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Publicado em Revista Linguasagem – 16° Edição (www.letras.ufscar.

br/linguasagem)

Da estrutura à função, do sistema ao sujeito: breve exercício de identificação de


deslocamentos de Roman Jakobson em relação ao “Curso de Linguística Geral”

Por Marcelo Fila Pecenin (PG-PPGL-UFSCar)1

1. Introdução

Saussure não é Saussure.


Melhor dizendo, muito embora a autoria do “Curso de Linguística Geral” (1916)
seja atribuída histórica e oficialmente ao linguista suíço Ferdinand de Saussure, morto
três anos antes de sua publicação, a obra deve ser classificada como apócrifa, isto é,
como um texto de autenticidade duvidosa, sem legitimidade.
Pelo menos, é o que afirma o linguista francês Simon Bouquet (2009),
considerado um dos principais responsáveis pelo que se denomina quarta recepção do
“Curso” na França, iniciada na década de 1990 e caracterizada pela descoberta e
publicação de fontes manuscritas do mestre genebrino e também pela leitura dos estudos
realizados por ele sobre lendas germânicas e anagramas da poesia latina:

A quarta recepção do CLG [“Curso de Linguística Geral”] é marcada por


estudos que se iniciam na década de 60. A pesquisa sobre o CLG retorna às
edições críticas e a fontes manuscritas em um gesto de procura ao “verdadeiro
pensamento de Saussure”, em uma perspectiva que reconhece não haver uma
unidade inquestionável sobre a interpretação desta matriz fundadora dos
estudos lingüísticos (SARGENTINI; BARONAS, 2007, p. 44).

Em artigo intitulado “De um pseudo-Saussure aos textos saussurianos originais”,


publicado na revista brasileira “Letras & Letras”, Bouquet (2009) revela que o “Curso
de Linguística Geral” não passa do resultado do trabalho “abusivo” de edição executado
por Charles Bally e Albert Sechehaye, dois discípulos de Saussure:

Bally e Sechehaye, que reescreveram e reorganizaram integralmente o texto de


1916, apresentaram Saussure como “autor” e se apresentaram como editores.
Este abuso terminológico justifica, a meu ver, a razão de manter o Curso como
apócrifo. (...) Logo, o nome próprio de Ferdinand de Saussure, autor do Curso
pode ser considerado como ilegítimo. Para lhe render justiça, conviria antes

1
O autor é doutorando em Lingüística no PPGL da UFSCar e desenvolve suas pesquisas de doutorado
sob orientação da Profa. Dra. Vanice de Oliveira Sargentini.
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falar na ocorrência de um Pseudo-Saussure e de seus pseudo-editores (ID.


ibidem, p. 162).

Páginas adiante no mesmo artigo, Bouquet (ibidem) mostra-se mais categórico


sobre a tese do pseudo-Saussure ao citar a crítica do francês Antoine Meillet,
“provavelmente o lingüista de quem Saussure sente-se intelectualmente mais próximo”
(ID. ibidem, p. 164), à atitude dos editores do “Curso de Linguística Geral”, que foram
alunos do professor da Universidade de Genebra, na Suíça, em curso homônimo:

Senhor Bally, aluno de F. de Saussure e seu sucessor na Universidade de


Genebra, e Senhor Sechehaye, também aluno de F. de Saussure, tomaram a
decisão audaciosa (...) de elaborar, por assim dizer, com as fórmulas e os
exemplos de F. de Saussure, o livro que o mestre não fizera, e que ele em
dúvida não teria jamais feito. Isso que é oferecido ao público é, pois, uma
redação das idéias de F. de Saussure sobre lingüística geral, a partir de seus
dois principais alunos genebrinos, Senhores Bally e Sechehaye. (...) Não há
razão para aqui apresentar a crítica a pormenores de um livro que é apenas a
adaptação de um ensino fugidio que se dá pela oralidade, e no qual não se pode
dizer se os detalhes passivos de crítica vêm do autor ou dos seus editores
(MEILLET apud BOUQUET, 2009, p. 164).

Se, por um lado, as revelações e afirmações de Simon Bouquet podem causar


insegurança a estudantes de Letras e linguistas em formação; por outro lado, pode-lhes
soar como alívio.
Causar insegurança porque abalam as confortantes estruturas de uma
interpretação pretensamente crítica, que costuma ser empregada como argumento em
favor da superação do Estruturalismo pela Sociolinguística, Sociointeracionismo ou
pela Análise do Discurso de linha francesa, interpretação segundo a qual Saussure, ao
fundamentar o estudo da língua no paradigma de cientificidade vigente na passagem do
século XIX para o século XX, teria deixado escapar ou optado intencionalmente por
excluir – as leituras variam nesse particular – a importância do sujeito e da fala para a
existência e atualização do sistema linguístico e a influência da história, aludida
principalmente à ideologia conforme as linguísticas filiadas ao Marxismo, sobre as
transformações das estruturas fonéticas, morfossintáticas e semânticas da língua.
E soar como alívio porque exorcizam a suspeita angustiante de que o fundador
da Linguística moderna era desavisado o bastante para se esquecer de elementos e
propriedades aparentemente tão óbvios e necessários ao estudo da linguagem e da
língua – comentário que, diga-se de passagem, parecia ainda mais pertinente depois do
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“boom” de abordagens comunicativas e materialistas a partir de meados da década de


1960.
Independentemente disso, neste trabalho, pretendemos apresentar brevemente
algumas das principais linhas teóricas do linguista Roman Jakobson, tributário das
ideias publicadas no “Curso de Linguística Geral”, acerca do papel do sujeito na prática
da linguagem verbal, argumentando que o modo como o russo desenvolveu essa
articulação reflete deslocamentos de seu trabalho teórico-metodológico em relação ao
Estruturalismo linguístico.
Ao final deste exercício, talvez ousado demais para a extensão destas páginas e
para a experiência deste humilde doutorando, esperamos ter fornecido alguma
contribuição, por menor que esta seja, ao enriquecimento dos estudos linguísticos sobre
o pensamento original de Ferdinand de Saussure e sua relação com a linguística da fala,
auxiliando assim o cumprimento da tarefa de desmistificação da vulgata atribuída ao
mestre genebrino.

2. Desmistificando a vulgata. Ou, pelo menos, tentando fazê-lo

Antes de partirmos diretamente para a(s) tentativa(s) de alcançar o objetivo


deste trabalho, o qual foi apresentado no último parágrafo da seção anterior,
acreditamos que convenha elucidar ainda mais a diferença entre as ideias presentes no
“Curso de Linguística Geral” creditadas a Ferdinand de Saussure, a que Simon Bouquet
(2009) dá o nome de vulgata, e o verdadeiro pensamento do linguista suíço a fim de
contemplar mais um pouco a famigerada quarta recepção da obra na França, uma
tendência, aliás, em voga nos estudos linguísticos contemporâneos e, em certa medida,
também na História das Ideias Linguísticas.
A começar pela distinção entre língua e fala, talvez a mais marcantes das
dicotomias que figuram no “Curso”, já que acabava por servir de prerrogativa à
preconização contingente de duas linguísticas opostas, polarizadas entre a estabilidade
da língua e a dinâmica da fala.
É conhecida a definição de língua como estrutura disponível nas páginas do
“Curso de Linguística Geral”: um conjunto de signos linguísticos, os quais se formavam
pela conjunção entre uma imagem acústica (significante) e um conteúdo (significado), e
convenções, as quais, por sua vez, organizavam a constituição de paradigmas desses
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elementos no interior de um sistema e regiam seu posicionamento sintagmático no eixo


horizontal das sentenças (SAUSSURE, 2000).
Igualmente conhecido é o conceito de fala apresentado na mesma obra: a
realização do sistema linguístico por parte dos falantes de uma língua (ID. ibidem).
Através do cotejamento dessas duas noções fulcrais ao estudo da linguagem, é
possível vislumbrar a natureza social que Saussure (ibidem)2 conferia à língua e o
aspecto individual que observava na fala.
Em relação à primeira especialmente, o linguista suíço afirmava que sua
natureza social residia no fato de ser compartilhada de modo homogêneo entre os
membros de uma mesma comunidade linguística, comportando-se assim como um
sistema e também como uma espécie de tesouro que seria depositado no cérebro dos
falantes tão logo estes fossem introduzidos na vida em sociedade.
O processo, que é também denominado padrão coletivo no “Curso”, era
responsável não só pela distribuição uniforme do sistema linguístico, mas também por
sua existência no seio de um grupo social.
No entanto, Bouquet (2009), ao mencionar “a inseparabilidade dessa equação
que o Curso não teria jamais deixado imaginar” (ID. ibidem, p. 169), revela que a
segregação epistemológica da dupla articulação constitutiva da linguagem, o binômio
língua-fala, não foi preconizada por Saussure.
E, para comprovar sua versão, cita um trecho do manuscrito saussuriano
chamado “De l’essence double du langage” – “Sobre a essência dupla da linguagem”,
na tradução para o português –, parte dos “Escritos de linguística geral”, publicados pela
primeira vez em 2002:

A lingüística, eu ouso dizer, é vasta. Particularmente, ela comporta duas partes:


uma que é mais próxima da língua, depósito passivo, outra que é mais próxima
da fala, força ativa e verdadeira origem dos fenômenos que se percebem em
seguida, pouco a pouco, na outra metade da linguagem (SAUSSURE apud
BOUQUET, 2009, p. 169).

Além disso, não podemos deixar de destacar a distinção que Saussure (apud
BOUQUET, 2009) aplica, nos textos originais, à própria teoria do valor, a grande
vedete da quarta recepção do “Curso de Linguística Geral” na França e considerada pelo

2
Neste momento, convém reiterar que, ao mencionarmos Ferdinand de Saussure como autor do “Curso
de Linguística Geral”, apoiamo-nos, na verdade, na versão de Bouquet (2009) sobre a relação de autoria
entre o mestre genebrino e a obra: a versão do apócrifo, a qual introduzimos, em linhas gerais, na seção
anterior deste trabalho.
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analista do discurso francês Michel Pêcheux (apud SARGENTINI; BARONAS, 2007)


como precursora dos estudos semânticos e discursivos da linguagem: para Bouquet
(apud FLORES; TEIXEIRA, 2009), agora no livro “Introdução à leitura de Saussure”, é
a formulação do conceito de valor in praesentia, aquele procedente da sintagmatização
do signo, que “delineia o programa de abordagens de análise linguística que dão conta
das manifestações de linguagem verbal e seus efeitos, ou seja, de linguísticas da fala”
(ID. ibidem, p. 75, grifos nossos).
A polarização da linguagem entre língua e fala mais a posterior supervalorização
da primeira noção em detrimento da segunda promovida pela vulgata saussuriana, de
fato, contribuíram para a irrupção do que Bouquet (2009) considera “a divergência mais
acentuada entre o Curso e os textos originais (...): o objeto da linguística” (ID. ibidem,
p. 168): “De fato, a famosa frase final do Curso “a lingüística tem por único e
verdadeiro objeto a língua considerada em si mesmo e por si mesma”, não corresponde
a nenhum enunciado de Saussure, nem em suas aulas, nem em seus escritos” (ID.
ibidem, p. 168).
Uma página adiante no artigo sobre o pseudo-Saussure, o linguista francês, para
quem a verdadeira epistemologia programática idealizada pelo pai da Linguística
moderna previa sim a convergência entre uma linguística da língua e outra da fala (ou
do discurso), parece apoiar-se novamente na crítica de Antoine Meillet à edição do
“Curso” (apud BOUQUET, 2009) apresentada na seção anterior deste trabalho para
descrever o procedimento adotado por Charles Bally e Albert Sechehaye o qual acabou
delegando ao mestre a responsabilidade e a fama pela afirmação de que “a língua é o
único objeto da linguística propriamente dita” (SAUSSURE apud BOUQUET, 2009, p.
169):

Bally e Sechehaye alteraram uma aula oral do terceiro curso para deixá-lo de
acordo com sua tese. Lá onde o professor declara: (...) “É preciso ter uma
lingüística da língua e uma lingüística da fala”, o curso modaliza esse
enunciado emprego um “a rigor” sem fundamento. (...) Além disso, eles
suprimiram quase sistematicamente, ao longo de toda obra, a palavra discurso,
em sua acepção sinônima de fala, bem como numerosas aulas, que tratavam do
discurso (BOUQUET, ibidem, p. 169).

Nesse particular, acreditamos que nos seja possível conjeturar, inclusive devido
à menção anterior de Bouquet (ibidem) a uma “tese” que os editores do “Curso de
Linguística Geral” pareciam ter o objetivo de validar com a publicação da obra, que o
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fato de terem vivido na passagem do século XIX para o século XX pode tê-los
influenciado pelo modelo de cientificidade estabelecido pelo Positivismo.
Segundo a filósofa e historiadora brasileira Marilena Chauí (2001), a abordagem
filosófica formulada pelo francês Augusto Comte inaugurou uma espécie de novo
primado da razão, na esteira da filosofia idealista de Platão, do racionalismo de René
Descartes entre os séculos XVI e XVII e do pensamento iluminista do século XVIII.
Assim parece-nos razoável supor que a opção de Bally e Sechehaye pela
linguística da língua e, por extensão, a preconização da descrição dos diferentes níveis
de constituição da língua – a saber: fonético-fonológico, morfológico, sintático, lexical e
semântico – tenham sido corolários da obediência à liturgia positivista, a qual pregava,
entre outros dogmas, a dissecação do “como” do objeto de estudo em vez da busca de
respostas a seus “porquês” (ID. ibidem).
De quebra, a estabilidade sugerida pelo objeto das Ciências da Linguagem
adequado aos moldes do Estruturalismo3, reduzido à reiterabilidade de seu paradigma
formal e à regularidade imposta por sua estrutura, contemplava outro importante
princípio da positividade científica: a busca pela verdade absoluta, estável, redutível,
por exemplo, a um axioma ou a uma equação.
E são exatamente a definição de língua como sistema autônomo, ao mesmo
tempo inserida na vida social da comunidade linguística e livre de influência e de
mudanças eventualmente provocadas pelos falantes, e a preferência dos estruturalistas
pela linguística da “langue” em detrimento da da “parole” que suscitaram, para não
dizer que ainda suscitam, as críticas de que o projeto de análise linguística proposto
Saussure no “Curso de Linguística Geral” descartava a exterioridade linguística, no seio
da qual se inscrevem nomeadamente o sujeito e a história.
Ora, com base em fontes manuscritas do linguista suíço, as quais dão corpo aos
“Escritos de linguística geral”, e na leitura realizada por Simon Bouquet sobre a vulgata,
não devemos nos furtar a ponderar que, para o pensamento saussuriano, considerar a
língua, em sua essência de sistema, como independente do indivíduo significa, na
verdade, acreditar que este isoladamente não detém poder suficiente para transformar
todo um vasto conjunto de estruturas. Coletivamente, no entanto, Saussure via na
comunidade de falantes a capacidade de levar a cabo mudanças num sistema
relativamente autônomo.

3
Como é sabido, “Estruturalismo” é o nome dado à perspectiva de estudos linguísticos inaugurada pela
publicação do “Curso” e cuja paternidade é igualmente creditada a Ferdinand de Saussure.
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Mudanças que, não distantes de uma certa regulação ou convenção administrada


pela língua – haja vista que nem toda mudança consegue vingar, sobretudo as que
fogem demais aos paradigmas instalados pela estrutura4 –, se observavam inicialmente
na fala para posteriormente serem incorporadas ao sistema.
E fala que, graças a seu dinamismo – coisa que Saussure reconhecia, diga-se de
passagem –, era responsável pela (sobre)vivência e atualização da língua.
Dessa forma, não vemos por que não mencionar, nesta altura, também o artigo
“Saussure, Benveniste e a teoria do valor: do valor e do homem na língua”, no qual os
linguistas brasileiros Valdir Flores & Marlene Teixeira (2009), ao defender a
contribuição da teoria do valor formulada pelo mestre genebrino ao reconhecimento da
subjetividade na produção de significado através da língua promovido pelo linguista
francês Émile Benveniste na passagem dos anos 1960 para os anos 1970, gesto
considerado fulcral ao surgimento e ao desenvolvimento de linguísticas da fala no
contexto ocidental, reconhecem que “a dicotomia língua/fala tem outro estatuto na
teoria benvenistiana, embora não contrário ao que formulou Saussure. (...) não se trata
mais de distinguir língua e fala, mas de ver que a língua comporta a fala e vice-versa”
(ID. ibidem, p. 82).
Por fim, torna-se necessário lembrar que, a despeito das críticas que o “Curso de
Linguística Geral” recebeu, sobretudo, das abordagens que se dedicaram ao
desenvolvimento de linguísticas da fala, considerando assim a importância da história
ao estudo da linguagem, principalmente do ponto de vista da produção de sentidos –
como, por exemplo, o Sociointeracionismo e a Análise do Discurso de linha francesa –,
muitos teóricos dessas escolas não deixam de reconhecer o caráter inovador das ideias
contidas no “Curso” e seu papel decisivo, como uma espécie de unidade fundadora, no
estabelecimento da Linguística como ciência autônoma, o que conferiu à linguagem um

4
A título de ilustração dessa constatação, podemos citar, entre outros exemplos possíveis:
a) A aceitabilidade de um enunciado como “Os menino joga bola” no português, uma óbvia
variação do registro culto “Os meninos jogam bola”, em comparação ao estranhamento,
ininteligibilidade e refutabilidade de que seria vítima inevitavelmente, por exemplo, “Menino os
bola joga”, já que uma construção dessas obviamente desrespeita a ordem sujeito-predicado-
objeto gravada no DNA da língua;
b) A criação do sintagma “ficha-limpa” que, em virtude da sanção da Lei da Ficha Limpa (lei
complementar n.º 135/2010) neste ano, vem sendo empregado como adjetivo, predicando
políticos livres de pendências judiciais. A emergência, recepção e a circulação do sintagma só
foram possíveis por causa de sua obediência à regra de concordância nominal verificada entre o
substantivo feminino “ficha” e o adjetivo flexionado em gênero idêntico “limpa”, outro pilar dos
alicerces da língua portuguesa.
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campo emancipado de objeto, separado da Filosofia e da Psicologia, as quais a vinham


tangenciavam até então.
Para tanto, citamos uma passagem do artigo “O Curso de Linguística Geral:
apontamentos de uma leitura da Análise do Discurso”, escrito pelos linguistas
brasileiros Vanice Maria Sargentini & Roberto Baronas (2007):

A linguística saussuriana é mobilizada, em Michel Pêcheux [um dos


fundadores da Análise do Discurso francesa], por um duplo motivo: primeiro,
pela autonomia relativa da linguagem, unanimemente reconhecida pelas
Ciências Humanas, na conjuntura estruturalista. E, segundo, no concerto das
Ciências Humanas, a lingüística era reconhecida por ter operado de maneira
decisiva o corte epistemológico, isto é, o distanciamento necessário de sua
própria ideologia que qualifica a cientificidade (ID. ibidem, p. 47).

e, a seguir, um trecho do artigo “Saussure e o discurso: o Curso de Linguística Geral


lido pela Análise do Discurso”, publicado pelo também linguista brasileiro Carlos
Piovezani (2008), no qual Claudine Haroche, Paul Henry & Pêcheux (apud
PIOVEZANI, 2008) equacionam as exclusões feitas pelo corte epistemológico
observado no “Curso” com a necessidade de delimitação de um objeto visando a tirar do
papel o projeto de adequação da Linguística ao paradigma de ciência vigente na época
quando a obra foi publicada:

(...) a opção pela langue, em detrimento da parole, foi amiúde concebida como
a circunscrição necessária de um objeto para o estabelecimento de uma ciência
autônoma, considerou-se, em contrapartida, que o corte saussuriano excluía as
unidades transfrásticas, as variedades linguísticas, o texto, as condições de
produção, a história, o sujeito e o sentido (HAROCHE; HENRY; PÊCHEUX
apud PIOVEZANI, 2008, p. 9).

3. Jakobson, a Teoria da Comunicação e o sujeito-emissor

Roman Jakobson foi um linguista russo que viveu entre 1896 e 1982.
Dividido entre os círculos linguísticos de Moscou, Praga e Copenhague e a
Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, o tempo durante o qual conduziu sua
carreira de pesquisador o credenciou a vivenciar a segunda recepção do “Curso de
Linguística Geral”, iniciada no intervalo entre as duas Grandes Guerras e junto a alguns
poucos linguistas franceses:
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Em contrapartida, no Leste Europeu, desde os anos 20, fora dos dois grandes
centros de estudos lingüísticos da época, a Alemanha e a França, o CLG, em
conjunto com os Manifestos do Círculo lingüístico de Praga, tornou-se “um
texto estratégico para a ‘periferia’ em sua conquista das instituições centrais”
(PUECH apud PIOVEZANI, 2008, p. 15).

Citando o trabalho de Ageeva (apud PIOVEZANI, 2008) apresentado no


Colóquio Internacional Revoluções Saussurianas de 2007, “La théorie de Saussure à
travers as réception dans les années 1920-30 en Russie”, Piovezani (2008) comenta que
as interpretações do “Curso” realizadas pelos pensadores russos correspondentes à
segunda recepção da obra não escapou à heterogeneidade. Tanto que, enquanto os
membros do Grupo de São Petersburgo, entre os quais se destacava o pensador tido
como o fundador do Sociointeracionismo, Mikhail Bakhtin, refutaram a vulgata
saussuriana, “alegando seu descaso para com a dimensão social das interações
lingüísticas” (AGEEVA apud PIOVEZANI, 2008, p. 16), o Círculo de Moscou, do qual
Jakobson fazia parte, acolheu favoravelmente o pensamento do mestre genebrino.
Talvez esse gesto acolhedor seja uma das principais razões graças às quais o
esquema que simboliza a Teoria da Comunicação elaborada por Jakobson (1995)
lembra, de certa forma, o circuito de fala exibido no “Curso de Linguística Geral”.
Neste sentido, propomos a comparação entre os modelos saussuriano e
jakobsoniano por meio da apresentação das seguintes imagens:

Figura 1. Circuito de fala apresentado no "Curso" (SAUSSURE, 2000, p. 19)


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Figura 2. Esquema de comunicação proposto por Jakobson (1995, p. 123)

Convém acrescentar que, na Figura 2, podemos notar, inclusive, a presença das


funções de linguagem teorizadas por Jakobson5, as quais são apresentadas e explicadas
em “Linguística e comunicação”, coletânea de textos publicada no Brasil pela primeira
vez em 1969.
A despeito da aproximação epistemológica entre o linguista russo e o
Estruturalismo, conforme indicado por Ageeva (apud PIOVEZANI, 2008),
conjeturamos que exista um certo deslocamento entre os trabalhos daquele e as ideias
defendidas no “Curso”.
Deslocamento que reside exatamente na formulação do conceito de funções de
linguagem. E especificamente, entre outras particularidades, na categoria a qual, na
versão de muitos dos tributários das linguísticas da fala, Saussure e, por extensão, os
estruturalistas de forma geral deixaram de privilegiar ao preconizar o estudo da língua
como sistema fechado em si mesmo: a subjetividade ou simplesmente a categoria de
sujeito.
Sujeito que, na Teoria da Comunicação de Jakobson (1995), leva o nome de
remetente, conforme podemos observar na Figura 2, ou emissor – ou ainda “sender”,
segundo a tradução do termo para a língua inglesa – e que ganha participação e até um
certo protagonismo em, pelo menos, duas funções de linguagem: a referencial e a
conativa, as quais discutiremos a seguir a título de exemplificação da posição adotada
neste trabalho.
No exercício da função referencial, também chamada de denotativa, o remetente
ou emissor dirige-se ao destinatário ou receptor – “receiver”, em inglês –, transmitindo-

5
Muito embora sejam inegáveis a contribuição e a importância da noção de funções de linguagem ao
desenvolvimento dos estudos linguísticos, informamos que não nos dedicaremos aqui à definição e
exemplificação de cada uma das seis funções teorizadas por Jakobson (1995), reservando-nos a
possibilidade de abordar uma ou outra função quando julgarmos o procedimento necessário e conveniente
à concretização dos objetivos deste trabalho.
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lhe informações da realidade de forma objetiva e direta, sem a manifestação de


impressões pessoais ou julgamentos expressos, por exemplo, na primeira pessoa dos
verbos (JAKOBSON, 1995).
Sinalizando a Figura 2 mais uma vez, vale acrescentar que a função referencial
de linguagem definida por Jakobson (ibidem) corresponde ao elemento Contexto em seu
modelo de comunicação e descreve uma situação, objeto ou estado mental.
Mas um contexto que não equivale à situação de comunicação concreta e
imediata conceituada por Bakhtin (1997) nem à exterioridade linguística ou história
destacada por Pêcheux (apud BRANDÃO, 2002), elementos, aliás, altamente
determinantes sobre a produção de enunciados e consequentemente de sentidos na visão
desses autores. E sim que deve ser entendido, segundo Jakobson (1995), como uma
espécie de espaço que abriga fatos e objetos passíveis de uma descrição definitiva.
Já no exercício da função conativa, o remetente ou emissor serve-se da língua –
nomeadamente de mecanismos linguísticos como o vocativo e o modo imperativo dos
verbos, empregados para, entre outras finalidades, estabelecer interatividade entre os
falantes – a fim de interpelar o destinatário ou receptor no intuito de agir sobre ele, por
exemplo, convencendo-o sobre a veracidade de um ou mais pontos de vista,
persuadindo-o a assumir uma determinada crença, seduzindo-o a consumir um produto
ou simplesmente conduzindo-o à execução de ordens, solicitações e favores
(JAKOBSON, 1995).
No particular das funções referencial e conativa de linguagem, não nos custa
acrescentar que a primeira costuma ser privilegiada nos âmbitos jornalístico e científico,
especialmente na execução de atividades de linguagem circunscritas a gêneros
discursivos tais como a reportagem e a tese, os quais prezam, no limite da formalidade,
por uma pretensa neutralidade6; a função conativa, por sua vez, é verificada com
frequência na esfera publicitária, a qual busca conduzir os interlocutores à identificação
com o papel de consumidor e assim fazê-los obedecer ao imperativo de adquirir os bens
anunciados.

6
Adjetivamos como “pretensa” a neutralidade perseguida pelas atividades jornalística e acadêmico-
científica de forma geral porque acreditamos que não seja possível desconsiderar a definição de discurso
produzida por Pêcheux (apud BRANDÃO, 2002): o discurso como lugar privilegiado da ideologia, como
espaço de consubstanciação da história na língua, como ponto de articulação entre os fenômenos
ideológicos e os processos linguísticos. Dessa forma, toda manifestação discursiva reflete, em alguma
medida, um ponto de vista, um posicionamento ideológico, algum “conjunto de ideias elaboradas por uma
falsa consciência” – o conceito marxista de ideologia –, por mais que os artifícios linguísticos se esforcem
para engendrar efeito do contrário.
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Além disso, muito embora o papel do destinatário ou receptor como


decodificador das mensagens endereçadas pelo remetente ou emissor corrobore a
filiação do linguista russo membro do Círculo de Moscou ao princípio estruturalista de
transparência da língua – o que também fica evidente pela intitulação do interlocutor
como destinatário/receptor, ou seja, aquele a quem se destinam mensagens ou aquele
que meramente as recebe –, é através da teorização sobre as funções de linguagem e
também por sua própria denominação – “funções” em vez de, por exemplo,
“estruturas”, “alicerces” ou “padrões” – que podemos identificar um outro
deslocamento marcante do pensamento jakobsoniano em relação ao Estruturalismo
atribuído a Saussure: da noção de língua como sistema, a qual consequentemente
preconiza um método ao fazer linguístico enquanto atividade científica, em direção a
uma epistemologia da função e do funcionamento.
Em outras palavras, a Teoria da Comunicação proposta por Jakobson (1995)
abre portas à inclusão também de um certo caráter pragmático da língua na abordagem
filosófica da linguagem e no trabalho de análise linguística, isto é, não apenas da
utilização e das finalidades a que pode prestar o sistema linguístico ao ser apropriado
por falantes elevados ao papel de remetente/emissor, mas também da dinâmica
promovida pelo funcionamento da língua, o que sugerimos que possa corresponder,
metaforicamente falando, à imagem de engrenagens em movimento, rangendo e
funcionando ao mesmo tempo em que executam uma ou mais funções.
Por fim, no que tange à apropriação intencional do sistema linguístico pelo
remetente/emissor, o caráter instrumental da produção e transmissão de mensagens ao
destinatário/receptor e ao seu posterior trabalho mecânico de decodificação do texto,
características subjacentes à Teoria da Comunicação de Jakobson (1995), devemos
esclarecer que não nos proporemos, neste trabalho, a tarefa de discuti-las e questioná-las
à luz da teoria do discurso baseada no materialismo histórico.

4. Conclusão

Neste trabalho, esforçamo-nos para apresentar brevemente algumas das


principais linhas teóricas do linguista Roman Jakobson, tributário das ideias publicadas
no “Curso de Linguística Geral”, acerca do papel do sujeito na prática da linguagem
verbal, argumentando que o modo como o russo desenvolveu essa articulação reflete
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deslocamentos de seu trabalho teórico-metodológico em relação ao Estruturalismo


linguístico.
Para tanto, inicialmente nos apoiamos nos trabalhos do linguista francês Simon
Bouquet (2009; apud FLORES; TEIXEIRA, 2009) sobre a obra do suíço Ferdinand de
Saussure, especialmente no que diz respeito aos conceitos e métodos preconizados no
“Curso”, cuja autoria seus editores – Charles Bally e Albert Sechehaye – atribuíram ao
mestre genebrino, na tentativa de defender que é mister aplicar distanciamento e fazer
diferenciação entre as ideias difundidas por linguistas estruturalistas filiados à vulgata
saussuriana, a qual Bouquet (ibidem) adjetiva como “apócrifa”, e o que Saussure
definia, de fato, por língua e fala em termos de filosofia da linguagem – definições,
diga-se de passagem, disponíveis em suas fontes manuscritas popularizadas a partir da
década de 1990.
Em seguida, descrevemos alguns dos aspectos da Teoria da Comunicação e da
noção de funções de linguagem elaboradas por Jakobson (1995), as quais podem ser
consultadas na coletânea “Linguística e comunicação”, a fim de mostrar como o russo, a
despeito da boa recepção que seu Círculo de Moscou ofereceu ao “Curso de Linguística
Geral”, chegou a distanciar-se da abordagem característica do núcleo duro do
Estruturalismo.
E principalmente no que diz respeito à natureza funcional da linguagem verbal e
à categoria de sujeito, marginalizada por Saussure conforme a leitura que
sociointeracionistas e analistas do discurso de linha francesa, entre outros
pesquisadores, fizeram ou ainda fazem do “Curso”.
Neste sentido, acreditamos, inclusive, que o pensamento jakobsoniano tenha
fornecido uma espécie de contribuição embrionária ao desenvolvimento das linguísticas
da fala e do discurso, que passaram a surgir a partir ao final da década de 1960, cerca de
10 anos após a publicação de “Linguística e comunicação” no Brasil – exceção feita ao
Sociointeracionismo, nascido ao final dos anos 1920 no seio do Círculo de São
Petersburgo.
Assim chegamos ao final deste breve exercício acenando com seu
desdobramento em trabalhos futuros ainda na ousada esperança de enriquecer ainda
mais os estudos produzidos no interior das Ciências da Linguagem acerca do
pensamento original de Ferdinand de Saussure e sua relação com a linguística da fala,
continuando a auxiliar o cumprimento da tarefa de desmistificação da vulgata atribuída
ao mestre genebrino. A título de exemplificação, podemos sugerir, entre outros temas, a
Publicado em Revista Linguasagem – 16° Edição (www.letras.ufscar.br/linguasagem)

importância das noções de uso, circunstância de emprego e dêiticos mobilizadas por


Benveniste à continuidade e fortalecimento do movimento de apropriação de uma certa
exterioridade linguística e da subjetividade pela Linguística. Nesse caso, no entanto, não
podemos deixar de reforçar que é recomendável uma leitura semelhante à adotada por
Flores & Teixeira (2009): Benveniste representa menos um gesto de evolução ou
superação em relação a Saussure do que um encontro com o pensamento, digamos,
original deste.

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