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um movimento ativo, ligado a um pro- preso e levado para a França) para, por
cesso social de negociações e poder fim, derrotar a metrópole, recusou-se a
(uma vez que não se pode esperar que alinhar-se com o antigo comando. Aca-
qualquer coisa que se diga seja aceita bou morto por Cristophe. Mas, Sans
como “verdade histórica”) pelo qual se Souci é também o nome de dois palá-
determina a compreensão acerca dos cios. Um, atualmente em ruínas, ergui-
eventos passados, dá-se-lhes inteligibi- do em Milot, no Haiti, por Cristophe, fei-
lidade e pode-se agir (novamente) no to rei depois da Independência (1804).
presente. Outro, construído seis décadas antes,
Nem tudo pode ser dito. Primeiro, em Potsdam, por Frederico, o Grande,
porque, para tornar qualquer discurso da Prússia.
inteligível, é necessário escolherem-se As menções a Sans Souci nas fontes,
os elementos que o comporão, de modo nos arquivos e nas narrativas da histó-
que tenham conexões, que com eles se ria haitiana, são menções aos palácios:
possam estabelecer relações. Portanto, à grandiosa obra cuja construção fora
há que se suprimir algo por razões mes- ordenada por Cristophe ou ao “mode-
mo, digamos, cognitivas. Segundo, por- lo” de Potsdam, que, segundo alguns,
que há investimentos de poder acerca ter-lhe-ia servido de inspiração. O coro-
do que se deve compreender e, assim, nel Jean-Baptiste Sans Souci foi silen-
acerca também do que se deve narrar. ciado. Trouillot analisa este fenômeno
Terceiro, porque, para obedecer a um em cada um dos níveis e mostra como a
princípio de causa e efeito, os eventos operação de silenciar o passado é feita
escolhidos numa determinada etapa da segundo duas fórmulas distintas: a pri-
narrativa limitam a gama de novos meira consiste em promover generali-
eventos que podem ser mencionados zações de forma a apagar diretamente
daí para a frente, e assim por diante. Es- determinados eventos; a segunda, em
tamos, portanto, perante uma dialética esvaziar eventos singulares de seu con-
entre o que se fala e o que se deixa de teúdo, normalmente por meio de um
falar, entre o que se pode dar a dizer e o detalhamento feito de modo a banalizar
que é silenciado. toda uma cadeia de fatos.
Essa dialética opera não apenas nas O silêncio opera também nas cele-
narrativas, mas também nas fontes e brações da memória, nas comemora-
nos arquivos que lhes servem de base. ções. Se a história vivida pode parecer
A história de Sans Souci é um exemplo uma série confusa de eventos para os
de silêncios e menções em todos esses atores – ou mesmo talvez nem seja per-
níveis. Sans Souci – Jean-Baptiste Sans cebida como uma série conformada –, a
Souci – é o nome do ex-escravo nascido comemoração cria, modifica ou sancio-
na África que integrou as forças que na sentidos, significados atribuídos co-
procederam à Revolução Haitiana em letivamente à história. Sob seu apelo, as
1791. Quando os mais importantes co- narrativas históricas tornam-se ainda
mandantes das tropas rebeladas – Tous- mais limpas, “sanitarizadas”, e o passa-
saint Louverture, Jacques Dessalines e do ganha uma aparência mais elemen-
Henri Cristophe – submeteram-se aos tar: calam-se os demais eventos que ro-
soldados franceses, Sans Souci rompeu deiam o que é celebrado. E o caráter cí-
com eles, e continuou resistindo. De- clico desse tipo de celebração reforça
pois, quando Dessalines e Cristophe re- esse silenciar-se, tornando mais eviden-
tomaram a revolução (Louverture foi te o passado tal como é comemorado,
RESENHAS 201