Vous êtes sur la page 1sur 7

DUNKER, C.I.L. – Vontade Incontrolável de Comer Nada.

Viver Psicologia, São Paulo, n 88, 28-30,


1999.

A Anorexia e seu Imaginário Desejante

Christian Ingo Lenz Dunker

Deixar de comer, até a morte, se for preciso, constitui um dos atos mais
intrigantes e trágicos que a subjetividade soube inventar. Menos que o suicídio, ato
instantâneo, que pode ser acolhido dentro do imponderável que nos toma em certos
momentos agudos, recusar o alimento é um ato continuado, decidido e lentamente
reafirmado. Ato, que parece concentrar unidimensionalmente toda a vontade do
sujeito. E que, no entanto, a supera impondo-se como algo que está para além de sua
vontade, de seu domínio ou controle.

Esta obstinada persistência é tão mais insólita pelo aspecto negativo do


desejo: não comer. Recusa radical. Ingenuamente podemos pensar que o paradoxo
contido da anorexia deriva da recusa de uma necessidade orgânica. Seria um contra
senso biológico, uma corrupção do instinto mais elementar de autoconservação.
Talvez um equívoco na engrenagem cerebral, um desajuste dos neurotransmissores
que a azeitam ou ainda uma inadequação de sua estratégia genética. Essa linha de
argumentação acaba por evitar aquilo que se dá a ver de forma mais direta no quadro.
Trata-se de uma "doença da vontade" onde se clama pela condição do sujeito. Sujeito
capaz de escolher e decidir individualmente o que fazer com seu corpo, sua imagem e
com seu estilo alimentar.

Mas esta suposição é corroborada por outro fato cabal, e talvez mais
objetivável. A anorexia é um mal estar próprio das culturas organizadas pelo excesso.
É quase desconhecida em países e regiões onde predomina a pobreza e a miséria ou
onde a cultura do consumo e da oferta de objetos ainda não se implantou
definitivamente. No Brasil, isto permite situar o contraste social em que vivemos.
Uma parte significativa da população passa fome enquanto nos grandes centros ,
especialmente entre as camadas médias, a anorexia aumenta sua incidência. Em
recente pesquisa, realizada em colégios de classe alta na cidade de São Paulo,

1
DUNKER, C.I.L. – Vontade Incontrolável de Comer Nada. Viver Psicologia, São Paulo, n 88, 28-30,
1999.

verificou-se que mais de 20 % das adolescentes consultadas apresentavam indícios de


subnutrição e traços que permitiam supor a formação de um quadro anoréxico ou
bulímico.

É improvável, portanto, que transtornos orgânicos constituam a causa de tal


vicissitude do desejo na anorexia. Sua definição, como uma mera série de
comportamentos, de certa forma, contribui para o obscurecimento do fato
fundamental relativo à incidência do desejo na anorexia. O que não impede, como se
sabe, que tais comportamentos e condições corporais efetivas, se apresentem como
efeitos desta recusa no plano do desejo.

Os quatro critérios psiquiátricos para diagnosticar a anorexia incluem este


equívoco de forma explícita: recusa a manter-se no peso mínimo, medo intenso de
ganhar peso, alteração na forma de avaliar o corpo e amenorréia. Ora, a amenorréia,
ou interrupção da menstruação, é uma situação comum a diversos quadros onde há
déficit nutricional, não indica pois a causa, mas a conseqüência da anorexia.
Igualmente a recusa, o medo e as transformações da percepção corporal são maneiras
de descrever e objetivar aquilo que por definição escapa a se objetivar plenamente, a
saber: o desejo.

Das concepções psicológicas da antiguidade até Nietzsche e Freud, o desejo


sempre foi considerado um movimento baseado na falta, carência ou insuficiência da
qual a alma padece. Por isso ela se liga ao futuro, assim como a memória se liga ao
passado e o pensamento ao presente. O desejo antecipa o futuro ao tornar presente o
passado, como o atesta sua expressão mais tipicamente brasileira: a saudade. No caso
da anorexia o futuro se estreita em uma imagem positivada e paradoxal: o corpo-nada.
Um corpo que é todo insuficiência diante de uma imagem que não se consegue
definir. É sempre aquela que corresponderia a um corpo "mais magro ainda". Este
corpo imaginário, objeto paradoxal, para um Outro que se torna progressivamente
menos específico, vai simultaneamente perdendo a transitividade de seu desejo. Ele
cada vez mais se adere a uma imagem intransitiva de si mesmo.

Mas corpo para quem ? Um traço insistente no discurso de pacientes que


sofrem com anorexia, ou caminham para ela, modula esta recusa de que falei. É uma

2
DUNKER, C.I.L. – Vontade Incontrolável de Comer Nada. Viver Psicologia, São Paulo, n 88, 28-30,
1999.

recusa que não reconhece um interlocutor. É ficar magra "para mim mesmo". Ou
ainda de forma intransitiva: "mais magra por que sim. Por que é assim que deve ser.”
Ao contrário do que se poderia supor, em uma impressão inicial, não se trata de
ajustamento a algum cânone estético que tornaria o sujeito, ou sua imagem corporal,
mais apreciável. Não é uma condição, que se explicite, para se fazer objeto para o
olhar desejante do Outro. No nível explícito, e sabemos que este não diz tudo, a
recusa da anorexia evita constituir ou legitimar aquele para quem ela se dirige. Tudo
se passa, aparentemente, entre o olhar e o corpo próprio no espelho. Daí sua
associação clássica com os fenômenos narcísicos.

Considero imprecisa esta associação, pelo menos se entendemos o


narcisismo como um estado de encantamento e satisfação com a imagem do que o
sujeito foi, é ou será. O narcisista, nestes termos, se mostra inerme ou apático em
relação aquilo que lhe é alheio. Isso acontece na anorexia, mas deve se acrescentar a
esta "bela indiferença" uma atitude radical, quase política, de recusa. É uma recusa ao
excesso que lhe chega do outro. Uma recusa ao mundo da oferta de objetos e de
imagens e ao imperativo que lhe corresponde: "faça-se desejar". Isso combina com a
ausência da anorexia em configurações culturais não inteiramente orientados para o
consumo de imagens.

É muito comum a associação da anorexia com contextos de criação onde os


pais, ou seus representantes, preocupam-se excessivamente, e às vezes redutivamente
em suprir as necessidades dos filhos. Preocupam-se demasiadamente com a satisfação
dos filhos. Que não lhes falte nada: material, psíquica e socialmente. Um horror à
carência que obseda pais que trabalham e não podem portanto oferecer o tempo
necessário a estes. Isso, se traduz por um modo de criação onde a função dos pais
concentra-se, basicamente, em oferecer aos filhos objetos e serviços de forma
eficiente. Protegê-los do risco e evitar suas decepções. Isto é, protegê-los contra a
falta. Ora, como vimos a falta é a condição e o motor do desejo. Não apenas a falta
no plano dos objetos da necessidade, mas a falta como aquilo que torna possível e
desejável um futuro diferente do presente. Uma falta justamente que resista a qualquer
ocupação com a imagem positiva de um objeto.

3
DUNKER, C.I.L. – Vontade Incontrolável de Comer Nada. Viver Psicologia, São Paulo, n 88, 28-30,
1999.

No contexto de produção da anorexia a falta costuma se apresentar apenas


como um acidente, uma indisponibilidade ocasional. A carência de dinheiro, poder ou
os meios para eliminá-la. Mas não seria esta pura insuficiência o que retorna na
insatisfação anoréxica com o peso ou com a imagem de seu corpo ? A recusa ganha
assim contornos de denúncia à invasão pela oferta ao outro. Denúncia de que mais
além do objeto e de sua imagem existe o dom. Existe o que se passa na forma como se
oferta algo e no modo como se o pede. Há, por assim dizer uma relação desejante e
não apenas uma troca de interesses ou uma sutura das necessidades.

Ora, o mundo da troca de objetos na esfera do capital está coordenado pela


idéia de que há algo mais que surge neste intercâmbio. Este "algo mais" se acumula,
aumentando gradativamente aquilo que o senso comum aprendeu a chamar de valor
simbólico dos objetos. Assim, por exemplo, um mesmo vestido adquire valores
diferentes, quer demos a ele o nome de Zimp ou de Firum. Não me refiro aqui apenas
ao preço, mas ao valor operativo destas nomeações no interior das relações entre os
sujeitos. O exemplo serve para mostrar como nos tornamos consumidores, não apenas
de objetos, mas de palavras e também de imagens.

No filme "Beleza Americana" esta variação das modalidades de consumo


aparece amplamente retratada: o colecionador de imagens em vídeo, o que guarda
sacrada e secretamente objetos com a marca do nazismo, aquela que consome sua
imagem de ninfeta, a outra que cultiva o bom gosto duvidoso, e assim por diante. Na
maioria dos casos o filme esboça uma crítica ao caráter insensato do regime de
valores assim produzido. Insensato pois falso por um lado e inútil por outro e no
entanto desejável. Neste contexto não é incompreensível que o próprio sujeito se
identifique a um objeto, imagem ou palavra e enuncie insistentemente a única questão
que lhe resta nesta posição: qual o seu valor para o Outro ? Que lugar lhe é reservado
na prateleira do sistema do desejo quando este se faz equivalente ao sistema do
mercado ? Em última instância quando, afinal, seu valor será reconhecido: pelo
sussurro de um amante, pelo aplauso das multidões ou pelo titilar das moedas. .

A estratégia anoréxica revela-se, assim, como uma denúncia que não se


percebe enquanto tal. Por um lado ela desfaz a consistência deste Outro ao não
reconhecê-lo mais em nenhum coletivo humano: "não é para ninguém, é para mim
4
DUNKER, C.I.L. – Vontade Incontrolável de Comer Nada. Viver Psicologia, São Paulo, n 88, 28-30,
1999.

mesmo". Por outro, ela constrói uma imagem impossível, uma imagem paradoxal,
justamente por definir-se por uma negatividade: "ainda não é este corpo".
Negatividade que se mostra inclusive em termos perceptivos. Diante do espelho ela
efetivamente vê-se com um corpo que ela não tem, mas com o corpo que ela é. Mas
não tem a imagem do corpo desejada segundo qual olhar ? - recoloco a questão. Onde
poderia estar instalado este olhar universal que diria enfim qual é e onde se encontra o
corpo desejável ? Desejável por todos e para todos.

Ora, esta imaginária bolsa de valores do desejo em escala planetária tem


suas figuras: o mundo da moda, o mundo do cinema, o mundo da propaganda. Note-se
o prefixo usualmente empregado: "mundo". Isto é, uma totalidade, cerrada,
consistente e com leis próprias de regulação. É este aspecto de totalidade imaginária
que a estratégia anoréxica recusa explicitamente e no entanto endossa implicitamente.
Ela o endossa quando procura isolar apenas e unicamente este "algo mais" que se
produz nas trocas que afinal definem este mundo enquanto tal. Ela fica com o "algo
mais" e recusa o intercâmbio que o produz.

Isso explicaria a ligação entre a anorexia e o "mundo do excesso". Um


mundo onde a velocidade das trocas aumenta inversamente à singularização das
pessoas nelas envolvidas. O excesso, aqui considerado, não é apenas decorrente da
produção de novos objetos, palavras ou imagens, mas da crescente equivalência
universal entre eles. Efeito que se evidencia nas situações mais prosaicas do
cotidiano. Quanto mais canais de televisão são oferecidos, mais eles começam a se
parecer todos iguais. Duas soluções costumam se impor nesta situação. Ou escavamos
laboriosamente até encontrar aquele que seria "o objeto", ou recusamos o conjunto
como um todo, desinvestindo nosso interesse deste "mundo". No primeiro caso
encontramos a especialização crescente do gosto coletivo e a "mania" que esta
costuma trazer consigo pela enunciação de que "há um" que escapa a degradação do
valor. No segundo caso encontramos a depressão dos que abandonam ou são
abandonados pelo universo do valor, em suas diferentes figuras.

Esse processo costuma ocorrer no desenvolvimento da anorexia. Primeiro


surge a concentração da atenção dirigida ao universo alimentar e visual. Sua fala gira
eminentemente em torno do tema comida e emagrecimento. Ocorre a
5
DUNKER, C.I.L. – Vontade Incontrolável de Comer Nada. Viver Psicologia, São Paulo, n 88, 28-30,
1999.

sobrevalorização de pequenos comentários sobre a espessura, densidade e formato


corporal, geralmente trazendo efeitos devastadores sobre o sujeito. Idéias intrusivas e
incontroláveis acerca de torna-se mais e mais gorda irrompem na mente: às vezes
explodir de tanto comer, como no filme de Monty Python ("O Sentido da Vida"). Em
seguida surge a recusa a considerar observações sobre a adequação de sua forma. O
Outro, perde consistência na esfera da palavra. Sobrevém então as práticas
expiatórias: regimes, exercícios e purgações que ganham autonomia, transformando-
se em uma atividade automática. Neste momento costuma declinar o interesse social e
sexual. Episódios de ensimesmamento e tristeza renitente tornam-se constantes. Aqui,
geralmente, inicia-se a fase mais dramática. Preocupados com a evidente modificação
do discurso e da vida cotidiana, os amigos, familiares e por vezes médicos ou
psicólogos, costumam intervir, neste momento, "oferecendo" soluções ou enfatizando
suas "recomendações". Tomada pelo ódio da incompreensão, a anoréxica recebe tais
"ofertas" como verdadeiros insultos, quando não simplesmente os ignora. Como
vimos, é justamente este excesso de oferta o que ocupa um lugar crucial na formação
do quadro. O que não significa que a sua simples retirada modifique a situação.

Não é que a anoréxica não coma, ela simplesmente come nada, vem
afirmando a compreensão psicanalítica do problema. Ela come este nada-valer para o
Outro. Ela o ingere como um ato mortal e diz isso a quem quiser ouvir: "não paro de
comer", “como em demasia", mesmo estando à beira da morte por inanição. Desta
forma a anorexia revela e denuncia um furo, ou uma inconsistência, no interior da
totalidade onde tudo se organiza segundo um valor regulado por trocas baseadas em
uma equivalência universal. Constitui-se assim uma exceção, um lugar à parte de
todos os outros, o lugar daquele que não come.

Desde a antiguidade o suicídio por envenenamento é um ato tipicamente


feminino e aqui encontramos outra curiosa marca da anorexia. Ela é prevalentemente
um quadro que ocorre em mulheres. Alguns argumentam que isso decorre do fato de
que o imperativo estético social é muito mais cruel nesta condição. O que esconde um
pouco a consideração de que historicamente a mulher encontrou severas dificuldades
para se inscrever como sujeito social. O direito tardio ao sufrágio e as próprias regras
de aliança e casamento, na civilização ocidental, o atestam. Isso contribuiu para a

6
DUNKER, C.I.L. – Vontade Incontrolável de Comer Nada. Viver Psicologia, São Paulo, n 88, 28-30,
1999.

construção de uma afinidade imaginária, e ideológica, entre a condição de objeto para


o uso do outro e a condição feminina. Condição que a anorexia nega e afirma ao
recusar a consistência do Outro e simultaneamente fazer-se objeto-nada.

Talvez, além dessa circunstância, os laços entre feminilidade e anorexia


sejam mais profundos. A função da exceção e da particularidade absoluta diante do
Outro, bem como o apelo a fazer-se causa de seu desejo, bem como os aspectos
paradoxais do objeto do objeto ao qual a anoréxica se identifica tem sido tem sido
alvo de intensa pesquisa em psicanálise. Esperemos, se é que nos é dado este tempo.

Vous aimerez peut-être aussi