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WALL PAPER

Ekaterina havia sido como a tal Carolina, também não viu a vida passar pela
janela, e com seus olhos escuros e fundos, abarrotados de tanta dor, só sabia
chorar. Nascida depois da virada do milênio, ela havia ficado sempre entocada
em seu quarto, porta fechada para o mundo e imersa em seus vários universos
virtuais. Talvez se não tivesse sido criada pelos velhos avós surdos-mudos, pois
sua mãe migrara para poder receber mais por seu trabalho, se tivesse sido menos
tímida e não tivessem pensado que ela também não ouvia, ela teria aprendido a
falar. O caso é que Ekaterina foi crescendo assim, em pleno silencio, e ao chegar
à escola, o aparelho fonador estava tão atrofiado que apenas permitiu a emissão
de alguns sons guturais. Resultado: virou a menina-lobo. E claro que ninguém
duvida da potencia destrutiva da maldade infantil, apenas fingimos que todas as
humilhações e maldades vivenciadas (como vítima, e como agressor) durante
nossa rápida estadia nesse período da existência eram apenas ‘coisas de
crianças’...

A vida de nossa pequena se resumia em frequentar as aulas e ir para casa, na qual


a aguardavam os dois velhinhos. A vida lá dentro era outra. Mimada, paparicada,
ela era a princesa, a grande czarina, uma impagável cômica, uma genial cantora
(dublava Edith Piaf como ninguém), e claro, uma ótima mímica. Divertia seus
avós interpretando longas histórias, que se debulhavam em acessos de riso com
as mudanças que Ekaterina fazia, especialmente nos twists amorosos e hilários
finais felizes.

Começou a escrever. Entrou no mundo dos fan fictions e passou a reescrever


várias obras clássicas, recontando tudo ao seu jeito, contextualizando velhos
conhecidos como Hamlet, Isolda, Dom Quixote e Odette com o mundo que
acreditava ver pela janela - mas que apenas adivinhava, por lhe dar tanto medo.

Não demorou muito e seus textos viralizaram, rapidamente seus universos e


personagens eram compartilhados, comentados, reenviados, questionados – até
começaram a ser utilizados em outras narrativas, outras mídias e em pouco
tempo a imaginação da quieta garota invadiu o mundo real.

Claro que tudo isso a fez ainda mais introvertida. Ainda fresco o trauma escolar,
Ekaterina era uma verdadeira reclusa, não dava entrevistas ao vivo, não havia
registro de sua voz – circulava apenas uma foto – a mesma que ela usava desde
sempre em todos seus perfis, na qual se via uma linda menininha de cabelos
Chanel e franja algo torta, mais longa do lado direito.

Mas os hormônios gritavam alto. Ela tinha 20 anos e nunca havia sequer beijado
um outro ser que não fosse de sua própria pequena família. Tudo muito diferente
das cínicas e voluptuosas heroínas de seus multiversos, das suas avatares;
mulheres fortes, desinibidas, sempre com vozes algo graves e sussurradas,
falando muito, dizendo de tudo, cantarolando a vida, aclamada por seus
inspirados discursos. Apaixonou-se incontáveis vezes por outros participantes
das narrativas, alguns, meros personagens criados por sua própria mente
ultrafértil; outros, personagens inventados por usuários – possivelmente tão
tímidos como ela, avatares de almas apenadas.

Lá fora, as rosas nasciam, pessoas sambavam e se amavam sob chuvas de estrelas


cadentes, mas Ekaterina seguia enfurnada, vivendo em seu Holodeck particular,
presa em suas pretensas tramas. Seus avós morreram. Ela encheu a casa de gatos.
A realidade virtual já havia chegado a um estágio quase perfeito, isto é, naquele
em que os boundaries limitantes se borram e não somos mais capazes de saber
em qual delas estamos – no mundo virtual ou real.

Pelo que deixou escrito, suspeitamos que tenha sido o Wall Paper. Parece não ser
a primeira ocorrência, portanto apesar de muito rara, não seria inédita. É que eu
mesmo nunca havia trabalhado em casos assim.

Parece que fazia algum tempo Ekaterina estava tentando criar um novo universo,
desta vez inspirado no mundo infantil, um mashup de Alice no País do Espelho e
Peter Pan. Escrevia o roteiro do jogo/romance com ajuda de uma câmara virtual
e um dos passos previa a entrada do gamer através de um desses monitores hiper-
realistas de hoje. Sempre antes de entrar, ela passava por uma proteção de tela,
um velho Wall Paper da época do Windows com uma imagem marinha. Não era
por ser retrô que o conservara em sua máquina de última geração, mas por lhe
recordar seu primeiro computador, uma das poucas lembranças correlacionadas
diretamente com sua mãe. Foi no meio de uma sessão de Doom que ela soube que
seu pai morrera numa guerra, antes que pudesse crescer o suficiente para
perguntar sobre o assunto de novo, a mãe sumira no mundo e seus avós nunca a
deixaram nem pensar no tema. E agora aquela imagem parecia estar viva.
Preenchia a câmara com uma luz azul em vários tons, pois na imagem o céu e o
mar contrastavam ao redor de similares comprimentos de onda. O ponto de vista
do fotógrafo – e, portanto, do espectador – era de dentro de uma gruta, que
depois de uma curta pesquisa descobriu ser perto do mar Adriático. Dava para
sentir a umidade das rocas, o som compassado e desigual do bater das ondas de
água cor topázio, fazendo ecos secos e chuviscados.

Segundo ela, algo a chamava. Sei lá, apenas conto o que sei. Se isso era real ou
não, aí já não posso jurar. Pelo que deixou escrito, ela diz que assim que ligava
seu computador e entrava a foto, além dela ouvir as ondas e sentir o cheiro do
mar, ela percebia que algo se mexia dentro da gruta. Com o tempo essa figura
apareceu por mais tempo, até que um dia ela viu que um corpo humano se
deslocava debaixo da superfície da água. Sem descrever bem como, ela conta que
um dia criou coragem e resolveu entrar.

Pois é... entrar onde? Sei que ela conseguiu passar para um tal outro lado. Da
primeira vez ficou pouquinho. Assustou ao ver que havia conseguido entrar na
foto e só acreditou ser verdade ao sentir os pés molhados e ouvir o grito das
gaivotas revoando bem à sua frente. Voltou para cá logo, e ficou um tempo sem
se conectar. Mas a tentação era grande. Foi para lá e segundo Ekaterina, depois
de algumas visitas encontrou com ele. Dieter diz se chamar. É um marinheiro,
sobrevivente de um naufrágio antigo, vive de frutos do mar e figos da índia –
abundantes no pedaço de ilha que abriga a pequena gruta. Não tem ideia de como
voltar para a civilização, e agora nem deve querer mais, afinal, não está mais só.
Aqui fora, o amor e a rosa morreram, a festa acabou, e o barco com certeza já
partiu, junto com o tempo que passou na janela, enquanto Ekaterina vive lá,
apaixonada, com seu pirata virtual. Ao arrombar sua casa a encontramos assim,
na frente do monitor e cercada pelos bichanos, muitos miando famintos. Meu
chefe escreveu, ‘Morte por causa indeterminada’, e fechou o caso, portanto fiquei
na minha, só estou contando isso por que realmente foi o que aconteceu.

Alguém quer adotar um gato?

Sampa, 23 de junho 2018

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