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HISTÓRIA
DA VIDA PRIVADA
1
NO BRASIL {)
CONDIÇÕES DA PRIVACIDADE
1 NA COLÔNIA
Fernando A. Navais
Organizadora de volume:
LAURA DE MELLO E SOUZA
8~reimpressào
mundo europeu. I
E, de fato, a imbricação das esferas do público e do privado- I
V
é uma das características marcantes da Época Moderna, do Re- ~
Notava as coisas e via que mandava comprar um [rangão, nascimento às Luzes,como transparece praticamente em todo
o volume organizado por Reger Chartier,' Entre a Idade Média
.i. fYl.Nt MG 1): I'l
quatro ovos e um peixe para comer, e nadlllhe traziam, porque
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não se achava na praça, nem no açougue, e, se mandava pedir as feudal, quando no Ocidente cristão se configura propriamente
ditas coisas e outras mais às casas particulares, lhas mandavam. uma "sociedade sagrada': e o mundo contemporâneo burguês e
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Então disse o bispo: verdadeiramente '(Jtle/lésta terra andam as racionalista que se expressa na laicização do Estado, estende-se
essa zona incerta e por isso mesmo fascinante, já não feudal, /~ V
coisas troca das, porque toda ela não é república, sendo-o cada Oc ; \)(,~I(j l/I ·,.ll ':;.:J
casa. , ainda não capitalista, não por acaso denominada de "transição':
Frei Vicente do Salvador, História do Brasil (1500-1627) 1 Encarado em conjunto, esse período da nossa história - a
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história do Ocidente - revelasempre essa posição intermediá- '.so c', e:, ~~
ria; em todas as instâncias, de todos os ângulos, é sempre essa a ,\
!
aponta suas características essenciais: em primeiro lugar, a pro-. cas, como na sociedade feudal; mas a monarquia absolutista, \ Lt; c..; LI;
funda imbricação das duas esferas da eiist~nciá, aqui na Colô- primeira fase do Estado moderno em formação, ainda vai
ma, e Isto, que já não sena pouco, arn a.não e tu, o. 01S, em abrindo caminho, como mostrou Eli F. Heckscher em análise (, ~ T ~~ c
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.do lugar, o arguto cronista deixa Claro que os níveis do clássica, entre as forças universalistas e particularistas. Sejá não
puõhco e o privado, para além de: inextricavelmente ligados, vige mais a fusão do espiritual com o temporal (fusão, aliás,
apresentavam-se a mesma orma curiõ!amen e iiWêrtidos. dificílima, que deu lugar, na Idade Média, às lutas entre o Sacer-
dócio e o Império), o monarca de direito divino não pode ...J
Pois, como terá de imediato nota' o atento leitor.a inversão é
também uma forma de articulação -. prescindir da "religião de Estado", que se expressa na fórmula rLt.~: MG 0G- '-;-fU;~W'i
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16 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL I CONDIÇOES DA PRIVACIDADE NA COLONIA • 17
famosa: "Cujus regio, ejus religio". Assim, aos conflitos entre os Para explicitar as condições da vida privada na América
papas e os imperadores (do "Sacro Império") sucedem as guer- portuguesa, numa tentativa de procurar as articulações do
ras de religião ou a permanente tensão entre o poder real e o sistema com as manifestações da intimidade que ocorrem no
papado romano. ' . , . , . seu interior, a fim de esboçar o que seriam como que as estru-
Se dirigimos, agora, o olhar para as formas deintimida-
de, a paisagem com que deparamos não é mais a de quase
total indistinção, na Alta Idade Média, ,que Michel Rouche
turas do cotidiano na Colônia, levemos em linha de conta,
sempre, essa ambigüidade básica da situação, tão vivamente
apanhada por dois protagonistas particularmente sensíveis, o
1 M6 To 1J0 (1,'
pôde descrever como a conquista, pela vida privada: do Esta- poeta e o cronista. Havemos de retomar a esse ponto no final
do e da sociedade; mas também não podemos Vislumbrar de nossa trajetória, mas por ora convém adiantar que, se na
aquela clara e distinta separação .das esferas, que J. Habermas Europa da Época Moderna as manifestações da intimidade
analisa para o nosso tempo.' Entre a indistinção feudal da vão se definindo em relação à formação dos Estados, na Colô-
Primeira Idade Média e a separação formal' que se lllstaura nia (no mesmo período) elas estão associadas ainda mais à
com as revoluções i eralS, aor - '? e-mnt, um peno o em passagem da colônia para a nação, ou melhor, à própria gesta-
que as esferas do pú ico e o privado já não estão indistintas, ção da nação no interior da colônia. E isso talvez tenha algo a
mas ainda não estão separadas - estâõímbricããas. econsti- ver com aquela peculiaridade configurada na inversão do pú-
tuir as manl estaçôeSda mtimidade nesse período trata-se de blico e do privado.
~~r- r-!I",!) tarefa difícil: há que apanhar tais práticas in fieri, isto é, no Reconstituir, portanto, a "história da vida privada no
próprio processo de definição de, espaço do privado, o qual Brasil Colônia" implica tentar surpreender um processo em
(~ Q 'C c corre paralelo ao da constituição do Estado moderno, que gestação, na sua própria constituição e especificidade. O título
c L; delimita o território do público. E isso não escapou ao nosso que se preferiu para este volume - Cotidiano e vida privada
P !d l\.Jê' \ C 1./1 ~ c o/?- historiador seiscentista.
Mas, como frisamos antes, ele .não se detém aí. Ao acen-
na América portuguesa - não é, pois, apenas uma questão de
modéstia ou de prudência. É que desejamos, desde logo, pa- fL~ .I} ~h~' (. ()
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tuar a inversão das esferas, frei Vicente parece indicar que, tentear nossa preocupação de evitar o anacronismo subjacen-
/: ç o ~-'\O tCJ ~ rJD além de conectadas, as duas faces do público e do privado te a expressões como "Brasil Colônia", "período colonial da fo kv:
surgem-nos como invertidas, e isso'é apresentado como espe- história do Brasil" ete. Pois não podemos fazer a história desse )4- : .lJ'~I\.'/?I ~.{l.
, ~ r, O cífico "desta terra", isto é, da Colônia'. Fixemos, portanto, nos- período como se os protagonistas que a viveram soubessem
.J~ 9« ( sa atenção na observação do cronista: .no mundo' colonial, as que a Colônia iria se constituir, no século XIX, num Estado :/J
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coisas aparecem "trocadas", e isso causa estranheza; e se cau-
.,
• fi '-r (. " nacional. Nesse sentido, se procuramos reconstituir as mani- .. ~~
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í sam estranheza, é porque não "deviam" aparecer desse modo. festações da intimidade articuladas num quadro mais geral, a
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~o \' } (?I.\ ) J E assim vamos tocando, nas pegadas do cronista, numa das definição, ou melhor, o recorte desse quadro não pode ser ~, .,~ r ,,/1 ~
dimensões mais essenciais da colonização moderna. Isso nos "Brasil", e sim a colonização moderna em geral, situando-se a
lembra os versos em que Gregório -de Matos desvelava "a ilu- colonização portuguesa no Novo Mundo dentro desse con- <' ;1 lê y/.~) \\)1.
são ideológica que transforma a colônianuma perfeita réplica texto. Em suma, o antigo sistema colonial. No contexto da ( IJ
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da metrópole":' ' colonização, portanto, a privacidade vai abrindo caminho não !
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MARCHA DE POVOAMENTO I",,:~'.~";t,"'" ~ MARCHA DE POVOAMENTO <t"
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E A URBANIZAÇÃO E A URBANIZAÇÃO
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4, 5. o EI/gel/ho de Seril/lraéll1,
plantation típica. (4. Seril/haélll.
século XVII; 5. Fábrica de ellgel/lJO.
século XVll)
em gestação na Europa estão se formando uns contra os ou- Mundo os contingentes africanos. Se nos lembrarmos de que
tros, de aí essa furiosa competição para garantir espaços na tanto ameríndios como africanos tinham também grande di-
exploração colonial. No caso português, esse processo é leva- versidade interna, começaremos a entender a complexidade do (- O ctM4 ç ,fi i:i I) I}
do ao limite, e é O que explica a enorme desproporção entre a melting-pot colonial. E do convívio e das inter-relações desse j N!",l,~ t&
caos foi emergindo, no cotidiano, essa categoria de colonos que,
pequenez da Metrópole e a imensidão da Colônia. E é tam-
bém de aí que resulta a enorme dispersão e .rarefação das depois, foi se descobrindo como "brasileiros". "Brasileiros",
como se sabe, no começo e durante muito tempo designava
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populações coloniais; esse perfil devia aparecer aos olhos dos
protagonistas da colonização como. Uma.incômoda e mesmo apenas os comerciantes de pau-brasil, A percepção de tal meta-
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angustiante sensação de descontigúidade; sensação tanto mais morfose, ou melhor, essa tomada de consciência -, isto é, os
intensa se nos lembrarmos quea descontigüidade contrastava colonos descobrindo-se como "paulistas', "pemambucanos', O~j(j)tll ,4~ - ~G
rudemente com a experiência de vida na Metrópole. "mineiros" etc., para afinal identificarem-se como "brasileiros" //
- constitui, evidentemente, o que há de mais importante na to!},,\..· ':.i lã J"
Mobilidade, dispersão, instabilidade enfim, são caracterís- ~ )
ticas da população nas colônias, que vão demarcando o quadro história da Colônia, porque situa-se no cerne da constituição
de nossa identidade. Precisamente, isso decorre lentamente nos f Cs P "'1>:1'", I,\J(A"~\ ,\
dentro do qual se engajaram os laços primários e se foi desen-
rolando a vida do dia-a-dia. Para compormos ainda mais expli- domínios da intimidade e do cotidiano, o que mostra, aliás, que -,I'" "I.'
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citamente esse quadro é preciso agregar-lhe outra característica, longe de ser uma história de nemigalhas e futilidades, estamos
que, aliás, vai na mesma direção: refiro-fie à necessária diversi- aqui no núcleo fundamental de nossa trajetória, visamos então ; ~Sin)( >(40~
dade das populações na Colônia. Por definição, .as gentes na ao 120ntocentral de nossa constituiç~ uanto ROVó e na~ão, 5(-
Colônia se dividem entre os colonizadores e os nativos: mas na abrimos a possibilidades de compreender algo do nosso modo ~->('; " \ , L. '. I ("'.f
colonização do Antigo Regime, nas áreas em que a compulsão de ser. Estudar, portanto, as manifestações da privacidade e do
do trabalho foi levada ao limite da escravidão, essa diversidade cotidiano, neste caso, significa sondar o processo mais íntimo
se acentuou com o tráfico negreiro, que (arreou para o Novo de nossa emergência na história.
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24 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil I CONDiÇÕES DA PRIVACIDADE NA C01ÕNIA • 25
cartográficas. (foi", Blaeu, Mapa, paisagem social como a de São Paulo, com um povoamento
Holanda, século XVII) rarefeito, em permanente mobilidade. as "bandeiras" já foram caracterizadas como uma "sociedade em movimento", e abri- Co ,.)}M..116 <:,., lU:,
ram os caminhos para atingir as fronteiras, no) dizer de Sérgio
Buarque de Holanda. E note-se o paradoxo: 1 sociedade mais
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estável, permanente, enraizada, está voltada para fora - a eco- ~ O I rlrGn ,I'lll (.1/.1~
nomia açucareira organiza-se para a exportação; e a economia
de subsistência (como a de São Paulo, ou a pecuária nordesti-
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26 . HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL I
CONDIC6ES DA PRIVACIDADE
NA cOl6NIA • 27
curso de gestação dessa "comunidade imaginária" que, na termediárias que enquadram as manifestações do privado e
definição de B. Aríderson," constitui a nação, Nas Índias do cotidiano, modelando-lhe o perfil. Talvez ainda mais rele-
de Castela, parece ter sido mais intensa essa tomada de vante é a clivagem das populações coloniais que importa ago-
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consciência; lá, os colonos se norninavarn crio/los. Mazom- ra destacar na montagem desse quadro. A implantação da
bo, que entre nós seria o termo correspondente, nunca teve exploração colonial da Época Moderna, em função de seus
sa a constituir um traço marcante da vida de relações na Co- mada intermediária de sensações - distanciamento, desconti-
lônia. A miscigenação foi o principal e mais importante desses nuidade, clivagem etc, - que iam balizando as manifestações
~sp.aç~s de encontro (as festas foram outros), e Gilberto Freyre do cotidiano, em meio às quais ia se formando algo que pode-
msisnu, corretamente, nesse aspecto. Mas, ao mesmo tempo, ríamos pensar como uma mentalidade colonial, esboço de
era também uma forma de dominação" pois o intercurso era, uma fugidia identidade nacional em gestação.
evidentemente, entre o dominadorbranco ea negra escrava; e Aqui, o ponto fundamental: a escravidão como relação
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o mestiço resultante nascia escravo. Poraí-se vê a complexidade social dominante (embora não exclusiva) repercute na esfera ~."
das relações levada até o paradoxo. A miscigenação foi, assim, do cotidiano e da intimidade de maneira decisiva; delineiam-
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ao mesmo tempo, um canal de aproximação e uma forma de se três tipos básicos no sistema de relações primárias (cotidia- /'
dominação, um espaço de arnaciamento e um, território de nidade, intimidade, individualidade, vida familial ete.) - as J
enrijecimento do sistema. relações intraclasse senhorial, as relações internas ao univer- ~' '~
Do fundo das estruturas básicas da colonização emer- so de vida dos escravos, as relações intermediárias entre se-
gem, portanto, situações de vida fnuito características, e que nhores e escravos. No curso dos acontecimentos cotidianos,
10. J I. Na puisagem íongínoun,
enquadram as manifestações do cotidiano e da intimidade essas esferas, permanente e recorrentemente, interpenetra-
o isolamento em que viviam os
das populações coloniais; como que uma camada intermediá- vam-se criando situações e momentos de aproximação, dis-
colonos. (/O. Frans Post, paisagem
ria, pela qual se àrticulavam aquelas estruturas fundantes e a tanciamento e conflito. Mas a divagem, básica, permanecia rural; I I. Frans Post, paisagem com
recorrência dos acontecimentos. Delineava-se, assim, uma ca- irredutível. É, evidentemente, difícil determinar na reconsti- rio e floresta, século XVII)
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tuição desta história os dois momentos de interpenetração e sobre os homens (escravidão) e a posse de terras (ainda mais
de manutenção das distâncias. Para dar um exemplo: a atitu- recebidas por doação) imprimiam-lhes na mentalidade uma
de em face do trabalho, decisiva em qualquer formação social, configuração fortemente senhorial; mas, agentes de uma produ-
fica marcada pelo estigma insuperável que identifica trabalho ção mercantilizada em extremo, defrontavam-se no dia-a-dia
com servidão, lazer com dominação. Por mais que os espaços com o mercado, o que lhes exigia um comportamento funda-
de "amaciamento" e os momentos de aproximação possam mentalmente burguês. Mais ainda: era através do mercado que
C:'--( j) > O <- atenuar os pólos dessa clivagern, ela remanesce irredutível. obtinham os escravos, isto é, a condição senhorial. Essa inextricá-
C I ~ol.(-(L'" O
Se aproximarmos, agora, as duas observações sobre as con-
dições da intimidade e do cotidiano na Colônia, tal como
vel ambigüidade está por certo na base do padrão de relaciona-
mento que tendiam a praticar no cotidiano de sua intimidade.
01L~J Il\; emanam das estruturas da colonização, podemos começar a
vislumbrar o perfil dessa esfera da existência colonial, na sua
maior complexidade. De um lado, notamos que o tipo de ex- Esse conjunto de sensações contraditórias, advindas dire-
ploração econômica que se desenvolvia no Novo Mundo impu- tamente das estruturas básicas da colonização, formavam
nha uma constante e grande mobilidade às populações; de ou- como que a camada intermediária de enquadramento do co-
tro, a compulsão do trabalho,exigidapela mesma exploração tidiano e do íntimo do "viver em colônias': Mas eram todas
da Colônia, levava à c1ivagem radical entre os dois estratos bá- elas - as sensações - dominadas pela mais abrangente de
sicos da sociedade. De fato, gestando-se no processo de expan- todas, que dirnanava do próprio sentido mais geral da coloni-
são mercantil da época dos descobrimentos e articulando-se ao zação. Referimo-nos, evidentemente, ao caráter da extroversão
não menos importante processo de formação dos Estados, a da economia colonial, montada para acumular externamente.
faina colonizadora tendeu sempre a ampliar a área de domina- A partir das análises clássicas de Caio Prado Iúnior ("Sentido
ção (competição entre os Estados) e a montar uma empresa de da colonização"), procuramos, em trabalho anterior," articular
exploração predatória, itinerante, compelindo o trabalho para a exploração das colônias ao processo de formação do capitalis-
intensificar a acumulação de capital nos centros metropolita- mo; disso resultava que a colonização tinha um caráter essen-
nos. Disso resultava, como vimos, ao mesmo tempo, uma per- cialmente comercial, voltada para fora, mas, para além disso,
manente mobilidade das populações e uma clivagem entre os compunha um mecanismo de estímulo à acumulação primi-
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C!J ~ ,7\-" ~S; vários estratos sociais. E a ill reside; precisamente, o ponto es- tiva de capital mercantil autônomo no centro do sistema." A
sencial: é que as sociedades de estamentos, em: geral, apresen- externalidade da acumulação aparece, pois, nesta análise,
\)~ :SO" G ('\/7t.fj tam uma mobilidade mínima, tanto horizontal quanto vertical. como a estrutura básica, no plano econômico, definidora da
A sociedade colonial, ao contrário, configura uma sociedade colonização. Ora, ao mesmo tempo, é essa estrutura fundante
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estamental com grande mobilidade; é essa conjunção surpreen- que lastreia o por assim dizer sentimento dominante do viver
dente e mesmo paradoxal de clivagem .com movimentação que em colônias, ou seja, essa sensação intensa e permanente de
marca a sua Q.tigl!!alidade. E isso precisa ser levado em conta instabilidade, precariedade, provisoriedade, que se expressa por
para se desenhar o quadro das condições em que se manifesta- todos os poros de nossa vida de relações. É tal sensação pro-
va a vida privada colonial: a sociedade da Colônia, ao mesmo funda e duradoura que, ao que parece, integra e articula as
tempo, estratificava-se de forma estamental e apresentava in- demais que vimos até aqui descrevendo; e quando nos lem-
tensa mobilidade; o que, provavelmente, criava uma sensação bramos de que a outra face da externalidade da acumulação
de ambigüidade, pois a junção dessas duas características envol- era, como mostrou L. F. de Alencastro," a extraterritorialida-
via, simultaneamente, tendência de aproximação e distancia- de do aprovisionamento da mão-de-obra, começamos a per-
mento das pessoas. Essa mesma ambigüidade, aliás, aparece ceber os fundamentos daquele sentido de "desterro" tão bem
quando consideramos em particular o estrato superior dos co- .assinalado por Sérgio Buarque de Holanda na primeira pági-
lonos, os senhores de terra e de -escravos: a dominação direta na de Raízes do Brasil. E, mais uma vez, vão pouco a pouco
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revelando-se os nexos entre as estruturas fundantes e o nosso para a sensação de ambigüidade e desconforto que atravessa a
modo de vida íntimo e cotidiano: vida social da Colônia de lés a lés, e que derivava, também ela,
Curioso ainda notar que, se 'os historiadores levamos das condições básicas da colonização. Já nos referimos ante-
muito tempo para assinalar esse "sentido" profundo da colo- riormente a que as colônias eram vistas como o prolonga-
nização e analisar seus mecanismos estruturais, e alguns ainda mento das metrópoles, o Novo Mundo só se distinguindo do
recalcitram em adrniti-lo, não assim nosso insuperável cronis- Velho pela sua recentidade; daí a toponímia: Nova Inglaterra,
ta-historiador pioneiro; implacável na sua capacidade de pe- Nova Espanha, Nova Granada, Nova Lusitânia ... Ora, a tal
netração da realidade históricaescreveu frei Vicente do Sal- visão contrapunha-se a realidade da colonização, que ia confi-
vador (Livro I, capo 11): "E deste modo se hão os povoadores, gurando formas sociais muito diferentes e em certos sentidos
os quais, por mais arraigados que na terra estejam, e mais negadoras da Europa moderna. De fato, a colônia é tão diver-
ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal, e, se as sa da metrópole, quanto a região dependente o é da domina-
fazendas e bens que possuem souberam falar, também Ihes dora; contrastemos, por exemplo, a evolução da organização
houveram de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a do trabalho num e noutro pólo do sistema: enquanto na Eu-
primeira coisa que ensinam é: papagaio real pera Portugal, ropa se transita da servidão feudal para o salariato através do
porque tudo querem para lá. E isto não tem só os que de lá trabalho independente de camponeses e artesãos, no mundo
vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam colonial acentuava-se a dominância do trabalho compulsório
da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só e, no limite, a escravidão. O núcleo desse descompasso situa-
para a desfrutarem e a deixarem destruída"
Realmente, não podemos evitar urna certa melancolia ao
constatar que, depois de muito meditar e analisar, tudo quan-
to logramos foi caracterizar a "externalidade da acumulação
primitiva de capital comercial autônomo" no mundo colonial
se, com certeza, na contradição, no plano mais geral da colo-
nização do Antigo Regime, entre a ideologia (catequese) e a
prática (exploração) dos colonizadores. Nem poderia ser de
outra forma: a religião (por meio da catequese do gentio)
aparece desde o início como o discurso legitimador da expan-
)
I
da Época Moderna; quanto a frei Vicente, dizia, na terceira são que era vista, assim, como "conquista espiritual"; é junto
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década do século XVll simplesmente: "tudo querem para lá". É ao papado que os reinos ibéricos, pioneiros da colonização e
claro que essa frase, límpida e direta, contém todo o conceito exp~nsão, buscam autoridade para dirimir as disputas pela ~t r rf~~~)
longa mente elaborado. Mais ainda: liga este fundamento geral partilha ~os mundos a descobrir; e, a partir daí, a legitimação
com os comportamentos, as práticas, esse "modo" com que da conquista pela catequese. Na própria gênese do processo, já
"se hão" os colonizadores; e não SÓ Os reinóis, como também deparamos, portanto, com o discurso legitimado r da cateque-
os nativos. E isso sem comentar a última frase, para não nos se cristã; ele acompanha toda a colonização moderna, varian-
distanciarmos muito do assunto, em que se contrapõem a do evidentemente de intensidade de um momento para ou-
posse senhorial da terra (o senhorio feudal produtor de valo- tro, e de uma região para outra. Mas nos países ibéricos
. res de uso), que era o seu referencial, ao uso mercantil, des- pioneiros a sua presença é levada ao máximo, e isso nos afeta
trutivo, que se implantava no Novo Mundo. E depois vieram diretamente, muito de perto.
~ alguns historiadores a falar no caráter feudal da colonização ... Mais uma vez, aqui, deparamos, portanto, com as co-
\C(; 1~' 4 o
__ > Instabilidade, precariedade, provisoriedadeparecem pois lônias exacerbando os traços da metrópole. Na Europa mo.
II formar o núcleo dessa "camada 'de sensações" que, provindo derna, efetivamente, a religião mantinha-se imprescindível à
C /.)
I
(..r ordem social hierárquica e ao Estado absolutista, ambos
(1..1 .{ 4. ·I'í,..· das estruturas mais profundasda',colonização, enquadram as
demais, dando o tom de conjunto na vida de relações nessa fundados no privilégio. Esse peso da religião acentuava-se
parte do Novo Mundo na Época Moderna; mas, para irmos nas colônias como legítimação da conquista. Para bem en-
até o fim nessa tentativa de descrever e analisar as condições tender estas conexões será preciso ter sempre em conta que,
da intimidade e do cotidiano colonial, temos de voltar-nos se distinguimos analiticamente, para melhor compreendê-
CONDICÓES DA PRIVACIDADE NA COlÓNIA • 35
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