Vous êtes sur la page 1sur 19

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/318457118

O conceito de antinatureza em Crepúsculo dos ídolos

Article · January 2015

CITATIONS READS

0 147

1 author:

Fernando de Sá Moreira
Universidade Federal Fluminense
31 PUBLICATIONS   3 CITATIONS   

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Doutrinas da Identidade Pessoal em Schopenhauer e Nietzsche View project

Estratégias Emancipatórias e as Filosofias Negras e Indígenas View project

All content following this page was uploaded by Fernando de Sá Moreira on 16 July 2017.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

O conceito de antinatureza em Crepúsculo dos ídolos

The concept of anti-nature in Twilight of the Idols

Fernando de Sá Moreira

Doutor em Filosofia pela PUCPR e professor do IFPR campus Telêmaco Borba, Paraná, Brasil, e-mail:
fernando.moreira@ifpr.edu.br

Resumo
Em meio à profusão de obras gestadas e redigidas em 1888, Nietzsche prepara e publica o
conhecido livro Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa com o martelo. Trata-se de um
texto com 10 capítulos ligeiros e relativamente curtos, além de um prólogo e do encerramento
intitulado “Fala o martelo”. Em sua versão em português, o livro conta apenas com cerca de
150 páginas. No entanto, a despeito da imagem descompromissada que sua ligeireza passa, a
obra revela-se extremamente profunda ao leitor atento e rica em materiais e sentidos a
interpretar. O presente artigo analisa um conceito específico presente no quinto capítulo do
texto, cujo título é “Moral como antinatureza”. Referimo-nos ao conceito de “antinatureza”.
São apenas três passagens em toda a obra que mencionam esse conceito, todas elas
localizadas no capítulo acima aludido. No entanto, uma busca na totalidade dos textos
nietzschianos revela também que o conceito assume um papel razoavelmente central nos anos
finais de produção do filósofo alemão, em especial entre 1887 e 1888. Nossa investigação
procura evidenciar que a antinatureza não é um conceito absolutamente oposto ao conceito de
natureza. Paradoxalmente, o contraponto a esse conceito é representado pela noção de saúde.
A hipótese defendida é que a classificação da antinatureza enquanto tal resulta de um
complexo jogo de sentidos, dentre os quais identificamos quatro: a antinatureza como
estranhamento na visão do nobre; a antinatureza como negação do mundo; como antagonismo
contra as leis da vida; e como tendência de enfraquecimento e esfacelamento de si mesmo, de
sua própria natureza individual.

Palavras-chave: Antinatureza. Saúde. Doença. Instintos.

Abstract
Among the profusion of pieces conceived and written in 1888, Nietzsche puts together and
publishes the well-known book Twilight of the Idols, or how to philosophize with a hammer.
It is made up of 10 brief and relatively short chapters, besides a prologue and the ending
entitled "The Hammer Speaks". In its version in Portuguese, the book contains only about 150
pages. However, despite the immediate lack of commitment such a quick read conveys, the
piece reveals itself to be extremely deep to the careful reader and rich in materials and
meanings to be interpreted. The current article analyzes a specific concept found in the fifth
chapter of the text, whose title is “Morality as anti-nature”. Regarding the concept of anti-

57
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

nature, there are only three passages throughout the whole text which mention it, all of which
are found in the above-mentioned chapter. Despite that, in light of Nietzsche's lifetime work
and production, the concept takes on a reasonably central role in the philosopher's final active
years, particularly between 1887 e 1888. Our investigation aims at shedding light on anti-
nature as not the absolute opposite of nature, in their concepts. Paradoxically, its counterpoint
is represented by the notion of health. The hypothesis here to be defended is that anti-nature,
when classified as such, results in a complex web of meanings, within which four main
significances are identified: anti-nature as estrangement of the noble vision; anti-nature as the
negation of the world; as antagonism against the laws of life; and as a tendency to the
deterioration and disintegration of itself, within its own individual nature.

Keywords: Anti-nature, Health, Disease, Instincts.

1. Introdução

Como se sabe, Crepúsculo dos ídolos é uma das últimas obras organizadas por
Nietzsche e reúne em seus 10 capítulos reflexões sobre os mais diversos assuntos. Vários
temas clássicos de seu pensamento filosófico são retomados e reapresentados em uma
abordagem própria.
No presente trabalho, interessa-nos investigar um conceito específico, a saber: o
conceito de “antinatureza” (Widernatur). A expressão surge de forma mais destacada apenas
no título do quinto capítulo do texto, denominado “Moral como antinatureza” (Moral als
Widernatur). Vale notar ali que há certo paradoxo na proposição do capítulo, pois, apesar da
menção em seu título, a um primeiro olhar, o conceito parece ocupar um lugar meramente
secundário. Isso porque, ao fazer a leitura dessa parte do texto, não encontramos qualquer
definição mais clara do que significa ser uma “antinatureza”.
Obviamente, é possível destacar ali diversos elementos que indicam o significado em
geral da crítica de Nietzsche à moral. Porém, pode-se observar igualmente que, em específico,
o uso da expressão “antinatureza” e seus derivados não é tão marcado, quanto o título levaria
a supor. Mesmo quando se extrapola o capítulo em questão, não se encontra nessa obra
qualquer definição mais clara para esse termo. Em todo o livro, exceto a menção no título do
capítulo sobre a moral, há apenas duas passagens nas quais emerge o termo ou alguma de suas

58
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

possíveis derivações (cf. GD/CI A moral como antinatureza 4 e 5)1.


Essa não é, contudo, uma exclusividade do texto de 1888. Mesmo que tomemos a
totalidade da obra filosófica de Nietzsche2, continuaremos sem uma definição absolutamente
clara desse conceito. Ainda assim, não é sem sentido atentar que a palavra adquire cada vez
mais presença nos dois últimos anos de sua produção intelectual.
Na obra publicada por Nietzsche, Há apenas duas referências em livros anteriores a
1887, a saber, na segunda das Considerações extemporâneas e outra em Gaia ciência (cf.
HL/Co. Ext. II 10 e FW/GC 1, de 1874 e 1882, respectivamente). Em ambos os casos, as
ocorrências apresentam-se na forma adjetivada widernatürlich. Nas cartas anteriores a data
mencionada, encontramos apenas uma missiva a Elisabeth Nietzsche, datada de 27/04/1883
(cf. BVN/CN 1883 408), e uma segunda remetida em 26/03/1885 a Malwida von Meysenbug
(cf. BVN/CN 1885 587). Mesmo entre os apontamentos póstumos, há somente uma passagem
redigida na passagem de 1886 para 1887 (i.e. NF/FP 7[5] do final de 1886 – primavera de
1887), que registra também o adjetivo widernatürlich.
Em contrapartida, nas obras que vieram a público ou foram escritas entre 1887 e 1888,
1
A fim de facilitar a consulta aos textos de Nietzsche, adotamos no presente artigo a seguinte convenção de
siglas: KSA – Edição crítica das obras de Nietzsche, organizada por G. Colli e M. Montinari (Sämtliche Werke:
Kritische Studienausgabe in 15 Bänden); KSB – Edição crítica das cartas de Nietzsche, igualmente organizada
por G. Colli e M. Montinari (Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe in 8 Bänden); eKGWB – Edição crítica
digital das obras e cartas de Nietzsche, organizada por P. D'Iorio e baseada nas edições KSA e KSB (Digitale
Kritische Gesamtausgabe von Nietzsches Werken und Briefen); BVN/CN – Cartas de Nietzsche, obtidas junto à
eKGWB; GT/NT – O nascimento da tragédia (Die Geburt der Tragödie); HL/Co. Ext. II – Considerações
Extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida (Unzeitgemässe Betrachtungen, Zweites
Stück: Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben) MAI/HHI – Humano, demasiado humano, vol. I
(Menschliches, Allzumenschliches, erster Band); M/A – Aurora (Morgenröthe); FW/GC – Gaia ciência (Die
fröhliche Wissenschaft); JGB/BM – Além de bem e mal (Jenseits von Gut und Böse); GM/GM – Genealogia da
moral (Zur Genealogie der Moral); GD/CI – Crepúsculo dos ídolos (Götzen-Dämmerung); AC/AC – O
anticristo (Der Antichrist); EH/EH – Ecce homo (Ecce homo); e NW/NW – Nietzsche contra Wagner
(Nietzsche contra Wagner). Após a sigla, indicamos o número do aforismo, parágrafo ou seção citada. Sempre
que necessário, entre a sigla e o número do texto, mencionamos o nome ou número do capítulo ou dissertação
onde a passagem se encontra. No caso das cartas, antes da numeração da carta, situa-se o ano de redação. Os
apontamentos póstumos trazem a sigla NF/FP, seguida do número de registro e período de redação, de acordo
com a eKGWB e KSA. As traduções são de nossa pena e foram cortejadas com as conhecidas traduções das
obras de Nietzsche indicadas abaixo, na seção Referências bibliográficas. As demais referências a outros autores
segue o padrão AUTOR-DATA.
2
Para esta pesquisa, consideramos os resultados obtidos na busca textual pela expressão “widernat?r*” no banco
de dados da eKGWB. Isso significa que fazem parte da pesquisa as obras publicadas e organizadas por Nietzsche
e seus fragmentos póstumos a partir de 1869, além das cartas remetidas pelo filósofo desde 1850. Não estão
inclusas cartas redigidas por correspondentes e remetidas ao filósofo. Na expressão de busca, o símbolo “?” pode
ser representado por qualquer carácter único; no presente caso, principalmente “u” ou “ü”. Além disso, o
símbolo “*” pode ser substituído por qualquer conjunto de caracteres, independente de seu tamanho e inclusive a
possibilidade de ausência completa de caracteres naquele espaço. Por conseguinte, são igualmente registrados os
resultados “Widernatur”, “widernatürlich” e suas variações ou declinações. Para fins de registro: a busca textual
foi realizada a 16/03/2016 pela plataforma online do projeto, disponível em
<http://www.nietzschesource.org/#eKGWB>.

59
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

o termo ocorre em Genealogia da moral, Crepúsculo dos ídolos, O anticristo, Ecce homo e
Nietzsche contra Wagner. Entre os póstumos e cartas mais tardias podem-se encontrar
também outras numerosas menções. Ao todo, são apenas 5 referências no período
compreendido entre 1850-1886, consideradas obras, cartas e anotações póstumas. Frente a
essas, deparamo-nos com o surpreendente número de 15 ocorrências relativas a 1887 e outras
25 a 1888.
Ainda assim, tomando-se como referência os textos publicados ou preparados para
publicação por Nietzsche, não encontramos definições categóricas do conceito de antinatureza
em lugar algum. Por outro lado, os indícios terminológicos levam-nos a supor que não se trata
de um conceito meramente secundário. Pelo contrário, a antinatureza ganha especial
relevância no contexto da crítica à moral. Ao que tudo indica, ela caracteriza, segundo a letra
de Crepúsculo dos ídolos, o modo próprio de atuar da moral. A moral se apresenta ou pode
ser interpretada como antinatureza.
Também não parece ser o caso de supor que se trate apenas de uma palavra de
significado difuso e sem maior importância. Há, sem dúvida, certa tensão na escolha do
termo. Se Nietzsche é de fato um crítico da tradição metafísica e, ao mesmo tempo, afirma
uma certa interpretação que defenderá sempre a imanência do mundo, é então lícito levantar a
questão: de que modo é possível a existência de uma antinatureza, na moral em específico ou
em qualquer outro domínio?
A depender do modo como se considera a relação entre natureza e antinatureza, tal
conceituação manterá uma inesquivável tensão com o propósito nietzschiano de retradução
em termos naturais e sua recondução à natureza, como é explicitado, por exemplo, em
JGB/BM 2303. Paralelamente, não parece lícito supor que esse tipo de posicionamento tenha
se alterado em Crepúsculo dos ídolos. Encontramos no texto de 1888, por exemplo, todo um
capítulo dedicado a desmitificação do conceito de “mundo verdadeiro” (cf. GD/CI Como o
“mundo verdadeiro” se tornou finalmente fábula). Por conseguinte, não há também uma
suposta outra natureza além daquela que encontramos no mundo “aparente”, em cuja fluidez
vivemos. Nesse sentido, o caráter antinatural da moral deve ser perfeitamente natural.
É a essa problemática que tentaremos nos direcionar nas próximas páginas. Se
obtivermos êxito em nossas pretensões, mostraremos que a antinatureza não é um termo
fortuito ou secundário no texto nietzschiano. Pelo contrário, trata-se, a nosso ver, de um

3
Para uma excelente interpretação desse aforismo, cf. BRUSOTTI, 2013.

60
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

conceito intimamente ligado aos desenvolvimentos da crítica de Nietzsche à moral, inclusive


a seus desdobramentos tardios.

2. Moral antinatural e instintos

Em Crepúsculo dos ídolos, o termo antinatureza aparece pela primeira vez no corpo do
texto apenas no aforismo 4. Nele, Nietzsche estabelece uma oposição entre “moral sadia”
(gesunde Moral) e “moral antinatural” (widernatürliche Moral):

– Eu formalizo um princípio. Todo naturalismo na moral, isto é, toda moral


sadia é dominada por um instinto da vida, – qualquer mandamento da vida é
preenchido com um determinado cânon de “deve” ou “não deve”, qualquer
entrave e hostilidade é com isso posto de lado. Ao contrário, a moral
antinatural, isto é, quase toda moral que até agora foi ensinada, venerada e
pregada, volta-se diretamente contra os instintos da vida, – ela é uma, ora
secreta, ora ruidosa e descarada condenação desses instintos. (GD/CI A
moral como antinatureza 4)

Como se vê, a oposição é justificada pela relação de cada uma das morais com os
instintos da vida. Enquanto a moral sadia é dominada por esses instintos, a moral antinatural
coloca-se “contra os instintos da vida”.
É importante ressaltar aqui o pluralismo moral de Nietzsche. As expressões moral
sadia e moral antinatural não dizem respeito a apenas duas morais determinadas, mas antes a
dois modos de valorar e de se relacionar com a vida. Saúde e antinatureza agem aqui como
elementos de classificação de grupos de morais possíveis. Esse tipo de procedimento já é bem
conhecido, pois o filósofo já tinha realizado algo semelhante em textos anteriores. Um claro
exemplo é apresentação de duas formas de valorar em Além de bem e mal, sob os nomes de
“moral de senhores” e “moral de escravos” (cf. JGB/BM 260).
Voltando à moral antinatural, Nietzsche se esforça para mostrar que ela atentaria
contra os pressupostos mais fundamentais da vida, mesmo em âmbitos tradicionalmente
compreendido como neutros ou amorais. Casos ilustrativos encontram-se fartamente no
próprio Crepúsculo dos ídolos. Os capítulos “O problema de Sócrates” e “A 'razão' na
filosofia” denunciam precisamente esse ponto: mesmo o conhecimento mais “puro” carrega
consigo secretamente imperativos de ordem moral, frequentemente característicos do modo
antinatural de valorar.

61
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

Mesmo conceitos altamente abstratos, como “Deus”, na medida em que seriam


resultantes e serventes dessa moral antinatural, seriam hostis à vida e estariam intimamente
relacionados a ela. Nas palavras de Nietzsche: “Ela [a moral antinatural], ao dizer "Deus
enxerga o coração", diz Não aos mais baixos e elevados anseios da vida e toma Deus como
inimigo da vida... O santo no qual Deus tem seu regozijo é o castrado ideal... A vida finda
onde o 'reino de Deus' começa...” (GD/CI Moral como antinatureza 4).
Em sentido semelhante, o filósofo observa que grande parte dos conceitos morais
tradicionais são antinaturais, i.e. direcionam-se contra a vida. Por exemplo, a compaixão, que
frequentemente é vista por Nietzsche como uma forma de fazer mal para si mesmo, como
crueldade consigo mesmo ou envenenamento de si, ao invés de sustentar um verdadeiro
desejo de fazer bem ao outro4. Ela aparenta favorecer a vida, ao contribuir para a preservação
de certos indivíduos e diminuir as tensões existentes, contudo ela, no limite, a condena por
meio de um secreto envenenamento e contaminação das forças criadoras.
A criação exige a presença de tais tensões. Nas palavras do filósofo: “Se é fecundo
somente ao preço de ser rico em antagonismos; permanece-se jovem somente sob a condição
de que a alma não se distenda, não anseie por paz...” (GD/CI Moral como antinatureza 3).
Assim, todas as ações humanas são permeadas por valorações morais, que podem
pertencer a uma moral sadia ou a uma moral antinatural. Em outras palavras, as ações podem
ser lidas enquanto promotoras ou detratoras da vida e de seus instintos. Também os
pensamentos devem ser incluídos aqui. Não há qualquer distinção absoluta entre o agir e o
pensar. Para Nietzsche, a razão e seus julgamentos, tal como foi compreendida pela tradição
filosófica, não passaram de um erro. Sem perceber, todos os filósofos nada mais fizeram do
que expor em fórmulas e conceitos seus impulsos mais íntimos5.
Aqui se vê que Nietzsche não concorda com a ideia de que existiria uma moral única
para os homens, tampouco com a ideia de que através de alguma ferramenta seríamos capazes
de descortinar uma moralidade verdadeira e universalmente válida, fosse essa ferramenta a
razão ou pretenso senso moral. Esse é um dos motivos que o levam a criticar duramente
Schopenhauer, cuja reflexão ética faz crer que haveria um legítimo consenso entre os
filósofos sobre o conteúdo da moralidade humana. Para o predecessor de Nietzsche, todos
estariam de acordo quanto ao que se deve pregar; apenas não concordariam com a
4
Cf. GD/CI Incursões de um extemporâneo 35 e 37, também AC/AC 7.
5
Os pensamentos não são outra coisa, de acordo com Nietzsche, senão resultados de processos instintivos (cf.
JGB/BM 3 e 6).

62
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

fundamentação da moral6. No entanto, segundo Nietzsche, se a filosofia, quase em sua


totalidade, esteve em consenso a respeito de alguns julgamentos morais, disso não se deve
concluir que eles sejam em si mesmos válidos. Pelo contrário, o consenso dos filósofos, nada
mais revela senão uma certa idiossincrasia dos filósofos, uma filiação a uma forma de valorar
que, como sabemos, Nietzsche critica duramente. De que quase toda moral pregada até hoje
tenha um caráter antinatural, não decorre que exista apenas uma moral.
Não há um mundo verdadeiro pelo qual possam se fiar as ações humanas. Não há um
conhecimento absolutamente verdadeiro que possa indicar o caminho do agir moral. Sequer
há um “conhecimento pelo conhecimento” poderia garantir qualquer neutralidade do discurso
filosófico. Logo, a filosofia não estaria conduzindo-nos a uma verdade universal. Ela seria
mais propriamente conduzida por uma certa moral antinatural. Os juízos dos filósofos seriam,
na verdade, preconceitos morais intimamente relacionados com a antinatureza.
Estando esses elementos estabelecidos, podemos nos perguntar: de onde provém essa
idiossincrasia antinatural? Não restam dúvidas: em função do que já foi exposto, chegaremos
então a uma primeira conclusão a respeito da antinatureza: ela refere-se aos instintos. Ou
seja, é na natureza afetiva do homem que a antinatureza se constitui enquanto tal. Portanto,
sua origem não é diferente daquela da moral sadia. Ambas são derivações dos instintos e
dizem respeito aos instintos. Em outras palavras, a antinatureza refere-se aos instintos porque
ela é (a) um processo instintivo e (b) atua contra os instintos (da vida).

3. Moral sadia e moral antinatural

Quanto à moral sadia, seus conceitos e valorações cumpririam o propósito de elevar a


vida, ou seja, estariam a serviço de uma intensificação dos instintos da vida. Cabe observar
que a moral sadia sustenta, em determinados contextos, conceitos bastante assemelhados aos
da moral antinatural.
O conceito de Deus, no quadro de uma moral antinatural, é detrator dos instintos.

6
Sobre o consenso em torno da moralidade em Schopenhauer, basta que nos lembremos da segunda seção de
Sobre o fundamento da moral: “Em todos os tempos, pregou-se muita e boa moral; mas a fundamentação da
mesma encontrou-se constantemente em estado deplorável” (SCHOPENHAUER, 1977, vol. 6, p. 153). Para
mais informações sobre o pluralismo moral de Nietzsche e seu confronto com a ética schopenhaueriana, cf.
CARTWRIGHT, 1988; OLIVEIRA, 2015; URE 2006; e VAN TONGEREN, 2012.

63
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

Todavia, é possível encontrar eventualmente um conceito semelhante no seio de uma moral


sadia, satisfazendo ali o impulso de tonificação da vida. Um exemplo seria a religiosidade
grega e a concepção de deuses presente nela. Por diversas vezes, Nietzsche ressalta a
diferença entre gregos e homens modernos no tocante à religiosidade. Entre os gregos, a
crença nos deuses assumiria ainda uma forma sadia. Em condições de saúde como as suas, os
deuses podem servir precisamente como um caminho de expiação dos perigosos sentimentos
de culpa: “Fazendo, apesar disso, um dos bons algo que não é digno dos bons, recorre-se a
subterfúgios; por exemplo, atribui-se a culpa a um deus, ao se dizer: ele afligiu o bom com o
ofuscamento da percepção e a loucura” (MAI/HHI 45). Não esqueçamos que, segundo
Nietzsche, a loucura divina pode ser inclusive uma ferramenta extremamente útil e, portanto,
pode ser também bastante desejável; abrem-se por meio dela caminhos à criação e à
superação (cf. GT/NT Tentativa de autocrítica 4 e M/A 14).
Igualmente, os textos mais próximos de Crepúsculo dos ídolos mantêm a mesma
duplicidade. Nietzsche descreve em Além de bem e mal o modo como os antigos gregos
cultivavam sua religiosidade como reflexo de sua “plenitude e gratidão” (cf. JGB/BM 49). E,
em O anticristo, ele opõe o conceito de deus proveniente de um “povo que ainda crê em si” –
portanto, de um deus forte e símbolo da gratidão desse povo – com o conceito de deus
resultante de uma “castração antinatural” do deus nobre (cf. AC/AC 16).
Mais do que os conceitos ou valorações isoladamente, importa notar as relações que
tais criações humanas estabelecem com a vida e, em específico, com formas de vida em
particular. Essa relação com a proveniência dos valores é importante para determinar a saúde
ou a condição antinatural de uma moral.
O que foi dito em relação ao conceito de deus vale também no tocante ao ateísmo.
Ora, se Nietzsche critica duramente as religiões, não se deve concluir que o ateísmo seja em si
mesmo intensificador da vida. Tudo leva a crer que Nietzsche considera que existem diversas
formas de expressão para esse fenômeno, a qual nós genericamente designamos pelo termo
“ateísmo”. Em consequência disso, algumas dessas expressões podem ser resultado de uma
moral sadia, ao passo que outras derivariam de uma moral antinatural.
Em Genealogia da moral, por exemplo, o filósofo se esforça no sentido de argumentar
que certo tipo de ateísmo é apenas o desdobramento do próprio ideal ascético: “Nessa medida,
O ateísmo probo e incondicional […] não se contrapõe, como aparenta, àquele ideal
[ascético]; ao contrário, ele é apenas uma de suas últimas fases de desenvolvimento, uma de

64
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

suas formas finais e consequências internas” (GM/GM III 27). Em sentido semelhante, o texto
de Ecce homo nos permite ver que o ateísmo pode ser a manifestação de diferentes processos.
O autor esclarece, por exemplo, em relação a si mesmo, que a razão de ser de sua descrença
em deus é distinta de outras razões possíveis: “Eu, absolutamente, não conheço o ateísmo
como resultado, menos ainda como acontecimento: ele se evidencia em mim por instinto”
(EH/EH Por que sou tão inteligente 1).
Levando-se em consideração o que até aqui foi assinalado, é forçoso notar que a moral
antinatural não é oposta a uma moral “natural”. Ou invés disso, em Crepúsculo dos ídolos,
Nietzsche preferiu construir seu jogo de oposições entre saúde e antinatureza. Isso nos leva a
destacar um segundo aspecto do conceito de antinatureza. A antinatureza possui um
caráter doentio. A moral antinatural é, sobretudo, um sintoma de doença. E, obviamente,
a moral sadia é, por sua vez, um sintoma de saúde.

4. Moral antinatural como sintoma de declínio

A moral antinatural é um sintoma, pois, mais do que uma conclusão lógica, racional e
imparcial a respeito da vida e dos costumes, ela indica sempre uma valoração de fundo
essencialmente instintivo. As valorações morais são externações de certas configurações
instintivas profundas que não poderiam ser compreendidas de outra forma, senão pela leitura
de suas consequências, isto é, das valorações morais que delas derivam. Enquanto resultante
de impulsos, a moral antinatural está diretamente associada à fisiologia7 do indivíduo que a
profere.
É justamente em razão dessa íntima vinculação entre o indivíduo e sua moral que a
segunda pode ser um “documento” para a compreensão do primeiro. Seria possível, para
aquele que estivesse preparado para tal, ler a condição fisiológica de um indivíduo nas
nuances e nas entrelinhas de seu pensamento8. As morais restam na condição de signos a

7
Para mais informações sobre a relação entre as valorações humanas e sua constituição fisiológica, cf.
FREZZATTI JR, 2006 e MÜLLER-LAUTER, 1999.
8
A julgar por alguns de seus escritos, Nietzsche acredita ter desenvolvido a capacidade de fazer esse tipo de
leitura das condições de saúde de um homem a partir de suas valorações. Veja o caso da seguinte colocação
redigida em uma carta à irmã Elisabeth Nietzsche no ano de 1883: “Talvez, melhor do que ninguém, eu também
ainda saiba estabelecer hierarquias entre os homens fortes, de acordo com a virtude” (BVN/CN 1883 471). Uma
tradução integral da mencionada carta pode ser encontrada em NIETZSCHE, 2015.

65
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

interpretar: “as morais são também apenas uma linguagem simbólica de afetos
[Zeichensprache der Affekte]” (JGB/BM 187). O mesmo é reafirmado em Crepúsculo dos
ídolos:

Assim, o juízo moral nunca deve ser tomado literalmente: enquanto tal, ele
contém apenas contrassensos. Porém, ele permanece inestimável enquanto
semiótica [Semiotik]: ele manifesta, ao menos aos conhecedores, as
realidades mais valiosas das culturas e interioridades, as quais não sabiam o
suficiente para “entender” a si próprias. Moral é apenas discurso simbólico
[Zeichenrede], apenas sintomatologia [Symptomatologie]: tem-se que já
saber do que se trata, para se tirar proveito dela. (GD/CI Os “melhoradores”
da humanidade 1)

O pensamento antinatural, negador da vida, é absolutamente necessário enquanto tal,


na medida em que é um desdobramento de condições internas doentias. A antinatureza não é
um erro ou um engano, mas uma consequência de uma fisiologia arruinada.
Por exemplo, na concepção de Nietzsche, o fervor com o qual Schopenhauer defende
o aspecto desinteressado de sua concepção de arte e mesmo de música, não seria resultado
nada ocasional ou acidental. Também não se pode atribuir essas valorações a um simples
equívoco, como se ao elaborar uma cadeia de raciocínios, o filósofo tivesse se desviado em
alguma operação lógica e sido conduzido a um resultado meramente falso, o qual se poderia
corrigir agora mediante raciocínios logicamente mais adequados.
Ele seria, pelo contrário, resultado direto de uma necessidade fisiológica de alívio, de
descanso, de calmaria. A arte seria, para Schopenhauer, uma forma de manter “repouso em
todos os subterrâneos; todos os cães belamente postos à corrente [...]; vísceras modestas e
devotas” (GM/GM III 8). A concepção estética schopenhaueriana resultaria, assim, da
necessidade de pacificação interior e estaria diretamente ligada, portanto, às condições
interiores de seu autor.
O mesmo se poderia dizer de Sócrates. Seu moralismo e o problema de seu moralismo
referem-se aos instintos e a sua condição doentia, décadent. Por sua vez, o efeito causado pela
dialética socrática entre os gregos deve-se a uma condição doentia que, já em processo, se
intensificava entre os nobres atenienses contemporâneos ao mestre de Platão (cf. GD/CI O
problema de Sócrates 4 e 9).
Como Nietzsche nos permite enxergar na passagem seguinte, os juízos negadores da
vida não provém de qualquer condição fisiológica, senão de uma condição de
degenerescência:

66
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

A moral, na medida em que condena, em si, não por olhares [Hinsichten],


considerações [Rücksichten], intenções [Absichten] da vida, é um erro
específico do qual não se deve ter pena, uma idiossincrasia-de-degenerados
que, de maneira imensurável, proporcionou muito prejuízo!… (GD/CI Moral
como antinatureza 6)

O mais interessante aqui não é, portanto, a veracidade de um juízo moral, seja ele
proveniente da moral antinatural ou da moral sadia. Para Nietzsche, em última instância, a
correção desses juízos jamais poderia ser comprovada. A busca da verdade em si mesmo, seja
em termos epistemológicos ou morais, sequer teria sido a autêntica atividade de um filósofo.
Assim, as valorações morais em si mesmas, independentemente de sua proveniência, não
possuem qualquer valor. Tanto o Sim, afirmador da vida, quanto o Não, negador da vida, nada
mais são do que idiossincrasias. Dessa forma, uma valoração moral qualquer jamais pode ser
universalizada como, por exemplo, pretenderia uma filosofia como a de Kant. Há no forte a
necessidade dos valores nobres. Há no décadent a necessidade dos valores da décadence, em
ambos os sentidos que a palavra necessidade assume nessa frase: como carência e como
anseio.
Logo, pode-se considerar coerentes até mesmo certos indivíduos que aparentemente
contradizem o pensamento e ação. Eventualmente, um condenador da vida e defensor da mais
ferrenha disciplina ascética não é ele mesmo um asceta. Seu discurso apresenta uma grave
condenação à vida e prega um certo modo de viver que ele não segue rigorosamente. Para
Nietzsche, tal condição de vida pode ser esclarecida por sua condição fisiológica.
Trata-se de um indivíduo em condição doentia, sem força sequer para manter um
rigoroso ascetismo. Seu discurso denuncia uma necessidade de sua condição de vida e,
justamente por sua incapacidade de levar o sacrifício das paixões adiante, seu discurso
intensifica-se e torna-se mais venenoso. Nas palavras de Nietzsche:

A propósito, aquela hostilidade, aquele ódio só atinge seu auge quando tais
naturezas não são mais firmes o suficiente para a cura radical, para a
renúncia de seu "demônio". Vislumbre-se a história completa dos sacerdotes
e filósofos, inclusive dos artistas: o mais venenoso contra os sentidos não foi
dito pelos impotentes, também não pelos ascetas, senão pelos acetas
impossíveis, por aqueles que teriam tido necessidade de ser ascetas... (GD/CI
Moral como antinatureza 2)

Em todo caso, não devemos esquecer de que estamos sempre diante de instintos em
luta entre si. Tanto a condenação quanto a bendição da vida resultam dessa luta. As criações
intelectuais, ou seja, do “espírito”, são totalmente condicionadas pelo jogo subterrâneo dos

67
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

afetos.
Ainda que muitas vezes o discurso da tradição moral pregou a vitória do “espírito”
sobre as “paixões”, Nietzsche não cessa de argumentar em contrário. Podemos notar alguns
indícios dessa argumentação desde o princípio do capítulo “Moral como antinatureza”. No
primeiro aforismo, por exemplo, o pensador alemão afirma: “Aniquilar as paixões e anseios,
meramente para evitar sua estupidez e consequências desagradáveis de sua estupidez, parece-
nos hoje mesmo apenas como uma forma aguda de estupidez” (GD/CI Moral como
antinatureza 1).
De acordo com o ponto de vista aqui apresentado, o uso repetido e irônico do termo
“estupidez” (Dummheit) indica, estrategicamente, que também a tentativa de aniquilação das
paixões e dos anseios é uma forma de paixão e de anseio. Essa interpretação fortalece-se caso
considerarmos que o tema geral do aforismo é propriamente a “espiritualização das paixões”.
Em outras palavras, o espírito não é oposto ao campo passional do indivíduo, mas, pelo
contrário, ele provém precisamente das paixões. A guerra de morte da Igreja contra as
paixões, a tentativa de castrar todos os instintos da vida origina-se, a despeito de sua própria
opinião, de paixões e anseios. Usando uma fórmula de Genealogia da moral: a tentativa de
calar a vontade da vida, nada mais é que uma “vontade de nada”. Mas, enquanto tal, ela ainda
é uma vontade (cf. GM/GM III 28).
Não é sequer a qualidade dos instintos que muda, no caso de um negador ou de um
afirmador da vida, mas somente a configuração na qual os impulsos mais íntimos de um
indivíduo se organizam. Não se tratam de instintos de morte contra instintos de vida, mas
sempre certa dinâmica instintiva que se impõe ao indivíduo e valora através dele, como
mostra a segunda aparição do conceito de antinatureza no quinto capítulo de Crepúsculo dos
ídolos:

Quando nós falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da


vida: a vida mesmo exige-nos que fixemos valores, a vida mesmo valora
através de nós, quando nós fixamos valores... Segue-se daí que também
aquela antinatureza de moral, a qual concebe Deus como contraconceito e
condenação da vida, é somente um juízo de valor da vida - de qual vida? De
qual tipo de vida? - Ora, eu já dei a resposta: da vida declinante,
enfraquecida, cansada e condenada. (GD/CI Moral como antinatureza 5)

Em última instância, a moral antinatural, longe de ser fruto de uma força


qualitativamente diferente da moral sadia, tem a mesma proveniência desta última, ou seja, a
própria vida. Deste modo, não existe aqui uma oposição essencial entre “vida” e “morte”.

68
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

Deve-se pensar, portanto, em outra origem da oposição entre as moralidades. Porém,


vale ressaltar que essa origem não pode ser compreendida como fruto de um “sujeito”, de um
“espírito” ou, ainda, de uma “alma” autônoma, tal como foi pensado eventualmente pela
tradição filosófica. Quando Nietzsche afirma que valoramos sob a ótica da vida, não há mais
como delegar a um sujeito o papel de protagonista de suas próprias valorações. Aquilo que
valora é ainda mais profundo que os pensamentos e sensações conscientes de um sujeito. É a
própria vida que fala através de nós. Mas, ela mesma não é uma unidade que fala
univocamente. Pelo contrário, ela fala de diferentes modos em diferentes casos, ela configura
espécies de vida, modos de vida distintos. A valoração nobre é uma valoração da vida que
decorre de uma determinada forma e condição de vida; a valoração escrava e antinatural
decorre, por sua vez, de outra determinada forma e condição de vida.
De tudo o que até aqui foi apresentado, pode-se concluir que a moral sadia está
relacionada com a vida ascendente e a antinatureza – essa é nossa terceira conclusão – está
relacionada com a vida em uma configuração declinante. Ser doentio é ser declinante,
degenerescente. Como se pode perceber, se em um primeiro momento somos tentados a
interpretar o conceito de antinatureza como um elemento transcendente e/ou essencialmente
oposto à natureza, agora, para fazer justiça ao pensamento nietzschiano, devemos interpretá-lo
de forma imanente, de acordo com certa dinâmica própria da vida 9. Um quarto aspecto que
destacamos é que a antinatureza é imanente à vida. Trata-se, portanto, de uma
naturalização da antinatureza.

5. A antinatureza como conceito do nobre

Pode parecer, à primeira vista, estranho que a natureza possa ser a origem mesma da
antinatureza, porém, é preciso levar em consideração que a vida não é uma unidade10.
Segundo o ponto de vista nietzschiano, toda unidade é meramente aparente. Ela é o resultado
de uma formação de domínio de múltiplas forças e impulsos. O mundo é um constante jogo

9
Não opor essencialmente natureza e antinatureza certamente se harmoniza com a proposta apresentada no
início de Além de bem e mal, no contexto da crítica à metafísica: “A crença fundamental dos metafísicos é a
crença nas oposições de valores” (JGB/BM 2).
10
Especificamente sobre o problema da unidade na filosofia de Nietzsche, recomendamos a leitura de
MÜLLER-LAUTER, 1997.

69
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

de forças, uma multiplicidade em luta. A unidade pode unicamente ser compreendida como
uma cristalização mais ou menos estável de uma determinada formação de domínio de
impulsos. São essas constelações de força que podem estar em condição ascendentes ou
decadentes
As moralidades sadias e antinaturais não são, pois, resultados de processos instintivos
pura e essencialmente fortes ou fracos. Se assim os compreendêssemos cairíamos em um
esquema metafísico que Nietzsche pretende evitar. Tanto a moral nobre quando a moral
escrava é, isso sim, um resultado de processos de luta entre impulsos.
É, todavia, importante perceber que esses dois modos de valorar não são conciliáveis
ou elimináveis. Ainda que uma moralidade concreta possa trazer elementos das duas formas
de valorar e mesmo que um indivíduo possa antagonicamente portar caracteres das duas
moralidades, em última análise elas não se conciliam jamais no sentido de uma síntese
definitiva. Elas também não se eliminam mutuamente. Mesmo em um cenário em que a
humanidade esteja quase completamente comprometida com uma mesma forma de valorar, é
possível pensar manifestações de uma outra.
Ainda assim, Nietzsche vê seus contemporâneos como intimamente ligado à moral
escrava e lhe causa até mesmo um estranhamento o fato de que ela seja reconhecida como os
únicos valores válidos. O reconhecimento quase absoluto da moral escrava como a única
verdadeira moral chegaria mesmo a assustá-lo (cf. EH/EH Por que sou um destino 7). Mesmo
que no decorrer da história da filosofia tenham se travados inúmeros debates acerca da moral,
Nietzsche enxerga, no fundo, praticamente a mesma condenação da vida expressa pelos
filósofos. O debate filosófico jamais teria chegado às questões mais delicadas acerca da
moral, ou seja, o debate acerca da moral sempre tomou os valores da moral escrava como
irretocáveis.
Justamente nesse ponto, o discurso nietzschiano se insere e se reconhece. Ao analisar a
antinatureza, ele vincula-se também em alguma medida ao modo nobre de valorar. Não é a
moral antinatural que enxerga a si mesma como antinatural. Essa é, ao contrário, uma
prerrogativa do nobre, do saudável, daquele que ainda vê a si mesmo e seus instintos mais
naturais com orgulho. É do ponto de vista de uma moral sadia que uma moral doentia é
classificada como tal.
Desse modo pode ser interpretada, por exemplo, a aparição do conceito antinatureza
na primeira dissertação da Genealogia da moral. Segundo Nietzsche: “Roma sentiu no Judeu

70
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

algo como a própria antinatureza, como que seu monstro antípoda” (GM/GM I 16). É o nobre
(representado por Roma) que olha com estranhamento as práticas ascéticas e valorações da
moral escrava (representado pelo judeu).
Nietzsche, nesse contexto, não é um indivíduo que identifica valorações morais de um
ponto de vista neutro, ou seja, desinteressado. Sua filosofia como um todo tem um caráter
eminentemente comprometido com a criação e a superação. Com isso, ela se assume enquanto
instrumento de luta, enquanto instrumento para o fortalecimento. Se ele se coloca diante da
moral, não o faz para simplesmente a refutar ou identificar suas estruturas, mas, sobretudo,
para superá-la.
Essa é nossa quinta e última conclusão: o conceito mesmo de antinatureza está
comprometido com o modo saudável de valorar.
Não obstante, é preciso reconhecer que Nietzsche não pretende reativar valores nobres
específicos e, em especial, os anteriormente válidos em povos e tempos mais fortes, como,
por exemplo, entre os gregos da época trágica. O filósofo alemão se compromete com a
superação da predominância da condição antinatural vigente e com a criação de novos e
inauditos valores. Para tanto, não se trata de eliminar o modo escravo de valorar, mas antes de
usá-lo a seu favor. Também as ferramentas de proveniência não nobre são úteis à construção
de novos valores:

Cada vez mais nossos olhos abrem-se para aquela economia, a qual ainda
precisa e sabe tirar proveito disso tudo que o santo desatino do sacerdote, a
razão doente no sacerdote, rejeita, para aquela economia na lei da vida que
tira sua vantagem mesmo da species repugnante do santarrão [Muckers], do
sacerdote, do virtuoso, – qual vantagem? – Ora, nós mesmos, nós imoralistas
somos aqui a resposta… (GD/CI Moral como antinatureza 6)

6. Considerações finais

Levantamos finalmente cinco aspectos do conceito de antinatureza: (1) sua relação


com os instintos, (2) sua condição doentia, (3) a compreensão de que a doença é resultado de
uma vida declinante, (4) o traço imanente do conceito, (5) seu comprometimento com o modo
sadio de valorar. Segue-se que o conceito de antinatureza descreve um processo vital,
portanto, em certo sentido, um processo natural. Trata-se de um jogo de impulsos que, a fim

71
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

de promover a preservação de um indivíduo ou grupo, gesta uma moral da abnegação.


Consequentemente, ele torna-se a causa de sua própria degenerescência, na medida em que
procura aniquilar suas paixões e, com isso, enfraquece e envenena a si mesmo.
Embora possa ser perfeitamente compreendido como um processo natural, é evidente
que a qualificação desse processo como “antinatural” não é sem razão. Nele, encontram-se
características específicas que o distinguem dos processos sadios e, isto é, dos processos
“naturais”.
Tudo nos leva a crer, então, que o conceito de antinatureza possui em Crepúsculo dos
ídolos quatro sentidos principais e interrelacionados, a partir dos quais ele se justifica na obra.
A antinatureza é antinatural (1) porque causa o estranhamento do nobre que, de seu ponto de
vista, não consegue prontamente compreender as valorações dos declinantes como óbvias e
“naturais”; (2) porque contraria a tendência geral da vida à superação, ao favorecer a
conservação em detrimento da natural superação de si; (3) porque ela propõe um fabuloso
“mundo verdadeiro” para além do mundo natural, o qual ela nega, ao criar metafisicamente
uma oposição absoluta entre ser e vir-a-ser; e (4) porque ela degenera ou indica a
degenerescência da natureza do indivíduo, ao buscar a extirpação e castração de algo em si, de
seus instintos de vida.

Referências
BRUSOTTI, Marco. “Der schreckliche Grundtext homo natura”: Texturen des Natürlichen im
Aphorismus 230 von Jenseits von Gut und Böse. In: Marcus Andreas Born / Axel Pichler
(Hg.). Texturen des Denkens: Nietzsches Inszenierung der Philosophie in “Jenseits von Gut
und Böse”. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, pp. 259-278, 2013.

CARTWRIGHT, D. E. Schopenhauer's Compassion and Nietzsche's Pity. Schopenhauer-


Jahrbuch, vol. 69, pp. 557-567, 1988. Disponível em
<http://www.schopenhauer.philosophie.uni-mainz.de/SchopJbInhVerz.htm#SJ1988>. Acesso
em 26 de agosto de 2015.

FREZZATTI JR, Wilson. A psicologia de Nietzsche: afirmação e negação da vida como


sintomas de saúde e doença. In: SOUZA, E. C.; CRAIA, E. C. P. Ressonâncias filosóficas:
entre o pensamento e a ação. Cascavel: EDUNIOESTE, 2006.

MÜLLER-LAUTER. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Tradução de Oswaldo


Giacoia. São Paulo: Annablume, 1997.

72
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

_____ . Décadence artística enquanto décadence fisiológica: a propósito da crítica tardia de


Friedrich Nietzsche a Richard Wagner. Cadernos Nietzsche, nº 6, pp. 11-30, 1999. Disponível
em <http://cadernosnietzsche.unifesp.br/pt/component/k2/item/download/30>. Acesso em
23/03/2016.

NIETZSCHE. Friedrich. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio de P. C. de Souza. São


Paulo: Companhia das Letras, 2001.

_____ . Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio
de P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

_____ . Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução, notas e posfácio de P. C.


de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

_____ . “Carta do início de novembro de 1883 a Elisabeth Nietzsche em Naumburg". In:


Estudos Nietzsche, vol. 6, n.01, jan/jun 2015, p.151-154. Disponível em
<http://periodicos.ufes.br/estudosnietzsche/article/view/11908>. Acesso em 23/03/2016.

_____ . Crepúsculo dos ídolos: ou como se filosofa com o martelo. Tradução, notas e
posfácio de P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

_____ . Digitale Kritische Gesamtausgabe von Nietzsches Werken und Briefen. Edição
organizada por Paolo D'Iorio, baseada na edição crítica de G. Colli e M. Montinari e
publicada pela Nietzsche Source. Edição eletrônica. Disponível em
<http://www.nietzschesource.org/#eKGWB>, acesso em 14/07/2015.

_____ . Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio de P. C. de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

_____ . Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio de P. C. de Souza.


São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

_____ . Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e
posfácio de P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

_____ . O anticristo: maldição ao cristianismo / Ditirambos de Dionísio. Tradução, notas e


posfácio de P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

_____ . O caso Wagner: um problema para os músicos / Nietzsche contra Wagner: dossiê de
um psicólogo. Tradução, notas e posfácio de P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.

_____ . O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio


de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

_____ . Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe in 8 Bänden. Edição organizada por G.


Colli e M. Montinari. Berlim: Walter de Gruyter, 1986.

73
Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 57-74, 2015.
Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/MG

_____ . Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Edição organizada por G.


Colli e M. Montinari. Berlim: Walter de Gruyter, 1999.

_____ . Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a


vida. Tradução de M. A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

OLIVEIRA, J. R. Da compaixão à inocência: Nietzsche e Schopenhauer em torno da questão


do egoísmo. Veritas, Porto Alegre, v. 60, n. 1, pp. 167-190, jan-abr. 2015. Disponível em
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/view/14147>. Acesso em
23/03/2016.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. Tradução de M. L. Cacciola. 2ª


ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

_____ . Zürcher Ausgabe: Werke in zehn Bänden. Zürich: Diogenes, 1977.

URE, Michael. The irony of pity: Nietzsche contra Schopenhauer and Rousseau. Journal of
Nietzsche Studies, issue 32, 2006.

VAN TONGEREN, Paul. A moral da crítica de Nietzsche à moral: estudo sobre “Para além
de bem e mal”. Tradução de Jorge Luiz Viesenteiner. Curitiba: Champagnat, 2012.

74
View publication stats

Vous aimerez peut-être aussi