Direito Penal brasileiro é pautado por um
direito democrático “a partir do qual partem inúmeros outros princípios próprios
afetos à esfera criminal, que nele encontram guarida e orientam o legislador na
definição das condutas delituosas” (CAPEZ, 2012, p.23-24).
132

De acordo com Miguel Reale (2002), princípios são “verdades fundantes” de


um sistema de conhecimento, como tais admitidas por serem evidentes ou por terem
sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter
operacional, ou seja, como pressupostos exigidos pelas necessidades de pesquisa e
de ação.
Em primeiro lugar, cabe destacar o princípio da dignidade da pessoa humana
(CF, art. 1º, III). Ele serve de base para todo o ordenamento e sua afronta será
materialmente inconstitucional, posto que isso seria atentatório ao próprio
fundamento da existência do Estado.
Nesse sentido, pode-se afirmar que “o princípio da dignidade da pessoa
humana é a origem dos direitos humanos consagrados em nossa Lei Maior. Desse
modo, ele se reflete em todos os ramos do direito, mas pode-se dizer que de um
modo especial está atrelado ao direito penal.” (BEGALLI, 2010, p. 1)
É nítida a importância da supremacia dos princípios constitucionais, sobretudo
no direito penal, haja vista que este tem a função de descrever condutas definidas
como crimes, além de prescrever penas aos que nelas incorrer. Portanto, há que se
estabelecer elementos que garantam aos indivíduos seus direitos como ser humano
digno, principalmente quando existem casos de comoção social, em que alguns
direitos podem ser cerceados.
Além disso, para o presente estudo, há que se considerar, ainda, o princípio
constitucional do contraditório e da ampla defesa, previstos no artigo 5º, inciso LV,
da Carta Magna, que giza: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e
aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os
meios e recursos a ela inerentes” (CF, 1988, art. 5º, LV)
Em relação a tal princípio, cabe salientar que

ele também é conhecido pela expressão latina “audiatur et altera pars” e


significa que “ouça também a outra parte”. Analisando com afinco os dois
preceitos denota-se que o contraditório permite que o procedimento dê
oportunidade a outra parte de defender-se, bem como a ampla defesa
permite que o sujeito que está sendo acusado de determinado fato possa
apresentar dentro dos ditames legais (SANTOLINI, 2013, p. 1).

O Ministro Gilmar Ferreira Mendes, defende que o contraditório e a ampla


defesa não se constituem em meras manifestações das partes em processos
judiciais e administrativos, mas, e principalmente, em uma pretensão à tutela jurídica
(MENDES, 2009 apud TORRES, 2015).
133

Trata-se, portanto, de princípio fundamental que garante a todos os indivíduos,


o direito de defesa das acusações que lhes são imputadas. É o modo material e
processual de conceder à parte a faculdade de apresentar sua versão dos fatos
narrados pelo acusador.
Sendo assim, considera-se, também, a importância da garantia deste princípio
desde o momento da acusação, ou início do processo, até o trânsito em julgado. Por
isso, não há que se haver julgamentos precipitados antes de conceder às partes
todos os meios cabíveis de defesa.
Por derradeiro, é de suma importância mencionar o princípio da presunção de
inocência, previsto no artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal, que giza:
“ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”
(CF, 1988, art. 5º, LVII).
Entende-se, portanto, que desse princípio “decorre a exigência de que a pena
não seja executada enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória.
Somente depois de a condenação tornar-se irrecorrível é que podem ser impostas
medidas próprias da fase da execução” (JESUS, 2011, p. 53).
O princípio da presunção de inocência visa, contudo, à tutela da liberdade
pessoal e evidencia a necessidade de o Estado comprovar a culpabilidade do
indivíduo, que é, de forma constitucional, presumido inocente, sob pena de
retrocedermos ao estado de total arbítrio estatal (MORAES, 2007).
Visto isso, denota-se a grande importância que o Estado Democrático de
Direito tem na garantia dos princípios constitucionais, visto se tratar da base político-
constitucional para que os princípios sejam implementados. Em relação aos
princípios supracitados, é evidente a preocupação do legislador com os direitos
intrínsecos ao ser humano no que tange à sua personalidade e liberdade, garantindo
a todos um estado digno, com processo coerente de ampla defesa e que possibilite
seu direito a resposta, e considerando-o inocente até transito em julgado da decisão
condenatória.
Todavia, há que se ressaltar que os direitos individuais trazidos pela Carta
Magna em virtude do Estado Democrático de Direito também concedem a liberdade
de expressão individual, portanto, garantindo aos indivíduos o direito a livre
manifestação, informação, de pensamento, etc., que legitimam o direito da atuação
da imprensa e da mídia em geral.
Isso ocorre em razão do legislador perceber a importância da garantia que a
134

mídia deveria ter para exercer sua função na sociedade democrática, sobretudo no
que concerne a

levar o conhecimento e informações verídicas sobre os acontecimentos,


influenciando o debate no espaço público. Dessa forma, esta garantia foi
fixada em vários incisos do art. 5º da Constituição Federal de 1988, nos
seus incisos IV, V, X, XIII, XIV, dentre outros, que estabelece os direito e
garantias fundamentais, além da previsão do art. 220 da Constituição
Federal que também assegura a manifestação do pensamento
(FERNANDES, 2015, p. 1).

Contudo, apesar da grande representatividade midiática, a imprensa também


encontra limites no texto constitucional e infraconstitucional, devendo ser
empregada, sempre, em consonância com os demais princípios constitucionais,
sobretudo aqueles que visam proteger a personalidade e a liberdade do sujeito,
conforme será abordado mais adiante.

2 Independência do Poder Judiciário

A Constituição Federal, em seu artigo 99, garantiu expressamente ao Poder


Judiciário, autonomia administrativa e financeira, assegurando-lhes, ainda,
independência e imparcialidade.
Nesse sentido, o Poder Judiciário é tido como guardião das liberdades e
direitos individuais e isso só acontece em virtude da preservação da sua própria
independência e imparcialidade (CARVALHO, 2015, p. 1).
Em relação às garantias próprias do Poder Judiciário, cabe salientar que essas
são divididas em dois principais grupos: independência política e independência
jurídica.

Correspondem à denominada independência política do Poder e de seus


órgãos, a qual se manifesta no autogoverno da Magistratura, nas garantias
da vitaliciedade, da inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos e na
vedação do exercício de determinadas atividades, que garantem às partes a
imparcialidade do juiz. A independência jurídica dos juízes, a qual retira o
magistrado de qualquer subordinação hierárquica no desempenho de suas
atividades funcionais; o juiz subordina-se somente à lei. (CARVALHO, 2015,
p. 1)

Portanto, a independência do Poder judiciário é necessária para que os


magistrados possam tomar suas decisões livres de todas e quaisquer pressões
pessoais ou midiáticas. Isso concede ao julgador uma liberdade maior na análise e
julgamento de cada caso, garantindo-lhe seu exercício funcional jurisdicional.
135

Tal garantia se mostra fundamental tanto de forma interna, como


externamente. No âmbito interno, o magistrado não deve se preocupar com
eventuais repercussões que seus atos e decisões possam ter, ou se o fundamento
das sentenças por ele prolatadas encontrará amparo no entendimento dos membros
dos tribunais a que se encontra vinculado, muito menos no que o clamor público
entende ou deseja ver como resultado, isso porque a independência e a
imparcialidade do juiz devem afastar qualquer submissão do desempenho da
jurisdição em face de juízos de terceiros, por mais numerosos que sejam
(FERNANDES, 2015, p. 1).
Portanto, o juiz tem garantido sua liberdade de julgamento, não devendo ceder
ao clamor público ou quaisquer influências midiáticas, pois se assim o fizer, estará
desviando a correta execução de sua função.
Nesse sentido, Paulo Mário Canabarro Neto (2012, p. 339) esclarece sobre o
tema.
A independência do juiz é o que lhe permite quedar-se vinculado somente à
lei, aqui entendida em sentido amplo, abrangendo o ordenamento jurídico
como um todo, encimado pela Constituição. Por isso, a independência
judicial não é apenas tolerável, mas constitui verdadeiro pressuposto para
que a jurisdição cumpra sua tarefa. Trata-se, por conseguinte, não de
simples prerrogativa judicial, nem de uma abstrata aspiração desprovida de
meios de imposição, mas de um dever do magistrado, ao qual corresponde
um efetivo direito do jurisdicionado.

Em relação a esse assunto, resta esclarecer que agir com imparcialidade não é
o mesmo que exigir neutralidade, pois não há neutralidade do juiz. “O objetivo é
garantir ao juiz a possibilidade de tomar decisões autônomas, livres do poder que
busca uniformizar a opinião pública, e também decisões imunes às pressões
culturais e ideológicas da sociedade” (FERNANDES, 2015, p. 1).
Sendo assim, é notório que o papel do magistrado vai muito além da mera
análise do caso concreto, é necessário o aprimoramento pessoal e profissional do
juiz, uma vez que ele está cercado de posicionamentos tendenciosos que visam
interferir em sua decisão.
Entretanto, o exercício da magistratura independente da opinião pública ou do
senso comum, pressupõe a busca incessante pelo conhecimento, privilegiando a
racionalidade e não as “paixões da opinião pública”, objetivando, portanto, evitar que
tal influência retire do Poder Judiciário sua competência de julgar (FERNANDES,
2015).
136

3 O papel social e a influência da mídia na condenação de acusados no direito


penal brasileiro

Acerca do tema a ser abordado adiante, cabe esclarecer inicialmente o


significado de mídia e imprensa. Neste sentido,

mídia é o termo usado para designar os meios de comunicação. Imprensa é


a designação coletiva dos veículos de comunicação que exercem o
jornalismo e outras funções de comunicação informativa. Os termos mídia e
imprensa muitas vezes são usados com a mesma acepção (ZANIN, 2015,
p. 1).

Diante disso, cabe ratificar que os direitos à informação são considerados


fundamentais e protegidos constitucionalmente no artigo 5º, incisos IV, IX, XIV, e no
art. 220 da Constituição Federal.
O direito à informação, portanto, “se refere a divulgação de fatos, dados,
qualidades, objetivamente apurados de forma imparcial, com uma função social de
contribuir para a elaboração do pensamento” (SALOMÃO, 2006, p. 18).
Sendo assim, o papel da mídia vai além da mera liberdade de expressão, em
que se visa a livre expressão do pensamento, mas tem o papel social de informar as
pessoas e contribuir para o pensamento crítico de cada uma.
Entretanto, as mídias, por terem um papel tão importante e de vasto acesso
pela população das mais diversas posições econômicas, políticas e sociais, devem
ser tratadas com cautela.
Nesse sentido,

em uma sociedade moderna, os meios de comunicação tornaram-se os


principais fornecedores de informação e opinião sobre assuntos públicos. A
informação é algo fundamental em qualquer sociedade; além de
proporcionar crescimento interior (instrução, cultura), traz benefícios práticos
para quem a recebe, inclusive pecuniários. (ZANIN, 2015, p. 1).

Destarte, a influência midiática é tão forte e presente na vida cotidiana da


população, podendo ser a principal fornecedora de informação à sociedade, motivo
pelo qual deve ser tratada com cuidado, sobretudo quando se trata de notícias
envolvendo imagem ou direitos à personalidade de algum indivíduo, visto que,
muitas vezes, pode direcionar ou manipular a opinião pública num aspecto negativo.
Paulo César Salomão (2006, p. 20) destaca que “informar é uma função social
137

de altíssima relevância, mormente as empresas de rádio e televisão, que detêm uma


concessão do Estado para funcionar e que deveriam sempre isto ter em relevo”.
Em contrapartida, os responsáveis pela veiculação da notícia,
costumeiramente, alegam que entregam ao público aquilo que ele quer. Nesse
sentido, Nilson Naves (2003, p. 23) salienta que “é verdade do ponto de vista
prático, uma vez que a notícia escandalosa, sangrenta e provocadora vende mais e
aumenta a audiência, mas ela não pode ser considerada informação como um
direito fundamental e, muito menos, merecedora da proteção”.
Infelizmente, não são raras as vezes que uma notícia veiculada nos meios de
comunicação é amplamente divulgada sem qualquer cuidado com a preservação
dos direitos individuais do acusado e, muitas vezes, o dano pode ser irreparável.
Em consequência da amplitude da mídia, o Poder Judiciário, apesar de ser
independente e autônomo, também sofre reflexos da influência midiática, conforme
análise a seguir:

A imprensa não economiza na hora de dramatizar, trazer em seus textos um


sensacionalismo que chega a sensibilizar os telespectadores, carregado de
um sentimento de justiça a qualquer preço. A partir da formação das
opiniões, as pressões sociais aumentam, e o sentimento de justiça aflora
como uma forma de consolo às famílias. Essa carga emocional cai toda
sobre o juiz que irá conduzir o processo. (FERNANDES, 2015, p. 1)

Dessa forma, embora trate de um sistema independente, a influência da mídia


também atinge o Direito Penal. E o juiz, em alguns casos, acaba sendo pressionado
para tomar determinada decisão, sobretudo, quando se trata de casos emblemáticos
e de grande repercussão social.
Entretanto, o foco do Judiciário deve ser sempre a Justiça, sendo assim,

apesar das pressões sociais, da busca pelo culpado imediato, da forte


influência exercida pela mídia através dos noticiários, jornais e demais
meios de comunicação, o juiz deve estabelecer os limites que necessita
para conduzir o processo de modo a discutir as questões relacionadas ao
caso, com base nas provas, nas alegações, nas testemunhas entre outros e
trabalhar a conscientização da população de que o Estado busca uma
justiça ressocializadora e não retributiva, onde se paga o mal por outro mal
(FERNANDES, 2015, p. 1).

Nota-se, portanto, que a mídia pode repassar ao público uma informação


infundada e acabar manchando a reputação de um indivíduo que sequer teve o
direito de defesa garantido, causando-lhe imensuráveis danos sociais e psíquicos.
Dessa forma, o processo deve resguardar a pessoa do acusado, de modo a
138

não poder ser considerado culpado – pela mídia ou por qualquer indivíduo – antes
da sentença penal condenatória. E o magistrado, como encarregado de manter a
ordem, deverá garantir a efetiva aplicação dos direitos do acusado, protegendo-o
contra arbitrariedades processuais.
Por fim, em análise à influência social que a mídia tem sobre as pessoas e à
ocorrência de fatos negativos envolvendo a veiculação de notícias falsas, Salomão
apresenta uma proposta análoga às práticas reguladoras existentes nos Estados
Unidos:

É necessário criar, no Brasil, uma entidade reguladora e fiscalizadora das


atividades envolvendo este complexo ramo da comunicação, nos moldes
das agências reguladoras existentes nos Estados Unidos (prevista no art.
224 da Constituição Federal), independente e autônoma. […] Carecem os
jornalistas de um órgão regulador de suas atividades nos moldes da Ordem
dos Advogados, a fim de impor efetivamente um código de ética e extirpar
da categoria os maus profissionais. Recebem remuneração irrisória diante
do vulto e responsabilidade da profissão, embora esta atividade empresarial
propicie enormes lucros. (2006, p. 38-39)

De acordo com essa análise, conclui-se que, além da cautela na recepção das
informações formuladas pela mídia, há também a necessidade desse ato ser feito
com plena responsabilidade, respeitando os direitos e garantias individuais de todos
os indivíduos, a fim de não agir de forma negligente, visto que isso pode resultar em
danos inestimáveis para as vítimas.
Adiante, será visto, de forma mais específica, casos em que notícias veiculadas
na mídia causaram graves danos às vítimas, que tiveram a vida prejudicada ou
ceifada por conta de notícias que tomaram grandes proporções.

3.1 Análise de casos práticos de condenação influenciados pela mídia

Com o objetivo de exemplificar a influência da mídia na sociedade e no


comportamento dos indivíduos e, ainda, demonstrar a violação dos direitos e
garantias constitucionais, inicialmente, cabe analisar a notícia envolvendo um caso
de acusação de estupro feita por uma jovem em uma rede social:

[…] uma jovem de 24 anos relatou, por meio das redes sociais, ter sido
estuprada pelo segurança durante a festa. A vítima postou o registro do
boletim de ocorrência, feito na Deam, e os medicamentos recebidos durante
o atendimento hospitalar, além de uma carta dando detalhes do que teria
ocorrido naquela madrugada de 1º de janeiro deste ano. De acordo com o
139

relato, passava da meia-noite quando um homem com trajes de segurança


interrompeu a dança dela. Segundo a vítima, ele a coagiu a sair da festa.
[…] “Eu estava completamente vulnerável, com muito medo. Um dos carros
estava estacionado de ré para o cerrado, então atrás do carro só havia
vegetação. Ele me virou de costas e sem a menor cerimônia me estuprou”,
afirmou em seu relato. O segurança, por sua vez, sempre alegou inocência.
Embora tenha confirmado ter mantido relações sexuais com a jovem, disse
que o ato foi consentido e que a jovem não estava embriagada. (CARONE,
2016, p. 1)

A notícia ganhou grande repercussão e se espalhou rapidamente pelos meios


de comunicação. Entretanto, após investigações, o crime não foi confirmado e o
acusado foi inocentado:

A Polícia Civil do DF encerrou o inquérito sobre a denúncia de um suposto


estupro ocorrido na noite de réveillon […] sem indiciar o segurança
Wellington Monteiro Cardoso, 33 anos. Dois elementos fundamentais da
investigação – o laudo pericial produzido pelo Instituto Médico Legal (IML) e
o depoimento de testemunhas – levantaram dúvidas sobre o que, de fato,
ocorreu naquela noite. Segundo laudo do IML, não houve comprovação de
violência sexual, e testemunhas disseram que jovem teria saído de mãos
dadas com segurança da festa […] (CARONE, 2016, p. 1)

Contudo, após o episódio, poucos meios de comunicação divulgaram a


inocência do segurança com tanto afinco como a notícia inicial de estupro. Sobre
essa perspectiva, Luciano Ayan analisa que “o sadismo dessa mídia chegou a tal
ponto que eles fizeram julgamentos sumários, que aniquilaram sua carreira e
colocaram sua vida em risco” (AYAN, 2016, p. 1).
Isso demonstra que o julgamento precipitado cumulado com a exposição
midiática pode trazer resultados irreparáveis para a vida do sujeito que, antes
mesmo de ter seus direitos constitucionais garantidos, é exposto pelos meios de
comunicação, muitas vezes, sem qualquer meio de defesa.
Nessa mesma perspectiva, cabe analisar uma notícia veiculada na mídia, mais
especificamente em redes sociais, que acusavam uma mulher de sequestrar
crianças para praticar magia negra, conforme segue:

A dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, morreu na manhã


desta segunda-feira (5), dois dias após ter sido espancada por dezenas de
moradores de Guarujá, no litoral de São Paulo. Segundo a família, ela foi
agredida a partir de um boato gerado por uma página em uma rede social
que afirmava que a dona de casa sequestrava crianças para utilizá-las em
rituais de magia negra. De acordo com familiares de Fabiane, após as
agressões, ela sofreu traumatismo craniano e foi internada em estado crítico
no Hospital Santo Amaro, também em Guarujá. Minutos após a agressão, a
Polícia Militar chegou a isolar o corpo de Fabiane acreditando que ela
140

estava morta após o espancamento. Na manhã desta segunda-feira, porém,


a família recebeu a informação de que Fabiane não resistiu aos ferimentos
e morreu. O espancamento aconteceu no bairro Morrinhos no início da noite
deste sábado (3). A mulher foi amarrada e agredida e, segundo
testemunhas que acompanharam a agressão, os moradores afirmavam que
a mulher havia sequestrado uma criança para realizar trabalhos de magia
negra. O caso foi registrado na Delegacia Sede de Guarujá, onde será
investigado. Até o momento, ninguém foi preso. A polícia está analisando as
imagens da agressão e busca identificar os envolvidos no caso. (ROSSI,
2014, p. 1)

Infelizmente, resta demonstrado a que ponto chega a barbárie humana, que


ceifou a vida de uma inocente acusada de um crime que nunca cometeu.
Vislumbra-se, nesse caso, a grande influência que a mídia tem na vida de
todos os indivíduos, o que demonstra que, caso sua utilização seja negligente, pode
resultar em danos irreparáveis aos acusados de qualquer prática criminosa.
Contudo, o Direito tem se preocupado cada vez mais com os impactos
causados pela mídia, de modo a buscar meios para evitar danos resultantes da
exposição de pessoas nas redes sociais.
Em virtude do ocorrido com a Sra. Fabiane Maria de Jesus, que após acusação
falsa feita em uma mídia social, foi morta por populares, busca-se, agora, através de
um projeto de Lei, majorar a pena das pessoas que incitam crimes pela internet ou
outro meio de comunicação em massa:

Nesta terça-feira (28), a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da


Câmara aprovou o PL 7544/14, que prevê aumentar em 1/3 a punição
quando a incitação a crimes ocorrer pela internet ou por meio de
comunicação de massa. A proposta vai agora ao plenário da Casa. A
intenção da proposta original era criar um novo tipo penal para quem incita
violência por meio de rede social ou de qualquer veículo de comunicação
virtual, mas o relator do projeto entendeu que esse crime já existe. Por isso,
optou por um endurecimento da pena. A nova lei, se aprovada, deve alterar
o Código Penal. “A incitação virtual atinge muitas pessoas ao mesmo tempo
e é muito mais grave que a incitação de uma única pessoa”, argumentou o
deputado Rubens Pereira Júnior (PCdoB-MA). O projeto foi apresentado
pelo deputado Ricardo Izar (PP-SP) a pedido do advogado da família de
Fabiane. “Esperamos a aprovação, mesmo com essa alteração, para pelo
menos criar o temor de que essa conduta é um crime. E queremos que a lei
tenha o nome da Fabiane”, afirma. “Infelizmente, a repercussão de que não
se passava de um boato não foi a mesma do retrato falado”, diz a
justificativa do projeto. (D’AGOSTINO, 2017, p. 1)

É evidente, portanto, a cautela necessária para a veiculação de qualquer


informação, em especial àquelas que tratem de acusações contra outras pessoas,
que, muitas vezes, acabam sendo julgadas e punidas pelo próprio meio social, sem,
141

sequer, ter seus direitos constitucionais preservados.


Sendo assim, muito além da independência do Poder Judiciário nos
julgamentos em geral, a sociedade precisa saber discernir melhor toda e qualquer
informação exposta pelos meios de comunicação, pois a mídia tem o papel
fundamental de informar e não de criar uma corrente de ódio, como eventualmente
acontece.

Conclusão

O objetivo do presente estudo foi questionar o papel que a mídia exerce na


população atualmente, bem como sua influência nas condenações de acusados no
Direito Penal Brasileiro.
A princípio, como base fundante de todo os direitos aqui elencados, tratou-se
de diferenciar o Estado de Direito do Estado Democrático de Direito, sendo aquele
uma condição em que impera o formalismo, em que todos são submetidos
igualmente ao império da Lei, de modo a impedir distorções sociais de ordem
material. Já o Estado Democrático de Direito, adotado pela Constituição Federal
trata de condição muito mais ampla dos direitos e garantias individuais, visto que
não impõe mera submissão às Leis, mas objetiva a adequação social de seu
conteúdo, portanto, muito relevante, sobretudo, para o Direito Penal.
Nesse sentido, evidenciando o Estado Democrático de Direito, abordado pela
Carta Magna, foi tratado dos principais princípios e direitos relativos às mídias
sociais e aos direitos individuais de personalidade. Assim, perpassou-se pelos
princípios da dignidade da pessoa humana, uma das principais fontes do direito
humano como núcleo geral, princípio do contraditório e da ampla defesa, que
garantem a todos os indivíduos o direito de defesa de forma legítima e razoável,
além do princípio de presunção de inocência, que enfatiza o direito de ninguém ser
considerado culpado antes do trânsito em julgado de uma decisão condenatória.
Em relação às mídias sociais, fora visto que, embora tenham o direito de
informação resguardado pela Constituição Federal, sobretudo por sua função na
democracia, há o dever de agir em consonância com os demais princípios, a fim de
não se sobrepor a direitos fundamentais de todos os indivíduos.
Posteriormente a essa análise, tratou-se do Poder Judiciário, como poder
legitimamente constituído para atuar de forma independente e imparcial. Nesse
142

sentido, fora concluído que o Poder Judiciário possui duas espécies de garantias: a
independência política e a independência jurídica. No primeiro caso, trata-se das
garantias funcionais dos membros do Judiciário, como vitaliciedade, inamovibilidade,
irredutibilidade de vencimentos e vedação do exercício de determinadas atividades,
que garantem às partes a imparcialidade do juiz. Já a independência jurídica está
vinculada à não subordinação hierárquica dos magistrados no desempenho de suas
atividades, subordinados, exclusivamente, à Lei.
Nesse caso, verificou-se que, apesar dos aspectos sociais e midiáticos que
possam pressionar os magistrados em determinada posição, os julgadores são livres
e autônomos, por força de preceito constitucional, em suas funções, sem qualquer
vinculação ou interferência de terceiros. Tal direito é, portanto, mais que uma
garantia somente do Poder Judiciário, mas também uma forma de garantir o bom
desenvolvimento da Justiça para a sociedade.
Em relação, especificamente, à influência da mídia, tratou-se, inicialmente, dos
aspectos relevantes da mídia e da imprensa, atuando com papel fundamental na
disseminação de informação, visto que a mídia vai além da mera liberdade de
expressão, em que se visa a livre expressão do pensamento, mas tem o papel social
de informar as pessoas e contribuir para o pensamento crítico de cada uma.
Entretanto, conclui-se que, em virtude da grande abrangência e influência
midiática na vida da população, os meios de comunicação, de forma geral, devem
ser tratados com cautela, a fim de evitar exposições desnecessárias que possam
prejudicar direitos das pessoas, seja por extrapolarem as garantias constitucionais
dos cidadãos, pela forma, muitas vezes, manipulada ou sensacionalista de passar a
informação, ou mesmo, para atender interesses econômicos e políticos, através da
seleção e veiculação de notícias tendenciosas.
Como visto, infelizmente, é cada vez mais comum que notícias veiculadas nos
meios de comunicação sejam amplamente divulgadas sem qualquer cuidado com a
preservação dos direitos individuais do acusado e, muitas vezes, o dano pode ser
irreparável, como nos casos práticos demonstrados no presente estudo, nos quais
pessoas inocentes foram acusadas de cometerem crimes e tiveram suas vidas
prejudicadas ou ceifadas em virtude disso.
Nesse aspecto, conclui-se que, além da cautela na recepção das informações
formuladas pela mídia, também há a necessidade desse ato ser feito com plena
responsabilidade e ética pelos jornalistas e por todos os meios de comunicação,
143

respeitando os direitos e garantias individuais de todos os indivíduos e mantendo-se


dentro dos limites legais, a fim de não agir de forma negligente, visto que isso pode
resultar em danos inestimáveis para as vítimas.
Portanto, propagar a pré-condenação de acusados de crimes, assim como
alienar o público e cativar um sentimento de revolta e ódio na população não é papel
da mídia e não favorece a consumação da Justiça, pelo contrário, sua essência
pode ser totalmente desvirtuada por atitudes que cerceiem os direitos dos
indivíduos.
Sendo assim, a mídia, além de ferramenta importante no exercício
democrático do cidadão, deve estimular e propagar a informação de forma
responsável, rechaçando matérias que induzam ou estimulem o discurso de ódio
entre as pessoas, visto que isso, conforme demonstrado, pode gerar danos
irreparáveis aos acusados e afastando, de fato, o sinônimo de Justiça.

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146

GRUPO DE TRABALHO 3

DIREITO EM TEMPOS DE BARBÁRIE

Ementa: Serão aceitos trabalhos que tratem dos seguintes temas: genocídio negro
e indígena, militarização e violência na repressão de manifestações populares,
militarização no combate à pobreza, encarceramento em massa.

Coordenadora: Erika Juliana Dmitruk (ejdmitruk@hotmail.com)


147

A APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO ANTITERRORISTA E A CRIMINALIZAÇÃO DE


MOVIMENTOS SOCIAIS LATINO-AMERICANOS PÓS 11 DE SETEMBRO

Sabrina Diniz Bittencourt Nepomuceno41


Prof. Dra. Elisa Maria Andrade Brisola42

Introdução

A partir do 11 de setembro de 2001, com o recrudescimento da repressão


internacional na “Guerra contra o Terror”, diversos países do mundo têm sido
cobrados para alterar sua legislação criminal, no que se refere à lavagem de
dinheiro e financiamento do terrorismo.
Trata-se de analisar de que forma este novo modelo repressivo da política
norte-americana, sob a bandeira da “Guerra ao Terror”, repercute na América Latina,
especialmente em relação aos movimentos sociais.
Após os ataques aos prédios do World Trade Center nos Estados Unidos, os
movimentos sociais latino-americanos têm vivenciado casos de aplicação de
legislações antiterroristas a seus militantes. No Chile, no Equador, na Colômbia, e
em outros países, militantes têm sido presos, indiciados e até processados por este
tipo de legislação. No Brasil, a Lei Antiterror foi sancionada em março de 2016 e
ainda não aplicada a movimentos sociais.

1 Sobre os movimentos sociais

Em relação aos movimentos sociais, existem divergências significativas nas


concepções referentes ao seu papel na sociedade, que se dá devido às diferentes
visões de mundo dos pesquisadores. No presente trabalho, adotaremos os autores
Carlos Montaño e Maria Lucia Duriguetto, que trabalham a partir da concepção
marxista de Estado e classes sociais, em sua obra Estado, Classe e Movimento
Social (2011).

41
Aluna do Mestrado em Desenvolvimento Humano – UNITAU. Membro da RENAP (Rede Nacional
de Advogados e Advogadas Populares).
42
Professora do Mestrado em Desenvolvimento Humano – UNITAU
148

Os autores apresentam os conceitos de Estado e Classe e propõem analisar os


Novos Movimentos Sociais (nos quais se incluem os movimentos trabalhados nesta
pesquisa: o MST, o MTST e os Mapuche) dentro do contexto capitalista, em sua
fase neoliberal. Apresentam inicialmente o Movimento Sindical (Movimento Social
Clássico, junto com os Movimentos de Libertação Nacional), comparando-o com os
Novos Movimentos Sociais e o Terceiro Setor.
Sobre os Movimentos Sociais na América Latina e no Brasil, os autores os
classificam como Movimentos clandestinos, de resistência à ditadura e
redemocratização no Brasil; Movimentos e demandas por bens de consumo coletivo;
Movimento Sem Terra (MST) e as lutas pela Reforma Agrária e as articulações com
movimentos urbanos (como o MTST); Movimentos étnicos (como Mapuche e
CONAIE) e raciais; Movimentos Sociais feminista, estudantil e por liberdade de
orientação sexual.
Sobre os Novos Movimentos Sociais (NMS) acima referidos, trazem os debates
europeu e brasileiro acerca dos mesmos. No debate europeu, diferenciam a teoria
acionalista, o olhar pós moderno e a leitura marxista. No cenário brasileiro, as
abordagens culturalistas, o enfoque institucional e a análise marxista.
Os autores analisam ainda as esferas de atuação dos Novos Movimentos
Sociais, no âmbito mercantil (enquanto a do movimento sindical é na esfera
produtiva), identificando como alvo de demandas e ações o Estado, devido às
desigualdades sociais. Dependendo dos objetivos perseguidos, podem ser
classificados em reformista mercantil (quando pretendem acesso a bens de
consumo e serviços) ou reformista revolucionário (quando buscam a superação da
ordem).
Em relação ao terceiro setor, os autores o localizam como uma estratégia do
neoliberalismo para desmantelar os movimentos de contestação da ordem
capitalista, sejam os que possuem a burguesia como inimigo (sindicatos, devido à
sua conformação classista), sejam aqueles que atuam na demanda estatal, na luta
por direitos sociais (movimentos sociais).
Outra forma de se contrapor aos avanços e às lutas sociais dos trabalhadores
e setores subalternos é a promoção da ideológica noção que transforma a
sociedade civil num ‘terceiro setor’, despolitizado, espaço de ‘parcerias’ interclasses
(substituindo as lutas entre as classes), em que operam a ‘solidariedade’ e a
‘autoajuda’, o voluntariado, a filantropia (empresarial ou não), assim como as
149

enganosas noções de ‘empoderamento’, a ‘Economia Solidária’ etc (DURIGUETTO;


MONTAÑO, 2011, p. 304).
A outra face da estratégia de combate ao avanço desses movimentos sociais é
o recrudescimento da repressão do Estado, por meio do processo de criminalização,
de que trata esta pesquisa.
Torna-se necessário ao capital e ao imperialismo, para se contrapor a (e
reverter) esses processos, garantindo a hegemonia e a ordem social vigente,
desenvolver, por um lado, uma militarização na América Latina. Para além das
ditaduras militares nos anos 1960 a 1980, as bases militares norte-americanas na
Colômbia e a chamada ‘guerra preventiva’ são exemplos emblemáticos deste
processo nos anos 1990-2000. (DURIGUETTO; MONTAÑEZ, 2011, p. 303)
Aqui adicionamos que, desde os anos 2000 – mais especificamente 11 de
setembro de 2001 - esta militarização latino americana vem sendo transvertida e
apresentada como “Guerra ao Terror”.

2 Sobre a criminalização dos movimentos sociais

A criminalização dos movimentos sociais é um tema já bastante trabalhado


por diversos pesquisadores das áreas das ciências sociais e do direito. Para
entender o processo de criminalização, que envolve a mídia e o Estado (por meio
dos três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário), parte-se do mesmo
referencial teórico inicial, qual seja, a concepção materialista dialética do marxismo,
considerando as condições materiais da sociedade onde se desenvolve este
processo, assim como os interesses em jogo.
Por compreender a lei como reflexo das relações materiais da sociedade
representando o interesse das classes dominantes, e não algo natural e universal,
há que se compreender o momento histórico em que vivemos para a partir de então,
analisar de forma radical o que representa a ampla adoção/aplicação de leis penais.
A lei sempre emana do Estado e permanece, em última instância, ligada à
classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade
politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo
econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção. (...) A legislação
abrange, sempre, em maior ou menor grau, Direito e Antidireito: isto é, Direito
propriamente dito, reto e correto, e negação do Direito, entortado pelos interesses
150

classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido. (LYRA FILHO, 1999,


P.8)
Como parte do direito, a lei penal não é diferente. Com papel de repressão e
controle, para a manutenção da “ordem”, o direito penal cumpre um papel decisivo
na sociedade atual. Desde os bancos universitários, até os concursos e debates
públicos, as discussões que tratam da matéria refletem mais a lei que os princípios
que regem a mesma.
Com forte inclinação positivista, ainda, os estudantes de direito (que acabam
por virar estudantes de leis) possuem maior interesse atualmente em discutir os
tipos e suas penas do que compreender o papel do direito penal na sociedade, suas
teorias e princípios, elencados na Parte Geral. Esta realidade também reflete a
ideologia dominante na sociedade atual, cada vez mais punitivista e menos
garantista. Isto se dá pelo “populismo penal”, descrito por Luigi Ferrajoli:

Con esta expresión podemos entender cualquier estrategia em tema de


seguridad dirigida a obtener demagógicamente el consenso popular,
respondiendo al miedo provocado pela criminalidad com um uso
coyuntural del derecho penal, tan duramente represivo y antigarantista
como ineficaz respecto de las declaradas finalidades de prevención.
(FERRAJOLI, 2013, P.60)

E é exatamente essa realidade que gera a elaboração de inúmeras leis penais,


aumentando penas ou criando novos tipos, num processo de descodificação penal e
pan penalismo. Esta conjuntura, infelizmente, não se dá apenas no Brasil, mas em
todo o mundo.
Nesse contexto, iniciando-se com as políticas de tolerância zero na Itália e nos
Estados Unidos, aprofundada por meio da política de Guerra às Drogas norte-
americana e atualmente, pós 11 de setembro de 2001, recrudescida com a sua
substituta, a Guerra ao Terror.
Este movimento de expansão da legislação penal não é exclusividade
brasileira. Em muitos países se observa o mesmo fenômeno: p. ex., nos Estados
Unidos da América, onde há legislação penal federal e estadual, começa-se a falar
em overcriminalization. (...) Na Alemanha, muitos autores indicam essa tendência
expansiva. (...) O mesmo ocorre na Espanha, levando Jesus María Silva-Sánchez
a afirmar: ‘vivemos em tempos de direito penal’. (FRAGOSO, 2015, P.315)
Nessa realidade de aumento de crimes, os movimentos sociais, já
151

historicamente criminalizados pelo poder instituído, passam a sofrer cada vez mais
com o punitivismo estatal. Em 2008, diversos movimentos sociais da América Latina
se reuniram para discutir as experiências de criminalização em países como
Argentina, Chile, México, Paraguai. Desse encontro resultou um relatório que,

Segundo Buhl e Korol (2008), dos depoimentos de militantes dos


movimentos depreende-se claramente o processo de criminalização em
curso, entendendo a criminalização não como ação individual, mas
coletiva, sobretudo àqueles que lutam pela emancipação social. O
evento também permitiu concluir o lugar de destaque dos meios de
comunicação como parte do poder e como instrumento privilegiado na
manipulação do consenso. (BRISOLA, 2012, p. 146)

O processo de criminalização dos protestos e movimentos sociais sempre


esteve presente no Brasil e no mundo. Basta olhar a história para identificar, desde
os tempos do Império, passando pela República, até os dias atuais, a repressão das
organizações (BRISOLA, 2012) que lutavam e lutam contra os interesses das
classes dominantes.
Esta repressão se dá, inicialmente, por meio da polícia (sob a ordem do Poder
Executivo) num primeiro momento, e pela persecução penal (Poder Judiciário) de
militantes do movimento social, estigmatizando-os e à sua organização como
criminosos. Como demonstração clara deste processo, recentemente integrantes do
MST nos estados de Goiás e Paraná foram denunciados e presos com base na Lei
de Organizações Criminosas (Lei n° 12.850 de 2013)43. Os movimentos sociais se
preocupam ainda com a possível aplicação da Lei Antiterror a seus membros, visto
que é o que tem ocorrido em outros países da América Latina como Chile (aos
indígenas Mapuche), Equador (coma CONAIE), Nicarágua, Paraguai, dentre outros.
Segundo Longo e Korol (2008, p. 18 apud BRISOLA, 2012, p. 146),

As batalhas em defesa dos direitos legítimos – ou pela possibilidade de


conquistar novos direitos – uns e outros, ameaçados pelo avanço do
capitalismo transnacional, têm que enfrentar formas repressivas
insuficientemente conhecidas pelas pessoas que delas são vítimas.
Trata-se de “subordinar os povos às lógicas políticas do grande capital,
para assegurar o controle dos territórios, das populações que os

43
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-08/justica-usa-lei-de-organizacao-criminosa-para-
prender-membros-do-mst-em-goias
http://www.brasil247.com/pt/247/sp247/263826/Pol%C3%ADcia-prende-dirigentes-e-invade-escola-
do-MST-que-v%C3%AA-%E2%80%98ilegalidade%E2%80%99.htm . Acessados em 24 de abril de
2017.
152

habitam, dos bens da natureza, e para reduzir ou domesticar as


dissidências”.

O processo de criminalização, entretanto, não passa apenas pelos Poderes


Legislativo, Executivo e Judiciário. Os meios de comunicação de massa cumprem
papel determinante neste processo, no sentido de convencer a maior parte da
população de que os movimentos sociais são criminosos, baderneiros. Este
processo de propaganda ideológica sempre esteve presente nas sociedades
modernas, sendo necessário para a manutenção do poder.

Os estudiosos da questão apontam que a maior criminalização do MST


parte da mídia burguesa, a qual insiste em acusá-lo de ‘organização
semiclandestina (...) com uma face operacional, patrocinadora de ações
que começam a ganhar roupagem de terrorismo’, conforme registro do
jornal O Globo, de 21/03/2008. (BRISOLA, 2012, p. 145)

Roberto Gargarella aborda, em algumas de suas obras, a legitimidade punitiva


do Estado nos casos de protesto social, frente à situação de desigualdade social
mantida pelo próprio Estado. Em El derecho a la protesta – el primer derecho (2014)
e Carta abierta sobre la intolerancia: apuntes sobre derecho y protesta, o autor
questionará a legitimidade do Estado em punir pessoas ou grupos que protestam por
direitos sociais, quando o próprio Estado é responsável por prover estes direitos.
No epílogo da segunda obra, Gargarella alerta para a melhora da abordagem
aos protestos, depois da crise de 2001, quando estes eram intensos (especialmente
em relação ao bloqueio de estradas) e duramente reprimidos. Entretanto, a questão
colocada em suas obras permanece.

Solemos escuchar orgullosas declaraciones de que em la Argentina ya ‘no


se reprime la protesta social’. De por sí, esa afirmación es fácticamente
falsa (las decenas de muertes em situaciones de protesta social, durante
estos últimos años, desmienten de modo rotundo el aserto). Pero lo que
resulta más preocupante todavía es la preservación de las estruturas
políticas y económicas que dan motivo y razón a las protestas, o la creación
de otras nuevas. Em el área del petróleo y la minería, em el sector de los
agronegocios o em talleres clandestinos que brotan em los centros urbanos,
encontramos fenómenos semejantes, que inplican violaciones de derechos
que se traducen, por caso, em el desplazamiento de poblaciones
campesinas, la hostilidad que sufren las cominidades indígenas o la
persecución, el espionaje y maltrato que a veces recaen sobre los
disidentes políticos. (GARGARELLA, 2015, P.161)

No caso dos movimentos sociais isso se torna ainda mais claro. Enquanto
classe organizada para exigir o cumprimento de políticas públicas, suas ações
153

políticas são voltadas para esse fim. Ou seja, para a ação efetiva do Estado nas
garantias mínimas de sobrevivência dessas pessoas (seja no caso da luta pela terra,
ou por moradia, por exemplo). Que legitimidade teria esse Estado, que não cumpre
sequer suas próprias legislações (que determinam a realização da reforma agrária e
da reforma urbana) e ainda reprime e condena os que lutam por esses direitos?
É justamente nesse contexto político-legal que a legislação da “Guerra ao
Terror” surgirá, corroborando com o aumento do punitivismo, por meio do já citado
Direito Penal do Inimigo. Entretanto, a mesma possui contornos específicos, que
atingem diretamente os movimentos sociais e a sociedade civil organizada. Para
entender esta afirmação é necessário que se compreenda a conjuntura política
atual, no que diz respeito ao terrorismo, assim como sua definição.

3 Sobre o terrorismo

Por fim, o tema do terrorismo, em voga nos dias atuais, e sua tentativa de
conceitualização. É certo que no mundo jurídico, não existe um conceito
determinado do termo terrorismo. Existem leis que determinam punições para atos
terroristas ou financiamento do terrorismo, mas sua definição não consta de nenhum
instrumento jurídico.
Desta forma, é fundamental que se esclareça, a partir da concepção
materialista dialética, qual o papel deste termo na sociedade atual em que vivemos.
Para tanto, a visão crítica do linguista Noam Chomsky nos parece a mais coerente
no esclarecimento do tema do terrorismo, e suas diversas abordagens. Outro autor
referência para as discussões sobre o terrorismo é o historiador Eric Hobsbawn.
De acordo com Noam Chomsky44, as palavras sempre possuem dois
significados: um literal, que seriam as definições de dicionários ou até as definições
legais, e outro que é o utilizado na guerra política, por meio do discurso. Todas as
terminologias políticas, como liberdade, democracia, mercado, dentre outras,
possuem os dois sentidos. Por isso, deve-se ter cautela quando são utilizadas. Com
o termo terrorismo não é diferente.
Inicialmente é fundamental que se esclareça que o terrorismo a que se referiam
as legislações anteriores ao 11 de setembro difere do utilizado atualmente. Isto
44
Noam Chomsky, em entrevista à TV portuguesa RTP em maio de 2015
https://www.youtube.com/watch?v=SKeGCpe2VRI .
154

porque até 1989, com a queda do muro de Berlim, o mundo vivia o período da
Guerra Fria45. E neste contexto histórico-político o termo terrorismo era utilizado para
se referir a grupos de esquerda.
No Brasil, por exemplo, seja na preparação para a ditadura de Getúlio Vargas
(1937-1945) ou durante ditadura militar (1964-1985), o terrorista era o comunista ou
anarquista que, mediante a “incitação das classes sociais”, visavam a “tomada do
poder através de meio violento” (termos utilizados nas referidas legislações).
Com o fim da Guerra Fria, e consequentemente da polarização do mundo entre
capitalistas e comunistas, esta definição, ou “identificação” perde o sentido. Desta
forma, diferente do século XX, onde o inimigo era o comunismo, no século XXI, o
inimigo, o terrorista é outro. Isto porque os conceitos possuem um sentido político.
As palavras possuem força, inclusive, para legitimar uma política internacional, como
é o caso da política estadunidense pós 11 de setembro.
No Direito Internacional, desde 1937 o terrorismo tem estado da agenda da
ONU. São 14 instrumentos jurídicos internacionais e 3 emendas que, desde 1963,
tratam da questão do terrorismo (ver no anexo). Com diversos sentidos de acordo
com o contexto histórico em que era aplicado, interessa neste trabalho o sentido
atual que tem sido aplicado o termo terrorismo.
A resolução da ONU de 1995, que elege medidas para erradicar o terrorismo
considera

Los actos criminales con fines políticos concebidos o planeados para


provocar un estado de terror en la población en general, en un grupo de
personas o en personas determinadas son injustificables en todas las
circunstancias, cualesquiera sean las consideraciones políticas,
filosóficas, ideológicas, raciales, étnicas, religiosas o de cualquier otra
46
índole que se hagan valer para justificarlos.

O Tratado Internacional para a Repressão do Terrorismo Nuclear, firmado em


2005, ratifica esta definição.
De acordo com o linguista Noam Chomsky (2015), em entrevista a uma rede

45
Guerra Fria – o termo refere-se à disputa (militar, política, econômica e principalmente ideológica)
pela hegemonia mundial entre Estados Unidos (bloco capitalista) e União Soviética (bloco socialista),
que se iniciou após a Primeira Guerra Mundial, tendo seu fim na extinção da União Soviética em
1991.
46
Resolução 49/60 de 17 de fevereiro de 1995. Em
http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/49/60&referer=/english/&Lang=S .
155

de televisão portuguesa, apesar de definido em diversas legislações, nacionais e


internacionais, quando se utiliza o termo terrorismo hoje, definitivamente, não é o
termo em seu sentido literal, ou aquele definido por lei. Mas aquele terrorismo
“deles” contra “nós”. Nunca o “nosso” terrorismo contra “eles”. Pois isso não seria
terrorismo... por mais que, no sentido literal seja!
Isto se aplica perfeitamente no cenário atual. O ataque sofrido pelos EUA no
11 de setembro de 2001, ou os ataques atuais sofridos pela França em 13 de
novembro de 2015, são certamente atos terroristas. Isso é indiscutível. Que Al
Qaeda, Boko Haram, Estado Islâmico, são grupos terroristas, também não se
discute, visto que os próprios assim se assumem.
Mas o que dizer dos ataques ao Iraque e ao Afeganistão após o 11 de
setembro? E os ataques à Síria que permanecem? E os ataques de Israel ao povo
Palestino?
Lembrando a definição das Nações Unidas de terrorismo: são atos criminosos
com fins políticos, concebidos e planejados para provocar um estado de terror na
população em geral, em um grupo de pessoas ou em pessoas determinadas. Afirma
ainda que são injustificáveis em todas as circunstâncias quaisquer que sejam as
considerações políticas, filosóficas, ideológicas, raciais, étnicas, religiosas ou de
qualquer outra índole que se façam valer para justificá-los.
Com base no sentido literal, definido pela ONU, nenhuma circunstância
justifica atos criminosos que busquem provocar um estado de terror em uma
população. A invasão de um país por outro, ou o bombardeio incessante, com alvos
civis ocasionando a morte destes (não está se falando de guerra, visto que guerra é
uma disputa entre estados nacionais) para “destruir” (palavra de Barack Obama) um
grupo terrorista certamente se adequa à definição literal do termo terrorismo.
Entretanto, não se fala do terrorismo de Estado norte americano, francês, russo ou
israelense.
Chomsky, na entrevista citada, dá um exemplo do uso do termo terrorismo na
guerra política, e de como, dependendo do ator/sujeito do ato, classifica-se hoje
como terrorista ou não. O filósofo propõe que se imagine o Irã como sendo o país
que leva à frente a campanha dos drones norte americana.
Certamente qualquer outro país, que não os Estados Unidos, seria
considerado terrorista caso adotasse a política de extermínio de pessoas que eles
suspeitassem estar agindo contra seu país. Assassinando por exemplo, editores do
156

New York Times ou do Washignton Post, por defenderem o bombardeio do Irã. Caso
o Irã o fizesse, seria considerada a maior campanha terrorista do mundo. Os EUA
fazem isso e sequer se questiona o caráter desses atos. A campanha dos drones,
formalmente defende o assassinato de pessoas que o governo norte americano EUA
suspeite que pretendam prejudicar os EUA.
A partir do dia 11 de setembro de 2001, com os atentados às Torres Gêmeas
nos Estados Unidos (EUA) pela Al Quaeda e consequente invasão dos EUA ao
Iraque e Afeganistão, tem-se presenciado no mundo um forte aumento dos
atentados terroristas. Desde o início da política norte-americana denominada
“Guerra ao Terror”, o número de mortes anuais causadas pelo terrorismo multiplicou-
se por nove. De acordo com o Índice de Terrorismo Global (GTI) de 2015, foram
3.329 mortes no ano de 2000, avançando para 32.685, em 2014.
Em Paris, no ano de 2014, 129 pessoas foram vítimas de ato terrorista,
reivindicado pelo grupo Estado Islâmico47. A imprensa mundial repudiou os ataques,
as redes sociais proporcionaram a seus participantes a possibilidade de colocar em
seus perfis a bandeira da França, diversos países iluminaram seus monumentos
com as cores daquele país, a comoção foi generalizada.
Essa mobilização dos quatro cantos do mundo criou o ambiente para a
resposta que os países “desenvolvidos” costumam dar a estes ataques: a
intolerância e o recrudescimento da repressão aos países de onde esses grupos se
originam. É o que hoje ocorre na Síria, por parte da França, EUA, Rússia, dentre
outros. Centenas de milhares de civis têm sido assassinados nestes ataques,
entendidos como reação àqueles realizados por “terroristas”.
Entretanto, o “Terrorismo de Estado” praticado por muitos estados nacionais
não é sequer questionado, sendo inclusive “justificado” pela necessidade de se
combater o terrorismo. Tanto a reação solidária em relação às vítimas do terrorismo,
como a reação bélica irracional dos Estados “desenvolvidos”, por se basearem na
questão central identidade/diferença, são construídas politicamente. E os meios de
comunicação de massa possuem um papel fundamental, tanto na construção de
identidades, como na escolha e convencimento da diferença, do Outro, do inimigo.

47
Estado Islâmico (ISIS) – organização jihadista islamista com maior atuação no Oriente Médio
atualmente. Surgida no Iraque, após a invasão norte-americana, expandiu-se para a Síria durante a
guerra civil neste país. Conhecido por assumir diversos atentados terroristas, é conhecido por sua
brutalidade, mediante torturas e a instituição da pena de morte.
157

O papel desempenhado outrora pelos soviéticos durante a Guerra Fria, após o


dia 11 de setembro, passou a ser designado às nações do Oriente Médio pelas
potências mundiais, sob a autoridade dos EUA. Entretanto, a via de propagação
deste “papel” no cenário mundial, para construir a legitimidade das invasões no
Oriente Médio, é a imprensa.

4 Terrorismo na América Latina e movimentos sociais – algumas


considerações

Diferente das grandes potências, e justamente por este motivo, os países


latino-americanos não figuram como alvos de grupos como o Estado Islâmico, ou a
Al Qaeda. E, por não possuir grupos terroristas em seus territórios, também não são
alvos de uma invasão ou bombardeio destas potências.
É certo que a Argentina já sofreu dois atentados, e houve suspeitas de uma
célula da Al Qaeda na Tríplice Fronteira (amplamente investigada e sem resultados
positivos neste sentido). Contudo, são episódios isolados. Além disso, a América
Latina conheceu o denominado “Terrorismo de Estado”, durante as ditaduras
militares implantadas com o apoio do governo norte-americano. As guerrilhas de
esquerda em países como Colômbia e Peru também são equivocadamente
denominadas por alguns como grupos terroristas.
Vale ressaltar que grupos de guerrilheiros como as Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o Sendero Luminoso no Peru são
classificados como terroristas, especialmente pelos governos aliados à política
norte-americana de intervencionismo durante as ditaduras militares e,
posteriormente, a política de combate às drogas.
Apesar dessas questões que aparecem tangencialmente no que diz respeito ao
terrorismo, na América Latina hoje, a grande preocupação tem sido no sentido da
aprovação e aplicação das legislações antiterroristas aos movimentos e protestos
sociais.
Na Argentina, leis de combate ao terrorismo já existem há mais de uma
década. Foram dois os atentados terroristas ocorridos neste país. Em 1992, contra a
embaixada israelense – matando 24 pessoas - e em 1994 à Associação Israelita
Argentina, que matou 85 pessoas.
Além da Argentina, países como Bolívia, Colômbia e Peru também possuem
158

legislações específicas referentes ao terrorismo. Paraguai e Uruguai recentemente


adotaram legislações referentes ao combate ao terrorismo por meio de seu
financiamento. Todas essas legislações (algumas criadas pós 11 de setembro e
outras resquícios da Ditadura Militar) cumprem uma agenda internacional ditada pela
política da “Guerra ao Terror” norte-americana.
Alguns países - como o Chile - mantêm a legislação antiterrorista criada
durante as ditaduras militares na América do Sul, que visavam combater os
movimentos de resistência de esquerda. Dessa forma, os movimentos sociais e de
esquerda (armados ou não) eram enquadrados em leis de segurança nacional e
seus militantes tinham seus direitos fundamentais desconsiderados.
Essa legislação, ainda em vigor, tem sido utilizada no sentido de criminalizar
movimentos sociais, após a abertura democrática. E esta seguramente tem sido,
como no caso da Argentina, a maior preocupação dos organismos internacionais em
relação ao tipo penal do terrorismo na América Latina e sua aplicabilidade no
contexto regional.
Em março de 2016 foi sancionada pela presidente Dilma Roussef a Lei
13.260/2016, que define o tipo penal do terrorismo no ordenamento jurídico
brasileiro. A referida lei prevê penas de 16 a 30 anos. A Organização das Nações
Unidas (ONU) se manifestou acerca dos perigos desta definição no sentido de limitar
liderdades fundamentais: “El relator sobre la protección y promoción de los derechos
humanos, el del derecho a la asociación y reunión pacífica, el de la libertad de
expresión y el relator sobre la situación de los defensores de derechos humanos,
afirmaron que las definiciones ambiguas o demasiado amplias de terrorismo, pueden
resultar en una mala utilización del término. ”48
Desde o início da proposição do projeto de lei, os movimentos sociais no Brasil
vêm criticando o mesmo – proposto e sancionado pela presidente Dilma Roussef
(que ironicamente durante a ditadura militar havia sido enquadrada como terrorista e
duramente torturada, com base na Lei de Segurança Nacional) - pelo risco que o
mesmo representa na repressão contra os movimentos sociais.
Dentre os movimentos sociais brasileiros que se manifestaram preocupados
com a Lei Antiterrorismo em vigor, estão o Movimentos dos Trabalhadores Rurais

48
Expertos: Ambigüedades de nueva ley sobre terrorismo en Brasil podría limitar libertades
fundamentales. Emhttp://www.un.org/spanish/News/story.asp?NewsID=33762#.Vnat3EorLIU .
159

Sem Terra (MST)49 e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)50. Com
larga experiência de criminalização de suas lutas, estes movimentos veem na nova
legislação uma abertura para a repressão das manifestações sociais.
Isso porque já ocorre em outros países do continente. No Equador, em 2010, o
presidente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE)51,
Marlon Santi, e o presidente da Ecuarunari, Delfin Tenesaca, foram intimados a
prestar esclarecimentos em uma investigação contra os mesmos por terrorismo e
sabotagem, por supostamente atentarem contra a segurança de Estado. Isto porque
havia ocorrido um enfrentamento entre indígenas e policiais num lugar próximo de
onde ocorria uma reunião da ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa
América). Este episódio foi denunciado no Relatório de 2011 da Anistia
Internacional:

Se formularon cargos de sabotaje y terrorismo contra defensores de los


derechos humanos, dirigentes indígenas entre ellos, en un intento de
silenciar su oposición a las políticas del gobierno. En junio se abrió una
investigación por terrorismo y sabotaje contra tres dirigentes indígenas:
Marlon Santi, presidente de la Confederación de Nacionalidades
Indígenas del Ecuador (CONAIE); Delfín Tenesaca, dirigente de la
Confederación Kichwa del Ecuador (ECUARUNARI), y Marco Guatemal,
presidente de la Federación Indígena y Campesina de Imbabura (FICI).
La investigación estaba relacionada con su participación en una
manifestación celebrada en Otavalo en protesta por su exclusión de una
cumbre de países miembros de la Alianza Bolivariana para los Pueblos
de Nuestra América (ALBA). Al finalizar el año la investigación
continuaba su curso. En mayo se formularon cargos de sabotaje y
terrorismo contra los dirigentes comunitarios Carlos Pérez y Federico

49
O MST foi formalmente criado em 1984, no I Encontro Nacional do Movimento Sem Terra.
Oriundos de diversas ocupações (como da Fazenda Macali, em 1979 e da Encruzilhada Natalino em
1981), se reuniram na cidade de Cascavel (Paraná), 80 representantes de trabalhadores rurais, de 13
estados brasileiros. Neste encontro foram definidos princípios, formas de organização, reivindicações,
estruturas e formas de luta do movimento. A partir de então, o MST atua por meio das ocupações de
terras como forma de pressionar o Governo Federal na realização da Reforma Agrária, e no
desenvolvimento dos Assentamentos. (STEDILE; MANÇANO, 1999)
50
O MTST foi criado entre os anos de 1996 e 1997, mediante o apoio do MST. Alguns militantes do
Movimento Sem Terra foram destacados para organizar a luta dos trabalhadores urbanos, a partir da
constatação de alguns elementos: a origem muitas vezes urbanas dos trabalhadores que se
semavam ao MST, a necessidade de articular a luta por Reforma Agrária com outras lutas (a partir do
Congresso Nacional de 1995) e o agravamento da situação dos trabalhadores com a implementação
do projeto neoliberal na década de 90.(LIMA, 2004, p.139-145). Atuam ocupando terrenos urbanos,
que não cumprem sua função social, para moradia e produção de subsistência.
51
A CONAIE foi fundada em 1986 com a união de duas organizações indígenas. A primeira, que
agregava os povos indígenas do desfiladeiro interandino, e a segunda, os povos indígenas da região
amazônica. Existem outras organizações de representação indígena no Equador, entretanto” a
CONAIE é a única que faz do conceito de nacionalidade indígena o eixo estrutural tanto de seu
projeto político quanto de suas formas de organização. ” (SADER, 2006, p. 488)
160

Guzmán, y contra tres habitantes de Victoria del Portete, provincia de


Azuay, en relación con su participación en un corte de carretera
realizado como protesta contra un anteproyecto de ley sobre el agua.
52
Los tribunales desestimaron los cargos en agosto.

Em 2012, camponeses, líderes de uma comunidade rural denominada San


Pablo de Amalí, na província de Bolívar, participaram de uma manifestação contra a
construção de uma hidroelétrica, cujo contrato com o Estado Equatoriano, autorizava
a mesma a adjudicar 5 mil litros de água por segundo do principal rio que abastecia
a comunidade. Como resultado da manifestação houve confronto com a polícia,
resultando em várias pessoas feridas. Dentre elas, quatro policiais. As lideranças da
comunidade, Manuel Trujillo (51 anos) e Manuela Pacheco (47 anos), foram
processados por “terrorismo organizado”, apesar da falta de provas de que eles
estavam na manifestação e feriram os policiais. Com pedido de prisão preventiva
decretado em novembro de 2012, após massivas mobilizações da comunidade local,
a prisão preventiva foi revogada, mas ambos teriam que se apresentar toda segunda
feira ao Tribunal. Finalmente, em 19 de fevereiro de 2016, foi realizada a audiência
onde Manuel e Manuela foram declarados inocentes.
No Chile, 8 integrantes da etnia Mapuche53 foram processados e condenados
como terroristas, em 2003, devido à realização de protestos sociais. A decisão da
Corte chilena, baseada na Lei 18.314 de 1984 – assim como no Brasil, resquício da
ditadura militar de Augusto Pinochet - foi duramente criticada e alterada pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos em 2014.
Em 2010, haviam nove Mapuches condenados e outros cinquenta e três
sendo processados pela Lei Antiterrorista de 1984. Destes últimos, quarenta e dois
encontravam-se presos. A ONU também se posicionou, mediante relatorias de
direitos humanos, em 2004, 2007 e 2009.54 A sentença da Corte Interamericana de
Direitos Humanos esclarece:

A partir del año 2001 se incrementó significativamente el número de


dirigentes y miembros de comunidades mapuche investigados y

52
Informe 2011 Amnistía Internacional: El estado de los derecho humanos em el mundo. 2011. P.181.
53
Mapuches – os Mapuches, ou povo Mapuche, são um grupo de etnia indígena, localizados na
região centro-sul do Chile e sudoeste da Argentina. Lutam pela regularização de seus territórios,
invadidos por destacamentos militares republicanos, após a independência desses países (início do
séc XIX). Reivindicam o reconhecimento dos Estados e respeito às suas diferenças culturais.
54
Fonte: http://www.bbc.com/mundo/noticias/2014/08/140801_chile_ley_antiterrorista_nc.
161

juzgados por la comisión de delitos ordinarios en relación con actos


violentos asociados a la referida protesta social. En una minoría de
casos se les ha investigado y/o condenado por delitos de carácter
terrorista en aplicación de la Ley 18.314 (Ley Antiterrorista) (...). En su
informe final sobre la visita que realizó a Chile en julio de 2013, el Relator
Especial de Naciones Unidas sobre la promoción y la protección de los
derechos humanos y libertades fundamentales en la lucha contra el
terrorismo resaltó que la “opinión política” en Chile coincide en que la
aplicación de la Ley Antiterrorista a los mapuche en el contexto de la
referida protesta social es “insatisfactoria e inconsistente” . Asimismo,
entre el 2000 y el 2013 el Ministerio Público formalizó un total de 19
causas bajo la Ley Antiterrorista, de las cuales 12 se relacionan con
55
reivindicaciones de tierras del Pueblo indígena Mapuche. .

E decide, considerando não somente a definição aberta do tipo penal do


terrorismo, mas todas as violações de princípios de processo penal decorrentes da
Lei Antiterrorista:

Tal como se ha señalado en la presente Sentencia, las sentencias


condenatorias expedidas en contra de las ocho víctimas de este caso -
determinando su responsabilidad penal por delitos de carácter terrorista-
fueron emitidas fundándose en una ley violatoria del principio de legalidad y
del derecho a la presunción de inocencia (...), impusieron penas accesorias
que supusieron restricciones indebidas y desproporcionadas al derecho a la
libertad de pensamiento y expresión (...) y al ejercicio de los derechos
políticos (...). Adicionalmente, la Corte encontró que en la fundamentación
de las sentencias condenatorias se utilizaron razonamientos que denotan
estereotipos y prejuicios, lo cual configuró una violación del principio de
igualdad y no discriminación y el derecho a la igual protección de la ley
(...).se produjeron violaciones al derecho de la defensa protegido en el
artículo 8.2.f de la Convención (...) y con respecto a siete de las víctimas de
este caso se les violó el derecho de recurrir de esos fallos penales
condenatorios (...). Todo ello hace que sean condenas arbitrarias e
56
incompatibles con la Convención Americana.

O argumento do Governo Federal brasileiro (e de outros Estados da América


Latina) para a proposição e aprovação da Lei Antiterrorista é de que ela cumpre uma
“recomendação” do Grupo de Ação Financeira (GAFI), para que se crie um ambiente
seguro para investimentos, por meio do combate à lavagem de dinheiro e do
financiamento ao terrorismo. Criado pelo G757 em meados de 1990, o GAFI elabora

55
Corte Interamericana de Direitos Humanos, Sentença do Caso Norín Catrimán y otros, em
29/05/2014. Em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_279_esp.pdf , p. 28. Acesso
07/05/2016.
56
Ibidem, p. 137.
57
G7 – O Grupo dos 7 é um grupo internacional criado em 1975, que reúne os sete países mais ricos
do mundo: Estados Unidos, Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão e Reino Unido, com o objetivo
de coordenar a política econômica e monetária mundial. Atualmente, denomina-se G8 pela entrada
da Rússia a partir de 1997.
162

recomendações aos países membros e não membros que, por ventura não
cumpram, são incluídos na “lista suja” dos países e territórios não cooperativos.
Essas recomendações são, em sua maioria, referentes à criação de uma
legislação nacional. São quarenta recomendações iniciais, acrescida de nove
Recomendações Especiais. A Recomendação Especial VIII (RE VIII) se refere ao
tema em questão, visto que diz respeito às Sociedades Civis sem fins lucrativos,
onde podem ser enquadrados Organizações não Governamentais e Movimentos
Sociais.58
O relatório “Combate ao terrorismo, ‘lavagem política’ e o GAFI: legalizando a
vigilância, regulando a sociedade civil”, publicado pelo Transational Institue e pelo
Statewatch, analisa os 159 países que assinaram a recomendação, abordando de
que forma as regras internacionais de combate ao terrorismo estão minando a
liberdade de associação nestes países. De forma mais específica, analisa o impacto
da RE VIII na legitimação da criminalização das organizações sociais.
Frente a essas considerações sobre quem são os terroristas, e considerando
o contexto latino-americano de quase total ausência de atentados terroristas e
grupos terroristas, quem seriam os terroristas a ser enquadrados pelas legislações
antiterror? Ao que parece, pelas aplicações mais recentes em países latino-
americanos (exceto o Brasil, pela provação recente da lei), os movimentos sociais.

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58
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163

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terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o
conceito de organização terrorista; e altera as Leis no 7.960, de 21 de dezembro de
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166

NIETZSCHE: JUSFILOSOFIA DA VIOLÊNCIA

Alexandre de Mendonça Nascimento59

Resumo: Este trabalho visa abordar as relações entre violência, Estado e Direito a
partir da jusfilosofia madura de Nietzsche, filósofo pouco ou nada estudado nos
cursos brasileiros de graduação em Direito. A análise e a crítica da violência se
iniciarão nos tempos primevos da humanidade, passando pela refutação às teorias
contratualistas, percorrendo a formação e manutenção dos Estados e culminando na
análise do recente massacre dos professores paranaenses (29/04/2015). A filosofia
nietzscheana, aqui apresentada, visa explicar e criticar a violência da realidade para,
assim, abrir horizontes na construção de um Novo Direito.
Palavras-chave: Nietzsche, violência, poder, Estado.

Introdução

O presente artigo analisa as relações entre violência, Direito e Estado a partir


da jusfilosofia do alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900). Trata-se de um
dos filósofos mais influentes para os séculos XX e XXI, sendo muito estudado em
Ética, Epistemologia e Estética. Sua filosofia do Direito, todavia, carece de estudos
no Brasil, talvez pelo conteúdo assistemático de suas obras, talvez simplesmente
por não ser conhecido como um jusfilósofo. O fato, contudo, é que sua jusfilosofia é
essencial para se compreender os fenômenos jurídico e estatal de maneira
genealógica e crítica, além de, infelizmente, sua análise continuar atual e realista
para a o Direito do século XXI.
Além de refutar a teoria contratualista, Nietzsche demonstra que as
construções da cultura humana, inclusive o Estado, o Direito e até a própria
humanização do homem primitivo, se fundamentam no poder da violência. Ademais,
para a filosofia aqui apresentada não pecar pelo distanciamento da realidade
brasileira, e mesmo mundial, a fim de corroborar a tese nietzscheana da violência
como gênese constante de todo Direito, são dados exemplos atuais de poder
desmedido dentro do próprio ordenamento jurídico, como a autoexecutoriedade do

59
Graduando em Direito (5ºano) na Universidade Estadual de Londrina. Endereço eletrônico:
alexandredmn@gmail.com.
167

Estado para reintegrar posse (parecer da PGE-SP de 2016), a previsão de


suspensão de direitos fundamentais pelo próprio direito (estado de exceção),
encarceramento em massa e o fatídico 29 de abril de 2015, em que
Judiciário,Executivo e Legislativo se uniram, com fulcro no direito, para agredir e tirar
a voz dos professores paranaenses reunidos no centro cívico de Curitiba. Poder e
Direito se uniram na forma de violência.
Ficará patente, desta forma, que muitas das teorias que tanto se estudam na
Academia não se sustentam, pois são medidas fictícias e ideais incompatíveis com
um mundo real e cruel. Entender-se-á o “filosofar a marteladas” de Nietzsche, ou
seja, a destruição de ídolos. Demonstrada a violência que permeia desde sempre a
cultura humana, será dever de toda a comunidade jurídica superar a violência que
assombra Direito e Estado.

1 Mnemotécnica

Educar e disciplinar um animal que pode fazer promessas, não é a tarefa


paradoxal que a Natureza impôs ao homem? Que este problema está
resolvido até certo ponto elevado deve parecer ao homem tanto mais
admirável quanto mais sabe dar valor àquela força que age em sentido
contrário, isto é, o esquecimento. (Nietzsche, 2013, dissertação II, § I).

A partir do texto supra, discorrer-se-á sobre o processo de humanização da


besta-homem, percorrendo-se quatro elementos essências para a compreensão da
hipótese nietzscheana da mnemotécnica (técnica de criação da memória):
esquecimento, violência, memória e promessa.

1.1 Esquecimento

O esquecimento é um poder ativo da mente humana, necessário para o


equilíbrio mental e psicofisiológico. As várias vontades de poder conflitantes
atuantes dentro do humano e as diversas ocorrências exteriores ao humano seriam
capazes de sobrecarregar a mente. Por isso, fechar as portas e janelas da
consciência é essencial para que permaneçamos insensíveis às lutas internas e ao
absurdo da existência. O esquecimento, típico do animal, é a força plástica capaz de
equilibrar o ser e fazer surgir, a partir da tranquilidade e da tábua rasa criada pelo
esquecer, lugar para coisas novas, para novas vontades de potência dominarem as
168

relações psíquicas. “O homem em quem não funciona este aparelho de retenção é


um verdadeiro dispéptico” (idem, ibidem). O animal homem é, destarte,
necessariamente esquecido.
O esquecimento é a inocência, a faculdade que permite instaurar novos valores
e que capacita o equilíbrio e a felicidade: “esquecer é uma força inibidora ativa,
positiva, pois possibilita ao humano a experimentação do novo. Essa é a original
utilidade do esquecimento” (CARNIO, 2013, p.121).
O esquecer é tão necessário e útil que o profeta Zaratustra o relaciona à
criança (última transmutação do espírito): “A criança é a inocência, e o
esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um
movimento, uma santa afirmação” (NIETZSCHE, 1984, p. 40).

1.2 Violência, memória e promessa

Sendo o homem um animal portador do carácter tão profundo e natural do


esquecimento, como foi possível criar na besta homem a capacidade de dominar e
uniformizar sua vontade, de querer no futuro tal como se quer no presente, ou seja,
como o homem criou consciência para dar valor à sua palavra e com base nela, e
por meio da memória, ser capaz de prometer e se humanizar?
Este problema tão antigo, como se pode imaginar, não se resolveu por meio de
respostas suaves; talvez na pré-história do homem não haja nada mais terrível do
que a sua mnemotécnica (Idem, 2013, ds. II, § III).
A mnemotécnica só foi possível, segundo o filósofo alemão, por meio da
violência, do sangue, do ranger de dentes, pois “imprime-se algo por meio do fogo
para que fique na memória somente o que sempre dói” (Ibidem). Qual foi, todavia, a
necessidade de converter o animal esquecido em humano com memória?
Necessidade e causalidade inexistem como raciocínio e interpretação neste estágio
primevo da humanidade. A memória é um fruto acidental.
A resposta está na relação entre credor e devedor (compra, venda, troca,
escambo, tráfico), é nela que surge o primeiro instituto de Direito (privado), e a partir
dela se cria a memória.
As trocas realizadas por esses homens e mulheres primitivos não eram
garantidas por nenhuma ordem jurídica ou qualquer espécie de norma. Não tendo o
homem a capacidade de prometer e cumprir no futuro a sua vontade presente, como
169

poderia o escambo, a troca, terem qualquer garantia?


A força plástica do esquecimento ainda é soberana na vida anímica do humano
primitivo.
O descumprimento, que nesta fase deve ser entendido como descumprimento
imediato (ex. trocar-se-ia uma lança por uma pele de animal, mas um dos homens
tenta fugir com a lança e a pele), gerará a cólera na vítima. Esta cólera toma a forma
da violência, e o inadimplente será violentado pela vítima. A sistematização ou
sucessão da violência no mesmo indivíduo em situações similares há de criar no
usurpador a memória, a lembrança. O descumprimento causa dor, e a dor não se
apaga. Assim o humano, antes vítima, toma consciência do método gerador da
memória e pode passar a empregá-lo para garantir seus contratos de troca.
Ocorrendo a memória, o humano agora pode prometer, e os contratos ganham
o que hoje chamamos de segurança jurídica, segurança resultada e executada por
meio da violência naqueles tempos. O direito é fruto, destarte, da dor, e mantém-se
pela ameaça constante. A violência garante, em tese, o funcionamento regular da
sociedade. O castigo, a compensação, ainda que realizada por uma autoridade,
permite ao credor participar no direito de senhor, o direito de ser cruel. É a violência
animal e instintiva da besta que garante a humanização do animal esquecido; nas
palavras de Oswaldo Giacoia Junior: “só permanecem retidos na memória os
preceitos sociais que não devem ser esquecidos, que não é lícito esquecer, e isso
justamente porque, paradoxalmente, eles podem ser esquecidos.” (JUNIOR, 2014,
p.46)
Criada a memória e a capacidade de prometer, a consciência é também
transposta ao plano religioso. De acordo com Nietzsche, as raças primitivas
acreditam que o sucesso delas se deve aos sacrifícios e inventos dos antepassados,
dos criadores da raça. A culpa/dívida (a palavra Schuld, em alemão, possui os dois
significados) em relação aos antepassados deve ser paga, compensada.
Paga-se, então, “com sacrifícios, (primeiro na forma de alimentos), com festas,
com santuários, com testemunhos de veneração, e sobretudo de obediência”
(NIETZSCHE, 2013, ds. II, §. 19). Mas sendo os costumes preceitos e ordens dos
antepassados, e se o sucesso da raça advém destes mortos, o receio de que os
pagamentos não sejam suficientes (o que poderia resultar na desgraça material da
comunidade) leva ao pagamento monstruoso: o sacrifício do primogênito. Aqui, a
crença neste dever e a regularidade temporal deste pagamento, com base na
170

culpa/dívida, instauram um verdadeiro vínculo jurídico, por vezes banhado em


sangue.
Deste derramamento de sangue surge finalmente a crença na causalidade.
Prometer (faculdade surgida pela violência) é querer no futuro como se quer agora e
realizar esta promessa: há um vínculo entre vontade (causa) e realização (efeito); se
descumprida a promessa (causa), o inadimplemento ocasionará algum castigo
(efeito).

A questão é, afinal, se reconhecemos a vontade realmente como atuante,


se acreditamos na causalidade da vontade: assim ocorrendo - e no fundo a
crença nisso é justamente a nossa crença na causalidade mesma -, temos
então que fazer a tentativa de hipoteticamente ver a causalidade da vontade
como a única. “Vontade”, é claro, só pode atuar sobre “vontade” - e não
sobre “matéria” (sobre “nervos”, por exemplo -): em suma, é preciso arriscar
a hipótese de que em toda parte onde se reconhecem “efeitos”, vontade
atua sobre vontade - e de que todo acontecer mecânico, na medida em que
nele age uma forca, e justamente força de vontade, efeito da vontade.
(Idem, 2011, aforismo 36).

A causalidade, ainda que seja uma crença no ordenamento necessário,


“divino”, dos fatos e das coisas, é a forma, par excellence, de apreensão da
realidade. A noção de causalidade advém da “experiência corpórea, a saber: a da
efetividade da vontade. (Rabelo, 2013. p. 90)”. O homem e a mulher se
humanizaram pela crueldade da violência, e esta funda até mesmo o dogma da
racionalidade: a causalidade.
A vontade presente na memória, na promessa e no pensamento causal, é um
dos conceitos-chave de Nietzsche. Para darmos continuidade ao desenvolvimento
da violência, urge explanar a vontade de poder, conceito que permeia toda a filosofia
nietzscheana.

2 Vontade de Poder

A vontade de poder é um dos conceitos chave da filosofia de Nietzsche.


Segundo o pensador, antecipando a psicologia freudiana (Id, Ego, Supergo), há
diversas forças, sentimentos, pensamentos, paixões, impulsos atuantes dentro do
ser humano. Cada uma dessas forças se encontra num eterno jogo de dominação-
submissão. Toda vontade saudável sempre busca dominar, mas toda vontade se
fortalece e se enfraquece no eterno conflito com as outras vontades, e desse eterno
171

conflito sobe à consciência apenas aquela que domina.


Disto surge a ilusão do “eu”, aliada à interpretação metafísica da linguagem
(todo verbo se liga a um sujeito, toda ação é condicionada por um “eu”). O querer
não é um efeito de meu livre-arbítrio, resultado de volição ou pensamento, querer é
a vontade que busca o domínio sobre todas as outras vontades. Apenas a vontade
que chega ao topo da hierarquia transparece na crença da consciência e se
confunde com o “eu”. Todas as outras várias vontades, que são como almas,
quando dominadas, afundam nas profundezas do inconsciente, até alguma delas se
fortalecer e, emergindo, dominar, pois a vontade de toda vontade é de potência,
poder.

"livre-arbítrio" é a expressão para o multiforme estado de prazer querente,


que ordena e ao mesmo tempo se identifica com o executor da ordem –
que, como tal, goza também do triunfo sobre as resistências, mas pensa
consigo que foi sua vontade que as superou (NIETZSCHE, 2011, af.19)

O humano, embora tenha a noção de uma unicidade e controle total do seu


“eu”, é, em realidade, um conjunto inumerável de vontades fortes e subalternas,
posto que “o corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas” (ibidem). O “eu”
é ao mesmo tempo a vontade que ordena e as vontades que obedecem, porquanto
cada uma condiciona a outra. A guerra interna de todas essas vontades constitui a
vida humana e tudo aquilo que desta é produto. A batalha por poder destas almas é
condição de criação, nas palavras do profeta Zaratustra: “Eu vo-lo digo: é preciso ter
um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.” (Idem, 1984, parte 1, cap.
5. p. 28).
Nietzsche rompe, desta maneira, com a tradição filosófica (iniciada por
Descartes) da dicotomia corpo-alma, pois a consciência é tanto produto corporal
(sentimentos, paixões, instintos, sensações) como intelectual. Ademais, o clássico
brocardo “eu penso, logo existo”, não mais se sustenta: um pensamento vem
quando “ele” quer, e não quando “eu” quero; de modo que é um falseamento da
realidade efetiva dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso” (Idem, 2011,
af. 17).
A compreensão da vontade de poder na estrutura social das almas do corpo
humano permitirá o entendimento da cultura político-jurídico-estatal como
construção da vontade de poder.
172

3 Vontade de poder, violência e formação do Estado e do Direito

Suponho, finalmente, que se conseguisse explicar toda nossa vida


instintiva como elaboração e ramificação de uma forma básica de
vontade — a vontade de poder, como é minha tese —; supondo que se
pudesse reconduzir todas as funções orgânicas a essa vontade de
poder, e nela se encontrasse também a solução para o problema da
geração e nutrição – é um só problema -, então se obteria o direito de
definir toda força atuante como, inequivocamente, vontade de poder. O
mundo visto de dentro, definido e designado conforme o seu "caráter
inteligível" seria — justamente “vontade de poder” e nada mais. (Idem,
2011, af. 36).

Se o humano pode ser compreendido como vontade de poder e se todas as


suas ações e obras são frutos de uma vontade dominante, torna-se lógico pensar o
mundo visto de fora, o mundo construído pelo humano, o próprio Estado, como
resultado daquela vontade.
A doutrina acerca da formação e legitimação do Estado ensinada nas escolas e
faculdades é a contratualista, seja a de Hobbes, Rousseau ou Locke. Essas teorias
são certamente as que melhor fundamentam a necessidade da sociedade civil, a
origem do sistema político representativo e o direito natural à propriedade privada. A
análise genealógica nietzscheana, todavia, descontruirá o contratualismo, e a partir
dela poder-se-á entender a formação e a manutenção de qualquer Estado e Direito.
O contratualismo (analisar-se-á o rousseauniano, pois é o mais difundido e
aceito, acriticamente, em nossa cultura) advoga que o humano, em estado de
natureza, é um bom selvagem, e consegue conviver em família e com a natureza –
em harmonia. De acordo com Rousseau, a família é a mais antiga das sociedades e
também a única natural, e a sujeição dos filhos ao pai só ocorre na medida em que
eles dependem deste. Quando esta dependência cessa, todos são livres, e se se
mantém unida a família, é voluntariamente (ROUSSEAU, 2007, p.22).
Esta harmonia não deve, para Nietzsche, ser compreendida como relações
horizontais de poder, mas verticais, pois é o Pater, nessas comunidades, que detém
o poder político - advindo da força física. Quando os filhos se libertam do pater poder
(emprega-se o instituto romano nas devidas proporções) não é por amor do pai, mas
porque os filhos estão mais fortes e suas vontades de poder querem dominar.
Rompe-se o romantismo da família rousseauniana. Ademais, a Natureza, tão cara
ao filósofo genebrino, é cruel em si, em sua indiferença e violência selvagens. “Viver
173

– isto não é precisamente querer ser diverso dessa Natureza? Viver não é avaliar,
preferir, ser injusto, limitado, querer ser diferente?” (NIETZSCHE, 2011, af. 9). A
própria história humana da racionalidade se traduz na vontade de saber (ciência)
como técnica de dominação sobre a natureza, o que posteriormente a Escola de
Frankfurt denominará racionalidade instrumental; não como viver harmonioso.
As dificuldades da vida solitária ou em família se imprimem na existência,
levando as pessoas a unirem forças para superar os empecilhos, e renunciando aos
seus próprios direitos e vontades egoísticas, elegem um soberano como
representante para governar segundo a vontade geral e zelar pelos direitos da
sociedade. Aos associados chama-se povo; tomam o nome de cidadãos quando
participantes da autoridade soberana; vassalos quando submetidos à Lei do Estado
imposta por eles mesmos. Surgiria, assim, o Estado. (ROUSSEAU, 2007, p.29-30).
Na esteira de Nietzsche, tal contrato social é inconcebível. A violência põe-se
agora, em lugar da humanização, na criação do Estado primitivo. As raças
dominantes devem ser entendidas como aquelas mais fortes e violentas, nas quais a
vontade de poder de dominação comandava a hierarquia de todas as vontades. A
vontade de poder de dominação, enquanto ativa, materializa-se em atos violentos,
mas essa mesma raça forte e brutal é ao mesmo tempo artista, pois cria e modela o
Estado.
Esses senhores, aves de rapina, artistas da violência, dominam e conquistam
uma população ainda errante e inorgânica (ainda que esta seja muito superior em
número), fisicamente e estruturalmente inferior. Afinal, por que cumprir um “contrato”
nesse momento, se a força permite o contrário?
A população conquistada, no entanto, justamente por ser inferior, carece de
freio (norma), ou a norma dela não é a mesma dos senhores de guerra
conquistadores. A norma dos senhores, o Direito dos conquistadores, deve ser
implantada, e nenhum meio mais eficaz de fazê-lo do que pela violência. Instaurado
esse Direito, cabe ainda à violência mantê-lo. O contrato social não é acordado; é
imposto, e por isso mesmo a teoria do pacto social faz bem aos ouvidos e ao
coração; mas a história é mais dura, e nela não cabe qualquer romantismo.
Ademais, o próprio contrato de direito traz em si a possibilidade da violência, de
um modo ou de outro, caso um dos contraentes descumpram o acordo.(BENJAMIN,
2014, p.137)
A história político-jurídica tem sido, até hoje, a história da dominação e da
174

violência, seja qual for o regime. Este é o fardo que os séculos parecem transformar
em destino.
Nas palavras do filósofo destruidor de ídolos (NIETZSCHE, 2013. ds.II, § XVII):

A submissão a uma norma fixa, de uma população que até então carecia
de norma e de freio, tendo começado por um ato de violência, só podia
ser levada a cabo por outros atos de violência: e que, por conseguinte, o
‘Estado’ primitivo entrou em cena com todo o caráter de uma espantosa
tirania, de uma máquina sangrenta e desapiedada, e teve que continuar
assim, até que, por fim, uma tal matéria brutal de animalidade foi
abrandada e tornada manejável, e finalmente modelada. Emprego a
palavra ‘estado’, mas é fácil compreender que me refiro a uma hora
qualquer de aves de rapina, louros, uma raça de conquistadores e de
senhores, que, com sua organização guerreira, deixariam cair sem
escrúpulos as suas formidáveis garras sobre uma população talvez
infinitamente superior em número, mas ainda inorgânica e errante. Tal é
a origem do ‘Estado’; creio que já foi bastante refutada aquela opinião
romântica que fazia remontar a sua origem a um ‘contrato’. Ao que
nasceu para mandar, ao que se sente poderoso em seus gestos e obras,
que lhe importam os contratos?

Tal é a origem de qualquer Estado e Direito: dominação e violência. Esta é a


história dos povos - dos romanos; dos “bárbaros”; de todas as guerras mais antigas
até às de hoje; da decisiva, mas sangrenta, Revolução Francesa; dos indígenas
brasileiros entre si; dos incas, maias, astecas; da dominação branca na América,
África, Ásia; da expansão ilimitada de Israel; até mesmo da narrativa bíblica da
violência divina contra os egípcios, filisteus e cananeus em favor dos hebreus. A
violência primitiva ainda reina por meio dos detentores do Poder.
A submissão ao direito nada mais é que a submissão a um crime originário, a
uma violência instauradora. As supostas pureza e racionalidade do Direito repousam
em sangue e dor, é esse mesmo poder brutal que cria o Direito. Cabe agora
questionar se a violência ainda é criadora e mantenedora do Estado e do Direito.

4 Violência originária

Desde o "descobrimento" do Brasil ao governo de João Goulart, o território


nacional foi palco de lutas políticas que, para o povo, sempre resultaram no mesmo:
dominação. Ocupar-se-á, todavia, do período mais recente da história nacional.
O regime militar brasileiro (1964-1985) fundou-se e manteve-se graças à
repressão, ao terror, à tortura e à violência. Foi essencialmente ditatorial,
evidenciando-se a obviedade da violência inerente ao Estado daquela época. Disto
175

não há dúvida, mas e a atual Constituição “cidadã”, onde está a violência que a
gerou?
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, apesar de ser fruto
de um movimento democrático, repousa no berço da Ditadura Militar, pois a
Assembleia Constituinte que a elaborou era composta pelos mesmos políticos, com
poucas exceções, manchados do sangue da época da Ditadura. Neste primeiro
ponto, percebe-se que apesar da insustentabilidade do regime passado, este ainda
manteve seu poder na elaboração da chamada Constituição Cidadã e, apesar de
destituído, não se deixou aniquilar por completo. O que ocasionou o novo Estado de
1988 foi a certeza do Estado Militar acerca de sua fraqueza e insustentabilidade
(gerada por si mesmo), por um lado, e por outro a força dos movimentos
democráticos (poder, como todo poder, potencialmente violento). Visto que a
destruição do Estado Militar era iminente, este se rendeu à criação de uma nova
ordem jurídica e de um novo Estado. A violência aqui analisada era potencial, e se
concretizou na ordem jurídica, pois destruiu uma antiga para originar outra nova
(mas nem por isso totalmente democrática). A violência ditatorial, que garantiu o
regime por tantas décadas sangrentas, foi suprimida pelo que se chamará aqui de
violência jurídica – destruição e criação de um novo Direito por intermédio do Direito,
mas ainda violento, opressor, racista e silenciador.
O Direito se vale da violência para se instaurar, mas quando instaurado dela
não abdica, pelo contrário, antes na forma de poder, agora a institucionaliza na
forma de Direito (Benjamin, 2014, p. 146). Mesmo este novo Estado "Democrático"
de Direito garante constitucionalmente sua manutenção pelo monopólio da violência.
Essa garantia constitucional se dá, principalmente, por meio das forças armadas
(sob comando supremo do Presidente da República) que devem garantir a defesa
da Pátria, dos poderes constitucionais, da ordem e da lei – termos tão abertos e
subjetivos fundamentam qualquer violência –; da polícia militar (resquício da
ditadura); do Direito Penal - a vontade de punir transparece-se: no princípio de que o
desconhecimento da lei não exime da pena, nos crimes de perigo abstrato, em
termos como “ordem”, “bons costumes”, no aumento constante de tipos penais, no
encarceramento em massa60 como instrumento de dominação e exclusão do

60
Dados da população carcerária no Brasil em junho de 2014, segundo site do Conselho Nacional de
Justiça: População no sistema prisional = 563.526 presos; Capacidade do sistema = 357.219 vagas;
Déficit de Vagas = 206.307; Pessoas em Prisão Domiciliar no Brasil = 147.937 Total; de Pessoas
176

capitalismo–; e da possibilidade da instauração do Estado de Exceção, ou seja, da


suspensão do Direito pelo próprio Direito em favor do poder puro (violento).
O poder estatal calcado na truculência da Polícia Militar recentemente recebeu
aval da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. A pedido do então Secretário
de Segurança Pública Alexandre de Moraes - hoje ministro do Supremo Tribunal
Federal - a PGE/SP elaborou parecer61. Nele concluiu que o Estado não precisa de
aval judicial para reintegrar posse, pois a Administração Pública tem o poder de
autoexecutoriedade. Ilegítimo e ilegal, pois: o pedido do então secretário foi
motivado pelas ocupações legítimas das escolas públicas estaduais por alunos
secundaristas contrários à reforma do ensino médio; a força física do aparato Estatal
é muito maior que a de qualquer secundarista; as reintegrações normalmente se dão
com uso da Polícia Militar; a Administração deveria se sujeitar às regras e princípios
do Direito Administrativo (legalidade, proporcionalidade) e não ao Código Civil, que
prevê regras para particulares com, mais ou menos, o mesmo poder.
A lógica circular dessas construções culturais é a seguinte: o Direito e o Estado
garantem a violência e o poder, vice-versa.

5 Violência Policial no Paraná – indeterminação da violência

Devido à recente brutalidade protagonizada pela Polícia Militar do Estado do


Paraná em 29 de abril de 2015, esta será objeto de rápida análise para corroborar,
infelizmente, o discurso filosófico empreendido até aqui.
Na referida data, milhares de professores da educação estadual paranaense se
dirigiram à Assembleia Legislativa, a casa do povo paranaense, para pressionarem
os deputados a vetar projeto de lei do governo Beto Richa (PSDB) que
descapitalizaria 127 milhões de reais por mês do fundo de aposentadoria
ParanáPrevidência. A casa do povo, todavia, estava cercada por 2 mil policiais
militares (com amparo judicial), impedindo a entrada dos professores (povo), o que,

Presas = 711.463 Déficit de Vagas = 354.244; Número de Mandados de Prisão em aberto no BNMP =
373.991; Total de Pessoas Presas + Cumpr. de Mandados de Prisão em aberto = 1.085.454; Déficit
de Vagas = 728.235. Cf:
http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf
61
Notícia disponível em < http://www.conjur.com.br/2016-mai-13/estado-retomar-imovel-ocupado-
aval-judicial-pge-sp>. Acessado em 28/04/2017.
Parecer nº 193/2016 disponível em < http://s.conjur.com.br/dl/estado-retomar-imovel-ocupado.pdf>.
Acessado em 28/04/2017.
177

por conseguinte, descaracterizou a função da Assembleia Legislativa.


Cegos e surdos, propositalmente, aos gritos de seus representados, os
deputados puderam, sem qualquer respaldo popular ou midiático, aprovar o projeto
de lei. O Legislativo, em clara subordinação ao Executivo, protegido pelo Judiciário,
aprovou lei diametralmente contrária ao interesse do povo. E esta concentração de
poder ocorreu num governo “democrático”. Aqui, a fragilidade da teoria contratual
vem à luz, pois aquele que tem poder suficiente pode quebrar qualquer contrato,
inclusive o que fundamenta o próprio poder estatal.
Do lado externo da tranquilidade interna da Assembleia Legislativa, um
verdadeiro clima de guerra tomou conta do Centro Cívico. Dois mil policiais feriram
duzentos professores grevistas e manifestantes claramente desarmados, indefesos
e que apenas lutavam pela manutenção de seus direitos.
A desproporção da violência físico-policial transparece na utilização da Tropa
de Choque, do Batalhão de Operações Especiais, de cachorros (inclusive Pitbull), de
escudos, cassetetes, balas de borracha e até mesmo bombas de efeito moral
lançadas de um helicóptero. Toda esta força de guerra, sancionada pelo Chefe do
Executivo estadual, utilizada contra professores.
A função da polícia é, nas palavras de Walter Benjamin, dupla: persegue fins
de Direito e fins estipulados por si mesma (direito de ordenar medidas). Ademais, a
função instauradora ou mantenedora do Direito está nela suspensa, pois a primeira
exige comprovação de vitória; a segunda, restrição de ampliar seus limites por si
mesma.(Idem, p.135)
A função da polícia, no caso aqui discutido, se enquadra perfeitamente na
crítica benjaminiana:

[o] “direito” da polícia assinala o ponto em que o Estado, seja por


impotência, seja devido às conexões imanentes a qualquer ordem de
direito, não consegue mais garantir, por meio dessa ordem, os fins
empíricos ela deseja alcançar a qualquer preço. Por isso a polícia intervém
“por razões de segurança” em um número incontável de casos nos quais
não há nenhuma situação de direito clara.

O direito da PM veio, incompreensivelmente, do Judiciário e do Executivo, e


“garantir a ordem” foi entendido como “garantir a qualquer preço”. A questão que se
impõe é: se a PM não garantiu os direitos dos professores, se ela verdadeiramente
desordenou o ambiente, o direito de quem ela garantiu? Resposta: a expectativa de
178

direito do Poder Executivo, o que não pode ser entendido como direito, mas como
expectativa e manifestação irrestrita de poder. A polícia, embora presente em todas
as civilizações modernas ditas civilizadas, é um espectro que ronda
assombrosamente a vida, e sua violência não pode ser definida, pois não se
enquadra essencialmente em qualquer categoria. Se a violência policial é concebível
no absolutismo, donde a lei, o juízo e a execução se concentram numa só pessoa,
ou seja, numa só vontade ilimitada; o que fundamenta a violência policial numa
Democracia? (Ibidem, p.136).
Essa amostra do poder violento comprova que certas características da
ditadura perduram nas instituições brasileiras. A injustiça foi justificada pelo Direito; a
Democracia do processo legislativo, descartada pelo Legislativo; a tão clamada
“ordem pública”, desordenada a mando do Executivo.
O massacre ocorrido no Centro Cívico de Curitiba explicita que todo direito só é
respeitado, destruído ou instaurado enquanto haja poder para tal. As noções
contratualista, naturalista e metafísica do Direito não se sustentam enquanto a
realidade empírica pressupor uma quantidade de poder a todo direito. Enquanto a
vontade de poder de dominação do Governo e sua capacidade de organização
forem maior que a vontade de poder de participação, de Democracia, a dominação
há de triunfar, levantando a questão: o povo detém poder suficiente para, no mínimo,
manter seus direitos?

Conclusão

De acordo com a genealogia nietzscheana, a violência humanizou a mulher e o


homem, criou os Estados e o Direito. Torna-se inegável, se se aceitar a hipótese, a
importância dos atos cruéis para a construção da cultura como a conhecemos hoje.
O estágio cultural e humanizado, todavia, no qual nos encontramos, não mais
justifica qualquer forma de violência ou poder irrestrito.
A filosofia de Nietzsche é verdadeiramente um golpe de martelo. A força de
seus golpes, todavia, não busca a mera destruição de ídolos, mas a criação de uma
cultura elevada sobre os destroços de ideais insustentáveis. A crítica nietzscheana,
por sua acidez e acuidade, desconstrói o romantismo com o qual os olhos são
treinados na Academia e na Mídia para enxergarem a realidade. Enquanto essas
lentes românticas distorcerem a percepção dos juristas, filósofos, sociólogos,
179

políticos e cidadãos em geral a realidade será inapta a mudanças.


Descortinado o engodo contratualista, podemos melhor compreender a
realidade político-jurídica brasileira. A representação política, ínfima e pífia, cede
lugar a fisiologismos e interesses egoísticos, numa clara manutenção de poder dos
Poderes Instituídos a qualquer custo. O pacto rousseauniano é extremamente bem
elaborado; sua existência, todavia, só é concebível numa sociedade ideal. A clara
visão de nossa cultura como vontades de poder permite a explicação das relações
sociais e institucionais. A partir deste entendimento, poderemos desconstruir o
sistema político e jurídico nada contratual para construirmos um sistema pautado na
legítima representação e participação e com mecanismos inibidores do poder
violento e opressor.
Demonstrada a inerência, desde os tempos primevos até a atualidade, da
violência no Direito e no Estado, cabe a todos nós escolher: é a violência destino ou
é nosso dever construir um destino livre da violência? Enquanto o fundamento de
nossas instituições for a crueldade e o poder desmesurado, a cultura em que
vivemos será tudo – exceto humana.
Que esta crítica à violência gere os frutos para sua superação e a criação de
um Novo Direito. A humanidade não pode mais se manter pela animalidade violenta.
O destino do Estado e do Direito deve ser humanizado, não mais pela
mnemotécnica, mas pela razão crítica da sociedade, pela vontade de harmonia. O
processo que almeja a humanização das instituições deve, ele mesmo, ser
humanizado, para assim nos livrarmos das raízes violentas que crescem do fundo
do passado e chegam à superfície do nosso presente.
Na crescente onda punitiva do Direito Penal, na desmocratização dos três
Poderes, na crescente violência institucional da PM, na possibilidade constitucional
do Estado de Exceção – Direito, Poder e Violência continuam se confundindo. O
Judiciário que autoriza o cerco de 2 mil policiais no Legislativo, o Executivo que
determina um massacre a professores, nada mais fazem do que – ao instaurarem
um Estado de Exceção – afirmarem que Direito, Poder e violência são, para eles, a
mesma coisa, coisa construída, moldada e usada a bel prazer pelos detentores do
poder.
A Filosofia do Direito de Nietzsche só se mantém atual devido ao nosso atraso,
à incapacidade do humano de superar a si mesmo e criar, como verdadeiro artista,
uma sociedade inteiramente humana, ao invés de meio humana, meio besta. Do
180

crepúsculo dos ídolos do Direito nascerá a aurora de um Direito livre.

Referências

BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. In: ______. Para a crítica da
violência. Tradução de Ernani Chaves. 2ªed. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34,
2013.

CARNIO, Henrique Garbellini. Direto e antropologia: reflexões sobre a origem do


direito a partir de kelsen e nietzsche. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Novo diagnóstico de pessoas presas no


brasil – junho de 2014. Departamento de monitoramento e fiscalização do sistema
carcerário e do sistema de execução de medidas socioeducativas – DMF. Disponível
em:<http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correc
ao.pdf>. Acesso em: 22 maio 2015.

JUNIOR, Oswaldo Giacoia. Nietzsche: o humano como memória e como promessa.


2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A genealogia da moral. Tradução de Mário


Ferreira dos Santos. 4ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

______. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de


Paulo César de Souza. 11ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

______. Assim falava zaratustra. Tradução de José Mendes de Souza. Rio de


Janeiro: Edições de Ouro, 1984.

RABELO, Rodrigo. A arte na filosofia madura de Nietzsche. Londrina: Eduel,


2013. p. 76-93.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político.


Tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2007.
181

A IMPORTÂNCIA DA TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS EM HERRERA


FLORES

Erika Juliana Dmitruk62


Lívia Maria Leite63
Marina Marques de Sá Souza64

“…Todo está por hacer,


Por inventar y alegrar,
Por nacer.
Hay que volver a empezar
Y descubrir como nueva la explosión primaveral…
Cuando luchamos, creamos, somos de veras quien somos palpitando cara al cielo, somos pura
actividad,
y al cantar,
cantemos lo que cantemos, cantamos la libertad.
Todo está por inventar, por descubrir desde el centro de su gozo germinal, por levantar, por
nombrar con su nombre más sencillo, más imprevisto, más justo,
más fieramente real.”

(Gabriel Celaya, Todo está por inventar)

Resumo: A busca por uma definição de direitos humanos é objeto de teorias e


filosofias que, atravessando o tempo, almejam estabelecer um conceito puro e
universal dos referidos direitos. Em manifesta desatenção à complexidade cultural e
conceitual, teorias hegemônicas capitalistas instrumentalizam direitos tão caros à
sociedade a fim de satisfazer os caprichos de um mercado cada vez mais exigente e
opressor. Nesse aspecto, os verdadeiros atores sociais responsáveis por criar, dia-a-
dia, aquilo que entendem por dignidade, subordinam-se a um regime etnocêntrico
que pretende universalizar os direitos humanos, na contramão da interculturalidade
das reações humanas. A partir do estudo e da análise da teoria crítica de Joaquín
Herrera Flores, o trabalho acadêmico desenvolver-se-á a partir dos marcos

62
Professora Me. da Universidade Estadual de Londrina e coordenadora do grupo de pesquisa “Os
homicídios de defensores de direitos humanos como expressão dos limites da efetividade dos direitos
humanos no Estado brasileiro”. E-mail: ejdmitruk@hotmail.com
63
Acadêmica de direito da Universidade Estadual de Londrina e colaboradora do grupo de pesquisa
“Os homicídios de defensores de direitos humanos como expressão dos limites da efetividade dos
direitos humanos no Estado brasileiro”. E-mail: lliviamleite@gmail.com
64
Acadêmica de direito da Universidade Estadual de Londrina e colaboradora do grupo de pesquisa
“Os homicídios de defensores de direitos humanos como expressão dos limites da efetividade dos
direitos humanos no Estado brasileiro”. E-mail: marinamarquessasouza@gmail.com.
182

históricos que antecedem a criação da teoria da reinvenção dos direitos humanos.


Apresenta-se, ainda, uma tentativa de delineação do conceito de aludidos direitos,
segundo Flores. Por fim, delineia-se aquilo que o professor estabeleceu como as
seis decisões iniciais para a construção de uma teoria crítica dos direitos humanos.
Palavras-chave: direitos humanos; teoria da reinvenção; decisões iniciais.

Introdução

O esforço coletivo em desempenhar a construção de uma teoria crítica dos


direitos humanos, desenvolvido na Universidade Pablo de Olavide, na Espanha,
tendo como precursor Joaquín Herrera Flores, não poderia vir a calhar em momento
mais oportuno. Em um cenário repleto de injustiças e opressões, marcadamente de
uma sociedade hegemônica capitalista, Herrera Flores apresenta-se como válvula
de escape à tendência universalizante dos referidos direitos.
Nesse aspecto, o professor oferece uma alternativa às propostas tradicionais
de abordagem do tema direitos humanos, notadamente etnocêntricas e
descontextualizadas da verdadeira realidade dos atores sociais. Assim, o estudo
pauta-se na interculturalidade das reações humanas e nas inúmeras possibilidades
de construção da dignidade. Ora, a dignidade é dinâmica conforme as
peculiaridades culturais de cada comunidade individualmente considerada.
O autor delineia, então, marcos históricos a fim de afirmar sua teoria de
reinvenção dos direitos humanos. A partir deles é possível visualizar o processo de
construção dos referidos direitos, imersos em um contexto de negação das lutas
sociais, estas edificadoras de direitos humanos culturalmente construídos.
Longe de almejar classificar os direitos em categorias ou em dimensões, Flores
define os direitos humanos como a prática de processos que abrem e consolidam
espaço de luta pela dignidade. Infere-se, pois, que o conceito está em constante
devenir e que a tentativa de delinear um conceito estático não condiz com a
proposta de reinvenção da teoria.
Nesse diapasão, o trabalho acadêmico investigará, a partir de um método
dialético de análise, os marcos teóricos ensejadores do objeto de estudo de Joaquín
Herrera. Num segundo momento, analisa-se a tentativa de conceituação dos
referidos direitos. Por fim, apresenta-se aquilo que Herrera denominou de seis
decisões iniciais, numa pretensão de esboçar um caminho a ser percorrido a fim de
183

se estruturar uma teoria afirmativa dos direitos humanos.

1 Os marcos teóricos para a criação da teoria da reinvenção dos direitos


humanos

Os direitos humanos, conforme será debatido mais detalhadamente, não são


algo dado e construído em momentos específicos da história mundial, como na
queda da Bastilha, em 1789 ou com a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
em 1948. Pelo contrário, eles são dinâmicos e resultados de lutas históricas de
resistência contra as violências inerentes à ascensão do sistema capitalista no
mundo (FLORES, 2009a).
Consoante a isso, os processos culturais de lutas sociais se tornam
verdadeiros parâmetros e guias a respeito da nova ordem mundial que começou a
existir a partir do século XIX com a nova estruturação do capitalismo (FLORES,
2009a).
Foi a partir dessa nova concepção de mundo criada pelo sistema capitalista, o
qual instalou um novo modo de produção e de distribuição de bens, que as novas
relações sociais foram generalizadas e os dogmas da auto-regulamentação do
mercado foram criados (FLORES, 2009a).
À medida que essa nova estruturação social, política e econômica se instalou,
surgiram processos denominados de direitos humanos, que constituem, por um lado,
dinâmicas sociais de diferentes tipos que impulsionaram diversas transformações
em todos os âmbitos e, por outro, marcos de ação e pensamentos que possibilitaram
a generalização social de valores alternativos à forma de relação social dominante
(FLORES, 2009a).
Tais direitos, ao mesmo tempo em que eram utilizados pela burguesia, nos
séculos XVII e XVIII, como forma de resistência aos modos de relações primado
pelas monarquias absolutistas, passaram a ser utilizados por coletivos
marginalizados perante o sistema que imperava (FLORES, 2009a).
Mas não é só. A inserção dos direitos humanos no contexto sócio-político da
Guerra Fria, bem como o reconhecimento positivo de tais direitos e, ainda, a
generalização da ideologia “humanista”, fizeram com que eles se tornassem
produtos de alguma instância transcendental aos processos de lutas sociais e
separados da extensão do capitalismo (FLORES, 2009a).
184

Acrescente-se tudo isso à nova fase da globalização, denominada por Herrera


Flores como “terceira transição do capital” – neoliberalismo. Esse momento em
particular foi caracterizado por quatro aspectos articulados: a) a proliferação de
centros de poder; b) a inextricável rede de interconexões financeiras; c) a
dependência de uma informação rápida; e d) o ataque frontal aos direitos sociais e
laborais (FLORES, 2009a).
Tais características foram os motivos cruciais para uma importante mudança
na consideração dos direitos humanos. Em nível jurídico, fizeram com que fosse
instaurada uma crise no direito nacional das mencionadas garantias, uma vez que
as Constituições começaram a perder o seu caráter normativo. Já em nível social,
criaram-se duas consequências importantes: a primeira foi o surgimento de
processos de reação social; em segundo lugar, o início de buscas de novas
rearticulações de toda a rede estrutural social (FLORES, 2009a).
Desse modo, o aspecto preponderante para a criação da teoria da reinvenção
dos direitos humanos foram as crescentes modificações sociais instituídas no mundo
pelo rápido avanço do sistema capitalista, bem como pelos diversos movimentos
sociais que começaram a criar suas bases e a esboçarem reações frente às
relações impostas pela nova ordem social vivida.

2 A problemática da conceituação de direitos humanos para Herrera Flores

No contexto apresentado acima, o rápido avanço da cultura capitalista no


mundo fez nascer no ocidente uma ideologia baseada na individualização, na
competitividade e na exploração da força de trabalho do outro (FLORES, 2009).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, pautada em uma
perspectiva tradicional e hegemônica dos direitos, fez criar uma confusão entre os
planos da realidade e da razão (FLORES, 2009).
Em seu Preâmbulo, diz-se, primeiramente, que os direitos humanos devem ser
entendidos como um ideal a ser alcançado e concretizado, ou seja, há um impulso à
criação de diretos, por meio de normas jurídicas, com objetivo de outorgar um
reconhecimento e uma aplicação universal. Todavia, não obstante a grande
importância e necessidade de normas que busquem efetivar os direitos humanos no
plano nacional e internacional, eles não podem se reduzir apenas às normas
jurídicas (FLORES, 2009).
185

A ideia muda alguns parágrafos após o dito Preâmbulo da Declaração, visto


que já não se comenta sobre os direitos humanos como um ideal a ser conquistado,
mas sim como uma realidade já concretizada, como se nota da transcrição dos
artigos 1º e 2º:

Artigo 1°. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade


e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para
com os outros em espírito de fraternidade.

Artigo 2°. Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as


liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma,
nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de
opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de
nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita
nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional
do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou
território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma
limitação de soberania (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS
HUMANOS, 1948).

Verifica-se, pois, que os direitos são concebidos como algo inerente às


pessoas pelo simples fato de serem seres humanos, independentemente de
qualquer condição ou característica social, ou seja, não são mais do que uma forma
para se obter mais direitos, e é justamente essa a crítica apontada por Herrera
Flores (FLORES, 2009).
Nos dizeres do próprio professor, “a ideia que inunda todo o discurso
tradicional reside na seguinte fórmula: o conteúdo básico dos direitos é o ‘direto a ter
direitos’” (FLORES, 2009, p. 27).
Ao contrário da lógica de que todas as pessoas antes mesmo de possuírem
capacidade e condições adequadas de existência já podem exercer seus direitos, a
imensa maioria da população mundial não os exerce pelo simples fato de não
possuírem condições materiais para tal.
Desse modo, mais do que direitos em si considerados, os direitos humanos
constituem-se como processos, ou seja, são os resultados obtidos provisoriamente
de lutas que os próprios seres humanos travam com o intuito de conseguirem
acesso aos bens minimamente necessários para se viver (FLORES, 2009).
E, é justamente pela questão de que os direitos humanos não podem e não
devem ser confundidos com os direitos positivados – pois, uma constituição ou ainda
um tratado internacional não criam direitos humanos (FLORES, 2009) –, que Herrera
Flores apresenta sua teoria, a qual reinventou o que se concebia como direitos
186

humanos no mundo todo.


A problemática de sua teoria está baseada na concepção de que os direitos
são uma convenção cultural utilizada para introduzir uma tensão (um
questionamento) entre os direitos reconhecidos e as práticas sociais, as quais
buscam tanto um conhecimento positivado como qualquer outra forma de
reconhecimento que garanta a exterioridade e a internalidade de tais normas –
exterior, pois os tratados e constituições reconhecem os resultados das lutas sociais
que ocorrem fora do direito, e interior porque essas normas podem reforçar o
cumprimento de tais direitos (FLORES, 2009).
À vista disso, Flores afirma que quando tratamos de direitos humanos, “falamos
de dinâmicas sociais que tendem a construir condições materiais e imateriais
necessárias para conseguir determinados objetivos genéricos que estão fora do
direito” (FLORES, 2009, p. 29). Ora, ao se efetivar a luta pelos direitos humanos, os
responsáveis por ela colocam em prática preceitos sociais dirigidos a todos e a
todas, os quais possibilitam construir condições materiais e imateriais necessárias
para a subsistência humana (FLORES, 2009).
Além disso, a teoria da reinvenção dos direitos humanos considera injustos e
desiguais os processos de divisão do fazer humano, pois todos os seres humanos
precisam dispor de condições materiais concretas que possibilitem o acesso aos
bens mínimos necessários para a dignidade humana 65.
Joaquín Herrera Flores vai mais além em sua obra intitulada “Teoria Crítica dos
Direitos Humanos: os direitos humanos como produtos culturais” (2009a) e cria três
conceitos de direitos humanos de acordo com os ideais de liberdade (cultural),
fraternidade (político) e igualdade (social).
De acordo com o conceito cultural, os direitos humanos suporiam a “instituição
ou a colocação em marcha de processos de luta pela dignidade humana” (FLORES,
2009a, p. 193).
Por sua vez, na concepção política, os mencionados direitos se conceberiam
como “os resultados dos processos de lutas antagonistas que se deram contra a

65
Para o professor espanhol, a dignidade não deve ser compreendida como o simples acesso aos
bens, mas sim como um acesso igualitário e que não esteja hierarquizado por processos de divisão
do fazer que coloquem alguns em posições privilegiadas e outros em situações de opressão e
subordinação. Além disso, ela é um fim material, ou seja, um objetivo que se concretiza no acesso
igualitário e generalizado aos bens que fazem com que a vida seja “digna” de ser vivida (FLORES,
2009).
187

expansão material e a generalização ideológica do sistema de relações imposto


pelos processos de acumulação do capital” (FLORES, 2009a, p. 193).
E, por fim, no plano marcadamente social, os direitos humanos são resultados
de lutas sociais e coletivas, as quais “tendem à construção de espaços sociais,
econômicos, políticos e jurídicos que permitam o empoderamento de todas e todos
para poder lutar plural e diferenciadamente por uma vida digna de ser vivida”
(FLORES, 2009a, p. 193).
Isto posto, mais do que uma teoria, a nova concepção de direitos humanos
proposta por Joaquín Herrera Flores faz cair por terra a teoria tradicional de que os
direitos humanos são somente aqueles instituídos pelo direito em si, uma vez que
cria uma nova visão do que seriam tais direitos. Mencionada visão está baseada no
âmbito social, que é o fator originário de um direito repassado como jurídico, mas
que na verdade possui toda uma história de luta em sua prévia concepção.

3 Para uma construção de uma teoria crítica e contextualizada dos direitos


humanos: as seis decisões iniciais

Ao propor uma teoria crítica dos direitos humanos, Herrera Flores pretende,
como aduzido, romper com paradigmas ocidentais pré-estabelecidos do que venham
a ser direitos humanos. Ora, Flores rejeita qualquer espécie de definição
etnocêntrica com o fito homogeneizador dos referidos direitos, consolidando uma
teoria contextualizada no desenvolvimento de povos e de diferentes culturas -
direitos humanos como produtos culturais. Nesse diapasão, o professor propõe
práticas sociais críticas, por meio de uma simbiose entre teoria e práxis, a fim de
propiciar um terreno seguro e preciso para aqueles que lutam diariamente em prol
de uma vida digna. Vale dizer, para seres humanos concretos e reais que enfrentam
uma realidade repleta de opressões e injustiças.
Ora, teorias procedimentais e neocontratuais delinearam um conceito puro e
universal dos direitos humanos como exclusiva forma de ação social e jurisdicional,
ignorando diferentes vias de dignidade, ante a multiplicidade de exclusões com as
quais os atores sociais padecem cotidianamente. Ademais, ao rejeitar a
interculturalidade das ações humanas, as teorias hegemônicas deixam de abarcar
em seu campo de estudo questões imprescindíveis para uma análise autêntica da
dignidade - conteúdos ontológico, ético e político.
188

Nesse aspecto, a implosão do ethos não mais suporta uma leitura estática da
dignidade e, assim, requer práticas “reais e concretas que fazem das lutas pela
dignidade humana uma constante na história da humanidade” (FLORES, 2009, p.
15). Ao refutar a ideia de universalidade dos direitos humanos, a teoria crítica
denuncia o caráter de exclusão das culturas ocidentais ao caracterizar o outro como
incivilizado. Copelli (2014, p. 271) sintetiza o compromisso teórico assumido por
Herrera Flores:

Desse modo, partir do pressuposto de que os Direitos Humanos são


produtos culturais, portanto, é uma maneira, então, de enxergar o
diferente, o outro, de maneira diversa, ou seja, não mais como o bárbaro,
como o incivilizado e, consequentemente, passível de colonizar, mas,
sim, simplesmente como o diferente ou, ainda, como aquele que, no
decorrer da própria História, procurou caminhos diferentes para buscar
os elementos que considera essenciais para atingir as próprias
concepções de dignidade humana (COPELLI, 2014, p. 271).

A fim de estruturar uma teoria apta a atender as necessidades dos que


inventam e reinventam a dignidade dia após dia, Flores propõe uma ruptura com os
anúncios universalistas, peculiares de mesas redondas sobre direitos humanos.
Destarte, o autor convida à construção de espaços de encontro entre as diversas
formas de ação nos quais todas os protagonistas façam valer suas propostas e
diferenças (FLORES, 2009, p. 17). Para engendrar esse projeto, Joaquín Herrera
Flores sugere a generalização de “seis decisões iniciais” com o intuito de construção
de uma teoria crítica e afirmativa dos direitos humanos.
Antes de delinear as seis decisões, contudo, Herrera Flores apregoa a
conveniência de se repensar o conceito de modernidade reflexiva, investigada pelo
sociólogo Ulrich Beck. Referida teoria busca soluções às causas reais dos
problemas gerados pela globalização do capital, preponderantemente na Europa
hipertecnologiazada (FLORES, 2009, p. 18). Ora, uma modernidade reflexiva
pressupõe uma adaptação forçada às condições que impõem às relações sociais
uma específica forma de regulamentação institucional – o caráter etnocêntrico
intrínseco às leis do mercado autorregulado.
Apoiado em Joseph Stiglitz, Herrera convoca a um verdadeiro striptease and
provoque, em um manifesto desnudar-se e provocar: faz-se necessário abandonar a
configuração passiva de uma teoria da modernidade reflexiva, pautada na
conformidade do sistema tal qual estabelecido, mas sim sistematizar um conjunto de
189

leis que esteja contextualizado no diálogo entre diferentes culturas. Há uma


variedade de processos culturais que podem fazer valer seus próprios caminhos e
vias de saída aos riscos de uma sociedade globalizada (FLORES, 2009, p. 18).
Flores apresenta, pois, os três postulados de uma modernidade inflexiva. O
primeiro deles pauta-se na ineficácia das leis do mercado frente à imperfeição da
informação e à desigualdade de distribuição (FLORES, 2009, p. 19). Para isso, o
autor apresenta a problemática da modernidade reflexiva preocupada tão somente
em remediar os efeitos da realidade socioeconômica próprios do liberalismo. A partir
de utopias – mercado autorregulado e democracia de baixa intensidade – Flores
revela o malogro de teorias e filosofias que se autointitulam neutras, que “intentam
resolver todas as questões políticas, sociais e econômicas por meio de
procedimentos epistemológicos justos que, consequentemente, teriam o condão de
garantir resultados justos” (GRUBBA, 2015, p. 17). Não é isso que se observa na
dura realidade do mundo quando mais de quatro quintos da humanidade ainda vive
à margem da opressão e da miséria (FLORES, 2009, p. 16).
O segundo postulado consiste na asserção do uso da moeda como instrumento
de domínio econômico e político. Ora, os bancos e as entidades financeiras
movimentam altíssimas quantidades de dinheiro sem sequer inferir a fonte e
posterior aplicação de referidos montantes.
O terceiro e último postulado diz respeito ao perigo inerente ao livre comércio,
a partir do momento em que expõe a vulnerabilidade do mercado de países em vias
desenvolvimento ante a exigência dos mercados internacionais.
A teoria crítica da reinvenção dos direitos humanos apresenta-se como
possibilidade frente a “toda forma de justificação naturalista da ordem hegemônica
que se globaliza e que nos afunda em problemáticas que nos impedem de aplicar a
capacidade de propor alternativas” (FLORES, 2009, p. 20). Nesse sentido, o
professor espanhol sedimenta sua teoria quando afirma sua diferença e propõe
outras vias para uma construção de uma teoria crítica dos direitos humanos. Para
isso, ele sugere aquilo que denominou de “seis decisões iniciais”.
Pensar é pensar de outro modo. Eis a primeira, dentre as seis decisões iniciais,
para se pensar uma teoria de direitos humanos. Herrera Flores provoca uma tomada
de consciência ao propor a criação de novas formas de pensamento em dissonância
com as teorias e filosofias da política hegemônica. Ressalte-se que não se trata de
uma decisão radical e de repúdio, mas tão somente a produção de reflexões críticas
190

sobre as regras e valores que balizam o funcionamento de todo o processo cultural


dominante. O autor ressalta que a revolução de pensamento não acontece única e
exclusivamente dentro de fábricas, por exemplo, mas também por qualquer ser
humano real e concreto que, diante de um problema ontológico, saiba “utilizar o freio
de emergência e deter o que parece ser impossível de parar” (FLORES, 2009, p.
22).
Trata-se, pois, do que Joaquín denomina de “processo de humanização do
humano”. Frise-se: não no sentido pré-estabelecido e universalizador de políticas
etnocêntricas, mas na “potencialização de nossa capacidade cultural de criatividade
e de postulação de alternativa ao existente” (FLORES, 2009, p. 22). Pensar é, pois,
um ato de resistência e de empoderamento frente às passividades que marcam o
plano hegemônico e segregacionista de pensamento. Ademais, pensar o novo não
significa, a todo momento, tornar visível aquilo que passa desapercebido aos olhos
dos atores sociais, mas tornar visível aquilo que está próximo de nossa realidade e,
assim, proporcionar ressignificações a partir de um contexto cultural e plural.
Herrera Flores propõe, como segunda decisão para uma reinvenção da teoria
dos direitos humanos, passarmos da negatividade dialética à afirmação ontológica e
axiológica. Sabe-se que o intuito de do autor “é propor a possibilidade de diálogo
entre as diferentes maneiras de se chegar ao conceito de dignidade” (COPELLI,
2014, p. 274). Infere-se, pois, que a teoria em testilha não visa negar os
pressupostos teóricos e práticos tradicionais de abordagem dos direitos humanos.
Ora, ao negar referidos pressupostos, não seria possível afirmar as diferenças de
uma teoria crítica ante os postulados de práticas tradicionais.
Nesse aspecto, a segunda decisão intenta superar a negatividade dialética
hegeliana “que se apresenta como um método que afirma a chegada de uma síntese
afirmativa a partir da mútua negação dos termos de uma relação determinada”
(FLORES, 2009, p. 26). A fim de exemplificar aludida dialética, Flores faz menção à
obra de Shakespeare, “A Tempestade”, através do retrato da relação entre um
escravo e um amo (FLORES, 2009, p. 26):

Calibã pretende fugir do Amo mudando de Amo e sem questionar a


relação de dominação que o submete de novo. Enquanto o Amo resolve
seus problemas afirmando-se em sua posição hegemônica, o pobre
Calibã segue escravizado por não ter sabido afirmar seus próprios
valores e suas próprias alternativas ante a relação social que o
escraviza. (FLORES, 2009, p. 26).
191

Resta claro, a partir do exemplo dado, que a negação subjaz à afirmação. Quer
dizer, é insuficiente apregoar premissas puramente negativas, as quais negam
possibilidades de romper a cumplicidade entre o ordenamento jurídico e o poder
hegemônico. Faz-se necessário, antes de tudo, reconhecer a diferença da teoria
crítica quanto às concepções política, social e cultural das teorias tradicionais. Nesse
aspecto, segundo Korsch, ao interpretar Karl Marx, o relevante consiste em “mostrar,
em iluminar as relações entre os fenômenos, antes que meramente negá-las e não
saber, desse modo, onde e em que estamos pisando” (KORSCH, pp. 224-225).
Em terceiro lugar, pensar as lutas pela dignidade humana significa
problematizar a realidade.Ao pensar de outro modo, emergem novas problemáticas
e, consequentemente, a necessidade de fundar novas formas de apropriação teórica
e prática do mundo. A partir dessa perspectiva, cria-se a “possibilidade de que o
sujeito que pensa e atua questione positivamente as relações que se nos
apresentam como imutáveis [...]” (FLORES, 2009, p. 29). Ora, não constitui objeto
da teoria crítica negar todo e qualquer modo tradicional de abordagem dos direitos
humanos, mas a afirmação de problematização. Trava-se, portanto, um
enfrentamento com a concepção filosófica hegemônica, que, ao considerar o
pensamento como algo neutro e universal, nega os direitos humanos enquanto
produto culturalmente concebido.
Outrossim, ao propor a problematização da realidade, Flores revela a
indispensabilidade de criação de espaços destinados a promover encontros
positivos, em que militantes pela dignidade humana possam intervir no mundo e,
assim, atuar de forma conjunta nos acontecimentos cotidianos (FLORES, 2009, p.
30).
Em quarto lugar, a teoria crítica de direitos humanos de Herrera Flores propõe
caminharmos das utopias rumo às heterotopias. O autor engendra uma nova
conceituação ao que vem a ser utopia, entendida “não como um projeto irrealizável
ou transcendental, mas como um impulso ou um caminho
a ser percorrido ativamente” (GRUBBA, 2015, p. 22). Não constitui pretensão do
autor construir uma utopia alheia às possibilidades humanas de transformação da
realidade, em notória dissonância da forma ocidental de lutar pela dignidade humana
descontextualizada dos modos de existência dos atores sociais.
A fim de elucidar as proposições contidas na quarta decisão inicial, o autor cita
expoentes utópicos, dentre ele Thomas More, responsável por cunhar um conceito
192

de utopia. O narrador fez da utopia instrumento de crítica de um presente dominado


pela censura e pela intolerância, em verdadeira afirmação da realidade de sua
época.
Além de More, Flores faz alusão a Ray Bradbury, crítico que sustentou a
urgência de se desgarrar o pensamento das “jaulas transcendentais e imutáveis que
sempre subjazem aos totalitarismos de qualquer traço ou cor” (FLORES, 2009, p.
33). Para isso, ao invés de classificar os estudos desenvolvidos por Bradbury como
utópicos, Herrera Flores os denominam de heteretópicos, que consiste em
considerar o existente como algo em constante transformação e situado em um
mundo concreto. Assim, a heterotopia classifica-se como a reapropriação do fluir e
da “possibilidade de mutação para conseguir condições que nos permitam devenir
outra coisa, devenir algo novo no marco da realidade e da época histórica na qual
vivemos” (FLORES, 2009, p. 34).
As quatro decisões anteriores caminham em prol da quinta decisão inicial, qual
seja, a indignação diante do intolerável deve nos induzir ao encontro positivo e
afirmativo de vontades críticas. É na quinta decisão que a teoria crítica entende por
ser forte e afirmativa. Nesse aspecto, apresentam-se três tendências essenciais que
devem ser superadas para diferenciar a teoria crítica de direitos humanos das
demais teorias hegemônicas.
A primeira delas reside na afirmação de que a pertinência de uma teoria crítica
não reside na construção de uma teoria geral dos direitos humanos, premissa
constante no decorrer do trabalho do autor. Em segundo lugar, referida pertinência
não significa desconsiderar toda e qualquer forma tradicional de abordagem dos
direitos humanos. Por fim, a terceira tendência a ser superada refere-se à
prescindibilidade de cumprimento efetivo de uma teoria crítica dos direitos humanos,
nem no presente e nem no futuro distante. Em referência a Boaventura de Sousa
Santos, Flores explica este último critério: “há que se ampliar e expandir as lutas que
se dão no presente e reduzir o plano das expectativas futuras” (FLORES, 2009, p.
38). A construção de uma teoria crítica dá-se no agora.
A sexta e última decisão inicial pauta-se em uma metodologia relacional, quer
dizer, nem tudo vale o mesmo. Nesse aspecto, a teoria crítica assume duas
proposições, ambas excludentes e inclusivas ao mesmo tempo. Explica-se: a teoria
crítica caracteriza-se por ser, de um lado, realista ao reconhecer a multiplicidade de
contextos que convivem no mundo; de outro, admite a exterioridade a respeito do
193

pensamento. Ao assumir um “realismo relativista”, o criticismo da teoria garante “a


aceitação positiva da pluralidade de interpretações, explicações e intervenções que
se dão nos múltiplos e diferenciados entornos de relações que conformam as
realidades [...]” (FLORES, 2009, p. 41).
De outra banda, a teoria crítica assume uma proposta de “relativismo
relacional”. A partir desse critério, os atores sociais que interpretam, explicam e
intervém no mundo não estão obrigados a assumirem a forma ocidental hegemônica
de reação frente às complexidades cotidianas. Ora, através do relativismo relacional
é possível reconhecer a pluralidade e a multiplicidade de ações e reações
culturalmente construídas. Vale dizer, por fim, que este critério visa empoderar e
permitir aqueles “que foram colocados em posições subordinadas nos processos de
divisão social, sexual, étnica e territorial do fazer humano alcançar o grau necessário
de autoridade para começar a dialogar em regime de igualdade substancial”
(FLORES, 2009, p. 42).

Considerações finais

Pode-se verificar que é evidente o potencial do conceito tradicional de direitos


humanos para defender os mais fracos e, principalmente, de defender os indivíduos
das arbitrariedades estatais.
Ainda que evidente as limitações da formulação tradicional, é ingênuo deixar de
lado, entretanto, o objetivo último dos direitos humanos, que é, de certa forma, a
tentativa de redimir os efeitos do desequilíbrio e das disparidades sociais hoje
vivenciadas de modo mais evidente.
É impossível deixar de lado, todavia, as críticas que se fazem ao seu conceito
engessado, uma vez que refletem uma perspectiva eurocêntrica e ocidental, ou
ainda, por representarem uma manipulação política com a finalidade justamente de
violar os direitos humanos em prol de seus próprios interesses individuais.
Ao propor uma interação cultural em substituição à universalidade jurídica
proposta a priori, Joaquín Herrera Flores faz nascer uma forma de se visualizar o
universo vivido, bem como de pensá-lo e concebê-lo de maneira intercultural,
pautada na universalidade como ponto de partida e não como ponto de chegada,
como se concebe na teoria tradicional.
Mais do que criar uma simples teoria, Herrera Flores propõe seis decisões que,
194

se levadas a cabo, serão responsáveis pela melhor organização dos momentos de


lutas sociais, efetivando, portanto, o caráter social dos direitos humanos.
Diante disso, o professor espanhol revela a importância de sua teoria que se
baseia na crítica à teoria tradicional e na propositura de um novo paradigma de
compreensão e utilização do potencial conceitual de direitos humanos,
transformando-os, dessa forma, em lutas sociais pela busca da dignidade humana.

Referências

COPELLI, Giancarlo Montagner. Resenha da obra Teoria Crítica dos Direitos


Humanos: os direitos humanos como produtos culturais. Revista Direitos
Humanos E Democracia. Editora Unijuí ano 2 n. 3 jan./jun. 2014 ISSN 2317-5389.
Disponível em:
https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia/article/vie
w/2555/2626.

FLORES, Joaquín Herrera. A reinvenção dos direitos humanos. Tradução de


Carlos Roberto Diogo Garcia, Antônio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson
Aparecido Dias. Florianópolis, Fundação Boiteux, 2009.

FLORES, Joaquín Herrera. Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos


humanos como produtos culturais. Tradução de Luciana Caplan, Carlos Roberto
Diogo Garcia, Antônio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson Aparecido Dias. Rio
de Janeiro: Lumen Juris Ltda., 2009a.

GRUBBA, Leilane Serratine. Os direitos humanos na visão de Herrera Flores.


Revista jurídica do CESUCA [S.l.], v. 3, n. 6, p. 12-27, abr. 2016. ISSN 23179554.
Disponível em: <http://ojs.cesuca.edu.br/index.php/revistajuridica/article/view/925>.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos


Humanos, de 10 de dezembro de 1948. Disponível em:
<http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso
em 25 de abril de 2017.

KORSCH, K. El método dialéctico de El Capital. In: UNZUETA, Gerardo. La


concepción materialista de la historia. Barcelona: Ariel, 1980.
195

NEM CENTRO, NEM CÍVICO: NARRATIVA VIVA E POPULAR DA COMUNIDADE


ESTUDANTIL SOBRE A SEMANA DO DIA 29 DE ABRIL

Lucas de Godoy Chicarelli66

Resumo: Com o objetivo de criar espaços no cotidiano para elaborar pensamentos,


ações, denunciar, combatar o silêncio, fortalecer os laços comunitários, os
processos de luta, resistir e compor67 a dura repressão ocorrida durante os protestos
da semana do dia 29 de abril de 2015 em Curitiba, foi desenvolvida no âmbito da
especialização em comunicação popular e comunitária da Universidade Estadual de
Londrina uma pesquisa que reuniu conceitos da comunicação popular e comunitária
e da história oral. O encontro interdisciplinar possibilitou contextualizar e conceituar
a ação direta da comunidade estudantil como forma de educação e de comunicação
popular e comunitária em contraste com o movimento de precarização da educação
pública68, a concentração dos meios de comunicação e a existência de uma classe
dominante no poder político do Estado69. Tendo como referências centrais as
reflexões de Paul Thompson70, Paulo Freire e Rozinaldo Miani71, desenvolvida ao
longo de 8 meses, a pesquisa resultou em 26 horas de áudio e aproximadamente
600 páginas de transcrição. Com uma metodologia que foi sendo alterada pelos

66
Jornalista, especialista em comunicação popular e comunitária e mestrando em comunicação visual
pela Universidade Estadual de Londrina.
67
Termo pensado a partir de Alistar Thompson, "composição da memória", é usado para descrever
um processo vivo e dinâmico de significação que vai além do recompor ou reviver e relaciona ação,
linguagem, passado, presente, singular, coletivo, tradição e cultura. (THOMPSON, 2006, p. 56)
68
A precarização da educação pública está em consonância com as políticas do Banco Mundial.
(LIMA, 2011, p. 86-94) é um processo moroso que, aos poucos, a formata sob preceitos neoliberais,
consolida o eixo privado, hipertrofia o controle empresarial e governamental, limita a autonomia e a
liberdade. (LEHER, 2005, 2014) O Paraná não foge a regra, entre 2003 e 2012, comprometeu grande
montante para a dívida pública, mas essa dívida aumentou. Em paralelo, desde o governo Lerner
(1995-2002) os recursos da educação superior pública vem sendo percentualmente reduzidos ao
comparar receitas e despesas. (REIS, BOSIO & DEITOS, 2015)
69
Ricardo C. Oliveira (2001) demonstra, em estudo histórico e genealógico, a presença constante das
famílias tradicionais na formação da classe dominante paranaense.
70
Entre os autores contribuíram na discussão da metodologia da história oral estão Paul Thompson
(1992), Antonio Torres Montenegro (2003), Marieta Ferreira e Janaina Amado (2002).
71
Em Paulo Freire buscamos o conceito de comunicação como encontro. (FREIRE, 1971, p. 67-9
apud MEDITSCH & FARACO, 2003, p. 27) E, para Rozinaldo Miani (2011), a expressão comunicação
popular e comunitária carrega um significado diferente de comunicação alternativa, de comunicação
popular ou de comunicação comunitária.
196

participantes, esse encontro, não só foi, mas também disparou processos de


comunicação popular e comunitária. Uma mostra itinerante de cartazes circulou por
espaços culturais, educativos e ocupações. A mostra mesclou relatos, fotografias, foi
acompanhada por conversas sobre o tema e possibilitou compor um pouco dessa
vivência. A seguir, buscamos manter a relação dinâmica entre pesquisador e
comunidade para compor as vivências compartilhadas sobre os três dias da semana
do dia 29 de abril em Curitiba. Combinando relatos pessoais e entrevistas, o objetivo
não é esgotar o tema, mas apresentar o material coletado e trazer à tona discussões
sobre o estudo de situações limite e o papel da repressão. Diante da necessidade de
síntese, a composição se dará da partida do ônibus até o final do dia 29 de abril.
Palavras-chave: comunicação popular e comunitária, movimento estudantil, história
oral

1 A narrativa viva conta sua história

No dia 26 de abril estudantes, professores e servidores partiram de Londrina


com o intuito manifestar em Curitiba posição contrária ao Projeto de Lei 252/2015
que propunha a alteração no regime previdenciário dos servidores estaduais:

E no caminho já tinha aquela placa acho que do pedágio fazendo uma


propaganda das vias do Paraná que é uma das mais caras dos pedágios
do Brasil, se não o estado mais caro do pedágio, e aí tinha lá: "As
transformações não param". Eu lembro perfeitamente [..] as
transformações não param e continuamos seguindo e a galera pilhada..
ANHAIA, Dayane. Entrevista 21. [jan. 2016]. Entrevistador: Lucas de
72
Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .wmv (122 min.) .

Fortemente armados com faixas, camisetas e cartazes, ditos “cidadões”,


desembarcamos boquiabertos. Isso porque antes de botarmos os pés na terra já
viamos a Assembleia Legislativa (ALEP) e o Palácio do Governo totalmente
cercados por centenas de policiais de diversas forças com suas intimidadoras
insígnias: Polícia Militar, BOPE, CHOQUE. Pisamos o chão em estado de alerta:

E.. aí foi muito tenso porque daí o dia todo foi de terror psicológico, né?

72
A transcrição completa das entrevistas apresentadas nesse artigo podem ser encontradas na
monografia apresentada em 2016. (CHICARELLI, 2016)
197

O que a gente mais viveu ali foi terror psicológico. Os caras passando
armados dentro do nosso acampamento, câmeras, os snipers em cima
dos prédios, sabe? Fotógrafos da polícia tirando fotos da gente ali, sabe?
E tipo toda hora gente querendo escutar o que a gente tava conversando
dentro do acampamento..

ALEXANDRINO, Watson. Entrevista 1. [out. 2015]. Entrevistador: Lucas


de Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .wmv (40 min.).

Após entrada festejada no centro cívico, saudados por dois carros de som da
APP Sindicato e pelos manifestantes que já estavam no local, iniciamos a montagem
das barracas sob a presença ostensiva de homens que se aproximavam
despretensiosamente em suas calças jeans, jaquetas esportivas e tênis nike:

No primeiro dia um estranhamento, porque é no primeiro dia que a gente


detecta a presença de policiais a paisana e a gente não tinha noção
disso. Os professores que ali estavam, já haviam feito esse relato e já
haviam nos alertado mas parecia para nós algo do outro mundo que
aquilo não era de fato real. Até que eu fui abordada por uma pessoa que
se apresentou como repórter, jornalista de um blog tal, e pediu que eu
fizesse uma análise do movimento e dissesse quem era a liderança ali.
Que eu desse o nome da liderança responsável por aquele ato e qual
era a nossa intenção. Ou seja, se a gente iria ocupar a assembleia ou
não.

FARIAS, Adriana M. Entrevista 26. [jan. 2015]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .wmv (63 min.).

A operação começou quando o juiz Eduardo L. Bana expediu interdito


proibitório à APP sindicato com ameaça de multa de R$100 mil diária por
descumprimento. O presidente da assembleia Ademar Traiano (PSDB) justificou a
ação: "Não podemos permitir que vândalos invadam essa casa e se retirem. São
sempre os mesmos, e os culpados acabam sendo os professores"(G1, 2015) 73.
Embora a constituição federal cite os direitos a igualdade e a liberdade de
expressão, em seu art. 5º, e o Regimento Interno da ALEP, em seu art. 109, diga
que “qualquer pessoa poderá assistir às sessões das galerias, desde que esteja
desarmada e guarde silêncio”74, estudantes, professores e servidores foram
proibidos de entrar. Dessa forma, acompanhamos a sessão da assembleia por meio
de uma retransmissão feita pelo caminhão de som da APP Sindicato e nos
manifestamos contrariamente ao projeto do lado de fora.

73
Voltaremos a falar a seguir sobre o uso de etiquetas como “comunistas”, “ptistas”, “vândalos”, “black
blocs” e “baderneiros” como parte da estratégia da repressão.
74
Disponível em: http://www.alep.pr.gov.br/legislacao/regimento_interno Acessado em: 20/01/2016.
198

É importante ressaltar que, ao contrário das acusações que nos foram feitas
publicamente, a formação de um grupo Black Blocs não foi nosso plano de ação,
pelo contrário, tinhamos esperança de que os gritos pacificamente emitidos no
“centro cívico” fossem ouvidos. Essa compreensão sobre a necessidade e
importância da tática black bloc só se tornou mais presente após a volta:

Depois disso tudo fui procurar o significado de black bloc e encontrei


uma página que se chama black blocs de Curitiba inclusive (risos). E eu
falei, olha só, eu tava errada esse tempo todo, black bloc não são essas
pessoas tão ruins que eu pensei a minha vida inteira. (risos) Aí eu falei
assim, quero ser black bloc agora, pode falar que eu sou black bloc que
eu não acho ruim mais.

MONTAGNINI, Giovanna F. Entrevista 10. [nov. 2015]. Entrevistador:


Lucas de Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .wmv (148 min.).

Acho que isso que eu mudei um pouco na minha cabeça. Porque eu


sempre fui muito, não tranquilo, mas bem paz assim sabe? Tudo eu
quero resolver tranquilo, tudo eu quero resolver na paz [..] percebi que
não adianta, que as vezes a gente tem que chegar lá e bater de frente e
lutar [..] isso que mudou em mim.

CARREIRA, Lucas P. N..Entrevista 14. [jan. 2015]. Entrevistador: Lucas


de Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .wmv (52 min.).

Que foi experiência [..] do primeiro dia, foi já o se prevenir, comprar


vinagre, comprar, fazer, aprender a fazer o gastrol pra aliviar as
queimaduras.. no rosto, nas partes do corpo. E.. Essa organização
assim acho que foi, sabe? Muito marcante para a universidade. Tanto
que a gente tem vídeos do Francischini acusando a gente de ser Black
Bloc, né meu? Uma organização que eu acho que também nem deveria
ser criminalizada né? Porque é uma que faz enfrentamento a um boneco
do Estado, uma polícia fascista, burguesa, que serve para defender a
burguesia, tá ligado?

ALEXANDRINO, Watson. Entrevista 1. [out. 2015]. Entrevistador: Lucas


de Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .wmv (40 min.).

Voltando ao dia 27, o clima parecia acalmar enquanto nos ocupávamos com os
pequenos afazeres da vida comunitária, cozinhávamos e o sol se dissipava. Após a
meia noite, porém, fomos acordados com um violento ataque policial:

Eu lembro que a princípio foi um dia [..] tranquilo [..] tinha um pessoal
ainda brincando [..] se não me engano jogando baralho..
Até na hora de a gente dormir, né (risos). E eu tava lá bem de boa,
achando que eu ia ter uma noite tranquila, gostosa, maravilhosa..
E aí eu lembro que ficou uma movimentação que eu não entendi nada do
que estava acontecendo. Aí eu levantei assim, meu, que que vocês tão
me acordando? Tava aqui bem de boa dormindo. E aí de repente eu só
sai e o acampamento inteiro, né? E aí eu só vi o pessoal do CONLUTAS
199

que tava ali do lado também saindo correndo: Acorda! Acorda! Acorda!

FERREIRA, Bruno H. P. MONTAGNINI, Giovanna F. Entrevista 10.


[nov. 2015]. Entrevistador: Lucas de Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1
arquivo .wmv (148 min.).

A gente começou a entender realmente o que tava acontecendo lá e o


que poderia acontecer [..] Daí uma galera pegou e.. fizeram um cordão
humano ali né. Todo mundo se abraçou ali e se ajoelhou ali. Aí que
começou a ficar um pouco mais tenso [..] os policiais geralmente
agarravam pelas pernas e pelos, pelos braços e erguiam as pessoas e
iam arrancando e jogando, né? [..] A hora que o policial veio. Eu peguei e
comecei a resistir mesmo, né? Foi muito engraçado porque daí veio um
tentou me tirar e não conseguiu. Veio outro e tentou puxar e não veio. Aí
veio um terceiro me pegou pelas pernas, aí não tinha o que fazer. [..] Aí
o que foi assim muito chato foi que a professora do meu lado ela
começou a xingar eles e a chutar. Aí foi nisso que um policial pegou ela,
acho que era uma patente maior, com tudo, segurou pelo colarinho, saiu
puxando, arrastando e jogou no meio da poça d´água. Aquilo lá foi
muito.. [..] me indignou muito. [..] me deixou até abalado [..] de raiva
mesmo, sabe? De ver como preferem representar um um um cara que,
digamos assim, é um ditador do que representar o futuro [..] que é pela
educação..
E eu me senti muito mal, assim, a hora que eu vi eles jogando ela..

RAMOS, Márcio R. V. Entrevista 2. [nov. 2015]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .mp3 (62 min.).

..cheguei lá na frente, fiz esse cordão, dando os braços, ficamos


sentados lá e a polícia militar falando e de repente vem a CHOQUE
marchando e já batendo no escudo assim e todo mundo sentado na
frente do caminhão. E eles chegam com o cassetete e começam a bater.
E daí a gente viu que sentado ali não daria, não teria como. E.. Daí a
gente começou a ficar em pé, tentando segurar os escudos e eles
empurrando. Daí teve uma hora que eu travei o pé no meio fio, deixei de
apoio, eu tava com a bengala, parei a bengala no escudo do policial,
como eu tava travando, e empurrava com os dois braços, não conseguia.
Daí, eu não sei, acho que ele cansou, travou o escudo com o braço e
com a outra mão por cima do escudo soltou o spray de pimenta na
minha cara. Daí no que ele soltou o spray de pimenta. É, ele deu uma
recuadinha assim no escudo, só pra poder pegar um embalinho e já
mandou assim um.. E eu já cai, já sai rolando, nem sei o que aconteceu.
Eu só sentia mãos segurando no meu ombro e, tipo, puxando, tirando
assim. Daí quando eu sai, cai lá, não tava conseguindo respirar, não tava
conseguindo enxergar. [..] tava ardendo de mais a minha cara.

LEITE, Franco P..Entrevista 22. [jan. 2016]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .wmv (98 min.).

Foi a primeira vez que tivemos certeza que nossa cidadania estava negada.
Proibidos de entrar na ALEP, de retransmitir o conteúdo das sessões por meio de
um carro de som, alvejados com spray de pimenta e arrastados pelo chão. O
sentimento de revolta aumentava. Mas, no dia seguinte a situação ficaria ainda mais
200

tensa.
No dia 28, a APP Sindicato tentou posicionar um novo caminhão próximo a
Assembleia. Para tentar impedir, o Estado reagiu de modo truculento, usando gás
lacrimogêneo, spray de pimenta, jatos d’água e balas de borracha. Muitas pessoas
sentiam pela primeira vez esse tipo de violência. Curioso é que esse ataque atingiu
até uma repórter da Rede Globo, no ar, ela foi obrigada a fugir do gás lacrimogêneo.
“O caminhão permaneceu mais distante do que se encontrava no dia anterior, tendo
sua chave sido confiscada pelo comando da Polícia Militar". (CALIL, 2015).

E.. A gente viu que tava vindo o ato e desceu lá para o redondo [..] já
começou a movimentação da polícia de querer fechar a rua [..] colocar
os carros na rua. [..] aí o caminhão chegou e a polícia descendo e, tudo
aquilo, será que vai ter conflito? Será que não vai ter? Aí nessa a gente
começou a [..] pegar o carro da polícia e [..] tirar ele da rua para passar
[..] vieram alguns policiais que eu acho que foi mesmo psicológico de
querer enfrentar ali uma multidão [..] sozinho ali com spray de pimenta e
a galera juntou esses policiais [..] abraçando eles mesmo e jogando de
lado, falando [..] deixa a gente [..] Não tinha um confronto tão direto
assim, uma raiva tão grande. Aí conseguimos tirar o carro da polícia. [..]
mas daí nisso, a hora que o caminhão tava vindo mais perto [..] a choque
avançou lá de longe. Aí eles já começaram a fechar assim em volta a rua
[..] Daí teve bomba [..] um armamento mais pesado [..] eu não sabia
como reagir as bombas [..] passei mal num momento, tipo, inalei
bastante.

BUTINI, Gabriel V. Entrevista 7. [nov. 2015]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .mp3 (42 min.).

Dada a intensidade violência policial, notamos que esse não se trata de um


acontecimento banal, mas sim uma situação limite75 que, não por acaso, ficou
conhecido como “massacre do dia 29 de abril”:

Ai nessa hora que você começa a aparecer, a polícia vem bem na veia
[..] eu senti o poder dela. [..] eu entrei na frente do caminhão lá com as
outras pessoas e chamando o caminhão [..] o caminhão começou a
avançar ali para a calçada, aí a polícia veio com toda a força [..] e
começou a bater e tacar gás lacrimogêneo e até então eu só escutava o
efeito desse negócio e eu nunca tinha sentido na pele. Nunca mais quero
sentir. O spray de pimenta é uma coisa que arde tremendamente, você
perde assim a respiração por conta da ardência das vias aéreas, só que
o gás lacrimogêneo esse é triste de mais. Eu pensei que ia morrer. [..]
São certas cenas assim que não saem da minha cabeça, eu nunca
imaginei que ia passar por isso, foi bem foda para mim. É, teve um
policial lá cara que ele ficou frente a frente comigo [..] Não esqueço da

75
“Estas situações são limites porque produzem muita tensão e obrigam as pessoas a viver situações
muito extremas, ainda que com o tempo vão se tornando “habituais”. (BERISTAIN, RIERA, 1993, p.
39, tradução nossa).
201

cara daquele cara e eu nunca vou esquecer [..] com o cassetete na mão,
numa mão, e a bomba de gás lacrimogêneo na outra. [..] ele tava atrás
de um cara com escudo. Só que, naquele vuco vuco aquele cara de
escudo saiu e esse policial ficou na minha frente com o cassetete e com
a bomba de gás lacrimogêneo e ele tava pronto para tacar. E aí eu fiquei
na frente dele e falei, não, não precisa disso, não precisa disso, tá todo
mundo saindo. E ele ficou "SAI SAI" com um olhar de ódio assim que eu
nunca vou esquecer. E aí que ele chegou, me deu um chute, aí eu caí no
chão, ele sentou o cassetete em mim e tacou a bomba [..] Assim, do meu
lado. E nisso, meu amigo, eu pensei que ia morrer. Eu nunca tinha
sentido nada parecido velho. [..] eu não conseguia mais respirar [..]
enxergar. Com uma ânsia de vômito tremenda. [..] parecia que tinham
ligado uma torneira de baba na minha boca e de muco no meu nariz que,
sem controle, começava a sair, sair e eu não conseguia respirar e
comecei a correr, tentar correr e cambaleando e capotando no chão e
aquela montoeira de gente já havia deitado no chão desmaiada, com a
máscara inteira vomitada e eu falei, meu Deus, to ferrado. E sai
correndo, quando eu tava desistindo já, foi meu anjo da guarda. O cara
chegou num momento e aí já me deu os [..] antídotos todos [..]. E
gozado, eu tava com o negócio na bolsa e não usei. Porque você não
tem reação cara [..] Não tem reação nenhuma. [..] E foi por conta desse
cara que eu consegui me safar.

GOUVEIA, Thiego P. Entrevista 15. [jan. 2016]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .wmv (71 min.).

No dia 29, a expectativa era grande pois corria a notícia de que o projeto de Lei
seria votado e, possivelmente, aprovado na assembleia legislativa. Entre os cerca de
20 mil manifestantes, estavamos diante de um efetivo policial ainda maior e que
parecia intransponível. Quando a votação do projeto de lei começou, ignorando a
voz popular do lado de fora, a situação saiu do controle. Estremeceram as grades de
contenção e durante as horas que se seguiram sentimos o ódio e a violência do
Estado que, por sorte, não resultou em mortes. Cicilia Peruzzo lembra que, para
existir, cidadania pressupõe também direitos de expressão e de interferir na política:

Em direito internacional cidadania diz respeito à nacionalidade: o direito


de pertencer a uma nação. Para além dessa noção, cidadania incorpora
a garantia de se ter: a) proteção legal – na perspectiva da igualdade,
como a de que todos são iguais perante a lei; b) o direito de locomover-
se - ir de um lugar para o outro livremente; c) participação política - votar
e ser votado, interferir na vida política; d) direito de expressão.
(PERUZZO, 2015)

Rasantes do helicóptero, cassetetes, chutes, spray de pimenta, jatos d´água,


bombas de gás, bombas de efeito moral, canhões sonoros, balas de borracha.
Rasantes do helicóptero, cassetetes, chutes, spray de pimenta, jatos d´água,
bombas de gás e bombas de efeito moral que eram atiradas cada vez mais para
frente, inclusive no meio das barracas, na escola e locais onde as pessoas feridas
202

buscavam por auxílio médico, bombas de gás, balas de borracha. E a cena se


repetia. Certa altura, a notícia de que um professor teria sido assassinado gerou
uma profunda tristeza e certo estado de pânico. Correndo, procurei os colegas da
imprensa e tirei um imenso peso, a informação não se confirmou. O frio aumentava
a dor. Estudantes da UEL, em um misto de medo, dúvidas e desorientação,
decidiram ir até suas barracas pegar blusas e alimentos. Quatro deles foram presos
por dezenas de policiais a paisana. Antes de serem amontoados na parte traseira de
um camburão e encaminhados à delegacia, foram arrastados para uma sala fechada
no Palácio do Iguaçu, lá foram humilhados em cenas que lembram a ditadura:

Ah, tá comigo. Te peguei [..] Seu black bloc. Aí eu fiquei desnorteada [..]
sem saber o que que o cara tava falando porque tava sem farda ainda,
né? Aí nessa hora eu me toquei que era policial disfarçado, tipo, caiu a
ficha. Sabe? Tudo. E ai.. Foi até engraçado porque eu ria, assim, eu
fiquei, tipo, o quê? Que que você tá falando? daí eu só falei assim para
ele: moço, eu chamei de moço (risos). Eu falei moço eu não sei o que
você tá falando, para onde você tá me levando? daí ele, ah, você é Black
Bloc, você tá de preto. E eu tava de cinza, um suéterzinho cinza e uma
calça verde. [..] me senti numa cena de filme [..] que eles colocam em
silêncio tudo em volta [..] vi eles levando a gente no palácio [..]
Lembro [..] duas mulheres assim, entraram na sala e olharam para mim e
elas falaram, ah, essa daí? Eles falaram: é. Aí elas falaram vem comigo.
daí me puxou pelo braço assim, eu não sabia o que ia acontecer.
Puxaram pelo braço e aí começaram a meio que me empurrar assim
para ir para uma salinha [..] eu lembro que nessa hora eu falei para o
pessoal, tipo, ó, as bolsas com vocês [..] não deixa levarem embora,
sabe? Porque eu tava com medo deles [..] forjarem provas [..] Mas aí
não aconteceu isso porque a gente falava toda hora para a gente
carregar as bolsas.
..elas ficavam meio que empurrando eu para ir para a salinha. Aí chegou
na salinha, elas fecharam a porta, eu nem imaginava o que ia acontecer,
quer dizer, tinha uma ideia né? Que era para a revista mas não
imaginava que ia ser de tirar a roupa toda né? Aí elas falaram ah, tira a
roupa. Ai.. Eu falei, perguntei né? O que que eu fiz? Porque que tavam
fazendo aquilo? Elas ficavam me xingando de vadia, de vagabunda,
manipulada, falaram que eu era manipulada pelo PT e que não tinha
nem ideia do que tava acontecendo. [..] E nessa hora passa mil coisas,
você pensa em todas as situações que é possível para você estar ali.
Tipo, o que é que você fez para você estar ali. E você acaba até
pensando que você fez mesmo alguma coisa, sabe? É uma pressão
psicológica muito grande que fazem.

ALIPRANDINI, Camila Z. Entrevista 11. [nov. 2015]. Entrevistador:


Lucas de Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .wmv (42 min.).

A participação de docentes, estudantes e servidores foi negada ou ignorada


pelos pela maioria dos políticos eleitos. Optaram por decidir o que lhes interessava
mesmo diante do eco da rejeição que a reforma da previdência tinha no Estado, do
terror das bombas e tiros do lado de fora:
203

Teve deputado que falou que lá fora era outro mundo do que tava
rolando ali dentro. Sendo que [..] era totalmente junto [..] tava
acontecendo só por causa do que estava acontecendo lá dentro. E acho
que, sei lá, foi uma parada que marcou pra caralho assim. Até para o
curso [..] três dias de aula assim que valeu por mais esses dois meses
de greve [..] por várias paradas assim que marcaram para outras coisas
que virão pela frente, outros confrontos que virão com certeza, porque o
governo não recuou, ele só avançou mais. Então eu acho que vai
continuar, acho que eu vou ver na minha vida porque é uma coisa bem
difícil a galera, tem poucas pessoas que querem realmente mudar
alguma coisas assim e que vão mesmo.

BUTINI, Gabriel V. Entrevista 7. [nov. 2015]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .mp3 (42 min.).

Apesar do esforço popular, ficou evidente o desequilíbrio na correlação de


forças entre Estado e movimentos sociais. Imediatamente após o conflito teria vindo
à tona sobre a comunidade certo sentimento de inferioridade, de impotência,
sobretudo diante da funesta comemoração noturna da tropa de choque:

Ah, isso mostra como que a nossa organização é [..] totalmente inferior
perto do aparato repressor que o Estado tem [..] Acho que o que me
marcou foi depois de tudo, a gente recolhendo acampamento, eramos
um dos últimos a sair assim. Isso foi o ápice pra mim. Eu senti na pele o
sentimento de como que é [..] um homem bomba. Tá ligado? [..] você tá
lá num país e sua família inteira, seus amigos são arrasados por uma
bomba. E é totalmente desproporcional ao que você tem ali no momento.
E você se sente muito inferior a isso e não tem o que fazer. Foi o
sentimento de inferioridade que eu senti quando a choque se organizou
lá no lado da praça e eles fizeram uma marcha assim, meio que uma
dinâmica entre eles e eles começaram a bater os cassetetes no escudo
assim e começaram a gritar: "Choque!" E era muito forte: "Choque!"

BOLIGIAN, Artur. Entrevista 22. [jan. 2016]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .wmv (98 min.).

2 A Repressão: Características, Consequências e Questões Éticas

Esse tipo de trauma ou sentimento pode surgir após situações limites. Por isso,
preocupações e questões éticas se apresentam ao pesquisador dessa temática;
Para resistir e manter processos transformadores, é importante que as comunidades
também pensem as consequências e objetivos da repressão.
Observando experiências ditatoriais e situações limite que ocorreram na
América Latina, Carlos M. Beristain e Francesc Rieira definem as consequências da
repressão e desenvolvem propostas de trabalho em grupo para superar os traumas
da violência. Para os autores, a repressão política é intensa hoje na América Latina
204

mesmo diante das democracias e tem uma série de finalidades. Entre elas: Romper
o tecido coletivo, solidário, identitário e fazer com que as pessoas deixem de
participar das ações comunitárias, controlar o inimigo interno culpabilizando as
pessoas e grupos para legitimar a repressão, intimidar a população estendendo o
medo a familiares e membros da comunidade, implantar a impunidade e transformar
a população em colaboradora. (BERISTAIN, RIEIRA, 1993, p. 23-30).
Os grupos populares, quando organizados, põe em xeque a autoridade e
passam a exigir a redistribuição das riquezas e participação na gestão política. Mas,
a classe dominante precisa da submissão para impor medidas que permitam manter
um processo de exploração, ou seja, a apropriação de riquezas pela minoria
dominante. A repressão é utilizada tanto para quebrar as convicções pessoais
quanto romper os processos de unidade das comunidades que demonstrem ter as
mesmas necessidades, os mesmos ideais, em uma verdadeira guerra psicológica:

Tanto a guerra de baixa intensidade (ganhar corações e mentes) quanto


o da guerra suja (“..morrerão tantos argentinos como seja necessário
para a preservação da ordem..” Gral. Videla) respondem a esse objetivo.
Se originam no esquema das chamadas guerras convencionais e usam
todos os métodos possíveis, implicando a utilização de qualquer recurso
contra a população. (BERISTAIN, RIEIRA, 1993, p. 26, tradução nossa).

Os governos e os aparatos armados do Estado afirmam que o inimigo mais


importante a ser combatido é o inimigo interno: os grupos insurgentes. E passam a
qualificá-los sempre de forma depreciativa como “baderneiros”, “insurgentes”,
”“terroristas” ou “comunistas”. O objetivo dessas etiquetas é levar a crer que a
repressão é necessária ou, ao menos, aceitável. Além disso, expressões como “se
ele foi preso é porque deve ter feito algo” são difundidas como forma de culpabilizar
as pessoas com uma mensagem que desde que não se mobilize, nada acontecerá.
(BERISTAIN, RIEIRA, 1993, p. 27, tradução nossa).
Essa compreensão e o uso dessas “etiquetas” de que os estudantes seriam os
“black blocs”, “baderneiros”, “manipulados pelo PT” se evidenciou no pedido de
interdito proibitório, manteve-se no momento da prisão, nas suas revistas vexatórias,
até a denúncia infundada76 em coletiva de imprensa77:

76
Um documentário interessante que discute a formação de montagens policiais chama-se “Caso
bombas”, ele relata montagens policiais que vem acontecendo no Chile desde a ditadura militar até
os anos mais recentes e vincula essas montagens com uma estratégia militar. Disponível no youtube
em: https://www.youtube.com/watch?v=jtjI-DDyWwc
205

Nisso eu fiquei sabendo que saiu um vídeo que eu sai e o Francischini


tava acusando a gente de Black Block [..] Falaram que tava fazendo
bomba de cal.. Os caras são muito burros né? Bomba de cal você põe o
pozinho lá, chacoalha e joga. Você não armazena, né? A gente tava
armazenando. [..] pareciam que tavam buscando [..] justificar a ação
violenta deles.
MIKOS, Amanda. Entrevista 3. [nov. 2015]. Entrevistador: Lucas de
Godoy Chicarelli. Londrina, 2015. 1 arquivo .wmv (45 min.).

E o Francischini inclusive, eu lembro de quando eu fui preso, tava na


78
delegacia de polícia, ele tava no andar de cima dando ordem de que
prendessem a gente por formação de quadrilha. Para que a gente
ficasse na cadeia um dia pelo ou menos porque esses marginais
precisam de não sei o quê de não sei o quê. Aí vem os soldadinhos dele
passando telefone sem fio. De ouvido em ouvido até chegar na gente
que a gente precisava ser preso porque é inadmissível aquela atitude,
que nós éramos black blocs, era formação de quadrilha e que a gente já
tava preparando isso, né? [..] A gente ficou mais de seis horas lá. Foram
mais de seis horas e eu acho que ele estava tentando fazer o intermédio
entre a gente e o advogado que chegou lá. [..] Parece que foi uma
tentativa de incriminar, porque ele tava muito bem preparado. O que que
foi aquelas fotos, aquelas imagens né? [..] Porque o fato era que nós não
estávamos fazendo bomba, estávamos fazendo o contrário. Estávamos
ajudando as pessoas que estavam tomando bomba. Porque o gastrol era
basicamente isso. Era um medicamento para você limpar o rosto para
você conseguir ter um alívio..

DELASTA, João Paulo. Entrevista 28. [fev. 2015]. Entrevistador: Lucas


de Godoy Chicarelli. Londrina, 2015. 1 arquivo .mp3 (43 min.).

A repressão não se dirige apenas às pessoas diretamente atingidas, mas


também ao grupo familiar e à comunidade em que ela se insere. O medo se torna
um dos maiores mecanismos de controle político. (BERISTAIN, RIEIRA, 1993, p.
27-28, tradução nossa). A sua difusão gera desconfiança, medo e faz com que
algumas pessoas até deixem de participar das atividades comunitárias:

Mas aí depois, com as coisas que aconteceram comigo, sabe? Gente me


seguindo mesmo, sabe? E eu tenho certeza que seguiram, não foi
paranoia mesmo, sabe? Gente vindo falar comigo no face, fingindo que
era amigo e aí depois eu vi que, a gente viu que não era daqui, era de
Curitiba. Então, isso tudo me assustou muito e foi me deixando com

77
Notícia completa disponível em:
http://www.paranaonline.com.br/editoria/policia/news/875924/?noticia=FRANCISCHINI+COLOCA+A+
CULPA+EM+BLACK+BLOCS+POR+GUERRA
78
Não foi possível constatar em nenhum outro registro a presença do Francischini na ocasião, o
objetivo do estudo entretanto não é registrar uma história oficial, mas sim destacar a forma como os
estudantes viveram e sentiram esses momentos, a imaginação e o exagero em alguns relatos, se
existem, podem ser indícios do medo e do terror vividos durante esses três dias.
206

medo sabe? Com medo de participar das assembleias que teve depois,
com medo de sair de casa. [..] Foi pra mim acho que a violência
psicológica foi mais pesada assim porque eu ficava com medo de sair de
casa [..] E eu acho que muita gente tem isso diariamente só que eu
nunca tive isso então para mim foi um baque muito grande mesmo e que
eu não queria sair de casa. E quando eu saia eu saia com medo, sabe?
Tanto é que chegou minha família assim com muito medo também. E,
nossa, eu senti que minha vida não ia voltar ao normal, ao que era antes,
sabe? Se eu não parasse e desse um tempo de tudo isso, sabe? [..]
Então tipo o ambiente pelo ou menos em casa tava péssimo, sabe? [..]
Ficou uns meses assim. Mas aí quando eu parei, então eu vou parar de
ir nas reuniões porque só assim, porque eu tava sofrendo pressão da
família para parar, sabe? Por mais que eu queria continuar na militância,
[..] então eu acabei resolvendo [..] me afastar. [..] Mudou o rumo da
minha história. Porque eu acho que eu sou uma pessoa totalmente
diferente depois daquilo [..] E acho que [..] a paixão pela psicologia
cresceu um pouco [..] como poderia ser minha militância como profissão.
Então, isso que eu acho que foi o mais bonito que aconteceu, sabe?

ALIPRANDINI, Camila Z. Entrevista 11. [nov. 2015]. Entrevistador:


Lucas de Godoy Chicarelli. Londrina, 2015. 1 arquivo .wmv (42 min.).

A impunidade, nesses casos, supõe o convencimento de que nada e ninguém


será responsabilizado por tantas violações, o convencimento de que a autoridade
exerce um controle total obriga que as pessoas fiquem sem alternativa a não ser se
adaptar e colaborar para sobreviver. Por isso, trata de diluir as responsabilidades. O
torturador não é culpado porque recebeu ordens, seu chefe tão pouco porque as
ordens vem de cima e até o último escalão. Geralmente nesse último escalão
encontramos uma direção coletiva repleta de desculpas sem respostas. No limite
tenta-se justificar que a violência, a tortura ou o desaparecimento não são normais,
mas que foram necessários para fazer frente a extrema esquerda, ao caos.
Mensagens como somos todos responsáveis pela situação de crise ajudam a manter
e esconder e manter a impunidade. Dessa forma, a impunidade não é apenas a
ausência de investigações por parte do Estado, é também uma estratégia para
eliminar a ideia de que as pessoas tem poder para fazer sua própria história.
(BERISTAIN, RIEIRA, 1993, p. 28-29, tradução nossa).

Devo admitir que é um momento de muita dificuldade. Tenho passado


por momentos tensos, de certa forma abalado com o que aconteceu,
imagens e cenas lamentáveis que ninguém desejava. E posso te garantir
que eu tenho sofrido muito. Acho que quem saiu mais machucado, ferido
de todo esse confronto que houve fui eu. Eu fui ferido na alma, até
porque não compactuo com violência, com agressão.
O que eu soube é que teria um isolamento da assembleia e iriam proibir
a invasão do parlamento. Não imaginei que viriam tantas pessoas,
pessoas estranhas ao movimento. (grifo nosso)
207

79
Beto Richa em entrevista concedida para a RPC TV .

Esse sentimento e esse tipo de concepção foi citado durante as entrevistas


como presente entre os próprios manifestantes e gerou algumas discordâncias em
Curitiba, pois, alguns já tinham uma crítica maior ao papel da polícia:

..eu sei muito bem qual o tratamento que a polícia tem. Sobretudo por
ser negro, sobretudo por ser pobre, por vir da periferia, por morar ainda
na periferia em São Paulo. A polícia nunca chega para trocar ideia de
boa comigo. Porque eu já sou para eles o suspeito padrão, né? Olham
já, o que chega antes quando ela me vê é a cor da minha pele. Então por
eu ser negro eles já vem suspeitando e sempre vão abordar de uma
forma truculenta. Ah, o que você tá fazendo aqui? Ah, eu sou tal pessoa,
eu sou estudante da Universidade Estadual. Ahh, estudante? Tu é
estudante memo? [..] Mas eu não acreditava que a polícia seria tão
truculenta justamente por ser uma manifestação de professores. [..] E de
fato muitos professores e professoras [..] traziam essa perspectiva [..]
Eles tão entendendo a gente porque o Governador não tá dando
aumento que eles querem e tal. E a gente sempre falava enquanto
Levante, cantava as musiquinhas de agitação falando que ela é injusta,
80
que ela é racista, que ela mata e é a polícia e tals. Porque [..] o Levante
tem uma maioritária gente preta. E uma majoritária gente preta e pobre
que tá ocupando os espaços das Universidades [..] Então a gente [..] tem
uma relação muito zoada com a polícia. Entendeu?

SANTOS, Juarez B. Entrevista 17. [jan. 2016]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2015. 1 arquivo .wmv (43 min.).

Esse entendimento do papel da polícia e do Estado no cotidiano parece ter sido


melhor compreendido entre os estudantes, sobretudo após a volta:

Porque eu acho que quando a gente voltou muita gente ficou muito
revoltada com a polícia militar porque o policial militar, o que tá lá na
linha de frente e que tava tacando bomba as vezes ele também é uma
pessoa que é mal remunerada, é uma pessoa que expõe muito a vida
dele para servir um Estado, Para servir um propósito fascista do Estado.
Enfim, eu não sei. É foda você criticar a pessoa. Mas a polícia militar é
uma instituição que não deveria existir. Não devia existir polícia militar
mais. Devia ter acabado junto com a ditadura.

PANHO, Isabella A. Entrevista 5. [nov. 2015]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2015. 1 arquivo .wmv (55 min.).

No retorno esses sentimentos contraditórios, o medo, o receio, a vontade de


lutar ainda mais, a impotência, todos eles se misturavam no seio da comunidade

79
Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/quem-saiu-mais-machucado-fui-eu-diz-beto-richa-
sobre-acao-violenta-da-pm-contra-professores-16104091
80
Referindo-se a sua organização: Levante Popular da Juventude.
208

estudantil:

De Curitiba para Londrina [..] sonhei a noite inteira que eu tava lá no dia
29 de abril [..] não tinha fome [..] Não conseguia pensar em outra coisa
se não o que eu tinha passado lá.

MARTINS, Sandy C. Entrevista 8. [nov. 2015]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2015. 1 arquivo .wmv (36 min.).

Mas, os próprios estudantes notaram isso e passaram a adotar uma série de


medidas como forma de manter os laços comunitários e seguir vivendo. Cada
pessoa desenvolveu uma forma de lidar com esses sentimentos e a comunidade
estudantil elaborou formas em conjunto. A primeira foi o diálogo com amigos e
familiares. Também destacaram-se nas entrevistas, a escrita de relatos individuais e
coletivos, a organização de reuniões presenciais para chorar e desabafar sobre o
vivido, o prosseguimento das lutas, a organização de performances e eventos com o
objetivo de denunciar a violência do Estado, a organização de festas, como o bar
fundo de greve, e encontros informais para aliviar as tensões. Entre outros.
Isso pode ter ocorrido pois a memória é um processo ativo que envolve
compor, a partir das concepções presentes, o passado. É por isso que uma mesma
vivência pode ser contada de formas diferentes, a pessoas diferentes, em diferentes
ocasiões e períodos. As situações limites e experiências traumáticas produzem
diferentes consequências. Algumas pessoas jamais voltam a tocar no assunto,
outras passam a ser atormentadas cotidianamente por lembranças, sensações e
pesadelos, uns tentam produzir sentido por explicações políticas. Compor pode
trazer à tona essas situações e, por isso, é tão perigoso quanto importante e exige
uma habilidade especial de quem escuta. (THOMPSON, 1992, p. 154-208)
Para o psiquiatra norte americano Robert Butler, que começou em 1955 a
gravar entrevistas, existem vantagens terapêuticas e riscos de rememorar o
passado. Para ele, a lembrança é parte de um processo universal que permite a
reavaliação de conflitos passados e o restabelecimento da autoidentidade,
entretanto, não existem soluções mágicas ou automáticas:

Quer mediante entrevista individual, quer mediante discussão em grupo,


"eles podem refletir sobre suas vidas com o intento de resolver,
reorganizar e reintegrar aquilo que os está perturbando ou
preocupando". Tanto quanto o jovem, o idoso precisa ter oportunidade
de exprimir seus sentimentos, conversar sobre seus problemas, elaborar
suas tristezas; [..] em alguns casos a rememoração pode se tornar um
209

problema para algumas pessoas, a oralidade pode levar a uma


"rememoração compulsiva" que está "dominada por tristes lembranças",
pessoas assim podem até ser prejudicadas pela terapia em grupo,
necessitando, as vezes, de um acompanhamento profissional. [..] "Em
suma, não há soluções automáticas: "cada pessoa tem que ser
considera de modo especial". (1963, apud TOMPSON, p. 209-215,
Grifo nosso)

Alistar Thompson, Michael Frisch e Paula Hamilton, ao se questionarem sobre


o dilema ético que se impõe ao pesquisador, sugerem uma resposta simples. Deve-
se partir de uma regra fundamental em que o bem-estar do entrevistado prevaleça
sempre sobre os interesses da pesquisa. Outra alternativa seria envolver as pessoas
na exploração do significado de lembrar e no que fazer com as memórias para torná-
las ativas, ou seja, mais que meros objetos para colecionar e classificar.
(THOMPSON, FRISCH, HAMILTON, 2006, p. 70-71).
É interessante observar também o conceito de comunicação terapeutizante
cunhado por Reginaldo Moreira (2011). Ao elaborar programas de rádio com
usuários da saúde mental, conclui que a comunicação, embora não seja a solução
para todas as questões, pode ser uma forma de ressarcimento do direito à livre
expressão e de capacitação ao estimular a coragem, a autoestima, a auto-
organização que propicia a redução de preconceitos, a aceitação do diferente.
Paul Thompson (1992, p. 197-215), por sua vez, discute as potencialidades e
limitações do papel terapêutico dos projetos de história oral, ressaltando a
importância de um ouvido atento, solidário e conclui sobre essa questão que não
existem soluções automáticas, sendo que, com uma série de cuidados, cada
situação e cada pessoa tem que ser considerada de modo especial.
Nesse sentido, em duas entrevistas em especial, me senti preocupado com a
reação dos entrevistados. Em uma, a respiração do entrevistado parecia tão pesada,
os tempos tomados antes de iniciar as respostas estavam se tornando tão longos
que eu me vi obrigado a mesclar as perguntas sobre as memórias e os pontos
positivos como as questões de organização coletiva e solidariedade. Em outra
entrevista, em que um estudante relata que até hoje sente no corpo as dores do dia
29, também preferi não interferir, nem questionar muito as respostas:

E aí você começa a transferir a culpa pra você e a culpa não é sua,


(risos), né? A gente não fez nada de errado, muito pelo contrário. Né? E
é isso que eles querem, né? [..] e aí eu lembro que eu voltei pra cá, com
toda essa sensação assim, com essa marca gravada em mim, na pele,
literalmente na pele. [..] assim que eu voltei eu comecei a ficar mal e
210

comecei a sentir dores. [..] pequenas que foram aumentando ao longo do


tempo [..] e agora eu to com dor generalizada no corpo [..] E eu fui no
médico e tal, nenhum exame deu positivo, e o que todos eles me
perguntaram foi 'você teve algum trauma recentemente?' Eu falei que
tive, tive um trauma. Então ele falou "então, é bem provável que tenha
alguma relação, porque é emocional essa dor". [..] Eles machucaram a
nossa pele, mas muito mais do que isso, sabe? Machucaram tudo que a
gente tinha de esperança, né? Mas ao mesmo tempo fortaleceram [..]
Não que eles me fortaleceram, eles me destruíram! Mas eu me fortaleci
perante isso porque a dor transforma também, né? E.. E eu acho que é
isso, cara, é isso que eu tenho pra dizer.

GARIB, Gabriel S. Entrevista 19. [jan. 2016]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .wmv (14 min.).

Em um primeiro momento essa foi a forma mais segura que encontrei para lidar
com a situação. Em um mundo ideal, novos encontros poderiam desencadear
processos e ajudar na composição dessas memórias. Como não foi possível fazer
novas entrevistas dentro do prazo para a conclusão da pesquisa, continuei em
contato com essas pessoas no cotidiano e pude ver como, aos poucos, estavam
superando suas dores e falando com mais facilidade sobre esses temas.
Mesmo assim, essa pesquisa foi também uma oportunidade de compor a
situação limite, contribuiu nesse processo e pode ajudar a combater o silêncio:

Mas foi assim terapêutico, porque eu nunca tinha conversado com


ninguém assim, acho que depois, porque eu não participei dessa terapia
de choque que foi voltar pra UEL e fazer as paradas. E eu nunca tinha
falado mais com ninguém, tinha falado com a minha família, eles não vão
mais acreditar em política, não tão mais acreditando, ninguém mais
acredita e acho que foi massa, foi mó terapia, acho que o que você tá
fazendo é bem importante.

ANHAIA, Dayane. Entrevista 21. [jan. 2016]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .wmv (122 min.).

Tem que contar essa história, tem que contar o que aconteceu,
entendeu? Não pode passar impune. E essa é uma forma de começar a
trabalhar a mentalidade dessa galera que vai nos substituir futuramente
para pensar, ó, aquilo não foi justo e o que está acontecendo também
não é. Como que a gente vai mudar? Entendeu? E precisa desses
relatos, não pode deixar passar em branco. As fotos, as entrevistas do..
né? De tudo que a gente viveu..

RAMOS, Márcio R. V. Entrevista 2. [nov. 2015]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .mp3 (62 min.).

No que você disse, de ah, o que faria de para mudar o mundo? Escrever
uma memória disso é uma delas. E eu acho que você tá fazendo, então
eu acho que é por esses caminhos mesmo. Eu acho super importante,
principalmente diante do que aconteceu tem que ser relatado, tem que
211

ser guardado, já ficou, mas a gente não pode deixar apagar a chama,
né? Não pode deixar daqui dois três anos, falar que dia 29 de abril não
foi dia 29 de abril. (risos). Entende?

SOUZA, Carlos H. E. Entrevista 21. [jan. 2016]. Entrevistador: Lucas de


Godoy Chicarelli. Londrina, 2016. 1 arquivo .wmv (122 min.).

Considerações Finais

As 40 pessoas entrevistadas nesse estudo, nesse sentido, permitem realizar


um dos objetivos da história oral: desfazer distorções na forma como a história é
contada. É constatado, por exemplo, que haviam outras categorias presentes no dia
29 de abril, como estudantes e agentes penitenciários, que a ligação com o Partido
dos Trabalhadores ou a tática Black Bloc não existia previamente e que não
motivaram a ida a Curitiba.
Essa possibilidade, é claro, só se dá parcialmente, uma vez que os estragos e
objetivos da difusão ampla de mentiras e/ou versões duvidosas, sem a devida
conclusão das investigações, já tenha sido alcançada.
Durante a análise das entrevistas, outros temas geradores surgiram e
sugeriram a necessidade da análise mais atenta. A violência policial no cotidiano é
uma das que grita aos olhos. Essa polícia militar que reprimiu estudantes,
professores e servidores durante a semana do dia 29 de abril, não deixou de existir
após a data, mas, na opinião de alguns entrevistados, saiu de frente das câmeras e
segue tão perversa, ou mais, nas periferias e no dia a dia das cidades paranaenses.
O estudo permite analisar a relação de poder estabelecida entre o movimento
estudantil e o Governo do Estado durante a semana do dia 29 de abril. Na ocasião,
até mesmo a informação sobre o que estava sendo discutido na assembleia foi
sonegada com a retirada do carro de som, a participação estudantil na política
estadual não se deu nem mesmo no menor nível, da informação 81.
Foi possível também indicar algumas características da repressão sobre as
comunidades e identificar algumas formas pelas quais a comunidade estudantil
buscou superar essas marcas deixadas pela violência. A repressão, nesse sentido,
busca fazer com que as pessoas percam suas identidades e se tornem

81
Peruzzo (1995) define o termo participação como "o acesso, o tomar parte, o partilhar", cita
possíveis níveis de participação que vão desde o menor, da informação até o maior, da autogestão e
propõe uma separação em três modalidades de participação popular: A participação passiva, a
controlada e a participação poder.
212

colaboradoras das classes dominantes. A comunidade estudantil, por sua vez, criou
de forma espontânea uma série de dinâmicas que foram desde assembleias até
ações diretas para conviver com essas marcas e seguir lutando.
Essas experiências também são importantes, pois como indicado em diversas
entrevistas, a força repressora do Estado não deixou de existir após a semana do
dia 29, mas segue fazendo suas vítimas. Nesse sentido, outro contexto que nos
parece importante investigar são as consequências e contextos dessa militarização
sobre o cotidiano das comunidades e classes subalternas.
Nesse sentido, a metodologia da história oral é mais uma ferramenta que pode
ser apropriada pelas comunidades. É uma forma mais participativa de se narrar o
vivido. Ao difundir a sua versão dos fatos, as comunidades estão combatendo o
silêncio, disputando significados e auxiliando a desfazer as possíveis distorções
impostas pelos setores dominantes, sobretudo num contexto de concentração dos
meios de comunicação. Mais que isso, estão criando espaços de troca de
experiências, tão fundamentais para os processos de luta.
O estudo dos contextos, a análise das entrevistas e das experiências permitiu
apontar duas dimensões políticas em contraste: por um lado, a comunidade
estudantil que busca autogerir suas lutas, por outro, a política de um setor
dominante do Estado que se considera no direito de usar o monopólio da força
policial para impor seus interesses. Dessa forma, a auto-organização comunitária e
a ação direta como forma de organização, educação e comunicação, embora difícil,
repleta de obstáculos, parece ser a via de expressão política possível para as
comunidades formadas nas classes subalternas. No retorno daqueles que
acreditaram na cidadania algumas coisas se notam. No olho, lágrimas, no corpo,
marcas da violência, no coração, desafio de transformar a dor em combustível para
se organizar e se unir por transformações sociais mais profundas: Aquele lugar não
é centro, nem é cívico. A cidadania possível no Paraná parece ser aquela a ser
conquistada nos processos de luta.

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213

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10733%3Asubmanchete050515&catid=72%3Aimagens-rolantes. Acesso em
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CALIL, Gilberto. História imediata e marxismo. Disponível em:


http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S23.0410.pdf. Acesso em
12/08/2015.

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THOMPSON, Paul. A voz do passado:história oral; traduçio Lólio Lourenço de


Oliveira. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
215

COMPLEXO INDUSTRIAL-PRISIONAL E ENCARCERAMENTO EM MASSA: A


RESISTÊNCIA DOS TRABALHADORES À ONDA PUNITIVA

Pablo Polese82

Resumo: Exponho algumas das características do complexo industrial-prisional dos


Estados Unidos da América, com destaque para os elementos que tornam um
“modelo” de gestão lucrativa do cárcere, o qual implica no encarceramento em
massa de trabalhadores, em especial negros e imigrantes. Num segundo momento,
descrevo algumas das lutas sociais levadas a cabo pelos presos estadunidenses,
que em 2016 fizeram a maior greve de presos da história. Por fim, teço alguns
comentários sobre a exportação desse modelo para outros países, incluindo o Brasil.
Palavras-chave: complexo industrial-prisional, encarceramento em massa, greve de
presos

Do ponto de vista dos interesses dos trabalhadores, a tendência à privatização


dos serviços públicos encontra na indústria prisional um de seus capítulos mais
nefastos. Toda prisão, seja estatal ou privada, é por sua essência algo destrutivo e
desumano, mas quando a motivação da gestão prisional se desloca para a lógica do
lucro os tradicionais maus-tratos aos prisioneiros se potencializam, não apenas no
cotidiano da prisão, mas a começar pela própria lógica de encarceramento em
massa que leva mais pessoas a serem presas. No que tange a essa lógica os EUA
são o modelo mundial mais avançado, tendo-o exportado para Brasil, China e
Rússia, e esforçando-se, atualmente, para que seja adotado na União Europeia.
Comentando os profundos estudos de Loïc Wacquant acerca da “onda punitiva”
estadunidense, Vera Malaguti fala em exportação do “vento punitivo”:

Wacquant denuncia a obsessão pelo tema da violência urbana e da


delinqüência juvenil como estratégias de fortalecimento do processo de
redefinições de formas e conteúdos da ação do Estado: do Estado
keynesiano ao Estado darwinista. Aqui ele analisa a “conversão das
classes dominantes à ideologia neoliberal” apontando os três estágios na
difusão mundial dessa cultura punitiva. O primeiro estágio seria o de
gestação, implementação e demonstração nas cidades norte-
americanas, especialmente em Nova York; o segundo, a exportação

82
Doutor em Serviço Social pela UERJ. Pós-doutorando em Serviço Social pela UEL. Contato:
pablopolese@yahoo.com.br
216

dessas ideias, esse vento punitivo que soprou da América; e o terceiro


consiste em “aplicar uma cobertura de argumento científico sobre tais
medidas”. Nesta fase ele denuncia os intelectuais contrabandistas “que
legitimam com sua autoridade acadêmica a adaptação das políticas e
dos métodos norte-americanos”. (MALAGUTI, 2012a: 11)

Os Estados Unidos têm a maior população carcerária do planeta, cerca de 2,3


milhões de pessoas. Com menos de 5% da população mundial, o país tem hoje 25%
de todos os presos do mundo. O extraordinário crescimento da população carcerária
do país começou com a “guerra às drogas”, de Richard Nixon, sendo que as
primeiras leis estaduais advogando condenação obrigatória em caso de crimes de
drogas foram introduzidas em Nova York, em 1973, sob o governador Nelson
Rockefeller. Durante o governo de Ronald Reagan, já na década de 1980, tanto o
governo federal quanto muitos dos governos estaduais introduziram penas mais
duras para lidar com a cocaína e especialmente com o crack, aprofundando os
preconceitos raciais tanto na prática policial e judiciária (onde se dão as
condenações) quanto na sociedade, que passou a identificar um “perfil” negro para
criminosos. Entre 1980 e 1990, a proporção de infratores presos cujo principal crime
estava ligado às drogas subiu de menos de 8% para quase 25%. A epidemia de
crack e cocaína produziu as condições para as políticas mais punitivas em todos os
níveis. Implementou-se no país a regra dos “três strikes” (como no Baseball), onde a
terceira ocorrência de uma infração (mesmo leve) levava à prisão automática. A
seguir vieram as leis de “sentença verdadeira”, que limitavam a possibilidade de
liberdade condicional para os últimos 15% de sentença e foram fortemente apoiadas
por sindicatos de guardas prisionais.83
O sistema carcerário estadunidense é particularmente punitivo para os negros
e hispânicos, que são presos em seis vezes e duas vezes as taxas de brancos,
respectivamente, sendo que um em cada três jovens negros residentes no país será
preso em algum momento de sua vida. O custo do sistema carcerário dos EUA é de
cerca de US$ 34.000 por preso por ano, chegando à cifra de US$ 80 bilhões.
Quando Obama tomou posse da Presidência dos EUA muitos se perguntaram se o
primeiro presidente negro perseguiria uma agenda com atenção especial para a
desigualdade racial. Avaliando a questão, uma informada matéria de The
Economistconcluiu que em sua gestão Obama priorizou a ação em vez da retórica, e
83
www.economist.com/news/briefing/21654578-americas-bloated-prison-system-has-stopped-growing-
now-it-must-shrink-right-choices
217

que “em parte alguma isso é mais evidente do que em seus contínuos esforços para
reformar o sistema de justiça criminal, uma instituição americana que encarcera
cerca de 1 milhão de negros”.84
A indústria prisional privada é um veículo bastante eficiente para as lucrativas
práticas de corrupção na relação entre Estado e empresas às custas da população a
ser encarcerada, que é tipicamente pobre, de cor85 e indefesa em termos políticos e
econômicos. O órgão de Imigração e Alfândega (Immigration and Customs
Enforcement - ICE) dos EUA, por exemplo, possui acordos com empresas privadas
do ramo prisional para deter um mínimo garantido de mães com seus filhos
imigrantes em Centros de detenção familiar. 86 A lógica é simples: no contrato com as
empreiteiras e empresas privadas do setor o Estado se compromete a pagar por um
número mínimo de vagas da prisão a ser construída e gerida, estejam estas vagas
preenchidas ou não. O mesmo modelo vem sendo aplicado em outras experiências
de privatização e “parcerias público-privadas” pelo mundo, inclusive no Brasil. Como
o governo gostaria de evitar pagar por um espaço de detenção que não está sendo
usado (o que poderia gerar protestos populares pela má gestão dos recursos
públicos etc.) os “mínimos” garantidos se convertem em cotas locais de detenção
que influenciam a tomada de decisões do setor de imigração sobre a aplicação das
leis de entrada e saída das pessoas, se elas serão ou não liberadas, onde serão
detidas etc.
Poderosas, as empresas do setor prisional exercem forte pressão nos rumos e
na dinâmica do sistema de justiça dos EUA, com ações estratégicas que vão desde
o financiamento de campanhas de deputados e senadores que uma vez eleitos
apresentarão projetos de lei favoráveis aos interesses de tais empresas, até o
suborno puro e simples de pessoas ligadas ao executivo e judiciário. O custo dos
lucros das empresas do ramo prisional é o encarceramento em massa da população
negra e marginalizada do país, com destaque para os imigrantes. 87 Para se ter uma

84
http://www.economist.com/blogs/economist-explains/2016/01/economist-explains-19.
85
De acordo com as estatísticas do Departamento de Justiça estadunidense os negros não-
hispânicos representam cerca de 13% da população da América e cerca de 40% da sua população
prisional.
86
https://popularresistance.org/private-prisons-making-deals-to-lock-up-more-immigrant-women-
children/
87
https://popularresistance.org/private-prisons-getting-rich-by-abusing-immigrants/
218

ideia, em fins de 2016 uma das instalações prisionais no condado de Cibola, Novo
México, foi fechada e reaberta como um Centro de detenção de imigrantes. 88
Com influência direta sob os três poderes do Estado e meios de lucrar em cada
etapa do processo de encarceramento como um todo, a lucratividade do
empreendimento tem sido garantida.89 Essas corporações do ramo prisional ganham
dinheiro em quase todas as fases do sistema punitivo vigente no judiciário
estadunidense: processamento de multas, monitoramento de pulseiras de tornozelo,
testes de drogas etc. Os sub-ramos do setor são muitos, e as oportunidades
lucrativas vêm sendo aproveitadas. A Global Tel-Link, por exemplo, fornece serviços
de telefonia e videochamada para 2.400 instituições prisionais federais, estaduais e
municipais, abarcando 1,3 milhões de prisioneiros. Quanto à saúde dos detentos,
apenas três empresas fornecem os medicamentos prescritos para os presos: a
Correct Rx, a Diamond Pharmacy Services e a Maxor Correctional Pharmacy
Services. Enquanto isso, a Aramark detém os direitos de fornecimento de cerca de
380 milhões de refeições por ano a instalações correcionais na América do Norte,
sendo alvo de inúmeras acusações quanto à qualidade dos alimentos e chegando a
perder, em 2015, seu contrato com o Estado de Michigan devido à presença de
vermes na cozinha, drogas sendo contrabandeadas por seus funcionários e
envolvimento de trabalhadores da empresa em atos sexuais com prisioneiros. 90 Os
presos recorrentemente reclamam e protestam contra as questões sanitárias do
cotidiano prisional, além disso a predominância da lógica do lucro na gestão das
prisões leva à piora dos serviços prestados. A testemunha “4” de um projeto de
entrevistas com presos (detalhado mais abaixo) deu o seguinte depoimento:

Tem um monte de caras com problemas de saúde aqui, mas o programa


de saúde é um pouco apertado, então, quando aparece um bom médico
aqui o médico desaparece em praticamente um mês ou dois, o que nos
deixa pensando que não podemos obter os cuidados adequados que
realmente precisamos. Por exemplo, em 2011 tivemos um médico de
medicina esportiva aqui e esse cara… eu tinha dores nas costas desde
os 3 e ele dá uma olhada e dentro de cinco minutos ele descobriu o que
era e consertou de primeira. Não tive mais nenhum problema nessa
parte inferior das minhas costas desde 2011. Quer dizer, o cara foi
fenomenal e como eu disse, ele durou cerca de dois meses e foi embora.

88
https://www.theguardian.com/us-news/2016/nov/01/jose-jaramillo-private-immigration-prisons-
medical-care
89
https://popularresistance.org/private-companies-making-killing-in-justice-system/
90
http://www.aramark.com/landing-pages/corrections-facts
219

Toda vez que alguém entra e tenta ajudar a todos, eles levam a pessoa
para longe. Não é o doutor, é o prestador de serviços de saúde que os
expulsa. Porque eles têm uma certa quantia de dinheiro por ano para
cuidar de nós e quando não gastam mais que isso, é lucro para eles.
Assim, quanto menos eles fazem por nós, mais sobra para eles.

Além do lucro pela via dos contratos com o Estado, muitas empresas lucram
por meio da exploração da mão-de-obra dos detentos, que custa entre 90 centavos
e 4 dólares por dia, portanto muito menos do que os 7,25 dólares/hora
correspondentes ao salário mínimo de um trabalhador livre nos EUA. Além disso, as
empresas se beneficiam do fato de que, na prática, não existirem incômodos com
direitos trabalhistas dos presos, greves, sindicalização etc. Dentre estas empresas
pode-se citar o McDonalds, que usa prisioneiros para produzir alimentos
congelados, a Wendy's, que depende do trabalho prisional para reduzir o custo no
processamento de carne de vaca, o Wal-Mart, que contrata presos até mesmo para
limpar o códigos de barras de produtos a serem revendidos, o Starbucks, que por
meio de subsidiárias corta custos com embalagens de café, a Sprint e a Verizon,
que colocam presos para atuar em serviços de telecomunicações e call centers, a
Victoria's Secret, que contrata mulheres presas para costurar produtos e substituir as
etiquetas “made in” por “Made in USA”, além de centenas de outras empresas de
diversos ramos. A economia trabalhista penitenciária rende US$ 2 bilhões por ano e
emprega cerca de 900.000 pessoas nos EUA. O trabalho dos presos é
frequentemente usado pelos governos estaduais para compensar seus próprios
orçamentos curtos, e mesmo empresas high-tech, como a IBM, a Boeing, a Microsoft
e a AT & T fazem uso da mão de obra carcerária. Como se não bastasse o lucro via
superexploração do trabalho dos presos, há ainda o Crédito Tributário por
Oportunidade de Trabalho (Work Opportunity Tax Credit - WOTC), por meio do qual
as empresas ganham um crédito fiscal de 2400 dólares por cada preso empregado,
uma recompensa por dar emprego a “grupos de risco”. 91
Recentemente, o Procurador-Geral Jeff Sessions enviou a Thomas Kane,
diretor do Federal Bureau of Prisons um Memorando contrapondo-se às iniciativas

91
https://popularresistance.org/who-are-the-prison-profiteers/
220

da gestão Obama92 que iam no sentido de reduzir e acabar com o uso de prisões
privadas pelo Departamento de Justiça federal. 93
Segundo Sessions, acabar com os contratos entre Estado e empresas
prisionais foi uma medida que “prejudicou a capacidade da agência de atender às
necessidades futuras do sistema correcional federal”, e que “portanto, direciono a
mesa para retornar à sua abordagem anterior”. Trata-se de uma abordagem
conforme à proposta de Trump de anulação do legado de Obama para as prisões
federais. Em resposta, a American Civil Liberties Union (ACLU) publicou uma nota94
onde David C. Fathi, diretor do Projeto de Prisão Nacional da ACLU, dizia o
seguinte:

Entregar o controle das prisões a empresas com fins lucrativos é uma


receita de abuso e negligência. O memorando do procurador-geral
Sessions ignora este fato. Além disso, este memorando é um sinal
adicional de que sob o Presidente Trump e o Procurador Geral Sessions
os Estados Unidos podem encabeçar um novo boom prisioneiro federal,
alimentado em parte por processos criminais contra imigrantes que
entram no país. O presidente Trump, cujo super-PAC recebeu centenas
de milhares de dólares de empresas privadas do ramo prisional, emitiu
ordens executivas pedindo o aumento de processos criminais contra
imigrantes. Ele repetidamente expressou seu apoio para que a nova
legislação imponha severas e desnecessárias novas sentenças mínimas
obrigatórias para esses processos.

O Memorando elaborado pela procuradora-geral Sally Yates durante a gestão


Obama95 concluía que as prisões privadas “simplesmente não fornecem o mesmo
92
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/08/governo-dos-eua-deixara-de-usar-prisoes-privadas.html
e http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37195944
93
O Memorando de Obama pode ser lido (aqui
https://www.justice.gov/archives/opa/file/886311/download) e sobre o Memorando de Sessions
consultar em:
https://www.thestar.com/news/world/2017/02/23/attorney-general-jeff-sessions-signals-us-will-
continue-use-of-private-prisons.html), (aqui http://www.nbcnews.com/news/us-news/private-prisons-
here-s-why-sessions-memo-matters-n725316) e (aqui https://www.theguardian.com/us-
news/2017/feb/23/trump-revives-private-prison-program-doj-obama-administration-end). Obama não
apenas tomou medidas para a redução do uso de cadeias privadas pelo Estado, mas com questões
concretas do cotidiano prisional, como por exemplo o uso excessivo do confinamento solitário,
preocupando-se com o fato de que o castigo pode ter “consequências psicológicas devastadoras e
duradouras”, incluindo “depressão, alienação, auto-isolamento”. A proposta de Obama previa a
proibição do uso do confinamento solitário para jovens e por quebra de regras triviais. Além disso,
foram tomadas medidas voltadas para a expansão dos serviços de saúde mental para prisioneiros e
os indivíduos que fossem submetidos a confinamento solitário teriam, posteriormente, mais tempo
diário fora de suas celas.
94
https://www.aclu.org/news/aclu-statement-trump-reversal-policy-ending-use-private-prisons
95
https://www.documentcloud.org/documents/3029621-Yates-Memo-Ending-Private-Prison-Use.html e
https://www.justice.gov/archives/opa/blog/phasing-out-our-use-private-prisons.
221

nível de serviços de reabilitação, como programas educacionais e treinamento


profissional, que ajudam as pessoas a levar vidas que respeitam a lei após a prisão;
além disso, não economizam substancialmente os custos do Estado com os presos
e, como observado em um relatório recente do Departamento de Inspeção Geral,
elas não mantêm o mesmo nível de segurança para funcionários e presos”.
Trump e Sessions vêm atuando no sentido de realizar a promessa de uma
nova era de “lei e ordem”.96 Na visão destes membros da cúpula do Executivo e
Judiciário dos EUA, isso implica endurecimento das penas e punições contra
infratores. Além da sinalização de endurecimento das leis contra imigrantes, Trump
prometeu reforço na aplicação das leis federais contra o uso recreativo da
maconha.97
Na mesma linha da chamada “carnificina americana” causada pelo crime e
terrorismo, de que falou Trump em seu discurso de posse98, Sessions afirma que os
EUA estão experimentando uma “tendência permanente e perigosa” de ascensão da
criminalidade. Ambos desconsideram o fato empírico de que embora 2015 tenha
sido um ano atípico, com 10,8% mais crimes que em 201499, os dados não revelam
qualquer tendência100 e muito menos uma “tendência permanente”101, já que, como
se vê nos dados do gráfico abaixo102, nos últimos 20 anos o número de crimes

96
https://www.theguardian.com/us-news/2017/feb/09/donald-trump-police-crime-executive-orders-
taskforce-cartels.
97
http://edition.cnn.com/2017/02/23/politics/white-house-marijuana-donald-trump-pot/.
98
https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2017/01/20/trump-faz-juramento-e-se-torna-
o-45-presidente-da-historia-dos-eua.htm.
99
https://www.theguardian.com/us-news/2016/sep/26/rate-murder-fbi-increase
100
https://www.theguardian.com/us-news/2017/feb/10/jeff-sessions-crime-rates-permanent-trend-
attorney-general.
101
O Brasil não detém o monopólio das teorias conservadoras mirabolantes que atuam
convenientemente para a preservação do status quo. Face ao aumento dos dados criminais em 2015
alguns norte-americanos vêm falando em “efeito Ferguson”: a teoria de que os protestos contra o
racismo dos policiais e os assassinatos de negros norte-americanos pelas mãos da polícia seriam os
culpados pelo aumento dos assassinatos: os protestos teriam encorajado os criminosos e tornado os
policiais mais hesitantes em realizar seus trabalhos.
102
Elaborei a tabela detalhada, caso seja do interesse de alguém:

Ano População Taxa de Taxa de Taxa de Taxa de Taxa de


crimes homicídios e estupros assaltos assaltos
violentos assassinatos com
agravante
1960 179,323,175 160.9 5.1 9.6 60.1 86.1
1961 182,992,000 158.1 4.8 9.4 58.3 85.7
222

1962 185,771,000 162.3 4.6 9.4 59.7 88.6


1963 188,483,000 168.2 4.6 9.4 61.8 92.4
1964 191,141,000 190.6 4.9 11.2 68.2 106.2
1965 193,526,000 200.2 5.1 12.1 71.7 111.3
1966 195,576,000 220.0 5.6 13.2 80.8 120.3
1967 197,457,000 253.2 6.2 14.0 102.8 130.2
1968 199,399,000 298.4 6.9 15.9 131.8 143.8
1969 201,385,000 328.7 7.3 18.5 148.4 154.5
1970 203,235,298 363.5 7.9 18.7 172.1 164.8
1971 206,212,000 396.0 8.6 20.5 188.0 178.8
1972 208,230,000 401.0 9.0 22.5 180.7 188.8
1973 209,851,000 417.4 9.4 24.5 183.1 200.5
1974 211,392,000 461.1 9.8 26.2 209.3 215.8
1975 213,124,000 487.8 9.6 26.3 220.8 231.1
1976 214,659,000 467.8 8.7 26.6 199.3 233.2
1977 216,332,000 475.9 8.8 29.4 190.7 247.0
1978 218,059,000 497.8 9.0 31.0 195.8 262.1
1979 220,099,000 548.9 9.8 34.7 218.4 286.0
1980 225,349,264 596.6 10.2 36.8 251.1 298.5
1981 229,465,714 593.5 9.8 36.0 258.4 289.3
1982 231,664,458 570.8 9.1 34.0 238.8 289.0
1983 233,791,994 538.1 8.3 33.8 216.7 279.4
1984 235,824,902 539.9 7.9 35.7 205.7 290.6
1985 237,923,795 558.1 8.0 36.8 209.3 304.0
1986 240,132,887 620.1 8.6 38.1 226.0 347.4
1987 242,288,918 612.5 8.3 37.6 213.7 352.9
1988 244,498,982 640.6 8.5 37.8 222.1 372.2
1989 246,819,230 666.9 8.7 38.3 234.3 385.6
1990 249,464,396 729.6 9.4 41.1 256.3 422.9
1991 252,153,092 758.2 9.8 42.3 272.7 433.4
1992 255,029,699 757.7 9.3 42.8 263.7 441.9
1993 257,782,608 747.1 9.5 41.1 256.0 440.5
1994 260,327,021 713.6 9.0 39.3 237.8 427.6
1995 262,803,276 684.5 8.2 37.1 220.9 418.3
1996 265,228,572 636.6 7.4 36.3 201.9 391.0
1997 267,783,607 611.0 6.8 35.9 186.2 382.1
1998 270,248,003 567.6 6.3 34.5 165.5 361.4
1999 272,690,813 523.0 5.7 32.8 150.1 334.3
2000 281,421,906 506.5 5.5 32.0 145.0 324.0
2001 285,317,559 504.5 5.6 31.8 148.5 318.6
2002 287,973,924 494.4 5.6 33.1 146.1 309.5
2003 290,788,976 475.8 5.7 32.3 142.5 295.4
2004 293,656,842 463.2 5.5 32.4 136.7 288.6
2005 296,507,061 469.0 5.6 31.8 140.8 290.8
2006 299,398,484 479.3 5.8 31.6 150.0 292.0
2007 301,621,157 471.8 5.7 30.6 148.3 287.2
2008 304,059,724 458.6 5.4 29.8 145.9 277.5
2009 307,006,550 431.9 5.0 29.1 133.1 264.7
2010 309,330,219 404.5 4.8 27.7 119.3 252.8
2011 311,587,816 387.1 4.7 27.0 113.9 241.5
2012 313,873,685 387.8 4.7 27.1 113.1 242.8
2013 316,497,531 379.1 4.5 25.9 109.0 229.6
[35.9]
2014 318,857,056 375.7 4.5 26.4 102.2 232.5
[36.6]

Tabela elaborada por Pablo Polese a partir de dados do FBI, Uniform Crime Reports
preparados pelo National Archive of Criminal Justice Data. Nota: 2013 e 2014 apresentam dados
revisados de estupros. Isso se deve ao fato de que em 2011 o Uniform Crime Reporting revisou o
223

violentos em território estadunidense vem caindo e está atualmente num nível que
representa a metade da taxa nos anos 90.

Gráfico 01 - taxa de crimes violentos nos EUA (1960 a 2015) 1/100 mil pessoas:

Nota: Os 168 assassinatos e homicídios ocorridos em 1995 como resultado do bombardeio do


Edifício Federal Alfred P. Murrah em Oklahoma City estão incluídos nas estimativas nacionais. Os
2.823 assassinatos e homicídios ocorridos como resultado dos eventos de 11 de setembro de 2001
não estão incluídos.
Fonte: FBI, Uniform Crime Reports, preparado pelo Arquivo Nacional de Dados de Justiça Criminal.
Gráfico elaborado por Jan Diehm / The Guardian.

Sobre a política contra a juventude infratora, Sessions tem sido um feroz


defensor de estratégias orientadas para as prisões. Em 1994 ele era Advogado-
Geral do Alabama e defendeu duras sanções “que enfatizem a disciplina e a
responsabilidade para dissuadir os infratores não violentos pela primeira vez de
cometerem outros crimes”. Além disso ele sugeriu “acampamentos de trabalho” para
jovens, o trato de jovens infratores violentos como adultos e a realocação dos fundos
federais de modo a criar mais prisões para os jovens. O interessante, em termos do
que podemos esperar que ocorra em matéria de resistência popular a estes planos
do governo Trump, é que essa visão punitivista vai na contramão do que os próprios
estadunidenses vêm defendendo. Uma pesquisa publicada pela Youth First103, uma
campanha nacional voltada para a reforma da justiça juvenil, revelou que 78% dos
norte-americanos apoiam que sistema de justiça juvenil desloque seu foco do

conceito de estupro/violação nos EUA. (Ver: https://www.ucrdatatool.gov/ para maiores detalhes).


103
https://www.theguardian.com/us-news/2017/feb/13/jeff-sessions-youth-incarceration-law-and-order.
224

Encarceramento & punição para a Prevenção & reabilitação. Apenas 22% dos
entrevistados concordaram com a ideia de que o sistema de justiça para os jovens
deveria “se concentrar em punir os jovens que cometeram atos delinquentes”, e 69%
disseram que o encarceramento não é necessário para ensinar um jovem infrator a
ter responsabilidades por seus atos.
Em 22 de fevereiro Trump anulou a medida de Obama que protegia as pessoas
trans104 garantindo-lhes o direito de escolher qual banheiro usar. No dia seguinte a
medida do governo Obama sobre prisões privadas federais foi de fato anulada,
portanto seu programa de redução do uso de prisões privadas federais foi
desmantelado105, para alegria do que pode ser chamado de complexo industrial-
prisional. Não por acaso, a anulação do programa de Obama provocou picos nos
preços das ações das grandes corporações do ramo prisional, empresas que
contribuíram com centenas de milhares de dólares para a campanha eleitoral de
Trump.
Em agosto de 2016 a The Economist alertara “más notícias” que configurariam
“um golpe para a indústria prisional”. 106 Tratava-se da publicação do memorando de
Yates (citado acima) e do relatório de um Inspetor-Geral107 onde se concluía que a
indústria privada da prisão “sacrifica a segurança na busca do lucro; mantém presos
em confinamento solitário apenas porque as camas são escassas em células
normais; e não fornece aos presos serviços suficientes, incluindo cuidados médicos”.
O susto, no entanto, foi passageiro. Três meses depois, em 9 de novembro –
portanto no dia seguinte à vitória de Trump – a Corrections Corporation of America
(CCA), o maior operador de prisões privadas do país, viu o preço de suas ações
subir 43%. A GEO Group, outra das três maiores empresas do setor (a outra é a
Management & Training Corporation), também viu suas ações subirem 21%.
Certamente uma reviravolta e tanto, que fez os financiamentos de campanha
valerem a pena. As ações destas empresas estão em níveis acima dos 100% desde

104
https://www.washingtonpost.com/local/education/trump-administration-rolls-back-protections-for-
transgender-students/2017/02/22/550a83b4-f913-11e6-bf01-
d47f8cf9b643_story.html?utm_term=.3a4756fb6869.
105
http://jornaldesantacatarina.clicrbs.com.br/sc/noticia/2017/02/governo-trump-anula-medida-de-
obama-que-limitava-prisoes-privadas-9729127.html e
https://www.nytimes.com/2017/02/23/us/politics/justice-department-private-prisons.html.
106
https://www.economist.com/blogs/democracyinamerica/2016/08/profit-and-punishment.
107
https://oig.justice.gov/reports/2016/e1606.pdf#page=2.
225

a eleição de Trump, que durante a campanha havia qualificado o sistema


penitenciário estadunidense de “um desastre”, asseverado que achava que
“podemos fazer um monte de privatizações e prisões privadas. Parece funcionar
muito melhor”.108
Tal como no Brasil, o número de crimes nos EUA está relacionado a
disparidades geográficas e raciais: um estudo do The Guardian descobriu que
metade das mortes ocorreram em apenas 127 cidades, que contêm quase um
quarto da população, e que dentro destas cidades, periferias que representam
apenas 1,5% da população total do país viram 26% de todos os homicídios com
armas em 2015.109 Descobriu, ainda, ancorada em estudos científicos de
criminologia110, que os bairros com altas taxas de homicídio por armas de fogo são
marcados por altos níveis de pobreza, baixos níveis de escolaridade e graus rígidos
de segregação racial.
Os EUA são um país com alto nível de segregação racial, com as pessoas de
cor sendo expulsas para a periferia por meio dos mecanismos normais da economia,
que se potencializam com os mecanismos políticos, culturais e ideológicos inerentes
ao racismo. Os negros se convertem em público-alvo das políticas estatais de
encarceramento em massa por diversas razões que vão muito além do mero
racismo de policiais individualmente considerados, ou muito menos por serem os
negros “geneticamente mais propensos” a cometer crimes. As causas da
criminalização dos negros são históricas, mas devem ser buscadas em especial nas
particulares relações sociais em que pessoas de cor são forjadas. As regiões onde
vivem uma maioria negra são muitas vezes as regiões com menor nível de IDH,
menor escolaridade da população, menor nível de atendimento médico, menor
presença de políticas sociais voltadas para o enfrentamento das expressões da
questão social etc. Não por acaso, estas mesmas regiões são o palco dos maiores
índices de violência.111

108
https://www.nytimes.com/2017/02/24/opinion/under-mr-trump-private-prisons-thrive-again.html.
109
https://www.theguardian.com/us-news/ng-interactive/2017/jan/09/special-report-fixing-gun-violence-
in-america.
110
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1745-9125.12070/abstract.
111
Como se vê nas imagens abaixo referentes ao percentual de negros (expresso nas gradações de
cor) e a localização de crimes por armas de fogo (os pontinhos pretos), na cidades de St. Louis e
New York, respectivamente:
226

Frente à semelhança dos dados da realidade estadunidense e brasileira fica


difícil para qualquer brasileiro conter um comentário sarcástico de que novidade!. No
entanto, os pesos históricos, culturais e ideológicos do racismo nestes dois países e
os interesses políticos e econômicos das elites continuam garantindo que o poder
estatal implemente “soluções” centradas no puro e simples punitivismo.112
Embora pesquisas apontem que o aumento das taxas de assassinato em 2015
tenha sido impulsionado pelo aumento do número de pessoas armadas, Trump

112
Falo tanto das medidas relativas abrangentes de encarceramento em massa operado pelo Estado,
a proliferação de ideologias punitivistas pela grande mídia, o trato estatal permissivo quanto ao
controle de armas nos EUA e a própria filosofia norteadora da prática policial.
227

deixou claro que não está interessado em passar leis de controle de armas mais
rigorosas, pelo contrário: ele mantém estreitas e amigáveis relações com as pautas
da Associação Nacional do Rifle e provavelmente aprovará uma lei destinada a
tornar mais fácil portar e transportar armas em público em diferentes estados. Além
disso, rompendo com as medidas moderadas de Obama, quando os policiais foram
estimulados a “adotar a mentalidade de guardião - ao invés de guerreiro”, Trump
disse que convocaria sua própria força-tarefa para ajudar a enviar a polícia de volta
à batalha, e já acenou que pretende “proteger os policiais” por meio de medidas
punitivas extremamente rígidas a todo crime ou ofensa contra oficiais das forças
policiais.113
Trump pretende governar com “pulso firme” e tolerância zero. Não por acaso
ocorreu, recentemente, algo inusitado. Em fins de 2014, como resposta ao
movimento “Black Lives Matter”, foi criado nos EUA o “Blue Lives Matter”, um
movimento de apoio a policiais e familiares de policiais mortos em conflito.
Inicialmente, portanto, não se tratava necessariamente de uma afronta de siglas e
forças sociais em conflito, mas tão somente de movimentos de defesa de interesses.
Trump, entretanto, ardilosamente se apropriou da sigla e converteu o Blue Lives
Matter em um “slogan trumpista” claramente contrário ao Black Lives Matter. 114 O
novo presidente dos EUA prometeu, ainda, retomar o fornecimento de armamento
pesado e veículos de combate que foram descartados pelo Pentágono. No passado,
Obama havia colocado restrições a esse programa por conta da preocupação que
se generalizou devido ao uso desses equipamentos contra protestos populares nas
ruas de Ferguson, Missouri, em agosto de 2014. A inclinação para o conflito e para a
governança sem um mínimo de jogo de cintura pode levar Trump e os EUA para
uma era de agudização dos conflitos sociais no país. Isso seria bom ou ruim?
As soluções punitivas no trato de expressões da questão social e em particular
suas implicações criminais não só não resolvem o chamado “problema do crime”
como perpetuam os fatores materiais que levam ao incremento dos níveis de
violência justamente pelas mãos e contra a população “periférica” e de cor,
garantindo assim um círculo vicioso que para os patrões significa lucro e para os

113
https://www.theguardian.com/us-news/2017/feb/09/trump-criminal-justice-reform-police-protections-
obama.
114
http://www.vox.com/policy-and-politics/2017/2/9/14562560/trump-police-black-lives.
228

trabalhadores significa criminalização da pobreza, guerra civil velada115 e contra-


insurgência permanente. Aparentemente, no entanto, a toupeira da história segue
cavando, pois veremos a seguir que os planos do complexo industrial-prisional
começam a sofrer uns primeiros sinais de resistência por parte dos trabalhadores
(presos ou não) organizados.

1 A Greve de 2016

Os planos do complexo industrial-prisional começam a sofrer uns primeiros


sinais de resistência por parte dos trabalhadores (presos ou não) organizados. Em
2016 tivemos a maior greve dentro de penitenciárias da história dos EUA. Dezenas
de milhares de prisioneiros em todo o país suspenderam seus trabalhos, em
protesto a favor dos direitos dos presos, em especial contra as condições sanitárias
e o “trabalho forçado”, que os manifestantes descrevem como o equivalente
moderno da escravidão. “Eles podem ter substituído o chicote pelo spray de
pimenta, mas muitos dos outros tormentos permanecem: isolamento, posições
restritas, sacando nossas roupas e investigando nossos corpos como se fôssemos
animais”.116 Há casos, como o do Tennessee, em que os presos trabalhadores de
nível inferior recebiam 17 centavos por hora de trabalho, o que significa que
precisavam trabalhar 3 horas para poder pagar o selo de uma carta. Não por acaso
o sistema carcerário da Califórnia – que usa presos até mesmo na função de
bombeiros – lucrou US$ 58 milhões com o trabalho de presos no ano fiscal de 2014-
15, segundo um estudo do Solidarity Research Center.
Uma interessante iniciativa apoiada (a ideia veio dos presos) pelo Comitê
Organizador dos Trabalhadores Encarcerados, chamada “Twin Cities” 117 vem
fazendo entrevistas com detentos acerca das condições de vida dentro das prisões.
Tendo tido papel fundamental na organização das greves carcerárias de 2016, o
sindicato IWW (Industrial Workers of the World)118 pretende que a divulgação destes

115
Ver os trabalhos de Marildo Menegat, a começar por “A guerra civil no Brasil”. In: O olho da
barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
116
http://theweek.com/articles/655609/why-no-knows-about-largest-prison-strike-history.
117
https://iwoc.noblogs.org/post/2017/02/26/twin-cities-iwoc-podcast-stories-from-the-inside-the-water-
aint-right/.
118
http://www.iww.org/.
229

testemunhos conecte as experiências e demandas dos presos de distintas


instituições, além de derrubar o muro místico que separa o dentro e fora das prisões
de um modo que joga nas costas dos presos e ex-presidiários uma alta carga
política e ideológica de preconceito, discriminação, medo e ódio. Trata-se da
interiorização, pela sociedade, de uma cultura punitivista. Sobre este tema,
acertadamente Vera Malaguti comenta que:

O principal poder decantado d[o] conjunto de movimentos punitivos vai


ser a legitimação da intervenção moral, da invasividade do Estado penal
nas relações familiares e de vizinhança. Quanto maior a conflitividade
social decorrente da devastação promovida pelo capital, maior deve ser
a legitimidade da pena. O que vai articular essa nova economia política é
a constituição de uma cultura punitiva, que vai amalgamar o prisonfare
com o workfare. A indústria cultural e a grande mídia vão tratar de
inculcar diariamente o dogma da pena e o respectivo modelão penal
norte-americano: das bugigangas eletrônicas à prisão supermax
privatizada. O importante é punir mais, melhor e por muito tempo: o
negócio dos cárceres precisa de muitos hóspedes e de longas estadias...
É aquele processo que Wacquant chama de remasculinização do
Estado, que produz um giro do social para o penal e que terá efeitos
tanto nos orçamentos públicos como na prioridade discursiva,
colonizando assistência social pela “lógica punitiva e panóptica
característica da burocracia penal pós-reabilitação”. (MALAGUTI, 2012a:
12)

O estigma da passagem pela prisão coloca essas pessoas num círculo vicioso
de marginalização social e segregação racial. A pessoa não é mais pessoa, é ex-
detento.119
Nesse sentido me parece que as entrevistas podem se tornar ferramentas de
valor não só em termos de contribuição com a organização dos presos, mas também
no sentido “midiático” de humanização dos detentos. Trata-se de uma batalha a ser
travada no campo político e ideológico em torno das políticas punitivas estatais e
“civis”, tocando no coração do legitimado projeto capital-estatal de encarceramento

119
Quando cumprem suas penas, a maioria dos prisioneiros no Texas recebe apenas um bilhete de
ônibus para casa e US$ 100. Os que saem em liberdade condicional recebem US$ 50. Se quando
estavam dentro eram tratados como animais, não serão os 100 dólares que garantirão a reconstrução
dos sujeitos no lado de fora. Não por acaso, então, a taxa de reincidência é enorme. De acordo com
um inquérito do Departamento de Justiça aplicado às prisões estatais de 30 estados, 77% dos
libertados em 2005 foram novamente detidos em um prazo de cinco anos, e mais da metade das
prisões ocorreram em menos de um ano. Construir uma nova vida fora do crime é particularmente
difícil quando se observa que a punição ao infrator persiste depois do cumprimento das penas. Em
muitos estados, por exemplo, os ex-criminosos são proibidos de reivindicar cupons de comida e de
obter habitação pública. Nos comércios, ter uma condenação no currículo pode significar nunca mais
conseguir um emprego.
230

em massa. Numa dessas entrevistas uma detenta chamada Irina disse o seguinte
sobre as motivações do movimento de greves nas prisões dos EUA:

Um ponto realmente importante para nós é que nos identificamos como


abolicionistas da prisão, e o que isso significa para nós é que não
estamos interessados em reformar as prisões. Acreditamos que elas não
deveriam existir – e que este é um caminho pra isso acontecer. Sabe né,
eu mesmo me vejo muitas vezes em atrito com as pessoas quando falo
sobre isso. Sabe como é, onde vamos colocar o pessoal que comete
crimes. Com certeza há alternativas além de enjaular as pessoas e
varrer elas pra debaixo dos tapetes. E assim, isso é algo pelo qual
lutamos.

A mesma Irina faz ao fim do testemunho uma ótima síntese do modo como os
presos tratados: “como descartáveis”. Joanna, uma das sindicalistas entrevistadoras,
complementa:

Sim, e isso porque o sistema prisional é resultado da supremacia branca


e do Capitalismo e o que eu quero dizer é que o sistema foi de fato
construído a partir da exploração de pessoas não brancas e também
pessoas da classe trabalhadora, pessoas pobres, e assim o sistema
prisional realmente é destinado a prender as pessoas que não cumprem
com esse sistema ou que de alguma forma estão ficando no caminho
desse sistema. E assim vemos o sistema prisional conectado também ao
modo como nossas comunidades são policiadas e a como nossas
comunidades são exploradas dentro do local de trabalho também, certo?
E isso é uma coisa que nós temos apontado, porque nós vemos nosso
sindicato apoiando estes trabalhadores e o que está acontecendo aos
prisioneiros dentro das instituições é o uso de seu trabalho para gerar
lucros para corporações e para o Estado, o que acaba impactando
bastante nos trabalhadores de fora. Os trabalhadores de fora também
são afetados pelo que acontece dentro e todos nós estamos, desse
modo, conectados. Podemos também nos tornar descartáveis como
pessoas se caímos fora da linha que esperam que sigamos nos sistemas
que existem atualmente. Então é por isso que vemos essa luta como
nossa luta, e realmente como uma possibilidade para muitos de nós que
fazemos parte dessas comunidades marginalizadas ou comunidades que
são exploradas.

Outra das entrevistadoras, Sophia, lembra que o sistema prisional de


Minnesota, por exemplo, tem uma das mais baixas populações carcerárias do país
mas, ao mesmo tempo, tem as maiores disparidades raciais e, embora isso seja um
fato, metade dos prisioneiros de Minnesota são pobres brancos. Com isso ela
conclui, a nosso ver precisamente, que “todas essas coisas podem coexistir ao lado
umas das outras”, lembrando o slogan do IWW: “Mexeu com um mexeu com todos!”.
O IWW acerta em cheio quando ressalta que a luta dentro das prisões está
diretamente conectada à luta da classe trabalhadora, não apenas porque a classe
trabalhadora “não é apenas as pessoas que estão trabalhando ou são
231

trabalhadores, são também as pessoas que estão trancadas, são também as


pessoas que estão nos programas sociais, são também pessoas com deficiência,
são também…” ao que é interrompida por outra sindicalista, Joanna: “são pessoas
sem-teto, são mulheres, são pessoas trans, são pessoas queer, mais uma vez,
todas aquelas pessoas que não se encaixam nos sistemas dominantes em nossa
sociedade”.
A greve de setembro de 2016 envolveu presos de dezenas de prisões e foi
coordenada em 22 estados do país, de acordo com o Comitê Organizador de
Trabalhadores Encarcerados (IWOC), que integra o IWW e contribuiu com a greve
fazendo uma Convocatória120 e ajudando na organização da ação por meio de
visitas prisionais de membros da família e advogados, além de comunicações entre
os detentos de diferentes prisões por meio de celulares contrabandeados. Uma
matéria do Miami Herald121 informou que duas prisões da Flórida tinham colocado
suas instalações em lockdown, um dia depois de informar que em todo o estado os
guardas estavam se preparando para possíveis greves em conjunto com os
protestos nacionais. A data do ato foi escolhida em razão do 45º aniversário dos
distúrbios na prisão de Attica em Nova York 122, até então a maior insurreição
prisional da história do país, que tinha como bandeiras de luta questões muito
semelhantes às atuais e terminou com a morte de 29 detentos e 10 reféns.
Em alguns casos na Carolina do Sul, Texas, Arkansas e outros estados os
prisioneiros são forçados a trabalhar sem remuneração e em condições inseguras,
como por exemplo manipulando produtos químicos ou serragem de madeira sem
óculos ou máscaras de proteção adequadas. Além disso, em caso de lesão durante
o trabalho, azar do preso. O número total de prisioneiros envolvidos na greve de
2016 não pode ser precisado, não apenas pelas dificuldades de comunicação entre
prisioneiros e organizadores, mas porque temendo punições os próprios prisioneiros
muitas vezes se mostram relutantes em admitir que qualquer ação tenha ocorrido.
Alex Friedman, diretor da Prison Legal News estimou que cerca de 24.000 presos
participaram da greve. Já Cole Dorsey, organizador do IWOC em Oakland, estima
que pode-se falar em 72.000 presos grevistas. Além da ação do dia 9 de setembro,

120
https://iwoc.noblogs.org/post/2016/04/01/announcement-of-nationally-coordinated-prisoner-
workstoppage-for-sept-9-2016/.
121
http://www.miamiherald.com/news/local/community/miami-dade/article100874582.html.
122
http://www.dw.com/pt-br/1971-revolta-na-penitenci%C3%A1ria-de-attica/a-319342.
232

outras se desdobraram desde então, incluindo algumas greves de fome coletivas por
motivos que variavam de prisão a prisão, como por exemplo o privilégio de visitas
íntimas, o cancelamento de consultas médicas, o confisco de celulares etc.
A greve de 2016 ganha relevo quando lembramos que participar em uma greve
pode afetar não apenas o usufruto de privilégios cotidianos, mas também a
possibilidade de um prisioneiro obter a liberdade condicional. Um membro da IWOC
entrevistado pelo The Guardian afirmou que em muitas prisões os oficiais
precisaram usar gás de pimenta, bombas de fumaça, granadas de concussão,
espingardas de balas de madeira e cães treinados para controlar os prisioneiros em
greve. Um membro da IWOC que atua na Carolina do Sul avaliou a ação de
setembro de 2016 como “um sucesso” e se disse otimista com atos futuros, uma vez
que a experiência “permitiu amarrar outros grupos de prisioneiros, conectar mais
gente, saber do que somos capazes e o que funcionaria melhor na próxima vez”. 123
A greve dos prisioneiros possui ainda um potencial valor estratégico na luta
contra o encarceramento em massa, já que muitas prisões norte-americanas
simplesmente não funcionariam sem o trabalho dos presos, que se encarregam da
manutenção dos edifícios, cozinham e limpam etc. “Essas greves são o nosso
método para desafiar o encarceramento em massa”, diz Kinetik Justice, fundador do
Free Alabama Movement.124 Em início de 2017, frente a novos protestos dentro e
fora das prisões contra a fornecedora de alimentos Aramark125 a empresa alegou
que sofre sabotagem (pedras e vermes nos alimentos) por parte de pessoas
descontentes com o contrato entre empresa e as instituições prisionais e que o mau
comportamento de funcionários (acusações de envolvimento sexual com presos
etc.) é uma regra em sistemas prisionais, cabendo à empresa despedi-los ao
identificar condutas inadequadas. Desanimador (para quem espera algo mais
radical), o movimento Alabama Livre respondeu o seguinte: “é um monopólio e os
consumidores têm escolha final zero”, sendo que “no mundo exterior, uma empresa
que fornece um mau serviço, cujos funcionários cometem delitos, acabará fora do
negócio”. A resposta, entretanto, serve de alerta para mantermos o realismo quanto
às potencialidades anticapitalistas desse movimento dentro das prisões. Os Estados

123
https://www.theguardian.com/us-news/2016/oct/22/inside-us-prison-strike-labor-protest.
124
https://www.theguardian.com/us-news/2016/sep/09/us-nationwide-prison-strike-alabama-south-
carolina-texas.
125
http://www.pbs.org/newshour/updates/prison-strike-protest-aramark/.
233

Unidos são os Estados Unidos, com sua incontestável hegemonia de ideologias do


empreendedorismo e liberalismo.
A indústria carcerária tem encontrado problemas em outras partes do planeta.
Embora conte com experiências interessantes de uso do potencial da tecnologia
(celulares, internet, televisores) para melhorar a reabilitação dos condenados 126, a
Grã-Bretanha vem passando por tensões dentro de suas prisões. Na Inglaterra e
Gales, por exemplo, a violência contra oficiais e entre prisioneiros tem aumentado
significativamente, não obstante a proporção de homens jovens, teoricamente os
mais propensos à violência, esteja caindo. As taxas de automutilação têm crescido a
uma média de 25% ao ano. Assaltos graves a outros prisioneiros aumentaram em
28%, e ataques contra funcionários aumentaram 43%. De janeiro a setembro de
2016, houve 107 assassinatos de prisioneiros, quase o dobro dos dados de 2011. As
causas desses dados se localizam na superlotação e falta de funcionários nos
presídios ingleses, o que tem levado a protestos não só da parte dos detentos, mas
também dos agentes das instituições. Em 15 de novembro de 2016, por exemplo,
mais de 10.000 funcionários das prisões britânicas interromperam seu trabalho,
como parte de uma “ação de protesto” que durou até que a greve foi considerada
ilegal. Frente à ascensão de motins e protestos o governo tem tomado providências
no sentido de alocação de verbas (investimento de £ $1.3 bilhões), contrato de
pessoal, construção de mais penitenciárias, etc. Como foi bem apontado pela
reportagem de The Economist: fala-se em inúmeras alternativas, mas “nenhuma
menção foi feita a uma resposta óbvia: prender menos pessoas”. 127

2 E no Brasil?

O leitor atento deve ter reparado o cuidado na linguagem de The Economist ao


criticar os sistemas prisionais norte-americanos e europeus. Tratando do caso
brasileiro, onde constatou casos em que 62 presos dividiam uma cela destinada a
12, tendo de disputar o direito de não ter de dormir em pé, meio milhão de reclusos
contando com os cuidados de apenas 367 médicos (em 2012), e quinze

126
http://www.economist.com/news/britain/21700469-prisons-are-about-become-more-open-
technology-screens-behind-bars.
127
http://www.economist.com/news/britain/21710845-government-has-proposed-every-solution-except-
obvious-locking-fewer-people-up
234

ginecologistas encarregadas de atender 32 mil detentas, que usam miolo de pão


para sanar o sangramento menstrual, o semanário se viu obrigado a falar em
“infernolândia” que “faria Dante empalidecer” e usou a seguinte expressão sintética,
por si só bastante sugestiva: “Prisões no Brasil: Bem-vindo à Idade Média”. 128
Embora o contexto da reportagem fosse o do massacre em Pedrinhas, em 2013,
quando dezenas de presos foram mortos e houveram torturas, esquartejamento,
decapitação e até canibalismo129, de fato a realidade do cotidiano prisional brasileiro
não pode ser comparada com aquela vivida pelos detentos dos países “de primeiro
mundo”.
Se em 2013 o The Economist mostrou-se horrorizado e adotou a visão
sensacionalista, em 2016, tratando de novos motins sangrentos nas prisões
brasileiras, ele escolheu a análise mais serena130:

Os governos também temem que uma repressão à violência nas prisões


cause problemas fora deles. Em 2006, uma tentativa do governo de São
Paulo de conter as operações do PCC nas prisões desencadeou uma
campanha de violência por parte dos membros do grupo em todo o
estado. Centenas de pessoas morreram durante dez dias em ataques a
policiais e às represálias que tais ataques provocaram. Os políticos
preferem manter a violência dentro das prisões.

Tendo sua própria política de “guerra às drogas”, o Brasil chegou a uma


situação de superlotação dos presídios em decorrência do endurecimento das penas
contra traficantes (um conceito fluído que depende da interpretação do policial) e
ladrões. A ideia de que as cadeias do país estão lotadas de assassinos,
estupradores e pessoas violentas é um mito. Se a maconha fosse legalizada, como
já está sendo em diversas partes do mundo, inclusive em quatro estados dos EUA, e
se as penas contra roubo de celulares fossem abrandadas, o Brasil não teria prisões
superlotadas. No último relatório do Infopen131, por exemplo, conclui-se que os
crimes contra o patrimônio, crimes contra e pessoa e crimes relacionados às drogas,
juntos, são responsáveis por 87% do encarceramento total do país. 28% dos presos

128
http://www.economist.com/news/americas/21594254-brazils-hellish-penal-system-overcrowded-
violent-and-brutalising-welcome-middle-ages.
129
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/10/20/presos-mataram-e-comeram-
figado-de-detento-em-pedrinhas-ma-diz-o-mp.htm.
130
http://www.economist.com/news/americas/21713900-massacre-manaus-shows-competition-among-
gangs-increasing-carnage-prison.
131
www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/documentos/infopen_dez14.pdf.
235

estão nas cadeias devido a leis relacionadas ao tráfico de drogas e 46% devido a
crimes contra o patrimônio, o que envolve roubos de celulares, motos, carros etc. O
Infopen considera “importante apontar o grande número de pessoas presas por
crimes não violentos, a começar pela expressiva participação de crimes de tráfico de
drogas - categoria apontada como muito provavelmente a principal responsável pelo
aumento exponencial das taxas de encarceramento no país e que compõe o maior
número de pessoas presas”. A política de encarceramento em massa no Brasil, no
entanto, segue as diretrizes do modelo estadunidense, o que nos poupa esforços
analíticos: se não houver resistência, a experiência estadunidense retratada acima
nos indica em linhas gerais o futuro das políticas prisionais do Brasil, ou seja,
deixado à mercê dos gestores estatais e das empresas do complexo industrial-
prisional, rumamos para uma cópia do modelo estadunidense (claro que com nossas
próprias particularidades culturais, ideológicas, políticas etc).
O complexo industrial-prisional não existe apenas nos EUA, além disso, na
ausência de interessados “internos”, as empresas transnacionais do setor
certamente estão de olho nos lucros possíveis com a entrada no “mercado de
presos” do país que possui a quarta maior população carcerária do mundo. O que
precisamos atentar é para as táticas de entrada: o que precisa ser feito para que as
prisões do país possam se abrir para as privatizações que são interesse do
complexo industrial-prisional? Subornar governadores, legisladores, juízes e chefes
de outras instituições-chave? Como conseguir que a opinião pública dê legitimidade
para as ações política e economicamente interessantes para este complexo? Basta
um bom trabalho midiático? Pedir a bênção das famílias (PCC) que de fato gerem –
diga-se de passagem, com muita competência – a dinâmica das prisões, num bem
bolado jogo de ganha-ganha? A privatização pode ser acelerada se o sistema
demonstrar sinais de colapso iminente? Foi pensando nestas e outras questões que
abordei o movimento a favor da redução da maioridade penal, em 2015132 e, talvez
por falta de criatividade (ou obsessão), são estas mesmas questões que me
atormentaram a cabeça quando estalaram em sequência (orquestradas?) rebeliões
de presos no Rio Grande do Norte, Amazonas, Roraima e São Paulo, para não falar
da greve de policiais no ES e RJ, que nesta teoria da conspiração encaixariam

132
POLESE, 2015.
236

lindamente. Como não sou adepto de teorias da conspiração, limito-me a concluir


este texto com a excelente síntese dada pela Pastoral Carcerária.
Face à mais recente “crise” no sistema prisional brasileiro um dos assessores
da Pastoral Carcerária, em entrevista ao Passa Palavra133, afirmou que “não há
nada de novo nos massacres”. A Pastoral Carcerária emitiu ainda uma nota sucinta
onde denunciava: “não é crise, é projeto!”.134
Ora, se o encarceramento em massa de pessoas tornou-se projeto, que
esperar do futuro dentro do capitalismo? Talvez simplesmente a barbárie cotidiana?
Marildo Menegat (2013) afirma que “no capitalismo da atualidade da barbárie,
marcado pelas ruínas das derrotas das revoluções, a exclusão de milhões de seres
humanos da esfera do mundo social cria formas de sociabilidade em decomposição,
como o desemprego estrutural e a criminalidade, por exemplo, que, definitivamente,
não podem ser vistos como uma anomia”. E mais à frente: “desse homem
sobrevivido, assujeitado em torno dos tormentos do aumento vertiginoso do poder
das mercadorias sobre sua livre escolha, temos ao final um ser adaptado às formas
germinais da barbárie”. Ora, um ser adaptado, acomodado ao horror, acomodado a
um mundo onde é comum o enjaular de pessoas para garantir lucros e evitar
distúrbios sociais que poderiam, talvez, ressuscitar dos mortos as aspirações por
aquela palavra que começa com R... Se a barbárie cotidiana já é algo por si mesmo
medonho, estar adaptado a ela é algo como o inferno. Ou não? Se antes da barbárie
se espraiar por tudo lutávamos por um mundo de igualdade e liberdade, hoje parece
que junto com a noção de progresso a pauta das lutas sociais recuou a ponto de
termos que lutar, antes de tudo, por um mundo menos selvagem.

Referências

ABRAMOVAY, P. & MALAGUTI, V. (orgs.). (2010). Depois do grande


encarceramento. RJ: Revan.

GIORGI, A. (2010). A miséria governada através do sistema penal. RJ: Revan.

MALAGUTI, V. (org.) (2012). Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo


neoliberal. RJ: Revan.
133
http://www.passapalavra.info/2017/01/110409.
134
http://carceraria.org.br/arquivos/nota-da-pastoral-carceraria-nao-e-crise-e-projeto e
https://jota.info/jotinhas/pastoral-carceraria-nao-e-crise-e-projeto-20012017.
237

MALAGUTI, V. (org.). (2012a). Adesão subjetiva à barbárie. In: Loïc Wacquant e a


questão penal no capitalismo neoliberal. RJ: Revan.

MELOSSI, D. & PAVARINI, M. (2006). Cárcere e fábrica: as origens do sistema


penitenciário (séculos XVI-XIX). RJ: Revan.

MENEGAT, M. (2006). O olho da barbárie. Sp: Expressão Popular.

MENEGAT, M. (2013). Estudos sobre ruínas. RJ: Revan.

POLESE, P. (2015). A redução da maioridade penal face à indústria do cárcere.


Disp.: http://www.passapalavra.info/2015/04/103596.

RUSCHE,G.& KIRCHHEIMER,O. (2004). Punição e Estrutura Social. RJ: Revan.

WACQUANT, L. (1999). As Prisões da Miséria. RJ: Zahar.

WACQUANT,L. (2008). Os condenados da Cidade: estudos sobre marginalidade


avançada. RJ: Revan.

WACQUANT, L. (2009). Punir os pobres. A nova gestão da miséria nos Estados


Unidos. RJ: Revan.
238

CRÍTICA AO PROJETO DE EXTERMÍNIO DOS POVOS INDÍGENAS: UMA


ANÁLISE DAS CHARGES DE CARLOS LATUFF SOBRE A PEC 215

Rozinaldo Antonio Miani135

Resumo: Os direitos dos povos indígenas têm sido, historicamente, violados.


Apesar de suas limitações, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu novos
marcos para as relações entre o Estado, a sociedade brasileira e os povos
indígenas. Com relação ao direito à terra, é preciso reconhecer que houve um
grande avanço ao considerar como de “natureza originária” os direitos dos povos
indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas, além de reconhecer o próprio
conceito de “terras indígenas”. O texto constitucional define, no parágrafo 1º de seu
artigo 231, que terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são aquelas “[...] por
eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a
seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições". Nesse sentido, o cumprimento do dispositivo
constitucional implicaria a demarcação das respectivas terras indígenas como um
ato meramente declaratório, de reconhecimento do Estado, com o objetivo de
determinar a extensão de tais áreas. O processo de demarcação é de
responsabilidade do Poder Executivo, a partir de estudos técnicos realizados por
órgãos de apoio como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente (Ibama) e posterior aprovação do Ministério da Justiça. Conforme
as Disposições Constitucionais Transitórias, o prazo para a realização da
demarcação de todas as terras indígenas no Brasil era de cinco anos; porém, esse
prazo não se cumpriu e o tema tomou contornos perversos, desembocando na
apresentação, em março de 2000, de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC
215), de autoria do então deputado federal Almir Moraes de Sá, do Partido da
República (PR-RR). A PEC 215, dentre outras proposições, defende a transferência
da competência para aprovar a demarcação de terras indígenas (também extensiva

135
Pós-Doutor / Docente da área da Comunicação na Universidade Estadual de Londrina -
mianirozinaldo@gmail.com
239

à criação de unidades de conservação e à titulação de terras quilombolas) do Poder


Executivo para o Poder Legislativo (Congresso Nacional), proíbe a ampliação de
terras já delimitadas e permite a instalação, em terras indígenas, de redes de
comunicação, rodovias, hidrovias e outras edificações de serviços públicos. Essas
mudanças põem em risco as terras indígenas já demarcadas e inviabiliza futuras
demarcações. A PEC 215 tramitou durante 15 anos até que uma primeira votação
ocorresse. No dia 27 de outubro de 2015, a Comissão Especial da Demarcação de
Terras Indígenas aprovou por unanimidade o relatório do deputado Osmar Serraglio
(PMDB-PR), favorável à aprovação da PEC 215, que sugeriu, ainda, incluir no novo
texto constitucional o direito de pagamento de indenização aos proprietários que
tiverem suas terras destinadas para a demarcação. Toda essa discussão
representa, no limite, um retrocesso civilizacional. Todo esse processo, em especial
os momentos de maior conflito, foi retratado por meio das charges de Carlos Latuff.
Nesse sentido, o objetivo desse trabalho é examinar algumas charges produzidas
por Carlos Latuff sobre a PEC 215, identificando os principais aspectos sociais e
políticos utilizados pelo chargista para apresentar sua crítica e analisando o contexto
discursivo em que foram produzidas as respectivas charges.

Palavras-chave: Povos indígenas. PEC 215. Charge. Carlos Latuff.


240

GRUPO DE TRABALHO 4

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E O DIREITO À MEMÓRIA, VERDADE E


JUSTIÇA NO BRASIL

Ementa: Este GT procura contemplar os trabalhos que tratem do tema da Justiça de


Transição, entendido como campo científico-político interdisciplinar que problematiza
sociedades em conflito ou pós-conflito, buscando uma série de medidas de justiça
(judiciais e extrajudiciais) incluindo atividades de reconciliação frente abusos do
passado, a fim de garantir de forma combinada ou não, os esclarecimentos dos atos
por parte dos perpetradores, juízos individuais e coletivos, reparações, verdade
histórica e reformas institucionais para a consolidação da democracia e visando a
não repetição. Serão aceitos trabalhos que tratem de outros países, desde que
dialoguem com a experiência brasileira.

Coordenador: Fabio Henrique Araújo Martins (fabiohamartins@yahoo.com.br)


241

COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA APLICADA AO DIREITO

Ana Laura Oliva Veschi136

Resumo: O processo crescente de judicialização das relações sociais traz a


necessidade de que a cidadania encontre meios de tratar os seus conflitos, evitando
outorgar ao Judiciário a responsabilidade pela solução de questões de índole
estritamente pessoal. Se no passado, aprendemos que o que não está nos autos de
processo não está no mundo, hoje sabemos que o valor da Justiça muitas vezes não
se encontra limitado aos autos de processo. Essa visão de holofote restrita apenas à
questão jurídica de subsunção da ocorrência aos ditames da lei, apequenada aos
autos de processo, conformada aos limites da ocorrência policial, porém, não
enxerga os verdadeiros problemas e interesses que podem estar por trás de uma
infração penal. Nesse viés, a mediação vem ganhando espaço enquanto um modelo
alternativo de tratamento de conflitos e utiliza como ferramenta principal a
Comunicação Não-Violenta, visando resgatar valores, como a solidariedade, a
confiança e o respeito. É através da comunicação que se desenvolve o processo de
mediação, para tanto, é fundamental que o mediador faça uso de uma comunicação
não violenta, não impositiva, propiciando o diálogo dos mediandos com
autenticidade, pois o entendimento não é imposto, mas é livremente construído. A
Comunicação não-violenta, ou CNV, é um método (processo) de comunicação
desenvolvido por Marshall Rosenberg, destinado a prevenir e resolver conflitos, de
forma simples e eficaz, podendo ser aplicada à vida privada, ambientes de trabalho,
escolas, igrejas, hospitais, empresas, comunidades, prisões e etc. Para desenvolver
esse método Rosenberg adotou o conceito de não-violência concebido por Gandhi,
segundo o qual “não-violência é o estado compassivo natural quando a violência
houver se afastado do coração”. A
CNV muito ajudou a evidenciar as formas mais
sutis de violência
que contaminam nossa linguagem e reverberam negativamente
nos relacionamentos, debilitando laços sociais e fragmentando comunidades.
Palavras-chave: Conflito, Mediação e Cidadania.

136
Graduanda em direito pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: ana.veschi79@gmail.com
242

APONTAMENTOS SOBRE A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E O DIREITO À


MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA NO BRASIL

Fabio Henrique Araújo Martins137

“Estado de Direito” é um conceito que está no centro da missão da


Organização. Refere-se a um princípio de governança segundo o qual todas
as pessoas, instituições e entidades, públicas e privadas, incluindo o próprio
Estado, estão submetidas as leis que se promulgam publicamente, sendo
igualmente impostas e independentemente aplicadas, e que são
compatíveis com as normas e princípios internacionais de direitos humanos.
Isso também requer medidas para assegurar o respeito aos princípios de
supremacia da lei, igualdade diante da lei, responsabilidade para com a lei,
equidade na aplicação da lei, separação de poderes, participação na
tomada de decisões, legalidade, não arbitrariedade, transparência legal e
processual. (ANNAN, 2009, p. 325)

Introdução

Este trabalho procura colocar em discussão alguns apontamentos para


repensarmos aspectos da agenda acadêmica e política brasileira, sobretudo no que
tange ao Direito à Memória, o Direito a Verdade, o Direito a Justiça no âmbito da
atual “democracia suspeita”138. Temas estes que fundamentalmente se relacionam
com uma leitura ou interpretação sobre a história recente do nosso país e, que
guardaram relações com as formas de exercício do poder político autoritário que
vigoraram no passado não muito distante e voltam a rondar nossas vidas, uma vez
que o golpe – já que não houve crime de responsabilidade - contra a presidenta
Dilma é motivo de suspeita, assim como a decisão do Tribunal Regional da Quarta
Região que no dia 22/09/2016, afirma a viabilidade jurídica de aplicar o princípio da
excepcionalidade para o caso da Lava Jato.
Para tanto transitaremos no contexto interdisciplinar da chamada “justiça de
transição” (ANNAN, 2009, p. 325) entendia esta como campo científico e político que

137
Advogado formado na UEL, mestre e doutorando em Psicologia e Sociedade pela UNESP. E-mail:
fabiohamartins@yahoo.com.br
138
Democracia Suspeita significa o estado atual da democracia brasileira após a decisão do Tribunal
Regional Federal da 4ª. Região que no dia 22/09/2016, que instaura a excepcionalidade como
fundamento da suspensão das normas gerais de garantia, de forma a inovar no sentido da suspensão
do princípio da segurança jurídica em detrimento de um discurso metajurídico moralista, fazendo a
democracia brasileira uma democracia suspeita de estar colocando em risco as conquistas cidadãs
alcançadas a partir de 1988 com a nova ordem constitucional cidadã.
243

problematiza a abordagem de sociedades em conflito ou pós-conflito, buscando uma


série de medidas de justiça (judiciais e extrajudiciais) incluindo atividades de
reconciliação frente abusos do passado, a fim de garantir de forma combinada ou
não, os esclarecimentos dos atos por parte dos perpetradores, juízos individuais e
coletivos, reparações, verdade e reformas institucionais para a consolidação da
democracia e visando a não repetição. Estes conjuntos de medidas se materializam
no contexto da efetivação do Direito a memória, verdade e justiça, a partir de uma
conexão entre passado, presente e futuro.
Em nossas terras entre os anos de 1964 e 1985, o Estado de Direito esteve
suspenso sob o comando de uma junta formada por agentes militares que se
revezavam no poder, neste ínterim o país foi governado de modo autoritário – tal
qual um “Estado de Polícia” (ZAFFARONI, 2009, p. 09). Durante este longo período
de mais de 20 anos, direitos civis e políticos foram restritos, milhares de pessoas
afastadas de seus postos de trabalho, assassinadas, presas, espancadas,
estupradas, exiladas, banidas, desaparecidas, torturadas sistematicamente,
perseguidas, a censura foi imposta aos meios de comunicação; a corrupção se
alastra em todas as instâncias do estado neste período, parlamentares eleitos
democraticamente tiveram seus mandatos cassados, houve a extinção de partidos
políticos, intervenção em sindicatos, o congresso foi fechado, foi imposta a proibição
de manifestações públicas, greves...
Sob o ponto de vista da luta pelo Direito à Memória, Verdade e Justiça, o
principal desafio que se coloca ao se ter em consideração o processo de transição a
democracia no Brasil está em romper o silencio e se revisitar criticamente as
imagens distorcidas pela versão oficial e aceitas como retrato fiel da nossa história.
Afastar as nuvens ideológicas que nos impedem de compreender a diversidade de
significados que atingem diretamente a noção daquilo que estamos dispostos a
aceitar como democracia.
É neste sentido que vale a pena fechar a introdução ao registrar as palavras de
Juan Mendez:

Não é lícito que o Estado diga: nós não vamos processar ninguém, mas
vamos oferecer reparações. Ou que diga, vamos fazer um informe da
comissão de verdade, mas não vamos pagar reparações a ninguém. Cada
uma dessas obrigações do Estado são independentes umas das outras e
cada uma delas deve ser cumprida de boa fé. Também reconhecemos que
cada país, cada sociedade, precisa encontrar seu caminho para
implementar esses mecanismos. […] Há princípios que são universais e a
244

obrigação do Estado é cumpri-los, porém a forma, o método, é que é


peculiar. Nós não acreditamos que exista, por exemplo, uma sequência
estrita que primeiro é preciso processar e castigar, depois instalar uma
comissão de verdade… Cada país tem de decidir o que faz e quando. De
forma tal que não se fechem os caminhos. Eu acredito que aqui seja preciso
aplicar o princípio da boa fé, e a boa fé é um conceito jurídico. O intento
sincero de se fazer o máximo possível dentro das limitações que se tem.
Por isso existem distintos modelos. Também não se pode dizer: vamos
pagar reparações e não sabemos quem são as vítimas, por exemplo. Às
vezes, os processos de busca da verdade tem consequências bem práticas.
Deles surgem, por exemplo, uma forma de se fazer um censo de vítimas.
[…] Eu também acredito que os outros mecanismos de justiça de transição
ajudam a superar o que chamamos de brecha de impunidade. Às vezes,
com a melhor das intenções, se castigam alguns delitos, mas não todos.
Então é necessário ir complementando o judicial com o não-judicial, ou até
mesmo administrativo, como é o caso das reparações. Essa é a razão pela
qual nós insistimos nesse enfoque holístico, compreensivo.(MÉNDEZ, 1997,
p. 255)

1 A Justiça de Transição e a Inexperiência Democrática

“Sem a compreensão, no caso particular brasileiro, um de seus mais fortes


signos, sempre presente e sempre disposto a florescer nas idas e vindas do
processo: nossa inexperiência democrática” (FREIRE, 1969, p. 59).
Neste aspecto que trata da inexperiência democrática em nosso país vale o
registro sobre os breves ‘espasmos democráticos’ já que nos 516139 anos de história
oficial, tivemos 388 anos de escravidão, sendo 322 anos sob o regime Colonial
(1500-1822), 67 de Império sob uma Monarquia Constitucional (1822-1889) e mais
127 anos de Republica sendo apenas os anos entre 1946-1964 e 1985-2016 foram
sob o regime democrático, portanto, são apenas 49 anos de experiência da vivencia
de um sistema político democrático, são menos de 50 anos de liberdade em 516
anos de história... o autoritarismo predomina como regra e a inexperiência
democrática é seu resultado histórico.
É interessante destacar a relação entre a noção de ‘sociedade em transição’
como fala Paulo Freire no seu Educação como pratica da liberdade, e a noção de
‘justiça de transição’ como tem sido empregada no âmbito do conjunto de política
públicas voltadas ao Direito à Memória, Verdade e Justiça no Brasil até o
impeachment -golpe - da presidente eleita Dilma Rousseff. A noção de ‘sociedade
em transição’ está relacionada a ideia de um Brasil que começava a deixar seu

139
Vale anotar que o texto foi considera o ano de 2016 como referência e leva em conta que vivemos
a partir do Impeachment uma democracia suspeita.
245

passado colonial de uma sociedade fechada onde grande parte da sociedade não
teria nem mesmo o direito a ter direitos – numa transição para a democracia,
entendida esta como uma sociedade em abertura, mais inclusiva, horizontal e
estimulante da participação. Por outro lado, a noção de justiça de transição traz no
seu conteúdo interdisciplinar a proposta da adoção de uma série de mecanismos
destinados a garantira não só a restituição do regime democrático, mas, também um
conjunto de medidas que visam resgatar o passado autoritário através de uma série
de políticas de memória, verdade e justiça - com vistas à reparação, síntese histórica
e de não repetição – são portanto, políticas públicas preventivas e de longo alcance
relacionadas a uma ideia de democracia como construção permanente.
Desde a noção de Justiça de Transição que postulamos acima, a singularidade
do caso Brasileiro pode ser ilustrada pelo sentido contraditório e ambíguo que a
chamada Lei da Anistia (Lei nº. 6.683/1979)140 assumiu a época, dando azo a
impunidade. Seu texto ‘impreciso’ enseja um significado político de cunho
emancipatório como, se um passo em direção à abertura democrática fosse, já que
todo um movimento de reivindicação foi no sentido de demandar pela anistia
daqueles que lutaram contra a Ditadura civil-militar. Noutro sentido e, devido à
ambiguidade da letra legal, os tribunais acabaram interpretando que, aos delitos
“conexos com os políticos” se incluíam aqueles cometidos por funcionários do
Estado, deixando sem julgamento os agentes responsáveis pelas graves violações
de Direitos Humanos, fazendo a anistia sinônimo de impunidade – tal qual a decisão
da ADFP 154.
Neste ambiente é que a ‘transição controlada’ foi concebida desde as
instâncias hegemônicas como um pacto bilateral que visava garantir o “lento,
140
Lei i nº. 6.683/1979 traz no “Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido
entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com
estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da
Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos
Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos
com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

§1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados
com crimes políticos ou praticados por motivação política.

§2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de
terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.

§3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que
foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar,
obedecidas as exigências do art. 3º”.
246

gradual e seguro” caminho para a democracia. Anistia neste contexto pretendia


significar esquecimento e perdão. Para os operadores que conceberam tal projeto
de anistia, haveria que coaduná-lo com a cultura do esquecimento, impunidade e do
silêncio que para estes, tão bem caracterizaria o ‘brasileiro’ como um povo pacífico,
ordeiro e cordial. O silêncio histórico sobre os massacres dos povos nativos e da
violência impune da escravidão africana corroboram com a assertiva de que vivemos
ainda sob a erige de uma cultura antidialógica, racista, homofóbica, senhorial e
autoritária, cuja violência cíclica tem se repetido inclusive nos breves lapsos
democráticos.
Outra particularidade da nossa ‘transição controlada’, que diferente dos casos
de países onde o processo de transição democrática se deu por ruptura através da
derrocada do regime ditatorial com instancias do tipo “Comissões da Verdade” 141. O
Brasil apenas 27 anos depois, instaurado um mecanismo desta natureza, daí a
noção de ‘transição manipulada’ ou “transação organizada”? Inclusive existe a
leitura, que vai no sentido de afirmar que a Constituição de 1988 seria a
consolidação dos ideais da ‘Revolução Vitoriosa’ – como registrou o ministro do STF
no seu voto na ADPF 153 Sr. Gilmar Mendes. Antes da Comissão Nacional da
Verdade - CNV142, a abordagem do passado ditatorial tem sido feita por vários
dispositivos trabalhados para abrir espaço na agenda política que se esquivava
deste debate.
Sob o ponto de vista de uma dinâmica não dogmática e até um certo ponto
informal, no processo de construção das políticas públicas – de estado, de governo
e não estatais - de Memória e Verdade e Justiça no Brasil, é possível identificar ao
menos seis fases de aparição em nossa história recente, vejamos. No primeiro

141
São exemplos países como Peru, Argentina e Chile ainda que seja importante considerar as
particularidades de cada país e fundamentalmente o processo de avanço e retrocessos que os
diferentes modos de vivenciar a reconstrução democrática em cada um destes países. Na argentina
por exemplo, ainda que tenha tido uma experiência do tipo Comissão da Verdade a CONADEP, esta
sofreu fortes críticas por movimentos sociais que consideraram as conclusões insatisfatórias por
adotarem a denominada ’teoria dos dois demônios’ que entendem como excessos tantos as atitudes
dos militares e dos subversivos, sem considerar as singularidades dos lugares institucionais de cada
agrupamento.
142
A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de
2012. A CNV tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de
setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Conheça abaixo a lei quecriou a Comissão da Verdade e
outros documentos-base sobre o colegiado. Em dezembro de 2013, o mandato da CNV foi
prorrogado até dezembro de 2014 pela medida provisória nº 632.
IN.http://www.cnv.gov.br/institucional-acesso-informacao/a-cnv.html
247

momento marcado pelo intervalo entre o golpe de 1964 e a já citada Lei de Anistia
num período onde a noção de anistia pouco era debatida, e quando abordada era
tida como uma contradição, já que se tratara de um absurdo falar de anistia quando
se vivia sob um governo ditatorial absolutamente ilegal, este foi uma fase em que se
viveu a repressão inaugurada pelo Ato Institucional nº. 1 de 09 de abril de 1964 143,
as reações populares como a Marcha dos 100.000 em maio de 1968 no Rio de
Janeiro com a consigna “Liberdade: Abaixo a Ditadura”, depois em 13 de dezembro
do mesmo ano a violência estatal foi recrudescida pelo AI-5144. Nesta fase não se
cogitava sobre a anistia, uma vez que as reivindicações primordiais tratavam de
catalisar a lutar pelo fim da Ditadura e pela restauração da democracia no país.
Outra fase começaria em 1975 como movimento pela Anistia e teria como
marco a Lei nº. 6.683 de 1979. Neste momento a luta pela anistia estava
encabeçada por familiares daqueles que depois da onda de perseguições,
desaparecimento, pressões e exílio – radicalizada pelo AI-5, resistiram diretamente
ao regime, sendo à anistia entendida como uma luta digna e necessária, ainda que o
projeto aprovado tenha sido concebido pelo comando ditatorial, porém foi entendido,
neste contexto, como um avanço possível no quadro de retrocesso geral que
predominava desde o golpe de 1964. Na terceira etapa iniciada após 1988 e no
clima em que “novos movimentos sociais entram em cena” (SADER, 2001) a anistia
passou a ser vivida e concebida como uma luta mais ampla pela reparação integral,
redemocratização das instituições, engajando novos atores sociais ao movimento
dos Familiares e simpatizantes. Neste período é que assistimos iniciativas como a
campanha pelas ‘Diretas Já’ e, ainda no governo do Fernando Collor como a
abertura dos arquivos do DEOPS de São Paulo que estavam em poder da Polícia

143
Justificado como remédio para os malefício da estrema esquerda, o AI-1 foi o ato inaugural de uma
nova conjuntura político-jurídica que se auto atribui legitimidade de perseguir seus opositores através
do aparelho oficial do Estado. A partir do AI-1, foram criadas comissões de investigação para
enfrentar os inimigos do novo regime. Instauraram ainda os Inquéritos Policiais Militares, fecharam o
Congresso Nacional, cassaram mandatos parlamentares, realizaram intervenções em sindicatos,
extinguiram partidos políticos, dirigentes políticos e sindicais foram presos, torturados, exilados,
mortos, desaparecidos.
144
Visando consolidar a suposta Revolução contra pessoas e grupos antirrevolucionários, o ‘AI-5’
como ficou conhecido o Ato Institucional número 05, de 13 de dezembro de 1968, foi baixado pelo
Governo Militar colocando em recesso por tempo indeterminado o Congresso, possibilitando a
suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão, e cassar mandatos eletivos. Suspendendo
igualmente as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade;
além da possiblidade de instauração do estado de sítio, da suspensão do habeas corpus e da
decretação de confisco em certos casos.
248

Federal. No governo FHC com a instauração pela Lei 9.140/1995 da Comissão


Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos – CEMDP, A Comissão da Anistia em
2002, O PNDH-3 de 2009, várias outras atividades como publicações de livros,
apresentações artísticas, produção de filmes, documentários, peças teatrais, criação
de revistas, grupos de pesquisa, organização de eventos científicos, cursos de
Formação, Atualização Profissional presenciais e a distância.
Nesta terceira fase vale ainda anotar a título de complementação sob pena de
séria negligencia registrar a relevância de ações como: Abertura de milhões de
documentos sigiloso dos arquivos da Biblioteca Nacional, As Caravanas da Anistia,
Marcas da Memória, Clínicas do Testemunho, Memórias Reveladas, Memorial da
Anistia Política no Brasil, o Projeto Direito à Memória e a Verdade da SDH/PR,
ações como a criação do Grupo de Trabalho Araguaia-GTA, antigo Grupo de
Trabalho Tocantins-GTT no âmbito da CEMDP junto a Secretaria Especial de
Direitos Humanos da Presidência da República-SDH/PR, a criação do IDEJUST-
USP-MJ, os trabalhos do Grupo Tortura Nunca Mais, entre outras já que esta fase
foi muito expressiva em iniciativas progressistas no âmbito das políticas de Memória,
Verdade e Justiça no Brasil. É desta etapa também os processos de julgamento no
Superior Tribunal Federal -STF da ADPF-153 que confirma a impunidade inscrita na
Lei da Anistia de 79, mas, também é desta fase a condenação do Brasil no Caso da
chamada Guerrilha do Araguaia (caso Gomes Lund e outros) na Corte
Interamericana de Direitos Humanos, cuja sentença ainda não foi cumprida.
A quarta fase, pode ser notada a partir da instauração da Lei de Acesso a
Informação (Lei nº. 12.527/2011) e da Comissão Nacional da Verdade-CNV,
instalada em maio de 2012, pela a Lei no 12.528 de 18/11/2011, desde então, um
novo marco relativo às políticas de Memória e Verdade no Brasil, a instituição do
‘Direito a Verdade’ no repertório jurídico pátrio, pauta um novo horizonte, e
registraria uma ‘virada’ no sentido do reconhecimento da Democracia como um
processo permanente, entendida, como aprofundamento do processo de construção
democrática.
Já a quinta fase se iniciaria a partir do Relatório Final da CNV e suas
recomendações em dezembro de 2014, desafiando as organizações de Direitos
Humanos e os movimentos de luta pelo Direito à Memória, Verdade e Justiça a
ampliar sua influência no sentido de garantira que as recomendações da CNV,
fossem, efetivamente implementadas em regime de urgência. Finalmente a sexta
249

fase, que se inaugurada com o impeachment da Presidenta Dilma e a decisão do


TRF da 4ª. Região, redesenhando a conjuntura em direção a um cenário de forte
retrocesso nas lutas por Memória, Verdade e Justiça no Brasil. A fase atual
apontando para um estado de difícil superação dos ‘espasmos de autoritarismo’
ainda existentes nas instituições oficiais. Trata-se de uma batalha por valores, que
venham a enfrentar a ‘versão oficial’ que nega o ‘Direito de Resistência’ em nome do
suposto perigo ‘Comunista’ e da ‘subversão esquerdista’.

2 Justiça de Transição e o Movimento de Direitos Humanos

As democracias da nossa região herdaram a responsabilidade de investigar


as violações de direitos humanos ocorridas durante as ditaduras e os
governos autoritários, além de punir os responsáveis. O caminho à verdade
e à justiça para este tipo de crime do passado tem sido extremamente longo
e difícil, mas é uma dívida pendente e uma responsabilidade que os estados
não podem evitar. Não se pode construir um futuro democrático sem que se
esclareçam as graves violações cometidas no passado e se alcance justiça
e reparação. (ANTOINE, 2015)

Em meados de 2010 estávamos em Goiás em um encontro da Rede Nacional


de Advogadas e Advogados Populares-RENAAP sobre Justiça de Transição,
promovido em parceria com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça tratando
de discutir a questão da construção política da articulação entre o Movimento de
Direitos Humanos e outros movimentos sociais mais ou menos ligados, a temática
das políticas públicas de memória, verdade e justiça em nosso país, no encontro
estavam presentes advogados, estudantes, militantes dos direitos humanos,
familiares, pesquisadores, entre outros atores sociais.
Naquela ocasião discutíamos o estado da arte através de uma ampla e
profunda análise da conjuntura política e jurídica do campo dos direitos humanos,
em vistas a uma perspectiva alternativa à lógica dominante do sistema de justiça em
nosso país, para isso buscávamos nos aproximar de outras experiências
comparadas que pudessem servir de inspiração ao que concebíamos como forma
possível de organizarmos para buscar alguma saída frente a lógica dominante da
‘correlação de forças’, que implicava naquele momento, numa mecânica de múltiplas
formas de captura, controle, engessamento e aniquilando de qualquer iniciativa em
sentido contrário ao silêncio condescendente diante de uma suave, sutil e crescente
concentração de renda e riqueza, acompanhada pelos mais altos índices de morte
250

violenta do mundo (ZAFFARONI, 2017).


No encontro convergíamos que a recente noção de Justiça de Transição que
emerge nos anos 90 do século passado, como resultado da ‘cultura do nunca mais’
é importante na medida em que guarda um potencial emancipatório, ou seja, ao
reafirmar o Direito de Resistência e a luta pela democracia como parte do processo
de difusão do compromisso histórico com a verdade, memória e justiça. A Justiça de
Transição implica no enfrentamento da impunidade como continuidade da
instrumentalização do Estado para a pratica de múltiplas formas de violência política,
que provocam efeitos - psicológicos, psicossociais e institucionais - de longa
duração e abrangência massiva. Por exemplo, sob o ponto de vista da percepção
destes efeitos lembremos como as reivindicações atualmente por direitos
fundamentais pela sociedade civil frente às garantias constitucionais, muitas vezes
são malvistos, discriminados ou vistos com preconceito por conta do ranço
autoritário e suas reminiscências.
Daí a importância histórica da luta pelo Direito a Verdade e Memória, que no
marco da Justiça de Transição procura na inflexão entre passado e presente romper
com a cultura do medo e do silencio, com vistas à visibilidade sobre as graves
violações de direitos humanos, numa investida que coloca em confronto posições
relativas a uma ‘verdade oficial’ em face da luta pelo Direito a memória e verdade
histórica, desta e das próximas gerações. Esta questão conflituosa emerge no
âmbito do crescente reconhecimento da importância do Direito ao acesso a
informação e a transparência no plano da gestão da coisa pública. Todavia, temos
que se reconhecer a permanência - hegemônica? - de uma mentalidade
conservadora e autoritária, que nos confronta.
Para a caracterização desta mentalidade conservadora e autoritária, vale
anotar algumas assertivas de Paulo Freire no sentido do impacto da colonização na
formação social-econômica-cultural do nosso país. Desta noção de um sistema
econômico e político que expropria a capacidade de autonomia, autoanálise e
autogestão coletiva que implica na já citada inexperiência democrática, daí podemos
destacar uma das sínteses do encontro da RENAAP, que apontou no sentido de que
não bastava naquele momento sermos capazes de caracterizar o que é o
movimento de direitos humanos, e sim deixar claro as condições - objetivas e
subjetivas, internas e externas - que nos impedem de ser ou de vir a ser um
movimento mais combativo. Esse apontamento é muito atual e cabe bem para o
251

momento que vivemos um sistemático processo de desmonte das políticas de


memória, verdade e justiça até então em vigências.
Neste sentido, pensar o movimento de luta por Memória, Verdade e Justiça, a
partir dos movimentos sociais de luta por direitos humanos, implica pensar em
termos históricos valendo, portanto, escalar para isso Eduardo Galeano quando ao
começar o seu “Livro dos Abraços” (GALEANO, 2010) traz, “Recordar: Do latim re-
cordis, voltar a passar pelo coração”..., revisitar, resgatar, rever, reviver... de alguma
forma ‘re-cordar’ o passado mais distante ou mais recente de violência de estado
implica num movimento por trajetos que guardam o potencial de reatualização, ainda
que, persista uma cota, um resto de algo que não pôde ser elaborado, um mal
resolvido histórico.
Portanto, recordar implica em reconhecer as condições históricas que permitem
a perpetuação das os modos dispersão, submissão e desmobilização das forças
coletivas. Modos de organização de matriz antidialógica diria Paulo Freire, que
também são modos variados de estar fazendo funcionar uma lógica disjuntiva que é
ao mesmo tempo de divisão e controle dos corpos individuais e coletivos - que são
capturados, no sentido de uma desmobilização - do sujeito histórico social
vocacionado a ser mais.
E aí por uma contingência que nos implica ao tratar da violência do estado. De
que sujeitos estamos falamos quando tratamos da violência de estado que trucidou
os sujeitos individuais e coletivos... - corpos torturados ou do desaparecimento
sistemático da militância de esquerda na América Latina? De quem falamos quando
recordamos dos Povos Nativos massacrados ontem e hoje, do vergonhoso racismo
estrutural que permitiu a subalternização dos negros no Brasil desde sempre, das
pessoas internadas em Manicômios físicos ou químicos, encarceradas em uma
penitenciária superlotada em condições desumanas, cruéis e degradantes,
internadas compulsoriamente nas Comunidades Terapêutica, cumprindo medidas
socioeducativas, do genocídio dissimulado que consome ‘a carne’ dos jovens
negros, pobres e da periferia ou dos sujeitos ‘inseridos’ como peças na mecânica da
produção capitalista?
Ao debater coletivamente e pensar sobre a noção de justiça de transição com
que estamos trabalhando, assim como se constrói o movimento de Direitos
Humanos e de luta por memória verdade e justiça é importante notar como a
construção coletiva que vai se transformando e transcendendo o movimento de luta
252

política mais tradicionalmente partidária e, passando pelas especificidades das


demandas dos familiares de presos e desaparecidos, de setores do movimento
social como as Comunidades de Base da Igreja Católica ligada a Teologia da
Libertação, a reascensão do movimento estudantil, LGBT, movimento negro, de
mulheres, do movimento sindical, a emergência do movimento da Reforma Sanitária,
atingindo as territorialidades acadêmicas..., quer dizer o movimento de justiça de
transição no Brasil já não é apenas um importante e reconhecido campo dos direitos
humanos restrito as lutas travadas contra a ditadura e pela democratização do país,
já não se limita a uma reivindicação restrita e individual de reparação, mas, tem se
constituído como um movimento que aponta a horizontes mais amplos e diversos.
Inserido no horizonte do movimento de direitos humanos a luta pela Justiça de
Transição no Brasil foi se multiplicando e se inserindo inclusive nas estancias oficiais
do Estado, mas, também de modo não oficial em iniciativas pontuais e de pequeno
alcance e não planejado se diversificando esse processo de luta pela democracia.
Neste ponto importa destacar que os movimentos de resistência começam a
reivindicar a democracia desde os primeiros momentos logo após o golpe de 31 de
março de 1964, desencadeado pela autointitulada ‘Revolução Vitoriosa’, assim como
acontece hoje frente ao golpe de 2016.
Na ocasião do encontro da RENAAP em 2010, discutíamos exatamente como
instrumentalizar a resistência em âmbitos institucionais e culturais mais amplos, já
que partilhávamos de um consenso no sentido de que era necessário
desenvolvermos modos de organização bem como instrumentos teóricos no campo
do direito constitucional, do direito penal, do direito processual penal, do direito da
execução penal, etc... compatíveis com o Estado Democrático de Direito, mas, que
não sejam, ao mesmo tempo funcionais aos Estado de Polícia que eventualmente
emerge dominante em tempos de suspensão do Estado Democrático de Direito
como no período entre 1964 e 1985. Neste sentido, identificamos coletivamente
alguns obstáculos, a saber: a-) a inexperiência democrática no âmbito da
organização dos movimentos sociais; b-) a carência de uma teoria político-jurídica
que de conta de equacionar o estado atual da dominação em uma sociedade como
a nossa; c-) ausência de uma autocrítica interna mais profunda pelos movimentos
sociais quanto sua autogestão e autoanálise.
253

3 A Inexperiência Democrática e os Movimentos Sociais

Esta esperança ameaçada tinha, por um lado suas raízes na própria


passagem que fazia a sociedade brasileira de seu status anterior, colonial,
de sociedade puramente reflexa, até ser sujeita de si mesma. Em verdade,
nas sociedades alienadas, condições das quais partíamos, as gerações
oscilam entre o otimismo ingénuo e o desespero. Incapazes de criar
projetos autônomos de vida, buscando em transplantes inadequados a
solução para os problemas de seu contexto, são assim utopicamente
idealistas, para fazerem-se depois pessimistas e desesperadas. (FREIRE,
1983 p. 89).

Ainda no contexto dos debates do encontro que comentávamos na sessão


anterior, vale anotar que naquela ocasião ficou evidente que a partir de do golpe de
64 começaram uma série de iniciativas de resistência e movimentos buscando se
reorganizar diante no novo patamar que a luta política ganha sob o regime de
exceção. Mas, muitas destas ações envolvendo militantes políticos acostumados a
responderem ao modelo tradicional das formas de relação social e cultural
reproduzidas pela lógica do dirigismo característico do ‘centralismo democrático do
partidão’, ou seja, integravam o conjunto da típica militância bastante estigmatizada
pela sociedade, o que gerava muitas dificuldades para a luta de resistência.
Essa militância inserida tradicional - por inércia - nesse modelo de
etiquetamento imposto (padronizado como esquerda revolucionária) e que tem muito
a ver com as noções militaristas de ‘disciplina e hierarquia’ impregnado pela
discutível ideia ‘da ditadura do proletariado’. A militância dos movimentos sociais que
reivindicavam pelos presos, desaparecidos ou que foram sequestrados pelas forças
do Estado, vão, num primeiro momento reivindicar respostas justamente aos
próprios aparelho de Estado, seja nas delegacias, hospitais, secretarias, ministérios,
nas igrejas e inclusive nos quartéis militares.
Então essa militância do movimento de direitos humanos vai buscar
informações e reivindicar justiça exatamente ao opressor, neste momento se procura
ajuda junto ao seu próprio agressor. Paulo Freire lembra que os opressores
penetrando nos oprimidos neles se “hospedam”. Neste sentido, é oportuno o que
Paulo Freire trabalha nos seus livros ‘Pedagogia do Oprimido e Educação como
Prática da Liberdade’ através da noção de inexperiência democrática, não só a
ingenuidade daí decorrente do oprimido, mas, o efeito coletivo da histórica
inexperiência democrática, que resulta na reivindicação de justiça ao próprio
opressor operador do sistema de (in)justiça... , sobre essa ótica concreta há muitas
254

possibilidades de negação dos sujeitos históricos sociais por si mesmos...


Justamente a inexperiência coletiva, e a capacidade de destruição da força
repressiva-disciplinar do Estado com o terrorismo mediante o aparato oficial do
Estado, foi fazendo com que a resistência se encontrassem inicialmente restrita as
iniciativas individuais e, com o tempo foi se descobrindo uma possibilidade de
encontro e oportunidade de questionar também outras problemáticas e começar
uma discussão que vai além do caso individual - ainda que limitada, essa
possibilidade que tinha momentaneamente se perdido restando inscrita num campo
individual e dirigida ao próprio opressor -, que era exatamente uma estratégia
intencionalmente produzida e reproduzida pelo modelo de instrução proposto pelo
terrorismo do Estado de suspensão democrática.
O Movimento de luta pela democracia e Direitos Humanos vai se reunindo e
ganhando consistência enquanto fenômeno grupal e coletivo, é importante anotar
como na luta de resistência contra a ditadura e pela redemocratização do país o
movimento social organizado vai se transformando internamente também nesse
processo, deixando uma posição que era da ordem da soma das demandas
individuais, para começar a compreender a luta como uma questão coletiva
transcendente que teria de ser instalada em um espaço público, ao longo das
diferentes etapas da luta pela democracia no país.
A luta contra o terrorismo do Estado ditatorial, construída já não mais como o
acúmulo das demandas individuais (familiar, partidária, intelectual) que reivindicam
suas questões, mas sim um movimento coletivo que exige sim, a restituição da
ordem democrática... assim os movimentos sociais vão se construindo dia a dia
nesses e noutros espaços mais ou menos improvisados. Aqui cabe o exemplo do
movimento dos Familiares de presos e desaparecidos que tiveram seus familiares
como vítimas da última ditadura militar, estes grupos asseguraram que não bastava
às reparações individuais, não bastam os monumentos, rejeitando o mero
ressarcimento econômico, porque se trata de todo um espectro de transformações
institucionais, políticas, sociais e econômicas que atingiram a vida de todo o
conjunto da população e tais questões precisam ser amplamente esclarecidas, para
que possam ser elaboradas. Ai que entra a efetivação no plano do ser daquilo que
chamamos Direito à Memória, Verdade e Justiça.
Como dizia Paulo Freire sobre as dimensões fundamentais das violências
sistemáticas, tratando da falsa generosidade do opressor que resolve desde o seu
255

sentimento de culpa que pode reparar na forma “dinheiro”, a vida desaparecida,


eliminada, superexplorada, torturada... o mesmo Estado que aparelha a violência,
depois impõe como resposta um denominador comum que ilustra como funciona
todo o sistema. Na ‘generosidade’ do Estado opressor de reparar, o mesmo Estado
que – em tempos de exceção - executou sistematicamente a resistência contra o
abuso deste mesmo Estado, que agora – na democracia – “paga” pelo que fez,
como se fosse possível traduzir numa expressão financeira a vida e a potência da
luta política como se tudo pudesse ser reduzido ao denominador comum do dinheiro,
do capital...
E aqui seria ingênuo pensar que se trata só de uma questão menor esta
investida do Estado que vão no sentido da reparação econômica, monumentos,
datas comemorativas, em detrimento de outras formas de reparação mais ampla,
envolvendo reformas institucionais, ou a persecução penal dos agentes... A
reparação econômica além de insuficiente-restrita-tendenciosa pode funcionar como
uma maneira de dissimulação e síntese do conflito social, como mais uma maneira
de homogeneização e captura do sujeito histórico em relação à normalidade que é
de uma forma a mais de reprodução de sujeitos individuais absolutamente funcionais
ao interesses das elites dominantes, que tudo compram, que a tudo pretendem dar
uma denominação financeira como se a vida pudesse ser comprada tal qual
mercadoria. Afinal como diz Paulo Freire:

Numa psicanalise da ação opressora talvez se pudesse descobrir, no que


chamamos falsa generosidade do opressor, uma das dimensões do seu
sentimento de culpa. Com essa generosidade falsa, além de estar
pretendendo a manutenção de uma ordem injusta e necrófila, estará
querendo comprar a sua paz” (FREIRE, 1983, p. 171).

Conclusão Provisória

Por tudo isso é que dizemos: à merda com tantas palavras elegantes e
castradas, à merda com esta ciência superabstrata que não nos permite
compreender e instrumentalizar a realidade em que estamos metidos.
Ressituemos a Sociologia, a Psicologia e a Psiquiatria, depois de realizar
um giro de 180 graus – em vez de ficar olhando, como servos dependentes,
a Europa e o imperialismo norte-americano, olhemos para o interior de
nossa terra e, junto com o nosso povo, comecemos a inverter a perspectiva.
(MOLFFATT,1982, p.11)

Trata-se, portanto, de marcar um plano de análise geral para dizer e fazer


ecoar em alto e bom som que terrorismo de Estado é uma maneira vil, grotesca,
256

terrível, sinistra e perversa de destruição concreta do outro com a conivência e na


normalidade do senso comum, já que, até certo ponto porque naquele momento nos
anos 60-80 se pode falar de um período de normalidade para grande parte da
população brasileira e Latino-americana. Para além da propaganda político-
ideológica do IPES (DREIFUSS, 1964, p. 229) e do IBAD (DREIFUSS, 1964, p.
229), vimos também o exercício do que se chamou cumplicidade civil através da
indiferença moral. Por exemplo, uma pessoa que “fuma maconha” como aconteceu
com o Austregésilo Carrano - que depois descreveu o horror no seu livro ‘O canto
dos Malditos’ – e que foi internado em um Manicômio, pelos seus próprios pais, que
depois de o convencem a visitar a um lugar desconhecido, o deixaram sob custódia,
onde sofreu todo tipo de violências, que foram justificadas para o seu próprio bem.
Ou ainda como ocorre com tantos brasileiros e brasileiras esquecidos nos distritos
policiais, muitas vezes por mais tempo que a própria pena que poderia vir a cumprir
se condenado fosse – pervertendo o sistema de justiça penal em suplicio, martírio e
vingança.
Esse nível de comprometimento de amplos setores da sociedade civil dizia que
se um vizinho, conhecido ou amigo estava sendo investigado ou fora abordado pela
polícia, logo se afirmava que: “alguma coisa tinha feito”. No Brasil desta época
quando alguém desaparecia ou era detida as pessoas justificavam a ação dos
militares como necessária, e os ‘desvios’ eram atribuídos a comportamentos
derivados de posições políticas equivocadas de tipo subversivo. Um lema resumia a
moral vigente, ‘Brasil: ame-o ou deixe-o’. Numa afirmação do patriotismo como
adaptação passiva aos parâmetros do eu individual, a um ‘eu’ nacional, a um ‘ser
brasileiro’, cuja, nacionalidade será a expressão ordeira de uma subjetividade
‘individuada’ que em tese não teria nada a ver com as formas de produção e
reprodução de mercadorias, com a organização da propriedade privada, ou com a
participação nos processos decisórios mais relevantes do país... fazendo da
adaptação passiva uma virtude nacional.
Como lembra Paulo Freire,

[...] em nome da liberdade “ameaçada” repelem a participação do povo.


Defendem uma democracia sui generis em o povo é um enfermo ao qual se
deve aplicar remédios. E sua enfermidade é precisamente ter voz e
participação. Cada vez que procure expressar-se livremente e pretenda
participar, é sinal de que continua enfermo, necessitando então mais
remédios. A saúde para esta estranha democracia é o silencio do povo, sua
quietude. (FREIRE, 1983, p. 47)
257

Esta consigna hoje ainda continua vigente, não a adaptação ativa da tolerância
fraterna de quando estamos debatendo temas complexos entre iguais e que exigem
a tranquilidade de acolher a diferença e entender que cada um tem um tempo para
processar certos assuntos mais ou menos amplos ou complexos. A aceitação
incondicional do país como está, é adaptar-se ao silêncio cúmplice, é admitir o
silêncio imposto como forma de sociabilidade, de normalidade. Assim é possível não
nos interessar ou nos preocupar pelo que acontece com o sujeito que está sendo
destruído ao lado – a questão indígena, o racismo estrutural - e o pior que dizemos
que essa forma de adaptação passiva ao aberrante ser brasileiro/brasileira é o
normal... os anormais eram os que lutavam pela vida... ser cúmplice passivo do
sistema que produzia morte era o normal... segue sendo o normal.
Quando hoje assistimos a volta das consignas da submissão, e do fanatismo
fascista travestido de neutralidade, apoliticidade, apartidarismo, legalidade... que
replicam ordens de adaptação e submetimento como acontece nas salas de aulas
das escolas, nas universidades e nos programas de pós-graduação subservientes
ao produtivismo quantitativo alienígenas... mas, também em todas as formas de
adaptação que há no atual sistema econômico de ‘idiotização’ em nome do humano,
do Mercado, de Deus e da vida. A margem das hegemonias existe um movimento
interessante na América latina inteira enfrentando esse modelo de Estado perverso
que nasceu no período colonial... Se trata, enfim, mesmo sem uma formula pronta
de seguir na defesa do Estado Democrático de Direito, já que existem infinitos
modos de descobrir como construir formas de multiplicar as multiplicidades e ir
destruindo esse individualismo exacerbado que em nome da vida das populações
está nos impondo uma servidão sutil.

Referências

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260

O RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS E A TOLERÂNCIA RAZOÁVEL ENTRE


POVOS EM UMA ORDEM MUNDIAL PACÍFICA EM RAWLS

Wilson Yoshiro Oyamada145

Resumo: No presente trabalho, pretende-se, a partir da obra O Direito dos Povos de


John Rawls, analisar as questões atinentes ao Direito Internacional e da relevância
dos Direitos Humanos apresentados por Rawls, no tocante a construção e
consolidação de uma convivência harmônica entre os Estados. A falibilidade das
propostas jurídicas transnacionais, somando-se com a ausência de participação dos
líderes, das instituições, e a falta de interesse dos indivíduos, impedem avanços
significativos nessa esfera. Com as constantes violações às normas de Direitos
Humanos, ocorridas principalmente no século XX, é possível perceber que esse
direito não tem merecido a devida atenção, tampouco o devido respeito por parte de
alguns países. À vista disso, o pensamento de Rawls expresso no referido livro tem
ganhado notoriedade, pois ele apresenta alguns elementos que acredita que, se
forem observados, pode conduzir ao estabelecimento de uma “Sociedade de Povos”
e, consequentemente, a um “Direito dos Povos”. Para se atingir esse ideal, ele divide
a sua obra em quatro partes. Num primeiro momento, Rawls apresenta a primeira
parte da Teoria Ideal, em que ele apresenta o “Direito dos Povos” como utopia
realista, os princípios do “Direito dos Povos” entre outras questões. Num segundo
instante, Rawls expõem a segunda parte da Teoria Ideal, no qual ele explica sobre
os Direitos Humanos, a hierarquia de consulta decente, a tolerância de povos não
liberais entre outras considerações. Já na terceira parte, o filósofo em voga discorre
sobre a Teoria não Ideal, comentando acerca das Sociedades Oneradas, da justiça
distributiva entre os povos dentre outros temas. Na quarta parte, Rawls manifesta a
sua conclusão. Desse modo, intenta-se, tendo como norte a aludida obra, realizar
uma reconstrução da ideia de Direito Internacional de Rawls e, ao mesmo tempo,
analisar a relevância dos Direitos Humanos na teoria rawlsiana, concernente a
especificação dos limites da tolerância razoável entre os povos, sem se esquecer de
mencionar as criticas dirigidas a essa teoria. Para tanto, utilizar-se-á de pesquisa

145
Advogado, especializando em Filosofia Moderna e Contemporânea: aspectos éticos e políticos pela
Universidade Estadual de Londrina (UEL) e especializando em Filosofia e Direitos Humanos pela
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, colaborador do Grupo de pesquisa Teorias da Justiça. E-
mail: gw.wilson@bol.com.br
261

baseada no método dedutivo, realizando uma abordagem bibliográfica, valendo-se


dos escritos de Rawls e de seus comentadores, como Nythamar de Oliveira e Denis
Coitinho Silveira. Ao final, procura verificar em que medida o raciocínio de Rawls
pode colaborar para a formação de uma ordem mundial pacífica.

Palavras-chave: Direito dos Povos; Direito Internacional de John Rawls; Direitos


Humanos na Concepção Rawlsiana; Tolerância Razoável entre os Povos.
262

GRUPO DE TRABALHO 5

RETROCESSO SOCIAL E RESISTÊNCIA

Ementa: Serão aceitos os trabalhos que tratem dos seguintes temas: trabalho
terceirizado; “o negociado sobre o legislado”; desregulamentação da legislação
trabalhista; trabalho escravo; trabalho infantil; a mulher e a discriminação no
trabalho; a duração do trabalho; o ambiente de trabalho em face da saúde e do
perigo de vida aos trabalhadores; submissão, necessidade e trabalho; compliance
na empresa nas relações de trabalho; teoria do risco na empresa; direito de
resistência no direito individual e no direito coletivo.

Coordenador: Cesar Bessa (bess@sercomtel.com.br)


263

ENSAIO SOBRE A TENDÊNCIA À EXTRAÇÃO DE MAIS-VALIA ABSOLUTA NAS


RELAÇÕES DE TRABALHO CONTEMPORÂNEAS

Baruana Calado dos Santos146

Este trabalho é fruto das leituras e debates proporcionados pela disciplina


Transformações no Mundo do Trabalho Contemporâneo, ministrada pela Professora
Simone Wolff, que, por meio de um arcabouço teórico-metodológico marxiano,
pretendeu avançar na contextualização do movimento do capitalismo a partir da
análise mundo do trabalho contemporâneo, uma vez considerado este como o ponto
de partida para compreender a vida social.
Para tanto, em linhas gerais, a disciplina dividiu-se em três momentos:
primeiramente, proporcionou o estudo de suas bases teórico-metodológicas, em que
esclareceu conceitos-chave para a compreensão do processo de trabalho sob o
capitalismo - tais como o conceito de mercadoria, de processo de trabalho, processo
de valorização, de mais-valia absoluta, de mais-valia relativa, cooperação, divisão do
trabalho e manufatura, maquinaria e grande indústria, salário por peça, etc.-
explicitando as aplicações contemporâneas de tais conceitos.
Posteriormente, houve a preocupação em esclarecer as transformações do
mundo do trabalho desde a Primeira Revolução Industrial até a Terceira Revolução
Industrial, perpassando pela crise do fordismo-keynesianismo, o modo como o
capital respondeu a ela e os desafios hodiernos à classe dos trabalhadores.
Por fim, optou-se pela análise do futuro do trabalho no século XXI, em que se
torna cada vez mais difícil o reconhecimento da classe trabalhadora como tal, devido
a sua complexificação diante da nova configuração de cadeia de valor das grandes
empresas contemporâneas.
O percurso estabelecido permitiu ricos debates a respeito de variados temas
relativos às novas dinâmicas e tendências do mundo do trabalho contemporâneo,
que não se desvinculam dos marcos conceituaismarxianos clássicos 147. Dentre eles,

146
Universidade Estadual de Londrina. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Ciências
Sociais. E-mail: baruana.cs@gmail.com
147
Ver: CAVALCANTE, Sávio Machado. Valor, renda e “imaterialidade” no capitalismo
contemporâneo. Caderno CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p. 115-130, Jan./Abr. 2014; HUWS, Ursula.
Vida, trabalho e valor no século XXI: desfazendo o nó. Caderno CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p.
13-30, Jan./Abr. 2014; PRADO, Eleutério. Desmedida do valor: crítica da pós-grande indústria.
264

a atual relevância do conceito de mais-valia absoluta, que ganha novas fontes


empíricas de aplicabilidade com a reestruturação dos processos produtivos frente
àcrise de lucratividade, que nada mais é do que a crise da mais-valia relativa.
Assim, por meio da bibliografia trabalhada na disciplina em questão, este
trabalho se detém na discussão sobre o afrouxamento do estado de bem-estar
social - vinculado ao modo de produção fordista, caracterizado pela preponderância
da extração de mais-valia relativa - em prol de relações de trabalho condizentes com
o ideal neoliberal, em que há, paulatinamente, a desproteção do trabalhador e a
desoneração do empregador dos encargos sociais, dando cada vez mais espaço
para a preponderância da extração de mais-valia absoluta.
Em um primeiro momento, faz-se necessário, portanto, a definição marxiana de
mais-valia. Após, será apresentada uma breve análise sobre a cessão do estado de
bem-estar social ao neoliberalismo para, em seguida, abordar as transformações na
teoria do valor com a expansão do trabalho imaterial com o setor de serviços e como
essas mudanças geram mecanismos tanto de extração de mais-valia relativa quanto
de absoluta.

1 Trabalhando conceitos: mais-valia absoluta e mais-valia relativa

A diferenciação do capitalismo para os outros modos de produção é feita, por


Karl Marx, a partir da noção de mais-valor. Escreve o autor:

A produção capitalista não é apenas a produção de mercadoria, mas


essencialmente a produção de mais-valor. O trabalhador produz não para
si, mas para o capital. Não basta, por isso, que ele produza em geral. Ele
tem de produzir mais-valor. Só é produtivo o trabalhador que produz mais-
valor para o capitalista ou à autovalorização do capital. [...] o conceito de
trabalhador produtivo não implica de modo nenhum apenas uma relação de
atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas também
uma relação de produção especificamente social, surgida historicamente e
que cola no trabalhador o rótulo direto de valorização do capital. (MARX,
2013, p. 578).

Dessa forma, o conceito de mais-valia, tanto em seu sentido relativo quanto


absoluto, envolve todo um espaço de movimentação conceitual, que exige, de certo
modo,determinada imersão à esfera de atuação da mercadoria, da força de trabalho
e do processo de produção permeados pelo processo de valorização.

São Paulo: Xamã, 2005.


265

Dessa maneira, num primeiro momento, é necessário trazer à tona a ideia de


mercadoria, com o intuito de se buscar aquilo que seria seu valor de uso e seu valor
de troca,relacionando-os, em seguida, ao consumo do trabalho, mas do trabalho
tomado aqui como mercadoria. Sendo mercadoria, o trabalho, a seu modo, também
possui valor de uso e valor de troca. Com relação ao primeiro, pode-se dizer que há
certa variabilidade de seu uso, promovido, essencialmente, por quem o toma em
consumo. Nesse caso, sendo o trabalho uma ação, a maneira como se utiliza tal
ação determina seu valor. Mas o trabalho, quando inserido na lógica da mercadoria,
já é, também, uma “força de trabalho”, posto que quem o vende (o trabalhador)
somente o faz por estar separado dos meios de produção: desprovido dos meios de
produção, o trabalhador vende sua capacidade de trabalho. Em contrapartida, quem
“compra” tal capacidade, o faz por meio do valor de troca, que pode ser definido
como a quantidade de mercadorias, revertidas em seu equivalente em dinheiro,
necessárias para a reprodução da força de trabalho.
A partir daí, dessa lógica da mercadoria, entra em questão a valorização do
trabalho em seus termos de uso, de tal maneira que ele seja empregado para gerar
valor sobre o que é gasto em seu consumo. Isto é, entre o valor de uso e o valor de
troca, quem consome o trabalho, que são os donos dos meios de produção,
precisam extrair desse ciclo um incremento de valor que supere o gasto com o valor
de troca. E o processo que permite tal extração de valor é o processo de produção.
O processo de produção acontece, fundamentalmente, pelo seguinte circuito:
dinheiro – mercadoria – mais-dinheiro. Circuito este, que descreve um ciclo pelo
qual o dinheiro e a mercadoria transformam-se em “capital” devido à presença da
força de trabalho como mercadoria. Ou, em outras palavras, os donos dos meios de
produção compram a força de trabalho pelo seu valor (valor de troca) e ao vender o
produto desse trabalho (mercadoria), o fazem de maneira a recuperar tanto o que foi
gasto quanto, ainda, extrair um excedente de valor, que será, novamente, usado no
ciclo.
Nota-se assim, que o trabalho é fonte de geração de valor excedente, além de
ser também sua condição de reprodução.
Por outro lado, tudo isso só é possível por meio daquilo que Marx chamou de
subsunção do trabalho pelo capital. Como foi dito acima, o valor de uso do trabalho-
mercadoria implica diretamente na “qualidade” desse trabalho. Isto quer dizer que
dependendo da maneira como se utiliza o trabalho, insere-se, nesse processo de
266

uso-consumo, um ordenamento que requer sua potencialização.


Essa potencialização, que na verdade se expressa pela criação contínua de
novas formas de trabalho e de meios de produção, significa que a partir do momento
em que o trabalho é englobado pela lógica do capital, todo seu sentido e sua
produção/reprodução se transforma. Subsunção, portanto, do trabalho ao capital que
exige, como funcionamento essencial, ser seu próprio elemento genético de
transformação.
Num primeiro momento, quando o capital envolve o trabalho sem transformá-lo
ou recriá-lo, tem-se a chamada subsunção formal, caracterizada basicamente pelo
reordenamento do processo de trabalho visando a criação da mais-valia (ou
excedente de valor). Nessa forma, a mais-valia acontece pela ampliação da parcela
de trabalho excedente (trabalho além do custo do valor de troca), sem que haja a
necessidade de grandes ou intensas transformações no processo. Assim, a
subsunção formal do trabalho ao capital pressupõe a extensão da jornada de e não,
necessariamente, a transformação do processo de trabalho em si. Essa forma de
extração de mais-valia, Marx definiu como “mais-valia absoluta”.
Por outro lado, há a subsunção real do trabalho ao capital. Nesse caso, o
capital submete totalmente o processo de trabalho às suas exigências de
valorização, o que imprime uma base própria ao capital. Submissão esta em que o
trabalho em sua dimensão social passa a ser afirmado, criado e recriado de acordo
com as exigências do processo de produção do capital.
A subsunção real implica novas formas de produzir, pelas quais novas formas
de trabalho passam a ser criados, alterando profundamente o espaço das relações
tanto econômicas quanto sociais. E uma das transformações mais efetivas se dá no
âmbito da tecnologia, fazendo com que seu crescimento seja revertido
substancialmente à mecanização da produção. Assim, com a intensificação do
desenvolvimento dos meios de produção, as forças produtivas sofrem alterações
contínuas imprimindo novas transformações na esfera do processo produtivo.
Dentre os inúmeros efeitos dessas mudanças, o mais impactante, com certeza,
é o que incide sobre a taxa de mais-valia. Diferentemente da mais-valia absoluta,
presa aos limites da extensão da jornada de trabalho, a mais-valia relativa resolve o
problema do trabalho excedente por meio de sua potencialização proporcionada
pelo avanço tecnológico: máquinas cada vez mais sofisticadas demandando tempos
de produção cada vez mais condensados numa espiral intensiva e menos extensos.
267

Ocorre que a mais-valia absoluta, a primeira forma de extração de valor do


trabalho no modo de produção capitalista vem ressurgindo nas novas práticas de
produção de valor no mundo do trabalho contemporâneo, como se buscará
demonstrar.

2 A decadência do fordismo e as soluções neoliberais para as crises

A adequação do processo produtivo à mais-valia relativa com vistas à


intensificação do trabalho se deu em três momentos (DAL ROSSO, 2008). Passada
a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX e a conquista de controles legais
sobre o número de horas a que eram submetidos os trabalhadores, os capitalistas,
não mais podendo se valer do alongamento da jornada de trabalho, ou seja, estando
restritos à extração de mais-valia relativa, passaram a investir em novos
equipamentos para aumentar sua produção, o que gerou o primeiro ciclo da
intensificação do trabalho148. Com o surgimento do sistema fordista, pautado na
“administração científica” de Taylor, o segundo ciclo de intensificação do trabalho
ocorreu por meio da sua reorganização, sem a necessidade de revolucionar
tecnologicamente. Aqui, o trabalhador era especializado em uma única função, para
fazê-la o mais rápido possível. Já com o toyotismo, houve a junção da reorganização
com a inovação tecnológica para gerar o terceiro ciclo de intensificação do trabalho,
em que o trabalhador passa a ser polivalente, devendo controlar diversas máquinas,
já com a tecnologia de automação, ao mesmo tempo.
O fordismo, no entanto, não representou apenas um modo de intensificação de
trabalho mediante mudanças organizacionais no processo de trabalho, mas também
demandou um projeto político-social que resguardasse o trabalhador das crises do
capitalismo: o estado de bem-estar social. A partir da década de 30, houve o
fortalecimento dos sindicatos e de conquistas de direitos trabalhistas, em que foi
estabelecida uma contraprestação social das empresas que exploravam o trabalho
assalariado, o que se sustentou até o início da década de 70, quando o
“compromisso fordista” passou a se enfraquecer (BIHR, 1998).
Alain Bihr explica que já havia uma crise latente de valorização do capital

148
Sobre o conceito de “intensificação do trabalho” ver: DAL ROSSO, Sadi. Mais trabalho! A
intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo : Boitempo, 2008. [Parte I: “O
conceito de intensidade do trabalho”, p. 17-80]
268

desde meados da década de 60, tornada manifesta quando o preço do petróleo


quadruplicou em um contexto de deterioração da taxa de lucro, o que provocou
queda da produção, aumento vertiginoso do desemprego, contração do mercado
mundial, entre outras situações que representaram a primeira recessão generalizada
da economia capitalista desde o final da segunda grande guerra. A despeito das
tentativas de manter as “receitas keynesianas”, o advento da segunda crise do
petróleo, em 1979,confirmou o esgotamento do fordismo e gerou uma completa
inversão da política econômica dos dirigentes ocidentais: para dar conta da crise de
lucratividadee reestabelecer a acumulação por meio de uma taxa de lucro
satisfatória, reergueu-se a bandeira do liberalismo com o discurso da luta contra a
inflação e a desestatização da economia.
Em que pese a classe dominante ter conseguido recuperar sua taxa de lucro
com as medidas liberais de diminuição do capital social excedente e diminuiçãodos
salários reais indiretos, sua aparente vitória encontrou embargo na crise de
superprodução:
ao provocar o agravamento do desemprego, a diminuição do poder de
compra dos assalariados, a compressão dos gastos públicos, a alta das
taxas de juro, ela [a vitória liberal] agravaria a crise latente de
superprodução com a qual se debate o capitalismo ocidental desde o início
da década de 70 (BIHR, 1998, p. 77) [grifo nosso].

A esse respeito, Wolff (2014) esclarece que,no Brasil, os processos de


mercantilizações se iniciaram com o fim dos monopólios estatais e com a abertura
comercial, nos anos 90, em um contexto global em que se buscava força de trabalho
barata e novos mercados consumidores para solucionar a crise de superprodução, e
novos recursos produtivos e abertura de novos mercados para escoar o capital dos
países de industrialização avançada para tentar superar a crise de
sobreacumulação.
Com o Estado a serviço da lógica neoliberal com políticas públicas que
disseminam as práticas de desenvolvimento local, empreendedorismo e governança
como soluções para a precarização do trabalho, Wolff (2014) concluiu, em sua
pesquisa, que, no setor de tecnologia de informação (TI) em Londrina no Paraná,
tais políticas não fazem mais do que acentuar a precarização do trabalho e mascarar
os custos sociais que passam a ser do próprio trabalhador, pois que as grandes
corporações,ao invés de empregar os indivíduos e gerar a contraprestação social
por meio dos impostos, passam a contratar serviços de outras empresas [muitas
269

vezes de pequenos e microempresários – “trabalhadores forçadamente


especializados e externalizados do seu nexo produtivo” (WOLFF, 2014, p. 147)] por
meio da terceirização, ficando estes com a responsabilidade dos encargos sociais.
Isto se torna possível porque num mundo caracterizado pela tecnologia da
informação e da comunicação (PRADO, 2005) não se faz mais necessário que as
estruturas produtivas estejam apenas em um local. Cada setor pode ser
estabelecido onde for mais conveniente e, como consequência, tem-se a não
geração de postos de emprego formal e de arrecadação fiscal. Atrelado a isto, há as
políticas públicas de desenvolvimento local - que abrem o mercado nacional para a
globalização financeira permitindo que o capital estrangeiro negocie diretamente
com as empresas nacionais e locais - e de empreendedorismo - que estimula que o
trabalhador se torne ‘empresário de si mesmo’, gerando ‘empresas’ sem nenhum
vínculo empregatício.
ATI permite superar a verticalização clara da divisão internacional do trabalho
do modelo fordista (no qual havia os países industrializados, os semi-industrializados
e os fornecedores de commodities) para um novo formato em rede, aparentemente
horizontal, mas cujo “centro” permanece (WOLFF, 2009).Nas formações de empresa
em rede as relações de hierarquia ficam mais difíceis de serem percebidas, pois:

[...] a reestruturação econômica neoliberal reorganizou as cadeias


produtivas de um modo que dissimula uma complexa diversidade de novas
formas de assalariamento, as quais conjugam e reequacionam os meios de
extração de mais-valia relativa e absoluta, à semelhança do sistema de
putting-out system prevalecente nos primórdios do capitalismo (WOLFF,
2014, p. 143).

No setor de desenvolvimento desoftware, tem-se, então, um exemplo de como


o grande capital tornou a encontrar meios de extrair mais-valia absoluta ao produzir
uma complexa cadeia de valor que transforma o que era custo de produção em
lócus de produção de valor (WOLFF, 2014). As empresas pós-grande indústria têm
a característica de subtrair ganhos extras a partir das suas transações com
consumidores e outras empresas (que se elas mesmas tornam consumidores),
mantendo assim o processo de extração de mais-valia (PRADO, 2005). A pós-
grande indústria mantém o trabalho industrial, mas o faz em composição com a
subsunção formal e mais-valia absoluta, uma vez que uma não elimina a outra,
senão que a incorpora, levando outros ramos à subsunção formal, como o que
ocorre no campo da TI.
270

3 A expansão do setor de serviços, o trabalho imaterial e a teoria do valor

Os avanços tecnológicos expeliram muito da mão de obra do setor industrial


para o setor de serviços, que devido à sua capacidade de empregar mão-de-obra,
vem crescendo em alta velocidade desde a década de 70 (DAL ROSSO, 2008;
SILVER, 2005). Esta nova divisão do trabalho, que desloca a maior parte da força
de trabalho do setor industrial para o de serviço, traz à tona a questão da
imaterialidade do trabalho, uma vez que o setor de serviço concentra atividades
tanto de cunho material149 quanto de cunho imaterial. Quanto a este último, tem-se o
esclarecimento de que:

Os serviços com base na imaterialidade marcam diferenças significativas


em relação ao trabalho industrial pelo fato de demandarem mais
intensamente as capacidades intelectuais, afetivas, os aprendizados
culturais herdados e transmitidos, o cuidado individual e coletivo (DAL
ROSSO, 2008, p. 33).

Como exemplos de atividades imateriais, citam-se as do: pesquisador,


professor, intelectual, jornalista, radialista, trabalhador dos sistemas de
comunicação, telefonista, trabalhadores de call center, trabalhador a distância
mediados pelos sistemas de informação, trabalhador em atividades de propaganda,
marketing, assessorias e consultorias, psicólogo, conselheiro, pedagogo, médico,
assistente social, enfermeiro, trabalhador de hospitais, clínicas, spas, centros de
recuperação psíquica e física, etc.
Dal Rosso (2008, p. 30) deixa evidenciado que todo trabalho, não só o
imaterial, requer “um componente de reflexão intelectual ou envolvimento efetivo do
trabalhador que não seja apenas exercício de forma física”, mesmo porque a
separação das dimensões intelectual e manual “nada mais é do que a separação do
trabalho entre seus componentes intrínsecos” (DAL ROSSO, 2008, p. 38).
Porém, devido ao fato de as atividades laborais contemporâneas incorporarem
cada vez mais tecnologia de informática, de comunicação e de automação, passa a
se cobrar mais da dimensão subjetiva do trabalhador – seu conhecimento e
informações, sua inteligência prática e sua emoção, mesmo nas atividades da
indústria tradicional. E, de modo que o trabalho imaterial expandiu grandemente nas

149
Como explica Dal Rosso (2008), as atividades materiais do setor de serviço são aquelas que
prestam serviço pessoais como nos bares, restaurantes, cozinhas, produção de alimentos e bebidas,
pois se equiparam trabalho industrial no sentido da sua materialidade.
271

últimas décadas, ele passa a ser um desafio de maior relevância para os


pesquisadores da teoria do valormarxiana, pois se trata de um tipo trabalho que não
se submete ao clássico modo de medir o tempo social necessário para a produção
de uma determinada mercadoria.
Vários autores150 sustentam que as expressivas modificações que atravessam
o mundo do trabalho não desvalidam a teoria marxianado valor como parâmetro
teórico-conceitual para compreender a atual dinâmica capitalista, senão que a
estimula para que alargue seus horizontes, pois mesmo que o valor passe por uma
transformação qualitativa, ele“permanece como norma produtiva, ainda que sob uma
forma ‘desmedida’”. (CAVALCANTE, 2014, p. 115).
A este respeito, Dal Rosso (2008, p. 35) explica que:

Se a métrica do tempo de trabalho socialmente necessário não se aplica à


maioria das atividades imateriais e se as atividades imateriais são
empregadoras de uma proporção cada vez maior da força de trabalho,
então [o caminho a seguir] consiste em alargar as tradicionais noções da
teoria do valor também em diversas atividades imateriais. É crítico
incorporar as dimensões qualitativas da inteligência, da afetividade e da
sociabilidade no trabalho, acima e além do tempo médio socialmente
necessário.

A “desmedida do valor” é justamente a impossibilidade de medir o tempo do


trabalho, que se torna cada vez mais inteletualizado e cuja formação se dá fora do
tempo do trabalho (PRADO, 2005). Dessa forma, a crise da década de 70 gerou
também uma transformação no modo de perceber as potencialidades do trabalhador
no interior do processo produtivo. O trabalhador passa a ser subordinado a um novo
modelo gerencial cujo lema o leva a “agregar valor por aquilo que sabe e pelas
informações que fornece” (PRADO, 2005, p. 99).
A dificuldade de quantificar o trabalho imaterial inclui também o problema da
sua intensificação - a qual, assim como o trabalho material, está sujeito - bem
comodas péssimas consequências para o trabalhador que, enredado na lógica do
trabalho flexível, é vinculado a sistemas de comunicação que o deixa disponível à
empresa a qualquer momento (DAL ROSSO, 2008), independentemente da jornada
de trabalho que lhe é paga - isto quando a ele não é imposto o esquema de “salário
por peça”151. Estes sistemas possibilitam que o trabalhador resolva problemas da

150
Por exemplo, Cavalcanti (2014), Huws (2014), Dal Rosso (2008) e Prado (2005).
151
Um bom exemplo disto envolve o trabalho de advogados que trabalham para escritórios de
advocacia que vinculam a remuneração de seus advogados apenas à porcentagem dos honorários
272

empresa de casa, em seu horário de descanso, o que faz emergir a questão do que
seja hora de trabalho e hora de não-trabalho. As fronteiras do mundo da atividade
laboral são, então, abertas para outros campos que ainda não haviam sido postos
sob controle e exploração do capital (DAL ROSSO, 2008).
Nesta mesma linha, ao fazer a crítica à pós-grande indústria, Prado (2005, p.
115) explicita uma das suas contradições relativas à sobrecarga de trabalho imposta
ao trabalhador:
Se as empresas pós-grande industriais buscam hoje se apresentar no plano
ideológico como participativas, cooperativas e éticas, no fundo, como
empresas, nunca foram tão centralizadoras, competitivas e irrestritas na
busca de lucro, não hesitando em submeter trabalhadores aos seus
propósitos 24 horas do dia, de modo totalizador. Como núcleo da
sociabilidade capitalista, a empresa é já uma instituição total. Se a fábrica
da grande indústria dominava e continua dominando integralmente o
indivíduo durante o tempo de trabalho, a empresa da pós-grande indústria
vem submeter o trabalhador de um modo total, envolvente, hipócrita ou
mesmo cínico, inclusive fora do tempo de trabalho. [grifo nosso]

Por meio da demanda por inteligência e o apelo ao afeto (DAL ROSSO, 2008),
fica claro, deste modo, que o capitalismo conseguiu uma maneira de alongar a
jornada de trabalho (driblando a proteção das leis trabalhistas) ao manter o
trabalhador sob seu comando mesmo fora do expediente152. Com isso, é possível
perceber uma dupla e paralela extração de mais-valia: tanto a extração de mais-valia
relativa quanto de mais-valia absoluta.

***
Uma das grandes preocupações da Sociologia do Trabalho resta na dificuldade
de revelar a relação de emprego para que se possa pensar em políticas públicas de
proteção ao trabalhador – ao invés de políticas públicas que reiterem a

recebidos nas ações ganhas, ou que, mesmo quando imputam um valor de salário fixo pautado em
jornada (teoricamente) fixa, demandam trabalho cuja realização só é possível requer muitas horas
fora do tempo de trabalho real.
152
Já há decisões jurisprudenciais no Brasil no sentido de fazer valer o direito ao lazer e à
desconexão das tecnologias de comunicação que são atreladas ao trabalho: “Na Justiça do trabalho,
tem ganhado espaço o entendimento de que a desconexão, o lazer e o convívio familiar são um
direito, e o funcionário deve receber pelo período que esteve “à espera” da empresa.” Disponível em:
<http://www.granadeiro.adv.br/clipping/jurisprudencia/2016/02/23/direito-ao-lazer-e-desconexao-
ganha-forca-na-justica-trabalhista>. Acesso em mar. 2017.
273

terceirização153. Definir qual é a classe trabalhadora hoje é uma das grandes tarefas
a ser realizada (SILVER, 2005; CAVALCANTI, 2014), pois ao engendrar a
desregulamentação das relações de trabalho e fortalecer o discurso do
empreendedorismo, individualizando questões que são sociais – dentre outras
estratégias, o neoliberalismo tende a impedir, cada vez mais, que o trabalhador
perceba-se enquanto trabalhador e, por conseguinte, deixe de situar-se na condição
de exploração a qual é subordinado. Além de propiciar o avanço da prática da dupla
extração de mais-valia em alguns casos, isto enfraquece o espaço de luta coletiva,
essencial não só na resistência às investidas neoliberais154 como também no avanço
de novas conquistas para assegurar o trabalho decente155.
No entanto, conforme já alertava Marx, o movimento do capitalismo é
intrinsecamente contraditório e traz consigo os próprios mecanismos para sua
superação. As crises do capitalismo são esperadas na medida em que sendo o
trabalho vivo fonte da valorização do capital ele é, ao mesmo tempo, sua barreira.
Nas palavras de Cavalcanti (2014, p. 127): “O conceito de capital, na lógica dialética
usada por Marx, é sujeito cuja pretensão de dominação é totalmente irrealizável. O
capital é, portanto, uma forma abstrata que tem como tendência expelir seu próprio
conteúdo.”.
Apesar das crises que o mundo do trabalho contemporâneo sofre, ao analisar
as agitações trabalhistas ao longo do final do século XIX, século XX e início deste,
Beverly Silver afirma que as próprias contradições do capital criam as condições
para a formação de novas classes trabalhadoras, criando potencialidades e novas
possibilidades de embate por meio do que ela chama de “poder de barganha” do

153
Ver: WOLFF, Simone. DESENVOLVIMENTO LOCAL, EMPREENDEDORISMO E
“GOVERNANÇA” URBANA: onde está o trabalho nesse contexto? CADERNO CRH, Salvador, v.
27, n. 70, p. 131-150, Jan./Abr. 2014.
154
Os embates em torno da legislação trabalhista são de alta importância na proteção do trabalhador
ao garantir direitos sociais trabalhistas básicos. No Brasil, recentes investidas por reforma das leis
trabalhistas – para afrouxá-las - demonstram a tendência ao avanço da mais-valia absoluta nas
relações de trabalho brasileiras.
155
“O Trabalho Decente é o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da OIT: o
respeito aos direitos no trabalho (em especial aqueles definidos como fundamentais pela Declaração
Relativa aos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho e seu seguimento adotada em 1998: (i)
liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; (ii) eliminação de todas
as formas de trabalho forçado; (iii) abolição efetiva do trabalho infantil; (iv) eliminação de todas as
formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação), a promoção do emprego produtivo e
de qualidade, a extensão da proteção social e o fortalecimento do diálogo social.” Disponível em:
<http://www.oitbrasil.org.br/content/o-que-e-trabalho-decente> Acesso em mar. 2017.
274

trabalhador, que será maior ou menor a depender do contexto. A crise é,


portanto,temporária e não tem o poder de decretar ‘a morte do movimento operário’.
Nesta linha, Peter Evans propõe a superação da perspectiva do papel passivo
dos trabalhadores de baixo salário como vítimas do neoliberalismo, pois há, sim,
espaço para luta em meio ao que parece avassalador: ao analisar os movimentos
dos trabalhadores inseridos no contexto de avanço da perspectiva neoliberal
global,Evans (2015)atém o seu olhar no fato de que o neoliberalismo e as conexões
transacionais que ele produz,para além de seus impactos negativos, também geram
frestas para a transnacionalização da luta dos trabalhadores, fortalecendo-a ao
internacionalizá-la - e indo ao encontro do mais famoso imperativo marxiano pela
união dos trabalhadores de todo o mundo156.
O embate de forças entre capital e trabalho é sempre um embate em aberto. O
espaço criado para a dupla extração de mais valor dos trabalhadores de hoje é
também espaço para dupla resistência; resistência esta que pode se dar por meio
das brechas deixadas pelo próprio capitalismo e suas inerentes contradições.

***
(...)
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

Operário em Construção
Vinícius de Moraes

***

156
Ver última frase do manifesto do partido comunista de Engels e Marx.
275

Referências

BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa: o movimento operário europeu em


crise. São Paulo: Boitempo, 1998, p. 69-82.

CAVALCANTE, Sávio Machado. Valor, renda e “imaterialidade” no capitalismo


contemporâneo. Caderno CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p. 115-130, Jan./Abr. 2014.
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0103-
497920140001&lng=pt&nrm=iso>.

DAL ROSSO, Sadi. Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade


contemporânea. São Paulo :Boitempo, 2008, p. 17-80.

DIREITO ao lazer e desconexão ganha força na Justiça trabalhista. Disponível


em: <http://www.granadeiro.adv.br/clipping/jurisprudencia/2016/02/23/direito-ao-
lazer-e-desconexao-ganha-forca-na-justica-trabalhista>. Acesso em mar. 2017.

EVANS, Peter. Movimentos nacionais de trabalhadores e conexões transnacionais:


a evolução da arquitetura das forças sociais do trabalho no neoliberalismo. Caderno
CRH, Salvador, v. 28, n. 75, p. 457-478, Set./Dez. 2015. Disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/ccrh/v28n75/0103-4979-ccrh-28-75-0457.pdf>.

HUWS, Ursula. Vida, trabalho e valor no século XXI: desfazendo o nó. Caderno
CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p. 13-30, Jan./Abr. 2014. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
49792014000100002&lng=pt&nrm=iso>.

MARX, K. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. In: Obras Escolhidas,


vol. 1. S. Paulo, Ed. Alfa-Ômega.

OIT. O que é trabalho decente? Disponível em: <


http://www.oitbrasil.org.br/content/o-que-e-trabalho-decente> Acesso em mar. 2017.

PRADO, Eleutério. Desmedida do valor: crítica da pós-grande indústria. São Paulo:


Xamã, 2005, p. 95-137.

SILVER, Beverly J. Forças do Trabalho: movimentos de trabalhadores e


globalização desde 1870. São Paulo: Boitempo, 2005. [Cap. 3: “Movimentos de
trabalhadores e ciclos de produto”, p. 82-124 ; Cap. 4: “Movimentos de trabalhadores
e política mundial”, p. 125-162; Cap. 5: “A dinâmica contemporânea em perspectiva
histórico-mundial”, p. 163-172]

WOLFF, Simone. DESENVOLVIMENTO LOCAL, EMPREENDEDORISMO E


“GOVERNANÇA” URBANA: onde está o trabalho nesse contexto? CADERNO CRH,
Salvador, v. 27, n. 70, p. 131-150, Jan./Abr. 2014.

_______. O “trabalho informacional” e a reificação da informação sob os novos


paradigmas organizacionais. In: Infoproletários: degradação real do trabalho
276

virtual. São Paulo :Boitempo, 2009.


277

TERCEIRIZAÇÃO E REFORMA DA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA

Flávio Bento157
Marcia Hiromi Cavalcanti158

Resumo: Conforme vem sendo noticiado pela mídia desde 2016, a proposta de
reforma trabalhista em estudo pelo atual Governo trabalha com a ideia da
possibilidade de flexibilização de direitos assegurados aos trabalhadores, desde que
mediante negociações coletivas. Os direitos mínimos assegurados na Constituição
Federal seriam mantidos [como a remuneração adicional de pelo menos 50% das
horas extras], mas vantagens poderiam ser flexibilizadas como o 13º salário, as
férias, o FGTS, dentre outros. A proposta aposta na negociação coletiva entre
Sindicatos e empresas. Um dos pontos que exigiria uma nova análise pelo
entendimento do empresariado e do Governo é a ampliação das possibilidades
legais das terceirizações. Esse ponto ganhou importância mais recentemente com
alterações no regime do trabalho temporário. O objetivo desse estudo é analisar
alguns aspectos dessas mudanças, apesar da discussão ainda persistir no
Congresso, e apresentar os “valores” e “direitos” em jogo. No final o que se espera é
contribuir para a necessária reflexão sobre o tema da terceirização, quer sob o
enforque do direito dos trabalhadores, quer sob o enfoque da atividade empresarial.
Palavras-chave: Terceirização. Reforma da legislação trabalhista. Trabalho
temporário.

Introdução

O Brasil vem passando por um momento político e social conturbado nos


últimos anos a partir do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Com a posse
do Governo Michel Temer iniciou-se um processo de “reformas” que há muito tempo
se afirmam necessárias, como a reforma da legislação trabalhista, da Previdência
Social, a reforma política, a tributária, dentre outros.
No foco das atenções mais urgentes ganhou preferência ou viabilidade

157
Universidade Estadual do Norte do Paraná, campus de Cornélio Procópio. Doutor em Educação.
prof.flaviobento@gmail.com
158
Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Filosofia Política e Jurídica.
marciacavalcantibento@gmail.com
278

política a reforma da legislação trabalhista. A primeira mudança importante foi a


edição da Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017, que alterou dispositivos da Lei n.
6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas
empresas urbanas, e dispôs sobre as relações de trabalho na empresa de prestação
de serviços a terceiros. A reforma de alguns aspectos da Consolidação das Leis do
Trabalho ainda se encontra em tramitação avançada no Congresso Nacional.
O objetivo desse estudo é analisar os principais aspectos dessas mudanças,
especialmente nas relações de trabalho temporário, e apresentar os “valores” e
“direitos” em jogo.

1 Trabalho temporário

Conforme os termos da legislação vigente, trabalho temporário é aquele


prestado por trabalhador ou trabalhadora “contratada por uma empresa de trabalho
temporário que a coloca à disposição de uma empresa tomadora de serviços, para
atender à necessidade de substituição transitória de pessoal permanente ou à
demanda complementar de serviços” (BRASIL, 2017a).
Como regra uma pessoa física deve ser contratada diretamente por um
empregador, mediante contrato de trabalho, sem intermediários, quando a prestação
de serviços estiver vinculada às atividades fins da empresa.
Essa ideia de ordem geral está expressa no inciso I da Súmula 331 do
Tribunal Superior do Trabalho, que dispõe que “a contratação de trabalhadores por
empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos
serviços, salvo no caso de trabalho temporário [Lei nº 6019, de 3.1.74]” (BRASIL,
2017b).
Assim, podemos afirmar que para a execução de tarefas vinculadas à
atividade fim, a empresa deve contratar diretamente seus empregados, como
empregados, exceto nas situações de “necessidade de substituição transitória de
pessoal permanente ou à demanda complementar de serviços”, quando poderá
contratar trabalhadores temporários.
Embora o trabalhador temporário seja empregado, com todos os direitos
trabalhistas, esse tipo de trabalhador possui uma relação de podemos qualificar
como “precária”. Isso porque seu vínculo só se manterá se a empresa de trabalho
279

temporário159 [empregadora do trabalhador temporária] possuir clientes [empresas


tomadora dos serviços] ou demanda suficientes para justificar a manutenção do
contrato de trabalho com esse trabalhador temporário.
A demanda suficiente será a de empresas com “necessidade de substituição
transitória de pessoal permanente ou à demanda complementar de serviços”, que
necessitem da contratação da empresa de trabalho temporário, que encaminhará o
trabalhador temporário para atender a essa necessidade.
Um aspecto importante do trabalho temporário é o tempo de colocação do
trabalhador temporário na empresa tomadora dos serviços: 180 dias, consecutivos
ou não, podendo ser prorrogado por até 90 dias, “quando comprovada a
manutenção das condições que o ensejaram”, que é a “necessidade de substituição
transitória de pessoal permanente” ou a “demanda complementar de serviços” 160.
Podemos esquematizar conforme abaixo:

Empresa Empregado Contrato de Vínculo direto e


Trabalho indeterminado
Empresa de Trabalhador Contrato de Vínculo direto e
Trabalho Temporário Trabalho indeterminado
Temporário
Empresa Trabalhador Contrato de Vínculo indireto,
Tomadora de Temporário Trabalho excepcional e
Serviço Temporário determinado.

A discussão quanto ao trabalho temporário, a possibilidade de contratação de


trabalhadores por tempo determinado ou para atender à certa situação e a
precarização das relações de trabalho é global, como se infere das observações
feitas por Teresa Sá sobre essas relações na Europa:

Embora seja verdade que é muito difícil contabilizar o “trabalho precário” e


compará-lo em vários países, conforme Barbier mostra no artigo ante-
riormente citado, é importante analisar as “Novas Formas de Trabalho”, que
surgem na Europa, na sequência da crise económica, e que estão
associadas a empregos instáveis, com menos regalias sociais e com baixos
salários, prenunciando de certo modo aquilo que para Castel (1995)
significaria o fim da “sociedade salarial”.

159
“Empresa de trabalho temporário é a pessoa jurídica, devidamente registrada no Ministério do
Trabalho, responsável pela colocação de trabalhadores à disposição de outras empresas
temporariamente” [artigo 4º, Lei n. 6.019, de 3 de janeiro de 1974] (BRASIL, 2017a).
160
“Artigo 10º - 1o - O contrato de trabalho temporário, com relação ao mesmo empregador, não
poderá exceder ao prazo de cento e oitenta dias, consecutivos ou não. § 2o - O contrato poderá ser
prorrogado por até noventa dias, consecutivos ou não, além do prazo estabelecido no § 1o deste
artigo, quando comprovada a manutenção das condições que o ensejaram” (BRASIL, 2017a).
280

Num estudo recente Oliveira e Carvalho (2008) analisam a evolução do


trabalho temporário, que corresponde a um indicador importante para a
compreensão da precarização do emprego, num conjunto de países da
Europa nos últimos vinte anos. Concluem que o emprego precário se tem
instalado persistentemente em todas as gerações. Segundo as autoras, “a
tese da generalização do trabalho precário na UE, portanto, não se verifica,
embora afecte a maioria dos países de forma diferenciada, sendo que,
nesses casos, se afirma como um traço estrutural na reconfiguração dos
161
mercados de trabalho” (2008: 560) (SÁ, 2010) .

As relações de trabalho temporário, por prazo determinado, ou para atender


situação transitória, são oportunidades desfavoráveis ao trabalhador porque não são
estáveis, não garantem o emprego ao trabalhador. Na relação direta entre
empregado e empregador, embora a rescisão do vínculo possa ocorrer a qualquer
momento e por diversos motivos, a indeterminação do prazo gera a segurança de
que o vínculo será mantido independentemente de um termo final já fixado ou do
término de uma situação transitória.
Como observa Teresa Sa, “apesar da dificuldade em encontrar uma definição
comum e rigorosa de ‘trabalho precário’, vamos neste trabalho associá-lo a quatro
características: i) insegurança no emprego; ii) perda de regalias sociais; iii) salários
baixos; iv) descontinuidade nos tempos de trabalho” (2010).
Para os empregadores, a utilização da terceirização gera vantagens para as
atividades empresariais, como o aumento do foco na atividade principal, a redução e
controle dos custos operacionais, dentre outros (FERRUZZI, SACOMANO NETO,
SPERS, PONCHIO, 2011, p. 47).

2 Terceirização lícita e ilícita

A terceirização no Brasil é possível se ocorrer nas hipóteses de trabalho


temporário [“necessidade de substituição transitória de pessoal permanente ou à
demanda complementar de serviços”], nos serviços de vigilância, conservação e
limpeza, e nos serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador [Súmula
331 do Tribunal Superior do Trabalho] (BRASIL, 2017b).
As atividades-meio do empreendimento são aquelas que servem “apenas de
161
Em nota publicada no mesmo artigo Teresa Sa destaca que: “O Eurostat define trabalho
temporário como um trabalho de duração determinada ou temporária (correntemente designado como
trabalho a termo certo ou a prazo), se for acordado entre empregador e assalariado que o fim do
emprego é determinado por condições objectivas, tais como a definição de uma data precisa para o
seu termo, a finalização de uma tarefa ou o retorno de outro assalariado que havia sido substituído
temporariamente (in Oliveira e Carvalho, 2008)” (2010).
281

apoio ao trabalho diretamente vinculado ao atingimento dos fins desse mesmo


empreendimento, sem que com este trabalho se confundam ou, ainda, que tenham
caráter temporário” (SANTOS, 2005, p. 1251).
Em todas essas situações indicadas no parágrafo anterior, o trabalhador não
pode estar subordinado à empresa tomadora dos serviços, nem esta pode exigir que
o serviço terceirizado sempre seja prestado por um trabalhador específico
[pessoalidade]. Nessas hipóteses a terceirização perde sua regularidade, e a relação
de trabalho temporário ou terceirizado passa a ser considerada ilícita. Sendo a
relação terceirizada ilícita, o trabalhador pode postular que o vínculo entre ele e a
empresa tomadora de serviço seja considerado como um legítimo contrato de
trabalho por prazo indeterminado, gerando direitos trabalhistas que não lhe foi
reconhecido como trabalhador terceirizado.
Súmula nº 331 do TST. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS.
LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à
redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011. [...]
III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de
serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e
limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio
do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
(BRASIL, 2017b)

TERCEIRIZAÇÃO LÍCITA - ATIVIDADE MEIO - AUSÊNCIA DE


SUBORDINAÇÃO. A terceirização de serviços ainda não possui em nosso
ordenamento jurídico regulamentação legal, razão pela qual, com o fito de
conter a utilização abusiva e fraudulenta de tal instituto, o Colendo TST
acabou por sedimentar entendimento no sentido de vedar a contratação por
empresa interposta (Súmula 331, III do TST), salvo nas seguintes hipóteses:
a-) trabalho temporário, autorizado pela Lei 6.019/74; b-) serviços de
vigilância, conservação e limpeza; c-) serviços especializados ligados à
atividade-meio do tomador, ainda assim quando inexistir pessoalidade e
subordinação entre esse e o empregado.

Uma empresa tomadora de serviços pode contratar trabalhadores temporários


e terceirizados de forma irregular apenas para não contratá-los como empregados e
lhes pagar os direitos especiais assegurados na legislação trabalhista. Assim, a
contratação de trabalhadores temporários e terceirizados pode envolver uma
situação regular [terceirização lícita], ou pode representar uma fraude à legislação
trabalhista [terceirização ilícita].
Henrique Macedo Hinz observou que a terceirização de serviços “tem sido
instrumento para se burlar direitos dos trabalhadores, o que gera a imperiosa
necessidade de se diferenciar a terceirização lícita da ilícita, bem como as hipóteses
de responsabilização — ou não — do tomador dos serviços terceirizados” (2005, p.
282

587).

Considerações conclusivas sobre a terceirização e a reforma da legislação


trabalhista

As discussões sobre a recente reforma da legislação trabalhista reacendem o


debate entre trabalhadores e empresariado.
A Central Única dos Trabalhadores entende que o projeto de lei apresentado
pelo atual Governo “tem como objetivo anular os direitos conquistados em mais de
70 anos de lutas sindicais e sociais no Brasil. Nem o Regime Militar, que instalou no
país um modelo de acumulação de capital extraordinário ousou tanto” (CENTRAL
ÚNICA DOS TRABALHADORES, 2017a).
Líderes empresariais entendem que a reforma “garante segurança na relação
entre patrões e empregados”, e argumentam que:

é necessário parar com o discurso contrário à mudança na legislação


trabalhista. “Ficamos discutindo que modernizar é precarizar, que
modernizar é subtrair direitos. Com um discurso pouquíssimo pragmático e
muito ideológico.” Para ele, precarização de verdade é a realidade de
muitos trabalhadores no mercado informal. (BRASIL, 2017c)

É certo, como já observamos neste trabalho, que as relações de trabalho


temporário são vínculos desfavoráveis ao trabalhador porque não são estáveis, não
garantem o emprego ao trabalhador como nas relações de trabalho diretas [contrato
de trabalho] entre trabalhador e empregador.
A legislação vigente e a orientação da Justiça do Trabalho assegura a validade
do trabalho temporário e da terceirização nos serviços de vigilância, conservação e
limpeza, e nos serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador.
A ampliação do tempo de colocação do trabalhador temporário na empresa
tomadora dos serviços, antes por até 90 dias, e agora por até 180 dias, consecutivos
ou não, podendo ser prorrogado por até 90 dias, não altera os principais problemas
que afligem o trabalhador que se submete a esse tipo de relação de trabalho, ou que
tem nessa situação talvez a sua única possibilidade de trabalho: o desemprego, a
falta de competitividade na disputa por empregos mais estáveis, dentre outros.
Os trabalhadores temporários ou terceirizados são, na sua grande maioria,
mulheres, jovens, idosos, trabalhadores sem qualificação, com baixa escolaridade e
283

até mesmo aposentados162163.


Um questionamento que pode ser feito a alguns seguimentos que defendem os
interesses dos trabalhadores é por que nos Governos dos períodos de 2003 a 2010
e de 2011 a 2016, dominado por partidos que em tese existem para defender os
interesses dos trabalhadores [Partido dos Trabalhadores, Partido Trabalhista
Brasileiro etc.], não se promulgou uma nova legislação sobre o trabalho temporário
que fosse mais adequada aos interesses da classe?
Em nota sobre o Projeto de Lei n. 4.302-B de 1998, a Central Única dos
Trabalhadores observou que:

Ao possibilitar a ampliação do trabalho temporário para 180 dias,


prorrogáveis por mais 90 dias, e nova prorrogação possível por meio da
negociação coletiva, o Projeto de Lei permitirá que esta forma de
contratação seja largamente utilizada para reduzir os direitos trabalhistas no
Brasil. Isto porque, as empresas poderão se valer destas novas regras para
reduzir em grande medida seus custos: o trabalhador temporário não tem
direito ao aviso prévio nem à multa do FGTS, quando da rescisão do
contrato. Além disso, o trabalhador temporário não tem direito a uma série
de direitos previstos na CLT (adicional de insalubridade, periculosidade,
etc). (CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES, 2017b)

Há um equívoco nesse argumento porque o trabalhador temporário é


empregado da empresa de trabalho temporário e em caso de rescisão do contrato
de trabalho terá direito ao aviso prévio e à multa sobre os depósitos do FGTS. A
extensão de direitos trabalhistas não assegurados ao trabalhador temporário poderia
ter sido discutida em um período político mais vantajoso para os trabalhadores, o
que não foi feito no período a partir de 2003.
O debate sobre os temas importantes do trabalho temporário poderia ter
ocorrido de forma mais ampla antes da edição da Lei n. 13.429/2017.
É certo que processo de realização de “reformas” adotado pelo atual Governo
Federal não atende à necessidade de um diálogo mais amplo e ponderado. Mas é o
162
“Em relação a Portugal, Rebelo (2004), ao analisar a precariedade laboral seguindo uma
metodologia qualitativa, constrói o perfil do trabalhador precário: mulheres, jovens, idosos, traba-
lhadores ‘pouco qualificados’ e actuais licenciados” (SA, 2010).
163
“Dessa forma, flexibilização e terceirização vêm juntas com a precarização das condições de
trabalho, dos contratos, da possibilidade de organizar a vida, criando novas hierarquias e
segmentando o coletivo de trabalho. Como resultado, o enfraquecimento das possibilidades de
organização dos trabalhadores para defesa de seus interesses. O aumento da vulnerabilidade social
resulta da perda da possibilidade de acesso a direitos: mulheres, jovens e velhos se veem incluídos
pelo baixo custo ou excluídos pela inutilidade. Inutilidade esta que passa a ser generalizada para os
trabalhadores em geral. O medo da inutilidade como fator de pressão, de stress, de intensificação do
trabalho (Bauman, 2003)” (LIMA, 2010, p. 25).
284

que temos no momento, fruto da instabilidade política e social dos últimos anos, e da
inércia dos Governos anteriores em levar adiante, com determinação, as mudanças
que o Brasil tanto necessita.
Como já observou o professor e sociólogo Jacob Carlos Lima, “regulamentar a
terceirização como forma de atenuar seus efeitos pode ser um caminho” (2010, p.
25). Essa regulamentação seria mais adequada aos trabalhadores, como já
afirmamos neste trabalho, se tivesse sido levada adiante em um período político
mais vantajoso para os trabalhadores.
Ainda com Jacob Carlos Lima, concluímos que as reformas na legislação
trabalhista “não significa abdicar de direitos conquistados, mas buscar adequá-los a
um novo contexto marcado pela rapidez das transformações nos mundos da
produção e do trabalho” (LIMA, 2010, p. 25).
Essa é a grande missão de toda a sociedade brasileira nesse tempo de
superação de instabilidade política e econômica.

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286

TERCEIRIZAÇÃO E REFORMA TRABALHISTA: REFLEXOS NA


REPRESENTAÇÃO SINDICAL

Bruna Balthazar de Paula164

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo a análise da Lei Ordinária


13.429/2017, que, entre outras reformas na legislação trabalhista, autorizou a
terceirização da atividade-fim da empresa e a quarteirização, e seus possíveis
reflexos na representação sindical da categoria econômica dos trabalhadores,
levando-se em consideração o histórico e a atual organização sindical brasileira. A
terceirização consiste na existência de uma empresa intermediadora inserida entre a
força de trabalho e a empresa tomadora de serviços. No Brasil, antes sem legislação
específica, os Tribunais do Trabalho e o Tribunal Superior do Trabalho, entendiam
que este fenômeno apenas poderia ser admitido para consecução de atividades-
meio, como limpeza e manutenção, pois exercida como atividade-fim se estaria
diante da chamada terceirização ilícita. Com a retomada do Projeto de Lei
4.302/1998 no ano corrente, aprovado, sancionado e publicado como a Lei Ordinária
13.429/2017, o referido entendimento foi alterado. A reforma trabalhista perpetrada
permitiu dois fenômenos: a terceirização de todas as atividades da empresa e a
quarteirização. Muda-se, desta forma, a configuração dos empregados que
trabalham inseridos em uma determinada empresa, pois nem todos pertencem ao
quadro de funcionários da empresa principal. Após, analisa-se a organização
sindical brasileira, inspirada no modelo corporativista italiano, e seu histórico, pois
esta foi organizada na década de 1930, sob à égide de um Estado intervencionista.
Com poucas reformas, a organização sindical criada continuou consagrada pela
Constituição Federal de 1988. Assim, ainda é adotado o modelo de sindicato por
categoria profissional ou econômica, exsurgindo-se um conflito com a permissão de
terceirização das atividades-fim da empresa: como será a representação dos
trabalhadores terceirizados? A representação de trabalhadores terceirizados, antes
das reformas mencionadas, já ensejava o referido problema de pulverização da base
sindical, pelo referido modelo, o qual já foi debatido no Fórum Nacional do Trabalho

164
Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUC/PR – Campus Londrina.
Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Contato: brunabpaula@gmail.com
287

em 2005, culminando na PEC 369/2005, e no Seminário Liberdade Sindical e os


Novos Rumos do Sindicalismo no Brasil. Todavia, a estrutura permanece a mesma.
Portanto, a reforma trabalhista, no que se refere à terceirização e quarteirização de
todas as atividades empresariais, as quais fragmentam a empresa, pode constituir
uma possibilidade de fragmentação do universo operário e, consequentemente, de
sua representação por meio dos sindicatos, posta a forma como estes se encontram
estruturados.
Palavras-chave: Terceirização. Reforma Trabalhista. Organização sindical.

Introdução

Inicialmente, o presente artigo pretende analisar o fenômeno da terceirização,


especificamente: origens, desenvolvimento no Brasil e a expansão a partir da
década de 1990; definição e terminologia. Ainda, serão elencados os instrumentos
normativos que se seguiram na legislação brasileira sobre o tema e a jurisprudência
do Tribunal Superior do Trabalho.
No capítulo seguinte será exposto um breve histórico da organização sindical
brasileira, que foi inspirada no modelo corporativista italiano na década de 1930, sob
à égide de um Estado intervencionista. Com poucas reformas, o modelo sindical
instituído continuou consagrado pela Constituição Federal de 1988, mantendo-se,
entre outros institutos, a unicidade sindical e a representação por categoria
econômica.
Ainda, neste capítulo, será tratada a terceirização na reforma trabalhista,
incluindo os três principais projetos de lei que buscaram a regulamentação do tema:
Projeto de Lei 4302/1998, Projeto de Lei 4330/2004 e Projeto de Lei 1621/2007. Os
dois primeiros caminham no sentido de liberação da terceirização nas atividades-fim
das empresas e “quarteirização”, não reconhecimento de vínculo com a tomadora de
serviços e responsabilidade subsidiária desta. O último, em sentido contrário, veda a
terceirização, garante a responsabilidade solidária das contratantes e garante
igualdade a todos os trabalhadores envolvidos na terceirização.
No capítulo terceiro serão analisados possíveis reflexos da terceirização na
representação sindical, levando-se em consideração toda a organização sindical
trabalhada no segundo capítulo. Por fim, elencaram-se algumas posições de
centrais sindicais sobre o tema da terceirização, não havendo unanimidade entre
288

elas.
Este trabalho buscou analisar os possíveis reflexos da terceirização na
representação sindical, entendendo-se que é um fenômeno já presente na
sociedade atual, porém, agora, apenas ampliada legalmente, com o objetivo de
verificar se, em razão do modelo sindical ainda mantido no Brasil, haverá
possibilidades de ensejar na fragmentação do movimento sindicalista, que já se
encontra deveras pulverizado.

1 Terceirização e reforma trabalhista

Na década de 1970 houve uma crise capitalista na Europa Ocidental, que


abalou as relações de trabalho e emprego, trazendo entre suas transformações um
novo modelo de produção: o toyotismo. Esse modelo, construído a partir do
paradigma do Estado neoliberal, implementou a ideia de horizontalização da
empresa, em contraponto ao modelo vertical utilizado pelo taylorismo/fordismo
(CRUZ, 2017, p. 316).
No Brasil, a terceirização é fenômeno que se expandiu desde a década de
1990, sendo que, nesse contexto, os grandes industriais não exercem mais o
protagonismo (SOUZA e LEMOS, 2016, p. 1036). Souza e Lemos (2016, pp. 1043 e
1044) afirmam que é na década de 1970 que estão as raízes históricas do instituto
da terceirização com a gradativa implantação do toyotismo no cenário nacional, mas
apenas partir dos anos 1980 que a adoção de práticas gerenciais flexíveis implicou a
desverticalização dos processos e das estruturas produtivas.
Sendo assim, neste período, foram realizados importantes estudos de caso e
pesquisas, construindo um campo variado de debate sobre o tema (MARCELINO e
CAVALCANTE, 2012, p. 331). Ressalta-se que durante os anos 1990,
primordialmente, foram publicados vários estudos na área de Administração, os
quais se constituíam, em sua maioria, em manuais de implementação deste
“mecanismo de gestão”. Marcelino e Cavalvante (2012, p. 333) asseveram que “em
sua quase totalidade, defendia-se a ideia de que as empresas deveriam focar suas
atividades-fim e delegar tarefas e processos acessórios (atividades-meio) a outras
empresas especializadas”.
Os processos de terceirização continuaram ocupando espaços em todas as
áreas da economia brasileira nos anos seguintes (OLIVEIRA, 2015, p. 555). Oliveira
289

cita três pesquisas sobre o assunto que corroboram esta afirmação: pesquisa de
Pochmann, Confederação Nacional das Indústrias e CUT/DIEESE.
Ainda, Souza e Lemos (2016, p. 1041) apontam a pesquisa elaborada pelo
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) no
ano de 2011 sobre os impactos da terceirização sobre os trabalhadores, “revelando
a crescente penetração do contingente de terceirizados, totalizando, em 2010, uma
massa de aproximadamente 11 milhões de trabalhadores ou, em termos relativos,
25,5% do contingente total de postos formais de trabalho”. Indiscutivelmente, no
Brasil, o que mais induz as empresas a imergir num processo de terceirização é a
perspectiva de redução de custos operacionais fixos de suas atividades (COSTA,
1994, p. 10).
Ainda que configure amplo fenômeno em expansão no Brasil desde a década
de 1990, conforme demonstrado neste tópico, busca-se adiante definir o que seria
“terceirização”.

1.1 Definição

A palavra “terceirização” é um neologismo que tem origem no latim terciariu,


derivada do ordinal tertiariu. Constitui uma exclusividade brasileira, visto que em
todos os outros países, o termo usado é a tradução de “subcontratação”: em
francês, soustraitance, em italiano, sobcontrattazione, em espanhol subcontratación,
no inglês, outsourcing, em Portugal, subcontratação (MARCELINO e CAVALCANTE,
2012, pp. 322 e 323).
Marcelino (2013, pp. 48 e 49) explica que na ótica do Direito, é possível afirmar
que a terceirização é:

1- Uma forma de subcontratação (há outras); 2- Repasse de serviços ou


atividades especializadas para empresas que detenham melhores
condições técnicas e/ ou operacionais para realizá-los; 3- Instrumento de
gestão que pode ser aplicado às diversas atividades da empresa, mas que
deve ser priorizado, como princípio de proteção a ela, nas atividades-meio
(mesmo que nenhum autor defina com clareza o que isso venha a ser); 4-
Atividade desempenhada por terceiros se considerada a relação
empresa/trabalhador; 5- Forma de gestão administrativa; moderna e
positiva, na opinião da maioria dos autores; 6- Mecanismo empresarial no
qual não cabe interferência do direito, a menos que haja burla da legislação
(da trabalhista, na opinião de quase todos, e da civil, na opinião de alguns);
7- Relação entre duas empresas cuja natureza do contrato não é
trabalhista.
290

Adiante, a autora elabora sua própria definição, afirmando que a “terceirização


é todo processo de contratação de trabalhadores por empresa interposta, cujo
objetivo último é a redução de custos com a força de trabalho e/ou a externalização
dos conflitos trabalhistas”. Ou seja, é a relação onde o trabalho é realizado para uma
empresa, mas contratado de maneira imediata por outra.
O presente artigo não tem a pretensão de definir com precisão o termo
terceirização, mas propiciar o entendimento do fenômeno, a fim de compreender
quais os possíveis reflexos deste no movimento sindical.

1.2 Evolução na legislação e jurisprudência brasileira

Na evolução da legislação brasileira, destacam-se os primeiros instrumentos


normativos: O Decreto-lei nº 200/1967, que regulou a terceirização em âmbito
público; a Lei n. 6.019 de 1974, que permitiu a contratação de trabalho temporário,
por no máximo 90 dias, nos casos de substituição ocasional de trabalhadores diretos
ou nas situações de pico da produção; a Lei 7.102/1983, as empresas de serviços
de vigilância e de transporte de valores foram autorizadas a atuarem como
terceirizadas (OLIVEIRA, 2015, p. 557).
Conforme exposto acima, com o aumento de casos de terceirização nos anos
1980, o Tribunal Superior do Trabalho começou a julgar casos a esse respeito,
formando um grande acervo de decisões, sendo estas no sentido de rechaçar
qualquer tipo de terceirização. Surge, primeiramente, o enunciado de Súmula nº 239
em 1985, dispondo sobre trabalhadores bancários (CARELLI, 2017, p. 77).
Em 1986, o TST instituiu o Enunciado 256, que restringiu a terceirização, com
exceção das hipóteses previstas nas leis de trabalho temporário e de serviços de
vigilância e transporte de valores. Em 1993, o referido enunciado foi substituído pela
Súmula 331, que admitiu a terceirização para atividades meio e previu às empresas
contratantes a responsabilidade subsidiária (OLIVEIRA, 2015, p. 557).
Quanto à diferenciação entre atividade-fim e atividade-meio, o Tribunal utilizou
as definições de terceirização existentes na literatura interdisciplinar, que têm como
pressuposto básico a concentração da empresa no seu core business, ou seja,
atividade principal (CARELLI, 2017, p. 82).
Após, em 1994, a Lei 8.863/1994 estendeu a autorização de funcionamento de
291

empresa terceirizada para todas as áreas de vigilância patrimonial nos setores


público e privado. Em 1997, com a Reforma Administrativa (PEC 41/97), introduziu-
se a terceirização na Administração Pública direta e indireta. Em 1998, a Lei
9.601/1998 instituiu o contrato de trabalho por tempo determinado. Em 2000, a
Súmula 331 foi atualizada, estendendo a responsabilidade subsidiária pelos
trabalhadores terceirizados para todo o setor público (OLIVEIRA, 2015, p. 557).
No que se refere às propostas de regulamentação da terceirização, estas serão
objeto de estudo em tópico específico abaixo.

1.3 Terceirização na reforma trabalhista

Para regulamentação da terceirização, foram apresentados diversos projetos


no Congresso Nacional, dentre os quais se destacam o Projeto de Lei 4032/1998,
elaborado durante o governo do Presidente da República Fernando Henrique
Cardoso, e o Projeto de Lei 4330/2004, sendo que ambos previam a legalidade de
terceirização de todas as atividades da empresa. Este último encontra-se em
tramitação no Senado.
Em oposição foi apresentado o Projeto de Lei 1621/2007, que propunha
igualdade de direitos entre terceirizados e trabalhadores diretos, a proibição da
terceirização em atividades fins e a responsabilidade solidária da contratante.
Entretanto, o referido projeto foi anexado ao PL 4330/2004.
Em 2011, o TST, com o crescimento da pressão empresarial, realizou
audiência pública, com participação de empresários, trabalhadores e pesquisadores
da área. Em seguida, foi criado o Fórum Nacional Permanente em Defesa dos
Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização – FÓRUM (OLIVEIRA,
2015, p. 558).
Atualmente, a terceirização é regulada pela Lei Ordinária 13.429/2017,
aprovada na Câmara dos Deputados e sancionada no presente ano. A Câmara dos
Deputados aprovou, por 231 votos a favor e 188 contrários, em março de 2017,
o texto do Projeto de Lei 4.302/1998, mencionado acima, legalizando a terceirização
de todas as atividades da empresa, inclusive na Administração Pública. Após a
votação dos destaques, o projeto, que já havia sido aprovado pelo Senado, foi
sancionado pelo Presidente da República, Michel Temer (CONSULTOR Jurídico,
2017).
292

2 Organização sindical brasileira

Para o entendimento da atual organização sindical brasileira, conhecimento


que se faz necessário para a compreensão das implicações da reforma trabalhista
na representação sindical, apenas é possível através da reconstrução de seu
histórico.
Considerando a instituição do modelo de organização sindical no governo de
Getúlio Vargas, que determinou toda a organização sindical brasileira até os dias
atuais, apenas com poucas alterações adotadas pela Constituição Federal, Renato
Barbosa (2006, p. 11) esclarece que é possível estabelecer a evolução histórica do
sindicalismo brasileiro em três momentos distintos: o período inicial até 1930; a fase
em que foi instituído o modelo corporativista italiano, a partir da década de 1930; e,
por fim, a fase que adveio com a Constituição de 1988.

2.1 Evolução histórica

Antes da Revolução de 1930, momento em que Getúlio Vargas, ascendeu à


presidência do Brasil, foi criada em benefício político uma realidade na qual haveria,
supostamente, a indiferença do Estado em relação aos problemas sociais. A partir
desta premissa, desenvolveu-se a ideia de que foi o governo Vargas que tomou a
iniciativa de reconhecer os direitos trabalhistas e que estes foram concedidos como
gentileza dos dirigentes políticos, negando-os como conquista da massa
trabalhadora (LOURENÇO, 2011, p. 21).
Eduardo Carone (1797, p. 4) leciona que o movimento operário brasileiro desde
sua origem, especialmente após 1890, reflete a ideologia e organização do
movimento europeu. O ordenamento jurídico brasileiro da época adotava as ideias
do movimento liberalista, especialmente a Constituição Republicana de 1891, que
buscou declarar os direitos dos cidadãos brasileiros e, entre eles, assegurou os
direitos de reunião e associação, de maneira precursora em nosso país 165.

165
Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
(...) § 8º - A todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas; não podendo intervir
a polícia senão para manter a ordem pública.
293

Neste primeiro período, ressaltam-se dois decretos que foram editados:


Decreto nº 979 pelo Presidente Rodrigues Alves, facultando aos profissionais da
agricultura e de indústrias rurais a formação de sindicatos para defender seus
interesses; Decreto nº 1637 que permitiu aos trabalhadores urbanos a criação de
sindicatos em categorias profissionais, objetivando a defesa dos interesses da
profissão.
As décadas de 1910 e 1920 foram marcadas pelas marchas dos grevistas,
ocorridas no Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente, que tinham como
objetivo o reconhecimento da organização sindical pelos empregadores. O Estado
transformou-se em 1930, tornando-se um Estado intervencionista a partir da
ascensão de Getúlio Vargas à presidência da República e marcando uma nova
etapa no movimento sindicalista brasileiro. O sistema de 1930 foi altamente
influenciado pelo sistema italiano fascista de Benito Mussolini, no qual não era
proibida a associação de trabalhadores, todavia, o sindicato era submetido aos
interesses do Estado, constituindo o chamado corporativismo (DELGADO, 2014, p.
82)
O corporativismo é uma forma de organização das associações profissionais e
econômicas pela ação reguladora do Estado, que dispõe as forças produtivas
verticalmente, dependendo do reconhecimento estatal para sua validade e detendo
o monopólio de representação em um território determinado. A Carta del Lavoro,
editada na Itália em 1927, adotou o sistema corporativista, tutelando de forma
paternalista apenas o trabalho considerado de maneira individual e restringindo a
atuação coletiva, como forma de evitar a luta de classes (NASCIMENTO, 2009, p.
81).
Impulsionado pela ideia de reorganização social, foi editado o Decreto 19.770
em março de 1931, conhecido como a Lei dos Sindicatos. As decisões tomadas e
expressas no decreto fundamentavam-se na teoria corporativista, estabelecendo
que os interesses das categorias profissionais e econômicas poderiam ser
defendidos, entretanto esta defesa seria feita por intermédio do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio, criado no ano anterior. Por fim, o referido decreto
instituiu a regra do sindicato único166.

166
Art. 9º: cindida uma classe e associada em dois ou mais sindicatos, será reconhecido o que reunir
dois terços da mesma classe e, se isto não se verificar, o que reunir maior número de associados.
294

Essa evolução sofreu um interregno entre 1934 e 1935, período em que adveio
a Constituição de 1934, que determinou a pluralidade sindical em seu art. 120,
adotando uma parte do pensamento brasileiro. Em 1935 é declarado Estado de Sítio
e volta a predominar a ideologia corporativista italiana, que começou a ser
instaurada no Brasil com a eleição de Getúlio Vargas e o supra referido Decreto
19.770.
A Constituição de 1937, refletindo o fascismo europeu, implantou o
autoritarismo corporativista, implantando uma ditadura do Executivo, que retirou a
competência do Poder Legislativo, permitindo que o presidente governasse por meio
de decretos-leis, intervindo nas organizações partidárias, sociais e sindicais, como
desejasse (BARBOSA, 2016, p. 18).
No mesmo sentido, dispôs o Decreto-lei 1.402 de 1939, conhecido como Lei de
Sindicalização, que criou um quadro de atividade e profissões e o enquadramento
sindical para classificar as categorias, complementando a dependência em relação
ao Estado. Este enquadramento buscava proporcionar controle rígido quanto à
constituição dos sindicatos, trazendo maneiras de monitorar a gestão financeira dos
sindicatos e estabelecendo o poder de cassação pelo Estado da investidura sindical.
O único avanço trazido pelo decreto foi a permissão de maior extensão da base
territorial (LOURENÇO FILHO, 2011, p. 42).
A Consolidação das Leis Trabalhistas, promulgada por Getúlio Vargas através
do Decreto-lei 5.453 de 1º de maio de 1943, representou a compilação, coordenação
e sistematização do corpo de legislação social que vinha sendo criado dede 1930.
Em simples leitura, verifica-se que o espírito corporativista dos principais decretos de
1931, 1934 e 1939 foi incorporado à CLT.
Em 1945, com o fim da 2ª Guerra Mundial e o fim dos regimes autoritários,
também se encerra a ditadura imposta por Getúlio Vargas. Em 1946 é promulgada
outra Constituição de ideologia democrático-liberal, mas não há alteração no sistema
sindical (BARBOSA, 2006, p. 27).
O modelo sindical construído entre 1930 e 1945 foi praticamente intocado,
persistindo o mesmo esboço desde a ascensão de Vargas ao poder, completado no
Estado Novo, criado sob o regime autoritário, influenciado pelo modelo fascista
italiano. Mesmo com a restauração da democracia após 1945 e a Constituição
democrática de 1946, as normas de Direito do Trabalho não sofreram grandes
alterações, até a promulgação da Constituição de 1988 (DELGADO, 2014, p. 83).
295

Antes de analisar a promulgação de Constituição de 1988, é preciso registrar o


surgimento de um movimento sindicalista de oposição, ocorrido antes do golpe de
estado de 1964 e fortalecido no final da ditadura militar, consubstanciando-se em um
dos maiores elementos combativos do período.
O movimento sindical buscava se reorganizar e, de certa forma, foi ajudado
pela estrutura única, pois os líderes sindicalistas encontraram a estrutura formada e
os recursos já providos pelo sistema. Surge o Novo Sindicalismo, um movimento
surgido espontaneamente nos grandes centros industriais do país, principalmente no
ABC paulista, juntamente com o Partido dos Trabalhadores, unindo as questões
política e sindical. Neste contexto surgiram as centrais sindicais, acima do sistema
confederativo, que articularam sindicatos, federações e confederações, sendo as
principais a CUT – Central única dos Trabalhadores – e o CGT – Confederação
Nacional dos Trabalhadores, que utilizou a sigla do Comando Geral dos
Trabalhadores (LOURENÇO FILHO, p. 56).
Não obstante a grande movimentação sindical, não houve mudanças na
estrutura. A iniciativa de uma reforma foi tomada pelo próprio Estado, principalmente
pelo Ministro do Trabalho Almir Pazzianotto, que anistiou as lideranças sindicais
cassadas no período ditatorial, reconheceu as centrais sindicais e anunciou uma
comissão que debateria a reforma da CLT. Mas não houve apoio para concretização
da reforma sindical. Assim, a discussão sobre a reforma sindical seria levada à
pauta da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e 1988 (LOURENÇO FILHO, p.
61).
Todavia, os constituintes acabaram por acolher as opiniões da maior parte da
liderança sindical. Ademais, provocou também a extinção da Comissão de
Enquadramento Sindical do Ministério do Trabalho e Emprego, vigorando novo
sistema de enquadramento sindical (BRITO FILHO, 2000, p. 68).

2.2 Organização sindical brasileira atual

No tocante à sua organização sindical, o Brasil adotou, com o advento da


Constituição de 1988, o sistema híbrido, que reúne a liberdade de associação e
administração e restringe a liberdade de organização. É possível afirmar ainda que a
liberdade de organização sofreu restrição em quatro aspectos diferentes: na
unicidade sindical, na base territorial mínima, na manutenção do sistema
296

confederativo e na sindicalização por categoria (BRITO FILHO, 2000, p. 117).


Destaca-se aqui a unicidade sindical e sindicalização por categoria, dispositivos que
regulam e modulam a representação sindical.
Maurício Godinho Delgado (2014, p. 83) conceitua unicidade sindical como
previsão normativa impositiva da existência de um único sindicato representativo dos
correspondentes obreiros por categoria profissional ou ramo empresarial de
atividades. Nas lições de Amauri Mascaro Nascimento (2006, p. 116) a unicidade
sindical é a instituição por lei da existência de mais de um sindicato na mesma base
territorial. Essa determinação pode ser total ou parcial, restringindo-se a certos
níveis de atuação, seja por categoria ou por uma empresa.
As características da unicidade sindical são: representação de um grupo por
uma única entidade sindical; que a representação ocorra dentro de uma determinada
base de território; e que seja imposição do Estado, seja por ato discricionário ou por
previsão no ordenamento jurídico (BRITO FILHO, 2000, p. 99).
O Brasil adota o sindicato por categoria profissional ou econômica. A
Consolidação das Leis do Trabalho trouxe nos parágrafos primeiro e segundo do
artigo 511 a definição de categoria profissional e categoria econômica. O § 1°
estabeleceu que “a solidariedade de interesses econômicos dos que empreendem
atividades idênticas, similares ou conexas, constitui o vínculo social básico que se
denomina categoria econômica”. A categoria profissional é definida no § 2° como
expressão social elementar, composta pela “similitude de condições de vida oriunda
da profissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade
econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas”.
O enquadramento sindical constitui-se na colocação do empregado,
empregador ou trabalhador autônomo no quadro da respectiva categoria. Antes da
Constituição de 1988 o enquadramento sindical era vinculado ao Estado, sendo que
as dúvidas eram solucionadas por órgão do Ministério do Trabalho, chamada
Comissão de Enquadramento Sindical, que tinha por função definir qual grupo
coletivo que o sindicato representaria (NASCIMENTO, 2006, p. 330)
Após o advento da Constituição, o enquadramento sindical constitui expressão
útil apenas para a definição dos grupos coletivos, mas não consiste mais em ato
formal do Poder Público. É utilizado, tendo-se em vista a unicidade sindical, mantida
pelo art. 8, II, da Constituição Federal, sendo que o quadro de enquadramento do
MTE pode ser consultado, mas não será mais que conjunto de dados para
297

informação.

2.3 Fórum Nacional do Trabalho e PEC 369 de 2005

O Fórum Nacional do Trabalho (FNT) foi criado pelo Decreto n. 4.796, de 30 de


julho de 2003, com a finalidade de coordenar a negociação entre os representantes
dos trabalhadores, empregadores e Governo Federal sobre a reforma sindical e
trabalhista no Brasil. Dentre os objetivos do FNT, destaca-se a proposta de
promover a democratização das relações de trabalho através da adoção de um
modelo de organização sindical, baseado em liberdade e autonomia (ALMEIDA,
2007, p. 55).
As propostas do FNT, após relatório final da Comissão de Sistematização,
foram transformadas na Proposta de Emenda Constitucional – PEC 369 e em
projeto de lei, enviados ao Congresso Nacional em março de 2005. Tem como
objetivo reformar os artigos 8º, 11, 37 e 114 da Constituição Federal, instituindo a
contribuição negocial coletiva, a representação sindical nos locais de trabalho, a
negociação coletiva para os servidores da Administração Pública e a liberdade
sindical. Ainda encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados.

2.4 Seminário “Liberdade sindical e os novos rumos do sindicalismo no


Brasil”

O Tribunal Superior do Trabalho realizou em 25, 26 e 27 de abril do ano de


2012 o Seminário Liberdade Sindical e os Novos Rumos do Sindicalismo no Brasil.
O evento foi organizado com o intuito de analisar os principais aspectos do sistema
sindical brasileiro, como a unicidade sindical, as fontes de custeio do sistema
sindical, direito de greve e negociação coletiva no serviço público e proteção contra
condutas antissindicais.
A Programação do Congresso constituiu-se em: abertura; Liberdade sindical e
trabalho decente; A Convenção 87 da OIT e a Constituição Brasileira; Liberdade
sindical e discriminação: a proteção contra as condutas antisindicais; Organização
sindical: registro sindical. Pluralidade e unicidade. Fontes de custeio; A visão dos
atores sociais; Experiências inovadoras de atuação sindical e Reflexões sobre as
novas perspectivas do sindicalismo no Brasil; Direito de greve e negociação coletiva
298

no setor público: implementação da Convenção 151 da OIT no Brasil.

3 A terceirização e representação sindical

Conforme ressalta Carelli (2017, p. 112) a intermediação de mão de obra causa


séria e grave ruptura no sistema jurídico-trabalhista, o qual é baseado nas figuras
empregado-empregador. Segundo o mesmo autor (CARELLI, 2017, p. 118)

Uma vez permitida a intermediação de mão de obra, como pretendem


inclusive projetos em andamento no Congresso Nacional, quebra-se o liame
empregado-empregador, derrubando com ele todas as garantias
conquistadas pelo trabalhador, pois quebrada toda a espinha dorsal e a
razão de ser do próprio Direito do Trabalho

Assim, a terceirização traz consequências práticas imediatas sobre os


trabalhadores e reflete também a precarização do trabalho em âmbito coletivo, o que
se pretende analisar a seguir.

3.1 Terceirizaçao e reflexos na representação sindical

A terceirização coloca lado a lado, no mesmo local de trabalho, trabalhadores


representados por diversas entidades sindicais, pois conforme exposto no capítulo
anterior, a organização sindical brasileira é por categoria, a qual é baseada na
atividade econômica do empregador. No caso dos trabalhadores terceirizados, a sua
categoria será definida pela empresa que o contrata, e não daquela em que ele
efetivamente exerce suas funções.
Desta forma, no ambiente de uma empresa podem existir empregados
vinculados a várias empresas e, consequentemente, existir um “leque enorme de
sindicatos, diferentes entre si por aspectos de tamanho, força, estruturação, união,
interesses e experiência de luta classista” (CARELLI, 2017, p. 131).
Costa (1994, p. 9) afirma que as reivindicações sindicais têm legitimidade
quando a terceirização configura apenas intermediação de mão-de-obra, sendo que
as maiores contestações se baseiam no fato de que o trabalhador terceirizado, que
não possui a mesma (ou alguma) representação sindical, embora exercendo as
mesmas atividades, não possui direito as conquistas trabalhistas e salariais do
trabalhador da empresa contratante (COSTA, 1994, p. 9).
299

Conforme leciona Paula Marcelino a terceirização criou e expandiu categorias


de trabalhadores e de sindicatos que devem a ela sua inserção no mercado e/ou sua
existência/ampliação. Na sua obra, sobre o tema, um dos pontos centrais está a
encruzilhada onde as estruturas duradouras do sindicalismo brasileiro se encontram
com formas contemporâneas de intensificação da exploração do trabalho, de
neoliberalismo político e de reestruturação produtiva (DIAS, 2015, p. 318).
A autora analisa ainda como a terceirização interage com a organização
especificamente brasileira dos trabalhadores: unicidade sindical, juntamente com as
taxas e impostos compulsórios asseguram a existência e a representação legal das
categorias pelos sindicatos oficiais. A terceirização impulsionou a fragmentação das
categorias e favoreceu a emergência/manutenção de “sindicatos de carimbo, aliada
às taxas compulsórias e à unicidade”, pois trouxe consigo o reenquadramento
sindical de trabalhadores que pertenciam aos sindicatos das categorias
preponderantes (DIAS, 2015, p. 322).
Assim, com trabalhadores sendo dispersos e divididos em sindicatos
diferentes, pulverizados e sem força coletiva e, por vezes, rivalizados, consegue-se
a fragilização da força de trabalho (CARELLI, 2017, pp. 133 E 134).
Ainda, as disputas criadas pelo enquadramento e pela unicidade sindical
dificultam a ação conjunta e abrangente dos sindicatos e trabalhadores favorecendo
ainda mais a fragmentação da luta (DIAS, 2015, p. 323).
A defesa desta organização atual pelos sindicatos constitui um risco, mesmo
para os sindicatos terceirizados, pois nada impede que a mesma estrutura que lhes
garantiu a representação possa em momento posterior reconhecer outros sindicatos
oficiais, promovendo nova pulverização das categorias. “As bases dos sindicatos
oficiais estarão sempre ameaçadas enquanto a prerrogativa de enquadramento e de
reconhecimento pertencerem ao Estado” (MARCELINO, 2013, p. 200).
Portanto, se a terceirização, em razão do modelo adotado para a organização
sindical brasileira, pode constituir uma possibilidade de fragmentação do universo
operário, ensejando na existência de múltiplos sindicatos em um ambiente
empresarial, é possível afirmar que a sua completa legalização, com a reforma
trabalhista, poderá expandir tais possibilidades e poderá ensejar em maior
pulverização das bases de representação sindical, conforme estabelecidas
hodiernamente.
300

3.2 O posicionamento das Centrais Sindicais

Souza e Lemos (2016, p. 1047) afirmam que cinco centrais sindicais – Central
Única dos Trabalhadores (CUT), União Geral dos Trabalhadores (UGT), Nova
Central Sindical de Trabalhadores (NCST), Central dos Trabalhadores e
Trabalhadoras do Brasil (CTB) e Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB)
– em uma carta aberta posicionaram-se contrariamente ao PL n. 4.330/04, em
especial no tocante à ampliação das hipóteses de terceirização às atividades-fim e
da limitação da responsabilidade da contratante.
Neste sentido, as centrais alegaram, à época, que a aprovação do PL teria
como resultado a institucionalização da rotatividade, contribuindo para uma maior
insegurança dos trabalhadores em decorrência das piores condições de trabalho às
quais os terceirizados usualmente estão sujeitos, da redução de salários e
benefícios e da ampliação das jornadas de trabalho, do risco de maior nível de
inadimplência no cumprimento das obrigações trabalhistas e a ampliação do
contingente de trabalhadores discriminados (SOUZA e LEMOS, 2016, p. 1048).
Em sentido contrário, posicionaram-se a Força Sindical e a UGT, que
sustentaram posição favorável ao referido projeto de lei. Todavia, a UGT reviu sua
posição, integrando a campanha contrária ao projeto a tempo da segunda votação.
A Força Sindical manteve apoio à proposta, “com sua principal liderança e Deputado
Federal, Paulinho da Força (SD-SP), revelando-se como um dos principais
articuladores em favor de sua aprovação” (OLIVEIRA, 2015, p. 561).
No que se refere à CUT, entre 1990 e 2003, a sua estratégia centrou-se na
contrariedade à terceirização, passando, após, a atuar no seu combate por meio da
negociação. Na década de 1990, a CUT limitou-se a algumas referências esparsas
em suas resoluções congressuais, porém, em 2004, criou um Grupo de Trabalho
para articular as ações da Central em três frentes: “a organização dos trabalhadores
e trabalhadoras terceirizados; a discussão de cláusulas de acordo a serem
negociadas com as representações empresariais nos diferentes ramos de atividade;
a elaboração de um conjunto de diretrizes para a construção de um projeto de lei
que efetivamente possibilite uma regulamentação da terceirização no Brasil”
(OLIVEIRA, 2015, p. 559). Neste âmbito que foi elaborada a proposta de PL que o
deputado federal Vicentinho apresentou na Câmara em 2007, conforme exposto
301

acima.
Em recente encontro com o Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil,
Claudio Lamachia, o Presidente da CUT, Vagner Freitas, reiterou a contrariedade à
terceirização, sendo que havia sido proposta a formação de um fórum entre
trabalhadores e empregadores, arbitrado pela OAB, para discussão. O que restou
prejudicado ante a aprovação do Projeto de Lei 4032/1998.

Conclusão

A terceirização, movimento em contínua expansão desde a década de 1990 no


Brasil, consiste na contratação de trabalhadores por empresa interposta. Esse
fenômeno, baseado na lógica de gestão horizontal (toyotismo), prevê uma relação
civil entre as empresas em sistema de parceria, tendo sido regulamentado no Brasil
por diversos dispositivos legais, culminando na Lei Ordinária 13429/2017, que
autorizou a terceirização de toda a atividade empresarial.
Este fenômeno, consoante diversos estudos apontados, pode consistir na
precarização do trabalho, principalmente, em âmbito coletivo. A organização sindical
brasileira, erigida na década de 1930 e alterada apenas parcialmente, prevê a
representação sindical através do sindicato único representante de determinada
categoria econômica. Ressalta-se que esta é definida pela atividade do empregador.
Assim, a terceirização tem o condão de fragmentar o universo operário dentro
de um mesmo ambiente de trabalho, pois nem todos pertencem ao quadro de
funcionários de uma mesma empresa. Essa situação implica, necessariamente, na
representação sindical deste universo de trabalhadores, dada a legislação que rege
o tema.
Com o advento da reforma trabalhista, no que se refere ao tema, a
terceirização pode ser expandida pelas empresas de forma regular, ou seja, dentro
dos limites previstos na lei. Significa dizer que, uma situação que já era existente – a
terceirização – e já possuía implicações no enfraquecimento da luta sindical, apenas
se expandirá, podendo, consigo, pulverizar as bases de representação sindical.

Referências

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302

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304

NEGOCIADO SOBRE LEGISLADO: FORMA JURÍDICA E DIREITO VIVO NAS


RELAÇÕES DE TRABALHO

Rodolfo Carvalho Neves dos Santos167

Resumo: O presente ensaio pretende investigar a “reforma trabalhista” proposta


pelo Poder Executivo Federal através do Projeto de Lei nº 6787/2016, sob o enfoque
das categorias direito vivo e forma jurídica de EugenEhrlich e Pachukanis,
respectivamente. O objetivo é investigar qual a influência da reforma trabalhista do
“negociado sobre o legislado” sobre a teoria geral do direito do trabalho. A hipótese
é que a inversão paradigmática do negociado sobre o legislado, além de possibilitar
a legalização de práticas antes consideradas ilícitas, também revela cada vez mais a
forma jurídica trabalhista e sua especificidade normativa capitalista, qual seja:
garantir a circulação da mercadoria força de trabalho. Ao final, apresentam-se
indicadores para formalização de uma nova teoria geral do direito do trabalho no
Brasil.
Palavras-chave: Reforma trabalhista. Negociado sobre legislado. Direito vivo;
Forma jurídica. Direito do trabalho.

Introdução

Em artigo escrito em 2015 e publicado na Revista Crítica do Direito (vol. 67,


2016) em coautoria com Erika Juliana Dmitruk, investigamos as relações de poder
na produção do Direito centralizando o Pluralismo Jurídico como objeto de pesquisa.
Naquela oportunidade, tínhamos como objetivo demonstrar como as relações
de poder estatais e não estatais interferem na definição do jurídico, adotando como
marco teórico a pesquisa de Boaventura de Sousa Santos. Pudemos concluir que a
produção plural do direito pode(ria) representar uma resposta às desigualdades
sociais legitimadas pelo direito estatal, mas, de igual maneira, também seria

167
Pós-graduado (Lato Sensu) em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário pelo Instituto de Direito
Constitucional e Cidadania (IDCC/UENP). Graduado em Direito pela Universidade Estadual de
Londrina. Participante do NEFIL - Núcleo de Estudos Filosóficos do Programa de Pós Graduação em
Direito da UFPR (PPGD/UFPR). Atua como colaborador na Assessoria Jurídica Popular Lutas
Londrina. Advogado na área do direito trabalhista, cível e popular. Contato:
rodolfocarvalho@msn.com.
305

temerário considerar o pluralismo jurídico como necessariamente emancipatório.


Vale ressaltar que ao término de minha graduação, quando da elaboração da
monografia de conclusão de curso, algumas linhas também foram destinadas à
investigação desta influência plural do processo normativo com enfoque específico
nas relações de trabalho (SANTOS, 2014). O objeto daquela pesquisa foram as
convenções coletivas de trabalho enquanto fontes autônomas deste ramo da ciência
jurídica e formas específicas de pluralismo jurídico no direito do trabalho.
Naquele momento de desenvolvimento (fosse da pesquisa, tanto pessoal,
quanto do capitalismo), o pluralismo jurídico encontrado nas convenções coletivas
de trabalho pôde ser considerado como contra hegemônico e possuidor de potencial
emancipatório para a classe trabalhadora.
Fato é que, mesmo diante da brevidade do lapso temporal entre aquelas
pesquisas e a presente, dialeticamente, já não sou o mesmo (e por isso a opção
pela escrita na primeira pessoa do singular, já que esta faz parte do processo de
autoconhecimento), assim também não é o atual momento do capitalismo nem das
relações de trabalho, o que implica na necessidade de atualização da pesquisa,
desta vez, sob um novo prisma teórico.
Pretendo debruçar-me, novamente, sobre as convenções coletivas de trabalho
como objeto de pesquisa, agora, sob o recorte metodológico da teoria geral do
direito do trabalho (TGDT).
Parto do mesmo pressuposto teórico de que as convenções coletivas de
trabalho, como fontes autônomas do direito, são expressões do Pluralismo Jurídico,
todavia, já não mais vislumbro seu caráter utópico de transformação social, tendo
em vista que, na iminência de aprovação no Congresso Nacional da “reforma
trabalhista” proposta pelo Poder Executivo Federal (Projeto de Lei nº 6787/2016), a
“hora é agora” para se discutir as possibilidades e limites de uma teoria geral do
direito do trabalho crítica que tenha como fundamento a primazia da norma
negociada em relação à legislada.
Pretendo investigar a influência da reforma trabalhista do “negociado sobre o
legislado” na construção de uma teoria geral do direito do trabalho. Para tanto, como
método, o giro paradigmático da TGDT será analisado sob duas categorias da teoria
geral do direito, quais sejam, a direito vivo, de Eugen Ehrlich (1986), e a forma
jurídica, de Pachukanis (1988).
Ao me utilizar de tais categorias como chaves conceituais, almejo identificar
306

traços em comum entre ambas que possibilitem identificar um direito vivo do trabalho
a ser encontrado nos diferentes métodos de gestão empresarial da história do
capitalismo. Esta identificação possibilitará revelar, cada vez mais, a forma jurídica
trabalhista e sua funcionalidade capitalista, qual seja: garantir a circulação da
mercadoria força de trabalho.
Por fim, por se tratar de um ensaio, pretende estabelecer alguns pressupostos
para uma Teoria Geral do Direito do Trabalho após o giro paradigmático proposto
pela reforma do “negociado sobre o legislado”.

1 O direito vivo nas relações de trabalho

O tema “negociado sobre o legislado” resgata um debate clássico no âmbito da


ciência jurídica, no qual Eugen Ehrlich e Hans Kelsen foram os protagonistas. A
discussão residia quanto ao objeto da ciência jurídica: por um lado Kelsen pugnava
pelo conhecimento normativo do Direito, aquele encontrado no plano do dever-ser
(Teoria Pura do Direito) e, por outro, EugenEhrlich, apresentava a Teoria Sociológica
do Direito e a necessidade de conhecimento científico do direito vivo, no plano do
ser.
Eugen Ehrlich postula que o Direito se manifesta fenomenologicamente nas
relações humanas, quando “conjuntos de pessoas que em seu relacionamento
mútuo reconhecem algumas regras como determinantes para seu agir e em geral,
de fato, agem de acordo com elas” (EHRLICH, 1986, p. 37), devendo aí ser
conhecido.
A pesquisa de Ehrlich se desenvolveu ao fim de propor uma nova ciência do
Direito, tendo como objeto de estudo a realidade espontânea do direito, encontrada
na própria sociedade: o direito vivo.
Para o autor austríaco, uma ciência jurídica não poderia se restringir a
explicar o que esta na lei, de forma dedutiva, mas deveria investigar indutivamente
as configurações reais da normatividade presente na sociedade (EHRLICH, 1986, p.
374).
O direito vivo, sua categoria essencial para definição do jurídico, é aquele que
figura em “contraposição ao apenas vigente diante de tribunais e órgãos estatais. O
direito vivo é aquele que, apesar de não fixado em prescrições jurídicas, domina a
vida”, sua captação científica não poderia se dar através da análise de prescrições
307

jurídicas (legislado), mas, sobretudo, “pela observação direta do dia-a-dia do


comércio, dos costumes e usos e também das associações, tanto as legalmente
reconhecidas quanto as ignoradas e até ilegais” (EHRLICH, 1986, p. 376).
Este debate pode ser transplantado para o âmbito da TGDT na medida em
que, como fonte de produção do direito exterior ao processo legislativo oficial do
Estado, as convenções coletivas de trabalho são consideras como instrumentos que
expressam o direito vivo, pois, como contratos, dão forma jurídica àquilo que as
partes na vida real de fato observam (EHRLICH, 1986, p. 379), cabendo ao Estado
conferir validez e eficácia às fontes extraídas da realidade social(WOLKMER, 2001,
p. 239).
É nesse contexto que surge o discurso da “reforma trabalhista” com
implicações diretas no âmbito da Teoria Geral do Direito do Trabalho brasileiro e das
próprias relações de trabalhos.
Extrai-se da “Justificativa” de apresentação do Projeto de Lei 6787/2016 que
existiria uma necessidade de se “aprimorar as relações do trabalho”, pois o
“amadurecimento das relações entre capital e trabalho vem se dando com as
sucessivas negociações coletivas que ocorrem no ambiente das empresas a cada
data-base, ou fora dela”, e, na contramão desse “espírito do tempo168”, “esses
pactos laborais vem tendo a sua autonomia questionada judicialmente, trazendo
insegurança jurídica às partes quanto ao que foi negociado”.
Em outras palavras e a partir dessa breve análise, é possível de se verificar
que a reforma trabalhista proposta pelo Poder Executivo tenta des-represar o direito
do trabalho do açude legislativo que se encontra, ou seja, o negociado se revela

168 O termo espírito do capitalismo vem de Max Weber, em “Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo”, segundo a perspectiva do o capitalismo, enquanto modo de produção, precisa se
legitimar em determinados momento e, para isso, “assume o caráter de uma máxima de conduta de
vida eticamente coroada” (WEBER, 2004, p. 45). Nas fases iniciais do capitalismo, era necessário
definir uma “nova posição frente ao mundo” a respeito do trabalho “em contraposição à visão anterior,
que priorizava o trabalho apenas como meio de sobrevivência” (RAMOS FILHO, 2012, p. 121-2).
Todavia, as diversas metamorfoses no mundo do trabalho faziam com que em diferentes momentos
históricos fosse necessária criação de um novo espírito do capitalismo a fim de manter a hegemonia
daquele “como modo de produção mais justo, quando comparado aos modos de produção que se
apresentavam como alternativas” (RAMOS FILHO, 2012, p. 273). Eis que, segundo Ramos Filho, três
grandes espíritos do capitalismo puderam ser observados na história, “o primeiro espírito até o início
dos anos 60 do século passado, o segundo espírito entre o final dos anos 60 até o final dos anos 80,
e o terceiro espírito do capitalismo a partir de então” (RAMOS FILHO, 2012, p. 272). Ressalta-se que
o termo foi utilizado pelo Deputado Federal Rogério Marinho para justificar a necessidade de
aprovação do programa de reforma trabalhista no Rodaviva de 17/04/2017. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=eSE9wTnDJjA.
308

como direito vivo do trabalho, já o legislado, como “água morta”.


Querer aprisionar o direito de uma época ou de um povo nos parágrafos de
um código corresponde mais ou menos ao mesmo que querer represar um
grande rio num açude: o que entra não é mais correnteza viva, mas água
morta e muita coisa simplesmente não entra. (EHRLICH, 1986, p. 374)

Para o que foi proposto, enquanto ensaio, partimos do pressuposto que admitir
a norma juscoletiva (negociada) como fonte premente ao legislado, importa em uma
mudança paradigmática no âmbito da regulamentação das relações de trabalho, ou
seja, muda-se o fundamento da teoria geral do direito do trabalho. Importa saber se
tal mudança paradigmática remete à necessidade de construção de uma nova teoria
geral do direito do trabalho no Brasil, que o compreenda em seu contexto histórico e
geopolítico ou, se importaremos ideias fora do lugar para nossa localidade no
capitalismo.

2 Entre o “grande rio” e o “açude”: sistemas de regulamentação do direito do


trabalho.

Se há uma alteração paradigmática para a TGDT brasileira, não há como


perder de vista que existem outros sistemas de regulamentação do trabalho no
mundo onde o paradigma pluralista já é vigente. A depender do grau de
intervencionismo estatal nas relações de produção, o modo de regulamentação
também se altera, ora privilegiando a norma juspositiva – característico do primeiro e
segundo espírito do capitalismo –, ora dando-se primazia à norma juscoletiva –
característico do terceiro espírito do capitalismo e dos novos métodos de gestão
pós-taylorista e pós-fordista. Esses sistemas de regulamentação do trabalho podem
ser agrupados em quatro grandes famílias do Direito Capitalista do Trabalho
(RAMOS FILHO, 2012, p. 131).
A primeira família do direito do trabalho é a de tradição germânica. Entre os
anos 1919 e 1976 a Alemanha passou por três “surtos democráticos”, sendo o
período da República de Weimar, o do período nazifascista e o da redemocratização
pós-guerra. Em que pese ter sido a Alemanha o primeiro país que, “impondo
limitações à autonomia da vontade e à liberdade de contratar, estabeleceu as
primeiras regulamentações estatais do trabalho subordinado” (RAMOS FILHO, 2012,
p. 132).
É de se afirmar que a tradição germânica do direito do trabalho, consolidada
309

principalmente em 1946, caracteriza-se pela primazia do negociado sobre o


legislado mitigado – garantindo-se, porém, um “standard” de direitos mínimos,
cabendo ao Estado “somente estabelecer o espaço institucional para que as classes
sociais, em processo de negociação coletiva, alcancem, por si, a regulamentação
pretendida” (RAMOS FILHO, 2012, p. 132) – e, também, pelo método de cogestão,
tanto no âmbito da organização do trabalho, quanto da resolução de conflitos
“possibilitando, embora de modo restrito, certa partilha do poder dentro dos locais de
trabalho com as organizações obreiras” (RAMOS FILHO, 2012, p. 132).
Características essas muito parecidas com as propostas pela reforma trabalhista
proposta.
Se a tradição germânica se caracteriza pela priorização do direito coletivo,
havendo uma intervenção estatal mínima na regulamentação dos contratos de
trabalho, por sua vez, a tradição anglo-saxônica exclui este fator de sua
regulamentação do trabalho, caracterizando-se pela exclusividade da norma
juscoletiva circunscrita nos collectiveagreements.
Segundo Ramos Filho, a segunda família do direito do trabalho se singulariza
“pelo fato de não se basear na edição de leis que regulamentem a compra e venda
da força de trabalho, atribuindo direitos e deveres a empregadores e a empregados,
nem no respeito às condições estabelecidas por mecanismos de cogestão” (RAMOS
FILHO, 2012, p. 132).
Cabe à outra parte da Europa a categorização da terceira família do direito do
trabalho, nomeada de tradição continental-europeia. Nesta, revela-se o outro lado da
moeda em relação à tradição anglo-saxônica, pois se baseia “na intervenção
legislativa fixando direitos e deveres a empregados e empregadores” (RAMOS
FILHO, 2012, p. 136).
A primazia, nesta família, é da norma juspositiva, porém, a norma juscoletiva
não é abandonada e confere aos “interlocutores sociais amplos poderes negociais
visando à regulação supletiva das relações de trabalho” (RAMOS FILHO, 2012, p.
136).
Esta sistematização assemelha-se ao ordenamento jurídico brasileiro atual, já
que por força do art. 611 da CLT, as convenções coletivas possuem caráter
supletivo em relação aos direitos positivos.
Entretanto, segundo a definição apresentada por Ramos Filho, há um fator
elementar que impede a categorização do direito do trabalho brasileiro nesta família:
310

nossa tradição é de cunho corporativista e autoritário; da Europa, democrático


(RAMOS FILHO, 2012, p. 136).
No Brasil o ideário corporativista se revela no discurso de “colaboração entre
as classes sociais” (RAMOS FILHO, 2012, p. 136). Novamente, com intuito de
legitimação do modo de produção capitalista, “tornara-se indispensável implementar
um modelo que corrigisse as mazelas causadas pelo acento exagerado no
individualismo liberal, sem recorrer-se ao sistema socialista” (ALLAN, 2011, p. 107).
A resposta foi o corporativismo, cujas medidas legislativas elaboradas sob esse
ideário, em maior ou menor grau, visaram à pacificação social nas relações de
trabalho como evidente intenção de manter o operariado controlado169. (ALLAN,
2011, p. 155).
Foi sobre esta base que a teoria geral do direito brasileira se fixou, “permitindo
a rendição da classe trabalhadora, a partir de seus mecanismos de intervenção
estatal nas relações de produção” (ALLAN, 2011, p. 156).
O momento, agora, é de alteração paradigmática desse contexto político-
democrático, já que cada vez menos haverá intervenção estatal na regulamentação
das relações de produção, cabendo ao direito vivo do trabalho esta tarefa.
Fica a pergunta: em que pese o profetizado retrocesso social da reforma
trabalhista anunciado pela mudança paradigmática do negociado sobre o legislado,
não seria este o momento oportuno para a construção de uma teoria geral do direito
que abandonasse o ideário corporativista? E mais, com tal mudança paradigmática,
seria o caso de se adequar o direito do trabalho à família germânica ou fundar uma
tradição latino-americana de regulamentação do trabalho?

169 Segundo ALLAN, são mecanismos corporativos de controle da classe trabalhadora instituídos
sobre o ideal corporativista: a) investidura sindical, “delegação pelo Estado de funções como se
públicas fossem aos sindicatos, […] enquanto ao mesmo tempo criara mecanismos de intervenção
estatal direta nessas entidades” (ALLAN, 2011, p. 142); b) enquadramento sindical, “o Estado estipula
as regras que devem ser observadas para permitir agrupamento com a finalidade de constituição de
entidades sindicais”; c) negação à autotutela e solução jurisdicional de conflitos, “haveria de se prever
situações em que as negociações restariam infrutíferas carecendo de intervenção estatal a fim de
impor conciliação e a harmonia nos ambientes de trabalho, para não acarretar prejuízos aos
interesses nacionais” (ALLAN, 2011, p. 146); d) contribuição sindical, “permitiu a sobrevivência e
proliferação de entidades sindicais descompromissadas com os interesses de classe ou da categoria
profissional, pois não precisariam legitimar-se perante os trabalhadores para arrecadação dos
recursos indispensáveis ao seu funcionamento” (ALLAN, 2011, 150).
311

3 O direito vivo trabalhista e forma jurídica: indicadores de uma teoria geral do


direito brasileira e latino-americana

Em outra oportunidade, já afirmei que as negociações coletivas, por


expressarem formas de pluralismo jurídico (WOLKMER, 2001, p. 292),
desempenham papel do “contraponto não hegemônico frente a tentativa de
regulação absoluta da classe dominante perante a classe trabalhadora” (SANTOS,
2014, p. 88). Encarava, naquela época, a regulamentação das condições de trabalho
pela via legal como uma inviabilidade emancipatória à classe trabalhava.
Por outro ponto de vista, afirmo neste trabalho que, se aprovado o Projeto de
Lei 6878/2016, haverá uma mudança paradigmática na ciência jurídica trabalhista
brasileira, já que, para determinados casos, o negociado terá eficácia de lei,
autorizando a livre negociação acerca de direitos antes tidos como básicos da
“classe que vive do trabalho” (ANTUNES, 586, 2016).
Não é ponto comum à crítica ao Direito consagrar o pluralismo jurídico ou este
direito vivo revelado nas relações humanas, como possuidor de um caráter
emancipatório. Fato é que, majoritariamente, o entendem como contra hegemônico
por apresentar uma concepção dialética da formação do próprio Direito, diferente do
Direito Estatal/Oficial, o qual, “reduzido à pura legalidade [...] passa, então, das
normas estatais, castrado, morto e embalsamado”(FILHO, 1982, p. 4).
No âmbito do direito do trabalho esta conclusão também já foi capitaneada por
Arnaldo Sussekind e por Mauricio Delgado Godinho, quando afirmam que através da
negociação coletiva os atores sociais poderão evoluir, pois terão a capacidade de
aturar na fonte primária de produção das regras trabalhistas, através da
representatividade sindical no campo da negociação coletiva(SUSSEKIND, 1997, p.
1145) e, por serem produtos da luta de classes, as convenções coletivas podem ser
utilizadas em “contraposição à hegemonia incontestável do ser individual no estuário
civilista preponderante no universo jurídico”. (DELGADO, 2004, p.1375).
Este apegado de conclusões complementa-se reciprocamente, já que, o
momento político atual é propício para testar a conclusão a que cheguei em 2014 e,
de fato, caminho para a conclusão de que não será pelo pluralismo jurídico que
proporcionará esta emancipação.
Wilson Ramos Filho afirma que o contexto político-democrático de cada país é
“condicionante da maneira como a relação de trabalho subordinada receberá
312

tratamento por parte do Direito Capitalista do Trabalho” (2012, p. 129).


Nesse sentido, o Brasil como espelho do capitalismo global, desde 1960-70
tem se reestruturado num “movimento profundo de transformações [...], através da
constituição das formas de acumulação flexível, da gestão organizacional, de
avanço tecnológico e de modelos alternativos ao binômio taylorismo/fordismo”
formando uma nova morfologia do trabalho (ANTUNES, 2016, p. 586) em um
processo definido como terceiro espírito do capitalismo.
Este espírito do capitalismo caracteriza-se pelo avanço do capital sobre as
relações de trabalho, já que, ao se tornar hegemônico a partir dos vinte anos do
século XX, o neoliberalismo se sente à vontade na disputa ideológica, sem
necessidade de legitimação (RAMOS FILHO, 2012) e, atualmente, em época de
crise de capitalismo, mas sem alternativa factível a este modo de produção, surgem
as ondas de “austeritarismo” (SANTOS, 2016, p. 10) na investida do capital sobre o
trabalho, almejando resgatar os anéis outrora cedidos (RAMOS FILHO, 2012, p. 48)
em nome de estabilidade financeira através de políticas de austeridade. Os direitos
sociais são tidos como os grandes culpados da atual crise que o capitalismo
enfrenta, sendo imputado aos trabalhadores o pagamento desta conta. O que é um
grande equívoco.
A fim de resgatar sua estabilidade, o terceiro espírito do capitalismo ganha
espaço na disputa hegemônica. São nestas condições que as propostas de reforma
trabalhista surgem, principalmente nos países periféricos, apresentando novas
formas de extração do valor da força de trabalho sob o véu da modernização,
diminuindo-se a intervenção estatal na relação trabalho-capital e possibilitando a
flexibilização e precarização do trabalho através da negociação coletiva.
Se a prevalência do negociado sobre o legislado encontra-se no rol destas
medidas propostas pelo terceiro espírito do capitalismo, não há como se reafirmar a
tese de que possuem um viés contra hegemônico, pois, ao contrário, reafirmam a
hegemonia do capital sobre o trabalho. Porém, como mudança paradigmática para a
TGDT, esta não pode se negar a ter na captação do direito vivo um de seus
pressupostos.
Uma Teoria Geral do Direito do Trabalho brasileira deve ter como tarefa
(PACHUKANIS, 1992, p. 17) a encampação do direito vivo como categoria
essencial, sem se afastar dela ou ignorá-la, assumindo-se como ciência jurídica que
capta o direito no âmbito das relações sociais por revelar “a relação jurídica em sua
313

forma mais pura e simples”, (PACHUKANIS, p. 60). Todavia, deve ir além desta
sociologia jurídica, pois, como visto, enquanto direito vivo e pluralismo jurídico a
produção de normas juscoletivas carece de caráter contra hegemônico, para isso,
deve se valer da crítica do direito com fulcro soviético que ressalta a especificidade
do direito através da relação jurídica subjetiva, entre sujeitos de direitos livres e
aptos a negociar sua própria força de trabalho enquanto mercadoria.
Oscar Correas constrói sua teoria crítica do direito desde o mesmo
pressuposto, onde o direito, especificamente o direito do trabalho, possui um
específico papel: o de garantir a circulação de mercadorias. No âmbito justrabalhista,
a força de trabalho nada mais é do que uma mercadoria como qualquer outra a ser
circulada pelas mediações jurídicas do direito (CORREAS, 1986, p. 125), nada muito
distante do que o direito civil e o direito comercial.

“Forma” do que é o direito do trabalho? Em termos gerais, não apenas da


circulação mercantil simples, mas da circulação mercantil capitalista e de
uma circulação especial: a circulação de força de trabalho. Isso enquanto ao
fenômeno da compra e venda da força de trabalho. Mas o direito do
trabalho não se resume a isso, mas se estende ao processo de trabalho
mesmo, do qual sabemos que é o suporte material do processo de
valorização. No entanto, assim como o direito civil parece referir-se a
valores de uso quando, na realidade, se refere a valores de troca, assim
também o direito do trabalho parece referir-se ao processo de trabalho,
mas, na realidade, é a forma jurídica do processo de valorização, (jornada
de trabalho, ritmos de trabalho, férias, salubridade, etc.). O que, no fundo,
acontece é a valorização; mas o que se vê é o processo de trabalho; o
homem, a ferramenta, o objeto em movimento; tal movimento necessário é
captado como dever se, como normatividade; a valorização adquire assim
sua forma jurídica.

Assim sendo, se, para Ehrlich o direito vivo estava efetivamente sendo
praticado pelo direito comercial por ser “a única área do direito que parte
regularmente, e não só ocasionalmente, daquilo que realmente se pratica” (1986,
p.376) e, do mesmo modo, para Pachukanis “o desenvolvimento do direito como
sistema não foi gerado pelas exigências das relações de domínio, mas pelas
exigências das trocas comerciais” (PACHUKANIS, p. 56), não há como se negar que
o direito vivo, expresso nas convenções coletivas de trabalho expressa sem
pormenores a forma jurídicacapitalista tratando a força do trabalho como mercadoria
e procurando formas de se garantir, cada vez mais, a extração de valor.
Surge, portanto, um novo ponto necessário para investigação do direito vivo e
da forma jurídica, qual seja, o processo de extração de valor entre países
formalmente livres mas economicamente dependentes. A forma jurídica transforma
314

as nações em sujeitos de direitos inseridos em um “um sistema unitário e bipolar,


configurado a partir da exploração da periferia pelo centro” que negociam livremente
formas de transferência de valor e assim o fazem de forma estruturalmente
dependentes, já que “os países periféricos não possuem dinamismo próprio e sua
estrutura interna é apenas produto das relações de produção que os vinculam ao
sistema mundial” (ROUGIER, 2016, p. 686). Seria, a forma dependência, também
um direito vivo internacional?
Para a TGDT no Brasil o fator geopolítico da dependência deve ser
considerado, portanto, como dominante, no qual a inserção da América Latina no
mercado mundial, como economia dependente exportadora e periférica, tem suas
relações de produção “modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução
ampliada da dependência” como economia exportadora (MARINI, 2011, p. 157), o
que se dá – diferentemente dos países de centro e para além da divisão
internacional do trabalho – através da superexploração da força de trabalho.
Para compensar a transferência de valor, o capital dependente explora ao
máximo a força de trabalho do operário, “sem se preocupar em criar as condições
para que este a reponha” (MARINI, 2011, p. 157), ou seja, sem que seja garantido
meios de meios concretos de reprodução, produção e desenvolvimento da vida
humana concreta (DUSSEL, 1998).
Por assim dizer, através do direito vivo trabalhista e da eminência da forma
jurídica nas relações de troca da mercadoria força de trabalho, uma teoria geral do
direito do trabalho deverá implicar na sua localização na periferia do capitalismo
(CAMARGO NETO, 2016), não bastando que se importe dos países centrais novas
(velhas) formas de sistematização da regulamentação do trabalho (família
germânica), pois, desta forma, teremos a “ausência, ou o não-lugar” da ciência
jurídica no Brasil e negaremos as bases em que se assentou a inserção do país no
sistema capitalista: “a superexploração do trabalho e a transferência de valor”
(CAMARGO NETO, 2015, p. 84).

Conclusão

Esta conclusão deve ser usada, antes de tudo, como um acerto de contas
pessoal e teórico. Como mencionado na introdução, ao rever os resultados de minha
singela pesquisa monográfica de conclusão de curso, tenho por certo que o caminho
315

da crítica jurídica, especificamente ao direito do trabalho, não deve seguir as


diretrizes teóricas das teorias pluralistas do direito, pois estas possuem um horizonte
de crítica e insurgência reduzido.
Entre a crítica de Kelsen e Ehrlich à ciência jurídica e suas propostas de teorias
gerais, me filio à crítica de Pachukanis a ambos como a mais acertada para o estudo
do fenômeno normativo da sociedade capitalista. Ao final de seu livro, Ehrlich
apresenta através de seu método sociológico e do direito vivo, caminhos também
desbravados por Pachukanis. Ocorre que Ehrlich não avança na crítica,
permanecendo no campo das aparências do fenômeno, o que não se recusa a fazer
o autor soviético ao investigar a forma jurídica.
Chego à conclusão, sem esgotar o debate, de que a inversão paradigmática
que se propõe pelo “negociado sobre legislado” deve implicar em uma nova teoria
geral do direito do trabalho no Brasil a qual, caso venha a ser aprovado o Projeto de
Lei 6787/2016, deverá ter como pressuposto: (a) a colocação das relações de
trabalho em seu devido lugar geopolítico no capitalismo, ou seja, inserida no
contexto do terceiro espírito e no sistema global capitalista de dependência; (b) em
decorrência do pressuposto anterior, não poderá importar de outros lugares
fundamentos de uma teoria geral, criando-se uma ciência jurídica para as relações
de trabalho periféricas do Brasil;(c) a criação família própria do direito do trabalho,
que, a partir das categorias direito vivo do trabalho e forma jurídica trabalhista
exponham a regulamentação das relações de trabalho como efetivamente são –
uma relação de compra e venda e de produção de valor -, afastando-se do caráter
corporativista que assumira outrora.

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317

POSITIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS E TRABALHISTAS COMO FATOR DE


CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA: UMA ANÁLISE HISTÓRICA E CRÍTICA DA
LUTA POR DIREITOS

Lucas Vilas Boas Santos170

Resumo: O presente trabalho tem por escopo promover uma análise histórica e
crítica do processo de positivação dos direitos sociais e trabalhistas ao longo da
história, especialmente ao longo do século XIX e início do século XX – momento em
que surgem os primeiros trabalhadores assalariados em virtude da revolução
industrial, e, é evidente, a luta de classes protagonizada entre a burguesia e o
proletariado - e correlaciona-los como pressuposto do modelo democrático moderno.
Demonstraremos, também, que a conquista desses direitos não se deu de forma
mecânica, pela simples absorção dos dispositivos pelas Constituições, códigos e
legislações, o que uma análise rasa poderia proporcionar, mas, ao contrário, a
positivação só foi possível pela intensa peleja promovida pela classe trabalhadora
contra o status quo do paradigma liberal-burguês ao longo de décadas e décadas
sucessivamente. Ainda, trataremos do fenômeno de precarização e desregulação
desses direitos, em prol de uma pretensa “liberdade de mercado”, característica
própria dos tempos do neoliberalismo, sistema político-econômico que perpassa
nossa realidade, o que afetará também o paradigma social-democrático até então
consolidado. Cabe mencionar que se somam à nossa análise as mais variadas
formas com que as sociedades reagem a essas mudanças, momento em que as
lutas populares assumiram e assumem caráter dos mais diversos.
Palavras-chave: Direitos sociais. Estado. Democracia.

Introdução

Com o desenvolvimento do capitalismo industrial, surgiram as primeiras


grandes fábricas e, com isso, a massa denominada de proletariado moderno, ou

170
Discente do terceiro* ano do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina (UEL) em
Londrina- PR e Bolsista Fundação Araucária. Membro do Projeto “A relação entre Economia, Direito e
Democracia na agenda do século XXI”, sob orientação do Prof. Dr. Elve Miguel Cenci. E-mail:
lucasvilaas@gmail.com.
318

seja, a classe trabalhadora assalariada. As condições sociais e de trabalho em que


viviam esses trabalhadores e trabalhadoras, e até crianças, eram extremamente
precárias e desumanas, de modo que tal situação levou a muitos pensadores
caracterizarem tal situação como uma verdadeira “escravidão assalariada”. A ideia
vigente nesta época era do liberalismo clássico, ideologia que legitimava a não
regulamentação das relações do trabalho, bem como a recusa, por parte do Estado,
em conceder direitos sociais aos menos favorecidos. Era difícil, então, admitir como
um modelo democrático aquele em que o próprio povo sequer detinha condições
mínimas para sobreviver. Assim, os trabalhadores, politicamente organizados,
passam a questionar e enfrentar a ordem estabelecida, exigindo seus direitos como
uma urgência, uma verdadeira demanda da humanidade.

2 O processo histórico da luta pelos direitos sociais e trabalhistas

Neste momento, analisaremos o processo de conquistas dos direitos sociais e


trabalhistas ao longo da história da humanidade, que se liga intimamente à luta de
classes e às conquistas da classe trabalhadora, principalmente a operária.
Com base em Miguel Reale, Mascaro Nascimento (2014, p.32) aponta que o
Direito não consiste num fenômeno estático, mas, ao contrário, diz respeito a uma
construção social dinâmica, correlacionando entre si fatos – da vida social –, valores
- evolução das ideias – e normas – resultado do envolvimento ativamente intenso
dos fatos e dos valores. Não seria, assim, diferente quando tratamos da evolução do
direito do trabalho, com sua estreita relação com as relações de produção e de
poder político.
De acordo com Nascimento, o direito do trabalho tem sua origem como um
resultado da questão social, antecedida pela Revolução Industrial do século XVIII, e
da reação de caráter humanista que se colocou a serviço de garantir ou conservar a
dignidade humana no espaço dos complexos industriais (2014, p. 34).
Partindo para os fatos marcantes do mundo do direito do trabalho, Nascimento
apresenta a chama questão social. De acordo com os autores, os efeitos deletérios
do capitalismo, bem como das condições da infraestrutura da sociedade, mostram-
se impossíveis de serem negados com a Revolução Industrial. Dentre os efeitos
causados, os autores destacam o “empobrecimento dos trabalhadores, inclusive dos
artesãos, a insuficiência competitiva da indústria que florescia, os impactos sobre a
319

agricultura, os novos métodos de produção em diversos países e as oscilações de


preço” (NASCIMENTO, 2014, p.37). Até mesmo a família foi afetada, dada à
mobilização da mão de obra feminina e também de crianças. A desigualdade social
atingiu níveis tão gritantes que a racionalidade humana não se resignou em afirmar
o que a realidade concreta demonstrava: uma grave perturbação social.
Tratando especificamente da indignidade das condições de trabalhado
subordinado, Mascaro Nascimento expõe que a determinação de condições de
trabalho feita pelo empregador, a imposição de jornadas excessivas, a exploração
do trabalho feminino e também de crianças, as quais constituíam mão de obra ainda
mais barata, os acidentes ocorridos com os trabalhadores no exercer de suas
funções, o agravamento das condições de saúde devido ao ambiente privado das
mínimas condições de higiene, os baixos salários, bem como a insegurança no que
se refere ao futuro e aos momentos em que não tivessem condições para trabalhar –
devido ao esgotamento físico – formava a realidade comum do proletariado do
século XIX (NASCIMENTO, 2014, p. 39).
Diante dessa situação, Mikhail Bakunin (2007, p. 8) afirmou com precisão que

O que atrai o capitalista para o mercado? É a vontade de enriquecer,


aumentar seu capital, satisfazer suas ambições e vaidades sociais, poder
entregar-se a todos os prazeres concebíveis. E o que traz o trabalhador
para o mercado? A fome, a necessidade de comer hoje e amanhã. Assim,
enquanto o capitalista e o trabalhador são iguais pelo ponto de vista jurídico,
eles são qualquer coisa, menos iguais, pelo ponto de vista da situação
econômica, que é a situação real.

Fica claro que, ainda que houvesse igualdade formal entre os mais ricos e os
mais pobres, a desigualdade era gritante materialmente.
A ideologia que fundamentava a não regulação das relações de trabalho e se
opunha a quaisquer benefícios trabalhistas e sociais constitui o liberalismo clássico,
da qual a burguesia industrial era ferrenha defensora – não sem suas contradições e
paradoxos. Como aponta George Marmelstein, o discurso liberal demonstrava ser
unilateral, ou seja, não era válido para todos os setores da sociedade
(MARMELSTEIN, 2009, p. 45). O princípio da isonomia, pilar fundamental de
qualquer modelo que se diga democrático, não se mostrava verdadeiro na realidade
fática.
Marmelstein relembra que, quando os trabalhadores protestavam contra as
condições em que se encontravam submetidos, reivindicando por condições de
320

trabalho mais dignas e melhores condições sociais de vida, o Estado abandonava a


doutrina do laissez-faire e rompia com a chamada condição de espectador, de
maneira que se colocava ao lado dos empresários na repressão contra as revoltas
sociais. Conforme o autor “era comum o apoio das forças policiais para proteger as
fábricas, perseguir lideranças operárias, apreender jornais e destruir gráficas,
demonstrando que até mesmo a tão enaltecida liberdade era somente fachada”
(MARMELSTEIN, 2009, p. 46,). Os direitos fundamentais de liberdade, portanto,
eram negados à classe trabalhadora, como a liberdade de reunião, de associação e
de expressão. Esses, também, já estavam dispostos nas Constituições de nações
ditas liberal-democráticas, mas pareciam servir a apenas um segmento da
sociedade.
Cabe considerar ainda que a classe trabalhadora não detinha direito ao voto,
pois ele era censitário, apesar de na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão estar expresso que os homens nascem e permanecem livres em direitos.
Os trabalhadores não contavam com direitos políticos, direitos sociais ou direitos
trabalhistas.
Como expõe o Mermelstein, o Estado liberal já se mostrava incapaz de
assegurar a harmonia social e as classes proletárias se organizavam em grupos
vigorosamente politizados – influenciados principalmente por ideias socialistas,
comunistas e anarquistas, com intuito de insurgir contra a ordem burguesa e exigir
seus direitos (MARMELSTEIN, 2009, p. 48). Greves gerais, enfretamentos com as
tropas policiais, manifestações massivas, entre outras alternativas, eram adotadas
pela classe trabalhadora para pressionar o poder público a ouvi-la. Enquanto isso
não acontecia, a organização dos trabalhadores foi se tornando cada vez mais
radical e revolucionária.
Com o poder público sentindo a pressão aumentar cada vez mais, aos poucos,
leis foram sendo aprovadas no sentido de conceder maior proteção aos
trabalhadores, bem como no sentido de abolir o trabalho infanto-juvenil. Muitas
normas se seguiram no sentido da maior intervenção do Estado nesta área social e
nas relações de trabalho. A Lei de Peel 1802, por exemplo, visava o amparo para
trabalhadores. Acabou tornando-se ineficaz, mas uma nova lei foi aprovada em
1819, depois que Robert Owen ajudou Robert Peel. Com essa nova lei, conseguiu-
se tornar ilegal o emprego de menores de nove anos, bem como limitar a jornada de
trabalho dos adolescentes menores de dezesseis anos para doze horas diárias nas
321

prensas de algodão.
A Lei de 1833 da Inglaterra, provocada pela Comissão Sadler, constituida para
investigar as condições de trabalho fabris, proibiu o emprego de menores de nove
anos, colocou limites à jornada diária de menores de treze anos para nove horas,
dos adolescentes menores de dezoito anos para doze horas e proibiu o trabalho no
período noturno. Além disso, foram nomeados inspetores fabris, diante do fato de
que era preciso para o devido cumprimento das regras que foram estabelecidas.
A França foi pioneira na defesa do trabalho adulto masculino. Como expõe
Nascimento, o país também proibiu o trabalho de menores de idade nas minas. Em
1841, o emprego de menores de oito anos também foi proibido, e foi fixada em oito
horas a jornada máxima para menores de doze anos, entre outas medidas.
A Alemanha acompanhou o aumento da intervenção do Estado na esfera dita
privada, intervindo nas relações de direito entre o patrão e o empregado. Em 1839,
publicou-se a lei que proibia o trabalho de menores de nove anos e limitava em dez
horas a jornada de trabalho diária para os menores de 16 anos.
Em 1869, uma lei de sindicância trabalhista deliberou que todos os
empregadores seriam obrigados à promoção e à manutenção, arcando com todos
os custos dos instrumentos necessários ao trabalho, levando em consideração sua
natureza, em especial, do setor da indústria em que eram utilizados, e o local de
trabalho em condições mínimas de dignidade com intuito garantir proteção aos
operários. Incumbiu-se aos governos dos Estados darem atuação ao mencionado
dispositivo legal.
O chamado direito industrial foi passando por diversas transformações,
chegando a ser chamado de direito operário e, com o passar dos tempos, o direito
do trabalho de maneira rápida foi se institucionalizando.
Com a Revolução Russa de 1917, fortificou-se a ideia de que o sistema
econômico capitalista, que já havia cedido em certo sentido às exigências dos
trabalhadores, precisava ser reformado, sob pena de ser destruído pela força que a
classe proletária havia demonstrado.

2.1 Mudança do Paradigma Liberal para o Paradigma Social Democrático

Foi nesse contexto de grande agitação política e social que se potencializam as


ideias da social-democracia, nascendo o chamado WelfareState, o Estado de bem-
322

estar social. Tratava-se de um novo paradigma político, em que o Estado, sem


abandonar os princípios básicos do capitalismo, como a economia de mercado e a
proteção da propriedade privada, assume o compromisso de prover maior igualdade
material e assegurar as condições mínimas para uma vida humana digna.
Uma série de direitos sociais e trabalhistas foi positivada, no sentido de
aprimorar as condições de vida da classe trabalhadora, por Constituições de várias
nações ao redor do mundo. São exemplos a Constituição do México de 1917 e a
Constituição de Weimar de 1919.
Com a Crise de 1929, a ideia central de que o mercado é capaz de se
autorregular entrou em colapso, abalando toda estrutura baseada no laissez-passer.
Era a confirmação de que o liberalismo clássico um paradigma central para regular a
sociedade.
De acordo com Marmelstein(MARMELSTEIN, 2009, p. 49),

o reconhecimento formal desses direitos é fruto da constatação de que a


liberdade contratual dos trabalhadores é ilusória, tendo em vista estarem em
uma posição de fragilidade e, por falta de opção, sempre aceitarem as
imposições dos empregadores.

Nesse sentido, o sistema jurídico passou a reconhecer várias limitações aos


empregadores e assegurar direitos mínimos nas relações de trabalho, como a
garantia de remuneração de salário-mínimo, o direito de greve e sindicalização, bem
como limitação da jornada de trabalho diária.
Assim, a isonomia, o tratamento igualitário, as condições mínimas para uma
vida digna, entre outas questões passaram a fazer parte do ideário de uma
democracia substancial, corrigindo as desigualdades sociais que antes eram
mascaradas pela igualdade jurídico-formal.

2.1.2 Luta proletária e direitos sociais no Brasil

No Brasil, a luta proletária por direitos básicos começa a ter destaque a partir
da vinda de imigrantes, principalmente italianos e espanhóis, para trabalhar nas
indústrias nascentes da I República. Unidos por uma pauta abrangente, que incluía o
fim do trabalho infantil, jornada de trabalho de oito horas e melhores condições de
vida, bem como orientados especialmente pelas ideias anarquistas, a classe
operária promoveu uma grande greve geral – a conhecida Greve Geral, ou
323

Insurreição de 1917 –, paralisando as atividades em grandes cidades, como em São


Paulo e Rio Grande do Sul.
Conforme Eudes André Pessoa (PESSOA, 2011), o artigo 6º da Constituição
Federal faz, genericamente, referência aos direitos sociais propriamente ditos, tais
como o direito à saúde, ao trabalho, ao lazer, etc. Conforme o autor, os direitos
sociais, enquanto dimensão dos direitos humanos fundamentais constituem
prestações positivas, cujas condições são criadas pelo Estado direta ou
indiretamente, que tornam possível melhores condições de vida aos menos
favorecidos, direitos que visam à realização da correção das desigualdades sociais.
Eles se ligam, pois, aos direitos de igualdade nesse sentido.
Os direitos sociais equivalem, também, como base para o usufruto dos direitos
de primeira geração, na proporção em que gera condições materiais para se atingir
a igualdade real, possibilitando maior usufruto do exercício do direito de liberdade.
Ora, como pode ser livre – pressuposto básico de um regime democrático – o
cidadão que não tem outra escolha senão a venda de sua força de trabalho por um
salário mínimo? Eis a importância dos direitos sociais numa democracia.
O direito ao trabalho é assegurado pela Constituição Federal do Brasil (CF) no
seu artigo 6°, no conjunto dos direitos sociais, e no artigo 7° ao 11° estão presentes
os principais direitos para a classe trabalhadora que estão sob a lei brasileira.
A educação como direito social também se situa no artigo 6° da CF, sendo um
direito imprescindível para o exercício da cidadania, já que nenhum dos outros
direitos sejam eles civis, políticos, econômicos e sociais podem ser usufruídos sem
que seus titulares tenham recebido o mínimo de educação. Os artigos 205 e 208 da
CF também dispõem sobre o direito à educação, responsabilizando o Estado pela
educação gratuita e de qualidade.
Ainda, o direito social – e fundamental – à saúde aparece nos artigos 5° e 6° da
Constituição de 1988. Conforme o autor, a saúde correlaciona-se com a educação,
na medida em que o cidadão que as recebe precaveria uma série de problemas
(PESSOA, 2011). O artigo 196 da CF também aborda o direito social à saúde, pelo
que a trata como um direito de todos e dever do Estado assistir o cidadão com
qualidade e eficiência.
Vale lembrar, ainda, que a Constituição Federal constitui o resultado de um
verdadeiro pacto social, e os direitos nela positivados são resultado de uma ampla
mobilização da sociedade civil, partidos, movimentos estudantis, sindicais, etc. na
324

defesa de um paradigma social democrático.

3 Precarização de direitos e neoliberalismo

Com o fim da guerra fria e o início da globalização, a flexibilização e a


desregulação no âmbito dos direitos sociais e trabalhistas têm sido uma constante
nas últimas décadas, principalmente devido às transformações na agenda. Tratamos
do momento em que impera, novamente, e talvez com mais força, a lógica do
mercado sob o paradigma do neoliberalismo.
De acordo com Robert W. McChesney, o neoliberalismo é formado por um
conjunto de políticas e procedimentos que concedem a uma quantidade
relativamente pequena de agentes privados obterem controle da maior parte
possível da vida social, com a finalidade expandir seus benefícios individuais
(CHOMSKY, 2015, p.3).
No início de sua ascensão correlacionado com Reagan e Thatcher, o
neoliberalismo constitui a principal tendência da política e da economia globais nas
últimas duas décadas, na qual seus seguidores, além da direita, também estão os
partidos políticos de centro e por significativa parte da esquerda tradicional. Esses
partidos e suas políticas manifestam os interesses imediatos de investidores de alta
classe e de menos de mil grandes empresas.
Como aponta Noam Chomsky, o termo neoliberalismo incute um sistema de
princípios que, concomitantemente que é novo, tem base nas ideias liberais
clássicas de Adam Smith (CHOMSKY, 2015, p. 9). Tal sistema doutrinário, também
conhecido por Consenso de Washigton, sugere algo que se refere à ordem global.
O Consenso consiste num conjunto de princípios orientados para o mercado,
projetados pelo governo dos Estados Unidos e pelas instituições financeiras
internacionais que esse tem controle e por eles mesmos colocados em prática de
formas diversas – geralmente, nas sociedades mais vulneráveis, com rígidos
programas de ajuste estrutural.
Chomsky (2015, p. 22) expõe que as regras básicas da doutrina do Consenso
de Washington, resumidamente, são

liberalização do mercado e do sistema financeiro, fixação dos preços pelo


mercado (‘ajuste de preços’), fim da inflação (‘estabilidade
macroeconômica’) e privatização. Os governos devem ‘ficar fora do
caminho’ – portanto, também a população, se o governo for democrático -,
325

embora essa conclusão permaneça implícita. As decisões daqueles que


impõe ‘consenso’ têm, é claro, um grande impacto sobre a ordem global.
(...).

Em seu artigo “Globalização, Neoliberalismo e Direito”, os autores Francisco


Quintanilha, Márcia Regina e Bruno Cozza apontam que o neoliberalismo revela
uma doutrina econômica criada principalmente por Friedrich Hayek, economista
austríaco que repudiava o Estado de Bem Estar Social europeu. Segundo ele, o
Estado intervencionista levaria ao “caminho da servidão” (COZZA; QUINTANILHA;
REGINA; 2011). Tal intervenção acabaria com a iniciativa privada e com a livre
concorrência. Essas ideias eram acompanhadas de boas doses de darwinismo
social, com o Estado “selecionando os mais fracos”.
Hayek, em conjunto com Ludwig Von Mises e Milton Friedman, promoveu a
formação de um pequeno grupo, que se reuniu pela primeira vez na Suíça. Eram
desacreditados das políticas públicas econômicas. Friedman logo se tornou líder do
movimento, com destaque para sua principal obra “Capitalismo e Liberdade”. Como
aponta o artigo, as ideias de Friedman transitavam entre o fim das vantagens
salariais trabalhistas, a supressão do poder dos sindicatos, bem como a redução de
impostos para a categoria empresarial.
Foi no Chile onde as ideias dos pensadores de economia neoliberal
supramencionados foram “testadas”. O país era considerado um exemplo de
políticas de desenvolvimento progressivo nos anos 50 e 60. Naomi Klein aponta que
o período do neoliberalismo tratado aqui costuma não ser abordado, por questões
que obviamente serão compreendidas (KLEIN, 2009). Nesse período, iniciou-se um
processo de intercâmbio de estudantes da Universidade Católica do Chile com a
Universidade de Chicago dos EUA.
Nos anos 70, Salvador Allende vence as eleições concorrendo pela Unidade
Popular, uma coalizão partidária de esquerda, desagradando profundamente às
forças conservadoras do Chile e também aos interesses dos EUA.
A ITT, companhia telefônica americana, atuante no país, inicia ações com a
CIA para impedir a posse de Allende como presidente. Com apoio do presidente
norte-americano Richard Nixon, iniciaram-se os preparativos para o Golpe de
Estado, capitaneado pelo General Augusto Pinochet.
Os chamados “Chicago boys”, homens da Escola de Chicago, já preparavam
um anteprojeto econômico para o Chile: O El Ladrillo. Ações no sentido de
326

desestabilizar a economia chilena foram postas em prática. Diante da crescente


tensão, em 11 de setembro de 1973 efetuou-se o golpe militar. No percurso golpista,
Allende resistiu no palácio La Moneda e acabou morrendo.
Uma verdadeira ditadura sanguinária estabeleceu-se no Chile sob direção de
Pinochet, com um saldo de milhares de mortos e desaparecidos. Enquanto o país
afogava a democracia em sangue, as medidas de “livre mercado” foram sendo
aplicadas: eliminação dos controles de preços, venda de empresas estatais, retirada
de impostos dos produtos importados e cortes significativos nos gastos públicos.
Com as medidas impostas, o plano econômico se mostrou um fracasso. A
inflação disparou para 375% ao ano, a mais alta do mundo. Diante desse dado
assustador, foi preciso, então, um “tratamento de choque”: recrudescer a repressão
estatal.
Embora Milton Friedman, talvez o maior nome do neoliberalismo, afirmasse
que capitalismo e liberdade andavam de mãos dadas, ironicamente, até meados da
década de 1970, apenas ditaduras militares colocaram em prática suas ideias.
Passando por esta pequena análise histórica e conceitual do capitalismo
flexível/neoliberalismo, passemos para seus efeitos nos campo dos direitos sociais e
trabalhistas.
Conforme Sônia Mascaro Nascimento e Amauri Mascaro Nascimento, a
legislação passa a ser flexibilizada e novas formas de contratação originam-se. Nos
EUA, em 1992, por exemplo, aproximadamente 27% das mulheres e 11% dos
homens já ocupam atividades laborais em tempo parcial e em 2008 se mitigou a
oferta de empregos, o que foi acompanhado pela desaceleração da economia
(NASCIMENTO, 2014, p. 69,). O sistema de financiamento de compra de imóveis
havia sido afetado pela inadimplência. Assim, as jornadas de trabalho e os salários
receberam cortes, para fazer frente às dispensas massivas.
Os níveis de terceirização cresceram significativamente e os encargos sociais
também foram mitigados. É importante lembrar que a desigualdade social não foi
reduzida, ao contrário, foi ampliada a exclusão social em diversos segmentos da
sociedade. Nesse sentido, o direito do trabalho atual, embora não tenha
abandonado sua função principal – a tutela do trabalhador – orienta-se no sentido de
não barrar o avanço da tecnologia e os ditames do desenvolvimento econômico.
De acordo com Mascaro Nascimento, a conjuntura internacional demonstra
uma sociedade vulnerável a sérios problemas que afetaram em nível mundial os
327

sistemas econômicos capitalistas. Como aponta os autores, “os empregos


diminuíram, cresceram outras formas de trabalho sem vínculo de emprego, as
empresas passaram a produzir mais com pouca mão de obra, a informática e a
robótica trouxeram produtividade crescente e trabalho decrescente”.
(NASCIMENTO, 2014, p.74).
Recrudesceram, em determinadas nações, os contratos por prazo
determinado, tal como na Espanha, autorizados em novos casos e desonerando a
empresa de encargos sociais, cujo objetivo é a promoção da inclusão de
desempregados nos limites da redução do custo trabalhista no término do vínculo
jurídico.
Além disso, os Nascimento (2014, p. 78) apontam que

é elevado o número de pessoas no mundo desempregadas ou


subempregadas. As estimativas são de crescimento dessa contingente, e o
direito do trabalho ainda não encontrou meios eficazes de enfrentar o
problema que caracteriza o período contemporâneo com a nova questão
social, resultante do crescimento do exército de excedentes atingidos pela
redução da necessidade do trabalho humano substituído pela maior e mais
barata produtividade da tecnologia, fenômeno desintegrador que não
poupou nem mesmo os países de economia mais consistente.

O professor José Eduardo Faria aponta também uma série de consequências.


Dentre eles, a heterogeneização das relações salariais e das relações trabalhistas, a
precarização das relações de trabalho, o esvaziamento dos modelos social-
democratas de transformação social, bem como a transferência para os países
periféricos (América Latina e Ásia) os efeitos deletérios do processo produtivo e
débeis condições de trabalho (FARIA, 2014).
Ainda Faria expõe a perda do papel central dos sindicatos no processo político,
a degradação dos serviços públicos e privatização de serviços estratégicos, com
consequente perda de direitos sociais (FARIA, 2014).
Cabe ainda lembrar que os direitos, antes vistos como conquistas
democráticas, passam a ser vistos como gastos e que as decisões sobre matéria
econômica passaram cada vez mais para o terreno transnacional, no campo de
organismos que não detém legitimidade democrática, como a Organização Mundial
do Comércio (OMC).
328

3.1 O Desgaste do Neoliberalismo e a Reação Social à Perda de Direitos

No mundo todo, as sociedades das mais diversas têm tido reações igualmente
diversas em relação ao impacto da globalização nos moldes do capitalismo
flexibilizante neoliberal. Atentar-nos-emos aqui às organizações populares e táticas
de caráter anticapitalista colocadas em prática, principalmente pela ala mais jovem
da sociedade, bem como a defesa do Estado social-democrático.
Aline Aparecida Grezele em seu artigo “Lutas de resistência na América Latina”
(2012, p. 67), apresenta uma série de movimentos sociais de oposição ao
capitalismo flexibilizante, especificamente no Brasil, Argentina, Chile, Paraguai,
Uruguai, Bolívia e Equador, com seus perfis, formação, objetivos, etc.
A partir dos anos 1980, a América Latina vive, com o fim das ditaduras militares
e o avanço capitaneado pela cultura democrática ativa, a ascensão de variadas
organizações da sociedade civil no cenário político. Dentre eles, a luta feminina na
defesa de seus direitos de gênero, do movimento estudantil em prol da universidade
pública, do movimento indigenista, dos trabalhadores rurais e urbanos, sem terra e
sem teto.
Conforme a autora, porém, nas últimas duas décadas, esses movimentos
foram afetados pelos princípios do pensamento neoliberal, de tal forma que os
governos, assumindo esses princípios em diferentes momentos, acabaram por
legitimar a anuência em volta da sociabilidade liberal (GREZELE, 2012, p.68).
Não obstante, nos anos 1990, movimentos sociais verdadeiramente
combativos surgiram no cenário político, como o caso da insurreição do movimento
zapatista, em 1994. O movimento se deu como resposta ao lançamento do Tratado
de Livre-Comércio da América do Norte, o NAFTA, em detrimento das populações
indígenas do sul mexicano. Também ocorreram manifestações contra o acordo de
Maastrich e o desemprego na Europa, a I Conferência Mundial de Ação Global dos
Povos e o Grito latino-americano dos excluídos, o qual propõe um conceito de
movimento social como agente combativo a anticapitalista.
Há, também, o Fórum Social Mundial, resultado dos protestos de massa
surgidos contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), nos anos 1990, nas
ruas de Seatle e Praga. Expressam novas formas de resistência por meio de
sindicatos, partidos, organizações de base e ONGs diante da globalização capitalista
e seus efeitos.
329

Os objetivos a serem alcançados por tais movimentos avançam em duas


direções. A primeira, no sentido da defesa dos direitos humanos e direitos sociais,
políticas públicas tais como educação, saúde, moradia, acesso à água e à terra,
acesso à alimentação sustentável, e também, a ações que objetivam superar as
desigualdades de gênero. A segunda, orientada para a luta contra o capitalismo
neoliberal, com temáticas que se dirigem à reforma agrária, à modificação das
relações entre Estado e sociedade, à distribuição de renda e, também, à
socialização do poder.
Também surge como oposição à globalização capitalista flexibilizadora,
mascarados e vestidos de preto, carregando as bandeiras negras e rubro-negras do
anarquismo, os chamados “Black Blocs”.
Apesar de um mito espalhado de que só haveria um Black Bloc, como se fosse
uma única organização com muitas ramificações internacionais. Porém, o termo
Black Bloc manifesta uma realidade mutável e volátil.
Eles são compostos por um conjunto pontual de indivíduos ou grupo elementos
que se formam durante uma marcha ou manifestação. A expressão denota uma
forma específica de ação coletiva, uma tática que se manifesta pela formação de um
bloco em movimento, em que os indivíduos preservam sua identidade, em parte
graças, às roupas e máscaras pretas.
A finalidade principal de um blackbloc é expor uma crítica radical ao sistema
econômico e político. Assim, é como se ele fosse uma grande bandeira negra
constituída por pessoas no centro de um protesto. Suas faixas costumam carregar
mensagens anticapitalistas e antiautoritárias. Ele, se assim podemos dizer, constitui,
acima de tudo, uma tática que, ao mesmo tempo em que faz ataques físicos a
símbolos do capitalismo como lojas de grife e bancos, promove a defesa dos
manifestantes comuns dos ataques brutais da polícia.
A tática, quando contempla o uso da força, torna possível mostrar ao “público”
que tanto a propriedade privada, quanto o Estado, personificado pela polícia, não
são intocáveis. Fica claro que a tática desafia o direito fundamental à propriedade e
o monopólio da violência do Estado.
Os blackblocs não visam uma revolução global, não são uma organização
permanente, tampouco possuem líderes. Em síntese, sua finalidade é como já foi
dito, deixar uma mensagem, uma mensagem de repulsão e ódio ao status quo.
Foi possível observar sua presença nas marchas de Primeiro de Maio em
330

Montreal e em Seattle, nos protestos de 2013 no Brasil, nos protestos


antiausteridade na Grécia, em confrontos com neonazistas na Alemanha, na
Espanha, durante uma greve geral contra reformas na lei trabalhista, em 29 de
março de 2012.
Seus adeptos, majoritariamente partidários do anarquismo, apontam severas
críticas ao atual modelo de democracia representativa. Para eles, o Estado, ainda
que tido como Democrático de Direito, nada mais é do que a manifestação dos
interesses das classes mais abastadas. Muitos são decepcionados pela perda de
direitos, pelo desemprego, e por considerarem que os políticos profissionais não
representam o povo, mas sim os interesses de poucos.
Fica evidente que os vários grupos e organizações explicitados acima
desenvolvem uma crítica ao atual sistema político-econômico, no sentido de visar
reforma-lo, ou até mesmo apresentam uma rejeição total ao seu funcionamento.
Ainda, parte deles ainda tem por escopo construir um novo paradigma democrático,
em bases de participação mais acentuada nas deliberações.

Conclusão

A democracia é marcada pelo sistema político em que os indivíduos detêm


uma série de deveres e direitos frente ao Estado, e este, ao assegura-los, o legitima
enquanto um Estado Democrático de Direito. A dignidade humana, ideia de que
temos o direito de viver bem – e não sobreviver – também é uma compreensão
democrática acerca da realidade, afinal, não há como usufruir de nossos direitos de
liberdade, por exemplo, se sequer tivermos assegurados o mínimo existencial, ainda
mais pelo fato de nosso sistema econômico ser marcado pela produção de
desigualdade e pobreza. Os direitos sociais e trabalhistas são, pois, ferramenta
indispensável à correção dos produtos diretos do modo de produção capitalista.
Como se evidencia com o desenvolvimento do artigo, tais direitos não foram
assegurados pelo Estado por mero espontaneísmo, ao contrário, são resultado
direto da luta pela emancipação da classe trabalhadora. São por esses motivos,
também, que não podemos aceitar o atual processo de precarização de direitos
sociais e desregulamentação das relações de trabalho. Ao aceitarmos esses
acontecimentos, estaremos retrocedendo às conquistas, estaremos, pois,
retrocedendo à busca pelo aperfeiçoamento da democracia. Cabe, portanto, à
331

sociedade reagir aos ataques a seus direitos legitimamente conquistados e


democraticamente positivados, e ao Estado assegura-los enquanto mecanismos de
consolidação democrática.

Referências Bibliográficas

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Cidadão Brasileiro .In:Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 89, jun 2011. Disponível
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juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9623&revista_caderno
=9>. Acesso em set 2016.

SALGADO, Gisele Mascarelli. As significações do direito anarquista e sua


repercussão no direito operário na Primeira República (1917-1920). In: Âmbito
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nov. de 2015.

VÉRAS NETO, Francisco Quintanilha; VERAS, Márcia Regina da Silva Quintanilha;


SARAIVA, Bruno Cozza. Globalização, Neoliberalismo e Direito: os fundamentos
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Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 90, jul 2011. Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9902>.
Acesso em jun 2016.
332

WINTERBOTTOM, Michael e WHITECROSS, Mat.A Doutrina do Choque.


Renegade Pictures/ Revolution Films Production: 2009. Duração: 1h: 18min: 37seg.
333

GRUPO DE TRABALHO 6

DIREITO E GÊNERO

Ementa: Neste grupo de trabalho serão aceitas propotas que problematizem Direito
e Gênero. Serão aceitas críticas feministas ao direito, teorias críticas feministas,
epistemologias feministas, violência de gênero ou qualquer análise que problematize
gênero em teorias jurídicas e ramos do direito. Priorizam-se análises interseccionais,
nas quais estejam em debate, além de relações de gênero, sexualidade, etárias e
relações étnicos-raciais.

Coordenadora: Deíse Camargo Maíto (dcmaito@usp.br)


334

LIMITES E POSSIBILIDADES DA UTILIZAÇÃO DO PODER DISCIPLINAR DE


UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS NA RESPOSTA À VIOLÊNCIA DE
GÊNERO OCORRIDA EM SEUS ÂMBITOS

Deíse Camargo Maito171


1 Introdução

O presente estudo insere-se nas análises de gênero no âmbito da ciência


jurídica, focando-se na violência de gênero, questão que, face sua abrangência e
constante ocorrência, continua em voga. Embora no Brasil se tenham desenvolvido
estudos que a problematizam no âmbito do direito penal, direito de família e direito
civil, a presente análise se dá no direito administrativo.
A necessidade de se explorar esse ramo do direito e verificar a possibilidade de
ele tratar a violência de gênero se deu pela sua ocorrência em contexto universitário,
aliada à dificuldade dessas instituições em delinear uma resposta efetiva. Desta
forma, o problema de pesquisa desenvolvido é verificar a possibilidade da utilização
do poder disciplinar detido pelas universidades públicas para o tratamento da
violência de gênero na universidade.
Assim, a primeira parte desse estudo se dedicará a analisar o problema em si.
Primeiramente será definido o que se entende por violência de gênero, seguida da
sua explicitação de ocorrência nas universidades e o tratamento dado a essas
violações. Em um segundo momento, será feito um estudo dogmático sobre o poder
disciplinar a fim de verificar a possibilidade de utilizá-lo para tratar a violência de
gênero. Por fim, se procederá às conclusões no sentido de entender quais são
essas possibilidades, contribuindo com as análises que estudos de gênero tem para
o direito e como pode o direito tratar essas demandas por eles trazidas.

2 Violência de Gênero no Contexto Universitário

Conforme mencionado, há pesquisas que apontam a existência da violência de


gênero na universidade. Assim, antes de estudar como ela é enfrentada e suas

171
Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP);
dcmaito@usp.br; Advogada; Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, onde foi
membra do Lutas: Formação e Assessoria em Direitos Humanos; Mestranda em Direito pela
FDRP/USP.
335

possibilidades, é preciso explicitar o que se trata quando se diz violência de gênero.

2.1 Violência de Gênero

Diversas são as conceituações que as ciências sociais, humanas e da saúde


dão sobre violência de gênero, enquanto os diplomas legislativos também adotam
seus conceitos. A Lei Maria da Penha, por exemplo, a principal lei nacional que trata
da temática, não traz um conceito taxativo sobre essa violência, mas seu artigo 5º
define que violência doméstica contra a mulher se dá em função do gênero.
Tratados internacionais que obrigam os estados signatários no combate,
enfrentamento e punição à violência de gênero, inclusive os que o Brasil é
signatário, conceituam de forma mais precisa a violência de gênero. Conforme
estabelece o artigo 8º, alínea b, do Anexo da Convenção de Belém do Pará(BRASIL,
1996), são medidas que os estados devem adotar para eliminar a violência de
gênero contra a mulher:

Modificar os padrões sociais e culturais de conduta de homens e


mulheres, inclusive a formação de programas formais e não formais
adequados a todos os níveis do processo educacional, a fim de
combater preconceitos e costumes e todas as outras práticas
baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer
dos gêneros ou nos papeis estereotipados para o homem e a mulher,
que legitimem ou exacerbem a violência contra a mulher.

O Ministério Público Fiscal Argentino (GARAVANO, G. C. et. al., 2013:21), em


um estudo sobre o sistema internacional de proteção aos direitos humanos das
mulheres, afirmou que a violência de gênero reflete a assimetria existente nas
relações de poder entre homens e mulheres, e perpetua a subordinação e
desvalorização do feminino frente ao masculino, de modo que a diferença entre este
tipo de violência e outras formas de agressão e coerção se justifica pelo fator de
risco e de vulnerabilidade imbricados no fato de ser mulher ou de assumir papeis
socialmente construídos como femininos.
Assim, entende-se por violência de gênero a violência cometida com base nos
papeis sociais masculinos e femininos desenvolvidos na sociedade. Diferentemente
de perspectivas que colocam somente o sujeito mulher como vítima de uma relação
de violência de gênero, ou perspectivas que entendem que tal violência se trata
somente da proteção às violências cometidas no seio familiar, a perspectiva aqui
336

adotada é mais abrangente, conceituada como uma violência (ALMEIDA, 2008:24)


em contexto de relações produzidas socialmente, com o espaço de produção social
e caráter relacional.
Gênero (ALMEIDA, 2008:26) apresenta a dimensão analítica e histórica que
potencializa a apreensão da realidade das relações sociais em um nível mais
abstrato, pois relações de gênero são fundamentos da vida social, e a violência de
gênero se dá em um quadro de desigualdades de gênero, que integram o quadro de
relações desiguais estruturais, que se expressam na produção e reprodução de
relações sociais fundamentais. Portanto, essas desigualdades são processos macro
e micropolíticos que se desenvolvem em escala social e interpessoal. A “violência de
gênero, gerada no interior de disputas pelo poder em relações íntimas, visa produzir
a heteronomia, potencializar o controle social e reproduzir a matriz hegemônica de
gênero na sua expressão microscópica”(ALMEIDA, 2008:28). Não se trata de uma
relação de submissão, mas de uma disputa pelo poder que ocorre cotidianamente.
A violência de gênero, por ser relacional, é construída em bases
hierarquizadas, objetivando-se nas relações entre sujeitos que se inserem
desigualmente na estrutura familiar e social. Com isso, entende-se que a vítima
dessas violências não são somente mulheres, uma vez que essas relações e
violências estão em constantes mudanças. Há outros entendimentos (DEBERT et.
al., 2008:166) também pela perspectiva relacional da questão da violência de
gênero, razão pela qual se faz necessário distinguir crime de violência, pois
enquanto crime implica a tipificação de abusos, definição das circunstâncias
envolvidas nos conflitos e resolução no plano jurídico, o tratamento da violência
implica o reconhecimento social de que certos atos constituem abusos e evocam
uma dimensão relacional que está longe de ser resolvida na esfera jurídica, na qual
se cria, produz e reproduz desigualdades.
Desta forma, a violência de gênerose dá no cotidiano das pessoas, não
somente no seio familiar ou doméstico. O aspecto social dessa violência é
recorrente e produz e reproduz desigualdades em diversos âmbitos da vida das
pessoas. No Brasil, tem-se que, com a Lei Maria da Penha, todo um aparato
institucional e procedimental foi adotado para tratar a violência doméstica de gênero,
que, muito embora seja aquela na qual se tenha notado uma prevalência, pois, das
violências que mulheres são vítimas, 85,85% se dão no âmbito doméstico e familiar,
337

conforme o levantamento feito pela Secretaria de Políticas Públicas Para as


Mulheres (BRASIL, 2015:12), não é a única forma de violência de gênero.
A violência de gênero (ALMEIDA, 2008:30), instaurada na ordem simbólica, é
eivada com um olhar complacente da sociedade e também do poder público. Esta
violência simbólica tem consequências psicológicas muito danosas a quem sofre.
Consequências, que, assim como a violência perpetrada, se espraiam tanto no
aspecto micro quanto macropolítico, que ocorrem no âmbito doméstico e em
relações familiares e por diversos aspectos do cotidiano dessas pessoas. Neste
sentido, uma violência de gênero recorrente que tem ganhado visibilidade nos
últimos anos, pela tentativa de respostas e responsabilização de seus
perpetradores, é a violência de gênero cometida em contexto universitário.

2.2 Violência de Gênero em Contexto Universitário

A violência de gênero em contexto universitário ganhou visibilidade não só por


sua incidência e debate, mas também pela realização de pesquisas que
conseguiram identificar a ocorrência do problema e tentaram dimensioná-lo. Uma
pesquisa realizada em uma universidade pública paulista (ZOTARELI, 2010:12),
trouxe o dado de que 56,3% das mulheres afirmaram ter sofrido algum tipo de
violência desde seu ingresso na universidade, sendo 9,4% de violência sexual,
enquanto 29,9% dos homens admitiram ter perpetrado algum tipo de violência,
sendo 11,4% em função do gênero e 3,3% sexual. Já segundo a pesquisa
coordenada pelo Instituto Avon e Data Popular (ALMEIDA, 2015), realizada em
universidades de todo o país, 67% das entrevistadas disseram já ter enfrentado
algum tipo de violência no ambiente universitário.
Aliado a isso, vieram à tona no cenário nacional vários casos de violências
cometidas no âmbito de universidades, ocorridos principalmente na maior
universidade pública do país, a Universidade de São Paulo (USP), e também em
outras universidades do Estado de São Paulo, como revela o relatório da Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) “para apurar violações dos Direitos Humanos e
demais ilegalidades ocorridas no âmbito das Universidades do Estado de São Paulo
ocorridas nos chamados “trotes”, festas e no seu cotidiano acadêmico” (SÃO
PAULO, 2015). Ainda, pelas mídias sociais foram postos em pauta diversos casos
de violência sexual da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Universidade
338

do Rio de Janeiro, na Universidade Federal do ABC Paulista, Universidade de


Brasília, Universidade Federal do Espírito Santo e outras universidades, o que indica
a existência do problema a nível nacional.
Conforme apresentado no relatório da CPI (SÃO PAULO, 2015: 170), além das
práticas de tortura e outros abusos encontrados no ambiente universitário, a
violência de gênero nas universidades se dá de diversas formas, desde violências
sexuais perpetradas em festas, até a elaboração de letras de músicas de bateria de
cursos, com teor discriminatório tanto de gênero, quanto de raça, ou seja, baseados
na ideia de superioridade do masculino frente ao feminino e do branco frente ao não
branco. Ainda, percebe-se que tais violências não se restringem aos alunos, pois
ocorrem também entre professores, funcionários e alunos.
Já no cenário internacional, o problema está em voga há mais tempo, inclusive
há várias pesquisas sobre o tema. Nos Estados Unidos, a trajetória da luta de várias
mulheres universitárias pelo reconhecimento e punição de estupros e assédios
sexuais ocorridos nos campus foi contada pelo documentário “The HuntingGround”
(GROUND, 2016), que também trouxe dados de que, ao menos 16% das mulheres
universitárias norte-americanas sofreram algum tipo de violência sexual nas
universidades ou em festas delas. Frente a essas violências de gênero ocorridas em
universidades, a necessidade delas próprias fornecerem uma resposta a elas tem
sido também posta em voga, tanto no Brasil quanto em outros países.

2.3 Iniciativas de tratamento da violência de gênero nas universidades

Colocar essas violações em pauta levou, sobretudo no âmbito da USP, que é


onde a pesquisadora se encontra e tem mais acesso às movimentações, a algumas
iniciativas da comunidade acadêmica e docente para discutir e dar uma resposta a
essas violências. Após o resultado da CPI das Universidades da assembleia
legislativa de São Paulo, foi formada a Rede “Não Cala”, composta por professoras
e pesquisadoras da USP, que buscam na universidade respostas a casos de
violência de gênero. Além disso, foi incorporado à estrutura administrativa da USP o
escritório USP Mulheres, que tem como função realizar ações para promover a
igualdade de gênero no âmbito universitário, devido à participação da campanha
mundial da ONU “HeforShe”, que visa conscientizar os homens das violências e
abusos aos quais mulheres são submetidas.
339

No campus de Ribeirão Preto, foi instituída a comissão para o enfrentamento


da violência de gênero pela Portaria 6 do Conselho Gestor de 11/07/2016.
Especificamente, na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) foi criada a
Comissão de Violência de Gênero da FDRP, composta por professoras, servidoras e
alunas da unidade que, conforme seu artigo 1º, “terá por função propor políticas de
enfrentamento à violência de gênero no âmbito da FDRP, bem como receber,
analisar e investigar os relatos de violência de gênero ocorridos no contexto
acadêmico da unidade”. Em outras universidades do país, também há notícias da
criação de comissões para tratar essas violações, a exemplo da faculdade de Direito
da PUC/SP.
Já nos Estados Unidos, em função da violência de gênero cometida no âmbito
universitário, sobretudo a sexual, houve uma intensa movimentação nacional,
conforme já mencionado pelo retrato do documentário “The HuntingGround”
(GROUND, 2016), culminando, inclusive, na aprovação no Estado da Califórnia de
uma emenda ao Código Educacional do Estado (CALIFORNIA, 2014) que determina
a adoção, em todas as universidades californianas, de um protocolo de
enfrentamento à violência sexual no campus.
Ainda, em relação à Europa e América Latina, foi realizada uma pesquisa sobre
boas práticas dialógicas de prevenção da violência de gênero, na Universidade
Autônoma do México e também em universidades no Reino Unido, que já contam
com uma política de prevenção da violência de gênero na universidade (MORTEO,
2011). Com esta pesquisa, concluiu-se que tal problema existe em várias
universidades do mundo, sendo as universidades do Reino Unido e do México
pioneiras no tratamento da questão, com diversas normas e regulações a respeito.
Ainda, há normativas para o enfrentamento do problema na
Ontario’sUniversity(BROTEN, 2014), Universidad Nacional de La Plata e muitas
outras pelo mundo, revelando a necessidade do trato ao problema.
Essa necessidade, no contexto brasileiro, além de ser uma própria iniciativa
dos grupos que estão pautando isso, se dá também pelo fato de as universidades
públicas pertencerem à estrutura da administração pública indireta, seja em forma
de Autarquias ou de Fundações Públicas. Neste sentido, o relatório da CPI que
investigou os abusos nas universidades paulistas (SÃO PAULO, 2015:170), concluiu
pela responsabilidade das universidades pelas violações de direitos humanos, em
razão da omissão na apuração das denúncias e também da promoção indireta
340

desses atos de violência através de outras instituições dentro do ambiente


universitário, os quais, a despeito de não fazem parte de sua estrutura administrativa
(como diretórios, centros acadêmicos e atléticas), integram seus cotidianos.
Desta maneira, entende-se que a universidade é responsável pelo tratamento
da violência de gênero, posto que, como signatário da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém
do Pará), da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra a Mulher (CEDAW), bem como a participação em órgãos da ONU que fazem
estudos e recomendações no sentido de eliminar a violência de gênero, o Estado
brasileiro comprometeu-se no combate dessa violência de todas as formas e em
todas suas instâncias.
Ainda, pela Lei Maria da Penha,Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, fruto de
uma intensa luta em âmbito nacional e internacional no sentido de se criar um
mecanismo institucional para tratar a violência doméstica de gênero contra a mulher,
também coloca como obrigação do Estado, família e sociedade, em seu artigo 3º, de
garantir a todas as mulheres os direitos humanos a elas inerentes, incluindo aí o
direito a viver a uma vida livre de violência, configurando-se, portanto, mais um
motivo para a universidade tratar efetivamente tal tipo de violação.
Desta forma, é necessário pautar como as universidades públicas, enquanto
entes da administração pública indireta, tratam o problema. Como apontado, as
universidades têm feito protocolos, as brasileiras criado comissões, enquanto as
estrangeiras criaram órgãos próprios para recepcionar as violências de gênero
cometidas em seu âmbito. Trazidas essas iniciativas, busca-se discutir como o poder
disciplinar, pelas razões que serão analisadas, pode ser utilizado para fazer esse
combate, uma vez que as universidades, como integrantes da administração pública,
detém essa possibilidade que, como será visto, possibilita a combinação deste poder
com as iniciativas já existentes.

3 Poder Disciplinar e Violência de Gênero

Como entes da administração pública, universidades públicas contam com


funcionários, que, para o desempenho da função a qual estão incumbidos, possuem
diversos poderes inerentes ao desempenho de suas funções, que, no caso das
universidades, por mandamento constitucional contido no artigo 207, tem a função
341

pública de Ensino, Pesquisa e Extensão. Ainda, o mesmo mandamento


constitucional assevera que as universidades gozam de autonomia administrativa,
didático-científica, de gestão financeira e patrimonial. Tal autonomia administrativa
permite que ela exerça, autonomamente, os poderes funcionais inerentes aos entes
da administração pública e aplique o seu próprio em sua estrutura, para que exerça
sua função de modo a atender sempre ao interesse público.
Os poderes funcionais (ARAÚJO, 2014: 457-458) são inerentes ao exercício da
atividade de administrar e devem preservar o interesse público. Neste sentido, há o
poder normativo, disciplinar, hierárquico e de polícia. No presente estudo, analisa-se
o poder disciplinar por, dentre outros motivos que serão expostos, ser o poder
necessário (DI PIETRO, 2013: 95) para apurar infrações e aplicar penalidades aos
funcionários públicos e demais pessoas sujeitas à disciplina administrativa. Na
explicitação dos casos de violência de gênero cometidas na universidade, tem-se
que seus perpetradores são estudantes, professores ou funcionários, portanto, todos
eles sujeitos ao poder disciplinar das universidades públicas às quais estão
vinculados. Ainda, entende-se que tal poder (ARAÚJO, 2014: 461), pode se
estender a relações contratuais travadas pela Administração Pública com os
particulares. Desta forma, o poder disciplinar é abrangente no sentido de englobar
pessoas que estejam, de alguma forma, vinculadas à administração pública.
Assim, em relação à violência de gênero cometida no âmbito universitário é
possível vislumbrar a punição de alunos, professores e funcionários autores de
violência. Porém, é necessário distinguir a sanção disciplinar, poder funcional
inerente à função pública, a sanções administrativas comuns. A finalidade (ARAÚJO,
2014: 461) da sanção administrativa comum é desestimular a prática de condutas
censuradas ou constranger ao cumprimento das obrigatórias, intimidando eventuais
infratores para que não pratiquem os comportamentos proibidos ou que eles atuem
na conformidade de regra que lhes demande um comportamento positivo. Ainda, o
ato administrativo disciplinar (COSTA, 2008:29) se difere do ato administrativo
punitivo externo por este se endereçar a todos os administrados e decorrer do poder
de polícia da administração pública.
O poder disciplinar, quando aplicado a funcionários públicos, trata-se de
punição derivada de outro poder inerente à administração pública: o poder
hierárquico (ARAÚJO, 2008: 459), ou seja, o poder decorrente da hierarquia, relação
de coordenação e subordinação entre órgãos e agentes da Administração,
342

necessária ao equilíbrio e à ordem da realização de tarefas administrativas de forma


contínua, racional e ordenada. Porém, no aspecto aqui abordado, há que se
destacar a função do poder disciplinar, o que justifica seu estudo para tratar da
questão da violência de gênero cometida no âmbito das universidades, pois se trata
da proteção à regularidade de prestação do serviço público.
Assim, para que o poder disciplinar seja exteriorizado, há o ato disciplinar
(COSTA, 2008:22), que, como um ato administrativo (COSTA, 2008:34), deverá
preencher todos os requisitos inerentes a esses atos. Portanto, deve ser lavrado por
autoridade hierárquica competente, obedecendo aos requisitos como objeto, forma,
finalidade e motivo previstos em lei. Em relação à finalidade, é ela justamente velar
pela regularidade e aperfeiçoamento do serviço público em contento. Desta forma,
sua finalidade é vinculada, o que, consequentemente, faz com que seja inválido um
ato punitivo editado sem a finalidade de preservar a disciplina e regularidade do
serviço público.
Em relação à vinculação da finalidade de preservação do serviço público é
necessário fazer uma reflexão. Para o exercício do poder disciplinar (MATTOS,
2013: 1130) deve haver justa causa para que se instaure um processo administrativo
disciplinar para apurar a falta de algum funcionário público ou pessoa vinculada à
Administração, sob pena de indevida invasão da privacidade da pessoa sujeita ao
processo administrativo disciplinar. Aliando tal entendimento ao já exposto, conclui-
se que a justa causa para a instauração do processo administrativo disciplinar é a
verificação de que alguém comprometeu a disciplina e a regularidade do serviço
público prestado.
Portanto, ao se utilizar do poder disciplinar para punir uma violência de gênero
cometida em contexto universitário, se deve ter o cuidado para não desviar o foco da
utilização deste poder de manter disciplina e regularidade do serviço público. Ao se
tratar de um procedimento disciplinar, deve estar evidente que a conduta ensejadora
de violência efetivamente atrapalhou a prestação do serviço público em contento.
Enquanto a finalidade de um ato administrativo disciplinar é vinculada, seu
objeto, que é a punição, é discricionário, sobretudo em relação ao aspecto
quantitativo, onde a escolha é deixada para a oportunidade e conveniência da
administração. Essa discricionariedade (PEREIRA, 2007: 42) reside na escolha da
sanção aplicável diante da infração. Desta forma, o poder disciplinar em si não pode
ser considerado discricionário, mas apenas alguns aspectos de seu exercício. Na
343

realidade, trata-se de um poder vinculado. Diz-se isso (MATTOS, 2013: 1130)pois,


sempre que houver a notícia da prática de um ilícito, deverá o administrador
instaurar o processo administrativo disciplinar. Assim, embora haja
discricionariedade (ARAÚJO, 2008:462) para se aplicar a infração, o agente público
não tem liberdade de escolha de instaurar ou não o procedimento administrativo
disciplinar caso o servidor ou o particular submetido ao regime administrativo
cometam falta disciplinar.
Ainda, outro aspecto discricionário do poder disciplinar (COSTA, 2008: 127-
128) diz respeito à correspondência, à dosimetria entre a transgressão e a sanção
disciplinar. A transgressão disciplinar é a conduta do agente público que põe em
risco a credibilidade da administração e acarreta prejuízo ao serviço público,
podendo ser interna e externa, sendo que as internas infringem deveres
profissionais, enquanto as externas referem-se a comportamentos da vida particular
do funcionário, cometidas fora do exercício da função e que possam, de alguma
forma, atrapalhar seu exercício. O comportamento atribuído ao agente público
(COSTA, 2008: 134), quando no desempenho da função, deve ser contrário aos
seus deveres ou, em sendo particular, deve macular a honra e reputação do agente
público, repercutindo de modo desfavorável ao prestígio do ente público. Neste
sentido, é possível se vislumbrar que uma violência de gênero, seja ela cometida no
desempenho da função ou fora dela, mas que atinja alguém deste contexto, pode
motivar a instauração de procedimento disciplinar.
Ainda, a discricionariedade (DI PIETRO, 2013:96) também se encontra no fato
de ser facultada à administração o poder de levar em consideração, na escolha da
pena administrativa aplicável, a gravidade e a natureza da infração e os danos que
dela provierem. Discricionariedade há também em relação a certas infrações que
não são definidas no código de conduta ou no código de ética dos entes da
administração pública, deixando a ela uma margem para enquadrar os casos a
umas ou outras infrações.
Outro corolário da discricionariedade prevista no poder disciplinar (COSTA,
2008: 131-133) é que a base hipotética do ilícito disciplinar, portanto, da conduta que
ensejou a punição que atrapalhou a finalidade pública em questão, nem sempre está
tipicamente prevista, dando à autoridade hierarquicamente superior ou responsável
pelo procedimento, o poder de verificar se a conduta é apta a ensejar a punição. No
entanto, é de se salientar que a discricionariedade em relação à possibilidade de
344

não previsão taxativa do que pode ser punido pelo poder disciplinar não pode levar à
sua arbitrariedade, que, conforme já exposto é limitada justamente pela verificação
do prejuízo à regularidade do serviço público prestado.
Assim, conforme se tem visto nos regimentos internos e gerais e nos códigos
de ética das universidades, não há a taxatividade do que se entende por violência de
gênero e como seu cometimento infringe dever funcional ou o funcionamento do
serviço público. Porém, algumas comissões de violência de gênero estão realizando
esforços no sentido de tipificar o que é violência de gênero, quando tem este poder,
ou de orientar condutas que configurem essa violência e atrapalhem o
funcionamento do serviço da universidade. Mas, caso não haja qualquer orientação
neste sentido, frente a não taxatividade das condutas que ensejam o procedimento
disciplinar, membros da comissão processante ou das pessoas que levaram a
situação de violência para a comissão, devem fazer o esforço de estabelecer como a
violência de gênero cometida atrapalhou o desempenho das atividades da
universidade.
Já as sanções disciplinares (COSTA, 2008: 137), que geralmente são de
advertência, repreensão, suspensão, multa, destituição de função, cassação de
disponibilidade, aposentadoria e demissão, devem estar expressamente previstas no
regime disciplinar da universidade, não podendo ser arbitrariamente concebidas.
Neste sentido, ele entende que as sanções, além da finalidade de resguardar o
serviço público, querem também educar ou reeducar o punido, além de exercer uma
função exemplar. Assim, a possibilidade de se utilizar do poder disciplinar para a
punição de uma violência de gênero cometida no âmbito universitário se mostra útil
pois essa função de reeducação e exemplaridade da sanção, e não de causar uma
aflição ao sancionado, se mostra útil para que se evite as práticas da violência de
gênero no âmbito da universidade. O fato de se tratar de uma violência reproduzida
no âmbito relacional faz com que seja necessário trata-la assim, no cotidiano e com
exemplos nesse cotidiano.
Neste sentido, é de se observar que só pode ser aplicada a sanção disciplinar
para a transgressão funcional se houver o processo administrativo ou sindicância
para apurar a falta do funcionário e aplicar a sanção. Esse processo ou sindicância,
para que sejam válidos, segundo mandamento constitucional, deve ser orientado
pela ampla defesa, que garante sempre oportunizar ao processado sua defesa e
manifestação perante o processo. Desta forma, qualquer que seja o motivo
345

ensejador do procedimento disciplinar, inclusive a violência de gênero, para que ele


desenvolva sua regularidade, isso deve ser respeitado.
Ainda, além das regras pertinentes ao processo administrativo (CAMBI, 2013:
854), que não serão exploradas no presente trabalho por não ser seu escopo
analisá-lo, ele é regido pelos princípios da legalidade objetiva, publicidade,
oficialidade, obediência à forma, pluralidade de instâncias economia processual e
verdade material. Em relação a todos esses princípios, é necessário apontar que,
caso se trate de processo que diga respeito à violência de gênero, muitas vezes não
será possível essa publicidade, por se tratar de assuntos que dizem respeito à
intimidade da pessoa que sofreu tal violência.
Desta maneira, é possível que se utilize do poder disciplinar inerente aos entes
da administração pública para o tratamento da violência de gênero em contexto
universitário, observando a finalidade à qual tal poder se presta, que é, como
ressaltado, a regularidade e aperfeiçoamento do serviço público. Certamente, uma
violência cometida neste ambiente, decorrente dele ou que tenha nele repercussões,
é passível de ser punida pelo poder disciplinar, observando todos seus aspectos
expostos.

3 À guisa de conclusão: Possibilidades de utilização do poder disciplinar


para a punição de violência de gênero em âmbito universitário

Conforme visto, as universidades públicas prestam o serviço relativo às suas


funções públicas de ensino, pesquisa e extensão. Desta forma, ocorrendo qualquer
desvio de conduta de seus funcionários públicos ou pessoas vinculadas à
universidade que ensejem a deficiência na prestação do serviço, há a possibilidade
do exercício desse poder disciplinar. Assim a violência de gênero se mostrou como
uma conduta que atrapalha o serviço público prestado pelo ente, portanto, possível
de se utilizar para esse fim. Este prejuízo à prestação do serviço público, conf. supra
no item 2.2., consiste no fato de que as pessoas acometidas por essa violência
apresentam diversos problemas psicológicos, o que pode prejudicar suas atividades
na universidade, sejam essas pessoas alunas ou funcionárias, atrapalhando-a na
prestação ou utilização do serviço público.
Outro aspecto útil para o objeto de pesquisa em questão é o fato de que o
346

poder disciplinar também pode ser utilizado no aperfeiçoamento do serviço público


prestado. É evidente que a utilização desse poder para tratar violências cometidas
neste ambiente se mostra como um aperfeiçoamento na prestação de seu serviço,
aliado ao fato de que, como entes da administração pública, essas universidades se
mostram responsáveis pela resposta à violência de gênero cometida em seus
contextos.
Outra utilidade do uso do poder disciplinar para a punição da violência de
gênero no âmbito universitário é a discricionariedade que o agente público detém na
aplicação da sanção possível ao agente transgressor. Por se tratar de uma violência
relacional, ocorrida com suas particularidades, essa possibilidade permite que a
punição seja dosada de acordo com a gravidade e lesividade da conduta não só ao
serviço público, e, no caso da violência de gênero, entende-se que é possível
considerar como lesiva ao serviço público o prejuízo à pessoa envolvida na situação
de violência.
Um aspecto do poder disciplinar que se mostra útil para a punição da violência
de gênero é o fato de ele ser um poder vinculado, ou seja, ocorrendo a conduta
ensejadora de prejuízo à prestação do serviço público, deve haver,
necessariamente, a instauração de um processo ou sindicância administrativa.
Assim, a certeza de que sempre que isso for demonstrado conduzir ao procedimento
que possa ensejar a punição, desvincula da figura da pessoa que sofreu a violência
o tratamento à situação, deixando ao poder público essa tarefa.
Em relação aos funcionários públicos, é possível a aplicação de sanções
disciplinares por transgressões ocorridas fora do ambiente acadêmico e fora do
exercício de suas funções, mas que, de alguma forma, coloquem em perigo o
desempenho da função pública. Desta forma, a ocorrência da violência de gênero
fora desses ambientes, mas que envolvam pessoas que nele convivam ou a ele
estejam vinculadas, tem repercussões na prestação deste serviço, pois as pessoas,
em razão dele, continuam vinculadas, além do fato de que as consequências à uma
pessoa que sofreu tal violência se repercute em várias esferas de sua vida.
Em relação às punições possíveis com a utilização do poder disciplinar, tem-se
que elas devem estar previstas no regime disciplinar às quais os transgressores
fazem parte, havendo, porém, a discricionariedade do agente público na dosimetria
e em sua aplicação. Geralmente as universidades detém um regime disciplinar
próprio, que devem ser seguidos e podem, respeitando a legislação geral sobre o
347

tema, ser alterados, de acordo com os procedimentos administrativos previstos.


Neste sentido, as comissões que estão sendo criadas nas universidades, bem como
a pressão que diversos coletivos estão fazendo nas administrações públicas em
função dessas violações, possibilitam que, respeitados os procedimentos
administrativos, tais regimes sejam alterados no sentido de dar uma resposta mais
efetiva às violências de gênero.
Com a análise aqui desenvolvida, conclui-se pela utilização dos mecanismos
que estão surgindo nas universidades, tais como comissões e coletivos, em conjunto
com o já existente poder disciplinar, que, conforme feita a análise no item 3, se
mostra apto a tratar a questão. Porém, para que ele seja regularmente exercido e
consiga dar uma resposta a essas violências, é necessário que a finalidade de
regular prestação do serviço público e seu aperfeiçoamento esteja sempre em foco.

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349

PATOLOGIA OU IDENTIDADE: ANÁLISE SOBRE A COMPREENSÃO DO


DIREITO ACERCA DA TRANSEXUALIDADE

Giann Lucca Interdonato172

Resumo: O novo cenário social, vem desconstruindo as imposições normativas


relacionados à sexualidade humana, demonstrando novas maneiras dos indivíduos
vivenciarem as combinações entre identidade e desejos. A transexualidade é a
necessidade de o indivíduo ser aceito e reconhecido como um membro do sexo
oposto. Este trabalho buscou analisar os posicionamentos predominantes na área
jurídica sobre a transexualidade. Através de pesquisa bibliográfica, buscou-se
compreender a transexualidade. E posteriormente, analisar a perspectiva jurídica
sobre o assunto, bem como a fundamentação destes. O crescimento da quantidade
de transexuais em ações judiciais pleiteando a alteração de nome e da procura de
acompanhamento médico pelo sistema público de saúde, indica uma possível
reflexão do tema na área social e jurídica, ampliando o acesso efetivo a direitos
humanos e o reconhecimento da diversidade sexual.
Palavras-chave: Direitos Humanos, Gênero, Transexualidade.

Abstract: The new social scene has been deconstructing normative impositions
related to humansexuality, demonstrating new ways for individuals to experience
combinations of identity and desires. Transsexuality is the need for the individual to
be accepted and recognized as a member of the opposite sex. This work sought to
analyze the predominant positions in the legal are a on transsexuality. Through
bibliographical research, we sought to understand transsexuality. And later, analyze
the legal perspective on the subject, as well as the rationale of these. The increase in
the number of transsexuals in law suits seeking the change of name and the demand
for medical follow-up by the public health system indicates a possible reflection on
the subject in the social and legal area, increasing effective access to human rights
and there cognition of diversity sexual.
Keywords: Human Rights, Gender, Transsexualism.

172
Discente, Acadêmico do quinto ano do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do
Paraná (PUCPR) – Campus Londrina. E-mail para contato: emaildogiann@gmail.com
350

Introdução

A linguagem é uma das ferramentas essenciais da coletividade, pois é através


dela que a comunicação, os significados e símbolos são atribuídos e,
consequentemente, estabelecem normas e estabelecem padrões às identidades e
vivências dos indivíduos pertencentes ao grupo social.
Logo, o sistema normativo é reflexo dos símbolos e significados construídos ao
longo história. No que tange às identidades e à sexualidade humana, apesar das
diversas variações das práticas sexuais existentes em cada período histórico, ao
longo da história, criaram-se tabus e atribuiu-se moralidade e sacralidade às
relações sexuais, que acabaram por controlá-las e aprisioná-las.
Assim, atualmente, é perceptível a existência de papéis e comportamentos
hegemônicos baseados numa normatividade dicotômica que tem por referencial a
dualidade do sexo biológico, definidos como macho e fêmea, da identidade sexual,
homem e mulher, e da normatividade do desejo heterossexual.
As instituições sociais, como o Estado, as famílias, as escolas e as igrejas,
asseguram a reprodução e manutenção deste dualismo de identidades, atribuindo
aos indivíduos, papéis e comportamentos a serem desempenhados desde seu
nascimento de acordo com seu sexo biológico, reproduzindo através de seu
instrumento social e heteronormativo, a produção constante de corpos-homens e
corpos-mulheres (BUTLER, 2003).
De acordo com este discurso normativo, a configuração biológica possibilita a
denominação de gênero como masculino ou feminino, em outras palavras, o sexo
biológico determina nossa identidade no meio social e, através disso, estabelece
que os indivíduos devem, necessariamente, se identificar com seu sexo anatômico.
A biologia da diferença sexual é contida em outros programas (LAQUEUR, 2001),
sendo assim, não se considera exclusivamente a morfologia genital para definir o
sexo, e sim diversos fatores sociais, culturais e legais criando as identidades de
gênero (ROHDEN, 2001).
Segundo Sanches (2011), atualmente, a identidade sexual acaba por ser mais
influenciada pelo gênero, ou seja, pautada em sua função e aspectos sociais, no
fenótipo comportamental em si (cultural), do que meramente pelo aspecto anatômico
e morfológico dos órgãos genitais (sexo). O gênero é constitutivo das relações
sociais baseadas nas diferenças entre os sexos que, de modo primário, dá
351

significado às relações de poder (SCOTT, 1995).


A singela declaração médica quanto ao sexo do nascituro na gestação,
durante o exame de ultrassom, já determina o papel social que este irá
desempenhar no convívio social. A manutenção desta ordem é perceptível em
diversos níveis. A atribuição da cor azul e da virilidade para o masculino, e rosa e
sensibilidade para o feminino, é um exemplo que evidencia essa reafirmação
identitária constante.
Deve-se ressaltar, que os discursos reiterados pelas referidas instituições,
acabam por tornarem-se reguladores, não apenas das identidades, mas também das
relações afetiva-sexuais dos indivíduos. Em outras palavras, reitera-se a
heterossexualidade compulsória, que consiste em normatizar, exclusivamente, as
relações heterossexuais, valorando a ótica utilitarista acerca da reprodução humana
e naturalização de condutas.
Não obstante essas imposições referentes às identidades e comportamentos
sexuais, a partir da metade do século XX, as questões relacionadas à sexualidade
humana começaram a ser discutidas, estudadas nos espaços acadêmicos, e
consequentemente desmistificadas, refletindo diretamente no âmbito social, cultural,
e consequentemente, jurídico.
As práticas e identidades que caracterizam a transgressão dessa norma
cultural e social demonstram que as formas das pessoas vivenciarem sua
sexualidade são diversas e com diferentes combinações entre anatomia (sexo
biológico), identidades e desejos, rompendo a norma estabelecida.
Uma destas outras formas de vivências e transgressões é a transexualidade,
que conforme afirma Zambrano (2003), se caracteriza pela necessidade de viver, ser
aceito e reconhecido como um membro do sexo oposto, sentindo-se um homem em
corpo de mulher ou uma mulher em corpo de homem, ou seja, há incompatibilidade
entre a autoidentificação psicológica com o sexo morfológico com o qual nasceu.
Porém, conforme mencionado, as discussões referentes à transexualidade
possui seus primeiros registros na era moderna, caracterizando-se como algo ainda
recente no campo jurídico, e, diante dessa “novidade”, de qual maneira o
ordenamento jurídico abrangeu a transexualidade e suas demandas?
Nesse contexto, o questionamento jurídico acerca da transexualidade foi o
motivo principal para a realização deste trabalho, que tem como objetivo apresentar
uma análise e identificar a compreensão que a temática vem recebendo no cenário
352

jurídico.O objetivo do trabalho se reproduz acerca da compreensão da


transexualidade, e daótica jurídica sobre o tema, considerando os aspectos da
identidade sexual, dos direitos de personalidade, exercício da autonomia privada, e
inclusive, seus desdobramentos.

1 O “Fenômeno” Trans

A priori deve-semencionar determinadas especificidades relacionadas à


identidade trans, sendo importante destacar que a “transgressão” desta identidade
não reside na orientação sexual (atração) ou expressão de gênero, mas na
identidade de gênero, ou seja, na maneira com que essa pessoa se identifica e
possui a necessidade de viver e ser aceita e reconhecida como alguém do sexo
oposto, não se identificando psicologicamente com o sexo morfológico com o qual
nasceu, sentindo-se um homem em corpo de mulher ou uma mulher em corpo de
homem. (ZAMBRANO, 2003)
Com base nos avanços sobre os estudos de gênero, é possível inferir que a
identidade de gênero está relacionada ao modo como cada pessoa se identifica com
o seu sexo de nascimento. Segundo Elizabeth Zambrano (2006), identidade de
gênero:
[...] é a forma de um indivíduo se perceber e ser percebido pelos outros
como masculino ou feminino, de acordo com os significados desses termos
construídos pela cultura à qual pertence. É tudo o que a própria pessoa
espera de si, em função de classificar-se, naquela sociedade, como homem
ou mulher: o lugar simbólico a ser ocupado nas relações com os outros, os
tipos de roupas que deve vestir, os comportamentos prescritos e os
interditados, além dos sentimentos que se presume deva experimentar.

Posto isso, é perceptível que a orientação afetivo-sexual dos indivíduos


transexuais não é, necessariamente, heterossexual, pois sua identidade de gênero
não altera sua orientação sexual, ou seja, o indivíduo transexual pode ser
homossexual, bissexual ou heterossexual, caso sua atração seja direcionada ao
mesmo gênero, a ambos os gêneros ou ao gênero oposto, respectivamente.
Apesar da inexistência de estudos recentes que ofereçam dados quantitativos
sobre a transexualidade em âmbito nacional, há dados estimados em países
europeus e na América do Norte acerca da ocorrência da transexualidade. Segundo
a Associação Americana de Psiquiatria, há na América do Norte, estimativamente,
um transexual feminino em cada 30.000 homens e um transexual masculino a cada
353

100.000 mulheres (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2002). Enquanto há


a estimativa de que, na Holanda, há um transexual feminino em cada 12.000
homens e um transexual masculino a cada 34.000 mulheres (VAN KESTEREN,
1996).
Independentemente de questões quantitativas, o importante é definir que a
transexualidade surge no rompimento da norma – cisgênero. As pessoas
cisgêneras, ao contrário das pessoas trans, possuem identidade de gênero
correspondente ao sexo biológico, ou seja, se identificam com seu sexo morfológico
e com sua identidade de gênero correspondente a ele.
Posto isto, inexiste problema nesta identidade que é prevalente,
quantitativamente. A dificuldade surge quando as identidades transgêneras não são
reconhecidas em razão desta normatividade. Assim como ocorre com a
heteronormatividade, o aparato compulsório criado histórica e socialmente reforça a
naturalização de uma identidade em detrimento da outra, marginalizando as demais,
como a transexualidade e a homossexualidade.
Para Bento (2006), o fenômeno da transexualidade pode ser explicado sobre
duas correntes etiológicas. A primeira, a Teoria Psicossexual, defendida por Robert
Stoller, procura justificativas na Psicologia e acredita que a transexualidade envolve
fatores relativos ao ambiente social e à criação cultural dos papéis masculino e
feminino. A segunda corrente, denominada Teoria Neuroendócrina considera fatores
endócrinos, como o excesso de estrogênio no organismo da gestante e a
permanência do centro hipotalâmico no indivíduo como o fator que determina a
transexualidade.
Mesmo com todas as nomenclaturas e classificações, Mirian Ventura (2010)
destaca que:
[...] a concepção predominante e a de que o status de homem ou mulher,
masculino ou feminino (ou intersexuado), se define a partir de, ou por meio
de, uma base anatômica, representada preponderantemente pela genitália
externa e por outros caracteres secundários. A idéia de que um corpo deve
exibir um “sexo correto” – feminino ou masculino (...) repercute nas
recomendações diagnósticas e terapêuticas para os casos de
transexualismo.

Não obstante os avanços na abordagem da transexualidade, esse fenômeno


permanece sendo considerado pela ciência médica uma patologia. Esse diagnóstico
médico influencia o tratamento jurídico dado aos casos judicializados, como se
desenvolverá adiante. A Organização Mundial de Saúde, responsável pela
354

publicação do Manual de Classificação Internacional de Doenças (CID-10), em


suaclassificação F.64, inclui o “transexualismo”como transtorno classificado como
disforia de gênero173.
Segundo essa perspectiva, o reconhecimento da transexualidade exige
critérios que são definidos na Resolução CFM n. 1.652/2002 do Conselho Federal
de Medicina, considerando a não aceitação do sexo anatômico natural e o desejo
expresso de eliminar ou alterar os genitais, além do desejo em adquirir ou ganhar as
características anatômicas do sexo oposto.
Pelo paradigma biomédico, portanto, o “transexualismo” é uma síndrome
complexa, caracterizada pelo sentimento intenso de não pertencimento ao sexo
anatômico, mas que não pode ser confundida com outras perturbações mentais
delirantes ou com outros distúrbios de ordem orgânica, como “hermafroditismo” ou
anomalias endócrinas (CASTEL, 2001).
Para Terto (1999), há um viés positivo na “patologização” que possibilita uma
defesa contra as acusações morais acerca da transexualidade, considerando que o
fundamento biológico afastaria os discursos de repressão, punição, desvio e,
inclusive, os de exigibilidade de conduta diversa.
Neste cenário, há o surgimento de uma corrente que questiona a ótica médica
e reconhece a transexualidade como uma identidade, pois, com base em estudos
antropológicos e sociais recentes, é perceptível que a complexidade da
transexualidade não deve ser compreendida, exclusivamente, sob o viés médico. E
assim, analisá-la sob a ótica das questões de gênero, aproximando-se dos princípios
humanísticos relacionados à igualdade e à diversidade, além do exercício da
autonomia privada, como veremos adiante.

2 A Transexualidade e o Direito

Ante o exposto, é notável que a transexualidade envolve questões complexas


que demandam multidisciplinariedade e que, consequentemente, influencia a
abordagem da temática na esfera jurídica, principalmente quando afeta direitos da
personalidade e a regulação jurídica da identidade de registro (nome e sexo

173
OMS. Centro Brasileiro de Classificação. Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde–CID10.
355

jurídico).
Atualmente, o Estado brasileiro utiliza-se de outros saberes científicos, devido
ao alto grau de complexidade e aspectos envolvidos, reconhecendo a perspectiva
médica e a Classificação Internacional de Doenças (CID) – 10 – F.64.9, que
caracteriza a transexualidade como uma doença, possibilitando a realização da
cirurgia de mudança de sexo através do SUS (Sistema Único de Saúde), atribuindo
caráter terapêutico à “patologia” e podendo ser realizada após um longo processo de
avaliação, por uma equipe de médicos e psicólogos especializados, para
diagnosticá-la. Indubitavelmente, os reflexos jurídicos geram discussões acerca dos
direitos da personalidade e do posicionamento jurídico sobre a determinação da
identidade sexual, corroborando com o posicionamento que vem tomando amplitude
no cenário jurídico e destitui o viés patológico da transexualidade.
Sobre isso, torna-se necessário elucidara maneira em que o ordenamento
jurídico reconhece a identidade sexual (sexo jurídico ou sexo legal) dos indivíduos.
Ventura (2010) esclarece que compreende como sexo jurídico ou legal aquele que
“deve obrigatoriamente constar no assento de nascimento de uma pessoa”, sendo
imutável e estabelecido de acordo com a anatomia do órgão genital, constituindo um
critério diferenciador de aquisição de direitos e obrigações legais.
Essa abordagem de sexo legal coincide com a estabelecida pela ciência
médica, que considera a transexualidade uma “transgressão”, um “desvio” ou uma
patologia.Assim, com a prevalência das práticas médicas e jurídicas, ter um sexo ou
uma identidade sexual implica estar conformado à norma que define o dever de
coincidência entre anatomia, gênero e prazeres ou práticas de desejo.
Diante da relação de poder exercida pelos saberes médicos e jurídicos, o
direito se apropria desses conhecimentos médicos para reconhecer a identidade
sexual como um direito da personalidade. Não obstante esse reconhecimento
jurídico da identidade sexual como um direito, Ventura explica que a
transexualidade, na realidade, constitui uma “experiência de conflito com as normas
de gênero” (VENTURA, 2010), pois o transexual deve, necessariamente, se
conformar anatomicamente com seu sexo psicológico para ter acesso a esses
direitos
Assim, a compreensão da transexualidade como patologia atribui aos
indivíduos transexuais a necessidade de possuir diagnóstico para que possam ser
reconhecidos de acordo com sua identidade de gênero, e consequentemente,
356

realizarem a cirurgia de redesignação sexual e alterarem os prenomes constantes


nos documentos. Tal posicionamento, acaba por conferir maior morosidade ao
exercício destes direitos, além de dificultar seu acesso que já restrito devido à
marginalização que ocorre com este grupo.
Diante das crescentes críticasà esta ótica de regulação da sexualidade por
meio da biopolítica e do biopoder, insurge-se uma discussão mais atual que
considera a identidade sexual inserida no âmbito da intimidade e da liberdade,
determinando a transexualidade como expressão pessoal baseada no princípio da
autonomia da vontade, do direito à vida privada e do pluralismo como um valor
fundamental.
Nessa perspectiva, a transexualidade baseia-se no reconhecimento da
identidade de gênero e na plena realização da dignidade da pessoa humana,
pautada na proibição constitucional da discriminação e do preconceito (SILVA
JUNIOR, 2011).
Este entendimento utiliza-se dos direitos de personalidade, que assim como o
sexo legal, possuem como características a imutabilidade e a indisponibilidade.
Estes direitos são compostos pelo exercício da honra, imagem, corpo, nome,
intimidade, e qualquer demais aspectos que constitua a identidade civil do indivíduo,
incluindo, conforme exposto, sua identidade sexual.
Neste sentido, Bavio (2011) afirma que:

O direito à identidade é a garantia de reconhecimento da existência da


pessoa no seio social, bem como parte de seus caracteres particulares,
como físicos, pessoais e culturais; é o direito de ser como verdadeiramente
é

Deve-se ressaltar que o posicionamento que considera a transexualidade como


elemento identitário não se limita, exclusivamente, ao fundamento de proteção aos
direitos de personalidade, mas também ao de livre exercício da autonomia privada.
A autonomia privada que paira sobre a temática transexual possui
complexidade tornando-se possível dividi-la sob dois aspectos. O primeiro, pauta-se
na legitimidade de determinar o sexo, alterando o estado da pessoa, considerado
imutável e indisponível, como o prenome e o sexo. O segundo refere-se à
legitimidade da pessoa transexual realizar as alterações e transformações corporais
que acreditar serem necessárias para adequar seu corpo à sua identidade.
357

Desta maneira, verifica-se que a análise da questão da autonomia privada, sob


a ótica da problemática dos direitos da comunidade transexual brasileira, possui
suma importância no âmbito jurídico, pois a discussão acerca da possibilidade da
“mudança de sexo” já traz a discussão sobre a disposição do próprio corpo, da
vivência da sexualidade e a relevância do sexo na identificação do sujeito de
direitos, principalmente dos direitos de personalidade.
Assim, torna-se possível identificar que o cerne da discussão é a compreensão
da possibilidade de uso de técnicas de transformações corporais como um exemplo
da autonomia ou da livre vontade da pessoa transexual de viver e ser identificado
como pessoa do sexo oposto ao seu sexo anatômico e biológico, no âmbito dos
sistemas de valores morais e jurídicos.
Ainda que de forma restrita, atualmente as demandas transexuais vêm sendo
viabilizadas, constituindo um tipo de autonomia regulada pelas alternativas de
acesso aos recursos biotecnocientíficos e legais que impõem a capacidade
necessária à pessoa transexual para o exercício de sua autonomia individual, além
da indispensabilidade da autorização mediada pelo saber médico ou pelo
reconhecimento jurídico. Sendo assim, o conceito central da discussão da
transexualidade é, sem dúvida, o da autonomia da vontade que, no Direito, funda a
ideia de liberdade e está sempre restrito ao contrato social que deve garantir a
liberdade de todos.
A perspectiva da autonomia privada aplicada na vivência transexual garante o
reconhecimento do direito de realização da cirurgia pelo indivíduo transexual como
direito de disposição do próprio corpo, superando a atual ótica médica de “cura” e
promovendo os direitos da personalidade, tais como o direito à identidade, à
integridade psíquica e à integridade física (BENTO, 2006).
Sob uma perspectiva comparativa dos posicionamentos observa-se que a ótica
patológica da transexualidade possui grande similaridade com a da
homossexualidade, superada há algumas décadas. É perceptível que o fim da
utilização do sufixo “ismo”, comumente atribuído à doença, juntamente com a
naturalização do comportamento homossexual, foi uma grande conquista dos
indivíduos LGBT, pois o estigma de doença foi ressignificado sob a ótica do respeito
à dignidade e intimidade dos indivíduos heterodivergentes.
Desta forma, a discussão existente acerca da perspectiva patológica versus
identitária vem ganhando força no direito. Portanto, pressupõe-se que o
358

posicionamento jurídico que reconhece a transexualidade como elemento da


personalidade proporciona desdobramentos sociais em favor da diversidade, da
pluralidade e dos direitos humanos, corroborando com a visibilidade das identidades
marginalizadas e de grupos minoritários, além de suas demandas.

Conclusão

Diante do conflito de visões acerca do “fenômeno transexual”, verifica-se que,


apesar das garantias encontradas nos princípios constitucionais e nas regras que
compõem os direitos de personalidade, é perceptível que a eficácia destas garantias
se torna dificultosa e problemática. O reconhecimento do direito à alteração da
identidade civil ou legal do transexual está atrelada à alteração do corpo através da
cirurgia de redesignação sexual ou de transgenitalização, considerada como um
método terapêutico ou “tratamento” dessa patologia que é a transexualidade.
Contudo, o processo de adequação e consolidação da identidade não se
conclui após a realização da cirurgia de redesignação sexual e se estende através
da justiça no que tange à alteração no registro civil. Do mesmo modo, o exercício
pleno do direito à identidade sexual não pode estar exclusivamente atrelada à
cirurgia de transgenitalização.
Frente a isso, a população transexual luta pelo reconhecimento de sua
identidade de gênero desvinculada do viés patológico, demanda semelhante do
segmento homossexual nas décadas de 70 e 80. A Organização Mundial da Saúde
(OMS), afirmou que irá retirar a transexualidade do rol de transtornos mentais 174.
Nesse contexto, o Direito, como ciência e ferramenta social, vem tentando se
adaptar e garantir a dignidade desse grupo social,compreendendo com maior
convicção a situação do transexual e lhe assegurando o direito que deveria lhe ser
garantido. O fato do Estado brasileiro reconhecer a transexualidade como uma
doença, utilizando-se de saberes médicos, constitui uma interpretação que
possibilita a abertura para atos de discriminação e preconceito.
Assim, percebe-se que a transexualidade passou a ser mais notória e melhor
compreendida pelos operadores do direito. É notório que o reconhecimento de

174
Notícia disponível no endereço: http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2013/12/1378921-
transexualismo-deve-sair-da-lista-de-doencas-mentais.shtml. Acessada em Junho de 2016.
359

direitos essenciaisvem delineando um cenário favorável para os transexuais,


ampliando-se o acesso efetivo a estes direitos com base no reconhecimento jurídico
da diversidade sexual como concretizadora dos direitos humanos.

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361

RAÇA, RACISMO E A NEGAÇAO DE DIREITOS ÀS MULHERES NEGRAS E


PERIFÉRICAS

Guilherme Ferreira Duarte Barbosa175


Joyce Bueno Silva176

Resumo: O artigo pretende analisar as categorias coloniedade e efabulação


presentes no pensamento do sociólogo camaronês AquileMbembe e ingerências
dessas categorias na construção social, política e afetiva da mulher negra. Para
tanto, primeiramente, são apresentadas as noções de raça e racismo forjadas com o
surgimento da modernidade-coloniedade. Em segundo lugar, é analisada como
essas categorias teoréticas são encontradas na obra ficcional da escritora negra
Conceição Evaristo, em seu romance PonciáVicêncio, especificamente, no que
tange o delineamento da personagem principal do romance: uma mulher negra em
uma sociedade estruturada pelo racismo e machismo. De tal modo, que a
compreensão das vivências dessa personagem se desenham nos arquétipos
delimitados à população negra e demostrarão de que forma conceitos, como
interseccionalidade, farão parte de sujeitas com suas características. Por fim,
sugere-se como as manifestações literárias de autoras negras podem se constituir
instrumentos representatividade e de denúncia de violações de direitos e da
marginalização social da população negra no Brasil.
Palavras-chave: mulher negra; racismo; coloniedade.

O advento da modernidade trouxe consigo a divisão social do trabalho


racializada para servir aos interesses da empresa colonial sob liderança dos países
europeus. A empresa colonial, projeto de expansão da dominação econômica em
nível ultramarino, forjou uma hierarquia entre populações baseada, inicialmente, nas
diferenças territoriais, com objetivo de subjugar populações e expropriá-las de seus
bens materiais, culturais e humanos em nome do capitalismo em expansão.

175
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina e mestrado em Direitos Humanos e
Cidadania pela Universidade de Brasília.
176
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina.
362

Podemos situar o nascimento da Raça, como um construto social e político, na


Idade Moderna, cunhada sob o pretexto de uma missão civilizatória que parte da
Europa para o restante do mundo, com o objetivo de salvar as populações
consideradas bárbaras e atrasadas em relação a égide das luzes e da razão que se
encontrava os países líderes desse processo.
Nesse contexto, África e o Negro eram considerados manifestações de uma
existência objectual, era o exemplo total do ser outro, trabalhado pelo vazio,
confundido com o animal, detentor de uma consciência desprovida de
universalidades (MBEMBE, 2014).
Sob um olhar africano trazido por autores pós-coloniais, como AquileMbembe:

Raça não existe enquanto um construto natural físico, antropológico ou


genético. A raça não passa de uma ficção útil, de uma construção fantasista
ou de uma projeção ideológica cuja a função é desviar a atenção de
conflitos antigamente entendidos como mais verosímeis – a luta de classes
ou a luta de sexos. (MBEMBE, 2014, p. 27)

Nesse sentido, a colonização reduziu os africanos a negros, em uma escala de


inferioridade ontológica e instrumentalizou essa inferiorização para financiamento do
capitalismo. A raça, o racismo e o capitalismo são faces do mesmo processo de
organização social e econômica.
Por outro lado, a conceituação de raça, cunhada por AquileMbembe, trata-se
de fenômeno complexo e perverso, impossível de ser capturado em sua
subjetividade e nuances apenas sob uma perspectiva econômica. Há, na
constituição da raça e do racismo, conforme se estabelece na modernidade,
ingerências nos processos da construção da subjetividade do ser, tanto para aquele
que é objeto de desumanização e coisificação, ou seja, racializado, quanto para
aquele que racializa a diferença e se aprisiona em sua superioridade. Segundo
Fanon (2008), podemos “constatar que o preto, escravo de sua inferioridade e o
branco, escravo de sua superioridade, ambos se comportam segundo uma linha de
orientação neurótica.”.
Sendo assim, essa linha de orientação neurótica que incide sobre negros e
brancos, explicada com mais propriedade por saberes emprestados da psicanálise e
psicologia, é resultado do processo de altericídeo dos negros, processo no qual o
negro é visto não “como semelhante a si mesmo, mas como objeto intrinsicamente
ameaçador, do qual é preciso proteger-se, desfazer-se, ou que, simplesmente, e
363

preciso destruir, devido a não conseguir assegurar o seu controle total.” (MBEMBE,
2014).
Reiteradamente aviltado em sua humanidade, tipo como animal, vida vegetal e
limitada, a figura do negro se constitui dentre essas ficções criadas pelo racismo por
meio de um processo de Efabulação e, sua ampla difusão, valida e perpetua o
racismo para além da descriminalização assumida e oficializada em políticas
segregacionistas. A repetição dessas ideias fictícias, imaginárias, de inferiorizarão
criam alucinação e fantasia sobre negro. O medo que a alucinação cria faz com que
a fantasia seja tomada como real, temos o medo fantasmagórico do real.
Denomina-se, portanto, por Efabulação, a capacidade de alterar a verdade por
meio de fábulas e foi por meio da efabulação que o discurso europeu, tanto o
erudito, quanto o popular passou a orientar, pensar e organizar os mundos distintos.

Ao apresentar como reais, certos ou exactos, factos muitas vezes


inventados, foi-lhe escapando a coisa que tentava apreender,
mantendo com esta uma relação fundamentalmente imaginária,
mesmo quando sua pretensão era desenvolver um conhecimento
destinado a dá-la a conhecer objectivamente. (MBEMBE, p. 29).

Corpos marcados pela cor negra são bombardeados por ficções que lhes
querem controlar, marginalizar e impedir que alcance os espaços de poder. A
absorção dessas ideias ficcionais pelas pessoas negras confere validade à estas
construções de negação da alteridade do negro, e é o mecanismo fundamental à
manutenção do racismo. O racismo, assim enunciado, se constitui a partir da
modernidade sustentado por duas facetas complementares: a Coloniedade e a
Efabulação. Exemplo da incorporação da efabulação dos negros por pessoas negras
é poeticamente retratado no romance da escritora negra Conceição Evaristo,
intitulado PonciáVincêncio. Nesta obra é tecida, de forma poética, uma trama
psicológica e emocional embevecida nas questões sociais e raciais vividas pelos
personagens.
PonciáVicencio cresce junto de sua família na zona rural, em terras cedidas
pelos os antigos senhores de seus Bisavós escravizados. Seu pai, quando pequeno,
questiona a seu avô porque mesmo livres eles se mantinham naquelas terras e
trabalhando como se ainda fossem escravos em senzalas, e por que a liberdade era
só aparente e sem consistência (EVARISTO, 2003).
364

O retrato da exclusão social e da manutenção da exploração, que os negros


foram relegados pós o período da escravidão no Brasil, é plano de fundo para essa
obra de vívida poesia e contumaz crítica social. A protagonista com desejo de
quebrar com a lógica perene de exploração e exclusão dos negros decide buscar
liberdade e emancipação na cidade, como descreve o seguinte trecho do livro:

Quando PonciáVivêncio resolveu sair do povoado onde nascera, a


decisão chegou forte e repentina. Estavacansada de tudo ali. De
trabalhar o barro com mãe, de ir vir às terras dos brancos e voltar de
mãos vazias. De ter a terra dos negros coberta de plantações,
cuidadas por mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida
trabalhando nas terras dos senhores, e depois a maior parte das
colheitas a ser entregue aos coronéis. (EVARISTO, 2003, p. 33) .

PonciáVicêncio é mais um corpo negro, ora ficcional, sob o jugo da exploração


que ainda existe no trabalho no campo, do trabalho de semiescravidão, do
coronelismo, da migração do campo para a cidade, que quando chega na cidade é
capturada pela exclusão social do meio urbano, passando a figurar na exclusão das
vidas nas favelas.
A busca e efetivação da escrita de Conceição Evaristo é uma escrita visceral,
na qual os silêncios e vivências tomam corpo com a finalidade de retratar não
apenas os sujeitos descritos em sua obra, mas também a busca por uma identidade
coletiva que diga respeito à comunidade negra afro-brasileira.
Em sua obra, “PonciáVicêncio”, temos a realocação do ser mulher e negra em
nossa sociedade, na qual rompe-se o lugar pré-destinado pela branquitude de mero
objeto, em que não há subjetividades, e são realçados elementos que constroem
uma vivência complexa repleta de interseccionalidade.
Nesse sentido, no que diz respeito à Ponciá, temos a intersecção de várias
condições explicitadas no seu ser: mulher, negra e pobre, sendo que estas não
devem ser compreendidas isoladamente deslocadas da realidade material e
intersubjetivas na qual estão inseridas. O pertencimento à determinadas categorias
não isenta condições específicas, pertinentes a cada indivíduo, ou até mesmo, a
mais de um indivíduo dentro do mesmo espaço e grupo.
Neste sentido, podemos nos deparar no texto de Evaristo (2003) como a
intersecção de condicionantes, conforme nos ensina Crenshaw, onde as
365

representações podem intercalar-se e gerar outros efeitos nas vivências dos


sujeitos, como lemos:

Apresentar uma estrutura provisória que nos permita identificar a


discriminação racial e a discriminação de gênero, de modo a
compreender melhor como estas discriminações operam juntas,
limitando as chances de sucesso das mulheres negras.
(CRENSHAW, 2004, p. 7).

É explícito que a operacionalização de tais discriminações se mostra


presentesna vida de Ponciá, a personagem tem consciência de si enquanto mulher,
sendo que há marcas do sofrimento da construção do que é ser mulher, numa
realidade repleta de violências (de simbólicas à domésticas) quotidianas.
Na escrita de Evaristo, salienta-se um processo de rompimento, onde no
entrecruzar destas realidades, não se aparta o momento de desistência ou de
fragilidade, há a descrição de um processo de fortalecimento, amparada por estas
perspectivas.
Os mais de três séculos de vigência do sistema escravista, designaram, sob
uma perspectiva hegemônica, à todo um grupo étnico racial um papel e local de
subserviência. Para as mulheres negras tal período resultou, também, na
reprodução literária sob uma compreensão e visão hegemônica construída por meio
da branquitude de um estereótipo de mulher negra, que retira sua subjetividade e
dialoga com papéis socioculturais delimitados no meio de um corpo/objeto ou
corpo/prazer sexual; herança colonial que perdura por meio da simbologia literária.
Que, contudo, vem desde muito longe sendo modificada.
O direito se materializa não apenas com sua fundamentação por meio do
ordenamento jurídico, mas sobretudo torna-se efetivo quando se materializa nas
realidades concretas, fazendo-se presente não apenas na letra da lei, mas nos fatos
cotidianos.
No romance de Evaristo percebemos o direito exatamente em sua ausência,
vemos que os personagens acreditam de modo quase que inquestionável não serem
detentores de possuir e usufruir de uma condição de vida digna, ou de acessar à
determinados serviços ou até menos na crença de que este seria o seu destino. A
materialização de crer que determinadas situações estão cristalizadas, e assim
serão para sempre, como o processo de discriminação racial, por exemplo,
demonstra que para estes sujeitos o direito não se concretizou, assim como frente
366

ao racismo existe resistência de sujeitos que, dado a sua vulnerabilidade e ausência


de cidadania, não se constituem sujeitos de direitos, uma vez que onde não há
direitos não se constitui o sujeito de direitos (CHAUÍ, 2006).
Muito embora exista, o direito para tais sujeitos não atingiu suas realidades e
tão pouco foi evidenciado como efetivo, talvez, porque em inúmeros momentos as
vivências tenham feito com que os próprios sujeitos – Ponciá e/ou Luandi - não se
compreendam como sujeitos possuidores de direitos.
Tanto em nossa realidade, como nas representações literárias, por meio da
linguagem o papel sociocultural desempenhado apresenta-se como meio de não
apenas representação, mas sobretudo de manutenção, assim como afirma Carboni,
Maestri (2012): “O signo linguístico possui uma espécie de patrimônio genético que
resiste a se metamorfosear plenamente”. Ou seja, os significados e suas
significações necessitam constantemente alçar o patamar de ressignificações e a
mutação de objeto para sujeito torna-se elemento central no que se refere à
negritude.
Ainda analisando a linguagem como signos linguísticos, faz-se importante
destacar que tais significações podem e devem transformar-se da complexidade que
é este momento, como segue:

Ao perseverarem por meio da história, assumem inevitavelmente


novos conteúdos e determinações, prevalecendo, porém, mais ou
menos prenhes do sentidos ensejados pelas realidades e
experiências sociais que os produziram, mesmo quando essas
últimas foram definitivamente superadas. (CARBONI,
MAESTRI,2012, P. 62).

Sendo assim, as autoras negras, em específico para nossa análise Conceição


Evaristo, norteia-se em nossa sociedade como uma das autoras que buscam por
meio de sua escrita uma ressignificação do sujeito negro de modo que haja uma
transposição de objeto para sujeito.
Estar inserido numa sociedade que se alicerça na exploração e violência contra
corpos negros, evidencia a necessidade de que vozes negras potentes, como da
autora em questão, reverberem na busca de construção de novos parâmetros, onde
seja possível romper com estereótipos que permeiam e perduram por toda nossa
construção sociocultural, para que tais sujeitos possam ser sujeitos autônomos e
falem de si, para si e com os demais.
367

Movimentar aquele que outrora seria o papel de objeto ao patamar de detentor


de direitos dá a estes a possibilidade de afirmar e buscar a concretização enquanto
grupo.
Em determinada passagem do romance é evidenciado as categorizações de
saberes: “Negro aprendia, sim! E o que faria com o saber dos brancos?”
(EVARISTO, p. 18). E, mais que isso, é contraposto a possibilidade de buscar
significado e dar novos significados à estes saberes, demonstrados nas posturas e
buscas de Ponciá, desde sua busca por identidade nos sentido amplo e restrito,
também percebido no resgate de memória e retrato das vivências em comum, como
fonte de saber, simbolizando que o saber que não apenas é da branquitude,
entretanto, encontra-se sob seu poder e pode ser reescrito.
A escrita e vivências destas mulheres e autoras negras desnuda-se como uma
possibilidade de subversão; Ponciá é o símbolo da busca de si mesmo por meio da
junção de um copo maior que é sua família, no qual estão representadas dores,
angústias, vivências (individuais e coletivas) que nos remetem às situações macro e
micro experimentadas por corpos negros.
O rompimento com as vozes majoritárias da literatura, dominantemente
ressoadas por vozes da branquitude nos estereótipos reservados entre o papel de
objeto de desejo sexual ou de exploração do trabalho doméstico, ocorre por uma
escrita que valoriza e enseja-se nas questões subjetivas, numa análise que
contribui para uma percepção mais global da negritude, afastando-se de papéis e
locais predeterminados pelo racismo.
A complexidade da construção que permeia gênero, raça e classe são
elementos evidenciados e não debatidos por um viés que reduza apenas à seres
inanimados. Angela Davis, ao analisar as opressões em que eram submetidas as
mulheres no período da escravidão nos EUA, pondera:

As mulheres também sofriam de forma diferente, porque eram


vítimas de abuso sexual e outros maus-tratos bárbaros que só
poderiam ser infligidos a elas. A postura dos senhores em relação às
escravas era regida pela conveniência: quando era lucrativo explorá-
las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de
gênero; mas, quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas
de modo cabíveis apenas às mulheres, elas eram reduzidas
exclusivamente à sua condição de fêmeas (DAVIS, 2016, p. 17-19).
368

Nesse sentido, enquanto mecanismo de subjugação e negação de alteridade, o


racismo incide nas mulheres negras concomitantemente com as opressões de
gênero, que buscam a submissão do corpo da mulher aos imperativos masculinos
da violência sexual. E Ponciá, em sua existência ficcional, é mais uma
representante, na literatura de autoras negras, do que a mulher negra em uma
sociedade racista, patriarcal e capitalista, que é submetida em trajetória de vida no
sentido de se constituir sujeito de direitos para além dos espaços que para elas são
pré-determinados.
O desfecho do romance mostra como as estruturas racistas do Estado
Moderno, mesmo quando incorpora os marginalizados em seus quadros, trabalham
para que essa incorporação seja feita sob a regência da hegemonia branca,
impedindo que as desigualdades raciais presentes na sociedade sejam pautadas e
ameace os privilégios e soberania dos brancos. Mas também há esperança
permeando todo o enredo, nos afetos entre os personagens que humaniza o corpo
negro e sugere a todo momento uma outra realidade possível de emancipação para
negros e negras.

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luta de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2003.

CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 2006.

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sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
370

VIOLÊNCIA VIRTUAL CONTRA ADOLESCENTES: ATÉ AONDE ISSO PODE


CHEGAR?

Tamires Marini Gomes177


Claudiana Tavares da S. Sgorlon178

Resumo: Com o desenvolvimento intensificado das tecnologias em meados da


década de 1990, o mercado vem apresentando novos meios para que as pessoas
estejam conectadas com o mundo, em tempo real. Existem atualmente vários
instrumentos digitais, dentre eles: computador, notebook, tablets, celulares etc.,
além de vários canais de comunicação criados para seremutilizados nestes
aparelhos. Assim, com apenas alguns “clicks” é possível enviar e receber
mensagens de textos e vídeos de um familiar ou amigo que esteja morando, por
exemplo, no Japão. As novas gerações que já nasceram em um mundo globalizado
e digital, muitas vezes utilizam-se destas ferramentas sem se preocupar com as
consequências que podem ocasionar. Assim, adolescentes, baseados na confiança
empaqueras, ficantes, namorados(as), maridos e esposas, expõe sua intimidade um
para o outro, como prova de amor. A preocupação é com as consequências, pois,
segundo matéria divulgada no site da Central Nacional de Denúncias de Crimes
Cibernéticos: Safernet Brasil (2010), na maioria dos casos,por várias razões, seja
por vingança, fim de relacionamento ou qualquer outro pretexto, este conteúdo
acaba se propagando rapidamente na rede, seja por meio dos aplicativos, redes
sociais ou mesmo em sites de grande acesso, repercutindo seu conteúdo de forma
visceral. Assim é o sexting, palavra de origem americana, o qual significa: sex (sexo)
etexting (envio de mensagem de texto) e expressa a prática de enviar fotos e/ou
vídeos íntimos nus ou seminus para os parceiros(as). Após a divulgação deste
material na internet, dificilmente será possível controlar seu envio por outros meios
digitais e frear seu acesso, pelo contrário, com o alcance que os celulares e tablets
chegamà população, o conteúdo rapidamente se espalha e torna-se viral nas redes
sociais, podendo acarretar quadros de depressões ou mesmo levando ao suicídio da

177
Universidade Estadual de Maringá. Estudante do 4º ano de Serviço Social Email:
tamires.marini@gmail.com.
178
Universidade Estadual de Maringá. Docente do Curso de Serviço Social. Email:
clautavares@hotmail.com.
371

vítima, como casos já ocorridos no Brasil e no mundo179. Em que pese esta era
tecnológica emque os adolescentes vivem e se relacionam, deve-se considerar
também o exposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nos Artigos 240
a 241- que tratam sobre exposição de criança e adolescente referente a fotos e
vídeos íntimos. Tais artigos também subsidiam a pesquisa que ora se apresenta.
Neste sentido, este trabalho se propõe a discutir a interpretação do sexting na vida
de adolescentes da cidade de Ivaiporã-Pr. Para isto foram escolhidos(as)
adolescentes estudantes de uma escola pública do primeiro ano do Ensino Médio.
Este recorte etário se dá em virtude da maioria dos adolescentes iniciarem nesta
fase a vida amorosa. A referida pesquisa será realizada no decorrer do ano de 2017,
através da aplicação de um questionário semi-estruturado, no qual buscará alcançar
os objetivos traçados para a pesquisa.
Palavras-chave:Sexting, Redes Sociais, Violência Virtual.

Introdução

O termo sextingfoi utilizado pela primeira vez no Sunday Telegraph Magazine,


no ano de 2005, posteriormente, no Brasil, foi a Ong Safernet 180 a pioneira a
conceituar a terminologia.
É um novo conceito que tem suas origens tanto na América do Norte quanto na
Europa, em países como: Reino Unido, Alemanha, Estados Unidos e Canadá, sendo
no bojo do acesso às tecnologias como a câmera fotográfica, celulares e notebooks
e as redes sociais da época, a exemplo do Orkut e suas mais diversas comunidades
e MSN Messenger que inicia as trocas de mensagens virtuais e que, em sua
maioria, escondem armadilhas, pois é muito simples de se criar contas fakes 181 e ter
vários perfis.
Mas, ao reportamos ao sexting, é interessante apontar que existem algumas
discussões sobre qual o real significado de sexting, como apresenta Detoni:
179
Segundo o site Compromisso e Atitude – Lei Maria da Penha, “o registro de cenas íntimas,
seguido da divulgação nas redes sociais, tem causado sérias consequências para as vítimas, como o
abandono da vida escolar, humilhações e, em situações mais extremas, o suicídio”.
180
Para mais informações acessar: http://www.safernet.org.br/site/prevencao/cartilha/safer-
dicas/sexting.
181
Equivalente a falso, utilizado para ocultar a real identidade, utilizando-se de imagens de artistas,
cantores, modelos entre outras celebridades da mídia.
372

A pesquisa de Mattey e Diliberto (2013) mostra que em muitos estudos, as


ações relacionadas à Sexting são o envio e recebimento de mensagens de
sexo explícito. Este comportamento não é considerado comportamento
ilegal entre os jovens. Para Lounsbury et al. (2011), Sexting foi definido
como “imagens nuas ou seminuas”, mas imagem seminua poderia significar
um indivíduo usando roupas de banho, o que não representa uma imagem
de sexo explícito. Isto nos remete à semântica e a indefinição de ações,
pois esses estudos não pontuam se é enviar, receber, compartilhar tais
imagens. Nos estudos realizados por Mitchel et al. (2012), Sexting foi
definido como o ato de fotografar ou produzir imagens sexualmente
sugestivas ou nus ou ainda, o ato de receber esse tipo de imagem. Já em
estudos realizados por Strassberg et al. (2012) e Fergunson (2011) citados
por Augustina e Duran (2012), Sexting foi definido como receber e enviar
imagens (fotos/vídeos)sexualmente sugestivas ou nus. (2015, p.71-72)

Neste artigo, a palavra sexting é compreendida a partir de Strassberg e


Fergunson citados por Agustina e Duran, sendo receber ou enviar imagens, seja
fotos e/ou vídeos sexualmente sugestivos ou nus.

1 Os tipos de divulgação do sexting: contexto social e jurídico

O sextingé comportamento tipicamente comum em nossa sociedade, dada a


grande repercursão da prática após a ascensão dos aparelhos eletroeletrônicos.
Assim,a preocupação do compartilhamento de imagens e/ou vídeos é em se
transformar em pornografia de vingança ou revengeporn, no qual existem três
maneiras diferentes que podem ocorrer:

O compartilhamento de materiais sensíveis implica em um risco de que


esses conteúdos sejam circulados para além do desejo e do controle do
sujeito que aparece neles. Por mais privada que seja a conversa em que se
dá o compartilhamento original, existe sempre a chance de que alguém
vaze esses materiais, tornando-os disponíveis para acesso público.
Entendemos que esses vazamentos de exposição pública da intimidade
podem ser de três tipos: (1) não consensual por vingança, (2) não
consensual feito por terceiros e (3) intencional. (PRIMO, et al. 2015, p. 11)

A divulgação não consensual por vingança frequentemente acontece após o


término de um relacionamento, seja de pequeno ou longo período afetivo. Um dos
parceiros mantém consigo estes arquivos e, por vingança, acaba por espalhar pela
internet. As consequências recaem sobre a vítima que sofre violência verbal por
quem repugna tal atitude; há pessoas que perdem o emprego e precisam mudar-se
de bairro ou até mesmo de cidade. Um caso que ficou conhecido no Paraná é da
373

Jornalista Rose Leonel, que após um relacionamento de aproximadamente quatro


anos, seu ex parceiro não aceitou o término do noivado e divulgou fotos íntimas
suas.A mesma perdeu seu trabalho, amigos se distanciaram. Diante do ocorrido,
como forma de superação, Rose criou uma ONG182 para ajudar mulheres que
passam pela mesma situação.
183
Em entrevista dada para o Diário do Nordeste (2017) , Rose explica qual
alcance e dimensão que esta divulgação gerou em sua vida:

Todo mundo soube. Esse material foi mandado para o meu chefe, para o
diretor da escola onde os meus filhos estudavam, todos os lugares. Ele
conseguiu o que queria: fui demitida e minha vida mudou radicalmente.
Cortei o telefone de casa, mudei meus filhos de escola, perdi a vida social,
os amigos, não podia mais sair na rua, porque eu tinha virado piada.( Diário
do Nordeste, 2017, p.1)

A partir do breve relato apresentado, pode-se ter pelo menos uma ideia do que
passa uma vítima deste crime virtual, como a vida precisa ser reconstruída para
seguir em frente. Percebe-se neste caso, que os filhos também sofreram com as
consequências da pornografia de vingança.
A Constituição Federal (1988), no capitulo I - Dos direitos e deveres individuais
e coletivos -, o artigo 5º, e mais especificamente no inciso X, dispõe sobre intimidade
e a honra, como um direito inviolável, mas, é nítido o descumprimento pois, além da
divulgação teve sua vida privada da liberdade que também está garantido no mesmo
artigo, por medo das ofensas e sarros que poderia receber dos outros cidadãos.
Outro termo apresentado é a pornografia de revanche ou pornografia de
vingança, como vem sendo denominada nos últimos anos, é um conceito oriundo do
inglês “revengeporn” e surgiu muito antes das redes sociais, na década de 1980,
quando um norte americano e sua esposa fizeram fotos nuas em viagem, e após
voltarem para sua residência, as guardaram em uma gaveta. Um vizinho da família
entrou no domicilio e após encontrar as fotos da mulher resolveu divulgar em uma
revista, no qual o conceito era de leitores enviar fotos de modelos não profissionais,

182
Denominada Marias da Internet, o objetivo da ONG é dar suporte psicológico e jurídico à mulheres
que foram vítimas do crime cibernético, para mais informações acessar:
http://www.mariasdainternet.com.br/
183
Para acesso a entrevista completa:

http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/policia/pornografia-de-vinganca-o-desafio-de-
lidar-com-os-crimes-na-internet-1.1738992
374

ao preencher o formulário o agressor mudou os dados pessoais, deixando apenas o


verdadeiro contato telefônico. Resultado: após a exposição houve várias ligações de
assédio. Segundo Motágua (2014), para se caracterizar como pornografia de
revanche não é necessário que seja o marido, como apresentado no caso acima, um
amigo próximo e que exista vínculo afetivo também é considerado pornografia de
vingança.
Sobre o não consensual, feita por terceiros, geralmente é descoberta por
crackers184, ou por descuido, quando deixam na galeria de fotos do aparelho celular
e outras pessoas que possam vir a ter contato e acabam enviando para seus
dispositivos e reenviam para grupos que facilmente espalham o conteúdo pela Web.
Outro caso que ficou conhecido em nosso país foi o vivenciado pela atriz Carolina
Dieckmann em maio de 2012, no qual invadiram seu computador pessoal e
roubaram suas fotos e as divulgaram, logo, em novembro do mesmo ano, o Planalto
criou a Lei 12.737185 de 2012, a qual ficou conhecida com o nome da atriz.
Assim, o artigo 154 do Código Penal que foi alterado, apresenta:

Art. 154-A.Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de


computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e
com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem
autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar
vulnerabilidades para obter vantagem ilícita: Pena - detenção, de 3 (três)
meses a 1 (um) ano, e multa.

Em casos intencionais é necessário um cuidado, pois existe a questão


mercadológica, em que a imagem e/ou vídeo nu ou seminu é utilizado para
promover celebridades.

Trata-se da publicação premeditada de conteúdos comumente


considerados íntimos, em que abre-se mão da privacidade tendo em vista
uma rápida obtenção de visibilidade e fama — ou seja, do uso do privado
como negócio. Portanto, não são tecnicamente “vazamentos” e sim a
exposição proposital de conteúdos considerados íntimos, frequentemente
simulando uma publicação acidental. (PRIMO, et al. 2015, p.12.)

184
Cracker, do inglês "aquele que quebra", é um termo que designa indivíduos que possuem grandes
conhecimentos técnicos na área da informática e que usam esse conhecimento para acessar
ilegalmente sistemas de segurança com fins criminosos, frequentemente praticando roubos e atos de
vandalismo em benefício próprio.
185
Para maiores informações, acessar: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12737.htm
375

Para ilustrar a importância de se discutir o assunto e, para além disso, criar


ações de enfrentamento da questão, apresentamos dados da OngSafernet que
contabiliza as denúncias de vazamentos de fotos íntimas que são divulgadas na
internet. Assim, no ano de 2013, foram registrados 101 casos de violação de direito,
sendo que 77,14% é do sexo feminino, e a faixa etária com maior índice é de
adolescentes entre 13 a 15 anos, compondo 35,71% do total. No ano de 2014 o
número de casos atendidos pela Safernet mais que dobrou, somando um total de
224 casos que foram denunciados, uma estimativa de 81% do sexo feminino.
Outro levantamento realizado pela consultoria de tecnologia eCGlobal,
intitulado Sexting no Brasil- uma ameaçadesconhecida 186, apontou que 76% dos
entrevistados desconhecem o termo sexting, do qual 64% tem a prática de enviar
e/ou receber fotos e vídeos íntimos, mas não conheciam que existia uma
terminologia. Do total de entrevistados, 49% não se sentem completamente seguros
em relação a possível divulgação. Logo, 90% acredita que o sexting deveria ser
tema para se trabalhar nas escolas. Com relação aos dados por gênero, os homens
são os que mais enviam fotos próprias com 21%, verificamos ainda em relação à
exposição nas redes sociais, no qual os homens ocupam a primeira posição
também. A pesquisa apresenta ainda sobre as principias motivações para enviar
este tipo de material, sendo que 47% apontou como presente sexy de namorado(a)
e o principal motivo para compartilhar nudez envolvendo o outro, com 42%, é como
resposta.
A preocupação é com o pós exposição na Web, pois a vida será diferente, será
um momento muitas vezes doloroso, de mudanças bruscas, mas no mundo virtual
tudo é rápido e em pouco tempo o assunto já é trocado por outro. O problema é que,
para as vítimas, o tempo não passa da mesma forma, e muitas vezes por não
suportarem os insultos, assédios, agressões verbais, são levados a uma triste
realidade, que é o suicídio como trecho apresentado por Detoni (2014, p. 4):
“Segundo reportagem da revista Época, de 25/11/2013, duas adolescentes brasileir
as e outras seis mulheres norte-americanas se suicidaram após terem tido imagens
íntimas espalhadas na internet”.

186
Para mais informações acessar: https://pt.slideshare.net/ecglobal/relatorio-sexting-brasilpt
376

Em reportagem para o programa de TV “Fantástico”187, a repórter Neyara


Pinheiro relata a história de uma jovem do litoral do Piauí, no qual após vídeo
divulgado na internet, a adolescente não aguentou a exposição e cometeu suicídio,
a mesma postou algumas mensagens no Facebook pedindo perdão a mãe e vendo
na morte a solução de seus problemas.

“Eu te amo, desculpa eu não ser a filha perfeita, mas eu tentei… desculpa,
desculpa, eu te amo muito”, postou a garota. Antes, Júlia havia publicado
a seguinte mensagem: “É daqui a pouco que tudo acaba”. A última
mensagem deixada na rede foi: “Tô com medo, mas acho que é tchau pra
sempre”. (Compromisso e Atitude, 2013)

Segundo dados apresentados pelo Lancet, uma conceituada revista


cientificado Reino Unido, e divulgados pelo jornal Folha de São Paulo 188 apontou
que, entre adolescentes do sexo feminino, o suicídio ocupa a primeira posição entre
as faixas etária de 15 a 19 anos. No Brasil, entre os adolescentes o suicídio ocupa a
terceira posição entre as principais causas de morte.
Existem algumas leis previstas sobre o crime cibernético, logo precisam ser
discutidas para não cairmos no discurso do senso comum de que “a internet é terra
de ninguém”, uma frase que trás consigo a ideia de que não existem punições pelo
fato de ser mais fácil cometer uma agressão ou uma violência com alguém que não
se conhece, com perfis falsos, podendo difamar ou postar frases contendo assédio
moral.
Segundo a Ong Safernet (2008), já são quinze estados brasileiros que contam
com pelo menos uma Delegacia especializada em Crimes Cibernéticos, o Estado de
São Paulo conta com três delegacias para atender este tipo de crime. OParaná
conta com o Núcleo de Combate ao Cibercrimes (NUCIBER), localizada no centro
de Curitiba189.
No que concerne à criança e o adolescente, o documento mais direto para
defesa contra qualquer exposição em mídia, seja fotos ou vídeos em sites de
pornografia, é a Lei 8.069/1990, conhecida como Estatuto da Criança e do

187
Para reportagem completa acessar: http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2013/11/mae-de-jovem-
achada-morta-apos-video-intimo-reclama-de-violacao.html
188
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/1108498-suicidio-e-a-segunda-maior-
causa-de-morte-entre-jovens-no-mundo.shtml
189
Para os endereços de todos os Estados, acessar:
http://www.safernet.org.br/site/prevencao/orientacao/delegacias
377

Adolescente (ECA).Como já citado anteriormente, contempla que o envio, o


recebimento ou a divulgação em sites de fotos e/ou vídeos podem resultar em pena
ou multa para quem faz mau uso desse conteúdo. Vejamos o que a lei apresenta:

Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que
contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou
adolescente:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.” (NR)

Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou


divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou
telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo
explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
o
§ 1 Nas mesmas penas incorre quem:
I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias,
cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo;
II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às
fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.

Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia,


vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou
pornográfica envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
o
§ 1 A pena é diminuída de 1 (um) a 2/3 (dois terços) se de pequena
quantidade o material a que se refere o caput deste artigo.
o
§ 2 Não há crime se a posse ou o armazenamento tem a finalidade de
comunicar às autoridades competentes a ocorrência das condutas descritas
nos arts. 240, 241, 241-A e 241-C desta Lei, quando a comunicação for feita
por:
I – agente público no exercício de suas funções;
II – membro de entidade, legalmente constituída, que inclua, entre suas
finalidades institucionais, o recebimento, o processamento e o
encaminhamento de notícia dos crimes referidos neste parágrafo;
III – representante legal e funcionários responsáveis de provedor de acesso
ou serviço prestado por meio de rede de computadores, até o recebimento
do material relativo à notícia feita à autoridade policial, ao Ministério Público
ou ao Poder Judiciário.

Os crimes atualmente são enquadrados por injúria ou difamação como aponta


reportagem da TV Senado190 e as penas são alternativas para o agressor, a
exemplo, pagar cestas básicas. Mas, o Projeto de Lei da Câmara n.º18/2017, que já
foi aprovado na Câmara dos Deputados, e agora passa a ser analisada no Senado,
prevê que a pornografia de vingança seja um crime específico, e se aprovado,
enquadrará na Lei Maria da Penha, prevendo mudanças no Código Penal em que,
se condenado, o agressor pode pegar de três meses a um ano de prisão ao divulgar
fotos íntimas, além de multa.

190
Assistir a reportagem: http://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2017/04/projeto-que-torna-crime-
a-divulgacao-de-imagens-intimas-chega-ao-senado
378

Outro desdobramento do sexting que pode trazer consequências não somente


aos adolescentes é o cyberbullying191,ou o bullying virtual.A palavra éde origem
inglesa e é a junção das palavras: cyber que está associada à comunicação digital e
bullying verbo derivado do inglês “bully”, que significa valentão, tirano (RÖDER;
SILVA, 2017, p.26).

Quando consciente e programado, o Sexting pode trazer algumas


consequências consideradas positivas para os usuários da rede. No
entanto, é possível que essas imagens sexuais, quando saem da
intimidade da vida privada sem o conhecimento prévio dos
envolvidos, por exemplo, um casal de namorados, possam ser
usadas como uma forma de humilhação pública através da revelação
da sexualidade do indivíduo. Seu corpo, suas preferências sexuais e
outras questões consideradas de foro íntimo são expostas na web e
passam pelo crivo popular sendo julgadas por outros. Como essas
imagens costumam se espalhar pela web e o ataque mais comum às
pessoas que tem fotos ou vídeos expostos na web é o cyberbullying.
(MACHADO, N.V; PEREIRA, S. C. 2013, p.9)

O cyberbullying acontece em sua maioria, nas redes sociais, em que pessoas


utilizam os meios de comunicação digitais para atacar o outro, com palavras de
baixo calão, assédio moral, calúnia e difamação. Para quem recebe as mensagens é
um duro impacto, pois, em sua grande parte, jamais trocaram qualquer palavra ou se
conheceram e, motivados por uma atitude talvez infeliz por parte do outro, acham-se
no direito de poder humilhar o próximo. No trecho abaixo, é possível compreender o
quão sério que podem ser as consequências para quem sofre o cyberbullying:

O cyberbullying traz consequências sérias para esses usuários. É


comum que as pessoas vitimadas se sintam psicologicamente
abaladas e mudem de comportamento, de endereço e/ou de
emprego. No entanto, em alguns casos mais graves, a consequência
pode ser suicídio, por não suportar as pressões sociais vigentes.
(MACHADO, N.V; PEREIRA, S. C. 2013, p. 10)

É importante ressaltar que o cyberbullying não é apenas agressão psicológica,


mas também pode conter aptidão para se estender para além do meio virtual e
atingir a vítima fisicamente e/ou sua reputação no meio social, violando sua imagem,

191
Cyberbullying é um tipo de violência praticada contra alguém através da internet ou de outras
tecnologias relacionadas. Praticar cyberbullying significa usar o espaço virtual para intimidar e
hostilizar uma pessoa (colega de escola, professores, ou mesmo desconhecidos), difamando,
insultando ou atacando covardemente.
379

sua honra e sua intimidade (RÖDER; SILVA, 2017, p.31).


Até o presente não se tem nenhuma lei específica para os agressores que
cometem o bullying virtual.Houve, no ano de 2012, oProjeto de Lei do Senado nº
236/2012, no qual o bullying passaria a ser tipificado como intimidação vexatória,
que estaria no novo Código Penal Brasileiro. Mas, segundo o relator, o Senador
Pedro Tanques, este tipo de conduta merece críticas e repreensões no âmbito
escolar e familiar e não previsto como um crime.

Considerações Finais

O sexting é um fenômeno que tem sua gênese em outro continente e em


países da América do Norte, sendo no Brasil uma discussão ainda recente,mas, já
possuem ONG’s que buscam dar apoio e suporte para pessoas que, ao
compartilharem sua intimidade com o outro, acabam de alguma maneira, seja por
divulgação não consensual por vingança ou pornografia de vingança, não
consensual por terceiros ou intencional, tendo suas intimidades expostas seja nas
redes sociais, seja para download ou até mesmo em sites pornográficos.
A questão central é que, quando mantida, por exemplo entre um casal, pode ter
seu lado positivo. Os problemas estão na exposição, acarretando uma série de
consequências, tais como: problemas psicológicos; assédio moral; difamação; perca
de emprego; afastamento de amigos; e, podendo levar ao extremo, o suicídio.
Outra consequência que surge na era digital é o cyberbullying, em que pessoas
que desconhecem a vida do próximo, ficam a espera de um deslize para encher de
mensagens, seja de cunho pejorativo, ameaçador e, em grande parte, ridicularizador
nas redes sociais.
Por existir pouco acervo bibliográfico sobre a temática apresentada, tornam-se
indispensáveis novas discussões sobre o mesmo, para além de ser um tema tão
contemporâneo de nossa sociedade; mesmo antes da era digital já haviam sido
registrados episódios de revengeporn.
É importante ressaltar sobre a existência das delegacias especializadas,
mesmo que não estejam presentes em todos os Estados brasileiros, já foi um
grande passo dado. Entramos numa fase de concretização das que já existem e de
surgimento de novas, para que a frase “a internet não é terra de ninguém” perca seu
sentido, pois, é somente a partir das denúncias e punições efetivas que
380

conseguiremos conscientizar que as atitudes na internet têm consequências no dia a


dia as pessoas. Vale ressaltar que somente a partir dos dados concretos que as leis
são legitimadas, por isso a importância de denunciar, para que se consigam mais
leis que protejam as vítimas dos crimes cibernéticos.

Referências Bibliográficas

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Raquel Pereira.Sexting: entendendo sua condição de emergência. Suplemento
Exedra. 2014.

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DF, 1988.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Lei n. 8.069, de 13 de julho


de 1990.

BRASIL. Lei nº 12.737 de 30 de novembro de 2012. Disponível


em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20112014/2012/Lei/L12737.htm>
Acesso em: 28 de mar. 2017.

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<http://www.safernet.org.br/site/prevencao/cartilha/safer-dicas/sexting> Acesso em:
11 de abr. 2017.

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o sexting: relações perigosas? Um estudo exploratório na busca de subsídios para
programas de prevenção. Florianópolis. 2015. 194 p.

FIGUEIREDO, C. D. S; MELO, S.M.M. SEXTING:modismo inconsequente ou


cyberbullyng intencional? Algumas reflexões necessárias. Florianópolis: X ANPED
SUL, 2014.

GOMES, Marilise Mortágua. As Genis do século XXI‖: Análise de casos de


pornografia de vingança através das redes sociais. Rio de Janeiro, 2014.

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<http://www.safernet.org.br/site/prevencao/orientacao/delegacias> Acesso em: 14
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MACHADO, Nealla Valentim; PEREIRA, Silvio da Costa. Sexting, mídia e as novas


representações da sexualidade. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da
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381

abr. de 2017.

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Disponível em: <https://pt.slideshare.net/ecglobal/relatorio-sexting-brasilpt>Acesso
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PINHEIRO, Neyara. Mãe de jovem achada morta após vídeo íntimo reclama de
‘violação’ . 2013. Disponível em: <http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2013/11/mae-de-jovem-
achada-morta-apos-video-intimo-reclama-de-violacao.html>. Acesso em: 14 de abr. 2017.

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RÖDER, P. C. S.; SILVA, H. M. Cyberbullying: uma agressão cirtual com


consequências reais para a vítima e a sociedade e a Justiça Restaurativa como
forma eficiente de solução. In: SILVA, Ângelo R. I.; SHIMABUKURO, A. et al.
Crimes Cibernerticos: racismo, cyberbullying, deep web, pedofilia e pornografia
infanto juvenil, infiltração de agentes por meio virtual, obtenção de provas digitais,
nova lei antiterrorismo, outros temas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p.
25-64.
382

DIREITOS FUNDAMENTAIS E MULHERES: UM OLHAR NA PERSPECTIVA DE


ISABEL ALLENDE
Thaisa Lopes Ferreira192

Resumo: Em meio a conquistas, dentro da própria noção de Bobbio, em que os


direitos humanos são na verdade direitos históricos, nascidos pela busca da
liberdade de determinados grupos em determinado momento, a trajetória da
representação da mulher também é permeada por violências. Para tanto, a proposta
é partir do viés representativo da autora chilena Isabel Allende, em “Inésdel alma
mía193”, publicado em 2006. Partindo do pressuposto que uma obra literária,
enquanto fonte histórica poderá mostrar um panorama de uma realidade de
mulheres e um registro de suas lutas até serem consideradas pelos direitos
humanos.Numa busca em entender porque, apesar da violência contra a mulher ser
considerada uma afronta aos direitos humanos há 24 anos, uma obra literária de 11
anos, enquanto retrato de uma sociedade, ainda vem carregada com histórias e
registros de violência contra a mulher, contra a sua independência, suas escolhas.
Assim, através de uma perspectiva histórica baseada na Literatura, busca-se
compreender de que forma os direitos humanos ainda não alcançaram as mulheres,
que não é uma realidade palpável.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais; Mulheres; Isabel Allende

Introdução

Este trabalho parte da inquietação sobre a forma como foram construídos os


direitos fundamentais, especificamente os referentes as mulheres e a forma como
eles se dão no dia-a-dia das mesmas. A noção de direito fundamental aqui perpassa
as lutas para suas conquistas, bem como a visão de um Direito fruto de sua
realidade social, e não o contrário.

192
Pós-graduada em Patrimônio e História e graduada em História pela Universidade Estadual de
Londrina. Graduanda de Direito – Universidade Estadual de Londrina. Email:
thaisa_lopes@hotmail.com.
193
ALLENDE, Isabel. Inês del alma mia. 1ª Ed. Buenos Aires:Areté, 2006.
383

Para tanto, parte de uma narrativa de uma mulher, latinoamericana, que se


consagrou enquanto escritora, e cujo seu maior objeto de observância é a mulher.
Todas as obras de Isabel Allende falam de mulheres, de suas lutas diárias em busca
de aceitação, igualdade e liberdade. É uma mulher que fala sobre mulheres, o que,
na verdade, não é raro, só muitas vezes passa despercebido.
Assim, através do imaginário social que é fomentado por uma obra literária,
parte aqui uma visão do que é ser mulher, de como ela é vista pela sociedade, já
que toda obra literária é fruto de seu contexto social. Tanto a Literatura, quanto o
Direito, são frutos de seu ambiente, bem como podem usar seus meios para
modificar esse ambiente.
Os direitos fundamentais das mulheres, por sua vez, vêm sendo escritos
através de um longo período de lutas e embates, uma vez que a própria existência
dos mesmos causa estranheza a muitos imaginários. A busca por normatizar esses
direitos a fim de possibilitar que os mesmos fossem resguardados e, mais ainda, que
houvesse punições caso fossem infringidos, fez parte das pautas dos movimentos
feministas.
Com isso, cabe aqui dizer que, ao se falar em direitos fundamentais das
mulheres e usar uma obra literária enquanto fonte, procura-se entender de que
forma está tão enraizada no imaginário social a condição menor em que a mulher é
colocada, seja isso argumentado através de costume, crença religiosa, discursos
políticos. Mais do que isso, entender o Direito enquanto ferramenta para
manutenção dos direitos já garantidos e permitir outros, que viabilizem a vivência
feminina plena e segura.

1 Sobre Direitos Fundamentais.

O Direito, de uma forma geral, não pode ser entendido apenas de uma
maneira. Neste caso, se ocupa com um olhar sociológico sobre o Direito, onde o
mesmo é entendido como intrinsecamente ligado à realidade social a qual pertence.
O fenômeno jurídico é entendido enquanto fato social.
Assim, deve-se afastar ideia de que o Direito deve ser realizado apenas
através da norma, em um sentido de que toda a realidade social é ignorada. Para
tanto, entende-se que o Direito independe da coerção estatal, ele nasce dos hábitos.
Afinal, se atribui a eficiência as normas jurídicas a medida em que as mesmas
384

partem de uma análise da realidade. O comportamento acaba por ditar o Direito.


Assim, cabe ao Estado pensar em normas que caibam em suas organizações
sociais e não o inverso.
A despeito disso, têm-se os direitos fundamentais que, na visão de Norberto
Bobbio, partem de uma construção através de lutas, vem de encontro com este
pensamento sobre o Direito enquanto fruto de sua realidade e não de uma demanda
exterior a sociedade.
Sobre o que é tido enquanto direitos fundamentais, já tem seu impasse na
própria definição do que é fundamental. Isso porque, ao longo do tempo, as
demandas se alteram. Os sujeitos também. É nisso que está a heterogeneidade da
natureza dos direitos humanos.
A ideia de que os direitos humanos são absolutos, muitas vezes geraram
obstáculos para as novas demandas surgidas. Dizer que algo é absoluto, é acreditar
naquilo enquanto verdade e que não há possibilidade de alteração, acréscimo.
Dessa maneira, uma Declaração de Direitos Humanos não pode ter a
pretensão de definitiva. É por esse entendimento, por exemplo, que se foi possível
pensar nos direitos humanos tratando sobre o direito das mulheres.
Para Norberto Bobbio, fundamentar um direito humano não encontra sua
dificuldade, nem sua solução, no âmbito jurídico, mas sim deve ser analisado o
desenvolvimento social que permita sua fundamentação ou não. É preciso entender
que se tratam de direitos imutáveis.
Os direitos humanos são vistos de forma individualista, onde o indivíduo é que
detém determinada demanda. O individualismo é visto de forma negativa, como
objeto de desunião. Acontece que a visão individualista altera inclusive a relação
deveres e direitos.
A grande questão gira em torno a que indivíduo está se referindo. E dessa
forma, os direitos fundamentais tem procurado ampliar sua noção de indivíduo.
Há a preocupação com a discussão no campo teórico, segundo Bobbio, e
como de fato ela irá a prática. Como efetivar um direito humano? Como tornar uma
demanda individual em Direito? De qualquer modo, o que movem esses direitos,
bem como sua existência, são as lutas, frutos da realidade social, e não de um
estado de natureza, dada a sua imutabilidade.
Partindo da mesma lógica de Bobbio, onde os direitos fundamentais são
conquistados historicamente, sendo através de lutas, a autora Flávia Piovesan parte
385

de que os direitos humanos das mulheres refletem uma história de combates. As


demandas femininas, por sua vez, foram incorporadas, no decorrer do tempo, pelos
tratados internacionais de proteção aos direitos humanos.
A ética que permeia os direitos humanos parte do princípio do profundo
respeito, da dignidade e da prevenção ao sofrimento humano. A violação dos
direitos humanos tem raiz na relação “eu versus o outro”, é o temor da diferença.
A partir de 1948, há uma atenção maior ao sujeito de direito em suas
particularidades. Dentro do que é visto como direito a igualdade, também é
resguardado o direito a diferença.
Para Piovesan, a igualdade pode ser vista a partida de três concepções: a
igualdade formal, entendida em ‘todos são iguais perante a lei’; a igualdade material,
guiada por um critério socioeconômico; e a igualdade material, ligada ao
reconhecimento de identidades.
Inicialmente, a proteção dos direitos humanos passa pela concepção formal.
Com o tempo se abre para uma concepção material, onde para Piovesan, há uma
agregação maior com todas vertentes feministas.
Em 1993, com a Declaração dos Direitos Humanos de Viena, os direitos
fundamentais das mulheres passam a ser tratados de forma explícita. Nas últimas
três décadas, é notável que a discussão sobre os direitos humanos das mulheres
ficou centrada em três frentes: discriminação contra a mulher, violência contra a
mulher e direitos sexuais e reprodutivos.
Mesmo com a Convenção sobre a Eliminação de Todas As Formas de
Discriminação Contra as Mulheres, a qual 186 Estados a ratificaram, fica claro que
para muitos Estados a ideia de igualdade entre mulheres e homens fere muitas
vezes um contexto social agarrado em crenças, costumes, ideais religiosos.
Os direitos fundamentais das mulheres podem ser entendidos como um avanço
na busca pelo fim da discriminação e da violência contra mulher. Neste momento se
preza também pela busca não só da prevenção destes direitos, mas pela repressão
da violência. Nesse mesmo contexto, tem também o papel do Estado nessas ações,
onde a obrigação é de criar mecanismos e organizações governamentais que
permitam de fato que esses direitos sejam garantidos.
386

1 A obra de Isabel Allende: “Inésdel alma mia”

Inés era para ser uma mulher como qualquer outra de sua época. A Espanha,
naquele momento, borbulhava na ânsia de fazer a vida no “Novo Mundo”. E mal
sabia a personagem que era em volta desse sonho de conquista que sua vida seria
traçada.
Neste contexto, o que era esperado é que o destino de Inés, como de qualquer
outra mulher, seria traçado pelo patriarca: casar, ter filhos, cuidar da casa. Porém,
Isabel Allende faz questão de descrever uma mulher que não consegue se enxergar
nesse papel.
Casou-se ainda jovem, com Juan, um homem sonhador e ambicioso. O sonho
deste coincidia com o de muitos outros homens: ir a América e enriquecer. E, como
muitos, quando conseguiu finalmente partir para o “Novo Mundo”, deixando sua
esposa na Espanha, sem esperanças de saber se o veria novamente. Acabavam
que essas mulheres eram dadas como viúvas, pois os maridos ou não voltavam ou
acabavam por morrer na América.
Ao não se ver feliz vendo o marido partir, deixando-a a própria sorte, Inés
decide que irá a América, ao encontro de Juan. E trabalha para conseguir o dinheiro
da viagem e a permissão para partir por parte do Rei. Quando consegue viajar e
chegar à América descobre que seu marido está morto. Ainda assim, prefere
permanecer na América.
Seu destino cruza com Pedro de Valdívia em uma noite, onde este irá salvá-la
de uma tentativa de estupro. Desde este momento em diante, Inés, apaixonada por
Valdívia, parte em conquista de território, fazendo assim parte da história da
colonização do que hoje é entendido pelo Chile. A responsabilidade de Inés,
inicialmente, era cuidar dos feridos e doentes, cozinhando e costurando roupas para
os soldados. Quase um cuidar do lar.
Apesar dessa caracterização da mulher ainda muito ligada a questões
domésticas, Inés é descrita também como uma mulher que se sente muito a vontade
em tomar suas próprias decisões, mesmo que na ausência de Pedro de Valdívia.
Outro fator importante da narrativa, é que Inés costumava participar das reuniões
onde Pedro de Valdívia discutia, com seus homens de confiança, sobre o que
deveriam fazer referente ao novo espaço que estavam conquistando. Apesar dessa
participação ser quase que silenciosa, Inés Suarez opinava e tinha suas ideias
387

ouvidas por Valdívia, mesmo que muitos homens se sentissem incomodados com
essa influência.
O romance é contado sob o olhar de Inés, e não de outro homem. Ela decide
escrever sua história, ou pelo menos parte de suas memórias, para sua filha adotiva,
Isabel, e seus sucessores. É preciso que não se perca o que aconteceu, e como
aconteceu. O fato de Inés saber ler e escrever, conhecimento que “pertencia”
apenas aos homens, e ela mesma escrever seus relatos, já a coloca frente ao seu
tempo.
A personagem Inés transforma sua realidade. Quebra tabus impostos a seu
sexo. Allende a representa como uma mulher que exige que os homens a respeitem,
enquanto um ser com vontades próprias, capaz de lutar por sua sobrevivência e
tomar decisões que influencie a vida de todos. Inés foi responsável pela formação da
cidade de Santiago, participando ativamente da maioria das construções realizadas
no período. Acabou por tornar-se uma mulher rica e independente. E respeitada,
principalmente.
A obra de Allende não deixa de ser um marco sobre a luta das mulheres em
relação ao domínio dos homens nos espaços públicos e privados. É uma quebra
nessa situação, quase que dogmatizada, de que as mulheres só devem ocupar os
espaços que a elas foram designados – por um homem, é claro. Porém, não se
pode deixar de notar que, embora muito autônoma na maioria das vezes, a figura de
Inés Suarez é sempre associada a um homem. É um homem que move sua vinda a
América, é um homem que permite sua permanência. Embora muito desprendida
dos conceitos da época, a sensação que fica é de que toda a vida de uma mulher
bem como suas decisões sempre estará ligada a um homem.
Ainda assim, ao descrever todas as violências vividas por Inés, só por ser
mulher, e todos os caminhos que a mesma teve de percorrer para ser aceita, mesmo
sendo mulher, como um ser humano igual a qualquer outro, descreve quase que o
cenário atual, sobre o imaginário social, apesar da obra ser ambientada em plena
colonização da América.

3 O Imaginário Social

Para BronislawBaczko (1985, p. 299), a associação do imaginário social e os


problemas que isso gera, tem feito rápida carreira nos estudos de ciências humanas.
388

Acabou, pois, que esses estudos se tornaram um tema na moda.

A existência e as múltiplas funções dos imaginários sociais não deixaram de


ser observadas por todos aqueles que se interrogavam acerca dos
mecanismos e estruturas da vida social e, nomeadamente, por aqueles que
verificam a intervenção efectiva e eficaz das representações e símbolos nas
práticas colectivas, bem como na sua direção e orientação.

Há relevância ao estudo de modo que se entenda que as representações e


símbolos intervêm no coletivo. O imaginário é produzido espontaneamente, porém a
produção de representações coletivas, a partir do que é imaginado, é um tanto
restrita, por conta das hierarquias sociais. O imaginário social pode ser algo criado
arbitrariamente, sendo manipulável. O homem tem por necessidade, criar uma
imagem de si e do outro.

O princípio que leva o homem agir é coração, são as suas paixões e


desejos. A imaginação é a faculdade específica em cujo lume as
paixões se acendem, sendo a ela, precisamente, que se dirige a
linguagem enérgica dos símbolos e dos emblemas. (BACZKO, 1985,
p. 301)

Não há uma representação única sobre uma única coisa, mas sim uma
representação que é escolhida arbitrariamente a fim de significar outras e definir
sobre as práticas: “As representações coletivas exprimem sempre, num grau
qualquer, um estado do grupo social, traduzem a sua estrutura actual e a maneira
como ele reage frente a tal ou tal acontecimento, a tal ou tal perigo externo ou
violência interna” (BACZKO, 1985, p. 306).
As relações sociais não estão apenas no físico e material. Para a psicanálise,
Baczko (1985, p. 309-310) afirma que a imaginação é uma atividade própria do
sujeito a fim de ajustar o mundo quanto as suas necessidades e conflitos. O autor
aponta:

O imaginário social é, deste modo, uma das forças reguladoras da


vida colectiva. As referências simbólicas não se limitam a indicar os
indivíduos que pertencem à mesma sociedade, mas definem também
de forma mais ou menos precisa os meios inteligíveis das suas
relações com ela, com as divisões internas e as instituições sociais
etc. [cf. Gauchet 1977]. O imaginário social é, pois, uma peça
efectiva e eficaz do dispositivo de controle da vida colectiva e, em
especial, do exercício da autoridade e do poder.
389

O que unifica os imaginários sociais é sua fusão entre valores e informações,


onde se opera no e por meio do simbolismo. O imaginário social informa acerca de
uma realidade e também instiga a comportar-se de determinada maneira (BACZKO,
1985, p. 311).
O imaginário social chega na forma de discurso, onde as representações
coletivas se reúnem numa linguagem, sendo que sua influência sobre as
mentalidades depende de como irá difundi-los (BACZKO, 1985, p. 311-313).
As representações do mundo social, apesar de se esforçarem por diagnósticos
fundados na razão, acabam determinadas por interesses dos grupos que as criam.
Assim, é importante ter em mente que os discursos estão intimamente ligados a
posição de quem faz uso dos mesmos. As percepções que se tem do social jamais
são neutras (CHARTIER, 2002, p. 17).
Entender as representações é importante ao ponto de se fazer compreender a
maneira como um grupo expõe sua concepção de mundo, seus valores e seu
domínio. Assim, cada grupo descreve a sociedade como a pensa ou como gostariam
que fosse.
Para Roger Chartier (2002, p. 20) representações podem ser entendidas de
duas formas:

[...] por um lado, a representação como dando a ver uma coisa ausente, o
que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é
representado; por outro, a representação como exibição de uma presença,
como apresentação pública de algo ou alguém.

De modo que, ainda para o autor, a representação serve para tornar algo
ausente em algo presente na mentalidade: “Na primeira acepção, a representação é
o instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente
substituindo-lhe uma ‘imagem’ capaz de repô-lo em memória e de ‘pintá-lo’ tal como
é” (CHARTIER, 1991, p. 184).
O imaginário deve ser entendido enquanto visão de mundo. Não apenas como
uma visão de mundo, mas uma representação do mesmo. E entender que as
representações são também produtos dos interesses e da bagagem cultural de seus
agentes.
A Literatura não deixa de ser um bom material a quem pretende trabalhar com
história das mulheres. O objeto seria espelhado pelo discurso do historiador. É
quando a subjetividade começa a ser considerada, é que o uso de tipos de fontes é
390

questionado. O romance fala do cotidiano, do trivial. Para o leitor, existe a


possibilidade de identificação com o personagem. Há também uma expectativa na
realidade das ficções, muitos escritores se aproveitaram do fato para justificar suas
demoras em publicações alegando que precisavam de tempo para pesquisar as
personagens.
Pensando nas obras literárias em si, recorre-se a Nicolau Sevcenko (1985),
mesmo se tratando de obras literárias brasileiras do período republicano: “Ambas
procurando condensar toda a substância social e cultural, captada pela experiência
de vida dos autores, através de sua forma particular de inserção nas mudanças [...]”.
O título da obra de Sevcenko já faz menção a visão do autor sobre a Literatura.
Literatura como missão, não apenas fruto da imaginação de autores, de diversão,
mas como parte da sociedade ao qual está inserida.

A literatura não é uma ferramenta inerte com que se engendre idéias ou


fantasias somente para a instrução ou deleite do público. É um ritual
complexo que, se devidamente conduzido, tem o poder de construir e
modelar simbolicamente o mundo como os demiurgos da lenda grega o
faziam (Sevcenko, 1985, p. 233).

Em Inesdel alma mia, Isabel Allende representa o que para ela, são as
mulheres, seu cotidiano, suas dificuldades. Por outro espectador, a descrição
poderia ser diferente, outras características seriam levadas em consideração. A
forma como representa as suas personagens femininas pertence tão somente a
Allende. É a partir de suas experiências, de suas impressões, é que partem suas
personagens, tanto feminina quanto masculina. Isso não significa que suas
personagens sejam meramente ficcionais.
Porque são imaginadas por Isabel Allende, não significa que não existam, não
deixam de ser uma representação de mulheres do mundo. O que quer dizer que, ao
falar de mulheres, Allende não fala de todas para todas, mas não deixa de
representar uma parcela delas.
Isabel Allende, ao falar especialmente de mulheres, cria um perfil das mesmas.
Mas a que mulheres a autora se refere? Condiz com a classe social e espaço em
que está inserida, o que se leva a perguntar se essas mulheres se sentem
pressionadas ou excluídas pelas mesmas razões. E de que forma, também, essas
mulheres não deixam de ser representações da própria autora, de sua realidade...
Essas questões que nos tocam...
391

O romance moderno, quando surge no século XVIII, cria a polêmica de como


irá afetar a realidade, considerando que, no momento de seu surgimento, os leitores
poderiam não conseguir diferenciar entre ficção e realidade. A proximidade do
romance com a realidade traz confusões quanto ao caráter ficcional do mesmo,
transformando-o, assim, em uma guia de conduta. O romance moderno começou a
prestar-se o papel de um tratado de moral (AUGUSTI, 2000, p. 92).
Quanto às questões de a literatura escrita por mulheres ser associada às lutas
pelos direitos iguais aos homens, ao trabalho, a questões como casamento e filhos.
Importante enfatizar que Allende é expoente. Ela consegue se destacar num meio
que, até então, só homens tinham sucesso.
As obras de autoria feminina têm como propósito uma tomada de consciência
de seu papel social. Além da questão social, ao se ter mulheres escrevendo sobre
mulheres, o caráter social da mulher, ainda deve pensar-se na questão de que
essas escritoras criam sua autonomia, independência financeira, ao se ter um
trabalho. São as relações estabelecidas pelo social que acabam por permitir essas
mudanças.
Outra característica da autora da obra aqui estudada é o fato de ser
considerada uma das pioneiras em criar, em suas obras, um quadro com uma
mulher urbana, independente, e revolucionária. Isabel Allende caracteriza
personagens femininas que são ousadas e que, apesar de amaldiçoarem o fato de
serem mulheres, não se sentem vitimizadas. Allende representa desde aquelas que
quebram tabus até as que, por comodismo ou por não saberem como, se fixam nos
padrões estabelecidos a elas.

Conclusão

Ao se analisar a busca das mulheres pela garantia de seus direitos, sempre


fora pela igualdade. Homens já têm seus direitos assegurados, já que por muito
tempo a nomenclatura foi Declaração dos Direitos do Homem, porém quando se
trata de mulheres, o primeiro grande embate se encontra na prova de seu valor
enquanto ser humano, sujeito de direito.
Os direitos fundamentais das mulheres vieram a partir de muitas lutas, como
todos os direitos fundamentais. E somente nas últimas três décadas, é que de fato
há uma discussão real e direta sobre esses direitos.
392

Entende-se aqui que os direitos humanos só são possíveis a partir de lutas, já


que sempre que um direito fundamental nasce alguém deixou de ter o seu. Com
isso, vale lembrar que geralmente, o direito que o outro perde é o de escravizar,
discriminar, violentar...
Num mundo hipotético, os direitos fundamentais não seriem nem necessários,
já que resguardam de situações que ninguém deveria passar. Existem alguns
direitos que são óbvios, porque nem precisariam ser normatizados já que a
igualdade, por exemplo, deveria ser enxergada de maneira óbvia, na qual sendo
todos seres humanos e tendo estes o direito a igualdade, qualquer ser humano,
homem ou mulher, deveria ser tratado de forma igual. Mas como já dizia Paulo
Freire, nem sempre o óbvio é tão óbvio assim, sendo que então, os direitos
fundamentais se fazem necessários para garantir minimamente, através de muitos
embates, especialmente no caso das mulheres, que a violência contra a mesma não
seja mais entendida enquanto algo natural, fruto de hábitos e costumes, como se
estes fossem e devessem ser imutáveis.
O Direito não consegue cercear o comportamento, conforme se pretende, uma
vez que, ao proibir que a violência contra a mulher aconteça, ele não altera o
imaginário social. Ou seja, mesmo que os direitos humanos possam ser entendidos
como naturais, se há a criação de um imaginário social, de que a violência contra
mulher é recorrente e natural, os direitos fundamentais não conseguem ultrapassar
essa realidade. É preciso entendê-los enquanto frutos da força motriz de lutas, não
só para sua existência, mas para também uma alteração de um panorama social.

Referências Bibliográficas

ALLENDE, Isabel. Inês del alma mia. 1ª Ed. Buenos Aires: Areté, 2006.

AUGUSTI, Valéria. O caráter pedagógico-moral do romance moderno. IN: Cadernos


Cedes, ano XX, n. 51, novembro/2000

BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. Enciclopédia Einaudi, vol. 5, Antropos-


homem. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1985, p. 303.
CHARTIER, Roger. Textos, impressos e leituras. IN: A História Cutural: entre
práticas e representações. Tradução Maria Manuela Galhardo.Algés: DIFEL, 2002.
393

__________. O mundo como representação. IN: Estudos avançados 11(5), 1991.

BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004.

FACHIN, Zulmar. Teoria dos Direitos Fundamentais. IN: Curso de Direito


Constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro: FORENSE, 2012, p. 231-235.

SEVCENKO, Nicolau. Confronto Categórico: a Literatura como Missão. IN:


Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República.São Paulo: Brasiliense, 1985.

TAQUARY, Eneida Orbage de Britto. O direito vivo de Eugen Ehrlich. IN: Univ. JUS,
Brasília, n. 19, p. 203.211, jul./dez. 2009.
394

GRUPO DE TRABALHO 7

ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR, EDUCAÇÃO JURÍDICA E


EDUCAÇÃO POPULAR

Ementa: O desafio é a construção e consolidação da assessoria jurídica popular


(AJP) como um marco teórico-metodológico. Serão aceitos trabalhos que tratem dos
seguintes temas: relações entre a AJP, educação popular e educação jurídica;
experiências sobre extensão popular e pesquisas; a educação jurídica na
perspectiva popular; a advocacia popular e o debate sobre os serviços jurídicos
alternativos, as práticas jurídicas insurgentes e a advocacia estratégica em direitos
humanos.

Coordenadores: Ricardo Prestes Pazello e Guilherme Cavicchioli Uchimura


(guilherme.uchimura@hotmail.com)
395

O PROJETO DE UMA EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA POR MEIO DAS


ASSESSORIAS JURÍDICAS UNIVERSITÁRIAS POPULARES: UMA ANÁLISE A
PARTIR DA PRÁXIS DO NÚCLEO DE ASSESSORIA JURÍDICA ALTERNATIVA NO CURSO DE

DIREITO DA UESB

Breno de Araújo Assis194


Cláudio Oliveira de Carvalho195

Resumo: A proposta do artigo é analisar o ensino jurídico por meio de duas


vertentes: como uma educação emancipatória pode servir a um processo de
desalienção dos sujeitos sociais e, dentro disso, como as Assessorias Jurídicas
Universitárias Populares (AJUPs) redefinem o lugar social da universidade.
Alicerçado nas teorias que sustentam essa extensão popular, o Núcleo de
Assessoria Jurídica Alternativa (NAJA), AJUP da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia, faz esse enfrentamento dentro da academia na busca por uma
ressignificação do saber jurídico ao apropriar-se da dogmática jurídica no sentido de
discutir e disputar o direito. O presente estudo busca mostrar, tendo como suporte o
trabalho desenvolvido pelo NAJA, o papel das AJUPs como um projeto de extensão
popular de caráter emancipatório, ao aliar as Teorias Críticas do Direito e a proposta
de educação de Paulo Freire.
Palavras-chave: Educação emancipatória; Direito insurgente; Contrarrevolução
jurídica.

Introdução

As condições que forjaram a estrutura encontrada nos cursos de Direito, na


atualidade, remontam à implantação dos primeiros cursos no Brasil, no início do
século XIX. As faculdades de Direito, naquele período, ao mesmo tempo em que
194
Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Integrante do
NAJA -Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa. Bolsista de Iniciação Científica CNPq. E-mail:
brenoassis.law@gmail.com
195
Doutor em Desenvolvimento Regional e Urbano. Mestre em Direito Ambiental. Professor Adjunto
da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Integrante do NAJA - Núcleo de Assessoria
Jurídica Alternativa e do GPDS - Grupo de Pesquisa Direito e Sociedade. E-mail:
ccarvalho@uesb.edu.br
396

eram guardiãs dos ideais liberais, consistiam nas instituições formadoras da


burocracia estatal. A história da formação dos bacharéis confunde-se, assim, com a
formação do Estado Nacional. Essa vinculação, portanto, tem reflexos diretos na
direção que o Direito tomou na defesa dos interesses da burguesia e, numa acepção
contemporânea, da classe dominante.
Em meio à inconformidade, de um Direito que, em sua origem visa a coesão
social, posteriormente apoderado pelas classes hegemônicas como um meio de
perpetuação do status quo econômico e social, que esse trabalho se funda. Na
tentativa de entender como um projeto de educação emancipatória, materializada na
práxis das Assessorias Jurídicas Universitárias Populares, pode levar àinsurgência
de um Direito que dialoga com as demandas sociais, que se propõe esse diálogo
com o ensino jurídico.
Num primeiro momento, busca-se entender qual a dimensão que a educação
tem numa luta emancipatória que proporcione aos atores sociais a constituição de
uma sociedade menos desigual e mais inclusiva. Para tanto, a pesquisa funda-se na
proposta de educação apresentada por Paulo Freire, de que o conhecimento se
constrói de forma ativa num processo que envolve sujeitos conscientes e não
passivos diante da realidade social. Situada dentro da lógica do capital, cabe a esse
trabalho, também, entender qual a relação que o Direito estabelece com as
estruturas sociais de poder, de modo à educação servir à reprodução de
determinados ideais dominantes.
Seguidamente, o trabalho se desenvolve com a abordagem teórica que
fundamenta a existência das AJUPs dentro de um sistema educacional tecnicista
hegemonicamente alheio às demandas sociais. A partir da práxis desenvolvida pelo
Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa, o trabalho apodera-se dos discursos de
resistência e insurgência constituídos por esse projeto de extensão comunitário na
busca por uma ressignificação do saber jurídico. Entendendo que o Direito é fruto
das relações sociais, é objetivo desse trabalho levar a uma reflexão de como essa
ciência pode ser apoderada pelos agentes coletivos na busca por sua emancipação.

1 A educação na perspectiva da luta emancipatória

A educação é o meio pelo qual o homem questiona, se reconhece e toma


consciência de seu papel social dentro da sociedade, pois “como experiência
397

especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo”


(FREIRE, 1996, p. 98). Ela é, ao mesmo tempo, reprodutora e desmascaradora da
ideologia dominante, servindo a essa ideologia como uma prática imobilizadora e
ocultadora de verdades. Nesse sentido, o conhecer não pode se constituir como um
ato através do qual o sujeito recebe, passivamente, o conhecimento cristalizado que
o outro lhe impõe. O conhecimento não é dado, mas construído a partir da posição
de sujeito frente à realidade, e é somente dessa forma que essa pode ser
transformada.
Seguindo a lógica de uma política neoliberal, que pressupõe a não intervenção
do Estado na economia em favor da manutenção do capital, a educação é vista, na
atualidade, como mercadoria, buscando, como fim, a formação de um capital
humano. Nesse sentido, a existência dos cursos jurídicos reflete a intenção de
formar quadros administrativos da burocracia estatal, ao promover o distanciamento
do estudante da realidade social, na busca pela manutenção do status quo
econômico e social. Para Freire (1996, p. 33), transformar a experiência educativa
em puro treinamento técnico é“amesquinhar o que há de fundamentalmente humano
no exercício educativo: o seu caráter formador”.
Uma prática educacional crítica, nesse sentido, envolve um movimento
dinâmico, dialético, entre o pensar e o fazer. Seguindo essa lógica, a construção do
conhecimento jurídico deve se dar por meio das experiências, de situações práticas
que coloquem o educando em frente ao objeto estudado, possibilitando que esse
possa reconhecer-se, também, como objeto dentro do sistema. É a partir do
reconhecimento no/do outro, de suas demandas e necessidades, que se efetivam
práticas transformadoras na sociedade.
Constata-se uma predileção pela perspectiva positivo-normativista na
constituição do método de ensino, de modo que o modelo pedagógico promove um
ensino tecnicista, por meio de aulas expositivas seguindo a legislação. O estudante
de Direito transforma-se, assim, em um operador de leis e códigos, na medida em
que não compreende a norma, mas a assimila. Essa construção de conhecimento
estática e não questionadora, mas assimilativa, segue a lógica do capital, pois ao
internalizar a norma, internaliza-se também as ideologias dominantes, bases para a
produção das regras jurídicas. Nesse sentido, Lyra Filho (1999, p.30) afirma que as
normas constituem, para o positivismo, o completo Direito
398

que, no caso, se trata das normas da classe dominante, revestindo a


estrutura social estabelecida, porque a presença de outras normas -
de classe ou grupos dominados - não é reconhecida, pelo
positivismo, como elemento jurídico, exceto na medida em que não
se revelam incompatíveis com o sistema - portanto, único a valer
acima de tudo e todos - daquela ordem, classe e grupos
prevalecentes.

A perspectiva positivo-normativista presente nos cursos jurídicos vão de


encontro com as bases que fundamentam uma Educação Popular. Sob o amparo da
teoria de FerdinandLassale, que traça, no livroA Essência da Constituição, como a
lei deve perquirir o seu fim, o modelo perpetuado nas salas de aula privilegiam um
saber distante das demandas reais do povo. O entendimento de Lassale (2013),
num sentido abrangente, é de que a Constituição jurídica, que não passa de uma
mera folha de papel, não pode dissociar-se da Constituição real, sob pena de tornar-
se ilegítima. As leis, nesse sentido, constituir-se-iam como resultado das forças
sociais que são configuradas em um documento escrito, não podendo perder a sua
essência. Desse modo, o estudo desse objeto deveria servir ao mesmo fim, pois o
estudo do Direito não pode estar dissociado das demandas sociais.
Entendendo as classes populares como detentoras de um saber não
institucionalizado, a práxis de uma Educação Popular visa integrar essa parcela da
sociedade à margem da sociedade do capital. Ao construir uma educação a partir
dos conhecimentos do povo, inserindo o homem na “problematização do homem-
mundo” (FREIRE, 1980, p.33), possibilita-se a tomada de consciência da realidade.
A conscientização, assim, permite aos indivíduos se apropriarem criticamente da
posição que ocupam no mundo a fim de transformá-lo.
Centrada numa pedagogia liberal-tradicional, o professor é entendido como
única fonte do saber e os alunos são meros ouvintes das aulas, não participando do
próprio aprendizado. A sala de aula, torna-se, assim, um local para a submissão ou
repetição de discursos. Ao estudante não cabe apenas constatar o que ocorre, mas
também intervir como sujeito de ocorrências. Desta maneira, uma educação
libertária só encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o oprimido
tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de
sua própria destinação histórica (FREIRE, 2015).

Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa


incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do
que simplesmente a de nos adaptar a ela. É por isso que não me
parece possível nem aceitável a posição ingênua ou, pior,
399

astutamente neutra de quem estuda (...). Ninguém pode estar no


mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. (FREIRE,
1996, p. 77)

A estrutura vigente nos cursos jurídicos brasileiros remonta à educação


bancária, observada por Paulo Freire, na qual “o saber” é uma doação dos que se
julgam sábios aos que julgam nada saber. Essa doação baseia-se em um
instrumento da ideologia da opressão: a absolutização da ignorância, que se
encontra sempre no outro. Assim, “a educação se torna um ato de depositar, em que
os educandos são os depositários e o educador, o depositante” (FREIRE, 2015, p.
80).
Sob uma análise marxiana, o Estado tem por finalidade a realização da
liberdade. O indivíduo, assim, só deveria cumprir a lei na exata medida em que ela é
a formalização de uma norma natural que a antecede, de modo que uma lei que não
observasse os princípios do direito natural – a liberdade e a igualdade –, nunca
poderia ser reconhecida como uma lei verdadeira (NAVES, 2014). Apreende-se que,
para Marx, o direito e a ideologia jurídica são elementos que funcionam para a
reprodução das relações de produção capitalistas, de modo que

Levantá-los como bandeiras na luta contra o capital ou erigi-las em


princípios norteadores de uma sociedade comunista produz o efeito
exatamente inverso: o reforço da dominação burguesa. Em Marx (e
Engels) a luta contra o capital é, simultaneamente, luta contra o
direito, e o ataque ao direito, o não reconhecimento de um direito
“popular” ou “socialista”, condições necessárias para uma efetiva
ultrapassagem da sociedade burguesa. (NAVES, 2014, p. 32)

O direito, para Marx, está vinculado a um modo de organização da


subjetividade humana que permite a circulação das mercadorias em geral. Tendo
em vista que o capital determina o Estado, este constitui-se enquanto aparelho da
classe burguesa, que existe mesmo que a burguesia deixe de exercer o domínio
direto do Estado. O seu caráter de classe passa a ser considerado como um
“atributo objetivo” e não como o resultado da “influência direta” exercida pela
burguesia sobre o aparelho estatal, de modo que o Direito também pode ser
compreendido sem o recurso ao conceito de “vontade” (de classe) (NAVES, 2014).
Ao Estado é dado o monopólio de produzir o Direito, por meio da legislação. A
lei, objeto fundamental de estudo das ciências jurídicas, assume o papel de
mantenedora da ordem social, pois é, seguindo a lógica da organização estatal,
dotada de neutralidade e objetividade. Para Lyra Filho (1999, p. 37), esse é um
400

artifício que põe no Estado sempre a paz social e o interesse da comunidade, de


modo que
para conservar aquele mito da “neutralidade”, afirma que o Direito é
apenas uma técnica de organizar a força do poder; mas, desta
maneira, deixa o poder sem justificação, como que nu e pronto a
ferrar todo o mundo, mas de calças arriadas, com perigo para sua
dignidade; portanto o mesmo Kelsen acrescenta que a força é
empregada “enquanto monopólio da comunidade” e para realizar “a
paz social”. Desta maneira, opta pela teoria política liberal, que
equipara Estado e comunidade, como se aquele representasse todo o
povo (ocultando, deste modo, a dominação classística e dos grupos
associados a tais classes). Chama-se, então, de “paz social” a ordem
estabelecida (em proveito dos dominadores e tentando disfarçar a
luta de classes e grupos).

Enquanto agentes sociais, constituímo-nos como seres integrados ao sistema


apesar da busca pelo distanciamento deste. A esse respeito Gramsci (1957 apud
MÉSZAROS, 2008) defende que a forma que contribuímos para a formação de uma
concepção de mundo dominante pode ser no intuito de “manutenção” ou de
“mudança”. Tomando a história como um processo dialético vivo, fruto da
intervenção de uma multiplicidade de indivíduos, uma mudança social significativa
decorre das posições adotadas pelos indivíduos, tomados como de “manutenção” ou
de “mudança” do status quo estabelecido.
O rompimento da lógica do capital na educação tem como pressuposto a
“necessidade de modificar de uma forma duradoura, o modo de internalização
historicamente prevalecente” (MÉSZAROS, 2008, p. 52). A principal função da
educação formal, na contemporaneidade, induz a um conformismo generalizado nos
modos de internalização, tendo em vista a substituição da reflexão pela reprodução.
Através de uma mudança radical no modo de internalização opressivo,
historicamente prevalecente, o domínio do capital pode ser quebrado.
O processo de aprendizagem se situa, em maior parte, fora das instituições de
educação formais. De modo a colocar a parte formal, aprendida e não internalizada,
em prática, necessita-se de uma concepção mais ampla de educação, pois, como
define Paracelso (1951 apud MÉSZAROS, 2008), “a aprendizagem é a nossa
própria vida”. Enquanto seres inacabados (FREIRE, 1996), constituímo-nos como
seres condicionados, que tem o “destino” não como algo dado, mas algo que pode
ser feito, na medida em que somos sujeitos constituintes da História.
Ao romper com a concepção tradicional de educação, que, em vez de libertar o
homem, o reduz a coisa, objeto, o modelo pedagógico libertador passa a se
401

constituir enquanto ferramenta de transformação da estrutura posta. Possibilitar a


ação e a reflexão verdadeiras, para além das salas de aula, redefine o lugar do
homem diante da realidade. Esse, que antes ocupava a posição de objeto de suas
ações, se transforma em sujeito ativo, que constrói, de fato, o conhecimento a partir
de uma posição curiosa em relação ao mundo, pois “o homem é um ser de “práxis”;
da ação e da reflexão” (FREIRE, 1980, p.28).

2 A ressignificação do saber jurídico

O pensamento jurídico ocidental tem, na consolidação de suas bases, a forte


influência das ideias do jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen, materializadas na
suaTeoria Pura do Direito. Nessa obra, Kelsen desenvolve sua teoria jurídica
positiva, redimensionando o Direito enquanto uma ciência pura e naturalmente anti-
ideológica. Parte dessa teoria a premissa de que a norma é o elemento fundamental
que rege o ordenamento jurídico, ficando, restrita à ela, os meios de mediação de
conflitos. No esforço para a manutenção da objetividade do pensamento científico,
Kelsen “recorre a um seguro sistema dogmático, solidificado no substrato da lógica
formal, erradicando toda sustentação da base social e prática política” (WOLKMER,
2001, p. 165).
Essa teoria, fundada na proposição de que a norma é o único objeto da ciência
jurídica, provoca, claramente, um distanciamento entre o Direito e a realidade social,
pois “como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. [...]
Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve
ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito.” (KELSEN, 1988, p. 1).
Dentro desse normativismo, o austríaco não dá resposta às demandas sociais, pois
a ciência do Direito relaciona-se somente com o direito positivado. Contudo, o Direito
não é alheio ao contexto social no qual está inserido, de modo que não se pode
defini-lo como universal, nem tampouco a-histórico.
Os agentes sociais, nessa conjuntura, se mostraram como atores fundamentais
na contra-hegemonia de um sistema que não se adequava, em sua plenitude, à
organização do Estado brasileiro. Os movimentos sociais, entre as décadas de 60 a
90, tiveram uma contribuição fundamental no atravessamento do período e
constituição de novas demandas e novas formas de diálogo entre os atores sociais e
o poder judiciário. Esse processo, entendido por Vladimir LUZ (2005) como
402

gradativo, e não linear, deu margem à formação e estruturação das entidades


denominadas como Assessorias Jurídicas Populares.
As Assessorias Jurídicas Populares constituem-se enquanto espaços que
visam a prestação de apoio jurídico à comunidade, direcionando-se às populações à
margem do contrato social. Esses instrumentos dão importância à ação e defesa de
direitos coletivos em articulação com movimentos sociais e organizações populares.
Ressalta-se, portanto, o seu caráter contestador que, ao mesmo tempo, integra as
demandas sociais ao Direito, pois possibilita que esse sejautilizado como um
instrumento de emancipação, considerando-se suas limitações dentro de uma
estrutura regida pelo capital.Como analisa Luiz Otávio RIBAS (2016, p. 377), “o
Direito faz parte do problema, mas pode ser utilizado, já que a luta de classes
envolve ação política reivindicatória e contestatória”.
Analisando o significado da expressão “assessoria jurídica popular”, para LUZ,
a designação “popular”

refere-se não apenas a um critério instrumental para selecionar e


definir o perfil dos beneficiários dos serviços legais, mas representa,
em essência, uma opção ético-política, na medida em que está
enraizada numa compreensão da alteridade, do outro que demanda
por “socorro”, mas que também exige o reconhecimento de sua
dignidade e de sua humanidade ferida nas suas mais comezinhas
necessidades fundamentais.(2005, p.179)

Nesse sentido, as Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs), que


se distinguem da advocacia militante quanto aos atores sociais que as mediam, os
estudantes, despontam-se como meio possível para uma renovação epistemológica
do Direito e para a conquista da universidade pela comunidade. Fundamentada no
art. 207 da Constituição Federal de 1988, cabem à universidade obedecer ao
princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. A extensão, aqui
proposta por meio das AJUPs, concebe-se como uma extensão universitária
popular, pois coloca “o conhecimento nas suas dimensões de teoria e prática sejam
executados juntos, com e para o povo” (PEREIRA, 2011, p. 153).
As ações dos serviços de apoio jurídico popular trazem uma questão pertinente
quanto à dimensão de atuação, cabendo, uma necessária distinção entre os
serviços de assistência e os serviços de assessoria jurídica. Os serviços de
assistência são materializados, na universidade, por meio dos escritórios-modelo,
que prestam serviços jurídicos sob um viés institucional por meio de um padrão
403

verticalizado, despolitizado e individualizado. O conhecimento, nesse modelo é


sacralizado, de modo a não estimular entre ambos, assistente e assistido, a mútua
troca de conhecimentos. Acerca dessa atuação, LUZ (p. 175) aponta para “o baixo
potencial emancipatório de ações direcionadas exclusivamente à Assistência
Jurídica Gratuita”.
Os serviços de assessoria, por outro lado, preocupam-se com a
desmistificação do saber jurídico, por meio da democratização do Direito às classes
excluídas socialmente. Nesse modelo, os serviços são prestados de maneira
horizontalizada, com uma atenção às demandas coletivas, por acreditar no seu
potencial emancipatório. Estabelece-se, assim, como uma forma de assessoria
atenta aos conflitos estruturais e de intervenção mais solidária e politizada. Para
Boaventura de S. SANTOS (2011, p. 61), na medida em que contribuem para uma
práxis diferenciada e dialógica, “as assessorias universitárias populares
desempenham um importante papel não só na reconstrução crítica do direito, da
justiça e do ensino jurídico hegemônicos, mas também na redefinição do lugar social
da universidade.”
Entender a AJUP como uma prática de direito insurgente reporta a uma
necessária análise de como o Direito, a partir de uma análise marxista, é fruto de
relações contraditórias que se materializam numa sociedade dividida em classes.
“Em Marx (e Engels) a luta contra o capital é, simultaneamente, luta contra o direito”
(NAVES, 2014, p. 32), pois o direito organiza a subjetividade humana de modo a
permitir a circulação de mercadorias em geral. O homem se torna, assim, objeto do
direito “em decorrência de sua subordinação real ao capital” (p. 87). O direito se
firma como ideologia por estar inserido num processo de regulação das contradições
sociais, sendo essas indispensáveis para a reprodução da sociedade de classes. E,
é por meio dos ditos operadores, que o direito “opera eficazmente a força e o
consenso necessários para garantir a continuidade do tipo de sociedade da qual ele
se originou” (ALMEIDA, 2016, p. 177).
A partir dessa identificação, do direito enquanto ideologia, que se pode
compreender qual a função e fim a que servem essas representações no campo
jurídico. Ao situar-se, aparentemente, numa mediação de conflitos a partir de um
distanciamento do âmbito social, “apresentando esta regulação como “neutra” e
indiferente à dominação de classe, confere legitimidade à reprodução desta
totalidade” (ALMEIDA, p. 178). Desse modo, o direito deve ser entendido não como
404

uma categoria universal, mas como uma forma de regulação das relações sociais. A
“sua vinculação com os “interesses da classe dominante” resulta numa ruptura
ideológica com a ideia do direito enquanto uma expressão dos interesses públicos
universais” (SOARES; PAZELLO, 2014, p. 487).
Sendo assim, as Assessorias Jurídicas Universitárias Populares relacionam-se
às práticas que se colocam ao lado dos sujeitos subalternizados e da classe
trabalhadora no enfrentamento das demandas dos movimentos sociais. Esses
modelos, dentro da estrutura tecnicista e hegemônica dos cursos de Direito, servem
como catalizadores de um processo de consciência que leva à formação dos
estudantes forjados nas lutas cotidianas. Ana Lia Almeida entende, dentro das
discussões levantadas na sua tese de doutorado196, a partir de uma entrevista com
uma das integrantesdo Serviço de Apoio Jurídico Universitário da UFBA, que o
serviço de assessoria é visto como um intruso dentro da faculdade. Nesse sentido,
ela problematiza “o modo como os trabalhadores [...] são considerados intrusos no
direito, como se não pudessem ter acesso às benesses garantidas por este
complexo das relações sociais” (2016, p. 167).
Ao aproximar o saber institucionalizado da academia à experiência e ao saber
popular, as AJUPs se colocam, também, no lugar da desmistificação do saber
jurídico. Esse saber, fundado na assimilação de letras de lei, da operação de
códigos e de doutrinas, de pouco serve à comunidade se não transformado. A
acessão aos institutos jurídicos, pela comunidade que pouco tem, ou inexiste,
conhecimento nesse campo, deve ser mediada pelos juristas. Para tanto, cabe a
esses um compromisso com a realidade na qual estão inseridos, o que corresponde
justamente ao que esse projeto extensionista se destina.
Conjugando-se o âmbito das análises com a estrutura social na qual estamos
inseridos, as AJUPs servem ao desafio de ter, para além da teoria, a práxis como
um parâmetro fundamental para o marxismo. O direito insurgente, assim, verifica-se
“onde há práxis social com a potencialidade/latência de negação, mesmo que
periférica, da forma mercantil” (SOARES; PAZELLO, 2014, p. 498). Essas práticas,
no domínio das Assessorias nascem do diálogo entre o amparo técnico e a ação,
aderindo, também, a frente pedagógica (educação popular) e a organizativa

196
“Um estalo nas faculdades de direito: perspectivas ideológicas da Assessoria Jurídica Universitária
Popular” (2015)
405

(organização política).
O saber jurídico, institucionalizado dentro da Academia, é ressignificado na
medida em que passa a servir a um fim social. A Universidade, enquanto lugar de
debates, discussões e formação política precisa estar integrada à sociedade da qual
faz parte. O conhecimento construído dentro das salas de aula devem estar à favor
da população demandante. O Direito, enquanto ciência que permite a resolução de
conflitos e demandas, pode ser usado, assim, por meio das AJUPs como
instrumento à favor das minorias e movimentos marginalizados que não tem acesso
à justiça. A justiça é entendida aqui não com o acesso ao Poder Judiciário, mas
como ao respeito ao devido processo legal, à não violação dos direitos desses
demandantes e da resolução efetiva do conflito, não se restringindo ao campo legal.

2 O Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa dentro de uma constelação de


relações emancipatórias

O Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa (NAJA), AJUP da Universidade


Estadual do Sudoeste da Bahia, surge em um período de mobilização universitária,
em 2011. Em meio a uma greve estudantil e docente, cerca de 15 estudantes se
mobilizaram para discutir as condições do curso na Universidade, o ensino jurídico e
a importância da implantação de uma AJUP como uma forma de devolver à
universidade o seu fim social. A partir desse acontecimento que as atividades do
NAJA foram ocorrendo e se consolidando, de modo a configurar, na atualidade, uma
extensão popular de caráter emancipatório.
O Núcleo, ao dedicar-se às demandas coletivas, colocando os movimentos
sociais, ao mesmo tempo, como objeto de pesquisa e atores sociais, alia a luta
social com a institucional. Entendendo que os movimentos populares são
constitutivos de classes, as ações fomentadas tem um caráter contestador e
insurgente dentro da estrutura na qual se insere. São movimentos assessorados
pelo projeto, o Movimento Sem Terra – MST e o Movimento dos Trabalhadores e
Trabalhadoras por Direitos na região Sudoeste do Estado da Bahia.
Para além do assessoramento aos movimentos sociais, o NAJA constitui-se
também como um espaço de formação política dentro da Universidade. Ao ir de
encontro com a apatia e objetividade que, pretensamente, construíram sobre
aspráticas jurídicas, o Núcleo é um lugar de pesquisa militante e apoio aos
406

movimentos sociais, por meio de atividades que levantam discussões sobre o lugar
que essas minorias se constituem na sociedade. Essas atividades se materializam
em forma de oficinas, Jornadas, capacitações, grupo de estudos e encontros para
discussão.
Nesse sentido, a promoção dos cursos de formação para a comunidade, não
só acadêmica, compreende uma das mais importantes estratégias de engajamento
político e enfrentamento interno do NAJA, na universidade. Tendo em vista que
projeto se destina não somente aos acadêmicos dos mais diversos cursos, da UESB
ou não, mas também a qualquer membro da comunidade, esse espaço de formação
é entendido como uma oportunidade de expansão de um saber jurídico
desmistificado e ressignificado. Semestralmente, os cursos se organizam na
dinâmica de discutir o ensino jurídico hegemônico, a estrutura reproduzida pelo
curso de Direito, novas articulações frente às demandas populares, além de
questionar qual o espaço que as Assessorias Jurídicas Populares ocupam na
universidade e, principalmente, sua importância para a comunidade.
Para além do “mito da neutralidade”, resquício do positivismo kelseniano, é por
meio dos cursos de formação que levanta-se um embate ideológico claro dentro da
academia, na busca por um direito contestador, que se posiciona numa postura
compromissada com as causas da classes trabalhadora e demandas dos
movimentos sociais. É importante reiterar o modo com que a assessoria, num
procedimento diferente da assistência, mediam essas demandas, por meio deuma
troca de conhecimentos, não querendo falar por aqueles que buscam a resolução de
conflitos. A atuação da Assessoria não é autônoma, de modo a desenvolver-se de
acordo com a vontade dos demandantes.
A preocupação de GayatriSpivak, na obra Pode o subalterno falar?(2010),
remete-se diretamente com a dinâmica das AJUPs, e do NAJA,por conseguinte, na
medida em que busca-se, por meio do assessoramento, ouvir as vozes que são
silenciadas. O subalterno, para Spivak, são as camadas mais baixas da sociedade
constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação
política e legal. Desse modo, ela atenta para o perigo de se construir o outro e o
subalterno como objeto do conhecimento, de modo a falar por eles. O NAJA, nessa
orientação, entende essa preocupação, pois busca colocar os movimentos sociais,
organização de sujeitos subalternizados, no lugar de agentes sociais que são
ouvidos, se articulam e criam estratégias na disputa pelos seus direitos.
407

O processo de contestação da “ideologia oficial”, dentro de um curso


hegemonicamente constituído pela burguesia e para a burguesia, ocupa um dos
principais embates do NAJA como fruto de um direito insurgente dentro de uma
sociedade subordinada ao capital. O Direito, que numa visão marxiana, está ligado
diretamente ao caráter de classe, “organiza a subjetividade humana, fazendo o
homem viver na aquiescência e no conformismo com a sua própria subalternidade”
(NAVES, 2014, p. 48). As leis, desse modo, reproduzem a ideologia dominante que
as sustentam, cabendo às instituições, também, esse papel de legitimação de uma
ordem posta. E é no âmago dessa estrutura de dominação que as AJUPs se
articulam num processo de conscientização por meio do engajamento numa práxis
libertadora.
Na contracorrente de um Direito voltado para as classes dominantes, o NAJA
entende o direito como fruto das relações sociais, devendo destinar a sua atuação
para o povo, que resiste frente às arbitrariedades de um Direito seletivo. Desta
maneira, cabe uma discussão sobre as oficinas do Teatro do Oprimido dentro dos
cursos de formação. A epistemologia das práticas teatrais, reformuladas por Augusto
Boal (1991), convergem com a postura pretendida nas atividades desenvolvidas pelo
projeto, tanto no espaço acadêmico quanto na comunidade, pois ele entende que o
teatro sempre esteve vinculado ao povo.
O Teatro do Oprimido de Augusto Boal se situa numa pedagogia que busca
estratégias que gerem mudanças, conscientizem e promovam a libertação dos
indivíduos. Esses encontram-se inseridos num processo de sociabilidade que
homogeneíza as diferenças e sucumbe frente às opressões. Desse modo, Boal,
tomando como base o teatro, identifica no espectador, tido como sujeito passivo
dentro do espetáculo, uma capacidade de ação e integração, ocupando o lugar de
“um ator, em igualdade de condições com os atores, que devem por sua vez ser
também espectadores” (1991, p. 180). Assim, o autor defende a necessidade de
uma libertação do espectador, que deve se insurgir às visões de mundo impostas,
não cabendo mais a este uma postura passiva.
Ao trazer a oficina do Teatro do Oprimido para os cursos de formação, procura-
se colocar os sujeitos diante de situações que os levem a pensar na postura que
lhes caberão em situações que vão além da resolução de litígios 197. Ademais,

197
Litígio é um termo jurídico que é utilizado quando alguma demanda é colocada em juízo e há
408

objetiva-se, também, mostrar, a partir da prática do teatro, como o NAJA busca


desenvolver suas atividades, no rompimento da postura de espectador frente às
arbitrariedades, colocando-se junto àqueles desassistidos pelo Estado. Ao
desmistificar a ciência jurídica, rompendo práticas hegemônicas estabelecidas,
aproximando o estudante do povo, ouvindo as demandas e buscando, juntos, a
resolução de conflitos, o estudante promove a sua emancipação, assim como
aqueles assessorados. Parafraseando a ideia de Boal (1991, p. 181) de que “o
espectador se libera: pensa e age por si mesmo!”, o NAJA busca levar o estudante a
se liberar dos modelos tradicionais impostos e se colocar numa práxis libertadora,
que se materializa em práticas conscientes e críticas, numa postura contra-
hegemônica.
A atuação da Assessoria no momento da promoção do aprendizado jurídico na
comunidade assessorada aporta-se no método pedagógico consagrado por Paulo
Freire, para quem o conhecimento não se constitui por meio da transferência de
saber, mas na comunicação, no diálogo. A educação, assim, exige uma interação
com a realidade, lugar no qual os sujeitos históricos vão exercer uma prática
transformadora. Para ser verdadeiramente humana, a educação deve ser
apreendida como libertadora, tendo como preocupação básica “o aprofundamento
da tomada de consciência que se opera nos homens enquanto agem” (FREIRE, p.
76). Essa metodologia afasta-se da ideia de ensino depositário hegemônico vigente
na estrutura educacional da sociedade, ao aproximar a Universidade, fonte de
saberes científicos, à comunidade.
Outro pilar que sustenta essa estrutura de atuação é a Teoria Crítica do Direito,
que decorre de movimentos gestados no final dos anos 60 a partir de uma forte
influência de teses de inspiração neomarxista e de contracultura. A teoria crítica
intenciona-se, assim, na emancipação do homem da sua condição de alienado,
através da problematização deste na história. A articulação desse conteúdo teórico
com a práxis das Assessorias Jurídicas tem “servido para que os segmentos
marginalizados tomem a devida consciência para articular a estratégia de rupturas,
bem como das desmistificações das ilusões e das falsas verdades dominantes”
(WOLKMER, 2001, p. 10).
A efetivação do uso do Direito nas ações das Assessorias Jurídicas, com a

divergência entre as partes da ação.


409

constituição de um direito insurgente, perpassa um processo de contrarrevolução


jurídica. Essa contrarrevolução é entendida como uma mudança de paradigma que
se insere numa ótica revolucionária dentro do campo jurídico, predominantemente
constituído como um regulador das relações sociais na manutenção da sociedade
do capital. Nesse sentido, tem-se, na concepção do Boaventura, o uso de
instrumentos hegemônicos, o Direito, para fins não hegemônicos, as demandas que
o campo não alcança na efetivação da justiça. Esse processo se dá quando “a
ambiguidade conceptual que é própria de tais instrumentos seja mobilizada por
grupos sociais para dar credibilidade a concepções alternativas que aproveitem as
brechas e as contradições do sistema jurídico e judiciário” (2011, p. 36).
O sociólogo português Boaventura de S. Santos, na obra Para um novo senso
comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática (2005), traça uma
perspectiva pertinente à análise aqui feita sobre o NAJA enquanto Assessoria
Jurídica de caráter emancipatório. Para isso, SANTOS desmistifica o poder
colocando-o como indissociável de uma relação de poderes que se dá na forma de
uma constelação. Nesse sentido, ele entende que a emancipação é tão relacional
como o poder contra o qual se insurge.
Destarte, o Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa, a partir da concepção
de SANTOS (2005), concebe-se enquanto relação emancipatória, reconhecendo
que “não há emancipação em si, mas antes relações emancipatórias, relações que
criam um número cada vez maior de relações cada vez mais iguais” (p. 269). O uso
do Direito torna-se, assim, não instrumento de libertação, mas deve ser tomado
como importante meio de contestação. Ao colocar-se ao lado do povo, no
amortecimento do impacto do Estado sobre as classes populares e trabalhadoras, o
NAJA passa a se integrar numa “constelação de práticas e de relações
emancipatórias” (p. 269).

Considerações Finais

Permanece uma crise na universidade brasileira, de modo que o ensino jurídico


não está alheio a essa. O modelo de educação vigente nas ditas Academias de
ciência, produz conhecimentos a partir de uma supervalorização do estudo do objeto
em consonância com um distanciamento deste. O problema se encontra justamente
nesse aspecto, pois a construção do conhecimento se dá a partir do diálogo e da
410

interação com a sociedade. A educação não pode se constituir como uma


transferência de saberes, mas sim como um encontro de interlocutores na busca do
entendimento daquilo que se propõe a compreender. Esse processo tem que se
desenvolver na busca da constante libertação do homem e sua constituição
enquanto ser histórico que pensa enquanto age.
As Assessorias Jurídicas Universitárias Populares enquadram-se como
ferramentas fundamentais para a dessacralização do saber jurídico e,
consequentemente, a emancipação dos sujeitos. Por meio desse projeto de
extensão, busca-se numa pedagogia libertadora, que dá voz aos sujeitos
subalternizados, mediar interesses das classes populares e dos trabalhadores,
colocando-se na insurgência de um sistema excludente que coaduna com a
marginalização de uma parcela da sociedade desassistida pelo Direito. É importante
salientar, desse modo, que a práxis das AJUPs são fundamentais, partindo de uma
análise marxista, pois consegue transcender a teoria e se estabelecer como uma via
contestadora da estrutura Estatal vigente.
A importância do Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa dentro da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, bem como na comunidade externa,
para as comunidades assessoradas por esse projeto, está no processo de
democratização do saber. As práticas desse Núcleo, mais que o de uma assessoria
jurídica, tem um caráter contestador importantíssimo no enfrentamento do
conservadorismo latente no curso de Direito. Através das mais variadas discussões
levantadas no ambiente acadêmico, o NAJA traz para os espaços institucionalizados
vozes silenciadas dos diversos movimentos sociais subalternizados.
As AJUPs, portanto, contribuem para a superação dos métodos exegéticos
tradicionais ao promover uma formação universitária interdisciplinar por meio do
engajamento político dos acadêmicos para com as demandas populares.
Compreendemos que a universidade só redefine seu lugar social quando se pintar
de povo e levar o saber institucionalizado para fora dos muros da instituição, com o
propósito de emancipar política e ideologicamente tanto os assessores como os
assessorados.

Referências Bibliográficas

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411

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413

EMANCIPAÇÃO HUMANA E ORGANIZAÇÃO POPULAR COMO INSTRUMENTOS


DE BUSCA POR DIREITOS FUNDAMENTAIS

Marília Coletti Scarafiz198

O presente trabalho constitui um relato de experiência pessoal, elaborado a


partir de um ano de experiência como integrante do LUTAS-AJUP e da Comissão de
Jataizinho, que engloba a emancipação humana trabalhada de maneira coletiva
entre nós, graduandos, e os moradores do bairro Jardim Bela Vista, localizado na
cidade de Jataizinho/PR. Através deste, apresento as perspectivas pessoais acerca
do processo de ocupação e da correlata luta por direitos fundamentais
constantemente negados a determinadas classes sociais – a exemplo do direito à
moradia; bem como, a experiência relativa à tentativa de educação popular e
supracitada emancipação humana.
Este relato, ao expor uma vivencia pessoal concreta enquanto coadjuvante do
processo de conquista de dignidade humana, através da obtenção da moradia e sua
árdua regularização fundiária, tem por objetivo estimular a concepção dos
participantes do GT-7 a respeito dos referidos assuntos; isto é, sobre a importância
da construção da coletividade e da intensa capacitação humana, que leva à
autonomia. Além disso, pretende-se salientar a sensibilidade e criticidade social.

198
Discente do curso de Direito da UEL, integrante ativa do projeto LUTAS-AJUP da Universidade
Estadual de Londrina;e, por conseguinte, da Comissão de Jataizinho.E-mail: mascarafiz@gmail.com.
414

OCUPAÇÃO JARDIM BELA VISTA: A CONSTRUÇÃO POPULAR E A EXTENSÃO


UNIVERSITÁRIA.

Gabriel Vinicius199
Júlia Vieira200

Ambos acreditam na emancipação e construção de


um Direito Vivo, através da Assessoria Jurídica
Popular, pois os vivenciam na ocupação em
Jataizinho/PR.

Resumo

O presente estudo busca narrar e divulgar, de forma histórica e documental, o


trabalho desenvolvido pelo projeto integrado Lutas – AJUP, conjuntamente com a
Associação de Moradores, perante a Ocupação do Jardim Bela Vista, localizada na
cidade de Jataizinho/PR. O trabalho advém da necessidade de se criar um registro
material, ou seja, uma bibliografia sobre e para os moradores da ocupação
eintegrantes do projeto, a fim de proporcionar-lhes uma memória e identidade com o
processo de regularização do terreno. Visa, da mesma forma, expor à comunidade
regional a magnitude desta luta social. Ainda, este trabalho também proporciona o
compartilhamento de experiências entre as Assessorias Jurídicas Populares, como
um exemplo de atuação universitária na construção desta inovadora prática jurídica.
Logo, tem-se como objetivos específicos: relatar o surgimento da ocupação, seu
desenvolvimento, a criação de uma associação como órgão representante, o auxílio
do Lutas enquanto Assessoria Jurídica, e a atual conjuntura da regularização, de
maneira a representar as vidas que ali se instalaram e seus esforços para a
conquista do direito à moradia digna. Com base nos estudos de Guilherme Boulos, a
questão da moradia no Brasil será tratada de forma pontual, uma vez que a
prioridade é narrar os eventos ocorridos na Ocupação Bela Vista. Para tanto, o
199
Discente do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. Membro ativodo projeto
integrado LUTAS – Assessoria Jurídica Universitária Popular. E-mail: silvagabrielvinicius@gmail.com.
200
Discente do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. Membro ativa do projeto
integrado LUTAS – Assessoria Jurídica Universitária Popular. E-mail: juliaviera.vr@gmail.com.
415

trabalho se baseará em pesquisas bibliográficas, jornalísticas e, principalmente, nas


vivências dos ocupantes e dos integrantes do Projeto “Lutas – AJUP”.
Palavras-chave: Assessoria Jurídica Popular. Educação Popular. Moradia digna.

Introdução

A ocupação Jardim Bela Vista, localizada em Jataízinho – Paraná, remonta há


10 anos, quando ex-trabalhadores de uma falida cerâmica, em conjunto com outras
famílias desabitadas da cidade, passaram a ocupar um terreno de 72.600 m². Desse
momento em diante, o presente trabalho abordará o processo de luta e resistência
por moradia digna dos ocupantes que ali se instalaram.
Trata-se, portanto, de um relato com caráter documental, formado com as
experiências vividas e compartilhadas pelos ocupantes e os membros do Lutas –
AJUP (do qual os autores fazem parte). O objetivo é a formação de um registro que
permita, tanto aos moradores do Jardim Bela Vista, quanto aos futuros membros do
Lutas, vislumbrarem a história vivida por aqueles que atuaram na ocupação.
Para isso, antes do relato propriamente dito, a fim de melhor contextualizar a
conjuntura do local, será realizada uma breve introdução ao Lutas – AJUP e uma
indicação sobre o problema da moradia (abordado aqui apenas para apontar a razão
de ser das ocupações urbanas).

1 Desenvolvimento

1.1 O Grupo Lutas – Londrina

O “Lutas – Assessoria Jurídica Universitária Popular” é um projeto integrado de


ensino, pesquisa e ênfase em extensão cadastrado sob o número 2053 na Pró-
Reitoria de Extensão (PROEX) da Universidade Estadual de Londrina. Conforme a
essencialidade desta característica, tem como objetivo aproximar colaboradores às
demandas sociais da Região Metropolitana de Londrina, a fim de ressignificar a
atuação da advocacia junto aos movimentos sociais.
Na consecução de seu objetivo, o projeto utiliza de uma formação voltada ao
estudo das teorias críticas do Direito e do Estado; concilia teoria e prática aopasso
que estende suas atividades à comunidade, auxiliando os atores sociais na
416

resolução de questões de cunho fundiário.


Nesse sentido, baseado na educação e assessoria jurídica popular, o Lutas
não atua pelos membros das comunidades; mas sim, exerce papel coadjuvante
contribuindo para a construção e fortalecimento do protagonismo histórico/social
daqueles. Dessa maneira, conforme a metodologia adotada, defende-se uma
formação autônoma dos agentes externos para que estes se reconheçam em sua
luta; sobretudo, como sujeitos capazes de solucionar problemas individuais ou
coletivos, sem a intervenção de práticas com caráter assistencialista.
Ademais, unindo o Ensino e a Extensão, o projeto também é capaz de
promover pesquisas aprofundadas sobre os movimentos sociais e atuação própria
da advocacia popular, sendo o presente trabalho um exemplo. Logo, uma vez
vinculado à práxis, a investigação se expande ao passo que abrange uma
autoanalise dinâmica acerca do que é o Lutas enquanto assessoria popular, com
propósito de reinterpretá-lo e superar seus limites.

1.2 O Problema da Moradia

Sabe-se que a moradia é direito social fundamental garantido a todos pela


Constituição Federal em seu artigo 6º. No entanto, como afirma Boulos (2012), a
moradia é mais tratada como mercadoria do que propriamente como direito. Isto se
dá pois, no capitalismo, não é importante desenvolver políticas públicas em uma
área social se estas não fornecerem lucro a determinados grupos econômicos –
nesse viés observe-se os contratos realizados com empreiteiras para a consecução
do Programa Minha Casa, Minha Vida.
Dessa forma, o déficit habitacional, definido por Boulos (2012, p.13) como “a
quantidade de casas que faltam para atender todos aqueles que precisam”, persiste,
e só é alterado quando há interesses diversos que não o da efetivação de um direito
constitucionalmente expresso.
Dados da Fundação João Pinheiro (2016) indicam que, em 2014, havia um
déficit de 6,068 milhões de unidades habitacionais, sendo que 83,9% desse valor
corresponde à necessidade de famílias com renda de até 3 salários mínimos. Aquele
valor corresponde a 5,315 milhões de unidades urbanas e 752.810 rurais.
Por outro lado, e aqui se expressa a contradição, no mesmo período, no país
como um todo, haviam 7,241 milhões de imóveis desocupados, dentre os quais
417

5,701 milhões em áreas urbanas e 1,539 milhão em zonas rurais. Ou seja, supre-se
a necessidade por unidades habitacionais apenas se utilizando de domicílios
desocupados.
Tal realidade se deve à um dado muito presente na sociedade capitalista
contemporânea: a especulação imobiliária. A alta valorização de imóveis torna
impossível que um trabalhador urbano possa ter acesso à uma moradia de
qualidade próxima ao seu trabalho, mandando-o para a periferia e mantendo os
centros para uma determinada classe privilegiada.
Isso ocorre por vários motivos, dentre eles a infraestrutura levada pelo Estado
à determinadas áreas, fazendo com que o valor dos imóveis, e consequentemente
dos impostos, se elevem. Isso diminui o público que tem poder aquisitivo de compra
em uma área determinada, bem como expulsa aqueles que já residem no local, e
que, todavia, não conseguem sustentar o aluguel ou os impostos decorrentes da
propriedade.
Ocorre que, dada a quantidade de imóveis vazios com vistas a especulação e o
número de famílias sem moradia, muitas destas se veem na necessidade de ocupar
esses locais que não cumprem sua função de habitação, ainda que de forma
precária.
Segundo o último Plano Estadual de Habitação de Interesse Social do Paraná,
que desenvolve estratégias de planejamento sobre o setor habitacional até o ano de
2023, o município de Jataizinho/PR conta com o total de 3.131 domicílios. Todavia,
nesta proporção, há aproximadamente 10% de déficit habitacional absoluto e
relativo. Ainda, 10% destas mesmas moradias – seja domicílios ou assentamentos,
também apresentam condições subnormais ou precárias, caracterizando um alto
índice de déficit qualitativo por carência ou deficiência de infraestrutura básica.
Portanto, sob este contexto, desenvolve-se o caso da Ocupação Jardim Bela
Vista, que será relatada a seguir.

1.3 Histórico da Ocupação Bela Vista – Jataizinho

O município de Jataizinho, localizado no norte do Paraná junto às margens do


Rio Tibagi, carrega em sua história o título de capital nacional da cerâmica. Isso se
deve a dois fatos: o primeiro deles, a qualidade do solo, argiloso e pedregoso,
chamado “Brunizem avermelhado”, próprio para utilização em olarias e cerâmicas; e
418

o segundo, a “época de ouro” da cidade, por volta de 1970, quando municípios da


região passavam por um grande crescimento e precisavam suprir-se de tijolos,
telhas e outros materiais.
O crescimento da produção das olarias, ainda na década de 30, se intensificou
devido ao desenvolvimento de cidades próximas que se beneficiavam do cultivo do
café, além da construção da ponte sobre o rio Tibagi, em 1932, que acelerou o
crescimento urbano de Londrina e região. À frente, em meados de 1950, o êxodo
rural aumentaria ainda mais a produção de artefatos de argila na cidade.
Porém, a construção da Usina de Capivara, em Porecatu-PR, levou ao
represamento de áreas utilizadas para a extração de argila em Jataízinho, afetando
fortemente a produção local. Concomitantemente, o novo empreendimento
significava mais empregos na região e, por consequência disso, fazia surgir um novo
ciclo de desenvolvimento, aumentando mais uma vez a demanda pelos produtos das
cerâmicas. Por fim, uniu-se a essa série de fatores, os conjuntos habitacionais
construídos pelo BNH – Banco Nacional da Habitação, que chegaram a 20.514
unidades na região norte do Paraná.
A DionisioStriquer& Filhos Ltda., razão social da Cerâmica Bela Vista,
estabeleceu-se na cidade em 1933, ainda como olaria, com uma pouca produção
manual de telhas. Na década de 70, graças aos motivos supramencionados, a olaria
passou por uma expansão, aumentando sua produção por meio de máquinas e se
tornando uma verdadeira cerâmica.
No entanto, em meados de 1980, o país passou por uma profunda recessão, o
que afetou os investimentos do Banco Nacional da Habitação e, por sua vez, reduziu
a procura pelos materiais produzidos nas cerâmicas de Jataizinho. Além disso,
contribuiu a concorrência dos tubos de PVC, mais práticos e com melhores custos,
contra as de argila produzidas pelas cerâmicas.
Dessa forma, as dívidas da cerâmica referentes à compra de máquinas para
sua modernização, não foram adimplidas. Do mesmo modo, os 72 funcionários da
empresa não receberam seus salários e outros créditos trabalhistas ainda que ela
continuasse a operar. Assim, em meados de 1990, a Cerâmica Bela Vista abriu
processo falimentar.
419

1.3.1 Os Ex-empregados da Cerâmica e a Ocupação do Terreno

Durante o referido processo falimentar, os ex-trabalhadores da cerâmica,


organizados por meio do Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias da Construção
e do Mobiliário de Jataizinho e Ibiporã (Sintracom), ajuizaram reclamatórias
pleiteando os créditos trabalhistas que não haviam recebido.
Segundo o advogado do Sindicato e docente da Universidade Estadual de
Londrina, Renato Lima Barbosa, a cerâmica possuía três terrenos de três alqueires
cada, dos quais, primeiramente, conseguiram a penhora de dois no final da década
de 90; contudo, estes não supriram a integralidade da dívida trabalhista. Ainda,
Renato relembra que para a execução de um deles, foi necessário requisitar
judicialmente sua reintegração de posse, uma vez que estava ocupado por uma
única família.
No mesmo sentido – mas em maiores proporções, oterceiro terreno da
cerâmica, de 72.600 m², passou a ser ocupado por moradores do município que
sofriam com os problemas de habitação referidos anteriormente. Incluíram-se
também na ocupação, ex-trabalhadores da empresa que ainda aguardavam o
recebimento de seus créditos. Utilizando também dos materiais que formavam a
propriedade da cerâmica, cerca de 150 famílias passaram a ocupar o terreno que
ganhou o nome de Jardim Bela Vista.
Buscando a regularização fundiária da ocupação, em 2008 os moradores se
uniram para formar a primeira Associação de Moradores, e reivindicar infraestrutura
e saneamento básico para o local. Por ser uma ocupação de longa data, a maior
parte das casas é de alvenaria possuindo ligação de energia elétrica e água potável
legais. No entanto, carecem de iluminação pública, rede de esgoto, serviço postal e
pavimentação asfáltica.
Diante desta precária infraestrutura pública, a fim de adquirir uma
representatividade coletiva, compôs-se a Associação de Moradores. Esta, como
pontapé inicial, produziu a arrecadação de fundos a fim de realizar o serviço de
topografia do local, orçado em R$ 5.000,00. A intenção era reivindicar junto ao poder
público a regularização fundiária do local, bem como dividir o terreno em lotes para
cada família ocupante. Ocorreu que, apesar de iniciado o trabalho do topógrafo, o
então presidente da Associação reteve o dinheiro para si e mudou-se da cidade, não
sendo encontrado posteriormente. Assim, a topografia não foi concluída e,
420

desacreditados, os moradores desativaram a Associação.


Tendo em vista que a dívida trabalhista da cerâmica persistia, o SINTRACOM
pleiteou na justiça do trabalho a penhora de um terceiro terreno, este sendo o
mesmo local da ocupação. Em 2014, o advogado do sindicato, Renato Lima
Barbosa, obteve conhecimento de que a área era ocupada por grande número de
famílias. Como docente da UEL, sabia também da atuação do Lutas em demandas
urbanas e, buscando uma “transação” entre as partes, pediu o auxílio do projeto.
Chegou-se ao acordo, aprovado em assembleia pelos ex-trabalhadores, de que
estes arrematariam o terreno com seus créditos trabalhistas, sendo que a
Associação de Moradores do Jardim Bela Vista, reativada, procederia à compra do
terreno e à regularização fundiária do local. Avaliado em R$ 1.089.000,00, o
Sindicato deu lance de 60% desse valor na hasta pública (R$ 653.800,00), tendo
sido considerado lance vil pelo juiz da 5ª Vara do Trabalho de Londrina.
Assim, os exequentes interpuseram recurso por agravo de petição ao Tribunal
Regional do Trabalho da 9ª Região nos autos 0608900-07.1994.5.09.0664. Discutiu-
se a legalidade da arrematação procedida pelos ex-trabalhadores da cerâmica. Os
colaboradores do Lutas, entregaram memoriais nos gabinetes dos desembargadores
da Seção Especializada que julgava o recurso, cientificando-os da situação do
terreno e das famílias. Além disso, o docente da Universidade Estadual de Londrina,
César Bessa, deu suporte à causa dos moradores da ocupação por meio de
sustentação oral na audiência de julgamento do agravo de petição.
A decisão proferida em acórdão pela Seção Especializada do TRT da 9ª
Região, sendo relator o desembargador Célio Horst Waldraff, foi a do provimento do
recurso dos exequentes. Dessa forma, manteve-se a arrematação do terreno por
parte dos ex-trabalhadores, com as devidas correções, sendo o valor final de R$
800.000,00.
Neste ínterim, o Lutas entrou em contato com a prefeitura do município de
Jataizinho buscando soluções para os problemas de infraestrutura e saneamento
básico do local. A resposta do prefeito foi de que, a princípio, a administração
pública nada poderia fazer por se tratar de propriedade particular ocupada pelos
moradores. Dessa forma, os colaboradores do projeto iniciaram diálogo com a
COHAPAR, em agosto de 2014, com o intuito de obter informações sobre a
possibilidade de regularização da área por meio de parceria entre a prefeitura e o
órgão do estado. Este afirmou a possibilidade do acordo, desde que houvesse
421

predisposição da administração municipal. Assim, as informações foram repassadas


ao prefeito, Elio Batista da Silva, que se comprometeu a contatar a COHAPAR, o
que não se concretizou até o presente momento.
Perante as informações prestadas e o descomprometimento por parte órgãos
públicos; em falas significativas, alguns dos moradores expressaram sentirem-se
tratados como “lixo”, tanto por morarem sem qualquer infraestrutura pública; como
por ainda serem considerados invasores. Todavia, notaram que a indiferença no
discurso e resoluções administrativas se tornam contraditórias quando apenas os
reconhecem como pessoas em dois momentos: para o pagamento de boletos ou
para votarem nas eleições municipais.
Dessa forma, em outubro de 2014, a fim de promover um novo engajamento
coletivo que atendesse aos interesses da comunidade ocupante, a Associação de
Moradores do Jardim Bela Vista foi reativada, com uma nova Diretoria
Executiva,objetivando firmar o contrato de compra e venda com os ex-trabalhadores
da cerâmica, bem como proceder às diligências para a regularização fundiária do
local. Para isso, contou com a assessoria do Lutas – Assessoria Jurídica
Universitária Popular.

1.3.2 Momento atual

Com a Associação reinstituída, os trabalhos se focaram em encontrar meios


para realizar o pagamento do terreno ao Sindicato. O valor da venda para a
Associação foi estabelecido na mesma quantia da arrematação, qual seja, R$
800.000,00. No entanto, haviam alguns problemas a serem resolvidos referentes ao
registro da Associação, como a mudança do domicílio da mesma e a transferência
do Estatuto Social da Comarca de Uraí-PR para a de Ibiporã-PR, da qual Jataízinho
faz parte.
Tendo isso feito, começaram as discussões para determinar os valores que
seriam atribuídos aos lotes divididos pelas famílias ocupantes do terreno. Para isso,
seria necessária uma topografia do local que determinasse quantos lotes haviam ali
e para que se procedesse à definição de qual família ocupava qual lote. Assim,
buscou-se dialogar com o mesmo topógrafo que havia começado o serviço anterior
(de 2008), pois foi quem orçou o trabalho na quantia mais favorável à situação das
famílias, no valor atualizado de R$ 6.500,00.
422

Convocou-se uma Assembleia Geral Extraordinária, em setembro de 2015,


para que fosse votada a realização do serviço de topografia, repassando aos
moradores o valor que seria cobrado de cada família para a execução dos trabalhos.
Foi aprovado por unanimidade, sendo que cada uma das 150 famílias da ocupação
deveria contribuir com o valor de R$50,00 (total de R$ 7.500,00), permitindo, assim,
que se arcasse com as despesas do topógrafo e se formasse um fundo de caixa da
Associação. Temia-se que os moradores não fariam a contribuição no prazo
estabelecido de duas semanas, principalmente por ainda estarem desacreditados
pelo que ocorreu na primeira gestão da Associação. Porém, tanto a Diretoria
Executiva quanto o Lutas se surpreenderam com a adesão, de forma que foi
arrecadado pouco mais de R$ 7.000,00.
Com mais esse passo dado, e com as informações obtidas, chegou-se ao
número aproximado de 200 lotes, isso porque várias famílias estão dividindo áreas
maiores entre seus entes, o que não permitiu ter uma quantidade determinada a
princípio. De qualquer forma, foi possível definir que um lote com padrão 10x20 m²
terá o valor de R$ 3.380,00. Para o cálculo dos demais terrenos irregulares, através
do valor do m² que consiste em R$16,90, o Lutas contabilizou por meio de regra de
três simples a proporcionalidade dos preços de cada lote.
Para o pagamento, seria necessário a abertura de uma conta corrente no nome
da Associação com o intuito de emitir boletos bancários aos responsáveis por cada
lote. Logicamente, haveriam custos para a manutenção da conta, emissão dos
boletos, pagamento de impostos decorrentes da arrecadação, contratação de um
contador para administrar as operações, entre outros.
Questionou-se da possibilidade de inadimplência dos moradores, a que a
Associação chegou à conclusão de que haverá notificação ao inadimplente quando
do primeiro mês sem pagamento, sendo que no segundo mês haverá uma conversa
entre o morador, a Associação e o SINTRACOM, para que sejam tomadas as
devidas providências com base no caso concreto. A decisão foi nesse sentido a fim
de se evitar a cobrança de multas devido a condição financeira de muitas das
famílias residentes do local, e também para que não houvessem medidas
precipitadas, como a reintegração de posse.
Assim, para oficializar as deliberações sobre o pagamento, alterou-se o
Estatuto Social da Associação com um título provisório tratando especificamente da
compra do terreno da ocupação. Neste título estão previstos todos os encargos a
423

que se submetem os moradores, bem como os dados referentes à conta bancária, a


publicidade desta, a forma e o prazo estabelecidos para o pagamento.
O novo Estatuto foi levado para apreciação em Assembleia Geral
Extraordinária, convocada em julho de 2016, ocasião na qual aprovou-se as
disposições por unanimidade e ficou estabelecido que os moradores se
comprometeriam com a compra no prazo de 3 anos. Também ficou definido que
uma nova Assembleia seria realizada visando a assinatura dos contratos com a
Associação. Esta assinará um compromisso de compra e venda com o em momento
futuro.
Os termos de compromisso, instrumento firmado entre a Associação e os
moradores visando o pagamento dos lotes, renderam meses de trabalho para sua
assinatura. Diversas foram as reuniões realizadas para que os ocupantes tivessem a
oportunidade de individualizar seu terreno e saber o valor deste. Não obstante,
durante os trabalhos, inúmeros problemas começaram a aparecer, principalmente
com relação às medidas dos lotes constantes na topografia.
Assim, o Lutas – AJUP e a Associação se uniram para fazer um mutirão com
vistas a recalcular a área de determinados terrenos ocupados em que se tinha
dúvidas quanto ao seu real tamanho. Terminado esse trabalho, que também se
desdobrou em vários dias, os ocupantes assinaram seus termos ou corrigiram os
erros, agora elucidados.
Ademais, em contratempo ao recolhimento dos termos de compromisso, a
convocação de eleição para eleger novos integrantes da Associação fez-se
necessária frente aos percalços com a abertura da conta bancária. Isto porque,
buscando evitar possíveis problemas acerca de integrantes com restrições em
serviços de crédito e viabilizar a documentação destinada à SICREDI - cooperativa
de crédito responsável pela prestação de serviços bancários; a Associação
conjuntamente com a Comissão Eleitoral - formada por moradores voluntários,
promoveram no dia 23 de outubro de 2016, eleição que elegeu legitimamente a
chapa única.
Assim, composta por novos membros sem restrições bancárias, a Associação
finalmente teve sua documentação aprovada junto à SICREDI; e consequentemente,
sua conta bancária aberta.
Procedidas a maioria das assinaturas dos termos de compromisso e abertura
da conta bancária, diligenciou-se para que os primeiros boletos fossem emitidos e o
424

terreno como um todo começasse a ser pago ao SINTRACOM.


Desse modo, numa confraternização organizada pelos moradores, foram
entregues os três primeiros boletos, nos quais contam apenas o valor do lote e um
fundo de caixa da Associação. A ideia dos moradores era fazer do momento uma
celebração do fim de mais uma etapa, além do avanço na questão da regularização
fundiária. Contribuíram para o sucesso do evento, o Movimento dos Artistas de Rua
de Londrina – MARL que promoveu um espetáculo para os moradores, assim como
uma oficina de bonés Abayomi para as crianças.
O Lutas – AJUP, organizada em sua comissão, estabeleceu um grupo de
trabalho para formular o contrato que expressará a venda do terreno total para a
Associação. O instrumento deverá conter a forma de pagamento, que deve começar
a ser realizado, tendo em vista que a arrecadação já começou por parte dos
ocupantes.
Restará, afinal, a tarefa de buscar junto ao poder público meios para a
regularização fundiária do local. Nesse sentido, o Lutas foi oficiado pela 1ª
Promotoria de Justiça de Ibiporã-PR para informar qual o suporte judicial dado pelo
projeto aos moradores. Por ocasião do ofício, chegou ao conhecimento do Lutas a
abertura de um inquérito civil pelo Ministério Público para conhecer das condições
em que vivem os ocupantes do terreno. Constataram que estes não possuem
saneamento básico e infraestrutura, de forma que a referida Promotoria requisitou
ao Município que realizasse a construção de fossas adequadas no local.

Conclusão

A experiência vivida pelos autores do presente trabalho no seio da Ocupação


Jardim Bela Vista proporcionou novos olhares à luta social – na qual se inclui a luta
pela moradia – e ao protagonismo que deve ser mantido pelos atores sociais – lê-se
ocupantes.
O trabalho do Lutas – AJUP, como expressão de uma assessoria popular, foi
no sentido de auxiliar os moradores em suas questões. Em determinadas atividades,
devido à urgência e amadorismo, o Lutas acabou por tomar frente às
responsabilidades da Associação. Todavia, destaca-se que a intenção sempre foi de
propiciar aos moradores consciência e empoderamento de suas capacidades,
muitas vezes menosprezadas pela sociedade e, por consequência disso, por si
425

próprios.
A precariedade na infraestrutura pública ainda persiste. Acontecimentos que
narraram o desabamento de fossa séptica; ou em outro momento, que devido ao
desgaste das ruas/estradas de terra, os fios elétricos acabam por ficar expostos no
solo, podendo ocasionar altas descargas de energia; evidenciam a emergencial
preocupação dos moradores para efetivar a regularização do terreno.
Diante deste anseio, os resultados até então conquistados são primorosos. Os
ocupantes se reorganizaram enquanto Associação de Moradores, reiniciaram o
diálogo com a comunidade e restabeleceram as atividades para a regularização da
área. Embora tenham contado com o apoio da assessoria do Lutas no início,
atualmente gerem os assuntos da Associação de forma autônoma.
De outro lado, os membros do Lutas – AJUP compreenderam o que é a
expressão “luta” para além do que é dito nos livros. Isto porque, vivenciam junto à
comunidade, vendo e ouvindo o que é ser colocado à margem da sociedade e
ignorado pelo Estado, de forma que a Universidade não poderia proporcionar senão
pela prática extensionista.
Espera-se que essa relação entre ocupantes e estudantes rendam ainda mais
frutos do que aqueles vistos até o momento e apresentados no trabalho. A luta na
ocupação Jardim Bela Vista continua, assim como todas as lutas sociais vivenciadas
dia-a-dia por aqueles quem tem nelas seu único meio de fazer valer seus direitos.

Referências

BOULOS, Guilherme. Por que ocupamos?:uma introdução à luta dos sem-teto.


São Paulo: Scortecci, 2012.

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit habitacional no Brasil 2013-2014. 2016.


Disponível em: <http://www.fjp.mg.gov.br/>. Acesso em 23 jun. 2017.

Plano Estadual de Interesse Social do Paraná – PEHIS – PR. 2012.Disponível


em:<http://www.cohapar.pr.gov.br/arquivos/File/Banner%20Pehis/Partes_Pehis_fev_
2013/PEHIS_PARTE2.pdf>. Acesso em 23 de jun. 2017.

SCHWARTZ, Widson. Museu de Jataizinho guarda cerâmicas históricas. 2012.


Disponível em: <http://www.folhadelondrina.com.br/>. Acesso em 02 jul. 2017.

______. Cerâmica que cobriu cidades está em ruinas. 2008. Disponível em:
<http://www.folhadelondrina.com.br/>. Acesso em 02 jul. 2017.
426

______. Quarenta famílias ocupam a área. 2008. Disponível em:


<http://www.folhadelondrina.com.br/>. Acesso em 02 jul. 2017.

STIER, KumagaeKasukuo. Jataízinho: as olarias e cerâmicas na ocupação do


espaço. GEOGRAFIA (Londrina), Londrina, v.1, n.1, p.29-35, dez. 1983.
427

EU, MORADOR DA OCUPAÇÃO JARDIM BELA VISTA


Uma entrevista com Wagner Silva
Júlia Vieira201
Gabriel Vinicius202

Ambos, enquanto integrantes da Comissão de


Jataizinho, trazem ao II Congresso Direito Vivo a
experiência direta de um dos moradores da
Ocupação Jardim Bela Vista.

Em 09 de abril de 2017, em meio à confraternização ocorrida na Ocupação do


Jardim Bela Vista em Jataizinho/PR, tivemos uma conversa despretensiosa com o
atual presidente da Associação dos Moradores do Jardim Bela Vista. Representante
oficial da ocupação, bem como morador ocupante, este levantou seus sentimentos
acerca de sua experiência na luta por moradia.
Nesta oportunidade, decidimos tornar esse diálogo uma entrevista a qual
demonstrasse uma vivência concreta e significativa da realidade social ali
construída. Portanto, primeiramente, desenvolvemos quatro perguntas; e através de
um gravador de celular, coletamos o depoimento de Wagner. Isto porque, no
momento de redigir sua fala, queríamos trazê-la de forma original, sem qualquer
correção ou juízo de valor.
Dessa maneira, o presente trabalho tem por objetivo fomentar a compreensão
dos participantes do GT – 7; ao passo que complementa o registro documental
apresentado no artigo “Ocupação Jardim Bela Vista: a construção popular e a
extensão universitária”.
Assim, em uma entrevista cativante com o morador Wagner, segue a sua
história de luta pelo direito à moradia digna.

201
Discente do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. Membro ativa do projeto
integrado LUTAS – Assessoria Jurídica Universitária Popular. E-mail: juliaviera.vr@gmail.com.
202
Discente do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. Membro ativo do projeto
integrado LUTAS – Assessoria Jurídica Universitária Popular. E-mail: silvagabrielvinicius@gmail.com.
428

A caminhada: primeiros passos na ocupação do terreno.

Gabriel: Wagner, eu gostaria que você nos contasse como chegou até aqui?
Wagner: Meu nome é Wagner, eu cheguei aqui foi por acaso. Meu sogro ficou
sabendo que teria uma invasão aqui no conjunto, logo no começo. Ai ele veio e
pegou dois terreno, pegou um lá em cima e onde estou morando hoje. Eu morava na
casa da minha mãe ainda lá. Ai ele pegou e falou assim: “- Vou dar uma data pra
vocês”. Deu até pra minha mulher. Até na época falei: “ – Adriana, isso não vai
funcionar, porque você vai construir um negócio no terreno dos outros, isso vai dar
problema pra gente no futuro”. Ela disse: “ – Não, vamos meter a cara, vamos
fazer!”. A gente fomo correndo atrás das coisas, compramos o material e fomo
construindo. Chegamos lá no conjunto, não tinha luz e não tem nada. Na verdade,
não tinha e não tem né. Hoje, a gente graças a Deus, nossa casinha tá boa, as ruas
tá boa. Mas, quando a gente entrou mesmo, se você ponhasse um par de chuteira
não andava, de tanto barro que era. Eu, por trabalhar dentro da prefeitura, a gente
trazia pedra na concha da máquina; e ia jogando nas estradas pra poder arrumar.

Holter: altos e baixos da ocupação, de morador à presidência da Associação.

Gabriel: Como foi o desenvolvimento da ocupação junto à Associação dos


Moradores?
Wagner: No começo da outra Associação foi meio conturbado, a gente tinha outro
rapaz, era um cara bom, não é um cara ruim. Só que ele foi se perdendo no meio do
caminho, ai ele acabou usando de má fé com os moradores. Aconteceu um fato
estranho pra gente, o pessoal deixou de acreditar na Associação. Ai, quando o
Renato me chamou pra ir no leilão né, ele chegou e falou assim: “ - Toma essa jaca,
abraça ela aqui, se vira”. Depois ele veio e disse: “- Tem o pessoal do grupo Lutas,
pessoal bom e bacana”. Eu disse: “- Vamo tentar fazer uma parceria”. E foi onde deu
certo, ainoisentramo na Associação com muito custo e muita luta. Sem recurso
nenhum, que a gente não tem até hoje. Sem ajuda de prefeitura, sem ajuda de
ninguém. Só o grupo Lutas e moradores daqui da Associação e do conjunto, que
sempre deram a força e acreditou no trabalho da gente. E a gente conseguiu! Tá
hoje na situação que tá, eu acredito que Associação tem um crédito muito grande
com os moradores”.
429

Contato com o projeto Lutas: a ressignificação das relações sectarizadas.

Gabriel: Neste processo, de que forma a atuação conjunta com projeto Lutas foi
importante?
Wagner: Com o tempo, a gente foi conversando entre o prefeito e o vereador, e o
encarregado onde eu trabalho da firma da prefeitura. A gente conseguiu fazer um
entrosamento através do pessoal do Lutas também né? Que veio em 2014, dar uma
força pra gente, ajudou demais da conta, quer dizer, ajudou praticamente tudo.
Quando o Renato apresentou o Lutas, eu até achei que não ia dar certo. Porque é
diferente, porque eu falo pra todo mundo, o mundo das pessoas que tem ocupação
e da UEL são diferente. Mas ai, a gente se engana, porque a convivência, todo dia
batendo papo e conversa, ai você vai vendo que conhecendo as pessoas que ela
não é daquela forma que a gente sempre pensa. Então, você vai ver que a pessoa é
igual a gente, não muda nada (grifo nosso). Só a distância, a forma de trabalhar.
Mas o trabalho em si, o que nós fizemos, a Associação dos Moradores daqui de
Jataizinho do Bela Vista e o grupo Lutas né, então foi uma parceria muito boa, foi
muito bom pra gente, até a gente agradece muito isso dai. Por causa, sem vocês a
gente não ia conseguir entregar nossos boleto. Não é só você meter a mão na
massa, ir lá fazer, tem que ter assessoria, tem que ter conhecimento, artimanha
daqui e dali, porque advocacia tem que ter jogo de cintura, né? Todo lugar tem que
ter jogo de cintura. Mas é assim, vocês fazendo o trabalho lá, a gente fazendo aqui;
e vamo se ajudando (grifo nosso). Graças a Deus, tá dando certo, o resultado tá ai.
A entrega do boletos hoje, daqui mais uns três meses a gente vai fazer todos os
boletos geral certinho, pronto para os três ano que tem. Cada um ter sua casa, o
direito de moradia que é o essencial pra todo mundo. O sonho de todo brasileiro ter
o direito à sua casa (grifo nosso).

Expectativas: perspectivas futuras ao Direito à Moradia.

Gabriel: O que você espera daqui pra frente?


Wagner: “AH, CARA! Eu espero muita coisa boa. Principalmente, a luz dentro do
nosso conjunto. A rede de esgoto demora um pouquinho mais, o asfalto mais um
pouquinho ainda. Mas hoje, como a prefeitura tá até bom pra trabalhar com ela, a
câmera de vereadores é muito boa, tem interesse em ajudar a população, acredito
430

que nosso bairro vai estar muito organizado, com luz e rede esgoto, quem sabe o
asfalto, mas isso é futuro né? Futuro só à Deus pertence. Vamo lutando, não pode
perder a esperança” (grifo nosso).
431

UM OLHAR NO JARDIM BELA VISTA

Júlia Vieira203
Gabriel Vinicius204

Durante a organização da confraternização na


Ocupação em Jataizinho/PR, registramos nossos
olhares nas várias participações que aderiram à luta
por Direito à Moradia.

Enquanto membros ativos da Comissão de Jataizinho, vinculada ao projeto


integrado Lutas-AJUP, a fim de auxiliar na instrução e documentação do artigo
“Ocupação Jardim Bela Vista: a construção popular e a extensão universitária”;
decidimos registrar a primeira festa ali ocorrida. Assim, no dia 09 de abril de 2017, a
Associação dos Moradores conjuntamente com o projeto Lutas, organizaram uma
confraternização, a qual comemorou a entrega dos boletos para pagamento do
terreno. A fim de celebrar a conclusão desta importante etapa no processo de
regularização da ocupação, o evento contou com a presença dos moradores,
políticos, jornais locais, Movimento dos Artistas de Rua de Londrina – MARL, e
demais colaboradores, bem como oficineiros, que também acreditam na
emancipação coletiva. Assim, as respectivas fotografias apresentam a ocupação
Jardim Bela Vista enquanto um lugar de vivências significativas para construção e
acesso à moradia digna.
A Imagem 1 – “Moradores, PRESENTE!” foi capitada no momento em que os
moradores, durante cerimônia de abertura, exaltaram sua felicidade por relembrarem
os caminhos de luta percorridos. De punhos fechados, braços esquerdos acima; e o
grito “presente, presente, presente”, os três símbolos denotam a sensação de
pertencimento à história da ocupação. Sobretudo, ao passo que todos auxiliaram no
desenvolvimento do movimento social, estes se reconhecem um nos outros; e se
identificam como agentes na mudança de sua própria realidade.

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Discente do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. Membro ativa do projeto
integrado LUTAS – Assessoria Jurídica Universitária Popular. E-mail: juliaviera.vr@gmail.com
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Discente do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. Membro ativo do projeto
integrado LUTAS – Assessoria Jurídica Universitária Popular. E-mail: silvagabrielvinicius@gmail.com
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Imagem 1 – Moradores,PRESENTE!

Fonte: Arquivo pessoal

Em ”A regularização em código de barras” (Imagem 2) há o registro da


entrega dos primeiros boletos. Estes darão início ao pagamento do terreno; e
consequentemente, materializa os encaminhamentos para a regularização fundiária.
Desde os moradores, aos integrantes do projeto, todos esperavam ansiosos pela
chegada desta etapa. Assinar a retirada do título de cobrança foi o mesmo que
assinar a realização de um sonho. Sonho este vivido em coletivo.
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Imagem 2 – A regularização em código de barras

Fonte: Arquivo pessoal

Na terceira fotografia – “Trupe: Surfista do Rio Tibagi”, há o registro da


participação do Movimento dos Artistas de Rua de Londrina - MARL. Nunca antes
ocorrida, esta é a primeira vez que um coletivo de teatro/música, voltado ao fomento
da educação popular, visita a ocupação. Dessa maneira, por meio da tradicional
figura do palhaço, buscou-se proporcionar uma comunicação artística com os
moradores; bem como, aprimorar a prática da educação popular que consiste um
dos pilares da Assessoria Jurídica Popular desenvolvida pelo projeto Lutas.
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Imagem 3 – Trupe surfista do Rio Tibagi

Fonte: Arquivo pessoal

Por fim, a Imagem 4, titulada em “A cara da Ocupação Jardim Bela Vista”, é o


olhar mais significativo de todo o evento. Este retrato, uma releitura da obra
“Operários - 1933” de Tarsila do Amaral, diverge desta ao conter traços e
expressões que representam a satisfação dos ocupantes com o resultado de sua
luta; evidencia-se, também, o caráter de igualdade e união entre todos os
envolvidos. Ademais, denota-se que apesar da conclusão deste ciclo, há ainda a
necessidade de manterem a coesão da comunidade de forma a vencer as últimas
barreiras impostas por um direito “morto”, contra o básico – e vital – direito à
moradia.
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Imagem 4 – A cara da Ocupação Jardim Bela Vista

Fonte: Arquivo pessoal

Palavras-chave: ocupação, participação popular, assessoria jurídica popular, arte


de rua.

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