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Estado da Arte
15 Maio 2018 | 08h16
Imagine-se o que seria uma pessoa considerar-se informada, mas desconhecer a diferença
existência da segunda guerra mundial ou do Gulag. Contudo, com respeito a alguns dos
seria esse desconhecimento: uma confusão sistemática, que esconde ilusões cognitivas
persistentes que urge elucidar. Não parece muito controverso afirmar que este é um dos
que são usados por qualquer pessoa, tanto na sua vida profissional como na pública e
dificuldade em ter qualquer réstia de vida mental sem o usar implícita ou explicitamente:
quando nos batemos pela igualdade das mulheres é porque pensamos que é falso que elas
devem ser discriminadas, e não há qualquer maneira adequada de ter uma concepção
evidentemente podemos estar enganados sempre que pensamos que algo é verdadeiro,
cai-se na confusão de pensar que é a própria verdade que muda, ou se altera, ou que
precisamente porque somos obviamente falíveis e tantas vezes nos enganamos que não
há maneira alguma adequada de pensar que a verdade depende de nós, da nossa vontade,
das nossas convicções, das nossas provas, ou seja do que for desse jaez. Se dependesse,
nunca poderíamos estar enganados, pois bastaria pensar que algo é verdadeiro para o ser.
Uma vez que é evidente que nos enganamos, e muito mais do que seria desejável, conclui-
se validamente que a verdade não depende de nós. O que depende de nós, mas isso é banal
e desinteressante, é o que pensamos que é verdadeiro, e o que pensa uma pessoa que é
verdadeiro pensa outra que é falso, mas nenhuma delas tem o poder de tornar verdadeiro
ou falso isso que pensam; só a realidade tem esse poder. Mas que quer isto dizer?
que não haja neste caso muitas pessoas com fortes convicções dogmáticas, seja para dizer
que sim seja para dizer que não. As coisas já mudam de figura com respeito a muitas
outras frases. Porém, quer essas fortes convicções existam quer não, e sejam elas mais ou
menos dogmáticas, há uma só coisa que conta para tornar as frases falsas ou verdadeiras:
que qualquer concepção filosófica elaborada terá de acomodar para ser promissora, e que
infelizmente está longe de ser adequadamente compreendida pelo grande público. Como
se vê, a verdade não é uma coisa mística, apesar de ser compreensível que as religiões lhe
dêem muita importância devido ao papel crucial que desempenha nas nossas vidas —
afinal, distinguir a verdade da ilusão é uma das nossas mais fundamentais tarefas, se
queremos ter uma vida melhor e se almejamos a uma compreensão mais promissora da
realidade. Longe de ser algo místico ou misterioso, a verdade é bastante banal e terra-a-
terra. O que não é banal é encontrar processos fidedignos de prova e justificação, que nos
ajudem a encontrar a verdade e a não cair no erro. Mas não valeria a pena o esforço para
porque podemos estar enganados. É algo como esta consciência da falibilidade humana
que provoca a confusão de pensar que é a própria verdade que é instável, digamos, no
sentido de ser relativa ao que pensamos. Porém, se a verdade fosse relativa neste sentido,
não haveria instabilidade alguma porque seria sempre verdadeiro seja o que for que
de que é verdadeiro com o conceito de ser verdadeiro. São dois conceitos muitíssimo
diferentes, mas ficam confundidos quando se diz que antes de Galileu era verdadeiro que
a Terra estava imóvel, e que depois se tornou falso. O que se quer dizer é que antes de
Galileu as pessoas pensavam que isso era verdadeiro — mas pensar que é verdadeiro não
o torna realmente verdadeiro porque as pessoas não são oniscientes. Diz-se também por
vezes que é verdadeiro para Galileu que a Terra se move, e sugere-se que isso não é
verdadeiro para outras pessoas. Porém, “verdadeiro para” é apenas uma maneira
enganadora de dizer que essa pessoa considera que isso é verdadeiro — mas, uma vez
mais, porque ninguém é onisciente, o que ela toma como verdadeiro talvez seja falso, e
esta banalidade é incompatível com a ideia de que a verdade depende das convicções das
pessoas.
Sonda da Nasa registrou imagens das luas que levaram Galileu Galilei a postular sua
teoria.
verdade, que talvez seja relativo numa acepção qualquer sofisticada e filosoficamente
interessante. Mas seja qual for essa concepção, terá de acomodar estas ideias elementares
— ou de ter razões muitíssimo convincentes para as pôr em dúvida, e não é de prever que
existam essas razões, depois de se esclarecer o básico. Por vezes, tempestades tonitruantes
de filosofia não passam de confusões num copo de água, e isso não é surpreendente
Menos comum, talvez porque mais obviamente indefensável, é a ideia de que não há
verdades. Quando se junta a consciência saudável de que somos falíveis com a confusão
conceptual acerca da verdade, fica-se a um passo de concluir que não há verdades porque
afinal podemos sempre estar enganados. Porém, como se conseguiria realmente saber tal
coisa? Não é certamente o género de afirmação que se possa saber como quem sabe que
está chovendo olhando pela janela; não se consegue olhar e ver que não há verdades. Tal
como não se consegue olhar e ver que os dinossauros se extinguiram há sessenta milhões
de anos, mas antes se conclui essa hipótese científica raciocinando, só desta mesma
maneira se conseguirá saber que não há verdades: raciocinando. Ora, a dificuldade mortal
é que os raciocínios só permitem saber seja o que for quando reúnem pelo menos duas
conceito da lógica, e garante que caso as premissas do raciocínio sejam verdadeiras, não
há maneira alguma de a conclusão ser falsa. Mas caso as premissas não sejam verdadeiras,
a mera validade é irrelevante. Daí que se tenha encontrado em filosofia uma designação
semitécnica para os raciocínios que são simultaneamente válidos e cujas premissas são
todas verdadeiras: diz-se que são sólidos. Ora, como é bom de ver, é impossível que um
raciocínio seja simultaneamente sólido e tenha como conclusão que não há verdades. Isto
porque para ser sólido é preciso que todas as suas premissas sejam verdadeiras; mas caso
não existam verdades, como assevera a sua conclusão, as suas premissas não são
verdadeiras e por isso o raciocínio não é sólido. Dado que não há raciocínios sólidos que
nos permitam saber que não há verdades, e dado que não é o tipo de coisa que se possa
saber olhando pela janela como quem vê que está chovendo, como sabe alguém que não
há verdades? Talvez tenha um contacto místico com os deuses, que lho sussurraram ao
ouvido, mas o comum dos mortais fica certamente perplexo com essa extravagante
de verdades, ou talvez até fosse incompatível com elas. Deste ponto de vista, parte-se de
que um triângulo é o resultado da intersecção de três linhas rectas, o verbo ser é aqui
intemporal — não se quer dizer que isso é agora assim, mas não o era, e talvez não venha
a sê-lo, mas antes que o é sem considerar as humilhações da passagem do tempo. É-o,
poder-se-ia dizer, com a mesma pureza celestial que assiste aos deuses. Em contraste,
quando se diz que uma árvore é verde, o verbo ser é aqui acometido das dúvidas
temporais da existência, e certamente não se quer dizer que sempre o foi e que sempre o
será. Pelo contrário, sabemos que a árvore deixará de ser verde a seu tempo. Daqui salta-
se então para a conclusão de que a verdade, mesmo que exista em áreas divinas como a
onde não é senão uma ilusão sublunar dos ingénuos. Tudo muda, nada fica, e só os tolos
fossem razoáveis no tempo de Platão, mas que estão longe de o ser depois de termos
tantas ciências tão bem-sucedidas que lidam, precisamente, com o dinamismo do mundo
físico. Física, química, biologia, astronomia, astrofísica, dinâmica de fluidos — estas são
apenas algumas das áreas científicas que certamente nos proporcionam um conhecimento
intransponível. É por isso historicamente curioso como conseguirá uma pessoa no século
XXI manter a preocupação platónica do séc. V a.C com a possibilidade da verdade acerca
— quando a história é precisamente uma das áreas da investigação humana que lida com
breve reflexão é suficiente para ver a confusão subjacente a esta maneira de pensar.
Considere-se a frase “Está chovendo”; que quer ela dizer exactamente? Apesar de não
incluir explicitamente qualquer deítico (termos como “aqui”, “hoje”, etc.), subentende
dois: que é no lugar onde a frase é proferida que está chovendo, e não em todo o universo,
e que é naquele momento, e não antes nem depois. Caso seja completamente explicitada,
e imaginando que é proferida em Paris no dia 12 de maio de 1755, não quer certamente
dizer que está chovendo em Ouro Preto, MG, no dia 12 de maio de 2018. De modo que
por mais mutável que seja a realidade isso não é de modo algum um obstáculo à verdade:
se for verdadeiro que naquele dia em Paris estava chovendo, isso é verdadeiro ainda hoje,
e mesmo que não seja verdadeiro que está chovendo hoje em Paris ou noutro lugar. Uma
vez mais, temos aqui uma mistura com as convicções humanas, ou com o que os seres
humanos podem estabelecer, descobrir ou provar. É claro que se não houver registos
históricos apropriados, não haverá como saber se choveu em Paris naquele dia do século
XVIII; e não há certamente maneira de saber se a frase “Chove em Paris no dia 12 de
maio de 2020” será verdadeira ou falsa. Contudo, para pensar que o fluxo universal da
Um bom antídoto para confusões filosóficas deste teor é não começar a discutir conceitos
difíceis sem antes usar alguns pares de exemplos humildes que ilustrem apropriadamente
veleidade de pensar que a verdade desta frase depende do que os seres humanos são
capazes de saber, estabelecer, provar ou verificar torna-se manifesta, porque fica óbvio
que se confundiu o que se consegue ou não saber que é verdadeiro com a própria verdade.
Os seres humanos não são donos da verdade; são donos apenas dos métodos para tentar
dona da verdade — no sentido de ser ela, e só ela, a responsável pela verdade das frases
que são verdadeiras, mesmo que ninguém saiba ou sequer possa saber que o são.