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Carlos E. Caorsi
Ricardo Navia
Compiladores
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Actas del 2º Congreso de la SFU Montevideo, 2015
ISSN: 1688-9649
3
Actas del 2º Congreso de la SFU Montevideo, 2015
ÍNDICE
Presentación……………………………………………………………………………………………………………..14
Órganos de Gobierno………………………………………………………………………………………………..17
Programa completo
Conferencias centrales……………………………………….……………………………………………………..20
Ponencias
Almendras, Milton……………………………………………………………………………………………………..83
Un concepto de ideología para una filosofía política contemporánea.
Marcelo Fonseca
Secretaria de Educação de Minas Gerais
Abstract: This paper is the result of a research on the area of Philosophy and Literature
(specially, about the relationships between the Cynical Philosophy and the Work of the
Brazilian writer Machado de Assis). At this moment, the aim is to explore the novel
‘Quincas Borba’ and its relationships with the Cynicism. It shows some clues that will
include this novel at this Tradition. It is important to consider the two main ways in
which the Cynicism was developed along the centuries: the moral way and the literary
way.
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The paper was divided in three parts. At the two first ones it shows the text and
symbolical clues which will prove the cynicism presence. At the third part, it made an
interpretation of the moral from the content of the novel. We consider, to that, the
characters intentions and interactions at the fictional space.
Our hypothesis begins with some textual evidences: the homonymy of the philosopher
Quincas Borba and your dog and the narrator last chapter allusion to the title. Beyond
this evidences, the cynicism moral, the moral subjects which converge the traditional
cynicism with the modern cynicism and the novel of Machado de Assis. These moral
subjects were altered along the centuries in their modern reception. They are: the
friendship (dissimulation x parrhesía), the indifference and the selfishness. These
subjects, or topos, are all included at the cultures' critic, another cynical moral subject
par excellence.
Este texto se divide en tres partes. En las dos primeras, se presenta las evidencias
textuais y simbólicos del Cinismo. En la tercera, se interpreta la moral a partir del
contenido de la novela. Para ello, se analizan las intenciones y interacciones de los
personajes en el espacio de ficción.
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Key words: cynicism tradition, literary cynicism, moral cynicism, Machado de Assis,
Quincas Borba
Palabras clave: tradición cinica, cinismo literario, cinismo moral, Machado de Assis,
Quincas Borba
Parte-se aqui da seguinte hipótese, que mais abaixo, espera-se, ficará clara: há
elementos na literatura de Machado de Assis que têm origem na Filosofia Cínica e na
sua Tradição. Esta pesquisa centra-se na investigação destes indícios no romance
Quincas Borba, cuja primeira edição completa saiu em 1891.
Parto deste romance, mas há uma forte intuição de que esta hipótese possa se
generalizar a boa parte da literatura machadiana (em especial, e certamente, ao
romance anterior, Memórias Póstumas de Brás Cubas de 1881, e aos contos), ou seja,
de que Machado foi, de fato e em parte, um autor cínico.
A principal motivação desta hipótese é óbvia, e surpreende que ainda não haja
estudos sobre esta filiação: o romance Quincas Borba, a partir de seu último capítulo
que remete ao título, faz uma referência implícita e velada ao Cinismo, podendo então
relacionar-se a esta tradição. Reconhecimento disso seria a sua tradução para o inglês,
feita por Helen Caldwell (A tradutora norte-americana, mostrando já o problema da
homonímia entre o filósofo e o cão no título, o traduz com a interrogação, Philosopher
or Dog?).
Em um dos poucos estudos, talvez o único, da bibliografia machadiana que traz à tona
a filosofia que subjaz a sua obra, Maia Neto (2007) justifica assim a ausência do
romance Quincas Borba:
“Quincas Borba não é examinado neste estudo. Embora o romance seja considerado como
um dos melhores de Machado, não é um romance escrito em primeira pessoa e, portanto,
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“Queria dizer aqui o fim do Quincas Borba, que adoeceu também, ganiu infinitamente,
fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, três dias depois. Mas,
vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável que me perguntes se ele,
se o seu defunto homônimo é que dá o título do livro, e por que antes um que outro, -
questão prenhe de questões, que nos levariam longe... (...)” (Machado de Assis, 1959:
725)
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O ‘Humanitismo’, então, precisa ser melhor explorado. Quando ele é defendido por
um filósofo que usa os trajes do sábio cínico, no romance anterior, ele torna-se uma
sátira ao próprio Cinismo, mas também aos sistemas dogmáticos. Parece haver forte
presença darwinista nesta caricatura e pseudo-filosofia:
“(...) Mas passemos ao Humanitismo, a mais célebre das filosofias machadianas. Como
sugere o nome, trata-se de uma sátira à floração oitocentista dos ismos, com alusão
explícita à religião comtiana da humanidade. Os raciocínios fazem pensar em mais
outras filiações, além dos princípios positivistas que afirmam a luta de todos contra
todos, à maneira do darwinismo social. (...) Veja-se por um exemplo o clássico ‘Ao
Vencedor as Batatas’, palavra de ordem com que o filósofo pancada Quincas Borba
sintetizaria – noutro romance machadiano – a essência de sua doutrina ‘humanitista’. A
frase possivelmente seja a tradução aclimatada da ‘survival of the fittest’, expressão
mais clássica ainda, inventada por Spencer. (...)” (Schwarz, 1997: 89).
“(…) There are four reasons why the <Cynics> are so named. First because of the
<indifference> of their way of life, for they make a cult of adiafogia, like dogs, eat and
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make love in public, go barefoot, and sleep in tubs and at crossroads…. The second
reason is that the dog is a shameless animal, and they make a cult of shamelessness, not
as being beneath modesty (Aidos), but as superior to it…. The third reason is that the
dog is a good guard, and they guard the tenets of their philosophy… The fourth reason is
that the dog is a discriminating animal which can distinguish between its friends and
enemies… So they do recognize as friends those who are suited to philosophy, and
receive them kindly, while those unfitted they drive away, like dogs, by barking at them.
(…)” (Dudley, 1937: 5)
Notar que a indiferença, um dos valores propostos pelos antigos cínicos, ganhará
uma roupagem deturpada a partir do século XVIII, tornando-se, então, egoísmo. Esta
indiferença é corrompida pelo século das Luzes, na medida em que, para os antigos
cínicos, ela servia de arma na conquista da autarquia. Enquanto que o egoísmo pode
ser um efeito do apego a si gerado pela negligência da situação do outro. O egoísta
busca o outro para melhor fazer uso dos artifícios da civilização e para sobreviver às
armadilhas e jogos passionais da sociedade. Está, portanto, em direção oposta à a
utarquia: preso aos excessos dos valores civilizacionais.
“(...) Recordou ainda outros encontros, palavras furtadas, olhos cálidos e compridos, e não
chegava a entender que toda essa paixão acabasse em nada. Provavelmente, não haveria
nenhuma; puro galanteio; - quando muito, um modo de apurar as suas forças atrativas...
Natureza de pelintra, de cínico, de fútil.” (Machado de Assis, 1959: 646).
Aqui Sofia adjetiva a frivolidade de Carlos Maria de cinismo, junto ao seu caráter
dissimulado, artificial e falso. Notar na irônica auto-referência desta adjetivação. Sofia
corresponde aos assédios de Carlos Maria e de outros, aceita todos os mimos de
Rubião, diz amar o esposo e ainda chama Carlos Maria de ‘cínico’. Sublinha-se, então,
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o uso pejorativo deste termo, forma do cinismo moderno, identificada por Sloterdijk
(2012).
“(...) Sofia cuidou que ainda podia sair; estava inquieta por ver, por andar, por sacudir aquele
torpor, e esperou que o sol varresse a chuva e tomasse conta do céu e da terra; mas o grande
astro percebeu que a intenção dela era constituí-lo lanterna de Diógenes, e disse ao raio úmido:
(...)” (Machado de Assis, 1969, p.695)
2.
1
Laércio, 1988: 162
2
Memórias Póstumas de Brás Cubas saiu em 1880 na Revista Brasileira. O ano da primeira publicação
compilada em volume foi 1881.
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que ali aparece indigente, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia. (...)”
(Machado de Assis, 1959: 556). Notar, nesta breve descrição, a presença da fortuna, do
acaso, da sorte, sustentando a narrativa. A Fortuna foi uma das grandes adversárias
dos cínicos antigos, que buscavam incessantemente superá-la pelo uso extremo da
razão. É provável que a figura de Quincas Borba represente uma posição filosófica
sobre o Acaso, a deusa thycké dos antigos gregos. Atribui-se a ele a criação de um
sistema doutrinário filosófico: “(...) Crê-me, o Humanitismo é o remate das coisas; e eu,
que o formulei, sou o maior homem do mundo. Olha, vês como o meu bom Quincas
Borba está olhando para mim?! Não é ele, é Humanitas...”. (Machado de Assis, 1959:
559).
Ora, partindo basilarmente deste fato, pergunta-se: porque uma caricatura de
um sistema filosófico é colocada por Machado no discurso de um indigente, e,
posteriormente, de um demente Quincas Borba?! Esta pista conduz à imagem do
filósofo cínico.
Sabe-se, principalmente via Diógenes Laércio (o principal bibliógrafo da
antiguidade), que Diógenes (o cínico, discípulo de Antístenes e co-fundador do
Cinismo) foi denominado, por Platão, como “um Sócrates louco”3. Este epíteto deve-se
às mais extravagantes atitudes e excêntricos comportamentos, deste que é
tradicionalmente conhecido como o ‘filósofo do tonel’4. A questão que se coloca é:
seria este um motivo razoável para filiar o romance de Machado a esta tradição? Esta
é uma evidência que condiz às intenções de Machado? Este é um personagem
secundário, mas que nomeia um romance e é coadjuvante no anterior. Pretende-se
mostrar que, na verdade, o cinismo de Machado é bem peculiar e, paradoxalmente,
poderia ser classificado também como um anti-cinismo.
3
Laércio, 1988: 165
4
Laércio, 1988: 158
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A partir dessa evidência, talvez seja possível filiar o romance Quincas Borba à
tradição do cinismo literário, cujo vetor maior é Luciano. No interior desta tradição
apresentam-se elementos que a ligam, por sua vez, à filosofia moral (cujo principal
vetor, para o Cinismo, seria Diógenes Laércio). Acredita-se ser possível mostrar que
existem elementos em Machado desta vertente. Ou seja, haveria dois vetores do
cinismo ao longo da sua tradição, e que foram absorvidos em sua recepção: o cinismo
moral e o cinismo literário. É possível mostrar a presença de ambos em Machado de
Assis, dado que estas duas vias fundiram-se a partir de Luciano e ganharam fôlego no
Iluminismo. O cinismo literário assume, assim, exclusiva relevância, dado que o
cinismo moral vincula-se, a partir de Luciano e da redescoberta dele na modernidade,
a obras literárias. Não considero a hipótese de atribuir a Machado uma ‘vida cínica’
(bíos kinikos). Portanto, sempre que o cinismo for considerado sob seu aspecto moral,
esta consideração somente será possível quando tratar-se de personagens literárias. O
que está em jogo aqui é a separação entre literatura e história e entre obra e biografia.
Mostra-se, portanto, um e outro aspecto deste cinismo literário que estão presentes
em Quincas Borba.
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“(...) As evidências podem ser encontradas antes na imitação consciente de gestos cínicos
particulares, no reconhecimento de máximas e atitudes cínicas, na relação literária com
motivos cínicos e com a figura do cínico, no uso dessa figura como projeção e identificação
e de muitas outras formas. Tais referências podem ser encontradas menos em textos
teórico-filosóficos do que em textos literário-filosóficos ou mesmo puramente literários –
por exemplo, na literatura moral, satírica e aforística. (...)” (Goulet-Cazé, 2001: 361)
Ora, pelo que constatou-se, há um forte indício de que Quincas Borba fora
criado em referência a estas personagens literárias cínicas. Trata-se, então de, com os
elementos da obra, ir em direção à intenção do próprio autor.
A ‘imitação consciente de gestos cínicos’ é feita por Quincas Borba (na criação
do sistema filosófico, mas também na postura existencial que adota ao logo de sua
vida, aceitando e superando o acaso, e não se abalando pelos reveses da fortuna). O
cínico antigo não criou sistemas filosóficos. Porque aponto esta questão como marca
cínica em Machado de Assis? Pela observação fundamental de que Quincas Borba é
uma sátira cínica ao cinismo e ao dogmatismo, no modelo dos diálogos de Luciano
onde ocorre a crítica aos cínicos, como no Fugitivo.
5
Ver Realle, 1992: 26
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A relação literária com motivos cínicos é elemento constituinte da literatura moral que
Machado fez em Quincas Borba. Os motivos cínicos, poucas vezes lógicos e nenhuma
vez estéticos, encontram eco neste romance, mesmo que de uma maneira alterada,
moderna.
“(…) The conclusion of this study is that Cynicism was really a phenomenon which
presented itself in three not inseparable aspects – a vagrant ascetic life, an assault
on all established values, and a body of literary genres particularly well adapted to
satire and popular philosophical propaganda. (…)” (Dudley, 1937: xi-xii)
3.
6
Para o ‘romanceamento’ do sábio cínico, fenômeno ocorrido a partir de Luciano e identificado por M.
Baktin, ver: Goulet-Cazé, 2001: 100.
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Esta inversão passa pela leitura que Luciano fez dos representantes clássicos
(Antístenes, Diógenes, Menipo e Crates); e apresenta traços que historicamente vão
além do autor de Samósata. É necessário, portanto, para a compreensão deste
percurso, ter em mente o itinerário desta tradição: os primeiros cínicos (Antístenes,
Diógenes e Crates), a interpretação de Luciano (séc. II d.c) destes cínicos clássicos (seja
positiva ou negativamente, canonizada na tradição pelos diálogos onde Menipo é a
personagem principal, daí a criação do gênero literário ‘Sátira Menipéia’); e a recepção
de Luciano na modernidade (ocorrida nas várias literaturas ‘nacionais’ européias, em
especial na inglesa e francesa, mas também na alemã, com Wieland e Nietzsche, na
espanhola e na brasileira) e das temáticas tratadas pelos cínicos tradicionais.
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Ver: Goulet-Cazé, 2007: 50-51.
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Laércio, 1988: 158
9
Laércio, 1988: 159
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10
Laércio, 1988: 171 e 172
11
Ver: Laércio, 1988: 178-79
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Diógenes encarava a vida como uma corrida, e via nos homens a constante
necessidade de competição: “A alguém que lhe disse: ‘És velhor, repousa!’ Diógenes
respondeu: ‘Como? Se estivesse correndo num estádio eu deveria diminuir o ritmo ao
me aproximar da chegada? Ao contrário, deveria aumentar a velocidade’(...)” (Laércio,
1988: 160). Mais uma vez, a crítica à ânsia de poder: “(...) Diógenes definia o amor ao
dinheiro como a metrópole de todos os males. (...)” (Laércio, 1988: 164). Os prazeres
são também recusados, na figura da recusa dos amantes: “(...) Ele dizia que os amantes
derivam seus prazeres do próprio infortúnio. (...)” (Laércio, 1988: 169).
Luciano é o autor responsável pelo cinismo tornar-se literário, como dito14. Mas
como ele se utilizou desta filosofia? Para fins libertários, visando inovar a tradição
clássica, segundo críticos. Sua posição, porém, em relação ao cinismo é, em parte,
como apontado acima, paradoxal:
“(...) Os cínicos clássicos deram-lhe nada menos do que uma licença para escrever sátiras
sobre todas as coisas gregas, que agora, claro, incluíam os cínicos e o próprio cinismo. No
12
Laércio, 1988: 178
13
Lins Brandão, 2001, p.61
14
Ver: Goulet-Cazé, 2007: 18
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O diálogo Demonax nos mostra uma idealização do sábio cínico. Neste diálogo
podemos ter uma noção do tratamento dado pelos cínicos à amizade15. A relação
entre mestre e discípulo é eivada de autêntico respeito. A parrhesía (liberdade de fala)
permite a direta dialética da sincera pedagogia cínica. Em Demonax vemos a nobreza
da filantropia do mestre em relação aos seus discípulos, a afabilidade e calma de
caráter que a amizade requer. Veremos que, em Quincas Borba, a ‘verdadeira’
amizade parece ter sido representada entre Rubião e Quincas Borba, filósofo. Ela é
submissa e fiel entre o filósofo e seu cão, e cruel, perversa e aniquiladora entre Rubião
e Palha (e os demais que cercaram Rubião).
15
idem: .237-38
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philosopher who was banished for being too outspoken, and saying what he thought.
(…)” (Samosata, 1905: ), e na tradução francesa de Talbot, a mesma usada por
Machado: “(…) Néamoins ce bannissement le rendit encore célèbre; il n’etait bruit que
du philosophe que sa franchise et son indépendance avaient fait exiler (…)” (Samosate,
1857: 389). Isso nos mostra a inversão de um tema cínico (parrhesía) ocorrida em
Luciano, e que corrobora a tese do cinismo paradoxal que, posteriormente, foi
apropriado por Machado. Esta narrativa trágica, que não é um diálogo, contém nítido
tom cômico.
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O livro de Sloterdijk contém teses esparsas nas suas 700 páginas. De caráter
propositalmente assistemático, este filósofo faz uma crítica ao Iluminismo, de
inspiração adorniana, ideológica, portanto, e também nietzschiana. De estilo profuso e
turbilhonante, ele expõe o inventário dos mais diversos tipos de cinismo presentes na
cultura ocidental. Esta topografia das instituições pós modernas e modernas,
morfologia cultural, verdadeiro mapeamento de sintomas, é divida em duas partes. A
Primeira seria o embasamento histórico, onde ele mostraria as atitudes do cinismo
antigo que teriam se transmitido ao Iluminismo. A Segunda e mais extensa, dividida
em quatro seções, é a larga topografia (fisionômica, fenomenológica, lógica, histórica)
onde o cinismo é encontrado. Os alvos são diversos. Adotando o cinismo na forma de
exposição, pretensamente dispersa e caótica, as ciências, a universidade e o ensino, as
mídias, a política, as engenharias e as artes estão entre aqueles vetores modernos e
pós modernos do cinismo iluminista que Sloterdjik levantou. Por mais caudalosa e
intensa que seja a sua argumentação, parece que seu exagero impede o vislumbre do
vínculo de sua linguagem com o real, dado que seu projeto é atestar um sintoma,
expor os aspectos de uma atmosfera, a saber, a da cultura moderna e pós moderna,
enquanto eivada e perpassada pelos tipos de cinismos.
16
Ver Goulet-Gazet, 2007: 394.
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O capítulo IV, onde Quincas Borba filósofo é apresentado, narra que Rubião
tentara de todas as formas casar sua irmã com Quincas. A interpretação da
personagem Rubião, pensa-se, é o fio condutor que pode transformar e direcionar a
interpretação de toda a trama deste romance. Em leitura atenta, vamos resgatar os
traços que definem o tipo de homem que ele seria. Houve nele ambição, ou seja, ele
havia tentado se enveredar pelos caminhos do capital: “... Rubião ficou sendo o único
amigo do filósofo. Antes de professor, metera ombros a algumas empresas, que foram
a pique.” (Machado de Assis, 1959: 557). Logo após nos narrar este fato, tomamos
contato com a relação entre Rubião e Quincas, quando da enfermidade deste último.
Notar que o narrador já nos introduz a amizade, na citação acima, como vínculo
definidor das relações entre os dois. O que de início percebemos é que não há uma
decisão a tomar sobre as reais intensões de Rubião.
No capítulo VIII, Quincas Borba anuncia sua ida ao Rio, para tratar de alguns
negócios. O filósofo, após uma semana, manda chamar o tabelião: “(...) No fim de uma
semana, mandou chamar o tabelião. – Tabelião? repetiu o amigo. – Sim, quero
registrar o meu testamento. (...) Rubião sentia bater-lhe o coração violentamente. (...)”
(Machado de Assis, 1959: 561). Ora, se não podemos tirar uma conclusão definitiva das
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reais intenções de Rubião, podemos com verossimilhança supor que ele dissimula. Esta
tese é provável, se contextualizarmos o romance machadiano na tradição do cinismo
moderno que inverte valores do cinismo clássico. Esta inversão é literal, sendo a
dissimulação o oposto da parrhesía (a fala franca, valorizada pelos cínicos clássicos,
representa o veículo para a verdade, o purgante dos humores artificiais e falsos, a via
para a liberdade e para a ataraxia).
O narrador nos diz que Rubião pensava na herança: “(...) Não tivesse a esperança de
um legado, pequeno que fosse. Era impossível que lhe não deixasse uma lembrança.”
(Machado de Assis, 1959: 563). Claro está que ele é um interesseiro. A instituição da
amizade é colocada em xeque por Machado.
No capítulo X, mais uma prova das reais intenções de Rubião. Após ler a carta
vinda do Rio que atesta a sandice de seu amigo, o mineiro se pergunta se essa mesma
sandice não anularia o testamento. E, ainda, faz contas da quantia que possivelmente
herdará: “(...) Dar-se-ia que, provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o
testamento, e perdidas as deixas? Rubião teve uma vertigem. (...) E outra vez pensou
no legado. Calculou o algarismo. Menos de dez contos, não. (...)” (Machado de Assis,
1959: 564).
Temos então o primeiro contato com Cristiano de Almeida e Palha e Sofia, sua
esposa. No trem que vai de Vassouras à Central do Brasil, Palha vê na fisionomia de
Rubião um contentamento propenso ao diálogo. Rubião tece sua confissão em poucas
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horas, entregando os fatos de sua vida e seu passado com ingenuidade e fidelidade. A
amizade entre em cena: “(...) Rubião falava, risonho, e ouvia atento as palavras do
Palha, agradecido da amizade com que o tratava um moço que ele nunca tinha visto.
Chegou a dizer que bem podiam ir juntos à Europa. (...)” (Machado de Assis, 1959:
571), e,
“(...) O nosso amigo estava morto por dizer a causa que o trazia à capital. Tinha a boca
cheia de confidência, prestes a entorná-la no ouvido do companheiro de viagem, - e só por
um resto de escrúpulo, já frouxo, é que ainda a retinha. E por que retê-la, se não era crime,
e ia ser caso público? – Tenho de cuidar primeiro de um inventário, murmurou finalmente.
– O senhor seu pai? – Não, um amigo. Um grande amigo, que se lembrou de fazer-me seu
herdeiro universal. – Ah! – Universal. Creia que há amigos neste mundo; como aquele,
poucos. (...)” (Machado de Assis, 1959: 571).
17
É necessário confirmar esta marca nos manuscritos ou nas primeiras edições do romance em
folhetins, para termos a certeza da intenção de Machado e, posteriormente, concluirmos que este é um
romance sobre a amizade.
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“Sofia tapou-lhe a boca e olhou assustada para o corredor. – Está bom, disse, acabemos
com isso. Verei como ele se comporta, e tratarei de ser mais fria... Nesse caso, tu é que
não deves mudar, para que não pareça que sabes o que se deu. Verei o que posso fazer.
– Você sabe, apertos no negócio, algumas faltas... é preciso tapar um buraco daqui,
outro dali... o diabo! É por isso que... Mas riamos, meu bem; não vale nada. Sabes que
confio em ti. (...)” (Machado de Assis, 1959: 598).
E poderíamos completar o ‘(...) é por isso que (...)’ acima, que Palha tolera o
simplório. Até este momento, o romance seguia sob as intenções de Palha, dado que
Sofia desconhecia a real situação de seu marido. Este, sabendo da beleza de sua
mulher, e que Rubião não a ignorava, usou-a como isca para atraí-lo e tê-lo junto a si
(sabemos da ‘curiosa mania’ de Palha, a sua perversão em exibir a esposa). A partir
daqui, temos o contrato feito pelo casal. Agora, Sofia compactua com a dissimulação
de seu esposo.
Palha visita Rubião. Rubião se encontrava com Camacho, o político que angaria
fundos para o jornal Atalaia. Sabemos da vontade do herdeiro em retornar a Minas.
Lemos a justificativa como causa do sentimento de culpa de Rubião. O narrador diz:
“(...) Se a alma dele foi alguma vez dissimulada, e escutou a voz do interesse, agora era
a simples alma de um homem arrependido do gozo, e mal acomodado na própria
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riqueza.” (Machado de Assis, 1959: 605). Por esta evidência narrativa, podemos atestar
a dissimulação e o interesse do egoísmo individualista como motivo das ações. É o
próprio narrador que faz alusão aos reais motivos das ações de Rubião, inclusive e
principalmente, em relação à 'amizade' com Quincas Borba: o interesse que causa a
dissimulação.
“(...) Não vê que lhe levam o dinheiro, e não lhe pagam as dívidas? Sujeitos que vão ao ponto de jantar
diariamente com o próprio credor, como um tal Carneiro que lá dentro tenho visto. (...) Falo-lhe por ser
seu amigo; não dirá algum dia que não foi avisado em tempo. (...)” (Machado de Assis, 1959: 650)
Ora, este comportamento descrito e censurado por Palha é o mesmo que ele
próprio assume ao longo da estória. Ao descrever os parasitas de Rubião, Palha se auto
descreve. Logo após a reprimenda, a afirmação da amizade. Qual a interpretação, ao
longo da história bibliográfica da crítica machadiana, que vê em Palha uma autêntica e
verdadeira amizade por Rubião?!
Palha desfaz a sociedade com Rubião. Após alguns episódios, nos deparamos
com Rubião no quarto de Sofia, convidando-a para passear em Petrópolis. Após
embarcarmos na imaginação dela, sabemos que a presença de Rubião a incomoda,
mas vemos contrária sua reação quando Rubião se despede: “(...) Bebido o café,
Rubião concertou as barbas, tirou o relógio e despediu-se. Sofia, que espreitava da
saída, ficou satisfeita, mas encobriu o gosto com o espanto. – Já! (...)” (Machado de
Assis, 1959: 679). E, depois, o diálogo entre o narrador e o leitor, em digressão típica
do cinismo formal:
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“E Sofia? Interroga a impaciente leitora, tal qual Orgon: Et Tartufe? Ai, amiga minha, a
resposta é naturalmente a mesma, - também ela comia bem, dormia largo e fofo, - coisas
que, aliás, não impedem que uma pessoa ame, quando quer amar. Se esta última reflexão
é o motivo secreto de vossa pergunta, deixai que vos diga que sois muito indiscreta, e que
eu não me quero senão com dissimulados.” (Machado de Assis, 1959: 676-77).
Referencias:
LAÉRCIO, Diógenes (1988). Vidas E Doutrinas Dos Filósofos Ilustres, Brasília: UNB, pgs.
153 a 179
846
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MAYA, Alcides (2007). Machado de Assis, Algumas Notas Sobre o Humor; Porto Alegre:
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847