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O
abril-junho 2018 • n° 2
DA U N E S CO
Bem-vindo
ao
Antropoceno!
ISSN 2179-8818
Organização
das Nações Unidas
para a Educação,
a Ciência e a Cultura
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D A U N E S CO
Aguardando a
11 Dipesh Chakrabarty :
Os seres humanos são uma
força geológica
Entrevista por Shiraz Sidhva
15 O fardo insuportável
da tecnosfera
Jan Zalasiewicz
23 A perspectiva da Dominica:
Antropoceno ou Capitaloceno?
Andreas Malm
26 Francis Chateauraynaud :
Parem com o discurso catastrofista!
Entrevista por Régis Meyran
30-37
ZOOM
Um dia comum na vida de Qello
Ignacio Marín e Katerina
Markelova
42
Crioulizando a noção
de humanidade
Mireille Delmas-Marty
47
Uma carta para a juventude
Abdourahman A. Waberi
54-62
ASSUNTOS
ATUAIS
50-53 55 Atenas: livros em todos os lugares
Anna Routsi
Bem-vindo
ao Antropoceno!
Grande angular
Antropoceno:
os desafios essenciais do debate científico
Liz-Rejane Issberner e Philippe Léna
O Antropoceno:
metáfora ou era
geológica real?
Parece haver um consenso de que vários
parâmetros do Sistema Terra apresentam
uma evolução recente além do espectro
da variabilidade natural característica
do Holoceno – agora, é mais ou menos
aceito o uso do termo Antropoceno
para caracterizar as mudanças que têm
origem humana. Porém, um grupo de
cientistas resolveu ir além de usar o
termo como uma simples metáfora ou
uma ferramenta prática e interdisciplinar, Bad dreams (Pesadelos), parte de
e propuseram que o Antropoceno seja uma série realizada pelos fotógrafos
considerado formalmente como uma nova multiplicação de propostas alternativas
Guillaume Bression e Carlos Ayesta,
época geológica, como o Holoceno e o como “Ocidentaloceno” , “Capitaloceno”
na área interditada em torno da usina
Pleistoceno. etc. Outros, em particular especialistas da
nuclear de Fukushima, no Japão,
história mundial ou ambiental, pensam
Um Grupo de Trabalho sobre o em 2013. Os artistas, da França e da
que não há uma descontinuidade
Antropoceno (Working Group on Venezuela, escolheram usar plástico
ontológica, e que o caráter excepcional
Anthropocene – AWG) se encarregou transparente para representar a radiação,
do crescimento ocidental (a “grande
de apresentar essa proposta à União que é invisível e inodora.
divergência”), deveria ser reposicionado
Internacional de Ciências Geológicas
no longo prazo.
(International Union of Geological Sciences –
Nota-se que o ano de 1950 é também o
IUGS). Contudo, para uma nova época ser De acordo com eles, pelo menos durante
início da grande aceleração. De qualquer
aceita pelos estratigrafistas, é necessário os últimos 40 mil anos, o ser humano
forma, um eventual não reconhecimento
existir uma ruptura observável e universal sempre causou um impacto crescente
do Antropoceno como época geológica
entre as camadas sedimentares de duas em seu ambiente. Ele contribuiu, por
não invalidaria em nada o uso científico do
épocas. Embora o carbono antropogênico exemplo, para o desaparecimento da
termo, como é o caso atualmente.
esteja presente em sedimentos desde megafauna americana e australiana.
os anos 1850, isso não foi considerado Apesar do seu curto período de Assim, alguns cientistas defendem
suficiente. Com isso, o AWG propõe existência, o conceito de Antropoceno um longo Antropoceno, dividido em
mudança de época em 1950, ano a partir gerou várias controvérsias – a própria subperíodos tais como a industrialização
do qual vários componentes químicos e denominação foi questionada. capitalista (1850-1950) e a grande
partículas de plástico de origem antrópica Historiadores e antropólogos colocaram aceleração. No entanto, a maioria
começaram a aparecer nos sedimentos. em dúvida a referência a antropos, concorda com a necessidade de
esse ser humano genérico. Afinal de se abandonar uma visão linear e
contas, quem é o responsável pela determinista do tempo histórico.
transgressão dos limites biogeofísicos, Desde o fim da Segunda Guerra Mundial,
senão o humano ocidental e um sistema vários cientistas têm alertado sobre o
socioeconômico específico? Daí a caráter não generalizável e insustentável
© Mandy Barker / Greenpeace
para pessoas e grupos desfavorecidos. do Antropoceno: a redução drástica das WHERE? No one wears a watch (ONDE?
Porém, uma solução satisfatória para esse emissões de GEE. Ninguém usa um relógio), uma
problema não é simples, pois os países interpretação visual das viagens feitas
Isso é exatamente o que nos leva ao pelos plásticos, o tempo necessário para a
apresentam diferentes graus de desenvol-
impasse que normalmente ressurge em sua degradação e o seu impacto no meio
vimento, tamanho, população, recursos
todas as negociações internacionais: a ambiente. Apresenta itens de plástico
naturais etc.
busca por culpados, o que faz com que os coletados das ilhas na costa ocidental da
Além disso, a pegada ecológica humana já países relutem em assumir compromissos, Escócia (Reino Unido).
excede em 50% a capacidade de regene- pelo receio de comprometer o seu cresci-
ração e absorção do planeta, e 80% de sua mento econômico e seus empregos, assim Submersos em contradições, dilemas e
população vive em países cuja biocapa- como de contrariar interesses poderosos. ignorância, os gravíssimos problemas
cidade já está abaixo de sua pegada eco- A solução para o impasse alcançada no ambientais do Antropoceno não constam
lógica. Um país como o Brasil – e outros Acordo de Paris, assinado em 22 de abril nas agendas nacionais e sociais com a
países das Américas – ainda apresenta um de 2016, foi pedir para que cada país apre- prioridade que merecem. É como se a
superávit importante em termos de bioca- sentasse compromissos voluntários, em humanidade, entorpecida, aguardasse o
pacidade, embora já consuma 1,8 planeta. vez de impor critérios estabelecidos em fim do filme, onde os heróis apareceriam
Contudo, 26% das suas emissões de GEE escala planetária. Isso significa que cada para resolver tudo e, assim, e seríamos
são devidas ao desmatamento. Uma parte país se compromete a cumprir metas de todos felizes para sempre.
significativa de sua pegada ecológica vem redução das suas emissões de acordo com
da exportação de produtos primários, o que considera viável.
que estão na origem de boa parte desse Liz-Rejane Issberner (Brasil) é
Essa abordagem ajudou a superar os
desmatamento. O sistema competitivo e economista e pesquisadora sênior do
impasses e tornar possíveis as ações.
globalizado procura se abastecer com o Instituto Brasileiro de Informação em
Porém, também criou um emaranhado
menor custo, estimulando o extrativismo Ciência e Tecnologia (IBICT), e professora
de critérios de avaliação que torna difícil
em muitos países e a apropriação de do Programa de Pós-graduação em
uma comparação entre os esforços na-
terras (landgrabbing) em outros. Ciência da Informação (IBICT com a
cionais. Além disso, apesar de seu caráter
Mesmo se fosse possível parar imediata e universal, o Acordo de Paris não prevê Universidade Federal do Rio de Janeiro
completamente as emissões de CO2 dos sanções aos países que não cumprirem – UFRJ.
países de alta renda, isso não seria o bas- seus compromissos. Isso reflete a fraca Philippe Léna (França) é geógrafo
tante para reduzir a pegada de carbono governança da questão climática que, e sociólogo, e também pesquisador
global de modo a se manter dentro dos sem uma instituição com mandato para emérito do Institut de Recherche pour le
limites impostos para a biosfera até 2050. colocar as ações em prática, não é capaz Développement (IRD-France) e do Muséum
Ou seja, apesar das consideráveis dife- de suplantar os interesses econômicos de National d’Histoire Naturelle (MNHN), em
renças do tamanho de suas economias países e empresas. Paris.
e de suas reservas de recursos naturais,
todos os países deverão se empenhar no
enfrentamento do problema mais urgente
força geológica
Dipesh Chakrabarty,
entrevista por Shiraz Sidhva
Enquanto os avanços
tecnológicos modernos nos
permitiram prosperar como
espécie, podemos ter nos
catapultado para fora do cenário
evolutivo darwiniano. Os seres
humanos adquiriram o papel de
© Gideon Mendel (gideonmendel.com/submerged-portraits)
O fardo insuportável da
tecnosfera
Jan Zalasiewicz
A pequena rã perdeu
seu brilho
Karla Jiménez Comrie
Um fungo invasivo
De onde vem o Bd? Provavelmente da
África. Pelo menos essa é a hipótese
mais amplamente aceita entre os
biólogos panamenhos. O Bd quitrídio
Os efeitos do aquecimento
global no cenário natural
do mundo com frequência
provocam mudanças
geopolíticas que ameaçam
desestabilizar regiões já
vulneráveis, como o Chifre da
África. As pressões sobre os
recursos naturais enfraquecem
a capacidade das nações se
governarem e aumentam as
chances de ocorrerem conflitos.
Quando comparada com
outros fatores de risco para
a segurança internacional, a
mudança climática pode servir
© UNphoto / Tim McKulka
(Epicenters of Climate and Security, jun. Isso oferece pontos de partida para estabilidade regional, no Chifre e em
2017). De fato, dos 20 países mais bem que os governos e as sociedades se todo o mundo.
classificados que são considerados Estados planejem de forma adequada. Contudo,
frágeis, 12 estão situados em regiões do essa elevada capacidade de previsão Caitlin E. Werrell e Francesco Femia
Oriente Médio, Sul da Ásia e África, onde se não conduz, por si só, à prevenção. A são norte-americanos, cofundadores
espera que a mudança climática crie níveis combinação de “risco sem precedentes” e presidentes do Center for Climate
elevados de escassez de água. Isso inclui e “previsão sem precedentes” evidencia and Security. Esse centro político não
cinco países do Chifre: Eritreia, Quênia, a necessidade de uma Responsabilidade partidário, com sede em Washington,
Somália, Sudão do Sul e Sudão. de preparar (Responsibility to Prepare, DC, que tem uma equipe e um Conselho
briefing ao Conselho de Segurança da Consultivo de ilustres especialistas
• Conversão da água em arma
ONU, dez. 2017) – uma responsabilidade militares e de segurança, é a única
Alterações na disponibilidade hídrica,
de instituições subnacionais, nacionais instituição dedicada exclusivamente
incluindo o aumento da escassez e
e intergovernamentais de construir a aos riscos da mudança climática para a
do acesso à água, agravadas por um
resiliência climática na ordem regional segurança.
clima em mudança, também abrem
do Chifre da África. A incapacidade
caminhos para que os Estados e atores
de cumprir essa responsabilidade
não estatais usem a água como uma
pode tensionar significativamente a
arma. Um estudo recente, Marcus King,
da George Washington University, nos
Estados Unidos, discute como a Somália
tem sido especialmente suscetível a
Mudar as mentes,
essa relação entre clima, conflitos e não o clima
conversão da água em arma (Epicenters
of Climate and Security, jun. 2017). Em A UNESCO tem mais de 30 programas
2011, a Somália foi atingida por secas para nos ajudar a entender e a enfrentar
regionais que foram associadas à os desafios impostos pela mudança
mudança climática. Nessa época, como climática, assim como para promover
observa King, o grupo fundamentalista a conscientização sobre as implicações
jihadista Al-Shabaab “mudou suas táticas éticas levantadas por esse importante
tema dos nossos tempos.
© UNESCO
A perspectiva da Dominica:
Antropoceno
Capitaloceno?
ou
Andreas Malm
No primeiro mês após o furacão Maria, um Uma afirmação explícita dessa lógica pode
quinto dos habitantes pegaram os poucos ser encontrada em um dos mais célebres
bens que puderam ser recuperados e livros sobre o tema nos últimos anos: The
partiram. Aqueles que ficaram falavam de Great Derangement: Climate Change and
si mesmos como soldados em um campo the Unthinkable, Amitay Ghosh, no qual
de batalha: o discurso bélico varreu o país. aprendemos que o aquecimento global
Cinco dias após o furacão, o primeiro- “é a consequência indesejada da própria
ministro Roosevelt Skerrit, ele próprio existência dos seres humanos como
desabrigado, dirigiu-se à Assembleia Geral espécie”. Mais do que isso, é “o produto da
das Nações Unidas: “Venho até vocês totalidade das ações humanas ao longo
diretamente da linha de frente da guerra. do tempo. Todos os seres humanos que
[...] À medida que os dominiquenses já viveram desempenharam um papel
sofrem com o peso da mudança em nos tornar a espécie dominante
climática, nós estamos arcando com as neste planeta e, nesse sentido, todos os
consequências das ações de outros, ações seres humanos, passados e presentes,
que colocam em risco a nossa própria contribuíram para o atual ciclo da mudança
existência, e tudo para o enriquecimento climática”. Por essa perspectiva, o produtor
de alguns poucos em outros lugares”. de café comum na Dominica contribuiu
para o furacão Maria simplesmente por
Os descendentes de escravos que habitam
pertencer à espécie Homo sapiens. Assim
a Dominica não fizeram nada para aquecer
como seus antepassados escravos trazidos
este planeta, nem tampouco a pequena
para a ilha. Assim como o povo kalinago,
população indígena sobrevivente. Os
que lá vivia em paz antes de os europeus
agricultores de subsistência, que recorriam
chegarem à ilha em 1492.
à condução de táxis ou à venda ambulante
para complementar sua renda, tinham
pegadas de carbono insignificantes e Narrativa falha
nenhum poder sobre o abastecimento de
energia mundial. Ainda assim, no ataque É extremamente difícil enxergar os
do hiperfuracão, as principais vítimas fundamentos científicos que podem existir
foram exatamente esses agricultores: em tal perspectiva; contudo, inúmeros
Sigue a los Líderes (Siga os líderes),
eles foram mortos, suas vidas foram intelectuais que abordaram o Antropoceno
uma instalação do artista espanhol
devastadas, e a própria terra em que se fizeram afirmações semelhantes. Para
Isaac Cordal na exposição Fragil (Frágil,
encontravam foi destruída. escolher apenas um outro caso, o
Bruxelas, 2015). As pequenas esculturas
historiador Dipesh Chakrabarty, talvez o
representam homens de negócios
mais influente intérprete do conceito nas
Somos todos ciências humanas e sociais, argumenta
quase se afogando em uma mistura
de água e petróleo.
responsáveis? que, quando se trata da produção da
mudança climática, “os pobres participam
No discurso sobre a mudança climática, tal daquela história compartilhada da
como se desenvolveu no meio acadêmico evolução humana, tanto quanto os ricos”. um fato incontestável, mas por se deslocar
ocidental, na mídia e nos grupos que (CHAKRABARTY; D. Climate and Capital: daquela observação para a representação
formulam as políticas ao longo da última on Conjoined Histories, Critical Inquiry: the da espécie humana como protagonista
década, uma outra narrativa se instalou. University of Chicago Press Journals, 41, unificado. É tudo menos isso.
Ela diz que o problema foi criado por n. 1, 2014).
Nos últimos milhares de anos, desde
todos nós. O aquecimento global é culpa
Nessa visão, o furacão Maria foi mais um que as sociedades de classes existem,
da espécie humana como um todo.
suicídio do que uma guerra-relâmpago o Homo sapiens tem sido uma entidade
Vivemos no Antropoceno, a época em que
(blitzkrieg). Foi um caso de “aqui se faz, profundamente fragmentada, e nunca
nossa própria espécie superou as forças
aqui se paga”, sem nenhuma injustiça mais do que neste planeta que vem
naturais na determinação da trajetória
flagrante envolvida de forma especial. se aquecendo rapidamente – onde os
deste planeta, de forma mais óbvia no
Das encostas desnudas da Dominica, a oito homens mais ricos do mundo têm
campo do clima – portanto, os seres
realidade, é claro, parece muito diferente. tanta riqueza (US$ 426 bilhões) quanto
humanos em geral são responsáveis pelas
A narrativa do Antropoceno é falha a metade mais pobre da população
catástrofes subsequentes.
porque distorce e ofusca aquela realidade mundial somada (US$ 409 bilhões),
– não por dizer que as ações humanas segundo a Oxfam (janeiro de 2017).
causaram a mudança climática, o que é Sabe-se que a riqueza está estreitamente
Parem com o
discurso
catastrofista!
Francis Chateauraynaud, entrevista Como uma hipótese, o Antropoceno é No entanto, essa reclassificação é
por Régis Meyran de interesse tanto de geólogos quanto questionável, dada a expressiva pegada
de arqueólogos, que lidam com resíduos ecológica da antiga União de Repúblicas
radioativos ou químicos no solo. A dúvida Socialistas Soviéticas (URSS) no século XX.
Os debates desencadeados pelo permanece se é realmente necessário
Na verdade, não é tanto o termo
Antropoceno têm interesses falar sobre uma nova época geológica
Antropoceno que representa um
que se seguiria ao Holoceno. A relevância
científicos reais, uma vez problema, mas a previsibilidade do
do termo Antropoceno certamente se
que poderão desempenhar modelo, por um lado, e a tentação de se
tornará mais clara ao longo do tempo, e é
adotar o catastrofismo ou o determinismo,
um papel na criação de um normal que seja debatida. Alguns autores,
por outro.
modelo global de evolução do como o acadêmico norte-americano
Jason W. Moore e o autor sueco Andreas
equilíbrio planetário. Contudo, Malm, preferem falar de Capitaloceno.
as interpretações podem ser
distorcidas por aqueles que
usam o termo para profetizar o
fim do mundo – uma abordagem
que é contraproducente,
como argumenta Francis
Chateauraynaud.
O sr. poderia nos contar mais sobre essa será tarde demais. Embora o advérbio
tendência em direção ao catastrofismo? “em breve” contenha implicitamente uma
medida de reversibilidade, um marcador
Um problema decorre da maneira como
como “tarde demais”, e a repetição de
muitos especialistas falam em nome de
frases prontas como “nós falhamos”
toda a humanidade, utilizando o pronome
ou “não conseguimos”, nos coloca no reais. É importante que se evite endossar
nós. O historiador Dipesh Chakrabarty
caminho perigoso do catastrofismo. uma visão fechada do futuro, mesmo
questionou a função que esse “nós”
que seja apoiada por instituições, e
pode desempenhar. Atribuir fenômenos O pensador global – o intelectual que
desbloquear futuros possíveis. Sempre
à humanidade como um todo significa pensa sobre o mundo em sua dimen-
há indivíduos, grupos, cidades ou regiões
esquecer, ou esconder, o fato de que são global – encontra aqui uma forma
que estão inventando alternativas e
muitas pessoas que vivem na pobreza ou de legitimidade para suas fantasias e
novas possibilidades. O meu livro em
que pertencem a minorias praticamente pode revelar uma grande narrativa, que
coautoria com Josquin Debaz, Aux bords
não contribuem para o advento do abrange toda a complexidade do mundo
de l’irréversible (2017) traça o surgimento
Antropoceno. em algumas frases prontas. Até mesmo o
de uma multiplicidade de “contra-
sociólogo francês Bruno Latour entrou no
O outro problema é a ideia de que “nós” -Antropocenos” – outros mundos possíveis
campo, com seu livro Face à Gaïa (2015). A
já embarcamos nessa trajetória fatal. Para que são criados nos interstícios. Embora
tentação de se profetizar alimenta escritos
lhe dar um exemplo, em novembro de muitas vezes apareçam como formas de
sobre a “colapsologia”, como o livro dos
2017, o jornal francês Le Monde publicou “resistência”, eles criam outros modos de
pesquisadores franceses Pablo Servigne
uma carta aberta “à humanidade” assinada ação e de percepção do mundo.
e Raphaël Stevens, Comment tout peut
por 15 mil cientistas, intitulada Em breve
s’effondrer (2015). Embora esses autores Tomemos, por exemplo, o plano de
fundamentem seus argumentos em dados construção de um novo aeroporto
que poucos contestariam, a forma como internacional em Notre-Dame-des-Landes,
Spéculation, passion et anxiété são agrupados, em uma narrativa de fim na França. Lançado na década de 1960, o
(Especulação, paixão e ansiedade), de mundo, é problemática. projeto foi relançado no início dos anos
pintura acrílica em tela, 2001, de autoria 2000. Considerado incompatível com
do artista e filósofo franco-canadense A principal crítica ao argumento
as declarações da COP21 (Paris, 2015)
Hervé Fischer. catastrofista é que ele não funciona.
sobre o combate à mudança climática,
A teoria da “heurística do medo”,
o plano foi finalmente abandonado em
apresentada anos atrás pelo filósofo
janeiro de 2018 sob pressão de ativistas.
alemão Hans Jonas (1903-1993) – que
Fundamental para a resistência cívica
acreditava que apenas o temor pelo pior
organizada por parte dos cidadãos
seria suficiente para a conscientização
de Notre-Dame-des-Landes foi a sua
– não é mais relevante no contexto
capacidade coletiva de reverter a ordem
contemporâneo. Não há problema no
das prioridades.
fato de grandes mentes assinarem cartas
abertas ameaçadoras, mas isso não nos Os movimentos em torno dos sistemas de
aproxima das soluções. A tarefa dos semeação e permacultura dos agricultores
cientistas não consiste em anunciar a são inspirados pelo funcionamento e
inevitabilidade da catástrofe, mas sim pelo conhecimento dos ecossistemas
enfrentar os problemas em diferentes tradicionais, ao mesmo tempo em que
níveis de ação. visam à autossuficiência. Tal como ocorre
com as cidades em transição, inúmeras
Os argumentos dos catastrofistas podem
experiências coletivas trabalham juntas
ser fúteis, mas são bem-sucedidos...
para redefinir e administrar bens comuns,
Eles não apenas são bem-sucedidos, alimentando novas ideias para moldar as
como também provocam reações hostis. políticas.
A ecologia acaba se confundindo com o
O futuro permanece aberto. Todos
catastrofismo. Grupos como a Associação
os humanistas têm o dever de provar
Francesa de Informação Científica
que os profetas do catastrofismo estão
(Association française pour l’information
errados. Existem inúmeros lugares neste
scientifique – AFIS) chegaram a voltar
planeta onde as pessoas já estão lutando
atrás, declarando que nunca fomos tão
para superar os efeitos devastadores da
felizes neste planeta. Nessas polêmicas, os
arrogância tecnoindustrial.
argumentos de grupos como a AFIS são
ainda mais bem-sucedidos, porque não
apelam ao público para não fazer o que
Francis Chateauraynaud (França) é
quer que seja.
sociólogo e diretor de pesquisa na École
Concretamente, no entanto, nós podemos des Hautes Études en Sciences Sociales
evitar uma catástrofe? (EHESS), em Paris. Seu livro mais recente,
em coautoria com Josquin Debaz, é
Primeiramente, existem muitos tipos
Aux bords de l’irréversible. Sociologie
de catástrofes. Anunciar uma catástrofe
pragmatique des transformations (2017).
global final significa ignorar os fatos
Um glossário
para o Antropoceno
30 | The
O Correio
UNESCO Courier • •April-June
da UNESCO abril-junho
2018
2018
Zoom
Um dia comum na
vida de Qello
matrículas para meninos era de 88,5%) e altas taxas de exclusão da educação. * Taxa bruta de matrícula: quantidade de
a escola secundária (31,4% em 2015). Ele Cerca de 17 milhões delas são meninas – alunos matriculados em determinado
provavelmente também passará um ano a 9 milhões de meninas com idades entre nível de educação, independentemente
mais na escola – em 2012, a expectativa de 6 e 11 anos nunca frequentarão a escola, da idade, expresso como uma
vida escolar** para os meninos era de contra 6 milhões de meninos (IUS). porcentagem da população em idade
8,9 anos, comparada a 7,9 anos para escolar oficial correspondente ao
A igualdade de gênero é a Meta 1
as meninas. mesmo nível de educação.
do Objetivo de Desenvolvimento
Embora meninos e meninas tenham Sustentável 4 (ODS 4), que visa a garantir ** Expectativa de vida escolar:
acesso praticamente igual à educação educação igualitária e de qualidade quantidade de anos que uma pessoa
obrigatória (dos 7 aos 14 anos), a situação para todos, bem como promover provavelmente passará nos sistemas de
na Etiópia não é muito animadora. Cerca oportunidades de aprendizagem ao ensino escolar e universitário.
de 2,2 milhões de crianças e 4,6 milhões longo da vida até 2030. A UNESCO, como
de adolescentes (2015) não têm instrução agência especializada das Nações Unidas
nesse país da África Subsaariana, com uma para a educação, foi encarregada de
população de 102 milhões. liderar o Marco de Ação da Educação
2030, aprovado em novembro de
Atualmente, em todo o mundo, 59 milhões
2015. A principal responsabilidade pela
de crianças, ou 9% da população em idade
implementação dessa agenda cabe aos
escolar primária, não frequentam a escola.
governos, com a UNESCO e seus parceiros
Pouco mais da metade dessas crianças
fornecendo apoio por meio de orientações
vive na África Subsaariana, uma região
sobre a formulação de políticas, assistência
com as mais
técnica, capacitação e acompanhamento
de progresso coordenados nos âmbitos
mundial, regional e nacional.
“Dois terços das amigas de Qello serão forçadas a se casar ainda jovens. A grande maioria delas abandonará os estudos
logo após o seu casamento”, explica Ana Sendagorta, diretora da Fundação Pablo Horstmann.
Ao retornar da escola, Qello prepara uma refeição para a família. Tradicionalmente, atividades domésticas são vistas
como um “treinamento” essencial para as meninas, preparando-as para sua vida futura, como esposas e mães.
Qello busca água do poço comunitário. Apenas um poço atende a todo o vilarejo;
desse modo, muitas vezes ela tem de esperar sua vez por horas na fila
A viagem de volta para casa leva ainda mais tempo, uma vez que a carroça de burro está
carregada com água. As longas distâncias expõem muitas meninas à violência física ou sexual,
mas elas não têm escolha. Suas famílias dependem da água.
No final do dia, quando todas as tarefas estão concluídas, Qello encontra tempo para fazer seu
dever de casa, à luz de uma pequena lamparina.
Ideias
Frontispício de um manuscrito
do século XVII. O leitor segura
uma safina, um manuscrito
em um formato reservado
para a poesia. No manuscrito
original, na página oposta,
uma jovem mulher está
em sua frente, ouvindo-o e
entregando-lhe seu cálice
dourado. © RMN-Grand Palais (Musée du Louvre)
/ Hervé Lewandowski
Terra
Souleymane Bachir Diagne
Crioulizando
a noção de humanidade
Mireille Delmas-Marty
da internacionalização do direito,
compartilha sua perspectiva
sobre a questão. Ela defende
a “crioulização recíproca”,
um processo dinâmico e em
evolução para a coordenação,
a harmonização e, por vezes, a
unificação das diferenças.
juventude
Abdourahman A. Waberi
“Meus queridos
jovens…”
Seis anos antes de sua morte em 1991,
Hampâté Bâ escreveu uma carta dedicada
à juventude e que se lê como um
testamento. “O homem que fala a vocês
é um dos primogênitos do século XX”,
diz ele. Então, emite um alerta: “Jovens,
os últimos nascidos do século XX, vocês
vivem em uma época que é ao mesmo
tempo assustadora, pelas ameaças que
lugares.
Contador de histórias, escritor, poeta,
etnólogo, líder espiritual, numerólogo,
diplomata, Amadou Hampâté Bâ
definia a si mesmo como “um graduado
pela grande universidade da Palavra,
instruído na sombra dos baobás”.
Tendo trilhado alguns caminhos pouco
comuns para atingir as esferas mais
altas do conhecimento, ele fez sua a
missão de passar o bastão para nós –
independentemente das nossas crenças,
da nossa cor de pele ou da nossa idade.
Abdourahman A. Waberi é um
romancista, ensaísta e poeta, nascido
onde hoje é a República do Djibuti. Ele
agora vive entre a França e os Estados
Unidos, onde é professor na Universidade
George Washington, em Washington,
DC. Autor de vários romances, incluindo
Aux États-Unis d’Afrique (In the United
States of Africa, 2005) e La Chanson Divine
(The Divine Song, 2015), ele escreve uma
coluna bimestral para o jornal francês Le
Monde. Traduzida para mais de 12 línguas,
sua obra busca respostas do mundo com
raiva, ternura e compaixão.
A estilista bengalesa
Bibi Russell devotou
sua vida à Moda para
o Desenvolvimento.
Retrato da série Les
Mains pour la Paix
(Mãos para a paz),
da fotógrafa francesa
Séverine Desmarest.
© Séverine Desmarest
Bibi Russell:
Encontrando a
magia nos dedos
Entrevista por Krista Pikkat e Jasmina Šopova
fevereiro de 2018, com uma exposição tem trabalhado para desenvolver tecidos
que mostrou a moda sustentável dos e artesanatos tradicionais, oferecendo
países da Commonwealth. Foi lançado no uma oportunidade para que milhares de
Palácio de Buckingham com o apoio da pessoas saiam da pobreza graças aos
rainha e da duquesa de Cambridge. seus “dedos mágicos”. Uma jovem garota, treinada por Bibi
Russell no Uzbequistão, fazendo
A designer diferenciada agora está
bordado tradicional.
trabalhando no que chama de “um O design de moda era sua verdadeira
projeto difícil e emocionalmente muito paixão e vocação, embora primeiramente
envolvente”. Com o apoio direto de a sra. tenha se tornado famosa como
Mamata Banerjee, ministra-chefe do supermodelo. Como uma jovem garota de Quando eu tinha 15 ou 16 anos, meu pai
estado indiano de Bengala Ocidental, Bangladesh decidiu ir para uma escola de me deu um livro sobre a casa de moda de
desde setembro de 2017 ela tem moda em Londres? Chanel. Eu descobri a alta costura francesa,
trabalhado no Liluah Home, o maior e percebi que existe uma gramática da
abrigo para meninas do estado. Aqui, ela Em casa, minha mãe costumava fazer moda sobre a qual eu queria estudar. Entre
ensina e motiva as meninas, algumas das roupas para nós. Minhas irmãs nunca se os 6 e 12 anos de idade, eu havia recebido
quais são vítimas do tráfico de crianças, queixaram, mas eu nunca fiquei muito diferentes prêmios de arte, mas eu não
a desenvolver habilidades para gerar feliz com essas roupas. Então, quando eu queria estudar arte. Queria fazer algo
tinha 10 anos de idade, meu pai comprou diferente. Queria ir para Londres. Ao longo
uma máquina de costura para mim. Aos de seis meses, a London College of Fashion
Com esta entrevista, O Correio da UNESCO 10 anos, você mal consegue segurar negou a minha inscrição, mas finalmente
marca a celebração do Dia Mundial da adequadamente uma tesoura , mas eu me aceitaram, com muitas condições.
Diversidade Cultural para o Diálogo e o comecei a fazer experiências.
Desenvolvimento, 21 de maio.
© Bibi Productions
Assuntos atuais
© Jean-Claude Beaujouan
o ano, como a Capital Mundial
do Livro da UNESCO 2018.
“Livros em todos os lugares” é o
lema deste ano, o que significa
que os livros e várias atividades Le refuge (O refúgio), uma instalação
relacionadas estarão abertos a coletiva na exposição Ivresse Livresque, literário para atender a todos os gostos e
em Amboise, França, 2015. a todas as idades. Além de disseminar o
todos, para serem encontrados
amor pelos livros e pelo conhecimento, a
em todos os cantos da histórica cidade espera promover o diálogo aberto
cidade e no seu entorno. a aprendizagem ocorre, bem como – não apenas para os criadores, as partes
com escritores e com o setor editorial. interessadas e a elite intelectual, mas,
Os amantes dos livros em Atenas, assim Esses parceiros incluem instituições sobretudo, para todos os seus cidadãos.
como as pessoas que visitam a cidade, culturais, museus, grupos da sociedade
terão uma surpresa. Orgulhosa por ter sido civil, startups, organizações não Os livros e a leitura estão sendo
nomeada Capital Mundial do Livro 2018, governamentais (ONGs), embaixadas combinados com a arte e a criatividade,
a antiga capital dá início a seu evento e organizações internacionais. Não com foco na aprendizagem, mas também
cultural mundial para celebrar os livros de chega a surpreender o fato de que cerca para demonstrar que os livros podem
inúmeras formas, em abril de 2018. de 150 bibliotecas em toda a Grécia trazer alegria e prazer aos leitores.
implementarão vários programas especiais Em um momento em que o país
Em preparação para o evento, a cidade de
na campanha de leitura de verão, liderada atravessa dificuldades financeiras, e a
Atenas trabalhou duro para transformar
pela Biblioteca Nacional da Grécia. indústria do livro enfrenta uma crise, o
em realidade a visão de seu prefeito
Giorgos Kaminis,. O objetivo do prefeito Os programas e as organizações financiamento do evento apresentou
– e de sua equipe de sete pessoas que municipais também participarão das seus desafios. Mesmo assim, a cidade
está trabalhando no evento – tem sido atividades deste ano – incluindo a Athens de Atenas alocou um orçamento de €
envolver cidadãos de diferentes grupos Culture Net e a Open Schools, ambas 500 mil para comunicações em apoio ao
sociais, étnicos e etários, assim como financias pela Fundação Stavros Niarchos; evento e contou com a colaboração das
difundir a cultura do livro e da leitura em Technopolis, o museu industrial e o atividades de publicação da Opanda. As
todos os bairros de Atenas, por meio de complexo cultural; Opanda, a Organização doações de instituições, patrocinadores
atividades menores e localizadas. Espera- para a Juventude, a Cultura e o Esporte; a e embaixadas que apoiarão diretamente
se que isso aumente a autoestima das plataforma da sociedade civil SynAthina e o programa totalizaram outros € 500 mil
pessoas e contribua para a integração programas de refugiados. (ao final de fevereiro de 2018), e espera-
social e a coerência. Além disso, as forças -se que esse valor aumente. O que nos
surpreendeu e motivou foi o interesse e
criativas da cidade seriam combinadas
com um objetivo cultural comum:
Um milhão de visitantes a disposição da maioria dos participantes
deixar um legado sólido, em termos de esperados em se comprometerem a realizar ações,
evidências físicas e na mentalidade de utilizando seus próprios recursos, para
O programa apresenta um mosaico vívido fazer parte desse evento muito especial
seus cidadãos, encorajando-os a amar e ler
de mais de 250 eventos e atividades, todos para a cidade.
livros, para muito além deste ano.
girando em torno do mundo dos livros,
Para tornar isso possível, a cidade se da aprendizagem e do conhecimento.
uniu a mais de 150 instituições onde Anna Routsi (Grécia) é assessora do
Com um milhão de visitantes esperados,
prefeito de Atenas para o programa e a
a cidade aspira a fornecer um cenário
comunicação do evento Atenas Capital
Mundial do Livro 2018.
Preenchendo
o vazio cultural
Lucy Mushita
Os jovens do Sul da África são tão
talentosos quanto os jovens de
qualquer outro lugar. Contudo, com
o desaparecimento das tradições
locais e com a falta de caminhos para
direcionar sua criatividade, eles vivem
em um vácuo cultural. Consumir o
conteúdo que é bombardeado pela
internet não é suficiente – esses jovens
precisam ter acesso às ferramentas e às
oportunidades certas, além de serem
orientados e encorajados a criar suas
próprias histórias.
O continente africano está
transbordando de talento: músicos,
escritores, poetas, filósofos, dançarinos
e outros artistas. Esses artistas e seu
trabalho criativo são os veículos
por meio dos quais as culturas são
transmitidas de uma geração a outra.
Contudo, muitos deles viveram no exílio:
o escritor queniano Ngugi wa Thiong’o,
© Kudzanai Chiurai / Courtesy of the artist and Goodman Gallery
Falta de recursos?
Como o Sul da África pode moldar Escrito em italiano e custando € 18 o
políticas públicas para preencher exemplar, muitos africanos não podem
esse vácuo cultural com conteúdos pagar por ele. Em contraste, Neria, o
relevantes? Como os jovens africanos filme de arte produzido localmente em
podem aprender a refletir antes de 1993, roteirizado pelo autor e cineasta
regurgitar o que quer que encontrem zimbabuano, Tsitsi Dangarembga, e
em seu caminho? Como a região pode dirigido pelo também zimbabuano,
rejeitar o que é tóxico e incorporar o que Godwin Mawuru – que explora
é puro em seu próprio trabalho criativo? questões de gênero – era mais acessível
e permanece como o filme de maior
O argumento comum sobre a falta de
bilheteria da história do Zimbábue.
recursos pode ser válido em muitos
casos. Contudo, é interessante observar Embora fosse quase impossível para
que quase todos os países do Sul da alguém da minha geração escrever
África gastam milhões em estádios de suas próprias histórias enquanto
futebol e em salários excessivamente crescia, os jovens africanos de hoje têm
elevados para jogadores de futebol. à sua disposição a possibilidade e as
É verdade que o esporte deve ferramentas para fazê-lo. Escritoras e
ser promovido e que os estádios filósofas – como Ken Bugul (Senegal),
geralmente são rentáveis. Uma solução Kidi Bebey (França-Camarões), Nadia
poderia ser criar uma estratégia que Yala Kisukidi (nascida na Bélgica, de pai
combine o esporte e a cultura. A congolês e mãe franco-italiana), Virginia
receita derivada dos estádios poderia, Phiri (Zimbábue) e Chimamanda Ngozi
por exemplo, ser destinada a custear Adichie (Nigéria) – estão todas escrevendo
bibliotecas, cinemas, teatros e centros suas histórias, e a África precisa ouvir e
musicais. se envolver com elas. A maior parte das
visões de mundo sobre a África continuam
Outro argumento político frequente
a ser manchadas por pontos de vista
diz respeito ao fato de que qualquer
coloniais – as vozes africanas, se tiverem
investimento deveria criar empregos.
acesso às plataformas certas, poderiam
Tomemos como exemplo Hollywood,
mudar isso.
que emprega, direta ou indiretamente,
milhares, senão milhões de pessoas – o
que beneficia economicamente os Estados
Lucy Mushita (Zimbábue) é romancista
Unidos, além de permitir que o país utilize
e ensaísta. Nascida na Rodésia do Sul, ela
o seu soft power. Agora que a tecnologia
cresceu em uma pequena vila durante
está disponível para nós, também estamos
o apartheid. Seu romance Chinongwa
na posição de criar as nossas próprias
(publicado na África do Sul em 2008,
histórias – por meio da literatura, do
e pela Actes Sud, na França, em 2012)
cinema e da arte.
explora esse período de sua vida, antes
de ela deixar seu país em 1986, para a
Sucesso local França, os Estados Unidos e a Austrália –
finalmente fazendo de Paris sua casa.
Ser criativo não tem de significar ser
proibitivamente caro. Em 2016, a editora
italiana 66thand2nd publicou La Felicità
Com este artigo, O Correio marca a
degli Uomini Semplici (A felicidade dos
instrumentos, ou produzirem alguns celebração da Semana da África da
homens simples, em tradução livre),
dos melhores curtas-metragens UNESCO, no mês de maio.
um livro de contos sobre o futebol na
usando seus smartphones – tudo sem África, escrito por autores africanos.
qualquer treinamento formal. Os jovens
se beneficiariam muito de recursos
eletrônicos na forma de livros para
download. O mesmo se aplica aos artistas A receita derivada dos estádios
plásticos, cujo trabalho precisa de galerias
para exibir sua genialidade. Também é
essencial desenvolver políticas aplicáveis à
poderia, por exemplo, ser destinada
propriedade intelectual, para proteger seu
trabalho.
a custear bibliotecas, cinemas,
teatros e centros musicais.
Jovens africanos:
reinventando a política
A arte a serviço da
política
inconsciente ou tático se escondam por estratégias tradicionais de negociação Por meio da música, da dança, do
trás de um rótulo “social”. Eles também não africanas oferece um modelo de como grafite e de referências emprestadas
demonstram ter interesse em participar uma estrutura organizacional política da poesia de rua, esses movimentos
diretamente das eleições. poderia funcionar na África. estão conseguindo unir os jovens que
entendem a linguagem e os códigos de
Todos esses movimentos são tentativas Esses grupos já provaram sua eficácia.
seus bairros. Nas ruas e pela internet,
de descolonizar a política. Eles têm No Senegal, durante a mobilização de
eles exigem um diálogo alternativo e
como objetivo devolver a política ao 23 de junho de 2011, e apesar da
projetos que deem asas aos seus sonhos.
povo – para as mãos de cidadãos que, repressão policial e da vigilância por
Esses novos atores na política africana
até então, foram excluídos do processo agências de inteligência, o Y’en a Marre
estão empregando várias referências
democrático e consultados apenas para desencadeou um movimento maciço. Isso
culturais para apoiar suas ações. O rap,
manifestar sua aprovação por meio ajudou a extinguir emendas à Constituição
por exemplo, tem sido um poderoso
do voto. Curiosamente, a forma como propostas pelo parlamento, as quais
meio para disseminar a mensagem da
esses grupos são organizados é um teriam permitido a reeleição de Abdoulaye
oposição. Outras declarações incluem o
tipo de democracia direta. Por meio de Wade – provavelmente assegurando
uso de línguas nacionais (uolofe pelo Y’en
uma rede de filiais, o Le Balai Citoyen que seu filho o substituiria quando ele se
a Marre e more pelo Le Balai Citoyen) ou
possibilita que pessoas de toda a nação afastasse.
o uso de um chapéu de Amílcar Cabral
participem da tomada de decisões. Com
(que tem o nome do emblemático líder da
uma dimensão horizontal ligeiramente
luta contra a colonização portuguesa da
mais limitada – devido à notoriedade e à
Guiné-Bissau).
enorme popularidade de seus líderes – o
Y’en a Marre também permite que todos Como faróis de esperança, a
participem do processo de consulta. Esse responsabilidade desses movimentos é
tipo de conexão transversal não existe Multidão saudando a caravana do Balai enorme. Eles representam forças políticas
na política convencional. A combinação Citoyen durante a manifestação desinibidas, livres e desprovidas da carga
entre os métodos oriundos de grupos contra o projeto de revisão constitucional colonial. É graças a eles que o continente
contemporâneos de cidadãos e as em Uagadugu, Burkina Faso, já não evoca apenas imagens de pena,
outubro de 2014 geradas pela pobreza, pela fome, pela Aids
e pela guerra. Estamos no limiar de um
projeto radicalmente emancipador. Muito
como o movimento contra austeridade, o
Indignados, na Espanha, que em 2014 deu
origem ao partido político de extrema-
esquerda Podemos, cedo ou tarde, esses
grupos serão convocados a participar
das eleições gerais. Poderemos então
testemunhar uma reviravolta descolonial
frente aos países ocidentais – com a
possibilidade de termos sociedades
fundadas em nossas próprias realidades
sociais e culturais.
Escute a
voz do lago
Chen Xiaorong
“Eu saio de barco seis horas por dia, para a habitarem os Territórios do Noroeste
bastante longe – de um lado ao outro do Canadá. Eles vivem em Deline, um
do lago, dependendo do clima. Não vejo pequeno assentamento na costa ocidental
nada além de uma terra sem fim... é onde do lago. Sahtuto’ine significa “o povo do
se encontravam os meus antepassados. Lago do Urso”, e deline é “onde a água flui”.
Continuo alertando meus filhos: ‘Apenas Tutcho é o chefe do novo governo Deline
olhem para a terra e ela contará a vocês a Got’ine (DGG), o primeiro autogoverno
história que tem para lhes contar. Vocês público indígena do Canadá, constituído
não querem ouvi-la? No entanto, podem em setembro de 2016.
falar de cor’”. Quem é esse homem que
pede a seus filhos que escutem a voz de
sua terra e escolhe atravessar uma área
Relações únicas
congelada de mais de 30 mil quilômetros Os sahtuto’ine acreditam que o lago tem
quadrados? Seu nome é Raymond Tutcho. um tudze. Este “coração da água” bate no
Ele mora perto do Grande Lago do Urso, o fundo do lago, bombeando suas águas
último grande lago ártico preservado. vivificantes através dos rios e oceanos do
O respeito à natureza e aos mais velhos mundo. A natureza intocada do Grande
está profundamente enraizado na mente Lago do Urso constitui a base de sua
dos integrantes de sua comunidade – não cosmologia, de sua história, de sua lei
mais de 600 almas, das quais quase todas tradicional e da economia dos recursos
são sahtuto’ine dene. O povo dene é um renováveis de Deline.
grupo aborígene das Primeiras Nações
“Nós temos relações únicas com o lago e da Biosfera Tsá Tué foi instituído no ano
seus arredores, que remontam a milhares e seguinte. A parceria entre organizações
milhares de anos”, explica Charlie Neyelle, governamentais e não governamentais
representante dos anciãos do Conselho ampliou o consenso sobre o papel crucial
Principal do governo. Alguns profetizaram que os povos indígenas desempenham na
que o Grande Lago do Urso será o último gestão de suas próprias terras.
lugar onde a água estará viva, porque
Em março de 2016, Tsá Tué passou a
“o coração da água ainda está batendo”,
integrar a Rede Mundial de Reservas
ele diz, acrescentando: “Contudo, se o
da Biosfera da UNESCO. O evento foi
matarmos e se ele morrer, tudo vai morrer.
unanimemente aclamado e celebrado
Para evitar que isso aconteça, precisamos
pela comunidade. “O lago não é capaz
educar as pessoas sobre a importância da
de falar por si só – nós seremos a voz do
água”.
lago”, entusiasmou-se Gina Bayha, uma
“Não damos valor ao dinheiro”, explica o coordenadora da Reserva da Biosfera.
ancião Leon Modeste. O que preocupa a
O Conselho de Administração da Reserva
comunidade é que a modernização trará
da Biosfera Tsá Tué, composto por
mais projetos de desenvolvimento para a
residentes de Deline, é responsável pela
reserva, perturbando o equilíbrio natural.
implementação da biosfera. Ele inclui
representantes do Conselho de Recursos
Administrando suas Renováveis de Deline, outras agências-
próprias terras chave de Deline, a agência Parks Canada,
anciãos e jovens. As decisões do Conselho
Embora há tempos os anciãos de Deline são fundamentadas no consenso.
estimulem todos a viver em harmonia
Estendendo-se por uma área de
com os ambientes à sua volta, a mudança
93,3 mil quilômetros quadrados, Tsá Tué é
climática e as crescentes pressões pelo
a maior reserva da biosfera da América do
desenvolvimento significam que se
Norte. Ela inclui o Grande Lago do Urso no
tornaram indispensáveis ações como
Ártico, o maior lago situado inteiramente
valer-se das tradições e tomar outras me-
dentro do Canadá, e parte de sua bacia
didas para preservar o seu modo de vida.
hidrográfica dentro do Distrito de Deline,
A comunidade conta com a pesca e a vida na Região do Assentamento Sahtu.
selvagem para atender a grande parte
Vastas extensões de florestas boreal e
de suas necessidades. Sua economia de
taiga preservadas, rios e montanhas
recursos renováveis inclui o turismo e o
cobrem grande parte da bacia
desenvolvimento de infraestrutura – de
hidrográfica, que é dividida em três zonas
forma limitada, mas crescente.
ecológicas: as Planícies de Taiga a oeste;
O estabelecimento do autogoverno o Escudo de Taiga a sudeste, que inclui
público indígena DGG ajudou a área de drenagem do Rio Camsell; e
enormemente a economia. Uma a zona ecológica do Ártico Sul na orla
O povo do Grande Lago do Urso vive conquista árdua após décadas de ativismo nordeste do lago. Dentro dessas zonas
essencialmente dos recursos renováveis político, essa autonomia significa que a ecológicas, as terras são classificadas
fornecidos pelo lago. comunidade de Deline agora tem um ainda em nove regiões ecológicas e em
governo, com um conjunto de regras – o um total de 22 distritos ecológicos. Cada
que facilita a preservação da sua cultura, uma dessas áreas menores tem uma
A espiritualidade dos dene inclui apreciar da sua língua, das suas práticas espirituais combinação distinta de formas de relevo,
todos os elementos do mundo. Animais, e do modo de vida com base na terra. gelo permanente do subsolo (permafrost),
aves, peixes, trovões, raios, água e pedras solos, clima e comunidades biológicas, o
– todos possuem uma força vital e devem Por exemplo, quando se percebeu que o
que as torna únicas.
ser respeitados. Toda a natureza está número de caribus (renas) caiu de
viva, e tudo tem seu próprio espírito. 500 mil, 15 anos atrás, para 60 mil devido As águas de Tsá Tué são, em grande
Desse modo, obedecendo às leis e sendo à mudança climática, o DGG implementou parte, puras, sua pesca apresenta boas
guardiões eficazes da terra, a essência de limites para a caça dos animais. “Todos nós condições, e existe uma abundância
ser sahtuto’ine é mantida por eles. respeitamos essas regras”, explica Leonard de vida selvagem. Os animais aqui
Kenny, dirigente de Desenvolvimento encontrados em grandes números
Uma mensagem recorrente dos anciãos Econômico Comunitário do DGG. No incluem o caribu-da-tundra, o urso-
à sua comunidade é que seus integrantes entanto, outros animais, como os alces, -cinzento, o alce, o boi-almiscarado e
devem ser guardiões responsáveis das continuam sendo caçados “em certa uma variedade de aves migratórias, o que
coisas que a Terra lhes deu. Enquanto medida”, ele acrescenta. demonstra o alto grau de integridade
forem cuidadas e mantidas em boas ecológica na Reserva.
condições, tais coisas, por sua vez, Em 2013, os anciãos e as principais
continuarão a conceder sua generosidade agências comunitárias de Deline
ao povo. discutiram sobre a criação de uma reserva
da biosfera. O Comitê Diretor da Reserva
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O Correio da UNESCO completa
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70 anos!
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© UNESCO
O Correio da UNESCO, outubro de 1961. Abu Simbel,
Roberto Markarian now or never (Abu Simbel, agora ou nunca).
Nos anos 1960, um adolescente Minhas origens são modestas – meus avós e questões polêmicas. Eu sabia que
eram analfabetos, e meus pais mal sabiam encontraria uma variedade de opiniões
sonhava em fugir do espaço ler e escrever. Meu conhecimento veio em suas páginas, assim como uma visão
limitado de sua casa em um dos meus estudos no sistema de escolas que não era apolítica – não é esse o ponto
bairro pobre de Montevidéu, públicas do meu país, o Uruguai, e das –, mas sim objetiva; uma análise dos temas
onde vivia com seus pais, que minhas leituras. Entre os 12 e os 17 anos que era, ao mesmo tempo, equilibrada e
de idade, eu lia regularmente O Correio minuciosa.
eram semianalfabetos. Ele queria da UNESCO, e foi assim que absorvia
Ainda tenho uma lembrança
ir longe e conseguiu trilhar uma cultura. Ainda consigo ver as imagens
particularmente vívida dos números
carreira brilhante em matemática nas capas da revista, e tantas perguntas
dedicados à Campanha da Núbia. Eu era
que abalaram o mundo – das ciências, da
pura e aplicada no Brasil. Afinal, aluno secundarista na época e não sabia
cultura, da educação no século passado –
em 2014, ele foi eleito reitor da nada sobre o Templo de Abu Simbel. Com
me vêm de novo à mente. Muitas dessas
a edição de fevereiro de 1960 de O Correio,
Universidade da República, no questões ainda estão nas manchetes
Save the Treasures of Nubia, eu aprendi que
Uruguai. Porém, antes disso, e permanecem relevantes: os desafios
a construção da Barragem de Assuã no Rio
impostos pelo analfabetismo, o acesso
Roberto Markarian frequentou à água, a preservação do patrimônio
Nilo, no Egito, inundaria monumentos de
outro tipo de escola – a do livre- 3 mil anos. Isso foi no final dos anos
histórico mundial etc.
1950, e a UNESCO mobilizou o mundo
-pensamento – que ele descobriu Desde seu lançamento em 1948, o inteiro para salvá-los. A Organização
nas páginas de O Correio da periódico logo conquistou enorme obteve imenso apoio internacional para
UNESCO. prestígio por conta de seu caráter aberto empreender o esforço monumental de
e abrangente, o que fez dele uma fonte desmontar completamente o majestoso
de referência para assuntos prementes Templo de Abu Simbel e reconstruí-lo em
outro local, vários metros acima – para forma que o sol nascente penetrasse Na época, os colaboradores de O Correio
que, duas vezes por ano, os raios do sol por 60 metros no interior da montanha incluíam Albert Einstein, Claude Lévi-
penetrassem no santuário interno do para iluminar os rostos de somente -Strauss, Jorge Amado, Bertrand Russell,
templo, exatamente como ocorria em seu três dos imortais. O quarto, o deus das Robert Capa… Eu descobri quem eles
local de origem. profundezas, Ptah, na extrema esquerda, eram, o que faziam e o que pensavam
permanece eternamente na escuridão. lendo o periódico. Eles me permitiram,
Essa característica essencial de Abu Simbel como dizia o lema de O Correio da UNESCO
Um periódico formativo foi um dos aspectos que foi considerado na época, enxergar através de “uma janela
Impressionado pelos quatro colossos de na decisão de como o templo deveria ser aberta para o mundo”.
Ramsés II, eu li, em um número intitulado finalmente preservado da elevação das Quando, na metade dos anos 1960,
Abu Simbel, Now or Never (O Correio da águas da barragem”. comecei a vida universitária estudando
UNESCO, out. 1961), esta explicação Ano após ano, O Correio noticiou cada engenharia e matemática, dediquei boa
detalhada dada por Peter Ritchie-Calder, passo desse empreendimento internacional parte do meu tempo a atividades sindicais
o famoso escritor científico inglês: “Uma inédito − The Nubian Campaign is Launched e à administração da universidade, e
passagem estreita leva ao santuário (maio 1960), An Account of Excavation in parei de ler O Correio com regularidade.
interno onde estão as estátuas dos três Nubia during 1961-1962 (nov. 1962), Victory Porém, felizmente, apesar dos caprichos
deuses a quem o templo é dedicado, in Nubia (dez. 1964), Dismantling Abu Simbel da história do meu país, consegui guardar
e do próprio Ramsés. E aqui se vê a (nov. 1965), Rameses finds a New Home (fev. quase todas as edições que tinha – em
engenhosidade proposital dos arquitetos 1967), The Greatest Archaeological Rescue bloco, todas juntas, presas com um
e engenheiros. Como hábeis iluminadores Operation of all Time (fev./mar. 1980) – sistema de arames de metal, que hoje em
de palco, eles projetaram o espaço de ecoando assim uma das maiores vitórias da dia pareceria ligeiramente ultrapassado.
solidariedade internacional, como sugere o Quanto ao Correio, ele continuou a existir
título de um artigo do número de agosto- até 2001, quando parou de ser publicado
Contracapa de O Correio, fevereiro de setembro de 1971. mensalmente. Uma falta de financiamento
1967. A rolling stone named Rameses e de apoio forçou seu fechamento em 2011.
(Uma pedra rolante chamada Ramsés). Pensamos que aquele fosse o seu fim.
Um chamado à
humanidade
Porém, cinco anos depois, a revista
reapareceu. O primeiro número do
Correio revivido foi publicado em abril
de 2017 com o lema “Muitas vozes, um
mundo”. Agora com tiragem trimestral,
ele continua a enriquecer a coleção,
que está disponível, na íntegra, de
1948 até agora, nos arquivos digitais.
A maioria dos arquivos está disponível
em inglês, espanhol e francês, mas
edições dos últimos anos podem ser
encontradas em muitas outras línguas
no site da revista (www.unesco.org/
courier). Vale a pena fazer essa volta.
Eu recomendo. Ao ler O Correio, você
vai descobrir uma perspectiva séria
sobre as principais questões atuais da
humanidade. Sua grande ambição – é
um dos maiores méritos do passado e
do presente da UNESCO – consiste em
promover conexões entre várias formas
de pensamento, maneiras diferentes de
enxergar problemas, e um chamado à
humanidade.
Para reiterar o que eu já disse, a maior
contribuição da revista é a promoção
de uma cultura que abrange tanto a
diversidade de opiniões quanto o respeito.
Essa é a cultura – e digo isso com a
máxima sinceridade, tendo em vista meu
passado familiar – que adquiri com a
leitura apaixonada e entusiasmada de
O Correio. Eu era um menino com sede de
aprendizado, e, por meio de suas páginas,
© UNESCO
A UNESCO
mobilizou o
mundo inteiro
para salvaguardar
os monumentos
da Núbia.
Dignidade humana:
a bússola que orienta
sua viagem pelas
paisagens culturais do
mundo
Hoje, não existem mais continentes
inexplorados, mares desconhecidos
ou ilhas misteriosas. Porém, enquanto
somos capazes de superar as barreiras
físicas por meio da exploração, as
barreiras da ignorância mútua entre
diferentes povos e culturas, em muitos
casos, ainda não foram destruídas.
Um Ulisses moderno pode viajar para
os confins da Terra. Porém, um novo
tipo de Odisseia se mostra – uma
exploração das muitas paisagens
O Correio da UNESCO, dezembro de culturais do mundo, das formas de
A importância da UNESCO e de seu 1964. Victory in Nubia vida de seus diferentes povos e sua
Correio, no mundo de hoje e no de (Vitória na Núbia). visão sobre o mundo em que vivem. É
amanhã, é ainda mais relevante, uma essa Odisseia que O Correio da UNESCO
vez que os princípios fundamentais da propõe agora para você, leitor. Todos
Constituição da Organização estão sendo Em 8 de março de 1960, a UNESCO os meses, colaboradores de diferentes
testados por aqueles que promovem “a inaugurou sua campanha internacional nacionalidades e com diversos pontos
incompreensão mútua entre os povos” para salvaguardar os monumentos de de vista culturais e profissionais irão
e contrariam esses princípios “por meio Núbia. O escritor francês e ministro de fornecer uma abordagem qualificada
da propagação da ignorância e do Estado para Assuntos Culturais, André de um tema de interesse universal. A
preconceito”. Não nos esqueçamos disso. Malraux, presidiu a cerimônia de abertura bússola que orienta essa viagem pelas
da campanha na UNESCO. Leia a seguir os paisagens culturais do mundo será o
Roberto Markarian (Uruguai) é reitor excertos de seu texto See, old river, the men respeito pela dignidade humana em
da Universidade da República e professor who will carry these giants far away from toda parte.
emérito do Instituto Rafael Laguardia your waters.
de Matemática e Estatística (IMERL) da Junho de 1989. Primeiro editorial de
Faculdade de Engenharia da mesma O ano de 2018 marca o 50º aniversário da Bahgat Elnadi e Adel Rifaat, diretor e
universidade. Tem ampla experiência em conclusão da campanha de salvaguarda editor-chefe de O Correio da UNESCO
sindicalismo trabalhista, primeiro como ao sítio de Abu Simbel. (1988-1998).
estudante e depois como professor. Foi
preso político de 1976 a 1982, durante a
ditadura militar no Uruguai. Por ocasião
da celebração de aniversário de 70 anos
da UNESCO, em 2015, Markarian falou em
Montevidéu sobre o tema “70 anos da
UNESCO e seu impacto na América Latina” –
e destacou o papel de O Correio da UNESCO.
O Correio da UNESCO • abril-junho 2018 | 65
70 The UNESCO Courier is 70!
Veja, velho rio, os homens que levarão esses gigantes para longe de suas águas
Em 8 de março de 1960, a UNESCO lançou sua campanha internacional para salvaguardar os monumentos da
Núbia. André Malraux, então ministro de Estado para Assuntos Culturais da França, presidiu a cerimônia na Sede
da UNESCO. Seu discurso foi publicado em O Correio de maio de 1960. A seguir, alguns trechos.
Em sua máxima expressão, as convenções De tal maneira, durante 3 mil anos, a arte sequer é uma de amor, tampouco um
egípcias foram concebidas para realizar egípcia transformou o transitório em eterno. sentimento comum pela morte, nem
a mediação entre homens efêmeros e as Que não haja mal-entendido sobre isso mesmo, talvez, uma maneira semelhante
estrelas controladoras. É uma arte que hoje: não é como testemunha do passado de analisar seu trabalho; contudo, antes de
consagra a noite. que ela nos comove, tampouco com o seu trabalho, a significância de escultores
Isso é o que todos devemos sentir que costumava ser chamado de beleza. A anônimos esquecidos por 2 mil anos nos
perante a Esfinge em Gizé, como me “beleza” se tornou um dos mais poderosos parece tão intocada pela sucessão de
recordo ter feito na última vez em que a mistérios do nosso tempo, a qualidade impérios quanto a importância do amor
vi ao entardecer. Pensei, então, como a inexplicável que promove a comunhão das materno. [...]
segunda e mais distante pirâmide envolve obras-primas egípcias com as estátuas de Ninguém poderia elogiá-lo o suficiente
a vista, e como faz com que essa máscara nossas próprias catedrais, ou os templos [sr. diretor-geral da UNESCO] por ter
mortuária colossal pareça ser a guardiã astecas, ou as grutas indianas e chinesas; concebido um plano tão magnífico e tão
de alguma armadilha criada para atrair o com as pinturas de Cézanne e Van Gogh, meticuloso em sua audácia, por assim
deserto e a escuridão. Essa é a hora em com os maiores artistas mortos e os dizer, uma espécie de Autoridade do Vale
que as formas mais antigas retomam o maiores artistas vivos; com, em suma, todo do Tennessee da arqueologia. [...]
suave murmúrio com o qual o deserto o tesouro da primeira civilização mundial. Seu apelo é histórico, não porque
ecoa as devoções atemporais do Oriente; Este é um imenso renascimento, do se propõe a salvar os templos da
a hora em que restituem a Ufe esses locais qual a nossa própria Renascença logo Núbia, mas porque, por meio dele, a
onde os deuses eram ouvidos; quando parecerá uma prefigura tímida. Pela primeira civilização mundial proclama
expulsam a imensidão do caos e ordenam primeira vez, os homens descobriram uma publicamente a arte do mundo como seu
as estrelas, que aparentemente emergem linguagem universal da arte. Sentimos sua patrimônio indivisível. Nos dias em que o
da noite simplesmente para gravitar em influência de forma acentuada, mesmo Ocidente acreditava que seu patrimônio
torno deles. que entendamos apenas parcialmente cultural tinha sua origem em Atenas,
a sua natureza. Este fantástico armazém poder-se-ia, mesmo assim, observar
de arte, do qual agora estamos tomando com serenidade enquanto a Acrópole
Das páginas de O Correio, fevereiro-
consciência, sem dúvida, retira sua força desmoronava.
março de 1980: Victory in Nubia:
de ser o maior sinal da vitória do esforço A lenta inundação do Nilo refletiu as
the greatest archaeological rescue humano sobre a morte. [...]
operation of all time (Vitória na caravanas melancólicas da Bíblia, os
Núbia: a maior operação de resgate A emoção que compartilhamos com exércitos de Cambises e Alexandre,
os criadores dessas estátuas de granito os cavaleiros de Bizâncio e do Islã, os
arqueológico de todos os tempos).
soldados de Napoleão. Sem dúvida,
quando a tempestade de areia sopra
através dele, sua memória antiga não
mais distingue os escritos geniais sobre
o triunfo de Ramsés da poeira patética
que novamente se assenta na esteira de
exércitos derrotados. E quando a areia está
novamente espalhada, o Nilo está mais
uma vez sozinho, com suas montanhas
esculpidas e efígies colossais, cujo reflexo
imóvel tem sido, há tanto tempo, parte do
seu eco de eternidade.
Mas veja, antigo rio, cujas inundações
permitiram que os astrólogos ajustassem
a data mais antiga da história, agora,
estão vindo homens de todas as partes do
mundo, que levarão esses gigantes para
longe de suas águas destrutivas e que
dão a vida. Deixe a noite cair, e mais uma
vez você refletirá as estrelas sob as quais
Ísis realizou seus ritos funerários, a estrela
de Ramsés. Contudo, o mais humilde
trabalhador que vem resgatar as estátuas
de Ísis e Ramsés lhe contará algo que
você sempre soube, mas que nunca antes
ouviu dos homens: que existe apenas uma
ação sobre a qual estrelas indiferentes e
rios imutáveis e murmurantes não têm
influência: é a ação de um homem que
arrebata algo da morte.
André Malraux
© DR
Celebrando a
diversidade cultural
em suas páginas
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