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Deixar de comer, até a morte, se for preciso, constitui um dos atos mais
intrigantes e trágicos que a subjetividade soube inventar. Menos que o suicídio, ato
instantâneo, que pode ser acolhido dentro do imponderável que nos toma em certos
momentos agudos, recusar o alimento é um ato continuado, decidido e lentamente
reafirmado. Ato, que parece concentrar unidimensionalmente toda a vontade do
sujeito. E que, no entanto, a supera impondo-se como algo que está para além de sua
vontade, de seu domínio ou controle.
Mas esta suposição é corroborada por outro fato cabal, e talvez mais
objetivável. A anorexia é um mal estar próprio das culturas organizadas pelo excesso.
É quase desconhecida em países e regiões onde predomina a pobreza e a miséria ou
onde a cultura do consumo e da oferta de objetos ainda não se implantou
definitivamente. No Brasil, isto permite situar o contraste social em que vivemos.
Uma parte significativa da população passa fome enquanto nos grandes centros ,
especialmente entre as camadas médias, a anorexia aumenta sua incidência. Em
recente pesquisa, realizada em colégios de classe alta na cidade de São Paulo,
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DUNKER, C.I.L. – Vontade Incontrolável de Comer Nada. Viver Psicologia, São Paulo, n 88, 28-30,
1999.
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DUNKER, C.I.L. – Vontade Incontrolável de Comer Nada. Viver Psicologia, São Paulo, n 88, 28-30,
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recusa que não reconhece um interlocutor. É ficar magra "para mim mesmo". Ou
ainda de forma intransitiva: "mais magra por que sim. Por que é assim que deve ser.”
Ao contrário do que se poderia supor, em uma impressão inicial, não se trata de
ajustamento a algum cânone estético que tornaria o sujeito, ou sua imagem corporal,
mais apreciável. Não é uma condição, que se explicite, para se fazer objeto para o
olhar desejante do Outro. No nível explícito, e sabemos que este não diz tudo, a
recusa da anorexia evita constituir ou legitimar aquele para quem ela se dirige. Tudo
se passa, aparentemente, entre o olhar e o corpo próprio no espelho. Daí sua
associação clássica com os fenômenos narcísicos.
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DUNKER, C.I.L. – Vontade Incontrolável de Comer Nada. Viver Psicologia, São Paulo, n 88, 28-30,
1999.
mesmo". Por outro, ela constrói uma imagem impossível, uma imagem paradoxal,
justamente por definir-se por uma negatividade: "ainda não é este corpo".
Negatividade que se mostra inclusive em termos perceptivos. Diante do espelho ela
efetivamente vê-se com um corpo que ela não tem, mas com o corpo que ela é. Mas
não tem a imagem do corpo desejada segundo qual olhar ? - recoloco a questão. Onde
poderia estar instalado este olhar universal que diria enfim qual é e onde se encontra o
corpo desejável ? Desejável por todos e para todos.
Não é que a anoréxica não coma, ela simplesmente come nada, vem
afirmando a compreensão psicanalítica do problema. Ela come este nada-valer para o
Outro. Ela o ingere como um ato mortal e diz isso a quem quiser ouvir: "não paro de
comer", “como em demasia", mesmo estando à beira da morte por inanição. Desta
forma a anorexia revela e denuncia um furo, ou uma inconsistência, no interior da
totalidade onde tudo se organiza segundo um valor regulado por trocas baseadas em
uma equivalência universal. Constitui-se assim uma exceção, um lugar à parte de
todos os outros, o lugar daquele que não come.
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DUNKER, C.I.L. – Vontade Incontrolável de Comer Nada. Viver Psicologia, São Paulo, n 88, 28-30,
1999.