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Actas del 2º Congreso de la SFU Montevideo, 2015

Actas del 2º Congreso de la


Sociedad Filosófica del Uruguay

Montevideo, 11-16 de agosto de 2014

Carlos E. Caorsi
Ricardo Navia

Compiladores

Sociedad Filosófica del Uruguay, 2015

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Actas del 2º Congreso de la SFU Montevideo, 2015

Actas del 2º Congreso de la Sociedad Filosófica del Uruguay/


comps. C. Caorsi, R. Navia. Montevideo: SFU, 2015. 1928 pp.

ISSN: 1688-9649

1. Filosofía. 2. Sociedad Filosófica del Uruguay. 3. Carlos E.


Caorsi. 4. Ricardo Navia.

Diseño de portada: Florencia Robaina

Diagramación y edición: Stefanie Riani

Actas del 2º Congreso de la Sociedad Filosófica del Uruguay


ISSN: 1688-9649
Por la presente edición:
Sociedad Filosófica del Uruguay (SFU)
Montevideo, 2015

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Actas del 2º Congreso de la SFU Montevideo, 2015

ÍNDICE

Presentación……………………………………………………………………………………………………………..14

Sociedad Filosófica del Uruguay

Órganos de Gobierno………………………………………………………………………………………………..17

2º Congreso de la Sociedad Filosófica del Uruguay

Comité Académico. Comité Organizador. Comunicación institucional…………………….18

Conferencistas. Invitados. Colaboradores.…………………………………………………………….....19

Programa completo

Conferencias centrales……………………………………….……………………………………………………..20

Local: Centro de Formación de la Cooperación Española…….……………………………………..21

Local: Junta Departamental de Montevideo……………………………….………………………………32

Local: Centro Cultural España………………………………………………………….…………………………33

Ponencias

Abner de Figueiredo, George / Andrade, Natalia………………………………………………………..39


La cordillera encubierta: Breve Interpretación Histórico-Filosófica Sobre el
Proceso de (De)-formación del Pensamiento Latinoamericano

Acosta Botero, Juan David………………………………………………………………………………………...68


El Criterio Pirrónico: Apraxia o A-normatividad caótica

Almendras, Milton……………………………………………………………………………………………………..83
Un concepto de ideología para una filosofía política contemporánea.

Ayala, Ana María………………………………………………………………………………………………………110


Spinoza: la ética como estética o de la felicidad de ser-con-otro.

Azar, Roberto / Lucero, Susana………………………………………………………………………………..124


Consideraciones críticas sobre las tesis de M. Tooley acerca de las leyes

Barrére Martin, Luiz Fernando………………………………………………………………………………… 134


Exame do conhecimento, ceticismo e a ciência filosófica na Introdução à
Fenomenologia do Espírito
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O(s) cinismo(s) em Quincas Borba

Marcelo Fonseca
Secretaria de Educação de Minas Gerais

Resumo: Este texto mostra os resultados parciais da pesquisa na área de Filosofia e


Literatura (especificamente, sobre as relações entre a Filosofia Cínica e a literatura de
Machado de Assis). O foco, neste estágio, é o romance da ‘segunda fase’, Quincas
Borba. Partindo desta obra, mostram-se alguns indícios que a filiariam à tradição
cínica. Consideram-se as duas vias do Cinismo que estariam presentes neste romance:
a via literária e a via moral.

O texto é dividido em três partes. Nas duas primeiras, apresentam-se os indícios


textuais e simbólicos que evidenciam a presença do cinismo. Na terceira parte
interpreta-se o cinismo moral presente no conteúdo da obra, a partir das interações e
intenções das personagens no espaço ficcional.

A hipótese inicia-se, portanto, com a evidência maior: a homonímia entre o filósofo


Quincas Borba e o seu fiel cão. Elementos textuais corroboram esta suspeita. Além das
evidências textuais e simbólicas, esboça-se a vertente moral, ou seja, os temas morais
de convergência entre o cinismo tradicional, o cinismo moderno e o romance
machadiano. Estes temas morais parecem ter-se alterado de alguma forma na sua
recepção moderna. São eles: a amizade (a dissimulação x a parrhesia), a indiferença e
o egoísmo. A crítica da cultura contêm estes topos, outro mote do cinismo tradicional
par excellence.

Abstract: This paper is the result of a research on the area of Philosophy and Literature
(specially, about the relationships between the Cynical Philosophy and the Work of the
Brazilian writer Machado de Assis). At this moment, the aim is to explore the novel
‘Quincas Borba’ and its relationships with the Cynicism. It shows some clues that will
include this novel at this Tradition. It is important to consider the two main ways in
which the Cynicism was developed along the centuries: the moral way and the literary
way.

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The paper was divided in three parts. At the two first ones it shows the text and
symbolical clues which will prove the cynicism presence. At the third part, it made an
interpretation of the moral from the content of the novel. We consider, to that, the
characters intentions and interactions at the fictional space.

Our hypothesis begins with some textual evidences: the homonymy of the philosopher
Quincas Borba and your dog and the narrator last chapter allusion to the title. Beyond
this evidences, the cynicism moral, the moral subjects which converge the traditional
cynicism with the modern cynicism and the novel of Machado de Assis. These moral
subjects were altered along the centuries in their modern reception. They are: the
friendship (dissimulation x parrhesía), the indifference and the selfishness. These
subjects, or topos, are all included at the cultures' critic, another cynical moral subject
par excellence.

Resumen: Lo artículo és el resultado de investigación en el área de la Filosofía y la


Literatura (especificamente, las relaciones entre la Filosofia Cínica y la Obra del escritor
brasileño Machado de Assis). En la actualidad, la busqueda se centra en el romance
Quincas Borba. A partir de este romance, se muestran algunas evidencias de la
Tradición Cínica. Para este fín, es essencial considerar las dos vías del Cinismo que
estaríam presentes en esta novela: la vía literária y la vía moral.

Este texto se divide en tres partes. En las dos primeras, se presenta las evidencias
textuais y simbólicos del Cinismo. En la tercera, se interpreta la moral a partir del
contenido de la novela. Para ello, se analizan las intenciones y interacciones de los
personajes en el espacio de ficción.

Nuestra hipótesis empeza con la evidencia: la homonimia entre el filósofo Quincas


Borba y su fiel perro. Además de los testimonios literários, hay los aspectos morales:
cuestiones morales de la convergencia entre el cinismo tradicional, el cinismo moderno
y la novela de Machado de Assis. Estas cuestiones morales parecen haber cambiado a
lo largo de su recepción moderna. Ellos son: la amistad (dissimulo x parrhesia), la
indiferencia y el egoismo. Estos temas estan contenidos en la crítica de la cultura, outro
tema tradicional cinico par excellence.

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Key words: cynicism tradition, literary cynicism, moral cynicism, Machado de Assis,
Quincas Borba

Palabras clave: tradición cinica, cinismo literario, cinismo moral, Machado de Assis,
Quincas Borba

Parte-se aqui da seguinte hipótese, que mais abaixo, espera-se, ficará clara: há
elementos na literatura de Machado de Assis que têm origem na Filosofia Cínica e na
sua Tradição. Esta pesquisa centra-se na investigação destes indícios no romance
Quincas Borba, cuja primeira edição completa saiu em 1891.

Parto deste romance, mas há uma forte intuição de que esta hipótese possa se
generalizar a boa parte da literatura machadiana (em especial, e certamente, ao
romance anterior, Memórias Póstumas de Brás Cubas de 1881, e aos contos), ou seja,
de que Machado foi, de fato e em parte, um autor cínico.

A principal motivação desta hipótese é óbvia, e surpreende que ainda não haja
estudos sobre esta filiação: o romance Quincas Borba, a partir de seu último capítulo
que remete ao título, faz uma referência implícita e velada ao Cinismo, podendo então
relacionar-se a esta tradição. Reconhecimento disso seria a sua tradução para o inglês,
feita por Helen Caldwell (A tradutora norte-americana, mostrando já o problema da
homonímia entre o filósofo e o cão no título, o traduz com a interrogação, Philosopher
or Dog?).
Em um dos poucos estudos, talvez o único, da bibliografia machadiana que traz à tona
a filosofia que subjaz a sua obra, Maia Neto (2007) justifica assim a ausência do
romance Quincas Borba:

“Quincas Borba não é examinado neste estudo. Embora o romance seja considerado como
um dos melhores de Machado, não é um romance escrito em primeira pessoa e, portanto,

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não apresenta um narrador-personagem. Esta é a razão central de sua ausência neste


livro.” (Maia Neto, 2007: 25).

O fato do cão de mesmo nome de uma personagem central intitular o romance


não significa que haja uma filiação ao cinismo. No entanto, esta filiação é sugerida no
último capítulo, quando o narrador nos deixa com a incômoda sensação de que a
homonímia, apresentada já no quinto capítulo, e que, portanto, atravessa-os
intermitentemente, possui uma justificativa maior:

“Queria dizer aqui o fim do Quincas Borba, que adoeceu também, ganiu infinitamente,
fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, três dias depois. Mas,
vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável que me perguntes se ele,
se o seu defunto homônimo é que dá o título do livro, e por que antes um que outro, -
questão prenhe de questões, que nos levariam longe... (...)” (Machado de Assis, 1959:
725)

Ressaltamos aqui que a justificativa da homonímia já havia sido mencionada pelo


narrador, pela fala do filósofo Quincas Borba: “(...) uma das extravagâncias do dono foi
dar-lhe o seu próprio nome; mas, explicava-o por dois motivos, um doutrinário, outro
particular.” (Machado de Assis, 1959: 557). Esta razão doutrinária, justificada pelo
filósofo Quincas Borba, é ‘Humanitas’ (o narrador, apresentando esta justificativa do
filósofo, parece dimensionar indiretamente a posição do próprio Machado de Assis: ou
seja, a justificativa para a presença do cão no romance é a sua filiação ao cinismo,
justificativa, portanto, doutrinária).
É preciso um estudo comparativo para identificar as semelhanças entre
Humanitas e os sistemas científicos e filosóficos doutrinais do século XIX. Apresenta-se
aqui a suspeita de que esta criação machadiana seja uma sátira, dentre outras, ao
darwinismo, na medida em que sua fórmula é resumida pela máxima: “Ao Vencedor As
Batatas”. No momento em que Rubião, agonizando, profere esta máxima, momento
epifânico e máximo do romance; a ironia significa corrosiva e ácida crítica ao sem
sentido absurdo mostrado ao longo de todo o romance: a soberana e axiomática ‘luta
pela sobrevivência’ gera o egoísmo extremo que aniquila os ‘mais fracos’.

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O ‘Humanitismo’, então, precisa ser melhor explorado. Quando ele é defendido por
um filósofo que usa os trajes do sábio cínico, no romance anterior, ele torna-se uma
sátira ao próprio Cinismo, mas também aos sistemas dogmáticos. Parece haver forte
presença darwinista nesta caricatura e pseudo-filosofia:

“(...) Mas passemos ao Humanitismo, a mais célebre das filosofias machadianas. Como
sugere o nome, trata-se de uma sátira à floração oitocentista dos ismos, com alusão
explícita à religião comtiana da humanidade. Os raciocínios fazem pensar em mais
outras filiações, além dos princípios positivistas que afirmam a luta de todos contra
todos, à maneira do darwinismo social. (...) Veja-se por um exemplo o clássico ‘Ao
Vencedor as Batatas’, palavra de ordem com que o filósofo pancada Quincas Borba
sintetizaria – noutro romance machadiano – a essência de sua doutrina ‘humanitista’. A
frase possivelmente seja a tradução aclimatada da ‘survival of the fittest’, expressão
mais clássica ainda, inventada por Spencer. (...)” (Schwarz, 1997: 89).

Parece certo que a forma conclusiva do ‘Humanitismo’, ‘Ao Vencedor As


Batatas’, seja uma chréia, um dito cínico em resposta aos seus detratores. Esta
suspeita, porém, deve ser desenvolvida em outro lugar.
Esta ‘questão prenhe de questões’, portanto, é o objeto deste texto. Propõe-
se, a partir desta pista, uma investigação do conteúdo mesmo desta obra literária,
buscando elementos de convergência com a tradição cínica.
No último capitulo, ao direcionar o leitor para o sentido mesmo do título, Machado
cria um jogo de referências implícitas que parece ganhar sentido e dimensão quando
situado em sua fonte histórica literária e filosófica. Como não relacionar a homonímia
do filósofo Quincas Borba ao seu cão, pela sutil menção do narrador no último
capítulo, à justificativa desta mesma homonímia?! Justificaremos pela relação entre o
romance e o movimento filosófico (e literário) que teve o cão como símbolo maior.

A questão da nomeação do Cinismo e da simbologia do cão apresenta


justificativas históricas. Encontramos quatro razões desta alcunha, apresentadas por
Dudley:

“(…) There are four reasons why the <Cynics> are so named. First because of the
<indifference> of their way of life, for they make a cult of adiafogia, like dogs, eat and

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make love in public, go barefoot, and sleep in tubs and at crossroads…. The second
reason is that the dog is a shameless animal, and they make a cult of shamelessness, not
as being beneath modesty (Aidos), but as superior to it…. The third reason is that the
dog is a good guard, and they guard the tenets of their philosophy… The fourth reason is
that the dog is a discriminating animal which can distinguish between its friends and
enemies… So they do recognize as friends those who are suited to philosophy, and
receive them kindly, while those unfitted they drive away, like dogs, by barking at them.
(…)” (Dudley, 1937: 5)

Notar que a indiferença, um dos valores propostos pelos antigos cínicos, ganhará
uma roupagem deturpada a partir do século XVIII, tornando-se, então, egoísmo. Esta
indiferença é corrompida pelo século das Luzes, na medida em que, para os antigos
cínicos, ela servia de arma na conquista da autarquia. Enquanto que o egoísmo pode
ser um efeito do apego a si gerado pela negligência da situação do outro. O egoísta
busca o outro para melhor fazer uso dos artifícios da civilização e para sobreviver às
armadilhas e jogos passionais da sociedade. Está, portanto, em direção oposta à a
utarquia: preso aos excessos dos valores civilizacionais.

Evidências de que Machado conheceu o Cinismo, através de Luciano, através


dos romancistas do século XVIII, ou/e através de Diógenes Laércio; encontram-se nos
capítulos CV (105), CXLV (145) e CLX (160).

Em CV, após o episódio da suspeita de adultério levantada por Rubião a partir


da carta encontrada no jardim, Sofia rememora os diálogos com Carlos Maria e
comprova ao leitor suas intenções adúlteras. Estas intenções, porém, não chegam a se
concretizar, ao que nos indica o seu ressentimento:

“(...) Recordou ainda outros encontros, palavras furtadas, olhos cálidos e compridos, e não
chegava a entender que toda essa paixão acabasse em nada. Provavelmente, não haveria
nenhuma; puro galanteio; - quando muito, um modo de apurar as suas forças atrativas...
Natureza de pelintra, de cínico, de fútil.” (Machado de Assis, 1959: 646).

Aqui Sofia adjetiva a frivolidade de Carlos Maria de cinismo, junto ao seu caráter
dissimulado, artificial e falso. Notar na irônica auto-referência desta adjetivação. Sofia
corresponde aos assédios de Carlos Maria e de outros, aceita todos os mimos de
Rubião, diz amar o esposo e ainda chama Carlos Maria de ‘cínico’. Sublinha-se, então,

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o uso pejorativo deste termo, forma do cinismo moderno, identificada por Sloterdijk
(2012).

Em CXLV temos um indício relacionado ao nome dado por Machado a uma


personagem. Rubião, já sob os efeitos de moléstia mental, deseja ter o rosto à maneira
de Napoleão III. O barbeiro chamado em sua residência para tal serviço chama-se
Lucien: “(...) Lá foi um oficial francês, chamado Lucien, que entrou para o gabinete de
Rubião, segundo as ordens dadas ao criado. – Uhm!... rosnou Quincas Borba, de cima
dos joelhos do Rubião. (...)” (Machado de Assis, 1959: 682).

No capítulo CLX, o narrador faz menção explícita à Lanterna de Diógenes, o


cínico. Este tradicional episódio diz que o cínico andava pelas ruas de Atenas em pleno
dia com um lampião aceso, dizendo: ‘Procuro um homem’1. No contexto do romance,
foi Sofia que, segundo o narrador, quis fazer do sol a ‘lanterna de Diógenes’:

“(...) Sofia cuidou que ainda podia sair; estava inquieta por ver, por andar, por sacudir aquele
torpor, e esperou que o sol varresse a chuva e tomasse conta do céu e da terra; mas o grande
astro percebeu que a intenção dela era constituí-lo lanterna de Diógenes, e disse ao raio úmido:
(...)” (Machado de Assis, 1969, p.695)

Reparemos na perversão, que condiz ao cinismo moderno e pejorativo,


expressa neste contexto. Sofia, no capítulo anterior, suspirava por Carlos Maria, em
memórias de caráter duvidoso. O narrador, que nos conta a intenção dela, diz dela
querer fazer do sol ‘lanterna de Diógenes’, ou seja, quis ela sair para rua à ‘procura de
um homem’, possivelmente aludindo aos pensamentos adúlteros da esposa de Palha.

2.

O símbolo da filosofia cínica é explicitamente identificável e refere-se à


personagem humana Quincas Borba (personagem esta que já figurara em Memórias
Póstumas de Brás Cubas2). Sua aparição no romance anterior fora como indigente, e
Machado relembra-nos estas vestes: “Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor
de ler as Memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência,

1
Laércio, 1988: 162
2
Memórias Póstumas de Brás Cubas saiu em 1880 na Revista Brasileira. O ano da primeira publicação
compilada em volume foi 1881.

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que ali aparece indigente, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia. (...)”
(Machado de Assis, 1959: 556). Notar, nesta breve descrição, a presença da fortuna, do
acaso, da sorte, sustentando a narrativa. A Fortuna foi uma das grandes adversárias
dos cínicos antigos, que buscavam incessantemente superá-la pelo uso extremo da
razão. É provável que a figura de Quincas Borba represente uma posição filosófica
sobre o Acaso, a deusa thycké dos antigos gregos. Atribui-se a ele a criação de um
sistema doutrinário filosófico: “(...) Crê-me, o Humanitismo é o remate das coisas; e eu,
que o formulei, sou o maior homem do mundo. Olha, vês como o meu bom Quincas
Borba está olhando para mim?! Não é ele, é Humanitas...”. (Machado de Assis, 1959:
559).
Ora, partindo basilarmente deste fato, pergunta-se: porque uma caricatura de
um sistema filosófico é colocada por Machado no discurso de um indigente, e,
posteriormente, de um demente Quincas Borba?! Esta pista conduz à imagem do
filósofo cínico.
Sabe-se, principalmente via Diógenes Laércio (o principal bibliógrafo da
antiguidade), que Diógenes (o cínico, discípulo de Antístenes e co-fundador do
Cinismo) foi denominado, por Platão, como “um Sócrates louco”3. Este epíteto deve-se
às mais extravagantes atitudes e excêntricos comportamentos, deste que é
tradicionalmente conhecido como o ‘filósofo do tonel’4. A questão que se coloca é:
seria este um motivo razoável para filiar o romance de Machado a esta tradição? Esta
é uma evidência que condiz às intenções de Machado? Este é um personagem
secundário, mas que nomeia um romance e é coadjuvante no anterior. Pretende-se
mostrar que, na verdade, o cinismo de Machado é bem peculiar e, paradoxalmente,
poderia ser classificado também como um anti-cinismo.

O estudo de Michel Massa (2001) auxilia a tarefa de evidenciar a nossa


hipótese. Nele, que se utilizou de metodologia genética, atesta-se a presença de obras
de vertente cética e cínica na biblioteca pessoal de Machado: Os volumes numerados
por Michel Massa estão nas seguintes páginas: p.153: livros 36 e 37 (Samosate, Lucien;
Oeuvres completes de Samosate; tradução de Eugène Talbot); p.145: livro 5 (Erasme,

3
Laércio, 1988: 165
4
Laércio, 1988: 158

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Éloge de la folie; tradução de De La Veaux); p.158: livro 60 (Petrone, Oeuvres


completes; tradução de M. Héguin de Guerlo); p.243: livro 501 (Rabelais, Oeuvres de
Rabelais, Paris Garnier).
Os livros 36 e 37 são evidências incontestes. Machado frequentou Luciano de
Samósata, este autor da antiguidade tardia que, acima de controvérsias filológicas e
historiográficas que sua obra ainda gera entre os exegetas é, de fato, o principal vetor
do cinismo literário:

“(...) De fato, a expressão mais poderosa da vitalidade do cinismo no início e no apogeu do


mundo moderno provavelmente não está no domínio da filosofia per se, mas numa
tradição literária de fantasia e diálogos satíricos (sério-cômicos) que vai de obras com
influência de Luciano, como Elogio da Loucura de Erasmo, Utopia de More e Gargântua e
Pantagruel de Rabelais, passando pelas comédias satíricas de Ben Jonson, as Viagens de
Gulliver, de Swift, e O sobrinho de Rameau, de Diderot. (...)” (Goulet-Cazé, 2007: 29).

A partir dessa evidência, talvez seja possível filiar o romance Quincas Borba à
tradição do cinismo literário, cujo vetor maior é Luciano. No interior desta tradição
apresentam-se elementos que a ligam, por sua vez, à filosofia moral (cujo principal
vetor, para o Cinismo, seria Diógenes Laércio). Acredita-se ser possível mostrar que
existem elementos em Machado desta vertente. Ou seja, haveria dois vetores do
cinismo ao longo da sua tradição, e que foram absorvidos em sua recepção: o cinismo
moral e o cinismo literário. É possível mostrar a presença de ambos em Machado de
Assis, dado que estas duas vias fundiram-se a partir de Luciano e ganharam fôlego no
Iluminismo. O cinismo literário assume, assim, exclusiva relevância, dado que o
cinismo moral vincula-se, a partir de Luciano e da redescoberta dele na modernidade,
a obras literárias. Não considero a hipótese de atribuir a Machado uma ‘vida cínica’
(bíos kinikos). Portanto, sempre que o cinismo for considerado sob seu aspecto moral,
esta consideração somente será possível quando tratar-se de personagens literárias. O
que está em jogo aqui é a separação entre literatura e história e entre obra e biografia.
Mostra-se, portanto, um e outro aspecto deste cinismo literário que estão presentes
em Quincas Borba.

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Ao considerar a recepção moderna do cinismo, Goulet-Cazé diz que esta


recepção das fontes cínicas pode ser mapeada na presença de personagens literárias
de cunho e ‘teor’ cínico:

“(...) As evidências podem ser encontradas antes na imitação consciente de gestos cínicos
particulares, no reconhecimento de máximas e atitudes cínicas, na relação literária com
motivos cínicos e com a figura do cínico, no uso dessa figura como projeção e identificação
e de muitas outras formas. Tais referências podem ser encontradas menos em textos
teórico-filosóficos do que em textos literário-filosóficos ou mesmo puramente literários –

por exemplo, na literatura moral, satírica e aforística. (...)” (Goulet-Cazé, 2001: 361)

A propósito da imitação dos gestos cínicos na recepção do Cinismo, leiamos o


episódio do furto do relógio de Brás Cubas por Quincas Borba, no capítulo LX de MPBC,
na ocasião do encontro dos dois no passeio público: “(...) E dizendo isso abraçou-me
com tal ímpeto, que não pude evitá-lo. (...) Meto a mão no colete e não acho o relógio.
Última desilusão! O Borba furtara-me no abraço.” (Machado de Assis, 1959: 478). Este
gesto, deturpado no que condiz aos gestos dos primeiros cínicos, parece, no entanto,
ser uma caricatura moderna de um gesto cínico. Reforçamos, a partir da citação, que a
recepção moderna do cinismo foi feita através de obras literárias. E, no interior destas
obras, a presença desta, que foi tida como a ‘filosofia popular da Grécia Antiga’ 5,
ocorreu, dentre outras, pela figura (caricaturada ou não) do sábio cínico.

Ora, pelo que constatou-se, há um forte indício de que Quincas Borba fora
criado em referência a estas personagens literárias cínicas. Trata-se, então de, com os
elementos da obra, ir em direção à intenção do próprio autor.

A ‘imitação consciente de gestos cínicos’ é feita por Quincas Borba (na criação
do sistema filosófico, mas também na postura existencial que adota ao logo de sua
vida, aceitando e superando o acaso, e não se abalando pelos reveses da fortuna). O
cínico antigo não criou sistemas filosóficos. Porque aponto esta questão como marca
cínica em Machado de Assis? Pela observação fundamental de que Quincas Borba é
uma sátira cínica ao cinismo e ao dogmatismo, no modelo dos diálogos de Luciano
onde ocorre a crítica aos cínicos, como no Fugitivo.

5
Ver Realle, 1992: 26

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A relação literária com motivos cínicos é elemento constituinte da literatura moral que
Machado fez em Quincas Borba. Os motivos cínicos, poucas vezes lógicos e nenhuma
vez estéticos, encontram eco neste romance, mesmo que de uma maneira alterada,
moderna.

Vamos às relações entre o moral e o literário. A partir de Luciano, estas duas


esferas se fundiram, e os personagens cínicos passaram a figurar no interior de textos
de vertente literária (ocorrendo uma ficcionalização do Cinismo).6 Machado e o seu
Quincas Borba parecem participar desta tradição. Dudley sintetiza em três aspectos o
Cinismo:

“(…) The conclusion of this study is that Cynicism was really a phenomenon which
presented itself in three not inseparable aspects – a vagrant ascetic life, an assault
on all established values, and a body of literary genres particularly well adapted to
satire and popular philosophical propaganda. (…)” (Dudley, 1937: xi-xii)

As primeiras duas características sintetizadas por Dudley são passíveis de


fundirem-se em textos literários (a vida vagante e ascética e a crítica aos valores
estabelecidos).

Já mostramos a presença da personagem que levou vida ascética e errante. No


entanto, o ataque aos valores estabelecidos, marca cínica moral possivelmente
presente em Quincas Borba, envolve considerações mais detalhadas.

3.

Cabe então apresentar os temas propriamente morais. É importante deixar


desde já expressa a fórmula desta apropriação moderna dos temas cínicos antigos: a
retomada (releitura paródica, reescrita, reelaboração temática, recepção) do cinismo
clássico pelos autores modernos, foi uma inversão destes mesmos temas.

6
Para o ‘romanceamento’ do sábio cínico, fenômeno ocorrido a partir de Luciano e identificado por M.
Baktin, ver: Goulet-Cazé, 2001: 100.

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Esta inversão passa pela leitura que Luciano fez dos representantes clássicos
(Antístenes, Diógenes, Menipo e Crates); e apresenta traços que historicamente vão
além do autor de Samósata. É necessário, portanto, para a compreensão deste
percurso, ter em mente o itinerário desta tradição: os primeiros cínicos (Antístenes,
Diógenes e Crates), a interpretação de Luciano (séc. II d.c) destes cínicos clássicos (seja
positiva ou negativamente, canonizada na tradição pelos diálogos onde Menipo é a
personagem principal, daí a criação do gênero literário ‘Sátira Menipéia’); e a recepção
de Luciano na modernidade (ocorrida nas várias literaturas ‘nacionais’ européias, em
especial na inglesa e francesa, mas também na alemã, com Wieland e Nietzsche, na
espanhola e na brasileira) e das temáticas tratadas pelos cínicos tradicionais.

Luciano é o principal responsável pela alteração do cinismo. Este paradoxo


parece percorrer a história deste Movimento. O cinismo parece ter passado por
constantes e conscientes inversões em sua recepção. Esta constatação nada
surpreende àquele familiarizado com a história da recepção das filosofias canonizadas.
Uma das características do cinismo é a sua capacidade auto referente. Se partirmos do
pressuposto de que Luciano é cínico, ou seja, de que o fato dele ter escrito sobre
sábios cínicos faz dele um autor cínico, o que é inquestionável é que ele os critica e
coloca seus valores em xeque. Este aspecto parece participar do extremo racionalismo
cínico, já apontado, e transmitido pela máxima de Diógenes, “A razão ou a corda de
um carrasco”, e também faz eco à conhecida anedota da adulteração das moedas.

Talvez Machado, enquanto leitor de Luciano tenha herdado de alguma


maneira o cinismo do mesmo. O que não podemos esquecer é que outras também
foram as fontes de Machado que, por sua vez, alteraram Luciano. Montar este
verdadeiro labirinto histórico não é tarefa simples e não será feito aqui. Neste
momento, propõe-se levantar indícios da moral cínica presentes no romance
machadiano. Estas evidências, portanto, estarão sempre em consonância com a
recepção moderna do cinismo, via Luciano e, paradoxalmente, em oposição ao cinismo
clássico.

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Os elementos relevantes do cinismo antigo são: a relação entre o homem e o


animal (o significado do epíteto ‘cão’), a indiferença visando a ataraxia do sábio cínico,
a parrhesia (fala franca) que objetiva a liberdade, o individualismo, a indiferença e a
disputa visando a autarquia, a auto suficiência e a amizade. A crítica da cultura,
refletida no cinismo tradicional pela oposição entre phüsis e nómos, contém e engloba
os temas acima.

A parresía, fala franca, liberdade no dizer, é um elemento cínico que parece


originar-se com Diógenes. A fala verdadeira é tradicionalmente atribuída ao filósofo do
tonel. A liberdade nas ações também foi, em muitos casos, levada ao extremo.
Diógenes denunciou os costumes gregos e suas convenções falsas e artificiais. Um
objetivo assumido por ele foi o de, como o seu predecessor Antístenes, “flechar
Afrodite”; ou seja, exterminar as ilusões amorosas e os prazeres derivados destas
ilusões. O cinismo em Diógenes ganha proporções extremas no que condiz à
contestação de tudo aquilo que tem valor apenas por convenção, ou seja, os valores
sociais.

O mais elevado ideal cínico é o bastar-se-a-si-mesmo, o não-ter-necessidade-


de-nada (autarquia), a indiferença completa diante tudo, exceto aos próprios valores
cínicos. Há a certeza de que a felicidade é algo interno, e não externo ou algo a se
exibir (o encontro entre Diógenes e Alexandre mostra isso). Ainda segundo Diógenes, o
amor e o dinheiro são a metrópole de todos os males. Estas ácidas críticas têm uma
teleologia moral nobre: a excelência e o bem.

Na figura de Crátes, o cinismo se confrontou com o hedonismo, uma vez que


uma de suas máximas era: somente o necessário. Ele foi conhecido como o “abridor de
portas”, pela sabedoria dos conselhos e a afabilidade com que os dava.

Qual o sentido propriamente da animalidade na filosofia cínica? Eles seriam


modelos morais para o homem, para uma pedagogia, que está distante da natureza e
perdeu-se na artificialidade da cultura7. Diógenes via os homens como animais

7
Ver: Goulet-Cazé, 2007: 50-51.

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naturalmente dotados de razão. A cultura entorpeceria o homem e lhe embotaria o


que lhe é mais próprio e natural: a razão, cujo fim é a soberania individual na condução
da existência. A crítica à cultura (nómos), portanto, já está contida no momento de
‘batismo’ do cinismo, dado que seu nome é uma referência ao elogio da natureza: “(...)
Como mostra a sua aceitação de bom grado do termo “cães”, os cínicos consideravam
os animais modelos da verdadeira vida “de acordo com a natureza (...)”, (Goulet-Cazé,
2007: 128).

O elemento de animalidade atribuído aos cínicos parece ter origem em


Diógenes de Sínope. O episódio do rato, narrado por Teofrastos8, indica que o modelo
de vida para o homem é o animal. Não que o homem deva se portar como um bicho,
irracionalmente, mas que o comportamento animal pode transmitir valores benéficos
aos homens. O objetivo é sempre a excelência moral: “(...) Diógenes dizia que os
homens competem cavando fossos e esmurrando-se, mas ninguém compete para
tornar-se moralmente excelente. (...)” (Laércio, 1988: 159).

Sobre a amizade, tema de extrema importância aqui, temos o seguinte. Dioclés


atribuiu a Antístenes as seguintes máximas: ‘Os homens dignos são amigos’, ‘Devemos
dar atenção aos inimigos, porque são os primeiros a notar os nossos erros’ (Laércio,
1988: 155). Já Diógenes, em imagem tanto quanto enigmática, dizia que devemos
cumprimentar os amigos com a mão aberta, e não fechada9. Mas é na sua concepção
do que merece de fato um sábio, que entrevemos a relação entre sabedoria e amizade
presente no cinismo: ‘(...) Diógenes raciocinava da seguinte maneira: “Tudo pertence
aos deuses; os sábios são amigos dos deuses; os bens dos amigos são comuns; logo,
tudo pertence aos sábios”’ e, alguns parágrafos adiante,

"Diógenes sustentava que tudo pertence ao sábio, e demonstrava a veracidade de sua


asserção com os seguintes argumentos: tudo pertence aos deuses; os deuses são amigos
dos sábios; os bens dos amigos são comuns; logo, tudo pertence aos sábios." (Laércio,
1988: 161 e 170).

8
Laércio, 1988: 158
9
Laércio, 1988: 159

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Ironia ou não com o silogismo, Diógenes mostra o valor da amizade na conduta e


existência moral do sábio cínico. Esta amizade com os deuses provê o sábio de tudo o
que ele necessita. A versão de Antístenes para a morte de Diógenes diz que ele foi
encontrado por amigos sem respirar, no ginásio próximo a Corinto. Nessa mesma
versão conta-se que os amigos pelejaram para saber quem o enterraria10.

A interpretação da amizade no cinismo antigo pode assumir outra roupagem. Se


considerarmos a impertinência do cão, sua conduta ofensiva em relação aos que lhe
cercam, declarando a obrigatoriedade dos outros em relação a si, será o próprio
cinismo que possibilitará a leitura moderna da amizade como jogo de interesses. No
entanto, se considerarmos a fidelidade e afabilidade do cão, a interpretação seguirá a
via de que o sábio cínico seria o bom amigo.

A máxima de Antístenes (446-366 a.c), ‘Preferiria ficar louco a sentir prazer’


(Laércio, 1988: 153), nos mostra o ascetismo como prática que conduz à liberdade.
Esta indiferença em relação aos prazeres e aos valores vigentes, como a riqueza, glória,
fama e poder, podem ser incluídas na linha de pensamento cínico que vai refletir
criticamente sobre os hábitos, costumes e sobre a cultura. Claro está que estas são
questões morais, e que a ética foi a preocupação exclusiva destes filósofos11.
Antístenes respondeu, a um elogiador do luxo: ‘Que vivam no luxo os filhos de teus
inimigos!’ (Laércio, 1988: 154). É então que a extrema moderação no se vestir
originará a imagem do filósofo trajando roupas puídas, cajado em punho, longa barba
e uma sacola nos ombros. O episódio do tonel de Diógenes mitificará esta imagem.
Diógenes Laércio diz: “Antistenes antecipou a impassibilidade de Diógenes, a
moderação de Crates, a firmeza de Zenon, e estabeleceu os fundamentos da doutrina.
(...)” (Laércio, 1988: 156). Ou seja, estabelecer esta conduta lhe servia para atingir a
estabilidade e a tranquilidade plena, sendo este ideal de paz interior necessário para
se atravessar uma existência conduzida, em última instância, pelo acaso e pela fortuna.
A felicidade resultaria dessa capacidade de não se abalar (ataraxia) diante os reveses
da sorte (tikhé), e ser autárquico, ou seja, senhor de si mesmo.

10
Laércio, 1988: 171 e 172
11
Ver: Laércio, 1988: 178-79

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Diógenes encarava a vida como uma corrida, e via nos homens a constante
necessidade de competição: “A alguém que lhe disse: ‘És velhor, repousa!’ Diógenes
respondeu: ‘Como? Se estivesse correndo num estádio eu deveria diminuir o ritmo ao
me aproximar da chegada? Ao contrário, deveria aumentar a velocidade’(...)” (Laércio,
1988: 160). Mais uma vez, a crítica à ânsia de poder: “(...) Diógenes definia o amor ao
dinheiro como a metrópole de todos os males. (...)” (Laércio, 1988: 164). Os prazeres
são também recusados, na figura da recusa dos amantes: “(...) Ele dizia que os amantes
derivam seus prazeres do próprio infortúnio. (...)” (Laércio, 1988: 169).

No relato sobre Mênipos feito por Diógenes Laércio, pode-se perceber a


pertinência da jocosidade posteriormente atribuída a ele por Luciano, uma vez que
este cínico parece não ter compreendido ou assumido de forma autêntica os valores
desta filosofia. Ele parece ter sido um ansioso pelo dinheiro, e é Diógenes Laércio que
nos diz que Mênipos não compreendeu o cinismo12.

A obra de Luciano contém mais de 70 Diálogos, que geram inúmeros debates


desde que foram escritos. O propósito aqui não é o de discutir Luciano de Samósata e
suas intercessões e rompimentos com o Cinismo. Esta relação é de difícil definição e
contraditória, uma vez que se encontram diálogos onde o filósofo ideal é retratado
como cínico (no caso do Demonax), e outros diálogos onde o filósofo cínico é criticado
(Fugitivos, Icaromenipo, Cynicus, Diálogo dos Mortos, A Morte de Peregrino): “(...)
Demônax, assim – ao lado de Diógenes, Menipo e Crates, em diversos textos –
constitui, de fato, o retrato do verdadeiro filósofo para Luciano. (...)”13.

Luciano é o autor responsável pelo cinismo tornar-se literário, como dito14. Mas
como ele se utilizou desta filosofia? Para fins libertários, visando inovar a tradição
clássica, segundo críticos. Sua posição, porém, em relação ao cinismo é, em parte,
como apontado acima, paradoxal:

“(...) Os cínicos clássicos deram-lhe nada menos do que uma licença para escrever sátiras
sobre todas as coisas gregas, que agora, claro, incluíam os cínicos e o próprio cinismo. No

12
Laércio, 1988: 178
13
Lins Brandão, 2001, p.61
14
Ver: Goulet-Cazé, 2007: 18

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entanto, apesar de todas as suas inegáveis afinidades com o cinismo, Luciano é


contundentemente satírico em relação aos cínicos contemporâneos, precisamente porque
eles ofendem o seu senso do verdadeiro centro de gravidade da tradição – na prática da
sátira (parrhesia) e de uma ética individualista, não coletivista. (...)”. (Goulet-Cazé, 2007:
27)

Lemos, em seu Menippus, a descrição da descida ao Hades da personagem que,


histórica ou não, deu origem a um novo gênero literário. O diálogo, sátira social,
mostra ricos e pobres após a morte convivendo em um mesmo lugar. Esta cena satisfaz
todas as inquirições do indagador Menipo.

O diálogo Demonax nos mostra uma idealização do sábio cínico. Neste diálogo
podemos ter uma noção do tratamento dado pelos cínicos à amizade15. A relação
entre mestre e discípulo é eivada de autêntico respeito. A parrhesía (liberdade de fala)
permite a direta dialética da sincera pedagogia cínica. Em Demonax vemos a nobreza
da filantropia do mestre em relação aos seus discípulos, a afabilidade e calma de
caráter que a amizade requer. Veremos que, em Quincas Borba, a ‘verdadeira’
amizade parece ter sido representada entre Rubião e Quincas Borba, filósofo. Ela é
submissa e fiel entre o filósofo e seu cão, e cruel, perversa e aniquiladora entre Rubião
e Palha (e os demais que cercaram Rubião).

No Demonax, portanto, a narrativa aborda temas como a amizade, a crítica aos


mistérios e à filosofia, e inúmeras anedotas sobre a personagem principal, que intitula
o diálogo. Nele, podemos perceber uma figuração mais positiva do filósofo cínico.

Na Morte de Peregrino, porém, o tom em relação ao filósofo cínico Peregrino


(ou Proteu) transforma-se em crítica contundente. As principais acusações são: o amor
à glória, a busca desvairada pela fama (ao ponto de angariar toda uma plateia para
assistir o seu suicídio sobre uma altíssima fogueira), o uso desmesurado da linguagem,
o charlatanismo, a impertinência e a desonestidade, a corrupção de um jovem. Nota-
se que, na sua passagem pela Itália, Peregrino é banido pelo motivo de falar
francamente: “(...) Even this made for his notoriety: he was in every one’s mouth as the

15
idem: .237-38

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philosopher who was banished for being too outspoken, and saying what he thought.
(…)” (Samosata, 1905: ), e na tradução francesa de Talbot, a mesma usada por
Machado: “(…) Néamoins ce bannissement le rendit encore célèbre; il n’etait bruit que
du philosophe que sa franchise et son indépendance avaient fait exiler (…)” (Samosate,
1857: 389). Isso nos mostra a inversão de um tema cínico (parrhesía) ocorrida em
Luciano, e que corrobora a tese do cinismo paradoxal que, posteriormente, foi
apropriado por Machado. Esta narrativa trágica, que não é um diálogo, contém nítido
tom cômico.

Os Fugitivos, diálogo que, inicialmente, parece ser uma continuação da Morte


de Peregrino, faz falar a Filosofia e suas queixas em relação aos seus representantes. O
alvo são aqueles cínicos, possivelmente contemporâneos de Luciano, que se fazem
passar por Antístenes, Diógenes e Crates através de comportamento exagerado,
agressivo e oportunista. Mais uma vez, a Filosofia aponta as contradições destes
‘cínicos’, que se prendem aos excessos do prazer e do vício.

No Cínico, lemos uma descrição da figura tradicional do ‘cão’. Esta descrição


parece não ser caricatural, e o diálogo desdobra-se numa discussão aparentemente
séria e filosófica sobre a necessidade e a vontade, ou, sobre o que nos é dado por
natureza e o que nossos costumes nos impõem como necessário. Os trajes cínicos,
dessa vez, são representados por uma voz que sabe bem definir as diretrizes morais
desta filosofia em relação à felicidade, adquirida através de uma existência
conscientemente austera e simples. Não parece ser um diálogo irônico em relação ao
cinismo, uma vez que o cínico que se descreve a si mesmo não aparenta estar em
busca de discípulos ou de gabar-se de sua conduta. Este talvez seja um diálogo
luciânico onde preceitos positivos possam ser encontrados no que condiz à moral,
lembrando mais uma vez que a crítica da cultura ocorria, dentre outros, através destes
temas.

Significativas alterações ocorreram na recepção do Cinismo na modernidade.


Partiremos dessa constatação utilizando-nos da bifurcação da palavra em língua
alemã, divisão esta atestada por Sloterdijk. O Zynicism, versão moderna, vulgarizada e

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pejorativa do Kynicism (palavra que remete exclusivamente ao cinismo tradicional),


cometeu inversões significativas aos princípios morais da filosofia de Antístenes e
Diógenes. Sloterdjik opôs cinismo antigo e moderno. Explicitemos um pouco mais os
traços desta oposição (que parece ser uma inversão).

O livro de Sloterdijk contém teses esparsas nas suas 700 páginas. De caráter
propositalmente assistemático, este filósofo faz uma crítica ao Iluminismo, de
inspiração adorniana, ideológica, portanto, e também nietzschiana. De estilo profuso e
turbilhonante, ele expõe o inventário dos mais diversos tipos de cinismo presentes na
cultura ocidental. Esta topografia das instituições pós modernas e modernas,
morfologia cultural, verdadeiro mapeamento de sintomas, é divida em duas partes. A
Primeira seria o embasamento histórico, onde ele mostraria as atitudes do cinismo
antigo que teriam se transmitido ao Iluminismo. A Segunda e mais extensa, dividida
em quatro seções, é a larga topografia (fisionômica, fenomenológica, lógica, histórica)
onde o cinismo é encontrado. Os alvos são diversos. Adotando o cinismo na forma de
exposição, pretensamente dispersa e caótica, as ciências, a universidade e o ensino, as
mídias, a política, as engenharias e as artes estão entre aqueles vetores modernos e
pós modernos do cinismo iluminista que Sloterdjik levantou. Por mais caudalosa e
intensa que seja a sua argumentação, parece que seu exagero impede o vislumbre do
vínculo de sua linguagem com o real, dado que seu projeto é atestar um sintoma,
expor os aspectos de uma atmosfera, a saber, a da cultura moderna e pós moderna,
enquanto eivada e perpassada pelos tipos de cinismos.

Para nós, interessam os traços do cinismo moderno a partir do Esclarecimento.


O cinismo moderno tornou-se social. Se, no período clássico, temos a imagem solitária
do sábio cínico (convivendo criticamente com seus contemporâneos), renunciando
plenamente às ilusões sociais com o nobre fim da autarquia, na modernidade esta
imagem inverte-se, e o cinismo passa a compor quadros sociais16.

Em Machado, esta inversão parece ter considerado a amizade, que se constitui


em seu romance aqui analisado, pela dissimulação (em oposição à parrhesía) e que,

16
Ver Goulet-Gazet, 2007: 394.

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por sua vez, é efeito do egoísmo individualista e causa a indiferença. O ‘interesse’


material que não mede esforços é o princípio norteador. Estes elementos compõem,
por sua vez, a crítica da cultura.

Vamos ao tema do interesse egoísta e indiferente. Rubião, já no primeiro


capítulo, em pensamento movido pelo coração, que é uma divisão do capítulo seguinte
(e pode ser uma alusão à ‘moral do coração’ de Pascal, mas cinicamente deturpada),
se alegra da perda da irmã e do ‘melhor amigo’. Por haver herdado significativo
quinhão, foi melhor para ele que a irmã não tivesse casado com o amigo, uma vez que
a irmã tinha de morrer (notar que a necessidade da morte da irmã é algo concluído a
posteriori, e a justificativa de Rubião desta 'necessidade' ressalta e evidencia o cinismo
moral de seu caráter que, ao longo das críticas, na maior parte das vezes, foi tido como
um protagonista ingênuo e vitimado pela astúcia de Palha).

O capítulo IV, onde Quincas Borba filósofo é apresentado, narra que Rubião
tentara de todas as formas casar sua irmã com Quincas. A interpretação da
personagem Rubião, pensa-se, é o fio condutor que pode transformar e direcionar a
interpretação de toda a trama deste romance. Em leitura atenta, vamos resgatar os
traços que definem o tipo de homem que ele seria. Houve nele ambição, ou seja, ele
havia tentado se enveredar pelos caminhos do capital: “... Rubião ficou sendo o único
amigo do filósofo. Antes de professor, metera ombros a algumas empresas, que foram
a pique.” (Machado de Assis, 1959: 557). Logo após nos narrar este fato, tomamos
contato com a relação entre Rubião e Quincas, quando da enfermidade deste último.
Notar que o narrador já nos introduz a amizade, na citação acima, como vínculo
definidor das relações entre os dois. O que de início percebemos é que não há uma
decisão a tomar sobre as reais intensões de Rubião.

No capítulo VIII, Quincas Borba anuncia sua ida ao Rio, para tratar de alguns
negócios. O filósofo, após uma semana, manda chamar o tabelião: “(...) No fim de uma
semana, mandou chamar o tabelião. – Tabelião? repetiu o amigo. – Sim, quero
registrar o meu testamento. (...) Rubião sentia bater-lhe o coração violentamente. (...)”
(Machado de Assis, 1959: 561). Ora, se não podemos tirar uma conclusão definitiva das

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reais intenções de Rubião, podemos com verossimilhança supor que ele dissimula. Esta
tese é provável, se contextualizarmos o romance machadiano na tradição do cinismo
moderno que inverte valores do cinismo clássico. Esta inversão é literal, sendo a
dissimulação o oposto da parrhesía (a fala franca, valorizada pelos cínicos clássicos,
representa o veículo para a verdade, o purgante dos humores artificiais e falsos, a via
para a liberdade e para a ataraxia).

O narrador nos diz que Rubião pensava na herança: “(...) Não tivesse a esperança de
um legado, pequeno que fosse. Era impossível que lhe não deixasse uma lembrança.”
(Machado de Assis, 1959: 563). Claro está que ele é um interesseiro. A instituição da
amizade é colocada em xeque por Machado.

No capítulo X, mais uma prova das reais intenções de Rubião. Após ler a carta
vinda do Rio que atesta a sandice de seu amigo, o mineiro se pergunta se essa mesma
sandice não anularia o testamento. E, ainda, faz contas da quantia que possivelmente
herdará: “(...) Dar-se-ia que, provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o
testamento, e perdidas as deixas? Rubião teve uma vertigem. (...) E outra vez pensou
no legado. Calculou o algarismo. Menos de dez contos, não. (...)” (Machado de Assis,
1959: 564).

Após a descrição da euforia de Rubião ao ser nomeado herdeiro universal dos


bens de Quincas Borba, lemos no capítulo XV: “Rubião não esquecia que muitas vezes
tentara enriquecer com empresas que morreram em flor. (...)” (Machado de Assis,
1959: 566). Talvez seja próximo ao Zynicism, como definido por Sloterdjik, o fato que
Rubião fora um investidor sem sucesso e que vira a oportunidade, na dissimulação de
uma amizade, de concretizar suas ambições de riqueza. A ironia é que Rubião é levado
a cuidar do cão para que a herança seja validada, sendo que ele detestava os animais.
Esta herança indireta e oblíqua, a herança do cão que Rubião recebe; pode ser uma
alusão machadiana à herança da tradição cínica.

Temos então o primeiro contato com Cristiano de Almeida e Palha e Sofia, sua
esposa. No trem que vai de Vassouras à Central do Brasil, Palha vê na fisionomia de
Rubião um contentamento propenso ao diálogo. Rubião tece sua confissão em poucas

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horas, entregando os fatos de sua vida e seu passado com ingenuidade e fidelidade. A
amizade entre em cena: “(...) Rubião falava, risonho, e ouvia atento as palavras do
Palha, agradecido da amizade com que o tratava um moço que ele nunca tinha visto.
Chegou a dizer que bem podiam ir juntos à Europa. (...)” (Machado de Assis, 1959:
571), e,

“(...) O nosso amigo estava morto por dizer a causa que o trazia à capital. Tinha a boca
cheia de confidência, prestes a entorná-la no ouvido do companheiro de viagem, - e só por
um resto de escrúpulo, já frouxo, é que ainda a retinha. E por que retê-la, se não era crime,
e ia ser caso público? – Tenho de cuidar primeiro de um inventário, murmurou finalmente.
– O senhor seu pai? – Não, um amigo. Um grande amigo, que se lembrou de fazer-me seu
herdeiro universal. – Ah! – Universal. Creia que há amigos neste mundo; como aquele,
poucos. (...)” (Machado de Assis, 1959: 571).

O próprio narrador chama Rubião de ‘o nosso amigo’. Esta alcunha perpassa


todo o romance. O interesse de Rubião, egoísta, leva-o à simulação da amizade para
adquirir os bens da herança.

Caminhando na trama, vemos a introdução de ‘novos amigos’ no círculo de


Rubião (o tema é o do parasitismo social). A declaração que Rubião faz a Sofia, sob o
olhar perplexo do Cruzeiro do Sul, é o episódio central após aquele do encontro no
trem. Depois do ocorrido, Sofia quer acabar com as relações com o Rubião, justamente
devido à declaração de amor no jardim. Temos, inicialmente, a redenção de Sofia.
Palha, até então, manipulara sua esposa a tratar Rubião com considerações especiais.
As reais intenções se delineiam. A prova de que a questão gira em torno de uma falsa
amizade se encontra, de acordo com a primeira edição do romance feita pela editora
Aguillar, no itálico que marca a expressão “nosso amigo”17: “(...) – O que eu quero dizer
é que o nosso amigo não estaria em si. (...)” (Machado de Assis, 1959:597. Negrito
nosso, para substituir o itálico no original). É assim que Palha, sarcasticamente, se
refere a Rubião. E tenta redimir-se, cinismo maior, da culpa que Sofia lhe imputa, de
Rubião tê-la namorado em sua própria casa. Até então a bela mulher estava sendo

17
É necessário confirmar esta marca nos manuscritos ou nas primeiras edições do romance em
folhetins, para termos a certeza da intenção de Machado e, posteriormente, concluirmos que este é um
romance sobre a amizade.

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usada, ciente ou não, para que o zangão conseguisse empréstimos e financiamentos.


“(...) – Crê que o Rubião é nosso amigo, devo-lhe obrigações. – Alguns presentes,
algumas joias, camarotes no teatro, não são motivos para que eu fite o Cruzeiro com
ele. (...)”. E, por fim, “(...) – Mas, meu amor, eu devo-lhe muito dinheiro. (...)” (Machado
de Assis, 1959: 598). O casal celebra, enfim, o contrato. Palha assume passar por cima
dos avanços de Rubião, o que Sofia, em sua dignidade de esposa, não queria consentir.

“Sofia tapou-lhe a boca e olhou assustada para o corredor. – Está bom, disse, acabemos
com isso. Verei como ele se comporta, e tratarei de ser mais fria... Nesse caso, tu é que
não deves mudar, para que não pareça que sabes o que se deu. Verei o que posso fazer.
– Você sabe, apertos no negócio, algumas faltas... é preciso tapar um buraco daqui,
outro dali... o diabo! É por isso que... Mas riamos, meu bem; não vale nada. Sabes que
confio em ti. (...)” (Machado de Assis, 1959: 598).

E poderíamos completar o ‘(...) é por isso que (...)’ acima, que Palha tolera o
simplório. Até este momento, o romance seguia sob as intenções de Palha, dado que
Sofia desconhecia a real situação de seu marido. Este, sabendo da beleza de sua
mulher, e que Rubião não a ignorava, usou-a como isca para atraí-lo e tê-lo junto a si
(sabemos da ‘curiosa mania’ de Palha, a sua perversão em exibir a esposa). A partir
daqui, temos o contrato feito pelo casal. Agora, Sofia compactua com a dissimulação
de seu esposo.

O narrador continua nos fornecendo elementos que enrobustecem a nossa


tese. O tema do prazer é também de muita importância e relevo. A demência de
Rubião é decorrente dos excessos de culpa que, por sua vez, são decorrentes da falta
de sentido de Rubião em lidar com os prazeres que sua fortuna lhe propiciou. A
sensibilidade para o prazer, a capacidade de senti-lo e como Rubião se relaciona e
interpreta o prazer, são descrições que cabem a uma psicologia literária.

Palha visita Rubião. Rubião se encontrava com Camacho, o político que angaria
fundos para o jornal Atalaia. Sabemos da vontade do herdeiro em retornar a Minas.
Lemos a justificativa como causa do sentimento de culpa de Rubião. O narrador diz:
“(...) Se a alma dele foi alguma vez dissimulada, e escutou a voz do interesse, agora era
a simples alma de um homem arrependido do gozo, e mal acomodado na própria

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riqueza.” (Machado de Assis, 1959: 605). Por esta evidência narrativa, podemos atestar
a dissimulação e o interesse do egoísmo individualista como motivo das ações. É o
próprio narrador que faz alusão aos reais motivos das ações de Rubião, inclusive e
principalmente, em relação à 'amizade' com Quincas Borba: o interesse que causa a
dissimulação.

As auto referências são como chaves interpretativas. Ao se levantar a


questão sobre o tipo de cinismo que Machado faz em Quincas Borba, propõe-se
que é um cinismo auto referente que critica, junto às filosofias sistemáticas, o
próprio cinismo. Esta hipótese será evidenciada pela análise do Humanitismo,
que não será feita aqui. Um indício da presença deste recurso auto referente no
romance encontra-se na fala de Palha a Rubião, na ocasião em que este lhe
solicita uma soma considerável. Palha, enquanto depositário dos títulos de
Rubião, diz:

“(...) Não vê que lhe levam o dinheiro, e não lhe pagam as dívidas? Sujeitos que vão ao ponto de jantar
diariamente com o próprio credor, como um tal Carneiro que lá dentro tenho visto. (...) Falo-lhe por ser
seu amigo; não dirá algum dia que não foi avisado em tempo. (...)” (Machado de Assis, 1959: 650)

Ora, este comportamento descrito e censurado por Palha é o mesmo que ele
próprio assume ao longo da estória. Ao descrever os parasitas de Rubião, Palha se auto
descreve. Logo após a reprimenda, a afirmação da amizade. Qual a interpretação, ao
longo da história bibliográfica da crítica machadiana, que vê em Palha uma autêntica e
verdadeira amizade por Rubião?!

Palha desfaz a sociedade com Rubião. Após alguns episódios, nos deparamos
com Rubião no quarto de Sofia, convidando-a para passear em Petrópolis. Após
embarcarmos na imaginação dela, sabemos que a presença de Rubião a incomoda,
mas vemos contrária sua reação quando Rubião se despede: “(...) Bebido o café,
Rubião concertou as barbas, tirou o relógio e despediu-se. Sofia, que espreitava da
saída, ficou satisfeita, mas encobriu o gosto com o espanto. – Já! (...)” (Machado de
Assis, 1959: 679). E, depois, o diálogo entre o narrador e o leitor, em digressão típica
do cinismo formal:

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“E Sofia? Interroga a impaciente leitora, tal qual Orgon: Et Tartufe? Ai, amiga minha, a
resposta é naturalmente a mesma, - também ela comia bem, dormia largo e fofo, - coisas
que, aliás, não impedem que uma pessoa ame, quando quer amar. Se esta última reflexão
é o motivo secreto de vossa pergunta, deixai que vos diga que sois muito indiscreta, e que
eu não me quero senão com dissimulados.” (Machado de Assis, 1959: 676-77).

O narrador, irônico e faceiro, corrobora o valor da dissimulação. Ela aparece por


detrás das ações das outras personagens, sendo o pano de fundo deste romance, e é
um tema moral do cinismo moderno.

Esperamos ter justificado, com suficientes provas, a suspeita levantada. Nossa


hipótese, já em forma de tese, deverá ser explorada com mais detalhes. Há mais
elementos que podem enrobustecer a nossa interpretação. O egoísmo e a indiferença,
por exemplo, pejorativamente cínicos, transmitem o amoralismo presente no enredo
machadiano. No entanto, desenvolver estes temas é assunto para um próximo texto.

Referencias:

ASSIS, Machado de (1959). Obra Completa, Rio de Janeiro: Aguillar, vol. I

DUDLEY, Donald R. (1937). A History of Cynicism, London: Methuen & Co

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MAYA, Alcides (2007). Machado de Assis, Algumas Notas Sobre o Humor; Porto Alegre:
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vol. III, pgs. 23 a 48; vol. IV, pgs.187 a 211

SAMOSATA, Lucian of (1905). The Works of Lucian of Samosata, London: Oxford, vol. IV

_______. (1857) Oeuvres Complétes de Lucien de Samosate, Paris: CH. Lahure, vol. II
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Menipéia E A Tradição Luciânica; Rio de Janeiro: Forense Universitária

SCHWARZ, Roberto (1997). Um Mestre na Periferia do Capitalismo; São Paulo: Editora


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