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Fernando de Sá Moreira
Universidade Federal Fluminense
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Fernando de Sá Moreira
Doutor em Filosofia pela PUCPR e professor do IFPR campus Telêmaco Borba, Paraná, Brasil, e-mail:
fernando.moreira@ifpr.edu.br
Resumo
Em meio à profusão de obras gestadas e redigidas em 1888, Nietzsche prepara e publica o
conhecido livro Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa com o martelo. Trata-se de um
texto com 10 capítulos ligeiros e relativamente curtos, além de um prólogo e do encerramento
intitulado “Fala o martelo”. Em sua versão em português, o livro conta apenas com cerca de
150 páginas. No entanto, a despeito da imagem descompromissada que sua ligeireza passa, a
obra revela-se extremamente profunda ao leitor atento e rica em materiais e sentidos a
interpretar. O presente artigo analisa um conceito específico presente no quinto capítulo do
texto, cujo título é “Moral como antinatureza”. Referimo-nos ao conceito de “antinatureza”.
São apenas três passagens em toda a obra que mencionam esse conceito, todas elas
localizadas no capítulo acima aludido. No entanto, uma busca na totalidade dos textos
nietzschianos revela também que o conceito assume um papel razoavelmente central nos anos
finais de produção do filósofo alemão, em especial entre 1887 e 1888. Nossa investigação
procura evidenciar que a antinatureza não é um conceito absolutamente oposto ao conceito de
natureza. Paradoxalmente, o contraponto a esse conceito é representado pela noção de saúde.
A hipótese defendida é que a classificação da antinatureza enquanto tal resulta de um
complexo jogo de sentidos, dentre os quais identificamos quatro: a antinatureza como
estranhamento na visão do nobre; a antinatureza como negação do mundo; como antagonismo
contra as leis da vida; e como tendência de enfraquecimento e esfacelamento de si mesmo, de
sua própria natureza individual.
Abstract
Among the profusion of pieces conceived and written in 1888, Nietzsche puts together and
publishes the well-known book Twilight of the Idols, or how to philosophize with a hammer.
It is made up of 10 brief and relatively short chapters, besides a prologue and the ending
entitled "The Hammer Speaks". In its version in Portuguese, the book contains only about 150
pages. However, despite the immediate lack of commitment such a quick read conveys, the
piece reveals itself to be extremely deep to the careful reader and rich in materials and
meanings to be interpreted. The current article analyzes a specific concept found in the fifth
chapter of the text, whose title is “Morality as anti-nature”. Regarding the concept of anti-
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nature, there are only three passages throughout the whole text which mention it, all of which
are found in the above-mentioned chapter. Despite that, in light of Nietzsche's lifetime work
and production, the concept takes on a reasonably central role in the philosopher's final active
years, particularly between 1887 e 1888. Our investigation aims at shedding light on anti-
nature as not the absolute opposite of nature, in their concepts. Paradoxically, its counterpoint
is represented by the notion of health. The hypothesis here to be defended is that anti-nature,
when classified as such, results in a complex web of meanings, within which four main
significances are identified: anti-nature as estrangement of the noble vision; anti-nature as the
negation of the world; as antagonism against the laws of life; and as a tendency to the
deterioration and disintegration of itself, within its own individual nature.
1. Introdução
Como se sabe, Crepúsculo dos ídolos é uma das últimas obras organizadas por
Nietzsche e reúne em seus 10 capítulos reflexões sobre os mais diversos assuntos. Vários
temas clássicos de seu pensamento filosófico são retomados e reapresentados em uma
abordagem própria.
No presente trabalho, interessa-nos investigar um conceito específico, a saber: o
conceito de “antinatureza” (Widernatur). A expressão surge de forma mais destacada apenas
no título do quinto capítulo do texto, denominado “Moral como antinatureza” (Moral als
Widernatur). Vale notar ali que há certo paradoxo na proposição do capítulo, pois, apesar da
menção em seu título, a um primeiro olhar, o conceito parece ocupar um lugar meramente
secundário. Isso porque, ao fazer a leitura dessa parte do texto, não encontramos qualquer
definição mais clara do que significa ser uma “antinatureza”.
Obviamente, é possível destacar ali diversos elementos que indicam o significado em
geral da crítica de Nietzsche à moral. Porém, pode-se observar igualmente que, em específico,
o uso da expressão “antinatureza” e seus derivados não é tão marcado, quanto o título levaria
a supor. Mesmo quando se extrapola o capítulo em questão, não se encontra nessa obra
qualquer definição mais clara para esse termo. Em todo o livro, exceto a menção no título do
capítulo sobre a moral, há apenas duas passagens nas quais emerge o termo ou alguma de suas
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o termo ocorre em Genealogia da moral, Crepúsculo dos ídolos, O anticristo, Ecce homo e
Nietzsche contra Wagner. Entre os póstumos e cartas mais tardias podem-se encontrar
também outras numerosas menções. Ao todo, são apenas 5 referências no período
compreendido entre 1850-1886, consideradas obras, cartas e anotações póstumas. Frente a
essas, deparamo-nos com o surpreendente número de 15 ocorrências relativas a 1887 e outras
25 a 1888.
Ainda assim, tomando-se como referência os textos publicados ou preparados para
publicação por Nietzsche, não encontramos definições categóricas do conceito de antinatureza
em lugar algum. Por outro lado, os indícios terminológicos levam-nos a supor que não se trata
de um conceito meramente secundário. Pelo contrário, a antinatureza ganha especial
relevância no contexto da crítica à moral. Ao que tudo indica, ela caracteriza, segundo a letra
de Crepúsculo dos ídolos, o modo próprio de atuar da moral. A moral se apresenta ou pode
ser interpretada como antinatureza.
Também não parece ser o caso de supor que se trate apenas de uma palavra de
significado difuso e sem maior importância. Há, sem dúvida, certa tensão na escolha do
termo. Se Nietzsche é de fato um crítico da tradição metafísica e, ao mesmo tempo, afirma
uma certa interpretação que defenderá sempre a imanência do mundo, é então lícito levantar a
questão: de que modo é possível a existência de uma antinatureza, na moral em específico ou
em qualquer outro domínio?
A depender do modo como se considera a relação entre natureza e antinatureza, tal
conceituação manterá uma inesquivável tensão com o propósito nietzschiano de retradução
em termos naturais e sua recondução à natureza, como é explicitado, por exemplo, em
JGB/BM 2303. Paralelamente, não parece lícito supor que esse tipo de posicionamento tenha
se alterado em Crepúsculo dos ídolos. Encontramos no texto de 1888, por exemplo, todo um
capítulo dedicado a desmitificação do conceito de “mundo verdadeiro” (cf. GD/CI Como o
“mundo verdadeiro” se tornou finalmente fábula). Por conseguinte, não há também uma
suposta outra natureza além daquela que encontramos no mundo “aparente”, em cuja fluidez
vivemos. Nesse sentido, o caráter antinatural da moral deve ser perfeitamente natural.
É a essa problemática que tentaremos nos direcionar nas próximas páginas. Se
obtivermos êxito em nossas pretensões, mostraremos que a antinatureza não é um termo
fortuito ou secundário no texto nietzschiano. Pelo contrário, trata-se, a nosso ver, de um
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Para uma excelente interpretação desse aforismo, cf. BRUSOTTI, 2013.
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Em Crepúsculo dos ídolos, o termo antinatureza aparece pela primeira vez no corpo do
texto apenas no aforismo 4. Nele, Nietzsche estabelece uma oposição entre “moral sadia”
(gesunde Moral) e “moral antinatural” (widernatürliche Moral):
Como se vê, a oposição é justificada pela relação de cada uma das morais com os
instintos da vida. Enquanto a moral sadia é dominada por esses instintos, a moral antinatural
coloca-se “contra os instintos da vida”.
É importante ressaltar aqui o pluralismo moral de Nietzsche. As expressões moral
sadia e moral antinatural não dizem respeito a apenas duas morais determinadas, mas antes a
dois modos de valorar e de se relacionar com a vida. Saúde e antinatureza agem aqui como
elementos de classificação de grupos de morais possíveis. Esse tipo de procedimento já é bem
conhecido, pois o filósofo já tinha realizado algo semelhante em textos anteriores. Um claro
exemplo é apresentação de duas formas de valorar em Além de bem e mal, sob os nomes de
“moral de senhores” e “moral de escravos” (cf. JGB/BM 260).
Voltando à moral antinatural, Nietzsche se esforça para mostrar que ela atentaria
contra os pressupostos mais fundamentais da vida, mesmo em âmbitos tradicionalmente
compreendido como neutros ou amorais. Casos ilustrativos encontram-se fartamente no
próprio Crepúsculo dos ídolos. Os capítulos “O problema de Sócrates” e “A 'razão' na
filosofia” denunciam precisamente esse ponto: mesmo o conhecimento mais “puro” carrega
consigo secretamente imperativos de ordem moral, frequentemente característicos do modo
antinatural de valorar.
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Sobre o consenso em torno da moralidade em Schopenhauer, basta que nos lembremos da segunda seção de
Sobre o fundamento da moral: “Em todos os tempos, pregou-se muita e boa moral; mas a fundamentação da
mesma encontrou-se constantemente em estado deplorável” (SCHOPENHAUER, 1977, vol. 6, p. 153). Para
mais informações sobre o pluralismo moral de Nietzsche e seu confronto com a ética schopenhaueriana, cf.
CARTWRIGHT, 1988; OLIVEIRA, 2015; URE 2006; e VAN TONGEREN, 2012.
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suas formas finais e consequências internas” (GM/GM III 27). Em sentido semelhante, o texto
de Ecce homo nos permite ver que o ateísmo pode ser a manifestação de diferentes processos.
O autor esclarece, por exemplo, em relação a si mesmo, que a razão de ser de sua descrença
em deus é distinta de outras razões possíveis: “Eu, absolutamente, não conheço o ateísmo
como resultado, menos ainda como acontecimento: ele se evidencia em mim por instinto”
(EH/EH Por que sou tão inteligente 1).
Levando-se em consideração o que até aqui foi assinalado, é forçoso notar que a moral
antinatural não é oposta a uma moral “natural”. Ou invés disso, em Crepúsculo dos ídolos,
Nietzsche preferiu construir seu jogo de oposições entre saúde e antinatureza. Isso nos leva a
destacar um segundo aspecto do conceito de antinatureza. A antinatureza possui um
caráter doentio. A moral antinatural é, sobretudo, um sintoma de doença. E, obviamente,
a moral sadia é, por sua vez, um sintoma de saúde.
A moral antinatural é um sintoma, pois, mais do que uma conclusão lógica, racional e
imparcial a respeito da vida e dos costumes, ela indica sempre uma valoração de fundo
essencialmente instintivo. As valorações morais são externações de certas configurações
instintivas profundas que não poderiam ser compreendidas de outra forma, senão pela leitura
de suas consequências, isto é, das valorações morais que delas derivam. Enquanto resultante
de impulsos, a moral antinatural está diretamente associada à fisiologia7 do indivíduo que a
profere.
É justamente em razão dessa íntima vinculação entre o indivíduo e sua moral que a
segunda pode ser um “documento” para a compreensão do primeiro. Seria possível, para
aquele que estivesse preparado para tal, ler a condição fisiológica de um indivíduo nas
nuances e nas entrelinhas de seu pensamento8. As morais restam na condição de signos a
7
Para mais informações sobre a relação entre as valorações humanas e sua constituição fisiológica, cf.
FREZZATTI JR, 2006 e MÜLLER-LAUTER, 1999.
8
A julgar por alguns de seus escritos, Nietzsche acredita ter desenvolvido a capacidade de fazer esse tipo de
leitura das condições de saúde de um homem a partir de suas valorações. Veja o caso da seguinte colocação
redigida em uma carta à irmã Elisabeth Nietzsche no ano de 1883: “Talvez, melhor do que ninguém, eu também
ainda saiba estabelecer hierarquias entre os homens fortes, de acordo com a virtude” (BVN/CN 1883 471). Uma
tradução integral da mencionada carta pode ser encontrada em NIETZSCHE, 2015.
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interpretar: “as morais são também apenas uma linguagem simbólica de afetos
[Zeichensprache der Affekte]” (JGB/BM 187). O mesmo é reafirmado em Crepúsculo dos
ídolos:
Assim, o juízo moral nunca deve ser tomado literalmente: enquanto tal, ele
contém apenas contrassensos. Porém, ele permanece inestimável enquanto
semiótica [Semiotik]: ele manifesta, ao menos aos conhecedores, as
realidades mais valiosas das culturas e interioridades, as quais não sabiam o
suficiente para “entender” a si próprias. Moral é apenas discurso simbólico
[Zeichenrede], apenas sintomatologia [Symptomatologie]: tem-se que já
saber do que se trata, para se tirar proveito dela. (GD/CI Os “melhoradores”
da humanidade 1)
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O mais interessante aqui não é, portanto, a veracidade de um juízo moral, seja ele
proveniente da moral antinatural ou da moral sadia. Para Nietzsche, em última instância, a
correção desses juízos jamais poderia ser comprovada. A busca da verdade em si mesmo, seja
em termos epistemológicos ou morais, sequer teria sido a autêntica atividade de um filósofo.
Assim, as valorações morais em si mesmas, independentemente de sua proveniência, não
possuem qualquer valor. Tanto o Sim, afirmador da vida, quanto o Não, negador da vida, nada
mais são do que idiossincrasias. Dessa forma, uma valoração moral qualquer jamais pode ser
universalizada como, por exemplo, pretenderia uma filosofia como a de Kant. Há no forte a
necessidade dos valores nobres. Há no décadent a necessidade dos valores da décadence, em
ambos os sentidos que a palavra necessidade assume nessa frase: como carência e como
anseio.
Logo, pode-se considerar coerentes até mesmo certos indivíduos que aparentemente
contradizem o pensamento e ação. Eventualmente, um condenador da vida e defensor da mais
ferrenha disciplina ascética não é ele mesmo um asceta. Seu discurso apresenta uma grave
condenação à vida e prega um certo modo de viver que ele não segue rigorosamente. Para
Nietzsche, tal condição de vida pode ser esclarecida por sua condição fisiológica.
Trata-se de um indivíduo em condição doentia, sem força sequer para manter um
rigoroso ascetismo. Seu discurso denuncia uma necessidade de sua condição de vida e,
justamente por sua incapacidade de levar o sacrifício das paixões adiante, seu discurso
intensifica-se e torna-se mais venenoso. Nas palavras de Nietzsche:
A propósito, aquela hostilidade, aquele ódio só atinge seu auge quando tais
naturezas não são mais firmes o suficiente para a cura radical, para a
renúncia de seu "demônio". Vislumbre-se a história completa dos sacerdotes
e filósofos, inclusive dos artistas: o mais venenoso contra os sentidos não foi
dito pelos impotentes, também não pelos ascetas, senão pelos acetas
impossíveis, por aqueles que teriam tido necessidade de ser ascetas... (GD/CI
Moral como antinatureza 2)
Em todo caso, não devemos esquecer de que estamos sempre diante de instintos em
luta entre si. Tanto a condenação quanto a bendição da vida resultam dessa luta. As criações
intelectuais, ou seja, do “espírito”, são totalmente condicionadas pelo jogo subterrâneo dos
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afetos.
Ainda que muitas vezes o discurso da tradição moral pregou a vitória do “espírito”
sobre as “paixões”, Nietzsche não cessa de argumentar em contrário. Podemos notar alguns
indícios dessa argumentação desde o princípio do capítulo “Moral como antinatureza”. No
primeiro aforismo, por exemplo, o pensador alemão afirma: “Aniquilar as paixões e anseios,
meramente para evitar sua estupidez e consequências desagradáveis de sua estupidez, parece-
nos hoje mesmo apenas como uma forma aguda de estupidez” (GD/CI Moral como
antinatureza 1).
De acordo com o ponto de vista aqui apresentado, o uso repetido e irônico do termo
“estupidez” (Dummheit) indica, estrategicamente, que também a tentativa de aniquilação das
paixões e dos anseios é uma forma de paixão e de anseio. Essa interpretação fortalece-se caso
considerarmos que o tema geral do aforismo é propriamente a “espiritualização das paixões”.
Em outras palavras, o espírito não é oposto ao campo passional do indivíduo, mas, pelo
contrário, ele provém precisamente das paixões. A guerra de morte da Igreja contra as
paixões, a tentativa de castrar todos os instintos da vida origina-se, a despeito de sua própria
opinião, de paixões e anseios. Usando uma fórmula de Genealogia da moral: a tentativa de
calar a vontade da vida, nada mais é que uma “vontade de nada”. Mas, enquanto tal, ela ainda
é uma vontade (cf. GM/GM III 28).
Não é sequer a qualidade dos instintos que muda, no caso de um negador ou de um
afirmador da vida, mas somente a configuração na qual os impulsos mais íntimos de um
indivíduo se organizam. Não se tratam de instintos de morte contra instintos de vida, mas
sempre certa dinâmica instintiva que se impõe ao indivíduo e valora através dele, como
mostra a segunda aparição do conceito de antinatureza no quinto capítulo de Crepúsculo dos
ídolos:
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Pode parecer, à primeira vista, estranho que a natureza possa ser a origem mesma da
antinatureza, porém, é preciso levar em consideração que a vida não é uma unidade10.
Segundo o ponto de vista nietzschiano, toda unidade é meramente aparente. Ela é o resultado
de uma formação de domínio de múltiplas forças e impulsos. O mundo é um constante jogo
9
Não opor essencialmente natureza e antinatureza certamente se harmoniza com a proposta apresentada no
início de Além de bem e mal, no contexto da crítica à metafísica: “A crença fundamental dos metafísicos é a
crença nas oposições de valores” (JGB/BM 2).
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Especificamente sobre o problema da unidade na filosofia de Nietzsche, recomendamos a leitura de
MÜLLER-LAUTER, 1997.
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de forças, uma multiplicidade em luta. A unidade pode unicamente ser compreendida como
uma cristalização mais ou menos estável de uma determinada formação de domínio de
impulsos. São essas constelações de força que podem estar em condição ascendentes ou
decadentes
As moralidades sadias e antinaturais não são, pois, resultados de processos instintivos
pura e essencialmente fortes ou fracos. Se assim os compreendêssemos cairíamos em um
esquema metafísico que Nietzsche pretende evitar. Tanto a moral nobre quando a moral
escrava é, isso sim, um resultado de processos de luta entre impulsos.
É, todavia, importante perceber que esses dois modos de valorar não são conciliáveis
ou elimináveis. Ainda que uma moralidade concreta possa trazer elementos das duas formas
de valorar e mesmo que um indivíduo possa antagonicamente portar caracteres das duas
moralidades, em última análise elas não se conciliam jamais no sentido de uma síntese
definitiva. Elas também não se eliminam mutuamente. Mesmo em um cenário em que a
humanidade esteja quase completamente comprometida com uma mesma forma de valorar, é
possível pensar manifestações de uma outra.
Ainda assim, Nietzsche vê seus contemporâneos como intimamente ligado à moral
escrava e lhe causa até mesmo um estranhamento o fato de que ela seja reconhecida como os
únicos valores válidos. O reconhecimento quase absoluto da moral escrava como a única
verdadeira moral chegaria mesmo a assustá-lo (cf. EH/EH Por que sou um destino 7). Mesmo
que no decorrer da história da filosofia tenham se travados inúmeros debates acerca da moral,
Nietzsche enxerga, no fundo, praticamente a mesma condenação da vida expressa pelos
filósofos. O debate filosófico jamais teria chegado às questões mais delicadas acerca da
moral, ou seja, o debate acerca da moral sempre tomou os valores da moral escrava como
irretocáveis.
Justamente nesse ponto, o discurso nietzschiano se insere e se reconhece. Ao analisar a
antinatureza, ele vincula-se também em alguma medida ao modo nobre de valorar. Não é a
moral antinatural que enxerga a si mesma como antinatural. Essa é, ao contrário, uma
prerrogativa do nobre, do saudável, daquele que ainda vê a si mesmo e seus instintos mais
naturais com orgulho. É do ponto de vista de uma moral sadia que uma moral doentia é
classificada como tal.
Desse modo pode ser interpretada, por exemplo, a aparição do conceito antinatureza
na primeira dissertação da Genealogia da moral. Segundo Nietzsche: “Roma sentiu no Judeu
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algo como a própria antinatureza, como que seu monstro antípoda” (GM/GM I 16). É o nobre
(representado por Roma) que olha com estranhamento as práticas ascéticas e valorações da
moral escrava (representado pelo judeu).
Nietzsche, nesse contexto, não é um indivíduo que identifica valorações morais de um
ponto de vista neutro, ou seja, desinteressado. Sua filosofia como um todo tem um caráter
eminentemente comprometido com a criação e a superação. Com isso, ela se assume enquanto
instrumento de luta, enquanto instrumento para o fortalecimento. Se ele se coloca diante da
moral, não o faz para simplesmente a refutar ou identificar suas estruturas, mas, sobretudo,
para superá-la.
Essa é nossa quinta e última conclusão: o conceito mesmo de antinatureza está
comprometido com o modo saudável de valorar.
Não obstante, é preciso reconhecer que Nietzsche não pretende reativar valores nobres
específicos e, em especial, os anteriormente válidos em povos e tempos mais fortes, como,
por exemplo, entre os gregos da época trágica. O filósofo alemão se compromete com a
superação da predominância da condição antinatural vigente e com a criação de novos e
inauditos valores. Para tanto, não se trata de eliminar o modo escravo de valorar, mas antes de
usá-lo a seu favor. Também as ferramentas de proveniência não nobre são úteis à construção
de novos valores:
Cada vez mais nossos olhos abrem-se para aquela economia, a qual ainda
precisa e sabe tirar proveito disso tudo que o santo desatino do sacerdote, a
razão doente no sacerdote, rejeita, para aquela economia na lei da vida que
tira sua vantagem mesmo da species repugnante do santarrão [Muckers], do
sacerdote, do virtuoso, – qual vantagem? – Ora, nós mesmos, nós imoralistas
somos aqui a resposta… (GD/CI Moral como antinatureza 6)
6. Considerações finais
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Referências
BRUSOTTI, Marco. “Der schreckliche Grundtext homo natura”: Texturen des Natürlichen im
Aphorismus 230 von Jenseits von Gut und Böse. In: Marcus Andreas Born / Axel Pichler
(Hg.). Texturen des Denkens: Nietzsches Inszenierung der Philosophie in “Jenseits von Gut
und Böse”. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, pp. 259-278, 2013.
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Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
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_____ . Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio
de P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
_____ . Crepúsculo dos ídolos: ou como se filosofa com o martelo. Tradução, notas e
posfácio de P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
_____ . Digitale Kritische Gesamtausgabe von Nietzsches Werken und Briefen. Edição
organizada por Paolo D'Iorio, baseada na edição crítica de G. Colli e M. Montinari e
publicada pela Nietzsche Source. Edição eletrônica. Disponível em
<http://www.nietzschesource.org/#eKGWB>, acesso em 14/07/2015.
_____ . Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio de P. C. de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
_____ . Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e
posfácio de P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
_____ . O caso Wagner: um problema para os músicos / Nietzsche contra Wagner: dossiê de
um psicólogo. Tradução, notas e posfácio de P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
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Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG
URE, Michael. The irony of pity: Nietzsche contra Schopenhauer and Rousseau. Journal of
Nietzsche Studies, issue 32, 2006.
VAN TONGEREN, Paul. A moral da crítica de Nietzsche à moral: estudo sobre “Para além
de bem e mal”. Tradução de Jorge Luiz Viesenteiner. Curitiba: Champagnat, 2012.
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