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Sinopse:

Em Nova York, Craig Mellow, um autor de best sellers, passa por uma crise de
criatividade. Mas, convocado para executar uma missão perigosa no Zimbábue, ele
não hesita ante a chance de rever seu país natal, viver uma aventura excitante
e, quem sabe, recuperar sua inspiração.
Disfarçada pelo pretexto de escrever um livro sobre a África, em colaboração
com uma bela fotógrafa, essa missão consiste em investigar um contrabando de
marfim, parte de um plano soviético para derrubar o governo do Zimbábue.
Assim, Craig se envolve num conflito entre os seguidores do poderoso Shona e
os partidários do marginalizado Matabele. E,por trás dessa sangrenta guerra
tribal, está um fanático capaz de condenar seu povo à escravidão e conduzir o
país ao caos.
A Noite do Leopardo, uma superlativa trama de espionagem e ação, nos
incríveis cenários da África Central.
Wilbur Smith nasceu em 9 de janeiro de 1933, em Zâmbia, e passou toda sua vida
na África. Daí a precisão com que descreve o cenário de seus romances, todos
ambientados nesse continente.
Apreciador de safáris e de numismática, ele vive atualmente na Cidade do
Cabo, na África do Sul. É autor de vinte livros que o transformaram num nome
admirado internacionalmente pelos amantes de tramas de espionagem e suspense.

Ficha Técnica:
A Noite do Leopardo.
Título original: The Leopard Hunts in Darkness.
Autor: Wilbur Smith.
EDITORA Best Seller.
Gênero: Suspense.

O VENTO viajara por mil quilômetros ou mais, desde os grandes ermos do


deserto de Kalahari que os bosquímanos de pele amarelada chamam de "a Grande
Secura". Ao chegar às escarpas do vale do Zambeze, fragmentara-se em redemoinhos
e pequenas rajadas por entre as colinas e o solo acidentado das bordas.
O elefante estava logo abaixo da crista de uma das colinas, esperto demais
para mostrar a silhueta contra o horizonte. Sua massa escondida atrás das
folhas novas das árvores nsasa confundia-se com a rocha cinzenta da encosta .
Levantou a tromba e aspirou o ar, dobrando-a em seguida e soprando
delicadamente na boca escancarada. Os órgãos olfativos, ali localizados,
abriram-se imediatamente como botões de rosa, e farejaram.
Sentiu o odor da poeira dos desertos longínquos, dos pólens adocicados de
centenas de plantas silvestres, do suor quente da manada de búfalos no vale e do
lençol d'água, fresco e penetrante, em que estavam bebendo e banhando-se;
identificou esses e outros cheiros e avaliou com precisão a distância da fonte
de cada um.
No entanto, não eram o que estava procurando. Buscava pelo odor ofensivo e
acre que dominava todos os outros. O de tabaco nativo misturado ao cheiro
peculiar dos carnívoros. Suor fétido de lã mal lavada, de parafina, de sabão
barato e de couro curtido: o cheiro de homem estava lá, tão forte e próximo
quanto estivera desde que a caçada começara.
Uma vez mais, o velho elefante sentiu a raiva atávica crescer por dentro.
Incontáveis gerações de sua espécie tinham sido perseguidas por aquele cheiro.
Desde pequeno aprendera a odiá-lo e temê-lo, e quase toda a vida fora acuado por
ele.
Recentemente houvera uma lacuna na perseguição. Por onze anos estabelecera-se
uma trégua, um tempo de paz para os animais ao longo do Zambeze. Não podia saber
ou compreender a razão disso: uma violenta guerra civil entre seus carrascos
transformara essas vastas áreas da margem sul do Zambeze numa zona-tampão
indefesa, perigosa demais para os caçadores de marfim ou até mesmo para os
guarda-caças, cujos deveres incluíam o abate do excesso de população dos
elefantes. As manadas tinham aumentado durante aqueles anos, mas agora a
perseguição recomeçara com toda a antiga e implacável ferocidade.
Cheio de raiva e terror, levantou novamente a tromba e aspirou até os seios
nasais o temível odor. Virou-se, então, e cruzou o cume rochoso. Por um instante
tornou-se uma vaga mancha acinzentada contra o claro azul do céu africano. Ainda
carregando o cheiro, desceu para onde a manada esparramava-se na outra encosta.
Havia cerca de trezentos elefantes espalhados por entre as árvores. Quase
todas as elefantas tinham filhotes, alguns tão pequenos que pareciam porquinhos
gordos, pequenos o bastante para caber debaixo da barriga das mães. Passavam as
trombas diminutas por cima das cabeças e sugavam as tetas inchadas.
Os mais crescidos brincavam em torno, estouvados e barulhentos, até que um
dos adultos, exasperado, arrancava um galho e, ameaçador, o balançava na tromba.
Os jovens importunos dispersavam guinchando numa consternação fingida.
As fêmeas e os jovens alimentavam-se sem pressa, enfiando a tromba dentro de
moitas cerradas e espinhentas para arrancar punhados de frutinhos maduros que
colocavam bem no fundo da boca, como alguém engolindo uma aspirina; usavam as
presas de marfim para soltar a casca de uma árvore msasa, arrancavam grandes
pedaços dela e os enfiavam, satisfeitos, na boca; levantavam todo o corpo nas
pernas traseiras, como um cachorro que pede alguma coisa, para alcançar com a
tromba esticada as folhinhas novas de uma árvore alta; usavam a testa larga e as
quatro toneladas de peso para balançar outra, até que soltasse uma chuva de
vagens maduras. Mais abaixo, no declive, dois elefantes tinham juntado forças
para derrubar uma de uns doze metros de altura, cujas folhas da copa estavam
fora do alcance deles. Quando caiu, com um estrépito de fibras dilaceradas, o
líder atravessou o topo da encosta e, de imediato, todos os alegres ruídos
cessaram para serem substituídos por um silêncio surpreendente.
Desceu até eles numa marcha forçada, com as espessas presas de marfim
levantadas e um evidente alarme estampado na posição das orelhas desfraldadas.
Ainda trazia o cheiro e, quando alcançou o grupo mais próximo de fêmeas,
estendeu a tromba e soprou.
Giraram no mesmo instante, colocando-se instintivamente a favor do vento para
sentir o odor dos perseguidores. O resto da manada viu a manobra e colocou-se em
formação de marcha. Os filhotes e as mães que amamentavam ao centro, as
elefantas já estéreis em torno, os elefantes jovens e os mais velhos à frente
com os acompanhantes askaris nos flancos. Partiram a passo acelerado, que podiam
manter por um dia, uma noite e mais um dia sem descanso.
Enquanto fugia, o líder estava confuso. Nunca experimentara uma perseguição
tão acirrada. Durava já oito dias, mas os perseguidores nunca tinham se
aproximado para entrar em contato com a manada. Estavam ao sul, deixando-o
farejar-lhes, mas sempre mantendo-se longe do campo de sua visão enfraquecida.
Havia muitos deles, além até dos que encontrara em seus vagares, alinhados como
uma rede estendida sobre as estradas do sul.
Só os vira em uma ocasião. No quinto dia, ao alcançar o limite da
resistência, tentara romper através da linha e lá estavam para desviá-lo,
aquelas criaturas minúsculas e eretas, tão frágeis e, no entanto, tão
mortíferas, saltando do capim amarelo, barrando a fuga para o sul, balançando
cobertores e batendo em latas, até que a coragem faltou-lhe e liderou a manada
de volta pela descida das escarpas agrestes em direção ao grande rio.
As encostas eram cortadas por trilhas, usadas há dez mil anos pelos animais,
que seguiam as descidas mais fáceis e cruzavam através das muralhas de minério
de ferro. Conduziu-os por uma delas. Formaram uma fila indiana através da
passagem estreita e, ao ultrapassá-la, tornaram a espalhar-se.
Continuou a marcha durante toda a noite, apesar de não haver lua. Moviam-se
quase que silenciosamente através da floresta. Uma vez, depois da meia-noite,
diminuiu a marcha e esperou à beira do caminho que o resto passasse. Dentro em
pouco, sentiu novamente o cheiro corrompido de homem no vento, mais fraco e
distante - mas ainda lá - e apressou-se a juntar-se ao grupo.
Ao amanhecer entraram numa área aonde não ia há dez anos. A estreita faixa à
beira do rio fora cenário de uma intensa atividade humana durante a guerra
prolongada, por isso a evitara até aquele momento, quando fora encurralado.
A manada deslocava-se agora com menos urgência. Tinha deixado a perseguição
para trás, e diminuíra a marcha para que pudessem comer enquanto prosseguiam. A
floresta era mais verde e mais viçosa ali, nas terras baixas do vale. Às
florestas de msasa, sucediam-se as de mopani e de gigantescos e grossos baobás
floridos. Percebeu que havia água à frente e, sedento, sentiu um ronco na
barriga. No entanto, o instinto lhe avisava de que havia perigo adiante, assim
como atrás. Parava com freqüência, balançando a grande cabeça cinzenta, com as
orelhas alertas e os olhos, embora míopes, perscrutavam cautelosamente os
arredores antes de continuar.
Então, abruptamente, algo com um brilho metálico na luz da manhã chamou-lhe a
atenção. Recuou alarmado e, por trás dele, a manada parou, contaminada por seu
medo. Ficou olhando o ponto luminoso e, aos poucos, o alarme foi diminuindo
porque não havia qualquer movimento ou som, a não ser o ondular dos ramos pelo
vento e o canto e zumbido dos pássaros e insetos em torno. Mesmo assim, manteve-
se imóvel, e, quando a luz mudou, viu que havia outros objetos metálicos
formando uma linha; trocou o peso do corpo de uma pata para outra, fazendo um
ruído indeciso na garganta.
O que o alarmara era uma fila de pequenas placas galvanizadas de metal
afixadas em postes de ferro que tinham sido martelados na terra há tanto tempo
que qualquer odor humano já havia se dissipado. Em cada placa estava pintado um
aviso lacônico que, de vermelho, transformara-se num rosa pálido, com a
inclemência do sol. Um crânio e duas tíbias estilizados encimavam as palavras:
PERIGO. CAMPO MINADO.
As minas foram colocadas anos atrás pelas forças de segurança do então
governo branco da Rodésia, como um "cordão sanitário" ao longo do rio Zambeze,
numa tentativa de impedir os guerrilheiros do ZIPRA e do ZANU de entrar no
território, vindos das bases que ficavam do outro lado do rio, em Zâmbia.
Milhares de minas leves e de tipo Claymore, mais pesadas, formavam um campo
ininterrupto tão extenso e profundo que não poderia ser facilmente limpo; o
custo disso seria proibitivo para o novo governo negro do país que já estava em
sérias dificuldades econômicas.
Enquanto o líder ainda hesitava, o ar encheu-se com um estrondo selvagem. O
som vinha do sul, e o velho elefante virou-se para enfrentá-lo.
Sobre a floresta, apareceu uma grotesca forma escura, suspensa por um disco
prateado. Enchendo os céus de ruídos, abateu-se sobre a manada. Voava tão baixo
que o deslocamento das hélices agitava violentamente as copas das árvores e
levantava uma nuvem de poeira vermelha.
Acossado por essa nova ameaça, disparou para além da linha esparsa de placas
metálicas, e o grupo aterrorizado precipitou-se atrás dele.
Percorrera uns cinqüenta metros quando a primeira mina explodiu e seus
estilhaços penetraram o couro espesso de uma pata traseira, cortando-a ao meio
como uma machadada. Frangalhos de carne vermelha pendiam dela e o osso reluzia,
muito branco, enquanto o elefante avançava aos arrancos sobre três pernas. A
próxima atingiu-o numa dianteira, transformando-a em uma massa sangrenta. O
animal berrou em agonia e pânico e tombou sobre as pernas destroçadas, enquanto,
ao redor, a manada de sua procriação corria para dentro do campo minado.
De início, os estampidos das detonações eram intermitentes, enfileirados na
borda do campo, mas logo criaram um ritmo rápido e sincopado como o de um
baterista enlouquecido. Ocasionalmente, quatro ou cinco minas explodiam ao mesmo
tempo, com uma intensidade inesperada de som que chocava-se contra as colinas da
escarpa e fragmentava-se em uma centena de ecos.
E, sob tudo isso, como o setor de cordas de uma orquestra infernal, havia o
ruído sibilante do helicóptero, que, como um cão pastor, ao longo da periferia
do campo, voava em ziguezague para bloquear os animais que corriam de volta,
mergulhando para impedir a fuga de um esplêndido e jovem elefante que conseguira
atravessar incólume o campo e alcançar o terreno seguro da beira do rio,
forçando-o a parar e perseguindo-o de volta até que uma mina lhe arrancasse uma
pata e caísse, bramindo de dor.
Agora, o troar das minas era contínuo como em uma batalha naval, e cada
explosão levantava uma coluna de pó no ar parado do vale, fazendo com que a
nuvem vermelha ocultasse um pouco o horror de tudo aquilo. A poeira redemoinhava
até o topo das árvores e transformava os animais em espectros atormentados ao
clarão das explosões.
Uma velha elefanta, sem as quatro patas, caíra de lado e batia a cabeça
contra a terra endurecida, tentando levantar-se. Outra arrastava-se nas pernas
dianteiras, com a tromba curvada protetoramente sobre o minúsculo filhote a seu
lado, até que uma Clay- more lhe estourou sob o peito provocando a irrupção das
costelas, destroçando, ao mesmo tempo, a traseira do animalzinho.
Outros filhotes, separados das mães, corriam por entre as nuvens de poeira,
com as orelhas coladas à cabeça, aterrorizados, até que um estalido e um breve
clarão os tornavam num monte informe de carne.
Continuou assim por longo tempo, até que as explosões diminuíram, tornaram-se
mais uma vez intermitentes e gradualmente cessaram. O helicóptero aterrissou
além da linha de demarcação, o motor parou e as hélices imobilizaram-se. O único
som que se ouvia era o dos gritos dos animais destroçados e moribundos que
jaziam na área de terra revirada atrás das árvores cobertas de pó. A carlinga do
helicóptero abriu-se e um homem pulou agilmente para o chão. Era negro e vestia
uma jaqueta de brim desbotado, cujas mangas tinham sido removidas, e um jeans
apertado. Na época da guerra da Rodésia, o brim fora o uniforme não-oficial dos
guerrilheiros. Usava botas de cowboy, e empurrou para a testa os óculos Polaroid
de piloto. Tudo isso, e mais a fileira de esferográficas presas ao bolso da
jaqueta, eram como divisas de posto entre os guerrilheiros veteranos. Sob o
braço direito, carregava um fuzil automático AK 47. Ficou por uns minutos
observando, impassível, a carnificina que jazia lá na floresta, voltando em
seguida para junto do helicóptero.
Por trás do vidro, o piloto estava atento aos seus movimentos, mas o oficial
ignorou-o concentrando a atenção na fuselagem do aparelho.
Todas as insígnias e números de identificação tinham sido cuidadosamente
cobertos com adesivo e tinta aerossol preta. Em um local, notou que o adesivo
desprendera, mostrando um trecho das letras. Pressionou-o de volta com as mãos,
inspecionou o resultado rápida mas criticamente, e foi para a sombra da mais
próxima árvore mopani.
Apoiou o AK 47 contra o tronco, estendeu um lenço na terra para proteger o
jeans e sentou-se com as costas apoiadas à casca áspera. Acendeu o cigarro com
um isqueiro Dunhill de ouro e tragou profundamente, antes de deixar que a fumaça
se soltasse gentilmente por entre os lábios escuros e carnudos.
Sorriu, então, ao pensar quantos homens e quanto tempo e munição teriam sido
necessários para matar trezentos elefantes da maneira convencional.
O camarada comissário não perdeu nem um pouco da astúcia dos dias de
guerrilha. Quem mais teria arquitetado uma coisa dessas?, pensou, balançando a
cabeça com admiração e respeito.
Quando acabou o cigarro, esmigalhou a ponta entre o polegar e o indicador, um
hábito adquirido no passado, e fechou os olhos.
O coro terrível de gemidos e gritos vindos do campo minado não o impediu de
adormecer. Foi o som de vozes humanas que o acordou. Levantou-se rápido,
instantaneamente alerta, e olhou para o sol: já passava de meio-dia.
Voltou até o helicóptero e acordou o piloto.
- Eles estão chegando.
Retirou o alto-falante preso em cima do aparelho e esperou na trilha
desmatada até que o primeiro deles aparecesse entre as árvores, e os olhou com
um desprezo divertido.
- Bando de babuínos! - disse com o desdém do homem culto pelo camponês, e de
um africano por outros de tribos diferentes.
Chegaram formando uma longa fila e seguiram a trilha dos elefantes. Eram
duzentos ou trezentos, vestidos com capas de pele de animal e restos
esfarrapados de roupas ocidentais, os homens precedendo as mulheres. Muitas
tinham os seios nus, e algumas eram jovens de porte ereto e gracioso que, ao
andar, provocavam um bamboleio nas nádegas redondas sob as tangas de caudas de
animais. Quando o oficial as observou, o desprezo transformou-se em prazer:
talvez tivesse tempo para uma delas mais tarde, pensou, e pôs a mão dentro do
bolso do jeans a essa idéia. Enfileiraram-se à beira do campo minado,
tagarelando e guinchando de alegria, alguns saltando, rindo e apontando os
animais feridos.
Deixou que dessem vazão ao júbilo. Mereciam aquela pausa para se
congratularem. Tinham estado por oito dias, quase sem descanso, trabalhando em
rodízio como batedores para forçar os elefantes escarpas abaixo. Enquanto
esperava que se acalmassem, pensou novamente no magnetismo pessoal e na força de
caráter que podia moldar aquela horda de camponeses primitivos e analfabetos em
um todo coeso e forte. Um único homem planejara e dirigira toda a operação.
- É um homem de verdade! - pensou, em voz alta, despertando em seguida da
indulgência para com o culto aos heróis; levou o megafone aos lábios.
- Quietos! Silêncio! - gritou, fazendo-os parar, e começou a distribuir as
tarefas que precisavam ser feitas.
Escolheu as equipes de açougueiros entre os que estavam armados com machados
e panga. Colocou as mulheres para preparar os cavaletes de defumar e fazer
cestos com a casca de mopani, e ordenou a outros que catassem lenha para as
fogueiras. Voltou, então, a sua atenção aos açougueiros.
Nenhum dos nativos jamais voara e o oficial teve que usar a ponta da bota
para persuadir alguns deles a subir a bordo e fazer o curto trajeto sobre o
campo minado até a carcaça mais próxima.
Inclinando-se para fora da cabine, avaliou as espessas presas curvas de
marfim, viu que o animal sangrara até a morte durante as horas de espera e fez
sinal ao piloto para descer mais, colocando a boca junto à orelha do homem mais
velho daquele grupo.
- Não deixe de jeito nenhum que seus pés toquem a terra! - berrou, e o homem
concordou, nervoso. - Primeiro as presas, depois a carne.
O homem tornou a concordar, bateu-lhe, então, no ombro, e o velho saltou na
barriga do elefante, já inchado com gases fermentados. Equilibrou-se agilmente e
o resto de seu grupo o seguiu, agarrados aos machados.
Em seguida, o helicóptero levantou e mergulhou como uma libélula até o
próximo animal, que mostrava belas presas. Ainda estava vivo e conseguiu sentar-
se, levantando a tromba ensangüentada e coberta de pó para tentar capturar o
helicóptero que flutuava logo acima.
Agarrado à carlinga, o guerrilheiro mirou o AK 47, disparou um único tiro na
parte de trás do pescoço, bem no limite com o crânio, e a elefanta tombou,
imóvel como o corpo do filhote a seu lado. Fez sinal ao chefe da próxima equipe.
Equilibrando-se nas gigantescas cabeças, atentos para não tocarem o chão, os
homens retiravam as presas. Era uma tarefa delicada, porque um corte malfeito
diminuía drasticamente o valor do marfim. Tinham visto o oficial de jeans
quebrar o queixo de um homem com uma pancada seca e precisa da coronha do rifle
só por ter objetado uma ordem. O que não faria com quem estragasse uma presa?
Trabalhavam com cuidado e, à medida que ficavam soltas, o helicóptero as
guindava e depois transportava a equipe para outra carcaça.
À noitinha, a maioria dos elefantes morrera dos enormes ferimentos ou a bala,
mas os gritos dos que ainda não tinham recebido o tiro de misericórdia
misturavam-se ao alarido dos bandos de hienas e chacais para tornar a noite
terrível. Os homens com machados e panga trabalhavam à luz de archotes de palha,
e ao amanhecer todo o marfim fora recolhido.
Agora, podiam começar a descarnar e desmembrar os corpos. O calor cada vez
maior foi mais rápido que eles. O fedor de carne putrefata misturou-se aos gases
das entranhas rompidas e levou os animais necrófagos que rondavam a área a novos
paroxismos de gula. O helicóptero transportava cada quarto ou paleta retalhados
para solo seguro, além do campo minado. As mulheres cortavam a carne em tiras e
as dependuravam nos cavaletes de defumar sobre os braseiros enfumaçados de lenha
verde.
Enquanto supervisionava o trabalho, o oficial calculava os despojos. Era uma
pena perder os couros, pois valiam mil dólares cada, mas eram grandes demais e
não poderiam ser preservados, a putrefação os tornaria sem valor. Por outro
lado, uma certa putrefação daria à carne mais paladar para os africanos - da
mesma maneira como os ingleses gostam de sua caça um pouco passada.
Quinhentas toneladas de carne úmida perderiam a metade do peso no processo de
secagem, mas as minas de cobre da vizinha Zâmbia com dezenas de milhares de
trabalhadores para alimentar era um mercado ávido de proteínas. Dois dólares por
meio quilo de carne era o preço já combinado. Isso significava um milhão de
dólares americanos, e havia, naturalmente, o marfim.
Fora transportado pelo helicóptero para além do acampamento desordenado, até
um lugar protegido nas colinas. Lá, uma equipe selecionada começou a remover a
gordura branca e cónica da extremidade de cada presa e a limpar o marfim do
sangue e do muco que poderiam denunciá-lo ao nariz sensível de algum funcionário
oriental de alfândega.
Havia quatrocentas presas. Algumas, retiradas de animais imaturos, pesavam
apenas poucos quilos, mas as do velho líder tinham bem mais que quarenta quilos
cada. O atual preço em Hong Kong era de cem dólares por meio quilo, portanto,
obteria um total de oitocentos mil dólares pelo lote. O lucro de alguns dias de
trabalho chegaria a quase dois milhões de dólares, numa terra onde a renda média
anual de um homem adulto era cerca de seiscentos dólares.
Claro que tivera pequenos custos operacionais. Um dos açougueiros perdera o
equilíbrio e caíra de uma carcaça, de nádegas, diretamente em cima de uma mina.
Filho de um babuíno demente, esse fora o comentário do oficial, ainda
irritado com a estupidez do homem que interrompera o trabalho por uma hora até
que o corpo fosse recuperado e preparado para o enterro.
Outro perdera um pé devido a um golpe descuidado de machado e mais de uma
dúzia tinha sofrido cortes menores das panga. Outro, ainda, morrera durante a
noite com um tiro de AK 47 no estômago quando objetara o que o oficial estava
fazendo com sua esposa mais moça nas moitas por trás dos cavaletes de defumar -
mas, quando levava-se em consideração o lucro, eram custos realmente pequenos. O
camarada comissário ficaria satisfeito.
Já era a manhã do terceiro dia quando a equipe que trabalhava com o marfim
acabou a tarefa de maneira satisfatória para o guerrilheiro. Foram, então,
enviados ao vale para ajudar na defumação, deixando o acampamento deserto. Não
deveria haver testemunhas que descobrissem a identidade do importante visitante
que viria fazer uma inspeção dos despojos.
Chegou de helicóptero, e o oficial estava em posição de sentido na clareira,
ao lado das fileiras de marfim lustroso. O vento das hélices açoitou
violentamente a jaqueta e o jeans, mas manteve-se imóvel.
O aparelho aterrissou e uma figura imponente desceu; um belo homem, ereto e
forte, com dentes muito brancos e quadrados, que contrastavam com o tom escuro
do rosto, e o crespo e enrolado cabelo africano aparado rente ao crânio bem
formado. Usava um terno cinza-pérola caro e de corte italiano, com uma camisa
branca e gravata azul-marinho. Os sapatos pretos eram feitos à mão e de pelica
fina.
Estendeu as mãos e imediatamente o homem mais jovem abandonou a posição
respeitosa e correu até ele, como faz uma criança com o pai.
Camarada comissário!
Não! Não! - repreendeu-o gentilmente, ainda sorrindo.
- Não sou mais o camarada comissário, mas o camarada ministro. Não mais o líder
de um bando miserável de guerrilheiros sujos, mas o ministro de Estado de um
país soberano - e permitiu-se sorrir, enquanto inspecionava as fileiras das
presas recém-capturadas - E o mais bem-sucedido caçador furtivo de marfim de
todos os tempos, não é mesmo?
CRAIG MELLOW fez uma careta quando o táxi sacolejou novamente ao passar por
um buraco da Quinta Avenida logo em frente à Berg- dorf Goodman. Como quase
todos os táxis de Nova York, sua suspensão era mais adequada a um tanque
Sherman.
Já fiz viagens melhores pela depressão do Mbabwe em um Land- Rover, pensou, e
sentiu uma súbita pontada nostálgica ao lembrar-se daquele caminho sulcado e
tortuoso através das terras ruins abaixo do rio Chobe, o largo e verde afluente
do grande Zambeze.
Tudo isso fora há muito tempo, e descartou a lembrança, voltando à frustração
que sentia por ter que ir de táxi a um almoço com seu editor, e, ainda por cima,
pagar a corrida. Já houvera época em que teriam mandado uma limusine com chofer
para buscá-lo, e o encontro seria no Four Seasons ou no La Grenouille, e não em
alguma cantina italiana no Village. Os editores faziam esse tipo de protesto
sutil quando um escritor não entregava há três anos um manuscrito. Passava mais
tempo devaneando com seu corretor da Bolsa e divertindo-se no Studio 54 que na
máquina de escrever.
Bem, acho que mereci isso, refletiu, pegando um cigarro, e parou em seguida,
lembrando-se de que havia deixado de fumar.
Passou as mãos no cabelo caído na testa e ficou observando a multidão nas
calçadas. Houvera um tempo em que achara excitante todo aquele movimento, depois
do silêncio dos campos africanos; até as fachadas frágeis e os letreiros de néon
nas ruas apinhadas tinham sido estimulantes. Agora, sentia-se sufocado e
claustrofóbico, ansiava pela amplidão do céu, e não por aquela nesga que
aparecia entre os topos dos altos prédios.
O táxi freou bruscamente, interrompendo-lhe os pensamentos, o chofer
murmurou: Rua Dezesseis sem olhar para trás, e Craig estendeu-lhe uma nota de
dez dólares pela tela blindada que protegia o motorista dos passageiros.
- Fique com o troco. - Saltou para a calçada, onde localizou imediatamente o
restaurante, com toldos típicos e garrafas de chiatiti forradas de palha na
janela.
Ao cruzar a rua, andou com facilidade, sem coxear, e ninguém que o observasse
teria adivinhado o defeito. Apesar das desconfianças, o restaurante era fresco e
limpo, e o cheiro de comida, apetitoso.
Ashe Levy levantou-se de um reservado nos fundos do restaurante e fez-lhe um
sinal.
- Craig, meu rapaz! - disse, e abraçou-o dando tapinhas em suas costas. -
Você está ótimo, seu velho caçador!
Ashe cultivava um estilo eclético próprio. O cabelo era cortado à escovinha e
usava óculos de aros de ouro. A camisa era listrada com o colarinho branco,
abotoaduras e alfinete de gravata de platina, sapatos castanhos adornados com
furinhos na extremidade, e casaco de casimira, de lapelas estreitas. Tinha olhos
muito claros, um pouco estrábicos, e Craig sabia que fumava apenas os melhores
charutos tihuana gold.
- Que lugar agradável, Ashe. Como o descobriu?
- Para variar um pouco do velho e aborrecido Seasons - Ashe sorriu com
astúcia, satisfeito por seu gesto reprovador ter sido notado. - Craig, quero lhe
apresentar uma moça muito talentosa.
Estava sentada na penumbra ao fundo do reservado, mas, naquele instante,
inclinou-se e estendeu a mão, que foi iluminada pelo spot, e essa foi a primeira
impressão que teve dela.
Estreita e de dedos aristocráticos. As unhas, apesar de imaculadas, estavam
cortadas rentes e sem esmalte, e a pele, bronzeada, tinha finas veias azuis. A
ossatura era delicada, mas havia calosidade na base dos dedos longos. Era a mão
de quem estava acostumado a trabalho pesado.
Craig segurou-a, sentiu a força e a maciez da pele fresca e os pontos ásperos
na palma; e olhou seu rosto.
Tinha sobrancelhas escuras e fartas. Seus olhos, mesmo vistos através da
penumbra, eram verdes, com pontinhos cor de mel em torno da pupila, e trocaram
um olhar direto e franco.
- Sally-Anne Jay... este é Craig Mellow - apresentou-os Ashe.
O nariz era reto, mas um pouco largo, e a boca, muito grande para ser bonita.
O farto cabelo escuro estava preso severamente, descobrindo a testa larga; o
rosto, tão bronzeado quanto as mãos, tinha pequenas sardas salpicadas nas faces.
Li seu livro - disse, e a voz era firme e clara, com um leve sotaque britânico.
Mas só quando ouviu-lhe o timbre, percebeu como era jovem. - E acho que merece
tudo o que lhe aconteceu.
É um cumprimento ou uma ironia? - tentou fazer a pergunta soar superficial e
despreocupada, mas descobriu-se desejando ardentemente que não fosse uma
daquelas pessoas que tentavam exibir padrões literários exigentes, denegrindo
cara a cara um escritor popular.
- Aconteceram-lhe coisas excelentes - acentuou ela, e Craig sentiu-se
satisfeito, mesmo que com esse comentário ela não tivesse respondido a uma
pergunta.
Apertou-lhe a mão e conservou-a na sua pouco além do necessário; ela a retirou,
colocando-a com decisão no colo.
Então, não era nem uma demolidora, nem uma fã arrebatada. De qualquer maneira,
pensou, já estava farto delas.
- Vamos convencer Ashe a nos pagar um drinque - sugeriu, sentando-se defronte a
ela.
Ashe fez o espetáculo habitual com a carta de vinhos, mas acabaram bebendo um
Frascati de dez dólares.
- Tem um bom buquê - Ashe observou, rolando-o na língua.
- Está gelado e é líquido - replicou Craig, e Ashe sorriu, enquanto ambos
lembravam-se do Corton Charlemagne 70 que haviam bebido da última vez.
- Estamos esperando outra pessoa - disse Ashe ao garçom.
- Faremos o pedido depois - acrescentou, e virou-se para Craig.
- Queria que Sally-Anne tivesse uma chance de mostrar-lhe seu material.
- Mostre-me - convidou Craig, imediatamente voltando à defensiva.
A cidade estava cheia de gente que queria entrar em suas águas territoriais:
uns, com manuscritos inéditos atrás de seu patrocínio, outros, com conselhos
sobre investimentos para todos aqueles seus lindos royalties. Alguns que iriam
permitir que escrevesse a história de suas vidas e dividiriam generosamente os
lucros. Queriam contratá-lo para escrever roteiros de cinema por um pequeno
adiantamento e uma participação ainda menor no filme, caso fizesse sucesso,
enfim, todo o tipo de Hienas agrupando-se para os despojos da matança do leão.
Sally-Anne pegou uma pasta no assoalho e colocou-a em frente a Craig.
Enquanto Ashe ajustava o spot, desatou as fitas que a prendiam, abriu a capa e
imobilizou-se, sentindo arrepios.
Essa era sua reação a qualquer coisa de beleza perfeita. Como o Gauguin do
Metropolitan Museum do Central Park; certas passagens da poesia de T.S. Eliot e
da prosa de Lawrence Durrell, toda vez que as relia. As primeiras notas da
Quinta Sinfonia de Beethoven; aqueles incríveis jetés de Rudolph Nureiev - essas
coisas davam-lhe arrepios, exatamente como essa foto à sua frente.
A fotografia tinha a textura delicada como casca de ovo, o que tornava cada
detalhe nítido e as cores claras e verdadeiras.
A fotografia de um elefante, de um velho elefante. Encarava a câmera na
atitude característica de alarme, com as orelhas desfraldadas como bandeiras
negras. De alguma forma, retratava toda a vastidão e a intemporalidade de um
continente, e, no entanto, estava acuado; parecia sentir que toda sua enorme
força era inútil, que estava confuso por coisas além de suas experiências e das
memórias ancestrais, e a pique de ser esmagado pela mudança, como a própria
África.
A terra aparecia junto a ele na foto, a terra rica e vermelha levada pelo
vento, arruinada pelo sol e pela seca. E, sobre isso tudo, o céu continha uma
promessa de socorro: os cúmulos-nimbos prateados eram atravessados por um único
raio de luz que caía como uma bênção sobre o animal.
Ela capturara o significado e o mistério de sua terra natal no centésimo de
segundo que uma lente leva para abrir-se e tornar a fechar, enquanto ele
labutara por longos meses e nem sequer se aproximara disso e, reconhecendo o
próprio fracasso, sentiu medo de tentar novamente. Tomou um gole do vinho
insípido, como uma punição por aquela súbita crise de confiança na própria
habilidade.
- De onde você é? - perguntou à moça, sem olhá-la.
- Danver, Colorado. Mas meu pai está na embaixada em Londres há anos e
estudei a maior parte do tempo na Inglaterra. - Explicava-se assim o sotaque. -
Fui para a África com dezoito anos e me apaixonei por ela - acrescentou,
completando com simplicidade a história de sua vida.
Foi preciso um esforço físico para Craig tocar a fotografia e delicadamente
virá-la. Depois dela, havia a de uma jovem sentada numa rocha negra vulcânica ao
lado de um poço no deserto. Usava adorno em couro nas orelhas, característico da
tribo Ovahimba. O filho estava no colo e mamava no seio nu. A pele da mulher
estava lustrosa de gordura e pó ocre, e os olhos eram os de um afresco num
túmulo de faraó; era linda.
Realmente... Denver, Colorado, pensou, ficando surpreso com a própria
amargura e a intensidade do súbito ressentimento. Como se atrevia aquela
desgraçada garota estrangeira capturar tão exatamente o espírito complexo de um
povo no retrato daquela jovem? Vivera com eles e, no entanto, nunca vira tão
claramente um africano como via naquele momento.
Virou a foto com violência contida. A próxima era um close da corola em
formato de trombeta da magnífica Kigelia africana, castanha e dourada, sua flor
silvestre favorita. Em uma das pétalas aninhava-se um minúsculo besouro, como
uma jóia de um verde irisado e brilhante. Era uma composição perfeita de cor e
forma e descobriu que a odiava por isso.
Havia muitas outras. A de um sorridente miliciano com um fuzil AK 47 no ombro
e um colar de orelhas humanas embalsamadas no pescoço, uma caricatura da
selvageria. A de um enrugado feiticeiro cercado por chifres, contas, crânios e
toda parafernália de sua medicina; tinha à sua frente uma paciente estendida na
terra em pleno processo primitivo de sangria. Era uma mulher na flor da idade
com tatuagens nos seios, faces e testa. Os dentes estavam limados e afilados
como os de um tubarão, uma relíquia dos dias de canibalismo, e os olhos, como os
de um animal ferido, pareciam cheios do estoicismo e paciência africanos.
Na seqüência, vinha uma foto de crianças africanas numa sala de aula feita
com postes e toscamente coberta de palha. Havia um único livro para cada três
crianças, mas tinham as mãos avidamente levantadas para responder às perguntas
do jovem professor negro, e os rostos exprimiam o desejo de conhecer.
Estava tudo lá, um registro completo de esperança e desespero, de pobreza
abjeta e grande riqueza, de selvageria e ternura, de elementos implacáveis e
frutificação plena, de dor e alegria. Craig virava as páginas devagar,
saboreando cada imagem e adiando o momento em que deveria encará-la.
Parou, de repente, diante de uma composição especialmente tocante. O filme em
preto e branco fora usado para aumentar o efeito dramático, e o jardim de ossos
reluzia sob o sol africano. Os grandes fémures e tíbias ressecados assemelhavam-
se a madeira de destroços marinhos, as enormes costelas a estruturas de clíperes
naufragados e os crânios, com buracos escuros no lugar dos olhos, a barris de
cerveja. Craig lembrou-se do legendário cemitério de elefantes, o velho mito dos
caçadores, o lugar secreto aonde iam morrer.
- Caçadores furtivos - ela disse. - Duzentas e oitenta e seis carcaças.
Craig a olhou, assombrado com o número.
- De uma vez? - perguntou, e ela assentiu.
- Eles os encurralaram em um dos velhos campos minados.
Craig estremeceu sem querer e olhou a fotografia novamente. A mão direita,
sob a mesa, deslizou ao longo da coxa até sentir a correia apertada que segurava
a perna mecânica, e sentiu empatia pelo destino daqueles paquidermes. Lembrava-
se do próprio campo minado e sentiu novamente o impacto brutal da explosão no
pé.
- Sinto muito. Eu sei sobre sua perna - ela disse.
- Fez direitinho o dever da escola - Ashe pilheriou.
Calem-se! Por que não calam a boca?, pensou Craig, furioso. Detestava
qualquer menção à perna. E, se realmente tivesse feito o dever da escola,
saberia. Mas não era só o que haviam dito o motivo de sua irritação. Eram os
elefantes também. Trabalhara como guarda do departamento de caça. Conhecia-os,
aprendera a amá-los e a evidência daquela mortandade o deixara doente e
horrorizado, aumentando o ressentimento contra a moça; infligira-lhe essa dor e
queria vingar-se. Mas, antes que o fizesse, o convidado atrasado chegou,
desviando sua atenção do assunto.
- Craig, quero que conheça um tipo todo especial. - Todas as apresentações de
Ashe tinham um tom comercial. - Este é Henry Pickering, vice-presidente do Banco
Mundial. Se prestar atenção vai ouvir bilhões de dólares tilintando na cabeça
dele. Henry, este é Craig Mellow, nosso garoto prodígio. E, sem excluir Karen
Blixen, é um dos mais importantes escritores sobre a África que já apareceram, é
isso aí!
- Li seu livro - disse Henry. Era muito alto, magro e prematuramente careca;
vestia um terno escuro e uma camisa imaculadamente branca, bem ao estilo sóbrio
dos executivos; o único toque pessoal no traje era a gravata que combinava com
os olhos azuis. - Ao menos uma vez, não está exagerando, Ashe.
Beijou o rosto de Sally-Anne, sentou-se, provou o vinho que Ashe lhe serviu e
empurrou o copo ligeiramente à sua frente; Craig admirou seu estilo.
O que acha delas? - perguntou Henry Pickering, olhando o portfolio aberto.
Adorou, Henry - interrompeu Ashe Levy rapidamente.
- Está maluco por elas, gostaria que tivesse visto a cara dele quando deu a
primeira olhada, amou-as,cara', simplesmente as adorou!
Muito bem - disse Henry em voz macia, observando a fisionomia de Craig. - Já lhe
explicou o projeto?
- Não. Queria esquentá-lo primeiro. Deixar que sentisse um impacto - e virou-se
para Craig. - Trata-se de um livro intitulado: "A África de Craig Mellow". Você
escreve sobre a África de seus antepassados, sobre como foi e o que se tornou.
Volta para lá e faz um levantamento aprofundado. Fala com as pessoas...
- Desculpe - interrompeu-o Henry. - Parece-me que fala uma das duas línguas
principais, o sindebele, não é?
- Fluentemente - respondeu Ashe em lugar de Craig. - Como um nativo.
- Isto é ótimo! É verdade que tem muitos amigos... em posições importantes no
governo?
- Alguns de seus velhos camaradas são ministros do gabinete do governo de
Zimbábue. Não se pode ir mais alto que isso.
Craig olhou a foto do cemitério de elefantes. Não se acostumava com o novo nome,
Zimbábue, dado pelos negros. Ainda pensava nela como Rodésia. Era a terra que
seus ancestrais haviam forjado da selva com picaretas, machados e metralhadoras
Maxim. Com qualquer nome que tivesse, ainda era o seu lar.
- Vai ser uma edição de primeira ordem, Craig, sem poupar despesas. Pode ir
aonde quiser, falar com quem quiser, que o Banco Mundial irá endossá-lo -
continuou entusiasticamente Ashe, e Craig olhou para Pickering.
- O Banco Mundial agora virou editora? - perguntou sarcasticamente, e, quando
Ashe ia novamente responder, Henry Pickering o impediu, colocando-lhe a mão no
braço.
- Quero ficar com a bola por algum tempo, Ashe - disse, apaziguador, percebendo
o mau humor de Craig, e continuou em tom gentil: - A parte mais importante de
nossos negócios são empréstimos a países subdesenvolvidos. Temos quase um bilhão
aplicado em Zimbábue e queremos proteger nosso investimento. Pense nisso como
uma prospecção, queremos que o mundo conheça esse pequeno Estado africano que
gostaríamos de transformar num exemplo de como um governo negro pode ser bem-
sucedido.
- E isso aqui? - perguntou Craig, indicando as fotografias.
- Queremos que o livro tenha também impacto visual, além do intelectual, e
achamos que Sally-Anne pode fazer isso.
Craig ficou alguns segundos em silêncio enquanto sentia o terror crescer
dentro de si como um réptil assustador. Teria que competir com aquelas fotos,
escrever um texto que não fosse esmagado por aquelas imagens. Poria sua
reputação em jogo enquanto a garota não tinha nada a perder, as chances estavam
todas a seu lado. Não seria uma aliada, mas uma adversária, e o ressentimento
voltou tão forte que mais parecia ódio.
Estava inclinada em sua direção, e o spot batia diretamente nos longos cílios
que emolduravam-lhe os olhos. A boca, entreaberta, demonstrava a ansiedade que
sentia. Mesmo com raiva e medo, Craig imaginou como seria beijá-la.
- Craig - disse -, sei que posso fazer melhor, ao menos vou tentar, se tiver
chance, se você me der esta chance. Por favor!
- Gosta de elefantes, não é? - ele perguntou. - Pois vou lhe contar uma
história sobre eles. Um velho elefante tinha uma pulga vivendo na orelha
esquerda e, um dia, ao atravessar uma ponte pouco segura, ela lhe disse: "Puxa,
rapaz, nós balançamos aquela ponte pra valer!"
Os lábios de Sally-Anne fecharam-se lentamente e perderam a cor. As pálpebras
estremeceram, e, quando as lágrimas começaram a cair, saiu do foco de luz.
Houve um silêncio constrangedor, e Craig sentiu-se invadido pelo remorso com
a própria crueldade e mesquinharia. Julgara-a uma pessoa forte que lhe
retrucaria com uma resposta mordaz, não com lágrimas. Queria consolá-la,
explicar-lhe o medo e a insegurança que sentia e que o levaram a ser cruel, mas
ela levantou-se e pegou o port-fólio.
- Há trechos em seu livro tão sensíveis e cheios de compaixão que me fizeram
desejar trabalhar com você - disse, com doçura.
- Acho que foi tolice minha acreditar que se pareceria com ele.
- Olhou para Ashe. - Desculpe, Ashe, mas perdi o apetite.
Vamos rachar um táxi - disse Ashe, levantando-se rapidamente e dirigindo-se a
Craig: - Belo trabalho, herói. Telefone quando estiver com outro manuscrito
pronto - e apressou-se em sair atrás de Sally-Anne.
Ao chegar à porta, o sol desenhou-lhe a silhueta e Craig viu o contorno das
pernas sob a transparência da saia: eram longas e bem-feitas.
Henry Pickering brincava com o copo, olhando pensativamente para o vinho.
- É uma espécie de urina de bode italiano pausterizada - disse Craig, percebendo
como a voz estava insegura, e, em seguida, encomendou uma garrafa de Mersault ao
garçom.
- Melhor assim - disse Henry sombriamente. - Talvez esse livro não fosse uma
idéia tão boa, não é? - Olhou o relógio. - É melhor encomendarmos o almoço.
Falaram sobre coisas triviais: o não-pagamento da dívida mexicana, o relatório
de Reagan à nação, o preço do ouro. A preferência de Henry pela prata como
aplicação a curto prazo. As ações mais cotadas na Bolsa.
- Compre ações da De Beer e as guarde - aconselhou Henry.
Uma jovem e esbelta loura aproximou-se deles quando tomavam café.
- Você é Craig Mellow? - disse em tom adulador. - Vi você na tevê e adorei seu
livro. Por favor, me dê um autógrafo.
Enquanto ele assinava o cardápio, ela inclinou-se sobre seu ombro e pressionou-o
com os seios pequenos e rijos.
- Trabalho na seção de cosméticos da Saks, na Quinta Avenida - sussurrou. - Pode
me encontrar lá a qualquer hora... - O odor de perfume ainda continuou no ar
depois que partiu.
- Sempre dá o fora nelas? - perguntou Henry um pouco nostalgicamente.
- Todo homem tem suas falhas - Craig riu, e Henry insistiu em pagar a conta.
- Estou de carro. Posso deixá-lo onde quiser.
- Vou dar uma caminhada, é bom para ajudar a digestão - disse.
- Sabe, Craig, acho que vai voltar para a África. Vi como olhou esfomeado
para aquelas fotos.
- É possível.
- Há muitas coisas que não foram ditas ou que Ashe não com preendeu. Você
conhece os negros que estão no poder lá, e isso me interessa. As idéias que
expressou em seu livro concordam com as nossas. Se decidir voltar, telefone-me.
Poderíamos nos fazer um favor mútuo.
Henry entrou no assento traseiro da limusine negra e, com a porta ainda
aberta, disse:
- Na verdade, achei as fotos dela excelentes - e fechou a porta acenando para
o chofer.
O BAWU estava ancorado entre dois iates recentemente construídos, um Camper e
Nicholson de uns quinze metros de comprimento e um Hatteras conversível, e
suportava muito bem a comparação, apesar de ter quase cinco anos. Craig colocara
cada parafuso com as próprias mãos e parou na entrada da marina para olhá-lo,
mas, naquele dia, não sentiu prazer ao contemplar as suas linhas.
- Houve dois telefonemas para você, Craig - avisou a recepcionista do
escritório da marina. - Pode usar este telefone - ofereceu a moça.
Leu os recados que lhe entregara: um, de seu corretor com a palavra urgente
sublinhada, e outro, da editora de um jornal do meio-oeste. Não tivera muitos
deste tipo ultimamente.
Telefonou primeiro ao corretor, que informou ter vendido as ações Mocatta de
ouro, compradas por trezentos e vinte dólares a onça, por quinhentos e dois, e
disse-lhe que depositasse o dinheiro. Em seguida, para o outro número. Enquanto
aguardava, a moça por trás do balcão se movimentava, inclinando-se para olhar os
arquivos mais baixos, dando-lhe uma boa visão do que tinha por dentro do bustiê
cor-de-rosa.
Quando conseguiu falar com a editora, ela quis saber quando sairia o próximo
livro.
Que livro?, pensou com amargura, mas disse-lhe:
- Ainda não tem data certa, mas já está bem encaminhado. Enquanto isso, quer
fazer uma entrevista?
- Obrigada, mas vamos esperar até que o livro seja publicado, sr. Mellow.
Vai esperar muito, querida, pensou, e, ao desligar, a recepcionista olhou com
vivacidade.
A festa hoje vai ser no Firewater - disse, pois havia uma festa em um dos iates
todas as noites do ano. - Você vai?
Tinha um belo corpo, e o mostrava generosamente entre o short e o bustiê. Sem os
óculos, ficaria bem bonita. E, que diabo, acabara de ganhar duzentos e cinqüenta
mil dólares com as ações do ouro! Precisava comemorar.
- Vou dar uma festa particular no Bawu. Apenas para dois...
O rosto dela iluminou-se e ele viu que dera a resposta certa.
- Saio às cinco.
- Eu sei. Vá direto para lá - respondeu.
Liquide com uma e faça outra feliz. Devia equilibrar um pouco as coisas, pensou.

DEITADO DE COSTAS, com as mãos atrás da cabeça, ouvia os pequenos ruídos da


noite. O estalar do leme, a batida da adriça contra o mastro e o rumor das
pequenas ondas contra o casco. Do outro lado da enseada, a festa no Firewater
estava ainda muito animada, ouviu o som distante de risadas ao atirarem alguém
no mar.
Ao lado dele, adormecida, a moça ressonava baixinho. Fora ardente e demonstrara
grande habilidade, mas absolutamente isso o gratificara. Inquieto, gostaria de
subir ao convés, mas temia acordá-la; não tinha mais disposição para fazer amor
e seria constrangedor ex- plicar-lhe isso. Forçou-se a ficar deitado, deixando
que as imagens das fotos de Sally-Anne lhe desfilassem pela cabeça como em um
caleidoscópio. Elas despertaram lembranças há muito adormecidas que voltavam
agora nítidas e claras, acompanhadas pelos cheiros, sabores e sons da África, de
tal forma que podia ouvir novamente os tambores nativos ao longo do rio Chobe à
noite e sentir o cheiro da chuva na terra seca. Foi invadido por tamanha
nostalgia que não pôde dormir.
A MOÇA insistiu em lhe preparar o café da manhã, mas o fez sem a prática que
demonstrara ao fazer amor, e, depois que se foi, levou uma hora para arrumar a
cabine, só então subiu para o salão.
Fechou a cortina da escotilha sobre a mesa onde escrevia, para não ser
perturbado pelas atividades da marina, e instalou-se para trabalhar. Releu o
último trecho de dez páginas e viu que teria sorte se pudesse aproveitar duas.
Depois de uma hora, procurou a enciclopédia na estante ao lado, para achar uma
palavra alternativa.
- Deus, até eu sei que as pessoas não usam a palavra pusilânime numa conversa
real - murmurou, enquanto pegava o volume, e parou ao ver um envelope cair de
entre as páginas.
Secretamente satisfeito com a desculpa para interromper o trabalho, abriu-o
e, com um pequeno choque, descobriu que era a carta de uma jovem chamada Janine
- uma moça que repartira com ele a agonia dos ferimentos de guerra, que
percorrera com ele o longo e vagaroso caminho da recuperação; estivera a seu
lado quando caminhara pela primeira vez, depois de ter perdido a perna,
revezara-se com ele no leme quando enfrentaram, no Bawu, a primeira tempestade
atlântica. Uma moça que amara e com quem quase casara, e cujo rosto tinha agora
dificuldade em lembrar.
Janine lhe escrevera, de sua casa em Yorkshire, três dias antes de casar-se
com o veterinário que era o sócio mais moço no consultório do pai. Releu a carta
lentamente, todas as dez páginas, e compreendeu por que a escondera. Janine fora
amarga em alguns trechos e cortante em outros:
... Você foi um fracassado por tanto tempo que o súbito sucesso virou-lhe a
cabeça...
Fez uma pausa ao ler isso. Que mais havia feito além daquele único livro?
Volveu os olhos para o papel e continuou a ler.
...Você era tão inocente e gentil, Craig; tão amoroso à sua maneira infantil
e desajeitada. Eu poderia conviver com esse homem, mas, depois que deixamos a
África, você foi se transformando em um estranho, começou a se tornar duro e
cínico...
...Lembra-se do primeiro dia em que nos encontramos e de que eu lhe disse:
"Você é um garotinho mimado que desiste de tudo o que vale a pena"? Bem, é
verdade, Craig, você desistiu de nosso relacionamento. Não me refiro apenas às
outras garotas, às falsas literatas, quero me referir ao fato de que desistiu de
se importar. Deixe que lhe dê um conselho grátis: não desista da única coisa que
consegue fazer bem, não desista de escrever, Craig. Isso seria verdadeiramente
um pecado...
Lembrou-se de como desdenhara dessas palavras, quando as lera pela primeira vez.
Não pensava assim agora. Como uma profecia estavam ocorrendo exatamente como ela
as previa.
- Eu realmente o amei, Craig, não de repente, mas pouco a pouco. Você teve de
se esforçar muito para destruir isso. Já não o amo mais, duvido que ainda venha
a amar um outro homem, nem mesmo este com quem vou me casar no sábado. Mas ainda
gosto de você, sempre gostarei. Desejo tudo de bom para você; apenas tome
cuidado com esse seu inimigo implacável: você mesmo.
Craig dobrou a carta e sentiu vontade de tomar um drinque. Foi ao camarote e
serviu-se de um Bacardi. Uma grande dose com suco de lima. Enquanto bebia, releu
a carta e, daquela vez, uma frase chamou-lhe a atenção.
... Depois que partimos da África, tudo pareceu secar dentro de você - a
compreensão, o talento...
- Sim - murmurou. - Secou. Está tudo ressequido.
Subitamente, sentiu a dor intolerável da saudade. Perdera o caminho, a fonte
dentro dele secara e queria que ela voltasse a jorrar.
Rasgou a carta em pedacinhos e os atirou nas águas poluídas da enseada. Em
seguida desceu para o cais.
Não queria falar com a recepcionista, por isso usou o telefone público no portão
da marina. Foi mais fácil do que imaginara. A telefonista ligou-o com a
secretária de Henry Pickering.
- Não sei se o sr. Pickering poderá atender. Quem está falando, por favor?
- Craig Mellow.
Henry Pickering atendeu quase que imediatamente.
- Há um velho ditado matabele que diz: "o homem que bebeu das águas do Zambeze
sempre volta para delas beber novamente" - disse-lhe Craig.
- Então, está com sede? - perguntou Pickering.
- Disse-me que lhe telefonasse.
- Venha qualquer hora falar comigo.
- Hoje? - perguntou Craig.
- Puxa, rapaz, você está mesmo com sede! Espere um pouco, deixe-me checar a
agenda. Que tal às seis hoje à tarde? É o mais cedo que posso.
O ESCRITÓRIO de Henry ficava no vigésimo sexto andar e de lá avistava-se
desde as avenidas e ruas até o espaço verde do Central Park a distância.
Henry preparou-lhe um uísque com soda e levou o copo até onde estava, na
janela. Ficaram olhando o movimento da cidade e bebendo em silêncio, enquanto o
disco vermelho do sol projetava sombras estranhas no crepúsculo.
- Acho que já é hora de abrir o jogo, Henry - disse, afinal, Craig. - Diga-me
o que realmente quer de mim.
- Talvez esteja certo. O livro era camuflagem. Apesar de que, pessoalmente,
gostaria de ter visto suas palavras unidas àquelas fotos.
Craig fez um gesto impaciente, e Henry continuou:
- Sou o vice-presidente encarregado da divisão africana.
- Vi isso escrito na sua porta - assentiu Craig.
- Apesar do que dizem, não somos uma instituição de caridade, e sim, um dos
baluartes do capitalismo. A África é um continente de Estados economicamente
frágeis. Com a óbvia exceção da África do Sul e dos produtores de petróleo ao
norte, são sociedades de subsistência agrícola, sem uma estrutura industrial e
com poucos recursos minerais.
Craig concordou.
- Alguns dos que conseguiram recentemente tornar-se independentes do velho
sistema colonial ainda estão se beneficiando da infra-estrutura construída pelos
colonos brancos; enquanto os outros, Zâmbia, Tanzânia e Maputo, por exemplo, se
deixaram arrastar para um caos de letargia e fantasias ideológicas. Vai ser duro
salvá-los. - Henry balançou a cabeça tristemente, ficando ainda mais parecido
com uma cegonha fúnebre. - Mas em outros, como no Zimbábue, Quênia e Malawi,
temos uma chance de lutar. O sistema ainda está funcionando, já que nem todas as
fazendas foram dizimadas e entregues às hordas camponesas de posseiros, a
estrada de ferro funciona, há negócios de troca de minérios como cobre, cromo,
outros países, e turismo. Poderemos mantê-los com um pouco de sorte.
E por que dar-se a esse trabalho? - perguntou Craig.
- Você mesmo disse que não está no negócio de caridade.
Porque se não os alimentarmos, cedo ou tarde vamos ter de lutar contra eles,
é só. Se começarem a morrer de fome, adivinhe em que garras vermelhas vão cair.
Sim, isso faz sentido - e Craig tomou um gole de uísque.
Voltando à realidade - continuou Henry -, os países em nossa lista de
empréstimos têm uma mercadoria explorável, nada tão concreto como ouro, mas
muito mais valiosa. São atraentes para os turistas ocidentais. Se quisermos ver
algum retorno dos bilhões que aplicamos lá, temos de nos assegurar que continuem
atraentes.
- E como se faz isso? - disse Craig, voltando-se para ele.
- Vamos tomar o Quênia como exemplo - sugeriu Henry. - Claro que tem muito
sol e praias, mas a Grécia e a Sardenha também têm, e são um bocado mais perto
de Paris e Berlim. O que a região mediterrânea não possui é a fauna africana, e
é isso que atrairá os turistas. Esta é a nossa parte no acordo. Os dólares do
turismo estão nos mantendo no negócio.
- O raciocínio está correto, mas não vejo onde entro nisso. - Craig franziu
as sobrancelhas.
- Espere que vamos chegar lá - Henry lhe disse. - Deixe-me explicar um pouco
o quadro primeiro. O caso é o seguinte: infelizmente, a primeira coisa que o
recém-libertado africano vê depois que o homem branco parte é marfim, chifres de
rinoceronte e carne abundante. Um rinoceronte ou elefante significa mais
dinheiro do que poderia ganhar em dez anos de trabalho honesto. Durante
cinqüenta anos, departamentos de caça dirigidos pelos brancos protegeram toda
essa maravilhosa riqueza, mas agora os brancos fugiram para a Austrália ou
Joanesburgo; um xeique árabe paga vinte e cinco mil dólares por uma adaga de
cabo de chifre de rinoceronte e um guerrilheiro vitorioso tem um fuzil AK 47 nas
mãos. É tudo muito lógico.
- Sim, já compreendi - assentiu Craig.
- Tivemos o mesmo problema no Quênia. A caça furtiva era um ótimo negócio
dirigido pela cúpula. Foram precisos quinze anos e a morte de um presidente para
terminar com isto. Hoje em dia, o Quênia tem as leis mais severas de caça de
toda a África, e estão sendo cumpridas. Tivemos que usar nossa influência e
ameaçá-los com a força, mas, hoje em dia, nosso investimento está protegido - e
Henry pareceu satisfeito por um instante, mas logo a melancolia retornou. -
Agora, vamos ter de trilhar a mesma estrada no Zimbábue. Você viu aquelas fotos
da matança no campo minado. Uma outra incursão está sendo organizada,
suspeitamos que por alguém do alto comando. Temos que detê-lo.
- Ainda estou esperando para saber o que isso tem a ver comigo.
- Preciso de um agente lá. Alguém com experiência, que tenha trabalhado no
departamento de caça e proteção à fauna, que fale a língua local, e com uma
desculpa autêntica para viajar e fazer perguntas. Um escritor de reputação
internacional à procura de material para o novo livro, com amigos nas altas
esferas do governo, seria perfeito. Isso abriria mais portas, e, se fosse um
defensor dedicado do sistema capitalista e acreditasse de verdade no que estamos
fazendo, seria totalmente eficaz.
- Quer que eu banque o James Bond?
- Investigador de campo para o Banco Mundial. O pagamento é de quarenta mil
dólares por ano, mais despesas, e um bocado de satisfação com o trabalho; sei
que não tem nenhum compromisso e o convido para almoçar no La Grenouille com o
vinho que escolher.
- Como disse antes, Henry, já não é hora de ser franco comigo? Sei que está
ocultando algo, e não gosto de ser enganado.
- Sua percepção confirma a sabedoria de minha escolha. Está certo, Craig, há
mais alguma coisa. Não queria tornar a questão muito complicada até que se
enfronhasse melhor nela. Deixe-me servir-lhe um outro drinque.
Foi até o bar, e, enquanto punha gelo nos copos, continuou:
- É vital termos uma visão completa do que acontece por baixo da superfície
de todos os países onde investimos. Em outras palavras, um sistema de
inteligência em funcionamento. Nossa organização em Zimbábue não é tão eficiente
como eu desejo. Perdemos um homem-chave recentemente em um acidente de carro,
que pode não ter sido acidente. Pouco antes de morrer, deu-nos uma pista: ouvira
rumores de um coup d'état apoiado pelos russos.
- Nós, africanos, não acreditamos mais no voto. As únicas coisas que contam
são as lealdades tribais e um braço forte. Coup d'état faz mais sentido do que
votos - declarou Craig.
Como é, entra para o time? - quis saber Henry. Por despesas entende-se passagens
aéreas de primeira classe? perguntou Craig maldosamente.
- Todo homem tem seu preço. Esse é o seu? - retrucou Henry. - Não me vendo tão
barato, mas detesto a idéia de ter um fantoche dos soviéticos dirigindo a terra
onde minha perna foi perdida.
Aceito o emprego.
Achei que aceitaria - disse Henry, dando-lhe um aperto de mão surpreendentemente
forte. - Vou mandar um mensageiro ao seu iate com uma pasta e um estojo de
sobrevivência. Leia o conteúdo da pasta enquanto ele espera, devolva-a e fique
com o estojo.

O ESTOJO de sobrevivência de Henry Pickering tinha uma grande variedade de


cartões de crédito, um certificado de sócio do Ambassadors Club da TWA, um
cartão do Banco Mundial com crédito ilimitado e uma pasta de couro com uma
estrela esmaltada gravada com "Asessor de Campo - Banco Mundial", que Craig
sopesou.
- Podia matar a pancadas um leão caçador de homens com isso - brincou. - Não
sei para o que mais poderia servir.
Mas o conteúdo da pasta revelou ser interessante. Ao terminar de lê-lo,
compreendeu que a alteração do nome Rodésia para Zimbábue era uma das mudanças
menos drásticas que varreram sua terra natal, desde que a deixara há poucos
anos.

CRAIG DIRIGIA O Volkswagen alugado, pelas colinas douradas, cobertas de


pastagens, pisando com cuidado no acelerador. Conforme a moça matabele no balcão
de Avis, no aeroporto de Bulawarjo o prevenira.
- O tanque está cheio, senhor, mas não sei quando conseguirá enchê-lo de
novo. Há muito pouca gasolina em Matabeleland.
Na própria cidade, vira longas filas de carros nos postos e o proprietário do
motel explicara o motivo enquanto assinava o registro e apanhava a chave de um
dos bangalôs.
- Os rebeldes maputo vindos da costa leste atacaram o oleoduto. O chato nisso
tudo é que, logo depois da fronteira, os sul-africanos têm gasolina à vontade,
mas nossos governantes não querem gasolina politicamente manchada. Então, o país
inteiro fica parado. Esses sonhos políticos são uma praga; para existir, temos
de comerciar com eles e já é hora de aceitarem isso.
Por isso, Craig dirigia com cautela; a marcha lenta dava-lhe tempo para rever
a paisagem, verificar as mudanças que alguns anos haviam produzido.
Vinte e cinco quilômetros depois da cidade saiu da estrada asfaltada e pegou
uma de terra, em direção ao norte. Rodou dois quilômetros e parou ao chegar à
cerca. Verificou que o portão estava torto e escancarado; nunca o vira daquele
jeito. Desceu e tentou fechá-lo, mas os gonzos estavam emperrados pela ferrugem.
Desistiu do esforço e deixou a estrada para examinar a placa que estava atirada
na grama.
Fora arrancada e os elos que a prendiam, também. Estava de face para cima, e,
apesar de desbotada pelo sol, ainda se podia ler:
Fazenda de criação de Afrikander King's Lynn Berço de "Ballantyne's Illustrious
I" Campeão dos Campeões Proprietário: Jonathan Ballantyne Craig lembrou-se com
nitidez do enorme animal castanho-avermelhado no ringue de exposição, com a
roseta azul de campeão presa à testa e de Jonathan Bawu Ballantyne, seu avô
materno, cunduzindo-o orgulhosamente pela argola de metal presa nas narinas.
Voltou ao Volks e dirigiu através de pastagens que um dia tinham sido
contínuas, verdes e cheirosas, mas onde agora entrevia-se a terra nua e
empoeirada. Ficou desolado com a condição dos pastos. Nunca, nem mesmo na seca
de quatro anos da década de cinqüenta, deixaram que a grama de King's Lynn
deteriorasse daquela maneira, e não compreendeu a razão até parar novamente ao
lado de um grupo de árvores espinhentas.
- Cabras! - disse em voz alta. - Estão criando cabras em King's Lynn.
O fantasma de Jonathan Bawu Ballantyne devia estar vagando sem sossego. Cabras
em sua amada pastagem. Craig foi procurá-las: havia duzentas ou mais, formando
um rebanho. Alguns dos animais, ágeis e multicoloridos, haviam subido nas
árvores para comer a casca e as vagens, enquanto os outros comiam o capim até as
raízes, o que o mataria e deixaria o solo estéril. Ele vira a devastação que
esses animais causaram nas reservas tribais.
Havia dois meninos matabele nus pastoreando o rebanho, que ficaram fascinados
quando Craig dirigiu-lhes a palavra em sindebele. Colocaram na boca as balas com
que os presenteou e tagarelaram desinibidamente. Havia trinta famílias vivendo
em King's Lynn e cada uma tinha um rebanho de cabras; as melhores de
Matabeleland, gabaram-se, e debaixo de uma árvore um bode velho e chifrudo
montou em uma jovem cabrinha.
- Veja! - gritaram os pastores. - Eles se cruzam com vontade. Logo vamos ter
mais cabras do que as outras famílias.
- O que aconteceu aos fazendeiros brancos que moravam aqui?
- perguntou Craig.
- Foram embora! Nossos guerreiros os expulsaram e agora a terra pertence aos
filhos da revolução. - Tinham seis anos, mas já eram capazes de se exprimir no
jargão revolucionário.
Cada um possuía uma atiradeira feita de borracha pendurada no pescoço e, em
torno da cintura nua, uma fieira de passarinhos mortos: cotovias, tourinegras e
nectaríneas. Craig sabia que ao meio-dia os assariam inteiros sobre as brasas
deixando as penas torrarem, e devorariam as minúsculas carcaças enegrecidas, com
gula. O velho Bawu Ballantyne daria lambadas em qualquer menino pastor que
caçasse com atiradeira.
Seguiram Craig quando voltou até a estrada, pediram mais balas e ficaram
dando adeus como a um velho amigo. Apesar das cabras e dos passarinhos, Craig
sentiu novamente uma enorme afeição por aquela gente. Era bom estar em casa de
novo.
Parou no topo das colinas e, de lá, olhou as casas de King's Lynn. O gramado
morrera por falta de cuidados e as cabras haviam comido os canteiros de flores.
Mesmo a distância, pôde ver que a sede estava deserta, as janelas estavam
quebradas. As telhas tinham sido tiradas e usadas para construir barracos de
posseiros perto dos estábulos.
Dirigiu até alcançar aquela área, parou perto do tanque de água, que estava
seco e cheio de sujeira, e foi até o acampamento. Havia uma meia dúzia de
famílias vivendo lá. Afugentou os vira-latas que correram ganindo com pedradas
que deu e cumprimentou o velho sentado perto de uma das fogueiras.
- Eu o saúdo, velho pai.
Sentiu novamente a satisfação de dominar a língua, sentou-se perto do fogo
por uma hora, tagarelando com o velho matabele - as palavras fluíam-se cada vez
melhor e o ouvido reajustava-se ao ritmo e às nuances do sindebele. Ficou
sabendo de mais coisas do que nos quatro dias desde que regressara a
Matabeleland.
- Eles nos disseram que depois da revolução todo homem teria um belo carro e
quinhentas cabeças do melhor gado dos brancos - e o velho cuspiu na fogueira. -
Os únicos que têm carros são os ministros do governo. Nos disseram que teríamos
a barriga sempre cheia, mas a comida custa cinco vezes mais que no tempo de
Smith e os brancos fugiram.
Durante o regime branco, um rígido sistema de controle cambial e uma forte
estrutura interna de controle de preços evitavam ao país os piores efeitos da
inflação, mas agora estavam experimentando todas as alegrias de reingressar na
comunidade internacional, e a moeda já fora desvalorizada em vinte por cento.
- Não podemos manter o gado - explicou o velho -, por isso temos que criar
cabras. Cabras! - e cuspiu novamente no fogo. - Como os shona comedores de
porcaria - acrescentou, e o ódio tribal parecia ferver em seu sangue.
Craig deixou-o resmungar e a caretear ao lado da fogueira fumarenta e foi até
a casa. Enquanto subia para a espaçosa varanda da frente, teve a nítida
impressão de que o avô apareceria de repente para saudá-lo com alguma observação
mordaz. Pareceu ver novamente o velho, elegante e ereto, com uma espessa
cabeleira branca, a pele como couro curtido e os inacreditáveis olhos verdes dos
Ballantyne à sua frente.
Então, Craig, voltou para casa com o rabo entre as pernas?
Mas a varanda estava deserta, coberta de detritos e dejetos dos pombos
selvagens que faziam ninho nos caibros sem serem molestados.
Andou pela varanda até as portas duplas que davam para a velha biblioteca.
Antes duas enormes presas de elefantes emolduravam-nas, eram de um animal que o
trisavô de Craig matara em torno de 1860. Sempre haviam montado guarda à entrada
de King's Lynn. O avô Bawu tocava-as sempre que passava por ali e havia um ponto
lustroso onde os dedos roçavam no marfim amarelado. Agora restavam apenas
buracos na parede de onde os ganchos que as prendiam foram arrancados. As únicas
relíquias de família que herdara e ainda possuía eram a coleção de diários
encadernados em couro, escritos laboriosamente a mão por seus ancestrais desde a
vinda do trisavô à África cem anos antes. As presas completariam os velhos
diários, e prometeu-se que as procuraria.
Entrou na casa abandonada. As prateleiras e cômodas embutidas tinham sido
arrancadas pelos posseiros do vale para as usarem como lenha; e as vidraças,
usadas como alvo pelos garotos com estilingue. Os livros, os retratos, os
tapetes e a pesada mobília de teca da Rodésia tinham desaparecido. A casa da
sede era como uma casca, mas uma casca resistente. Com a mão espalmada, bateu
nas paredes que o triavô Zouga Ballantyne construíra, de pedra lavrada a mão e
cimento, e que tinham cem anos de solidez. Seria preciso um pouco de trabalho e
um bocado de dinheiro para transformar aquela casca em um lar magnífico outra
vez.
Saiu da casa e subiu a colina até o cemitério da família que ficava à sombra
de árvores msasa. O capim crescia por entre as pedras tumulares. Fora
negligenciado, mas não vandalizado, como muitos outros monumentos deixados pela
era colonial.
Craig sentou-se à beira do túmulo do avô e disse:
- Alô, Bawu, estou de volta - e estremeceu, quase como se ouvisse a voz do
velho cheia de um pretenso escárnio falar em sua lembrança.
Sim, toda vez que fica escaldado, volta correndo para cá. O que aconteceu
desta vez?
- Eu sequei, Bawu - respondeu à acusação em voz alta e ficou silencioso em
seguida.
Permaneceu sentado muito tempo e, muito lentamente, sentiu acalmar-se um
pouco.
- Este lugar está uma bagunça horrível, Bawu - disse novamente, e o pequeno
lagarto na lápide do velho fugiu com o som. - As presas desapareceram da varanda
e eles estão criando cabras no seu melhor pasto.
Ficou silencioso outra vez, mas agora começara a calcular e a planejar. Ficou
lá ainda por uma hora e, enfim, levantou-se.
- Bawu, que tal se eu tirasse as cabras do seu pasto? - perguntou, antes de
voltar para onde tinha deixado o Volkswagen estacionado.
FALTAVA POUCO para as cinco horas quando chegou à cidade. A agência estatal
de leilões públicos defronte ao Banco Standard ainda estava aberta. O cartaz
fora repintado em tinta vermelha, e, assim que entrou, reconheceu o leiloeiro
corpulento e de cara vermelha vestido com short cáqui, camisa de mangas curtas e
gola aberta.
- Então, você não escapou pela brecha como nós, Jock - disse Craig,
cumprimentando Jock Daniels.
Escapar pela brecha era a expressão de pouco-caso que usavam para a
emigração. Dos 250 mil rodesianos brancos, quase 150 mil tinham escapado pela
brecha desde o início das hostilidades e a maioria se fora quando a guerra
estava perdida e o governo de Robert Mugabe assumira o poder.
Jock fitou-o.
- Craig! - explodiu - Craig Mellow! - e apertou-lhe a mão fortemente. - Não,
não escapei, mas às vezes fica muito solitário por aqui. Meu Deus, e você, saiu-
se bem, hein? Dizem nos jornais que ganhou um milhão com aquele livro. As
pessoas daqui mal podiam acreditar. O velho Craig Mellow, disseram, imagine,
logo o Craig Mellow.
- É o que disseram? - e o sorriso de Craig desapareceu.
- Não posso dizer que tenha gostado do livro - e Jock balançou a cabeça. -
Você fez aqueles negros parecerem uns malditos heróis, mas é do que gostam por
lá, não é? Preto é bonito, é isto que vende livro, não é mesmo?
- Alguns dos meus críticos me chamaram de racista - murmurou Craig. - Não se
pode contentar todo mundo.
- Outra coisa, Craig, por que você tinha que dizer que o sr. Rhodes era
bicha? - disse Jock que não o ouvira.
Cecil Rhodes, o pai dos emigrantes brancos, já morrera há oitenta anos, mas o
pessoal da velha época ainda o chamava de sr. Rhodes.
- Mostrei as razões disso no livro - tentou acalmá-lo.
- Era um grande homem, Craig, mas hoje em dia é moda entre os jovens
denegrirem a grandeza, são como cães atacando os calcanhares de um leão.
Viu que Jock estava ficando esquentado e decidiu desviar-lhe a atenção do
assunto.
- Que tal um drinque, Jock? - a pergunta pareceu acalmá-lo. As faces rosadas
e o nariz inchado e vermelho não eram só produto do sol africano.
- Agora, você está dizendo algo que faz sentido - e lambeu os beiços. - Foi
um longo dia sedento. Fecho essa joça num instante.
- Se eu fosse buscar uma garrafa, podíamos beber aqui mesmo e falar em
particular.
- Uma ótima idéia. A loja de bebidas ainda tem algumas garrafas de Dimple
Haig; e traga gelo, também. - O último vestígio do antagonismo de Jock evaporou-
se.
Ficaram sentados no cubículo que servia de escritório e beberam do bom uísque
em canecas ordinárias e grossas. O humor de Jock Daniels melhorou
consideravelmente.
- Não fui embora, Craig, porque não havia para onde ir. Voltar para a
Inglaterra? Cheia de sindicatos e com aquele clima horrível, não, obrigado. Para
a África do Sul? Vão pelo mesmo caminho que nós; pelo menos, isso já acabou por
aqui. - Serviu-se de outra dose. - Se a gente quer ir embora, só deixam levar
duzentos dólares. Duzentos dólares para recomeçar aos sessenta e cinco? Não,
muito obrigado.
- E como vai a vida, Jock?
- Sabe o que eles chamam por aqui de otimista? - perguntou Jock. - É alguém
que acredita que as coisas não podem ficar piores. - Gargalhou e deu uma palmada
na coxa. - Estava brincando, não é tão ruim assim. Contanto que não espere ter
os velhos padrões e fique longe da política, ainda pode ter uma vida tão boa
quanto em qualquer outro lugar do mundo.
- E os grandes fazendeiros, como estão se saindo?
- São a elite. O governo criou juízo. Botou de lado toda aquela palhaçada
sobre nacionalizar a terra. Tinha que alimentar as massas e para tornar isso
viável precisava dos fazendeiros brancos. Está orgulhoso deles agora: quando
recebe a visita de um oficial comunista chinês ou um ministro líbio, organiza
turnês para mostrar como as coisas vão bem.
- E o preço da terra?
- No final da guerra, quando os pretos assumiram e ficavam ameaçando tomá-
las, ninguém as queria nem de graça. - Jock gargarejou com um gole de uísque. -
Tome por exemplo a companhia de sua família, a Rholands Ranching, que incluía
todas as três fazendas: King's Lynn, Queen's Lynn e aquele grande pedaço de
terra lá no norte perto da Reserva de Caça Chizarira. Seu tio Douglas vendeu
toda aquela terra por 250 mil dólares. Antes da guerra, teria pedido dez
milhões.
- Por 250 mil? Ele as deu de presente! - disse Craig chocado. - Esse preço
incluiu todo o gado. Os touros Afrikander premiados e as matrizes, tudo - contou
Jock com gosto. - Ele tinha que dar o fora. Foi membro do gabinete de Smith
desde o começo, sabia que seria um homem marcado quando o governo negro
assumisse. Vendeu para um consórcio suíço-alemão e eles o pagaram em Zurique. O
velho Dougie pegou a família e foi para a Austrália. Claro que tinha alguns
milhões fora do país e pôde comprar uma boa fazenda de gado lá em Queensland.
Fomos nós, os pobres mendigos com tudo o que temos amarrado aqui, que tivemos de
ficar.
- Tome mais um - ofereceu Craig, e, em seguida, dirigiu a conversa novamente
para a Rholands Ranching. - O que fez o tal consórcio com a Rholands?
- Que caras espertalhões! - Jock já estava com a língua meio enrolada. -
Reuniram o gado, subornaram alguém no governo para conseguir uma licença de
exportação, e levaram tudo para a fronteira da África do Sul. Ouvi dizer que o
venderam por quase um milhão e meio lá. Era gado de primeira, campeão muito
cotado para a renovação de manadas. Assim, ganharam um milhão limpo, repartiram
o lucro em ações de ouro e fizeram outro par de milhões.
- Limparam as fazendas e agora as estão abandonando? - perguntou Craig, e
Jock concordou com gravidade.
- Estão tentando vender a companhia, naturalmente. Estou com ela nas mãos
para isso, mas seria preciso muito capital para estocar de novo as fazendas e
tocá-las adiante. Ninguém está interessado. Quem quer trazer dinheiro para um
país que está à beira do abismo?
- Qual é o preço que estão pedindo por ela? - perguntou Craig como quem não
quer nada e Jock Daniels ficou instantaneamente sóbrio, fitando-o com os olhos
espertos de corretor.
- Você está interessado? - e os olhos ficaram ainda mais estreitos. -
Realmente ganhou um milhão de dólares com aquele livro?
- Quanto estão pedindo por ela? - insistiu Craig.
- Dois milhões. Por isso não achei comprador. Muitos dos rapazes daqui adorariam
botar as patas naquela pastagem, mas dois milhões... Quem é que tem todo esse
dinheiro nesse país?
- Se fossem pagos em Zurique, será que fariam uma diferença no preço?
- Tão certo como o fedor do sovaco de um shona!
- Quanta diferença?
- Podem diminuir para um milhão, em Zurique.
- E um quarto de milhão?
- Não, nunca. Nem em dez mil anos. - E Jock balançou enfaticamente a cabeça.
- Telefone para eles. Diga-lhes que as fazendas estão cheias de posseiros e que
causaria um grande problema político tentar tirá-los de lá. Diga-lhes que estão
criando cabras nas pastagens e que dentro de um ano elas serão um deserto.
Sublinhe o fato de que estarão recebendo o mesmo investimento que fizeram. Diga-
lhes que o governo ameaçou confiscar todas as terras de proprietários ausentes e
que poderiam perdê-las.
- Tudo isso é verdade - resmungou Jock. - Mas 250 mil dólares! Você está me
fazendo perder tempo.
- Telefone para eles.
- E quem paga o telefonema?
- Eu pago. Você não tem nada a perder, Jock.
- Está bem, vou telefonar - suspirou Jock, resignado.
- Quando?
- Hoje é sexta, não adianta ligar antes de segunda.
- Está bem, enquanto isso, pode me arranjar umas latas de gasolina?
- Para que quer gasolina?
- Vou até Chizarira. Não vou lá há dez anos e, se vou comprá- la, gostaria de
dar uma olhada.
- Eu não faria isso, Craig. É zona de bandidos.
- O termo polido é dissidentes políticos.
- São bandidos matabele - disse Jock com seriedade. - Vão encher seu traseiro de
tiros ou seqüestrá-lo para pedir resgate, ou as duas coisas.
- Arranje-me gasolina, vou me arriscar. Volto na semana que vem para ver o
que disseram os seus amigos de Zurique sobre a oferta.

ERA UMA TERRA maravilhosa, ainda selvagem e intocada: sem cercas, terras
cultivadas ou construções. Protegida do afluxo de camponeses, agricultores e
criadores de gado pelo cinturão de moscas tsé-tsés que ia do vale do Zambeze até
as florestas ao longo das escarpas.
De um lado, limitava-se com a Reserva da Caça de Chizarira e, do outro, com a
Reserva Florestal de Mzolo, ambas as áreas eram verdadeiros santuários de vida
silvestre. Durante a depressão dos anos 30, o velho Bawu escolhera a terra com
cuidado. Quatro milhões de metros quadrados por duas mil e quinhentas libras.
- Claro que nunca será uma terra adequada para gado - dissera Craig uma vez,
quando acampavam sob as figueiras selvagens à beira de uma piscina natural no
rio Chizarira. - O capim é ruim, e as tsé-tsés matariam qualquer animal que
tentássemos criar, mas, por esta razão, será sempre uma parte preservada da
velha África.
O velho a usara como campo de caça e repouso. Nunca colocara arame farpado ou
construíra sequer uma cabana no terreno, preferindo dormir ao ar livre.
Bawu caçara ali muito seletivamente. Elefante, leão, rinoceronte e búfalo.
Apenas a caça perigosa, mas a protegera ciumentamente de outros caçadores, até
mesmo dos próprios filhos e netos.
- É o meu paraíso particular - dissera a Craig -, e sou egoísta o bastante
para mantê-lo assim.
Craig duvidou que a trilha que levava às piscinas naturais tivesse sido usada
desde que ele e o velho haviam estado lá há dez anos. A vegetação tomara conta
dela completamente, e os elefantes haviam derrubado árvores moparti que formavam
bloqueios em alguns pontos.
- Dane-se, sr. Avis - disse Craig, e seguiu por ela com o Volks evitando as
barreiras das árvores.
O veículo com tração nas rodas dianteiras era leve e ágil o bastante para
enfrentar até o mais difícil leito de rio seco, apesar de ter tido que forrar o
fundo arenoso com ramos para vencer a areia final. Perdeu a trilha uma meia
dúzia de vezes, e tornou a achá-la; por fim abandonou o carro e fez o restante
do percurso a pé. Alcançou as piscinas ao entardecer.
Enrolou-se no cobertor que surrupiara do motel, e dormiu sem sonhos e sem
agitação, para despertar com a magia rosada de um amanhecer africano. Comeu
feijão frio e fez café, deixando então as coisas embrulhadas e o cobertor
debaixo das figueiras silvestres. Andou pela margem do rio.
A pé, só poderia cobrir uma diminuta porção dos quatro milhões de metros
quadrados, mas o rio Chizarira era o coração, a artéria principal. O que
encontrasse ali permitiria julgar que mudanças houvera desde a última visita.
Imediatamente, percebeu que ainda havia grande quantidade das espécies
silvestres mais comuns na floresta; os grandes e fantasmagóricos kudu de chifres
espiralados fugiam aos pulos, balançando as caudas fofas e brancas, e pequenos e
graciosos impala deslizavam como vultos por entre as árvores. Em seguida,
encontrou rastros de animais mais raros. Primeiro, as marcas recentes das patas
de um leopardo na argila à beira do rio, onde o felino bebera durante a noite;
depois, o rastro alongado em feitio de lágrimas e os dejetos semelhantes a bagos
de uvas do magnífico antílope negro.
A guisa de almoço, comeu pedaços de salsicha e chupou as ácidas e cremosas
vagens de baobá. Prosseguiu as andanças e chegou a uma extensa mata de ébano
silvestre, enveredou por uma das tortuosas trilhas. Mal havia dado cem passos
quando divisou a pequena clareira em meio ao matagal cerrado e teve um momento
de júbilo.
A clareira fedia ainda mais forte que um curral. Reconheceu-a como um
monturo, local onde os animais voltavam habitualmente para defecar. Pelo aspecto
das fezes, cascas e folhas de árvore, e o modo como estavam esparramadas, soube
imediatamente que era um monturo de rinocerontes negros, uma das espécies mais
raras e mais ameaçadas de extinção.
Diferente do rinoceronte branco, um animal letárgico e plácido, o negro é,
por natureza, rabugento, estúpido e irritável. Ataca qualquer coisa que o
perturbe, inclusive homens, cavalos, caminhões e até mesmo trens.
Antes da guerra, um rinoceronte que vivera nas escarpas do vale do Zambeze,
onde tanto a rodovia como a estrada de ferro começavam a descer em direção às
cataratas de Victoria, tinha um escore de dezoito caminhões e ônibus atacados
num local da estrada onde eram obrigados a passar em marcha lenta. Agredia-os
frontalmente, metendo o chifre no radiador e provocando um jato de vapor.
Depois, satisfeito, trotava de volta ao matagal, guinchando, triunfante.
Um dia, resolveu atacar o expresso de Victoria, e irrompeu pelos trilhos como
um cavaleiro medieval em um torneio. A locomotiva estava fazendo uns trinta
quilômetros por hora e o rinoceronte, que pesava duas toneladas, também. O
encontro foi monumental. O expresso parou, com as rodas girando em falso, embora
ileso, mas o rinoceronte chegara ao fim de sua carreira como demolidor de
radiadores.
Craig calculou, satisfeito, que o último depósito de esterco fora feito nas
últimas doze horas, e os rastros indicavam um grupo familiar, macho, fêmea e o
filhote. Sorrindo, lembrou-se do velho mito matabele que explicava o hábito do
rinoceronte espalhar as fezes e o medo que tinha do porco-espinho - o único
animal na mata do qual foge em pânico.
Contavam que, certa vez, o rinoceronte pediu uma farpa emprestada ao porco-
espinho para costurar um rasgão no couro espesso e prometeu devolvê-la assim que
terminasse. Depois de consertá-lo com cipó, colocou a farpa entre os dentes, e
inadvertidamente a engoliu. Está ainda à procura dela e foge para evitar as
recriminações do porco-espinho.
A população mundial de rinocerontes pretos não excedia o total de alguns
milhares, e tê-los ainda sobrevivendo ali o alegrava e tornava muito mais
viáveis os planos que traçara.
Continuou a seguir os rastros na esperança de vê-los, mas, ao avançar por
trás da cerrada mata que flanqueava a trilha, ouviu gritos agudos e uma nuvem de
pássaros marrons apareceu sobre as árvores. Essas aves ruidosas viviam em
relação simbiótica com os animais maiores, alimentando-se exclusivamente dos
carrapatos e mutucas que os infestavam, e, em recompensa, agiam como sentinelas
para avisá-los do perigo.
Logo após o alarma, ouviu um ensurdecedor resfolegar como o de uma
locomotiva; com um estrondo, a mata abriu-se e Craig viu quando o enorme animal
irrompeu na trilha a apenas alguns metros de distância. Ainda bufando de
irritação, espiou por cima dos chifres longos e lustrosos à procura do que
atacar.
Sabendo que os olhos míopes do animal não podiam distinguir um homem imóvel a
certa distância e que o vento estava a seu favor ficou imóvel, mas pronto a
atirar-se para o lado caso viesse para cima dele. O rinoceronte balançava o
corpo de um lado para o outro com uma agilidade surpreendente, ainda irado. Em
sua imaginação, os chifres pareciam a cada segundo maiores e mais afiados.
Cautelosamente, pôs a mão no bolso para pegar a faca, mas o animal percebeu o
movimento, e trotou um pouco mais à frente, colocando-o dentro do alcance de
visão e em sério perigo.
Num lampejo, atirou a faca, que passou sobre a cabeça do animal em direção a
uma árvore, causando estrépito ao atingir um galho.
No mesmo instante, o rinoceronte girou e com a enorme força arremeteu carga
furiosa em direção ao som. A mata fendeu-se como diante de um tanque, o ruído
diminuiu à medida que o animal subia correndo a colina e ultrapassava a crista à
procura de um adversário. Craig sentou-se pesadamente na trilha, às gargalhadas,
onde percebiam-se traços de uma leve histeria.
Em pouco tempo, encontrou três poças de água estagnada e malcheirosa que
esses estranhos animais preferem à água corrente e clara do rio, e decidiu o
local dos esconderijos de observação; deles os turistas poderiam vê-los de
perto. Colocaria também pedaços de sal ao lado das poças para atraí-los. Assim
seriam facilmente admirados e fotografados.
Sentado em um tronco, passou em revista os planos. Dali, em uma hora de vôo,
chegava-se às cataratas de Victoria, uma das sete maravilhas naturais do mundo,
que já atraía milhares de turistas todo mês. Um pequeno desvio não aumentaria de
forma significativa a passagem aérea. Poucas reservas ou acampamentos poderiam
oferecer animais tão raros como aqueles e as matas intocadas que ladeavam
Chizarira assegurariam uma fonte permanente de vida silvestre interessante.
O que tinha em mente era montar um acampamento tipo "caviar e champanhe", na
mesma linha das propriedades privadas em torno do Parque Nacional Kruger, na
África do Sul. Construiria pequenos alojamentos isolados entre si para dar aos
ocupantes a ilusão de terem a selva inteira só para eles. Providenciaria guias
carismáticos e afáveis, que levariam os turistas de Land-Rover ou a pé para ver
de perto animais raros e potencialmente perigosos, tornando isso uma aventura; e
acomodações luxuosas quando retornassem da expedição: ar-condicionado, comida e
vinhos finos, jovens e bonitas recepcionistas, filmes e conferências sobre a
natureza para instruí-los e entretê-los. E cobraria uma verdadeira fortuna por
tudo isso, visando a camada mais alta do comércio turístico.
Craig voltou capengando ao acampamento rudimentar debaixo das figueiras
bravas logo depois do pôr-do-sol, o rosto e os braços vermelhos e queimados, o
pescoço inchado e coçando com as mordidas de tsé-tsé, e o coto da perna irritado
e dolorido pelo exercício pouco costumeiro. Estava cansado demais para comer.
Soltou a perna mecânica, tomou um gole de uísque do cantil de plástico, enrolou-
se no cobertor e adormeceu quase que instantaneamente. Acordou durante a noite,
e, enquanto urinava, ouviu com prazer os rugidos distantes de um bando de leões,
e voltou para o cobertor.
Foi acordado pelo arrulhar dos pombos nos galhos das figueiras, e descobriu
que estava faminto e tão feliz como não se sentia há anos.
Depois de comer, foi pulando até a beira d'água, levando um número do
Farmer's Weekly, a bíblia do fazendeiro africano. Sentou-se no raso, estudando o
preço do gado na região, a agradável aspereza da areia branca como açúcar e a
água fria causando alívio no coto ainda dolorido.
Depois de calcular as cifras, seus planos ambiciosos foram rapidamente
moderados, compreendeu quanto custaria reaparelhar King's Lynn e Queen's Lynn
com gado de raça. O consórcio vendera a manada por um milhão e meio e os preços
haviam subido desde então.
Tinha de começar com reprodutores e matrizes de qualidade, e construir
lentamente o pedigree. Mesmo assim, custaria um bocado de dinheiro, os ranchos
tinham que ser reconstruídos e equipados e o empreendimento de um acampamento de
turistas ali, em Chizarira, custaria também um bocado. Teria que tirar as
famílias dos posseiros e as cabras de suas pastagens. A única maneira de fazer
isso era oferecer-lhes dinheiro. O velho avô Bawu sempre lhe dizia, "calcule
quanto acha que vai custar e, depois, dobre a quantia. Assim, conseguirá chegar
perto".
Craig atirou longe a revista e deitou-se, só com a cabeça fora d'agua,
fazendo cálculos.
Vivia frugalmente a bordo do iate, à diferença de outros autores subitamente
bem-sucedidos. O livro estivera nas listas de best-sellers de ambos os lados do
Atlântico durante um ano; fora a escolha principal de três clubes-do-livro,
traduzido para diversos idiomas, inclusive o hindi e condensado para o Reader's
Digest-, transformara-se em uma série para a tevê. Os lucros foram ótimos, mas o
imposto de renda ficou com uma quantia substancial deles.
Com o que lhe restara, passou a especular com ouro e prata, fizera três boas
aplicações na Bolsa e, finalmente, transferira a maior parte dos ganhos para
francos suíços no momento oportuno. Além disso, podia vender o iate. Há um mês,
tivera uma oferta de cento e cinqüenta mil dólares pelo Bawu, mas detestaria ter
de perdê-lo. Sem contar com isso, podia tentar uma facada em Ashe Levy para
conseguir um bom adiantamento sobre o romance por fazer e vender logo a alma.
Chegou ao final dos cálculos e decidiu que, se usasse de todos os recursos e
possibilidades de crédito, poderia levantar um milhão e meio, o que significava
que ainda lhe faltaria outro milhão e meio.
Henry Pickering, meu banqueiro favorito, prepare-se para uma surpresa, riu,
ao pensar em como planejava quebrar a primeira e mais importante regra do
investidor prudente e pôr todos os ovos em um só cesto. Caro Henry, você foi
sorteado por nosso computador para ser o felizardo escolhido para um empréstimo
de um milhão e meio a um escriba perneta. Concluiu que até ter uma resposta do
consórcio através de Jock Daniels não deveria preocupar-se; passou a tópicos
mais amenos.
Levou as mãos em concha aos lábios e tomou um gole da água fresca e clara. O
Chizarira era um afluente menor do grande Zambeze, portanto, estava bebendo de
suas águas novamente, como dissera a Henry Pickering que devia fazer. Chazarira
era um nome muito complicado para o turista pronunciar e, mais ainda, para
lembrar. Precisava de um nome para seu pequeno paraíso africano.
- Águas do Zambeze! - exclamou. - Vou chamá-lo de Águas do Zambeze.
Levou um susto ao ouvir uma voz muito perto dizer claramente em matabele:
- Deve ser um maluco - a voz era profunda e melodiosa.
- Primeiro, vem para cá sozinho e desarmado; depois, fica sentado no meio dos
crocodilos e fala com as árvores!
Craig girou o torso e deparou com três homens que haviam saído
silenciosamente da floresta e estavam agora na margem, a pouca distância,
observando-o.
Todos os três vestiam brim desbotado, o uniforme dos guerrilheiros, e as
armas que carregavam com uma casualidade familiar eram fuzis AK 47 com a
característica câmara de munição curva e o cabo laminado.
Brim, AK 47 e matabele, não havia dúvida sobre quem eram. As tropas regulares
do Zimbábue usavam atualmente uniformes de selva ou túnicas, a maioria armamento
da OTAN e falava a língua shona. Aqueles eram membros do disperso Exército
Revolucionário do Povo de Zimbábue. Agora eram rebeldes políticos, que não se
sujeitavam a nenhuma lei, nem a qualquer autoridade superior; homens
transformados por uma longa guerrilha em seres duros e desapiedados, com a morte
estampada nas mãos e nos olhos. Apesar de ter sido advertido, e, na verdade,
estivesse quase certo de que os encontraria, o choque, mesmo assim, deixou-o
nauseado e de boca seca.
- Não temos de levá-lo - disse o mais jovem. - Podemos matá-lo aqui mesmo e
enterrá-lo secretamente. Isso é a mesma coisa que ter um refém - continuou o
rapaz, que Craig calculou não ter nem vinte e cinco anos e que provavelmente já
matara pelo menos um homem para cada ano de vida.
- Os seis reféns que fizemos na estrada das cataratas de Victoria nos deram
problemas durante semanas, e, afinal, tivemos de matá-los - concordou o segundo
guerrilheiro e ambos olharam para o terceiro homem.
Era apenas um pouco mais velho que eles, mas sem dúvida o líder. Uma cicatriz
fina ia do canto da boca e cruzava o rosto até a têmpora, repuxando a boca num
sorriso sardónico e torto.
Craig lembrou-se do incidente de que falavam. Guerrilheiros haviam emboscado
o ônibus de turistas na estrada principal para Victoria e seqüestrado seis
homens canadenses, americanos e um inglês, e os levado para a selva como reféns
para a libertação de presos políticos. Apesar das buscas intensivas da polícia e
das unidades regulares do exército, nenhum deles fora encontrado.
O líder com a cicatriz fitou Craig por algum tempo com os olhos escuros e
mortiços e ajustou com o polegar o disparador do rifle na posição automática.
- Um verdadeiro matabele não mata um irmão de sangue da tribo. - Dizer isso
custou a Craig um enorme esforço para manter a voz firme, sem qualquer vestígio
de terror, e o sindebele era tão fluente e correto que o líder guerrilheiro
olhou-o espantado.
- Uau! Você fala como um homem. E quem é esse irmão de sangue de quem você se
gaba? - disse, com uma expressão surpresa.
- O camarada ministro Tungata Zebiwe - respondeu, e viu no mesmo instante a
expressão nos olhos do homem mudar e a súbita confusão dos outros.
Conseguira colocá-los fora de guarda e adiara a execução por um momento, mas
o rifle do líder ainda estava apontado para ele com o gatilho em automático
mirando-lhe a barriga.
Foi o mais jovem quem rompeu o silêncio, falando alto para encobrir a
insegurança:
- É fácil para um babuíno gritar o nome do leão de juba negra do alto da
colina e reclamar a sua proteção, mas será que o leão reconhece o babuíno? Eu
digo que é melhor matá-lo e acabar com isso.
- Mas ele fala como um irmão - retrucou o líder - e o camarada Tungata é um
homem duro...
Craig compreendeu que sua vida ainda corria um tremendo risco, e tudo o que
era preciso era um empurrãozinho.
- Vou provar para vocês - disse, ainda sem o menor tremor na voz. - Deixem
que eu pegue minha mochila. - Viu o líder hesitar. - Estou nu, não tenho armas,
nem mesmo uma faca, e vocês são três e armados - insistiu.
- Vá! - concordou o matabele. - Mas cuidado. Há muito tempo não mato um homem
e isso está começando a me fazer falta.
Craig levantou-se cautelosamente da água e notou o interesse com que olhavam
para a perna cortada na altura do joelho, e o desenvolvimento muscular que a
compensava na outra perna e no resto do corpo. O interesse transformou-se em
respeito cauteloso quando viram como se deslocava rápida e agilmente com uma
perna só. Chegou à mochila com água escorrendo dos músculos rijos do peito e do
abdome. Viera preparado para esse encontro; tirou a carteira do bolso da frente
e estendeu ao líder um instantâneo colorido.
Na foto, dois homens estavam sentados na capota de um Land- Rover, abraçados
e sorridentes, com latas de cerveja na mão e brindando o fotógrafo. A amizade e
a camaradagem entre eles era evidente.
O guerrilheiro com a cicatriz estudou-a por algum tempo e, por fim, desarmou
o rifle.
- É o camarada Tungata - disse, e estendeu a foto aos outros.
- Talvez - concedeu com relutância o mais jovem -, mas há muito tempo. Ainda
acho que devíamos dar uns tiros nele. - Estas últimas palavras, contudo, foram
ditas num tom menos determinado.
- O camarada Tungata comeria você inteiro sem mastigar - disse o companheiro
em tom definitivo e pendurou o rifle no ombro.
Craig pegou a perna mecânica e num instante prendeu-a ao coto. Imediatamente
os três guerrilheiros ficaram intrigados, deixaram de lado as intenções
assassinas e o cercaram para examinar aquele maravilhoso apêndice.
Conhecendo o amor dos africanos a uma boa piada, bancou o palhaço para eles.
Dançou, fez piruetas com a perna, dobrou-se ao meio sem esforço e finalmente
agarrou o chapéu do mais jovem, embolou-o, e, com um grito dePelé!', chutou-o em
direção aos galhos da figueira com a perna artificial. Os outros dois sapatearam
de alegria e riram até as lágrimas escorrerem diante da perda de dignidade do
jovem ao ter de escalar a árvore para recuperar o chapéu.
Avaliando a situação, Craig abriu a mochila e tirou o cantil de uísque e uma
caneca, servindo uma dose generosa, e estendeu-a ao líder.
O guerrilheiro apoiou o fuzil em um tronco, esvaziou-a em um só trago e
estalou a língua com satisfação. Foi a vez dos outros dois, que beberam com o
mesmo ânimo.
Quando Craig sentou-se sobre a mochila, colocando o cantil à sua frente,
todos deixaram as armas de lado e acocoraram-se em torno.
- Meu nome é Craig Mellow - disse.
- Vamos chamar você de Kuphela - disse-lhe o líder - porque sua perna anda
sozinha. - Os outros aplaudiram, aprovando, e Craig serviu-os de uísque para
celebrar o batismo.
- Eu sou o camarada Sentinela - disse o líder; a maioria dos guerrilheiros
adotava nomes de guerra. - Este é o camarada Pequim. - Uma homenagem aos
instrutores chineses, pensou Craig.
E este é o camarada Dólar. - Ao ouvir isso, teve dificuldade em ficar sério
diante daquela incongruência ideológica.
- Camarada Sentinela, os kanka marcaram você? - Craig sabia que os africanos
gostavam de falar sobre suas cicatrizes de guerra.
- Foi uma baioneta. Acharam que estava morto e me deixaram para as hienas -
respondeu, acariciando a cicatriz.
- E sua perna? - interveio Dólar. - Também foi na guerra?
Uma resposta afirmativa lhes revelaria que lutara contra eles. A reação era
imprevisível, mas Craig calou-se apenas por um segundo antes de responder;
- Pisei em uma de nossas próprias minas.
- Sua própria mina? - E Sentinela morreu de rir com a piada. - Ele pisou na
própria mina! - Os outros também acharam graça, mas não demonstraram qualquer
ressentimento.
- Onde? - quis saber Pequim.
- No rio, entre Kazungula e as quedas de Victoria.
- Ah, sim - concordou. - Era um mau lugar, aquele.
- Cruzamos por lá muitas vezes - lembrou-se Sentinela. - Foi onde lutamos com os
Batedores.
Uma das unidades de elite das forças de segurança fora a dos Batedores de
Ballantyne e Craig lutara nela, nos blindados.
- O dia em que esbarrei com a mina foi quando os Batedores seguiram o seu povo
cruzando o rio. Houve uma luta terrível na margem do lado de Zâmbia e todos os
batedores foram liquidados.
- Puxa! - exclamaram, surpresos. - Nós estávamos lá. Lutamos ao lado do camarada
Tungata nesse dia.
- Que luta, que bela matança quando os encurralamos - lembrou-se Dólar, com um
brilho assassino nos olhos.
- E como lutaram! Aqueles eram homens de verdade!
Craig sentiu o estômago embrulhar-se com a lembrança. Seu primo, Rholand
Ballantyne, liderara os Batedores na travessia do rio naquele dia fatal.
Enquanto jazia despedaçado e sangrando à beira do campo minado, Rholand e todos
os homens lutaram até a morte. Os corpos tinham sido mutilados e desrespeitados
por aqueles homens e agora discutiam isso como se fosse uma inesquecível partida
de futebol.
Serviu-os de mais uísque. Como odiara a eles e a seus camaradas; costumavam
chamá-los deterrs', terroristas. Odiava-os com a abominação que se tem por algo
que ameaça a própria existência e a tudo o que se ama. Mas, agora, por sua vez,
brindou-os com a caneca e bebeu. Ouvira falar de pilotos da RAF e da Luftwaffe
que depois da guerra reuniam-se e trocavam reminiscências, como estavam fazendo,
mais como companheiros do que como inimigos mortais.
- Onde estava quando explodimos os depósitos de reserva e queimamos a
gasolina? - perguntaram.
- Lembra-se quando os Batedores pularam de pára-quedas no nosso acampamento
de Molingushi? Mataram oitocentos de nós naquele dia, e eu estava lá. Mas não
conseguiram me pegar! - rememorou Pequim com orgulho.
Naquele momento, Craig descobriu que já não sentia tanto ódio. Debaixo do
verniz de crueldade e selvageria que a guerra lhes impusera, eram os verdadeiros
matabele que sempre amara; com um irresistível senso de humor, um orgulho
profundo de si mesmos e da tribo, e um grande sentimento de honra e lealdade ao
seu peculiar código moral. Enquanto conversaram, sua simpatia por eles aumentou
e sentiu que o correspondiam.
- Mas o que faz você aqui, Kuphela? Um homem sensato como você entrando no
covil do leopardo sem ao menos uma vara? Deve ter ouvido falar de nós, e mesmo
assim, veio até cá?
- Sim, ouvi falar de vocês. Ouvi dizer que eram homens duros, como os
guerreiros do velho Mzilikazi - respondeu, adulando-os. - Vim até aqui para
encontrá-los e conversar.
- Por quê? - perguntou Sentinela.
- Vou escrever um livro e dizer a verdade sobre vocês, quem são e por que
ainda estão lutando.
- Um livro? - a voz de Pequim soou imediatamente suspeitosa.
- Que espécie de livro? - ecoou Dólar.
- E quem é você para escrever um livro? - disse Sentinela, com desdém. - Você
é jovem demais. Os escritores são grandes e sábios - continuou, pois, como todo
africano quase analfabeto, tinha uma admiração supersticiosa pela palavra
escrita e reverência pelos cabelos brancos.
- Um escritor perneta - zombou Dólar, enquanto Pequim ria e pegava o fuzil,
colocando-o no colo, mostrando como a atmosfera mudara mais uma vez. - Se ele
está mentindo sobre esse livro, então talvez esteja mentindo sobre a amizade com
o camarada Tungata - sugeriu Dólar, com apetite.
Craig prepara-se para isso também. Pegou um grande envelope na mochila e
tirou de dentro uma pilha de recortes de jornais, folheou-os lentamente,
deixando que a descrença desdenhosa se transformasse em curiosidade; escolheu um
e estendeu-o a Sentinela. O seriado adaptado do livro fora exibido dois anos
antes na televisão de Zimbábue, antes que aqueles guerrilheiros voltassem para a
floresta, e tivera um enorme sucesso.
- Uau! É o velho rei, é Mzilikazi! - exclamou Sentinela.
A fotografia que encabeçava o artigo mostrava Craig no estúdio, com membros
da equipe da produção. Os guerrilheiros reconheceram imediatamente o ator negro
americano que fizera o papel do velho rei Mzilikazi, vestido com uma pele de
leopardo e com penas de garça.
- Este é você com o rei. - Não tinham ficado tão impressionados nem mesmo com
a foto de Tungata.
Havia outro recorte, uma fotografia tirada na livraria da Doubleday, na
Quinta Avenida, com Craig ao lado de uma enorme pirâmide de livros, e um poster
seu, com a capa do livro servindo de fundo.
- Este é você? Você escreveu aquele livro? - perguntaram, parecendo realmente
espantados.
- E agora, acreditam? - perguntou, mas Sentinela examinou as provas
cuidadosamente antes de aceitá-las.
Os lábios moviam-se enquanto lia lentamente o texto dos artigos, e, quando
entregou-os a Craig, disse sério:
- Kuphela, apesar de sua juventude, você é realmente um escritor importante.
Estavam, agora, pateticamente ansiosos para despejar todas as suas queixas,
como requerentes num indaba tribal, onde os casos eram ouvidos e julgados pelos
mais velhos das tribos. Enquanto falavam, o sol ascendeu no céu azul e
imaculado, alcançou o pináculo e começou a majestosa descida para o crepúsculo.
O que contaram era a tragédia da África, as barreiras que dividiam aquele
continente grandioso e que continham todas as sementes da violência e do
desastre, a única doença incurável que infestara a todos - o tribalismo.
Ali, era matabele contra mashona.
- Os comedores de coisas imundas - assim os chamava Sentinela - são como os
morcegos nas cavernas, os covardes nas colinas fortificadas, os chacais que só
mordem quando se está de costas.
Era o desprezo do guerreiro pelo mercador, do homem de ação direta pelo
astuto negociante e político.
- Desde que o grande Mzilikazi cruzou pela primeira vez o rio Limpopo, os
mashona foram os nossos cães, amaholi, escravos e filhos de escravos.
Essa história de expansão e de domínio de um grupo pelo outro não era
limitada ao Zimbábue, mas, através dos séculos, acontecera em todo o continente.
Mais para o norte, os dominadores masai atacaram e aterrorizaram os kikuiu que
não tinham tradição guerreira; os gigantes watusi, que consideravam qualquer
homem com menos de dois metros e dez anão, haviam escravizado os pacíficos hutu.
Em cada um desses casos, os escravos compensaram a falta de ferocidade pela
astúcia política e, assim que a proteção do colonialismo branco foi retirada,
massacraram seus algozes, como os hutu tinham feito aos watusi, ou corromperam a
doutrina do governo de Westminster ignorando os freios e mecanismos de
equilíbrio que tornaram o sistema equilibrado, e usando a superioridade numérica
para colocar os antigos senhores em uma posição de jugo político, como os kikuiu
fizeram com os masai.
Exatamente o mesmo processo estava em curso ali no Zimbábue. Os colonos
brancos tornaram-se inconseqüentes e delegaram a um segundo plano a guerrilha e
os conceitos de integridade e jogo limpo impostos pelos administradores, e todos
os funcionários negros foram demitidos por eles.
- Há cinco mashona comedores de coisas imundas para cada indoda matabele -
disse Sentinela amargamente para Craig. - Mas por que isso lhes dá o direito de
nos dominar completamente? Cinco escravos devem ditar leis para um rei? Se cinco
babuínos guincham, o leão de juba-negra deve tremer?
- É assim que se faz na Inglaterra e na América - respondeu Craig em tom
conciliador. - A vontade da maioria deve predominar.
- Mijo em cima da vontade da maioria - e Sentinela com um gesto liquidou com
a doutrina da democracia. - Essas coisas podem funcionar na Inglaterra e na
América, mas isto é a África. Eles não trabalham aqui e eu não vou dobrar-me à
vontade de cinco comedores de porcaria. Não, nem à vontade de cem deles ou de
mil. Sou um matabele e apenas um homem me comanda: um rei matabele.
Sim, pensou Craig, isso é a África. A velha África despertando do transe
induzido por cem anos de colonialismo e revertendo imediatamente aos velhos
costumes.
Pensou nos milhares de jovens ingleses que por uma recompensa financeira
muito pequena tinham vindo passar a vida no Serviço Colonial, batalhando para
instilar em seus relutantes tutelados o respeito pela ética protestante de
trabalho, pelos ideais de integridade e pelo governo de Westminster. Eles
regressaram à Inglaterra prematuramente envelhecidos e com a saúde arruinada
para receberem uma pensão miserável e a crença de que tinham dado suas vidas por
algo valioso e duradouro. Será, pensou Craig, que jamais chegaram a suspeitar
que tudo fora em vão?
O sistema colonial estabelecera fronteiras claras e ordenadas. Seguiam um
rio, a margem de um lago, ou a crista de uma serra e onde eles não existiam um
supervisor branco usava um teodolito para traçar uma linha através da selva.
Desse lado ficava a África Oriental alemã, e desse, o inglês. Mas não tomaram o
menor conhecimento das tribos que estavam dividindo ao meio e fincaram suas
cercas.
- Muitos do nosso povo vivem do outro lado do rio, na África do Sul. Se
estivessem conosco, as coisas seriam diferentes. Haveria mais de nós, mas agora
estamos divididos - queixou-se Pequim.
- E os shona são espertos, tão espertos quanto os babuínos que atacam as
plantações de milho à noite. Sabem que apenas um de nossos guerreiros mataria
cem deles, então, quando nos revoltamos, usaram os soldados do governo de Smith
que ficaram aqui...
Craig lembrou-se da alegria dos amargos soldados brancos que achavam que não
tinham sido derrotados, mas traídos, quando o governo de Mugabe os lançara
contra a facção matabele rebelde.
- Os pilotos brancos trouxeram em seus aviões as tropas brancas do Regimento
Rodesiano...
Depois da luta, os pátios de carga da estação de Bulawayo tinham ficado
coalhados de caminhões refrigerados, cheios até o teto com cadáveres matabele.
- Os soldados brancos fizeram o serviço para eles, enquanto Mugabe e seus
rapazes corriam de volta para Harare, tremendo e fungando, para se esconderem
debaixo da saia das mulheres. E depois que os brancos tiraram nossas armas,
vieram pavoneando-se para cima de nós como conquistadores.
- Desonraram nossos líderes...
Nkomo, o líder matabele, fora acusado de dar abrigo a rebeldes, de acumular
armas e fora levado à desgraça por um isolamento forçado pelo governo dominado
pelos mashona.
- Eles têm prisões secretas na selva para onde levam nossos líderes -
continuou Pequim. - Fazem lá coisas com nossos homens que não dá nem para
contar.
- Agora, que estamos sem armas, as unidades especiais ficam correndo as
aldeias, batem nos velhos e nas mulheres, estupram as moças e levam os rapazes e
nunca mais se houve falar neles.
Craig vira no jornal uma fotografia de três homens com o antigo uniforme azul
e cáqui da polícia britânica da África do Sul, um uniforme que por muito tempo
simbolizara a honra e a integridade, fazendo interrogatórios nas aldeias. Na
foto, um matabele estava estendido de bruços, nu e com as pernas e braços
estendidos. Um dos policiais estava em pé sobre suas mãos abertas para o impedir
de mexer-se; os outros dois o espancavam com cacetetes. A legenda dizia:
A polícia de Zimbábue interroga suspeito tentando descobrir o paradeiro de
turistas americanos e ingleses aprisionados como reféns pelos dissidentes
matabele.
Não havia nenhuma foto sobre o que faziam com as moças.
- Talvez as tropas do governo estivessem procurando pelos reféns que vocês
mesmos admitiram ter capturado. Há pouco, vocês estavam bem felizes com a idéia
de me matar ou de me transformar em refém também - disse Craig, mordaz.
- Os shona começaram com isso muito antes de termos capturado nosso primeiro
refém - retrucou Sentinela.
- Mas vocês estão capturando inocentes, matando fazendeiros brancos -
insistiu Craig.
- E o que mais podemos fazer para que o mundo fique sabendo o que está
acontecendo com nosso povo? Os nossos poucos líderes, que não foram aprisionados
ou silenciados, estão impotentes. Não temos armas a não ser as poucas que
conseguimos esconder, nem amigos poderosos, enquanto os shona têm aliados
chineses, ingleses e americanos. Não temos dinheiro para continuar a luta; eles
têm todo o apoio do país e os milhões de dólares que esses amigos poderosos lhes
dão.
Craig decidiu prudentemente que não era nem a hora nem o lugar para uma
conferência sobre moralidade política; em seguida, pensou com ironia: talvez
minha moralidade seja antiquada. Havia um novo expediente político nos problemas
internacionais que tornara-se aceitável: o direito das minorias impotentes e sem
voz ativa chamar violentamente a atenção para a própria desgraça. Dos palestinos
e separatistas bascos aos terroristas da Irlanda do Norte, que jogaram bombas em
jovens soldados britânicos a cavalo numa rua de Londres, havia uma nova
moralidade no mundo, sem dúvida. Com esses exemplos e com a própria experiência
em conseguir mudanças políticas pela violência, aqueles jovens eram os frutos
dessa nova moralidade.
Apesar de jamais aceitar esses métodos, nem mesmo se vivesse cem anos,
descobriu relutante que sentia simpatia por seus sofrimentos e aspirações.
Sempre houvera um laço estranho, às vezes sangrento, entre sua família e os
matabele. Uma tradição de respeito e compreensão por aqueles que podiam ser
amigos fiéis ou inimigos terríveis; uma raça aristocrática, orgulhosa e
guerreira que merecia mais do que recebia atualmente.
Havia em Craig um traço elitista que odiava ver um Guliver tornado impotente
por liliputianos. Odiava a política da inveja e a perversidade do socialismo
que, achava, procurava esmagar os heróis e reduzir todo homem excepcional ao
nível comum e cinzento da massa, substituir a verdadeira liderança pelos
grunhidos imbecis dos sindicalistas, emascular toda a iniciativa com esquemas
punitivos de taxação, para depois tanger um rebanho de gente entorpecida e
submissa para a prisão do totalitarismo marxista.
Aqueles homens eram terroristas, Robin Hood também fora, mas, pelo menos, com
alguma classe e estilo.
- Vai visitar o camarada Tungata? - perguntaram com uma ansiedade quase tocante.
- Sim. Vou vê-lo em breve.
- Diga-lhe que estamos aqui, prontos e à espera.
- Vou lhe dizer - concordou Craig.
Caminharam de volta com ele até onde deixara o Volks e o camarada Dólar insistiu
em carregar a mochila. Quando chegaram ao local onde estava o carro empoeirado e
meio amassado, amontoaram-se dentro, com os canos dos AK 47 saindo fora das
janelas.
- Vamos com você até a estrada das cataratas de Victoria - explicou Sentinela. -
Se encontrar outra de nossas patrulhas sozinho, pode ser dureza para você.
Alcançaram a Grande Estrada do Norte, asfaltada, já bem depois do anoitecer.
Craig tirou da mochila tudo o que sobrara de comida e o resto do uísque; juntou
a isso os duzentos dólares que tinha na carteira e deu-lhes de presente,
aumentando o butim. Em seguida, trocaram apertos de mão.
- Diga ao camarada Tungata que precisamos de armas - disse Dólar.
- Diga-lhe que, mais do que armas, precisamos de um líder. - O camarada
Sentinela apertou a mão de Craig com a saudação da palma e polegar reservada aos
amigos de confiança. - Vá em paz, Kuphela. Que a perna que caminha sozinha o
leve sempre avante - acrescentou.
- Fique em paz, meu amigo - disse Craig.
- Não, Kuphela, deseje-me uma luta sangrenta! - e o rosto desfigurado de
Sentinela retorceu-se num sorriso temível à luz dos faróis.
Ao olhar para trás, haviam desaparecido, tão silenciosos como leopardos na
escuridão.

- NÃO TERIA aceito nenhuma aposta se veria você de novo - saudou-o Jock Daniels
quando entrou no escritório de leilões na manhã seguinte. - Conseguiu chegar em
Chizarira ou será que o bom senso venceu?
- Ainda estou vivo, não é? - retrucou Craig, fugindo à pergunta.
- Bom, sabe que é uma loucura envolver-se com aqueles shufta matabele, são todos
uns bandidos. - Jock balançou a cabeça.
- Teve alguma notícia de Zurique?
- Só mandei o telex hoje às nove horas. Eles estão uma hora atrás de nós, em
relação ao fuso horário.
- Posso usar o telefone para fazer umas ligações pessoais?
- Chamada local? Não gostaria que ficasse batendo papo com seus amiguinhos de
Nova York às minhas custas.
- Claro que sim.
- Está certo, conquanto que você cuide das coisas por aqui enquanto dou uma
saída.
Craig instalou-se na escrivaninha de Jock e consultou as anotações em código que
tirara do dossiê de Henry Pickering.
A primeira chamada foi para a Embaixada Americana em Harare, a capital, que
ficava a quase seiscentos quilômetros a nordeste de Bulawayo.
- Por favor, gostaria de falar com o sr. Morgan Oxford, o adido cultural - disse
à telefonista.
- Oxford falando - disse em seguida uma voz com nítido sotaque bostoniano.
- Aqui é Craig Mellow. Um amigo comum pediu-me que ligasse para transmitir-lhe
seus cumprimentos.
- Sim, estava aguardando seu telefonema. Não quer aparecer por aqui uma hora
dessas para dizer alô?
- Será um prazer - disse Craig, e desligou.
Henry Pickering tinha palavra. Qualquer mensagem transmitida a Oxford seguiria
pela mala diplomática e estaria em sua escrivaninha doze horas mais tarde.
A chamada seguinte foi para o escritório do ministro de Turismo e Informação, e
conseguiu finalmente falar com a secretária, cuja atitude mudou quando dirigiu-
se a ela em sindebele.
- O camarada ministro está aqui em Harare para a reunião do Parlamento - e deu-
lhe o número particular que usava no Congresso.
Craig conseguiu falar com uma secretária parlamentar depois de quatro
tentativas, notando que o sistema de telefones estava começando lentamente a
deteriorar. A praga de todos os países em desenvolvimento era a falta de mão-de-
obra qualificada; antes da independência, todos os mecânicos eram brancos e, a
partir daí, a maioria fora embora.
A secretária era mashona e insistiu em falar inglês, para provar sua
sofisticação.
- Por favor, qual é o assunto que tem a tratar com o ministro? - perguntou,
obviamente lendo em um formulário impresso.
- É um assunto de natureza pessoal. Conheço pessoalmente o camarada ministro.
- Ah, sim. P-e-z-o-a-1 - soletrou cuidadosamente a secretária enquanto tomava
nota.
- Não, p-e-s-s-o-a-1 - corrigiu-a pacientemente Craig que estava se
reacostumando ao ritmo dos africanos.
- Vou consultar a agenda do camarada ministro. O senhor terá que telefonar
novamente.
Craig consultou sua lista. O telefonema seguinte foi para o Registro
Governamental de Companhias e daquela vez teve sorte. Foi atendido por um
funcionário eficiente e solícito que tomou nota do requerimento.
- O registro das ações, artigos e memorandos da Companhia Comercial Rholands
LTDA., antes registrada como Companhia Rodesiana de Terras e Mineração LTDA. -
e, ao ouvi-lo, Craig percebeu a desaprovação do funcionário à palavra rodesiana,
que soava como um palavrão naqueles dias, tomando a decisão mental de mudar o
nome da companhia, se conseguisse algum dia poder para isso; Zimlands soaria
muito melhor aos ouvidos africanos. - Sim, terei cópias xerocadas para o senhor
às quatro horas - continuou o funcionário. - A taxa de pesquisa é de quinze
dólares.
A próxima chamada foi para o escritório do superintendente geral, onde tornou
a encomendar cópias de documentos, dessa vez dos títulos das propriedades da
companhia, os ranchos King's Lynn, Queen's Lynn e das terras de Chizarira.
Havia ainda quatorze nomes na lista, todos de fazendeiros de Matabeleland que
estavam lá quando partira, amigos chegados e vizinhos da família, gente em quem
o avô Bawu confiara e de quem gostara.
Dos quatorze, conseguiu localizar apenas quatro; os outros tinham vendido
tudo e tomado a longa estrada para o sul. As famílias que haviam restado
pareciam sinceramente satisfeitas em ter notícias dele.
- Seja bem-vindo, Craig. Todos nós lemos o livro e vimos o seriado na
televisão. - Mas fechavam-se, mal começava a fazer perguntas. - Este telefone
está mais vazado que uma peneira. Venha jantar aqui no rancho e passe a noite
conosco. Há sempre um quarto à sua disposição, Craig. Deus sabe que já não há
muita gente dos velhos tempos por aqui - disse um deles.
Jock Daniels voltou no meio da tarde, de cara vermelha e suarento.
- Ainda gastando meu dinheiro em telefonemas? - resmungou. - Será que a loja
ainda tem outra garrafa daquele Dimple Haig?
Craig correspondeu a essa sutileza atravessando a rua e trazendo uma garrafa
num saco de papel.
- Esqueci que a gente tem de ter um fígado de ferro nesta terra - disse,
enquanto a abria e jogava o envoltório metálico na cesta de papel.
Às cinco, ligou novamente para o escritório parlamentar do ministro.
- O camarada ministro Tungata Zebiwe consentiu em recebê-lo às dez horas da
manhã de sexta-feira. Pode dispor de vinte minutos.
- Por favor, transmita ao ministro meus sinceros agradecimentos.
Isso dava-lhe três dias ainda pela frente e significava que teria de dirigir
os mais de quinhentos quilômetros até Harare.
- Nenhuma resposta de Zurique? - perguntou e encheu novamente o copo de Jock.
- Se tivesse me feito uma oferta dessas, eu também não me daria ao trabalho
de responder - grunhiu Jock, tirando-lhe a garrafa das mãos e enchendo mais o
copo.
Nos dias que se seguiram, Craig atendeu aos convites para visitar os velhos
amigos de Bawu e quase foi sufocado pela velha hospitalidade rodesiana.
- Claro que não se tem mais todos aqueles luxos, as geléias Crosse e
Blackwell ou os sabonetes Bronnley - explicou-lhe uma das anfitriãs enchendo-lhe
o prato de comida saborosa -, mas, de alguma maneira, é divertido arranjar
substitutos - concluiu, fazendo um sinal ao empregado de túnica branca para
reabastecer a travessa de prata com mais batatas-doces assadas.
Passou os dias com homens bronzeados e de fala mansa, com chapéus de feltro
de abas largas e shorts cáqui, examinando o gado luzidio e gordo, sentado em um
Land-Rover sem capota.
- A carne de Matabeleland ainda não tem rival - disseram-lhe com orgulho. -
Essas são as melhores pastagens do mundo. Claro que temos que exportá-la através
da África do Sul, mas os preços são ótimos. Estou contente por ter ficado. Tive
notícias do velho Dereck Sanders na Nova Zelândia, está trabalhando como
empregado em uma fazenda de carneiros e levando uma vida muito dura. Não há
matabele por lá para fazer o trabalho pesado. - Olhou para os vaqueiros negros
com afeição paternal. - Ainda são os mesmos, apesar de toda essa conversa mole
política. São o sal da terra, meu rapaz. São a minha gente, sinto que são parte
da família, e estou contente por não ter desertado.
- Claro que há problemas - disse-lhe um dos anfitriões. - A importação é um
problema e tanto, é difícil conseguir peças de trator e medicamentos para o
gado, mas o governo de Mugabe está começando-a acordar para o fato. Como
produtores de alimento, estamos recebendo prioridade nas licenças para importar
produtos essenciais. Os telefones só funcionam quando bem entendem e os trens já
não andam no horário. A inflação é grande, mas os preços da carne a acompanham.
Eles reabriram as escolas, mas mandamos nossos garotos para o sul, para o outro
lado da fronteira, para que tenham uma educação decente.
- E a política?
- Isso é entre os negros, os matabele e os mashona. Graças a Deus que os
brancos estão fora disso. Deixe que os filhos da mãe se arranquem pedaços uns
dos outros, se é o que querem. Não meto o nariz nisso e não é uma vida ruim;
claro que não é mais como nos velhos tempos, mas nunca é, não é mesmo?
- Você compraria mais terras?
- Não tenho dinheiro para isso, meu rapaz.
- E se tivesse?
- Talvez se possa fazer disso um dia uma mina de ouro, se o país seguir um
bom caminho, com o preço atual das terras; ou se poderia perder tudo, se o país
enveredar por outro - disse o fazendeiro pensativamente, esfregando o nariz.
- Pode-se dizer a mesma coisa do mercado de ações, mas, nesse meio tempo, é
uma vida boa?
- É uma vida boa; e, que diabo, fui amamentado com as águas do Zambeze. Não acho
que seria feliz respirando o smog de Londres ou espantando moscas no interior da
Austrália.
Na manhã de quinta, Craig dirigiu de volta ao motel, apanhou a roupa limpa,
tornou a arrumar a mochila e pagou a conta, indo a seguir até o escritório de
Jock.
- Alguma notícia de Zurique?
- Chegou um telex há uma hora - e estendeu-lhe o papel que Craig leu avidamente.
Daremos a seu cliente uma opção de trinta dias para adquirir todas as ações da
Companhia Rholands por meio milhão de dólares a serem pagos em Zurique por
ocasião da assinatura de venda. Nenhuma outra oferta será aceita.
Não podiam ser mais definitivos. Bawu dissera para sempre dobrar suas
estimativas, e, até ali, estava certo.
- O dobro de sua oferta original - disse Jock, que o estava observando. - Pode
arranjar meio milhão?
- Vou ter de falar com meu tio rico - brincou Craig. - E, de qualquer maneira,
tenho trinta dias. Vou estar de volta antes disso.
- Onde é que eu posso me comunicar com você? - perguntou Jock.
- Eu me comunico com você.
Pediu mais gasolina do estoque particular de Jock, foi com o Volkswagen para a
estrada em direção ao nordeste, para Mashonaland e Harare, e encontrou o
primeiro bloqueio de estrada a uns dezesseis quilômetros fora da cidade.
Quase como nos velhos tempos, pensou, enquanto parava no acostamento. Dois
soldados negros vestidos em uniformes de camuflagem revistaram o Volks à procura
de armas com cuidadosa determinação enquanto um tenente com a boina da Terceira
Brigada, que fora treinada na Coréia, examinava seu passaporte.
Mais uma vez, Craig rejubilou-se com o fato de que todas as mulheres grávidas da
família, tanto do lado dos Mellow como dos Ballantyne, eram enviadas à
Inglaterra para o parto. O caderninho azul, com o leão e o unicórnio dourados e
a divisa Honi Soit Qui Mal y Pense gravados na capa, ainda exigia uma certa
deferência mesmo de um bloqueio de estrada.
Já era quase final da tarde quando chegou ao topo das colinas e olhou lá embaixo
o pequeno amontoado de arranha-céus que levantavam-se tão incongruentemente do
campo africano como pedras fundamentais da crença na imortalidade do império
britânico.
A cidade, que teve um dia o nome de Lord Salisbury, o secretário do Exterior
que negociou a Carta Real da Companhia Britânica da África do Sul, voltara a ter
o nome de Harare em homenagem ao chefe tribal shona cujo povoado de cabanas de
barro e palha havia sido encontrado pelos pioneiros brancos naquele local, em
setembro de 1890, ao completarem a longa expedição vinda do sul. As ruas também
haviam mudado de nome, dos que comemoravam os pioneiros brancos e o império de
Victoria para os dos filhos da revolução negra e seus aliados, a mesma rua com
qualquer outro nome, resignou-se Craig.
Ao entrar na cidade, descobriu que reinava nela uma atmosfera de cidade em
boom. As calçadas estavam apinhadas com uma multidão negra e barulhenta e no
saguão do moderno prédio de dezesseis andares do Hotel Monomatapa ressoavam
dezenas de línguas e dialetos diferentes, em meio aos turistas que se
acotovelavam com os banqueiros e homens de negócio em visita, dignatários
estrangeiros, funcionários civis e conselheiros militares.
Não havia vaga para Craig até conseguir falar com um subgerente que assistira
o seriado de televisão e lera o livro. Foi levado, afinal, a um quarto no décimo
quinto andar com vista para o parque. Enquanto tomava banho, uma procissão de
garçons entrou, trazendo flores, cestos de frutas e uma garrafa, ofertada pelo
hotel, de champanhe sul-africano. Trabalhou até depois da meia-noite no
relatório para Henry Pickering, e estava no prédio do Parlamento em Causeway às
nove e meia da manhã seguinte.
A secretária do ministro deixou-o esperando por quarenta e cinco minutos
antes de introduzi-lo no escritório onde o camarada ministro Tungata Zebiwe
levantou-se da escrivaninha para cumprimentá-lo.
Craig esquecera como era poderosa a presença daquele homem ou talvez sua
estatura tivesse aumentado desde o último encontro. Ao lembrar-se de que um dia
Tungata fora seu criado, o rapaz que carregava sua espingarda na época em que
era um patrulheiro do Departamento de Preservação Animal, pareceu-lhe que isso
acontecera em outra existência. Naqueles dias, seu nome era Samson Kumalo, o
nome da dinastia real dos reis matabele dos quais era descendente direto. Bazo,
o bisavô, fora o líder da rebelião matabele de 1896 e morreu enforcado pelos
colonos por sua participação nela. O trisavô Gandang fora meio-irmão de
Lobengula, o último rei matabele, que sofrera morte ignóbil nas mãos dos
soldados de Rhodes e ficara sem sepultura nas selvas do norte, depois que esses
haviam destruído sua capital, Bulawayo, o local da matança.
Seu sangue era real e o porte ainda era o de um rei. Mais alto que Craig, com
bem mais de um metro e oitenta, e esbelto, sem qualquer traço de corpulência, o
que era com freqüência uma característica dos matabele, o físico de ombros
largos e estômago chato estava realçado à perfeição pelo corte do terno italiano
de seda. Fora um dos mais bem-sucedidos guerrilheiros durante a guerra e ainda
era um guerreiro, quanto a isso não havia dúvidas. Craig sentiu um prazer em vê-
lo novamente.
- Eu o saúdo, camarada ministro - disse em sindebele, evitando ter de
escolher entre o velho e familiar Sam e o nome de guerra que usava agora,
Tungata Zebiwe, que significava "O que procura a justiça".
- Eu o mandei embora uma vez. Desfiz todas as dívidas que haviam entre nós, e
o mandei embora - respondeu Tungata na mesma língua. Não havia um brilho
recíproco de prazer nos olhos escuros e mortiços, o queixo quadrado tinha uma
expressão dura.
- Sou grato pelo que fez - e Craig manteve o semblante sério, para ocultar o
prazer que sentia.
Fora Tungata quem assinara uma ordem ministerial especial permitindo que
levasse para o exterior o iate que ele mesmo construíra, o Bawu. Diante do rigor
das leis de exportação, que proibiam a retirada até de uma geladeira ou de uma
cama de metal, na época, o iate era a única coisa que Craig possuía e ainda
restava, com a explosão da mina, confinado a uma cadeira de rodas.
- Não quero sua gratidão - disse Tungata, mas havia algo por trás dos olhos
cor de canela que Craig não conseguia adivinhar.
- E nem a amizade que ainda lhe ofereço? - perguntou gentilmente.
- Tudo isso morreu no campo de batalha - respondeu Tungata. - Foi arrastado
pela torrente de sangue. Você escolheu partir e, agora, por que voltou?
- Porque esta é a minha terra.
- Sua terra? Fala como um colono branco. Como um dos soldados assassinos de
Rhodes. - Viu o branco dos olhos de Tungata tingir-se do avermelhado da cólera.
- Não quis dizer isso nesse sentido.
- Sua gente conquistou a terra com os fuzis apontados e foi diante de fuzis
apontados que se renderam. Nunca mais fale que esta terra lhe pertence.
- Você odeia quase tão bem quanto lutou - disse-lhe Craig, começando a sentir
a própria raiva comichar-lhe nos olhos -, mas não voltei para odiar. Voltei
porque meu coração me trouxe de volta, porque senti que podia ajudar a
reconstruir o que foi destruído.
Tungata sentou-se atrás da escrivaninha e colocou as mãos sobre o mata-borrão
branco. Eram muito escuras e poderosas e contemplou-as em um silêncio que se
estendeu por alguns segundos.
- Você esteve em King's Lynn - disse Tungata, quebrando afinal o silêncio, e
Craig estremeceu. - E depois foi para o norte até Chizariia.
- Seus olhos são vivos - anuiu Craig. - Vêem tudo.
- Você pediu cópias dos títulos de propriedade dessas terras. - E, de novo,
ficou surpreso, mas manteve-se em silêncio. - Até você deve saber que precisa da
aprovação do governo para comprar terras em Zimbábue. Precisa declarar o uso que
pretende fazer dela e o capital de que dispõe para geri-la.
- Sim, até eu sei disso - concordou Craig.
- E, assim, vem me procurar para protestar sua amizade - e Tungata olhou-o. -
Então, como um velho amigo, pede-me outro favor, não é?
Craig fez com as mãos um gesto resignado.
- Um fazendeiro branco numa terra que poderia sustentar cinqüenta famílias
matabele. Um fazendeiro branco ficando gordo e rico enquanto os criados vestem
trapos e comem os restos que ele lhes atira - Tungata concluiu com zombaria, e
Craig retrucou imediatamente:
- Um fazendeiro branco trazendo milhões em capital para um país que está
faminto por ele; um fazendeiro branco empregando dezenas de matabele,
alimentando-os, vestindo-os e educando seus filhos; um fazendeiro branco
produzindo alimento bastante para dez mil matabele, e não apenas uns meros
cinqüenta. Um fazendeiro branco que ama sua terra, a protege das cabras e da
seca, para que seja produtiva por quinhentos anos e não cinco. - Craig deixou
que a raiva se manifestasse, encarando Tungata também, de pé, apoiado na
escrivaninha.
- Você está acabado por aqui - rosnou Tungata. - O kraal está fechado para
você. Volte para o seu barco, sua fama e suas mulheres bajuladoras. E fique
contente por termos tirado só uma perna de você; antes que arranquemos sua
cabeça também. - Olhou para o relógio de pulso de ouro. - Nada mais tenho a lhe
dizer - concluiu, levantando-se, mas por trás do olhar hostil e duro, Craig
percebeu que aquela coisa indefinível ainda estava lá e tentou sondá-la; uma
desesperança, um pesar profundo, talvez mesmo um sentimento de culpa ou uma
mistura de tudo isso.
- Então, antes de ir, tenho de lhe dizer mais uma coisa - e Craig aproximou-
se da escrivaninha, abaixando o tom de voz. - Sabe que estive em Chizarira.
Encontrei lá três homens chamados Sentinela, Pequim e Dólar que me pediram que
lhe transmitisse um recado...
E não pôde mais prosseguir porque a raiva de Tungata transformou-se numa
fúria cega. Começou a tremer, o olhar ficou vidrado e os músculos do queixo,
retesados.
- Silêncio - sibilou em voz baixa, num esforço hercúleo para controlar-se. -
Você está se metendo em assuntos que não compreende, e que não lhe dizem
respeito. Deixe esta terra antes que seja esmagado por eles.
- Vou embora - disse Craig -, mas só depois que minha solicitação para
comprar terras for oficialmente negada.
- Então, vai partir logo - replicou Tungata. - É uma promessa que faço a
você.
No estacionamento, o Volks cozinhava ao sol da manhã. Craig abriu as portas,
e, enquanto esperava que o interior refrescasse, descobriu que estava tremendo,
numa reação retardada ao confronto com Tungata Zebiwe. No departamento de caça,
depois de abater um leão devorador de gente ou um elefante depredador de
plantações, tinha a mesma reação de queda da adrenalina. Sentou-se ao volante,
e, enquanto recuperava o controle, tentou ordenar as impressões que tivera do
encontro e ver o que apreendera delas.
Obviamente, estivera sob vigilância de uma das agências de inteligência do
governo desde que chegara em Matabeleland. Talvez estivessem lhe dispensando
toda essa atenção por ser um escritor famoso. Provavelmente, cada movimento seu
fora relatado a Tungata.
Entretanto, não conseguia perceber as verdadeiras razões para a violenta
oposição de Tungata aos seus planos. As que dera eram mesquinhas e desprezíveis,
e Samson Kumalo nunca fora mesquinho ou desprezível. Estava certo de haver
percebido um estranho conflito de emoções por trás da recepção hostil, e que
havia correntezas profundas nas águas em que começara a navegar.
Lembrou-se da reação de Tungata à menção sobre os três homens que encontrara
na mata de Chizarira. Tungata havia reconhecido os nomes e a reprimenda fora
muito violenta para ter vindo de uma consciência tranqüila. Havia muita coisa
ainda que Craig gostaria de saber, e muita que Henry Pickering acharia
interessante.
Deu partida no carro e dirigiu devagar de volta ao Monomatapa pelas avenidas
tão amplas que permitiriam a um carro atrelado a uma junta de seis bois dar
meia-volta sem problemas.
Era meio-dia quando entrou no quarto do hotel. Abriu o bar e pegou a garrafa
de gim, recolocou-a em seguida no lugar, sem abri-la, e telefonou para a copa,
pedindo café. O hábito de beber de dia tinha-o acompanhado de Nova York e sabia
que contribuíra muito para a sua falta de propósitos; ia mudar isso.
Sentou-se na escrivaninha perto da janela e ficou contemplando os grandes
jacarandás do parque enquanto ordenava os pensamentos e, em seguida, pegou a
caneta para atualizar o relatório que iria enviar para Henry Pickering. Anotou
inclusive suas impressões sobre o envolvimento de Tungata com os dissidentes de
Matabeleland e sua oposição irada à solicitação para a compra de terras.
Isso levou-o a acrescentar um pedido de financiamento e os dados, os cálculos
de despesa, a opinião que tinha sobre o potencial da Rholands e os planos sobre
Chizarira. Procurou passar a idéia da forma mais favorável possível. Jogando com
o interesse declarado de Henry Pickering pelo turismo em Zimbábue, estendeu-se
longamente sobre o projeto Águas do Zambeze como atração turística.
Colocou os papéis em dois envelopes diferentes, lacrou-os e foi dirigindo até
a embaixada americana. Sobreviveu ao exame do fuzileiro, de guarda dentro de uma
cabine de segurança, e ficou esperando que Morgan Oxford viesse identificá-lo.
O adido cultural foi uma surpresa para Craig. Tinha uns trinta e poucos anos,
como ele, mas o físico de um atleta universitário, de cabelos aparados, olhos de
um azul penetrante e um aperto de mão firme, que sugeria muito mais força do que
demonstrava.
Conduziu-o até um pequeno escritório nos fundos e recebeu os dois envelopes
sem comentários.
- Pediram-me que o apresentasse a algumas pessoas - disse. - Esta noite, vai
haver uma recepção e um coquetel na casa do embaixador francês. É um bom lugar
para se começar. Das seis às sete, está bem?
- Ótimo.
- Está no Mono ou no Meikles?
- No Monomatapa.
- Pego você às quinze para as seis.
Craig notou a maneira militar com que se expressava, e pensou com ironia -
adido cultural, hein?

MESMO SOB O regime socialista de Mitterrand, os franceses conseguiam dar uma


mostra característica de élan. A recepção estava ocorrendo nos jardins da
residência do embaixador, com a bandeira francesa ondulando alegremente na leve
brisa do entardecer e o perfume das flores de frangipani criava uma sensação
refrescante depois do calor intenso do dia. Os criados vestiam kanza brancos até
os tornozelos com um fez e cintos vermelho-carmesim, serviam champanhe Bollinger
e foie gra as acompanhado de biscoitos, ambos do Périgord. A banda da polícia
tocava operetas italianas com uma exuberante batida africana, debaixo das
árvores spathodea, e apenas os multicoloridos convidados diferenciavam a reunião
de um garden party do governador-geral da Rodésia a que Craig assistira seis
anos antes.
Os chineses e os coreanos eram os mais numerosos e os que mais atenção
chamavam, comprazendo-se com sua posição especial perante o governo. Tinham sido
a ajuda mais constante e o maior apoio material às forças shona durante a longa
guerrilha, enquanto os soviéticos tinham cometido um raro erro de julgamento ao
cortejarem a facção matabele, fato que o governo de Mugabe não esqueceu e os
fazia expiar por isso.
Cada grupo parecia incluir ao menos uma figura oriental trajando pijama
amarrotado, que sorriam e balançavam os longos e lisos cabelos, como caricaturas
dos antigos mandarins, enquanto os russos formavam apenas um pequeno grupo
próprio e os que usavam uniformes eram oficiais de divisas baixas - não havia
sequer um coronel entre eles, notou Craig.
Morgan Oxford apresentou-o ao casal anfitrião. A embaixatriz era pelo menos
trinta anos mais moça que o marido, e usava um vestido estampado Pucci com
verdadeira elegância parisiense.
- Enchanté, madame - disse Craig beijando-lhe a mão e, quando endireitou-se,
ela lançou-lhe um olhar lento e especulativo antes de saudar o próximo convidado
da fila.
- Pickering me preveniu de que você é meio conquistador - repreendeu-o
gentilmente Morgan -, mas não vamos provocar um incidente diplomático.
- Está certo, fico com uma taça de champanhe.
Com as taças nas mãos, ficaram observando o gramado. As senhoras das
repúblicas centrais africanas estavam com as roupas tradicionais de seus países,
uma barafunda maravilhosa de cores como uma nuvem de borboletas da floresta. Os
homens traziam nas mãos bengalas profusamente esculpidas ou espanta-moscas
feitos com caudas de animais, e os muçulmanos traziam à cabeça um fez bordado e
com borlas que mostravam que eram hadji, pois tinham feito a peregrinação à
Meca.
Descanse em paz, Bawu, pensou Craig lembrando-se do avô, o arquicolonialista.
É melhor que não esteja vivo para ver isso.
- É melhor apresentá-lo aos ingleses, já que são seus compatriotas - sugeriu
Morgan, e apresentou-o à mulher do Alto Comissário Britânico, uma senhora com um
queixo que parecia de ferro e o cabelo cheio de laquê cortado à maneira de
Margareth Thatcher.
- Não posso dizer que tenha gostado de toda aquela violência em seu livro -
disse-lhe severamente. - Acha que era realmente necessária?
- A África é uma terra violenta. Nenhum verdadeiro contador de histórias
poderia esconder isso - respondeu, tentando manter a voz sem qualquer vestígio
de ironia.
Não estava com humor para aturar críticos literários amadores e olhou por
cima do ombro dela, tentando distrair-se.
O que descobriu fez com que seu coração batesse descompassadamente. Do outro
lado do gramado, ela o observava com os olhos verdes semicerrados. Vestia uma
ampla saia de algodão que deixava ós tornozelos à mostra, sandálias presas por
tiras enroladas nas pernas e uma camiseta simples. O cabelo escuro e farto
estava atado com uma tira de couro, ainda molhado do banho. Apesar de não usar
maquilagem, a pele bronzeada tinha um brilho saudável e os lábios estavam
coloridos pelo sangue. Trazia dependurada no ombro uma Nikon FM com motor.
Estivera observando-o, mas, no momento em que Craig olhou-a diretamente,
levantou o queixo num gesto de desdém e virou a cabeça apressadamente para o
homem a seu lado, ouvindo com atenção o que dizia, mostrando os dentes brancos
numa risada discreta. O homem era africano e quase certamente um shona, já que
usava o uniforme engomado do exército regular de Zimbábue e as divisas e
estrelas de um general-brigadeiro. Era tão bonito quanto o jovem Harry
Belafonte.
- Alguns costumam ter olho clínico para mulheres - disse Morgan com
suavidade. - Vamos, então, deixe que eu o apresente.
Antes que Craig pudesse protestar, começou a atravessar o gramado e teve que
segui-lo.
- General Peter Fungabera, este é Craig Mellow. O sr. Mellow é um famoso
romancista.
- Como vai, sr. Mellow? Peço desculpas por não ter lido seus livros. Tenho
muito pouco tempo para me dedicar ao lazer. - O inglês era excelente, a escolha
das palavras, precisa, mas tinha um sotaque acentuado.
- O general Fungabera é o ministro de Segurança Interna, Craig - explicou
Morgan.
- Uma pasta difícil, general - disse Craig apertando-lhe a mão e viu que,
apesar dos olhos penetrantes e cruéis como os de um falcão, havia um traço bem-
humorado no sorriso e sentiu simpatia por ele; um homem duro, mas um homem de
verdade, pensou.
- Mas nada que valha a pena fazer é fácil, nem mesmo escrever livros, não
concorda, sr. Mellow? - continuou o general, depois de ter assentido.
Era rápido e Craig gostou ainda mais dele, mas o coração ainda estava
disparado e a boca, seca, e não conseguia fixar sua atenção no general.
- E esta é a srta. Sally-Anne Jay - disse Morgan e Craig virou-se para olhá-
la; há quanto tempo não a via, um mês? Mas constatou que lembrava-se de cada
pontinho dourado das pupilas e de cada sarda do rosto.
- O sr. Mellow e eu já nos conhecemos, apesar de duvidar que ele se lembre -
virou-se para Morgan, dando-lhe o braço num gesto amigável e familiar. - Sinto
tanto não tê-lo visto desde que cheguei dos Estados Unidos, Morgan. Não sei como
lhe agradecer por arranjar a exposição para mim. Recebi tantas cartas...
- Oh, nós obtivemos respostas também - disse Morgan. - Todas excelentes. Será
que podemos almoçar juntos na semana que vem? Vou mostrá-las a você. - E virou-
se para explicar. - Mandamos uma exposição de fotografias de Sally-Anne para uma
turnê em todos os nossos escritórios consulares africanos. São maravilhosas,
Craig, devia ver o seu trabalho.
- Ah, mas ele já viu - e Sally-Anne sorriu sem calor. - Infelizmente, o sr.
Mellow não tem o seu entusiasmo por meus humildes esforços. - Sem dar-lhe chance
para retrucar, dirigiu-se a Morgan. - Imagine que o general Fungabera prometeu
acompanhar-me numa visita a um dos centros de reabilitação e vai me dar
permissão para fazer uma série de fotos. Não é maravilhoso? - E, com uma sutil
inclinação do corpo, excluiu Craig da conversa, deixando-o à margem, desajeitado
e mudo.
Com um toque em seu braço o general salvou-o do constrangimento em que se
encontrava e levou-o mais para longe para assegurar-se de que não seriam
ouvidos.
- O senhor parece ter talento para arranjar inimigos, sr. Mellow.
- Tivemos um mal-entendido em Nova York - disse Craig, olhando para Sally-
Anne.
- Apesar de ter sentido um certo vento glacial soprando de lá, não estava me
referindo à encantadora e jovem fotógrafa, mas a outros mais altamente colocados
e numa posição melhor para lhe fazerem um desserviço - conseguiu atrair de
imediato toda a atenção de Craig e continuou com suavidade. - Seu encontro desta
manhã com um colega meu de ministério foi... vamos dizer, infrutífero?
- Infrutífero é bem a palavra - concordou Craig.
- Uma grande pena, sr. Mellow. Se pretendemos nos tornar auto-suficientes no
setor de alimentos e não dependermos mais dos nossos vizinhos racistas do sul,
precisamos de fazendeiros com capital e determinação em terras que agora estão
sendo maltratadas.
- O senhor é bem-informado e enxerga longe, general - e ficou imaginando quem
mais no país já sabia de todos os seus passos.
- Obrigado, sr. Mellow. Talvez, quando estiver pronto para fazer seu
requerimento para a compra de terras, me dê a honra de tornarmos a conversar?
Digamos que teria um amigo na corte, não é essa a expressão usada? Meu cunhado é
ministro da Agricultura. - Peter Fungabera deu um sorriso irresistível. - E
agora, sr. Mellow, como acabou de ouvir, vou acompanhar a srta. Jay numa visita
a certas áreas fechadas. A imprensa internacional tem feito um bocado de barulho
sobre elas. Buchenwald, acho que foi o que um deles escreveu, ou será que foi
Belsen? Ocorreu-me a idéia de que um homem de sua reputação poderia ajudar-nos a
colocar os fatos em seu devido lugar, um favor por um favor. E, se viajar junto
com a srta. Jay, isso talvez lhe dê a oportunidade de acabar com esse mal-
entendido, não é?
ESTAVA AINDA escuro e frio quando Craig estacionou o Volkswagen por trás de
um dos hangares da base aérea de New Sarum e, pegando a mochila, abaixou-se para
entrar pela porta lateral baixa que dava para o interior cavernoso.
Peter Fungabera já estava lá, falando com dois oficiais não-co-missionados,
mas, no momento em que o viu, despediu-os com uma continência casual e veio ao
seu encontro, sorridente.
Usava um uniforme de campanha camuflado, boina vermelha e o distintivo
prateado da Terceira Brigada em forma de cabeça de leopardo. Além de uma pistola
no coldre, carregava apenas um bastão forrado de couro.
- Bom dia, sr. Mellow. Admiro a pontualidade - e deu uma olhada para a
mochila. - E a sabedoria de viajar com pouca bagagem.
Emparelhou-se com Craig e ambos cruzaram as grandes portas de correr para a
pista.
Havia dois velhos bombardeiros Canberra parados lá, que eram naquele momento
o orgulho da Força Aérea de Zimbábue, e tinham sido duramente atingidos em certa
época pelos guerrilheiros da outra margem do Zambeze. Atrás deles, estava um
elegante Cessna 210, pequeno e todo azul e prateado; Peter Fungabera dirigiu-se
para lá, exatamente quando Sally-Anne surgiu de debaixo da asa, concentrada nas
verificações que estava fazendo, e Craig compreendeu que ela seria o piloto, ao
invés de irem de helicóptero e com um militar pilotando.
Vestia um poncho da Patagônia, calça jeans e botas de couro macio, com o
cabelo coberto por um lenço de seda. Parecia profissional e competente enquanto
fazia um exame visual do nível de combustível nos tanques das asas e, em
seguida, pulou para o solo.
- Bom dia, general. Gostaria de viajar no assento dianteiro?
- Vamos colocar o sr. Mellow na frente? Já vi tudo isso antes.
- Como quiser - e acenou friamente para Craig. - Sr. Mellow - chamou, e
subiram a bordo. Falou com a torre de controle, taxiou para o ponto indicado,
puxou o freio de mão e murmurou: - Um excesso de carne de porco faz mal a uma
boa educação hebraica.
Aquela frase, como início para uma conversa, dava o que pensar. Craig ficou
perplexo, mas ela o ignorou e só quando suas mãos começaram a mexer os
controles, checando as chaves, o combustível e acelerando à toda, foi que
compreendeu que aquele era o seu acróstico pessoal para antes da decolagem, e as
desconfianças que sentira sobre ter uma mulher como piloto começaram a diminuir.
Depois da decolagem, virou o nariz do avião na direção noroeste, ligou o
piloto automático, abriu um mapa em larga escala no colo e concentrou-se na
rota. Boa técnica de vôo, admitiu Craig, mas não havia muito assunto para uma
conversa amena.
- Uma bela máquina - tentou. - É sua?
- Um empréstimo permanente do World Wildlife Trust - respondeu, atenta ao céu
diretamente em frente.
- Qual é nossa velocidade de cruzeiro?
- Há um velocímetro bem em frente ao senhor, sr. Mellow - respondeu, cortando
a conversa sem esforço.
Foi Peter Fungabera quem inclinou-se atrás de Craig e rompeu o silêncio:
- É o grande Dique - e apontou para a abrupta formação geológica abaixo. Uma
área rica em minérios como ouro, platina e cromo. - Além do dique, as terras
cultiváveis iam rareando rapidamente, e logo voavam sobre uma vasta área de
colinas ásperas e florestas de um verde esmaecido e pobre porque estendiam-se
indefinidamente até o horizonte leitoso. - Vamos aterrissar em um pequeno
aeroporto, deste lado das Colinas Pongola. Há uma missão lá e um pequeno
acampamento, mas é uma área muito remota. Temos transporte à nossa espera, são
mais duas horas de viagem até o campo - explicou o general.
- Importa-se se eu voar um pouco mais baixo, general? - perguntou Sally-Anne,
e ele deu uma risada.
- Não é preciso nem perguntar por quê. Sally-Anne está me fazendo um curso
sobre a importância dos animais selvagens e sua preservação.
Sally-Anne diminuiu a velocidade e desceu. O calor aumentou e o avião muito
leve começou a pular e a oscilar com as correntes quentes que ascendiam das
colinas rochosas. A área abaixo era completamente desprovida de habitações ou de
qualquer cultivo.
- Um lugar abandonado por Deus - murmurou o general. - Não há água perene, a
pastagem não presta e é cheio de moscas.
Sally-Anne, contudo, avistou um rebanho de grandes antílopes africanos com
corcovas e pelagem creme em um dos víeis abertos ao lado do leito seco de um
rio, e vinte milhas adiante, um elefante solitário.
Desceu até quase o nível das copas das árvores, acionou os flaps e deu uma
série de voltas lentas em torno do elefante, espantando-o da floresta e
mantendo-o em terreno aberto até que forçou-o a encarar o avião com as orelhas e
a tromba estendidas.
- Ele é magnífico - gritou, e mal ouviam suas palavras por causa do vento que
entrava pela janela aberta. - Deve ter uns quarenta quilos de marfim em cada
presa. - Começou a filmar com uma só mão pela janela aberta, ligando o motor da
Nikon que zumbia à medida que o filme passava pela câmera.
Voavam tão baixo que parecia que o elefante poderia agarrar a ponta de uma
asa com a tromba, e Craig pôde ver claramente a secreção úmida dos olhos,
percebendo que estava agarrado aos braços da cadeira.
Finalmente, Sally-Anne o deixou para trás, nivelou as asas e subiu. Craig
relaxou, aliviado.
- Assustado, sr. Mellow?
Sua cadela, pensou Craig. Esse foi um golpe baixo, mas ela já se dirigia a
Peter Fungabera por cima do ombro:
- Aquele animal, morto, vale dez mil dólares. Mas vivo, vale dez vezes mais e
pode gerar cem machos para substituí-lo.
- Sally-Anne está convencida de que há uma organização em larga escala neste
país de caçadores furtivos. Mostrou-me umas fotografias impressionantes, e devo
dizer que estou começando a ficar preocupado também.
- Temos de descobri-los e acabar com eles, general - ela insistiu.
- Descubra-os para mim, Sally-Anne, e eu acabo com eles. Já tem a minha
palavra.
Não havia como não perceber o entendimento entre eles, e Fungabera era um
homem bastante atraente. Esse pensamento fez Craig sentir ciúme. Olhou de
esguelha para Peter Fungabera que o observava atento e com ar especulativo, um
olhar que disfarçou num instante com um sorriso.
- O que acha deste problema, sr. Mellow? - perguntou e subitamente Craig viu-
se contando para ele os planos do Águas do Zambeze em Chizarira.
Contou-lhes sobre o rinoceronte negro e a área silvestre protegida à volta,
como era facilmente acessível às cataratas de Victoria e Sally-Anne o ouvia tão
atentamente quanto o general. Ao terminar, ficaram ambos silenciosos por algum
tempo até que Fungabera disse:
- O senhor, agora, sr. Mellow, está falando com bom senso. É dessa espécie de
projeto que este país precisa desesperadamente, e o potencial lucrativo pode ser
compreendido até pelos mais retrógrados e menos sofisticados membros do meu
povo.
- Não seria melhor chamar-me de Craig, general?
- Obrigado, Craig. Meus amigos me chamam de Peter.
Meia hora depois, avistaram um telhado galvanizado brilhando ao sol
diretamente à frente, e Sally-Anne anunciou:
- A estação missionária de Tuti - e começou a preparar-se para aterrissar.
Passou em rasante sobre a igreja e Craig viu figuras diminutas em torno das
cabanas que abanavam para eles.
A pista era estreita, curta e acidentada e o vento estava de través, mas
Sally-Anne acelerou e mantendo a asa de bombordo baixa com uma manobra do manche
derivou, um momento antes de tocarem o solo. Craig compreendeu, então, que era
excelente piloto.
Havia um Land-Rover cor de areia, do exército, à espera, sob uma enorme
árvore marula a um lado da pista, e os três soldados prestaram continência a
Peter Fungabera com um bater de calcanhares que levantou poeira. Enquanto Craig
ajudava Sally-Anne a amarrar o avião, carregaram a pouca bagagem para o Land-
Rover.
Quando o carro passou em frente à escola da missão, ao lado da igreja, Sally-
Anne perguntou:
- Será que tem uma toalete para mulheres aqui?
Peter bateu no ombro do chofer com o bastão, fazendo-o parar.
Negrinhos de olhos arregalados encheram a varanda e a professora saiu para
cumprimentar Sally-Anne enquanto subia os degraus, fazendo-lhe uma pequena
mesura de boas-vindas. Tinha a mesma idade que ela, com pernas longas e esbeltas
sob a saia simples de algodão. A roupa estava impecavelmente limpa e engomada, e
os tênis, sem uma mancha. A pele tinha um brilho aveludado e o rosto o
característico formato de lua cheia, dentes brilhantes e olhos de gazela das
moças Ngumi, mas havia nela uma postura tão graciosa, uma expressão tão alerta e
inteligente e uma perfeição de feições que a tornavam realmente bonita.
Sally-Anne e ela conversaram por alguns instantes e, em seguida, fez a moça
branca entrar.
- Acho que nós dois deveríamos nos entender, Craig - disse Peter, olhando as
duas entrarem. - Tenho visto você observando Sally-Anne e eu. E deixe que lhe
diga, admiro as qualidades de Sally-Anne, sua inteligência e iniciativa; mas, à
diferença de muitos dos meus compatriotas, a miscigenação não tem nenhum
atrativo para mim. Acho a maioria das mulheres européias masculinizadas e
mandonas, e a carne branca insípida. Pode me perdoar por falar tão francamente?
- Estou aliviado por ouvir isso - sorriu Craig.
- Por outro lado, acho aquela professorinha... você que é mestre das
palavras, arranje-me uma para descrevê-la.
- Ainda núbil? Muito boa? - Craig provocou-o.
- Melhor ainda - riu-se Peter. - Preciso achar tempo para ler o seu livro. -
E, ficando sério novamente, continuou: - Chama-se Sarah, fez quatro cursos com
louvor e obteve um diploma de professora de ginásio; tem qualificações como
enfermeira; é bonita, recatada, respeitosa e obediente às velhas e boas maneiras
tradicionais. Viu como não olhou diretamente para nós, homens? Isso teria sido
muito avançado - e Peter balançou a cabeça em aprovação. - Uma mulher moderna
com virtudes antigas. E, no entanto, o pai dela é um feiticeiro que se veste de
peles, faz adivinhações jogando ossos e só se lava uma vez por ano. África -
acrescentou -, minha maravilhosa, fascinante e sempre mutável e nunca mudada
África.
As duas jovens voltaram das casas por trás da escola e conversavam
animadamente, enquanto Sally-Anne acionava a câmera, capturando imagens das
crianças com a professora que não parecia muito mais velha que elas, e os dois
homens observavam, parados junto ao Land-Rover.
- Você me parece um homem de ação, Peter, e não posso acreditar que não tenha
o dote da noiva - disse Craig. - O que está esperando?
- Ela é matabele e eu mashona. Romeu e Julieta - explicou Peter com
simplicidade. - E é tudo.
As crianças, lideradas por Sarah, cantaram uma canção de boas-vindas na
varanda e, depois, a pedido de Sally-Anne, recitaram o alfabeto e a tabuada de
multiplicar, enquanto ela fotografava suas expressões atentas. Quando subiu de
volta ao Land-Rover, gritaram adeus e acenaram até que a nuvem de poeira os
escondeu.
A trilha era ruim e o carro pulava ao passar sobre os sulcos profundos
formados pela chuva e ressequidos como concreto. Pelas aberturas na floresta,
viam, volta e meia, as colinas azuis no horizonte ao norte, perpendiculares,
desoladas e nada convidativas.
- As colinas Pongola - disse-lhe Peter. - Zona ruim - e, quando já se
aproximavam de seu destino, começou a lhes contar o que deviam esperar quando
chegassem, afinal. - Estes centros de reabilitação não são campos de
concentração, mas, sim, como o nome mostra, centros de reeducação e adaptação ao
mundo normal - e olhou para Craig. - Você, como nós, sabe que vivemos uma
terrível guerra civil. Onze anos de inferno, que brutalizou toda uma geração de
jovens. Desde a adolescência, não conheceram outra vida que não fosse a de fuzil
automático nas mãos, só lhes ensinaram a destruir e nada aprenderam a não ser
que os desejos de um homem podem ser satisfeitos simplesmente matando quem quer
que se atravesse em seu caminho.
Peter Fungabera ficou silencioso por alguns instantes e Craig viu que estava
revivendo a parte que tivera aqueles anos terríveis. Deu um pequeno suspiro e
continuou:
- Os pobres sujeitos foram iludidos por alguns de seus líderes. Para que
suportassem a dureza e as privações da guerrilha, fizeram-lhes promessas que
nunca poderiam ser cumpridas. Prometeram terras ricas para plantar, centenas de
cabeças de gado de primeira, dinheiro, carros e muitas esposas - e fez um gesto
zangado. - Deram-lhes grandes esperanças e, quando as promessas não puderam ser
cumpridas, viraram-se contra os que as tinham feito. Cada um deles estava
armado, era um soldado treinado que já matara e não hesitaria em matar de novo.
O que podíamos fazer? - Peter interrompeu-se, olhando o relógio de pulso. - Já é
hora do almoço e de dar uma esticada nas pernas - sugeriu.
O chofer parou num local onde a trilha cruzava com uma estrada elevada e uma
ponte de madeira sobre o leito de um rio cujas águas limosas e frescas
redemoinhavam por sobre os bancos de areia ondulados, e grandes caniços
balançavam nas duas margens. A escolta fez uma fogueira, assou espigas de milho
e preparou chá Malawi, enquanto o general passeava com os convidados pela
estrada e continuava a falar-lhes:
- Nós, africanos, tínhamos uma tradição antiga. Quando um de nossos jovens
tornava-se intratável e rompia com as leis tribais, era mandado para um
acampamento na mata onde os mais velhos o surravam até recuperar o juízo. O
centro de reabilitação é uma versão modernizada desse campo tradicional. Não vou
tentar esconder nada de vocês. O que vamos visitar não é nenhuma colônia de
férias. Os homens que estão lá são duros e só um tratamento duro pode funcionar
com eles. Por outro lado, não são campos de extermínio; digamos que são o
equivalente dos campos de detenção do exército britânico - e Craig não pôde
deixar de sentir-se impressionado pela honestidade de Fungabera. - São livres
para falar com qualquer detento, mas devo pedir-lhes que não saiam caminhando
pela mata sozinhos. Isso se aplica especialmente a você, Sally-Anne - e Peter
sorriu-lhe. - É um lugar muito isolado e selvagem. Animais como hienas e
leopardos são atraídos pelos detritos e pelo esgoto, perdem o medo e tornam-se
ousados. Quando quiserem sair do acampamento, falem comigo e providenciarei uma
escolta.
Comeram o almoço frugal, debulhando o milho assado com os dedos e engolindo a
massa dos grãos com goles de chá forte, escuro e muito açucarado.
- Se estão prontos, podemos continuar - e levou-os de volta ao Land-Rover,
que chegou uma hora mais tarde ao Centro de Reabilitação de Tuti.
Durante a guerrilha, fora uma das aldeias protegidas pelo governo de Smith
numa tentativa de resguardar os camponeses negros das intimidações dos
guerrilheiros. Havia um kopje rochoso central, despido de qualquer vegetação, e
uma pilha de pedras de granito cinzento em cima da qual fora construído um
pequeno fortim com sacos de areia, frinchas para metralhadoras, plataformas de
tiro, trincheiras de comunicação e abrigos. Abaixo, ficava o acampamento, com
fileiras ordenadas de cabanas de barro e palha, muitas com meias-paredes para
assegurar a circulação de ar, construídas ao redor de um espaço aberto tão
grande que podia ser usado como um campo de futebol, já que tinha balizas de gol
rudimentares fincadas nas extremidades.
Inesperadamente, depararam com uma grossa parede branca do lado mais próximo
ao forte. Havia uma cerca dupla de arame farpado, circundando o fosso profundo,
em torno de todo o acampamento. Tinha mais de três metros de altura e o arame
era densamente trançado. O fundo do fosso estava todo fincado de estacas
pontiagudas de madeira e havia torres de vigia nos cantos do acampamento. Os
guardas do único portão fizeram continência para o Land-Rover, que rolou
vagarosamente pelo caminho que beirava o terreno aberto.
Ao sol, cerca de trezentos jovens negros, vestindo apenas short cáqui, faziam
uma ginástica vigorosa que era ritmada pelos gritos dos instrutores. Nas cabanas
abertas, com tetos de palha, centenas de outros, sentados em fileiras no chão de
terra batida, recitavam juntos a lição no quadro-negro.
- Daremos uma volta mais tarde - disse-lhes o general. - Primeiro, é melhor
se instalarem.
Deram a Craig um dos abrigos no forte. O chão de terra tinha sido
recentemente varrido e salpicado de água para refrescá-lo e fazer assentar a
poeira. As únicas peças de mobiliário eram uma esteira de palha trançada e uma
estopa que cobria o umbral. Na esteira, havia uma caixa de fósforos e um pacote
de velas, e Craig achou que eram luxos reservados apenas a visitas importantes.
Sally-Anne foi alojada no abrigo do outro lado da trincheira em frente. Não
mostrou qualquer desconsolo diante das acomodações primitivas e, quando espiou
pela cortina, viu-a sentada na esteira, limpando as lentes da câmera e
recarregando-a com filme.
Peter Fungabera pediu licença e subiu pela trincheira até o posto de comando
no alto da colina. Alguns minutos mais tarde, Craig ouviu-o falando no rádio em
shona, mas muito rápido para que pudesse acompanhar, e dali a meia hora, desceu
novamente.
- Daqui a uma hora já vai escurecer. Vamos ver os prisioneiros receberem a
refeição da noite.
Os homens alinhavam-se, em completo silêncio, na fila, para pegar a comida.
Não havia sorrisos ou brincadeiras. Nem mesmo demonstravam a menor curiosidade
pelos visitantes brancos e pelo general.
- Comida simples - explicou Peter. - Mingau de milho e verduras. - Cada homem
recebia uma porção do mingau endurecido e outra de legumes cozidos em sua
tigela. - Carne e tabaco uma vez por semana. Mas ambos podem ser cortados por
mau comportamento.
Peter dizia exatamente a verdade: os homens eram magros, com as costelas
aparecendo por baixo dos músculos trabalhados pela ginástica, sem qualquer
vestígio de adiposidade. Devoravam a comida e raspavam a tigela com os dedos.
Magros, mas não emaciados ou fracos, achou Craig, mas logo em seguida seus olhos
estreitaram-se.
- Aquele homem está machucado. - Via-se a marca roxa mesmo por debaixo da
pele escurecida pelo sol.
- Pode falar com ele - convidou Peter e, quando Craig interrogou-o em
sindebele, o homem respondeu imediatamente.
- O que aconteceu com suas costas?
- Me bateram.
- Por quê?
- Briguei com outro homem.
Peter chamou um dos guardas, falou em voz baixa com ele em shona e explicou:
- Ele feriu outro prisioneiro com um pedaço de arame farpado afiado. Foi
privado de carne e de tabaco por dois meses e recebeu quinze bastonadas. Esse é
exatamente o tipo de comportamento anti-social que estamos tentando impedir. -
Enquanto caminhava de volta, ao longo da parede caiada de branco, acrescentou: -
Amanhã, terão o acampamento à disposição de vocês. Vamos partir cedo na manhã
seguinte.
Comeram com os oficiais shona no refeitório a mesma alimentação servida aos
prisioneiros, acrescida de um ensopado de carne fibrosa de origem indeterminada
e frescor duvidoso. Logo após a refeição, Peter Fungabera desculpou-se e saiu
com os oficiais do abrigo, deixando Sally-Anne e Craig sozinhos.
Antes que pudesse dizer uma só palavra, ela levantou-se silenciosa e saiu do
abrigo. Craig, que já atingira o limite da paciência, ficou zangado, e
imediatamente a seguiu. Foi encontrá-la sentada na amurada de sacos de areia da
trincheira principal, abraçando os joelhos e contemplando o acampamento. A lua
estava cheia e brilhava no horizonte, sobre as colinas. Encarou-o ao chegar
junto dela, e a raiva de Craig evaporou-se na mesma hora.
- Eu me comportei muito mal com você - foi dizendo sem preâmbulos.
Ela abraçou os joelhos com mais força e não disse nada.
- Quando nos encontramos pela primeira vez, estava atravessando um mau pedaço
- continuou com obstinação. - Não vou aborrecê-la com detalhes, mas estava
completamente bloqueado e não conseguia escrever, senti-me sem rumo, e descontei
em cima de você.
Ainda não dava sinais de tê-lo ouvido. Na floresta por trás da cerca dupla,
houve de repente um súbito e medonho alarido em vários pontos do perímetro do
acampamento. Gargalhadas estridentes e sem a menor alegria, que aumentavam e
diminuíam, terminadas, por fim, numa série de risadas guturais, grunhidos e
soluços agoniados.
- Hienas - disse Craig, e Sally-Anne estremeceu e endireitou-se, como se
fosse levantar. - Por favor! Só mais um minuto. Tenho procurado uma chance para
me desculpar. - Craig percebeu o desespero que transparecia na própria voz.
- Não é preciso - ela disse. - Foi muita presunção da minha parte achar que
você gostaria do meu trabalho. - O tom de voz não era nada conciliatório. - Acho
que mereci tudo que disse.
- Mas seu trabalho... suas fotos... - e por um momento ficou sem voz - me
assustaram. Por isso tive uma reação tão rancorosa, tão infantil.
Ela voltou-se para encará-lo e o luar incidiu em seu rosto.
- Assustaram você? - perguntou, perplexa.
- Deixaram-me aterrado. Sabe, eu não conseguia trabalhar e começava a acreditar
que o livro não tinha passado de um acaso feliz, e que não tinha talento para
continuar a escrever. Eu ficava tentando e toda vez que o fazia havia apenas o
vazio. - Ela o fitava agora com os lábios entreabertos e os olhos como duas
taças cheias de escuridão. - Foi quando você apareceu com aquelas malditas
fotografias me desafiando a fazer algo à altura delas.
Ela balançou lentamente a cabeça em negativa.
- Pode ser que não fosse a sua intenção, mas era exatamente isso. Um desafio que
não tive coragem de aceitar. Estava com medo, agredi você e, desde então,
lamentei tudo isto profundamente.
- Gostou delas? - ela perguntou.
- Foi como um tremor de terra para o meu mundinho. Mostraram-me a África sob um
novo ângulo, e encheram-me de nostalgia. Quando as vi, pude compreender o que
estava faltando em mim. Fiquei com a saudade que tem de casa um menino em sua
primeira noite solitária no internato. - Ao dizer isso sentiu um nó na garganta,
mas não ficou envergonhado. - Foram as suas fotografias que me fizeram voltar
para cá.
- Eu não podia saber... - ela disse, e ambos calaram-se; Craig sabia que, se
falasse de novo, seria em soluços, porque sentia os olhos cheios de lágrimas de
autopiedade.
Alguém começou a cantar no acampamento abaixo deles. Era uma agradável voz de
tenor que se ouvia distante, mas clara, no alto da colina, e Craig conseguiu
distinguir as palavras. Era uma antiga música matabele sobre os feitos
guerreiros de um regimento; cantada, porém, como um lamento, parecia traduzir
todo o sofrimento e a tragédia do continente; nem mesmo as hienas se atreveram a
gritar enquanto a voz cantava:
As toupeiras estão debaixo da terra.
Estão mortas?, perguntaram as filhas de Mashobane.
Atenção, lindas jovens, não ouvem alguém mover-se na escuridão?
A voz do cantor cessou afinal e Craig imaginou todas as centenas de rapazes
velando em silêncio nas esteiras, obcecados e entristecidos como ele.
- Obrigada por me contar - disse, então, Sally-Anne. - Sei que não deve ter
sido fácil para você. - Tocou-lhe o braço nu com as pontas dos dedos, o que fez
um arrepio percorrê-lo e o coração dar um pulo.
Ela destrançou as pernas, saltou do parapeito, desceu pela trincheira de
comunicação; ele ouviu o deslizar da estopa ao vedar a abertura do abrigo e o
riscar do fósforo enquanto acendia uma vela.
Desceu para o seu abrigo, acendeu uma das velas que colocou em um nicho na
parede e tirou da mochila o caderno de notas e a caneta. As palavras ferviam em
seu cérebro. Colocou a caneta sobre a folha branca, as palavras jorravam
desordenadas pelo papel, como em um delicioso e prolongado orgasmo. Parou apenas
para acender mais velas nos tocos gotejantes.
De manhã, os olhos estavam vermelhos e ardendo com o esforço. Sentia-se fraco
e trêmulo como se tivesse corrido muito e rápido demais, mas o caderno estava
quase cheio e sentia-se estranhamente jubiloso.
O júbilo durou toda a manhã, quente e luminosa, aumentado pela mudança de
atitude de Sally-Anne. Ainda estava reservada e quieta, mas ao menos ouvia
quando falava e respondia, pensativa e séria. Uma ou duas vezes, chegou a
sorrir, a boca muito grande e o nariz entraram finalmente em harmonia com o
resto das feições. Craig estava achando difícil concentrar-se no infortúnio dos
homens que tinham vindo estudar, até que percebeu a compaixão de Sally-Anne e
ouviu-a exprimi-la livremente pela primeira vez.
- Seria tão fácil colocá-los de lado como criminosos embrutecidos - murmurou,
observando os rostos inexpressivos e olhos cautelosos -, até que se compreende
como foram privados de qualquer influência humanizadora. A maioria deles foi
arrancada das salas de aula na adolescência e levada para campos de treinamento
guerrilheiro. Não têm nada, nunca tiveram nada que fosse só deles, exceto um
fuzil AK 47. Como podemos esperar que respeitem a pessoa ou a propriedade dos
outros? Craig, pergunte àquele ali quantos anos tem.
- Ele não sabe - traduziu Craig. - Não sabe quando nasceu ou onde estão os
pais.
- Ele não teve nem mesmo o direito de saber quando nasceu observou Sally-
Anne, e Craig lembrou-se de repente com que grosseria rejeitava um vinho que não
lhe agradasse ou como, sem ao menos se dar ao trabalho de pensar, encomendava
roupas novas ou entrava na primeira classe de um avião, enquanto aqueles homens
vestiam apenas farrapos, sem ter um par de sapatos ou um cobertor para agasalhá-
los. - O abismo existente entre os que têm e os que nada têm neste mundo vai nos
levar para a destruição - disse Sally- Anne, enquanto registrava com a Nikon
aquela resignação animal que existe por trás do desespero. - Pergunte, por
favor, àquele ali como o tratam - insistiu e, quando Craig dirigiu-lhe a
palavra, o homem olhou-o sem compreender, como se fosse uma pergunta sem
sentido, e sua sensação de bem-estar evaporou-se como a névoa da manhã.
Nas cabanas abertas, as aulas eram sobre orientação política e o papel do
cidadão responsável no estado socialista. Eram copiadas nos quadros-negros numa
letra primária e semi-analfabeta pelos instrutores entediados e recitadas pelos
prisioneiros como papagaios. A evidente falta de compreensão de todos deprimiu
Craig ainda mais.
Quando subiam a colina de volta aos alojamentos, algo ocorreu a Craig que
virou-se para falar com Peter Fungabera.
- Todos aqui são matabele, não é?
- É verdade. Mantemos as tribos segregadas; isso diminui os atritos - disse
Peter.
- Existem prisioneiros shona? - insistiu Craig.
- Ah, sim. Os acampamentos para eles ficam nas montanhas do leste, exatamente
nas mesmas condições... - assegurou-lhe Peter.
Ao cair do sol, o gerador para ativar o rádio foi ligado e, vinte minutos
mais tarde, Peter Fungabera descia até o abrigo onde Craig estava relendo e
corrigindo o que escrevera na noite anterior.
- Há uma mensagem para você, Craig, de Morgan Oxford, da embaixada americana.
Levantou-se ansioso. Morgan conseguira que a resposta de Henry Pickering lhe
fosse transmitida assim que chegasse. Pegou a folha onde Peter anotara a
transmissão de rádio e leu:
Para Mellow. Ponto. Meu entusiasmo pessoal seu projeto não compartilhado por
outros. Ponto. Ashe Levy não dá adiantamento ou garantia. Ponto. Comitê
Empréstimos exige garantia adicional substancial antes financiamento. Ponto.
Sinto muito. Ponto. Melhores votos. Henry.
Leu a mensagem rapidamente da primeira vez e, depois, releu-a lentamente.
- Não é da minha conta - murmurou Peter Fungabera -, mas presumo que isso diz
respeito a seus planos para o que chama de Águas do Zambeze?
- É isso mesmo, mas receio que seja o fim deles - Craig disse amargamente.
- Quem é Henry?
- Um amigo. É banqueiro, acho que esperei demais dele.
- É. Parece que sim, não é? - disse Peter Fungabera pensativamente.
Apesar de não haver dormido na noite anterior, não conseguiu fechar os olhos.
A esteira era dura como pedra e o coro das hienas na floresta parecia ecoar seu
estado de espírito sombrio.
Na longa viagem de volta à pista da Missão Tuti, sentou-se ao lado do chofer
e não participou da conversa de Peter e Sally-Anne no banco traseiro. Só agora
via o quanto desejara comprar a Rholands; estava zangado com Ashe Levy que lhe
recusara apoio, com Henry Pickering por não haver feito mais empenho junto a seu
maldito Comitê de Empréstimos.
Sally-Anne insistiu em parar novamente na escola da missão para rever Sarah,
a professora matabele, que daquela vez estava preparada para recebê-los e
ofereceu-lhes chá. Sem disposição para amenidades, Craig sentou-se na varanda,
distante dos outros, e começou a planejar sem qualquer otimismo como poderia
contornar a situação.
Sarah aproximou-se discretamente, trazendo-lhe uma caneca de chá em uma
bandeja de madeira entalhada à mão, e, ao oferecê-la, estava de costas para
Peter Fungabera.
- Quando o crocodilo devorador de gente sabe que o caçador está à sua
procura, esconde-se no fundo da lama do lago mais profundo - falou baixinho em
sindebele - e, quando o leopardo caça, caça na escuridão.
Surpreso, Craig olhou-a. Os olhos já não estavam abaixados e havia um lampejo
forte e raivoso em suas profundezas escuras.
- Os bichinhos de Fungabera devem ter feito muito barulho continuou ela
baixinho. - Não podiam alimentar-se enquanto vocês estavam lá, e deviam estar
com fome. Você os escutou, Kuphela? - perguntou, e Craig estremeceu com a
surpresa; Sarah usara o nome que o camarada Sentinela lhe dera. Como podia
conhecê-lo? O que queria dizer com os bichinhos de Fungabera?
Antes que Craig pudesse responder, Peter Fungabera levantou os olhos e viu a
expressão de seu rosto. Levantou-se sem alarde, mas rapidamente, e atravessou a
varanda até junto de Sarah. Imediatamente, a moça abaixou os olhos, fez uma
pequena mesura e saiu com a bandeja vazia.
- Não deixe que seu desapontamento o deprima tanto, Craig. Venha juntar-se a
nós - e inclinou-se, colocando-lhe a mão no ombro num gesto amigo.
No curto trajeto da missão até a pista de vôo, Sally-Anne dirigiu-lhe de
repente a palavra:
- Estive pensando, Craig. Este lugar que você chama de Águas do Zambeze deve
ficar a apenas uma meia hora de vôo daqui. Descobri o rio Chizarira no mapa.
Podíamos fazer um pequeno desvio e voar até lá a caminho de casa.
- Não há sentido nisso.
- Por que não? - perguntou, e passou-lhe o papel com a mensagem de Pickering.
- Oh, sinto muito. - Craig viu que estava sendo sincera e sua preocupação
reconfortou-o um pouco.
- Gostaria de ver o local - interrompeu de repente Fungabera e, quando meneou
a cabeça em negativa, sua voz tornou-se imperiosa: - Vamos até lá - disse com
determinação, e Craig limitou-se a dar de ombros, indiferente.
- As piscinas naturais devem ficar aqui, onde este afluente se liga ao rio
principal - disse Sally-Anne, depois de consultarem o mapa. E trabalhou
rapidamente com os compassos e o defletor computadorizado de vento. - OK -
disse. - Vinte e dois minutos de vôo com este vento.
Enquanto voavam, e Sally-Anne estudava o terreno comparando-o com o mapa,
Craig refletia sobre as palavras da moça matabele. "Os bichinhos de Fungabera."
De alguma forma, isso soava ameaçador e o fato de usar o nome Kuphela o
perturbava ainda mais. Só havia uma explicação: estava em contato e era
provavelmente um membro da guerrilha dissidente. O que queria dizer com a
alegoria do crocodilo e do leopardo e com os animais de Fungabera? E, se fosse
simpatizante da guerrilha, poderia confiar nela?
- Lá está o rio - disse Sally-Anne, fechando o manípulo da gasolina e
começando uma curva descendente em direção ao brilho das águas.
Voou muito baixo pela margem do rio e, apesar da vegetação espessa, avistou
bandos de animais de caça e até mesmo, uma vez, com um grito de alegria, o
grande vulto escuro de um rinoceronte negro nas moitas de ébano. De repente,
apontou para a frente.
- Olhem só isso! - exclamou.
Numa curva do rio, havia uma faixa estreita de terreno aberto, cercado de
árvores ribeirinhas, onde a pastagem fora cortada como um gramado pelos rebanhos
de zebras que saíram galopando em pânico e levantando poeira com a aproximação
do avião.
- Aposto que poderia aterrissar ali - disse Sally-Anne, e puxou os flaps,
diminuindo a velocidade do Cessna e abaixando o nariz para ter uma melhor visão
frontal. Por fim desceu o trem de aterrissagem.
Fez voltas lentas sobre o terreno aberto, cada uma mais baixa que a outra,
até que as rodas estivessem a apenas um metro do solo e pudessem distinguir as
pegadas das zebras na terra avermelhada.
- Firme e claro - ela disse, tocando o solo na passagem seguinte e
imediatamente puxando ao máximo o freio de segurança que parou o avião poucos
metros depois.
- Mulher-pássaro - gracejou Craig e ela sorriu com o cumprimento.
Saltaram do avião e cruzaram a planície em direção à floresta, atravessaram-
na por uma trilha de caça, saindo num promontório rochoso sobre o rio.
Era o perfeito cenário africano. Bancos de areia branca e rochas polidas
pelas águas rebrilhando como escamas de répteis, galhos arrastados pela água
limosa, árvores altas com raízes como serpentes brancas subindo pelos rochedos -
e, além, a floresta cerrada.
- É lindo - disse Sally-Anne, e saiu perambulando com a câmara.
- Essa seria uma boa localização para um de seus alojamentos. - Peter
Fungabera apontou-lhe as pilhas de fezes de elefante na areia branca abaixo.
- Um bom ponto de observação - concordou.
- Sim, teria sido, sem dúvida - concordou Peter. - Parece bom demais para não se
aproveitar ainda mais por esse preço. Deve garantir um lucro de milhões.
- Para um bom socialista africano, você fala como um capitalista sujo - disse-
lhe Craig vagarosamente.
- Dizem que o socialismo é a filosofia ideal... enquanto se tem capitalistas
para pagar por ele.
Craig deu-lhe um olhar penetrante e, pela primeira vez, viu o brilho da velha e
boa avareza ocidental nos olhos de Peter Fungabera. Ficaram ambos silenciosos,
observando Sally-Anne na margem do rio enquanto enquadrava árvores, rochedos e
céu para uma foto.
- Craig - disse Peter, que obviamente chegara a uma decisão. - Se eu conseguisse
a garantia colateral que o Banco Mundial exige, receberia uma comissão sobre os
lucros da Rholands, não é?
- Teria direito a isso. - Craig sentiu as esperanças renascerem.
Naquele instante, Sally-Anne gritou:
- Está ficando tarde e temos ainda duas horas e meia de vôo até Harare.
De volta à base aérea de New Sarum, Peter Fungabera despediu-se de ambos.
- Espero que as fotos fiquem boas - disse a Sally-Anne, e virando-se para Craig
perguntou: - Você vai ficar no Monomatapa? Entro em contato com você lá nos
próximos três dias.
Tomou o jipe militar que esperava por ele e saudou-os com um gesto do bastão
enquanto se afastava.
- Você está de carro? - Ela balançou a cabeça negativamente. - Não posso lhe
prometer dirigir tão bem quanto você pilota; quer arriscar?
Morava num prédio, do velho quarteirão da avenida, que ficava defronte ao
Palácio do Governo e Craig a deixou na entrada.
- Gostaria de jantar comigo? - perguntou.
- Tenho muito trabalho a fazer, Craig.
- Será um jantar rápido, prometo. Uma oferenda de paz. Trarei você de volta às
dez - levantou a mão como em juramento e ela cedeu.
- Está bem, às sete aqui - concordou, e ele ficou observando a maneira como
subia as escadas com passos decididos e ágeis, antes de dar partida no carro.
Sally-Anne sugeriu uma steakhouse onde foi tratada, pelo enorme e barbudo
proprietário, como um membro da realeza. A carne era a melhor que Craig já
provara, espessa, suculenta e macia. Beberam um Eabernet do cabo da Boa
Esperança e, depois de um começo hesitante, a conversa começou a fluir.
- Foi tudo ótimo enquanto eu era uma mera assistente técnica da Kodak, mas,
quando comecei a ser convidada para expedições como fotógrafa oficial e, depois,
a fazer minhas próprias exposições, ele simplesmente não agüentou mais - contou-
lhe. - O primeiro homem que vi ter ciúme de uma Nikon.
- Quanto tempo estiveram casados?
- Dois anos.
- Filhos?
- Nenhum, graças a Deus.
Comia como andava, rápida, precisa, mas com um traço de prazer sensual. Quando
terminaram, olhou para o Rolex de ouro.
- Você prometeu que me levaria de volta às dez. - Apesar dos protestos dele, fez
questão de pagar a metade da conta.
Quando pararam em frente ao edifício, ela olhou-o com seriedade por um momento
antes de perguntar:
- Quer um pouco de café?
- Com o maior prazer - e começou a abrir a porta, quando ela o interrompeu:
- Vamos deixar logo de saída as coisas bem claras. O café é instantâneo, e é
tudo o que estou oferecendo, certo?
- Certo - ele concordou.
- Vamos.
O apartamento estava mobiliado com almofadões de lona, um gravador portátil e
uma cama de campanha com uma sacola de dormir, aos pés, bem enrolada. O assoalho
estava nu, mas polido, e as paredes, forradas com fotografias. Ele ficou olhando
as fotos enquanto ela ia para a cozinha da quitinete preparar o café.
- Se quiser usar o banheiro, fica ali - ela disse -, mas tome cuidado.
Era mais uma câmara escura que um banheiro. Com uma tenda de náilon preto,
fechada por zíper, sobre o box do chuveiro, vidros de produtos químicos e
pacotes de papel fotográfico no lugar dos usuais cosméticos femininos.
Sentaram-se nos almofadões, beberam o café, ouviram a Quinta de Beethoven no
gravador, e falaram sobre a África. Por uma ou duas vezes, ela mencionou de
passagem o livro dele, mostrando que o lera com atenção.
- Tenho de acordar cedo amanhã - disse, finalmente, pegando a caneca vazia da
mão dele. - Boa noite, Craig.
- Quando posso vê-la de novo?
- Não estou bem certa. Vou voar amanhã cedo para as montanhas e não sei quanto
tempo vou passar lá. - A expressão do rosto suavizou-se. - Telefono para você no
Mono quando voltar, está bem?
- Claro que está. Eu...
Pressentindo o que ele iria dizer, interrompeu-o.
- Craig, estou começando a gostar de você, mas como um amigo, não estou à
procura de romance. Ainda não me recuperei completamente, por favor, compreenda.
Despediram-se com um aperto de mãos na porta do apartamento.
Apesar da recusa, Craig sentiu-se feliz enquanto dirigia de volta ao Monomatapa.
Naquelas alturas, não queria analisar profundamente seus sentimentos por ela,
nem definir suas intenções. Era uma agradável mudança não ter uma mulher
colecionadora de celebridades tentando adicionar seu nome à lista de amantes. A
atração física que sentia tornava-se mais forte com sua relutância; respeitava-
lhe o talento, as realizações e tinha uma completa simpatia por seu amor à
África e sua compaixão pelas pessoas.
Isso me basta por enquanto, pensou, enquanto estacionava o Volks.
O subgerente veio ao seu encontro no saguão do hotel, torcendo as mãos
angustiado, e levou-o até o escritório.
- Sr. Mellow, recebi uma visita do esquadrão especial de polícia enquanto estava
ausente. Tive de abrir seu cofre para eles e deixá-los examinar seu quarto.
- Mas, que diabos, eles têm autoridade para isso? - Craig sentiu-se ultrajado.
- O senhor não compreende, podem fazer o que quiserem aqui - apressou-se em
dizer o outro. - Não tiraram nada do cofre, sr. Mellow, eu lhe garanto.
- Mesmo assim, quero examiná-lo - disse Craig, sombriamente.
Contou os traveller's check e conferiam. A passagem aérea de volta estava
intacta, assim como o passaporte, mas haviam examinado a caixa que Henry
Pickering lhe dera: a placa de identificação esmaltada de assessor de campo
estava solta dentro do estojo de couro.
- Quem pode ter ordenado uma busca dessas? - perguntou ao subgerente enquanto
tornavam a trancar o cofre.
- Só alguém altamente colocado.
Tungata Zebiwe, pensou com amargor. Seu maldito filho da mãe metido, como você
deve ter mudado.

CRAIG FOI levar o relatório para Henry Pickering sobre a visita ao Centro de
Reabilitação Tuti à embaixada, e Morgan Oxford recebeu-o e ofereceu-lhe café.
- Acho que vou ficar aqui mais tempo do que pensava - disse-lhe Craig - e não
consigo trabalhar num quarto de hotel.
- Achar um apartamento aqui é um inferno, mas vou ver o que posso fazer - disse
Morgan. E telefonou-lhe no dia seguinte:
- Craig, uma de nossas moças vai passar um mês de férias em casa. É uma fã sua e
poderia sublocar o apartamento por seiscentos dólares. Ela viaja amanhã.
O apartamento era um conjugado confortável e arejado. Havia uma mesa larga que
serviria perfeitamente de escrivaninha, colocou uma pilha de papel no centro,
com um tijolo por cima servindo de peso, o dicionário Concise Oxford do lado e
disse em voz alta:
- De volta aos negócios.
Quase esquecera como as horas passavam depressa naquele universo, e na pura
alegria de ver os papéis manuscritos empilharem-se na extremidade da mesa.
Morgan Oxford telefonou-lhe duas vezes durante os dias seguintes para convidá-lo
a comparecer a festas diplomáticas, e, nas duas vezes, Craig recusou, acabando
por desligar o telefone. Quando o religou no quarto dia, o telefone tocou quase
que imediatamente.
- Sr. Mellow? - era uma voz africana. - Tivemos muita dificuldade em achá-lo. Um
instante, por favor, o general Fungabera quer falar com o senhor.
- Craig, é Peter - o mesmo sotaque acentuado e o mesmo charme. - Podemos nos
encontrar hoje à tarde? Às três? Vou mandar um chofer apanhá-lo.
A residência particular de Peter Fungabera ficava a uns oito quilómetros fora da
cidade, nas colinas que dominavam o lago Macillwane. A casa fora originalmente
construída na década de vinte para o filho mais moço de um industrial de aviação
inglês. Era cercada por grandes varandas, beirais brancos em relevo e uns 20 000
metros quadrados de gramados e árvores floridas.
Uma guarda de soldados da Terceira Brigada, em uniforme completo, revistou
Craig e o chofer no portão antes de permitir o acesso à casa principal. Quando
subiu os degraus da frente, Peter Fungabera estava à sua espera no alto. Vestia
calças de algodão branco e uma camisa de seda vermelha de mangas curtas, que
contrastava com a pele negra. Com o braço passado amigavelmente em torno dos
ombros de Craig, levou-o pela varanda até onde sentava-se um pequeno grupo de
pessoas.
- Craig, apresento-lhe o sr. Musharewa, o presidente do Banco Territorial de
Zimbábue. Este é o sr. Kapwepwe, seu assistente, e este é o sr. Cohen, meu
advogado. Senhores, este é o sr. Craig Mellow, o famoso escritor.
Depois de trocarem apertos de mão, Peter perguntou-lhe:
- Um drinque, Craig? Estamos bebendo Bloody Marys.
- Gostaria de um, também, obrigado.
Um criado com um amplo kanza branco, remanescente dos dias coloniais, trouxe-
lhe o drinque e, quando saiu, Peter Fungabera disse com simplicidade:
- O Banco Territorial de Zimbábue concordou em lhe dar uma garantia pessoal
para um empréstimo de cinco milhões de dólares do Banco Mundial ou de seu
associado em Nova York.
Craig olhou-o, boquiaberto.
- Sua ligação com o Banco Mundial não é um segredo tão bem-guardado assim,
sabe. Henry Pickering é também muito conhecido aqui. - Peter sorriu,
prosseguindo rapidamente: - Claro que há certas condições e cláusulas, mas não
acho que sejam proibitivas. - Virou-se para o advogado branco. - Está com os
documentos, Izzy? Ótimo, dê uma cópia ao sr. Mellow e, depois, leia-os para nós,
por favor.
Isadore Cohen ajeitou os óculos, endireitou a grossa pilha de papéis à sua
frente e começou:
- Em primeiro lugar, esta é a permissão para compra de terras - e leu: -
"Autorização para Craig Mellow, súdito britânico e cidadão de Zimbábue, comprar
o controle do interesse da companhia privada de terras conhecida como Rholands
(Pr.) Ltda. Esta permissão está assinada pelo presidente do Estado e pelo
ministro da Agricultura".
Craig lembrou-se da promessa de Tungata Zebiwe de impedi-la a todo custo e,
em seguida, que o ministro era cunhado de Peter Fungabera. Olhou para o general,
mas este ouvia atentamente as palavras do advogado.
Quando começava a ler cada documento da pilha, Isadore Cohen fazia-o sem
omitir sequer o preâmbulo, e dava uma pausa ao fim de cada parágrafo para
perguntas e explicações.
Craig estava tão excitado que mal conseguia controlar-se e ficar quieto,
sentado, mantendo a postura e expressão compatíveis com um homem de negócios. O
pânico momentâneo que sentira com a súbita menção de Peter ao Banco Mundial fora
esquecido e tinha ímpetos de pular e dançar pela varanda: Rholands era sua,
King's Lynn era sua, Queen's Lynn e Águas do Zambeze também.
Mesmo com toda a excitação, houve um parágrafo que soou estranho quando
Isadore Cohen o leu.
- Mas que diabos significa "inimigo do Estado e do povo de Zimbábue"? -
perguntou.
- É uma cláusula-padrão em todos os nossos documentos - acalmou-o Isadore
Cohen -, uma mera expressão de sentimento patriótico. Se o beneficiário se
engajasse em atividades de traição ao Estado e fosse declarado um inimigo do
Estado e do povo, o Banco Territorial seria obrigado a repudiar todas as
obrigações contraídas com o culpado.
- Isso é legal? - Craig estava em dúvida e, quando o advogado o tranqüilizou,
continuou: - Acha que o banco que vai fazer o empréstimo aceitará esta cláusula?
- Já fizeram isso em outros contratos de segurança - disse-lhe o presidente
do banco. - Como disse o sr. Cohen, é uma cláusula-padrão.
- Afinal, Craig - sorriu Peter Fungabera -, você não tem a intenção de
liderar uma revolução armada para derrubar nosso governo, não é?
- Bem, se o banco americano aceitar, suponho que seja legal - e devolveu-lhe
o sorriso, hesitante.
A leitura levou quase uma hora e, em seguida, o presidente Musharewa assinou
todas as cópias, assim como seu assistente e Peter Fungabera. Foi, então, a vez
de Craig assinar, seguido pelas testemunhas e, finalmente, Isadore Cohen lacrou
cada documento com o selo de Comissário Juramentado.
- É isso, cavalheiros. Assinado, lacrado e entregue.
- Ah, será que esqueci de mencionar? - Peter Fungabera sorriu maliciosamente. -
O sr. Kapwepwe falou com Pickering ontem à tarde, às 10 horas de Nova York. O
dinheiro estará à sua disposição logo que a garantia chegue em suas mãos - fez
um sinal para o criado. - Pode trazer o champanhe agora.
Brindaram-se uns aos outros, ao Banco Mundial, ao Territorial e à Companhia
Rholands e, só quando a segunda garrafa estava vazia, os dois banqueiros negros
despediram-se com relutância.
Enquanto a limusine se afastava, Peter Fungabera pegou o braço de Craig.
- Agora, podemos discutir a minha comissão. O sr. Cohen tem os papéis.
Craig os leu e sentiu que empalidecia.
- Dez por cento - arquejou. - Dez por cento das ações ao portador da Rholands.
- Precisamos mudar esse nome - disse Fungabera, franzindo a testa. - Como vê, o
sr. Cohen ficará com as ações como meu preposto. Isso evitará embaraços no
futuro.
Craig fingiu que relia o contrato, enquanto tentava formular um protesto e os
dois homens o observavam em silêncio. Dez por cento era roubo, mas o que mais
podia fazer?
Isadora Cohen destampou lentamente a caneta e estendeu-a a Craig.
- Acho que vai achar um ministro de gabinete e comandante militar sócios muito
convenientes neste negócio - disse, e Craig pegou a caneta.
- Há uma única cópia - Peter ainda sorria - e vou ficar com ela. - Craig
assentiu.
Não haveria qualquer prova da transação, com as ações em mãos de um preposto, e
nenhuma documentação, exceto as de Peter Fungabera. Numa disputa, seria a sua
palavra contra a de um ministro - mas queria a Rholands mais que qualquer outra
coisa na vida.
Assinou o contrato, e, do outro lado da mesa, os dois homens relaxaram
visivelmente e Peter Fungabera mandou buscar outra garrafa de champanhe.
ATÉ ALI, Craig dispusera de tempo, e fez uso dele da maneira que lhe convinha
melhor. Não tinha preocupações a não ser com uma caneta e uma pilha de papéis.
De repente, confrontava-se com a enorme possibilidade de gerir as propriedades e
o tempo de que dispunha. Havia tanta coisa a fazer e tão pouco tempo que sentia-
se paralisado pela indecisão, assustado pela própria audácia e em dúvida sobre
sua capacidade de organização.
Queria sentir-se encorajado e reconfortado, e pensou em Sally- Anne. Foi até o
apartamento, mas as janelas estavam fechadas, a caixa, cheia de correspondência
e ninguém respondeu às suas batidas. Voltou para o conjugado, sentou-se à mesa,
pegou uma folha de papel e escreveu: "Trabalho a ser feito" e ficou olhando para
ela.
Lembrou-se do que Janine lhe havia dito certa vez: "Você só faz bem uma única
coisa na vida..." E escrever um livro era muito diferente do que recuperar uma
companhia de vários milhões de dólares. Sentiu que ia entrar em pânico, mas
conseguiu combatê-lo. Vinha de uma família de fazendeiros, fora criado com o
cheiro de amoníaco das fezes de vaca e aprendera a avaliar gado em pé quando
ainda era pequeno o bastante para dependurar-se no arção da sela de Bawu como um
pardal num poste.
- Posso fazer isso - disse a si mesmo com decisão, e começou a preparar uma
lista:
1) Telefonar para Jock Daniels e aceitar a oferta para a compra da Rholands.
2) Voar para Nova York:
a) Reunião no Banco Mundial.
b) Abrir conta e depositar fundos.
c) Vender o Bawu.
3) Voar para Zurique:
a) Assinar a compra das ações.
b) Providenciar o pagamento aos vendedores.
Pegou o telefone e ligou para a British Airways que tinha passagem no vôo de
sexta-feira para Londres e, de lá, para Nova York. Ligou em seguida para o
escritório de Jock Daniels.
- Mas onde diabos você se meteu? - Percebeu que Jock já começara antes da hora
com os drinques noturnos.
- Jock, meus parabéns, acaba de ganhar uma comissão de vinte e cinco mil dólares
- disse, e ficou gozando o silêncio do outro lado do fio.
A lista começou a expandir-se e cobriu uma dúzia de páginas:
39) Descobrir se Okky van Rensburg ainda está no país.
Okky fora o mecânico de King's Lynn por vinte anos e o avô gabava-se que ele
podia desmontar e montar novamente um trator John Deere e fazer um Cadillac e um
Rolls-Royce Silver Clouds das peças que sobravam; precisava dele.
Soltou a caneta e sorriu ao lembrar-se do avô:
- Estamos chegando em casa, Bawu - disse em voz alta; olhou o relógio, viu que
já eram dez horas, mas sabia que não conseguiria dormir.
Vestiu um suéter leve, saindo para caminhar nas ruas escuras, e, uma hora
depois, estava em frente ao apartamento de Sally-Anne. Parecia que os pés haviam
seguido automaticamente esse rumo.
Sentiu uma ligeira excitação ao ver que a janela estava aberta e a luz acesa.
- Quem é? - ela perguntou com voz abafada.
- Sou eu, Craig - e houve um longo silêncio.
- É quase meia-noite.
- São só onze horas. Tenho uma coisa para lhe contar.
- Oh, está bem, a porta está aberta.
Estava na câmara escura e ele podia ouvir o ruído dos produtos químicos sendo
manipulados.
- Só mais cinco minutos - ela disse. - Sabe fazer café?
Quando saiu, vestia uma malha até os joelhos com os cabelos soltos até os
ombros; nunca a vira assim e arregalou os olhos.
- É melhor que seja importante - disse, com as mãos nas cadeiras.
- Consegui a Rholands - essa foi a vez dela arregalar os olhos.
- Quem ou o que é Rholands?
- A companhia que é dona do Águas do Zambeze. Consegui. É minha, agora. Isso é
suficiente?
Começou a andar em sua direção, ele fez o mesmo, mas ela se dominou parando em
seguida, forçando-o a imitá-la. Só dois passos os separavam.
- São notícias maravilhosas, Craig. Estou tão feliz por você. Como foi que
aconteceu? Pensei que já estava tudo terminado.
- Peter Fungabera arranjou uma garantia para um empréstimo de cinco milhões
de dólares.
- Meu Deus, cinco milhões. Você está pedindo emprestado cinco milhões? Quanto
são os juros sobre cinco milhões?
Ele não queria pensar sobre isso, o que ficou evidente em seu rosto e ela
imediatamente arrependeu-se.
- Sinto muito. Isso foi uma indiscrição minha. Estou muito contente por você.
Precisamos celebrar - foi rapidamente até a cozinha.
Achou no armário uma garrafa de uísque Glenlivet com dois dedos no fundo e
acrescentou-o ao café quente.
- Ao sucesso do Águas do Zambeze - brindou, erguendo a caneca. - Antes de
mais nada, conte-me tudo o que aconteceu. Depois, também tenho "notícias a dar.
Craig contou-lhe os planos: o desenvolvimento das duas fazendas ao sul, a
reconstrução da sede, a formação do novo rebanho com gado de raça, descreveu-lhe
em detalhes o que planejava para o Águas do Zambeze e sua vida silvestre,
sabendo que era um assunto mais interessante para ela. Passava de meia-noite
quando terminou.
- Estava pensando... Vou precisar de um toque feminino no planejamento e na
instalação dos acampamentos, mas não de qualquer mulher. Ela tem de ter gosto
artístico e é necessário que conheça e goste da África... - Que tal você?
- Craig, você esqueceu que tenho uma bolsa do World Wild- life Trust em tempo
integral?
- Não vai lhe tomar muito tempo - ele protestou -, apenas vai agir como
consultora. Voaria para lá por um dia ou dois sempre que conseguisse encaixar
seu tempo. E, naturalmente, quando os acampamentos já estiverem em
funcionamento, gostaria que fizesse uma série de conferências e exibições de
filmes e fotos para os hóspedes. - Viu que abordara o assunto pelo lado certo:
como todo artista, adorava uma oportunidade para mostrar seus trabalhos.
- Não vou lhe fazer nenhuma promessa - disse-lhe severamente, mas ambos
sabiam que o faria, e Craig sentiu a carga de responsabilidades aliviar-se
muito.
- Disse que tinha novidades para me contar - lembrou-a afinal, grato pela
chance de poder esticar mais a noite, mas estranhou o fato de vê-la subitamente
tão séria.
- Sim, tenho novidades - e fez uma pausa, procurando controlar-se, para
continuar -, achei a pista do caçador-mor.
- Meu Deus! O desgraçado que matou todas aquelas manadas de elefantes? Isso é
o que chamo de notícia. Onde? Como?
Sabe que tenho estado nas montanhas do leste nos últimos dez dias. O que não
lhe contei é que estou orientando um estudo sobre os leopardos para o Wildlife
Trust. Tenho pessoas trabalhando para mim na maioria das áreas da floresta onde
existem leopardos. Estamos contando e mapeando o território deles, registrando
os saques e as mortes, tentando avaliar o efeito do novo influxo humano sobre
eles. O que leva a um de meus trabalhadores. É um caçador shangane malcheiroso
que deve andar pela casa dos oitenta anos, sua mulher mais moça tem dezessete e
o presenteou com gêmeos na semana passada. É um tremendo malandro, mas com
grande senso de humor e uma queda por uísque escocês; bastam dois tragos de
Glenlivet e desanda a falar. Estávamos os dois sozinhos, acampados nas montanhas
Vumba e, depois do segundo trago, deixou escapar que tinham lhe oferecido
duzentos dólares por uma pele de leopardo. Queriam todas as que pudesse
conseguir e lhe dariam as armadilhas de mola de aço. Dei-lhe outro gole e
consegui descobrir que a oferta fora feita por um preto jovem e bem-vestido,
dirigindo um jipe do governo. O velho shangane disse que tinha medo de ser
preso, mas o homem assegurou-lhe que não correria perigo, que estaria sob a
proteção de um dos grandes chefes de Harare, um camarada ministro que fora um
guerrilheiro famoso e ainda comandava um exército particular.
Havia uma pasta de papelão, sobre a cama de campanha, que Sally-Anne pegou e
entregou a Craig. Dentro, na primeira folha, havia uma lista completa do
ministério de Zimbábue, com vinte e seis nomes, cada qual com um dossiê
correspondente.
- Podemos reduzir a lista de imediato, poucos dos membros do Gabinete lutaram
realmente - disse Sally-Anne. - A maioria passou a guerra em uma suíte no Ritz
de Londres ou numa dacha à beira do mar Cáspio.
Sentou-se nas almofadas ao lado de Craig e passou para a segunda página.
- Seis nomes. Seis comandantes - apontou.
- Ainda assim, nomes demais - murmurou Craig, que viu o nome de Peter
Fungabera liderando a lista.
- Podemos ir mais longe - ela discordou. - Um exército particular,
dissidentes, o que significa que são todos matabele. Seu líder teria de ser da
mesma tribo - e virou para a página seguinte. - Um dos comandantes mais bem-
sucedidos é matabele e ministro do Turismo e do Departamento de Proteção à Vida
Silvestre. É um velho ditado, mas aqueles que montam guarda a um tesouro são com
freqüência quem os pilha. Tudo se encaixa.
Craig leu o nome: Tungata Zebiwe, e descobriu que não gostaria que aquilo
fosse verdade.
- Mas ele trabalhou comigo no Departamento de Caça, era meu patrulheiro.
- Como eu disse, os guardiães têm mais oportunidade para o botim que qualquer
outro.
- Mas o que Sam faria com o dinheiro? O caçador-mor deve estar amealhando
milhões de dólares e Sam leva uma vida muito frugal, todo mundo sabe disso, nada
de grandes casas ou carros caros, nada de presentes para mulheres ou terras
compradas. Nenhum hábito dispendioso.
- Exceto, talvez, o mais dispendioso de todos - disse calmamente Sally-Anne.
- Poder. - E, diante dos protestos de Craig, tornou a afirmar: - Poder. Você não
vê, Craig? Manter um exército particular de dissidentes custa dinheiro, muito,
muito dinheiro.
Craig teve de admitir que as peças se encaixavam. Henry Pickering o alertara
para um golpe próximo financiado pelos soviéticos. Os russos tinham apoiado a
facção matabele ZIPRA durante a guerra e seu candidato seria quase que
certamente um deles.
Mas ainda resistia a essa idéia, apegando-se à lembrança do homem que fora
seu amigo, provavelmente o melhor amigo que já tivera. Lembrava-se da extrema
decência do homem que conhecera como Samson Kumalo, o cristão educado por
missionários, pessoa de integridade e princípios, que pedira demissão junto com
ele do Departamento de Caça quando desconfiaram que seu superior imediato estava
envolvido numa quadrilha de caça clandestina. Seria ele agora o caçador-mor em
pessoa? O homem que o ajudara, quando estava em uma cadeira de rodas e sem
dinheiro, a recuperar sua única posse, o iate, antes de deixar a África? Seria
agora um conspirador ambicioso?
- Ele é meu amigo - disse Craig.
- Era seu amigo. Está muito mudado. Quando o viu pela última vez, declarou-se
seu inimigo - frisou Sally-Anne. - Você mesmo me contou isso.
Craig concordou, e lembrou-se de repente da busca feita no cofre do hotel por
ordens superiores. Tungata devia ter suspeitado que era um agente do Banco
Mundial e chegado à conclusão de que fora designado para recolher informações
sobre a caça furtiva e o golpe político. Só isso poderia explicar a oposição
violenta e veemente a seus planos.
- Detesto isso - murmurou Craig. - Odeio esta idéia, mas acho que você pode
estar certa.
- Estou segura disto.
- E o que vai fazer?
- Vou levar a Peter Fungabera as provas que tenho.
- Ele vai esmagar Sam - disse Craig, e ela retrucou:
- Tungata é mau, Craig, é um predador!
- É meu amigo.
- Era seu amigo - contradisse veemente Sally-Anne. - Você não sabe no que ele se
transformou, o que lhe aconteceu na guerrilha. A guerra e o poder mudam qualquer
ser humano.
- Oh, Deus, eu odeio isso.
- Vamos juntos ver Peter Fungabera. Fique junto comigo quando eu expuser o caso
contra Tungata Zebiwe. - Sally-Anne segurou-lhe a mão, num gesto afetuoso que
Craig não cometeu o erro de retribuir.
- Sinto muito, Craig - acrescentou. - Muito mesmo - e soltou-lhe a mão.

PETER FUNGABERA podia recebê-los de manhã cedo e foram os dois juntos de carro
até a casa das colinas Macillwane.
Um criado levou-os ao escritório do general, uma enorme sala pouco mobiliada com
vista para o lago, que fora um dia a sala de bilhar. Uma parede estava coberta
por um mapa em blow-up de todo o território, espetado com bandeirinhas
multicores. Sob as janelas, havia uma grande mesa coberta de relatórios,
despachos e papéis parlamentares, e uma escrivaninha de teca vermelha africana
ocupava o centro do assoalho de pedra sem tapetes.
Peter Fungabera levantou-se para cumprimentá-los. Estava descalço e vestido com
um simples pano de algodão branco amarrado nos quadris. A pele nua do peito
estirada sobre os músculos desenvolvidos brilhava como se tivesse sido recém-
untada. Via-se claramente que Peter mantinha-se no auge da forma de um
guerreiro.
- Desculpem-me os trajes - disse, sorridente, ao saudá-los. - Mas sinto-me
mais à vontade quando posso ser completamente africano.
Diante da escrivaninha, havia banquetas de ébano caprichosamente lavradas.
- Vou mandar buscar cadeiras - ofereceu. - Recebo poucos brancos aqui.
- Não, não - respondeu Sally-Anne, ajeitando-se comodamente em uma das
banquetas.
- Sabem que tenho sempre o maior prazer em vê-los, mas devo estar no
Congresso às dez horas - apressou-os Fungabera.
- Vou direto ao assunto - concordou Sally-Anne. - Acho que sabemos quem é o
caçador-mor.
Peter estava a pique de sentar-se, e inclinou-se bruscamente para a frente
com os punhos apoiados na escrivaninha, o olhar penetrante e interrogador.
- Disse-me que bastava que eu lhe desse o nome e o esmagaria - lembrou-o
Sally-Anne, e Peter aquiesceu.
- Diga-me o nome - ordenou, mas antes Sally-Anne contou sobre as fontes de
informação e as deduções que fizera, assim como narrara a Craig; Peter Fungabera
ouviu-a em silêncio, franzindo as sobrancelhas ou balançando a cabeça
pensativamente enquanto acompanhava o raciocínio, até que chegasse ao último
nome da lista.
- Camarada ministro Tungata Zebiwe - repetiu Peter, baixinho, e finalmente
acomodou-se na cadeira e pegou o bastão sobre a escrivaninha, batendo-o na palma
rosada da mão esquerda e olhando por sobre a cabeça de Sally-Anne para a parede
coberta pelo mapa.
O silêncio prolongou-se até que Sally-Anne perguntasse:
- E então?
- Escolheu a brasa mais quente da fogueira para que eu a tirasse com as mãos
nuas - disse Fungabera, olhando-a. - Está segura de não ter sido influenciada
pelo tratamento dispensado pelo camarada Tungata Zebiwe ao senhor Craig Mellow?
- Isso não é justo - respondeu Sally-Anne, baixinho.
- suponho que não seja - e Peter Fungabera olhou para Craig. - O que acha?
Era meu amigo e foi muito bondoso comigo.
Isso foi em outros tempos - apontou-lhe Fungabera.
- Agora, declarou-se seu inimigo.
Eu ainda gosto dele e o admiro.
E no entanto...? - sondou Peter.
E, no entanto, acho que Sally-Anne talvez esteja na pista certa - concedeu
Craig com ar infeliz.
Fungabera levantou-se e atravessou a sala silenciosamente até o grande mapa.
- O país inteiro é um estopim - começou, olhando as bbandeirinhas coloridas.
- Os matabele estão à beira de uma rebelião aqui, aqui e aqui! Suas guerrilhas
estão se reunindo na mata - e bateu no mapa. - Fomos forçados a cortar a
conspiração de seus líderes irresponsáveis que preparavam a luta armada. Nkomo
está em confinamento forçado, dois membros matabele do Gabinete foram presos e
acusados de alta traição. Tungata Zebiwe é o último matabele no governo. É
extremamente respeitado, mesmo fora de sua tribo, enquanto os matabele o
consideram o seu último líder. Se o tocássemos...
- Vai deixá-lo escapar impune! - Sally-Anne desapontou-se. - Vai conseguir
escapar. Mas que belo paraíso socialista este. Uma lei para o povo e outra para
os governantes.
- Cale-se, mulher - ordenou Fungabera, e ela obedeceu. - Estava explicando a
vocês as conseqüências de uma ação precipitada - continuou, voltando para a
escrivaninha. - Prender Tungata Zebiwe poderia mergulhar o país todo em uma
sangrenta guerra civil. Não disse que não ia agir, mas certamente não faria nada
sem provas positivas e o testemunho de pessoas independentes e de imparcialidade
impecável para apoiar-me. - Fixava ainda o mapa na parede. - O mundo já nos
acusa de planejar um genocídio tribal contra os matabele enquanto tudo o que
fazemos é manter a lei e procurar uma fórmula de acomodação com essa tribo
guerreira e intratável. No momento, Tungata Zebiwe é nosso único contato
razoável e conciliatório com os matabele, não podemos arcar com o preço de sua
destruição - e fez uma pausa, aproveitada por Sally-Anne:
- Uma coisa que não mencionei, mas que Craig e eu discutimos, é o fato de
que, se Tungata Zebiwe é o caçador-mor, está usando os lucros para algum fim
especial. Não mostra sinais visíveis de extravagância, mas sabemos que há uma
ligação entre ele e os dissidentes.
- Se for Zebiwe, eu o agarro - prometeu mais para si mesmo Peter, com uma
expressão dura e um olhar terrível. - Mas, quando o fizer, terei provas para que
o mundo veja; ele não me escapará.
- Então, é melhor que se apresse - avisou-o sem rodeios Sally- Anne.
- ESCOLHEU UMA BOA época para vender. - O corretor de barcos estava na cabine
do Bawu e tinha uma aparência náutica com o blazer de lapelas duplas e o boné
com a âncora dourada.
O bronzeado era perfeito, e adquirido com lâmpada ultravioleta. Havia uma
fina rede de rugas em torno dos penetrantes olhos azuis. Craig estava seguro que
não era de tanto franzi-los espiando no sextante ou devido ao sol tropical, mas
de tanto examinar etiquetas de preço e algarismos de talões de cheque.
- Os juros estão caindo, e as pessoas voltaram a comprar iates novamente.
Era como discutir os termos de um divórcio com um advogado ou os arranjos com
um agente funerário. O Bawu fora parte integrante de sua vida por muito tempo.
- Está em boa forma, todo certinho, e o preço é razoável. Vou trazer umas
pessoas para vê-lo amanhã.
ASHE LEVY também parecia um agente funerário quando Craig lhe telefonou.
Contudo, mandou um mensageiro até a marina para buscar os três primeiros
capítulos que completara na África e, depois, Craig foi almoçar com Henry
Pickering.
- É ótimo ver você. - Esquecera como se afeiçoara a esse homem em apenas dois
breves encontros.
- Vamos pedir um vinho primeiro - sugeriu Henry, e decidiu-se por um Grands
Echézéaux.
- Sujeito corajoso - sorriu Craig. - Sinto sempre medo de pronunciar esse
nome e as pessoas acharem que estou tendo uma crise de espirros.
A maioria tem o mesmo receio. Talvez seja por isso que é o menos conhecido entre
os grandes vinhos do mundo, o que faz o preço ficar baixo, graças a Deus.
Sentiram o buquê do vinho e, em seguida, provaram-no seguindo o ritual que um
bom vinho merece.
Agora, conte-me o que acha do general Peter Fungabera - pediu Henry.
Está tudo em meus relatórios. Não os leu?
- Li, sim, mas quero que me conte, de qualquer maneira. Às vezes, em uma
conversa, aparece um detalhe que escapou no relatório.
- Peter Fungabera é um homem culto. Seu inglês é excelente tanto na escolha das
palavras quanto na forma como se expressa, mas tem um pronunciado sotaque
africano. De uniforme, parece um general do Exército Britânico e em trajes
civis, uma estrela de seriado de televisão; mas, com um pano na cintura, parece
o que realmente é, um africano. É o que todos nós tendemos a esquecer. Todo
mundo conhece a impenetrabilidade chinesa e a fleugma britânica, mas raramente
achamos que o africano negro tenha uma natureza especial.
- Aí está! - exclamou Pickering, satisfeito. - Isso não estava nos seus
relatórios, Craig. Continue.
- Pelos nossos padrões os consideramos lentos, não compreendemos que não é a
indolência que os faz assim, mas uma profunda ponderação diante de qualquer
assunto antes de agir. Nós os achamos diretos e simples, quando na realidade são
pessoas muito reservadas e cheias de meandros, mais ligadas ao clã que os
escoceses. Podem manter uma briga de sangue por cem anos, como os sicilianos.
Henry Pickering ouvia atentamente, e aproveitava as pausas para fazer-lhe
perguntas. Em uma das vezes, disse:
- Há algo que ainda acho confuso, Craig, a diferença sutil entre os termos
matabele, ndebele e sindebele. Pode me explicar?
- Um francês chama a si mesmo de "français", mas nós os chamamos de francês. Um
matabele chama-se de ndebele e nós, de matabele.
- Sim - concordou Henry -, e a língua falada é o sindebele, não é?
- É isso mesmo. Na verdade, hoje em dia a palavra matabele parece ter adquirido
conotações coloniais desde a independência...
A conversa fluía fácil e descontraída, por isso foi com surpresa que Craig viu
que eram praticamente os últimos fregueses do restaurante e que o garçom os
rondava com a conta.
- O que estava tentando dizer - concluiu Craig - é que o colonialismo deixou a
África com uma série de valores impostos. A África os rejeitará e voltará aos
seus próprios valores, se tiver oportunidade.
- E provavelmente será mais feliz assim - terminou por ele Henry Pickering. -
Bem, Craig, você fez jus a seu dinheiro. Estou muito contente que esteja de
volta. Posso prever que, em breve, você será nosso agente mais produtivo lá.
Quando pretende voltar?
- Só vim a Nova York pegar um cheque.
A risada peculiar e agradável de Henry foi acompanhada de um comentário.
- Voeê sugere com a sutileza de um martelo. Fico até arrepiado com a perspectiva
de um pedido direto seu. - Pagou a conta e levantou-se. - Nosso advogado está à
nossa espera. Primeiro, vai ter que vender a alma e o corpo a nós, e só depois
entrego o crédito para cinco milhões de dólares.
O interior da limusine estava silencioso e fresco e a suspensão do carro anulava
a trepidação causada pelo asfalto malconservado das ruas de Nova York.
- Agora, fale mais sobre as conclusões de Sally-Anne Jay sobre o cabeça da
quadrilha de caçadores furtivos - incitou-o Henry.
- Neste estágio, não vejo outra possibilidade alternativa para o caçador-mor,
nem mesmo para o líder dos dissidentes.
Henry ficou silencioso por algum tempo.
- O que acha da relutância do general Fungabera em agir?
- É um homem prudente e um africano. Não vai apressar-se. Vai pensar muito
nisso, colocar a rede com cuidado, mas, quando resolver-se a agir, acho que
ficaremos todos surpresos com a rapidez devastadora e decisiva com que o fará.
- Gostaria que desse ao general toda a assistência que puder. Cooperação total,
Craig.
- Sabe que Tungata foi meu amigo.
- Está com a lealdade dividida?
- Não, acho que não, não se for culpado.
- Ótimo! Minha diretoria está muito satisfeita com os resultados até agora.
Estou autorizado a aumentar sua remuneração para sessenta mil dólares por ano.
Lindo - sorriu Craig. - Será de grande ajuda para pagar os juros de cinco
milhões de dólares.
Ainda estava claro quando o táxi o deixou nos portões da marina. O smog de
Manhattan estava transfigurado pelo sol quase posto em uma linda névoa púrpura
que suavizava as silhuetas agressivas das grandes torres de concreto.
Ao descer a prancha e passar para o barco, o iate balançou levemente e alertou a
pessoa que estava na cabine.
- Ashe! - Craig estava espantado. - Ashe Levy, a fada-madrinha dos pobres
escritores!
- Oi, garoto! - e Ashe desceu para o convés com as passadas incertas de um homem
de terra firme. - Não pude esperar, tive de vir vê-lo imediatamente.
- Estou sensibilizado. - O tom de Craig era ácido. - Sempre que não preciso de
ajuda, você aparece a todo galope.
Ashe Levy ignorou a observação e colocou as mãos nos ombros dele.
- Eu li, reli e... tranquei os originais no cofre. - E abaixou a voz: - É lindo.
Craig engoliu a próxima ironia e tentou ver se havia sinais de insinceridade no
rosto de Ashe, mas por trás dos óculos de aro de ouro os olhos estavam brilhando
com as lágrimas represadas.
- É a melhor coisa que você já fez, Craig.
- São apenas três capítulos.
- Foi como um direto no estômago.
- Precisa de revisão.
- Duvido, Craig. Admito que estava começando a acreditar que você era incapaz de
escrever outro livro, mas isto... foi demais para mim. Estive sentado aqui
algumas horas pensando nele e acho que posso até recitar uns trechos de cor.
Craig estudou-o cuidadosamente: as lágrimas podiam ser um reflexo do crepúsculo
nas águas. Ashe tirou os óculos e assoou o nariz ruidosamente. As lágrimas eram
autênticas, mas mal podia acreditar e só havia um teste positivo.
- Pode me dar um adiantamento, Ashe?
Agora que não precisava mais de dinheiro, precisava ainda de uma última
certeza.
- De quanto precisa, Craig? Duzentos mil?
- Então quer dizer que você gostou de verdade? - Craig suspirou, afastando a
eterna incerteza dos escritores por algum tempo. - Vamos tomar um drinque, Ashe.
- Vamos fazer melhor do que isso, vamos tomar um porre.
Craig estava sentado na popa, com os pés apoiados no leme, observando o gelo
formar pequenos diamantes no corpo e já não prestava mais atenção aos
entusiasmos de Ashe sobre o livro. Deixou que os pensamentos tomassem outros
rumos e começou a refletir se não teria sido melhor sua sorte ter vindo em
parcelas, para que pudesse saboreá-la aos poucos. Poder vivenciar cada momento
isoladamente.
Pensou em King's Lynn, e as narinas palpitaram com a lembrança do odor das
ricas pastagens de Matabeleland. Pensou no Águas do Zambeze e ouviu novamente o
ruído de um grande corpo entre as moitas arrancadas, pensou nos vinte capítulos
que sucederiam os três iniciais e sentiu-se cheio de expectativa. Seria possível
que fosse o homem mais feliz do mundo naquele momento?
Não, não era. Compreendeu de repente que o gozo completo da felicidade só
poderia ser atingido se o compartilhasse com outro ser humano. Descobriu em si
um espaço vazio, uma lacuna, ao lembrar dos olhos com estranhos pontinhos
amarelos e da boca jovem e firme de Sally-Anne. Queria contar-lhe tudo, ler para
ela aqueles três capítulos e, de repente, desejou com todas as forças estar de
volta à África.
CRAIG ACHOU um Land-Rover de segunda mão no pátio de carros usados de Jock
Daniels que ficava ao lado do escritório de leilões. Não deu ouvidos à conversa
de vendedor dele e, em vez disso, ficou escutando o motor. Estava desregulado,
mas não havia ruídos estranhos ou "grilos". A transmissão dianteira engatava
perfeitamente e a embreagem resistia aos freios, quando foi testá-lo num terreno
acidentado nos arredores da cidade. O silenciador caiu, mas o resto agüentou.
Houve época em que era capaz de desmontar um Land-Rover e remontá-lo em uma
semana. Sabia que poderia aproveitar bem aquele. Conseguiu baixar o preço em mil
dólares e, mesmo assim, Jock recebeu um pagamento excessivo, mas estava com
pressa.
Empilhou no jipe tudo o que sobrara da venda do iate: uma mala de roupas,
alguns livros favoritos e um baú contendo os diários de família.
Esses diários eram toda a sua herança, tudo o que Bawu lhe deixara. O
restante das propriedades, inclusive as ações da Rholands, ficou para o filho
mais velho, seu tio Douglas, que vendera tudo e fora para a Austrália. No
entanto, aqueles velhos diários com textos manuscritos representavam a melhor
parte da herança. Eles forneceram o arcabouço para escrever o livro que lhe
trouxera tudo: realização, fama, fortuna, e até a própria Rholands viera ter às
suas mãos através daqueles documentos.
Ficou pensando quantas milhares de vezes dirigira em direção a King's Lynn -
mas nunca antes como naquele momento, nunca como o patrão. Parou no portão
principal para que pudesse tocar com os pés a própria terra pela primeira vez.
Pisou-a e olhou em torno a pastagem dourada, as moitas de acácias, a silhueta
das colinas azul-acinzentadas a distância, a cúpula azul do céu, e ajoelhou-se
como em oração. Era o único momento em que a perna o incomodava. Apanhou um
punhado da terra entre as mãos, quase tão rica e vermelha como a carne que nela
crescia. Dividiu-a em duas partes e deixou que uma pequena porção escorresse de
volta ao solo.
- Eis os seus dez por cento, Petèr Fungabera - sussurrou. - Mas esta aqui é
minha, e juro ampará-la por toda a vida, protegê-la e amá-la com a ajuda de
Deus.
Sentindo-se um pouco tolo com toda essa encenação, deixou a terra cair,
esfregou as mãos nas calças e voltou para o Land-Rover.
Na planície que antecedia a sede, encontrou um homem alto e magro que vinha
pela estrada com um cobertor gorduroso e sujo às costas, um pedaço de pano entre
as pernas e, sobre o ombro, um par de porretes. Os pés estavam calçados com
sandálias feitas de pneu velho e os brincos eram tampas de garrafas de ácido
embelezadas com contas coloridas, que tornavam os lóbulos das orelhas três vezes
maiores que o normal. Tocava à frente um pequeno rebanho de cabras.
- Eu o saúdo, irmão mais velho - cumprimentou-o, e o ancião mostrou a falha
dos dentes amarelados ao sorrir diante da cortesia do cumprimento e, também, ao
reconhecê-lo.
- Eu o saúdo, Nkosi. - Era o mesmo velho que encontrara agachado em frente
aos alojamentos de King's Lynn.
- Quando será que vai chover? - perguntou-lhe Craig, estendendo um maço de
cigarros que comprara especialmente para esse encontro.
Começaram a conversar à maneira despreocupada que precede na África qualquer
discussão séria.
- Qual é o seu nome, velho? - Um termo respeitoso e não uma acusação de
senilidade.
- Meu nome é Shadrach.
- Diga-me, Shadrach, suas cabras estão à venda? - pôde, enfim, perguntar sem
ser grosseiro, e a esperteza brilhou instantaneamente nos olhos do velho.
- São lindas cabras - disse. - Separar-me delas seria como me separar de meus
filhos.
Shadrach era o porta-voz e o líder da pequena comunidade de posseiros que
fixara residência em King's Lynn e, através dele, Craig descobriu que podia
negociar com todos, o que foi um alívio. Pouparia muito tempo e um bocado de
desgaste emocional.
Mas não iria privar Shadrach da oportunidade de mostrar sua habilidade em
barganhar, nem insultá-lo tentando apressar as negociações que, assim,
estenderam-se pelos dois dias seguintes, enquanto Craig refazia o teto do velho
bangalô de hóspedes com uma lona pesada, recolocava a bomba com motor para tirar
água do poço e acomodava a nova cama de campanha no quarto vazio.
No terceiro dia, o preço de venda foi acertado e tornou-se o proprietário de
quase duas mil cabras. Pagou-as em dinheiro vivo, entregando cada nota e moeda
pessoalmente a cada um para evitar brigas e, em seguida, amontoou suas ruidosas
aquisições em quatro caminhões alugados e mandou-as para os abatedouros de
Bulawayo, saturando o mercado e fazendo cair o preço em cinqüenta por cento.
Teve uma perda líquida de dez mil dólares na transação toda.
- Mas que grande estréia no mundo dos negócios. - Sorriu, e mandou chamar
Shadrach.
- Diga-me, velho, o que conhece sobre gado? - O que era como perguntar a um
polinésio o que sabia sobre peixe ou a um suíço se algum dia vira neve.
Quando era desta altura - respondeu Shadrach, indignado, abaixando-se e
mostrando o meio de sua perna -, esguichava leite quente da teta da vaca na
minha boca. Desta altura - deslocando a mão um pouco mais para cima -, tinha
duzentas cabeças sob a minha guarda. Ajudava os bezerros a nascerem quando
ficavam presos no ventre da mãe; carregava-os nestes ombros quando o pasto
ficava alagado. E desta altura - colocando a mão pouco acima do joelho -, matei
uma leoa, com minha lança assegai, quando atacou meu rebanho...
Craig ouviu a história pacientemente, até chegar pouco a pouco à altura dos
ombros, e Shadrach finalizou:
- E ainda ousa me perguntar se conheço gado!
- Breve, neste pasto, vou criar vacas tão magníficas e bonitas que, só de
olhá-las, seus olhos vão ficar rasos d'água. Terei touros cujos pêlos vão
brilhar como a água ao sol, suas corcovas serão como grandes montanhas nas
costas e as papadas pesadas e gordas vão se arrastar sobre a terra quando
caminharem.
- Uau! - exclamou Shadrach, de puro assombro, impressionado tanto pelo
lirismo de Craig como pelo fato em si.
- Preciso de um homem que saiba lidar com o gado, e com homens.
Shadrach achou-os para ele. Escolheu vinte, entre as famílias de posseiros,
todos fortes e com boa vontade, nem jovens demais para serem tolos e levianos, e
nem velhos demais para serem frágeis.
- Os outros - disse com desprezo - são o produto do casamento de babuínos com
mashona ladrões de gado. Eu ordenei que saíssem de nossa terra.
Craig sorriu diante daquele possessivo plural, mas ficou impressionado com o
fato de que, quando ele ordenava, os homens obedeciam.
Shadrach reuniu os recrutados defronte ao bangalô rusticamente consertado e
fez-lhes um tradicional giya, o discurso e pantomima inflados com que os velhos
induna matabele levantavam o moral dos guerreiros na véspera da batalha.
- Vocês me conhecem! - berrou. - Sabem que minha trisavô era filha do velho
rei Lobengula, o que corre como o vento.
- Êh-êh! - Começavam a entrar no espírito da coisa.
- Sabem que eu sou um príncipe de sangue real, e, num mundo justo, seria de
direito um induna com mil homens, com penas de pássaro no cabelo e caudas de boi
penduradas no meu escudo de guerra - e balançou no ar os porretes de luta.
- Êh-êh! - Observando-lhes a expressão, Craig viu o verdadeiro respeito que
tinham pelo velho e ficou encantado com sua escolha.
- E agora! - continuou Shadrach em tom de cantilena. - Por causa da sabedoria
e da visão do jovem Nkosi, tornei-me um induna. Sou o induna de King's Lynn -
nome que pronunciava "Kingi Lingi" - e vocês são os meus amadoda, os meus
guerreiros escolhidos - proclamou.
- Êh-êh! - concordaram em coro e bateram os pés nus na terra com estrondo.
- Olhem para este homem branco. Podem achar que é jovem e imberbe, mas saibam
que é o neto de Bawu e o bisneto de Taka Taka.
- Uau! - exclamaram surpresos os guerreiros de Shadrach porque eram nomes
famosos. Tinham conhecido Bawu em carne e osso e Sir Ralph Ballantyne apenas
como uma lenda. Taka Taka era o nome onomatopaico que recebera dos matabele
devido ao som da metralhadora Maxim que usara com tanta eficácia durante sua
revolta, e olharam para Craig com novo respeito.
- Sim - incitou-os Shadrach -, olhem para ele. É um guerreiro que tem
cicatrizes terríveis da guerrilha. Matou centenas de mashona covardes e
estupradores de mulheres. - Craig pestanejou ao ver com que licença poética
recontava sua história. - Matou até bravos lutadores matabele de coração de leão
do ZIPRA e agora vocês o conhecem como ele é: um homem, e não um menino.
- Êh-êh! - aclamaram, sem mostrar qualquer rancor com a suposta morte de seus
irmãos.
- Saibam também que veio para transformar vocês de mulheres guardadoras de
cabras que ficam coçando pulgas ao sol em orgulhosos vaqueiros de novo, porque -
e Shadrach fez uma pausa dramática - breve, neste pasto, vão pastar vacas tão
magníficas e bonitas que só de olhar para elas vão ficar com os olhos rasos
d'água.
Craig notou que Shadrach podia repetir perfeitamente suas próprias palavras,
mostrando a admirável memória dos iletrados. Quando terminou, dando um pulo no
ar como uma grande cegonha e uma batida dos porretes, aplaudiram-no com
entusiasmo e olharam para Craig em expectativa.
Vai ser difícil me sair tão bem quanto ele, pensou Craig, ao levantar-se para
falar em um sindebele baixo e musical.
- O gado logo estará aqui, e há muito trabalho a ser feito antes que chegue.
Vocês sabem qual é o salário que o governo fixou para os trabalhadores do campo.
Vou pagá-lo a cada um e também darei rações de comida para vocês e suas famílias
- o que foi recebido sem qualquer mostra de entusiasmo. - Além disso - e fez uma
pausa -, para cada ano de serviço que completarem, receberão uma vaca jovem de
boa qualidade e terão o direito de fazê-la pastar em Kingi Lingi, e o direito,
também, de cruzá-la com meus grandes touros para que tenha lindas crias.
- Êh-êh! - gritaram e bateram com os pés de alegria, até que Craig estendeu
as mãos.
- Pode ser que alguns de vocês fiquem tentados em tirar o que me pertence ou
achem alguma sombra de árvore para passar o dia em vez de estender o arame
farpado ou cuidar do gado - e olhou-os severamente, fazendo-os se encolherem. -
Este sábio governo proíbe que um homem dê um chute no outro, mas estejam bem
prevenidos, posso chutá-los sem usar meus próprios pés. - E abaixou-se, tirando
a perna com um movimento rápido e ficou diante deles segurando-a nas mãos,
deixando-os atônitos. - Vejam bem, não é o meu pé! - Os rostos começaram a ficar
assustados como diante de uma terrível feitiçaria, começaram a mexer-se
nervosamente e a olhar em torno para fugir. - E assim - gritou Craig - posso
chutar quem eu quero sem quebrar a lei. - Em dois saltos, usou o impulso para
bater com a bota da perna mecânica no traseiro do mais próximo guerreiro.
Por um momento, o silêncio atônito continuou, mas em seguida foram dominados
pelo próprio senso de ridículo. Riram às bandeiras despregadas, girando em
círculos e batendo com as mãos, abraçando-se e arfando com as risadas. Cercaram
o infeliz alvo da brincadeira de Craig, troçando, cutucando-o e morrendo de rir.
Shadrach, deixando de lado a dignidade de príncipe, caiu no chão às gargalhadas.
Craig olhava-os afetuosamente. Já eram a sua gente, a sua responsabilidade.
Claro que haveria maus elementos entre eles e teria de fazer uma seleção. E
claro que mesmo os melhores testariam deliberadamente a sua vigilância e
resolução, como era o costume africano, mas com o tempo acabariam por formar uma
família unida e sabia que aprenderia a amá-los.

As CERCAS eram a primeira tarefa, pois estavam em péssimo estado: faltavam


quilômetros de fios, certamente roubados, e, quando tentou substituí-los,
compreendeu por quê. Não havia nenhum arame à venda em Matabeleland, nem
qualquer licença de importação.
- Seja bem-vindo à grande alegria de ser fazendeiro no Zimbábue negro - disse-
lhe o gerente da Sociedade Cooperativa de Fazendeiros de Bulawayo. - Alguém
arranjou uma licença de um milhão de dólares para importar balas e chocolate,
mas não existe nenhuma para arame farpado.
- Pelo amor de Deus - Craig estava desesperado. - Tenho de fazer uma cerca. Como
posso criar gado sem isso? Quando vai receber um carregamento?
- Isso depende de algum funcionário do Departamento de Comércio em Harare - e o
gerente deu de ombros, fazendo com que Craig se encaminhasse para a saída,
quando de repente teve uma idéia e voltou.
- Posso usar seu telefone? - perguntou.
Discou o número particular que Peter Fungabera lhe dera, e, depois de
identificar-se, uma secretária completou a ligação imediatamente.
- Peter, temos um grande problema.
- Em que posso ajudá-lo?
Craig lhe explicou, e Peter ficou murmurando, enquanto tomava nota.
- De quanto precisa?
- Pelo menos uns mil e duzentos rolos.
- Mais alguma coisa?
- Por enquanto, não. Ah, sim, desculpe incomodá-lo, Peter, mas não consigo falar
com Sally-Anne. Não responde nem aos telefonemas nem aos telegramas.
- Telefone-me daqui a dez minutos - ordenou Peter Fungabera e, quando Craig
tornou a ligar, disse-lhe: - Sally-Anne está fora do país. Aparentemente, voou
até Quênia no Cessna. Está num lugar chamado Kitchwua Tembu, em Masai Mara.
- Sabe quando vai voltar?
Não, mas, logo que volte, aviso você.
Craig ficou impressionado com o alcance dos braços de Peter Fungabera para
que pudesse saber o paradeiro de alguém mesmo fora de Zimbábue. Obviamente,
Sally-Anne estava em alguma lista especial, e teve a súbita idéia de que o mesmo
devia ocorrer com ele.
Claro que sabia por que Sally-Anne estava em Kitchwua Tembu. Dois anos antes,
visitara o maravilhoso acampamento de safári nas planícies de Mara a convite dos
proprietários, Geoff e Jory Kent. Essa era a época em que enormes manadas de
búfalos em torno do acampamento começariam a dar crias e as batalhas entre as
fêmeas protetoras e os predadores ansiosos por devorar os recém-nascidos eram um
dos grandes espetáculos do veld africano. Sally-Anne certamente estaria lá com
sua Nikon.
De volta a King's Lynn, parou no correio e mandou-lhe um telegrama através do
escritório de Abercrombie e Kent, em Nairobi:
Traga-me algumas sugestões para o Águas do Zambeze.
Ponto. A caçada ainda continua.
Interrogação. Abraços Craig.
Três dias mais tarde, um comboio de caminhões subiu as colinas de King's Lynn
e um esquadrão da Terceira Brigada descarregou mil e duzentos rolos de arame
farpado, armazenando-os nos galpões destelhados dos tratores.
- Há algum recibo a ser pago? - perguntou Craig ao sargento encarregado. - Ou
algum papel para assinar?
- Não sei - foi a resposta. - Tudo o que sei é que me mandaram trazer isso, e
cumpri as ordens.
Craig ficou olhando os caminhões vazios afastarem-se colina abaixo e sentiu
um nó no estômago. Suspeitava que nunca haveria um recibo. Sabia também que isso
era a África e não gostava nem de pensar nas conseqüências de um desentendimento
com Fungabera.
Por cinco dias, trabalhou com as equipes matabele nas cercas, nu até a
cintura, com pesadas luvas de couro para proteger as mãos; fazia força nas
máquinas de esticar os fios, cantando canções de trabalho junto com os homens,
mas sentia um peso na consciência até que não pôde agüentar mais.
Ainda não havia telefone na fazenda e foi até Bulawayo, para falar com Peter
no Parlamento.
- Meu caro Craig, está criando um caso à toa. O intendente ainda não debitou
o arame. Mas, se isso faz com que se sinta melhor, mande-me um cheque e resolvo
o assunto imediatamente. Ah, Craig, - faça o cheque nominal, está bem?

NAS SEMANAS seguintes, Craig descobriu que podia sobreviver com muito menos
horas de sono do que imaginara possível. Levantava-se toda manhã às quatro e
meia e ia buscar as equipes matabele nas cabanas. Emergiam de lá sonolentos,
ainda embrulhados em cobertores e tremendo com o frio da madrugada, tossindo por
causa da fumaça das fogueiras e resmungando sem qualquer raiva.
Ao meio-dia, deitava-se à sombra de uma acácia e dormia a sesta como todos.
Reanimado, trabalhava a tarde toda até que ouvissem o som do gongo de estrada de
ferro dependurado em um jacarandá perto da sede; o grito de Shayle!, "bateu a
hora!", era passado adiante de equipe a equipe, e todos voltavam, subindo as
colinas.
Craig lavava o suor e a poeira no reservatório de concreto por trás do
bangalô, fazia uma refeição apressada e, quando ficava escuro, sentava-se numa
mesinha barata de jogo, à luz esbranquiçada e sibilante de um lampião a gás, com
uma pilha de papéis à frente e uma caneta, transportado a outro mundo
imaginário. Algumas noites, escrevia até bem depois de meia-noite, e às quatro e
trinta já estava de pé, no sereno da madrugada ainda indefinida, sentindo-se
alerta e vigoroso.
O sol escureceu-lhe a pele e clareou os cabelos que lhe caíam na testa; o
duro trabalho físico desenvolveu-lhe os músculos e enrijeceu o coto amputado, o
que lhe permitiu andar pelas cercas o dia inteiro sem desconforto. Havia tão
pouco tempo a desperdiçar que a comida que fazia era a mais simples possível e a
garrafa de uísque ficara fechada na mochila - o que o tornou esbelto e com o
rosto anguloso de um falcão.
Uma noite, ao parar o Land-Rover debaixo dos jacarandás e começar a subir em
direção ao bangalô, o aroma de rosbife e batatas atingiu-lhe em cheio as
narinas. Ficou com a boca cheia d'água e recomeçou a subida, repentinamente
esfomeado.
Na minúscula cozinha improvisada, havia uma figura muito magra ao lado do
fogo. O cabelo era macio e branco como algodão e levantou os olhos para Craig
com uma expressão acusadora.
- Por que não mandou me buscar? - perguntou em sindebele. Só eu cozinho aqui
em Kingi Lingi.
- Joseph! - gritou Craig, e abraçou-o impetuosamente.
O velho fora o cozinheiro de Bawu por trinta anos. Podia servir um banquete
formal para cinqüenta convidados ou preparar uma caçarola de carnes de caça em
plena mata. Já havia pão assando em um forno improvisado e preparara um prato de
salada que conseguira catar na horta abandonada.
Joseph libertou-se do abraço, um pouco chocado com aquela quebra de etiqueta.
- Nkosana - ainda usava o diminutivo -, suas roupas estavam sujas e sua cama
por fazer - repreendeu-o severamente. - Trabalhamos o dia todo para endireitar a
bagunça que fez.
Só então Craig reparou no outro homem na cozinha.
- Kapa-lala - riu alegremente, e o criado sorriu e balançou a cabeça
prazerosamente.
Estava passando roupa com o ferro pesado e preto cheio de brasas. Todas as
suas roupas, e as de cama, tinham sido lavadas e estavam sendo passadas de
maneira impecável. As paredes do bangalô tinham sido lavadas, também, e o
assoalho, muito bem polido. Até as torneiras da pia brilhavam como os botões de
um uniforme de fuzileiro.
- Fiz uma lista das coisas que precisamos - disse Joseph. - Por enquanto
servem, mas não é adequado que viva assim nesta choupana. Seu avô Nkosi Bawu
teria desaprovado isso. - Joseph, o cozinheiro, tinha idéias definidas sobre
estilo. - Assim, mandei um recado ao tio de minha mulher mais velha que é um
mestre em empalhar telhados, e disse-lhe que trouxesse também o filho mais velho
que é pedreiro, e o sobrinho, que é um ótimo marceneiro. Amanhã chegam aqui para
consertar os estragos que estes cães fizeram na casa-grande. Quanto aos jardins,
conheço um homem - e contava nos dedos o que achava necessário para restabelecer
um pouco de ordem em King's Lynn. - E estaremos prontos para convidar trinta
pessoas para a ceia de Natal como fazíamos nos velhos tempos. E agora, Nkosana,
vá tomar banho. O jantar vai ser servido daqui a quinze minutos.
Com os pastos bem cercados e o trabalho de restauração dos prédios e da sede
encaminhados, Craig podia finalmente começar o passo vital de recomprar gado.
Chamou Shadrach e Joseph, entregou King's Lynn aos cuidados dos dois durante sua
ausência, e ambos aceitaram a responsabilidade com ar grave. Foi até o
aeroporto, deixou o Land-Rover no estacionamento e tomou um dos vôos comerciais
para o sul.
Por três semanas, viajou por todos os grandes ranchos de criação do Transvaal
do Norte, a província da África do Sul cujo clima e condições mais se pareciam
aos de Matabeleland. A compra de gado de raça não era uma transação que pudesse
ser apressada. Cada uma era precedida por dias de discussão com o vendedor e com
o exame dos animais, enquanto gozava da tradicional hospitalidade campestre dos
sul-africanos brancos, os africânderes. Seus anfitriões eram homens cujos
antepassados tinham trilhado o cabo da Boa Esperança na direção norte em carros
de boi, e a vida inteira criaram esses animais. Enquanto fazia as transações,
aproveitava para acumular informações sobre as técnicas de manejo e as
experiências feitas com raças diferentes para melhorar os rebanhos. Tudo o que
aprendeu reforçou-lhe o desejo de continuar as bem-sucedidas experiências de
Bawu com as cruzas da raça indígena Afrikander, conhecida pela resistência às
doenças e à seca, com a Santa Gertrudes, que procriava mais rapidamente.
Comprou novilhas que já estavam prenhes através de inseminação artificial,
touros de bom pedigree com ascendentes famosos, e ocupou-se da documentação,
inspeção, vacinação, quarentena e seguro que eram necessários antes que fosse
permitido cruzar uma fronteira internacional com o gado. Enquanto isso,
providenciou o envio por estrada até King's Lynn, ao norte, com um pessoal
especializado em transporte de gado de alta qualidade.
Gastou quase dois milhões dos dólares emprestados antes de voltar a King's
Lynn e fazer os preparativos finais para a chegada do rebanho. A entrega dos
animais de raça tinha de ser escalonada ao longo de meses, para que cada lote
fosse recebido adequadamente e pudesse aclimatar-se antes que chegasse a próxima
remessa.
Os primeiros a chegar foram quatro jovens touros, prontos para assumir a
função de reprodutores. Craig pagara quinze mil dólares cada. Peter Fungabera
estava decidido a transformar essa chegada em uma grande ocasião. Convenceu dois
colegas de ministério a comparecer à cerimônia de boas-vindas, apesar de nem o
primeiro-ministro nem o de Turismo, Tungata Zebiwe, estarem livres naquele dia.
Craig alugou um toldo, e Joseph, cheio de felicidade e importância, preparou
um de seus legendários banquetes ao ar livre. E Craig, que ainda estava
preocupado com o fato de ter gasto dois milhões, resolveu economizar no
champanhe, encomendando a imitação feita no cabo da Boa Esperança, em vez do
artigo genuíno.
A comitiva ministerial chegou em uma flotilha de Mercedes negras, acompanhada
por uma guarda fortemente armada, todos usando óculos escuros do tipo predileto
dos pilotos. As senhoras estavam vestidas com longos estampados nas cores mais
improváveis e berrantes. O champanhe barato e doce foi consumido como se
houvessem tirado a rolha de uma banheira cheia, e todas, dali a pouco, estavam
dando risadinhas e pipilando como um bando de pardais vistosos. A mulher mais
velha do ministro da Educação desabotoou a blusa, mostrando seios opulentos e
negros, e tratou de dar ao bebê preso às cadeiras um almoço precoce, enquanto
continuava a tomar uma copiosa quantidade de champanhe.
- Reabastecimento em pleno vôo - observou, rindo, um dos vizinhos brancos de
Craig, ex-piloto de bombardeiro da RAF.
Peter Fungabera foi o último a chegar, em uniforme completo; seu motorista
era um jovem ajudante-de-ordens, capitão da Terceira Brigada, que Craig já
notara em outras ocasiões e, dessa vez, Peter apresentou-o:
- Capitão Timon Nbebi.
Era tão magro a ponto de parecer frágil, os olhos por trás dos óculos de aro
de aço, vulneráveis demais para um soldado e o aperto de mão, rápido e nervoso.
Craig teria gostado de conversar com ele, mas, nesse momento, o transporte que
trazia os touros já subia as colinas.
Dirigiu-se em uma nuvem de fina poeira vermelha até o curral preparado para
os animais. A prancha foi abaixada e, antes de abrirem-se as portinholas, Peter
Fungabera subiu em um dos estrados e dirigiu-se aos convidados.
- O sr. Craig Mellow é um homem que poderia ter escolhido qualquer país do
mundo para viver e, como um escritor de fama internacional, teria sido bem-
vindo. Preferiu voltar ao Zimbábue e, com isso, deixou claro ao mundo que esta é
uma terra onde homens de qualquer cor, de qualquer tribo, pretos ou brancos,
mashona ou matabele, são livres para viver e trabalhar, sem medo e sem serem
molestados, a salvo sob o governo de leis justas. - Depois do comercial
político, permitiu-se uma piadinha. - Vamos agora saudar esses novos imigrantes,
com o conhecimento seguro de que serão os pais de muitos filhos e filhas
admiráveis, contribuindo para a prosperidade de nosso Zimbábue.
Peter Fungabera iniciou os aplausos quando Craig levantou as portinholas e o
primeiro imigrante emergiu, aturdido pela luz do sol. Era um enorme animal, com
mais de uma tonelada de músculos salientes sob o couro castanho-avermelhado e
lustroso. Suportara dezesseis horas aos trancos, preso em um contêiner
barulhento. O efeito dos tranqüilizantes que lhe haviam dado acabara, deixando-o
com uma ressaca enorme e um ressentimento amargo contra o mundo em geral. Olhou
para o ajuntamento que batia palmas, para as cores esvoaçantes dos vestidos
tradicionais femininos, e achou finalmente um alvo para a irritação e a
frustração. Soltou um mugido feroz e, arrastando os manobreiros que o seguravam,
atirou-se como uma avalanche prancha abaixo.
Os homens o soltaram e a barreira de proteção explodiu diante da carga do
animal, assim como o grupo ministerial. Espalharam-se como sardinhas fugindo do
ataque de uma barracuda faminta. Funcionários graduados ultrapassaram as esposas
na corrida para a proteção oferecida pelos jacarandás e as crianças amarradas às
costas das mães berravam tanto quanto elas.
O touro foi a toda velocidade para a tenda onde seria servido o almoço;
atingindo de raspão as cordas que a prendiam, fê-la desabar por cima de uma
horda de celebrantes em pânico. Irrompeu do lado oposto no momento exato em que
uma das mais jovens esposas ministeriais corria, gritando de terror e cruzando
seu caminho. Tentou chifrá-la com um dos longos cornos mas a ponta atingiu
somente a beira do vestido. Ao levantar a cabeça, o pano colorido desenrolou-se
do corpo da jovem que fez uma pirueta involuntária, conseguiu equilibrar-se e,
completamente nua, subiu correndo a colina com as longas pernas e os seios
abundantes balançando.
- Aposto dois contra um como a potranca ganha por uma teta - berrou extasiado
o ex-piloto da RAF, que também bebera um bocado do champanhe barato.
O pano vistoso enrolara-se na cabeça do animal e conseguiu levá- lo da
simples raiva ao ódio mortal. Balançou a grande cabeça onde o vestido tremulava,
como um estandarte de batalha. Acabou libertando um de seus olhos e pousou-o no
honrado ministro da Educação, o menos dotado dos corredores, que ainda subia
penosamente a encosta.
O ministro ostentava o excesso de peso que convém a um homem de tal importância.
A enorme barriga protuberante oscilava sob o fraque, o rosto estava cor de cinza
e gritava em falsete, aterrorizado e exausto:
- Atirem nele! Atirem neste diabo!
Seus guarda-costas ignoraram as ordens. Estavam cinqüenta passos à sua frente e
aumentando a distância.
Craig olhava, impotente, do alto do caminhão, quando o touro abaixou a cabeça e
subiu o declive atrás do ministro. Voava poeira dos cascos e tornou a mugir. O
estrondo, que soou às costas do ministro, pareceu impulsioná-lo. Revelando ser
melhor alpinista que corredor, subiu pelo tronco do primeiro jacarandá à frente
e pendurou-se precariamente nos ramos.
O touro tornou a mugir em frustração assassina, olhando para a figura apavorada,
escavou a terra com os cascos e golpeou o ar com os chifres.
- Façam alguma coisa - berrou o ministro. - Tirem-no daqui!
Os guarda-costas olharam para trás e, vendo o impasse, recuperaram a coragem.
Pararam, tiraram as armas e começaram a se aproximar cautelosamente do touro e
de sua vítima.
- Não! - berrou Craig ao ouvir o ruído de carregar das armas automáticas. - Não
atirem!
Estava certo de que o seguro não cobriria "disparos deliberados de rifle", e,
muito acima dessa consideração, uma rajada ricochetearia por trás do touro,
inclusive no estrado e em seus ocupantes, um bando de mulheres e crianças, e no
próprio Craig.
Um dos guarda-costas uniformizados levantou o rifle e fez pontaria, mas os
recentes acontecimentos e o terror não permitiam que a mão ficasse firme: o cano
da arma descrevia círculos no ar.
- Não! - berrou Craig outra vez e atirou-se no chão do trailer.
Naquele momento, uma figura alta e magra interpôs-se entre o rifle e o touro.
- Shadrach - suspirou Craig aliviado, e o velho empurrou imperiosamente o cano
do fuzil e virou-se para o animal.
- Eu o saúdo, Nkunzi Kakhulu! Grande touro! - cumprimentou-o cortesmente.
O touro virou a cabeça ao som da voz, viu claramente Shadrach e bufou
ameaçadoramente.
- Oh, senhor do gado, como és belo! - Shadrach avançou um passo em direção
aos chifres afiados.
O touro bateu com os cascos na terra e ensaiou uma corrida, mas Shadrach não
se mexeu e o touro parou.
- Que cabeça nobre! - continuou. - Teus olhos são como duas luas negras.
O touro apontou os chifres para ele, mas o movimento foi menos violento e
Shadrach deu outro passo adiante. Os gritos de terror das mulheres e crianças
cessaram e até mesmo os mais medrosos pararam de correr e olharam para trás,
para o velho e o animal enfurecido.
- Teus chifres são afiados como a lança assegai do grande Mzilikazi.
Shadrach continuou a caminhar e o touro piscou, incerto, e olhou-o com os
olhos avermelhados.
- Como são gloriosos os teus testículos - murmurou Shadrach docemente. - São
como bolas de granito e dez mil vacas vão sentir o seu peso e majestade.
O touro esboçou um passo e fez um pequeno movimento com a cabeça.
- Teu sopro é como o vento norte, meu incomparável rei dos touros - Shadrach
estendeu a mão lentamente e todos observavam sem respirar.
- Meu querido - e tocou o pêlo lustroso, molhado e cor de chocolate; o touro
recuou, nervoso, e voltou cautelosamente para cheirar-lhe os dedos. - Meu doce
querido, pai de grandes touros... - Gentilmente, Shadrach passou o indicador
pelo pesado anel de bronze do nariz e segurou a cabeça do animal. Inclinou-se,
colocando a boca nas narinas rosadas e dilatadas e soprou dentro delas.
O touro estremeceu, e Craig pôde ver claramente os músculos do pescoço
relaxarem. Shadrach endireitou-se e, com o dedo ainda passado pelo anel do
nariz, foi-se afastando e o touro seguiu-o placidamente, balançando a papada. A
audiência começou uma pequena ovação de alívio e pasmo, e silenciou, quando
Shadrach lançou-lhes um olhar gelado cheio de desprezo.
- Nkosi! - exclamou para Craig. - Tire estes macacos mashona barulhentos da
nossa terra. Estão perturbando o meu querido e Craig fez votos ardentes para que
nenhum dos ilustres convidados soubesse sindebele.
E maravilhou-se novamente com o elo quase místico que existia entre o povo
Ngusi e o gado. Desde a época, há muito obscurecida pelas névoas do tempo, em
que os primeiros rebanhos tinham sido tangidos do Egito para iniciar, durante
séculos, migrações para o sul, o destino do homem negro e do animal ficara
inexoravelmente ligado. Aquela raça de corcova originara-se na Índia, da espécie
Bos indicus, diferente da Bos taurus européia, mas com o tempo tornara-se tão
africana quanto as tribos que a estimavam e repartiam com ela as vidas. Era
estranho, ponderou, mas as tribos de gado pareciam sempre mais dominantes a
aguerridas, como os Masai, os Bechuana e os Zulu, que sempre dominaram os
agricultores da terra. Talvez fosse a constante necessidade de buscar pastagens,
defendê- las contra os outros e proteger o gado dos predadores, tanto humanos
como animais, que os tornava tão belicosos.
Naquele momento, observando Shadrach conduzir o enorme touro, não havia como
enganar-se com aquela arrogância senhoril; mestre e animal eram nobres em sua
aliança. O que não era o caso do ministro da Educação, ainda agarrado como um
gato ao galho do jacarandá: Craig foi reforçar os encorajamentos dos guarda-
costas para que descesse de lá.
Peter Fungabera foi o último convidado a se retirar e acompanhou Craig numa
turnê pela casa, saboreando o cheiro doce da palha dourada que já cobria metade
do telhado.
- Meu avô substituiu a palha original por telhas de cimento amianto durante a
guerra - explicou Craig. - Seus foguetes RPG7 eram verdadeiras brasas.
- Sim - concordou Peter em voz neutra. - Começamos um bocado de fogueiras com
eles.
- Para dizer a verdade, sinto-me grato pela chance de restaurar o prédio. A
palha é mais fresca e pitoresca, e tanto a fiação como o encanamento precisam de
reparos.
- Preciso cumprimentá-lo pelo que conseguiu em tão pouco tempo. Logo estará
vivendo à maneira grandiosa que seus ancestrais acostumaram-se a ter desde que
tomaram esta terra.
Craig olhou-o vivamente, esperando ver sinais de malevolência, mas o sorriso
de Peter era tão encantador e natural como sempre.
- Todas essas melhorias contribuem enormemente para o valor da propriedade -
frisou Craig -, e você tem uma boa porcentagem dela.
- Naturalmente. - Peter colocou a mão num gesto apaziguador no braço dele. - E
ainda há muito trabalho a fazer. Quando vai começar o projeto do Águas do
Zambeze?
- Estou quase pronto para isso; logo que chegar o resto do gado e tenha Sally-
Anne para me ajudar com os detalhes.
- Ah - disse Peter -, então, pode começar imediatamente. Sally-Anne já chegou a
Harare ontem de manhã. - Craig sentiu uma onda de prazer e antecipação com essas
palavras.
- Vou até a cidade esta noite para lhe telefonar.
Peter Fungabera soltou uma exclamação de aborrecimento.
- Como, ainda não instalaram seu telefone? Vou providenciar isso amanhã. Nesse
meio tempo, pode usar o meu rádio.
O mecânico da companhia telefônica apareceu antes do meio-dia do dia seguinte e
o Cessna de Sally-Anne chegou zumbindo uma hora mais tarde, vindo do leste.
Craig colocara um pote cheio de trapos embebidos em óleo Diesel queimando para
assinalar a antiga pista de pouso e dar-lhe a direção do vento; o avião
aterrissou e taxiou até onde ele parara o Land-Rover.
Quando ela saltou da cabine, viu que esquecera a maneira alerta e viva com que
se movimentava e a forma das pernas dentro dos jeans justos. O sorriso era de
verdadeira alegria e o aperto de mão, firme e quente. Não estava usando nada por
baixo da blusa de algodão e notou o olhar guloso que ele lhe lançou de alto a
baixo, mas não demonstrou qualquer ressentimento.
- Que belo rancho, lá de cima - disse.
- Deixe-me mostrá-lo - convidou-a, e ela colocou a bolsa no assento traseiro do
Land-Rover, passando a perna sobre a porta como um garoto.
Já entardecia quando voltaram à sede.
- Kapa-lala preparou-lhe um quarto e Joseph cozinhou o seu jantar especial. O
gerador está finalmente, funcionando e temos luz elétrica, a caldeira funcionou
o dia inteiro e podemos lhe oferecer um banho quente, ou será que quer ir para
um motel na cidade?
- Vamos economizar gasolina - aceitou com um sorriso.
Veio para a varanda com os cabelos molhados enrolados numa toalha, e deixou-se
cair na cadeira ao lado dele, colocando os pés na mureta.
- Meu Deus, foi ótimo. - Cheirava a sabonete e ainda estava com a pele rosada
do banho.
- Como gosta do uísque?
- Com muito gelo.
Tomou um gole com um suspiro, e ficaram admirando o crepúsculo. O céu estava
esplendorosamente matizado em tons de vermelho. Aquele espetáculo deixou-os
cativos; seria blasfêmia falar enquanto durasse. Viram o sol se pôr em silêncio,
e só então Craig inclinou-se e entregou-lhe um maço fino de papéis.
- O que é? - perguntou, curiosamente.
- Um pagamento parcial pelos seus serviços como consultora e conferencista
visitante no Águas de Zambeze. - E Craig ligou a lâmpada ao lado de sua cadeira.
Ela leu lentamente, relendo três ou quatro vezes cada folha, e, finalmente,
ficou sentada depois de colocar as folhas protetoramente no regaço, contemplando
a noite.
- É apenas um esboço das primeiras páginas. Sugeri também quais as
fotografias que deveriam ser colocadas na outra folha em cada página - Craig
quebrou desajeitadamente o silêncio. - Claro que só vi algumas. Tenho certeza de
que tem centenas de outras. Pensei que podíamos fazer umas duzentas e cinqüenta
páginas, com o mesmo número de fotos. - Todas em cores, naturalmente.
- Estava assustado? - Ela virou lentamente a cabeça para olhá-lo. - Mas que
droga, Craig Mellow, quem está assustada agora sou eu.
Viu que havia novamente lágrimas em seus olhos.
- Isto é tão... - procurou uma palavra e desistiu. - Se colocar minhas fotos
ao lado disso, elas vão parecer insignificantes e desmerecedoras do amor
profundo que você expressa tão eloqüentemente por esta terra.
Ele balançou a cabeça negativamente e ela tornou a pegar as folhas para ler.
- Está mesmo seguro, Craig, de que quer fazer este livro comigo?
- Sim, sem dúvida alguma.
- Obrigada - ela disse com simplicidade, e naquele momento Craig soube afinal
que seriam amantes; não naquele instante, nem naquela noite, era ainda muito
cedo. Mas um dia possuiriam um ao outro.
Percebeu que ela também sabia, porque, apesar de falarem muito pouco depois
disso, suas faces, sob o bronzeado, tingiam-se com um sangue jovem e tímido e
baixava os olhos sempre que a olhava, incapaz de encará-lo.
Depois do jantar, Joseph serviu o café na varanda e, quando saiu, Craig
apagou as luzes; ficaram na escuridão, vendo a lua nascer sobre as árvores msasa
nas colinas do outro lado do vale.
Quando ela levantou-se para recolher-se, ficaram de pé, frente a frente, e
disse-lhe, mais uma vez, suavemente:
- Obrigada. - Inclinou a cabeça para trás, e ficou na ponta dos pés, roçando-
lhe o rosto com os lábios delicados; sabia, no entanto, que não estava pronta e
não fez qualquer esforço para detê-la.

QUANDO CHEGOU O último carregamento de gado, a segunda sede em Queen's Lynn


estava pronta e o novo capataz branco contratado por Craig mudou-se para lá com
a família. Era um homem corpulento e de fala lenta que, apesar do sangue
africânder, nascera e se criara no país. Falava sindebele tão bem quanto ele,
compreendia e respeitava os pretos que, por sua vez, gostavam dele e o
compreendiam. Mas o melhor era que conhecia e amava gado, como um verdadeiro
africano.
Com Hans Groenewald na propriedade, Craig pôde concentrar-se no projeto de
turismo para o Águas do Zambeze. Escolheu um jovem arquiteto que projetara as
cabanas de alguns dos mais luxuosos ranchos de caça particulares na África do
Sul e trouxe-o de Joanesburgo.
Os três, Craig, Sally-Anne e o arquiteto, acamparam por uma semana no Águas
do Zambeze, percorrendo ambas as margens do rio Chizarira, examinando cada
centímetro do terreno, escolhendo a localização dos cinco alojamentos de
hóspedes e o complexo serviço que os atenderia. Por ordens de Peter Fungabera,
eram protegidos por um destacamento da Terceira Brigada sob o comando do capitão
Timon Nbebi.
A primeira impressão de Craig a respeito desse oficial foi confirmada ao
conhecê-lo melhor. Era um jovem sério e culto que passava todo o tempo livre
estudando economia política por correspondência na Universidade de Londres.
Falava inglês e sindebele, além da língua materna, o mashona, e ele, Craig e
Sally-Anne mantinham longas conversas à noite, junto à fogueira, tentando chegar
a alguma solução para a inimizade tribal que assolava o país. O ponto de vista
de Timon Nbebi era surpreendentemente moderado para um oficial da brigada de
elite shona, e parecia ter um desejo sincero para que houvesse uma acomodação
entre as tribos.
- Sr. Mellow - dizia -, podemos nos permitir viver em uma terra dividida pelo
ódio? Quando me lembro da Irlanda do Norte ou do Líbano e penso nos frutos dos
desentendimentos tribais, sinto medo.
- Mas você é um shona, Timon - acentuou Craig com delicadeza. - Sua lealdade
certamente está com sua tribo.
- Sim - concordou. - Mas antes de tudo sou um patriota. Não posso assegurar a
paz para meus filhos com um fuzil AK 47. Não posso tornar-me um shona com
orgulho se matar todos os matabele.
Essas discussões não levavam a nenhum lugar, mas ficavam mais pungentes pela
própria necessidade de se ter uma guarda armada mesmo naquela área remota. A
presença constante dos homens armados começava a irritar tanto Craig quanto
Sally-Anne e, uma noite, já perto do final da estadia em Águas do Zambeze,
conseguiram escapar dos guardas.
Ambos sentiam-se finalmente à vontade um com o outro, capazes de repartir um
silêncio amigável, ou falar horas a fio. Tinham começado a tocar-se em contatos
breves e aparentemente casuais que os deixavam, contudo, intensamente alertas.
Ela colocava a mão sobre a sua para enfatizar algum detalhe da conversa ou
roçava nele quando examinavam juntos os esboços dos alojamentos feitos pelo
arquiteto, e, apesar de ser mais ágil que ele, Craig segurava-lhe o braço para
ajudá-la a atravessar alguma piscina natural no rio ou inclinava-se sobre ela
para apontar-lhe algum ninho de pica-pau ou uma colméia silvestre no topo de uma
árvore.
Naquele dia, finalmente a sós, descobriram um formigueiro que elevava-se
acima dos arbustos de ébano à volta e ficava perto de um monturo de
rinocerontes. Era um bom ponto de observação e também para fotografar; sentados
nele, esperaram pela aparição de algum daqueles grotescos monstros pré-
históricos. Falavam aos sussurros, com as cabeças juntas, mas sem se tocarem.
De repente, Craig olhou para a mata espessa abaixo deles e ficou imóvel.
- Não se mexa - sussurrou. - Fique absolutamente imóvel!
Ela virou lentamente a cabeça para olhar na mesma direção e soltou uma
exclamação abafada.
- Quem são eles? - murmurou, mas Craig não respondeu.
Havia dois deles que pudesse ver, porque só os olhos, praticamente, eram
visíveis. Tinham-se aproximado silenciosos como leopardos, fundindo-se no mato
com a perícia de homens que viviam escondidos a vida inteira.
- E então, Kuphela - disse um deles, afinal. - Trouxe aqueles cães mashona
assassinos com você para nos perseguir?
- Não é verdade, camarada Sentinela - respondeu Craig, sussurrando. - Foram
mandados pelo governo para me proteger.
- Você era nosso amigo; não precisava de proteção contra nós.
- O governo não sabe disso. - Craig tentou ser persuasivo. - Ninguém sabe que
nos encontramos. Ninguém sabe que estão aqui. Juro por minha vida.
- E pode custar sua vida, sem dúvida - atalhou o camarada Sentinela. - Diga-me
depressa o que veio fazer aqui, já que afirma que não é para nos trair.
- Comprei esta terra. O outro homem branco que está conosco é um construtor.
Pretendo fazer aqui uma reserva para turistas, como o Parque Wankie.
Aceitaram o que dizia afinal: o famoso Parque Nacional Wankie ficava também em
Matabeleland e, por alguns instantes, os dois guerrilheiros trocaram sussurros e
dirigiram-se, depois, novamente a Craig.
- O que vai acontecer conosco - perguntou o camarada Sentinela - quando tiver
construído suas casas?
- Somos amigos - lembrou-lhe Craig. - Há espaço para todos. Ajudarei vocês com
comida e dinheiro e, em troca, vocês protegerão os animais e os meus prédios.
Vigiarão secretamente os visitantes que vierem aqui e não farão mais reféns.
Concordam com isso?
- Quanto vale a sua amizade, Kuphela?
- Quinhentos dólares por mês.
- Mil - regateou o camarada Sentinela.
- Bons amigos não deviam discutir sobre dinheiro - concordou Craig. - Tenho só
seiscentos dólares aqui comigo, mas deixo o resto enterrado ao lado das
figueiras bravas onde acampamos.
- Nós o acharemos - assegurou-lhe Sentinela. - E todo mês nos encontraremos
ou aqui ou lá - e apontou para os dois locais, duas colinas bem distantes do
rio, cujos cimos eram apenas silhuetas azuladas no horizonte. - O sinal de
encontro será uma pequena fogueira de folhas verdes ou três tiros espaçados de
rifle.
- Está certo.
- E agora, Kuphela, deixe o dinheiro nesse buraco de tamanduá a seus pés e
leve sua mulher de volta para o acampamento.
Sally-Anne ficou bem junto dele na volta, segurando-lhe o braço e, a cada
cinqüenta metros, olhando medrosamente para trás.
- Meu Deus, Craig, eram shufta de verdade, eram mesmo guerrilheiros. Por que
nos deixaram ir embora?
- Pela melhor razão do mundo: dinheiro. - A risada de Craig soou, até para
seus ouvidos, um pouco áspera e sufocada, e a adrenalina ainda circulava no
sangue. - Por uns míseros mil dólares por mês acabo de contratar o mais duro
bando de guarda-costas e guarda-caças da praça. Uma boa barganha.
- Você vai tratar com eles? - perguntou Sally-Anne. - Isso não é perigoso? É
traição, não é?
- Provavelmente. Temos de ter certeza de que ninguém descubra nada a
respeito, não é mesmo?

O ARQUITETO mostrou ser muito competente: seus projetos eram soberbos; os


alojamentos seriam construídos em pedra, madeira nativa do local e palha. Iriam
fundir-se harmoniosamente com os locais escolhidos à beira do rio, e Sally-Anne
trabalhou com ele na decoração dos interiores e no mobiliário, acrescentando
pequenos toques charmosos.
Durante os meses que se seguiram, o trabalho de Sally-Anne com o World.
Wildlife Trust obrigou-a a afastar-se por períodos prolongados, mas, durante as
viagens, contratou a equipe de que precisariam no Águas do Zambeze.
Primeiro, conseguiu seduzir um cozinheiro-chefe com treinamento na Suíça,
convencendo-o a deixar uma grande cadeia de hotéis; em seguida, escolheu cinco
jovens guias de safári, todos africanos, com um profundo conhecimento e amor
pela vida silvestre e pela terra e, mais importante, com habilidade para
transmitir esse conhecimento e amor a outros.
Voltou a atenção, depois, para a feitura dos panfletos de propaganda, usando
as próprias fotos e o texto de Craig.
- Uma espécie de ensaio para o nosso livro - acentuara ao ligar de
Joanesburgo, e Craig compreendera pela primeira vez o que ganhara ao concordar
em trabalhar com ela: era uma perfeccionista; ou estava tudo certo ou não, e,
para isso, não poupava esforços e o obrigava, e aos impressores também, a fazer
o mesmo.
O resultado foi uma pequena obra-prima onde a cor era cuidadosamente
coordenada e até o layout da impressão gráfica equilibrava-se com as
ilustrações. Enviou cópias a todos os agentes de viagem especializados em
África, de Tóquio a Copenhague.
- Temos de marcar uma data para a inauguração - disse a Craig -, e garantir
que nossos primeiros hóspedes sejam notícia. Acho que vai ter de oferecer-lhes
uma estadia grátis.
- Você não está pensando em convidar alguma estrela do rock, está? - ele
brincou, e ela estremeceu à idéia.
- Telefonei a meu pai na embaixada de Londres e ele talvez possa conseguir o
príncipe Andrew, embora tenha de admitir que é apenas um "talvez". Henry
Pickering conhece a Jane Fonda.
- Nossa, nunca pensei que a senhorita circulasse nessas altas esferas.
- E, enquanto estamos nesse assunto, acho que posso conseguir a vinda de um
romancista best-seller que faz piadas sem graça e vai, provavelmente, beber
muito mais uísque do que vale!
Quando estava pronto para começar a construção do Águas do Zambeze, queixou-
se a Peter Fungabera da dificuldade em conseguir trabalhadores na área.
- Não se preocupe - foi a resposta. - Vou dar um jeito nisso. - E cinco dias
mais tarde chegava um comboio de caminhões militares transportando duzentos
presos dos centros de reabilitação.
- Trabalho escravo - disse Sally-Anne, repugnada.
No entanto, a estrada de acesso ao rio Chizarira ficou pronta em apenas dez
dias e pôde ligar para ela em Harare.
- Acho que podemos marcar tranqüilamente a data para 10 de julho.
- Que maravilha, Craig.
- Quando pode vir para cá de novo? Eu não a vejo há quase um mês.
- São apenas três semanas - corrigiu-o.
- Fiz mais vinte páginas do nosso livro - acrescentou como isca. - Precisamos
revisá-las logo.
- Mande-as para mim.
- Venha buscá-las.
- Está bem - capitulou. - Estarei aí na próxima semana, na quarta-feira. Onde
você vai estar? Em King's Lynn ou no Águas do Zambeze?
- Aqui, no Águas do Zambeze. Os eletricistas e encanadores estão terminando e
quero checar tudo.
- Vou voar até aí.
Aterrissou no campo aberto ao lado do rio onde as equipes de trabalho tinham
preparado uma pista de cascalho para descidas em qualquer tempo e tinham, até,
colocado uma biruta para sua chegada.
No momento em que saltou do avião, Craig viu que estava furiosa.
- Você perdeu dois rinocerontes - e encaminhou-se para ele. - Vi as carcaças do
ar.
- Onde? - Craig ficou tão zangado quanto ela.
- Na mata por trás da garganta. Foram certamente caçadores furtivos. As carcaças
estão a uns poucos metros uma da outra. Fiz alguns vôos rasantes e vi que
tiraram os chifres.
- Acha que são o Charlie e a Lady Di?
Craig e Sally-Anne tinham feito uma contagem aérea dos rinocerontes e
identificado vinte e sete animais na propriedade, inclusive quatro filhotes e
nove casais já maduros para a procriação, a quem tinham dado nomes. Charlie e
Lady Di eram um jovem casal que provavelmente mal havia se juntado. A pé,
conseguiram chegar perto deles, na mata que era seu território. Ambos tinham
belos chifres, sendo que os do macho eram maiores e mais pesados. O frontal, com
cerca de cinqüenta centímetros de comprimento e pesando uns dez quilos, valeria
pelo menos uns dez mil dólares para um caçador furtivo. A fêmea, Lady Di, era um
animal menor, com um par de chifres também menores e lindamente curvados e
estava grávida quando a viram pela última vez.
- Sim, são eles. Estou absolutamente segura de que são os dois.
- É uma viagem dura até aquele lado da garganta - resmungou Craig. - Só
conseguiremos chegar lá ao anoitecer.
- Com o Land-Rover - concordou Sally-Anne -, mas acho que encontrei um lugar
onde se pode aterrissar. Fica a menos de dois quilômetros do local da matança.
Craig tirou o rifle do Land-Rover e verificou a munição.
- Podemos ir.
Os CORPOS estavam na parte mais afastada da propriedade, quase à beira da
parede escarpada do vale que mergulhava em direção ao grande rio. O local para
aterrissagem que Sally-Anne vira era uma clareira natural na cabeceira da
garganta do rio e teve de fazer duas tentativas para baixar, conseguindo pousar
na segunda.
Deixaram o Cessna na clareira e foram em direção à garganta. Craig ia à
frente, com o rifle engatilhado: os caçadores ainda podiam estar lá.
No último trecho, foram guiados pelos abutres pousados em todas as árvores em
torno da matança como grotescas frutas negras. A área à volta das carcaças fora
aberta por eles e estava cheia de penas. Ao se aproximarem, meia dúzia de hienas
fugiu. Mesmo aqueles dentes terríveis e afiados não tinham conseguido penetrar
completamente no duro couro dos rinocerontes, se bem que os caçadores tivessem
aberto o ventre das vítimas para facilitar o acesso dos predadores.
Estavam mortos há pelo menos uma semana e o cheiro da putrefação ainda era
piorado pelo das fezes dos abutres, que cercavam os restos. Os olhos do macho
tinham sido arrancados, e as orelhas e o focinho, devorados. Como Sally-Anne
vira do ar, os chifres tinham desaparecido e as marcas de um machado ainda eram
claramente visíveis, contemplando aquela cabeça destruída e podre, Craig
descobriu que estava tremendo de raiva e com a boca seca.
- Se pudesse encontrá-los, eu os mataria - disse. A seu lado, Sally-Anne
estava pálida e séria.
- Os desgraçados - ela sussurrou.
Andaram até o corpo da fêmea que também tivera os chifres arrancados e a
barriga aberta. As hienas tinham arrancado o feto do ventre e devorado a maior
parte.
Sally-Anne ajoelhou-se ao lado daqueles restos patéticos.
- Príncipe Billy - murmurou. - Pobre bichinho.
- Não há nada que se possa fazer. - Craig pegou-a pelo braço e a fez levantar. -
Vamos embora.
E ela deixou-se arrastar por ele.
Do ALTO DA colina onde Craig combinara o encontro com o camarada Sentinela,
podiam ver a terra castanha que se espraiava até onde o rio serpenteava
luxuriante por entre a floresta mais densa, já quase fora do campo de visão.
Craig acendera a fogueira de folhas verdes logo depois do meio-dia, e ficara
mantendo-a desde então. O céu já estava escurecendo e o silêncio e o frio
noturnos caíram sobre eles, fazendo Sally-Anne estremecer.
- Está com frio? - perguntou Craig.
- E triste.
Ficou tensa, quando ele colocou o braço em torno de seus ombros, mas não se
afastou; lentamente foi relaxando e aconchegando-se ao calor de seu corpo. A
escuridão engoliu o horizonte e foi avançando para eles.
- Eu o saúdo, Kuphela. - A voz falou tão perto que os surpreendeu e Sally-Anne
afastou-se de Craig quase culposamente. - O senhor me chamou? - E o camarada
Sentinela parou fora da claridade fraca do fogo.
- Onde estava quando alguém matou dois dos meus bejane e roubou os chifres? -
Craig acusou-o asperamente. - Onde estava você, que prometeu montar guarda para
mim?
Houve um silêncio prolongado na escuridão.
- Onde aconteceu isso?
E Craig lhe disse.
- Isso é muito longe daqui e longe, também, do acampamento. Nós não sabíamos. -
O tom era de desculpas; obviamente o camarada Sentinela achava que falhara no
trato. - Descobriremos quem fez isso. Vamos segui-los e encontrá-los.
- Quando fizer isso, é importante que descubram o nome da pessoa que comprou os
chifres deles.
- Vou dar o nome desta pessoa a você - prometeu o camarada Sentinela. - Aguarde
o nosso sinal nesta colina.
Doze dias mais tarde, Craig viu-o através dos binóculos, uma pequena espiral de
fumaça na colina distante. Foi sozinho ao encontro pois Sally-Anne tinha partido
três dias antes, apesar de querer desesperadamente ficar, mas um dos diretores
da Wildlife Trust ia chegar em Harare e tinha de estar lá para recebê-lo.
- Acho que minha bolsa para o ano que vem depende disso - disse a Craig enquanto
subia no Cessna -, mas me telefone no mesmo instante que tiver notícias de seus
bandidos amansados.
Craig subiu ansiosamente a colina; ao atingir o topo respirava normalmente e
sentia as pernas firmes e fortes. Ficara em forma naqueles últimos meses e ainda
estava muito zangado ao parar ao lado dos restos enfumaçados do sinal.
Passaram-se vinte minutos antes que o camarada Sentinela aparecesse à beira da
floresta, ainda em guarda e com o fuzil nos braços.
- Não foi seguido? - perguntou a Craig, que negou, tranqüilizando-o. -
Precisamos sempre ter o maior cuidado, Kuphela.
- Encontrou os homens?
- Trouxe nosso dinheiro?
- Sim. - Craig tirou o envelope grosso do bolso da jaqueta. - E então?
- Cigarros - brincou Sentinela. - Trouxe cigarros também?
Craig atirou-lhe um pacote e ele tirou um cigarro, acendeu-o e tragou
profundamente.
- Ah, isto é ótimo!
- Diga-me - insistiu Craig.
- Eram três homens. Descobrimos os seus rastros desde o local da matança, apesar
de já terem dez dias e de eles terem tentado apagá-los. - Sentinela tornou a
tragar fundo, fazendo voar agulhas da brasa incandecida. - A aldeia deles fica
na escarpa do vale, a três dias aqui. Eram uns macacos batonka, uma tribo de
caça primitiva que vive no vale do Zambeze, e ainda estavam com os chifres dos
rinocerontes. Levamos os três para a mata e conversamos um bocado de tempo. -
Craig sentiu um arrepio ao imaginar aquela longa conversa, sentiu a raiva
diminuir e ser substituída por um sentimento de culpa. Devia ter dito a
Sentinela que moderasse os seus métodos.
- O que eles contaram?
- Disseram-me que é um homem da cidade que dirige um carro e se veste como um
branco. Compra chifres de rinoceronte, peles de leopardo, presas de marfim e
paga mais dinheiro do que jamais viram na vida.
- Onde e quando encontram com ele?
- Vem em toda a lua cheia, dirigindo pela estrada da Missão Tuti até o rio
Shangani, e eles esperam sua vinda na estrada à noite.
Craig acocorou-se perto do fogo, pensou algum tempo e olhou de novo para
Sentinela.
- Diga a esses homens que esperem pela chegada do homem na estrada, na próxima
lua cheia, com os chifres.
- Não vai ser possível - interrompeu Sentinela.
- Por quê?
- Estão mortos.
- Todos os três? - perguntou Craig, desolado.
- Todos os três - confirmou Sentinela, com um olhar frio, inexpressivo e
desapiedado.
- Mas...
E Craig não conseguiu completar a pergunta. Ele botara os guerrilheiros atrás
dos caçadores. Devia ter sido como soltar uma matilha de cães de caça em cima de
um hamster domesticado. Mesmo que não tivesse sido essa a sua intenção, era o
responsável e sentiu-se envergonhado e culpado.
- Não se preocupe, Kuphela - animou-o Sentinela em tom bondoso. - Trouxemos os
chifres dos bejane para você, e afinal aqueles homens não passavam de sujos
macacos batonka.
Carregando ao ombro a bolsa tecida com casca de árvore onde estavam os chifres,
Craig desceu em direção ao Land-Rover, sentindo -se doente, cansado e com a
perna doendo, mas as alças da sacola que se enterravam nas mãos não o machucavam
tanto quanto a consciência.
Os CHIFRES estavam colocados em fila sobre a escrivaninha de Peter Fungabera.
Eram quatro - os grandes frontais e os menores da parte anterior.
- Afrodisíaco - murmurou Peter, tocando um deles com os dedos longos.
- Isso é mito - disse Craig. - As análises químicas mostram que não contêm
qualquer substância de efeitos afrodisíacos.
- São apenas um tipo de massa capilar aglutinada - explicou Sally-Anne. - O
efeito que um chinês impotente procura neles ao esmagá-los, reduzi-los a pó e
tomá-los com água de rosa não passa de uma mera simpatia.
- De qualquer forma, os árabes do petróleo pagam mais para terem cabos de
punhal do que os chineses velhos por suas "espadas" - acentuou Craig.
- Não importa qual seja o destino final dos chifres, o fato é que há dois
rinocerontes a menos no Águas do Zambeze do que um mês atrás e quantos mais
serão mortos no próximo?
Peter Fungabera levantou-se da escrivaninha e veio até eles de pés descalços,
com o pano enrolado nos quadris recém-lavado e engomado, postando-se diante
deles.
- Estive fazendo minhas próprias investigações - disse em tom sério. - E
todas parecem apontar as mesmas conclusões de Sally- Anne. Parece absolutamente
certo de que há uma quadrilha altamente organizada operando em todo o país. Os
nativos das áreas ricas em caça estão sendo engodados e levados à caça furtiva e
à coleta dos produtos animais valiosos. O botim é acumulado e fica a salvo em
diversos esconderijos em lugares remotos até que atinja um valor que permita uma
única entrega ser enviada para fora do país. - Fungabera começou a andar de um
lado para o outro. - A encomenda é geralmente exportada em um vôo comercial da
Air Zimbabwe para Dar-es-Salaam, na costa da Tanzânia. Não temos certeza do que
acontece lá, mas provavelmente é colocada num cargueiro soviético ou chinês.
- Os soviéticos não têm escrúpulos com o problema de preservação da vida
silvestre - concordou Sally-Anne. - Ganham boas divisas com a exportação de
peles de marta e com a pesca da baleia.
- A Air Zimbabwe está sujeita a que ministério? - perguntou de repente Craig.
- Ao ministro do Turismo, o honrado Tungata Zebiwe - respondeu Peter
calmamente, e todos ficaram silenciosos por um momento antes que ele
continuasse. - Quando chega a ocasião de uma entrega, os produtos são trazidos
até Harare, tudo no mesmo dia ou na mesma noite. Não são estocados, vão
diretamente para o aeroporto em rigorosas condições de segurança e embarcados
quase imediatamente.
- E com que freqüência isto acontece? - perguntou Craig, e Peter Fungabera
olhou interrogativamente para o ajudante que estava discretamente ao fundo da
sala.
- Depende - respondeu o capitão Timon Nbebi. - Na estação de chuvas, o mato é
alto e as condições na floresta, ruins. Há pouca atividade de caça, mas durante
os meses da seca os caçadores podem trabalhar com mais eficiência. Mas ficamos
sabendo através de nosso informante que está prestes a acontecer outro embarque
a ser feito nas próximas duas semanas.
- Obrigado, capitão - interrompeu-o Fungabera com um ar meio aborrecido;
obviamente, ele mesmo gostaria de ter dado essa última informação. - O que
soubemos também é que o cabeça da organização toma, muitas vezes, parte ativa
nela. Por exemplo, aquele massacre de elefantes no campo de minas abandonado - e
olhou para Sally-Anne -, o que você fotografou com tanto realismo, bem, soubemos
que um ministro do governo, não sabemos com certeza qual, foi até o local em um
helicóptero e também que, em duas outras ocasiões, um alto funcionário do
governo, supostamente de nível ministerial, estava presente quando os
carregamentos foram trazidos até o aeroporto para embarque.
- Provavelmente não confia na honestidade dos próprios homens - murmurou
Craig.
- Com os bandidos que trabalham para ele, não é de admirar. - A voz de Sally-
Anne estava rouca, mas Peter Fungabera permanecia impassível.
- Acreditamos que seremos informados antes do próximo carregamento. Como já
devem saber, infiltramos um homem na organização. Vamos vigiar os movimentos de
nosso suspeito enquanto a data se aproxima e, com sorte, poderemos pegá-lo em
flagrante. Se não, confiscaremos o carregamento no aeroporto e prenderemos todos
que estiverem lá. Estou certo de que conseguiremos convencer um deles a
testemunhar.
Observando-lhe o rosto, Craig reconheceu aquela mesma expressão fria e
desapiedada do camarada Sentinela quando lhe contara a morte dos três caçadores.
Foi apenas um breve relance por trás da fachada polida e, em seguida, Peter
Fungabera voltou a sentar-se na escrivaninha.
- Por razões que já expliquei, preciso de testemunhas independentes e
confiáveis para efetuar qualquer prisão que tenhamos a sorte de fazer. Quero
vocês dois lá. Assim, ficaria grato se ficassem prontos para isso tão logo os
avise e se pudessem informar ao capitão Nbebi onde podem ser contactados a
qualquer momento nas próximas duas ou três semanas.
Ao levantarem-se para sair, Craig perguntou de repente:
- Qual é a pena máxima para caça clandestina? - E Peter levantou os olhos dos
papéis que estava arrumando na escrivaninha.
- Com a lei atual, uma pena máxima de dezoito meses de trabalhos forçados
para qualquer infração dessa natureza.
- Não é o bastante. - Craig tinha diante dos olhos a imagem das carcaças
apodrecidas de seus animais.
- Não - concordou Peter. - Não é o bastante. Há dois dias atrás, apresentei
uma emenda a ela, em moção, como membro do Parlamento. Será lida pela terceira
vez na quinta-feira, e asseguro a vocês que tem o apoio integral do partido. Vai
tornar-se lei nesse dia.
- E quais são as novas penalidades? - perguntou Sally-Anne.
- Para o comércio clandestino de troféus de determinados animais de caça, à
diferença da simples caçada clandestina, para comprar, revender e exportar, a
pena máxima será de doze anos de trabalhos forçados e uma multa que não exceda
cem mil dólares.
Pensaram nisso por um momento e Craig acabou concordando:
- Doze anos... Sim, doze anos é o bastante.
A CONVOCAÇÃO de Peter Fungabera chegou de manhã cedo, quando Craig e Hans
Groenewald, o capataz, tinham acabado de voltar à sede da fazenda depois da
inspeção matinal às pastagens. Craig estava em meio a um dos pantagruélicos
cafés da manhã de Joseph, saboreando ainda as salsichas de fabricação caseira,
quando o telefone tocou.
- Sr. Mellow, aqui é o capitão Nbebi. O general deseja vê-lo o mais breve
possível no seu quartel-general, a casa de Macillwane. Esperamos que nosso homem
entre em ação esta noite. Quando pode chegar lá?
- São seis horas de carro - observou Craig.
- A senhorita Jay já está a caminho do aeroporto. Deve estar aí em King's
Lynn para apanhá-lo em duas horas.
Sally-Anne chegou nas duas horas previstas e Craig a aguardava na pista.
Voaram diretamente para o aeroporto de Harare e Sally- Anne foi dirigindo de lá
até a casa nas colinas de Macillwane.
Ao cruzarem os portões, perceberam imediatamente uma atividade incomum nos
jardins. No gramado da frente havia um helicóptero Super Frelon, e piloto e
mecânico fumavam e conversavam. Ambos os olharam em expectativa, mas logo se
desinteressaram. Quatro caminhões militares pintados de cor de areia estavam por
trás da casa, com soldados da Terceira Brigada em uniforme completo de batalha
agrupados em torno. Craig percebeu sua excitação, como cachorros açulados para a
caça.
O escritório de Fungabera fora transformado em quartel-general das operações.
Duas mesas de campanha tinham sido armadas diante do enorme mapa em relevo na
parede, com três tenentes sentados em torno de uma delas. Na outra, havia um
aparelho de rádio, e Timon Nbebi estava inclinado sobre o operador, falando
baixinho ao microfone em shona que Craig não conseguiu acompanhar,
interrompendo-se abruptamente para dar uma ordem ao sargento negro encarregado
do mapa, que imediatamente movimentou um dos marcadores coloridos para uma nova
posição.
Peter Fungabera cumprimentou-os rapidamente e acenou para que se sentassem em
banquetas, continuando a falar ao telefone. Ao desligar, explicou-lhes:
- Conhecemos a localização de três dos esconderijos. Um é uma shamba nas
montanhas Chimanimani e tem peles de leopardo e algum marfim. O segundo fica em
um posto de trocas perto de Chiredzi, no sul; o despojo em sua maioria é marfim.
E o terceiro carregamento está vindo do norte. Acreditamos que esteja retido na
Missão Tu ti. É o maior e mais valioso, com marfim e chifres de rinoceronte.
Interrompeu-se quando o capitão Nbebi estendeu-lhe um bilhete que leu
rapidamente, dizendo-lhe em seguida:
- Ótimo, desloque dois pelotões pela estrada do norte até Karoi - e virou-se
para Craig. - A operação tem o nome código de bada que é a palavra shona para
leopardo. Vamos nos referir ao nosso suspeito como Bada em toda a operação. -
Craig concordou. - Acabamos de saber que Bada partiu de Harare. Está em seu
Mercedes oficial com um chofer e dois seguranças - todos matabele, naturalmente.
- Em que direção? - perguntou na mesma hora Sally-Anne.
- Nessas alturas parece estar se dirigindo para o norte, mas ainda é muito
cedo para se ter certeza.
- Para encontrar o grande carregamento... - Havia um brilho combativo nos
olhos de Sally-Anne e Craig podia sentir a própria excitação.
- Devemos acreditar que isso é correto - concordou Peter. - Agora, deixe
explicar-lhes nosso plano se Bada for para o norte. Os carregamentos de
Chimanimani e de Chiredzi vão passar sem problemas até o aeroporto. Serão
apreendidos assim que chegarem lá, e os choferes, junto com o comitê de
recepção, presos para serem usados como testemunhas mais tarde. Naturalmente,
estes trajetos serão vigiados desde o momento em que os caminhões sejam
carregados. Os proprietários dos dois depósitos serão presos assim que os
caminhões partirem e se afastarem da área.
Tanto Craig quanto Sally-Anne ouviam atentamente, e Peter continuou.
- Se Bada for para o leste ou para o sul, mudaremos o foco das operações para
lá. Entretanto, prevemos que, como o carregamento mais importante estava no
norte, é para lá que irá. Parece que estávamos certos. Logo que tivermos
certeza, iremos também.
- Como está planejando capturá-lo? - perguntou Sally-Anne.
- Dependerá muito da oportunidade que tivermos, e isso depende
necessariamente do comportamento de Bada. Temos que tentar fazer uma ligação
material entre ele e a carga. Vamos vigiar tanto o Mercedes como o caminhão com
o contrabando e, logo que se encontrarem, pulamos sobre eles... - E Peter
Fungabera enfatizou a ação com uma pancada do bastão forrado de couro na palma
da mão, provocando um ruído como o disparo de uma pistola e fazendo com que
Craig, já muito tenso, se sobressaltasse e olhasse depois com um sorriso meio
envergonhado para Sally-Anne.
O rádio estalou, em seguida ouviu-se um zumbido, uma voz falou em shona,
recebendo uma resposta curta do capitão Nbebi que, em seguida, olhou para Peter.
- Está confirmado, senhor. Bada está indo rapidamente em direção norte na
estrada de Karoi.
- Está bem, capitão, vamos dar partida ao movimento três - ordenou Peter,
afivelando o coldre. - Já tem alguma notícia dos grupos de vigilância na estrada
de Tu ti?
- Negativo até agora, general.
- Ainda é muito cedo. - Colocou a boina vermelha em um ângulo atrevido e o
emblema do leopardo brilhou sobre o olho direito. - Mas podemos começar a tomar
uma posição mais avançada agora. - E adiantou-se à frente deles, passando pelas
portas-janelas francesas para o terraço.
Quando a tripulação do helicóptero o viu, deixou cair os cigarros
rapidamente, apagou-os e subiu na carlinga. Peter Fungabera entrou, o motor
começou a funcionar e as hélices a girar.
Depois de se acomodarem nos assentos e prenderem os cintos de segurança,
Craig fez, impulsivamente, a pergunta que o estivera incomodando, mas em tom
baixo para não ser ouvido pelos outros sobre o ronco cada vez maior do motor.
- Peter, essa é uma operação militar em larga escala. Por que não deixar esse
assunto a cargo da polícia?
- Desde que despediram os oficiais brancos, a polícia tornou-se um bando de
trapalhões... E, a essa altura - sorriu com ar malandro -, meu velho, são meus
rinocerontes também.
O helicóptero subiu, deslizando numa curva, o nariz girou para o norte,
voando baixo, acompanhando o relevo, e a violência do deslocamento do ar através
da cabine aberta tornou qualquer conversa impossível.
Mantiveram-se a oeste da estrada principal para o norte para não arriscar
serem vistos pelos ocupantes do Mercedes. Uma hora mais tarde, quando o
helicóptero sobrevoou e começou a descer no pequeno aeroporto militar de Karoi,
Craig olhou para o relógio: já eram quatro horas.
Peter Fungabera viu o gesto e assentiu.
- Parece que vai ser uma operação noturna.
A aldeia de Karoi foi um dia o centro dos ranchos brancos da área, mas era
agora uma única rua com velhas lojas de comércio, um posto de gasolina, um posto
de correio e uma pequena delegacia de polícia. A base militar ficava um pouco
atrás dela, ainda fortificada devido à época das guerrilhas com uma cerca de
arame farpado e montes de sacos da areia empilhados com seis metros de
espessura.
O comandante local, um jovem segundo-tenente negro, estava claramente
deslumbrado com a importância do visitante, e fazia continências teatrais toda
vez que Peter Fungabera falava.
- Tire este idiota da minha frente - rosnou para o capitão Nbebi, ao assumir
o posto de comando. - E traga-me o último relatório sobre a posição de Bada.
- Bada passou por Sinoia há vinte minutos - disse o capitão, tirando os olhos
do rádio.
- Certo. Temos uma boa descrição do veículo?
- É um Mercedes 280 SE azul-marinho com uma bandeirinha ministerial no pára-
lama dianteiro. A placa é PL 674. Não tem escolta de motociclistas ou de
qualquer outro veículo. São quatro ocupantes.
- Certifique-se de que todas as unidades tenham esta descrição - e repita
mais uma vez que não deve haver nenhum disparo. Bada tem de ser capturado vivo e
inteiro. Se lhe causarem algum mal, poderíamos ter outra rebelião matabele nas
mãos. Ninguém deve atirar nele ou no veículo, mesmo que seja para salvar a
própria vida. Torne isso bem claro. Qualquer homem que me desobedecer terá
pessoalmente de responder por isso a mim.
Nbebi chamou cada unidade, repetiu as ordens e esperou até que fossem
repetidas. Em seguida, ficaram esperando com impaciência, bebendo chá em canecas
de esmalte desbeiçadas e prestando atenção ao rádio, que estalou de repente,
fazendo Timon Nbebi correr até lá.
- Localizamos o caminhão - traduziu triunfalmente. - É um Ford verde de cinco
toneladas coberto com uma lona. Além do motorista, há um passageiro. Vai muito
carregado, com a suspensão bem arriada e engrenando a primeira nos declives.
Passou pelo vau do rio Sanyati há dez minutos, vindo da Missão Tuti em direção à
confluência da estrada, a uns trinta e oito quilômetros daqui.
- Então Bada e o caminhão vão se interceptar - disse Fungabera, com um brilho
de caçador nos olhos.
NAQUELE MOMENTO, O rádio concentrava a atenção geral; cada vez que começava a
transmitir, todos os olhos convergiam para ele.
Os relatórios eram feitos regularmente, traçando o rápido percurso do
Mercedes para o norte, em direção a eles, e o do pesado caminhão, arrastando-se
lentamente pela empoeirada estrada secundária cheia de sulcos, na direção
oposta. Nos intervalos entre cada relatório, ficavam sentados, em silêncio,
bebendo o chá forte e açucarado, mastigando sanduíches de pão preto rústico e
carne enlatada.
Peter Fungabera quase não comeu. Inclinara a cadeira para trás e tinha os pés
em cima da escrivaninha do comandante. Batia com o bastão nas botas de combate
de solado de borracha com um ritmo monótono que começou a irritar Craig. Sentiu
de repente uma grande vontade de fumar pela primeira vez em meses e levantou-se,
andando de um lado para o outro.
Timon Nbebi recebeu outra mensagem pelo rádio; quando recolocou o microfone,
traduziu:
- O Mercedes chegou à aldeia. Pararam para abastecer no posto.
Tungata Zebiwe estava a poucos metros deles e Craig achou isso
desconcertante. Até ali, fora mais como um jogo intelectual do que uma caçada de
vida ou morte. Parara de pensar em Tungata como um homem, transformara-se
meramente em Bada, a presa a ser enganada e forçada a cair na armadilha.
Lembrou-se dele subitamente como um homem, um amigo, um ser humano
extraordinário, e ficou novamente dividido entre um resto de lealdade e o desejo
de ver um criminoso punido.
O posto de comando tornou-se subitamente claustrofóbico e saiu para o pequeno
pátio cercado pelas muralhas de sacos de areia. O sol já se pusera, o breve
crepúsculo africano banhava o céu em púrpura, e ficou contemplando-o. Ouviu sons
de passos e olhou para o lado.
- Não fique tão infeliz assim - pediu Sally-Anne suavemente, e ele sentiu-se
tocado com sua preocupação. - Você não tem de ir - continuou ela. - Poderia
ficar aqui.
- Quero ver com meus próprios olhos - e balançou a cabeça. - Mas não vou
odiar menos tudo isso.
- Eu sei. E o respeito por isto.
Olhou-a e viu que desejava que a beijasse. O momento por que esperara tanto e
tão pacientemente tinha chegado. Estava pronta, finalmente, e seu desejo era tão
grande quanto o dele.
Tocou-lhe o rosto delicadamente com os dedos, e suas pálpebras estremeceram.
Ela aproximou-se e ele compreendeu que a amava. Isso tirou-lhe o fôlego por um
momento e sentiu um êxtase quase religioso.
- Sally-Anne - sussurrou. A porta do posto abriu-se com violência nesse
momento e Peter Fungabera saiu para o pátio.
- Vamos partir - disse bruscamente, e eles se separaram. Craig viu-a
estremecer como se acordasse de um sonho e o olhar readquirir foco.
Lado a lado, seguiram Peter e Timon até o Land-Rover sem capota no portão do
fortim.

A NOITE estava gelada em comparação com o calor do dia e o vento os açoitava,


porque o pára-brisa fora abaixado.
Timon Nbebi dirigia, com Peter Fungabera ao lado. Craig e Sally-Anne dividiam
o banco traseiro com o operador de rádio. Timon dirigia cautelosamente com os
faróis baixos e os dois caminhões militares abarrotados de soldados em uniforme
completo de combate os seguia logo atrás.
O Mercedes estava um quilômetro à frente, ocasionalmente podiam ver o brilho
das lanternas traseiras quando subia a estrada por uma das colinas de matas
cerradas.
- Já andamos uns trinta e cinco quilômetros - disse Fungabera, checando o
odômetro. - O cruzamento para Sanyati e Tuti fica apenas a uns três quilômetros.
- Bateu no ombro de Timon com o bastão. - Pare e chame a unidade que está no
cruzamento.
Craig descobriu que tremia tanto de excitação como de frio. Com o motor ainda
ligado, Timon chamou pelo rádio o grupo avançado de observação que estava
escondido lá.
- Ah! Então é isso! - Timon não escondeu a satisfação que sentia. - Bada saiu
da estrada principal, general; o caminhão parou e está estacionado a quase
quatro quilômetros do cruzamento. Tem de ser um encontro previamente combinado,
senhor.
- Continue - ordenou Fungabera. - Siga-os!
Timon passou a dirigir velozmente, usando os faróis baixos para ver a beira
da estrada.
Lá está o cruzamento! - disse Peter bruscamente, quando a estrada inacabada
surgiu da escuridão, uma faixa pálida e deserta.
Timon diminuiu a marcha e dobrou nela. Um sargento da Terceira Brigada saiu
da escuridão da mata, pulou no estribo e conseguiu fazer uma continência com a
mão livre.
- Passaram por aqui há um minuto, general - disse, apressado. - O caminhão
está logo à frente. Fizemos um bloqueio de estrada por trás e vamos bloqueá-la
aqui assim que o senhor passar. Nós os encurralamos.
- Adiante, sargento. - Peter acenou com a cabeça e virou-se para Timon. - A
estrada é toda em declive daqui até o vau do rio. Ordene aos caminhões para
desligarem os motores assim que continuarmos. Vamos descer com o motor
desligado.
O silêncio era fantasmagórico depois do rugido dos pesados motores. Os únicos
sons eram o rangido da suspensão do Land-Rover, o ruído dos pneus sobre o
cascalho e o do vento nos ouvidos.
As curvas na trilha acidentada surgiam da noite com uma velocidade
assustadora, e Timon Nbebi agarrava-se ao volante enquanto serpenteavam pela
primeira descida da grande escarpa. Os dois caminhões guiavam-se pelas luzes
traseiras. Eram formas negras agigantando-se na escuridão por detrás. Sally-Anne
pegou a mão de Craig enquanto eram atirados juntos nas curvas e segurou-a por
todo o caminho até embaixo.
- Lá estão eles! - exclamou abruptamente Peter Fungabera, com a voz rouca e
excitada.
Viram as luzes do Mercedes tremulando por entre as árvores. Estavam
aproximando-se rapidamente e por alguns segundos os faróis sumiram em outra
curva e reapareceram - dois longos fachos iluminando a superfície pálida da
estrada, respondidos de repente por outro par de faróis vindo da direção oposta.
Os faróis do caminhão piscaram três vezes, obviamente um sinal de
reconhecimento, e imediatamente o Mercedes diminuiu a marcha.
- Nós os pegamos - exultou Peter Fungabera e desligou as luzes.
Abaixo deles, um caminhão coberto moveu-se lentamente do acostamento onde
estivera estacionado para o meio da estrada. Dois homens desceram do Mercedes e
foram até a cabine do caminhão, um deles com um fuzil na mão, e falaram com o
chofer pela janela aberta.
O Land-Rover seguiu em direção à cena que se desenrolava. Sally-Anne apertava
com força a mão de Craig.
Na estrada, um dos homens começou a andar para a traseira do caminhão parado;
de súbito olhou para o caminho escuro na direção de onde vinha o Land-Rover.
Estavam tão perto naquele momento que, mesmo com o barulho dos motores do
Mercedes e do caminhão, devia ter ouvido o som dos pneus.
Peter Fungabera ligou as luzes do Land-Rover que resplandeceram, ofuscantes,
ao mesmo tempo em que levava aos lábios um megafone.
- Não se mexam! - A voz amplificada ressoou na noite e reverberou nas colinas
em torno. - Não tentem fugir!
Os dois homens giraram e correram de volta ao Mercedes. Timon Nbeli ligou o
motor, que deu um rugido, e o Land-Rover avançou aos arrancos.
- Fiquem onde estão! Soltem as armas!
Os homens hesitaram primeiro, depois, o que trazia o fuzil deixou-o cair e
ambos levantaram as mãos sobre a cabeça, piscando ofuscados.
Timon Nbebi colocou o Land-Rover na frente do Mercedes, bloqueando-o, saltou
e correu até a janela aberta apontando a sub- metralhadora Uzi para o interior.
- Para fora! - gritou. - Todos para fora!
Por trás deles, os dois caminhões frearam, levantando nuvens de poeira sob as
duplas rodas traseiras. Bandos de soldados armados pularam deles, correndo e
derrubando com uma coronhada os dois homens desarmados. Cercaram o Mercedes,
escancararam as portas e arrastaram para fora o chofer e o homem sentado no
banco de trás.
A figura alta e de ombros largos era inconfundível. Os faróis jorravam luz
nas feições ásperas e escuras e exageravam a força pétrea do queixo. Tungata
Zebiwe arrancou-se das mãos dos captores e lançou um olhar fulminante em torno,
fazendo-os recuar.
- Para trás, bando de hienas! Como se atrevem a me tocar?
Estava vestido com calça escura e camisa branca, e o cabelo aparado era
redondo e negro.
Sabem quem sou eu? - inquiriu-os. - Vão arrepender-se por isso.
A segurança arrogante com que falava fê-los recuar mais um passo e olharam
para trás, para o Land-Rover. Peter Fungabera saiu da escuridão por trás dos
faróis e Tungata Zebiwe reconheceu-o instantaneamente.
- Você! - gritou. - Claro, o carniceiro-mor.
- Abram o caminhão - ordenou Fungabera, sem tirar os olhos do outro homem.
Encaravam-se com tamanho ódio que tornava tudo o mais insignificante à volta
deles. Era um confronto primitivo, parecendo incorporar toda a selvageria do
continente, dois homens poderosos sem qualquer vestígio de barreiras
civilizadas, e com um antagonismo tão forte que mal o podiam suportar.
Craig saltara do Land-Rover e começara a avançar, mas estacara, estupefato.
Não esperava algo nem sequer remotamente parecido com aquilo. Aquele ódio quase
tangível não era fruto daquele momento, parecia que os dois iam engalfinhar-se
como animais em batalha, estraçalhando-se as gargantas com as mãos nuas. Era um
sentimento profundamente enraizado, uma cólera mútua brotada das monumentais
raízes de uma antiga hostilidade.
Os soldados retiravam de dentro da traseira do caminhão caixotes e fardos. Um
dos caixotes abriu-se ao bater no solo e longas presas de marfim cintilaram como
âmbar à luz dos faróis. Um dos soldados rasgou um fardo e puxou pedaços de peles
preciosas, a dourada e mosqueada do leopardo e a pelagem espessa e vermelha do
lince.
- É isso mesmo! - A voz de Peter Fungabera estava sufocada pelo triunfo, o
ódio e o prazer da vingança. - Prendam este cão matabele!
- Seja lá o que estiver acontecendo aqui, isso vai recair sobre sua cabeça,
filho de uma prostituta shona! - ameaçou Tungata.
Nesse meio tempo, Sally-Anne saltou do Land-Rover e começou a caminhar em
direção ao tesouro de peles e marfim que jazia na estrada. Por um segundo,
interpôs-se entre Tungata Zebiwe e os captores, e ele moveu-se com incrível
velocidade, como o bote de uma serpente, rápido demais para os olhos.
Agarrou Sally-Anne pelo braço, torceu-o e levantou-a do chão como um escudo
enquanto abaixava-se para pegar o fuzil que estava a seus pés. Escolhera o
momento perfeito. Os soldados estavam tão amontoados que não poderiam disparar
sem ferir algum companheiro.
As costas de Tungata estavam protegidas pelo Land-Rover e a frente, pelo
corpo de Sally-Anne.
- Não atirem! - berrou aos homens Peter Fungabera. - Quero este canalha
matabele para mim.
Tungata enfiou o cano do fuzil por baixo do braço de Sally-Anne, segurando-o
com uma só mão e mirando-o em Fungabera, enquanto ia recuando para o Land-Rover,
com o motor ainda ligado, arrastando-a com ele.
- Você não vai conseguir escapar - exultou Peter Fungabera. - A estrada está
bloqueada e tenho cem homens. Finalmente peguei você.
Tungata armou o seletor de tiro com o polegar e mirou a barriga de Fungabera.
Craig, que estava parado diagonalmente por trás dele, viu a ligeira deflexão do
cano no momento em que Tungata disparou, e compreendeu que mirara
deliberadamente perto do quadril de Peter. O estrondo da arma automática era
ensurdecedor e o grupo de homens dispersou-se à procura de abrigo. Peter
Fungabera atirou-se para o lado e rolou até o caminhão conseguindo enfiar-se por
baixo das rodas.
Tungata continuava disparando e as balas acertaram o caminhão estacionado
deixando buracos escuros pela carroceria, cercados por um halo de metal
reluzente.
Fumaça e poeira obscureciam as luzes dos faróis e os soldados espalhados
bloqueavam o campo de tiro uns dos outros; no meio daquele caos, Tungata
levantou Sally-Anne e atirou-a para dentro do Land-Rover. No mesmo instante,
subiu à direção, engrenou, e o motor deu um rugido, quando o carro arrancou.
- Não atirem! - berrou Peter Fungabera novamente e havia uma urgência
desesperada em sua voz. - Eu o quero vivo!
Um soldado saltou para a frente do Land-Rover, numa tentativa inútil de detê-
lo. O impacto soou como um pedaço de massa sendo sovado quando o pára-choque o
atingiu em cheio e ele caiu, arrastado aos solavancos sob o chassi até rolar
para a estrada e o Land- Rover seguir colina acima.
Sem pensar, Craig escancarou a porta do Mercedes ministerial e sentou-se ao
volante. Virou-o em 180 graus e saiu cantando os pneus. A traseira do carro
oscilou, bateu no barranco, e derrapou.
Tirou o pé do acelerador, controlou a derrapagem, endireitou o volante e pisou
fundo. O Mercedes arrancou velozmente e pela janela aberta ouviu Peter Fungabera
gritar:
- Craig! Espere!
Ignorou o grito, e concentrou-se na primeira curva fechada da estrada. A
direção do Mercedes era enganadoramente leve e quase virou-a demais, chegando a
bater com os pneus na beira do barranco. Ao ultrapassar a curva, viu, à frente,
as luzes traseiras do Land- Rover, quase ocultas por uma nuvem de poeira.
Craig reduziu a transmissão automática, o motor roncou, estridente, a agulha
do conta-giros pulou para o setor vermelho acima de 5 000, e o carro subiu como
uma flecha colina acima, diminuindo rapidamente a distância do Land-Rover.
O carro à frente foi engolido pela próxima curva e a poeira cegou-o de tal
forma que foi forçado a tirar o pé do acelerador e dirigir às cegas; quando pôde
ver novamente, deparou com uma curva que quase não conseguiu fazer e as rodas
traseiras roçaram a beira do precipício, a centímetros de um desastre, antes que
conseguisse ultrapassá-la.
Estava começando a se acostumar com o carro e, trezentos metros à frente,
teve uma breve visão do Land-Rover por entre a poeira. Os faróis iluminaram
Sally-Anne, meio curvada sobre a porta, tentando jogar-se para fora do carro,
mas Tungata pegou-a pelo ombro, atirou-a para trás forçando-a a sentar-se.
O lenço voou-lhe da cabeça, flutuando como um pássaro noturno até desaparecer
na escuridão, e a farta cabeleira solta emaranhou-se no rosto. A poeira tornou a
esconder o Land-Rover - Craig sentiu-se invadido por um ódio sufocante. Naquele
momento, odiou Tungata Zebiwe como nunca odiara outro ser humano na vida. Fez a
tomada correta na curva seguinte, ultrapassou-a e tornou a desenvolver
velocidade máxima.
O Land-Rover estava duzentos metros à frente, e a distância diminuía com o
avanço do Mercedes; teve de frear em outra curva e, quando a ultrapassou, o
outro carro estava mais próximo. Sally- Anne olhava para trás, com o rosto muito
branco, quase luminoso à luz dos faróis, os cabelos parecendo que iam sufocá-la,
até desaparecer por um momento. Craig seguiu-os, freando ao sentir a traseira do
carro derrapar no cascalho solto da estrada, quando viu o bloqueio da estrada à
frente.
Um caminhão do exército de três toneladas estava atravessado na pista e os
intervalos até as margens, bloqueados com árvores espinhentas recém-cortadas e
cujos troncos estavam acorrentados uns aos outros. Craig podia ver o brilho dos
elos metálicos: aquela barreira pararia um buldôzer.
Cinco soldados estavam postados diante do bloqueio, abanando os rifles num
comando urgente para que o Land-Rover parasse. O fato de não terem aberto fogo
deu a Craig a esperança de que Peter Fungabera tivesse se comunicado com eles
pelo rádio mas, mesmo assim, sentiu-se nauseado e ansioso ao ver como Sally-Anne
estava vulnerável no carro sem capota. Imaginou um disparo dos fuzis automáticos
cortando-lhe o corpo.
- Por favor, não atirem - murmurou, e pisou no acelerador tão fundo que a
perna artificial pressionou dolorosamente o coto. A frente do Mercedes estava a
duzentos metros da traseira do Land- Rover e ganhando terreno.
A cem metros da barreira, havia um local baixo à direita do barranco. Tungata
desviou-se para lá e o carro feioso de frente achatada voou sobre ele com as
quatro rodas no ar, avançando como uma ceifadora pelo alto capim amarelado que
se estendia depois.
Craig sabia que não poderia segui-lo. A suspensão baixa do Mercedes se
arrebentaria no barranco. Passou pelo lugar e pisou no freio quando a barreira
agigantou-se no pára-brisa. O Mercedes parou, e Craig abriu a porta, saindo aos
tropeções do carro.
Conseguiu equilibrar-se, escalou o barranco, e pôde ver o Land- Rover. Estava
a vinte metros de distância, trepidando no terreno acidentado, sulcando o
espesso capim, cujos talos tinham a grossura de um dedo mínimo e a altura de um
homem, ziguezagueando entre as árvores da floresta, reduzido à pouca velocidade
que o terreno impunha. Viu que Tungata iá- conseguir ultrapassar a barreira e
correu para alcançá-los. O medo e a raiva que sentia por causa de Sally-Anne
pareciam guiar seus pés e tropeçou apenas uma vez no solo acidentado.
Tungata Zebiwe viu-o e levantou o fuzil com uma única mão, fazendo pontaria
sobre o capô do Land-Rover que corcoveava, mas Sally-Anne atirou-se sobre a
arma, agarrando-a com as duas mãos e forçando o cano para baixo, e Tungata não
podia tirar a outra do volante. Haviam já ultrapassado a barreira e Craig perdia
terreno; compreendeu com um baque no peito que não poderia alcançá-los,
arrastava-se atrás do veículo.
Sally-Anne e Tungata ainda lutavam, até que o negro robusto conseguiu soltar
o braço e, usando a mão com perícia, atirou-a brutalmente no chão do carro. Ela
bateu com o rosto no painel e Tungata fez o carro desviar-se, dando a Craig uma
vantagem preciosa de alguns metros; o carro parou um instante à beira do
barranco alto por trás da barreira antes de projetar-se e cair na estrada com um
clangor de metais e um chiar dos pneus.
Craig usou as últimas forças e determinação para correr até o barranco em que
o Land-Rover desaparecera. Três metros abaixo, o carro encontrava-se
miraculosamente intacto, e Tungata, machucado e com a boca sangrando de uma
pancada no volante, lutava para controlá-lo.
Craig não hesitou, atirou-se do barranco e a queda cortou-lhe a respiração. O
carro estava acelerando e agarrou-se precariamente à traseira. Sentiu as
costelas estalarem, e a visão foi toldada por instantes - conseguiu agarrar o
aparelho de rádio e com um esforço tremendo segurou-se. Ficou pendurado na
traseira, com os pés balançando.
Percebeu que a velocidade aumentava e ouviu Sally-Anne chorando. Aquele som
deu-lhe coragem e a visão clareou no mesmo momento.
Atrás, o caminhão militar manobrava junto à barreira, pronto para iniciar a
perseguição e, à frente, surgia velozmente o cruzamento da entrada principal
enquanto o Land-Rover atingia o máximo de sua velocidade.
Craig preparou-se para a curva, mesmo assim, ao chegarem lá, seus braços
quase foram arrancados dos ombros quando Tungata virou à esquerda sobre duas
rodas, tomando a direção norte. A fronteira do Zambeze ficava cento e cinqüenta
quilômetros adiante. A estrada descia pela grande escarpa, e não havia naquele
trecho deserto, infestado de moscas tsé-tsé e castigado pelo calor, qualquer
vestígio de ocupação humana antes do posto de fronteira e da ponte sobre o rio
em Chirundu. Com um refém, havia possibilidade de cruzá-los. Tungata poderia
conseguir, ou matar a todos na tentativa.
Centímetro a centímetro, foi arrastando-se para dentro do Land- Rover. Sally-
Anne estava agachada no fundo do carro; a cabeça balançava de um lado para o
outro ao sabor das oscilações e batidas e Tungata parecia alto e espadaúdo a seu
lado. Soltou uma das mãos, segurou no banco e tentou içar-se para dentro.
Imediatamente, o Land-Rover oscilou violentamente e Craig viu o olhar de Tungata
pelo espelho retrovisor. Estivera aguardando a oportunidade, para desequilibrá-
lo e jogá-lo no chão.
A força centrífuga jogou Craig para o lado do carro. Estava seguro apenas com
a mão esquerda e os músculos e tendões pareciam romper-se com o esforço de
agüentar todo o peso do corpo. Gemeu quando a dor estendeu-se do braço para o
peito, mas não soltou-se.
Tungata fez o carro oscilar novamente, passando com as rodas no acostamento
da estrada, e Craig viu o barranco aproximar-se perigosamente. Estava tentando
arrancá-lo de lá, fazê-lo em pedaços comprimindo-o entre as rochas e o metal.
Craig gritou agoniado com o esforço de dobrar as pernas; houve um ruído de metal
e pedra quando o carro roçou novamente pelo barranco, uma onda de dor invadiu-o
até os quadris, e sentiu as correias de couro rebentarem quando a perna foi
arrancada. Se fosse de carne e osso, teria sido mortalmente ferido. Em vez
disso, usou o impulso que lhe deu o Land-Rover ao retomar a estrada, e rolou
para o assento traseiro, passando o braço livre em torno do pescoço de Tungata.
Começou a estrangulá-lo. Sentiu a laringe de Tungata ceder sob a pressão e o
estalar das vértebras, como um galho seco a ponto de partir-se. Queria matá-lo,
arrancar-lhe a cabeça, mas não tinha forças para a pressão necessária.
Tungata tirou as mãos do volante, segurando o pulso e o cotovelo de Craig,
fazendo um som cavo e gutural. O carro desgovernou-se, saiu fora da estrada e
despencou encosta abaixo, em meio ao ruído do metal sendo dilacerado.
Craig soltou-se e foi atirado longe. Caiu no solo arenoso e duro, girou, e lá
ficou estatelado, com os ouvidos zumbindo e o corpo machucado e indefeso, até
reunir forças e ajoelhar-se.
O Land-Rover jazia de rodas para o ar, com os faróis ainda acesos, e em seu
foco, a trinta passos barranco abaixo, estava Sally- Anne. Parecia uma garotinha
adormecida, com os olhos fechados e a boca relaxada, os lábios muito vermelhos
em contraste com a extrema palidez; mas um filete escuro de sangue escorria-lhe
pela testa.
Começou a arrastar-se para lá, quando outro vulto apareceu de repente vindo
da escuridão, um vulto grande, escuro e corpulento. Tungata vinha tropeçando,
visivelmente estonteado, e segurando a garganta pisada. Ao avistar Craig, ficou
louco de ódio e dor, arremessou-se sobre ele. Mesmo tonto, jogou-o ao chão.
Haviam lutado muitas vezes, como amigos, em outra época, mas esquecera a
força brutal de Tungata. Os músculos eram tão rijos, elásticos e negros como os
pneus de um caminhão.
Ao cair, Craig agarrou-o e, apesar da própria força, Tungata não conseguiu
livrar-se. Tombaram ambos e Craig usou o coto de perna, durante a queda, para
atingi-lo no baixo-ventre.
Tungata soltou um grito e perdeu as forças. Aproveitando a situação, Craig
rolou para o lado, apoiou-se nos ombros e braços e golpeou-o novamente, agora
com a perna sã. Atingiu Tungata bem no meio do peito, em cima do coração.
Tungata tombou de costas, imóvel. Craig arrastou-se até ele e agarrou a
garganta desprotegida. Sentiu o feixe de músculos que cercava a cartilagem rija
da tiróide e apoiou os polegares, mas, quando sentiu a vida que pulsava em suas
mãos, a raiva desapareceu - descobriu que não podia matá-lo. Soltou-o e afastou-
se, tremendo e arfando.
Deixou Tungata caído na terra rochosa e arrastou-se até onde estava Sally-
Anne. Sentou-se, colocou-a no colo e ficou acariciando-lhe a cabeça, desolado
com o aspecto inerte e sem vida do corpo, limpando o filete de sangue antes que
chegasse aos olhos.
Acima deles, na estrada, um caminhão parou com uma freada estridente e homens
armados desceram em bandos pelo declive, gritando como uma matilha de cães de
caça. Sally-Anne, aninhada em seus braços como uma criança, mexeu-se e murmurou
algo.
Estava viva, ainda vivia, e ele sussurrou-lhe:
- Querida, oh, minha querida, como eu amo você!

SALLY-ANNE tinha quatro costelas fraturadas, o tornozelo direito com uma


séria entorse e o pescoço inchado e roxo da pancada que levara. Mas o corte no
couro cabeludo era superficial e as radiografias não mostravam qualquer lesão no
crânio. Apesar disso, foi mantida em observação no quarto particular que Peter
Fungabera lhe conseguira no superlotado hospital público.
Foi ali que Abel Khori, o promotor designado para o caso de Tungata Zebiwe,
foi entrevistá-los. O sr. Khori era um shona de aspecto distinto que trabalhara
no foro de Londres e ainda exibia as roupas de bom-tom em Lincoln's Inn Fields
assim como uma queda por eruditas, se bem que irrelevantes, citações latinas.
- Estou aqui em caráter pessoal para esclarecer certos detalhes da declaração
que já fizeram à polícia, pois seria extremamente impróprio se eu quisesse
influenciar de alguma maneira o testemunho que vão prestar - explicou-lhes.
Mostrou a Craig e Sally-Anne relatórios sobre as manifestações espontâneas
matabele pela libertação de Tungata que tinham sido prontamente debeladas pela
polícia e por unidades da Terceira Brigada, e relegadas pelo redator shona do
Herald para as páginas do meio.
- Precisamos ter em mente que este homem é, ipso jure, acusado de um ato
criminoso e não devemos permitir que se transforme em um mártir tribal. Creio
que compreendem o perigo. Quanto mais cedo resolvermos esse problema mutatis
mutandi, melhor para todos.
Craig e Sally-Anne ficaram, primeiro, atônitos e, depois, pouco à vontade com
o despacho que fixava a data na qual Tungata Zebiwe iria a julgamento. Apesar de
haver processos acumulados por sete meses, o caso iria à Corte Suprema em dez
dias.
- Não podemos nudis verbis manter um homem desta envergadura na prisão por
sete meses - explicou o promotor. - Estabelecer-lhe uma fiança e permitir que
fique livre para insuflar seus seguidores seria uma loucura suicida.
Além do julgamento, havia outros problemas menores a preocupá-los. O Cessna
devia ir para a checagem de mil horas de vôo e a renovação do "certificado de
segurança". Não havia condições para fazer isso em Zimbábue e tiveram de
providenciar um piloto para levar o aparelho até Joanesburgo.
- Vou me sentir como um pássaro de asas cortadas - ela queixou-se.
- Conheço essa sensação. - Craig sorriu, malicioso, e bateu com a muleta no
chão.
- Meu Deus, sinto muito, Craig.
- Ora, não fique assim. Já não me importo de falar sobre isso, não com você,
pelo menos.
- E quando vai chegar de volta?
- Morgan Oxford mandou-a pela mala diplomática e Henry Pickering prometeu
apressar os técnicos do Hospital Ortopédico de Hopkins. Acho que vou tê-la de
volta para o julgamento.
O julgamento. Tudo parecia refluir para ele, e até mesmo a administração de
King's Lynn e os preparativos finais para a inauguração dos alojamentos do Águas
do Zambeze não conseguiam arrancar Craig do lado de Sally-Anne e das
providências para o inquérito. Era um homem de sorte por ter Hans Groenewald em
King's Lynn; e Peter Younghusband, o jovem gerente e guia que Sally- Anne
escolhera, havia chegado para assumir a administração do Águas do Zambeze.
Apesar de comunicar-se diariamente com eles por telefone ou pelo rádio, Craig
ficou em Harare perto de Sally- Anne.
A perna chegou um dia antes da alta do hospital, e ele puxou a bainha da
calça para mostrá-la.
- Consertada, lubrificada e completamente recondicionada - gabou-se. - E a
sua cabeça, como vai?
- Da mesma maneira que sua perna - ela riu. - Embora o médico tenha me
recomendado tirar as próximas semanas de folga e prevenido para voltar
gradualmente às atividades normais.
Ela usava uma bengala por causa do tornozelo e o tórax ainda estava enfaixado
quando carregou sua maleta até o Land-Rover na manhã seguinte.
- As costelas ainda doem? - Ele a vira fazer uma careta ao entrar no carro.
- Se ninguém as espremer, acho que agüento.
- Nada de espremê-las, é essa a regra?
- Acho... - e fez uma pausa para olhá-lo por um momento, antes de abaixar as
pálpebras e murmurar recatadamente - que as regras são para os tolos e servem de
guia aos sábios.
E Craig sentiu-se reconfortado ante aquela observação.

O SEGUNDO Tribunal da Divisão de Mashonaland da Suprema Corte da República do


Zimbábue mantinha ainda todas as parafernálias da justiça britânica.
O estrado elevado, com o escudo de armas de Zimbábue sobre a cadeira do juiz,
dominava a sala; diante dele ficavam as fileiras de bancos de carvalho, com os
estrados das testemunhas e do acusado de cada lado. Os promotores, assessores e
advogados encarregados da defesa vestiam longas túnicas negras, enquanto a do
juiz era de um esplêndido escarlate. Mudara apenas a cor dos rostos, com a
negritude acentuada pelos cachos imaculadamente brancos das perucas e dos
colarinhos em ponta engomados.
O tribunal estava repleto e, quando os assentos dos espectadores ficaram
lotados, os meirinhos fecharam as portas, deixando uma multidão do lado de fora,
nos corredores, disciplinada e séria. Quase todos matabele que haviam feito a
longa viagem de ônibus de Matabeleland, cruzando o país, e muitos com as
insígnias do partido ZAPU. Apenas quando o acusado foi trazido à tribuna houve
uma certa agitação e murmúrios; no fundo do tribunal uma negra vestida com as
cores do ZAPU gritou teatralmente: "Bayete, Nkosi Nkulu!", e fez a saudação do
punho cerrado.
Os guardas a retiraram imediatamente do recinto e Tungata zebiwe ficou de pé,
observando impassível, diminuindo com a simples presença qualquer outra pessoa
na sala. Até o juiz Domashawa, um mashona alto e emaciado, com um delicado e
pouco característico nariz egípcio e olhos pequenos e brilhantes como os de um
pássaro, apesar de ataviado com toda a autoridade das vestes escarlates, parecia
comum em comparação. Entretanto, tinha uma reputação temível e o promotor
rejubilara-se com a escolha ao falar com Craig e Sally-Anne.
- Ah, ele é realmente persona grata e agora é in grêmio legis; não temam,
pois a justiça será feita.
Quando o país ainda chamava-se Rodésia, o sistema britânico de jurados fora
abandonado. O juiz dava o veredito com a assistência de dois assessores em
túnicas negras que o ladeavam no estrado. Mas esses assessores, no caso, eram
shona: um era especialista na preservação de vida silvestre, e o outro,
magistrado qualificado. O juiz se valeria de suas opiniões especializadas se
assim o desejasse, mas o veredito final era exclusivamente seu.
Ajeitou a túnica como faz uma avestruz com as plumas ao ajeitar-se no ninho e
olhou para Tungata Zebiwe, enquanto o funcionário da corte lia o texto da
acusação em inglês.
Havia oito acusações principais: comerciar e exportar produtos de animais
silvestres protegidos por lei, seqüestro e prisão de um refém, agressão a mão
armada, agressão com intenção de provocar graves danos corporais, tentativa de
assassinato, resistência à prisão, roubo de um veículo e danos deliberados à
propriedade do Estado. Havia também doze acusações secundárias.
- Meu Deus - sussurrou Craig para Sally-Anne. - Estão fazendo uma bateria
cerrada contra ele.
- Munição da pesada - ela concordou. - Bravos para eles, gostaria de ver este
canalha pendurado numa corda.
- Sinto muito, querida, mas nenhuma dessas acusações recebem pena capital.
E, no entanto, em todo o decorrer do discurso de abertura da acusação, Craig
sentia-se esmagado por um sentimento quase de tragédia, como se uma figura
heróica estivesse sendo cercada e degradada por homens menores e menos dignos.
Apesar desses sentimentos, Craig achava que Abel Khori estava saindo-se bem da
tarefa de colocar o caso no discurso de abertura, e até não se excedendo nas
citações latinas. O primeiro de uma longa lista de testemunhas de acusação era o
general Peter Fungabera. Resplandecente dentro do uniforme completo, prestou
juramento e permaneceu ereto e marcial com o bastão em uma das mãos. Seu
depoimento foi dado sem equívocos, tão direto e impressionante que o juiz volta
e meia balançava a cabeça em aprovação e tomava notas.
O Comitê Central do partido ZAPU contratara um advogado de Londres para a
defesa, mas mesmo o dr. Joseph Petal, QC, não conseguiu abalar o general,
compreendendo logo a futilidade do esforço e retirando-se para aguardar presas
mais fáceis.
A testemunha seguinte era o chofer do caminhão que transportara o contrabando,
um ex-guerrilheiro do ZIPRA, recentemente libertado de um dos centros de
reabilitação. O depoimento foi feito em dialeto e traduzido para o inglês pelo
intérprete do tribunal.
- Conhecia o acusado antes da noite em que foi preso? - perguntou Abel Khori,
depois de estabelecer sua identidade.
- Sim. Estive com ele em combate.
- Encontrou-se com ele em alguma ocasião depois da guerra?
- Sim.
- Queira dizer à corte quando isso aconteceu.
- Foi no ano passado, durante a estação da seca.
- Antes de ser mandado para o centro de reabilitação?
- Sim, antes disso.
- Onde encontrou-se com o ministro Tungata Zebiwe?
- No vale perto do grande rio.
- Pode contar à corte como transcorreu aquele encontro?
- Estávamos caçando elefantes para tirar o marfim.
- Como os caçavam?
- Usávamos uma tribo, os Batonka, e também um helicóptero, para encurralá-los em
um velho campo minado.
- Faço objeção a essa maneira de interrogar, meritíssimo - disse o dr. Petal,
QC. - Isto nada tem a ver com as acusações.
- Refere-se à primeira delas - insistiu Abel Khori.
- Objeção indeferida, dr. Petal. Por favor, continue, senhor promotor.
- Quantos elefantes mataram?
- Muitos elefantes.
- Pode nos dizer quantos?
- Talvez uns duzentos, não tenho certeza.
- E declara que o ministro Tungata estava lá?
- Ele chegou depois da matança. Veio contar o marfim e levá- lo de helicóptero.
- Que helicóptero?
- Um helicóptero do governo.
- Faço objeção, meritíssimo, essa informação é irrelevante.
- Objeção negada, dr. Petal. Por favor, prossiga.
Quando chegou sua vez de interrogar, o dr. Joseph Petal partiu imediatamente
para o ataque.
- Afirmo que o senhor nunca foi um membro das guerrilhas do ministro Tungata
Zebiwe. E que nunca, na verdade, viu o ministro até aquela noite na estrada de
Karoi.
- Faço objeção, meritíssimo senhor juiz - gritou Abel Khori, indignado. - A
defesa está tentando desacreditar a testemunha já que sabe que não existem
registros dos soldados e que ela não pode, portanto, provar sua brava
participação na guerra.
- Objeção aceita. Dr. Petal, limite-se a perguntar sobre a presente questão e
não amedronte a testemunha.
- Muito bem, meritíssimo. - O dr. Petal corou de frustração ao recomeçar o
interrogatório. - Queira dizer à corte quando foi solto do centro de
reabilitação.
- Esqueci, não consigo me lembrar.
Foi há muito tempo ou pouco tempo antes de sua prisão?
Há pouco tempo - respondeu a testemunha de má vontade, olhando as mãos sobre o
regaço.
Não é verdade que foi solto do campo de prisioneiros com a condição de que
guiasse aquele caminhão naquela noite e que concordaria em prestar um depoimento
contrário?
Meritíssimo! - protestou Abel Khori, e a voz do juiz ao responder era também
irritada.
Dr. Petal, está proibido de referir-se aos centros de reabilitação como campos
de prisioneiros.
- Como quiser, meritíssimo. - E o dr. Petal continuou: - Fizeram-lhe alguma
promessa quando foi libertado do centro de reabilitação?
- Não. - A testemunha olhou à volta com ar infeliz.
- Recebeu no campo a visita do capitão Timon Nbebi, da Terceira Brigada, três
dias antes de ser libertado?
- Não.
- Recebeu alguma visita no campo?
- Não, não!
- Nenhuma visita, está seguro disto?
- A testemunha já respondeu a essa pergunta - interveio o juiz, e o dr. Petal
suspirou teatralmente, levantando as mãos num gesto de desânimo.
- Não tenho mais perguntas, meritíssimo.
- Pretende chamar mais alguma testemunha, dr. Khori?
Craig sabia que a testemunha seguinte deveria ser o capitão Timon Nbebi, mas
Abel Khori, surpreendentemente, ignorou-o e chamou o soldado que fora derrubado
pelo Land-Rover. Sentiu um certo mal-estar e dúvida com a mudança de tática da
acusação. O promotor queria proteger Nbebi do interrogatório da defesa e evitar
que o dr. Petal prosseguisse com a questão de uma visita ao centro de
reabilitação? Se era assim, as implicações eram inimagináveis, e forçou-se a
colocar as dúvidas de lado.
A necessidade de traduzir todas as perguntas e respostas tornava o processo
arrastado e monótono, e foi só no terceiro dia que Craig foi chamado a
testemunhar.
DEPOIS DE TER prestado juramento, e antes que Abel Khori começasse a
interrogá-lo, olhou em direção ao estrado do acusado. Tungata Zebiwe observava-o
atentamente e, quando os olhares se cruzaram, fez-lhe um sinal com a mão
direita.
Nos velhos tempos, quando trabalhavam como guarda-caças, Craig e Tungata
tinham desenvolvido um sistema de sinais. Durante a perigosa tarefa de
aproximar-se de uma manada para selecionar e matar os animais que superpovoavam
as reservas ou quando cercavam um bando de leões matadores de gado, comunicavam-
se silenciosa e rapidamente com essa linguagem privada.
E agora, Tungata fazia-lhe o sinal do punho fechado, com os dedos poderosos
sobre a palma rosada da mão que significava: "Cuidado! Perigo extremo".
A última vez em que Tungata lhe fizera aquele sinal, tivera apenas uns poucos
segundos para virar-se e enfrentar uma leoa ferida que saíra do esconderijo na
mata, sangrando, e atirou-se sobre ele com tanto ímpeto que, apesar de ter-lhe
acertado o coração com uma bala do Magnum 458, o impulso o jogara ao chão.
E, naquele momento, o sinal deixou-o nervoso com a lembrança do perigo
passado e presente. Seria uma ameaça ou um aviso, imaginou Craig, olhando-o. Não
podia ter certeza, pois Tungata estava novamente impassível e imóvel. Fez-lhe o
sinal para "Dúvida. Não compreendo", mas o outro o ignorou e ele viu de repente
que não escutara a primeira pergunta de Khori.
- Desculpe, pode repetir, por favor?
E Abel Khori foi rapidamente conduzindo o interrogatório.
- Viu se o chofer do caminhão fez algum sinal quando o Mercedes se aproximou?
- Sim, acendeu e apagou os faróis.
- E qual foi a resposta?
- O Mercedes parou e dois homens saltaram e foram falar com ele.
- Em sua opinião, era um encontro previamente marcado?
- Objeção, meritíssimo. A testemunha não pode responder a isso.
- Objeção aceita. A testemunha não deve levar a pergunta em consideração.
- Chegamos agora à questão de seu valente resgate da srta. Jav das garras
perversas do acusado.
Objeção à palavra perversa.
Recomendo ao promotor que não empregue o adjetivo em questão.
Como quiser, meritíssimo.
Depois daquele sinal e durante o depoimento de Craig, Tungata Zebiwe ficou
sentado, o queixo apoiado no peito, impassível como uma figura esculpida em
granito, mas os olhos não se despregavam dele.
Quando o dr. Petal levantou-se para interrogá-lo, moveu-se pela primeira vez,
inclinando-se para murmurar-lhe algumas palavras tensas e o advogado pareceu
protestar, mas Tungata fez-lhe um gesto imperioso.
Não há perguntas, senhor juiz - disse o dr. Petal e sentou-se, liberando Craig
do embaraço.
Sally-Anne foi a última testemunha de acusação e, depois de Peter Fungabera,
talvez a mais acusatória.
Ainda mancava por causa da entorse no tornozelo e Abel Khori apressou-se em
ajudá-la a subir no estrado das testemunhas. A mancha escura no pescoço era o
único ferimento visível e prestou depoimento sem hesitação, numa voz clara e
agradável.
- Quando o acusado a seqüestrou, qual foi a sua reação?
- Temi pela minha vida.
- A senhora declarou que o acusado lhe bateu. Onde foi atingida?
- Aqui no pescoço. Pode ver a marca.
- Diga à corte por favor que outros ferimentos sofreu.
- Fiquei com quatro costelas fraturadas e torci o tornozelo.
Abel Khori tirou o maior partido de uma testemunha tão simpática, e, sabiamente,
o dr. Petal não lhe fez qualquer pergunta. A promotoria encerrou o seu caso na
noite do terceiro dia, deixando Craig perturbado e deprimido.
Ele e Sally-Anne foram comer na sua steakhouse favorita, mas nem a garrafa de
bom vinho do Cabo conseguiu animá-lo.
- Aquela história sobre o chofer nunca ter visto Tungata antes na vida, e ser
libertado com a promessa de dirigir o caminhão...
- Você não acreditou nisso, não é? - traçou Sally-Anne. - Até o juiz não fez
segredo de como achava isso completamente improvável.
Depois de levá-la até o apartamento, Craig foi caminhar sozinho pelas ruas
desertas, sentindo-se solitário e traído, apesar de não encontrar uma razão
lógica para isso.

O DR. JOSEPH PETAL, QC, abriu a defesa chamando para depor o chofer de Tungata.
Era um matabele corpulento apesar de jovem, já mais para gordo, com uma cara
redonda que deveria ser jovial e sorridente, mas estava naquele momento
carrancuda e preocupada. A cabeça fora raspada recentemente e nunca olhou para
Tungata durante o depoimento.
- Na noite em que foi preso, que ordens recebeu do ministro Tungata?
- Nenhuma. Não recebi nenhuma ordem.
O dr. Petal ficou realmente intrigado e consultou as anotações.
- Não lhe disse para onde iam? Não sabia para onde estavam indo?
- Ele dizia, "Vá direto em frente", "dobre à esquerda aqui", "vire à direita lá"
- murmurou o chofer.
Era óbvio que o dr. Petal não esperava uma resposta dessas.
- O ministro Tungata não lhe deu ordens de dirigir-se para a missão Tuti?
- Objeção, meritíssimo.
- Não conduza a testemunha, dr. Petal.
O advogado estava visivelmente perplexo. Mexeu nos papéis, olhou para Tungata
Zebiwe, que estava completamente impassível, e resolveu mudar a orientação das
perguntas.
- Desde a noite em que foi preso, onde esteve?
- Na prisão.
- Foi visitado por alguém lá?
- Por minha mulher.
- Mais ninguém?
- Não. - O chofer abanou a cabeça em defensiva.
- Que marcas são essas em sua cabeça? O senhor foi espancado?
Pela primeira vez, Craig notou os calombos escuros na cabeça raspada.
Meritíssimo, preciso fazer objeção a isso - gritou Abel Khori em tom lamentoso.
j)r Petal, qual é o objetivo destas perguntas? - perguntou o juiz Domashawa em
tom ameaçador.
Estou tentando descobrir por que o depoimento da testemunha contradiz o
depoimento que fez à polícia, meritíssimo.
O dr. Petal lutou para obter uma resposta clara da testemunha hostil e nada
cooperativa, e finalmente desistiu com um gesto resignado.
Não tenho mais perguntas. - E Abel Khori levantou-se para interrogá-lo.
- O caminhão piscou as luzes para vocês?
- Sim.
- E o que aconteceu?
- Não compreendo.
- Alguém no Mercedes disse ou fez algo quando viram o caminhão?
- Objeção... - começou o dr. Petal.
- Acho que a pergunta é válida. A testemunha deve responder - interrompeu-o o
juiz.
O chofer franziu as sobrancelhas no esforço de lembrar-se e resmungou:
- O camarada ministro Zebiwe disse: "Lá está ele, vá para perto dele e pare".
- Aí está! - E Abel Khori repetiu lenta e claramente: - "Vá para perto dele e
pare". Foi isto que o acusado disse ao ver o caminhão, não é exato?
- Sim, foi o que ele disse.
- Não tenho mais perguntas, meritíssimo.
- CHAMEM Sarah Tandiwe Nyoni.
O dr. Petal introduziu sua testemunha-surpresa e Abel Khori ficou com uma
expressão preocupada, conferenciando agitadamente com os dois assistentes. Um
deles levantou-se, fez uma mesura para o estrado do juiz e retirou-se apressado.
Sarah Tandiwe Nyoni subiu ao estrado das testemunhas e prestou juramento em um
inglês perfeito. A voz era melodiosa e doce, os modos, tão recatados e tímidos
quanto no dia em que Craig e Sally-Anne a viram pela primeira vez na Missão.
Vestia um traje de algodão verde-lima com gola branca e sapatos brancos de salto
baixo. O cabelo estava trançado à maneira tradicional e, no instante em que
acabou de prestar juramento, olhou para Tungata Zebiwe no estrado. Tungata não
sorriu ou mudou de expressão, mas a mão direita sobre a grade moveu-se
ligeiramente e Craig viu que estava usando a linguagem secreta de sinais com a
moça.
"Coragem!", dizia ele, "estou com você", e a moça encheu-se visivelmente de
força e confiança. Levantou o queixo e enfrentou o dr. Petal.
- Diga o seu nome, por favor.
- Sou Sarah Tandiwe Nyoni - respondeu.
- Tandiwe Nyoni é um nome matabele e quer dizer "Amado Pássaro" - explicou
Craig, baixinho, para Sally-Anne.
- É perfeito para ela - sussurrou-lhe em resposta.
- Qual é a sua profissão?
- Sou diretora da escola primária do Estado de Tu ti.
- Queira dizer à corte suas qualificações.
Joseph Petal estabeleceu rapidamente que era uma jovem educada e responsável, e
depois continuou:
- Conhece o acusado, Tungata Zebiwe?
Olhou para Tungata antes de responder e o rosto pareceu iluminar-se.
- Conheço, sim, eu o conheço - disse em voz rouca.
- Por favor, fale mais alto.
- Eu o conheço.
- Alguma vez ele a visitou na Missão Tuti?
- Sim.
- Quantas vezes?
- O camarada ministro é um homem importante e muito ocupado, e eu sou uma
professora...
Tungata fez-lhe um pequeno gesto de negação com a mão direita, ela viu e deu um
pequeno sorriso com os lábios de linhas perfeitas.
- Vinha ver-me sempre que podia, mas não tantas vezes quanto eu gostaria.
- Esperava-o na noite em questão?
- Sim.
- Por quê?
Falamos por telefone de manhã, e ele me prometeu que viria.
Disse que ia de carro e chegaria antes da meia-noite. - O sorriso desapareceu-
lhe dos lábios e os olhos ficaram grandes e desolados. Eu o esperei até o
amanhecer, mas não chegou.
Ao que sabe, ele tinha alguma razão particular para visitá-la naquele fim de
semana?
Sim. - E as faces de Sarah escureceram, para fascínio de Sally-Anne que nunca
vira uma jovem negra corar antes. - Sim, ele disse que desejava falar com meu
pai e eu providenciei o encontro.
- Obrigado, senhorita - disse Joseph Petal gentilmente.
Durante a inquirição, o assistente voltara à sala e passara a Abel Khori algumas
anotações, e ele as segurava ao levantar-se para o interrogatório.
- Senhorita Nyoni, pode dizer à corte o que significa a palavra sindebele
isifebi?
Tungata Zebiwe resmungou e começou a levantar-se, mas o policial colocou-lhe a
mão no ombro para forçá-lo a sentar-se.
- Significa uma prostituta - respondeu Sarah em voz baixa.
- Não significa também uma mulher solteira que vive com um homem?
- Meritíssimo! - O protesto de Joseph Petal era um pouco tardio, mas ultrajado,
e o juiz Domashawa o aceitou.
- Senhorita Nyoni - tentou Abel Khori de novo -, está apaixonada pelo acusado?
Por favor, fale mais alto. Não conseguimos ouvi-la.
Daquela vez, a voz de Sarah era firme, quase desafiadora.
- Sim.
- Faria qualquer coisa por ele?
- Sim.
- Mentiria para salvá-lo?
- Objeção, meritíssimo. - E Joseph Petal levantou-se de um salto.
- Eu retiro a pergunta. - Abel Khori antecipou-se à intervenção do juiz. -
Deixe-me colocar a questão de outra maneira, senhorita Nyoni; o acusado lhe
pedira que providenciasse um esconderijo em sua escola para estocar marfim e
peles de leopardo ilegais!
- Não - disse Sarah. - Ele nunca faria isso.
- E lhe pedira para supervisionar o carregamento destas presas em um caminhão
para ser despachado.
- Não! Não! - ela gritou.
- Quando falou com ele por telefone, não ordenou-lhe que preparasse um
carregamento?
- Não! Ele é um homem bom - soluçou Sarah. - Um grande homem. Nunca teria feito
uma coisa dessas.
- Não tenho mais perguntas, meritíssimo. - Parecendo muito satisfeito consigo
mesmo, Abel Khori sentou e o assistente inclinou-se para sussurrar-lhe parabéns.
- Chamo o acusado, ministro Tungata Zebiwe, para depor.
Era uma manobra arriscada do dr. Petal. Mesmo como leigo, Craig podia ver que
Abel Khori mostrara ser um osso duro de roer.
Joseph Petal começou por esclarecer a posição de Tungata na comunidade, os
serviços que prestara à revolução e o estilo de vida frugal que levava.
- Possui alguma propriedade?
- Tenho uma casa em Harare.
- Diga à corte quanto pagou por ela.
- Quatorze mil dólares.
- Isso não é muito para se pagar por uma casa, é?
- Não é uma grande casa. - A resposta de Tungata foi incisiva, e até o juiz
sorriu.
- Tem um carro?
- Tenho um carro do ministério à minha disposição.
- Possui contas bancárias no exterior?
- Não.
- Esposas?
- Não - e deu uma olhada na direção de Sarah Nyoni sentada na platéia,
completando -, ainda.
- Concubinas? Outras mulheres?
- Minha velha tia mora comigo. Toma conta de minha casa.
- Chegando agora à noite em questão. Pode dizer à corte por que estava na
estrada de Karoi?
- Estava a caminho da Missão Tuti.
- Por qual razão?
- Para visitar a senhorita Nyoni, e falar com o pai dela sobre um assunto
particular.
- Essa visita fora combinada?
Sim, através de um telefonema para a senhorita Nyoni.
já a visitara antes, em mais de uma ocasião?
Precisamente.
Que acomodações usava nestas ocasiões?
Havia um idlu com teto de palha colocado à minha disposição.
Uma cabana? Com uma esteira e uma fogueira?
- Sim.
Não achava estas acomodações pouco adequadas para o senhor?
Ao contrário, gosto da oportunidade de voltar aos hábitos tradicionais do meu
povo.
- Alguém repartia com o senhor estas acomodações?
- Meu chofer e os seguranças.
- A senhorita Nyoni visitava-o lá?
- Isso teria sido contrário aos nossos costumes e nossa lei tribal.
- O promotor usou a palavra isifebi, o que acha que quis dizer com isso?
- Poderia aplicá-la apropriadamente a mulheres de seu conhecimento. Quanto a
mim, não conheço nenhuma a que se aplique.
O juiz sorriu novamente e o assistente do promotor cutucou-o, brincalhão.
- Agora, senhor ministro, alguém mais sabia de sua intenção em visitar a Missão
Tuti?
- Não fiz segredo nenhum sobre isso. Eu o escrevi na minha agenda.
- Tem esta agenda com o senhor?
- Não. Pedi à minha secretária que a entregasse à defesa, mas ela desapareceu de
minha escrivaninha.
- Compreendo. Quando ordenou ao chofer para que preparasse o carro, disse-lhe
para onde ia?
- Sim.
- Ele declara que não.
- Então, sua memória está falhando... ou foi afetada. - Tungata deu de ombros.
- Muito bem. Agora, na noite em que estavam viajando entre Karoi e a Missão
Tuti, encontraram algum outro carro?
- Sim. Havia um caminhão parado fora da estrada, no escuro, voltado para nós.
- Queira descrever à corte o que aconteceu.
- O chofer do caminhão piscou as luzes três vezes e, ao mesmo tempo, voltou para
a estrada.
- De maneira a obrigá-los a parar?
- Sim.
- O que fez então?
- Disse ao meu chofer: "Pare, mas seja cauteloso. Isto pode ser uma emboscada".
- Não esperava encontrar o caminhão?
- Não.
- Disse-lhe: "Lá está ele! Pare"?
- Não disse tal coisa.
- O que quis dizer com as palavras: "Isso pode ser uma emboscada"?
- Recentemente, muitos veículos foram atacados por bandidos armados, por shufta,
especialmente em estradas desertas à noite.
- O que achou que seria?
- Esperava problemas.
- E o que aconteceu então?
- Dois dos meus seguranças saltaram do carro e foram falar com o chofer do
caminhão.
- De onde estava, no Mercedes, podia vê-lo?
- Sim. Era um completo estranho para mim. Nunca o vira antes na vida.
- Qual a sua reação a tudo isso?
- Estava muito alerta.
- E o que aconteceu?
- De repente, apareceram outros faróis, na estrada por trás de nós. Uma voz
falando com um megafone ordenou a meus homens que se rendessem e soltassem as
armas. Meu Mercedes estava cercado de homens armados e fui arrastado à força
para fora.
- Reconheceu algum desses homens?
- Sim. Quando me arrancaram do carro, reconheci o general Fungabera.
- Isso afastou suas suspeitas?
- Ao contrário, fiquei convencido de que corria um perigo mortal.
- Por quê, senhor ministro?
O general Fungabera comanda uma brigada notória pelos atos de violência
cometidos contra matabele influentes.
Objeção, meritíssimo, a Terceira Brigada é uma unidade regular do Exército, e o
general Fungabera é um oficial conhecido e respeitado! - gritou Abel Khori.
A promotoria tem razão em sua objeção. - O juiz estava de repente tremendo de
raiva. - Não posso permitir que o acusado use esta corte para atacar um soldado
proeminente e os seus bravos homens. Não posso permitir que o acusado esteja
diante de mim para disseminar ódios e preconceitos tribais. Esteja prevenido de
que não hesitarei em acusá-lo de desrespeito grosseiro à corte se persistir
nisso.
Joseph Petal deixou passarem trinta segundos para que a testemunha se
recuperasse dessa invectiva.
- Declarou que achava que sua vida corria perigo?
- Sim - disse Tungata em voz calma.
- Estava sob grande tensão?
- Sim.
- Qual foi sua reação?
- Achei que iriam, de alguma forma, não sabia bem como, tentar incriminar-me e
que isso seria usado como pretexto para me matar.
- Objeção, meritíssimo - aparteou Abel Khori.
- Não vou mais prevenir o réu - prometeu ameaçadoramente o juiz Domashawa.
- O que aconteceu então?
- A senhorita Jay saiu do carro onde estava e aproximou-se de mim. Os soldados
estavam distraídos e eu a agarrei para impedir que atirassem em mim e tentei
escapar com um Land-Rover.
- Muito obrigado, senhor ministro. - O dr. Joseph Petal virou-se para o juiz. -
Meritíssimo, meu cliente teve um interrogatório cansativo. Posso sugerir que a
corte entre em recesso até amanhã de manhã para permitir-lhe descansar um pouco?
Abel Khori levantou-se imediatamente, louco por um pouco de sangue.
- Ainda não é nem meio-dia, o acusado prestou depoimento por menos de trinta
minutos, e seu advogado tratou-o recte et suaviter. Para um soldado treinado e
resistente, isso de per se não passa de uma bagatela. - Abel Khori, excitado,
recaíra no latinório.
- Vamos continuar, dr. Petal - determinou o juiz e Joseph Petal encolheu os
ombros. - Sua testemunha, dr. Khori.
Abel Khori estava em seu elemento, tornando-se lírico e poético.
- O senhor declarou que temia por sua vida, mas eu afirmo que estava dominado
pela culpa, que tinha um terror mortal do castigo, que estava aterrado pela
perspectiva de enfrentar a punição dada por esta corte do povo, de enfrentar a
ira daquela figura douta e justa em vestes escarlates que está à sua frente.
- Não.
- Que foi apenas a consciência culpada que o levou a uma série de ações
hediondas e brutais.
- Não, não é verdade.
- Quando se apoderou da linda senhorita Jay, não usou de força bruta para
agredir seu jovem e delicado corpo? Não deu-lhe uma saraivada de pancadas
brutais?
- Dei-lhe uma única pancada para evitar que se jogasse do carro a toda
velocidade e se ferisse gravemente.
- Não apontou uma arma, isto é, um fuzil militar de combate, que sabia estar
carregada, para o general Fungabera?
- Eu o ameacei com o fuzil. É verdade.
- E, em seguida, disparou deliberadamente na parte inferior do corpo, isto é, no
abdômen?
- Não atirei em Fungabera. Mirei a arma de modo a não acertá-lo.
- Eu o acuso de tentar matar o general que foi salvo apenas por seus magníficos
reflexos.
- Se tivesse tentado matá-lo - disse Tungata com suavidade -, ele estaria morto.
- Quando roubou o Land-Rover, estava consciente de que era uma propriedade do
Estado? Apontou o rifle para o sr. Craig Mellow, e só não o assassinou devido à
brava intervenção da senhorita Jay? ...
Por uma hora, Abel Khori vituperou a figura impassível no estrado, extraindo-lhe
uma série de admissões prejudiciais, e sentou-se finalmente, com ar de galo de
rinha vitorioso. Craig achou que o dr. Joseph Petal pagara um alto preço pela
pequena vantagem que poderia ter tido colocando o cliente no banco de
testemunhas.
Apesar disso, o discurso final do advogado foi habilmente desenvolvido para
suscitar simpatia, e explicar e justificar as ações de Tungata Zebiwe naquela
noite, sem ferir com isso a suscetibilidade patriótica ou tribal do juiz.
Q veredito será dado amanhã - anunciou o juiz Domashawa e a corte levantou-
se, enquanto os espectadores faziam um zum-zum excitado ao deixarem a sala.
No jantar, Sally-Anne admitiu:
Pela primeira vez em toda esta história, senti pena quando Sarah prestou
depoimento. É uma criança tão doce.
Criança? Acho que é um ou dois anos mais velha que você
sorriu Craig -, o que a faz um bebezinho.
- Ela acredita tão obviamente nele que por alguns momentos até eu comecei a
duvidar dos fatos, mas, felizmente, Abel Khori trouxe-me de volta à razão -
continuou ela, em tom sério e ignorando a frivolidade.

O JUIZ Domashawa leu a sentença na sua voz de solteirona velha, cujo tom não
se adequava à gravidade do assunto. Primeiro, discorreu sobre os acontecimentos
que eram objeto da questão entre a promotoria e a defesa, para em seguida
continuar:
- A defesa baseou-se em dois pontos principais. O primeiro é o testemunho da
senhorita Sarah Nyoni de que o acusado estava a caminho do que, por falta de
melhor qualificativo, somos levados a acreditar que fosse um encontro amoroso e
que o encontro com o caminhão tenha sido uma coincidência ou planejado de
maneira inexplicada por pessoas desconhecidas. A senhorita Nyoni pareceu a esta
corte uma jovem ingênua e de pouca experiência, e que, por sua própria admissão,
está completamente sob a influência do acusado. A corte teve, forçosamente, de
considerar a postulação da promotoria de que a senhorita Nyoni poderia ter sido,
de fato, tão influenciada pelo acusado a ponto de consentir em agir como
cúmplice na consignação do contrabando. Em vista do exposto, a corte rejeita o
testemunho da senhorita Nyoni como potencialmente prejudicado e não merecedor de
confiança. O segundo ponto principal da defesa é a premissa de que a vida do
acusado estava ameaçada ou de que ele acreditava que estivesse, pelos oficiais
que o prendiam, e, nessa crença, empreendeu uma série de atos desatinados em
defesa própria. O general Fungabera é um oficial de reputação impecável, um
oficial de alta patente do Estado. A Terceira Brigada é uma unidade de elite das
Forças Armadas regulares do país, e seus membros, apesar de serem veteranos
endurecidos pelas batalhas, são soldados disciplinados e treinados. A corte,
portanto, rejeita a alegação do acusado de que tanto o general Fungabera quanto
seus homens pudessem, mesmo remotamente, ter constituído uma ameaça à sua
segurança, e muito menos à sua vida. A corte também rejeita a alegação de que o
acusado acreditasse ser esse o caso. Assim, chegamos à primeira acusação. Isto
é, a de comerciar ou traficar com produtos de animais selvagens protegidos por
lei. A corte declara o acusado culpado e o sentencia a doze anos de trabalhos
forçados. Da segunda acusação, seqüestrar e manter à força um refém, a corte
considera o acusado culpado e o sentencia a dez anos de trabalhos forçados.
Agressão com intenção de graves danos corporais: seis anos de trabalhos
forçados. Tentativa de assassinato: seis anos de trabalhos forçados. Roubo e
danos deliberados à propriedade do Estado: seis anos de trabalhos forçados.
Ordeno que essas sentenças sejam cumpridas consecutivamente e que nenhuma delas
seja suspensa.
Até Abel Khori ficou surpreso e levantou abruptamente a cabeça. As penas
totalizavam quarenta anos e mesmo com uma redução por bom comportamento, Tungata
ainda assim cumpriria trinta, o resto de sua vida útil.
No fundo da sala, uma negra gritou em sindebele: "Baba! Nosso pai! Estão
tirando nosso pai!", e outros começaram a gritar: "Pai do povo! Nosso pai morreu
para nós!"
Um homem começou a cantar alto com voz de barítono:
Por que choram, viúvas de Shangane...
Por que choram, filhinhos das Toupeiras,
Se seus pais cumpriram a vontade do rei?
Era uma das antigas canções guerreiras dos impis do rei Lobengula, e o cantor
era um homem no apogeu da maturidade, com um rosto forte e inteligente e uma
barba pontiaguda, salpicada aqui e ali por fios brancos. Enquanto cantava, as
lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Em outra época, poderia ter sido um induna
dos impis reais Os homens à volta começaram a acompanhá-lo e o juiz Domashawa
levantou-se furioso.
Se não fizerem imediatamente silêncio, mando evacuar a sala e serão presos
por desrespeito ao tribunal - gritou, tentando se fazer ouvir, mas foram
precisos mais cinco minutos até que os guardas restaurassem a ordem.
Em meio a tudo isso, Tungata Zebiwe estava silencioso, com um leve sorriso
irônico nos lábios. Quando por fim tudo acabou, e antes que os guardas o
levassem, olhou diretamente para Craig Mellow, do outro lado do tribunal, e fez-
lhe um último sinal, antes só usado de brincadeira, talvez depois de uma luta ou
competição amigável. Agora, Tungata o usava a sério: "Estamos quites: o escore
empatou", e Craig compreendeu-o plenamente. Perdera a perna e Tungata a
liberdade. Estavam quites.
Quis dizer ao homem um dia seu amigo que era uma triste barganha aquela, que
não escolhera isso, mas Tungata já lhe dera as costas. Os guardas tentavam tirá-
lo do estrado, e ele se debatia, procurando alguém na corte lotada de gente.
Sarah Nyoni subiu em um banco e estendeu as duas mãos para ele, por cima da
multidão, e Tungata fez-lhe um último sinal, claramente compreendido por Craig.
"Esconda-se! Você está em perigo."
Pela expressão alterada do rosto, viu que a moça também compreendera, e logo
os guardas já arrastavam Tungata para baixo, pela escada que levava às celas
subterrâneas de prisioneiros.
Craig abriu caminho por entre a multidão matabele que lotava a Suprema Corte
e atrapalhava o trânsito da hora do almoço na grande rua defronte. Pegou a mão
de Sally-Anne e abriu caminho bruscamente entre os fotógrafos que tentavam
bloqueá-los.
No estacionamento, ajudou Sally-Anne a entrar no Land-Rover, correndo para o
volante e ameaçando com o punho o último e mais persistente deles. Foi
diretamente para o apartamento dela, e parou sem desligar o motor.
- E agora? - perguntou Sally-Anne.
- Não entendi a pergunta - respondeu, mal-humorado.
- Ei! Sou sua amiga, lembra-se?
Desculpe. - Deixou-se cair sobre o volante. - Estou me sentindo horrível,
simplesmente horrível.
Ela não respondeu, mas os olhos estavam cheios de compaixão por ele.
- Quarenta anos - sussurrou Craig -, nunca esperei uma coisa dessas. Se ao menos
pudesse ter adivinhado...
- Não havia nada que pudesse fazer, nem antes e nem agora, também.
- O pobre filho da mãe... Quarenta anos! - E deu um soco no volante.
- Você vai subir? - ela perguntou suavemente, mas Craig balançou a cabeça.
- Tenho de voltar a King's Lynn. Abandonei tudo por causa desta maldita
história.
- Você vai agora? - Ela estava surpresa.
- Sim.
- Sozinho? - perguntou.
- Quero ficar sozinho.
- Para que possa se torturar à vontade? - E a voz dela ficou mais firme. - Pode
desistir, se acha que vou aceitar isso. Vou com você. Espere um minuto! Vou só
pegar umas coisas; não precisa nem desligar o motor. Já volto.
Demorou cinco minutos e desceu as escadas carregando a mochila e o estojo da
câmera que colocou no banco de trás.
- Podemos ir.
Quase não falaram durante a longa viagem, mas Craig logo sentiu-se grato por tê-
la ao lado, grato pelo sorriso quando a olhava, pelo toque da mão na sua quando
percebia que começava a ficar sombrio novamente, e pelo silêncio cúmplice.
Subiram as colinas de King's Lynn ao anoitecer. Joseph, que gostara de Sally-
Anne no momento em que a conhecera e que já a tratava por "minha pequena
senhora", não podia evitar o sorriso de boas-vindas que contrastava com a solene
dignidade, ao dar ordens aos criados para levarem a pouca bagagem.
- Preparo banho para senhora, muito quente.
- Isso seria ótimo, Joseph.
Depois do banho, foi para a varanda e Craig preparou os drinques, um uísque puro
como ela gostava e uma dose reforçada com pouca soda para ele.
- Um brinde ao juiz Domashawa - e levantou o copo ironicamente -, e à justiça
mashona. A todos os quarenta anos dela.
Sally-Anne recusou tomar vinho ao jantar, apesar dos protestos.
- O barão Rothschild ficaria muito ofendido. Imagine, seu mais fino produto e
contrabandeado pessoalmente por mim. - A alegria de Craig era forçada.
Depois do jantar, pegou a garrafa de conhaque e, quando já ia servir-se, ela
disse:
Craig, por favor, não se embriague.
Ele ficou parado com a garrafa na mão e examinou-lhe o rosto.
Não - disse Sally-Anne. - Não estou sendo mandona, e sim, muito egoísta. Queria
você sóbrio hoje à noite.
Ele botou a garrafa de volta sobre a mesa, levantou e dirigiu-se para ela, que
também ficou em pé.
- Querida, esperei tanto tempo.
- Eu sei - ela sussurrou. - Eu também.
Tomou-a cuidadosamente nos braços, como algo precioso e frágil e sentiu-a
transformar-se lentamente. Parecia suavizar-se e o corpo tornou-se maleável,
amoldando-se ao seu; podia senti-la inteira contra ele, dos joelhos aos seios
jovens e firmes, e o calor que começava a emanar das roupas leves.
Inclinou a cabeça e suas bocas se encontraram. Os lábios dela imediatamente
abriram-se, úmidos e doces como um fruto recém-colhido aquecido pelo sol,
oferecendo seu sumo maduro.
Olhou-a nos olhos enquanto a beijava, maravilhando-se com o colorido e as formas
aureoladas em torno das pupilas verdes pontilhadas de dourado, as pálpebras que
fremiam e as longas e curvadas pestanas que se cerraram. Também fechou os olhos,
e a terra pareceu oscilar, mas permaneceu firme, com ela entre os braços, sem
tentar explorar-lhe o corpo, feliz com a sensação maravilhosa daquela boca
contra a sua.
Joseph abriu a porta da cozinha com a bandeja de café nas mãos, ficou sorrindo
satisfeito por um momento e tornou a fechá-la. Nenhum dos dois o viu. Quando ela
separou-se, Craig sentiu-se roubado e tentou beijar-lhe a boca de novo, mas ela
colocou um dedo em seus lábios e o sussurro foi tão rouco que teve de clarear a
voz.
- Vamos para o seu quarto, querido.
Houve um momento constrangedor quando sentou-se nu na cama para retirar a perna
mecânica, mas ela ajoelhou-se rapidamente, nua também, e desafivelou-a. Inclinou
a cabeça e beijou o coto endurecido abaixo do joelho.
- Obrigado - ele disse. - Estou contente porque pôde fazer isso.
- Isso é você - respondeu -, é parte de você. - E tornou a tocá-lo com a boca,
deslizando os lábios gentilmente pela coxa acima.

ACORDOU ANTES DELA, e ficou de olhos fechados, surpreso com o sentimento


deslumbrado que sentia, sem saber por quê, até que lembrou-se, e cheio de
alegria virou a cabeça, aterrado pela possibilidade de que não estivesse lá...
mas estava.
Atirara o travesseiro no chão e os lençóis para o lado. Estava encolhida como um
bebê, com os joelhos quase tocando o queixo, e a luz que filtrava-se pelas
cortinas fazia reflexos nacarados na pele e delineava-lhe o corpo. Os cabelos
cobriam-lhe o rosto e ondulavam ao ritmo da respiração ligeira.
Ficou imóvel para não acordá-la e contemplou-a com ardor, querendo tocá-la, mas
contendo-se, para tornar o desejo ainda mais pungente até que se tornasse
insuportável. Ela devia ter pressentido que era observada porque mexeu-se e
estendeu as pernas, virou de bruços e arqueou-se num lento e voluptuoso
espreguiçar.
Ele inclinou-se, e, com um dedo, tirou-lhe o cabelo do rosto; ela olhou-o ainda
meio sonolenta, para logo fixá-lo com uma surpresa cômica e sorrir, franzindo o
nariz.
- Oi, moço - sussurrou. - Você é um bocado especial. Estou arrependida por ter
esperado tanto.
E estendeu-lhe os braços. Craig, porém, não compartilhava de seu arrependimento.
Sabia que fora o prazo exato. Até mesmo um dia antes teria sido cedo demais, e
mais tarde disse-lhe isso, quando ainda estavam enlaçados e meio colados pelo
próprio suor.
- Aprendemos a gostar um do outro primeiro. Foi assim que eu quis que
acontecesse.
- Você está certo - ela disse, afastando-se um pouco para olhá- lo, e os seios
fizeram um delicioso ruído ao se despregarem do peito dele. - Eu gosto de você,
gosto de verdade.
- E eu - começou ele, mas ela tapou-lhe a boca rapidamente.
- Ainda não, querido - pediu. - Não quero ouvir isso, não ainda.
- Quando, então?
- Acho que breve... - E, em seguida, com mais firmeza: - Sim, em breve eu também
vou poder dizer isso a você.
A GRANDE propriedade de King's Lynn também parecia ter esperado como eles.
Muitos anos antes, fora talhada na selva e o amor de outro casal foi a principal
inspiração para construí-la; através dos tempos, desde então, o amor de outros
homens e mulheres que os sucederam fora necessário para mantê-la e tratá-la com
carinho. Eles e as gerações que os seguiram estavam agora no cemitério murado,
na colina por trás da sede, mas, enquanto viveram, King's Lynn florescera, assim
como adoecera ao cair em mãos de forasteiros indiferentes vindos de uma terra
distante. Fora desnudada, dessacralizada e privada do vital ingrediente do amor.
Mesmo quando Craig reconstruiu a casa e restaurou os rebanhos, aquele
elemento vital faltava ainda. E agora, finalmente, o amor desabrochava em King's
Lynn, e sua alegria parecia irradiar-se da casa à colina e por toda a
propriedade, respirando vida e a promessa fecunda de mais vida ainda na terra.
Os matabele reconheceram isso imediatamente. Quando Craig e Sally-Anne
cruzavam com o maltratado Land-Rover pelas estradas cheias de poeira vermelha
que ligavam as enormes pastagens, as mulheres levantavam-se dos pilões de
madeira onde estavam socando milho ou viravam-se, com os pescoços eretos que
sustentavam as grandes pilhas de lenha equilibradas na cabeça, para saudá-los e
examiná-los com um olhar afetuoso e conhecedor. O velho Joseph nada disse, mas
arrumou a cama de Craig com quatro travesseiros, colocava flores na mesinha-de-
cabeceira do lado que Sally-Anne escolhera e quatro dos seus biscoitos especiais
na bandeja de chá que lhes trazia todo amanhecer.
Por três dias, Sally-Anne conteve-se, mas uma manhã, sentada na cama tomando
chá, disse a Craig:
- Essas cortinas dariam uns ótimos panos de prato. - E apontou com o biscoito
meio mordido para o algodão cru barato pregado nas janelas.
- Será que consegue fazer melhor do que isso? - Craig perguntou, disfarçando
a esperteza, e ela caiu na armadilha.
Ao envolver-se com a escolha de cortinas, acabou envolvida com tudo mais.
Desde desenhar mobília, para o marceneiro parente de Joseph construir, a mandar
fazer uma nova horta e replantar moitas de roseiras que tinham morrido por falta
de cuidados.
Joseph também juntou-se à conspiração perguntando-lhe sobre os menus do
jantar.
- Devo fazer rosbife hoje à noite, Nkosazana, ou galinha ao caril?
- Nkosi Craig gosta de dobradinha. - Sally-Anne fizera essa descoberta
casualmente. - Sabe fazer dobradinha com cebolas?
- O velho governador-geral antes da guerra, sempre que vem a Kingi Lingi, eu faz
dobradinha com cebolas, Nkosazana. E ele diz: "Muito bom, Joseph, melhores do
mundo!"
- Ótimo, Joseph, hoje à noite vamos comer a "melhor dobradinha do mundo" - riu-
se ela, e, só quando Joseph entregou-lhe formalmente as chaves da despensa,
compreendeu que decisão importante tomara.
Estava lá à meia-noite quando o primeiro bezerro nasceu em King's Lynn, um parto
difícil, com o traseiro do animal virado para frente, obrigando Craig a enfiar o
braço dentro da vaca e desvirá-lo, enquanto Shadrach e Hans Groenewald
agarravam-na e Sally-Anne segurava a lanterna.
Era uma novilha de cor creme clara e com longas pernas vacilantes. Assim que
começou a mamar no úbere da mãe, deixaram-na aos cuidados de Shadrach e foram
para casa deitar-se.
- Esta foi uma das experiências mais maravilhosas da minha vida, querido. Quem
lhe ensinou isso?
- Bawu, meu avô. - Ele a abraçou na escuridão do quarto. - Não sentiu-se mal?
- Eu adorei, o nascimento sempre me fascinou.
- Como Henrique VIII, prefiro isso no abstrato - riu-se ele.
- Menino levado - sussurrou. - Mas não está muito cansado?
- Você está?
- Não - admitiu. - Não posso dizer que esteja. - E fez uma ou duas tentativas
fracas para libertar-se do abraço.
- Recebi um telegrama hoje sobre o Cessna; o certificado de vôo está pronto e
tenho que ir a Joanesburgo pegá-lo.
- Se puder esperar duas ou três semanas, vou com você. Estão com uma seca
terrível no sul e o preço do gado está muito baixo. Podíamos voar até os grandes
ranchos e arranjar umas boas barganhas.
E assim, deixou que o tempo passasse, e os dias pareciam devorar-se, cheios de
amor e trabalho. Trabalho no livro ilustrado, no novo romance, na coleta de
material de campo para o Wildlife Trust nos preparativos finais para a
inauguração do Águas do Zambeze e na rotina diária de King's Lynn.
A cada semana que passava, sua resistência à magia que Craig e King's Lynn
teciam à sua volta enfraquecia, e as exigências de sua vida anterior diluíam-se,
até que um dia surpreendeu-se chamando a sede sobre a colina de "casa" e sentiu-
se apenas um pouquinho chocada consigo mesma.
Uma semana mais tarde, recebeu uma carta registrada reenviada de Harare para
aquele endereço. Era o contrato formal de renovação de sua pesquisa para o
Wildlife Trust. Em vez de preenchê-lo e despachá-lo imediatamente de volta,
enfiou-o no estojo da camera.
Amanhã eu preencho - disse consigo mesma, mas bem no fundo compreendeu que
chegara a uma encruzilhada. A perspectiva de voar sozinha pela África, com
apenas uma muda de roupas e uma câmera, dormindo e tomando banho onde e como
pudesse já não era tão atraente como antes.
Àquela noite, ao jantar, olhou em torno da sala enorme e quase vazia, cujas
cortinas novas eram o único toque esplêndido, tocou a mesa de teca rodesiana que
o parente de Joseph tinha feito sob sua orientação. Ficou imaginando o brilho
que iria ganhar no futuro com o uso e os cuidados. Olhou para o homem sentado à
sua frente e ficou assustada e estranhamente exaltada. Sabia que tomara a
decisão.
Tomaram café na varanda, escutando o canto das cigarras nos jacarandás e os
guinchos dos morcegos caçando sob a lua amarela.
Pousou a cabeça em seu ombro e disse:
- Craig, querido, já é hora de lhe dizer, eu amo muito você.
Craig queria sair correndo para Bulawayo e acordar o juiz, mas ela o reteve,
rindo.
- Meu Deus, seu maluco, não é tão simples assim. Não se pode fazer as coisas
dessa maneira.
- Por que não? Uma porção de gente faz isso.
- Eu não - ela disse firmemente. - Quero que seja feito da maneira apropriada. -
Contou nos dedos e no calendário da agenda e decidiu. - Será no dia 16 de
fevereiro.
- Mas isso é daqui a quatro meses - gemeu Craig, porém os protestos foram
desapiedadamente afastados.
Joseph, por outro lado, estava de pleno acordo com os projetos de Sally-Anne
para um casamento formal.
- Casa em Kingi Lingi, Nkosikazi. - Era mais uma declaração do que uma
pergunta e o sindebele de Sally-Anne já era suficiente para entender que tinha
sido promovida de "pequena" a "grande senhora". - Quantas pessoas? Duzentas?
Trezentas?
- Duvido que se consiga tanta gente - objetou Sally-Anne.
- Quando Nkoazana Roly casou Kingi Lingi, temos quatrocentas, até Nkosi
Smithy vem!
- Joseph - ralhou com ele -, você é realmente um esnobe!

PARA CRAIG, a infelicidade difusa que sentira com a condenação de Tungata


dissipou-se lentamente, engolida pela excitação e atividade em King's Lynn. Em
poucos meses, quase a esquecera, e apenas em momentos esporádicos e inesperados
a memória do antigo amigo o aferroava. Para o resto do mundo, era como se
Tungata Zebiwe nunca tivesse existido. Depois da extravagante cobertura do
julgamento, parecia que tinham feito uma cortina de silêncio em torno dele.
E então, abruptamente, mais uma vez o nome de Tungata apareceu em todas as
televisões e manchetes do continente.
Craig e Sally-Anne estavam em frente à tevê, consternados e incrédulos com as
primeiras notícias. Quando terminaram, e o programa começou a dar um boletim
meteorológico, Craig levantou-se, desligou o aparelho e tornou a sentar-se como
alguém em estado de choque depois de um terrível acidente.
Ficaram os dois em silêncio na sala obscurecida, até que Sally- Anne pegou-
lhe a mão e estremeceu violentamente, sem querer.
- Aquelas pobres menininhas... tão pequenas. Pode imaginar o terror que
sentiram?
- Eu conhecia os Goodwin. Eram ótimas pessoas e sempre trataram o seu pessoal
negro bem - murmurou Craig.
- Isto prova, mais do que qualquer outra coisa, que estavam certos ao trancá-
lo como um animal perigoso. - O horror que sentia estava transformando-se em
raiva.
- Não consigo imaginar o que acham que iam ganhar com uma coisa destas... -
Craig ainda balançava a cabeça, incrédulo, e Sally-Anne explodiu.
- O país inteiro, o mundo inteiro precisa saber que tipo de gente é essa,
sanguinária, desumana... - A voz falhou e virou um soluço. Aquelas pobres
crianças. Oh, Deus do céu, como odeio. Gostaria que estivesse morto.
- Usaram o nome dele, o que não significa que Tungata tenha dado ordens para
isso, aprovado uma coisa dessas ou mesmo soubesse disso. - Craig tentou parecer
convincente.
Eu o odeio - ela sussurrou. - Eu o odeio por isso.
pura loucura. Tudo o que vão conseguir com isso é fazer com que as tropas
shona arrasem Matabeleland como a ira dos deuses.
A menor tinha só cinco anos. - Com o ultraje e a dor que sentia, Sally-Anne
estava se repetindo.
Nigel Goodwin era um bom homem; eu o conhecia bastante bem. Estivemos na
mesma divisão da polícia especial durante a guerra. Eu gostava dele. - Craig foi
até o bar e serviu dois uísques. - Deus, por favor, não deixe que comece tudo de
novo. Toda a crueldade e o horror. Por favor, meu Deus, poupe-nos disso.
Apesar de Nigel Goodwin ter quase quarenta anos de idade, tinha uma dessas
caras bochechudas e rosadas, imunes ao sol africano, que o fazia parecer um
garoto. A mulher, Helen, era magra, de cabelos escuros, com um temperamento doce
e olhos castanhos brilhantes que faziam esquecer a aparência comum.
As duas meninas ficavam internadas durante a semana no convento em Bulawayo.
Com oito anos, Alice Goodwin tinha cabelos e sardas avermelhadas e era gorducha
e rosada como o pai. Stephanie, a menor, tinha cinco, e era, na realidade, muito
pequena ainda para freqüentar a escola, mas, já que a mais velha o fazia, a
Reverenda Madre fizera uma exceção em seu caso. Era a mais bonita das duas,
pequena, morena e viva como um passarinho, com os olhos brilhantes da mãe.
Toda sexta de manhã, Nigel e Helen Goodwin dirigiam pelos quase quarenta
quilômetros do rancho até a cidade. À uma hora, pegavam as meninas na escola,
almoçavam no Hotel Selborne, dividindo uma garrafa de vinho, e passavam a tarde
fazendo compras. Helen reabastecia-se de gêneros, escolhia tecidos para ela e as
meninas e, enquanto assistiam a uma sessão de cinema, ia ao cabeleireiro, a
única extravagância de sua existência simples.
Nigel fazia parte do comitê da União dos Fazendeiros de Matabele e passava
geralmente uma ou duas horas lá em conversas despreocupadas com o secretário e
os outros membros que estivessem na cidade. Depois, passeava pelas ruas largas e
quentes, com chapéu atirado para a nuca, mãos no bolso, cachimbo na boca,
cumprimentando amigos e conhecidos, tanto brancos quanto negros, parando de vez
em quando para uma conversa.
Naquele dia, ao voltar para onde havia deixado o caminhão Toyota, diante da
cooperativa, o capataz matabele, Josiah, e dois outros trabalhadores estavam à
sua espera. Colocaram no carro material que havia comprado e, ao terminarem,
Helen e as meninas chegaram para a viagem de volta.
- Desculpe, senhorita, será que não viu minha mulher por aí?
- Era a sua piadinha semanal, e Helen riu, alegre, alisando o novo penteado,
reclamando, porém, quando ele deu às meninas um saco de balas.
- Isso é tão ruim para os dentes delas, querido. - Nigel piscou para as filhas e
concordou:
- Eu sei, mas é só desta vez e isso não dá para matá-las.
Stephanie, por ser muito pequena, ia na cabine do caminhão entre os pais, e
Alice, com Josiah e outros matabele na carroceria.
- Agasalhe-se bem, querida, só vamos chegar em casa de noite - recomendou-lhe
Helen.
Os primeiros trinta quilômetros ficavam na estrada principal e, quando viraram
para a secundária que dava na fazenda, Josiah saltou para abrir o portão de
arame.
- Em casa de novo - disse Nigel, contente, enquanto dirigia por sua própria
terra. Sempre dizia isso, e Helen sorriu e tocou-lhe a mão.
- É tão bom voltar para casa, querido - concordou.
A brusca noite africana caiu sobre eles e Nigel acendeu os faróis, que brilharam
em pontinhos luminosos nos olhos do gado, animais gordos e tranqüilos que
enchiam a noite fresca com o cheiro penetrante de estrume.
- Está ficando muito seco - resmungou Nigel. - Precisamos de um pouco de chuva.
- É, querido. - Helen colocou a pequena Stephanie no colo e a criança aninhou-
se, sonolenta.
- Aqui estamos - murmurou Nigel. - A cozinheira acendeu as lâmpadas.
Há dez anos que se prometera um gerador elétrico, mas sempre aparecia algo mais
importante, por isso usavam ainda querosene e As luzes da casa tremulavam em
boas-vindas por entre os troncos das acácias.
Parou o caminhão junto à varanda de trás, e Helen subiu, carregando Stephanie
que dormia com um dedo na boca e as pernas nuas e frágeis dependuradas.
Nigel foi até a parte de trás do caminhão e ajudou Alice a descer.
longile, Josiah, podem ir agora. Descarregamos o caminhão amanhã de manhã -
disse aos homens. - Durmam bem!
Com Alice pela mão, subiu atrás da mulher para a varanda, mas, antes que a
alcançassem, um facho de luz violento acendeu-se e cegou-os.
Quem está aí? - perguntou Nigel, irritado, protegendo os olhos com a mão e
segurando Alice com a outra.
A visão ajustou-se à claridade, pôde ver por trás da lanterna elétrica, e
subitamente sentiu-se doente de medo pela mulher e as filhas. Eram três homens
negros vestidos em calças e jaquetas jeans, todos com fuzis AK 47, apontados
para a família. Nigel olhou rapidamente para trás. Havia mais estranhos, não
sabia quantos. Tinham surgido da escuridão da noite e Josiah e os dois outros
encolhiam-se de medo sob a mira das armas.
Pensou no revólver guardado no escritório, na extremidade da varanda, mas
lembrou-se de que estava vazio. Ao terminar a guerra, um dos primeiros atos do
novo governo negro fora forçar os fazendeiros brancos a entregar todas as armas,
e além do mais não ia adiantar de nada, nunca conseguiria chegar até o cofre.
- Quem são eles, papai? - perguntou Alice, com a vozinha cheia de medo. Claro
que sabia, era grande o bastante para lembrar-se da guerra.
- Tenham coragem, queridas - disse Nigel a todas, e Helen chegou mais perto
dele, ainda com Stephanie nos braços.
Enfiaram o cano de um fuzil nas costas dele, botaram-lhe as mãos para tras e
amarraram-lhe os pulsos com arame galvanizado. Tiraram Stephanie dos braços da
mãe e a colocaram no chão. As pernas estavam bambas de sono e piscava como uma
corujinha à luz da lanterna, ainda chupando o dedo. Amarraram também Helen com
as mãos para trás e ela soltou um gemido quando o arame a cortou, mas mordeu os
lábios e ficou em silêncio. Dois deles dirigiram-se com o arame em direção às
crianças.
- São apenas crianças pequenas, por favor não as amarre, não as machuquem -
disse Nigel em sindebele.
- Silêncio, chacal branco - respondeu um deles na mesma língua e ajoelhou-se
diante de Stephanie.
- Está doendo, papai - e começou a chorar -, ele está me machucando. Peça para
ele parar.
- Tem de ser corajosa - repetiu Nigel, estúpida e inadequadamente, odiando-se. -
Você já é uma moça.
O outro dirigiu-se para Alice.
- Não vou chorar, papai - ela prometeu. - Vou ser corajosa.
- Isso é que é uma boa menina - respondeu, enquanto o homem a amarrava.
- Caminhem! - comandou o da lanterna, claramente o líder do grupo, e cutucou as
crianças escada acima até a varanda da cozinha com o cano do fuzil automático.
Stephanie tropeçou e esparramou-se no chão. Com as mãos atadas às costas, não
conseguia levantar-se e contorcia-se desamparada.
- Malditos - sussurrou Nigel. - Seus malditos sujos.
Um deles pegou-a pelos cabelos, colocando-a de pé, e ela foi cambaleando e
chorando histericamente até onde estava a irmã, encostada à parede.
- Não se comporte como um bebê, Stephie - disse Alice.
- É só uma brincadeira. - Mas a voz tremia de terror e os olhos estavam enormes
e rasos d'água.
Alinharam Nigel e Helen junto às meninas, e a lanterna ficou focando-os um de
cada vez, e cegando-os para que não vissem o que acontecia no pátio.
- Por que estão fazendo isso? - perguntou Nigel. - A guerra acabou e não fizemos
mal nenhum a vocês.
Não houve resposta, apenas o foco de luz brilhante movendo-se nos rostos pálidos
e o som dos soluços de Stephanie, um choro sincopado e contristador. Ouviu-se,
então, o murmúrio de outras vozes no escuro, muitas vozes assustadas e baixas de
homens, mulheres e meninos.
- Trouxeram o nosso pessoal para ver - disse Helen baixinho.
- É exatamente como na guerra. Vamos ser executados. - Falou de modo a não ser
ouvido pelas crianças e Nigel não conseguia dizer nada. Sabia que ela tinha
razão.
- Gostaria de ter dito mais vezes o quanto a amo - disse.
Está tudo bem - ela sussurrou. - Eu sempre soube.
Podiam distinguir agora um grupo de matabele da aldeia da fazenda uma massa
escura por trás da lanterna, e a voz do líder que começou a falar com eles.
- Estes são os chacais brancos que se alimentam da nossa terra. São o lixo
branco que se uniu aos assassinos mashona, os comedores de coisas imundas de
Harare, os inimigos jurados dos filhos de orador estava induzindo-se a um estado
de frenesi assassino e Nigel já podia ver os outros homens que os guardavam
balançando-se e zumbindo de boca fechada, perdendo-se naquela paixão furiosa
onde a razão não existia. Os matabele chamavam a isso "a loucura divina" e,
quando o velho Mzilikazi era rei, um milhão de seres humanos morreram por causa
dela.
Esses brancos lambedores de fezes mashona são os traidores que entregaram
Tungata Zebiwe, o pai de nosso povo, aos campos da morte dos mashona.
- Eu amo vocês, minhas queridas - sussurrou Nigel.
Helen nunca o ouvira dizer algo com tanta ternura antes e foi isso, e não o
medo, o que a fez começar a chorar. Tentou reter as lágrimas, mas começaram a
lhe deslizar pelo rosto.
- O que devemos fazer com eles? - berrou o líder.
- Matar! - gritou um de seus homens, mas os matabele da fazenda ficaram
silenciosos na escuridão.
- O que devemos fazer com eles? - A pergunta foi repetida.
E o líder pulou da varanda para gritar nos rostos do pessoal que continuava
silencioso.
- O que devemos fazer com eles? - Daquela vez, houve o som de pancadas com o
cano dos fuzis contra carne negra, acompanhando a pergunta.
- O que devemos fazer com eles? - Repetiu pela quarta vez.
Matar! - Uma resposta incerta e aterrorizada e mais pancadas.
Matar! - Começavam a fazer eco. - Matar!
Abantwana kamina! - Nigel reconheceu na voz feminina a velha e gorda Marta,
babá das meninas. "Minhas crianças", gritara, mas a voz perdeu-se no coro
crescente de "matar! matar!" à medida que "a divina loucura" se espalhava.
Dois homens vestidos de jeans apareceram à luz da lanterna, pegaram Nigel pelos
braços e viraram-no de cara para a parede ant de obrigá-lo a ficar de joelhos.
O líder entregou a lanterna a um dos homens, pegou a pistola e armou-a,
colocando uma bala no pente com um estalido. Colocou o cano na cabeça de Nigel e
disparou um só tiro. Os miolos espirraram na parede branca e começaram a
escorrer como geléia para o chão.
Os pés dele ainda estavam se debatendo quando forçaram Helen a ficar de
joelhos ao lado do corpo do marido.
- Mamãe! - berrou Alice quando o tiro explodiu, saindo pela testa, e o
cérebro desabou. A pequena e patética demonstração de coragem de Alice acabou;
as pernas cederam, caiu inerte no assoalho da varanda, e os intestinos
esvaziaram-se involuntariamente.
O líder foi até ela. A testa quase tocava o assoalho e os cachos ruivos
esparramados deixavam ver a nuca. Estendeu o braço e encostou o cano da pistola
na delicada carne branca. O braço saltou com o coice da arma e o tiro soou
abafado. Espirais de fumaça azulada subiam pelo foco da lanterna.
A pequena Stephanie foi a única que se debateu, até que o líder deu-lhe uma
coronhada, mesmo assim continuou a debater-se e a dar pontapés, atirada no chão
da varanda, na poça de sangue da irmã. O homem colocou o pé por entre seus
ombros para imobilizá-la. A bala saiu na têmpora direita, em frente à orelha, e
fez um buraco do tamanho de uma moeda no concreto do chão, que encheu-se
rapidamente com o sangue da criança.
O líder abaixou-se, molhou o dedo no sangue escuro e escreveu na parede
branca em grandes letras tortas, "TUNGATA ZEBIWE ESTÁ VIVO".
Pulou de lá como um leopardo e foi-se silenciosamente, perdendo-se na
escuridão da noite, seguido por seus homens que trotavam rapidamente em fila
indiana.

- DOU-LHES MINHA palavra de honra - disse o primeiro-ministro - que esses


chamados dissidentes serão destruídos, completamente destruídos.
Os olhos por trás das lentes dos óculos eram duros e metálicos. A má
qualidade da transmissão de televisão criava fantasmas em torno da cabeça, mas
não diminuía a cólera que parecia extravasar do apa'relho e inundar a sala de
estar de King's Lynn.
- Nunca o vi assim antes - disse Craig.
É um homem tão frio habitualmente - concordou Sally.
- Dei ordens ao Exército e às forças policiais para perseguir e capturar os
autores desse terrível ultraje. Nós os encontraremos, e aos que os apoiam, e vão
sentir a força da ira do povo. Não toleraremos esses dissidentes.
Bravos! concordou Sally-Anne. - Não posso dizer que gostasse muito dele... até
agora.
Querida, não fique tão feliz assim - advertiu-a Craig.
- Lembre-se de que isso é a África, não a América ou a Grã-Bretanha. Esta terra
tem outro temperamento. As palavras têm um significado diferente aqui. Palavras
como capturar ou perseguir.
Craig, sei que sua simpatia está com os matabele, mas desta vez eles foram longe
demais.
- Está certa. - Levantou a mão, concordando. - Eu admito isso. Os matabele são
especiais, minha família sempre viveu com eles, nós os espancamos e os
exploramos, lutamos com eles e os matamos, e fomos mortos também. Mas os
estimamos e honramos, aprendemos a conhecê-los e a amá-los. Não conheço os
mashona. São fechados e frios, espertos e astutos. Não falo a língua deles e não
confio neles. É por isso que escolhi viver em Matabeleland.
- O que está dizendo é que são uns santos, e incapazes de cometer uma atrocidade
dessas? - Estava ficando irritada, falando em tom mais agressivo, e tentou
aplacá-la.
- Meu Deus, não! São tão cruéis quanto qualquer outra tribo da África e muito
mais aguerridos que a maioria. Em outros tempos, quando atacavam uma tribo
estranha, costumavam atirar os bebês no ar e apará-los na ponta das lanças
assegai, jogar velhas nas fogueiras e rir ao vê-las queimar. A crueldade tem um
valor diferente na África. Se a pessoa vive aqui, tem de compreender isso desde
o início. - Fez uma pausa e sorriu.
Uma vez, estava discutindo filosofia política com um matabele, um ex-
guerrilheiro, e expliquei-lhe o conceito de democracia. A resposta dele foi:
"Isso pode funcionar em seu país, mas não funciona aqui". Não compreende? Isso é
o cerne do problema. A África faz e mantém suas próprias regras e eu aposto um
milhão de dólares contra uma pitada de estrume de elefante de que vamos ver
algumas coisas nas semanas que vêm por aí que você não veria em Pensilvânia ou
Dorset! Quando Mugabe diz "destrua", não quer dizer "tome sob sua custódia e
processe-o de maneira legal". Ele é um africano e quer dizer exatamente isso:
destruir!
Isso aconteceu na quarta-feira, e sexta era dia de compras para King's Lynn,
e de ir a Bulawayo também para um pouco de vida em sociedade. Craig e Sally-Anne
partiram de manhã cedo e o novo caminhão de cinco toneladas os seguia, cheio de
matabele do rancho, aproveitando a carona para a cidade. Estavam vestidos com as
melhores roupas e cantavam, excitados.
Chegaram ao bloqueio na estrada pouco antes de alcançarem o cruzamento em
Thabas Indunas. O tráfego estava paralisado por uns cem metros e Craig viu que a
maioria dos veículos estava sendo obrigada a voltar.
- Espere um pouco! - disse a Sally-Anne, deixando-a no Land- Rover e correndo
até o começo do engarrafamento.
O bloqueio não era casual. Havia metralhadoras pesadas sobre sacos de areia
colocados em ambos os lados da estrada, e metralhadoras leves atrás para
interceptar qualquer tentativa de furá-lo.
A barricada era feita de tambores cheios de concreto e placas de metal com
pontas aguçadas para furar pneus; os guardas eram da Terceira Brigada com as
inconfundíveis boinas vermelhas e distintivos prateados. As jaquetas camufladas
davam-lhes o ar de gatos selvagens.
- O que está acontecendo, sargento? - perguntou Craig a um deles.
- A estrada está fechada, mambo - respondeu o homem com polidez. - Só vai
quem tiver um passe militar.
- Tenho de ir à cidade.
- Hoje não. - O soldado balançou a cabeça. - Bulawayo não é um bom lugar para
se ir.
Como a confirmar isso, ouviu-se um pipocar distante em direção à cidade, que
soava como o estalar de lenha verde no fogo, e Craig instintivamente arrepiou-
se. Aquele som, que conhecia muito bem, trouxe-lhe lembranças do pesadelo dos
dias da guerra. Era o som distante de fuzis automáticos.
- Volte para casa, mambo - disse o sargento, amigavelmente. - Isso não é mais
a sua indaba.
)e repente, Craig ficou ansioso para levar o caminhão cheio de gente de volta a
King's Lynn.
Correu de volta ao Land-Rover e tirou-o do engarrafamento com uma volta de cento
e oitenta graus. O que está havendo, Craig?
Acho que já começou - disse, carrancudo, e pisou fundo o acelerador.
Encontraram o caminhão de King's Lynn que vinha alegremente ao seu encontro, com
as mulheres cantando e batendo palmas e os vestidos ondulando festivos ao vento.
Craig os fez parar e correu até lá. Shadrach, no velho terno cinzento que o
patrão lhe dera, estava sentado no lugar de honra, ao lado do chofer.
Dêem a volta - ordenou Craig. - Voltem para Kingi Lingi.
Está havendo uma grande encrenca. Ninguém deve sair de lá até tudo se acalmar.
- São os soldados mashona?
- Sim. A Terceira Brigada.
- Chacais e filhos de chacais comedores de coisas imundas - disse Shadrach,
cuspindo pela janela.
AFIRMAR QUE milhares de pessoas inocentes foram mortas pelas forças de segurança
do Estado é um contra-senso...
O ministro da Justiça de Zimbabué parecia mais um corretor da Bolsa bem-
sucedido, no terno escuro e gravata branca. Sorria afavelmente na tela de
televisão com o rosto lustroso de suor por causa da forte iluminação que
enfatizava a cor da pele.
- Um ou dois civis foram mortos no fogo cruzado entre as forças de segurança e
os bandidos dissidentes matabele, mas milhares? Ha, ha, ha! - riu com
jovialidade. - Se milhares foram mortos, queria que alguém me mostrasse os
cadáveres; nada sei sobre isso.
Bem - disse Craig, desligando o aparelho. - É só o que vai se conseguir saber
de Harare. - Olhou o relógio de pulso. - Quase oito horas, vamos ver o que diz a
BBC.
Durante o regime de Smith, de censura draconiana, todo homem de bom senso na
África Central tinha um rádio de ondas curtas e esta era ainda uma boa regra a
seguir. Craig possuía um Yaesu Musen que sintoniza a BBC em 2.171 quilohertz.
- O governo de Zimbábue expulsou todos os jornalistas estrangeiros de
Matabeleland. O Alto Comissário britânico falou com o primeiro-ministro de
Zimbábue para expressar a profunda preocupação do governo de Sua Majestade com
as notícias de atrocidades cometidas pelas forças de segurança.
Craig sintonizou a rádio África do Sul e ouviram claramente:
- ... a chegada de centenas de refugiados ilegais através da fronteira norte
vindos de Zimbabué. Os refugiados são todos membros da tribo matabele. Um porta-
voz do grupo descreveu o massacre de aldeãos e civis que presenciou: "Estão
matando todo mundo", disse. "Mulheres e crianças e até mesmo as galinhas e
cabras". Outro refugiado disse: "Não nos mandem de volta. Os soldados vão nos
matar".
Craig sintonizou a Voz da América:
- O líder do partido ZAPU, a facção matabele de Zimbábue, sr. Joshua Nkomo,
chegou ao Estado vizinho de Botsuana, depois de fugir do país. "Mataram meu
motorista a tiros", disse ao nosso repórter regional. "Mungabe quer me ver
morto. Está disposto a tudo para me pegar." Com a recente detenção de todos os
outros membros proeminentes do partido ZAPU, a partida do sr. Nkomo de Zimbábue
deixa o povo sem um líder ou um porta-voz. Enquanto isso, o governo do sr.
Robert Mugabe impôs uma censura total à parte oeste do país, todos os
jornalistas estrangeiros foram expulsos e um pedido da Cruz Vermelha
Internacional para mandar observadores foi rejeitado.
- É tudo tão familiar - resmungou Craig. - Tenho até mesmo aquela sensação
horrível na boca do estômago.

SEGUNDA-FEIRA ERA O aniversário de Sally-Anne. Depois do café da manhã, foram


juntos até Queen's Lynn para buscar seu presente. Craig o deixara aos cuidados
da sra. Groenewald, a mulher do capataz, para guardar segredo.
- Oh, Craig, ele é lindo.
- Agora você tem dois para tomar conta em King's Lynn.
Sally-Anne levantou com as duas mãos o cachorrinho, beijou o focinho úmido e
ele deu-lhe uma lambida.
É um cachorro-leão da Rodésia ou suponho que agora seja do Zimbábue.
A pele do cachorrinho era grande demais para ele. Caía em dobras sobre a testa e
dava-lhe um ar preocupado. As costas eram encimadas pela crista de pêlos
característica da raça.
Olhe para as patas dele! - gritou Sally-Anne. - Vai ser um monstro de grande.
Que nome dou a ele?
Craig decretou feriado para celebrar o aniversário. Levaram o cachorrinho para
um piquenique na represa principal abaixo da sede onde ficaram estendidos sob as
árvores, à beira d'água, tentando achar um nome para ele. Sally-Anne vetou a
proposta de Craig de chamá-lo simplesmente de "Cachorro".
Os pássaros tecelãos de cabeça negra sobrevoavam, gritando e pendurando-se de
cabeça para baixo nos ninhos em forma de cestos, e Joseph colocara uma garrafa
de vinho branco gelado entre as coisas do piquenique. O cachorrinho ficou
caçando grilos até cair exausto ao lado de Sally-Anne. Beberam o vinho e, quando
fizeram amor, ela sussurrou a sério:
- Psiu! Não acorde o bichinho!
Ao voltar para casa, Sally-Anne disse de repente:
- Não falamos sobre as agitações o dia inteiro.
- Não vamos estragar este recorde.
- Vou chamá-lo de Buster.
- Por quê?
- Chamei assim o primeiro cachorrinho que ganhei.
Deram comida a Buster, fizeram-lhe uma cama em um caixote vazio que colocaram ao
lado do fogão. Ambos estavam cansados e contentes e deixaram de lado naquela
noite o livro e as fotografias e foram para a cama depois do jantar.
CRAIG ACORDOU com o barulho de tiros. Os reflexos do tempo da guerra arrancaram-
no da cama antes que estivesse completamente acordado. Notou instintivamente que
eram disparos de fuzil automático, rajadas curtas e muito próximas e isso
significava atiradores bem-treinados. Ao avaliar a distância, viu que deviam
estar na aldeia ou na oficina.
Apanhou a perna e prendeu-a, já completamente desperto, e o primeiro pensamento
foi para Sally-Anne. Agachado abaixo do parapeito das janelas, rolou pelo
assoalho até a cama e a arrastou para lá.
Estava nua e tonta de sono.
- O que é?
- Tome. - E puxou a camisola dos pés da cama. - Vista-se, mas fique abaixada.
Enquanto ela se enfiava na roupa, tentou coordenar os pensamentos. Não havia
armas na casa, exceto os facões de cozinha e uma machadinha de lenha na varanda
de trás. Não havia sacos de areia ou perímetro defensivo de fogo e de luzes, e
nem transmissor de rádio - nenhuma das defesas mais elementares que havia em
toda fazenda antes.
Outra rajada de tiros e alguém gritou, uma mulher, mas o grito logo foi
abafado.
- O que está acontecendo? Quem são eles? - A voz de Sally- Anne estava firme,
bem desperta e sem medo, e sentiu um certo orgulho dela. - São dissidentes?
- Não sei, mas não vamos ficar esperando para descobrir - disse com expressão
séria.
Olhou para o teto novo de palha altamente inflamável. A melhor chance era
escaparem da casa para o mato e, para isso, precisavam de um diversionismo.
- Fique aqui - ordenou. - Calce sapatos e fique pronta para correr. Volto num
minuto.
Rolou até debaixo da janela e ficou de pé. A porta do quarto estava
destrancada e correu para o corredor. Perdeu dez segundos junto ao telefone,
sabia que teriam cortado os fios, o que foi logo confirmado pela mudez total do
aparelho. Desligou-o e correu para a cozinha.
Só havia um modo de distrair a atenção dos atacantes: a luz. Acionou o
controle remoto do gerador diesel, ouviu o ruído distante do motor do outro lado
do pátio e as lâmpadas de lá acenderam-se. Abriu a caixa de fusíveis sobre o
painel de controle, cortou as luzes dentro da casa e acionou as da varanda e as
do jardim da frente, deixando os fundos às escuras. Decidiu que fugiriam por ali
e teria de ser rápido. Os atacantes ainda não haviam se aproximado da casa, mas
deviam estar a segundos dela.
Saiu correndo da cozinha, parou na porta traseira da saleta para checar as
luzes do jardim e da varanda. Os gramados apresentavam um verde particularmente
luxuriante à luz artificial, e os jacarandás os recobriam como o teto de uma
catedral. Os disparos tinham cessado, mas perto da aldeia dos trabalhadores uma
mulher lamentava-se naquele tom pungente do luto africano, o que o deixou todo
arrepiado.
Craig sabia que já estavam subindo a colina e, ao virar-se para correr até
Sally-Anne, percebeu um ligeiro movimento na borda da luz. Tentou identificar,
saber quem estava atacando, isso lhe daria uma pequena vantagem, mas estava
desperdiçando um tempo precioso.
Era um homem nu, um negro, que corria subindo em direção à casa. Não, não
estava nu, usava um pano entre as pernas e não corria, cambaleava e gesticulava
como se estivesse bêbado. Nas luzes da varanda, o corpo rebrilhava, parecendo
untado, mas em seguida Craig percebeu que estava banhado em sangue, que escorria
caindo em gotas.
Com um tremendo choque, viu que era o velho Shadrach e, sem pensar, foi em
seu socorro. Deu um pontapé nas portas-janelas da saleta e correu para a
varanda, pulando o parapeito baixo. Agarrou Shadrach antes que caísse e o
levantou no colo, surpreendido com o pouco peso do velho. Deu um salto de volta
para a varanda, levando-o nos braços, e agachou-se com ele por trás da mureta.
Shadrach fora atingido no braço, logo acima do cotovelo, o osso estava
estilhaçado e o braço, que ele segurava contra o peito como se fosse um bebê,
pendia por um fiapo de carne.
- Eles estão vindo - arquejou. - Vocês têm de fugir. Estão matando nossa
gente e vão matar vocês também.
Era um verdadeiro milagre que o velho pudesse falar e mais ainda correr com
um ferimento daqueles. Agachado atrás da mureta, rasgou um pedaço de pano da
roupa com os dentes e começou a atá-lo no braço. Craig afastou-lhe a mão e fez o
nó.
- O senhor precisa fugir, patrãozinho - e, antes que pudesse impedi-lo, o
velho ficou em pé e desapareceu na escuridão além dos holofotes.
- Arriscou a vida para me avisar. - Craig olhou-o por um segundo, agachou-se
e correu para dentro de casa.
Sally-Anne estava onde a havia deixado, agachada debaixo da janela, um
quadrado iluminado, e viu que amarrara o cabelo atrás e vestira uma camiseta,
shorts e estava calçando tênis.
- Boa menina - disse, ajoelhando-se a seu lado. - Vamos embora.
- Buster - ela retrucou. - Meu cachorrinho!
- Pelo amor de Deus!
- Não podemos deixá-lo aqui! - Tinha aquele ar teimoso que já conhecia tão
bem.
- Eu a carrego à força se tiver que fazer isso - avisou-a furioso e,
levantando-se rapidamente, arriscou um último olhar pela janela.
Os gramados e o jardim ainda estavam brilhantemente iluminados. Podia
distinguir a silhueta escura de homens subindo do vale, homens armados e em
fileiras disciplinadas. Por um momento, não pôde acreditar no que via e deixou-
se cair no chão, respirando aliviado.
- Oh, obrigado, meu Deus! - sussurrou. Viu que a reação a tudo aquilo já
começava, sentia-se fraco e trêmulo, olhou Sally- Anne e a abraçou.
- Está tudo bem agora - disse-lhe. - Tudo vai ficar bem.
- O que aconteceu?
- As forças de segurança chegaram. - Reconhecera as boinas vermelhas e os
distintivos prateados dos homens que cruzavam o gramado. - A Terceira Brigada
está aqui; tudo vai ficar bem agora.
Foram até a varanda da frente para saudar os salvadores, Sally- Anne com o
cachorrinho amarelo nos braços e Craig com o braço em torno de seus ombros.
- Estou muito contente em ver o senhor e seus homens, sargento. - Craig
saudou o suboficial que estava à frente da linha de soldados.
- Queiram entrar. - O sargento fez um gesto imperativo e quase ameaçador com
o fuzil.
Era um homem alto, de pernas longas e musculosas, com uma expressão fria e
neutra, e Craig sentiu o alívio evaporar-se. Algo estava errado. Os soldados
cercaram a casa, enquanto avançavam aos pares em ordem de combate, dando-se
cobertura mútua, na tática clássica de luta de rua, e entraram rapidamente para
dentro, pelas janelas e portas laterais, vasculhando o interior. Ouviu-se um
barulho de vidros quebrados nos fundos. Era uma busca destrutiva.
- O que está acontecendo, sargento? - A raiva de Craig reapareceu e daquela
vez o gesto do sargento alto foi inequivocamente hostil.
Craig e Sally-Anne foram obrigados a ir para a sala de jantar, e ficaram de
pé, abraçados, ao lado da mesa de teca, encarando o fuzil ameaçador.
Dois soldados entraram pela porta da frente e fizeram um relatório ao
sargento em uma algaravia de shona que Craig não compreendeu. O suboficial deu-
lhes uma ordem. Colaram-se obedientemente à parede com as armas apontadas para o
casal no centro da sala.
- Onde se ligam as luzes? - perguntou o sargento e, depois que Craig indicou-
lhe, acendeu o comutador e a sala ficou toda iluminada.
- O que está acontecendo, sargento? - repetiu Craig, zangado, inseguro e
começando a temer novamente por Sally-Anne.
O homem tornou a ignorar a pergunta e foi até a porta. Chamou um dos soldados
que estavam no gramado que veio correndo. Carregava um radiotransmissor portátil
nas costas, com a antena sobressaindo do ombro como uma cauda de escorpião. O
sargento falou baixinho no aparelho e voltou para a sala.
Ficaram imóveis, esperando. Para Craig, parecia que já se passara uma hora em
completo silêncio, mas decorreram apenas cinco minutos até que o sargento
levantasse a cabeça, escutando. Ouviu-se um ruído de motor, diferente do
gerador, que foi se avolumando e Craig reconheceu o de um Land-Rover.
Vinha subindo a rampa, e logo os faróis varreram as janelas, e ouviu-se um
ranger de freios. O motor foi desligado, portas foram batidas e escutou-se o
rumor de passos de um grupo de homens cruzando a varanda.
O general Peter Fungabera entrou à frente de seus homens pelas portas-
janelas. A boina estava inclinada sobre um olho e usava um lenço de seda da
mesma cor no pescoço. Exceto pela pistola na cintura, estava armado apenas com o
bastão forrado de couro.
Atrás dele, o capitão Timon Nbebi, alto e de ombros arredondados, tinha uma
expressão inescrutável por trás dos óculos de aros de aço. Carregava uma pasta
de mapas e tinha ao ombro um coldre com pistola.
- Peter! - O alívio de Craig era temperado pela cautela. Tudo estava muito
controlado e ameaçador. - Mataram vários empregados meus. Meu induna está em
algum lugar por aí, gravemente ferido.
- Houve muitas baixas entre o inimigo - concordou Peter Fungabera.
- Inimigo? - Craig estava intrigado.
- Dissidentes - reafirmou Peter. - Dissidentes matabele.
- Dissidentes? - Craig encarou-o. - Shadrach, um dissidente? Isso é uma loucura,
ele é um simples vaqueiro, um homem simples e sem instrução, não tem nada a ver
com política.
- As coisas muitas vezes não são como parecem. - Peter Fungabera puxou a cadeira
da cabeceira da mesa, colocou o pé em cima e apoiou o cotovelo no joelho. Timon
Nbebi pôs a pasta de mapas na mesa à sua frente e deu um passo atrás, em posição
de guarda, com a pistola automática na mão.
- Será que pode, por favor, me dizer que diabos está acontecendo aqui, Peter? -
Craig estava exasperado e nervoso. - Alguém atacou minha aldeia e mataram vários
do meu pessoal, só Deus sabe quantos. Por que não vai atrás deles?
- O tiroteio acabou - disse Peter Fungabera. - Limpamos o ninho de serpentes
traidoras que você estava criando nesta sua propriedade colonialista.
- Mas de que diabos está falando? - Craig estava completamente confuso. - Não
pode estar falando sério!
- Sério? - Peter sorriu largamente, endireitando-se, botando os dois pés no chão
e caminhando até ele. - Um cachorrinho - continuou, ainda sorrindo. - Que lindo.
Tirou Buster dos braços de Sally-Anne antes que esta compreendesse sua intenção.
Voltou à cabeceira da mesa, acariciando-o e coçando-o por trás da orelha. O
bichinho estava meio adormecido e fez um ruído deleitado, esfregando-se contra
ele e procurando instintivamente a teta materna.
- Sério? - repetiu. - Quero que vejam o quanto é sério.
Atirou o cachorrinho no assoalho de pedra, onde caiu de costas, estonteado.
Colocou a bota no peito do animalzinho, comprimiu com toda a força e o bicho
soltou um único grito ao ter o peito esmigalhado.
- Isso é para mostrar o quanto estou sendo sério. - Já não sorria mais. -
Suas vidas valem tanto para mim quanto a deste animal.
Sally-Anne deu um pequeno gemido e virou-se, enterrando o rosto no peito de
Craig, nauseada e tentando controlar-se. Peter Fungabera jogou com um pontapé o
corpo do cãozinho na lareira e sentou-se.
- Sr. Mellow, é um agente provocador a soldo da notória CIA americana.
- Isto é uma mentira suja! - gritou Craig, e Peter ignorou o protesto.
- Seu contato local era o agente americano Morgan Oxford, da embaixada dos
Estados Unidos, e o financiador, um certo Henry Pickering, que usa como fachada
o cargo de diretor do Banco Mundial em Nova York. Recrutou você e a srta. Jay.
- Não é verdade!
- Sua remuneração era de sessenta mil dólares por ano, e sua missão,
organizar um centro de subversão em Matabeleland, financiado com dinheiro da CIA
que chegou às suas mãos sob a forma de um empréstimo de uma subsidiária do Banco
Mundial controlada pela CIA. A soma para isso foi de cinco milhões de dólares.
- Meu Deus, Peter, isso é uma tolice, e sabe disso.
- Durante o resto deste interrogatório, vai se dirigir a mim como "senhor" ou
"general Fungabera", está claro?
Virou-se para ouvir a súbita atividade lá fora. Chegava um comboio de
caminhões leves, de onde desembarcaram mais tropas, com ordens dadas em shona.
Pelas portas de vidro, Craig viu uma dúzia de soldados carregando pesados
caixotes até a varanda.
Peter Fungabera olhou inquisitivamente para Timon Nbebi, que acenou,
confirmando a interrogação muda.
- Certo! - Voltou-se para encarar Craig. - Podemos continuar. Entabulou
negociações com conhecidos traidores matabele, usando o seu conhecimento fluente
da língua e o temperamento desta gente intratável.
- Não pode citar nenhum, porque não existem.
Peter Fungabera fez um sinal a Timon que gritou uma ordem. Os soldados
trouxeram até a sala um homem descalço, vestido só com short, e emaciado ao
ponto de parecer ter a cabeça grotescamente grande. O crânio estava raspado e
coberto de calombos e crostas recentes, as costelas cortadas por chicotadas,
provavelmente com as chibatas chamadas sjambocks, feitas de couro de hipopótamo.
- Conhece este homem branco? - perguntou-lhe Fungabera, e o homem olhou para
Craig. Os olhos estavam opacos.
- Nunca o vi antes - Craig ia começar a protestar, mas interrompeu-se ao
reconhecê-lo. Era o camarada Dólar, o mais jovem e o mais truculento dos homens
do Águas do Zambeze.
- Sim? - incitou-o Fungabera, sorrindo. - O que o senhor ia dizer, sr. Mellow?
- Quero ver alguém do Alto Comissariado Britânico e a srta. Jay quer telefonar
para a embaixada americana.
- Naturalmente - assentiu Fungabera. - Tudo no devido tempo, mas primeiro
precisamos completar o que começamos. - Voltou-se para o camarada Dólar. -
Conhece o homem branco?
- Ele nos deu dinheiro - confirmou Dólar.
- Podem levá-lo - ordenou Fungabera. - Cuidem bem dele e lhe dêem alguma coisa
para comer. E agora, sr. Mellow, ainda nega qualquer contato com os subversivos?
- Não esperou por uma resposta, mas continuou suavemente. - Construiu aqui um
arsenal para ser usado contra o governo eleito pelo povo em um golpe de Estado
que colocaria um ditador pró-americano no governo.
- Não tenho armas aqui.
- Suas negativas são inúteis - suspirou Fungabera. - E cansativas. - E
dirigindo-se ao alto sargento mashona: - Leve os dois para lá.
Foi, seguido pelos outros, até a larga varanda onde seus homens tinham colocado
os caixotes.
- Abra-os - comandou, e os soldados levantaram as tampas.
Craig reconheceu os armamentos estocados lá dentro. Eram fuzis automáticos
americanos do tipo Armalite 5.56 mm AR 18. Seis em cada caixote, e novos em
folha, ainda com a graxa da fábrica.
- Não tenho nada a ver com isso - Craig finalmente pôde afirmar com veemência.
- Está abusando de minha paciência. - E Peter Fungabera voltou-se para Timon
Nbebi. - Traga o outro homem branco.
Hans Groenewald, o capataz, foi arrastado de um dos caminhões e levado à
varanda. Tinha as mãos amarradas às costas e estava aterrorizado. A cara larga
parecia ter desabado em rugas pesadas e dobras de pele como a de um cachorro
doente, e o bronzeado empalidecera e ficara cor de café-com-leite. Os olhos
estavam injetados e lacrimosos como os de um bêbado.
- Guardou essas armas nos barracões de tratores desta fazenda? - perguntou
Fungabera, e a resposta de Groenewald foi ininteligível.
- Fale alto, homem.
- Sim, eu os guardei, senhor.
- Por ordem de quem?
Groenewald olhou contristado para Craig que de repente ficou gelado e começou
a suar.
- Por ordem de quem? - repetiu pacientemente Fungabera.
- Ordens do sr. Mellow, senhor.
- Podem levá-lo.
Enquanto os guardas o levavam de volta, Groenewald virou a cabeça para olhá-
lo, com uma expressão atormentada, e gritou de repente:
- Sinto muito, sr. Mellow, mas tenho mulher e filhos.
Um dos soldados acertou-o com a coronha do fuzil no estômago, logo abaixo das
costelas. Groenewald ficou sem fôlego e dobrou-se em dois. Ia caindo, mas o
agarraram pelos braços e o enfiaram no caminhão. O chofer ligou o motor e
desceram barulhentos a colina.
Peter Fungabera levou-os de volta para a sala de jantar e sentou-se novamente
à cabeceira da mesa. Enquanto arrumava e estudava os papéis da pasta, ignorou
completamente Craig e Sally-Anne que foram forçados a ficar em pé, na parede
oposta, com um soldado de cada lado, e o silêncio prolongou-se. Mesmo sabendo
que aquele silêncio era deliberado, Craig queria interrompê-lo para gritar sua
inocência, protestar contra a teia de mentiras, meias verdades e distorções que
estavam sendo lentamente armadas.
Ao lado dele, Sally-Anne estava ereta, segurando as mãos para não deixar que
tremessem. O rosto estava esverdeado e suado, e ficava a todo momento olhando a
lareira onde o corpo do cachorrinho jazia como um brinquedo jogado fora.
Por fim, Peter Fungabera empurrou os papéis e recostou-se na cadeira, batendo
ritmadamente com o bastão em cima da mesa.
- É um caso de enforcamento - disse -, uma ofensa capital para você e a srta.
Jay.
- Ela não tem nada a ver com isso - e Craig colocou um braço protetor em seus
ombros.
- Os órgãos da região inferior feminina são menos capazes de suportar o
choque da queda no enforcamento - observou Fungabera. - O efeito pode ser
bastante bizarro, ou pelo menos é o que me disseram. - O que fez Craig sentir-se
doente, nauseado e incapaz de falar. - Por sorte, não precisamos chegar a este
ponto. A escolha será de vocês.
Peter ficou rolando o bastão entre os dedos e Craig descobriu que os olhava
fixamente. As palmas e a parte interna dos dedos longos e fortes eram de um
rosado delicado.
- Acredito que tenham sido vítimas de seus mestres imperialistas e
capitalistas. - E sorriu novamente. - Vou deixar que partam.
Ambos levantaram a cabeça e o olharam.
- Sim, parece que não estão acreditando, mas é essa a minha intenção.
Pessoalmente, aprendi a gostar dos dois. Enforcar vocês não me daria qualquer
prazer. Ambos têm talentos artísticos e isso seria um desperdício; e, de agora
em diante, não vão mais poder causar qualquer problema.
Continuaram silenciosos, começando a ter um pouco de esperança, e sentindo
que tudo aquilo era parte de um cruel jogo de gato e rato.
- Estou pronto a fazer a vocês uma oferta. Se aceitarem fazer uma confissão
completa, mando escoltá-los até a fronteira, com todos os seus documentos e
quaisquer possessões e objetos de valor facilmente transportáveis que
escolherem. Vou libertá-los para que se vão e não criem mais problemas para mim
e para meu povo.
Esperou, sorridente, batendo ritmadamente com o bastão na mesa, como uma
torneira pingando, o que distraía Craig, incapaz de pensar naquele momento. Tudo
acontecera rápido demais. Peter Fungabera o pegara de surpresa mudando de
tática. Precisava de tempo para se recompor e começar a pensar clara e
logicamente outra vez.
- Uma confissão? - deixou escapar. - Que espécie de confissão?
Mais uma de suas exibições diante de uma corte? Uma humilhação pública?
- Não, acho que não precisamos chegar a isso - assegurou-lhe Fungabera. -
Preciso apenas de uma declaração por escrito sua, um relatório de seus crimes e
das maquinações de seus patrões. A confissão será testemunhada, e, depois, podem
ser escoltados até a fronteira e colocados em liberdade. Tudo muito direto,
simples e, posso dizer, muito civilizado e humano.
- Você, naturalmente, vai prepará-la para mim? - perguntou Craig com amargura, e
Peter Fungabera riu.
- Como é esperto. - Selecionou um dos documentos à sua frente. - Aqui está.
Basta apenas datar e assinar.
Até Craig surpreendeu-se com aquilo.
- Você já mandou batê-la à máquina?
Ninguém respondeu, e o capitão Nbebi levou o documento para ele.
- Por favor, leia, sr. Mellow.
Eram três folhas datilografadas, cheias de denúncias sobre seus "patrões
imperialistas" e escritas no jargão histérico da extrema esquerda. Mas naquela
mixórdia, como passas em um bolo, estavam todos os fatos de que era acusado.
Leu tudo lentamente, tentando fazer com que o cérebro embotado funcionasse com
clareza, mas tudo era irreal e fantástico, parecendo que não o afetava
pessoalmente. Até que leu as palavras que lhe restituíram a consciência. Eram
tão familiares e tão bem lembradas que queimavam como ácido.
"Admito que por minhas ações provei ser um inimigo do Estado e do povo de
Zimbábue."
Eram as mesmas palavras de outro documento que assinara, e subitamente
compreendeu qual era a intenção daquilo tudo.
- King's Lynn - sussurrou, e olhou para Fungabera. - Então é disso que se trata.
Você está atrás de King's Lynn.
Fez-se silêncio, exceto pelo tamborilar do bastão sobre a mesa. Peter Fungabera
não perdia um compasso e continuava a sorrir.
- Você planejou tudo desde o princípio. O seguro para o meu empréstimo; foi você
mesmo que incluiu esta cláusula.
A letargia evaporou-se e Craig começou a sentir muita raiva de novo, atirando a
confissão no chão. O capitão Nbebi pegou-a e ficou segurando-a, desajeitado.
Craig tremia de raiva e deu um passo em direção à elegante figura sentada diante
dele, estendendo instintivamente as mãos, mas o sargento shona barrou-lhe o
caminho, encostando-lhe o fuzil no peito.
- Seu porco sujo! - sibilou Craig que chegou a salivar de raiva. - Quero a
polícia, quero a proteção da lei.
- Sr. Mellow - disse Fungabera calmamente -, eu sou a lei em Matabeleland. O que
estou oferecendo é a minha proteção.
- Não vou fazer isso. Não assino esta porcaria. Prefiro ir para o inferno.
- Isso pode ser arranjado - disse Fungabera em voz suave, e continuou em tom
persuasivo. - Peço-lhe que deixe de lado todo este teatro e resigne-se ao
inevitável. Assine o papel e podemos acabar com toda esta sordidez.
Palavras cruas afloraram aos lábios de Craig e foi com esforço que não as usou,
não querendo se degradar diante deles.
- Não - disse ao invés. - Nunca vou assinar esta coisa. Terá de me matar
primeiro.
- Dou-lhe uma última chance para mudar de idéia.
- Não. Nunca!
Peter Fungabera virou-se para o sargento.
- Dou esta mulher para você - disse. - Primeiro você e depois seus homens, um de
cada vez até que todos o façam. Aqui, nesta sala e sobre esta mesa.
- Meu Deus, você é um monstro - gritou Craig e tentou segurar Sally-Anne, mas os
soldados o agarraram e o atiraram na parede. Um deles colocou a baioneta em sua
garganta.
O outro torceu o pulso de Sally-Anne, forçando-a a ficar de frente para o
sargento. Ela começou a debater-se loucamente, mas o soldado torceu-lhe
violentamente o braço, quase levantando-a do assoalho e seu rosto contorceu-se
de dor.
O sargento tinha uma expressão neutra, sem qualquer sinal de lubricidade ou
gestos obscenos. Agarrou a camiseta de Sally-Anne com as duas mãos e rasgou-a de
alto a baixo. Os seios pularam fora, muito brancos e delicados, com os bicos
rosados sensíveis e vulneráveis.
- Tenho cento e cinqüenta homens - observou Fungabera. - Vai levar algum tempo
para terminar.
O sargento enfiou os polegares na cintura do short e puxou-o para baixo,
deixando-o cair, enrolado, nos tornozelos dela. Craig tentou mover-se, mas a
ponta da baioneta cortou-lhe a pele da garganta, fazendo escorrer sangue na
camisa. Sally-Anne tentou cobrir o triângulo escuro de pêlos com a mão livre num
gesto patético e inútil.
Sei como a idéia de carne preta penetrando em sua mulher é terrivelmente
desagradável até para um suposto liberal branco como você. - O tom de Fungabera
era quase de conversa. - Vai ser interessante ver quantas vezes vai permitir
isso.
O sargento e o soldado levantaram Sally-Anne e a colocaram de costas sobre a
mesa. O sargento arrancou o short fora, deixando-a calçada e com os frangalhos
da camiseta na parte superior do corpo.
Com grande prática, dobraram-lhe os joelhos contra o peito, pressionando-os para
baixo e enfiando-os nas axilas. Deviam ter feito isso muitas vezes antes. Estava
desamparada, exposta e completamente indefesa. Todos os homens na sala fitavam-
lhe as partes secretas do corpo, e o sargento começou a desafivelar o cinto com
a mão livre.
- Craig! - ela gritou, e ele encolheu-se involuntariamente como se tivesse
levado uma chicotada.
- Eu assino - sussurrou. - Deixe-a em paz e eu assino.
Fungabera deu uma ordem em shona e imediatamente a libertaram. O soldado recuou
e o sargento ajudou-a a recompor-se e levantar. Polidamente, devolveu-lhe o
short que ela vestiu soluçando e tremendo.
Correu, então, até Craig e abraçou-o. Não conseguiu falar, engasgou na tentativa
de conter as lágrimas. O corpo sacudia com os soluços e Craig abraçou-a.
- Quanto mais cedo assinar, mais depressa poderão ir embora.
Craig foi até a mesa, ainda segurando Sally-Anne.
O capitão Nbebi estendeu-lhe uma caneta, ele botou as iniciais nas duas
primeiras páginas e assinou a última por extenso. Fungabera e o capitão serviram
de testemunhas e Peter disse ao final: Uma última formalidade. Quero que você e
a srta. Jay sejam examinados pelo médico do regimento para quaisquer sinais de
maus-tratos ou coerção.
Vá para o inferno, será que ela já não suportou o bastante? Por favor, meu caro,
faça o que eu desejo.
O médico devia estar esperando em um dos caminhões lá fora.
Era um shona pequeno e elegante, de maneiras enérgicas e profissionais.
- Pode examinar a mulher no quarto, doutor. Verifique particularmente se foi
penetrada à força - instruiu-o Fungabera e, quando deixaram a sala, virou-se
para Craig. - Neste meio tempo, pode abrir o cofre, tirar seu passaporte e
qualquer outro documento que precise para a viagem.
Dois soldados o escoltaram até o escritório no final da varanda, e ficaram
vigiando enquanto o abria. Tirou o passaporte, a carteira com os cartões de
crédito e o distintivo do Banco Mundial, três talões de travellerscheck e o
manuscrito do novo romance. Enfiou tudo numa sacola e voltou para a sala de
jantar.
Sally-Anne e o médico saíram do quarto. Colocara um suéter de cashmere azul, uma
camisa e jeans. Conseguira controlar a histeria, soltando apenas um soluço
ocasional, apesar de tremer ainda. Pegou a sacola da câmera, colocou debaixo do
braço o álbum de fotografias e o texto do livro deles.
- Sua vez - convidou Fungabera. Quando ele voltou, Sally- Anne já estava sentada
no banco de trás do Land-Rover parado em frente à varanda, tendo o capitão Nbebi
ao lado. Havia dois soldados armados na traseira do carro e o assento ao lado do
chofer estava reservado para Craig.
Peter Fungabera estava de pé na varanda.
- Adeus, Craig - disse, e Craig olhou-o, tentando mostrar todo o ódio que
sentia. - Você realmente não acreditou que eu permitiria que reconstruísse o
império de sua família, não é? - perguntou Peter sem rancor. - Lutamos muito
duro para destruir aquele mundo.
Enquanto o Land-Rover descia a colina, Craig virou-se para olhar. Peter
Fungabera ainda estava na varanda iluminada e de alguma forma sua figura alta
parecia diferente. Era como se pertencesse àquilo, como um conquistador tomando
posse, o dono da grande propriedade. Craig ficou olhando até as árvores
esconderem-no, e só então deixou que o fermento do ódio o invadisse.
As luzes do Land-Rover iluminaram a tabuleta:
CRIAÇÃO DE GADO AFRIKANDER KING'S LYNN PROPRIETÁRIO: CRAIG MELLOW parecia troçar
dele; ultrapassaram-na e cruzaram a cerca metálica. Deixaram o solo de King's
Lynn e os sonhos de Craig para trás e viraram para o oeste. Os pneus começaram a
zumbir monotonamente ao atingirem o asfalto da estrada principal e ninguém
dissera ainda uma única palavra.
O capitão Nbebi abriu a pasta que trazia nos joelhos e tirou uma garrafa da
forte aguardente local, oferecendo-a a Craig no banco da frente que a recusou
bruscamente, mas Nbebi insistiu e Craig segurou-a de má vontade. Tirou a tampa e
tomou um gole que encheu-lhe os olhos d'água, mas a bola de fogo no estômago
dissolveu-se, confortando-o. Tomou outro gole e passou-a a Sally-Anne que
balançou a cabeça.
- Beba - ordenou Craig, e ela obedeceu. Parara de chorar, mas o tremor ainda
persistia. O álcool engasgou-a, mas conseguiu engoli-lo e a tremedeira cessou.
- Obrigada - disse, devolvendo a garrafa a Timon Nbebi, e a polidez de uma
mulher degradada e humilhada por eles foi embaraçosa para todos.
Alcançaram a primeira barreira da estrada nos subúrbios da cidade de Bulawayo e
Craig olhou para o relógio. Faltavam sete minutos para as três da manhã. Não
havia outros veículos e os dois soldados de guarda vieram ladear o Land-Rover.
Timon Nbebi baixou o vidro da janela e falou com um deles, entregando-lhe um
passe. O soldado examinou-o rapidamente à luz da lanterna e devolveu-o, fazendo
continência. A barreira foi levantada e eles passaram.
Bulawayo estava silenciosa e sem qualquer sinal de vida; apenas umas poucas
janelas ainda estavam iluminadas. Uma luz de trânsito ficou vermelha e o
motorista parou, apesar de as ruas estarem desertas. Acima do motor ligado,
ouviu-se então o som de fuzis disparando, distante e fraco.
Craig observava o rosto de Timon Nbebi pelo espelho traseiro e viu-o contrair a
fisionomia ao som dos disparos. O sinal ficou verde e continuaram, tomando a
estrada do sul através dos subúrbios. Nos limites da cidade, havia mais duas
barreiras e depois a estrada estava desimpedida.
Viajaram noite adentro em direção ao sul, com os pneus cantando e o vento
batendo nos rostos. As luzes do painel davam um reflexo esverdeado às caras, e
uma ou duas vezes o rádio na traseira estalou e transmitiu em shona. Numa delas,
Craig reconheceu a voz de Fungabera, mas devia estar chamando outra unidade,
pois Timon Nbebi não fez qualquer menção de responder e continuaram silenciosos
a viagem. O ruído monótono do motor e o calor dentro do carro começaram a
entorpecer Craig que, numa reação à tensão, acabou cochilando.
Acordou de repente quando Timon Nbebi respondeu a uma chamada e o som do motor
mudou de ritmo. Já estava amanhecendo. Podia ver a silhueta das árvores contra o
pálido céu. O Land-Rover diminuiu a marcha e saiu da estrada asfaltada para uma
suja estrada lateral.
- Onde estamos? Por que deixamos a estrada? - perguntou Craig.
Timon Nbebi falou ao chofer que parou à beira do caminho.
- Queiram sair, por favor - ordenou, e quando Craig obedeceu, Timon, que
aparentemente saltara para ajudá-lo a descer, pegou-lhe rapidamente o braço e,
antes que pudesse reagir ao toque frio do metal na pele, algemou-o. Fora tão
inesperado e feito com tanta agilidade que por segundos Craig ficou olhando as
mãos, espantado, até que gritou:
- Meu Deus, o que é isso?
Mas então Nbebi algemara rápida e eficientemente Sally-Anne, ignorando os
protestos, e falava ao chofer e aos dois soldados. Falava rápido e Craig não
pôde entender quase nada, mas conseguiu distinguir as palavras shona "matar" e
"esconder". Um dos soldados pareceu protestar e Timon, inclinando-se pela porta
aberta do carro, pegou o microfone do rádio. Repetiu três vezes uma chamada e,
depois de uma curta espera, Fungabera atendeu. Craig reconheceu a voz, apesar da
distorção radiofônica. Houve um breve diálogo e Nbebi desligou; o soldado não
ousou protestar mais. Claramente, suas ordens tinham sido endossadas.
- Vamos continuar - disse Timon em inglês, e Craig foi bruscamente jogado no
banco da frente. A mudança de tratamento era de mau agouro.
O chofer embrenhava-se cada vez mais com o carro na mata espinhenta, e a luz da
manhã foi aumentando. O coro de pássaros estava no auge. Craig reconheceu o
dueto de um par de capitães-do-mato numa acácia ao lado da estrada. Uma lebre
marrom apareceu, correndo e balançando as orelhas compridas e rosadas, o céu
começou a arder com as cores estupendas do amanhecer africano e o chofer
desligou os faróis.
- Craig, querido, eles vão nos matar, não vão? - perguntou em tom calmo Sally-
Anne. A voz estava clara e firme, vencera a histeria e estava de novo
controlada. Falou como se estivessem a sós.
- Sinto muito - disse Craig. - Eu devia saber que Peter Fungabera nunca nos
deixaria ir.
- Não há nada que pudesse ter feito. Mesmo se tivesse sabido.
- Vão nos enterrar em algum lugar remoto e atribuir nosso desaparecimento aos
dissidentes matabele - disse Craig, e Timon Nbebi continuou silencioso e
impassível, sem admitir ou negar a acusação.
A estrada bifurcou-se, e mal se via a que ficava à esquerda; Nbebi a indicou, o
chofer diminuiu a marcha e seguiram aos trancos pela estrada ruim por mais uns
vinte minutos. Já era dia claro e o Sol incendiava o topo das acácias.
Nbebi deu outra ordem e o motorista saiu da trilha, dirigindo cegamente pelo
capim alto, beirando um barranco de granito cinzento, até ficarem completamente
ocultos mesmo da trilha rudimentar que haviam seguido. Outra ordem breve e o
motorista parou, desligando o motor.
O silêncio envolveu-os, aumentando o sentimento de isolamento e distância.
- Nunca ninguém nos achará aqui - disse Sally-Anne em tom calmo e Craig não
achou palavras para confortá-la.
- Fiquem onde estão - ordenou Timon Nbebi.
- Não sente coisa alguma pelo que está fazendo? - perguntou-lhe Sally-Anne, e
ele virou-se para olhá-la.
Por trás dos óculos de aros metálicos, os olhos talvez estivessem velados pela
angústia e pelo arrependimento, mas a boca estava firme. Não respondeu à
pergunta e, depois de alguns instantes, saltou do carro. Deu ordens em shona, e
os soldados largaram as armas no banco de trás, enquanto o motorista subia na
capota para apanhar três pás.
Timon Nbebi enfiou a mão pela janela e tirou as chaves da ignição, levando em
seguida os homens a curta distância, onde marcou com a bota dois retângulos na
terra acinzentada. Os três shonas tiraram os casacos e começaram a cavar as
sepulturas no solo arenoso. Timon Nbebi ficou de lado, observando-os. Acendeu um
cigarro e a fumaça cinzenta espiralou-se no ar.
- Vou tentar pegar um dos fuzis - sussurrou Craig.
As armas estavam na parte de trás do carro. Teria de arrastar-se por cima de
dois assentos e alcançar as que estavam enfileiradas em pé. Teria que abrir a
arma, colocar munição, mudar o seletor de tiro e fazer pontaria pela janela
traseira; tudo isso com as mãos algemadas.
- Não vai conseguir - sussurrou Sally-Anne.
- Provavelmente não - disse, taciturno -, mas consegue pensar em outra coisa?
Quando eu disser "já", atire-se no assoalho do carro.
Craig torceu-se no assento, mas a perna prendeu-se na barra do freio. Conseguiu
soltá-la com um pontapé, respirou fundo e olhou pela janela traseira para o
pequeno grupo de coveiros.
- Escute - disse-lhe em tom urgente -, eu a amo. Nunca amei ninguém como amo
você.
- Eu também o amo, querido - sussurrou de volta.
- Seja corajosa! - ele disse.
- Boa sorte! - Ela já estava agachada e ele quase conseguiu fazer a manobra,
mas, naquele momento, Timon Nbebi virou-se em direção ao carro. Viu Craig virado
no assento e Sally-Anne agachada. Franziu as sobrancelhas e voltou ao carro em
passadas rápidas e largas. Parou junto à janela aberta e falou baixinho em
inglês:
- Não faça isso, sr. Mellow. Estamos todos em perigo mortal. A única chance que
resta a vocês é ficarem quietos e não interferirem. Não façam nada inesperado. -
Tirou as chaves do carro do bolso e, com a outra mão, abriu o coldre da pistola
na cintura. Continuou a falar em tom baixo. - Consegui desarmar os meus homens e
estão com a atenção voltada para o trabalho. Quando eu entrar no Land-Rover, não
me atrapalhem ou tentem me atacar. Estou correndo um perigo tão grande quanto
vocês. Devem confiar em mim. Compreendem?
- Sim - disse Craig. - E pensou: como se eu tivesse escolha!
Timon abriu a porta do lado do chofer e sentou-se à direção.
Olhou uma vez em direção aos soldados que já estavam pela cintura dentro das
covas, meteu a chave na ignição e virou-a.
O motor começou a funcionar, barulhento, e os três soldados levantaram as
cabeças, surpresos. Na mesma hora, engasgou e morreu. Um dos soldados gritou e
pulou de dentro da cova, com o peito nu coberto de suor e terra. Começou a
caminhar em direção ao Land-Rover e Timon Nbebi calcou o pé no acelerador,
tentando fazer o carro pegar. Tinha um ar desesperado e aterrorizado no rosto.
- Assim vai afogá-lo - disse Craig. - Tire o pé do acelerador!
O soldado começou a correr em direção a eles. Gritava perguntas zangadas e o
motor continuava sem pegar, com Timon paralisado ao volante.
O soldado que corria já estava quase chegando e os outros dois, mais lentos,
começaram a segui-lo. Gritavam, também, e um deles balançava ameaçadoramente a
pá.
- Tranque a porta! - gritou Craig, e Timon abaixou o trinco justamente quando o
soldado atirava-se para ela. Tentou abrir o trinco externo com todas as forças e
pulou para a porta de trás, antes que Sally-Anne pudesse trancá-la, e abriu-a de
um repelão. Inclinou-se e agarrou-a pelo braço, tentando arrastá-la para fora.
Craig ainda estava virado no assento dianteiro; levantou as duas mãos algemadas
bem alto e deu-lhe uma pancada na cabeça raspada. A beira aguçada das algemas
cortou até o osso e o homem caiu, meio para fora do carro.
Craig o atingiu novamente, bem no meio da testa, e teve uma rápida visão do osso
branco no fundo da ferida antes que fosse obscurecido pelo sangue. Os outros
soldados estavam a uns poucos passos de distância, como cães de caça em
perseguição à presa e armados com as pás.
Naquele momento, o motor pegou afinal. Timon Nbebi engatou a marcha e o Land-
Rover disparou. Craig foi atirado por sobre o assento em cima de Sally-Anne e as
pernas do soldado ferido prenderam-se numa moita, arrancando-o da porta
traseira.
O carro derrapava e pulava sobre o terreno acidentado, com os dois soldados
negros correndo e gritando atrás, e a porta abria e fechava com violência. Timon
Nbebi corrigiu a direção e mudou de marcha. O Land-Rover acelerou, arrancando
por entre rochas e galhos caídos, e os soldados ficaram para trás. Um deles
atirou a pá no carro, quebrando a janela traseira e enchendo-o de cacos de
vidro.
Timon Nbebi tornou pelas mesmas trilhas de antes, através do capim alto, e
começaram a desenvolver uma velocidade impossível de ser acompanhada, fazendo os
dois soldados desistirem e ficarem, arquejantes, parados à beira do caminho. Os
gritos de raiva e recriminação foram diminuindo e desapareceram. Timon alcançou
a trilha de mato no mesmo ponto em que a haviam deixado e virou, aumentando a
velocidade.
- Dê-me suas mãos - ordenou, e Craig estendeu-as, ficando livre das algemas. -
Tome! Abra as da srta. Jay.
- Meu Deus, Craig, pensei realmente que era o fim da linha - disse Sally-Anne
esfregando os pulsos.
- Foi por um fio - concordou Timon, com toda a atenção voltada para o caminho. -
Acho que foi Napoleão quem disse isso.
- E, antes que Craig pudesse corrigi-lo, acrescentou: - Por favor, pegue um
destes fuzis, sr. Mellow, e coloque um outro a meu lado.
Sally-Anne passou as armas de cano curto para o assento da frente. A Terceira
Brigada era a única unidade regular do Exército que ainda tinha fuzis AK 47, uma
herança dos instrutores norte-coreanos.
- Sabe usá-lo, sr. Mellow? - perguntou Nbebi.
- Fui dos blindados na Polícia Rodesiana.
- Claro, que tolice a minha.
Craig checou rapidamente o pente curvo em feitio de banana e recarregou-o. Era
uma arma nova e bem-cuidada. Só o peso dela na mão mudou completamente sua
personalidade. Minutos antes, sentia-se como que à deriva, arrastado por
acontecimentos incontroláveis, confuso, incerto e com medo. Agora podia revidar,
proteger a si mesmo e à mulher, moldar os acontecimentos e não ser moldado por
eles. Era o instinto atávico do homem primitivo, estava armado e Craig
rejubilou-se com isso. Virou-se para trás e segurou a mão de Sally-Anne,
apertando-a, gesto que ela retribuiu com fervor.
- Agora, ao menos, temos chance de lutar.
O novo tom de voz foi compreendido por ela que animou-se um pouco e sorriu pela
primeira vez depois dos acontecimentos daquela noite. Craig soltou-lhe a mão,
pegou a garrafa de aguardente e passou-a. Depois que ela bebeu, estendeu-a a
Timon Nbebi.
- E então, capitão, que diabos está acontecendo?
Timon engasgou-se com a bebida forte e a voz estava enrouquecida ao responder:
- Estava absolutamente certo, sr. Mellow. Minhas ordens, dadas pelo general
Fungabera, eram para levá-lo, e à srta. Jay, para um lugar deserto e matá-los. E
também acertou ao dizer que o desaparecimento seria atribuído aos dissidentes
matabele.
- E por que não obedeceu às ordens?
Antes de responder, Timon entregou-lhe a garrafa de volta e olhou por cima dos
ombros para Sally-Anne.
- Sinto muito que tenha tido que fazer todos os preparativos para a sua
execução, sem poder tranqüilizá-los, mas meus homens falam inglês. Tinha que
fazer parecer autêntico. Aquilo foi terrível para mim, porque não queria
submetê-los a novas provações, depois de tudo o que passaram.
- Capitão Nbebi, perdôo-lhe tudo e o amo por estar fazendo isto, mas por que, em
nome de Deus, o está fazendo? - perguntou Sally-Anne.
- O que vou lhes contar, nunca contei antes a ninguém. Sabem, minha mãe era
matabele. Morreu quando eu era muito pequeno, mas lembro-me bem dela e honro sua
memória. - Não olhou para eles, mas concentrou-se na estrada à frente.
- Fui criado como um shona por meu pai, mas nunca esqueci de meu sangue
matabele. São o meu povo e não suporto mais o que está sendo feito a eles. Estou
certo de que o general Fungabera percebeu meus sentimentos, apesar de duvidar
que saiba a respeito de minha mãe, mas sabe que cheguei ao fim de minha
utilidade para ele. Tenho visto uma série de sinais sobre isso. Vivi perto
demais do leopardo devorador de homens, e tempo demais para não reconhecer seus
humores. Depois que tivesse enterrado vocês, haveria algo para mim: um túmulo
anônimo ou talvez os bichinhos de Fungabera.
Timon usou a expressão sindebele, amawundhla ka Fungabera, e Craig ficou
surpreendido. Sarah Nyoni, a professora da Missão Tu ti, usara a mesma frase.
- Já ouvi esta expressão antes, mas não a compreendo.
- Hienas - explicou Nbebi. - Os que morrem ou são executados nos centros de
reabilitação são levados para o mato e expostos às hienas. Não deixam traços,
nem um pedaço de osso ou um tufo de cabelos.
- Oh, meu Deus - disse Sally-Anne, quase sem voz. - Estivemos em Tu ti e ouvimos
aquelas feras, mas não compreendemos. Com quantos isso aconteceu?
- Só posso fazer uma especulação: muitos milhares.
- Mal posso acreditar numa coisa dessas.
- O ódio do general Fungabera pelos matabele é uma espécie de loucura, uma
obsessão. Planeja acabar com todos eles. Primeiro, foram os líderes, acusados de
traição, falsamente acusados, como Tungata Zebiwe.
- Oh, não! - disse Sally-Anne. - Não posso suportar isso. Zebiwe era inocente?
- Sinto muito, srta. Jay - confirmou Timon Nbebi. - Fungabera tinha de ser muito
cuidadoso quando mexesse com Zebiwe. Sabia que, se o prendesse por suas
atividades políticas, teria toda a tribo matabele em revolta. A senhorita e o
sr. Mellow forneceram-lhe uma oportunidade perfeita. Um crime não-político, um
crime de cobiça.
- Estou sendo estúpida - disse Sally-Anne. - Mas se Zebiwe não é o caçador-mor,
será que realmente existe um? E, se existe, quem é?
- O próprio general Fungabera - disse Nbebi com simplicidade.
- Tem certeza disso? - perguntou incrédulo.
- Fui encarregado pessoalmente de muitos carregamentos de contrabando de animais
para fora do país.
- Mas e aquela noite na estrada de Karoi?
- Isso foi muito fácil de organizar. O general sabia que, mais cedo ou mais
tarde, Zebiwe iria até a Missão Tuti. A secretária dele nos informou a hora e a
data exatas. Conseguimos um caminhão carregado de contrabando, dirigido por um
prisioneiro matabele que subornamos para esperá-lo na estrada. Claro que não
tínhamos previsto a reação violenta de Tungata Zebiwe, embora isso tenha sido
uma sorte para nós.
Timon dirigia à velocidade máxima, enquanto Sally-Anne e Craig estavam jogados
nos assentos, com a alegria da fuga sendo rapidamente substituída pela fadiga e
pelo choque.
- Para onde está indo? - perguntou Craig.
- Para a fronteira de Botsuana.
Era o país interior que fazia fronteira ao sul-e ao oeste e tornara-se ponto
obrigatório para fugitivos políticos dos países vizinhos.
- A caminho de lá, espero que tenham a chance de ver o que realmente está
acontecendo com meu povo. Ninguém mais quer testemunhar o fato. O general fechou
todo o sudoeste de Matabeleland. Não permite a ida de jornalistas, religiosos ou
da Cruz Vermelha. ..
Diminuiu a marcha numa zona esburacada por tamanduás à procura de formigueiros e
tornou a acelerar após atravessá-la.
- O passe que tenho nos levará só até um pouco mais adiante, mas não até a
fronteira. Vamos ter de passar por pequenas estradas laterais até acharmos um
local seguro para atravessar a fronteira. O general Fungabera logo descobrirá
minha deserção e seremos caçados por toda a Terceira Brigada. Temos que colocar
a maior distância possível entre nós e eles antes que isso aconteça.
Chegaram à encruzilhada principal da estrada e Timon parou, mas continuou com o
motor ligado. Pegou um mapa de larga escala na pasta e estudou-o atentamente.
- Estamos logo ao sul da estrada de ferro. Este é o caminho para a estação da
Missão Empandeni. Se pudermos passar por lá antes que seja dado o alarme,
tentaremos a fronteira entre Madaba e Matsumi. A polícia de Botsuana tem uma
patrulha regular ao longo da cerca.
- Vamos em frente. - Craig estava impaciente e temeroso, e o conforto que lhe
dera a arma que trazia no colo diminuía. Timon dobrou o mapa e continuou.
- Posso lhe fazer mais algumas perguntas? - perguntou Sally- Anne depois de
alguns minutos.
- Vou tentar responder - concordou Timon.
- Os assassinatos dos Goodwin e de outras famílias brancas de Matabeleland -
foram atrocidades ordenadas por Tungata Zebiwe? É ele o responsável por aqueles
assassinatos terríveis?
- Não, não, srta. Jay. Zebiwe tem tentado desesperadamente controlar aqueles
assassinos. Acredito que estava a caminho da Missão Tuti por esta razão:
encontrar-se com os radicais matabele e tentar argumentar com eles.
- E a inscrição em sangue "Tungata Zebiwe Está Vivo"?
Timon Nbebi ficou silencioso, com o rosto contraído como se travasse uma luta
interna, e ficaram esperando que falasse. Por fim, soltou um suspiro fundo e a
voz alterou-se.
- Srta. Jay, por favor, tente compreender minha posição, antes de julgar-me pelo
que vou contar. O general Fungabera é um homem persuasivo. Fui embalado por suas
promessas de glórias e recompensas. E, de repente, vi que tinha ido muito longe
e não poderia voltar atrás. Acho que a expressão correta é "cavalgar um tigre".
Era arrastado de uma má ação para outra pior ainda. - Fez uma pausa e disse,
apressadamente: - Recrutei pessoalmente os matadores da família Goodwin no
centro de reabilitação. Disse-lhes aonde ir, o que fazer e o que escrever
naquela parede. Dei-lhes armas e providenciei para que fossem até lá em
transporte da Terceira Brigada.
Fez-se silêncio novamente, quebrado apenas pelo ruído do motor do Land-Rover, e
Timon Nbebi teve que interrompê-lo, como se isso o aliviasse da culpa.
- Eram veteranos matabele, guerreiros endurecidos, homens que fariam qualquer
coisa para ficarem de novo em liberdade, com chance de tornar a carregar armas,
e não hesitaram um minuto.
- E Fungabera deu ordens para isso?
- Claro. Era a desculpa para começar o expurgo dos matabele. Talvez agora
entendam por que estou fugindo com vocês. Não podia mais continuar nesse
caminho.
- As outras mortes, o assassinato do senador Savage e da família? - perguntou
Sally-Anne.
- O general Fungabera não teve que dar ordens para isso. - Timon balançou a
cabeça. - Foi um rastilho de pólvora. A floresta ainda está cheia de homens
selvagens do tempo da guerra. Escondem as armas e vão para as cidades, alguns
até têm empregos regulares; no fim de semana ou em algum feriado, voltam para
lá, desencavam os fuzis e vão pilhar. Não são dissidentes políticos, são
bandidos armados e as famílias brancas são os alvos mais apetitosos, ricos e,
sem armas devido à proibição do governo de Mugabe, incapazes de defender-se.
- É tudo como sopa no mel para Peter Fungabera. Qualquer bandido é classificado
como dissidente político, qualquer roubo é violento, uma desculpa para continuar
o expurgo, que ele mostra ao mundo como prova da selvageria e intratabilidade da
tribo matabele - continuou Craig por ele.
- Exato, sr. Mellow.
- E já assassinou Tungata Zebiwe... - Craig sentiu-se velho e cansado, cheio de
remorso e culpa por causa do velho companheiro. - Podem estar certos disso!
- Não, sr. Mellow. - Timon balançou a cabeça. - Não acredito que Zebiwe esteja
morto. Acho que o general o quer vivo. Tem alguns planos para ele.
Que planos? - perguntou Craig.
Não sei ao certo, mas acredito que Peter Fungabera esteja tratando com os
russos.
- Os russos? - Craig olhou-o, sem acreditar.
- Tinha encontros secretos com um estrangeiro, um homem que creio ser membro
importante da inteligência russa.
- Está certo disso, Timon?
- Vi o homem com meus próprios olhos.
Craig pensou sobre isso por alguns instantes e voltou à pergunta original:
- Certo, vamos deixar os russos de lado por enquanto. Onde está Tungata Zebiwe?
Onde Fungabera o mantém preso?
- Não sei. Sinto muito, sr. Mellow.
- Se está vivo, que Deus tenha piedade de sua alma - sussurrou Craig.
Podia imaginar o que Tungata estava sofrendo. Ficou silencioso durante algum
tempo e mudou o teor das perguntas.
- O general Fungabera desapropriou meus bens em benefício próprio e não do
Estado, não é? Estou certo?
- O general cobiçava muito aquelas terras. Falou sobre isso muitas vezes.
- Mas como? Quero dizer, mesmo que seja semilegal, como vai conseguir isso?
- É muito simples - explicou Timon. - O senhor é um inimigo confesso do Estado.
Sua propriedade será confiscada por ele. O Banco Mundial vai repudiar a cláusula
de segurança de seu empréstimo, a que assinou. O encarregado oficial de
propriedade inimiga colocará suas ações da Companhia Rholands à venda a
particulares. A oferta do general será aceita, o cunhado dele é o encarregado
oficial, e o preço será muito vantajoso.
- Aposto que sim - disse Craig, com amargura.
- Mas por que ele chegaria a tal ponto? - perguntou Sally- Anne. - Deve estar
multimilionário. Será que já não tem o bastante?
- Srta. Jay, para certos homens não existe o bastante.
- Ele não pode achar que vai sair-se bem dessa, não é?
- E quem vai impedi-lo, senhorita? - Como ela não respondeu, Timon continuou: -
A África está retornando ao ponto em que estava antes da intrusão do homem
branco. Só existe um único critério aqui para um governante, e esse critério é o
poder. Nós, africanos, não confiamos em nada mais. Fungabera é poderoso, como
Tungata Zebiwe foi um dia. - Olhou no relógio de pulso. - Precisamos comer
alguma coisa. Acho que vamos ter um longo dia pela frente.
Saiu fora da estrada com o Land-Rover e parou em um trecho protegido pela
vegetação. Subiu na capota e cobriu o carro com galhos de árvore para escondê-lo
de uma busca aérea. Abriu a caixa de rações de emergência guardada embaixo dos
assentos e tirou água do depósito por baixo do assoalho.
Craig encheu uma vasilha de metal com areia e molhou-a com gasolina do tanque de
reserva, fazendo um fogareiro sem fumaça para preparar chá. Comeram as pouco
apetitosas rações frias quase sem conversar.
Uma vez, Timon ligou o rádio, ouvindo a transmissão, mas balançou a cabeça.
- Não há nada a nosso respeito. - E foi acocorar-se perto de Craig.
- A que distância será que estamos da fronteira? - perguntou a Timon, com a boca
cheia de carne em conserva fria e grudenta.
- Cerca de uns setenta quilômetros ou pouco mais.
O rádio tornou a chiar, e Timon pulou, abaixando-se atentamente para ouvir.
- Há uma unidade da Terceira Brigada a alguns quilômetros à nossa frente -
disse-lhes. - Estão na estação da Missão Empandeni. Houve uma luta com
dissidentes, mas já cuidaram deles e estão avançando, talvez nesta direção.
Temos de ser cautelosos.
- Vou verificar se podem nos ver da estrada. - Craig levantou-se. - Sally-Anne,
apague o fogo! Capitão, cubra-me!
Pegou o AK 47 e correu de volta à trilha. Examinou a vegetação que encobria o
Land-Rover e apagou os próprios rastros e os do carro com um ramo, endireitando
cuidadosamente o capim achatado pelo veículo ao deixarem a estrada. Não era
perfeito, mas agüentaria um exame superficial de um carro em velocidade. Foi
quando ouviu uma ligeira vibração no ar parado. Prestou atenção e viu que era o
som de motores de caminhão se aproximando. Correu de volta ao Land-Rover e subiu
no assento da frente, ao lado de Timon.
Coloque o fuzil novamente aí atrás - disse o capitão e, ao ver Craig hesitar,
continuou: - Por favor, faça o que eu digo, sr. Mellow. Se nos encontrarem, será
inútil tentar resistir. Vou tentar falar com eles e convencê-los a nos deixar
partir. Que explicação poderia dar se estiver armado?
Relutantemente, Craig passou a arma a Sally-Anne que a recolocou no lugar,
deixando-o nu e vulnerável, e obrigando-o a cerrar os punhos. O som dos motores
cresceu rapidamente; apesar da tensão, Craig arrepiou-se com a beleza peculiar
das vozes africanas que cantavam.
- É a Terceira Brigada - disse Timon. - A "Canção dos Ventos de Chuva", a canção
do regimento.
Nenhum dos dois respondeu e Timon começou a cantar baixinho. Tinha uma voz
surpreendentemente bonita.
"Quando a nação arde, os ventos de chuva trazem alívio.
Quando o gado sofre com a seca, os ventos de chuva o levanta.
Quando as crianças choram com sede, os ventos de chuva as saciam.
Somos os ventos que trazem a chuva.
Os bons ventos da nação."
Timon traduziu-a do shona, e Craig podia ver a poeira cinzenta dos caminhões
acima da vegetação e ouvir o canto claro e nítido.
Houve um reflexo metálico à luz do Sol e, pela folhagem, entreviu rapidamente o
comboio que passava. Eram três caminhões, pintados de cor de areia, com as
traseiras carregadas de soldados em uniforme camuflado de combate e as armas em
posição de alerta. No último caminhão, ia um oficial, o único a usar a boina
vermelha e o distintivo prateado, que olhou diretamente em direção a Craig.
Pareceu tão próximo e a folhagem, tão esparsa, que encolheu-se no banco.
Felizmente, o comboio passou, o som dos motores e do canto foi sumindo e a
poeira assentou.
Timon Nbebi soltou um suspiro fundo.
- Vamos topar com outros - avisou e, com os dedos na ignição, esperou que se
fizesse silêncio completo. Deu a partida e voltou para a estrada.
Viraram em direção contrária ao comboio e correram por cima das marcas de pneus
impressas na terra arenosa. Andaram por mais vinte minutos antes que Timon,
subitamente, se erguesse a meio do assento para espiar o céu pelo pára-brisas.
- Fumaça - disse. - Empandeni está logo à frente. Será que pode preparar sua
câmera, srta. Jay? Acho que a Terceira Brigada deixou alguma coisa para a
senhora.
Chegaram às plantações de milho que circundavam a aldeia da missão. As hastes
haviam secado e as espigas amarelas começavam a pender, pesadas e prontas para a
colheita. Corpos de mulheres, que tinham estado trabalhando, estavam espalhados
pelo campo. Uma delas caíra junto à estrada. Tinha levado um tiro nas costas
enquanto corria e a bala saíra entre os seios. O bebê que carregava às costas
fora espetado com baioneta várias vezes. As moscas que zumbiam em torno subiram
em uma nuvem azulada, ao passarem, e tornaram a pousar.
Ninguém dizia uma palavra. Sally-Anne pegou a câmera e preparou a Nikon, sua
pele estava acinzentada sob as sardas.
Outras mulheres jaziam mais adiante, depois da estrada, meras trouxas de roupas
coloridas sujas de sangue. Havia, talvez, umas cinqüenta cabanas na aldeia e
todas ardiam, com os telhados de palha como tochas contra o céu claro e azul da
manhã. A maioria dos cadáveres fora atirada nas cabanas incendiadas, deixando
poças escuras onde haviam tombado e marcas dos corpos arrastados pelo chão. O
cheiro de carne queimada era muito forte e invadia-lhes as narinas. O estômago
de Craig embrulhou-se e ele cobriu a boca e o nariz com a mão.
- São esses os dissidentes? - murmurou Sally-Anne, com os lábios gelados e
brancos. O motor da Nikon zumbia enquanto fotografava pela janela aberta.
Tinham matado as galinhas, também, e as penas flutuavam na brisa, como o recheio
de um travesseiro rasgado.
- Pare! - ordenou Sally-Anne.
- É perigoso ficar aqui - disse Timon.
- Pare - repetiu.
Deixou a porta do carro aberta e caminhou por entre as cabanas. Trabalhando
rápido, mudava rolo após rolo de filme, enquanto os lábios tremiam e os olhos
que focavam as lentes estavam cheios de horror.
Temos de ir embora - disse Timon.
Espere. - Sally-Anne moveu-se rapidamente para a frente, fazendo o trabalho como
a profissional que era, e foi para trás de um grupo de cabanas.
O cheiro de carne queimada nauseava Craig e o calor do fogo chegava até eles
como rajadas de fornalha na brisa.
Sally-Anne gritou e os dois homens saltaram correndo do Land- Rover, apontando
os fuzis e dando-se cobertura de fogo. Craig descobriu que o velho treinamento
retorna instintivamente, e dobrou ao lado de uma cabana.
Sally-Anne estava em um trecho descoberto, incapaz de continuar a usar a câmera,
com uma negra a seus pés. A parte superior do corpo era o de uma jovem e bela
mulher, mas abaixo do umbigo estava transformada em uma monstruosidade.
Arrastara-se para fora do fogo onde a haviam atirado. Havia lugares onde as
queimaduras não eram profundas, mas, em outros, os ossos estavam expostos; a
bacia, torrada como um carvão, emergia dos quadris, o estômago fora destruído
pelas chamas e as entranhas derramavam-se para fora. Miraculosamente, ainda
estava viva. Os dedos arranhavam o chão em movimentos mecânicos e repetitivos, a
boca abria-se e fechava-se convulsivamente, sem um som, e os olhos estavam
abertos, alertas e cheios de sofrimento.
- Volte para o carro, por favor, srta. Jay. Não há nada que possa fazer para
ajudá-la - disse Timon Nbebi.
Sally-Anne ficou parada, incapaz de mover-se; Craig passou o braço em torno de
seus ombros e foi levando-a de volta para o Land-Rover.
Ao dobrarem ao lado da cabana, olhou para trás. Timon Nbebi estava de pé, junto
à mulher ferida, com o AK 47 apoiado nos quadris, pronto para disparar, com toda
a atenção focada e o rosto quase tão devastado pelo sofrimento quanto o dela.
Foram em direção ao carro e ouviram um único tiro, abafado pelo estalido das
chamas em toda a volta. Sally-Anne cambaleou e conseguiu equilibrar-se. Ao
chegarem, apoiou-se na capota e dobrou-se para vomitar, endireitando-se depois e
limpando a boca com o dorso da mão.
Craig pegou a garrafa de aguardente e viu que ainda restava um dedo no fundo.
Deu-a a Sally-Anne que a bebeu como se fosse água. Craig pegou a garrafa vazia e
atirou-a em direção à cabana em chamas.
Timon Nbebi saiu de trás da palhoça, e sem dizer palavra sentou-se ao volante,
enquanto Craig ajudava Sally-Anne a entrar no assento traseiro. Rodaram
lentamente pelo resto da aldeia, desviando os rostos a cada novo horror que
surgia.
Quando passavam pela igrejinha de tijolos vermelhos, o teto desabou e a cruz de
madeira da torre foi engolida por uma golfada de faíscas, chamas e fumaça
azulada. À luz do Sol, as chamas eram quase invisíveis.
TIMON Nbebi manipulava o rádio como se fosse um sonar em busca de um canal de
águas rasas.
Os bloqueios e grupos emboscados da Terceira Brigada faziam relatórios pela rede
VHF aos quartéis-generais de suas áreas, dando as posições como parte do
procedimento rotineiro, e Timon os assinalava no mapa.
Por duas vezes, evitaram bloqueios enveredando por estradas laterais e trilhas
de gado, avançando cautelosamente pela floresta de acácias. Seguindo por esses
caminhos alcançaram pequenas aldeias, meros pousos de gado, e lar de duas ou
três famílias matabele. A Terceira Brigada os havia precedido, e a presença dos
urubus e abutres denunciava a carnificina; banqueteavam-se nos corpos queimados
que jaziam nas cinzas das cabanas incendiadas.
Continuaram na direção oeste, sempre que os caminhos permitiam. Em cada subida
com uma visão mais geral, Timon estacionava e escondia o carro, enquanto Craig
incumbia-se de verificar o que havia à frente. Em todas as direções, podia ver
as colunas de fumaça das aldeias incendiadas. Seguiam ainda em direção oeste e o
terreno mudou abruptamente quando atingiram os limites do deserto de Kalahari.
Havia cada vez menos marcos na paisagem. A terra foi se transformando em uma
planície monótona e cinzenta, ardendo infindavelmente sob o sol alto e
implacável. As poucas árvores existentes eram raquíticas e seus ramos tortos
assemelhavam-se a membros aleijados. Era um território hostil que daria sustento
apenas às mais rudimentares necessidades humanas. Era apenas o começo do grande
deserto, mas mesmo assim prosseguiram.
O Sol começou a declinar e haviam percorrido só uns sessenta quilômetros desde o
amanhecer. Craig calculou pelo mapa que restavam, pelo menos, outros quarenta
quilômetros até a fronteira, e estavam os três exaustos com a tensão contínua e
com o calor que a carroceria metálica emanava.
No meio da tarde, pararam novamente por alguns minutos. Craig fez chá, Sally-
Anne afastou-se para trás de um arbusto, longe dos olhos deles, e agachou-se,
enquanto Timon ocupava-se do rádio.
Não há mais aldeias à frente - disse Timon, ao ressintonizar o aparelho. - Acho
que estamos a salvo, mas nunca estive tão longe assim. Não sei o que esperar.
- Trabalhei por aqui com Tungata quando estávamos no Departamento de Caça, em
1972. Seguimos um bando de leões matadores de gado por duzentos quilômetros além
da fronteira. É uma região ruim; não há água à superfície, é cheia de depósitos
de sal e... - Interrompeu-se quando Timon fez-lhe um sinal urgente para que se
calasse.
Conseguira pegar outra voz no rádio, mais autoritária e mais cortante que as do
pelotão que estivera escutando. Exigia prioridade para usar a faixa em um
comunicado urgente, e Timon Nbebi endireitou-se, visivelmente assustado.
- O que é? - Craig não pôde conter a apreensão, mas Timon fez um gesto pedindo
silêncio e ficou escutando a longa e sincopada transmissão em shona. Quando o
rádio silenciou, levantou os olhos.
- Uma patrulha achou os três homens que abandonamos hoje de manhã. Essa
transmissão era um alerta para todas as unidades. O general Fungabera deu
prioridade total à nossa captura. Dois aviões de reconhecimento foram desviados
para esta área. Logo vão nos sobrevoar. O general calculou nossa posição
corretamente; deu ordens às unidades punitivas para vir nesta direção. Deduziu
que estamos tentando alcançar a fronteira sul em Plumtree e a estrada de ferro.
Deu ordens para que dois pelotões se apressem a descer do posto principal de lá
para nos bloquear. - Fez uma pausa, tirou os óculos e limpou-os na borda da
gravata de seda. Sem óculos, parecia tão míope quanto uma coruja à luz do dia. -
O general deu o código "leopardo" a todas as unidades... - Fez outra pausa e
explicou quase em tom de desculpas: - O código significa uma ordem para matar à
queima-roupa, o que temo que sejam más notícias.
Craig agarrou o mapa e o desenrolou sobre o capô, e Sally-Anne voltou e parou
junto a ele.
- Estamos aqui - ele disse, e Timon concordou. - Este é o único caminho daqui
por diante, e dobra em direção norte, mais ou menos a nor-noroeste - murmurou
Craig para si mesmo. - A patrulha de Plumtree tem que vir por ela para nos achar
e os grupos punitivos têm que seguir atrás deles.
- Desta vez não vão passar por nós. Estarão vigilantes - afirmou Timon.
O rádio tornou a dar sinal de vida e Timon correu até lá. Sua expressão ficou
ainda mais lúgubre enquanto escutava.
- A unidade punitiva em nossa retaguarda descobriu o rastro do Land-Rover. Não
estão muito longe e estão vindo rápido nesta direção - disse. - Entraram em
contato com a patrulha da estrada à nossa frente. Estamos encurralados e não sei
o que fazer, sr. Mellow. Estarão aqui em pouco tempo. - E olhou com um ar
suplicante para Craig.
- Muito bem. - Craig assumiu o controle com naturalidade. - Vamos para a
fronteira através do campo.
- Mas o senhor disse que é território ruim - começou a dizer Timon.
- Ative a tração das quatro rodas e vamos em frente - cortou Craig. - Vou no
teto do carro para guiá-lo. Sally-Anne, passe para o banco da frente.
Do teto, com o AK 47 pendurado no ombro, Craig mirou com o compasso manual do
estojo de mapas, fez um cálculo aproximado da deflexão magnética e avisou Timon.
- É isso. Vire para a direita e mantenha essa direção.
Tinha feito um alinhamento com o clarão ofuscante de um pequeno depósito salino
a uns poucos quilômetros adiante e a superfície parecia firme e possivelmente
fácil. O Land-Rover acelerou, mergulhando nas moitas baixas e espinhentas,
desviando-se apenas diante de um galho mais resistente ou uma árvore, e Craig
fazia as correções após cada desvio.
Rodavam quase a cinqüenta quilômetros por hora e tudo parecia limpo até o
horizonte. Craig estava certo de que os caminhões pesados e carregados não
conseguiriam alcançá-los; a fronteira ficava a menos de uma hora de distância e
a noite aproximava-se rapidamente. A xícara de chá o havia reanimado e começou a
sentir-se otimista.
Vamos, seus canalhas, tentem nos pegar! - Desafiou o inimigo invisível, soltando
uma risada. Esquecera como a adrenalina se espalhava rápido no sangue quando o
perigo estava próximo. Lembrou-se de que em certa época adorava aquela sensação.
Virou-se para olhar atrás e viu-os imediatamente: um pequeno redemoinho de
poeira; essa nuvem avançava com deliberação e estava exatamente onde esperava
vê-la, a leste, vindo rapidamente pela estrada que acabavam de abandonar.
- Estou vendo uma patrulha - gritou, inclinando-se pela janela aberta. - Estão a
uns dez quilômetros atrás de nós.
Tornou a olhá-la e fez uma careta com a própria nuvem de poeira que estavam
fazendo, e que os seguia como uma cauda suspensa no ar por alguns minutos. Não
podiam deixar de vê-la, e a estava observando quando deveria estar vigiando o
terreno à frente. O buraco de tamanduá era invisível para quem estava ao volante
por causa do capim desbotado do deserto. Caíram nele a cinqüenta por hora e o
carro parou bruscamente.
Craig foi atirado do teto para cima do capô, rolando no solo, raspando os
cotovelos, joelhos e um lado do rosto. Ficou estendido por um momento, tonto e
dolorido. Conseguiu sentar-se e cuspiu sangue misturado com areia, certificando-
se de que os dentes estavam firmes. Ralara os cotovelos e o jeans estava
ensopado com o sangue que vertia dos joelhos. Experimentou a correia da perna
artificial, que estava bem segura, e esforçou-se para levantar.
O Land-Rover tombara de frente, para o lado esquerdo, com a carroceria afundada
no buraco. Foi mancando até ele, amaldiçoando a própria falta de atenção, e
abriu com força a porta. O vidro se estilhaçara onde a cabeça de Sally-Anne
tinha batido e ela estava desacordada.
- Oh, meu Deus! - exclamou, levantando-a gentilmente. Tinha um enorme galo na
testa, mas, ao tocar-lhe o rosto, os olhos se abriram e o fixaram.
- Machucou-se muito?
- Você está sangrando - ela enrolou as palavras.
- São só arranhões - tranqüilizou-a, apertando-lhe o braço, e olhou para Timon,
que batera com a boca no volante, cortando o lábio superior e quebrando um dos
incisivos. Estava sangrando bastante, mas enxugava-se com um lenço de seda.
- Engrene marcha à ré - ordenou-lhe Craig, que puxou Sally- Anne para fora,
aliviando o peso do carro. Ela deu uns passos vacilantes e precisou sentar pois
ainda estava tonta e confusa com a pancada na cabeça.
O motor engasgou ao ser ligado, enquanto Craig, impaciente, vigiava a coluna de
poeira por trás deles. Já não estava distante e aproximava-se rapidamente; o
motor pegou e tornou a engasgar quando Timon pisou fundo demais no acelerador.
Soltou o pé bruscamente e as quatro rodas giraram em falso.
- Vá com calma, homem, senão pode quebrá-lo - advertiu Craig.
Timon tentou novamente com mais calma; as rodas tornaram a girar em falso,
provocando uma nuvem de pó e o carro oscilou loucamente, ainda preso.
- Pare! - Craig bateu no ombro de Timon para obrigá-lo a obedecer. As rodas
apoiadas na terra solta estavam cavando o túmulo do Land-Rover. Deitou-se no
chão e espiou embaixo do chassi. A roda dianteira esquerda tombara no buraco e
rodava solta no ar, enquanto o peso do carro repousava todo sobre a suspensão
dianteira.
- Traga uma pá - disse Craig.
- Nós as deixamos com os soldados antes de fugirmos - lembrou-lhe Timon, e Craig
começou a escavar a terra com as mãos.
- Ache alguma coisa para cavar! - disse e continuou freneticamente o trabalho.
Timon procurou na mala do carro e trouxe-lhe o macaco e uma panga de lâmina
larga. Craig começou a cavar a borda do buraco, gemendo e arquejando, e o suor
ardia-lhe nos arranhões do rosto quando o rádio funcionou de repente. Timon foi
traduzindo o que falavam:
- Acharam o local em que saímos da estrada - traduziu Timon.
- Meu Deus! - Craig gemeu com esforço -, isso foi a menos de quatro quilômetros
daqui.
- Posso ajudá-lo? - Timon ciciava por causa da falha nos dentes.
Craig não se deu ao trabalho de responder. Só havia lugar para um de cada vez
embaixo do carro. A terra esfarelava-se e o Land-Rover afundou mais alguns
centímetros, fazendo com que a roda esquerda tocasse o fundo do buraco. Voltou a
atenção, então, para a borda aguçada, escavando-a para fazer uma rampa que não a
bloqueasse.
Sally-Anne, pegue a direção - falou aos arrancos, por entre as pazadas com a
panga. - Timon e eu vamos tentar suspender a frente do carro. - Arrastou-se para
fora, perdendo um segundo ao olhar para trás. A poeira era claramente visível ao
nível do solo. Vamos, Timon.
Ficaram ombro a ombro na frente do radiador e dobraram os joelhos para segurar o
pára-choque com firmeza. Sally-Anne sentou-se ao volante; o calombo na cabeça
parecia um grande carrapato agarrado à pele pálida. Olhou para Craig com uma
expressão de desespero.
- Vamos lá! - gritou Craig e ambos suspenderam o pára-choque com toda força,
endireitando os joelhos. Sentiu a frente levantar-se uns poucos centímetros
acima da suspensão e acenou para Sally-Anne que embreou, fazendo o motor roncar;
o carro recuou bruscamente, ficando bloqueado à beira do buraco.
- Descansar! - ordenou Craig, e apoiaram-se arquejantes no capô.
Viu que a poeira da perseguição estava tão próxima que esperava ver surgir os
caminhões por trás dela enquanto olhava.
- Agora, vamos balançá-lo - disse a Timon. - Vamos lá! Um, dois, três!
Enquanto Sally-Anne ligava o motor, jogaram todo o peso no pára-choque em ritmo
rápido e regular.
- Um, dois, três! - arquejou Craig, e o carro começou a subir e balançar
violentamente contra a borda.
- Continue!
A poeira esvoaçava em torno deles e a voz no rádio deu um grito exultante como
um cachorro que conduz a matilha quando farejou a pista da caça. Tinham sido
descobertos.
- Não desista!
Craig descobriu reservas de forças que desconhecia. Cerrou os dentes, com a
respiração sibilante na garganta, o rosto intumescido e vermelho e a visão
borrada e cheia de pontos luminosos. Arquejava ainda, os músculos das costas
pareciam romper-se e a coluna, esmagar-se. De repente a roda presa ultrapassou a
borda e o carro deu marcha à ré, livre.
Apanhado de surpresa, Craig caiu de joelhos e achou que não teria forças para
levantar-se.
- Craig! Depressa! - gritou Sally-Anne. - Entre no carro!
Com enorme esforço, levantou-se e cambaleou até o Land-Rover já em movimento,
alçando-se para o capô, e Sally-Anne acelerou; por alguns instantes, Craig
agarrou-se, tentando recuperar as forças, rastejando depois até o teto e olhando
para trás.
Havia um único caminhão atrás deles, um Toyota de cinco toneladas, pintado na
familiar cor de areia. Na claridade tremeluzente e enganosa produzida pelo
calor, parecia um monstro surgido das profundezas da terra que flutuava em sua
direção e limpou o suor que escorria sobre os olhos. A que distância estava? Era
difícil calcular a nível do solo e através da miragem.
A visão clareou e viu que o objeto negro por cima da cabine era uma metralhadora
pesada com um atirador a postos. Àquela distância, parecia uma Goryunov
Stankovy, uma arma terrível.
- Jesus! - exclamou, como se só naquele instante tomasse conhecimento da marcha
alterada do Land-Rover, que vibrava e sacudia-se brutalmente, com um ruído agudo
de metal contra metal na parte esquerda onde batera; a velocidade estava cada
vez menor.
Craig inclinou-se e berrou pela janela:
- Aumente a velocidade!
- O carro está todo estourado na frente. - Sally-Anne inclinou a cabeça pela
janela. - Se formos mais depressa, vai cair aos pedaços.
Craig tornou a olhar para trás. O caminhão aproximava-se, não rápida, mas
inexoravelmente. Viu o atirador do teto mudar ligeiramente a posição da arma.
- Dê tudo, Sally-Anne! - berrou. - Vamos arriscar. Eles têm uma metralhadora
pesada e estamos quase dentro do alcance de tiro.
O Land-Rover roncou, avançando com um ranger de metais e a vibração fez com que
os dentes de Craig batessem. Olhou novamente para trás; estavam mantendo
distância, mas viu quando o caminhão estremeceu com o disparo da arma pesada.
Craig notou que ainda não se ouvia o som dos disparos; abruptamente levantou-se
uma cortina de poeira perto do flanco esquerdo do carro, com dois metros de
altura, e que parecia diáfana e inocente. O som dos disparos repercutiu,
terrível, logo após.
Vire à esquerda! - gritou Craig. Sabia que a tática para manterem-se vivos e
inteiros era seguir na direção dos disparos; o atirador estaria corrigindo a
mira para o lado oposto e a poeira ajudava a ocultar o alvo.
A saraivada seguinte caiu à direita, e distanciada.
Vire à direita! - berrou Craig.
Atire neles! - Sally-Anne botara a cabeça de fora da janela novamente; estava
obviamente recuperando-se da pancada na cabeça e começando a ficar combativa.
- Eu dou as ordens - ele disse. - E você dirige.
Os disparos que se seguiram caíram longe, a uns trinta metros.
- Vire à esquerda!
O ziguezaguear estava confundindo a pontaria do soldado e a poeira obscurecia a
mira, mas estava custando-lhes terreno. O caminhão aproximava-se novamente.
O depósito de sal estava logo adiante, centenas de quilômetros quadrados
brilhando como prata sob o Sol. Craig franziu os olhos com a claridade e avistou
as veredas por onde uma pequena manada de zebras passara na superfície lisa. Os
cascos haviam quebrado a camada de sal, deixando à mostra por baixo a lama
amarelada que atolaria qualquer veículo que tentasse aquela travessia
enganadoramente convidativa.
- Vire o volante e passe rente à borda direita do depósito. À esquerda! Mais!
Mais! Assim, mantenha - gritou.
Havia uma estreita faixa da salina que se estendia até eles e talvez pudesse
tentar os perseguidores a cortar caminho por ali. Olhou através da poeira e
praguejou:
- Merda!
O motorista do caminhão era esperto demais para tentar atravessar. Estava logo
atrás deles e uma rajada de metralhadora caiu-lhes em torno. Três balas
acertaram a carroceria, deixando crateras de metal brilhante onde a tinta de
camuflagem descascara.
- Vocês estão bem?
- Estamos! - respondeu Sally-Anne, mas o tom de voz já não era de bravata. -
Craig, não consigo mais acelerar. Estou com o pé no fundo e a velocidade está
diminuindo. Alguma coisa está acontecendo!
Craig sentiu o cheiro de metal incandescente na frente danificada.
- Timon, passe-me um fuzil!
Ainda estavam fora do alcance da AK 47, mas a rajada que disparou o fez sentir-
se menos desamparado. Passaram com o motor falhando pela ponta da salina, em
meio ao cheiro acre do metal incandescido, e Craig olhou para a frente enquanto
recarregava o fuzil.
Quanto faltaria para a fronteira? Uns vinte quilômetros, talvez? Mas uma unidade
punitiva da Terceira Brigada com ordens de cumprir o código "leopardo" se
deteria diante de uma fronteira internacional? Há muito, os israelenses e sul-
africanos haviam criado o precedente de "perseguição em luta" dentro de
território neutro. Sabia que seriam perseguidos até a morte.
O Land-Rover seguia aos arrancos, com a suspensão danificada, e, pela primeira
vez, Craiz sentiu que não iam conseguir; a idéia o enfureceu, fez uma série de
disparos curtos e o Toyota oscilou violentamente e parou numa nuvem de pó.
- Eu o peguei! - berrou, triunfante.
- Viva! - berrou Sally-Anne.
- Bravos, sr. Mellow, ótimo trabalho!
O caminhão era uma grande massa imóvel enquanto as ondas de pó iam sumindo.
- Engulam isso, desgraçados! - berrou Craig. - Enfiem esse caminhão no traseiro,
seus porcos! E esvaziou o fuzil na direção do veículo parado.
Homens corriam à volta do caminhão, como formigas em torno da carcaça de um
besouro, e o Land-Rover afastou-se lentamente, aos trancos.
- Ah, não! - gemeu Craig.
A silhueta do caminhão alterou-se ao retomar a perseguição.
- Aí vêm eles de novo!
Talvez houvesse acertado o motorista, mas o estrago feito não fora permanente.
Conseguira detê-los por menos de dois minutos e, agora, corria mais rápido do
que antes. Como para sublinhar isso, outra rajada da metralhadora pesada
atingiu-os.
Alguém gritou na cabine, um grito agudo e feminino. Craig ficou paralisado de
medo.
Timon foi atingido. - Era a voz de Sally-Anne, e o coração de Craig disparou de
alívio.
Está muito ferido?
Acho que sim. Está sangrando muito.
Não podemos parar. Vá em frente.
Craig olhava desesperadamente para diante e tudo o que via era um enorme vazio.
Até os arbustos espinhentos haviam desaparecido. Tudo era achatado e sem relevo,
e o reflexo das salinas brancas tornava o céu de um leitoso pálido; não havia
definição clara entre terra e céu, nada que detivesse a atenção.
Craig abaixou o olhar e berrou:
- Pare! - E, para reforçar a ordem, bateu com os pés no teto do carro com toda
força, fazendo Sally-Anne reagir instantaneamente e frear. O Land-Rover estacou.
A causa da urgência de Craig era um montinho de pêlos amarelos, menor que uma
bola de futebol, aparentemente inócua. De repente, saltou com longas pernas
traseiras, desproporcionais a seu corpo, e que se assemelhavam às de um canguru.
Desapareceu abruptamente num buraco escavado na terra.
- Um rato-canguru! - gritou Craig. - Uma colônia enorme deles, bem em frente.
- Ratos-cangurus?! - Sally-Anne inclinou-se na janela, à espera de instruções.
Tinham tido sorte. O Paradipus ctenodactylus é um animal de hábitos noturnos e
ver um deles fora da toca à luz do dia era um acontecimento excepcional. Ao
observar atentamente, Craig percebeu a extensão da colônia. Havia dezenas de
milhares de buracos, cujas entradas pareciam montículos inofensivos de terra
solta, mas sabia que o terreno arenoso por baixo estava todo cortado por túneis
e que a área toda estava solapada.
Aquele solo não suportaria o peso de um homem a cavalo, quanto mais o de um
caminhão. Com o motor desligado, Craig podia ouvir claramente o estrépito atrás
deles e uma rajada de metralhadora passou tão perto que teve de abaixar-se
rápido para não ser atingido.
- Vira para a esquerda! Volte para a salina! - gritou.
Viraram, passando à frente do caminhão que se aproximava com a metralhadora
disparando, e os gemidos de Timon chegavam aos ouvidos de Craig, que resolveu
ignorá-los.
- Não há como passar! - disse Sally-Anne. Os buracos espalhavam-se por toda
parte.
- Vá em frente - respondeu Craig. O caminhão dera meia-volta para cortar-lhes o
caminho e aproximava-se rapidamente.
- Lá! - apontou Craig, aliviado. Como deduzira, a colônia terminava próximo à
borda das salinas, evitando a lama em seu subsolo. Havia uma estreita passagem e
Craig guiou Sally-Anne por ela. Rodaram quinhentos metros e ultrapassaram o solo
perigoso; agora tinham terra firme pela frente. Sally-Anne acelerou ao máximo e
conseguiram afastar-se dos perseguidores.
- Não! Não! - gritou Craig. - Vire à direita, tudo à direita! - Ela pareceu
hesitar, e ele continuou: - Faça o que eu digo, que diabo! - De repente,
percebeu qual era a intenção de Craig; virou o volante, resoluta, dirigindo de
volta e cruzando na frente do caminhão, que seguiu-os, afastando-se dos
depósitos salinos pela passagem de terra firme em direção ao labirinto
subterrâneo de buracos. Estava tão próximo que podiam ver as. cabeças dos
soldados na parte traseira descoberta, a cor de uma boina vermelha e o brilho do
distintivo prateado, ouvir os gritos raivosos e sedentos de sangue e um fuzil AK
47 brandido em triunfo.
A metralhadora escavou a terra a uns três metros na frente do Land-Rover que
mergulhou na nuvem de pó levantada pela rajada.
Craig mirou o AK 47, tentando desviar a atenção do chofer do solo à frente do
caminhão.
- Deus, faça com que aconteça - suplicou, enquanto recarregava o fuzil. Suas
preces foram ouvidas. O caminhão entrou a toda velocidade no terreno esburacado.
Era como um elefante caindo em uma armadilha funda. A terra cedeu e engoliu-o.
Ao cair o caminhão tombou de lado, atirando fora os homens armados que estavam
na traseira. Havia corpos espalhados à volta, e alguns já começavam a levantar-
se enquanto outros jaziam onde tinham sido jogados.
- É isso aí - gritou Craig. - Vão precisar de um guindaste para sair dessa.
- Craig - gritou ela de volta. - Timon está mal. Não podemos fazer alguma coisa?
- Pare um instante.
Craig pulou do teto do carro, entrou no banco traseiro e Sally- Anne arrancou.
Timon estava esparramado no assento, com a cabeça atirada para trás e apoiada à
janela. Perdera os óculos, estava com a respiração entrecortada e as costas do
paletó do uniforme eram uma massa sangrenta. Craig ajudou-o a estender-se no
banco e abriu o casaco.
Ficou horrorizado com o que viu. A bala devia ter entrado pela carroceria e
ficara deformada pelo impacto, como uma dum-dum. Abrira um buraco do tamanho de
uma xícara nas costas de Timon e não saíra. Ainda estava lá.
Havia uma caixa de primeiros socorros no painel do carro. Craig tirou duas
ataduras, arrancou as embalagens e as colocou sobre a ferida. Atrapalhado pelos
trancos violentos, amarrou-as bem apertadas.
- Como está ele? - perguntou Sally-Anne, tirando os olhos do caminho por um
instante.
- Vai ficar bom - disse, para confortar Timon, mas balançou a cabeça em uma
negativa silenciosa.
Timon era um homem morto. Seria questão de uma ou duas horas. Ninguém poderia
sobreviver a um ferimento daqueles.
- Não posso respirar - sussurrou Timon, esforçando-se para sorver ar.
Craig tivera esperanças de que estivesse inconsciente, mas os olhos estavam
fixos em seu rosto. Craig abriu um pouco a janela para dar-lhe mais ar.
- Meus óculos. Não consigo enxergar.
Craig achou-os no assoalho e o colocou em seu rosto.
- Obrigado, sr. Mellow. - E inacreditavelmente, Timon sorriu. - Não me parece
que consiga sair dessa, afinal.
Craig ficou surpreso com a intensidade da pena que sentia dele. Agarrou com
firmeza o ombro de Timon, esperando que a força física pudesse confortá-lo um
pouco.
- O caminhão? - perguntou Timon.
- Conseguimos acertá-lo.
- Ótimo, senhor.
Enquanto falava, o carro foi tomado pelo cheiro de borracha e gasolina
queimadas.
- Pegamos fogo! - gritou Sally-Anne, e Craig virou-se para olhar.
A frente do Land-Rover estava em chamas; o metal incandescido do pára-lama
dianteiro incendiara a borracha do pneu, e o fogo imediatamente alastrou-se;
apesar de o motor continuar funcionando, o carro imobilizou-se, e a embreagem
pegou fogo, provocando mais fumaça por baixo do chassi.
- Desligue-o! - ordenou Craig, e abriu a porta, tirando o extintor do lugar.
Esguichou uma nuvem branca de pó na frente incendiada, apagando as chamas no
mesmo instante; abriu em seguida o capô, queimando os dedos no metal quente.
Esguichou no motor também para evitar que o fogo ressurgisse, e olhou-o.
- Bem - disse em tom fatalístico. - Este aqui não vai mais a lugar nenhum!
O silêncio em torno deles, depois do barulho dos motores e dos tiros, era
esmagador. Os estalidos do metal que se resfriava soavam alto. Craig foi até a
traseira do carro e olhou para trás. O caminhão estava fora de vista, atrás
deles, em meio ao halo produzido pelo calor. O silêncio zumbia em seus ouvidos e
a solidão do deserto o assaltou como uma força física, parecendo diminuir-lhe o
ritmo dos movimentos e do raciocínio.
A boca estava ressequida pela ressaca de adrenalina.
- A água! - Foi rapidamente ver o tanque de reserva sob o banco, abriu a tampa e
checou quanto tinham.
- Pelo menos uns vinte e cinco litros.
Havia um cantil de alumínio dependurado ao lado do fuzil AK 47, deixado por um
dos soldados que haviam cavado as covas. Craig encheu-o e levou-o para Timon,
que bebeu, agradecido, engolindo avidamente a água e engasgando com a pressa.
Recostou-se em seguida, arquejante. Craig passou o cantil a Sally-Anne e,
depois, bebeu também. Timon parecia um pouco melhor e Craig verificou as
ataduras. A hemorragia estava provisoriamente estancada.
- A primeira regra de sobrevivência no deserto - lembrou-se Craig - é ficar
junto ao carro.
Mas isso não se aplicava ao caso. O veículo atrairia os perseguidores e Timon
falara em aviões de reconhecimento. Naquele descampado, veriam o Land-Rover a
quilômetros de distância. E havia ainda a segunda patrulha vinda do posto
fronteiriço de Plum-tree. Estariam lá em pouco tempo.
Não podiam ficar. Tinham que continuar. Olhou para Timon e ambos compreenderam
isso.
- Vão ter de me deixar aqui - sussurrou Timon.
Craig não podia continuar a encará-lo ou responder-lhe. Em vez disso subiu
novamente para o teto do carro para olhar para trás.
As marcas dos pneus apareciam claramente na terra macia, já sombreada pelo Sol
mais baixo no céu. Seguiu-as com o olhar até o horizonte e estremeceu de
repente.
Algo movia-se quase dentro do campo de visão. Por alguns instantes, teve
esperanças de que fosse uma ilusão. Então, tornou a aparecer, agora como uma
lagarta sinuosa flutuando em um lago de miragem, mudou de forma mais uma vez,
tornou a ancorar-se em terra e virou uma fileira de homens armados vindo atrás
dos rastros. Os homens da Terceira Brigada não haviam abandonado a caçada.
Estavam a pé, trotando ritmadamente através da planície. Craig trabalhara com
tropas negras de choque antes e sabia que podiam manter aquele ritmo por um dia
e uma noite.
Pulou do teto e achou os binóculos de Timon no porta-luvas.
- Há uma patrulha a pé nos seguindo - disse a eles.
- Quantos? - perguntou Timon.
Do teto do carro, focalizou os binóculos.
- São oito... tiveram baixas quando o caminhão virou.
Olhou para o Sol, que estava ficando avermelhado e quase afundando-se no solo
meio nevoento. Ainda faltavam duas horas para o crepúsculo, calculou.
- Se me mudarem de posição, posso dar cobertura de fogo para escaparem - disse
Timon. E, como Craig hesitasse, concluiu: - Não perca tempo discutindo, sr.
Mellow.
- Sally-Anne, encha o cantil - ordenou Craig. - Pegue o chocolate e os tabletes
de proteína das rações de emergência. E também o mapa, o compasso e os
binóculos.
Observou os pontos de onde disparariam contra o carro. Não se podia tirar
partido daquele terreno achatado. O único ponto defensivo era o próprio Land-
Rover. Tirou a tampa do depósito de gasolina e deixou escorrer o restante do
combustível no solo arenoso, para evitar que um tiro de sorte incendiasse o
carro, e Timon com ele. Fez uma trincheira rudimentar em torno das rodas
traseiras com os pneus sobressalentes e a caixa de ferramentas para proteger o
flanco de Timon quando o cercassem.
Ajudou-o a sair do banco e colocou-o de barriga para baixo atrás dos pneus
traseiros. A hemorragia recomeçou, ensopando as ataduras, e Timon estava
cinzento e suando, com gotinhas perolando-lhe o lábio superior. Craig colocou-
lhe entre as mãos um AK 47 e uma almofada para apoiar-se e fazer pontaria.
Deixou a seu lado a caixa de munições, com quinhentas balas.
- Vou durar até escurecer - prometeu Timon em voz rouca. - Mas deixem-me uma
granada.
Todos sabiam por quê. Timon não queria ser capturado vivo. Ao final, seguraria a
granada contra o peito e a deixaria explodir.
Craig pegou as cinco granadas restantes e colocou-as em uma das mochilas, e
sobre elas a bolsa com os papéis e manuscritos. Tirou da caixa de ferramentas um
rolo de arame fino e um par de cortadores; da caixa de munição, seis pentes de
balas para o AK 47. Dividiu o conteúdo da caixa de primeiros socorros, deixando
duas ataduras, um pacote de analgésicos e uma seringa com morfina para Timon, e
enfiou o resto na mochila.
Olhou o interior do carro. Haveria mais alguma coisa de que precisassem? Havia
no chão um plástico enrolado com desenhos de camuflagem e socou-o na mochila,
levantando-a. Era tudo o que podia carregar. Olhou para Sally-Anne, que já
estava com o cantil dependurado no ombro e carregava a outra mochila. Enrolara a
pasta de fotografias dando um jeito para que coubesse lá dentro. Estava muito
pálida e o calombo na cabeça havia inchado mais ainda.
- Tudo certo? - perguntou Craig.
- Tudo bem.
- Adeus, capitão - disse Craig, ajoelhando-se a seu lado.
- Adeus, sr. Mellow.
Craig pegou-lhe a mão e olhou-o nos olhos. Não viu nenhum medo neles e pensou
mais uma vez na serenidade de espírito com que os africanos aceitavam a morte.
Já vira isso muitas vezes antes.
- Obrigado, Timon, por tudo - disse.
- Hamba gashle - disse Timon, gentilmente. - Vão em paz.
- Shala gashle - respondeu Craig à maneira tradicional. - Fique em paz.
Levantou-se e foi a vez de Sally-Anne ajoelhar-se.
- Você é um bom homem, Timon, e muito corajoso.
Timon abriu o coldre e tirou a pistola, uma cópia chinesa da Tokarev tipo 51,
estendendo-a para ela. Não disse nada, e ela a pegou depois de um instante.
- Obrigada, Timon. - Sabia que, assim como a granada que Timon segurava,
serviria para um fim mais fácil caso fossem capturados. Sally-Anne meteu-a no
cinto do jeans, debruçou-se impulsivamente e o beijou.
Obrigada - disse, novamente; levantou rapidamente e virou-se de costas.
Craig ia à frente, em passo acelerado. Olhava para trás de tanto em tanto,
mantendo o carro diretamente entre eles e a patrulha que se aproximava. Se
suspeitassem que dois deles haviam abandonado o carro, deixariam simplesmente a
metade dos homens para atacá-lo e viriam em sua pista com o restante da força.
Trinta e cinco minutos mais tarde, ouviram os primeiros disparos de arma
automática e Craig parou para ouvir. O Land-Rover era apenas um pequeno ponto
escuro à distância e o crepúsculo caía rápido. A primeira rajada foi respondida
por uma tempestade de tiros, com muitas armas disparando simultaneamente.
- É um bom soldado - disse Craig. - Claro que garantiria aquele primeiro tiro.
Aposto que já não são mais oito.
Viu com surpresa lágrimas escorrerem pelo rosto dela, transformando a poeira em
uma lama marrom e suja.
- Não é a morte que importa - disse Craig em voz calma -, mas a maneira como se
morre.
- Vê se me poupa dessa merda literária, "cara"! Não é você quem está morrendo -
respondeu furiosa, mas logo acrescentou em tom contrito: - Sinto muito, querido.
Minha cabeça está doendo e eu gostava muito dele.
O som dos disparos tornava-se cada vez mais fraco à medida que iam se
distanciando, até transformar-se em um leve murmúrio como passos na mata
ressequida por trás deles.
- Craig! - gritou Sally-Anne, e ele voltou-se. Caíra a uns vinte passos e o mal-
estar era visível. Assim que ele parou, deixou cair a cabeça entre os joelhos.
- Vou me recuperar logo. É só a minha cabeça.
Craig abriu um pacote de analgésicos e a fez engolir dois comprimidos com um
gole de água do cantil. O calombo na testa o assustava e abraçou-a bem apertado.
- Ah, isso é bom. - Ela deixou o corpo repousar em seus braços.
No silêncio do crepúsculo do deserto, ouviram o ruído distante de uma explosão
abafada e Sally-Anne enrijeceu-se.
- O que foi isso?
- Granada de mão - ele respondeu, e olhou para o relógio. -, Está morto, mas nos
deu uma vantagem de cinqüenta e cinco minutos. Que Deus o abençoe, Timon, e que
sua alma repouse em paz.
- Não devemos desperdiçar esta chance - ela disse com determinação, e conseguiu
ficar de pé. - Pobre Timon... - concluiu, e recomeçaram a caminhada.
Levariam uns poucos minutos para descobrir que havia apenas um homem defendendo
o Land-Rover. Descobririam os rastros rapidamente e os seguiriam. Craig ficou
imaginando quantos Timon teria conseguido acertar e quantos teriam sobrado.
- Vamos descobrir isso logo - disse para si mesmo, e a noite desceu sobre eles
com rapidez.
Era lua nova já há três dias. A única luz disponível era a das estrelas. Órion
estava alto no firmamento de um lado e o Cruzeiro brilhava no outro. No ar seco
do deserto, seu brilho era maravilhoso e a Via Láctea enchia os céus como a
fosforescência de um vagalume esmagado entre os dedos de uma criança. O céu era
magnífico, mas, ao olhar para trás, Craig viu que a luminosidade era suficiente
para iluminar as pegadas.
- Vamos descansar! - disse a Sally-Anne, e ela estendeu-se no solo. Com a
baioneta da AK 47, ele cortou um ramo de uma moita e prendeu-a com arame na
parte de trás do cinto.
- Vá na frente - disse-lhe, economizando energias com poucas palavras.
Ela tomou a frente, já não mais em passo acelerado, e ele arrastava o ramo no
chão por trás. Varria a terra com ele para certificar-se de que as pegadas
haviam sumido.
Depois de uns dois quilômetros, o peso do galho arrastando-se como uma âncora do
cinto começou a cansá-lo, mas tentou reagir. Na hora seguinte, Sally-Anne pediu
três vezes água antes que ele a deixasse tomar. Nunca beber logo no início da
sede era uma das regras de sobrevivência. Se a pessoa fizesse isso, tornava-se
insaciável, mas ela estava ferida e com dores na cabeça, e não teve coragem de
negar-lhe outra vez. Ele mesmo não tomou nenhum. O dia seguinte, se
sobrevivessem até lá, seria um inferno de sede, e tirou-lhe o cantil para
afastar a tentação.
Um pouco antes da meia-noite, tirou o galho do cinto; o peso morto era demais
para ele, e, se os shona ainda estivessem em sua pista, não teria muito mais
serventia. Em vez disso, tirou a mochila de Sally-Anne e colocou-a no ombro.
- Eu posso agüentar - ela protestou, apesar de estar caminhando meio trôpega.
Não se queixara uma única vez, se bem que estivesse tão lívida quanto as salinas
que atravessavam.
Tentou dizer-lhe algo que a consolasse um pouco.
Devemos ter cruzado a fronteira há horas atrás.
Isso significa que estamos a salvo? - sussurrou.
Ele ficou quieto, sem conseguir dar uma mentira como resposta. Ela estremeceu.
O vento noturno era cortante através das roupas leves. Ele desdobrou o pedaço de
náilon e o colocou em seus ombros, fazendo-a apoiar-se nele.
Cerca de dois quilômetros adiante, chegaram ao final das salinas e viu que ela
não poderia mais continuar aquela noite. Havia um rebordo de cerca de quarenta
centímetros e após ele recomeçava o terreno firme.
- Vamos parar aqui. - Ela jogou-se ao chão e ele a cobriu com o náilon.
- Posso tomar um gole dágua?
- Não. Só amanhã de manhã.
O cantil estava leve, com menos da metade de seu conteúdo.
Cortou alguns galhos para protegerem-se do vento, tirou os tênis dela,
massageando-lhe os pés e os examinando pelo tato.
- Ah, como está ardendo. - O calcanhar esquerdo de Sally- Anne estava em carne
viva e ele levou-o até a boca para lamber a ferida, economizando água. Colocou
mercurocromo, um band-aid, trocou as meias de pé e calçou-lhe novamente os
sapatos.
- Você é tão bom - murmurou -, e tão quente.
- Eu amo você. Durma agora.
Ela suspirou, encolhendo-se, e ele pensou que estivesse adormecida até ouvi-la
dizer, suavemente:
- Craig, sinto tanto por causa de King's Lynn.
E, finalmente, adormeceu, respirando ritmadamente contra seu peito. Ele
esgueirou-se de debaixo do náilon e a deixou sem perturbá-la. Foi sentar-se na
parte mais baixa da saliência com o AK 47 entre os joelhos, vigiando a planície,
esperando que viessem.
Enquanto montava guarda, pensou sobre o que Sally-Anne dissera, sobre King's
Lynn. Pensou nos rebanhos de grandes animais castanho-avermelhados e na casa da
colina, nos homens e mulheres que tinham vivido lá e lá criado suas famílias. E
lembrou-se dos sonhos que arquitetara, da família que sonhara ter ao lado de sua
mulher.
Minha mulher. Foi até onde ela estava estendida e ajoelhou-se para ouvir-lhe a
respiração, lembrando-se dela nua em cima da mesa sob o cruel escrutínio de
muitos olhos.
Voltou à borda do depósito salino e pensou em Tungata Zebiwe, lembrando-se das
risadas e da camaradagem que haviam repartido, e viu novamente o sinal secreto
que lhe fizera quando o estavam levando do tribunal. "Estamos quites, o escore
está empatado", e balançou a cabeça.
Pensou no fato de que um dia fora milionário, e também nos milhões que devia
agora. De um homem de peso, fora reduzido por um único golpe a algo pior que um
mendigo. Nem ao menos o manuscrito dentro da sacola lhe pertencia mais. Seria
confiscado; os credores o tomariam. Nada mais possuía, nada, exceto aquela
mulher e seu ódio.
Então a imagem do general Fungabera surgiu-lhe na imaginação - macio como
chocolate quente, bonito como um pecado mortal, tão poderoso e mau como
Lúcifer... A raiva cresceu dentro dele até parecer consumi-lo.
Atravessou a longa noite em vigília, odiando com toda força de seu ser. A cada
hora que passava, ia até onde dormia Sally-Anne e ajoelhava-se a seu lado. Uma
vez, ajeitou novamente a coberta de náilon, outra, tocou delicadamente o calombo
na testa e ela gemeu no sono, voltando então à vigília.
Uma vez, viu formas escuras na planície e o estômago contraiu-se, mas, ao olhá-
las com o binóculo de Timon, viu que eram gemsbock, as enormes gazelas do
deserto, do tamanho de cavalos, com os focinhos em feitio de diamante claramente
delineados à luz das estrelas. Cruzaram silenciosamente por ele e fundiram-se na
escuridão.
Órion caçou pelos céus e desapareceu com o primeiro brilho da aurora. Era tempo
de prosseguirem, mas ele deixou-se ficar quieto, relutando em acordar Sally-Anne
para a realidade dos terrores e provações que o dia traria, e dando-lhe ainda
alguns minutos de esquecimento.
Foi quando os avistou, e sentiu-se invadir pelo peso esmagador do desespero.
Estavam longe na planície, uma mancha negra grande demais para ser um animal do
deserto e que movia-se em sua direção. O ramo que arrastara para apagar o rastro
devia ter funcionado, já que os atrasara tanto. Mas, quando o abandonara, deviam
ter retomado rapidamente a pista.
Porém o desespero cedeu. Se tinham que enfrentá-los, pensou, era melhor que
fosse agora; era um lugar tão bom como qualquer outro para morrer. Os shona
tinham que cruzar o descampado e havia a pequena vantagem dada pela borda da
salina e a cobertura das moitas esparsas, mas pouco tempo para usá-las.
Arrastou-se de volta até onde deixara a mochila para não ser visto em silhueta
contra o céu que clareava. Pôs as cinco granadas dentro da camisa, agarrou o
rolo de arame e os cortadores, apressando-se em voltar para a borda.
Examinou a patrulha que avançava. Estavam em fila indiana devido ao descampado,
mas achou que se espalhariam logo que chegassem à borda, adotando a tática de
avançar em formação de ponta de flecha, que lhes daria cobertura superposta e
evitaria que fossem apanhados em uma emboscada.
Craig começou a colocar as granadas de estilhaços baseado nessa hipótese. Foi
espalhando-as no alto da borda já que a pequena elevação dispersaria mais os
fragmentos de cada explosão.
Com o arame, amarrou granada por granada ao tronco de uma moita ou arbusto,
mantendo uma distância de vinte passos umas das outras, correu um fio em torno
de cada pino, e levou-os, um de cada vez, de volta para onde Sally-Anne dormia,
prendendo-os na mochila.
Estava agora de joelhos, porque a luz aumentava rapidamente e a patrulha
estaria, sem dúvida, cada vez mais próxima. Arranjou o quinto e último fio e,
daquela vez, voltou rastejando. Os fios espalhavam-se em forma de leque desde a
barreira de mato cortado. Verificou a munição do fuzil e colocou os pentes à
mão.
Já era hora de acordá-la. Beijou-a na boca com doçura, e ela franziu o nariz,
resmungando; abriu os olhos verdes onde primeiro espelhou-se o amor e, depois, a
aflição, ao lembrar-se da situação em que estavam. Começou a sentar-se, mas ele
a fez deitar novamente.
- Eles estão aqui - avisou-a. - Vou resistir.
Ela concordou, silenciosa.
- Você está com a pistola de Timon?
Tornou a fazer que sim, apalpando o cinto do jeans.
- Sabe usá-la?
- Sim.
- Guarde uma bala para o fim.
Ela o olhou de olhos arregalados.
- Prometa que não vai hesitar.
- Prometo - sussurrou.
Craig levantou a cabeça lentamente. A patrulha estava a quatrocentos metros, e,
como previra, já estavam em formação de ponta de flecha.
Ao destacarem-se da mancha amorfa que formavam na pouca claridade, pôde contá-
los. Cinco! E seu ânimo tornou a ficar muito abalado. Timon não se saíra tão bem
quanto imaginara. Pegara apenas três dos perseguidores. Mesmo com a vantagem da
surpresa e estando escondido, eram demais para ele.
- Mantenha o rosto abaixado - sussurrou. - Pode refletir luz como um espelho. -
Obedientemente, ela o escondeu entre os braços. Craig levantou a camisa para
cobrir a boca e o nariz e ficou vigiando-os.
Oh, meu Deus, pensou. Olhe como se movem! Estão andando a noite toda e ainda
estão inteiros e alertas como linces. À frente, vinha um shona alto que movia-se
como um caniço ao vento. Carregava o AK 47 apoiado no quadril direito e estava
inteiramente concentrado. Por um momento, a luz do amanhecer brilhou-lhe nos
olhos que refulgiram, como o clarão de um tiro a distância, no negror do rosto.
Craig percebeu que era o líder.
Os dois homens que o flanqueavam eram figuras sombrias, atarracadas e
ameaçadoras; subservientes, no entanto, ao homem que os guiava. Reagiam como
marionetes aos sinais que o shona fazia. Avançaram, silenciosamente, até a borda
e Craig arrumou os arames por entre os dedos da mão esquerda.
A cinqüenta passos do desnível, o shona fez um gesto e a fileira imobilizou-se.
Examinou a borda e a vegetação por trás. Deu cinco passos à frente, caminhando
macio, e tornou a parar. Inspecionou tudo mais uma vez e virou bruscamente a
cabeça. Vira algo, e Craig susteve a respiração durante alguns segundos.
Recomeçou a andar e fez um gesto para os homens, primeiro esticando o indicador,
depois, cerrando o punho; a formação deslocou se para a posição da ponta de
flecha invertida: o shona adotara a formação tradicional de combate das tribos
Nguni, os "chifres de touro" que o rei Chaka empregara com efeitos tão
terríveis, e avançavam para investir contra a posição de Craig.
Sentiu-se aliviado com a intuição que tivera em colocar as granadas tão
espalhadas. Os dois homens no flanco iriam passar quase em cima das mais
afastadas. Selecionou dois arames na mão, observando o avanço deles. Gostaria
que fosse o shona alto, o homem perigoso, mas ele mantinha-se imóvel. Estava
ainda fora de alcance, observando e dirigindo o movimento.
O homem à direita atingiu a borda e subiu desajeitadamente nela, mas o da
esquerda estava ainda a dez passos atrás.
- Juntos - sussurrou Craig. - Tenho que pegá-los juntos.
O homem na borda devia ter quase roçado a granada escondida com o joelho, quando
Craig deixou-o ultrapassá-la. O da esquerda chegou finalmente à borda; tinha uma
atadura suja de sangue na cabeça, sem dúvida trabalho de Timon. A granada devia
estar à altura do umbigo e Craig puxou com toda força os dois arames, ouvindo em
seguida o estalido metálico dos pinos arrancados.
A três segundos da explosão, os shona reagiram com reflexos treinados. O homem
da borda desapareceu de vista, mas Craig calculou que estava próximo demais à
granada para sobreviver. Os outros três também atiraram-se ao chão, disparando
ao caírem, rolando para o lado, e tornando a disparar, varrendo o topo da borda.
Só o soldado à esquerda, o homem ferido, talvez mais lento por causa disso,
ficou em pé naqueles segundos fatais. A granada explodiu como um flash; foi
atingido pela fragmentação do shrapnel, e jogado ao ar pelo impacto na barriga.
À direita, a outra explodiu com um estrondo breve e Craig ouviu o ruído seco dos
fragmentos penetrando na carne.
Dois desgraçados a menos, pensou, e tentou alvejar o líder, mas o homem
conseguiu esquivar-se. O primeiro disparo arrancara o sal branco do solo a
centímetros dele, o segundo desviou-se um pouco para a esquerda, e o shona
atirou de volta, continuando a rolar.
Um dos soldados ficou de pé e saiu correndo, fazendo disparos contra a borda;
Craig virou-se e acertou-o em cheio com uma rajada da virilha ao peito. O
soldado deixou cair o fuzil, rodopiou, caiu de joelhos e depois de rosto no
chão, como um muçulmano em oração.
O shona alto levantou-se e correu, gritando uma ordem, enquanto o outro soldado
o seguia a vinte passos de distância. Craig mirou exultante. Não havia como
errar. O AK 47 deu um coice e acionou um cartucho vazio, enquanto o shona
continuava, incólume.
Craig não conseguiu recarregar tão rápido como em outros tempos; perdeu
preciosos segundos antes de poder apertar o gatilho de novo e o homem atirou-se
por trás do desnível, fazendo com que a rajada passasse inofensiva.
Craig soltou um palavrão e virou-se para o último soldado que estava a apenas
cinco passos da segurança da borda, disparando à queima-roupa. Não tivera tempo
para mirá-lo, mas uma única e afortunada bala atingiu-o na boca, jogando-o para
trás com o impacto. A boina voou para o ar, brilhando como um lindo pássaro na
luz do amanhecer, e o soldado tombou.
Quatro dos cinco inimigos mortos nos primeiros minutos era muito mais do que
podia esperar, mas o último, e mais perigoso, estava vivo, por trás da borda.
Devia ter assinalado a direção dos tiros, sabia onde Craig estava.
- Fique debaixo da coberta - ordenou a Sally-Anne, e puxou os arames das outras
três granadas. As explosões foram quase simultâneas, um barulho trovejante como
o da bateria de um navio de guerra, e Craig movimentou-se por entre a poeira e
as chamas.
Correu uns trinta passos para a frente e à direita, jogou-se ao chão e ficou
esperando, de bruços, cobrindo o local onde o shona desaparecera, mas lançando
rápidas olhadelas para os lados.
A luz estava mais forte e aumentava rapidamente; viu quando o shona moveu-se e
subiu ao desnível. Apenas uma breve silhueta contra a brancura do depósito de
sal, rápido como uma serpente e onde Craig não o esperava. Devia ter se
arrastado por sobre a borda e estava bem à esquerda.
Craig fez pontaria, mas não disparou; aquela chance não era bastante segura para
que traísse a nova posição, e o shona desapareceu nas moitas baixas a uns
cinqüenta passos. Arrastou-se para interceptá-lo, lento como uma lagarta, sem
fazer ruído ou levantar poeira, ouvindo e olhando com toda a concentração.
Escoaram-se longos segundos até que conseguiu avançar um pouco mais, sabia que o
shona estava rastejando para onde deixara Sally-Anne.
Foi quando a ouviu gritar. O som foi como um esmeril em seus nervos e viu-os
levantarem-se por trás de uma moita próxima: Sally-Anne lutava e arranhava como
um gato selvagem e o homem a segurava pelos cabelos, ajoelhada, mas com firmeza,
usando-a como escudo.
Craig partiu para cima deles. Não era uma decisão consciente; quando percebeu,
estava de pé, correndo e balançando o AK 47 como um porrete. O shona soltou
Sally-Anne, que caiu para trás. Desviou-se do fuzil e atingiu Craig nas costelas
com o ombro ao levantar-se. O fuzil voou longe, e engalfinhou-se com ele,
tentando desesperadamente recuperar o fôlego. O shona, vendo que uma arma seria
inútil no corpo-a-corpo, deixou cair seu rifle e usou os braços.
Craig soube no mesmo instante que o homem era forte demais para ele. Era de
enorme envergadura e fora treinado para ter a dureza da rocha. Passou o braço
longo pelo pescoço de Craig que, ao invés de resistir, atirou o próprio peso em
direção ao oponente, surpreendendo-o e fazendo-os perder o equilíbrio. Ao
caírem, deu-lhe um pontapé com a perna mecânica, mas não o acertou.
O shona girou, acertando-lhe um golpe que Craig assimilou bem, e engalfinharam-
se, peito a peito, rolando pelo chão, esmagando a vegetação áspera e rasteira, e
arquejando. O shona arreganhava a boca como um lobo, tentando morder-lhe o rosto
com os dentes brancos e quadrados. Se conseguisse, lhe arrancaria o nariz ou um
pedaço da bochecha. Já vira isso acontecer em brigas de cervejaria.
Em vez de recuar a cabeça, bateu-lhe com a testa na boca. Um dos incisivos do
negro partiu-se junto à gengiva, enchendo a boca de sangue. Craig recuou para
bater de novo, mas o shona desvencilhou-se e conseguiu tirar a faca da cintura.
Craig agarrou-o desesperadamente pelo pulso, mal conseguindo evitar o golpe.
Continuaram a engalfinhar-se, e em dado momento o shona conseguiu ficar por
cima, com a faca apontada para sua garganta. Craig segurou-lhe o braço com as
duas mãos, mas não conseguia detê-lo. A arma aproximava-se mais e mais, e o
shona prendeu uma perna entre as de Craig, imobilizando-o.
A faca continuava a descer e, por trás, o rosto do shona, inchado pelas
contusões, pingava sangue da boca na cara de Craig, e os olhos esbugalhavam-se,
raiados de minúsculas veias.
Craig usou de todas as forças; a faca deteve-se por um instante e tornou a
descer, tocando-lhe a garganta. Foi como a picada de uma seringa hipodérmica ao
furar a pele. Com uma sensação de horror, sentiu os músculos do shona
contraírem-se para a investida final que faria a lâmina de aço atravessar-lhe a
laringe e sabia que nada mais podia fazer.
Miraculosamente, a cabeça do shona mudou de forma, distorcendo-se como uma
máscara de borracha que desabasse, os miolos jorraram como uma fonte da têmpora
e o ruído de um tiro soou nos tímpanos de Craig. As forças abandonaram o corpo
do shona, que rolou para o lado e caiu ao solo.
Sentou-se e viu Sally-Anne com a pistola Tokarev nas mãos, o cano ainda estava
apontado para cima depois do coice da arma. Devia tê-la encostado à têmpora do
shona antes de dispará-la.
- Eu o matei. - Respirava com dificuldade e os olhos estavam cheios de horror.
- Graças a Deus! - arquejou Craig, enxugando com a camisa o talho no pescoço.
- Nunca matei nada antes - sussurrou. - Nem mesmo um coelho ou um peixe... nada.
Deixou cair a pistola e ficou esfregando as mãos, olhando para o corpo do shona.
Craig arrastou-se até ela e tomou-a nos braços. Estava tremendo violentamente.
- Tire-me daqui - suplicou. - Por favor, Craig. Estou sentindo o cheiro do
sangue, tire-me daqui.
- Sim, sim. - Ajudou-a a levantar-se e começou a enrolar a coberta e fechar as
mochilas.
- Por aqui. - Carregando as duas mochilas e o fuzil, levou-a dali em direção
oeste.
Haviam caminhado quase três horas e parado para o primeiro gole de água antes
que Craig percebesse o terrível esquecimento. As garrafas d'água! Na pressa e no
pânico, esquecera de recolher a água dos shona mortos.
Olhou para trás, ansioso. Mesmo que deixasse Sally-Anne ali e voltasse, levaria
quatro horas, e as patrulhas da Terceira Brigada estariam certamente a caminho.
Sopesou o cantil e verificou que sobrava apenas um quarto, o que mal bastaria
para aquele dia, mesmo que parassem para esperar pela noite e a queda de
temperatura. Não seria suficiente se continuassem e tinham que fazer isso.
A decisão foi tomada por ele ao ouvir de repente o som de um monomotor vindo do
norte. Olhou com amargura o pálido céu do deserto, sentindo-se desamparado como
um coelho diante de um avião de reconhecimento - disse, e ficou ouvindo o ruído
do motor que decresceu por momentos e tornou a ficar mais forte.
Estão fazendo uma busca em grade.
Enquanto falava, viu o avião aproximar-se. Estava mais perto do que pensava, e
voando muito baixo. Forçou Sally-Anne a deitar-se, e colocou a coberta sobre
ela, olhando para trás. Era um monomotor e se aproximava rapidamente. Mudou
ligeiramente de curso, vindo direto para cima deles. Atirou-se ao lado de Sally-
Anne e escondeu-se também debaixo da coberta camuflada.
O motor soou mais forte. O piloto os vira. Craig levantou uma ponta da coberta e
espiou.
- É um Piper Lance - disse Sally-Anne baixinho.
Tinha as insígnias da Força Aérea de Zimbábue e, incongruentemente, o piloto era
um branco, mas a seu lado havia um negro com a temível boina vermelha e o
distintivo prateado. Ambos olharam para baixo com expressão neutra enquanto o
Piper fazia uma curva fechada, com uma asa apontando para baixo como uma faca,
diretamente para onde estavam. O oficial negro segurava um microfone. As asas do
Piper nivelaram-se ao sair da curva, e dirigiu-se para a mesma direção de onde
viera. O ruído foi decrescendo e desapareceu no silêncio do deserto.
Craig levantou Sally-Anne.
- Você pode continuar?
Ela fez sinal que sim, afastando a mecha de cabelos da testa suada. Os lábios
estavam rachados e, no inferior, havia uma gotícula de sangue como um pequeno
rubi.
- Já devemos estar em Botsuana e a estrada da fronteira não pode estar longe. Se
pudermos achar uma patrulha de polícia...
A ESTRADA tinha uma única pista, com duas mãos em direção norte e sul, e
contornava volta e meia um depósito salino de terreno pouco firme. Era
patrulhada regularmente pela polícia de Botsuana para vigiar a caça furtiva e a
prevenção de entradas ilegais.
Craig e Sally-Anne chegaram até ela no meio da tarde. Craig já abandonara o
fuzil e a munição e reduzira as mochilas ao estritamente essencial. Chegara a
pensar por um momento em enterrar o manuscrito para recuperá-lo mais tarde, já
que pesava uns três quilos, mas Sally-Anne conseguiu dissuadi-lo.
O cantil estava vazio. Haviam tomado o último gole quente pouco antes de meio-
dia. Caminhavam pouco mais de um quilômetro e meio por hora. Craig já não suava
mais. Sentia a língua começando a inchar e a garganta cerrada enquanto o calor
absorvia toda a sua umidade.
Chegaram à estrada, mas o olhar de Craig estava cravado no horizonte difuso à
frente e todo o seu ser concentrado em colocar um pé adiante do outro.
Atravessaram-na sem vê-la e continuaram pelo deserto. Não eram os primeiros a
deixar para trás a chance de socorro e seguir para a morte pela sede e pelo Sol.
Cambalearam por mais duas horas até que Craig parou.
- Já devíamos ter chegado à estrada - sussurrou, e verificou o compasso. - Deve
estar errado! O Norte não é para lá. - Estava confuso e em dúvida. - Esta droga
deve estar estragada. Estamos muito ao Sul - decidiu, e começou o primeiro
círculo desnorteado que fazem as pessoas perdidas e totalmente desorientadas, o
cemitério em espiral que precede a morte no deserto.
Uma hora antes do pôr-do-sol, Craig tropeçou em uma trepadeira seca e marrom que
crescia no solo cinzento. Tinha um único fruto verde do tamanho de uma laranja.
Ajoelhou-se e colheu-a com a mesma reverência que teria para com o diamante
Cullinan. Resmungando por entre os lábios rachados que sangravam, cortou-o
cuidadosamente com a baioneta. Era morno como um fruto do Sol.
- Melão dos gemsbock, das gazelas do deserto - explicou a Sally-Anne que o
olhava com olhos mortiços, sentada, sem compreender.
Usou a ponta da baioneta para esmagar a polpa branca e encostou a metade do
fruto nos lábios de Sally-Anne que esforçou-se para engolir o sumo claro,
fechando os olhos em êxtase quando espalhou-se sobre a língua inchada.
Com grande cuidado, Craig espremeu um pouco do suco e fê-la beber. Sua garganta
doía e contraía-se com o aroma do líquido. Ela parecia reviver diante de seus
olhos, e só quando a última gota passou-lhe pelos lábios, compreendeu de repente
o que ele fizera.
- E você? - sussurrou.
Ele pegou a casca endurecida e chupou-a.
Desculpe. - Estava muito perturbada pelo próprio egoísmo, mas ele balançou a
cabeça.
Refresca logo. A noite não vai demorar.
Ajudou-a a levantar-se e continuaram aos tropeções.
O tempo inverteu-se na mente de Craig. Olhou para o crepúsculo e pensou que
fosse a aurora.
Errado. - Jogou o compasso que foi cair por perto. - Errado. caminho errado. -
Virou-se e conduziu-a de volta.
Sua cabeça povoou-se de formas e sombras, algumas terrificantes e sem rosto.
Reconhecia algumas delas. Ashe Levy passou, cavalgando uma enorme hiena,
brandindo o novo manuscrito, com o brilho dos óculos de aro de ouro cegando-o à
luz do crepúsculo.
- Não posso fazer uma edição de bolso - tripudiava. - Ninguém o quer, meu rapaz,
você está acabado. Craig, o homem de um livro só.
Foi quando reparou que não era o manuscrito, e sim a carta de vinhos do Four
Seasons.
- Vamos experimentar o Corton Charlemagne? - torturava-o. - Ou um Clicquot
magnum?
- Só os bruxos cavalgam hienas - gritou Craig, sem que lhe saísse um som da
garganta. - Sempre soube que era um deles...
Ashe soltou uma risada maliciosa, esporeou a hiena atirando para o ar o
manuscrito, e saiu galopando. As folhas brancas flutuaram para o solo como
plumas e, quando ajoelhou-se para catá-las, transformaram-se em punhados de
terra. Não conseguiu levantar-se e Sally-Anne ajoelhou-se a seu lado, abraçando-
o, enquanto a noite descia.
Ao acordar de manhã, não conseguiu despertá-la. Sally-Anne roncava de boca
aberta.
De joelhos, abriu um buraco para fazer uma improvisada destilaria solar. O
trabalho era lento, apesar do solo macio e friável. Laboriosamente, ainda colheu
um punhado da vegetação esparsa. Não parecia haver qualquer vestígio de umidade
nas plantas fibrosas quando as picou bem miúdo com a baioneta e colocou no fundo
do buraco.
Cortou a parte de cima do cantil de alumínio e colocou-o bem no centro do
buraco. Precisou fazer um grande esforço de concentração para executar aquelas
tarefas simples. Cobriu tudo com plástico e prendeu as bordas com terra. Colocou
cuidadosamente uma bala no centro da cobertura, diretamente acima da cúpula de
alumínio.
Arrastou-se para junto de Sally-Anne e sentou-se, protegendo-lhe o rosto do Sol.
- Tudo vai dar certo - disse-lhe. - Vamos encontrar logo a estrada. Estamos
perto...
Não percebeu que não lhe saía qualquer som da garganta e que ela não seria
capaz, de qualquer maneira, de ouvi-lo.
- Aquele merdinha do Ashe é um mentiroso. Você vai ver, vou terminar o livro.
Vou pagar o que devo. Vamos vendê-lo para o cinema... Vou comprar King's Lynn.
Tudo vai ficar bem. Não se preocupe, querida.
Esperou até o Sol ficar bem alto, contendo a impaciência, e, ao meio-dia, abriu
a destilaria improvisada. O Sol batendo no plástico subira a temperatura dentro
do buraco quase ao ponto de ebulição. A evaporação das plantas picadas
condensara-se no lado de dentro do plástico e escorrera pela bala e, de lá, para
a cuia de alumínio.
Conseguira uns duzentos e cinqüenta gramas. Tomou-a entre as mãos, tremendo tão
violentamente que quase a derramou. Tomou um pequeno gole e ficou com a água na
boca. Estava quente, mas tinha um gosto delicioso e teve de usar de toda a força
de vontade para não engoli-la.
Inclinou-se e colocou a boca sobre os lábios escurecidos e sangrentos de Sally-
Anne, injetando o líquido gentilmente entre eles.
- Beba, minha querida. Beba. - Descobriu que estava rindo estupidamente enquanto
a via engolir com esforço.
Passou o precioso fluido da própria boca, umas poucas gotas de cada vez, para a
dela, que engolia cada vez mais facilmente. Guardou o último gole para si e
deixou-o escorregar pela garganta. Subiu-lhe à cabeça como bebida alcoólica e
ficou sentado, com um sorriso estúpido nos lábios inchados, enegrecidos e
rachados, com os arranhões do rosto cobertos de crostas e os olhos injetados
cheios de secreção ressequida.
Refez a destilaria improvisada e deitou-se ao lado de Sally-Anne. Protegeu-lhe o
rosto com um pedaço rasgado da camisa e sussurrou:
- Tudo bem. Vamos encontrar socorro logo. Não se preocupe, meu amor...
Mas sabia que era o último dia. Não podia mais mantê-la viva por outro. Seria o
Sol ou os homens da Terceira Brigada, mas amanhã estariam mortos.
Ao PÔR-DO-SOL, conseguiu outra meia cuia de água destilada e, depois de beberem,
caíram num sono pesado e letárgico nos braços um do outro.
Algo acordou Craig, e por um momento pensou que era o vento na vegetação.
Sentou-se com dificuldade e tentou prestar atenção, sem saber se ainda estava
com alucinações ou se realmente ouvira aquele ruído. Viu que já estava
amanhecendo, e o horizonte era uma nítida linha negra abaixo da cortina de
veludo do céu.
Abruptamente, o som ficou mais nítido e o reconheceu: o ruído inconfundível de
um motor de quatro cilindros de um Land-Rover. A Terceira Brigada não abandonara
a caçada. Continuavam incansáveis, como hienas com o cheiro de sangue nas
narinas.
Viu os faróis do outro lado do deserto, pálidos raios que oscilavam enquanto os
carros corriam pelo terreno irregular. Tentou pegar o AK 47, mas não o achou.
Ashe Levy devia tê-lo roubado e carregado com ele no lombo da hiena, pensou com
amargor.
- Nunca confiei naquele filho da mãe.
Olhou desesperançado para as luzes que se aproximavam, onde se via dançar uma
figurinha, um homúnculo amarelo. Puck, pensou, fadas. Nunca acreditei nelas. Não
diga isso... quando se fala isso, morre uma delas. Não gosto de matar fadas. Eu
acredito nelas. Sua mente misturava fantasia com instantes de lucidez.
De repente, reconheceu o homenzinho seminu; era um bosquímano, um pigmeu do
deserto. Um rastreador que a Terceira Brigada estava usando para caçá-los. Só um
bosquímano teria podido seguir-lhes o rastro a noite toda, olhando a pista à luz
dos faróis.
As luzes os iluminaram como um holofote de teatro, e Craig levantou a mão para
proteger os olhos. A luz era tão brilhante que os machucava. Na outra, estava
com a baioneta escondida nas costas.
- Pego um deles - disse para si mesmo. - Um deles vai comigo.
O Land-Rover parou a pequena distância. O rastreador pigmeu estava parado perto,
tagarelando em sua estranha língua. Craig ouviu a porta do carro abrir-se por
trás das luzes cegantes e um homem veio em direção a eles. Reconheceu-o
instantaneamente: o general Peter Fungabera. Parecia um gigante enquanto
avançava para onde estava estendido.
- Obrigado, meu Deus - rezou Craig -, obrigado por tê-lo trazido até aqui antes
que eu morresse - e agarrou firme a baioneta. Reuniu as últimas forças, e o
general Fungabera curvou-se. Agora, na garganta, pensou e fez um grande esforço.
Mas nada aconteceu. Os braços já não respondiam ao comando. Estava liquidado,
não havia mais nada a fazer.
- Devo informá-lo de que está preso por ter entrado ilegalmente na República de
Botsuana, senhor - disse o general Fungabera, que mudara de voz. Falava em tom
gentil, profundo e atencioso, num inglês de sotaque carregado.
Viu que estava usando um uniforme de sargento da polícia de Botsuana. Ele não me
engana, pensou, o canalha é cheio de truques.
- O senhor tem sorte - continuou o homem, ajoelhando-se ao seu lado. - Nós
descobrimos o ponto em que cruzaram a estrada. - Segurava um cantil que lhe
estendeu. - Estamos seguindo-os desde as três horas de ontem.
A água doce e fresca escorreu-lhe pelo queixo. Deixou cair a baioneta e agarrou
o cantil com as duas mãos. Queria engolir tudo de uma vez só, queria afogar-se
nela. Era tão maravilhoso que os olhos encheram-se de lágrimas.
E, através delas, viu o escudo da polícia de Botsuana na porta aberta do Land-
Rover.
- Quem? - Olhava para Peter Fungabera, mas nunca vira aquele rosto antes. Era
uma cara larga e de nariz achatado, com uma expressão preocupada, como a de um
buldogue amigável.
- Quem? - tornou a perguntar em voz rouca.
- Por favor, não fale, temos que levar o senhor e a moça para o hospital de
Francistown rapidamente. Muita gente morre no deserto. Tiveram muita sorte.
- Não é o general Fungabera - sussurrou. - Quem é você?
- Polícia de Botsuana, patrulha de fronteira. Sargento Simon Mafekeng, às suas
ordens, senhor.
Quando menino, antes da grande guerra patriótica, o coronel Nikolai Bukharin
acompanhava o pai nas caçadas de lobos, perseguindo as alcateias que
aterrorizavam a remota aldeia em que viviam nos altos Urais durante os longos e
duros meses de inverno. Naquelas expedições nas vastas e desoladas florestas de
taiga haviam alimentado nele uma profunda paixão pela caça. Gostava da solidão
de lugares selvagens e da alegria primitiva de confrontar todos os sentidos
contra um animal perigoso. Visão, audição, tato e o extraordinário sentido do
caçador nato que lhe permitia antecipar os desvios e evasões da presa - tudo
isso o coronel ainda possuía, apesar de ter sessenta e dois anos. Junto a uma
memória para fatos e rostos quase computadorizada, haviam-lhe permitido ser
excelente em seu trabalho e o elevara à posição de chefe de seu departamento no
Sétimo Comissariado onde caçava o mais perigoso dos animais - o homem.
Quando caçava javalis e ursos nas grandes propriedades reservadas à recreação
dos altos oficiais da GRU e da KGB, causava espanto nos companheiros e guarda-
caças por troçar dos tiros dados em esconderijos preparados e por ir a pé
sozinho para a mata mais densa. A sensação de grande perigo físico satisfazia
alguma necessidade profunda nele.
Quando a missão em que se achava atualmente empenhado passara ao seu escritório
na sede central da praça Dzerzhinsky, reconhecera-lhe imediatamente a
importância e assumira-a pessoalmente. Com muito cuidado, aquele primeiro
potencial foi sendo gradualmente realizado, e quando chegara a hora de
encontrar-se face a face com o elemento em questão, e no terreno onde
manobrariam, escolhera o disfarce que mais lhe agradava.
Os russos, especialmente os de alta hierarquia, eram objetos de suspeitas hostis
na nova República do Zimbábue. Durante a chimurenga, a guerra de independência,
a Rússia escolhera o partidário errado e dera apoio a Joshua Nkomo do ZIPRA - a
facção matabele revolucionária. No que dizia respeito ao governo de Harare, os
russos eram os novos inimigos colonialistas, enquanto a China e a Coréia do
Norte eram os verdadeiros amigos da revolução.
Por essas razões, o coronel Bukharin entrara em Zimbábue com um passaporte
finlandês e um nome falso. Falava essa língua fluentemente, assim como cinco
outras, inclusive inglês. Precisava de um disfarce para que pudesse deixar a
cidade de Harare, onde cada movimento seu era vigiado, e ir para uma região
selvagem e despovoada onde pudesse encontrar-se com a pessoa que era o centro
dessa operação sem receio de vigilância.
Apesar de que muitas repúblicas africanas, sob pressão do Banco Mundial e do
Fundo Monetário Internacional, houvessem proibido a caça de grandes animais, o
Zimbábue ainda concedia licenças para que caçadores profissionais operassem seus
sofisticados safáris nas "áreas de controle de caça", já que captavam moeda
estrangeira em quantidade para a abalada economia do país.
O coronel divertia-se em posar como um próspero comerciante de madeira de
Helsinki e satisfazer seu amor às caçadas daquela maneira decadente reservada
quase exclusivamente aos aristocratas financeiros do sistema capitalista.
Naturalmente, a verba reservada para essa operação não poderia custear tal
extravagância. Mas o general Peter Fungabera, o motivo da operação, era um homem
rico e ambicioso. Não criara qualquer dificuldade quando Bukharin sugerira que
usassem um safári para encobrir o encontro e nem que lhe fosse dada a honra de
ser o anfitrião, mesmo que isso lhe custasse mil dólares por dia.
Parado no meio da pequena clareira naquele momento, o coronel olhava para o
homem em questão. Havia ferido deliberadamente com um tiro o búfalo que caçavam.
Era um excelente atirador com pistola, fuzil e espingarda, e a distância fora de
cerca de vinte e cinco metros. Se quisesse, poderia ter acertado bem no centro
do olho escuro e brilhante do animal, mas preferira atirar da barriga, a um
palmo dos pulmões para não lhe tirar o fôlego, e não afetar os quartos
traseiros, tornando mais lento o ataque.
Era um exemplar maravilhoso, com enormes chifres negros. Era um troféu que
poucos poderiam igualar e, como fora o primeiro a sangrá-lo, seria seu, não
importava quem desse o tiro de misericórdia. Sorriu para Peter Fungabera
enquanto servia vodca na tampa de prata de um frasco de bolso.
- Na Zdorovye! - brindou-o, e engoliu a bebida sem pestanejar, tornando a encher
a tampinha e oferecendo-a a ele.
Peter vestia um uniforme impecavelmente passado, com o nome preso ao peito e um
lenço de seda cáqui ao pescoço, mas estava de cabeça descoberta para que a
insígnia não brilhasse à luz do Sol e alertasse a presa.
Aceitou a vodca e olhou para o russo, tão alto quanto ele, mas ainda mais
esbelto, e ereto como um homem trinta anos mais jovem, olhos eram de um azul
particularmente pálido e cruel. O rosto, cortado de cicatrizes de guerra e
lutas, parecia uma paisagem lunar em miniatura. O crânio estava raspado e os
vestígios de cabelo que o cobriam eram prateados e luziam ao sol como fibras de
vidro.
Peter Fungabera gostava daquele homem. Gostava da aura de poder que emanava dele
como se vestisse um manto de imperador, da crueldade inata que irradiava quase
como um africano e que compreendia perfeitamente. Gostava de sua tortuosidade,
das camadas superpostas de mentiras, verdades e meias verdades que acabavam por
ficar indistintas. Sentia-se excitado pela sensação de perigo emanada dele que
era quase como um odor. Somos da mesma raça, pensou, ao levantar a tampa de
prata e devolver o brinde, tomando a bebida forte de um só gole, respirando
cuidadosamente para não demonstrar qualquer dificuldade.
- Bebe como um homem de verdade - admitiu Nikolai Bukharin. - Vamos ver se
também sabe caçar como um.
Peter adivinhara corretamente: tanto a vodca como o búfalo eram testes. Encolheu
os ombros para demonstrar indiferença, e o russo fez sinal ao caçador
profissional que estava a distância respeitosa para que se aproximasse.
Era um branco nascido no Zimbábue, já perto dos quarenta anos, vestido
adequadamente para a função com um colete cáqui atravessado sobre o peito por
cartucheiras e um chapéu de abas largas. Usava uma barba curta e encaracolada e
tinha no rosto uma expressão infeliz, como convinha a um homem que estava
prestes a seguir a pista de um búfalo ferido dentro da espessa mata ribeirinha.
- O general Fungabera vai usar o .458 - disse o coronel, e o caçador concordou
com ar lúgubre. Como aquele desgraçado conseguira errar um tiro daqueles? Até
aquele momento atirara como um campeão. Jesus, aquelas moitas pareciam realmente
traiçoeiras. O caçador conteve um estremecimento e estalou os dedos para o
carregador de armas número dois para trazer o outro fuzil pesado.
- Espere aqui com os carregadores - disse o russo em tom seco.
- Mas, senhor, não posso deixá-los continuar sozinhos. Perderia a minha licença.
Não é possível! - protestou o caçador.
- Já basta - disse o coronel Bukharin.
- Mas, o senhor não compreende...
- Eu já disse, basta! - O russo nunca levantava a voz, mas aqueles olhos pálidos
silenciaram o homem mais moço. Descobriu que tinha mais medo dele do que de
perder a licença de caça ou do búfalo ferido. Calou-se e foi embora grato.
O russo pegou o .458 da mão do carregador, abriu-o para verificar se estava
carregado com balas de ponta macia e estendeu-o a Fungabera, que o segurou, com
um ligeiro sorriso, sopesou-o e estendeu-a de volta ao empregado. O coronel
levantou uma sobrancelha e sorriu também, um sorriso de zombaria temperado de
desdém.
Peter falou autoritariamente com o carregador em shona:
- Eh, he, mambo.
O homem correu e pegou outra arma com os companheiros, trazendo-a de volta e
batendo as mãos discretamente para demonstrar respeito.
Peter sopesou a nova arma nas mãos. Era uma lança assegai curta. O cabo era de
madeira recoberta com fios de cobre e a lâmina tinha uns sessenta centímetros de
comprimento por uns dez de largura. Peter passou-a cuidadosamente nos pêlos da
mão para experimentar-lhe o corte e, deliberadamente, tirou a jaqueta, as calças
e botas.
Vestido apenas com um short verde-oliva, e segurando a assegai, disse:
- Esta é a maneira africana, coronel. - O russo já não sorria mais. - Mas não
espero que um homem de sua idade cace da mesma maneira - desculpou-se
cortesmente. - Pode usar o fuzil, se quiser.
O russo concordou, aceitando a troca. Perdera daquela vez, mas queria ver como
aquele mujique preto se sairia da fanfarronada, e olhou os rastros. As marcas
das patas eram enormes e as gotas de sangue estavam tingidas pelas fezes
amareladas dos intestinos rompidos.
- Vou liderar a pista - disse -, e você vigia a aparição dele.
Saíram caminhando em passo descansado, com o russo cinco passos à frente,
curvado atentamente sobre os rastros. Peter Fungabera seguia atrás, com a
assegai à altura das coxas, espiando de um lado para outro, vigiando as moitas
com um olhar treinado e rítmico, não esperando ver o animal todo, mas apenas
pequenos sinais, como o brilho do focinho úmido ou a ponta de um chifre.
A vinte passos de distância, penetraram nos arbustos. A vegetação verde-escura
parecia uma estufa e a umidade era pesada. O ar cheirava a folhas decompostas
que abafavam o ruído dos passos. O silêncio era opressivo e o raspar de um galho
espinhento nas botas do russo soou alto. O suor ensopava-lhe a camisa nas costas
e brilhava como gotas de orvalho no pescoço. Peter podia ouvir a respiração
profunda e difícil do russo; sabia instintivamente que não era medo o que
sentia, mas a excitação saturante do caçador.
Peter Fungabera não compartilhava dela. Havia nele uma frieza que substituía a
excitação. Fora treinado para isso durante a chimurenga, a guerra de
independência. Aquela caçada com a as segai era necessária apenas para
impressionar o russo, e com os sentimentos anestesiados pela frieza Fungabera
preparava-se. Sentia os músculos retesados e a tensão dos nervos crescer até
transformar-se numa flecha pronta a disparar.
Mantendo apenas uma atenção ligeira na mata, que ficava no caminho dos rastros,
concentrava-se nos flancos. O animal que caçavam era o mais astuto entre as
presas perigosas africanas, exceto, talvez, o leopardo. Mas tinha a força bruta
de cem deles. O leão rugia antes de atacar, o elefante só podia ser detido com
balas de grosso calibre no peito, mas o búfalo do Cabo avançava em silêncio e
havia uma única coisa capaz de deter-lhe o ataque: a morte.
Uma grande mosca azul pousou nos lábios de Fungabera e penetrou-lhe em uma
narina, mas estava tão concentrado que não a sentiu ou afugentou.
O russo parou, observando a mudança nos rastros. A marca dos cascos e a poça de
sangue sujo de fezes indicavam que o búfalo parara ali, depois da fuga
desordenada. Peter Fungabera podia imaginá-lo, parado, maciço e negro, farejando
os caçadores, a dor do ferimento espalhando-se nos intestinos e as fezes
escorrendo incontrolavelmente. Ficara imóvel, escutando as vozes, e o ódio e a
raiva tinham começado a ferver. Ali começava a fúria assassina, com a cabeça
abaixada, continuara, sustentado apenas pela raiva.
O russo olhou para trás, para Peter, e não precisaram trocar palavra.
Continuaram avançando juntos.
O animal comportava-se instintivamente: tudo o que fizera fora feito vezes sem
conta pelos antepassados. À primeira fuga desordenada depois do ferimento
seguiu-se a parada para escutar e espiar, a recuperação das forças e a marcha
mais pausada, virando-se contra a leve brisa para farejar os caçadores, e a
grande cabeça espiando de lado a lado ao começar a busca do ponto de ataque,
tudo parte de um padrão ancestral.
O animal atravessou uma clareira estreita, meteu a cabeça pela vegetação
lustrosa e verde no lado mais afastado, deixando-a suja de sangue, e continuou
ainda por cinqüenta metros, começando em seguida a fazer um círculo de volta.
Movia-se com extrema cautela, dando um passo de cada vez por entre as
trepadeiras e ramos, até voltar à clareira.
Parou na borda mais afastada da clareira, com o corpo oculto pela vegetação
densa, e uma terrificante imobilidade apossou-se dele. Deixou as moscas se
banquetearem na ferida aberta sem estremecer ou balançar a cauda. Não moveu as
orelhas grandes e arredondadas, mas forçou-as a ficar na escuta. Nem os olhos
piscavam enquanto espiava a trilha sangrenta à espera dos caçadores.
O russo penetrou com cautela na clareira, olhando para os ramos sujos de sangue
na parte mais afastada e onde se percebia a passagem de um corpo maciço pela
floresta que ficava por trás. Começou a avançar com cuidado, seguido por
Fungabera, que movia-se como um dançarino, o corpo reluzente de suor e os
músculos rijos do peito e dos braços ondulando ao menor movimento.
Viu o olho do búfalo, que rebrilhou como uma moeda nova na luz, e imobilizou-se.
Estalou os dedos e o russo ficou imóvel também. Fungabera, sem muita certeza do
que via, olhou para o local exato de onde viera o brilho - a uns trinta metros à
esquerda, se o animal tivesse dado a volta à clareira.
Piscou os olhos e a imagem ficou subitamente nítida. Não via apenas um olho, mas
a curva de um chifre tão imóvel que poderia parecer um galho, e as marcas da
bossa na testa; tornou a fixar os olhos - era como uma visão do inferno.
O búfalo atacou. A floresta abriu-se diante de sua fúria, ramos partiram-se, as
folhas estremeceram como que atingidas por um furacão e irrompeu na clareira.
Vinha meio de lado, uma manobra falsa mas característica, que já enganara muitos
caçadores até a súbita arrancada para a frente.
Parecia impossível que um animal tão grande pudesse mover-se com aquela
velocidade. Era corpulento e alto, com as costas cheias de lama seca do banhado
e de cicatrizes causadas por espinhos e garras de leões.
a saliva da mandíbula aberta e lágrimas escorriam das faces cabeludas. Um homem
não conseguiria rodear-lhe o pescoço com os braços ou medir a largura dos
chifres com eles estendidos. Das dobras de pele da garganta pendiam pencas de
carrapatos como cachos de uva e o cheiro bovino e rançoso empestava a floresta
quente.
Avançou, majestoso em sua fúria assassina, e Peter Fungabera foi lhe ao
encontro. Passou pelo russo precisamente quando o coronel levantava o fuzil,
colocando-se à frente e forçando-o a levantar o cano da arma para cima. Peter
movia-se como um espectro da floresta escura, cruzando com o animal no ângulo
oposto ao ataque lateral, desequilibrando-o; o búfalo tentou chifrá-lo como faz
um lutador de boxe tentando golpear quando se afasta, sem coordenação ou visão;
Peter esquivou-se apenas com a parte superior do corpo, deixando que a ponta do
chifre quase lhe raspasse as costelas e tornando a esquivar-se quando o animal
levantou a cabeça.
Naquele instante, o búfalo ficou desprotegido do queixo ao pescoço e Fungabera
colocou toda a força do corpo e o impulso da corrida na lâmina da assegai, que
penetrou nele, com um ruído de sucção, engolida pela carne viva; os dedos
cerrados em torno do cabo mergulharam atrás da lâmina na ferida, e o sangue
jorrou, ensopando-o até os ombros. Soltou a arma e girou rapidamente, afastando-
se, enquanto o búfalo corcoveava com a longa lâmina enterrada no peito. Tentou
segui-lo, mas parou de súbito, com as patas dianteiras paralisadas, fixando o
homem nu com os olhos que estavam ficando mortiços.
Peter Fungabera levantou os dois braços graciosamente diante dele.
- Ah, tu que fazes a terra tremer! - disse em shona. - Ah, tu, trovão dos céus!
O animal deu dois passos vacilantes e algo rompeu-se dentro dele. O sangue
jorrou pelas narinas escancaradas, abriu a bocarra e mugiu; brotou-lhe uma
hemorragia da garganta numa cascata espumosa e brilhante, encharcando-lhe o
peito. Cambaleou, lutando para equilibrar-se.
- Morre, ó filho dos deuses negros! - desafiou-o. - Sente o aÇo de um futuro
rei, e morre!
O animal desabou, fazendo voar a terra em torno com o impacto.
Peter Fungabera foi até a enorme cabeça onde o olhar se apagava, ajoelhou-se e,
juntando as mãos, recolheu o sangue quente escorria da boca escancarada,
bebendo-o como se fosse vinho. O sangue escorria-lhe dos braços e pingava do
queixo, e Peter riu um som que fez gelar o sangue nas veias até do frio russo.
- Bebi de teu sangue vivo, ó grande búfalo. Agora, a tua força é minha! -
gritou, enquanto o animal estrebuchava no espasmo final da morte.
PETER FUNGABERA tomara um banho de chuveiro e trocara as roupas, vestindo um
uniforme de gala, com calças negras debruadas por finas listas laterais de seda
vermelha. A jaqueta curta era no mesmo tom vermelho com lapelas de seda negra. A
camisa branca estava engomada e usava uma gravata-borboleta e uma dupla fileira
de condecorações em miniatura.
Os empregados do acampamento haviam arrumado uma mesa sob os galhos frondosos de
uma árvore mhoba-hoba, na borda da campina aberta e gramada, longe do
acampamento principal. Haviam colocado nela uma garrafa de uísque Chivas Regai,
outra de vodca, um balde de gelo e dois copos de cristal.
O coronel Nikolai Bukharin sentava-se em frente a ele. Vestia uma longa e frouxa
camisa de algodão por fora das calças cossacas, com um cinturão por cima, e
calçava botas de pelica macia. Inclinou-se para encher os copos e passou um a
Peter.
Daquela vez, não houve nenhum exibicionismo. Beberam devagar, contemplando o céu
africano ficar todo lilás e dourado. O silêncio em que estavam era o acordo mudo
de dois homens que haviam arriscado a vida juntos e se julgado valorosos, um
companheiro com quem se podia morrer ou um adversário para se lutar até a morte.
Por fim, o coronel colocou o copo em cima da mesa.
- E então, meu amigo, diga-me o que deseja.
- Quero esta terra - disse Peter com simplicidade.
- Toda ela? - perguntou o coronel.
- Toda ela.
- Não apenas o Zimbábue?
- Não apenas o Zimbábue.
- E nós vamos ajudá-lo a fazer isso?
- Sim.
- E em troca?
- Minha amizade.
Sua amizade até a morte? - sugeriu, sarcástico, o coronel.
Ou só até obter o que deseja e encontrar novos amigos?
Peter sorriu. Falavam a mesma linguagem, compreendiam-se bem. Que sinais
palpáveis desta eterna amizade nos daria? - insistiu o russo.
Um pobre e pequeno país como este - respondeu Peter, dando de ombros -, apenas
alguns minerais estratégicos: níquel, cromo, titânio, berilo e alguns quilos de
ouro.
Serão úteis - concordou sobriamente o russo.
E então, quando me tornar Monomatapa de Zimbábue, meus olhos vão ficar
inquietos, naturalmente. ..
- Naturalmente. - O russo observou-lhe os olhos. Não gostava de negros, esse
preconceito racista era comum na Rússia; não gostava nem da cor nem do cheiro
deles, mas aquele!
- Posso voltá-los para o Sul - disse Fungabera com suavidade, e o coronel
Bukharin escondeu a satisfação por trás da expressão melancólica. Aquele era
diferente!
- Na direção para onde seus olhos sempre se dirigiram - continuou Peter e o
russo poderia ter rido alto.
- E o que verá ao Sul, camarada general?
- Um povo escravizado e pronto para a emancipação.
- E que mais?
- Verei o ouro de Witwatersrand e os campos do Estado Livre, os diamantes de
Kimberley, o urânio, a platina, a prata, o cobre, em resumo, um dos maiores
tesouros desta terra.
- Sim? - perguntou o russo com prazer. Este é ligeiro, tem a coragem e o cérebro
necessários, pensou.
- Verei uma base que dividirá o mundo ocidental, uma base que controle tanto o
Atlântico Sul quanto os oceanos índicos, que ficará nas rotas de petróleo entre
o golfo Pérsico e a Europa, entre o golfo e as Américas.
O russo levantou a mão.
- Aonde o levarão estas idéias?
- Será meu dever fazer com que esta terra ao Sul seja elevada ao seu verdadeiro
lugar na comunidade das nações, com a tutela e a proteção dos maiores campeões
pela liberdade, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
O russo concordou, ainda o olhando nos olhos. Sim, esse homem negro enxergava o
objetivo por trás de tudo. O Sul era o grande prêmio, mas, para consegui-lo,
precisavam estrangulá-lo. Já tinham Moçambique a Leste, a Oeste, Angola era
deles e logo a Namíbia seria também. Precisavam apenas do Norte para isolá-lo. E
o Norte era o Zimbábue, como o dedo do estrangulador na traquéia, e aquele homem
poderia entregá-lo a eles.
O coronel inclinou-se para a frente na cadeira de lona e começou eficientemente
a tratar de negócios.
- Oportunidade?
- Caos econômico, guerra intertribal e a queda do governo central. - Peter
Fungabera contou-os nos dedos.
- O atual governo o está ajudando muito criando a própria falência econômica -
observou o russo -, e você está fazendo um esplêndido trabalho alimentando os
ódios tribais.
- Obrigado, camarada.
- Entretanto, os camponeses têm que passar um pouco de fome antes que fiquem
maleáveis...
- Estou fazendo pressão no Parlamento para a nacionalização dos ranchos e
fazendas de propriedade dos brancos. Sem os fazendeiros brancos, posso lhe
prometer uma boa crise - sorriu Fungabera.
- Ouvi dizer que já começou. Parabéns pela aquisição de sua propriedade, King's
Lynn. É esse o nome?
- É um homem bem-informado, coronel.
- Dou-me a bastante trabalho para garantir isso. Mas, quando chegar o momento de
assumir a direção do Estado, que espécie de homem o povo seguirá?
- Um homem forte - respondeu Peter sem hesitação. - Um cuja implacabilidade
tenha sido demonstrada.
- Como a sua, durante o chimurenga, e mais recentemente em Matabeleland.
- Um homem de carisma e presença, e bem conhecido do povo.
- As mulheres cantam louvores em sua honra nas ruas de Harare, não há um único
dia em que não apareça na televisão ou que seu nome não esteja nas primeiras
páginas dos jornais.
- Um homem que pode contar com a força.
A Terceira Brigada - concordou o russo -, e a bênção da URSS. Contudo - e fez
uma pausa significativa -, existem duas festões, camarada general.
- Sim?
A primeira é uma questão desagradável e mercenária para colocada entre homens
como nós: dinheiro. Meus superiores tão ficando inquietos. Nossas despesas
começaram a exceder consideravelmente os carregamentos de marfim e produtos
animais que os mandou... - Levantou a mão novamente para impedir uma
interrupção. Era a mão de um velho, cheia de manchas senis e de veias. - Sei que
devíamos fazer estas coisas apenas por amor à liberdade e que dinheiro é uma
obscenidade capitalista, mas nada é perfeito neste mundo. Em resumo, camarada
general, está chegando ao limite do crédito que lhe foi concedido por Moscou.
- Compreendo - concordou Fungabera. - Qual é a segunda questão?
- A tribo matabele. São um povo combativo e difícil. Sei que foi obrigado a
fomentar a inimizade, causar dissensão e atritos e lançar sobre o governo atual
a desaprovação das potências ocidentais com sua campanha em Matabeleland. Mas o
que acontece depois? Como vai controlá-los ao assumir o poder?
- Minha resposta às duas questões é um único nome - respondeu Fungabera.
- E qual é ele?
- Tungata Zebiwe.
- Ah, sim! Tungata Zebiwe. O líder matabele. Você mandou prendê-lo e agora
presumo que já tenha sido liquidado.
- Estou mantendo-o em grande segredo e segurança em um dos meus centros de
reabilitação perto daqui.
- Explique-se melhor.
- Primeiro, o dinheiro.
- Pelo que sabemos, Zebiwe não é um homem rico - objetou o russo.
- Tem o segredo de uma fortuna que pode facilmente exceder duzentos milhões de
dólares americanos.
O russo levantou a sobrancelha em uma expressão de descrença que Peter estava
começando a conhecer bem e que o irritava.
- Diamantes - disse.
- A mãe Rússia é um dos maiores produtores do mundo.
O russo fez um gesto depreciativo.
- Não são diamantes industriais ou malformações negras, mas gemas de primeira,
pedras grandes, enormes, algumas das mais belas já mineradas no mundo.
- Se for verdade... - O russo ficou pensativo.
- É verdade! Mas não vou continuar a explicação. Não ainda.
- Muito bem. Pelo menos, posso prometer algo aos sangues-sugas do nosso
Departamento de Tesouro. E a segunda questão: os matabele. Não pode estar
planejando exterminá-los, homens, mulheres e crianças...
Peter Fungabera negou, pesaroso.
- Não, apesar de que esta talvez fosse a melhor solução. A América e a Grã-
Bretanha não consentiriam. Não, minha resposta é novamente Tungata Zebiwe.
Quando me apoderar do país, ele reaparecerá. Voltará de entre os mortos. A tribo
matabele vai ficar louca de alegria e alívio. Vão segui-lo, adorá-lo e eu o
farei meu vice-presidente.
- Ele o odeia. Você o destruiu. Se libertá-lo, vai se vingar.
- Não. - Balançou a cabeça. - Vou mandá-lo para vocês. Para suas clínicas
especiais para casos difíceis. As Instituições onde um homem mentalmente doente
pode ser tratado com drogas e outras técnicas para torná-lo racional e razoável
novamente.
Daquela vez, o russo começou a rir e serviu-se de outra vodca, sacudindo-se com
a risada. Quando olhou para Peter, havia pela primeira vez respeito nos olhos
pálidos.
- À sua saúde, Monomatapa de Zimbábue, que possa reinar mil anos!
Colocou o copo sobre a mesa e virou-se para contemplar a grande pradaria até o
distante lençol d'água. Uma manada de zebras aproximara-se para beber e estava
nervosa e inquieta, pois os leões costumavam ficar de tocaia à beira d'água.
Finalmente, entraram até os joelhos em fileira e começaram a matar a sede em
uníssono. Formavam uma frisa superposta de cabeças idênticas como uma infinidade
de imagens no espelho até que o sentinela resfolegou, alarmado, e a imagem na
água explodiu em formas a todo galope.
- O tratamento de que fala é drástico. - O coronel Bukharin ficou observando a
manada de zebras desaparecer na floresta.
Alguns pacientes não sobrevivem a ele. E os que conseguem... - procurou a
palavra adequada - ficam alterados.
- Suas mentes são destruídas - disse-lhe Peter.
- Para encurtar, sim - concordou o coronel.
- Preciso do corpo dele, e não de seu cérebro. Preciso de uma marionete, não de
um ser humano.
- Podemos providenciar isso. Quando vai enviá-lo para nós?
- Primeiro, os diamantes - retrucou Peter.
- Claro, primeiro os diamantes. Quanto tempo vai levar?
- Não muito - Peter encolheu os ombros.
- Quando estiver preparado para isso, mando-lhe um médico com as medicações
adequadas. Podemos tirá-lo do país pela mesma rota do marfim: Air Zimbabué até
Dar-es-Salaam e um dos nossos cargueiros de lá a Odessa.
- De acordo.
- Disse que está preso perto daqui? Gostaria de vê-lo.
- Será prudente?
- Por favor, faça-me a vontade! - Vindo do coronel Bukharin era mais uma ordem
do que um pedido.
Tungata Zebiwe estava em plena luz crua do meio-dia com o rosto voltado para uma
parede caiada de branco que refletia brutalmente os raios do Sol. Estava lá
desde antes do amanhecer, quando ainda havia geada no capim crestado da
extremidade do campo.
Estava completamente nu, assim como os dois homens que o ladeavam. Estavam tão
magros que viam-se todas as costelas em relevo e as vértebras das colunas
pareciam contas de rosário nas costas. Tungata tinha os olhos entrecerrados para
evitar o reflexo da luz no muro, mas concentrava-se em uma marca na parede para
combater o efeito da vertigem que já derrubara mais de uma vez os homens a seu
lado. Só as chicotadas dos guardas os forçara a ficarem novamente de pé. Ainda
oscilavam e cambaleavam.
- Coragem, meus irmãos - sussurrou Tungata em sindebele. - Não deixem que esses
cães shona os vejam derrotados.
Estava determinado a não fraquejar e olhava a marca do muro, feita por uma bala
e pintada por cima. Tornavam a caiá-lo depois de cada execução, eram meticulosos
a esse respeito.
- Amanzi - disse em voz rouca o homem à direita - Água!
- Não pense nisso - ordenou-lhe Tungata. - Não fale nisso ou vai enlouquecer.
O calor emanava da parede em ondas palpáveis.
- Estou cego - disse o outro homem. - Não vejo mais nada. - A claridade
fulgurante cauterizara-lhe os olhos como fazia a neve.
- Não há nada para ver, exceto as caras nojentas destes macacos shona - disse-
lhe Tungata. - Agradeça por sua cegueira, amigo.
De repente, por trás deles, ouviram-se ordens bruscas gritadas em shona e o
ruído de soldados marchando através da esplanada.
- Estão chegando - sussurrou o matabele cego, e Tungata Zebiwe sentiu-se invadir
por uma enorme tristeza.
Sim, finalmente estavam vindo, e dessa vez, para ele.
Diariamente durante as longas semanas de prisão, ouvira a marcha do pelotão de
execução atravessando o campo ao meio-dia. Chegara sua vez. Não temia a morte,
mas sentia-se triste com ela porque fora incapaz de minorar o terrível
sofrimento de seu povo, porque nunca mais veria sua mulher e porque nunca lhe
daria o filho que almejara. Triste porque a vida que tanto lhe prometera
acabaria antes de dar frutos, e lembrou-se de repente de um dia, há muitos anos
atrás, quando contemplara ao lado do avô as plantações de milho ceifadas por uma
breve e furiosa tempestade.
- Todo aquele trabalho para nada! - murmurara o avô, e Tungata repetiu-lhe as
palavras enquanto mãos rudes o viravam e arrastavam até os postes de madeira
colocados diante do muro.
Amarraram-no lá e abriu os olhos. O alívio do clarão cegante era anulado pelo
pelotão de execução que o encarava.
Trouxeram os dois outros matabele; o cego caiu de joelhos, cheio de terror, e
seus intestinos esvaziaram-se involuntariamente. Os guardas riram e soltaram
exclamações de nojo.
- Levante-se! - ordenou-lhe Tungata, duramente. - Morra de pé como um verdadeiro
filho de Mashobane!
O homem conseguiu levantar-se com grande esforço.
- Caminhe até o poste - ordenou Tungata. - Fica mais para a sua esquerda.
O homem foi tateando e o encontrou, sendo amarrado lá.
Havia oito homens no pelotão de fuzilamento e o comandante era um capitão da
Terceira Brigada. Inspecionou lentamente os executores, examinando os fuzis um a
um. Fazia pequenas brincadeiras em shona que Tungata não conseguia entender e os
homens soltavam risadas como se tivessem tomado álcool ou drogas. Já tinham
feito essa espécie de trabalho antes e gostavam dele. Conhecera muitos assim
durante a guerra - o sangue e a violência tinham-se tornado um vício.
O capitão voltou ao comando e puxou do bolso um papel datilografado já bastante
surrado, e leu-o, tropeçando nas palavras, pronunciando-as mal como um garoto de
escola em um inglês incompreensível.
- Foram condenados como inimigos do Estado e do povo, e declarados
incorrigíveis. Sua sentença de morte foi aprovada pelo vice-presidente da
República do Zimbabué.
Tungata Zebiwe levantou o queixo e começou a cantar. A voz alteou-se, profunda e
bela, dominando a voz fraca do capitão shona.
As Toupeiras estão embaixo da terra, listão mortas?, perguntaram as filhas de
Mashobane.
Cantava a antiga canção guerreira dos matabele e, ao final do primeiro verso,
rosnou para os dois homens a seu lado:
- Cantem! Deixem que os chacais shona ouçam o leão matabele rugir.
E cantaram juntos:
Como a negra serpente embaixo de uma pedra, Nos alimentamos da morte com uma
presa prateada.
Diante deles, o capitão deu uma ordem, e, como um só homem, o esquadrão avançou
com o pé direito e levantou os fuzis. Tungata continuou a cantar, encarou-os em
desafio e os homens ao lado, estimulados por sua coragem, começaram a cantar com
entusiasmo. A uma segunda ordem, fizeram pontaria, mirando os três matabele nus.
Naquele momento, ouviu-se o som de outras vozes que se juntavam ao cântico de
guerra, vindas das cabanas do outro lado do terreno. Centenas de prisioneiros
cantavam com eles, repartindo o instante da morte e dando-lhes força e
consolação.
O capitão shona levantou a mão direita e, nos últimos momentos de vida, a
tristeza de Tungata desapareceu, dando lugar a um orgulho avassalador.
São homens de verdade, pensou, com ou sem mim, resistirão ao tirano.
O capitão abaixou a mão num gesto brusco e gritou o comando:
- Fogo!
Os disparos foram simultâneos. O pelotão oscilou com o coice forte dos fuzis. O
fragor fez com que Tungata se encolhesse.
Ouviu o ruído terrível de balas penetrando em carne humana, e viu pelo canto dos
olhos o safanão que levaram os dois homens como que atingidos pelos golpes de um
martelo invisível para depois tombarem. Pararam abruptamente de cantar, no
entanto, a canção ainda lhe brotava dos lábios e ele mantinha-se ereto.
Os soldados abaixaram as armas, rindo e cutucando-se como se tudo fosse uma
grande piada. Nas cabanas, a canção de guerra fora trocada por lamentos de
morte.
Virou a cabeça e encarou os homens ao lado. Haviam repartido a descarga e os
torsos estavam crivados de balas. As moscas já esvoaçavam sobre as feridas.
De repente, os joelhos de Tungata afrouxaram e sentiu que o esfíncter se
descontraía. Lutou com o corpo, odiando a própria fraqueza, e gradualmente
conseguiu controlar-se.
O capitão veio até ele e disse-lhe em inglês:
- Boa piada, hein? Uma piada e tanto! - E sorriu, satisfeito. Voltou-se em
seguida e gritou: - Tragam água, rápido!
Um dos homens trouxe uma vasilha de água clara e o capitão a pegou. Tungata
podia sentir o cheiro dela. Diziam que os pigmeus bosquímanos podem senti-la a
muitos quilómetros, mas até aquele instante, nunca acreditara nisso. Tinha o
cheiro doce de um melão recém-cortado e sentiu um espasmo na garganta, sem
conseguir tirar os olhos da vasilha.
O capitão levantou-a com as duas mãos, tomou um gole, e gargarejou alto. Em
seguida cuspiu, sorrindo para Tungata. Lenta e deliberadamente, entornou a água
no chão a seus pés. Cada gota era como um pedacinho de gelo e as células de seu
corpo as desejavam com loucura. O capitão virou a vasilha de cabeça para baixo,
deixando as últimas gotas caírem.
- Essa foi da "pesada", rapaz! - repetiu, e virou-se para gritar uma ordem aos
soldados que partiram, deixando Tungata a sós com os mortos e as moscas.
Vieram buscá-lo ao pôr-do-sol. Ao cortarem as cordas dos pulsos, gemeu sem
querer com a torrente de sangue fresco começando a circular nas mãos inchadas e
caiu de joelhos. Já não podia se suster nas pernas e tiveram que carregá-lo até
a cabana.
A peça era desnuda, exceto pela bacia que servia para colher os excrementos e
duas vasilhas no centro do assoalho de terra batida. Uma delas continha um pouco
d'água e a outra, um bolinho de milho ressequido e esbranquiçado, salgado
demais, e que o faria pagar no dia seguinte com uma sede abrasadora, mas tinha
que comer alguma coisa.
Bebeu metade da água, guardando o resto para a manhã seguinte, e estendeu-se no
solo nu. O telhado de zinco reverberava o calor acumulado durante o dia, mas
ainda tremeria de frio durante a madrugada. O corpo todo doía e a cabeça
latejava por causa do sol e da claridade ofuscante que suportara até fazê-lo
crer que rebentaria como um fruto amadurecido demais.
Fora, na obscuridade por trás da cerca, os bandos de hienas disputavam o
banquete que tinham lhe oferecido. Os gritos e grunhidos eram uma balbúrdia
alucinada de avidez, pontuada pelo barulho dos ossos esmagados pelas fortes
mandíbulas.
Apesar disso, Tungata dormia, e acordou com o som de um tropel e ordens gritadas
ao amanhecer. Tomou rapidamente o gole d'água que restava e agachou-se na bacia.
O corpo quase lhe pregara uma peça no dia anterior e não ia deixar que isso
acontecesse de novo.
A porta foi aberta bruscamente.
- Para fora, cão matabele! Fora deste canil fedorento! Levaram-no de volta ao
muro, onde já havia outros três matabele nus. Notou, sem qualquer relevância,
que haviam tornado a caiar o muro. Eram muito conscienciosos a esse respeito.
Ficou com o rosto a meio metro da superfície imaculadamente branca e preparou-se
para a jornada que o aguardava.
Executaram os três prisioneiros ao meio-dia e, dessa vez, Tungata não conseguiu
liderá-los no canto. Apesar de tentar, a garganta ficou cerrada. À tarde, a
visão fragmentava-se em momentos de escuridão e relâmpagos de luz cegante, mas,
toda vez que as pernas cediam e caía para a frente, a dor que sentia para ficar
ereto o fazia reviver.
A sede era inominável. Os momentos de escuridão começaram a ficar mais profundos
e a durar mais tempo e a dor já não conseguia revivê-lo completamente. Em um
desses momentos, ouviu uma voz.
- Meu caro amigo, isto é terrivelmente desagradável para mim.
A voz de Peter Fungabera dissipou a escuridão e deu-lhe novas forças. Lutou para
ficar ereto, levantou o rosto e esforçou-se para clarear a visão. Ao vê-lo, o
ódio o recompôs, dando-lhe nova vida.
Fungabera estava de uniforme de campanha e boina, com o bastão debaixo do braço.
Ao lado, estava um velho branco, alto e magro, que nunca vira antes. Tinha o
crânio recém-raspado, uma pele cheia de cicatrizes e os olhos, de um azul pálido
e estranho, que achou repulsivos e enregelantes como os de uma cobra.
- Lamento que não esteja vendo o camarada ministro Zebiwe em seus melhores dias
- disse Peter ao branco. - Perdeu muito peso, mas não aqui... - E com a ponta do
bastão levantou o grande e escuro órgão genital de Tungata. - Já viu alguma
coisa assim antes? - perguntou, balançando-o.
Amarrado ao poste, Tungata não podia reagir. Era a última das degradações,
aquela manipulação arrogante e o exame de suas partes íntimas.
- O bastante para três homens comuns - avaliou Peter com admiração fingida, e
Tungata e olhou com ódio, sem dizer palavra.
O russo fez um gesto impaciente e Peter concordou:
- Está com a razão. Estamos perdendo tempo.
Olhou o relógio e voltou-se para o capitão, que estava perto, aguardando junto
com o pelotão.
- Leve o prisioneiro para o forte.
Os aposentos de Fungabera na casamata do rochedo central eram espartanos, mas o
chão sujo fora recentemente varrido e respingado com água. O russo e ele
sentavam-se na mesa de cavalete que servia de escrivaninha e do outro lado havia
um banco de madeira.
Os guardas levaram Tungata para lá, mas ele desvencilhou-se e sentou-se sem
ajuda, ereto e olhando silenciosamente para os dois homens. Peter disse algo em
shona para o capitão e trouxeram um cobertor barato que foi colocado nos ombros
de Tungata. Deu outra ordem, e o capitão trouxe uma bandeja com uma garrafa de
vodca, uma de uísque, dois copos, um balde de gelo e uma jarra d'água.
Tungata não olhou para a água. Teve de usar de todo o autocontrole, mas
continuou a olhar para Peter Fungabera.
- Bem, isso é muito mais civilizado - disse Peter. - O camarada ministro Zebiwe
não fala shona, apenas o primitivo dialeto matabele, por isso usaremos a língua
comum a todos nós: o inglês.
Serviu a vodca e o uísque, e quando o gelo tilintou nos copos Tungata crispou-
se, mas continuou a olhá-lo.
- Isto é um sumário - explicou Peter. - Nosso convidado é um estudioso da
história africana. - E indicou o russo. - Leu e lembra-se de tudo o que jamais
foi escrito sobre esta terra. Enquanto que você, meu caro Tungata, descende da
casa dos Kumalo, os velhos chefes ladrões dos matabele, que durante cem anos
guerrearam e aterrorizaram os verdadeiros donos da terra, o povo mashona.
Portanto, ambos já devem conhecer algo sobre o que vou relatar.. Se isso
acontecer, peço sua indulgência. - Tomou um gole de uísque e nenhum dos outros
dois moveu-se ou falou. - É necessário voltar cento e cinquenta anos atrás -
disse Peter -, quando um jovem comandante do rei zulu Chaka, e favorito dele,
não lhe entregou os despojos de guerra. O nome dele era Mzilikazi, filho de
Mashobane, da subtribo zulu dos kumalo e tornou-se o primeiro matabele, De
passagem, é interessante notar que abrira um precedente para a tribo que ia
fundar. Em primeiro lugar, era um mestre da rapina e da pilhagem, um matador
famoso, Era, também, um ladrão, já que não entregou a Chaka sua parte dos
despojos. E Mzilizaki era um covarde, porque, quando o rei ordenou que
enfrentasse sua punição, fugiu. - Peter sorriu para Tungata. - Assassino, ladrão
e covarde. Este era Mzilikazi, o pai dos matabele, e esta descrição é adequada a
todos os membros da tribo até hoje. Assassino! Ladrão! Covarde! - repetiu os
insultos com gosto e Tungata observava-o com olhos brilhantes.
- Então, este modelo de virtudes viris, levando com ele seu regimento de
guerreiros zulu renegados, fugiu para o Norte. Atacou as tribos mais fracas pelo
caminho, levando seus rebanhos e mulheres. Esta foi a umfecane, a grande
matança. Dizem que um milhão de pessoas indefesas morreu pelas lanças assegai
dos matabele. E Mzilikazi certamente deixou atrás de si uma terra devastada, de
crânios escorchados e aldeias queimadas. Abriu caminho com o fogo da destruição
através do continente até encontrar, vindo do Sudoeste, um inimigo mais
sanguinário e mais cheio de cobiça do que ele, o homem branco, os boers. Mataram
os guerreiros gabolas de Mzili kazi como cães raivosos e ele, o covarde, fugiu
de novo, e de novo para o Norte.
Peter interrompeu a narrativa para mexer nos cubos de gelo do copo que emitiram
um tilintar suave. Tungata piscou, mas não desviou o olhar de Fungabera.
- O audaz Mzilikazi atravessou o rio Limpopo e descobriu uma terra agradável com
boas pastagens e águas claras, habitada por um povo pacífico de pastores,
descendentes de uma raça que construíra grandes cidades de pedra, um povo bonito
a quem Mzilikazi chamou com desprezo de "comedores de coisas imundas" e a quem
se referia como o "seu gado". Tratava-os assim, matando-os por esporte ou
fazendo filhos nas mulheres para dar escravos aos seus guerreiros indolentes. As
jovens de Mashona, quando ficavam núbeis, eram usadas para o prazer e serviam de
matrizes para prover mais guerreiros aos impis, aos batalhões assassinos. Mas já
sabem disso.
- Os fatos em geral, sim - concordou o velho branco. - Mas não sua interpretação
deles, o que prova que a História é uma mera propaganda escrita pelos
vencedores.
- Nunca tinha ouvido esta colocação antes - riu Peter, - E no entanto, é
verdadeira. Agora, nós, os shona, somos os derradeiros vencedores, portanto, é
nosso direito reescrevê-la.
- Continue - disse o branco. - Estou achando muito instrutivo.
- Muito bem. Em 1868, como os brancos costumam medir o tempo, Mzilikazi, esse
grande e gordo assassino debochado e doente, morreu. É divertido lembrar que
seus seguidores mantiveram seu corpo durante cinquenta e seis dias em pleno
calor de Matabeleland antes de enterrá-lo, o que fez com que fedesse tanto na
morte como fedia em vida, outro tocante costume matabele. - Esperou pelo
protesto de Tungata, que não veio.
- Foi sucedido por um de seus filhos, Lobengula, "O que é rápido como o vento",
tão gordo, sanguinário e dissimulado como o pai. Mas, quase à mesma época em que
assumiu a chefia dos matabele, foram plantadas duas sementes que logo
cresceriam, transformando-se em robustas trepadeiras que iriam sufocar e,
finalmente, provocar a queda do touro gordo de Kumalo...
Fez uma pausa dramática, como um consumado contador de histórias, e ergueu um
dedo.
- Primeiro, bem ao Sul de seus domínios devastados, os brancos acharam, num
rochedo desolado no campo, um pequeno seixo cintilante; segundo, um jovem branco
de saúde precária tomou um navio em uma ilha cinzenta bem ao Norte, à procura de
um bom clima para os pulmões fracos. O rochedo foi logo escavado pelas formigas
brancas e tornou-se um buraco de quase dois quilómetros de comprimento por cento
e vinte metros de profundidade. Os brancos o chamaram de Kimberley em homenagem
ao secretário do Exterior britânico que fechara os olhos ao roubo praticado
contra as tribos locais. O jovem branco chamava-se Cecil John Rhodes e provou
ser ainda mais dissimulado, esperto e sem princípios do que qualquer rei
matabele. Simplesmente, liquidou com os outros brancos que tinham descoberto o
rochedo de pedras brilhantes. Intimidou, subornou, roubou e bajulou até ficar
dono de tudo, e tornou-se o homem mais rico do mundo. Entretanto, a extração
dessas pedras exigia um enorme esforço físico feito por dezenas de milhares de
homens. E sempre que há trabalho duro a ser feito na África, onde o branco vai
buscá-lo?
Peter riu e deixou a pergunta sem resposta.
- Cecil Rhodes oferecia comida simples, uma arma barata e umas poucas moedas por
três anos da vida de um negro que, ignorante e ingénuo, aceitava esse salário e
fazia do patrão mais que um bilionário. Entre os negros que vieram para
Kimberley estavam os jovens amadoda matabele mandados por Lobengula. Já disse
que ele era um ladrão? As ordens que deu era para roubarem as pedras brilhantes
e as trazerem para ele. Dezenas de milhares fizeram a longa jornada para o Sul
até as escavações de diamantes e os trouxeram de volta. Os que pegavam eram os
maiores e mais brilhantes, os que apareciam mais claramente na lavagem e no
processamento. Quantos foram? Um único matabele apanhado pela polícia branca
tinha engolido 348 quilates, valendo na época três mil libras; digamos, umas
trezentas mil, atualmente. Outro, dera um corte na coxa e colocara na própria
carne um único diamante de 200 quilates. - Peter deu de ombros. - Quem pode
dizer qual seria seu valor atual? Talvez dois milhões de libras.
O branco, que estivera distante e até desinteressado durante a primeira parte do
relato, estava naquele momento atento e olhando fixamente para Fungabera.
- Esses foram uns dos poucos capturados pela polícia, mas houve milhares e
milhares deles que nunca foram apanhados. Lembrem-se, nos primeiros tempos das
escavações, quase não havia controle sobre os trabalhadores negros que iam e
vinham como queriam. Alguns ficavam uma semana e desapareciam, outros
trabalhavam os três anos completos do contrato antes de partir, mas as pedras
brilhantes iam também: nos cabelos, nas solas das botas novas, nas bocas,
estômagos, enfiadas nos ânus ou nas vaginas das mulheres. Milhares e milhares de
quilates.
Tomou mais um gole de uísque antes de prosseguir:
- Claro que não poderia durar. Rhodes introduziu o sistema de acampamentos
fechados onde os trabalhadores ficavam confinados e cercados de arame farpado
pelos três anos de contrato. Antes de partir, eram despidos e colocados de
quarentena por dez dias, durante os quais as cabeças e as partes genitais eram
raspadas e os corpos minuciosamente examinados por médicos brancos, os orifícios
cuidadosamente revistados assim como as cicatrizes recentes que, se achassem
necessário, eram reabertas a bisturi. Davam-lhes doses maciças de óleo de rícino
e colocavam telas com malhas finas nas latrinas para que os dejetos pudessem ser
lavados e processados como se fossem a mais fina das terras. Mas os matabele
eram ladrões engenhosos e ainda assim achavam meios para sair com os diamantes
dos acampamentos. O rio fora reduzido a um filete, que mesmo assim ia para o
Norte, para Lobengula.
- Existe alguma cifra relativa a esses diamantes? - perguntou o russo.
- Só podemos fazer uma estimativa. Houve um matabele chamado Bazo, o "Machado",
que saiu de Kimberley com um cinturão carregado de diamantes. Você já ouviu
falar em Bazo, filho de Gandang, caro Tungata. Era o seu trisavô. Tornou-se um
conhecido induna, um conselheiro tribal matabele, e matou centenas de mashona
indefesos durante suas depredações. Diz a lenda que o cinturão que colocou
diante de Lobengula pesava o equivalente a dez ovos de avestruz. Como um único
destes ovos tem a capacidade de vinte e quatro dos de galinha, e mesmo
descontando os exageros dessa lenda, chegamos à quantia de cinco milhões de
libras esterlinas na atual moeda inflacionária. Outra fonte diz que Lobengula
tinha cinco potes cheios de diamantes de primeira grandeza, o que significa
cinco galões ou vinte litros de diamantes, o bastante para abalar o monopólio da
organização central de vendas da De Beers. E outra história ainda fala do
khomsibile tribal que Lobengula costumava organizar para os conselheiros
tribais. Khomsibile é uma palavra sindebele que significa uma exposição ou uma
exibição - explicou Peter ao branco, e continuou: - Na privacidade da grande
cabana, o rei ficava nu e as esposas untavam-lhe o corpo inchado com gordura de
boi. Em seguida, grudavam os diamantes nela, até que o corpo todo ficasse
coberto por um mosaico de pedras preciosas, uma escultura viva recoberta por um
milhão de libras em diamantes. Tomou fôlego e continuou:
- Essa é, senhores, a resposta à pergunta. Lobengula, provavelmente, teve mais
diamantes do que jamais foi estocado em um único lugar ao mesmo tempo, a não ser
nos cofres da organização central de vendas da De Beers em Londres. Enquanto
isso, Rhodes, o homem mais rico do mundo, estava em Kimberley, obcecado pela
ideia de um império, contemplando a região norte e sonhando. Tal era a força
dessa obsessão que começou a se referir ao "meu Norte". Por fim, o tomou como
fizera com as escavações de diamantes de Kimberley, pouco a pouco. Enviou
representantes para negociar com Lobengula uma concessão para a exploração dos
minerais em seu território, que incluía a terra dos mashona. Obteve da rainha
branca da Inglaterra a aprovação para formar uma Companhia Real de
CartasPatentes e mandou, em seguida, um exército particular de homens duros e
implacáveis para ocupar essas concessões. Lobengula não esperara por nada
semelhante. Alguns homens cavando uns poucos buracos sim, mas não um exército de
aventureiros brutais. Primeiro, protestou em vão. Os brancos o pressionaram cada
vez mais até forçá-lo a cometer um erro fatal de julgamento. Lobengula, achando
que estava com a vida ameaçada, convocou seus guerreiros para uma demonstração
de força.
Sorriu para Tungata, antes de prosseguir.
- Esta era a provocação que Rhodes e seus asseclas esperavam. Caíram em cima de
Lobengula numa campanha selvagem e desapiedada. Metralharam seus famosos impis e
destruíram a nação matabele. Foram, então, até o kraal, a aldeia cercada de
Lobengula em GuBulawayo, mas aquele ladrão covarde já fugira para o Norte,
levando as esposas, os rebanhos, os guerreiros sobreviventes e os diamantes. Uma
pequena força de brancos o perseguiu em parte do caminho e acabou caindo numa
emboscada matabele da qual não escapou ninguém. Mais homens brancos o teriam
perseguido, mas as chuvas chegaram e transformaram os campos em um lodaçal e os
rios em torrentes. E assim, Lobengula escapou com o tesouro. Vagou no rumo norte
sem ter para onde ir, até que a vontade de continuar o abandonou. Em um lugar
selvagem e solitário, chamou o meio-irmão Gandang e confiou-lhe o encargo da
nação; covarde até o fim, ordenou ao seu feiticeiro que preparasse um veneno e o
tomou. Gandang colocou o corpo em uma gruta e, em torno, todas as suas
possessões: as lanças assegai, as plumas e peles distintivas de seu cargo, a
esteira onde dormia e a banqueta cerimonial, armas de fogo, facas, os barris de
cerveja onde guardava os diamantes. O cadáver foi envolto em uma pele de
leopardo e colocado sentado, tendo aos pés os cinco barris de vinte litros com
os diamantes e a entrada da caverna foi cuidadosamente selada e camuflada.
Gandang liderou a nação matabele de volta para tornarem-se os escravos de Rhodes
e de sua Companhia Real de Cartas-Patentes.
- Em que época isso ocorreu? - atalhou novamente o russo.
- Na estação das chuvas de 1894. Não há tanto tempo assim, apenas noventa anos
atrás. E muito perto de onde estamos. Provavelmente num raio de quarenta
quilómetros. Lobengula viajou diretamente para o Norte saindo de GuBulawayo e
quase chegara ao rio Zambeze antes de perder a esperança e suicidar-se. Você
gostaria de saber se algum homem vivo sabe a localização exata do tesouro? -
dirigiu-se ao branco. - A resposta é sim! - Fungabera interrompeu-se de novo e
exclamou: - Ora, perdoe-me, caro Tungata, não lhe ofereci nada para beber. -
Pediu outro copo, encheu-o de água e gelo e levou-o até ele com as próprias
mãos.
Tungata segurou-o e bebeu, controladamente, um gole de cada vez.
- Onde é que eu estava? - Fungabera voltou a sentar-se.
- Estava nos falando da caverna. - O homem branco de olhos pálidos não pôde
resistir.
- Ah, sim, naturalmente. Bem, parece que, antes de morrer, encarregou o meio-
irmão, Gandang, da guarda dos diamantes. Dizem que falou: "Dia virá em que meu
povo vai precisar deles. Você, seu filho e os filhos de seus filhos guardarão o
tesouro até que esse dia chegue". E assim, o segredo foi transmitido na família
Kumalo, a chamada família real matabele. Quando o filho escolhido atingia a
puberdade, era levado numa peregrinação pelo pai ou avô.
Tungata estava tão enfraquecido, que sentia-se febril. A água gelada no estômago
vazio pareceu drogá-lo e a mente começou a flutuar, confundindo realidade e
fantasia, e a lembrança da própria peregrinação ao túmulo de Lobengula era tão
nítida que a revivia ao escutar Fungabera.
Fora durante o primeiro ano em que cursara o preparatório na Universidade de
Rodésia. Tinha ido passar as férias com o avô, Gideon Kumalo, diretor-assistente
da Escola da Missão Khami, perto da cidade de Bulawayo.
- Tenho um presente formidável para você - falou-lhe o velho, sorrindo por trás
das lentes espessas dos óculos. Restava-lhe ainda um pouco de visão, se bem que
nos anos seguintes a perderia completamente. - Vamos fazer uma jornada juntos,
Vundla. - Era o apelido carinhoso que lhe dera o velho, a lebre, o esperto
animalzinho de que tanto gostavam os africanos. Os escravos levaram para a
América sua lenda sob a forma do "Brer Rabbit".
Tomaram um ônibus em direção norte, mudando de condução uma meia dúzia de vezes
em vendas isoladas ou cruzamentos remotos, esperando às vezes quarenta e oito
horas numa parada, quando havia atraso, o que, no entanto, não os incomodava.
Transformaram aquilo em um piquenique, sentados ao pé de uma fogueira à noite,
conversando.
Que histórias maravilhosas o velho avô Gideon sabia contar. Fábulas, lendas,
histórias tribais, e eram essas as que mais o fascinavam. Podia ouvi-lo repeti-
las cinquenta vezes sem se cansar: o êxodo de Mzilikazi de Zululand, o umfecane,
a guerra contra os hoers e a travessia do rio Limpopo. Sabia de cor os nomes dos
gloriosos batalhões impis e dos homens que os haviam comandado, as campanhas em
que se engajaram e as honras de batalha conquistadas.
E lembrava-se especialmente da história das "Toupeiras que escavam sob a
montanha", o batalhão fundado e comandado pelo trisavô, Bazo, o "Machado".
Aprendeu as canções guerreiras em louvor a esses animais, e sonhava com um mundo
perfeito em que os comandaria um dia, com a faixa cerimonial de couro de
toupeira na testa e os adornos de penas.
E assim, o velho de barbas brancas e vista fraca e o adolescente viajaram por
cinco dias tranquilos e cheios de companheirismo, até que, a pedido do velho, o
ônibus desconjuntado os deixou em uma trilha poeirenta e suja da floresta.
- Guarde bem este lugar, Vundla - disse Gideon. - Aqui está o riacho com a queda
d'água e a rocha em forma de leão adormecido. Este é o ponto de partida.
Continuaram em direção norte por uma sucessão de marcos que o velho recitava em
forma de poema. Tungata descobriu que ainda o podia recitar sem hesitação:
O começo é o leão adormecido, siga seu olhar até o lugar onde cruzam os
elefantes...
Foram mais três dias de viagem com o passo lento de Gideon até chegarem à colina
íngreme que Tungata o ajudara a escalar, carregando-o nos piores trechos, e
onde, no alto, finalmente estavam diante do túmulo de Lobengula.
Tungata lembrava-se de ter ajoelhado, chupando o sangue do corte que fizera no
pulso e cuspindo-o nas pedras que bloqueavam a entrada, repetindo o terrível
juramento de segredo. Naturalmente, nem o velho nem o juramento mencionavam
diamantes ou tesouro. Tungata jurara apenas guardar o segredo do túmulo,
passando-o ao filho escolhido até o dia em que "Os filhos de Mashobane gritem
por socorro e as pedras se abram para libertar o espírito de Lobengula que
avançará como o fogo - o fogo de Lobengula!"
Depois da cerimónia, o velho deitara-se à sombra da figueira que crescia ao lado
da entrada e, exausto pela longa jornada, dormira até anoitecer. Tungata ficara
acordado, examinando a tumba e a área ao redor, e descobriu sinais que o levaram
a uma conclusão que não gostaria de contar ao avô, nem naquele momento, nem na
volta para casa. Não quisera alarmar ou perturbar Gideon, amava-o muito e queria
protegê-lo.
A voz de Fungabera interrompeu subitamente a divagação, obrigando-o a voltar à
realidade.
- De fato, temos o privilégio de ter entre nós a presença, neste momento, de um
membro ilustre do clã Kumalo, atual guardião do túmulo do velho larápio, o
honrado camarada ministro Tungata Zebiwe.
Os olhos pálidos e cruéis voltaram-se para ele e Tungata ficou ereto; tentou
falar e verificou que a pequena quantidade de água que ingerira aplacara-lhe a
garganta. A voz saiu profunda, compassada e apenas ligeiramente rouca.
- Está enganado, Fungabera. - Transformou o nome em um insulto, mas o sorriso de
Peter continuou inalterado. - Nada sei sobre esta tolice que inventou, e mesmo
que soubesse... - Tungata não terminou a frase.
- Vai descobrir que minha paciência é infinita - prometeu Peter. - Os diamantes
estão aqui há noventa anos e mais algumas semanas não vão fazer diferença.
Trouxe um médico para supervisionar seu tratamento. Vamos ver quanto pode
aguentar antes que sua coragem matabele fraqueje. Por outro lado, pode acabar
com todo este desagradável episódio. Pode levar-nos ao local do túmulo de
Lobengula e, logo que o fizer, farei com que tome um avião para o país que
escolher... - Peter fez uma pausa antes de acrescentar - e com você irá a jovem
que tão galantemente o defendeu no tribunal, Sarah Nyoni.
Naquele momento, houve um breve lampejo de emoção na máscara desdenhosa de
Tungata.
- Ah, sim. Nós a temos em lugar seguro.
- Sua mentira é transparente. Se a tivesse nas mãos, já a teria usado.
Tungata forçou-se a acreditar que Sarah o obedecera. Compreendera perfeitamente
o sinal que lhe fizera no tribunal enquanto o levavam. "Fuja! Esconda-se! Você
está em perigo!", ordenara-lhe e ela concordara. Tinha de acreditar que estava a
salvo.
- É o que vamos ver - prometeu Fungabera.
- Não que tenha alguma importância. - Tungata tinha de protegê-la, agora que
estava claro que os shona a caçavam. - Não passa de uma mulher, façam o que
quiserem com ela. Isso nada significa para mim.
- Capitão! - Fungabera levantou a voz, e o comandante logo acorreu. - Levem o
prisioneiro de volta à cela. O médico vai conduzir e supervisionar o tratamento
a ser dado. Compreendeu?
Quando ficaram a sós, o coronel Bukharin disse em voz calma:
- Não vai ser fácil. É um homem de grande força física e algo mais além disso.
Alguns homens simplesmente não se deixam dobrar, nem mesmo pela mais extrema
coerção.
- Pode levar algum tempo, mas no final...
- Não tenho tanta certeza assim - disse Bukharin, lentamente. - Conseguiu
realmente capturar esta mulher que mencionou, esta tal Sarah Nyoni?
- Ainda não. - E Peter hesitou. - Ela desapareceu, mas é apenas questão de
tempo. Não pode esconder-se para sempre.
- Tempo - repetiu o coronel. - É, há um tempo para tudo, mas o seu está se
esgotando. Isso tem de ser feito logo ou não haverá mais chances.
- É uma questão de dias, e não de semanas - prometeu Peter, mas a voz falseou-
lhe e Bukharin, o consumado caçador de homens, percebeu.
- Este Zebiwe é um homem duro. Não acho que teríamos sucesso com o tratamento em
nossa clínica. E não gosto desta história de tesouro de diamantes. Soa como
história em quadrinhos para garotos. E também não gosto de que tenha deixado
escapar esta mulher matabele. Tudo isso está começando a me deprimir.
- Está sendo excessivamente pessimista. Vai dar tudo certo. Preciso apenas de um
pouco de tempo para prová-lo.
- Já sabe que não posso continuar aqui por muito tempo, tenho que regressar a
Moscou. E o que devo dizer-lhes é que está caçando um tesouro? - Bukharin
levantou as mãos para o céu. - Vão achar que estou ficando caduco.
- Tudo o que peço é um mês - disse Fungabera. - Preciso de mais um mês.
- Estamos no dia dez. Tem até o fim do mês para nos entregar o homem e o
dinheiro.
- Isso é pressionar demais - protestou Peter.
- Estarei de volta no dia primeiro. Se até lá não puder entregar a mercadoria,
vou recomendar a meus superiores que cancelem o projeto.
A cobra tinha quase dois metros de comprimento e estava enroscada a um canto da
gaiola. As escamas eram de um púrpura e dourado suaves, como cores outonais
aprisionadas em desenhos geométricos sobre um fundo negro.
Mas todas essas cores e formas não desviavam a atenção da horrível cabeça, do
tamanho de uma cabaça venenosa, em forma de um ás de espadas, achatada e que ia
estreitando-se na goela. Tinha olhinhos brilhantes como contas de azeviche e a
língua bifurcada movia-se ligeira para fora e para dentro.
- Não há mérito nenhum nisso para mim - disse Peter Fungabera. - O doutor aqui é
o único responsável por este pequeno divertimento. - Sorriu para o médico. - Já
não nos falamos há muitos dias e, francamente, seu tempo esgotou-se, e o meu,
também. Ou concorda em falar hoje ou já não fará mais diferença. A partir de
amanhã, será dispensável, camarada Zebiwe.
Tungata foi amarrado a uma sólida cadeira de teca rodesiana. A gaiola estava
sobre a mesa em frente a ele.
- Já trabalhou para o Departamento de Caça - continuou Fungabera. - Portanto, é
capaz de reconhecer esta cobra como uma Bi tis gabonica, a víbora do Gabão. É
uma das serpentes mais venenosas da África e seu veneno só perde para o da
mamba. Mas a picada é muito mais dolorosa do que a de qualquer outra. Dizem que
a dor enlouquece antes que se morra.
Tocou a gaiola com a ponta do bastão e a serpente atacou. O corpo enroscado
impulsionou a cabeça num movimento líquido e a metade do enorme animal projetou-
se no espaço; a goela escancarou-se, mostrando a garganta amarelada e as longas
presas recurvas, brilhando como porcelana branca, ao bater no arame com tamanha
força que fez a mesa estremecer. Até Fungabera pulou para trás sem querer, para
sorrir, em seguida, desculpando-se:
- Não suporto cobras - explicou. - Dão-me arrepios. E o senhor, camarada
ministro?
- Seja o que for que estiver planejando, é um blefe - respondeu Tungata. A voz
estava mais fraca do que antes. Desde o último encontro, passara muitos dias no
muro ao sol. O corpo encolhera a ponto de parecer pequeno demais para a cabeça e
a pele estava seca e descamada. - Não pode se dar ao luxo de deixar que esta
coisa me pique. Acho que mandou remover as bolsas de veneno.
- Doutor - disse Fungabera ao médico sentado na extremidade da mesa, que
levantou-se imediatamente e saiu da sala.
- Tivemos muita sorte em encontrar este espécime do Gabão - continuou em tom de
conversa Fungabera. - São bastante raros, como sabe.
O médico voltou, usando grossas luvas até os cotovelos e carregando um rato-do-
mato do tamanho de um gatinho, guinchando e esperneando. Abriu, desajeitado, a
porta da gaiola, atirou o rato dentro e fechou-a imediatamente. O animalzinho
correu em volta, cheirando a tela de arame até deparar com a cobra. Deu um pulo
e fugiu para o canto oposto, encolhendo-se lá.
A serpente começou a desenroscar-se, com as escamas reluzindo com uma beleza
irreal enquanto deslizava silenciosamente sobre o chão recoberto de areia em
direção ao rato encurralado, que estava mudo. O nariz já não fungava e ficou
observando hipnotizado a morte repulsiva que se aproximava.
A menos de um metro, a serpente parou, arqueando o pescoço em S, e atacou rápida
como um raio.
O rato foi atirado contra a tela e imediatamente a serpente recuou, tornando a
enroscar-se. Minúsculas gotas de sangue apareceram na pelagem avermelhada do
animalzinho que começou a estrebuchar. As patas sacudiam-se sem coordenação e,
abruptamente, deu um guincho agudo de intolerável agonia e entrou na convulsão
final da morte.
O médico tirou a carcaça da gaiola com uma pinça de madeira e levou-a embora da
sala.
- Naturalmente - disse Fungabera -, sua massa é muito maior que a dele. Com
você, levaria muito mais tempo.
O médico voltou e, com ele, o capitão e dois soldados.
- Como já disse, o doutor desenhou este aparelho. Acho que fez um ótimo
trabalho, se considerarmos o pouco material disponível e o tempo escasso.
Levantaram a cadeira de Tungata e colocaram-na mais próxima à gaiola. Um dos
soldados carregava uma gaiola menor, em feitio de um grande capacete de esgrima,
que colocou na cabeça de Tungata, fechando-a bem ajustada ao pescoço. Dela, saía
um tubo de arame que parecia uma tromba deformada de elefante.
Os dois soldados postaram-se por trás da cadeira e o forçaram para a frente até
que o tubo aberto ficasse à altura da portinhola da gaiola maior, e o médico
shona o prendeu rapidamente a ela.
- Quando a porta da gaiola for levantada, você e a serpente vão dividir o mesmo
espaço. - Tungata olhou pelo tubo até a portinhola na extremidade. - Mas podemos
parar com isso quando quiser.
- Seu pai era uma hiena comedora de coisas imundas - respondeu Tungata em voz
calma.
- Vamos fazer a serpente passar para a sua gaiola aplicando calor na outra
extremidade. Eu o aconselho a ser sensato, camarada. Leve-nos ao túmulo de
Lobengula.
- O túmulo do rei é sagrado... - Tungata calou-se, compreendendo que estava mais
fraco do que imaginara deixando escapar isso. Até ali, negara teimosamente a
existência do túmulo.
- Ótimo - disse Fungabera, satisfeito. - Pelo menos concordamos em que existe um
túmulo. Agora, concorde em nos levar lá e tudo isso estará terminado. Um vôo
seguro para outro país, para você e a mulher.
- Cuspo em você, Fungabera, e na prostituta que foi sua mãe.
- Abram a gaiola - ordenou Fungabera.
A portinhola rangeu ao ser suspensa e Tungata olhou pelo tubo como se fosse o
cano de uma arma. A serpente estava enrolada na extremidade mais distante da
gaiola, olhando-o com os olhinhos lustrosos e negros.
- Ainda há tempo, camarada.
Tungata já não confiava na própria voz. Armou-se de toda coragem e fixou os
olhos nela, tentando dominá-la.
- Continuem - disse Peter, e um dos soldados colocou um pequeno braseiro sobre a
mesa. Tungata sentia o calor até mesmo de onde estava sentado. Lentamente, o
soldado foi aproximando o braseiro da extremidade da gaiola e a serpente silvou
e desenroscou-se. Para escapar ao calor, começou a deslizar em direção à
abertura do tubo.
- Vamos, camarada - incitou-o Peter. - Diga que nos leva lá. Só tem mais alguns
segundos. Ainda posso fechar a portinhola.
Tungata sentiu o suor brotar da testa e escorrer-lhe pelas costas. Queria
amaldiçoar Fungabera, desejar-lhe uma morte tão horrível quanto essa, mas as
batidas do coração chegavam a ensurdecê-lo.
A serpente hesitou à entrada do tubo, relutante.
- Ainda há tempo - sussurrou Peter. - Você não merece uma morte tão horrível.
Vamos, diga que vai nos levar lá!
Tungata não imaginara como era enorme a serpente. Os olhos estavam a cinquenta
centímetros dos dele e tornou a soltar um silvo agudo e penetrante. O soldado
empurrou o braseiro, encostando-o à tela e a serpente enfiou a cabeça pelo tubo,
enquanto as escamas da barriga raspavam o arame.
- Ainda não é tarde demais. - Fungabera abriu o coldre e tirou a pistola,
encostando-a a milímetros da cabeça da serpente. - É só dizer e estouro a cabeça
dela.
- Vá para o seu fedorento inferno shona - sussurrou Tungata.
Sentia o cheiro do animal, agora, não um odor penetrante, mas um cheiro
adocicado e meio podre que o nauseou. Teve uma ânsia de vómito, tentou engoli-lo
e começou a lutar com as correias que o prendiam. A gaiola balançou com o
esforço, mas os dois soldados seguraram-no e a grande serpente, alarmada, tornou
a sibilar e arqueou-se para atacar.
Tungata parou de lutar e fez um esforço para ficar imóvel. Podia sentir o suor
que lhe inundava o corpo escorrer para o assoalho.
Pouco a pouco, a serpente abaixou o pescoço e arrastou-se em direção a seu
rosto. Estava a quinze centímetros de seus olhos e Tungata permanecia imóvel
como uma estátua, cheio de horror. Estava tão perto que já não a via claramente.
Era uma mancha que enchia todo o campo de visão. - E a serpente estendeu a
língua bifurcada, explorando-lhe o rosto com lambidas rápidas e leves.
Cada nervo em seu corpo parecia prestes a explodir e estava tão cheio de
adrenalina que sentia-se sufocar. Agarrava-se à consciência com todas as forças,
senão mergulharia na mais completa escuridão.
A víbora prosseguiu lentamente. Podia sentir o toque gelado e escorregadio no
rosto e em torno do pescoço e compreendeu, horrorizado, que o enorme réptil
enroscava-se em torno de sua cabeça, envolvendo-o e cobrindo-lhe a boca e o
nariz. Não ousava gritar ou mover-se.
- Ela gosta de você. - A voz de Fungabera soava excitada. - Está se ajeitando aí
dentro.
Tungata virou os olhos e viu-o, meio indistinto, através da tela de arame.
- Não podemos aceitar uma coisa dessas - disse Peter, malignamente; viu que
estendia a mão para o braseiro e pela primeira vez notou um espeto entre as
brasas. Quando Peter o retirou, a ponta estava rubra.
- Esta é a chance final. Quando encostar isso na criatura, ela vai enlouquecer.
- E esperou por uma resposta. - Mas é claro, não pode falar. Se concorda, pisque
os olhos.
Tungata encarou-o fixamente através da tela, tentando transmitir todo o ódio que
sentia.
- Bem, nós tentamos - disse Peter Fungabera. - Agora, a culpa é só sua.
Enfiou a ponta do espeto incandescente pelo arame e tocou a serpente. Houve um
chiar de carne queimada e o animal enfureceu-se.
Tungata sentiu os anéis que lhe envolviam a cabeça contraírem-se e incharem e o
grande corpo entrou em convulsões desordenadas dentro daquele espaço confinado.
A gaiola batia para todos os lados e Tungata perdeu o controle, soltando um
berro ao ser vencido pelo terror.
A cabeça da serpente agigantou-se, com a boca escancarada e amarela abrindo-se
como um abismo, e o mordeu com toda a força no rosto, abaixo do olho, com tal
ímpeto, que os dentes cerraram-se e mordeu a própria língua. Sentiu a boca
encher-se de sangue e as longas presas recurvas enterrarem-se na carne como
anzóis, injetando a toxina mortal. Tungata, então, mergulhou em uma escuridão
misericordiosa.
- Você o matou, seu idiota! - A voz de Fungabera estava aguda e cheia de pânico.
- Não, não. - O médico trabalhava rapidamente com a ajuda dos soldados. Arrancou
o capacete da cabeça de Tungata e um deles atirou a cobra contra a parede,
esmagando-lhe a cabeça com o cabo do fuzil AK 47. - É apenas um desmaio. Estava
muito enfraquecido por causa do muro.
Carregaram-no até a cama de campanha, deitando-o com cuidados exagerados e o
médico verificou-lhe o pulso rapidamente.
- Ele está bem. - Encheu uma seringa e injetou-a na veia do braço. - Dei-lhe um
estimulante; ah, está vendo? - Seu alívio era evidente. - Veja! Está voltando a
si.
Limpou as profundas perfurações do rosto de onde começara a escorrer linfa.
- Há sempre o risco de uma infecção com estas mordidas - explicou, ansioso. -
Vou dar-lhe uma injeção de antibiótico.
Tungata gemeu, murmurou algo, e começou a debater-se fracamente. Os soldados o
contiveram até que recuperasse a consciência e o ajudaram a sentar-se. Os olhos
focaram-se com dificuldade em Fungabera e sua confusão era evidente.
- Bem-vindo de volta à terra dos vivos, camarada. - A voz de Peter estava outra
vez macia e bem modulada. - É um dos poucos privilegiados que tiveram uma visão
do além.
O médico ainda ocupava-se dele, mas os olhos de Tungata não se desviaram de
Peter Fungabera.
- Não está compreendendo - disse -, e ninguém pode culpá- lo por isso. Sabe, na
verdade o doutor removeu as bolsas de veneno, como você sugeriu. - Tungata
balançou a cabeça, incapaz de falar.
- Ah! O rato, claro. Isso foi uma ideia bastante inteligente. Enquanto estava
fora da sala, deu-lhe uma pequena injeção. Já a tinha testado com outros
roedores para conseguir o prazo adequado. Estava certo, caro Tungata, ainda não
estamos prontos para deixá-lo partir. E, naturalmente, podemos cometer um erro
de cálculo. Poderia haver ainda um resto de veneno nas presas... - Peter
encolheu os ombros. - É tão delicado... dessa vez, de outra... quem sabe? Quanto
tempo acha que pode aguentar, camarada, antes que sua mente naufrague?
- Tanto quanto você, juro - sussurrou Tungata.
- Ora, nada de promessas apressadas - ralhou Peter com ar afável. - O próximo
divertimento que estou programando é com os meus bichinhos. Já os ouviu durante
as noites, não é? Acho que não posso controlá-los, o que será interessante.
Poderia perder facilmente um braço ou um pé... basta uma dentada daquelas
mandíbulas. - Brincou com o bastão entre os dedos. - A escolha é sua e basta uma
palavra para acabar com tudo isso. - E levantou a mão.
- Não, por favor, não se esforce. Não é preciso responder agora. Vamos deixá-lo
mais alguns dias no muro e então...
Tungata perdera a noção de tempo. Não conseguia lembrar-se quantos dias ficara
no muro, quantos homens vira serem executados, quantas noites ficara deitado
escutando as hienas.
Era difícil pensar além da próxima tigela de água. O médico calculara com
exatidão a quantidade necessária para mantê-lo vivo. A sede era um tormento
infindável, até mesmo quando dormia, porque seus pesadelos estavam povoados de
água. Lagos e torrentes que não conseguia atingir, chuva que caía à sua volta
sem tocá-lo e uma sede intolerável.
Somando-se a isso, perseguia-o a ameaça de Fungabera de atirá-lo às hienas e
isso tornava-se mais forte a cada adiamento. Água e hienas, isso ameaçava levá-
lo à fronteira da loucura. Sabia que não aguentaria muito mais tempo, e ficava
imaginando confusamente como conseguira suportar tanto tempo. Tinha de lembrar-
se que o túmulo de Lobengula era tudo o que o mantinha vivo. Enquanto guardasse
segredo, não podiam matá-lo. Não tinha a menor ilusão de que Fungabera manteria
a promessa de deixá-lo partir em segurança, depois de levá-lo até lá.
Tinha que ficar vivo. Ainda havia alguma esperança por menor que fosse de
libertação. Sabia que, com sua morte, seu povo estaria ainda mais à mercê da
tirania. O seu dever era manter-se vivo para eles; apesar de que a morte fosse
naquele momento uma bênção e uma libertação, não podia morrer. Precisava
continuar vivo.
Aguardava na escuridão gelada que antecedia o amanhecer, fraco demais para
levantar-se. Naquele dia, teriam que carregá-lo até o muro ou para o que quer
que estivessem lhe preparando, e odiava isso. Odiava mostrar tal fraqueza diante
deles.
Logo chegariam. Pegou a vasilha de água e teve um duro choque ao lembrar-se de
que não conseguira controlar-se na noite anterior: estava vazia. Agachou-se,
lambendo-a como um cachorro, na esperança de que houvesse ainda algumas gotas,
mas estava completamente seca.
A porta abriu-se de repente. O dia começava e Tungata tentou levantar-se. Com
grande esforço, ficou de joelhos. Um guarda entrou e colocou algo no umbral,
retirando-se sem dizer palavra. A porta foi novamente fechada e Tungata ficou
sozinho.
Estava estupefato; isso nunca acontecera antes. Arrastou-se na escuridão,
esperando, mas nada aconteceu. Ouviu os outros prisioneiros sendo levados e,
depois, tudo ficou silencioso.
A luz começou a ficar mais forte e examinou cautelosamente o objeto deixado
pelos guardas. Era um balde de plástico rebrilhando à luz da aurora.
Água. Um balde cheio de água. Arrastou-se até lá, sem ousar ter alguma
esperança. Já o haviam enganado uma vez antes, colocando na vasilha sal e alúmen
e tomara um gole antes de perceber o que haviam feito. A sede que se seguiu
deixou-o delirante e trémulo como se estivesse com uma crise de malária.
Colocou um dedo no líquido e provou-o: era água limpa e cristalina. Soltou um
gemido e encheu a vasilha com o líquido precioso, bebendo com uma terrível
ansiedade, esperando que a qualquer momento a porta se abrisse e um guarda desse
um pontapé no balde.
Bebeu até o estômago dilatar-se e.sentir pontadas de cólicas. Descansou por
alguns minutos, sentindo a água fluir nos tecidos desidratados recarregando-os
de energia. Recomeçou a beber mais pausadamente. Três horas mais tarde, urinou
copiosamente pela primeira vez em muito tempo.
Quando foram finalmente buscá-lo, ao meio-dia, pôde levantar-se sem ajuda e
amaldiçoá-los com gosto e fluência.
Levaram-no para o muro e sentiu-se quase alegre. Com a barriga cheia de água,
sabia que poderia resistir-lhes para sempre. O terror do pelotão de fuzilamento
desaparecera. Ficara lá tempo demais e vezes demais. Chegava a achá-lo bem-
vindo, como parte de uma rotina que conhecia. Chegara ao ponto onde só temia o
desconhecido.
Já na metade do pátio, viu que algo estava diferente. Haviam construído uma nova
estrutura diante do muro, um abrigo contra o sol com teto de palha, sob o qual
haviam colocado uma mesa com dois lugares para o almoço.
Sentado lá estava a figura familiar de Fungabera. Não o via há dias e a coragem
que lhe voltara fraquejou. Sentiu as pernas amolecerem e cambaleou. O que haviam
planejado para aquele dia? Se ao menos soubesse, poderia enfrentá-lo. A
incerteza era a única tortura intolerável.
Fungabera estava almoçando e nem olhou-o ao cruzarem por lá. Comia à maneira
africana, com os dedos, partindo pedaços do bolo seco de milho e enchendo-os com
pedacinhos de legumes e de peixe kapenta salgado do lago Kariba. O cheiro da
comida deixou Tungata com a boca cheia d'água, mas continuou arrastando-se até o
muro.
Viu, apertando os olhos contra a claridade, que havia uma única vítima naquele
dia. Só quando o amarraram ao poste, percebeu, com surpresa, que era uma mulher.
Era uma jovem mulher completamente nua. A pele tinha um brilho macio e aveludado
como o do âmbar polido à luz do Sol e seu corpo era gracioso, com seios
simétricos firmes e os bicos rijos, da cor de amoras maduras. As pernas eram
longas e esbeltas e os pés pequenos e delicados. Amarrada como estava, não podia
cobrir a nudez. Tungata percebeu a vergonha que sentia por estar com o sexo
exposto, e evitou olhá-lo levantando os olhos para o rosto. O desespero invadiu-
o.
Estava tudo acabado. Os guardas soltaram-lhe os braços e foi cambaleando até a
jovem presa ao poste. Apesar de estar com os olhos arregalados e cheios de
terror, as primeiras palavras que disse foram para ele:
- Meu senhor, o que fizeram com você?
- Sarah. - Queria aproximar-se e tocá-la, mas não o faria diante deles. - Como a
encontraram? - Sentia-se muito velho e frágil. Tudo estava terminado.
- Fiz o que me ordenou - disse em tom de desculpas. - Fui para as colinas, mas
mandaram-me uma mensagem. Uma das crianças na escola estava morrendo de
disenteria e sem médico. Não pude deixar de ir.
- Claro que era mentira - ele disse com secura.
- Era mentira - admitiu. - Os soldados shona estavam esperando por mim. Perdoe-
me, meu senhor.
- Já não tem mais importância.
- Não por minha causa, senhor - suplicou. - Não faça nada por mim. Sou uma filha
de Mashobane. Aguento qualquer coisa que esses animais shona façam comigo.
Ele balançou a cabeça com tristeza e finalmente segurou-lhe a mão, tocando-lhe
os lábios com dedos trémulos. Ela os beijou e Tungata deixou-os cair, indo em
direção ao abrigo de palha sem que os soldados fizessem qualquer esforço para
detê-lo.
Fungabera olhou-o e fez sinal para que se sentasse na cadeira vazia. Tungata
sentou-se de ombros recurvos.
- Em primeiro lugar, a mulher deve ser desamarrada e vestida. Peter deu a ordem.
Os soldados a cobriram e foram levando-a para um dos alojamentos.
- Meu senhor... - Ela tentou soltar-se dos soldados e olhou-o, desesperada.
- Ela não deve ser maltratada em hipótese alguma.
- Não foi - disse Peter -, e nem será, a não ser que você torne isso necessário.
Empurrou-lhe um prato com bolo de milho e Tungata ignorou-o.
- Deve ser levada para fora do país e entregue a um representante da Cruz
Vermelha em Francistown.
- Há um pequeno avião à espera na Missão Tuti. Coma, camarada, precisamos de
você forte e saudável.
- Quando ela estiver a salvo, falará comigo pelo rádio ou telefone, e me
transmitirá uma palavra-código que vou combinar com ela antes de partir.
- Concordo. - E serviu chá quente a Tungata.
- Quero falar com ela a sós para combinarmos o código.
- Naturalmente que vai falar com ela, mas no meio deste pátio. Meus homens vão
manter uma distância de trinta metros, mas apontarão as metralhadoras para vocês
o tempo todo. Concedo-lhe cinco minutos a sós com a mulher.
- Eu falhei - disse Sarah. - Tungata havia esquecido como era bonita. Todo o
corpo doía-lhe de saudades.
- Não - disse-lhe. - Era inevitável. Você não tem culpa. Foi pelo dever que saiu
do esconderijo.
- Senhor, o que posso fazer?
- Escute - falou rapidamente. - Alguns de meus homens de confiança escaparam
dessa escória da Terceira Brigada. Deve procurá-los. Acredito que estejam em
Botsuana. - Deu-lhe os nomes e endereços e ela os repetiu. - Diga-lhes... -
Sarah decorou tudo e tornou a repetir com exatidão.
Pelo canto dos olhos, Tungata viu que os guardas começavam a aproximar-se. Os
cinco minutos estavam esgotados.
- Quando estiver a salvo, vão permitir que fale pelo rádio comigo, para que eu
saiba que está tudo bem, e vai me dizer: "Seu belo pássaro voou alto e rápido".
Repita.
- Oh, meu senhor - ela soluçou.
- Repita!
Ela obedeceu e, depois, atirou-se em seus braços, os dois trocaram um longo
abraço.
- Será que algum dia vou vê-lo de novo?
- Não. Deve me esquecer.
- Nunca! - ela gritou. - Nem que morra bem velha, nunca, meu senhor.
Os guardas os separaram e um Land-Rover surgiu no pátio. Os soldados a fizeram
entrar e a última coisa que Tungata viu foi o rosto na janela traseira, olhando-
o. O lindo e amado rosto de Sarah.
No terceiro dia, vieram buscá-lo na cela e o levaram até o posto de comando de
Fungabera no rochedo central.
- A mulher está pronta para falar com você. Vão falar em inglês e a conversa
será gravada. - Peter mostrou-lhe o gravador ao lado do aparelho. - Se tentar
passar-lhe alguma mensagem em sindebele, será traduzida mais tarde.
- O código que combinamos é em sindebele - disse Tungata. - Ela vai ter de
repeti-lo.
- Muito bem. Isso é aceitável, mas nada mais. - Olhou com olhos críticos para
Tungata. - Estou contente em vê-lo tão bem disposto novamente, camarada, um
pouco de boa comida e descanso fazem milagres.
Tungata vestia roupas caqui desbotadas, mas limpas. Ainda estava muito magro e
abatido, mas a pele perdera o aspecto ressequido e os olhos estavam claros e
brilhantes. O inchaço da mordida de serpente estava bem melhor e a casca que a
recobria, de bom aspecto.
Fungabera fez sinal ao capitão que passou o microfone a Tungata e apertou o
botão de gravar.
- Aqui é Tungata Zebiwe.
- Meu senhor, é Sarah. - A voz estava distorcida pela estática, mas a teria
reconhecido não importava onde, e a nostalgia encheulhe o peito.
- Você está bem?
- Estou em Francistown e a Cruz Vermelha está cuidando de mim.
- Tem uma mensagem para mim?
- "Seu belo pássaro voou alto e rápido". - E acrescentou: - Encontrei outras
pessoas aqui. Não perca a esperança.
- Ótimo. Quero que você...
Peter Fungabera inclinou-se e tirou-lhe o microfone.
- Desculpe, camarada, mas quem paga a chamada sou eu. - Ergueu o microfone e
apertou o botão. - Fim da transmissão. - E atirou-o casualmente ao capitão. -
Providencie para que um dos matabele de nossa confiança traduza a fita, e traga-
me imediatamente uma cópia. - Virou-se em seguida para Tungata. - Suas férias
acabaram, camarada, você e eu agora temos que trabalhar. Vamos?
Por quanto tempo poderia ir adiando a descoberta do túmulo de Lobengula? Porque
cada hora que ganhasse seria valiosa, uma outra hora de vida, de esperança.
- Já fazem quase vinte anos que meu avô me levou para vê-lo. Minha memória não
está muito clara.
- Sua memória está tão clara quanto o Sol lá em cima - disse Peter. - Você é
famoso por sua habilidade em lembrar-se de lugares, rostos e nomes, camarada.
Não esqueça que já o vi falar na Assembleia sem notas para consultar. Além
disso, terá um helicóptero para levá-lo diretamente até lá.
- Isso não vai funcionar. Fui a pé da primeira vez, e tenho que voltar da mesma
maneira. Não reconheceria as marcas do caminho pelo ar.
Voltaram pelas mesmas estradas sujas que Tungata e o velho Gideon haviam
percorrido tantos anos antes de ônibus, e realmente não conseguia achar o local
do início da trilha, a queda d'água pedregosa, a ponte no rio e o rochedo em
forma de leão adormecido. Levaram três dias à procura e Fungabera estava cada
vez mais irritado e descrente, antes de pararem novamente na minúscula aldeia e
na venda que eram o último ponto de referência de que conseguia lembrar.
- Ah!, a estrada velha. Sim, a ponte que tinha lá foi arrastada pelo rio há
muitos anos e nunca mais foi usada. Agora, a nova estrada passa por outros
lugares...
Acharam afinal a trilha coberta de mato e quatro horas depois chegaram ao leito
seco do rio. A velha ponte desmoronara em pedaços de concreto já cobertos de
lianas, mas a parede de pedra, rio acima, era exatamente como Tungata lembrava-
se e sentiu uma pontada de saudade. De repente, o velho Gideon parecia muito
próximo, tanto que olhou em torno e fez um pequeno sinal com a mão direita para
apaziguar os espíritos ancestrais, sussurrando:
- Perdoe-me, Baba, por trair o juramento.
A presença que sentira parecia-lhe extremamente benigna e indulgente, como se o
velho estivesse lá.
- A trilha fica por aqui. - E deixaram o Land-Rover na ponte desmoronada,
continuando a pé.
Tungata ia à frente com dois soldados armados. Começou a caminhar em passos
pausados, irritantes para Fungabera, que os seguia. Durante a caminhada, Tungata
deixou a imaginação voar. Sentia-se parte do êxodo do povo matabele um século
antes, uma encarnação de Gandang, seu trisavô, fiel e leal até o fim. Sentiu
novamente o desespero de um povo derrotado e o terror da perseguição dos brancos
que poderiam aparecer de um momento para outro na floresta, com suas
metralhadoras em tripé. Parecia-lhe ouvir o lamento das mulheres e criancinhas e
os mugidos do rebanho ao tombarem naquela terra dura e amarga.
Quando morreu o último dos bois da carreta real, Gandang ordenara aos guerreiros
de seu famoso regimento Inyati que a puxassem em lugar deles. Imaginava o rei,
obeso, doente e condenado, sentado na carreta oscilante, olhando fixamente para
o norte ameaçador, um homem apanhado no redemoinho da história e do destino, e
esmagado por ele.
E agora a traição final, pensou Tungata, amargo. Estou levando os animais shona
para perturbar-lhe o descanso mais uma vez.
Tomou deliberadamente por três vezes o caminho errado, levando Peter Fungabera
ao limite da paciência. Na terceira, ordenou queamarrassem Tungata e açoitou-o
com um chicote de couro de rinoceronte, o terrível kibobo que os traficantes de
escravos árabes haviam introduzido na África, espancando-o até escorrer sangue
na terra arenosa.
Foi a vergonha e a humilhação mais do que a dor que levaram-no de volta e
fizeram-no procurar os marcos de novo. Chegaram finalmente à colina, que
apareceu de repente à frente deles, exatamente como se lembrava da primeira
visita.
Haviam seguido por uma garganta estreita de rochas negras e polidas pelas
torrentes por milénios. As profundezas estavam cobertas por poças de água
estagnada e esverdeada onde nadavam grandes lambaris na superfície lodosa e no
ar aquecido flutuavam lindas borboletas escarlates e azuis.
Contornaram uma curva da garganta, escalando rochas do tamanho de elefantes, os
rochedos laterais abriram-se e a floresta recuou. Diante deles, como um vasto
monumento, mais imponente que as pirâmides faraónicas, levantava-se no ar a
colina de Lobengula.
O declive era acentuado e manchado de liquens em tons amarelo, ocre e negro.
Havia ninhos de abutre nos últimos ressaltos e os adultos voavam graciosamente
sobre o abismo, batendo as asas nas correntes quentes ao girarem em espirais.
- Aí está - murmurou Tungata -, Thabas Nkosi, a colina do rei.
A trilha natural até o topo seguia uma falha calcária na rocha. Era íngreme,
assustadora, e os soldados, carregados de mochilas e armas, olhavam nervosamente
para a borda e colavam-se à parede, mas Fungabera e Tungata escalavam com
agilidade até os piores trechos, deixando a escolta muito para trás.
Podia empurrá-lo pela borda, pensou Tungata, se o pegasse desprevenido. Olhou
para trás e Fungabera estava a dez passos mais abaixo, com uma pistola Tokarev
na mão e um sorriso venenoso nos lábios.
- Não - avisou, e ambos continuaram sem mais palavras. Tungata deixou de lado a
ideia de vingança temporariamente e continuou a subida. Viraram a um canto do
rochedo e chegaram ao topo, quinhentos metros acima da garganta escura.
Um pouco separados, ficaram contemplando ao sol claro o grande e profundo vale
do Zambeze. Quase fora do alcance de visão, as águas do lago artificial de
Kariba brilhavam docemente através da névoa quente e enfumaçada causada pelos
primeiros incêndios da estação seca. Os soldados chegaram visivelmente aliviados
ao fim da trilha e Fungabera olhou interrogativamente para Tungata.
- Estamos prontos, vamos prosseguir, camarada.
- Não há para onde prosseguir - respondeu-lhe.
Na crista, a formação rochosa erodira e fragmentara-se. As raízes das árvores
haviam achado abrigo nas rachaduras e fendas e entrelaçavam-se, os caules eram
espessos e deformados pelo calor extremo e pela seca.
Tungata conduziu-os através das rochas partidas e da floresta torturada até a
entrada de uma ravina, onde crescia uma velha Ficus natalensis, a figueira
estranguladora, com os ramos carnudos e amarelos cobertos de frutos amargos. Ao
se aproximarem, um bando de papagaios, que se banqueteavam com os figos
silvestres, saíram em revoada. Na base da figueira, a pedra era segmentada e as
raízes haviam forçado as fendas.
Tungata ficou parado diante do rochedo e Fungabera, contendo uma exclamação de
impaciência, viu que seus lábios moviam-se silenciosamente como que em oração.
Começou a examinar o lado da rocha com mais cuidado e notou com crescente júbilo
que as rachaduras eram uniformes demais para serem naturais.
- Venham cá! - gritou aos soldados, e apontou-lhes um dos blocos na parede, que
começaram a escavar, usando as baionetas e as mãos nuas.
Em quinze minutos de trabalho suado, haviam-no removido e puderam ver claramente
que aquela superfície era uma parede de alvenaria e, através da abertura deixada
pelo bloco, viram uma outra atrás daquela.
- Tragam o prisioneiro - ordenou Peter. - Vai trabalhar junto com vocês.
Quando começou a escurecer, haviam feito uma abertura suficiente apenas para que
dois homens trabalhassem ombro a ombro na parede externa. Nem bem haviam
começado a atacar a interna, Tungata viu que confirmava-se o que suspeitara na
primeira visita ao túmulo tantos anos antes; os sinais que observara e escondera
do avô Gideon estavam ainda mais evidentes na parede interna, e o ajudavam a
salvar sua consciência e diminuir o desgosto pela quebra do juramento.
Relutantemente, Fungabera ordenou que parassem com o trabalho durante a noite.
As mãos de Tungata estavam em carne viva e perdera uma unha. Foi algemado a um
dos homens da Terceira Brigada para passar a noite, mas nem isso o impediu de
cair em um sono pesado e sem sonhos. Fungabera teve de dar pontapés nos dois
para acordá-los na manhã seguinte.
Ainda estava escuro e comeram a parca ração de bolo seco de milho e chá em
silêncio. Mal a haviam engolido, Fungabera deu ordens para que voltassem à
parede.
As mãos machucadas de Tungata estavam enrijecidas e sem coordenação. Fungabera
ficou por trás dele na abertura e, quando vacilou, chicoteou-o com o kibobo à
altura das costelas, na região sensível das axilas, fazendo-o gemer como um
animal ferido e retirar um pesado bloco da parede.
O Sol iluminava o topo da colina e os raios dourados batiam na superfície da
rocha. Tungata e um dos soldados shona improvisaram uma alavanca com um galho
seco e retiraram mais uma pedra; quando a moveram, ouviu-se um ruído surdo e
rascante e o resto da parede interna desabou, fazendo-os pular para trás e
tossir com a nuvem de poeira levantada. Depois, espiaram pela abertura.
O ar da caverna era malcheiroso, abafado, e a escuridão por trás, ameaçadora.
- Você primeiro - disse Fungabera, e Tungata hesitou. Estava dominado por um
temor supersticioso. Era um homem educado e sofisticado, mas, no fundo, um
africano. Os espíritos de sua tribo e os ancestrais guardavam aquele lugar.
Olhou para Fungabera, pois sabia que estava sentindo o mesmo medo sobrenatural,
apesar de empunhar a lanterna que reservara para aquele momento.
- Ande logo! - ordenou, mas o tom imperioso não disfarçava a inquietação que
sentia e Tungata, para envergonhá-lo, passou com cautela por cima das pedras
caídas para dentro da caverna.
Ficou parado alguns momentos para se acostumar à penumbra e distinguir o
interior. O solo parecia bastante nivelado e gasto, mas tinha um declive
acentuado. Aquela caverna fora obviamente o refúgio de animais e o lar de homens
primitivos dezenas de milhares de anos antes de se tornar o túmulo de um rei.
Fungabera, atrás dele, iluminava com a lanterna as paredes cobertas pelos
desenhos dos pigmeus que haviam vivido lá e o teto enegrecido pelas antigas
fogueiras. Os animais selvagens estavam ali, maravilhosamente caricaturados em
cores brilhantes. Junto a eles, os artistas pigmeus haviam também representado o
próprio povo; armados de arco e flecha, perseguiam as manadas pela parede
rochosa. Cafungas com nádegas salientes e ereções gigantescas para celebrar a
fertilidade.
Fungabera percorreu com a lanterna toda aquela esplêndida galeria e virou o
facho de luz para a parte mais afastada da caverna que se estreitava numa
passagem curva, envolta na escuridão e nas sombras misteriosas abaixo deles.
- Adiante! - ordenou, e Tungata foi descendo cautelosamente o solo em declive.
Chegaram à passagem estreita e tiveram que se abaixar para passar pelo teto.
Tungata continuou mais uns cinquenta passos antes de parar de repente.
Vieram dar numa grande caverna de teto abobadado com vinte metros de altura e
chão regular atulhado de rochas soltas. Fungabera examinou-a com a lanterna e
viram que na parede mais afastada havia um ressalto a meia altura cheio de
objetos.
Tungata ficou intrigado por alguns momentos, mas em seguida reconheceu a roda de
uma carreta de modelo antigo, usada há cem anos, maior que os bois que a faziam
girar, e a estrutura e o corpo central. A carreta fora desmembrada e carregada
até a caverna.
A carreta de Lobengula - sussurrou.
Sua possessão mais querida, a que os guerreiros puxaram com as próprias forças
quando os bois morreram...
Fungabera cutucou-o com a pistola Tokarev e começaram a abrir caminho por entre
as pedras.
Lá estavam molhos de armas amarrados como feixes de trigo, velhos Lee-Enfields,
parte do pagamento que Cecil Rhodes fizera a Lobengula pelas concessões; armas e
cem soberanos de ouro todo mês fora o preço de uma terra e seu povo vendidos e
condenados à escravidão, pensou Tungata com amargor. Havia mais objetos
empilhados sobre a saliência, sacos de sal de couro, ferramentas e facas,
contas, adornos, chifres de rapé e lanças assegai de lâminas largas.
Fungabera soltou uma exclamação de impaciência.
- Depressa, precisamos achar o corpo. Os diamantes estão junto dele.
Ossos rebrilharam à luz da lanterna, uma pilha deles embaixo da saliência. Uma
caveira sorridente com o crânio ainda com vestígios da lanugem do cabelo.
- É ele! - gritou triunfante Fungabera. - É o velho demónio - e ajoelhou-se ao
lado do esqueleto.
Tungata continuou imóvel. Depois do choque inicial, viu que era o de um homem
velho e pequeno, quase do tamanho de uma criança e sem dentes na frente.
Lobengula tinha sido um homem grande com dentes excelentes. Todos os que o
tinham conhecido falavam do seu sorriso. Aquele esqueleto ainda tinha vestígios
da estranha parafernália de um feiticeiro: contas, conchas e ossos, chifres
cheios de remédio e um cinto de crânios de répteis em torno da cintura. Até
Peter reconheceu o erro e levantou-se de um pulo.
- Não é ele! - gritou, ansioso. - Devem ter sacrificado o feiticeiro e o
colocado para montar guarda. - Procurava insano pela caverna. - Onde está? -
perguntou. - Você deve saber. Devem ter-lhe contado.
Tungata ficou silencioso. Por cima do esqueleto, a saliência projetava-se como
um grande púlpito. As possessões do rei estavam arrumadas lá, em posição
proeminente, e o sacrifício humano jazia por baixo dela. Era a posição lógica e
natural para se colocar o corpo do rei. Fungabera percebeu isso também e virou
lentamente o facho de luz para lá.
O púlpito rochoso estava vazio.
- Não está aqui - sussurrou Peter com voz tensa e desapontada. - O corpo de
Lobengula desapareceu!
Os sinais que Tungata percebera na parede externa e o local onde o reboco fora
recolocado com menos cuidado o haviam levado à conclusão correta. O túmulo do
velho rei fora obviamente roubado havia muitos anos, o corpo levado embora e a
tumba relacrada para esconder os vestígios da violação.
Fungabera escalou apressado o púlpito de pedra e começou a procurar de joelhos
freneticamente. De pé, impassível, Tungata ficou admirado como a cobiça podia
transformar até um homem tão impressionante e perigoso quanto Peter Fungabera,
que sussurrava coisas incoerentes enquanto se esfalfava revistando os detritos
poeirentos.
- Olhe! Olhe só para isso! - e levantou um pequeno objeto escuro, enquanto
Tungata se aproximava. À luz da lanterna, reconheceu um fragmento de cerâmica
decorado com o tradicional desenho de losangos usados nos barris de cerveja
matabele.
- Um pote de cerveja. - Peter revirou-o na mão. - Um dos barris de diamantes
quebrado! - Deixou-o cair e escavou a sujeira, provocando uma nuvem de pó
ondulante no facho de luz.
- Olhe! - Achara outra coisa, algo menor, que segurava entre os dedos, do
tamanho de uma pequena noz e assestou nela o foco da lanterna que reverberou com
todas as cores do arco-íris. Raios de luz colorida refletiram-se no rosto de
Peter Fungabera, como o Sol na água.
- Um diamante - disse com respeito religioso, virando-o lentamente entre os
dedos e fazendo-o soltar faíscas luminosas.
Tungata pôde perceber que era uma pedra bruta, sem lapidação, mas o cristal
formava facetas tão simétricas e perfeitas que refletiam até o fraco foco
luminoso.
- Que beleza! - murmurou Peter, olhando-o ainda mais de perto.
Era um perfeito octaedro natural e a cor, mesmo na luz artificial, era de um
branco imaculado como a neve em um riacho de montanha.
- Linda - repetiu Fungabera, e gradualmente o rosto foi perdendo a expressão
sonhadora e glutona. - Um só - sussurrou. - Uma única pedra perdida na pressa
quando deveria haver aqui cinco barris de cerveja transbordando de diamantes.
Os olhos desviaram-se do diamante para Tungata. A luz da lanterna com o foco
para baixo fazia sombras estranhas no rosto, dando-lhe um ar demoníaco.
- Você sabia - acusou-o. - Percebi o tempo todo que estava ocultando alguma
coisa. Sabia que os diamantes tinham sido levados, e para onde.
Tungata sacudiu a cabeça, negando, mas Fungabera estava começando a se
enfurecer. O rosto contorceu-se e a boca remexia-se, espumando saliva.
- Você sabia! - E atirou-se da saliência com a fúria de um leopardo ferido. -
Vai me dizer! - berrou. - Vai acabar me dizendo! - Bateu no rosto de Tungata com
o cano da Tokarev. - Diga! Onde estão? Onde estão os diamantes?
O cano de aço atingiu a maçã do rosto de Tungata, cortando-a e fazendo-o cair de
joelhos. Fungabera procurou controlar-se e acalmar a fúria, apoiado na pedra.
- Não - disse para si mesmo. - Isso é fácil demais. Você vai sofrer... - Cruzou
os braços no peito bem apertados para não atacar novamente Tungata. - Você vai
acabar me contando, vai me suplicar para me levar até os diamantes. Vai me
suplicar para matá-lo...
- Crianças brincando de jogos perigosos - disse Morgan Oxford. - É o que vocês
são! Meu Deus, vocês nos meteram nessa latrina, até o pescoço.
Morgan Oxford voara de Harare assim que ouvira a notícia de que a patrulha
aduaneira de Botsuana os havia recolhido no deserto.
- Tanto o embaixador americano como os britânicos receberam notas de Mugabe. Os
ingleses estão pulando e espumando de raiva também. Não sabem de nada a
respeito, Craig, e você é cidadão britânico. Acho que gostariam de prendê-lo na
Torre de Londres e cortar-lhe a cabeça.
Morgan estava parado de pé à cabeceira de Sally-Anne, no hospital. Recusara a
cadeira que lhe haviam oferecido.
- E quanto a você, senhorita, o embaixador me pediu que lhe dissesse que
gostaria de ver você a bordo do próximo avião para os Estados Unidos.
- Ele não pode me dar ordens. - Sally-Anne interrompeu o fluxo de recriminações.
- Isto não é a União Soviética e sou uma cidadã livre.
- Mas não por muito tempo. Ah, não; não se Mugabe botar as mãos em vocês!
Assassinato, insurreição armada e mais outras coisinhas...
- Tudo isso é uma farsa!
- Você e seu namorado deixaram um monte de cadáveres frescos para trás como uma
pilha de latas de cerveja vazias em um piquenique. Mugabe já está tomando
providências junto ao governo de Botsuana...
- Somos refugiados políticos - interrompeu-o Sally-Anne, furiosa.
- Sally-Anne - disse Craig em tom pacificador. - Você não pode se excitar desta
maneira.
- Excitar? - gritou ela. - Fomos roubados, espancados, ameaçados com um pelotão
de fuzilamento, e eu quase fui estuprada, e o representante oficial do governo
americano, do país do qual sou uma cidadã, tem a audácia de nos chamar de
criminosos.
- Não estou chamando vocês de nada - negou Morgan taxativamente. - Estou apenas
avisando-a para tratar de dar o fora da África e voltar correndo para a casa da
mamãe.
- Ele nos chama de criminosos e ainda tem o topete de vir para o meu lado com
essa de porco chauvinista...
- Espere aí, Sally-Anne. - E Morgan fez um gesto com a mão. - Vamos começar tudo
de novo. Vocês estão numa grande encrenca... e nós também. Temos de dar um jeito
nisso.
- Será que agora vai se resolver a sentar? - Craig empurroulhe uma cadeira e
Morgan sentou-se, acendendo um cigarro.
- De qualquer maneira, como vão vocês? - perguntou.
- Pensei que nunca iria perguntar, querido - retrucou Sally- Anne raivosamente.
- Ela teve uma séria desidratação. Chegaram a suspeitar de uma paralisia renal,
mas ministraram-lhe soro e líquidos por três dias e, quanto a esse problema,
está bem. Ficaram preocupados com a pancada na cabeça, mas as radiografias foram
negativas, graças a Deus. Foi apenas uma pequena concussão e prometeram que
sairá daqui amanhã.
- Então, ela já pode viajar?
- Bem que achei seu interesse tocante demais...
- Escute, Sally-Anne, isto é a África. Se o Zimbabué conseguir agarrar você, não
haverá nada que se possa fazer para ajudá-la. É para seu próprio bem. Tem que
sair daqui. O embaixador...
- O embaixador que vá se foder - Sally-Anne completou com satisfação -, e vá se
foder você também, Morgan Oxford.
- Não posso me comprometer por Sua Excelência. - Morgan riu pela primeira vez. -
Mas quanto a mim, quando é que podemos começar? - E até Sally-Anne riu também.
Craig aproveitou a trégua.
- Morgan, pode confiar em mim para fazê-la agir com juízo. Imediatamente, Sally-
Anne reagiu e já estava pronta a duelar com outro porco chauvinista, mas Craig
franziu as sobrancelhas, sacudindo a cabeça e ela calou-se, relutante. Morgan,
então, virou-se para ele.
- E quanto a você, Craig? Como é que eles descobriram que estava trabalhando
para a CIA?
- Eu estava? - Craig parecia perplexo. - Se estava, ninguém me disse.
- Quem diabos você acha que Henry Pickering é, afinal? Papai Noel?
- Henry é o vice-presidente do Banco Mundial!
- Crianças - repetiu Morgan -, crianças metidas em jogos perigosos. - E
controlou-se. - Bem, de qualquer forma, está tudo acabado. Seu contrato
terminou, e se possível, ontem.
- Mandei a Henry um relatório completo há três dias.
- É! - Morgan concordou com ar resignado. - Sobre o fato de Peter Fungabera ser
o candidato de Moscou. Peter é um shona e os russos nunca chegariam nem perto
dele. Só para fazê-lo tirar isso da cabeça, o general Fungabera odeia os russos
há muito tempo e temos com ele ótimas relações, muito boas mesmo. E isso nos
basta.
- Pelo amor de Deus, Morgan. Ele está fazendo jogo duplo. Eu ouvi isso de seu
próprio ajudante, o capitão Timon Nbebi!
- Que está convenientemente morto - lembrou-lhe Morgan. - Se isso o fizer
sentir-se melhor, colocamos o relatório no computador... mas o arquivamos em uma
área da memória destinada a textos sem nenhuma credibilidade. Henry Pickering
lhe manda os melhores agradecimentos.
- Morgan, você viu minhas fotografias das aldeias incendiadas, da devastação
feita pela Terceira Brigada... - interveio Sally- Anne.
- Como diz o ditado, é preciso quebrar os ovos para fazer uma omelete -
interrompeu Morgan. - Naturalmente, não gostamos de toda essa violência, mas
Peter Fungabera é anti-sovíético e os matabele, pró-Rússia. Temos que apoiar os
regimes anticomunistas, mesmo se não gostamos de alguns de seus métodos: há
mulheres e crianças sofrendo em El Salvador. Mas isso significa que devemos
parar com a ajuda ao país? Precisamos recuar de qualquer situação em que nosso
pessoal não esteja cumprindo à risca a Convenção de Genebra? Cresça, Sally-Anne,
a realidade é essa.
A pequena enfermaria ficou silenciosa, exceto pelos estalidos no teto de zinco
expandido pelo calor. No gramado ressequido que se via da janela, doentes
passeavam metidos em roupões cor-de-rosa com as iniciais do Departamento de
Saúde de Botsuana.
- Isso é tudo o que tinha para dizer? - perguntou Sally-Anne.
- E não é o bastante? - Morgan apagou o cigarro e levantou-se. - Ainda há mais
uma coisa, Craig. Henry Pickering me pediu que lhe dissesse que o Banco
Territorial de Zimbabué repudiou a garantia de seu empréstimo, sob a alegação de
que você foi oficialmente declarado um inimigo do povo. E também que irão
procurá-lo para a reposição do capital e dos juros. Isso faz sentido para você?
- Desgraçadamente, sim - respondeu Craig, cabisbaixo.
- Disse que vai tentar chegar a um acordo com você quando for a Nova York, mas,
nesse meio tempo, foi forçado a congelar todas as suas contas bancárias e mandar
aos editores uma ordem de não-pagamento para os seus direitos autorais daqui por
diante.
- Era o que eu previa.
- Sinto muito, Craig. Parece um bocado duro. - Morgan estendeu-lhe a mão. -
Gostei de seu livro, e também de você. Sinto que tudo acabe assim.
Craig foi acompanhá-lo até o Ford verde com chapa diplomática.
- Será que pode me fazer um último favor?
- Se puder - respondeu Morgan, desconfiado.
- Pode providenciar que seja entregue uma remessa ao meu editor em Nova York? -
E acrescentou ao ver que as suspeitas continuavam: - São apenas as últimas
páginas de meu novo manuscrito, dou-lhe minha palavra.
- Está bem - disse Morgan, ainda duvidando. - Vou providenciar para que ele as
receba.
Craig tirou a sacola do Land-Rover estacionado no pátio do hospital.
- Cuide bem dela - pediu. - É minha própria carne e sangue e minha única
esperança de salvação.
Ficou olhando o Ford afastar-se e voltou ao hospital.
- O que era tudo aquilo sobre empréstimos e bancos? - perguntou Sally-Anne
quando o viu.
- Significa que quando pedi você em casamento era um milionário. - Craig sentou-
se na beira da cama. - E agora não passo de um falido sem posses e que deve dois
milhões de dólares.
, - Você tem o novo livro. Ashe Levy diz que será um sucesso.
- Querida, se escrever um best-seller a cada ano pelo resto de minha vida, só
conseguiria me manter em dia com os juros sobre minha dívida com Henry Pickering
e seus bancos.
Ela olhou-o fixamente.
- O que estou tentando dizer é que... meu pedido está sujeito a uma revisão,
você tem todo direito de mudar de ideia. Não tem de se casar comigo.
- Craig, tranque a porta e abaixe as persianas.
- Você deve estar brincando! Não aqui e agora! Deve ser provavelmente um grave
crime neste país, coabitação ilegítima ou algo assim.
- Escute, mocinho, quando se está sendo procurada por assassinato e insurreição
armada, uma pequena transgressão da lei com o futuro marido, mesmo que ele não
passe de um pobre necessitado, pesa muito pouco na consciência.
No dia seguinte, Craig foi buscar Sally-Anne que vestia os mesmos jeans, camisa
e ténis com que dera entrada no hospital.
- A irmã mandou lavá-los e remendá-los - parou abruptamente quando viu o Land-
Rover. - O que é isso? Pensei que estávamos "quebrados".
- O computador ainda não recebeu as boas notícias e o meu cartão de crédito
ainda está valendo.
- Isso é legal?
- Quando se deve cinco milhões de dólares, minha senhora, mais uns poucos
dólares não irão pesar na consciência. - Sorriu e ligou o motor. - A agência de
aluguel que se preocupe.
- Você está aceitando as coisas muito bem, Craig. - E sentou-se mais junto a
ele.
- Estamos vivos, e isso é motivo para grandes comemorações. Quanto ao
dinheiro... bem, acho que não nasci para milionário. Passei a vida inteira com
medo de perder dinheiro, o que me tirava toda a energia. Agora que o perdi, pode
parecer estranho, mas me sinto livre outra vez.
- Está feliz por ter perdido tudo o que tinha? - Virou-se para olhá-lo. - Até
mesmo para você, soa muito louco!
- Não estou feliz. O que realmente lamento é ter perdido King's Lynn e o Águas
do Zambeze. Poderíamos ter feito algo maravilhoso deles. Lamento muito por
isso... e também por Tungata Zebiwe.
- Sim. Nós o destruímos. - Ambos ficaram sérios. - Se ao menos pudéssemos fazer
alguma coisa por ele.
- Não podemos fazer nada. - Craig balançou a cabeça. - Apesar do que Timon
disse, não podemos ter certeza de que esteja vivo e, mesmo se estiver, não temos
a menor ideia de onde ou como achá-lo.
Cruzaram a linha da estrada de ferro em direção à rua principal de Francistown.
- "A Jóia do Norte" - disse Craig. - População: duas mil pessoas; ocupação
principal: consumo de bebidas alcoólicas; razão para a existência: incerta. -
Parou diante do único hotel. - Como pode ver, o total da população, no momento,
acha-se no bar.
Mas a jovem recepcionista era bonita e eficiente.
- Sr. Mellow, há uma senhora à sua espera - disse, assim que Craig entrou no
vestíbulo.
Craig não a reconheceu senão quando Sally-Anne voou ao seu encontro.
- Sarah! - gritou. - Como chegou aqui? Como nos achou?
O quarto tinha duas camas com um toucador no meio, uma imitação gasta de tapete
persa no chão de cimento vermelho e uma única cadeira. As duas moças sentaram-se
na cama com as pernas dobradas.
- Disseram-me na Cruz Vermelha que tinham sido encontrados no deserto e trazidos
para cá pela polícia, senhorita Jay.
- Por favor, me chame de Sally-Anne, Sarah. Sarah sorriu afetuosamente.
- Não estava segura de que quisessem me ver depois daquele julgamento. Mas meus
amigos me contaram como foram tratados pelos soldados de Fungabera e achei que
compreenderam como eu tinha razão, que Tungata Zebiwe não é um criminoso e
precisa de amigos agora. - Voltou-se para Craig. - Era seu amigo de verdade,
senhor Mellow. Falou-me muito a seu respeito. Temia o que pudesse lhe acontecer
quando ouviu dizer que voltara ao Zimbabué e que desejava recuperar as terras de
sua família em Matabeleland. Sabia que isso provocaria problemas terríveis e que
seria apanhado por eles. Disse que o senhor era muito vulnerável para suportar
os tempos duros que estavam chegando. Chamava-o de Pupho, o sonhador gentil, mas
também me contou que era teimoso e obstinado. Queria evitar que fosse magoado
outra vez. Disse-me: "Da última vez, ele perdeu uma perna... e desta, pode
perder a vida. Para ser seu amigo, preciso tornar-me seu inimigo. Preciso fazê-
lo sair de Zimbabué".
Craig lembrou-se do encontro tempestuoso com Tungata, quando fora pedir-lhe
ajuda para comprar King's Lynn. Então, tudo não passara de uma farsa? Mesmo
assim, ainda achava duro de acreditar. Os sentimentos dele haviam parecido tão
reais, e a fúria, tão convincente.
- Sinto muito, senhor Mellow. Estou dizendo coisas muito rudes para o senhor,
mas repito apenas o que Tungata me disse. Era seu amigo, e ainda é.
- Na verdade, já não tem importância o que achava de mim - murmurou Craig. - Sam
está provavelmente morto a essas alturas.
- Não! - Pela primeira vez, Sarah levantou a voz em tom veemente e quase
zangado. - Não diga uma coisa destas! Está vivo. Eu o vi e falei com ele. Eles
nunca vão conseguir matar um homem como ele!
A cadeira estalou quando Craig inclinou-se, ansioso.
- Você o viu? Quando?
- Há duas semanas.
- Onde? Onde está ele?
- No acampamento de Tuti.
- Sam está vivo! - Craig mudou ao dizer isso. Os ombros curvados ficaram eretos,
ergueu a cabeça e os olhos estavam mais brilhantes e alertas. Não olhava para
ela e sim para a parede, tentando dominar a torrente de emoções e ideias que o
assaltavam, sem perceber que Sarah chorava.
Foi Sally-Anne quem colocou-lhe o braço nos ombros, enquanto Sarah soluçava.
- Oh, meu senhor Tungata, que coisas horríveis fizeram com ele. Quase o mataram
de fome e de pancada. Está que é pele e ossos e coberto de cicatrizes, como um
vira-lata de aldeia. Caminha como um velho, e só os olhos ainda são orgulhosos.
Sally-Anne abraçava-a sem nada dizer. Craig levantou-se de um pulo e começou a
andar de um lado para o outro. O quarto era tão pequeno que o cruzava em quatro
passadas. Sally-Anne procurou nos bolsos e achou um lenço de papel.
- Quando fica pronto o Cessna? - perguntou Craig, continuando a andar de um lado
para o outro, fazendo um estalido com a perna mecânica cada vez que se virava.
- Está pronto desde a semana passada. Já lhe disse, não é? - Sally-Anne
respondeu distraída, ocupando-se de Sarah.
- Quantos passageiros pode transportar?
- O Cessna? Já o pilotei com seis adultos a bordo, mas foi um aperto. Tem
permissão para... - E calou-se abruptamente. Olhouo, e para Sara em seguida, com
um ar espantado. - Pelo amor de Deus, Craig, ficou louco?
- Qual a autonomia de vôo completamente carregado? - Craig ignorou a pergunta.
- Mil e duzentas milhas náuticas, com o manípulo de gasolina em autonomia máxima
de vôo... mas você não pode estar falando sério.
- Bem... - Craig pensava em voz alta. - Posso arranjar lugar para um par de
tambores no Land-Rover. Você pode aterrissar e reabastecer em um campo bem na
fronteira; conheço um local perto de Panga Matenga, a quinhentos quilómetros ao
norte daqui. É o ponto mais próximo de entrada...
- Craig, sabe o que farão conosco se nos apanharem? - A voz de Sally-Anne estava
rouca com o choque.
Sarah estava com o lenço de papel no nariz, mas os olhos mudavam de um para o
outro, acompanhando o diálogo.
- Armas - murmurou Craig. - Precisamos de armas. Morgan Oxford? Não, que droga,
ele nos riscou da sua lista.
- Fuzis? - A voz de Sarah soava abafada pelo lenço e pelos soluços.
- Fuzis e granadas - concordou Craig. - E explosivos, se fosse possível.
- Posso conseguir fuzis. Alguns de nosso povo conseguiram escapar e estão aqui
em Botsuana. Esconderam armas na floresta, durante a guerra.
- Que tipo de armas? - perguntou Craig.
- Daquele tipo que chamam de "bananas" e granadas de mão.
- Fuzis AK 47 - rejubilou-se Craig. - Sarah, você é ótima.
- Só nós dois? - Sally-Anne empalidecera ao compreender que ele realmente
pretendia levar a ideia avante. - Nós dois contra toda a Terceira Brigada? É
nisso que está pensando?
- Não, eu vou com vocês. - Sarah tirou o lenço do nariz. - Seremos três.
- Três, que ótimo! - disse Sally-Anne. - Três, que maravilha!
Craig virou-se para ela e continuou como se não a tivesse escutado:
- Passo um, vamos desenhar um mapa do campo de Tuti e anotar cada detalhe de que
lembramos. - Recomeçou a andar de um lado para o outro. - Dois, nos encontramos
com os amigos de Sarah para ver que ajuda podem nos dar. Três, Sally-Anne vai no
vôo comercial até Joanesburgo e traz o Cessna de volta. Quanto tempo levaria?
- Posso voltar em três dias. - A palidez estava desaparecendo do rosto de Sally-
Anne. - Isso, caso eu resolva ir!
- Ótimo! - Craig esfregou as mãos de satisfação. - Podemos começar logo com o
mapa.
Craig pediu que mandassem sanduíches e uma garrafa de vinho para o quarto e
trabalharam até as duas da manhã, quando Sarah partiu com a promessa de voltar
no café da manhã. Craig dobrou o mapa e ambos deitaram-se em um dos leitos
estreitos, cansados demais, porém, para conseguir dormir.
- Sam estava tentando me proteger - maravilhou-se Craig. - Estava fazendo aquilo
por mim todo o tempo.
- Fale-me sobre ele - pediu Sally-Anne, reclinada em seu peito e ficou ouvindo-o
falar do amigo. Quando ele concluiu a narrativa, perguntou com doçura:
- Então, isso é absolutamente sério?
- Seriíssimo, mas será que quer realmente me acompanhar?
- É uma loucura - respondeu -, uma completa tolice, mas vamos em frente.
A fumaça negra e fuliginosa dos sinais feitos com trapos encharcados de
combustível e incendiados que Craig colocara subia em duas colunas paralelas no
claro céu do deserto. Ele e Sarah estavam em cima do capô do Land-Rover, olhando
para o Sul, na terra seca e selvagem do nordeste de Botsuana. A fronteira do
Zimbabué ficava a trinta quilómetros a leste, uma planície árida e achatada,
recoberta aqui e ali com árvores espinhentas e esparsas, manchada pela lepra
esbranquiçada dos depósitos salinos.
A atmosfera produzia uma miragem rebrilhante e enganadora e as árvores na borda
mais afastada da salina pareciam sobrenadar e mudar de forma como amebas no
microscópio. Um demónio rodopiante de poeira surgiu na superfície branca,
girando e balançando-se sinuosamente como uma bailarina de dança do ventre,
subindo a sessenta metros no ar quente até desaparecer tão subitamente como
surgira.
Continuavam a ouvir o som intermitente do motor do Cessna, até que se tornou
contínuo.
- Lá! - Sarah apontou para um pontinho minúsculo no horizonte.
Craig deu mais uma olhada ansiosa pelo campo de pouso improvisado. Acendera os
sinais assim que tinham ouvido o primeiro ruído do motor. Marcara com cuidado o
terreno sólido na beira do depósito, pois a cinquenta metros adiante o solo era
traiçoeiramente liso.
Ficou olhando o aparelho aproximar-se. Sally-Anne sobrevoava as árvores baobás,
alinhando-se com a faixa demarcada. Passou uma primeira vez por cima, para
examiná-la, deu a volta e aterríssou suavemente, taxiando em direção do Land-
Rover.
- Meu Deus, me pareceu que você nunca mais chegaria. - Craig abraçou-a quando
pulou da carlinga.
- Foram só três dias - protestou.
- Foi uma eternidade - disse Craig, beijando-a.
Foram abraçados até o Land-Rover. Depois que Sally-Anne cumprimentou Sarah,
Craig apresentou-a aos dois matabele que estavam acocorados na sombra do carro,
e que se levantaram cortesmente para saudá-la.
- Este é o Jonas e este é o Aaron. Eles nos forneceram as armas e estão nos
ajudando em tudo o que podem.
Eram dois jovens reservados e sérios com olhos envelhecidos pelas coisas
horríveis que haviam presenciado, mas tinham boa vontade e eram treinados.
Bombearam a gasolina dos tambores na traseira do Land-Rover diretamente para os
tanques nas asas do Cessna, enquanto Craig retirava os assentos da parte de trás
da cabine para reduzir o peso e dar espaço para a carga.
Começaram, então, o carregamento. Sally-Anne pesava cada coisa na balança de
mola que comprara especialmente para isso e tomava nota. A munição era a parte
mais pesada. Tinham oito mil pentes de balas 7.62 mm Ps. Craig passara-as da
embalagem para sacos plásticos, economizando peso e espaço. Tinham estado
enterrados por vários anos e muitos estavam enferrujados e inutilizados, mas
exceto esses Craig examinara e testara alguns de cada caixote sem uma única
falha.
A maioria dos fuzis também estava enferrujada e trabalhara noites a fio, à luz
de um lampião, desarmando-os e limpando-os até conseguir vinte e cinco armas em
bom estado. Tinham também cinco pistolas Tokarev e duas caixas de granadas de
fragmentação que pareciam em melhores condições do que os fuzis. Craig
experimentara uma de cada caixa, atirando-as num buraco de tamanduá com
resultados satisfatórios. Restavam quarenta e oito das cinquenta, embalou-as em
cinco sacos de lona comprados numa mercearia em Francistown.
Comprara também o resto do equipamento em Francistown. Cortadores de fiação e
arame, cordas de náilon, facões panga que Jonas e Aaron haviam afiado, lanternas
e baterias extras, cantis e mais uma dúzia de coisas que poderiam ser úteis.
Sara fora nomeada a assistente médica e organizara uma caixa de primeiros
socorros comprados na farmácia de Francistown. As rações alimentares eram
espartanas: carne vegetal desidratada em pacotes de cinco quilos, a alimentação
mais nutritiva em relação ao pouco peso que apresentava e alguns pacotes de sal.
- Certo, isto é tudo - Sally-Anne encerrou o carregamento. - Mais umas gramas e
não conseguiremos sair do chão. O resto terá de esperar pela segunda viagem.
Ao escurecer, sentaram-se em torno da fogueira do acampamento e deliciaram-se
com os bifes e as frutas frescas que trouxeram de Joanesburgo.
- Comam à vontade, meus filhos - encorajou-os. - Pode levar muito tempo antes
que se coma assim outra vez.
Mais tarde, Craig e Sally-Anne levaram os cobertores para longe da fogueira e
dos olhos dos outros, deitaram-se nus na noite morna do deserto e fizeram amor,
sob o crescente prateado da lua, ambos dolorosamente conscientes de que poderia
ser a última vez.
Quando tomaram café ainda estava escuro; a lua já se fora, mas ainda não surgira
o alvorecer. Deixaram Jonas e Aaron tomando conta do Land-Rover e para ajudar
com o reabastecimento e a recarga na segunda viagem, e Sally-Anne taxiou até o
fim da pista quando já estava claro o suficiente para distinguir os marcos.
Mesmo no frescor da noite, o Cessna superlotado levou um tempo infindável para
decolar e ascender lentamente aos primeiros raios do Sol.
- À fronteira do Zimbabué - murmurou Sally-Anne. - Ainda não posso acreditar que
estamos fazendo isso.
Craig estava sentado ao lado, sobre os sacos de munição, e Sarah parecia um
felino enrodilhada daquela maneira em cima da carga.
Sally-Anne inclinou o avião ligeiramente para examinar o mapa do solo. Escolhera
um percurso que atravessava a estrada de ferro a uns vinte quilómetros ao sul da
cidade de mineração de Wankie, e depois cruzava a estrada principal vários
quilómetros adiante, evitando qualquer habitação humana. O terreno abaixo mudava
rapidamente, o deserto desaparecia aos poucos e cedia lugar a áreas de floresta
e clareiras cobertas de capim. Havia nuvens ao norte e o resto do céu estava
limpo. Craig franziu os olhos com a claridade do Sol raiando.
- Lá está a estrada de ferro.
Sally-Anne fechou o manípulo e começou a descer rapidamente. A quinze metros do
topo das árvores, passaram rugindo sobre os trilhos desertos e minutos mais
tarde cruzaram a estrada principal, Viram um caminhão arrastando-se pela faixa
de asfalto, e cruzaram rapidamente por trás dele ficando visíveis apenas por
poucos segundos, mas Sally-Ane fez uma careta.
- Espero que não tenham dado maior importância a nós. Há um bocado de aviões
pequenos cruzando por aqui. - Olhou para o relógio. - Devemos chegar em quarenta
minutos.
- Está bem - disse Craig. - Vamos revisar tudo mais uma vez. Você deixa Sarah e
eu e se afasta o mais rápido possível de volta à salina. Recarrega, reabastece
e, daqui a dois dias, volta para cá. Se você vir um sinal de fumaça, pode
aterrissar. Se não houver sinal, volta para a salina, dá um intervalo de dois
dias e faz a última viagem. Se não houver novamente o sinal combinado, volta e
não faz nenhuma outra tentativa.
- Craig, não diga uma coisa dessas. Por favor, querido, volte" para mim - disse
Sally-Anne, segurando-lhe a mão.
Ficaram de mãos dadas pelo resto da viagem, exceto pelos poucos momentos em que
precisou das duas para usar os controles.
- Lá está!
O rio Chizarira parecia uma serpente verde-escura atravessando a vasta planície
e via-lhe o brilho da água através das árvores.
- O Águas do Zambeze está logo adiante.
Mantiveram-se afastados dos acampamentos que haviam construído com tanto
carinho, mas ambos olharam melancolicamente para as colinas adormecidas que
pontilhavam o horizonte.
Sally-Anne desceu cada vez mais e fez um giro amplo, mantendo as colinas entre
eles e as construções do Águas do Zambeze.
- Ainda estão aí! - As carcaças dos rinocerontes tinham sido devoradas pelos
predadores e secadas pelo Sol.
Sally-Anne verificou os instrumentos e dirigiu-se para a estreita pastagem ao
longo da entrada da garganta onde já aterrissara antes.
- Rezem para que os tamanduás e os javalis não tenham andado por aqui - murmurou
e o Cessna sobrecarregado avançou com o aviso de perda de velocidade piscando
intermitente.
Sally-Anne inclinou o avião por sobre o topo das árvores e tocou o solo com uma
forte pancada. O Cessna pulou e escoiceou sobre o terreno irregular, mas o freio
de segurança e a grama espessa fizeram-no parar rapidamente.
- Graças a Deus! - Sally-Anne suspirou aliviada. Descarregaram com pressa
febril, empilhando tudo e cobrindo com redes de náilon verde usadas para
proteger do Sol mudas recém-cortadas que Craig descobrira em Francistown. Sally-
Anne e Craig trocaram olhares desolados.
- Oh, Deus, eu odeio isso! - ela exclamou.
- Eu também... Vá logo! Vá depressa, por favor. Trocaram um beijo e ela correu
de volta à cabine. Taxiou até o fim da clareira e voltou a toda velocidade
seguindo a própria trilha. O avião aliviado da carga subiu rapidamente, e a
última visão que teve dela foi o rosto pálido na janela virando-se para ele e
desaparecendo entre as árvores.
Craig esperou até que o último ruído do motor sumisse e o silêncio da floresta
os envolvesse. Pegou o fuzil e a mochila e jogouos sobre os ombros. Olhou para
Sarah que estava de jeans e ténis azuis. Carregava o saco de comida e os cantis,
com uma Tokarev enfiada no cinto.
- Pronta?
Ela assentiu e começou a caminhar atrás dele em passo acelerado. Chegaram ao
rochedo no início da tarde e, do alto, Craig olhou para os alojamentos do Águas
do Zambeze à beira do rio.
Essa era a parte perigosa, mas acendeu a fogueira de sinalização e, junto com
Sarah, preparou uma emboscada na trilha de acesso, caso a fumaça trouxesse
visitantes indesejáveis.
Sarah e ele esconderam-se e nenhum dos dois moveu-se ou falou por três horas. Só
os olhos mantinham-se ocupados, vigiando os declives por trás e acima da
floresta.
E, mesmo assim, foram apanhados desprevenidos. A voz era um sussurro áspero em
sindebele, perto, muito perto.
- Ah! Kuphela. Então, trouxe o meu dinheiro. - O rosto do camarada Sentinela,
cheio de cicatrizes, os espiava. Estava a cerca de dez passos sem que tivessem
percebido. - Pensei que tivesse nos esquecido.
- Não há dinheiro para vocês, mas um trabalho duro e perigoso.
Havia três homens com ele, magros e com fisionomias lupinas. Apagaram a fogueira
de sinalização e espalharam-se pela floresta em formação defensiva para cobrir a
marcha.
- Temos que continuar - explicou o camarada Sentinela.
- Aqui estamos a descoberto e os shona nos acuam como cães de caça. Desde que
nos vimos pela última vez, perdi muitos homens. O camarada Dólar foi capturado.
- Sim. - Craig lembrava-se dele, espancado e enlameado, testemunhando contra ele
naquela noite terrível em King's Lynn.
Marcharam por duas horas em direção norte pelo terreno irregular ao longo das
escarpas do grande rio. O caminho era aberto para eles e vigiado pelos batedores
que sempre estavam invisíveis na floresta à frente. Só os sinais que faziam
imitando os pássaros os guiavam e faziam com que se sentissem seguros.
Chegaram afinal ao acampamento da guerrilha. Havia mulheres junto aos pequenos
braseiros sem fumaça e uma delas correu para abraçar Sarah assim que a viu.
- É a filha mais moça de minha tia - explicou Sarah em sindebele, que tanto ela
quanto Craig falavam exclusivamente agora.
O acampamento era um local pouco confortável e tristonho, uma série de cavernas
primitivas na margem em declive acentuado de um rio seco e ocultas por galhos de
árvores, com aspecto de coisa temporária. Não havia qualquer conforto e todo o
equipamento podia ser preparado em minutos para ser levado embora. As mulheres
tinham as mesmas fisionomias sérias dos homens.
- Nunca permanecemos no mesmo lugar - explicou Sentinela. - Os kanka conseguem
ver-nos do ar se fazemos isso. Mesmo que não se use o mesmo caminho, nossos pés
logo deixam trilhas e é por esses sinais que procuram. Vamos ter que sair daqui
logo.
As mulheres trouxeram-lhes comida e Craig viu como estava esfomeado e cansado,
mas, antes de comer, deu-lhes as caixas de cigarros que trouxera. Viu aqueles
homens amargurados sorrirem pela primeira vez enquanto passavam de mão em mão um
único cigarro.
- Quantos homens tem o seu grupo?
- Vinte e seis. - O camarada Sentinela deu uma tragada e passou o cigarro
adiante. - Mas há outro grupo próximo daqui.
Vinte e seis eram suficientes, refletiu Craig. Se pudessem explorar o elemento
surpresa, seria o bastante.
Comeram com as mãos do pote comunal e Sentinela consentiu que fumassem mais um
cigarro.
- Bem, Kuphela, disse que tinha um trabalho para nós.
- O camarada ministro Tungata Zebiwe foi aprisionado pelos shona.
- É uma coisa terrível, uma punhalada no coração do povo matabele; mas, mesmo
aqui na floresta, já sabemos disso há muitos meses. Veio até cá para nos contar
uma coisa que todo mundo já sabe?
- Eles o estão mantendo vivo em Tuti.
- Tuti! Nossa! - O camarada Sentinela soltou uma exclamação e todos falaram ao
mesmo tempo.
- Como sabe disso?
- Ouvimos dizer que foi morto. - Isso é conversa de comadres.
Craig olhou para Sarah, sentada afastada com as mulheres.
- Sarah! - E ela aproximou-se.
- Conhecem esta mulher?
- É prima de minha mulher - disse um dos guerrilheiros.
- E a professora da missão - anuiu o camarada Sentinela.
- E uma de nós - concluiu um outro.
- Conte-lhes - ordenou-lhe Craig.
Escutaram silenciosos e atentos enquanto Sarah relatava o último encontro com
Tungata, com olhos rebrilhantes à luz do braseiro e, quando acabou, ficaram em
silêncio. Sarah levantou-se sem nada dizer e foi para junto das outras mulheres,
enquanto o camarada Sentinela virava-se para um dos homens.
- Fale! - convidou-o.
Havia escolhido o mais moço deles para dar opinião em primeiro lugar. Os outros
falariam por ordem de idade, de acordo com o antigo costume do conselho tribal e
levaria tempo. Craig preparou-se pacientemente: era o ritmo da África.
Depois da meia-noite, Sentinela fez um resumo por eles.
- Conhecemos esta mulher, que é de confiança, e acreditamos no que nos contou. O
camarada Tungata é nosso pai. Seu sangue é o sangue dos reis e os shona
fedorentos o mantêm prisioneiro. Todos concordamos com isso. - E fez uma pausa.
- Alguns estão dispostos a tentar livrá-lo dos shona estupradores de crianças e
outros dizem que somos muito poucos, que só temos um fuzil para cada dois homens
e cinco balas para cada fuzil. Portanto, estamos divididos. - E olhou para
Craig. - O que tem a dizer, Kuphela?
- Trouxe para vocês oito mil pentes de munição, vinte e cinco fuzis e cinquenta
granadas. O camarada Tungata é meu amigo e meu irmão. Se houver apenas mulheres
e covardes aqui, e ninguém que me acompanhe, irei sozinho com esta mulher de
coração valente como o de um guerreiro e acharei homens em outro lugar.
O rosto de Sentinela refletiu a afronta, repuxado pela cicatriz, e a resposta
que deu era de reprovação.
- Que não se fale mais em mulheres e covardes, Kuphela. Que não se diga mais
nada. Vamos a Tuti fazer o que é preciso. É o que tenho a dizer.
Acenderam o fogo de sinalização assim que ouviram o motor do Cessna e o
extinguiram assim que Sally-Anne piscou as luzes de aterrissagem. Os
guerrilheiros de Sentinela tinham cortado o capim da clareira com as facas panga
e nivelado com ele os buracos e trechos irregulares e a aterrissagem foi
tranquila e segura.
Descarregaram o resto da munição e das armas em silêncio disciplinado, mas não
podiam esconder os sorrisos de satisfação ao fazê-lo, já que eram as ferramentas
de seu trabalho. A carga desapareceu rapidamente na floresta, e em quinze
minutos Craig e Sally-Anne ficaram sozinhos sob a asa do Cessna.
- Sabe para que rezei? - perguntou Sally-Anne. - Para que não conseguisse achar
o bando e, se os encontrasse, para que se recusassem a acompanhá-lo, e que fosse
forçado a desistir e voltar comigo.
- Você não é muito boa com orações, não é?
- Não sei. Vou adquirir um bocado de prática nesses próximos dias.
- Cinco dias - corrigiu-a Craig. - Você vai voltar na terça de manhã.
- Sim - concordou ela. - Vou decolar ainda escuro e sobrevoar o campo de pouso
de Tuti ao amanhecer às 05h22.
- Mas não aterrisse antes que eu faça um sinal de que estamos controlando a
pista. E, pelo amor de Deus, não fique com pouco combustível para voltar à
salina. Se não aparecermos, não se demore esperando.
- Tenho autonomia para três horas, o que significa que vocês têm até as 8h30
para chegar lá.
- Se não chegarmos até essa hora, não vamos conseguir. Já está na hora de ir,
meu amor.
- Eu sei - disse-lhe Sally-Anne, e não se moveu.
- Eu tenho que ir.
- Não sei como vou sobreviver pelos próximos dias, sentada lá no deserto, sem
saber de nada, vivendo só de meus medos e imaginação.
Ele a abraçou e viu que ela estava trémula.
- Tenho tanto medo por você - ela sussurrou.
- Vejo você na terça de manhã, sem falta.
- Sem falta! - concordou e a voz ficou trémula. - Volte para mim, Craig. Não
quero viver sem você. Promete que volta?
- Prometo - ele disse, beijando-a.
- Bom, estou me sentindo bem melhor. - Sorriu-lhe com o ar atrevido de sempre,
mas os cantos da boca tremiam.
Subiu na cabine e ligou o motor.
- Eu te amo. - Os lábios formaram as palavras que o barulho impedia-o de ouvir e
virou o Cessna, tomando a pista sem olhar para trás.
Eram apenas cem quilómetros no mapa, e do avião não parecera terreno duro. Mas
no solo era diferente.
Estavam cruzando o âmago da região, e a linha divisória entre a terra e as águas
caía da direita para a esquerda, em direção às escarpas do Zambeze. Eram
forçados a seguir o ziguezague das colinas e os vales intermediários e nunca
atravessavam terreno nivelado.
Os guerrilheiros haviam escondido as mulheres em um lugar seguro e só
relutantemente consentiram que Sarah os acompanhasse, mas ela carregava a porção
que lhe cabia de carga e seguia o passo acelerado imprimido pelo camarada
Sentinela.
As colinas de minério de ferro absorviam o calor do Sol e o irradiavam de volta,
enquanto esforçavam-se através delas. As descidas eram tão duras como as
subidas, com a pesada carga forçando ao máximo os corpos. As velhas trilhas de
elefantes que estavam seguindo eram cobertas de seixos arredondados trazidos
pelas chuvas, o que tornava cada passo um perigo.
Um dos guerrilheiros caiu e o tornozelo inchou tanto que não conseguiram
recolocar-lhe a bota. Dividiram sua carga entre eles e o deixaram sozinho,
tentando voltar para onde estavam as mulheres.
As minúsculas abelhas mopani os atormentavam durante o dia, enxameando-lhes a
boca, o nariz e os olhos na busca persistente por umidade, e de noite os
mosquitos dos lençóis d'água estagnada os atacavam. Em um trecho do caminho,
passaram à beira do cinturão de moscas tsé-tsé e os insetos, silenciosos e
imperceptíveis, vieram somar-se aos outros tormentos, pousando tão suavemente
que a vítima só os percebia ao sentir como que uma agulha incandescente
enterrando-se na carne macia por trás da orelha ou na axila.
O perigo de sofrerem um ataque era permanente. A cada poucos quilómetros, a
vanguarda ou a retaguarda dava sinal de alerta e atiravam-se rapidamente à
procura de abrigo, com o dedo no gatilho até que fosse dado de homem a homem o
aviso de que tudo estava bem.
O percurso era lento e estafante - dois dias inteiros de marcha desde o
amanhecer gelado, durante o dia ressequido e ardente até a escuridão de novo,
para alcançar a aldeia do pai de Sarah, Vusamanzi, um feiticeiro da tribo
matabele. Como todos os outros curandeiros, vivia isolado e cercado apenas pelas
esposas, família e pessoas mais chegadas. Por maior que fosse o respeito por
eles, o comum dos mortais evitava os praticantes de magia negra; vinham até eles
apenas para previsões de futuro e tratamentos, davam-lhes a cabra ou outro
animal pedido como pagamento e apressavam-se em partir, aliviados.
A aldeia ficava a alguns quilómetros ao norte da Missão Tuti e possuía uma
próspera comunidade no topo de uma colina, com muitas esposas, cabras, galinhas
e plantações de milho pertencentes a Vusamanzi.
Os guerrilheiros acamparam na floresta atrás do morro e mandaram Sarah
certificar-se de que tudo estava bem e avisar os aldeões de sua presença. Sarah
retornou uma hora depois, e Craig e Sentinela voltaram junto com ela.
Vusamanzi ganhara aquele nome, "Levantador de águas", por sua reputada
habilidade em controlar o Zambeze e seus afluentes. Quando muito jovem,
provocara uma grande enchente para destruir a aldeia de um chefete que não lhe
pagara e, desde então, vários outros que o desagradaram tinham se afogado
misteriosamente em vaus ou poços. Dizia-se que, por invocação de Vusamanzi, a
superfície calma de um lençol d'água subia de repente em uma onda sibilante
quando a vítima aproximava-se para beber água, tomar banho ou atravessá-lo, e
era tragada. Nenhum ser vivo havia na verdade testemunhado o terrível fenómeno,
mas, de qualquer forma, Vusamanzi não tinha muito trabalho em cobrar dos
pacientes e clientes.
Seus cabelos eram como uma touca de algodão branco e usava uma barbicha, branca
também, em feitio de espada, à moda dos zulu. Sarah devia ser uma filha já de
sua velhice, mas era dele que herdara a bela aparência de porte altivo. Estava
vestido com simplicidade, apenas um pano preso aos quadris, o corpo era ereto e
magro, e a voz, ao saudar Craig cortesmente, profunda e firme.
Sarah obviamente o venerava, pois tirou o pote de cerveja de uma das esposas
mais jovens, ajoelhando-se para oferecê-lo. Por sua vez, vía-se também que tinha
um lugar especial no coração do velho, que lhe sorriu afetuosamente, quando ela
sentou-se a seus pés, e começou a acariciar-lhe a cabeça enquanto escutava
atentamente o que Craig dizia. Mandou-a, em seguida, ajudar as mulheres a
preparar comida e cerveja e levá-las para os guerrilheiros escondidos no vale,
antes de dirigir-se a Craig.
- O homem a quem chama de Tungata Zebiwe, "O que procura a justiça", tinha ao
nascer o nome de Samson Kumalo. É descendente em linha direta de Mzilikazi, o
primeiro rei e pai de nosso povo. É a ele que se referem as profecias dos
antigos. Na noite em que foi feito prisioneiro pelos soldados shona, eu o havia
chamado para conversarmos sobre suas responsabilidades e queria transmitir-lhe
os segredos dos reis. Se ainda está vivo, como diz minha filha, é dever de todo
matabele fazer tudo o que esteja em seu poder para dar-lhe a liberdade. O futuro
de nosso povo está em suas mãos. Como posso ajudá-lo? É só me dizer.
- Já nos ajudou com alimento - agradeceu-lhe Craig. - Agora, precisamos de
informações.
- Pergunte, Kuphela. Direi tudo o que souber.
- A estrada entre a Missão Tuti e o acampamento dos soldados passa perto daqui,
não é?
- Atrás dessas colinas - acentuou o velho.
- Sarah me contou que os caminhões passam por essa estrada toda semana no mesmo
dia, levando comida para os soldados e prisioneiros no acampamento.
- É verdade. Toda semana, ao entardecer de segunda-feira, os caminhões passam
por aqui carregados de milho e outras coisas e voltam vazios na manhã seguinte.
- Quantos caminhões?
- Dois ou, raramente, três.
- Quantos soldados os guardam?
- Dois na frente, ao lado do chofer, e mais três ou quatro na traseira. Um fica
no telhado com uma arma grande que dispara depressa. - Uma metralhadora pesada,
pensou Craig. - Os soldados são muito vigilantes e alertas e os caminhões passam
depressa.
- Passaram na última segunda? - perguntou Craig.
- Como sempre. - Vusamanzi alisou os cabelos brancos. Tinha de acreditar que
essa rotina continuaria, ir em frente com a operação, e jogar tudo nela, decidiu
Craig.
- A que distância daqui fica a missão? - perguntou.
- Daqui até lá. - O feiticeiro fez um gesto abarcando um trecho do céu que
correspondia a umas quatro horas de percurso do Sol. Transformados na velocidade
de um homem a pé, corresponderia aproximadamente a uns vinte e quatro
quilómetros.
- E daqui até o acampamento? - continuou Craig.
- A mesma distância.
- Ótimo. - Craig abriu o mapa e verificou que estavam equidistantes entre os
dois pontos, o que lhe dava um cálculo bastante acurado. Começou a calcular
tempos e distâncias, escrevendo-os na borda do mapa.
- Temos de esperar um dia. - Craig levantou finalmente os olhos. - Os homens
podem descansar e preparar-se.
- Minhas mulheres lhes darão comida - concordou Vusamanzi.
- Na segunda-feira vou precisar que algumas pessoas daqui me ajudem.
- Só há mulheres aqui - objetou o velho.
- Preciso exatamente delas; de mulheres jovens e bonitas.
Na manhã seguinte, Craig e Sentinela, levando junto um batedor, foram fazer um
reconhecimento no trecho da estrada que ficava logo por trás das colinas baixas.
Era um caminho maltraçado onde os caminhões haviam aberto sulcos profundos, mas
a Terceira Brigada cortara a vegetação de ambos os lados para diminuir o risco
de emboscadas.
Um pouco antes do meio-dia, chegaram ao local em que Fungabera parara na
primeira viagem que haviam feito a Tuti, o cruzamento onde a ponte de madeira
atravessava por sobre o rio verde e onde haviam comido espigas de milho assadas.
Craig lembrava-se perfeitamento do local. Os acessos à ponte, primeiro descendo
a encosta do vale e depois sobre a passagem de terra estreita, deviam obrigar o
comboio de suprimentos a diminuir e trocar a marcha. Era o lugar perfeito para
uma emboscada, e Craig mandou o batedor de volta à aldeia de Vusamanzi para
trazer o resto da força. Enquanto esperavam, Craig e Sentinela revisaram os
planos e os adaptaram ao terreno local.
O ataque principal seria desfechado na ponte, mas se falhasse tinham que ter um
plano alternativo para evitar que o comboio conseguisse furá-lo. Quando os
guerrilheiros retornaram, Craig mandou o camarada Sentinela com cinco homens
para além da ponte lá, fora do alcance de visão, cortaram uma grande árvore
mhoba-hoba e com ela fizeram um bloqueio na estrada. Sentinela ficaria no
comando ali, enquanto Craig coordenaria o ataque na ponte.
- Quais destes homens falam shona? - perguntou Craig.
- Este aqui fala sem qualquer sotaque e este não tão bem.
- Mantenha-os fora de qualquer combate. Não podemos nos arriscar a perdê-los -
ordenou. - Precisamos deles no acampamento.
- Vou tomar conta deles - concordou Sentinela.
- Agora, as mulheres.
Sarah escolhera três de suas meio-irmãs da aldeia, cujas idades variavam entre
dezesseis e dezoito anos.
Eram as mais bonitas dentre as inúmeras filhas do velho feiticeiro e, quando
Craig explicou-lhes o que deviam fazer, riram sem parar, cobrindo as bocas com
as mãos e fazendo todos os trejeitos de recato e pudor juvenis. Mas estavam,
obviamente, adorando a aventura, nada de tão excitante lhes havia acontecido
antes.
- Será que estão compreendendo? - perguntou Craig a Sarah. - É muito perigoso e
devem fazer exatamente o que eu mandar.
- Vou estar junto a elas - sossegou-o Sarah. - O tempo todo, inclusive, e
especialmente hoje à noite. - Essa última observação era para as moças, pois
percebera claramente os olhares mútuos trocados entre as irmãs e os jovens
guerrilheiros. Fê-las entrar, rindo ainda, no abrigo primitivo de galhos
espinhentos que as obrigara a fazer e acomodou-se à entrada.
- Os espinhos são suficientes para afastar um leão devorador de homens, Kuphela
- disse a Craig -, mas não sei como funcionarão com um garanhão de espada
levantada e uma donzela disposta a abaixá-la. Acho que não vou conseguir dormir
muito esta noite.
E Craig também passou a noite sem dormir. Teve pesadelos outra vez, os sonhos
terríveis que quase o haviam enlouquecido durante a longa convalescença do campo
minado a da perda da perna. Estava preso neles e incapaz de recobrar a
consciência até que Sarah o sacudiu para acordá-lo. Tremia tanto que os dentes
batiam e o suor escorria, ensopando-lhe a camisa. Sarah compreendia.
Compassiva,sentou-se a seu lado e segurou-lhe a mão até que os tremores
cessassem, e conversaram a noite inteira, falando baixo para não acordar os
outros. Falaram de Tungata e Sally-Anne, o que desejavam da vida e as chances de
obtê-lo.
- Quando me casar com o camarada ministro, poderei falar por todas as mulheres
matabele. Sempre foram tratadas como escravas pelos homens. Mesmo hoje em dia,
eu, que sou uma enfermeira treinada e uma professora, tenho de comer junto à
fogueira das mulheres. E depois, haverá outra campanha a fazer, a luta para
conquistar o lugar a que têm direito as mulheres de minha tribo e ver seu
verdadeiro valor ser reconhecido.
Craig descobriu que o afeto que sentia por Sarah estava começando a se igualar
ao respeito. Percebeu que era uma mulher à altura de um homem como Tungata
Zebiwe. Enquanto conversavam, conseguiu dominar o medo que tinha do dia seguinte
e a noite passou tão depressa que ficou surpreso ao olhar as horas.
- Quatro horas - sussurrou. - Já é tempo de nos mexermos. Obrigado, Sarah, não
sou um homem corajoso e preciso de sua ajuda.
Ela levantou-se e olhou-o por um instante.
- Está sendo injusto com você mesmo. Acho que é um homem muito corajoso.
O sol estava alto e Craig instalara-se entre dois penedos, quase na divisa das
extremidades da ponte, na margem do rio. Empunhava o AK 47, cobrindo toda a
área. Calculara a distância que era de cento e dez metros de uma extremidade a
outra. Daquela distância, sabia que suas chances de acertar o alvo com precisão
eram limitadas.
Meu Deus, tomara que não seja necessário abrir fogo, pensou, e correu o lugar
demarcado com um olhar inquieto. Havia quatro guerrilheiros sob a ponte, nus da
cintura para cima. Apesar de estarem com os fuzis apoiados nas pilastras e ao
alcance das mãos, estavam armados com arcos de um metro e meio de altura, que
serviam para caçar elefantes. Craig tivera dúvidas sobre essas armas até que
vira uma demonstração. Eram de madeira resistente e elástica, enroladas com
tiras de couro cru de kudu que secavam e encolhiam no próprio arco até o
tornarem duro como aço. As cordas eram em tendão trançado, quase tão resistente
como náilon e, mesmo com toda a força, Craig não conseguira esticá-lo em toda a
extensão. A tração exigia um esforço de mais de cinquenta quilos, o que exigia
dedos calejados e músculos bem desenvolvidos.
As flechas eram de aço liso, extremamente afiado na ponta e um dos
guerrilheiros, à distância de trinta passos, cravara-a no tronco fibroso e
espesso de uma baobá, obrigando-os a usar um machado para que saísse. Era capaz
de atravessar um ser humano adulto ou perfurar o peito de um elefante.
Além dos quatro guerrilheiros sob a ponte, outros dez homens estavam ajoelhados
na água, perto da margem, apenas com as cabeças aparecendo, protegidos pelo
declive abrupto e pelos juncos.
O ruído dos motores dos caminhões que se aproximavam mudou, haviam trocado a
marcha na ladeira antes do topo. Craig examinara-a pessoalmente à procura de
algum indício da presença deles, sentindo voltar o velho treinamento na polícia
rodesiana: vegetação amassada, brilho de metal, pegadas nas areias brancas das
margens ou à beira da estrada, e nada encontrara.
- Temos de começar agora - disse Sarah. - Ela e as irmãs estavam agachadas por
trás da rocha a seu lado. Estava certa, era tarde demais para mudar de planos,
para fazer outros arranjos. Eram prisioneiros do esquema.
- Já - disse, e levantou, tirando os jeans. Foi rapidamente imitada pelas irmãs
que despiram os panos enrolados nos quadris.
As quatro ficaram nuas, exceto pelas tangas, de contas minúsculas formando
franjas, amarradas na cintura, que caíam sobre os púbis, mas que ao andarem
revelavam mais do que encobriam. As nádegas roliças estavam desnudas e
tentadoras, destacando-se das cinturas finas.
- Riam! Brinquem bastante - disse Craig.
Não sentiam a menor vergonha da nudez. Nas áreas rurais, aquele era ainda o
traje quotidiano das moças solteiras matabele. Até Sarah o usara antes de ir
para a cidade estudar.
Jogaram água umas nas outras, as peles lustrosas e escuras brilhavam e as
risadas eram excitadas e meio arquejantes, o que atrairia a atenção de qualquer
homem, mas Craig constatou que os guerrilheiros não se deixaram afetar. Nem ao
menos haviam virado a cabeça para olhar. Eram profissionais e toda a sua atenção
estava voltada para a perigosa tarefa a desempenhar.
O caminhão líder surgiu no alto da ladeira. Era uma Toyota de, cinco toneladas,
semelhante ao que os perseguira pela fronteira da Botsuana, pintado na cor de
areia. Havia um soldado atrás da metralhadora montada na traseira. Um segundo
caminhão, muito carregado, vinha logo atrás.
- Que não haja um terceiro. Que sejam apenas dois - suplicou Craig. Colocou o AK
47 ao ombro para mirar, com o cano camuflado por capim seco e o rosto esfregado
com a lama escura do rio.
Havia apenas dois subindo pela passagem. Sarah e as irmãs, com as águas
esverdeadas até os joelhos, começaram a acenar para eles. O caminhão à frente
diminuiu a marcha e as moças balançaram os quadris, soltaram risadas provocantes
e agitaram os seios molhados e lustrosos.
Havia dois homens na cabine e um deles era um oficial subalterno; Craig podia
ver o distintivo da boina e as divisas brilhantes nos ombros mesmo através do
pára-brisa empoeirado. Falou com o chofer e, com um ranger de freios, o caminhão
da frente parou à entrada da ponte, forçando o segundo a parar também.
O jovem oficial abriu a porta e ficou no estribo, enquanto os soldados e o
artilheiro amontoavam-se na traseira sorrindo e gritando comentários
irreverentes. As moças, seguindo o exemplo de Sarah, mergulharam pudicamente
para encobrir a parte inferior do corpo e respondiam aos gracejos. Alguns
soldados do segundo caminhão, para não ficarem atrás, saltaram para juntar-se à
diversão.
Uma das moças mais velhas fez um gesto obsceno e malicioso com o polegar e o
indicador, provocando um coro deleitado de risadas masculinas. O jovem oficial
respondeu com um gesto ainda mais específico e o resto dos soldados deixou os
caminhões, amontoando-se em torno dele. Apenas os dois artilheiros continuavam
nos postos.
Craig lançou um olhar para a parte inferior da ponte onde, deitados de bruços,
os arqueiros preparavam-se para disparar na margem mais afastada, ocultos atrás
da estrutura de madeira.
No rio, Sarah levantou-se, soltando a diminuta franja de contas, e balançou-a
provocantemente. Começou a caminhar em direção aos homens na margem, com a água
flutuando em torno dos quadris, e as risadas cessaram. Caminhava lentamente e a
correnteza exagerava o ondular das cadeiras. Era esbelta, bonita, e o Sol
emprestava-lhe um brilho quase sobrenatural à pele. Até Craig podia sentir o
humor irreverente dos soldados transformar-se em desejo.
Sarah parou logo abaixo deles, e levantou os seios com as mãos, apontando-lhes
os bicos. Todos ficaram concentrados nela, naquele instante, completamente
deslumbrados.
Por trás deles, os quatro arqueiros haviam rastejado sob a passagem e não
estavam a mais de dez passos ao lado do caminhão da frente quando ajoelharam-se
todos juntos e fizeram pontaria. Os arcos retesaram-se, os músculos saltaram ao
mirarem as flechas e, um a um, dispararam.
Não se ouviu um único som, nem mesmo o mais ligeiro sibilar, mas um dos
artilheiros caiu lentamente sobre a borda do caminhão, com os braços e a cabeça
dependurados para fora, enquanto o outro arqueou-se para trás estupefato e
tentou agarrar a flecha enterrada nas costas. Foi atingido por outra, teve uma
convulsão de agonia e tombou.
Os arqueiros mudaram de alvo e as flechas silenciosas voaram em direção à margem
onde estavam os soldados. Um homem gritou. No mesmo instante, os guerrilheiros
escondidos na margem subiram correndo por entre os juncos, assim que os soldados
viraram-se para enfrentar as flechas. Os guerrilheiros nus os atacaram pelas
costas e daquela vez Craig ouviu os ruídos dos longos facões panga sendo
brandidos. Um facão, penetrando pela boina vermelha, dividiu ao meio o crânio do
oficial até o queixo.
Sarah virou-se e correu de volta, juntando-se às outras moças. Fugiram
tropeçando nos bancos de areia submersos.
Houve um único disparo e logo todos os soldados estavam estirados ao longo da
margem, mas os guerrilheiros ainda os atacavam, balançando os facões e
retalhando-os.
- Sarah - gritou Craig quando ela chegou à margem -, leve as moças de volta à
floresta! - Sarah agarrou as roupas e foi levando as irmãs à sua frente.
Empunhando o fuzil, Craig atravessou a ponte. Os guerrilheiros já estavam
despindo e pilhando os mortos. Trabalhavam com a agilidade da longa prática,
primeiro os relógios e depois o conteúdo dos bolsos e cartucheiras.
- Alguém foi ferido? - perguntou Craig. Aquele único tiro o preocupara, mas não
havia baixas. Deu-lhes dois minutos para terminarem com os cadáveres e mandou em
seguida uma patrulha até o alto para prevenir qualquer surpresa, voltando a
ocupar-se dos shona mortos.
- Enterrem-nos! - Já haviam preparado um túmulo coletivo na véspera e arrastaram
para lá os corpos nus.
Havia sangue no lado do caminhão onde tombara o artilheiro.
- Lavem-no! - Um dos guerrilheiros trouxe um cantil. - E lavem também aqueles
uniformes. - Estariam secos em uma hora.
Sarah voltou antes do enterro, já completamente vestida.
- Mandei as meninas de volta à aldeia pois conhecem bem o caminho. Vão ficar a
salvo.
- Saiu-se muito bem - Craig disse, e subiu à cabine do primeiro caminhão que
ainda estava com as chaves no contato.
O grupo que havia feito o enterro voltou e Craig chamou os líderes. O
guerrilheiro designado para dirigir o segundo caminhão ligou o motor e os outros
embarcaram. Os caminhões cruzaram a ponte e foram gemendo ladeira acima. Toda a
operação levara menos de trinta e cinco minutos. Chegaram ao tronco derrubado e
o camarada Sentinela guiou-os para a trilha fora da estrada. Craig estacionou na
mata espessa e imediatamente um grupo de guerrilheiros cobriu os veículos com
galhos cortados e outro começou a descarregá-los e a desobstruir a estrada.
Havia duzentos sacos de farinha de milho, sabão, caixas de carne enlatada,
cobertores, remédios, cigarros, munição, açúcar, sal - um verdadeiro tesouro
para os guerrilheiros. Levaram tudo embora e Craig sabia que seria escondido, e
recuperado mais tarde quando fosse propício. Havia uma dúzia de sacos com os
pertences pessoais dos soldados mortos, um estoque precioso de uniformes da
Terceira Brigada e até duas das famosas boinas vermelhas. Enquanto os
guerrilheiros os vestiam, Craig verificou a hora: era um pouco mais de cinco.
Notara quando estivera lá que o operador de rádio do campo Tuti ligava o gerador
e fazia o relatório de rotina às sete horas toda noite. Verificou o rádio do
caminhão que era de cinco amperes, mais que suficiente para atingir o campo, mas
não o bastante para contatar o quartel-general em Harare, o que era muito bom.
Chamou o camarada Sentinela e Sarah à cabine para verificarem juntos as
anotações. Sally-Anne estaria sobre a pista de Tuti às 5h20 da manhã seguinte e
ficaria por lá até as 8h30. Craig calculava umas três horas de viagem desde o
acampamento até a pista da missão, o que incluía falhas ou pequenos atrasos.
Deveriam, em princípio, sair de lá às 2h30 da madrugada e no máximo, até as 5, o
que significava que tinham de chegar aos portões do campo à meia-noite ou em
torno disso. Duas horas e meia para tomar a posição, reabastecer os caminhões,
libertar os prisioneiros, localizar Tungata e iniciar o retorno.
- Muito bem - disse Craig -, quero que cada grupo repita sua tarefa. Sarah,
você, primeiro...
- Levo os dois comigo com os cortadores e vamos direto para o alojamento Um. -
Designara dois homens para acompanhá-la pois Tungata podia estar fraco demais
para caminhar sem ajuda. O alojamento Um ficava um pouco afastado dos outros, na
parte de trás, e era obviamente usado como a cela de segurança máxima. Sarah
vira Tungata sair de lá para o encontro no pátio de manobras. - Quando o
encontrarmos, vamos trazê-lo de volta ao ponto de encontro no portão principal.
Se puder caminhar sem ajuda, meus dois homens vão ajudar a abrir as outras celas
e libertar os prisioneiros.
- Ótimo. - Estava perfeitamente instruída.
- Agora, o segundo grupo.
- Cinco homens para a torre de guarda do perímetro... - E o camarada Sentinela
repetiu as instruções.
- E tudo. - E Craig levantou-se. - Mas tudo depende de uma coisa que já repeti
umas cem vezes, e que torno a dizer. Precisamos chegar ao rádio antes que
comecem a transmitir. Temos cinco minutos desde o instante em que dispararmos o
primeiro tiro, dois minutos para que o operador perceba o que está acontecendo,
dois minutos para ligar o gerador elétrico e pô-lo em funcionamento, e outro
minuto para comunicar-se com o quartel-general em Harare e avisá-los. Se isso
acontecer, estamos liquidados. - Verificou o relógio. - Sete e cinco, vamos
fazer a chamada agora. Onde está o homem que fala shona?
Craig instruiu-o cuidadosamente sobre o que devia dizer e ficou aliviado ao ver
que era inteligente.
- Digo a eles que o comboio está atrasado pois um dos caminhões quebrou, mas
pode ser consertado. Que vamos chegar muito mais tarde hoje à noite - repetiu.
- Exatamente.
- Se começarem a fazer perguntas, devo responder: "Mensagem não entendida. Sua
transmissão ruim e pouco clara". Torno a repetir, "Chegando atrasados", e
desligo.
Craig ficou ouvindo ansiosamente a mensagem transmitida pelo guerrilheiro,
ouvindo os sons incompreensíveis do operador do campo Tuti, mas foi incapaz de
detectar qualquer suspeita ou alarme na voz distorcida pela transmissão.
O guerrilheiro desligou e entregou o microfone de volta a Craig.
- Ele disse "entendido" e que nos esperam à noite.
- Ótimo. Agora, podemos descansar e comer um pouco.
Mas Craig não conseguiu comer. O estômago, com a tensão da noite que os esperava
e a reação à terrível violência na ponte, incomodava-o. Aqueles panga brandidos
com ódio haviam infligido mutilações horrendas. Muitas vezes, durante a longa
guerra civil, testemunhara as piores formas de morte, mas não se acostumara a
isso e sempre o deixavam nauseado.
O luar está claro demais, pensou, ao espiar por sobre a cobertura de lona do
caminhão. Faltavam quatro dias para a lua cheia, mas a claridade era tanta que
lançava sombras nítidas na terra. O caminhão pulava e sacolejava sobre os
trilhos ruins e a poeira cerrava-lhe a garganta.
Não ousara viajar na cabine, nem mesmo com o rosto enegrecido. Alguém de visão
mais aguda o teria distinguido facilmente. O camarada Sentinela viajava ao lado
do motorista, vestido com o uniforme completo do oficial subalterno, de boina e
divisas. Ao lado dele estava o homem que falava shona, com a outra boina. As
metralhadoras pesadas estavam carregadas e prontas, manobradas por dois homens
escolhidos, e outros oito, vestidos nos uniformes pilhados, viajavam a
descoberto, enquanto o resto estava agachado junto a Craig, sob o toldo de lona.
- Até aqui, tudo bem - murmurou Sarah.
- Até agora - concordou Craig -, mas prefiro maus começos e fins felizes...
Ouviram três batidas vindas da cabine. Era o sinal do camarada Sentinela para
avisar que o campo estava à vista.
- Bem, de qualquer maneira, lá vamos nós. - Craig virou-se para espiar pelo
buraco que fizera na lona.
Avistou as torres de vigia, parecendo torres de petróleo contra o céu luminoso e
a cintilação ocasional do arame farpado. Mas subitamente os holofotes em torno
do campo acenderam-se com um brilho cegante. Todo o acampamento parecia
iluminado pela luz do dia.
- O gerador - gemeu Craig. - Meu Deus, acenderam os holofotes para nos dar boas-
vindas.
Era o primeiro erro. Planejara tudo para a escuridão, com os faróis dos
caminhões cegando e confundindo os guardas, e só naquele momento via como era
óbvio e lógico que iluminassem o acampamento para certificar-se da chegada do
comboio e facilitar a descarga.
Não havia mais remédio, teriam que agir no clarão das luzes e Craig estava
impotente e imobilizado, sem nem ao menos poder comunicar-se com Sentinela na
cabine. Reprovando-se amargamente por não ter previsto aquela possibilidade
ficou de olho grudado no buraco da lona.
Os guardas não haviam aberto os portões e havia uma metralhadora protegida por
sacos de areia ao lado da casa da guarda e o cano virava-se lentamente para
mantê-los em mira enquanto se aproximavam. A guarda estava sendo trocada, com
quatro soldados e um suboficial entrando em forma do lado externo da casa da
guarda.
O sargento saiu e postou-se em frente ao caminhão, levantando o braço. Ao pará-
los, foi até a janela e fez uma pergunta em shona ao guerrilheiro que respondeu-
lhe com fluência, mas imediatamente o tom de voz do sargento alterou-se: a
resposta fora obviamente incorreta. Sua voz alteou-se, estridente e autoritária.
Craig não podia vê-lo, mas viu a guarda reagir. Começaram a tirar os fuzis dos
ombros e a espalhar-se para cercar o caminhão; a armadilha falhara antes de
começar.
Craig bateu na perna do guerrilheiro uniformizado em pé a seu lado. Era um sinal
combinado e o homem tirou o pino da granada que segurava, atirando-a bem alto. A
granada descreveu uma curva que terminou com precisão no local da metralhadora.
No mesmo instante, Craig disse baixinho aos homens a seu lado:
- Matem-nos.
Enfiaram os canos dos AK 47 pelas fendas da carroceria e a distância do alvo era
de dez passos. A rajada atingiu os guardas desprevenidos antes que engatilhassem
as armas. O sargento correu de volta à casa da guarda, mas o camarada Sentinela
inclinou-se na janela com a pistola Tokarev e atingiu-o duas vezes nas costas.
Enquanto o sargento estatelava-se no chão, a granada explodiu por trás dos sacos
de areia e a metralhadora pesada girou inútilmente enquanto o artilheiro
escondido voava em pedaços.
- Vá em frente! - Craig enfiou a cabeça pela fenda e berrou com o motorista
através da janela aberta. - Derrube o portão!
O poderoso motor do Toyota rugiu e o caminhão arrancou, dando uma pancada
violenta no portão que o fez oscilar e quase parar por um momento e, em seguida,
estrondou pelo acampamento, arrastando um feixe de arame farpado e pedaços de
madeira.
Craig subiu até o teto onde estava o artilheiro.
- Mire para a esquerda... - Dirigiu o fogo para as barracas de adobe e palha ao
lado do portão. O artilheiro disparou uma longa rajada bem no meio dos soldados
seminus que saíam de lá correndo.
- Agora, a torre de vigia à direita.
Estavam sendo alvejados pelos dois guardas da torre e os disparos sibilavam em
torno deles como chicotadas. O artilheiro girou a arma e o pente de munição era
engolido pela máquina que cuspia uma esteira de cápsulas vazias pelo ejetor.
Voaram lascas de madeira e vidro da torre até os dois guardas serem atingidos e
jogados para trás.
- Alojamento Um bem à frente - Craig preveniu Sarah com um grito. Ela e os dois
homens estavam agachados na traseira e, quando o Toyota diminuiu a marcha,
saltaram correndo. Sarah levava os cortadores e os dois guerrilheiros corriam à
frente em ziguezague, disparando.
Craig desceu para o estribo do caminhão e agarrou-se na cabine.
- Dirija para a colina - gritou ao motorista. - Temos que capturar o rádio!
O rochedo fortificado ficava diretamente em frente, mas tinham que cruzar o
grande pátio de manobras iluminado, com o muro caiado na extremidade, até chegar
ao fortim.
Craig olhou para trás: Sarah e os homens haviam alcançado o alojamento e
cortavam o arame com os cortadores e, enquanto olhava, conseguiram abri-lo e
desapareceram dentro da construção.
Procurou pelo segundo caminhão, que rugia em torno do campo, do lado de fora da
cerca, atacando cada torre que ultrapassava com a metralhadora pesada. Já haviam
destruído quatro delas e faltavam apenas duas. A explosão de granadas chamou-lhe
a atenção para as barracas contíguas ao alojamento principal de prisioneiros. Um
grupo de guerrilheiros havia saltado do segundo caminhão para atacá-las. Pôde
vê-los agachados debaixo das janelas, atirando granadas para dentro e, quando
explodiam, avançavam como mariposas para a luz, em direção ao principal
alojamento de prisioneiros.
Haviam assumido o controle de todo o campo em poucos minutos, destruído as
torres, devastado a casa de guarda e os dois grupos de barracas; era tudo deles.
Teve um sentimento de triunfo até olhar em direção ao rochedo. Tudo menos o
fortim, e, ao pensar nisso, uma linha brilhante estendeu-se em direção deles
vinda dos sacos de areia ao alto, a princípio, lenta, mas acelerando
vertiginosamente ao aproximar-se até a poeira voar em volta, o assobio dos
ricochetes envolvê-los e os tiros penetrarem ruidosamente na carroceria do
caminhão.
O caminhão oscilou com o impacto e Craig berrou ao chofer enquanto agarrava-se
desesperadamente ao espelho retrovisor:
- Continue, temos que capturar o rádio!
O motorista lutava com a direção e o Toyota voltou-se novamente para a colina no
instante exato em que foi atingido pela segunda rajada de metralhadora. O pára-
brisa explodiu em mil fragmentos cristalinos e o chofer, com o peito dilacerado,
caiu contra a porta, soltando o acelerador e diminuindo a marcha.
Craig escancarou a porta e o corpo caiu para fora, enquanto tomava o seu lugar e
enterrava o pé no acelerador, fazendo o caminhão avançar outra vez.
Ao lado, Sentinela atirava com o AK 47 pelo pára-brisa despedaçado e, na
traseira, a metralhadora pesada respondia aos disparos vindos do rochedo. As
rajadas pareciam misturar-se sobre a terra nua do pátio e foi então que viu
algo.
De uma das aberturas na parede de sacos de areia no sopé da colina, uma mancha
negra do tamanho de um abacaxi voou até eles deixando uma minúscula cauda de
fogo. Reconheceu instantaneamente o que era, mas não teve tempo sequer de gritar
quando foram atingidos por um foguete RPG-7.
Atingiu o caminhão embaixo, na frente, e foi o que os salvou: a explosão mais
forte foi absorvida pelo bloco sólido do motor, mas, mesmo assim, arrancou-o e
barrou o veículo como uma parede de aço. O Toyota capotou, cuspindo Craig pela
porta aberta.
Ficou de joelhos e a metralhadora girou, despejando uma chuva de balas e de lama
endurecida sobre ele que tornou a cair.
Guerrilheiros estonteados e feridos espalhavam-se em torno do Toyota e um dos
homens estava preso e com parte do corpo esmagada pela carroceria, gritando como
um animal preso em uma armadilha.
- Vamos - gritou Craig em sindebele. - Corram para o muro, o muro, corram para o
muro.
Ficou em pé e começou a correr. O muro de execuções ficava na extremidade à
direita, a uns sessenta metros de distância, e um punhado de homens o seguiu.
A metralhadora tornou a girar, perseguindo-os, e o disparo foi como uma
chicotada que fez Craig cambalear, mas conseguiu equilibrar-se, quando o homem à
sua frente caiu, com as duas pernas arrancadas. Ao ultrapassá-lo, ainda
conseguiu atirar-lhe o fuzil que tinha nas mãos.
- Tome, Kuphela, já estou morto. Craig agarrou-o sem diminuir a corrida.
- Você é um homem de verdade - gritou ao guerrilheiro caído e continuou. À sua
frente, Sentinela conseguiu alcançar o abrigo da parede, mas o artilheiro na
colina tornou a mirar Craig, levantando cortinas de pó e pedaços de argila
enquanto a esteira de balas o perseguia.
Craig atirou-se no canto da parede com os pés para a frente e os tiros passaram
raspando. Continuou a rolar até atingir o muro e ficou com Sentinela e dois
outros que haviam conseguido chegar lá. O restante ou estava morto no caminhão
ou espalhado pelo terreno aberto.
- Temos de pegar aquela metralhadora - ofegou, e Sentinela sorriu ironicamente.
- Vá pegá-la, Kuphela... vamos ficar olhando com muito interesse.
Outro foguete RPG explodiu no muro, ensurdecendo-os e cobrindo-os com uma fina
camada de poeira branca.
Craig tornou a rolar e verificou o AK 47. Estava com a carga completa e
Sentinela passou-lhe outro pente da cartucheira que trazia no ombro; tinha
também a pistola Tokarev na cintura e duas granadas nos bolsos.
Lançou outro olhar rápido pelo canto do muro e uma rajada abriu buracos em torno
de sua cabeça, o que o fez rolar de volta. Eram apenas uns noventa metros até o
sopé da colina mas pareciam noventa quilómetros. Estavam impotentes ali e o
artilheiro dominava todo o pátio. Ninguém podia mover-se à luz dos holofotes sem
provocar disparos imediatos ou um foguete do lançador RPG.
Craig procurou ansiosamente pelo segundo caminhão, mas o chofer devia ter
estacionado sensatamente por trás de um dos edifícios assim que começara o
disparo dos foguetes. Não havia sinal dos outros guerrilheiros, estavam todos
escondidos, mas houvera muitas baixas.
- Não pode terminar assim... - Craig consumia-se de frustração e impotência. -
Temos de acabar com aquela metralhadora!
A arma sem alvos silenciou, e, de súbito, nesse silêncio, Craig ouviu começar um
canto, primeiro baixinho, de apenas algumas vozes, depois, engrossando e
crescendo:
Por que choram, viúvas de Shangani.
Enquanto as armas de três pernas riem tão alto?
E o antigo cântico guerreiro explodiu no silêncio em centenas de gargantas.
Por que choram, filhos das Toupeiras,
Enquanto seus pais cumprem as ordens do rei?
E afluiu dos alojamentos de prisioneiros um exército heterogéneo de figuras
nuas; alguns cambaleando de fraqueza; outros correndo, carregando pedras,
tijolos e pedaços de pau, arrancados dos tetos da prisão. Uns poucos haviam
agarrado as armas dos guardas mortos, mas todos cantavam com desafio selvagem ao
atacarem a colina e o ninho de metralhadora.
- Oh, meu Deus! Vai ser um massacre - sussurrou Craig.
À frente da massa, brandindo um AK 47, vinha uma figura alta e esquelética,
parecendo uma caricatura da própria morte, e o exército de famintos e galés
convergiu para ele. Mesmo desfigurado como estava, Craig teria reconhecido
Tungata Zebiwe em qualquer lugar.
- Sam, volte! - gritou, usando o nome com que conhecera o amigo, mas Tungata
continuou impávido, e Sentinela disse calmamente:
- Eles vão atrair os disparos e essa será nossa última chance.
- Sim, esteja a postos - respondeu Craig. Sentinela estava? certo. Não deviam
deixá-los morrer em vão e, enquanto falava, a metralhadora abriu fogo outra vez.
- Espere! - Craig agarrou Sentinela pelo braço. - Ele vai ter de trocar o pente
daqui a pouco. - E enquanto esperavam, olhava a destruição terrível entre os
prisioneiros libertados.
A torrente de tiros parecia derrubá-los como uma mangueira de incêndio, mas,
quando tombava a fileira da frente, os homens corriam a preencher os claros, e
Tungata Zebiwe continuava, mais à frente, disparando o AK 47 enquanto corria, e
o artilheiro no alto da colina dirigiu a mira para ele, envolvendo-o em fumaça
poeirenta, mas ainda miraculosamente intacto até que a arma silenciou
abruptamente.
- Acabou o pente! - berrou Craig. - Vamos! Vamos! Correram a toda velocidade e o
terreno aberto parecia alongar-se indefinidamente até os confins da terra.
Outro foguete passou sobre suas cabeças, mas a pontaria era alta, e o disparo,
feito em pânico. Voou sobre o pátio e atingiu o tanque de reserva de combustível
ao lado das barracas. O combustível explodiu e as chamas voaram a cinquenta
metros no ar, e Craig sentiu o bafo ardente da detonação envolvê-lo, mas
continuou correndo e atirando.
Por causa da perna, ia perdendo terreno para Sentinela e os outros
guerrilheiros, mas, enquanto corria, fazia cálculos mentalmente. Um homem hábil
precisaria de dez segundos para trocar os pentes e recarregar a metralhadora.
Desde que haviam deixado o muro protetor, já haviam passado sete segundos, oito,
nove, dez... agora! E ainda restavam vinte passos a percorrer.
O camarada Sentinela alcançou as fortificações de sacos de areia e pulou para
dentro.
Foi quando uma pancada violenta atingiu Craig que foi atirado ao chão, enquanto
as balas zuniam à sua volta. Rolou e levantou-se novamente, mas o atirador, ao
vê-lo cair, desviara a metralhadora outra vez para os prisioneiros que atacavam.
Atingido, mas sem qualquer ferimento, Craig procurou levantar-se e, tanto quanto
antes, compreendeu que fora baleado na perna artificial. Teve ímpetos de rir,
era tudo tão ridículo e estava tão aterrorizado. Mas continuou correndo.
Só vão conseguir me fazer isso uma vez, pensou, e subitamente chegou ao sopé do
rochedo. Saltou, segurou-se na borda de um saco de areia e alçou-se para dentro,
caindo na plataforma de tiro estreita e deserta do outro lado.
- O rádio. - Fixou toda a vontade nele. - Preciso chegar lá. - Pulou para a
trincheira de comunicação abaixo e correu até a passagem. Havia sons de luta e
gritos, e quando chegou lá Sentinela estava se levantando ao lado do corpo do
soldado da Terceira Brigada que operara o RPG.
- Vá atrás da metralhadora - ordenou-lhe Craig. - Vou até a sala de rádio.
Subiu pela passagem protegida com sacos de areia, passando pela cela onde
estivera hospedado na primeira vez.
É a primeira à esquerda... rememorou, mergulhando na abertura; ao afastar a
cortina de aniagem, ouviu o operador do rádio e fez uma pausa.
Tarde demais, pensou. O estômago contraiu-se em uma convulsão desesperada. O
operador, vestido apenas em roupas de baixo, estava curvado sobre o rádio no
banco colocado na parede oposta. Segurava o microfone com as duas mãos, gritando
um aviso em inglês, repetindo-o pela terceira vez, e, como Craig hesitasse, a
resposta soou alta e clara, também em inglês.
- Mensagem recebida - disse a voz do quartel-general em Harare. - Resistam!
Vamos mandar reforços imediatamente...
Craig disparou uma longa rajada com o fuzil e esfacelou o rádio completamente. O
operador desarmado deixou cair o microfone e encostou-se, apavorado, na parede
de sacos de areia, olhando para Craig aterrorizado. Craig colocou-o na mira, mas
não teve coragem de disparar.
De repente, uma descarga de tiros soou por trás dele, assustando-o, e, por um
instante, o homem ficou colado à parede e escorregou para o chão.
- Você sempre teve coração mole, Pupho - disse uma voz de timbre profundo, e
Craig virou-se para olhar a figura nua e esquelética que o sobrepujava em
altura, o rosto cheio de cicatrizes e os olhos escuros e orgulhosos.
- Sam! - disse Craig, quase sem forças. - Meu Deus, como é bom ver você de novo.
O primeiro caminhão fora estraçalhado pelo RPG e os pneus traseiros do segundo,
destruídos pelo fogo pesado da metralhadora. Ambos estavam com os tanques
completamente vazios.
Craig explicou o mais rapidamente possível a Tungata os planos para abandonarem
o país.
- O prazo final é às oito horas. Se não conseguirmos chegar à pista até lá, tudo
o que nos resta será fugir a pé.
- São cerca de vinte quilómetros - ponderou Tungata. - Não há qualquer outro
carro aqui. Fungabera levou o Land-Rover quando partiu há dois dias.
- Podemos tirar os pneus do caminhão destruído, mas e a gasolina? Sam,
precisamos de combustível!
E olharam para as chamas do depósito que ainda se erguiam no céu escuro e as
densas nuvens de fumaça negra do outro lado do pátio. À sua luz, jaziam os
mortos ceifados pela metralhadora, mas não havia qualquer soldado sobrevivente.
Tinham sido feitos em pedaços e espancados até se transformarem em uma massa
sangrenta pelos prisioneiros. Craig ficou imaginando quantos seriam, e evitou a
resposta, pois cada uma daquelas mortes era sua responsabilidade direta.
Tungata o observava. Vestia roupas apanhadas a esmo nos armários dos
alojamentos, a maioria, pequena demais para sua enorme estrutura, e com o fedor
da prisão que o envolvia como um manto.
- Você sempre ficou assim, depois de uma tarefa desagradável.
Lembro-me da matança dos elefantes excedentes; não conseguia comer durante dias
- disse-lhe com suavidade.
Esquecera o quanto Tungata era perspicaz e como era capaz de perceber-lhe os
remorsos.
- Vou trocar os pneus. Mas tem de achar combustível para nós, Sam. Precisa
achar! - Virou-se e saiu capengando até o caminhão mais próximo para escapar das
observações de Tungata.
O camarada Sentinela o esperava.
- Perdemos quatorze homens, Kuphela.
- Sinto muito - disse, e pensou que aquela era a coisa mais inadequada para
dizer.
- Tinham que morrer um dia. - O guerrilheiro deu de ombros. - O que vamos fazer
agora?
Havia chaves de roda nas caixas de ferramenta dos caminhões e homens suficientes
para suspender a traseira e escorá-la com tocos de madeira enquanto trabalhavam.
Craig supervisionou a operação e suspendeu a calça para retirar e examinar a
perna mecânica. A bala de metralhadora entrara na coxa e saíra à altura da
barriga da perna, deixando um buraco cheio de rebordos, mas o tornozelo
articulado estava intacto. Martelou com cuidado as bordas ásperas do metal e
prendeu-a com a correia novamente.
- Agora, trate de aguentar mais um pouco - disse com firmeza, dando um tapinha
afetuoso na perna, e tirou a chave de Sentinela que já colocara dois parafusos
na roda traseira do caminhão.
Uma hora mais tarde, Tungata foi até o local onde Craig e os homens estavam
abaixando a carroceria sobre o eixo semidestruído da roda. Craig estava imundo
de graxa e Sarah apressou-se em acompanhar Tungata, perto de quem parecia uma
garotinha apesar do rifle que carregava.
- Nada de combustível - disse Tungata. - Revistamos todo o acampamento.
- Acho que temos uns quinze litros. - Craig levantou-se e limpou o suor do rosto
com a manga da camisa, deixando-a suja de graxa. - Podemos rodar talvez uns
trinta quilómetros se tivermos sorte. - Olhou para o relógio. - Três horas da
manhã; como é que o tempo passou tão depressa? Sally-Anne vai chegar à pista
dentro de pouco mais de duas horas. Não vamos conseguir...
- Craig, Sarah me contou o que fez, todos os riscos que correu, o planejamento,
tudo... - disse Tungata em tom sóbrio.
- Não temos tempo para isso agora, Sam.
- Não - concordou. - Preciso falar com meu povo e depois podemos partir.
Os prisioneiros que haviam sobrevivido à matança no pátio reuniram-se em torno
dele, quando Tungata subiu no capô do caminhão, de rostos levantados e
iluminados pela luz dos holofotes.
- Preciso partir - disse-lhes Tungata, e eles resmungaram -, mas meu espírito
fica com vocês até o dia de minha volta. E juro pelas barbas de meu pai e pelo
leite que mamei no seio de minha mãe que voltarei.
- Baba! O senhor é o nosso pai! - gritaram.
- Os kanka shona vão chegar logo aqui. Devem ir para a floresta e levar todas as
armas e comida que acharem e acompanhar estes homens. - Tungata apontou para o
pequeno grupo de guerrilheiros em torno de Sentinela. - Eles os levarão a um
lugar seguro, esperem lá até que eu volte com a força necessária para liderá-los
e recuperarmos o que é de vocês. - Tungata abriu os braços numa bênção. - Vão em
paz, meus amigos!
Todos se acercaram, alguns chorando como crianças. E em pequenos grupos foram
afastando-se em direção ao portão e à escuridão da floresta.
O camarada Sentinela foi o último a partir. Veio até Craig e sorriu com o
característico sorriso lupino e frio de dentes perfeitos.
- Apesar de ter estado na linha de frente da luta, você não matou um único
shona, nem aqui nem na ponte. Por quê, Kuphela?
- Deixei a tarefa para você. É melhor do que eu nisso - respondeu Craig.
- É um homem estranho, escritor de livros... mas somos gratos a você. Se viver
até lá, vou me gabar com meus netos sobre as coisas que fizemos juntos.
- Adeus, meu amigo - disse Craig, e estendeu-lhe a mão e saudaram-se com o duplo
apertar de palmas e pulsos, de profunda significação. E o camarada Sentinela
caminhou pela trilha até desaparecer na noite.
Craig foi o primeiro a falar.
- Sam, você ouviu o operador de rádio falando ao quartel-general. Sabe que
Fungabera já mandou reforços. Será que há soldados daqui até Harare?
- Acho que não. - Tungata balançou a cabeça. - Alguns homens em Karoi, mas
insuficientes para aguentar um ataque destes.
- Muito bem. Digamos que levou uma hora para reunir e enviar uma força. Vão
levar mais cinco horas para chegar a Tuti... - Olhou para Tungata que concordou.
- Vão chegar à missão aproximadamente às seis, e Sally-Anne deve estar
sobrevoando por lá às cinco. É um prazo muito apertado, especialmente se
tivermos que percorrer os últimos quilómetros a pé. Vamos andando.
Enquanto os outros acomodavam-se no caminhão, Craig deu uma última olhada em
torno do acampamento devastado. As chamas haviam se apagado, mas a fumaça ainda
se evolava sobre os alojamentos desertos e o pátio onde se espalhavam os mortos.
O quadro ainda estava iluminado pelos holofotes.
- As luzes... - disse alto Craig. Havia algo sobre as luzes que o preocupava. O
gerador? Sim, era isso... algo sobre o gerador de que precisava lembrar-se.
- Mas é isso! - gritou, pulando do caminhão. - Sam, o gerador!
Ligou o motor e virou o caminhão. A sala de máquinas ficava por trás da colina e
era parte do conjunto central protegido pelos sacos de areia e pela fortificação
no terreno elevado. Craig estacionou perto dos degraus que desciam para a casa
de força e os desceu correndo.
Era um gerador Lister de vinte e cinco quilowatts, um aparelho grande com um
tanque de combustível preso à parede acima. Craig bateu no recipiente que soou
agradavelmente cheio.
Maravilhosos!
- Está cheio! - exclamou Craig. - Enfim, quarenta galões.
A estrada ziguezagueava como uma serpente e o caminhão, com o tanque
transbordante, era difícil de manejar nas curvas. Craig tinha de virar o volante
com toda força. As subidas eram íngremes e a velocidade caía quando fazia as
mudanças de marcha, mas, ao chegar aos declives, rodavam perigosamente rápido e
o caminhão descarregado pulava e sacudia sem piedade nos sulcos profundos.
Na entrada da ponte, passou rente à beira sobre a queda d'água que desmoronou um
pouco com o peso das duas rodas traseiras duplas antes de dar uma guinada e
cruzar pesadamente sobre a estreita ponte de madeira.
- Que horas são? - perguntou, e Sarah olhou o relógio à luz do painel.
- Quatro e cinquenta e três.
Craig tirou por um momento os olhos do estreito túnel das luzes dos faróis e viu
pela primeira vez a silhueta das árvores recortada contra o céu que começava a
clarear. No alto da ladeira, saiu fora da pista e ligou o rádio. Procurou os
canais com cuidado, tentando ouvir notícias dos deslocamentos militares, mas só
pegou estática.
- Se estão em posição, estão se mantendo em silêncio. Desligou e voltou para o
caminho, mais uma vez admirado com a rapidez do amanhecer africano. No vale
abaixo, a paisagem emergia da noite fugitiva, a planície grande, escura e
coberta de florestas, que levava do sopé das colinas até a estação da missão que
se estendia a seus pés.
- Dezesseis quilómetros - disse Tungata.
- Mais meia hora - respondeu Craig, e dirigiu o Toyota a toda velocidade
descendo as últimas colinas. Antes de chegarem à planície, já estava bastante
claro para desligar os faróis. - Não há necessidade de chamar a atenção.
De repente, endireitou-se no assento, alarmado com a mudança no ruído do motor
que estava cada vez mais áspero e forte.
- Oh meu Deus, isso não, não agora - sussurrou, e só depois percebeu que ouvia o
ruído de outro motor, cada vez mais alto e mais próximo. Abaixou a janela e
meteu a cabeça para fora, sentindo no rosto o vento forte e fresco.
O Cessna de Sally-Anne roncava atrás deles, a apenas quinze metros sobre a
estrada, azul e prata cintilante nos primeiros raios de sol.
Craig soltou um berro de alegria e começou a abanar.
O Cessna nivelou-se a eles e o rosto amado de Sally-Anne olhou-o da cabine.
Tinha um lenço cor-de-rosa amarrado na cabeça e as espessas sobrancelhas negras
emolduravam-lhe os olhos. Estava sorridente e, ao reconhecer Craig, deu adeus e
formou com os lábios as palavras "Vá em frente". E passou zunindo com o avião,
em direção à pista.
Saíram a toda velocidade da floresta, correndo pelas plantações de milho que
cercavam a pequena aldeia da missão. Os telhados de zinco da igreja e da escola
cintilavam ao amanhecer. Uns poucos aldeões saíam das cabanas ao lado da
estrada, bocejando e coçando-se, para vê-los passar.
Craig diminuiu a marcha, e Sarah gritou para eles pela janela:
- Soldados vindo nesta direção! Atenção! Avisem todo mundo! Vão todos para a
floresta e escondam-se!
Craig não pensara nisso. A retaliação da Terceira Brigada na população local
seria terrível. Acelerou através da aldeia e o campo de aterrissagem estava um
quilómetro adiante, com a biruta meio esfarrapada ondulando ao vento. O Cessna
descrevia círculos mais abaixo à frente. Craig viu Sally-Anne baixar o trem de
aterrissagem e iniciar a volta circular para a aproximação final de pouso.
- Olhem! - exclamou Tungata, e outro avião surgiu à esquerda, voando baixo e
veloz, um aparelho bimotor muito maior reconhecido imediatamente por Craig.
Era um velho Dakota de transporte, veterano da guerra do deserto na África do
Norte e da guerra civil da Rodésia. Estava pintado com tinta cinzenta especial
contra reflexos antimíssil e com as insígnias da Força Aérea de Zimbabué. A
escotilha principal na popa junto à asa estava aberta e havia homens a postos na
abertura, vestidos com uniformes e capacetes de pára-quedistas, com grandes
pára-quedas às costas. Dois deles estavam na portinhola e havia outros
aglomerando-se por trás.
- Pára-quedistas! - gritou Craig, e o Dakota deu um mergulho na direção deles e
ultrapassou-os tão baixo que o deslocamento das hélices balançou as espigas de
milho na plantação à frente. Quando o avião passou zunindo por eles, tanto
Tungata quanto Craig reconheceram um dos homens na portinhola.
- Fungabera! - explodiu Tungata. - É ele!
E, ao mesmo tempo, abriu a porta do caminhão, subindo até a metralhadora no
alto. Apesar do tamanho e da extrema fraqueza, foi tão rápido que conseguiu
alcançá-la e girá-la a tempo de soltar uma descarga antes que o Dakota ficasse
fora de alcance. As rajadas voaram por baixo da asa de bombordo, perto o
suficiente para alarmar o piloto e obrigá-lo a subir.
- Estão ganhando altitude para poder saltar de pára-quedas! - gritou Craig.
Naturalmente, Fungabera reconhecera o Cessna azul e prata, e compreendera que
seria o meio de fuga e que o caminhão estava indo ao seu encontro na pista. Os
pára-quedistas chegariam mais rápidos do que se o Dakota pousasse. Ia fazê-los
saltarem e tomar a pista antes que o Cessna levantasse vôo novamente. Trezentos
metros de altura seria a altitude segura para o salto, mas eram soldados
acostumados a fazer saltos perigosos. O Dakota nivelou a cento e cinquenta
metros. Iam saltar ao longo do campo.
O Cessna estava tomando posição sobre a cerca na extremidade da pista e, quando
Craig olhou para trás, Sally-Anne tocou o solo e taxiou em direção ao Toyota em
disparada.
Sobre a pista, uma figura diminuta pulou do Dakota e a seda verde do pára-quedas
abríu-se quase que de imediato e foi seguida em rápida sucessão por outras,
enchendo os céus da floresta de cogumelos sinistros, oscilando docemente na
brisa amena da manhã, mas caindo em direção à faixa esturricada e castanha do
campo.
O Cessna atingiu o fim da pista e descreveu um ângulo abrupto de 180°. Só então
Craig compreendeu que Sally-Anne tivera a visão necessária para enfrentar o
risco e a urgência ao aterrissar com vento pela cauda. Fizera uma aproximação
mais veloz da pista e pousara de modo a poder virar imediatamente com o vento
fazendo uma decolagem com carga completa sob o ataque dos pára-quedistas.
Da cabine, Tungata disparava rajadas, mais para intimidar os soldados do que
para conseguir atingi-los. Um homem caindo de pára-quedas era um alvo quase
impossível.
Sally-Anne estava na portinhola aberta, gritando e abanando para eles, já com o
motor a toda força, seguro pelos freios das rodas. Bateram na borda da pista e
Craig girou o Toyota com um gemido dos freios, parando-o de maneira a proteger o
avião e eles mesmos quando subissem a bordo.
- Saia - berrou para Sarah que pulou, e correu até o avião. Sally-Anne pegou-a
pelo braço, ajudou-a a subir e cair no assento traseiro.
No caminhão, Tungata disparou uma última rajada com a metralhadora. Os primeiros
três pára-quedistas já haviam chegado ao solo, as balas levantaram poeira à sua
volta. Craig viu um deles cair sobre a mortalha de seda, pegou o AK 47, o saco
de munição e gritou:
- Vamos, Sam. Vamos embora!
Correram até o Cessna e Tungata, fraco e doente, caiu nos degraus, e Craig teve
que arrastá-lo pelos pés para dentro.
Sally-Anne soltara os freios antes que Tungata estivesse a bordo e Craig teve de
correr ao lado do Cessna enquanto o avião ganhava velocidade. Tungata caiu ao
lado de Sarah no banco traseiro e Craig pulou, conseguiu segurar-se e alçar-se
para o banco da frente, ao lado de Sally-Anne, apesar de atrapalhado pelo AK e o
saco de munições.
- Feche a porta! - berrou Sally-Anne, sem olhá-lo, com toda a atenção voltada
para a pista. O cinto de segurança estava preso na porta e Craig lutou para
soltá-lo enquanto ganhavam velocidade, conseguindo finalmente desembaraçá-lo, e
fechou a porta. Quando olhou em frente, viu soldados correndo da extremidade do
campo para interceptá-los.
A brilhante estrela de general no capacete não era necessária para identificar
Fungabera. A postura e a graça felina da corrida eram características. Os homens
espalhavam-se por trás dele e estavam quase diretamente à frente do Cessna, a
apenas quatrocentos ou quinhentos passos.
Sally-Anne fez o Cessna levantar o nariz, saltar ligeiramente e sair do chão.
Peter Fungabera e os pára-quedistas desapareceram enquanto o avião ascendia, mas
o aparelho tinha de passar sobre eles a pouco mais de uns trinta metros.
- Ah, Deus! - disse Sally-Anne em tom quase normal. - É agora! - E, ao acabar de
dizê-lo, o painel de instrumentos diante de Craig explodiu, cobrindo-o de
fragmentos de vidro brilhantes como cristais de açúcar e o fluido hidráulico
espirrou-lhe na camisa.
Uma rajada de metralhadora perfurou o chão da cabine e saiu pelo teto de metal
fino provocando um redemoinho quando o ar foi sugado pelos buracos.
No banco traseiro, Sarah gritou e o aparelho estremeceu oscilando com a
tempestade de balas de AK 47. Craig sentiu o assento pular com o impacto dos
tiros no metal e orifícios irregulares apareceram na junção da asa a seu lado.
Sally-Anne empurrou o manche para a frente e o Cessna mergulhou em direção à
pista novamente com todo o ímpeto, passando sob o turbilhão de rajadas, dando-
lhes um momento de trégua. A terra ascendeu velozmente até eles e ela cortou o
mergulho suicida do Cessna, nivelando-o; mas as rodas bateram na superfície e o
aparelho saltou desgovernado para o ar. Craig viu dois soldados atirarem-se ao
chão enquanto o avião avançava para cima deles.
O mergulho louco em direção ao solo aumentara a velocidade do aparelho e Sally-
Anne pôde fazer com o Cessna uma curva em velocidade máxima, quase raspando uma
das asas na terra. O rosto estava contorcido e os músculos saltados pelo esforço
de manter o avião de nariz para cima e evitar que tocasse o solo. À frente e à
esquerda da pista, a apenas cem metros da borda, havia uma árvore solitária com
galhos grossos e esparramados, uma marula de quase trinta metros de altura.
Sally-Anne nivelou por instantes o avião, indo diretamente para ela; a ponta da
asa quase roçou os galhos e manobrou o Cessna para o lado, colocando a árvore
entre eles e os soldados na pista atrás.
Manteve-se quase a nível do solo, roçando o topo do milharal nos campos abertos,
espiando pelo retrovisor ao alto para manter a marula exatamente atrás da cauda,
anulando o campo de tiro dos soldados.
- Onde está o Dakota? - perguntou Craig, gritando para se fazer ouvir sobre o
barulho do vento na cabine.
- Está se preparando para descer - respondeu Tungata. - Craig virou-se no
assento e viu o grande aparelho sobrevoando baixo por sobre as árvores e
dirigindo-se para a pista.
- Não consigo levantar o trem de aterrissagem. - Sally-Anne comprimia o botão
mas as três luzinhas verdes de aviso ainda brilhavam no painel. - Está
enguiçado, acho que houve uma avaria.
A floresta além dos campos aproximava-se velozmente. Quando Sally-Anne recuou o
manche para fazer o Cessna subir, um conduto hidráulico rompeu-se no motor
danificado pelos tiros e o fluido espirrou, viscoso, no pára-brisa.
- Não vejo nada! - gritou Sally-Anne e abriu a janela lateral, tomando o
horizonte como referência sob a asa.
- Estamos sem instrumentos. Sem velocímetro, horizonte artificial, altímetro, o
trem de aterrissagem...
- ...está provocando um excesso de resistência e vai diminuir nossa autonomia de
vôo... nunca vamos conseguir chegar lá! - concluiu ele por Sally-Anne.
Ainda estavam subindo, mas gradualmente voltaram ao curso, usando o compasso
flutuante do teto da cabine. Foi quando o motor engasgou e quase parou, para em
seguida voltar a plena força.
Rapidamente, Sally-Anne ajustou os reguladores de força e altura.
- Isso parece falta de combustível. Devem ter atingido um dos condutores - disse
e mudou o seletor do tanque de "estibordo" para "ambos", e olhou para Craig,
sorrindo. - Ei, você aí, senti um bocado sua falta.
- Eu, também. - Estendeu a mão e tocou-a.
- Contagem de tempo - disse, outra vez uma profissional.
- Cinco horas e dezessete minutos - respondeu Craig, e olhou para baixo. A
estrada serpenteante de Tuti virava-se em direção ao norte e cruzavam as
primeiras colinas. A aldeia de Vusamanzi surgiria a uns poucos quilómetros além.
O motor tornou a falhar e a expressão no rosto de Sally-Anne era tensa.
- Tempo? - tornou a perguntar.
- Cinco horas e vinte e sete minutos - disse Craig.
- Já estamos fora do campo de visão da pista e também não podem mais nos ouvir.
- Fungabera não sabe para onde estamos indo.
- Eles têm um helicóptero nas cataratas de Victoria. - Tungata inclinou-se para
dizer-lhes. - Se acharem que estamos indo para Botsuana, vão mandá-lo nos
interceptar.
- Podemos ultrapassar um helicóptero - opinou Craig.
- Não com o trem de aterrissagem abaixado - contradisse Sally-Anne, e, sem
qualquer aviso, o motor parou completamente.
Tudo ficou silencioso, ouvia-se apenas o assobio do vento nos buracos da
fuselagem, a hélice girou ainda por alguns segundos, parando de repente, e
apontando para o céu como a lâmina de um carrasco.
- Bem, nada mais importa agora. O motor parou e vamos descer - disse Sally-Anne
baixinho. Começou rapidamente os preparativos para uma aterrissagem forçada
enquanto o Cessna começava a mergulhar suavemente em direção ao solo irregular e
coberto de vegetação abaixo deles. Puxou os flaps para diminuir a velocidade do
ar.
- Todo mundo coloque os cintos - disse. - Os dos ombros, também.
Desligou os tanques de combustível e os controles principais para evitar um
incêndio com o impacto.
- Consegue ver alguma clareira? - perguntou a Craig, espiando desanimada pelo
pára-brisa despedaçado.
- Não. - A floresta era como um colchão escuro e verde.
- Vou tentar localizar duas árvores grandes e partir as asas entre elas, para
cortar a velocidade mas, mesmo assim, vai ser uma pancada e tanto - disse,
enquanto lutava com o painel da janela lateral.
- Posso rebentá-la para você - ofereceu-se Tungata.
- Ótimo - aceitou Sally-Anne. Com três socos, Tungata conseguiu parti-la. Sally-
Anne colocou a cabeça para fora, apertando os olhos contra o vento.
A terra aproximava-se cada vez mais rápido e as colinas pareciam crescer acima
deles quando Sally-Anne fez uma curva planando suavemente para dentro de um vale
estreito. Estava sem velocímetro e ela tentava manter o nariz do avião levantado
para cortar a velocidade da queda. Através das rachaduras do pára-brisa, Craig
viu assomar uma nesga de árvores.
- Abrir portas! - ordenou Sally-Anne. - Mantenham os cintos amarrados até
pararmos e depois saiam o mais rápido possível e corram como cachorros magros!
Suspendeu o nariz, mas o Cessna estalou, não obedeceu e tornou a cair como uma
pedra. Felizmente, Sally-Anne fizera um cálculo milimétrico, pois, antes que
tombasse na horizontal, o avião bateu nas árvores. As asas foram arrancadas e
eles foram seguros e violentamente esfolados pelos cintos de segurança. Apesar
do impacto ter freado a velocidade, a carcaça desmembrada do avião foi
resvalando e batendo pela floresta. Foram atirados de um lado para outro, presos
aos assentos, e a fuselagem esbarrou em outra árvore, parando finalmente.
- Fora! - berrou Sally-Anne. - Estou sentindo cheiro de gasolina! Para fora e
corram!
As portas abertas tinham sido arrancadas dos gonzos e eles tiraram às pressas os
cintos, pularam para o solo e correram.
Craig aproximou-se de Sally-Anne que corria com as longas tranças livres do
lenço. Abraçou-a, guiando seus passos até a beira de uma ravina seca. Pularam
para dentro e agacharam-se no fundo arenoso, agarrados um ao outro.
- Será que vai incendiar-se? - ofegou Sally-Anne.
- Espere um pouco. - Ambos prepararam-se para a explosão da gasolina vazada e
dos tanques.
Nada aconteceu e o silêncio da floresta desceu sobre eles, que começaram a falar
em cochichos temerosos.
- Você voa como um anjo - ele disse.
- Um anjo de asas quebradas. Esperaram mais um pouco.
- Por falar nisso, que diabo quis dizer com um cachorro magro? - ele sussurrou.
- Um galgo - e ela riu, com uma reação nervosa. Ele descobriu-se rindo também
enquanto se abraçavam.
- Vamos dar uma olhada - ela disse. Ambos levantaram-se com cautela para espiar
sobre a borda da ravina. A fuselagem estava esmagada e o revestimento metálico
do Cessna, enrolado como papel de alumínio, mas não se incendiara. Pularam para
fora da ravina e Craig começou a chamar:
- Sam! Sarah!
Os dois levantaram-se de onde haviam se refugiado, ao sopé de um rochoso no
vale.
- Vocês estão bem?
Os quatro estavam abalados e machucados; Sarah estava com o nariz ensanguentado
e tinha um arranhão no rosto, mas nenhum deles machucara-se seriamente.
- Que diabos vamos fazer agora? - perguntou Craig e ficaram os quatro
entreolhando-se desamparados.
Tiraram tudo o que puderam do avião destruído: a caixa de ferramentas, o estojo
de primeiros socorros, um cantil de alumínio com cinco litros de água,
cobertores térmicos, tabletes de malte, uma pistola, o rifle AK 47 e munição, o
estojo de mapas. Craig desaparafusou a bússola do teto da cabine. Trabalharam
durante uma hora tentando esconder qualquer vestígio do desastre para não ser
visto por algum avião de buscas. Tungata e Craig arrastaram os pedaços de asas
quebradas para a ravina e os cobriram com mato seco. Não podiam mover a
fuselagem e o motor, mas empilharam mais galhos e vegetação por cima.
Por duas vezes, enquanto trabalhavam, ouviram o som distante de um avião. O
barulho forte dos motores era inconfundível.
- O Dakota - disse Sally-Anne.
- Estão à nossa procura.
- Não podem saber que estamos aqui embaixo - protestou Sally-Anne.
- Não, com certeza, mas devem saber que sofremos sérias avarias - opinou Craig.
- Devem saber que há uma boa chance de que tenhamos caído. Vão mandar soldados
de infantaria para examinar a área, e interrogar o pessoal das aldeias.
- Quanto mais cedo sairmos daqui...
- Em que direção?
- Posso fazer uma sugestão? - perguntou Sarah, que aderiu à discussão com um tom
de deferência. - Precisamos de comida e de um guia. Acho que posso levá-los
daqui até a aldeia de meu pai. Ele pode nos esconder enquanto resolvemos o que
fazer.
Craig olhou para Tungata.
- Faz sentido... alguma objeção, Sam? Bem, então vamos lá. Antes de abandonarem
o local do desastre, Craig levou Sally- Anne para um lado.
- Sente-se triste? Era um lindo avião.
- Não sou sentimental a respeito de máquinas. - Ela abanou a cabeça. - Foi um
grande brinquedo, mas está todo arrebentado agora. Reservo meus sentimentos para
coisas mais aconchegantes... Hora de partir, querido - disse e apertou-lhe a
mão.
Craig levava o rifle, mantinha-se uns oitocentos metros na frente e marcava a
trilha. Tungata, enfraquecido, vinha atrás com as duas moças.
Naquela noite, escavaram o leito de um rio seco para conseguir água e chuparam
um tablete de malte, antes de se enrolarem nos cobertores térmicos. As moças
fizeram as duas primeiras vigílias de sentinela, enquanto Tungata e Craig
tiravam a sorte para ver quem faria as duas mais duras.
De manhã cedo, Craig chegou a uma trilha bastante usada, e quando Sarah chegou
lá reconheceu-a imediatamente. Duas horas mais tarde, estavam no vale cultivado
abaixo da colina da aldeia de Vusamanzi e, enquanto os outros escondiam-se no
milharal, Sarah foi à procura do pai. Quando voltou uma hora mais tarde, o velho
feiticeiro estava com ela.
Foi direto em direção a Tungata e ajoelhou-se sobre os joelhos inchados e
artríticos, tomou um dos pés dele e colocou-o sobre a carapinha branca.
- Filho de reis, eu o saúdo. Rebento do grande Mzilikazi, ramo do poderoso
Kumalo, sou seu escravo.
- Levante-se, velho. - Tungata o fez levantar-se e usou o termo respeitoso
kehla, honrado velho.
- Perdoem-me por não oferecer-lhes nada - desculpou-se Vusamanzi. - Este lugar
não é seguro, os soldados shona estão em toda parte. Preciso levá-los a um
seguro para que possam descansar e refrescar-se. Sigam-me.
Começou a caminhar em passo acelerado, muito ágil sobre as velhas pernas magras,
e tiveram que se esforçar para não perdê-lo de vista. Pelo relógio de Craig,
caminharam por duas horas, sendo que a última por uma vegetação densa e
espinhenta e um solo acidentado e rochoso. Não havia qualquer trilha definida e
o calor na mata quente era enervante e opressivo.
- Não gosto deste lugar - disse Tungata a Craig, baixinho. - Não há pássaros e
nenhuma espécie de animal, há uma atmosfera de maldade... não, maldade não, mas
de mistério e ameaça.
Craig olhou em torno. As rochas pareciam restos de metal fundido e as árvores
eram tortas e deformadas, pretas como carvão contra o céu, mas esbranquiçadas
aos raios de sol. Os galhos estavam cheios de liquens dependurados, de um verde
doentio. E Tungata tinha razão, não havia sons de pássaros ou ruídos de pequenos
animais. De repente, Craig ficou gelado e estremeceu.
- Também está sentindo isso - disse Tungata e, ao falar, o velho desapareceu
abruptamente, como que engolido pelas rochas negras. Craig apressou-se em andar
mais depressa, controlando um arrepio de medo supersticioso. Chegou ao lugar
onde Vusamanzi desaparecera e olhou em torno, mas não havia sinal do velho
feiticeiro.
- Por aqui. Por trás da rocha - disse a voz de Vusamanzi em um eco sepulcral.
O rochedo dobrava sobre si mesmo, uma cavidade estreita e bem escondida, apenas
grande o bastante para um homem esgueirar-se, a entrada de uma caverna. Craig
fez a volta e parou, deixando a vista ajustar-se à pouca iluminação.
Vusamanzi pegara um lampião barato numa prateleira sobre sua cabeça e estava
enchendo-o com parafina de uma garrafa que trouxera na sacola. Acendeu um
fósforo e encostou-o ao pavio.
- Venham - convidou, deixando-os passar pela abertura.
- Estas colinas estão cheias de cavernas e passagens secretas. São formações
dolomíticas - explicou Sarah.
A mais de cem metros adiante, a passagem abria-se em uma grande câmara. Uma luz
suave e natural filtrava-se por uma abertura no teto alto e em cúpula acima de
suas cabeças. Vusamanzi apagou o lampião e colocou-o numa prateleira ao lado de
uma lareira feita de calcário por mãos humanas. A rocha acima da lareira estava
enegrecida de fumaça e havia uma pilha de velhas cinzas no assoalho. Ao lado,
estava estocada uma pilha de lenha bem-arrumada.
- Este é um lugar sagrado - disse-lhes Vusamanzi. - É aquique os aprendizes de
feiticeiro vivem durante o treinamento. Foi aqui, quando era jovem, que servi a
meu pai, e aprendi as antigas artes das profecias e da magia. - Fez um gesto
para que se sentassem, e todos deixaram-se cair, gratos, no solo rochoso. -
Estarão a salvo aqui. Os soldados não os descobrirão. Em uma semana ou um mês,
quando se cansarem de procurar, será seguro partir. E teremos achado um homem
para guiá-los.
- É um lugar estranho - sussurrou Sally-Anne, quando Craig traduziu para ela.
- Algumas de minhas mulheres estão nos seguindo, trazendo comida. Virão a cada
dois dias enquanto estiverem aqui, com alimento e notícias.
Duas meio-irmãs de Sarah chegaram na caverna antes do escurecer. Levavam fardos
pesados equilibrados na cabeça e começaram a preparar uma refeição
imediatamente. As risadas, a alegre tagarelice, as chamas da lareira e o cheiro
de comida cozinhando aliviaram um pouco a atmosfera opressiva.
- Você tem que comer com as mulheres - explicou Craig a Sally-Anne. - É o
costume. O velho ficaria muito infeliz...
- Parecia um velho tão simpático e não passa de outro porco chauvinista - ela
protestou.
Os três homens passavam o pote de cerveja entre si e comiam da tigela comum ao
centro, e o velho conversava com Tungata entre os bocados mastigados.
- Os espíritos não deixaram que nos encontrássemos da primeira vez, Nkosi.
Esperamos pelo senhor naquela noite, mas os shona o haviam levado. Foi um tempo
de dor para nós, mas agora os espíritos abrandaram-se e o libertaram dos shona,
propiciando afinal o nosso encontro. - Vusamanzi olhou para Craig. - Há coisas
de grande importância que o senhor e eu precisamos discutir, assuntos tribais.
- O senhor diz que os espíritos propiciaram minha fuga dos shona - retrucou
Tungata. - Pode ser que sim, mas, se assim for, então este homem branco foi o
seu agente. Ele e sua mulher arriscaram a própria vida para me libertar.
- Mesmo assim, é um homem branco - disse o velho com delicadeza.
- Sua família vive aqui há cem anos, e ele é meu irmão - disse Tungata com
simplicidade.
- O senhor confia nele, Nkosi? - persistiu o velho.
- Pode falar, velho - assegurou-lhe Tungata. - Somos todos amigos aqui.
O feiticeiro suspirou, calou-se e botou outro bocado de comida na boca.
- Como deseja o meu senhor - concordou enfim, acrescentando abruptamente: - O
senhor é o guardião do túmulo do velho rei, não?
Os olhos de Tungata ficaram velados à luz do fogo.
- Sei que os filhos da casa de Kumalo, quando chegam à idade adulta, são levados
à tumba do rei e juram guardá-lo.
- Pode ser - disse Tungata, relutante.
- Conhece a profecia? - perguntou o velho.
- Quando a tribo estiver em grande necessidade, o espírito do velho rei
aparecerá para prestar-lhes socorro.
- O espírito de Lobengula virá como um fogo - corrigiu-o o velho.
- Sim - concordou Tungata -, o fogo de Lobengula.
- E há ainda muito, muito mais. Conhece o resto dela, filho de Kumalo?
- Recite-a, velho pai.
- Assim diz a profecia: "O filhote de leopardo primeiro quebrará um juramento,
depois, suas cadeias. O filhote de leopardo primeiro voará como uma águia e,
depois, nadará como um peixe. Quando essas coisas acontecerem, o fogo de
Lobengula será libertado dos lugares escuros e virá socorrer e salvar seu povo".
Ficaram silenciosos, ponderando sobre a adivinhação.
- A pele de leopardo é uma prerrogativa da casa de Kumalo lembrou-lhes
Vusamanzi. - Assim, o filhote de leopardo seria um descendente da casa real.
Tungata resmungou alguma coisa.
- Não sei se quebrou um juramento - acrescentou o velho -, mas quebrou as
cadeias com as quais os shonas o aprisionavam.
- Êh, he! - Tungata assentiu, com o rosto fechado e impassível.
- Escapou de Tuti em um indeki, realmente voando como uma águia - apontou-lhe o
velho, e de novo Tungata concordou, mas murmurou em inglês para Craig:
- A beleza dessas velhas profecias é que podem ser ajustadas a qualquer
circunstância. Ganham um pouco e perdem um pouco a cada repetição, dependendo do
humor e dos motivos do vidente.
- E voltou a falar em sindebele. - O senhor é sábio, velho, e muito versado em
magia, mas explique-nos isso de nadar como um peixe. Devo preveni-lo de que não
sei nadar e de que a única coisa que temo realmente é morrer afogado. Deve
procurar outro peixe.
Vusamanzi limpou a gordura do queixo e pareceu satisfeito.
- Há algo mais que preciso lhe contar - continuou Tungata.
- Penetrei no túmulo de Lobengula e está vazio. O corpo de Lobengula
desapareceu. A profecia foi esvaziada há muito, muito tempo.
O velho feiticeiro não pareceu nada consternado com as palavras de Tungata. Em
vez disso, sentou-se sobre os calcanhares e abriu a tampa do chifre de rapé que
tinha pendurado ao pescoço.
- Se penetrou no túmulo do rei, então quebrou o juramento de mantê-lo intacto -
disse com um brilho malicioso nos olhos. - A quebra de juramento da profecia,
seria isso? - Não esperou a resposta, colocou um pó vermelho na palma da mão e
cheirou-o, espirrando em êxtase e com lágrimas escorrendo pelas bochechas
enrugadas. - Se quebrou o juramento, Nkosi, estava além de seus poderes evitá-
lo. Os espíritos de seus ancestrais o levaram a isso e não tem culpa. Mas deixe-
me explicar-lhe o túmulo vazio. - Fez uma pausa e pareceu partir para outro
assunto. - Já ouviram falar de um homem que viveu há muito tempo atrás, um homem
chamado Taka-Taka? - Ambos concordaram.
- Taka-Taka era o bisavô pelo lado materno de Pupho - Tungata disse, apontando
para Craig. - Foi um famoso soldado branco na época de Lobengula. Lutou contra
os guerreiros impis do rei. Taka-Taka era o som que as metralhadoras faziam
quando os guerreiros dos matabele lutavam contra ele.
- O velho Sir Ralph Ballantyne - concordou Craig. - Um dos braços direitos de
Rhodes, e primeiro-ministro da Rodésia. - Voltou a falar sindebele. - Taka-Taka
está enterrado nas Colinas Matopos, perto do túmulo de Lodzi, do próprio Cecil
Rhodes.
- É esse mesmo. - Vusamanzi limpou o pó que aderira ao lábio superior e as
lágrimas do rosto. - Taka-Taka, o soldado e o saqueador dos lugares sagrados da
tribo. Foi ele que roubou os pássaros de pedra da cidade arruinada do grande
Zimbabué. Foi ele também que veio até essas colinas para violar o túmulo de
Lobengula e roubar as pedras de fogo que guardam o espírito do rei.
Tanto Craig quanto Tungata inclinaram-se para a frente, atentamente.
- Li o livro que o velho Taka-Taka escreveu contando sua vida... - Os diários
manuscritos eram parte do tesouro pessoal de Craig que os deixara em King's Lynn
quando Peter Fungabera o colocara para fora. - Li as próprias palavras dele e
não fala em ter chegado ao túmulo de Lobengula. E que pedras de fogo são essas?
O velho levantou a mão, silenciando-o.
- Está indo rápido demais, Pupho - advertiu. - Deixe que o filho de Kumalo
explique esses mistérios para nós. Ouviu falar das pedras de fogo, Tungata
Zebiwe, que um dia se chamou Samson Kumalo?
- Ouvi algo a respeito - disse Tungata, cautelosamente. - Ouví dizer que havia
um enorme tesouro em diamantes coletados pelos amadoda de Lobengula nas minas do
branco Lodzi no sul...
Craig começou a interrompê-lo, mas Tungata o fez silenciar.
- Explico isso mais tarde - prometeu, e voltou-se para o velho feiticeiro.
- O que ouviu é verdade - assegurou-lhe Vusamanzi. - Existem cinco barris de
cerveja cheios de pedras de fogo.
- E foram roubados por Taka-Taka? - antecipou-se Craig, Vusamanzi assumiu um ar
severo.
- Devia ir para a fogueira das mulheres, Pupho, já que fala tanto quanto elas.
Craig parou de sorrir e ficou devidamente calado enquanto Vusamanzi arrumava a
capa antes de continuar.
- Quando Lobengula foi posto na terra, e o túmulo selado pelo meio-irmão e leal
induna, um homem chamado Gandang...
- Que era meu trisavô - murmurou Tungata.
- Que era seu trisavô - concordou o velho. - Gandang colocou todos os tesouros
do rei com ele no túmulo e liderou a tribo matabele derrotada de volta. Foi
fazer um acordo com Lodzi e esse Taka-Taka, e a tribo ficou em servidão do homem
branco. Mas um homem ficou nestas colinas, um famoso feiticeiro chamado
Insutcha, a flecha. Ficou para guardar a tumba do rei e construiu umaaldeia
perto, tomando esposas e criando filhos. Insutcha, a flecha, era meu avô. -
Ficaram bastante surpresos e Vusamanzi adotou uma expressão complacente. - Sim,
estão vendo como os espíritos agem? Tudo planejado e predestinado: nós três nos
ligamos por nossa história e nossos laços de sangue, Gandang, Taka-Taka e
Insutcha. Os espíritos nos reuniram desta maneira maravilhosa.
- Sally-Anne está certa. Tudo isso é um bocado estranho - disse Craig. Vusamanzi
fez cara feia com o uso de uma língua estrangeira.
- Esse Taka-Taka, como já disse, era um famoso aventureiro, com um nariz de
hiena e o apetite de um abutre - Vusamanzi disse com gosto e olhou para Craig.
- Acertou-me direitinho - Craig sorriu secretamente, mas manteve uma expressão
solene.
- Soube da lenda do tesouro e foi procurar entre os sobreviventes do batalhão
impi de Gandang, os homens que haviam estado presentes na época da morte do rei,
e encheu-lhes os ouvidos de palavras gentis e doces, oferecendo-lhes gado e
moedas de ouro. Conseguiu achar um traidor, um cão que não merecia o nome de
matabele. Não direi o nome desse lixo, mas cuspo em seu túmulo desonrado. -
Vusamanzi acertou uma cusparada nas brasas do fogo. - Esse cão concordou em
guiar Taka-Taka até lá, mas, antes que o fizesse, houve uma grande guerra entre
os brancos, e Taka-Taka foi para o norte lutar contra o induna alemão chamado de
HambaHamba, "o que marcha de cá para lá e nunca é apanhado".
- Von Lettow Vorbeck - traduziu Craig -, o comandante alemão na África Ocidental
durante a guerra de 1914 a 1918. - E Tungata concordou.
- Quando a guerra terminou, Taka-Taka mandou chamar o traidor matabele e vieram
para estas colinas com o cão dos cães liderando-os: quatro homens brancos além
de Taka-Taka, à procura do túmulo. Procuraram por vinte e oito dias porque o
traidor não se lembrava do local exato e a tumba estava habilmente disfarçada.
Mas com o seu nariz de hiena, Taka-Taka a localizou afinal e abriu a tumba real,
encontrando carroças e armas, mas o corpo do rei e os cinco barris de cerveja
haviam desaparecido!
- Isso já vi e contei a vocês - disse Tungata. Era um anti-clímax. Fez um gesto
resignado e Craig encolheu os ombros, mas Vusamanzi continuou resolutamente:
- Dizem que a raiva de Taka-Taka foi como as grandes tempestades de chuva, que
rugiu como um leão devorador de homens e o rosto ficou primeiro vermelho, depois
púrpura e, finalmente, negro. - Vusamanzi riu de satisfação. - E dizem que tirou
o chapéu da cabeça e o atirou no chão, pegou a arma e quis atirar no guia
matabele, mas os companheiros brancos o impediram. Então, amarrou o cão a uma
árvore e espancou-o com um kibobo até as costelas aparecerem e tirou-lhe as
moedas de ouro e o gado com que o subornara, tornou a espancá-lo e, finalmente,
berrando como um elefante no cio, Taka-Taka foi-se e nunca mais voltou.
- É uma boa história - concordou Tungata. - Vou contá-la a meus filhos. -
Espreguiçou-se e bocejou. - Está ficando tarde.
- A história ainda não acabou - disse Vusamanzi empertigado, e colocou a mão no
ombro de Tungata para impedi-lo de levantar-se.
- Há mais ainda?
- Sem dúvida. Precisamos recuar um pouco, pois quando TakaTaka, junto com os
companheiros e o cão traidor, veio a primeira vez até estas colinas, meu avô
Insutcha ficou imediatamente desconfiado. E mandou três de suas mulheres mais
bonitas e jovens para o acampamento com pequenos presentes de ovos e coalhada e
ele respondeu às perguntas dizendo que viera até ali para caçar rinocerontes. -
Vusamanzi fez uma pausa, olhou para Craig e acrescentou: - Taka-Taka também era
um consumado mentiroso. Mas a mais bonita das esposas esperou pelo cão matabele
traidor na hora do banho no rio e tocou debaixo d'água naquilo que se costuma
dizer que, quanto mais duro fica, mais mole deixa a cabeça de um homem, e,
quanto mais rápido sacode, mais depressa solta a língua. Com a mão da moça em
sua espada, o traidor contou um monte de vantagens e promessas de gado e moedas
de ouro, e a esposa correu de volta para meu avô na aldeia.
Vusamanzi conseguira de novo toda a atenção dos dois e estava visivelmente
deleitado.
- Meu avô ficou muito consternado. Taka-Taka viera para violar e roubar o túmulo
do rei. Insutcha jejuou e ficou em vigília, tirou a sorte com ossos, olhou a
água do vaso de predições e finalmente chamou os quatro aprendizes de
feiticeiro, um dos quais era meu pai. Na lua cheia, abriram o túmulo do rei e
fizeram sacrifícios para aplacar seu espírito; com reverência, levaram o corpo
embora e tornaram a lacrar a tumba. Levaram o rei para um lugar seguro e o
depositaram lá, com os barris de cerveja cheios das pedras brilhantes; e meu pai
contou-me que, na pressa, um dos potes virou e partiu-se e que haviam catado as
pedras rapidamente e colocado num saco de pele de zebra, deixando os cacos do
vaso no túmulo.
- Tanto os aprendizes quanto Taka-Taka não viram um dos diamantes - disse
Tungata calmamente. - Encontramos os cacos e um único deles onde o haviam
deixado.
- Agora pode ir dormir, Nkosi, se ainda está com vontade. - Vusamanzi deu a
permissão com um brilho malicioso nos olhos. - O quê? Quer ouvir mais? Não há
mais nada a dizer. A história terminou.
- Para onde levaram o corpo do rei? - perguntou Tungata. - Conhece o local,
sábio e reverendo velho pai?
- É um prazer inesperado descobrir respeito e honraria pelos velhos nos jovens
de hoje em dia, mas, respondendo à sua pergunta, filho de Kumalo: sei onde está
o corpo do rei. O segredo me foi transmitido por meu pai.
- Pode levar-me até ele?
- Não lhe disse que este lugar em que estamos é sagrado? E o é por uma boa
razão.
- Meu Deus!
- Aqui! - Tanto Craig quanto Tungata falaram ao mesmo tempo e Vusamanzi deu uma
risada, batendo nos joelhos ossudos, muito satisfeito com a reação dos dois.
- Amanhã de manhã vou levá-los para ver o túmulo do rei - prometeu. - Mas agora
minha garganta está seca de tanto falar. Passem o pote de cerveja para um velho.
quando craig acordou, a primeira luz matinal difundia-se pelo buraco no teto da
caverna, leitosa e azulada pela fumaça da lareira onde as moças preparavam a
refeição da manhã.
Enquanto comiam, e com a relutante permissão de Vusamanzi, Craig contou em
inglês a história do segundo enterro de Lobengula a Sarah e a Sally-Anne, que
ficaram fascinadas e imediatamente excitadas para acompanhar a expedição.
- É um lugar de acesso difícil - argumentou o velho -, e não é para os olhos de
meras mulheres. - Mas Sarah sorriu-lhe docemente, afagou-lhe a cabeça e
sussurrou-lhe ao ouvido e, finalmente, depois de mais uma reação severa, acabou
cedendo.
Sob a orientação de Vusamanzi, os homens fizeram alguns preparativos simples
para a expedição. Em um dos corredores da caverna, debaixo de uma pedra
achatada, havia uma cavidade escondida, com outro lampião, dois machados nativos
e três rolos de corda de náilon de boa qualidade dos quais visivelmente o velho
orgulhava-se.
- Conseguimos estas belas cordas do exército de Smithy durante a guerra - gabou-
se.
- Que grande derrota para a liberdade - murmurou Craig, e Sally-Anne fez-lhe
sinal para que se calasse.
Tomaram por uma das passagens e Vusamanzi liderava-os, levando uma das
lanternas, seguido por Tungata com um dos rolos de corda, as moças ao centro e
Craig com outro rolo e a lanterna restante à traseira.
Vusamanzi continuou pela passagem que foi estreitando-se e ficando sinuosa. Ao
bifurcar-se, não hesitou. Craig abriu o canivete e marcou a parede à direita,
apressando-se em seguida para alcançá-los.
Os túneis e cavernas eram um labirinto. As infiltrações de água haviam minado o
calcário das colinas e o perfurara como um queijo suíço. Em alguns lugares,
desceram por declives cheios de cascalho e a certa altura subiram uma escada
natural de calcário. Craig marcava cada curva do caminho. O ar era frio, úmido e
cheirava a guano. Havia ocasionalmente um frémito de asas escuras por sobre as
cabeças e o grito agudo de morcegos que ecoavam nas galerias.
Depois de vinte minutos, chegaram até uma queda quase vertical na parede de
calcário liso e polido, tão profunda que a claridade da lanterna não chegava ao
fundo. Guiados por Vusamanzi, amarraram um lado da corda de náilon a um pilar e,
um de cada vez, desceram uns quinze metros até o próximo estágio. Era uma falha
vertical na formação rochosa, onde dois corpos geológicos haviam-se afastado
ligeiramente e formado uma fenda nas profundezas da terra. Era tão estreita que
podiam tocar as duas paredes e, à luz do lampião, Craig distinguia os olhos
brilhantes dos morcegos pendurados de cabeça para baixo.
Desenrolando a segunda corda atrás dele, Vusamanzi descia cautelosamente pelo
traiçoeiro solo da fenda que alargava-se progressivamente e o teto ia
desaparecendo acima deles. Lembrava a Craig a grande galeria no coração da
pirâmide de Queops, uma fenda assustadora na rocha viva, inclinada a ponto de
terem que se equilibrar a cada passo. Quase haviam atingido o limite da corda
quando Vusamanzi parou e ficou imóvel sobre uma laje meio inclinada, iluminado
pela lanterna e parecendo um Moisés negro que acabara de descer da montanha.
- O que é? - gritou Craig.
- Desça! - ordenou Tungata, e Craig ultrapassou o último declive, encontrando
Vusamanzi e os outros inclinados sobre a laje, espiando pela borda a superfície
parada de um lago subterrâneo.
- E agora? - perguntou Sally-Anne, com voz abafada e cheia de temor por aquele
lugar profundo e secreto.
O lago inundara a fenda. Do outro lado da superfície, a uns quinze metros, o
teto da laje mergulhava nela com a mesma inclinação do solo em que estavam.
Craig usou pela primeira vez a lanterna elétrica que haviam salvo do desastre do
Cessna. Iluminou a água intocada por um longo período cujos sedimentos haviam-se
assentado, deixando-a transparente como um riacho. Podiam ver o chão inclinado
da galeria descendo para as profundezas. Craig desligou a lanterna para
economizar as baterias.
- Bem, Sam, aí está a sua grande chance de nadar como um peixe... - disse e
colocou-lhe a mão no ombro. A risada de Tungata foi breve e ambos olharam para
Vusamanzi.
- E agora, reverendo pai?
- Quando Taka-Taka veio para essas colinas e meu avô e meu pai salvaram o
cadáver do rei da conspurcação, tinha havido sete anos longos e terríveis de
seca que fustigaram a terra. O nível da água nesta fenda era muito menor do que
agora. Lá embaixo, há outra laje e foi nesse lugar que colocaram o corpo de
Lobengula. Nos muitos anos que se passaram desde então, chuvas abundantes
abençoaram a terra e a cada ano o nível tem subido. A primeira vez que estive
aqui, trazido por meu pai, as águas estavam abaixo daquela rocha saliente.
Craig ligou por um instante a lanterna e o facho de luz incidiu na protuberância
de calcário a uns dez metros abaixo da superfície. Mas mesmo então o túmulo do
rei estava bem abaixo dela.
- Então, nunca viu a tumba com os próprios olhos? - interrogou-o Craig.
- Nunca - concordou Vusamanzi. - Mas meu pai a descreveu para mim.
Craig ajoelhou-se à beira do lago e colocou a mão na água. Era tão fria que
estremeceu e a tirou depressa. Enxugou-a na camisa e, ao levantar os olhos,
Tungata o observava com uma expressão especulativa.
- Ei, olhe aqui, meu querido irmão matabele - disse com veemência. - Sei
perfeitamente o que significa este olhar e trate de esquecê-lo.
- Não sei nadar, Pupho meu amigo.
- Esqueça - avisou-o Craig.
- Podemos amarrar uma das cordas em você. Não correrá o menor perigo.
- Sabe o que pode fazer com suas malditas cordas.
- A lanterna é à prova d'água e pode acender abaixo da superfície - continuou
Tungata com firmeza.
- Jesus! - disse Craig, amargamente. - Regra africana número um: quando tudo
mais falhar, procure em volta um cara-pálida.
- Lembra-se que atravessou o rio Limpopo por causa de uma aposta ridícula, uma
caixa de cerveja? - perguntou Tungata em voz macia.
- Estava bêbado naquele dia e hoje estou sóbrio. - Olhou para Sally-Anne em
busca de apoio e ficou desapontado.
- Você também!
- Há crocodilos no Limpopo e por aqui não há nenhum - ela argumentou.
Craig começou a desabotoar lentamente a camisa, e Tungata sorriu, começando a
preparar a corda. Todos observavam com interesse enquanto desamarrava a perna
mecânica e a pousava cuidadosamente no chão. Ficou de roupa de baixo à beira do
lago enquanto Tungata passava-lhe a corda pela cintura.
- Pupho - disse Tungata calmamente. - Vai precisar de roupas secas depois. Por
que vai molhar estas? - disse, apontando para a roupa íntima.
- Por causa de Sarah - Craig explicou e olhou-a de soslaio.
- É uma matabele. A nudez não a ofende.
- Deixe que fique com seus segredos - sorriu Sarah -, apesar de eu não ter
nenhum para ele. - Ela sorria ao terminar a frase e Craig lembrou-se de sua
nudez debaixo da ponte.
Sentou-se na borda da rocha e tirou a cueca, atirando-a por cima das outras
roupas. Nenhuma das duas desviou o olhar; deslizou para a água gelada e foi
nadando lentamente até o meio do lago.
- Contem o tempo - disse-lhes. - Puxem a corda duas vezes a cada sessenta
segundos para me fazer sinal e, quando completar três minutos, puxem-me para
cima de qualquer maneira, certo?
- Certo - anuiu Tungata, que estava com a corda enrolada entre os pés, pronto
para soltá-la aos poucos.
Craig começou a boiar e a inspirar e expirar profundamente, procurando livrar-se
do dióxido de carbono. Era um recurso perigoso, e um mergulhador inexperiente
poderia desmaiar por falta de oxigénio antes que o gás carbónico fosse
totalmente eliminado. Encheu bem os pulmões e mergulhou na água fria e clara.
Sem o uso de óculos de mergulho, a visão ficava distorcida mas manteve o foco da
lanterna dirigido para a elevação calcária abaixo e nadou rapidamente, com a
pressão estalando nos ouvidos.
Atingiu-a e tomou impulso na pedra. Descia com mais facilidade agora que a
pressão da água comprimira o ar dos pulmões, reduzindo a flutuação. O solo
íngreme da piscina natural passava-lhe diante dos olhos numa visão distorcida;
rolou para o lado, examinando as paredes à procura de uma entrada.
Sentiu então um puxão duplo em torno da cintura; já se passara um minuto e viu
então a entrada da tumba abaixo dele. Era uma abertura quase circular na parede
à esquerda da galeria principal que lhe lembrou a órbita vazia de um crânio.
Mergulhou e estendeu a mão, agarrando-se à soleira de pedra da abertura grande o
bastante para deixar passar um homem curvado. Examinou as paredes polidas pela
correnteza e recobertas por uma camada de limo. Percebeu que era um poço de
drenagem vindo da superfície, escavado na rocha pela infiltração das chuvas
durante milénios.
De repente, teve medo. Havia algo de assustador e proibitivo naquela entrada
escura. Olhou para a superfície onde viu o reflexo da luz do lampião de
Vusamanzi; essa visão e a água gelada sugaram-lhe a coragem. Teve ímpetos de
voltar à superfície e sentiu o primeiro hausto involuntário dos pulmões. Estava
ficando sem oxigénio.
Algo deu-lhe um puxão na cintura e, por um momento, ficou à beira do pânico
antes de perceber que era o sinal. Dois minutos haviam se passado.
Forçou-se a continuar. A passagem fazia um ângulo suave para cima, nadou alguns
metros iluminando-a, mas a água estava ficando escura e densa com a sedimentação
que se levantava do solo.
De repente, constatou que a passagem estava interrompida pela superfície áspera.
Os pulmões estavam começando a ressentir-se do esforço, os ouvidos zumbiam, e
estava meio cego pelos sedimentos que giravam em torno e por um início de
vertigem, mas forçou-se a examinar o fim do túnel de alto a baixo.
Percebeu logo que se tratava de uma parede de alvenaria, cuidadosamente feita
para bloqueá-lo, e sentiu um desânimo total. Os velhos feiticeiros haviam selado
mais uma vez o túmulo de Lobengula e, nos breves segundos que lhe restavam,
sentiu que haviam feito um trabalho perfeito.
Tocou com os dedos algo metálico ao pé da parede, pegou-o e nadou de volta pela
passagem, com a falta de ar aumentando. Chegou à galeria principal ainda com o
objeto na mão.
Acima dele, o reflexo da luz brilhava e procurou nadar para lá. Estava com os
sentidos completamente embotados; pontos de luz e escuridão alternavam-se diante
de seus olhos enquanto o cérebro ficava cada vez mais sem oxigénio; sentiu os
primeiros sinais de letargia nos pés e mãos que pareciam pesar como chumbo.
A corda em torno de sua cintura esticou-se com um puxão e sentiu-se içado. Três
minutos; Tungata o levava de volta. A luz no alto girava loucamente e ele
redemoinhava na ponta da corda até que não aguentou mais e tentou respirar,
fazendo com que a água gelada lhe penetrasse nos pulmões.
Chegou à superfície e Tungata, enfiado na água até a cintura, segurava a corda
com as duas mãos. No momento em que emergiu, ele o agarrou e arrastou para a
margem.
As moças estavam preparadas para segurá-lo pelos pulsos e ajudaram-no a subir na
laje. Craig caiu, tossindo, vomitando água e tremendo violentamente de frio.
Sally-Anne colocou-o de bruços e pressionou-lhe as costas com as duas mãos. Água
e vómito esguicharam-lhe da garganta, mas a respiração foi se normalizando e,
por fim, sentou-se esfregando a boca. Sally-Anne tirara a blusa e o esfregava
vigorosamente. À luz do lampião, sua pele estava azulada e tremia
convulsivamente.
- Como se sente? - perguntou Sarah.
- Maravilhoso - ofegou. - Nada como um bom mergulho.
- Ele está bem - assegurou-lhes Tungata. - Quando começa a rosnar é sinal de que
tudo está bem.
Craig colocou as mãos sobre o lampião para aquecê-las gradualmente e o tremor
cessou. Sarah sussurrou algo para Tungata, olhando com um sorriso malicioso para
o corpo nu de Craig.
- É isso aí! - disse Tungata, imitando o sotaque de um negro norte-americano e
rindo muito. - E tem mais, não tem nenhum balanço também.
Craig agarrou a cueca e Sally-Anne apressou-se lealmente em defendê-lo.
- Não o estão vendo em seus melhores momentos e aquela água congelaria qualquer
um.
As mãos de Craig estavam manchadas de ferrugem e ele lembrou-se do objeto que
encontrara na parede do túmulo, e deixara atirado à beira da laje.
- Um elo de uma corrente de carreta - disse, ao pegá-lo. - De uma carreta de
boi.
Vusamanzi, que estivera acocorado silenciosamente a um lado, quase fora do
círculo de luz da lanterna, falou naquele momento:
- Essa corrente era da carreta do rei. Meu avô a usou para baixar o corpo pelo
poço.
- Então, encontrou o túmulo? - perguntou Tungata. Para todos, aquele pedaço
insignificante de metal era a prova que transformava fantasia em realidade.
- Acho que sim, mas nunca saberemos ao certo - Craig concluiu, começando a
afivelar a perna novamente.
Todos o observavam e esperavam. Teve outro acesso de tosse e, depois que a
respiração voltou ao normal, prosseguiu:
- Há uma passagem como a descrita por Vusamanzi. Está a uns quatro metros e meio
abaixo daquela elevação virada para a esquerda, uma abertura redonda que sobe
verticalmente. Cerca de seis metros da entrada, esse poço foi bloqueado com
alvenaria, grandes blocos de calcário muito bem ajustados. Não há maneira de se
saber quanto têm de espessura, mas uma coisa é certa, seria um trabalho duro
abri-la. Tive apenas alguns segundos para avaliá-los, mas garanto que, sem um
equipamento de mergulho, ninguém vai passar além daquele muro.
Sally-Anne começou a dar de ombros, mas arrependeu-se e olhouo de maneira
desafiadora.
- Não podemos desistir, Craig querido, não podemos simplesmente ir embora e
nunca ficar sabendo a verdade. Acho que remoeria isso pelo resto da vida. Um
mistério desses! Nunca mais poderia ser feliz, nunca.
- Estou aceitando sugestões. Alguém tem um equipamento de mergulho metido no
bolso? Que tal pagarmos um bode a Vusamanzi para que faça a água se abrir, como
Moisés no Mar Vermelho? - Craig disse sarcasticamente.
- Não seja petulante - disse Sally-Anne.
- Vamos pessoal, botem a inteligência e a criatividade para funcionar! Como é?
Nenhuma sugestão? Então vamos voltar para onde haja uma fogueira e um pouco de
calor. - Atirou dentro d'água o pedaço de metal enferrujado. - Durma em paz,
Lobengula, "O que avança como o vento", fique com suas pedras de fogo e shala
gashle, fique em paz!
A subida até o labirinto de passagens e grutas interligadas foi uma procissão
silenciosa e desanimada. Craig tornou a assinalar cada volta e encruzilhada à
medida que passavam.
Já de volta à caverna principal, levaram apenas uns poucos minutos para avivar
as brasas do fogão e ferver um cantil de água.
O chá forte e açucarado fez desaparecer os últimos vestígios da tremedeira de
Craig e os reanimou.
- Preciso voltar à aldeia - disse Vusamanzi. - Se os soldados shona não me
encontrarem ao chegar, ficarão desconfiados, e vão começar a maltratar e
torturar minhas mulheres. Preciso estar lá para protegê-las, se bem que até eles
têm medo de minha magia.
- Pegou a sacola, o manto e o bastão enfeitado. - Precisam ficar na caverna o
tempo todo. Sair daqui é arriscar-se a ser descoberto pelos soldados. Vocês têm
comida, água, lenha, cobertores e parafina para os lampiões, não há necessidade
de sair. Minhas mulheres virão depois de amanhã com mais comida e notícias sobre
os shona.
- Ajoelhou-se diante de Tungata. - Fique em paz, grande príncipe de Kumalo. Meu
coração me diz que é o filhote de leopardo da profecia e que achará um meio de
libertar o espírito de Lobengula.
- Talvez volte aqui um dia com as máquinas especiais que são necessárias para
alcançar o lugar de repouso do rei.
- Talvez - concordou Vusamanzi. - Farei sacrifícios e vou consultar os
espíritos, talvez eles me concedam a graça de descobrir o caminho. - À saída da
caverna, parou e despediu-se: - Voltarei quando for seguro. Fiquem em paz, meus
filhos. - E partiu.
- Algo me diz que vai ser uma temporada longa e difícil e este não é exatamente
o lugar ideal para passá-la - disse Craig.
Eram pessoas ativas e inquietas, e o confinamento começou a incomodá-los quase
que imediatamente. Dividiram de comum acordo a caverna, uma área para todos em
torno da lareira e uma privativa nas extremidades para cada casal. A água que
minava da rocha recolhida em um pote de barro era suficiente para todas as
necessidades, inclusive as ablussões e havia em uma das passagens um poço que
fazia as vezes de latrina natural. Mas não havia nada para ler e nenhum material
para se escrever. Craig ressentia-se muito disso. Para amenizar o tédio, Sarah
começou a ensinar sindebele a Sally-Anne, cujo progresso foi tão rápido que logo
pôde acompanhar uma conversa simples e responder com fluência razoável.
Tungata recuperou-se rapidamente durante aqueles dias de inatividade forçada.
Engordou, os ferimentos sararam e recuperou a vitalidade. Era ele muitas vezes
quem liderava as longas conversas ao pé do fogo e o irreprimível senso de humor
dos velhos tempos, tão nitidamente lembrado por Craig, começou a superar os
estados de ânimo sombrios que o assaltavam.
Quando Sally-Anne fez uma observação de menosprezo sobre a África do Sul e o
regime de apartheid, Tungata a contradisse com uma fingida severidade.
- Não, não, Pêndula... - dera-lhe o apelido matabele de Pêndula, "aquela que
sempre retruca". - Em vez de condená-los, nós, africanos negros, devíamos dar
graças a Deus por eles! Porque são capazes de unir cem tribos num único brado.
Tudo o que precisamos é levantar e gritar, "O apartheid racista dos boers!"
Todos param de lutar entre si e, por um instante, somos irmãos.
Sally-Anne bateu palmas.
- Adoraria ouvir você fazer um discurso na próxima reunião da Organização Pela
Unidade Africana!
Tungata riu; estavam ficando muito amigos.
- Outra coisa pela qual devemos ser gratos... - e continuou.
- Fale mais um pouco - ela o incitava.
- Aquelas tribos lá do sul são as mais agressivas da África - obedecia Tungata
-, zulus, shosas e tswanas. Já temos uma parada dura com os shona; imagine se
aquela gente resolvesse se virar contra nós também. Não, de agora em diante,
minha divisa será "Beije um afrikander todo dia!"
- Não lhe dê corda - suplicava Sarah. - Um dia desses ainda vai falar assim
diante de pessoas que o levarão a sério.
Em outras ocasiões, Tungata recaía em estados de depressão.
- É como a Irlanda do Norte ou a Palestina, apenas cem vezes maior e mais
complexa. Este conflito entre nós e os shona é um microcosmo de todo o problema
africano.
- Vê alguma solução? - perguntava Sally-Anne.
- Apenas soluções radicais e difíceis - dizia-lhe. - Veja, as potências
europeias, na corrida que fizeram no século dezenove pela posse da África,
dividiram o continente sem levar em consideração as divisões tribais, e é um
preceito arraigado da Organização Pela Unidade Africana que essas divisões são
sacrossantas. Uma solução possível seria derrubar este artigo e repartir o
continente pelos limites tribais, mas depois da terrível experiência da índia e
do Paquistão nenhum ser racional poderia apoiar este ponto de vista. A única
outra solução me parece ser uma forma de governo federal baseada grosso modo no
sistema americano, com o Estado dividido em províncias tribais com autonomia em
seus próprios assuntos.
As conversas expandiam-se pelo tempo, e, para diverti-las e instruí-las, tanto
Craig quanto Tungata contavam a história daquela terra entre os rios Limpopo e
Zambeze, e cada um concentrava-se no papel desempenhado pelas respectivas nações
e famílias em sua descoberta e ocupação e sobre o conflito que as dividira.
Por duas vezes em dias sucessivos a conversa ao pé do fogo fora interrompida por
sons vindos do mundo exterior. O som sibilante de um helicóptero cortando os
ares os fez ficarem silenciosos olhando para o teto de pedra sobre eles até que
desapareceu. E continuaram falando sobre as chances de escaparem às forças que
os perseguiam e os caçavam tão implacavelmente.
A cada dois dias, as mulheres vinham da aldeia de Vusamanzi, andando na
escuridão que antecedia o amanhecer, para escapar à vigilância feita do alto,
com comida e novidades.
Os soldados da Terceira Brigada haviam chegado à vila, cercando-a primeiro, e,
depois, atacando-a e pilhando as cabanas. Haviam espancado uma das moças,
molestado e berrado ameaças ao velho, mas Vusamanzi tinha-os enfrentado com
dignidade e, por fim, sua formidável reputação de feiticeiro os protegera.
Haviam partido sem roubar muita coisa de valor, sem queimar uma só cabana ou
matar mais do que algumas galinhas, mas prometeram voltar.
Entretanto, uma caçada maciça estava sendo feita por toda a área. A pé ou de
helicóptero, os shona esquadrinhavam a floresta e as colinas durante o dia e
centenas de fugitivos do campo haviam sido recapturados. As moças os haviam
visto sendo transportados em caminhões pesados, nus e acorrentados.
Pelo que sabia Vusamanzi, ainda não haviam descoberto os destroços do avião, mas
ainda corriam grande perigo, e Vusamanzi lhes ordenara que insistissem com eles
para permanecer na caverna. Iria vê-los pessoalmente quando achasse seguro.
As novidades deprimiram a todos e foi preciso os melhores esforços de Craig com
histórias e palhaçadas para melhorar o humor geral. Distraía-lhes a atenção para
o assunto favorito, o túmulo de Lobengula e a enorme fortuna que gostavam de
acreditar que continha. Já tinham discutido em detalhes o equipamento necessário
para que um time de mergulhadores abrisse a tumba e chegasse à área onde os
despojos se encontravam. Sally-Anne perguntou a Tungata:
- Diga-nos, Sam, se houver um tesouro, se pudermos ter acesso a ele, e se
ficarmos ricos como esperamos, como o usaria?
- Acho que deveria ser tratado como propriedade do povo matabele. Teria de ser
colocado em um fundo e usado em seu benefício, primeiro, para serem melhor
tratados politicamente. Para os pragmáticos, um negociador com esse tipo de
barganha nas mãos chamaria mais facilmente a atenção do Foreign Office e do
Departamento de Estado americano. Pode influenciá-los a fazer pressão. O governo
de Harare teria que levá-los a sério e opções até agora fechadas a nós se
tornariam acessíveis.
- Em seguida, financiaria todo tipo de programas sociais, educação, saúde, a
defesa dos direitos femininos - disse Sarah, deixando por um momento a timidez
de lado.
- Seria usado para a aquisição de terras, aumentando as áreas tribais já
existentes e para a concessão de crédito aos camponeses na aquisição de tratores
e maquinaria, e ainda programas para a melhoria da qualidade do gado -
acrescentou Craig.
- Craig, não há nenhuma chance de se chegar à câmara funerária? - perguntou
Sally-Anne. - Não daria para tentar outro mergulho?
- Minha querida, explicarei pela centésima vez que eu só poderia provavelmente
mover uma única rocha a cada mergulho, e vinte delas me matariam.
- Oh, Deus, é tão frustrante! - Sally-Anne levantou-se e começou a andar de um
lado para o outro. - Sinto-me tão impotente. Se não fizermos alguma coisa, vou
enlouquecer. Estou sufocando, preciso de um pouco de oxigénio. Será que não
podemos ir lá fora por alguns instantes? - E reagindo na mesma hora: - Sei que
não está certo. Perdoem-me, sou uma tola. - Olhou para o relógio. - Meu Deus,
perdi a noção das horas, sabem que já é mais de meia-noite?
Craig e Sally-Anne estavam deitados sobre o colchão de capim cortado e couro
curtido, enlaçados e murmurando para não incomodar o outro casal na extremidade
oposta da caverna.
- Sinto tanta vergonha quando penso no papel que tive na prisão de Tungata. É um
homem maravilhoso, querido, às vezes sinto-me humilde quando o ouço.
- Acho que poderá transformar-se num grande homem público - concordou Craig.
- Voltar para cá e libertá-lo poderá ser a coisa mais importante que faremos na
vida.
- Se escaparmos desta - acrescentou Craig.
- Deve haver alguma justiça neste mundo louco.
- É um pensamento bonito.
- Dê-me um beijo de boa-noite, Craig.
Adorava ouvir o som delicado de sua respiração ao dormir e sentir o relaxamento
total de seu corpo, com leves movimentos de aconchego em seus braços, mas
naquela noite não conseguia dormir.
Sentia que havia algo em seu subconsciente, algo como uma rebarba, e, quanto
mais tempo ficava acordado, maior ficava sua irritação. Conseguiu chegar à
conclusão de que fora algo que alguémdissera aquela noite, mas, toda vez que
começava a aflorar à consciência, esforçava-se demais e tornava a sumir. Por
fim, recorreu ao velho truque de esvaziar a mente, imaginando uma cesta de
papel, e, à medida que cada pensamento espontâneo surgia, rasgava-o, amassava-o
e jogava-o na cesta.
- Meu Deus! - disse em voz alta, e sentou-se. Sally-Anne acordou bruscamente e
sentou-se também, tirando os cabelos do rosto e resmungando sonolenta.
- O que foi? - perguntou Tungata do outro lado.
- Oxigénio! - gritou Craig. Sally-Anne dissera "estou sufocando, preciso de um
pouco de oxigénio".
- Não estou entendendo - resmungou Sally-Anne, meio adormecida.
- Querida! Acorde, vamos. - Sacudiu-a com delicadeza. - Oxigénio! O Cessna está
equipado para voar a altitudes elevadas, não está?
- Deus do céu! Por que não pensamos nisso antes?
- Tem coletes salva-vidas?
- Sim. Quando fui fotografar os flamingos no lago Tanganica, fui obrigada a
instalá-los. Estão sob os assentos.
- E o sistema de oxigénio é de circuito reciclado?
- Sim.
- Pupho! - Tungata acendera o lampião e foi até o canto deles, com Sarah atrás,
nua e andando com passos vacilantes como um cachorrinho sonolento. - O que está
acontecendo?
- Sam, meu rapaz - Craig sorriu -, você e eu vamos dar uma volta.
- Agora?
- Agora, enquanto ainda está escuro.
havia luar suficiente para iluminar o caminho até a aldeia de Vusamanzi e
evitaram passar pela colina para não alarmar o velho. Um cão latiu, mas
conseguiram achar a trilha e apressaram-se em segui-la.
A manhã os surpreendeu ainda na estrada.
Foram forçados a se esconder por duas vezes. Na primeira, quando quase toparam
de frente com uma patrulha de pára-quedistas shona em uniformes camuflados.
Tungata, que ia à frente, avisou Craig com o sinal silencioso de extremo perigo.
Esconderam-se numa moita espessa de capim de elefante ao lado do caminho e
ficaram observando-os passar silenciosamente. Depois que se foram, Craig
descobriu que estava com o coração disparado e as mãos trémulas.
- Estou ficando velho demais para isso - sussurrou.
- Eu também - concordou Tungata.
Da segunda vez, foram alertados pelo ruído ensurdecedor de um helicóptero e
atiraram-se na ravina ao lado da trilha. A desajeitada máquina sobrevoou como
uma libélula a crista mais afastada do vale, com um atirador postado na
portinhola da fuselagem e os capacetes de um esquadrão de assalto amontoados por
trás como cogumelos verdes e venenosos. O helicóptero sobrevoou-os rapidamente e
não voltou.
Passaram adiante do lugar onde haviam cruzado a trilha da primeira vez e tiveram
que voltar um quilómetro para trás; já era entardecer quando se aproximaram do
local do desastre.
Foram acercando-se com cautela, descrevendo círculos em torno da área,
procurando vestígios de rastros e verificando com paciência infinita se os
destroços não haviam sido descobertos e demarcados. Finalmente, ao chegarem
junto deles, descobriram que estavam exatamente como os haviam deixado.
Tungata subiu de volta à encosta do vale e ficou de guarda com o AK 47, enquanto
Craig começou a separar o equipamento que procuravam. As quatro jaquetas
infláveis estavam sob os assentos, como dissera Sally-Anne. Eram de excelente
qualidade, de náilon especial, com cartuchos de dióxido de carbono para enchê-
los de ar e uma válvula de segurança para não deixá-lo escapar. Presos às
almofadas do peito havia apitos e pequenas lanternas alimentadas por baterías de
grande duração. Sob o assento do piloto encontrou, bendizendo o fabricante, um
estojo de conserto das jaquetas, com tesoura, raspadeira e dois tubos de epóxi.
Os tubos de oxigénio estavam presos a uma prateleira por trás do tabique
traseiro do compartimento de passageiros. Havia três deles, cada um com
capacidade para dois litros. Tubos de plástico flexíveis conduziam o oxigénio
através do painel até os assentos e tinham na extremidade máscaras faciais
contendo duas válvulas, embutidas. Inspirava-se oxigénio puro e expirava-se uma
mistura de oxigénio não-aproveitado, vapor de água e dióxido de carbono que
passava pela válvula de escape para dois depósitos abaixo do assoalho. Um deles
continha sílica gelatinosa que removia o vapor d'água e o segundo, cal de soda
para retirar o dióxido de carbono, enquanto o oxigénio purificado era reciclado
de volta às máscaras. Quando a pressão do oxigénio na aparelhagem caía para o
nível da atmosfera ambiente, era automaticamente suprido pelos três tubos de
aço. Os canos flexíveis estavam embutidos em peças de alumínio de primeira
qualidade, em forma de T ou recurvas, todas com o mesmo tipo de encaixe de
baionetas.
Trabalhando com o cuidado que o tempo curto permitia, Craig retirou a
aparelhagem e transformou a lona resistente dos assentos em sacolas, onde a
colocou, fazendo duas pesadas trouxas.
Já estava escuro quando assobiou para que Tungata descesse do ponto de vigia e
cada qual jogou uma trouxa sobre os ombros, iniciando o retorno.
Ao chegarem à trilha, passaram quase meia hora apagando os rastos e ocultando
qualquer traço do desvio.
- Acha que vai funcionar à luz do dia? - Craig perguntou, em dúvida. - Não
podemos deixar que achem os destroços.
- É o melhor que podemos fazer.
Retomaram a trilha, forçando a marcha e, apesar da carga incómoda e pesada,
conseguiram reduzir em uma hora a volta, chegando a caverna logo depois do
amanhecer.
Sally-Anne não disse uma palavra quando Craig entrou na caverna. Levantou-se de
onde estava sentada, perto do fogo, e foi abraçá-lo. Sarah fez a tradicional
reverência a Tungata e trouxe-lhe cerveja, deixando-o matar a sede antes de
importuná-lo com saudações. Só depois de ele haver bebido, ajoelhou-se à sua
frente, bateu as mãos com suavidade e sussurrou em sindebele:
- Eu o saúdo, meu senhor, mas mal o vejo, pois meus olhos estão cheios de
lágrimas de alegria!
o sargento shona estivera patrulhando a pé por trinta e três horas sem descanso.
Na manhã anterior, a patrulha tivera uma breve escaramuça com um pequeno bando
de fugitivos que caçavam, uma troca de tiros que durara alguns minutos, até que
os guerrilheiros matabele haviam escapado e se dividido em quatro grupos. O
sargento fora em perseguição a um dos grupos com cinco homens, seguira-o até o
escurecer e o perdera na borda rochosa do vale do Zambeze. Estava trazendo a
patrulha de volta para novos suprimentos e novas ordens.
Apesar da longa patrulha e da luta e perseguição encarniçada, ainda estava
alerta e vigilante. O caminhar era elástico, a cabeça virava-se atentamente de
um lado para outro enquanto percorria a trilha e o branco dos olhos sob a aba do
chapéu de combate estava límpido e brilhante.
De repente, fez o sinal para que os soldados se espalhassem e, enquanto mudava o
AK 47 do quadril direito para o esquerdo, cobriu aquele flanco atirando-se ao
chão; ouviu os homens espalharem-se, abrigados, dando-lhe cobertura. Ficaram
escondidos no capim de elefante ao lado da trilha, enquanto o sargento examinava
o pequeno sinal que o alertara, um punhado de capim esmagado e cuidadosamente
levantado numa tentativa de disfarce, mas que tornara a baixar. Era o tipo de
vestígio que um homem deixaria ao abandonar o caminho e preparar uma emboscada.
Ficou imóvel por dois minutos e, como não houve qualquer disparo hostil,
levantou-se e avançou dez passos, jogando-se ao chão novamente, rolando por duas
vezes para não se tornar um alvo para o inimigo, e esperou mais dois minutos.
Não houve qualquer reação, e avançou, cauteloso, até o capim esmagado. Era um
rasto humano: um pequeno grupo deixara a trilha ou alguém juntara-se a ele e o
haviam disfarçado. Só se tomava esse tipo de precaução quando se esperava ser
perseguido. O sargento assobiou chamando o rastreador e mostrou-lhe a pista. O
homem saiu da trilha e comunicou-lhe dali a minutos:
- Dois homens usando botas. Um deles manca um pouco da perna esquerda. Foram em
direção ao vale. - Tocou em uma das pegadas num trecho arenoso. Formigas-leão
haviam construído um diminuto formigueiro oco à beira dos rastos o que o
possibilitou saber a hora aproximada em que passaram pelo local. - Há seis ou
oito horas durante a noite, mas não podemos segui-los, a pista já foi coberta
por outros.
- Se não podemos saber para onde estão indo, vamos descobrir de onde vieram -
disse o sargento. - Vamos seguir a pista " de volta!
Três horas mais tarde, chegavam aos destroços do Cessna.
Craig dormiu por algumas horas e, depois, à luz do lampião, começou a modificar
o equipamento de oxigénio para uso subaquático. A parte mais importante para
fabricar o improvisado aparelho submarino era uma bolsa e para isso utilizou uma
das jaquetas infláveis. Introduziu nela o oxigénio do tubo de aço através da
única válvula de escape da máscara, fazendo a conexão com um pedaço de tubo
flexível, explicando-lhes enquanto trabalhava:
- A uma profundidade de doze metros debaixo d'água, a pressão é superior a duas
atmosferas; acho que devem lembrar-se das aulas de física do colégio: nove
metros e noventa de água são iguais a uma atmosfera, e mais a pressão de ar
acima dela fazem duas, está certo?
A interessada audiência concordou.
- Muito bem! Para que eu possa respirar à vontade, o oxigénio tem que entrar em
meus pulmões com a mesma pressão da água em torno, o oxigénio na bolsa estará
sob a mesma pressão ambiente em que estou.
- Meu pai sempre dizia, o que conta é a cabeça! - aplaudiu Sally-Anne.
- Os produtos químicos desses dois depósitos removem o vapor d'água e o dióxido
de carbono do ar que expiro e o oxigénio purificado volta à bolsa por este tubo
e torno a respirá-lo.
Estava lacrando as novas ligações com o epóxi do estojo de reparos.
- À medida que for usando o oxigénio da bolsa, mantenho-a cheia com oxigénio
fresco do tubo metálico preso nas costas. Assim... - Bateu na tampa do tubo,
deixando escapar o gás com ruído sibilante.
- Naturalmente, há alguns problemas... - Começou a alterar a forma da máscara
facial para torná-la impermeável.
- E quais são?
- A flutuação - respondeu. - A medida que for gastando o oxigénio da bolsa, vou
tornar-me mais pesado e o tubo de metal vai me puxar para baixo como uma pedra.
Quando reencher a bolsa, a tendência será a de disparar para cima como um balão.
- E como vai evitar isso?
- Vou usar pedras para aumentar meu peso e descer até a entrada do túmulo e,
quando chegar lá, vou ter de me amarrar com uma corda.
Craig estava fazendo uma espécie de mochila com os dois depósitos e o tubo de
oxigénio, posicionando-o cuidadosamente para que pudesse bater na válvula por
cima do ombro.
- Mas a falta de peso não é o problema maior - disse.
- Ainda há mais? - perguntou Sally-Anne.
- Tantos problemas quanto quiser - Craig sorriu. - Sabiam que oxigénio puro
respirado por um período dilatado de tempo a mais de duas atmosferas, isto é, a
mais de doze metros de profundidade, torna-se um gás mortal, tão letal quanto o
monóxido de carbono da descarga de um automóvel?
- E o que pode fazer a respeito disso?
- Não muita coisa - admitiu Craig. - Exceto limitar a duração de cada mergulho e
controlar minhas reações com muito cuidado enquanto estiver trabalhando na
parede do túmulo.
- Não pode calcular de quanto tempo dispõe antes que comece a se envenenar...
Craig interrompeu-a.
- Não, a fórmula seria complicada demais, com muitas variáveis a calcular, desde
a massa corporal à exata profundidade da água. E há um efeito cumulativo do
envenenamento. A cada mergulho, o risco aumenta.
- Oh, meu Deus, querido! - Sally-Anne ficou olhando-o.
- Vou fazer mergulhos curtos e vamos combinar uma série de sinais - acalmou-a
Craig. - Vocês farão sinal com uma corda a cada minuto que passar, e se eu não
responder, ou a resposta não for imediata e nítida, vocês me içarão de volta. O
envenenamento é insidioso mas gradual, afetará a minha reação ao sinal antes que
perca completamente os sentidos. Isso nos dá uma certa margem.
Colocou o volumoso equipamento cuidadosamente no chão, perto do fogo, para que o
calor acelerasse a secagem do epóxi.
- Assim que as juntas secarem, podemos testá-lo e, em seguida, partiremos para a
operação.
- Quanto tempo?
- É um epóxi de vinte e quatro horas.
- Tanto assim?
- O descanso vai aumentar minha resistência ao envenenamento de oxigénio.
A floresta era cerrada demais para que o helicóptero aterrissasse. Ficou
planando sobre as copas das árvores, enquanto o engenheiro de vôo descia o
general Peter Fungabera por uma abertura na vegetação verde e emaranhada.
Peter girava lentamente na ponta do fino cabo de aço e o movimento das hélices
fazia tremular o uniforme de combate. A dois metros do solo saltou, caindo com a
precisão de um gato. Respondeu à continência do sargento shona que o aguardava,
saiu rapidamente da área de acesso e ficou olhando a descida do próximo homem do
helicóptero.
O coronel Bukharin também estava de capacete de salto e uniforme de combate. O
rosto cheio de cicatrizes era aparentemente imune ao sol tropical, exangue e
quase tão pálido quanto os olhos glaciais. Recusou a ajuda do sargento ao
levantar-se e subiu para o vale. Peter Fungabera seguiu-o e nenhum dos dois
disse palavra até chegarem aos destroços do Cessna.
- Não há qualquer dúvida? - perguntou Bukharin.
- É esse o número de registro, ZS-KYA. Lembre-se de que já voei neste avião -
respondeu Fungabera, ao ajoelhar-se para examinar a parte de baixo da fuselagem.
- Se precisa de mais provas é só olhar estas - tocou os buracos no metal. - São
tiros de metralhadora disparados diretamente de baixo.
- Não há corpos?
- Não. - Fungabera levantou-se e inclinou-se sobre a cabine. - Nem sangue ou
qualquer outro indício de que alguém tenha se ferido. E os destroços foram
saqueados.
- Isso poderia ter sido feito por nativos locais.
- Talvez - concordou Peter. - Mas acho que não. Os rastreadores examinaram as
pistas e as conclusões a que chegaram são as seguintes: depois do desastre há
doze dias atrás, quatro pessoas abandonaram o local, duas mulheres e dois
homens, um dos quais manco de uma perna. Nas últimas trinta e seis horas, dois
homens voltaram aqui. Estão seguros de que se trata dos mesmos, as marcas das
botas conferem e um deles tem o mesmo problema na perna esquerda.
Bukharin assentiu.
- Na segunda visita, tiraram da carcaça um bocado de equipamento, deixaram o
local carregando fardos pesados e voltaram para a trilha que cruza a cabeceira
do vale a seis milhas daqui. Lá, a pista foi desfeita por outras marcas.
- Compreendo. - Bukharin o observava. - Agora, diga-me quais são suas outras
conclusões.
- São dois negros e dois brancos. Eu os vi com meus próprios olhos na pista de
Tuli. O homem negro é sem dúvida o ministro Tungata Zebiwe; eu o reconheci.
- Não será uma fantasia? Ele é sua última esperança para o cumprimento de nosso
acordo.
- Eu o reconheceria em qualquer circunstância.
- Mesmo de um avião?
- Mesmo assim.
- Continue - convidou-o Bukharin.
- O outro negro, não consegui reconhecer e nem tive uma visão bastante clara dos
brancos, mas o piloto estava quase certo de que um deles era uma mulher
americana chamada Jay. Apesar do fato de o avião pertencer ao World Wildlife
Trust, uma organização para a proteção da vida silvestre, era ela quem o usava.
O outro branco é provavelmente seu amante, um escritor inglês de romances
sensacionalistas que tem uma perna artificial, o que explica as pegadas
irregulares. Esses últimos três não têm nenhuma importância e são perfeitamente
dispensáveis. Zebiwe é o único que importa e agora sabemos que ainda está vivo.
- Sabemos também que escapou de suas mãos, meu caro general - apontou-lhe
Bukharin.
- Não creio que ficará assim por muito tempo. - Fungabera voltou-se para o
sargento que esperava atentamente atrás dele. - Agiu muito bem até agora.
- Mambo - Acredito que este cão matabele e seus amigos brancos estejam
escondidos e sendo alimentados pelo pessoal local.
- Mambol.
- Qual é a aldeia mais próxima?
- A aldeia de Vusamanzi, que fica entre este vale e o próximo.
- Trate de cercá-la. E que ninguém escape, nem mesmo uma cabra ou uma criança.
- Mambo.
- Quando tiver assegurado a posse da aldeia, irei supervisionar o
interrogatório.
Craig e Tungata desceram por três vezes até a lagoa de Lobengula ao sopé da
imponente galeria, transportando o improvisado aparelho de mergulho, os tubos
extras de oxigénio, as lâmpadas subaquáticas que Craig fizera com as baterias
retiradas dos coletes salva-vidas, lenha e cobertores de pele para aquecê-lo
depois de cada mergulho e provisões para evitar a necessidade de voltar à
caverna em busca de comida.
Depois de uma discussão, ficou assentado que as moças se revezariam para cuidar
das cavernas superiores, à espera de mensageiros da aldeia de Vusamanzi e para
descer e avisar os outros caso alguma patrulha shona descobrisse a entrada das
grutas.
Antes de testar o equipamento de mergulho, Craig e Tungata fizeram um exame
cuidadoso do caminho até a lagoa, escolhendo posições de defesa, caso tivessem
que defender a parte mais interna do sistema de cavernas. Apesar de não o
mencionarem, ambos sabiam que não havia um caminho de fuga das profundezas da
montanha e que qualquer defesa terminaria nas águas geladas do lago.
Tungata deu a única demonstração externa disso ao colocar, à vista dos outros,
quatro balas de 7,62 mm da pistola Tokarev, embrulhadas em um pedaço de pele de
cabra, numa fenda da parede calcária ao lado do lago. As moças o observaram com
uma fascinação nauseada e, apesar de Craig fingir ocupar-se com o equipamento,
todos compreenderam. Era a segurança final contra a tortura e a mutilação lenta,
uma bala para cada um.
- Certo! - A voz de Craig soou alta demais no silêncio da galeria. - Vou
verificar com que eficiência esta geringonça vai me afogar.
Tungata levantou o equipamento e Craig ajoelhou-se, metendo a cabeça pela
abertura do colete salva-vidas. Sally-Anne e Sarah ajeitaram o tubo e os
depósitos nas costas e os amarraram com tiras de lona cortadas dos forros dos
assentos do avião. Craig verificou os nós pois, se houvesse falhas, teria que
desfazer-se deles rapidamente.
Finalmente, pulou na água gelada que lhe provocou arrepios enquanto ajustava a
máscara sobre a boca e o nariz e enchia a bolsa sobre o peito pela metade com
oxigénio. Fez um sinal de que estava tudo bem aos três, e mergulhou.
Como antecipara, a flutuação foi o primeiro problema. A bolsa fê-lo girar e
ficar de barriga para cima como um peixe morto e o impulso da única perna era
insuficiente para a correção. Nadou de volta à laje e começou a tarefa enfadonha
de experimentar pedras de pesos diferentes que se ajustassem à posição correta
na água. Por fim, descobriu que a única maneira era agarrar-se a uma
particularmente pesada e deixar-se ir ao fundo de cabeça para baixo, mas assim
que a soltou foi irresistivelmente impelido para o alto.
- Pelo menos, as juntas são à prova d'água - disse-lhe, ao emergir novamente. -
E estou recebendo oxigénio. Há bastante água entrando pelas beiradas da máscara
mas posso me livrar dela da maneira habitual. - E demonstrou o truque de segurar
a máscara no alto e forçar o líquido acumulado pela parte de baixo com uma forte
expiração.
- Quando vai atacar a parede?
- Acho que não fará a menor diferença se for agora; vou tentar fazer o melhor
que posso, de qualquer maneira não sei se vou conseguir removê-la - admitiu com
relutância.
- Precisam compreender que quero ser como um pai para vocês - disse Peter
Fungabera, sorrindo gentilmente. - Considero-os como meus filhos.
- Essa tagarelice shona é tão incompreensível para mim quanto a gritaria dos
babuínos - respondeu Vusamanzi em tom cortês e Fungabera fez um gesto irritado
ao voltar-se para o sargento.
- Onde está o tradutor?
- Deve chegar logo, mambo.
Batendo com o bastão na coxa, Fungabera inspecionou lentamente a fileira
irregular de pessoas que os soldados haviam trazido dos campos de milho e
arrancado das cabanas. Com exceção do velho, eram todas mulheres e crianças.
Algumas eram tão velhas quanto o feiticeiro, de carapinhas brancas e seios
murchos dependurados quase até a cintura, outras, ainda em idade de procriar,
traziam bebés gordos suspensos às costas e as crianças, nuas e ajoelhadas,
tinham muco nas narinas e moscas passeavam sem serem molestadas pelos lábios e
olhos, enquanto encaravam Fungabera com uma expressão insondável. Havia mulheres
jovens de seios rijos e pele lustrosa, meninas impúberes e meninos não-
circuncidados. Fungabera sorriu-lhes com doçura, mas continuavam a fixá-lo
impassíveis.
- Meus cachorrinhos matabele, ainda vou ouvi-los soltar uns ganidos antes que o
dia acabe - prometeu com voz mansa indo até o fim da fila e afastou-se
lentamente em direção ao russo que esperava à sombra de uma cabana.
- Não vai conseguir arrancar nada do velho. - Bukharin tirou a piteira de ébano
da boca e tossiu ligeiramente. - É um fanático, além da fronteira da dor e do
sofrimento. Olhe bem em seus olhos.
- Concordo, estes sangoma praticam a auto-hipnose, deve ser inteiramente
insensível à dor. - Fungabera arregaçou impaciente a manga do uniforme para
olhar o relógio. - Onde se meteu esse tradutor?
Passou-se mais uma hora até que o prisioneiro matabele do campo de reabilitação
fosse trazido pela estrada do vale. Caiu de joelhos diante de Fungabera
balbuciando e levantando as mãos algemadas.
- Levante-se! - E disse ao sargento: - Tire as algemas e traga o velho aqui.
Vusamanzi foi conduzido ao centro da aldeia.
- Diga-lhe que sou um pai para ele - ordenou Fungabera.
- Mambo, ele respondeu que seu pai era um homem, e não uma hiena.
- Diga-lhe que, se bem que respeite a ele e seu povo, estou muito contrariado.
- Mambo, ele respondeu que, se tornou Vossa Senhoria infeliz, então está
satisfeito.
- Diga-lhe que mentiu para meus homens.
- Mambo, ele espera ter outra oportunidade igual a essa.
- Diga-lhe que sei que está protegendo e alimentando quatro inimigos do Estado.
- Mambo, ele afirma que Vossa Senhoria está demente. Não há inimigos do Estado
escondidos aqui.
- Muito bem. Agora, fale com esta gente. Repita que quero saber onde os
traidores estão escondidos. Diga-lhes que, se me levarem até eles, ninguém será
molestado nesta aldeia.
O tradutor postou-se diante da silenciosa fileira de mulheres e crianças, e fez
um longo e apaixonado apelo, mas, ao acabar, continuaram a encará-lo
silenciosos. Um dos bebés começou a berrar e a mãe deu-lhe o seio para mamar.
Fez-se silêncio novamente.
- Sargento! - Fungabera deu ordens secas e as mãos de Vusamanzi foram amarradas.
Um dos soldados fez um nó de carrasco com uma corda de náilon e passou-a por um
dos postes que sustentavam um depósito de milho. Colocaram-no ali e passaram a
corda em seu pescoço.
- Diga à gente dele que, quando alguém concordar em nos levar aonde estão os
traidores, a punição será imediatamente suspensa.
O tradutor elevou o tom de voz, mas, antes que terminasse, Vusamanzi
interrompeu-o com voz firme.
- Maldito seja qualquer um que diga alguma coisa a este porco shona. Ordeno que
fiquem calados, não importa o que acontecer. Voltarei do meu túmulo para
assombrar qualquer um que ouse me desobedecer. Eu, Vusamanzi, senhor das águas,
vos ordeno!
- Comece! - ordenou Fungabera, e o sargento começou a içar a corda; o nó
estreitou-se em torno do pescoço do velho que gradualmente foi forçado a ficar
na ponta dos pés.
- Chega! - gritou Fungabera, e os soldados prenderam a extremidade da corda.
- Que se apresentem para falar.
O tradutor andou ao longo da fila de mulheres, incitando-as e finalmente
suplicando, mas Vusamanzi lançou um olhar feroz às mulheres, incapaz de falar,
mas ainda exercendo seu domínio sobre elas.
- Quebrem um de seus pés - ordenou Fungabera, e o sargento aproximou-se do
velho, desfechando-lhe golpes sucessivos com a coronha do fuzil e esmagou-lhe o
pé esquerdo. Ao ouvirem os velhos ossos partirem-se como gravetos secos, as
mulheres começaram a gemer e a ulular.
- Falem! - ordenou Fungabera.
Vusamanzi sustinha-se sobre uma única perna, com o pescoço retorcido pela corda.
O pé esmagado começou a inchar e ficou monstruoso, com o triplo do tamanho.
- Falem! - ordenou Fungabera pela segunda vez, e os lamentos das mulheres
abafaram-lhe a voz.
- Quebre o outro! - Fez um sinal ao sargento.
Quando a coronha esmagou o pé direito, Vusamanzi ficou dependurado na corda e o
sargento recuou, rindo com as contorções do velho que tentava desesperadamente
aliviar a pressão no pescoço apoiando-se nos pés mutilados.
As mulheres gritavam agora e o choro das crianças veio engrossar o coro
angustiado. Uma das mulheres, a esposa mais velha, saiu da fileira e correu com
os magros braços estendidos para o homem que fora seu marido por cinquenta anos.
- Deixem-na! - gritou Fungabera aos guardas que queriam detê-la e eles se
afastaram.
A velha e frágil mulher correu até ele e tentou suspendê-lo, gritando-lhe
palavras de amor e de compaixão, mas não tinha forças para suportar nem mesmo o
peso do corpo emaciado de Vusamanzi. Conseguiu apenas aliviar por momentos a
pressão na laringe, prolongando com isso a agonia do estrangulamento. A boca do
velho estava escancarada, numa tentativa de respirar, e seus lábios estavam
cobertos de uma espuma esbranquiçada. Soltava sons ásperos e cavernosos e os
esforços da velha eram inúteis e ridículos.
- Ouçam o galo matabele cantar e a galinha velha cacarejar! - Peter Fungabera
disse, e os soldados riram, deleitados.
Levou bastante tempo, mas quando afinal Vusamanzi ficou imóvel e silencioso,
dependurado na forca, a mulher caiu a seus pés, oscilando ritmicamente ao
começar o lamento do luto.
Fungabera aproximou-se do russo e Bukharin acendeu outro cigarro murmurando:
- Primário... e ineficaz.
- Não havia qualquer chance com aquele velho tolo. Tínhamos que tirá-lo do
caminho e criar o clima. - Peter enxugou a testa e o queixo com a echarpe. - Foi
eficaz, general, olhe só a expressão das mulheres.
Arrumou a echarpe novamente no pescoço e andou naquela direção.
- Pergunte-lhes onde estão escondidos os inimigos do Estado. - Mas, quando o
tradutor começou a falar, a velha levantou-se de um pulo e correu até elas.
- Viram o seu senhor morrer sem falar! - berrou. - Ouviram seu comando e sabem
que ele voltará para castigá-las!
Fungabera segurou o bastão e aparentemente sem esforço enfioulhe a ponta debaixo
das costelas. A velha gritou e caiu. O baço, inchado pela malária, rompera-se
com a pancada.
- Livrem-se dela - ordenou Peter, e um dos soldados a arrastou pelos tornozelos
para trás das cabanas.
- Pergunte-lhes onde estão escondidos os inimigos do Estado.
Peter tornou a caminhar ao longo da fileira, examinando os rostos, avaliando o
grau de terror que via em cada par de olhos. Demorou-se a escolher, decidindo-se
enfim pela mãe mais jovem, pouco mais que uma criança, com um bebé amarrado às
costas por uma tira azul estampada.
Ficou parado diante dela, olhando-a de alto a baixo e, quando achou que era o
momento adequado, agarrou-lhe o pulso, levando-a gentilmente até o centro da
aldeia onde ainda ardiam os restos da fogueira.
Chutou os restos fumegantes e, ainda segurando a moça, esperou que as chamas
brotassem outra vez. Torceu-lhe o braço, forçando-a a ficar de joelhos e as
outras mulheres foram silenciando aos poucos enquanto olhavam hipnotizadas.
Peter Fungabera desapertou a tira azul e tirou a criança das costas da moça. Era
um menino, um bebé gorducho com pele cor de mel silvestre, a barriguinha cheia
de leite materno e braceletes de gordura nos pulsos e tornozelos. Peter atirou-o
para o alto e aparou-o pelas pernas. A criança gritou assustada, dependurada de
cabeça para baixo.
- Onde estão escondidos os inimigos do Estado?
O rosto do bebé estava inchando e congestionando-se com a pressão do sangue.
- Ela diz que não sabe.
Fungabera colocou a criança por cima das chamas da fogueira.
- Onde estão escondidos os inimigos do Estado?
Cada vez que repetia a pergunta, baixava-a mais alguns centímetros em direção às
chamas.
- Ela diz que não sabe.
Subitamente, Peter enfiou-o no coração da fogueira e a criança urrou com um som
completamente diferente. Levantou-a depois de um segundo e balançou-a em frente
dos olhos da mãe. As chamas haviam chamuscado totalmente as pestanas e os
cachinhos enrolados da cabeça.
- Diga-lhe que vou assar bem devagar este porquinho e obrigá- la a comê-lo.
A moça tentou arrancar-lhe a criança, mas ele a manteve fora de alcance. A mãe
começou a gritar uma única frase, repetindo-a sem parar e as outras mulheres
suspiraram e cobriram os rostos.
- Ela disse que vai levá-lo até eles.
Fungabera atirou-lhe a criança e caminhou até onde estava o russo, que
cumprimentou-o com a cabeça em sinal de admiração.
A doze metros de profundidade, Craig estava diante da parede da tumba. Amarrara
a corda da cintura numa rocha e examinava a alvenaria à fraca luz amarelada da
lanterna de um dos coletes salva-vidas à procura de um ponto mais vulnerável.
Usando as mãos para compensar a visão distorcida pela água, descobriu que não
havia qualquer fenda ou abertura, mas que a parte de baixo era feita de blocos
de calcário bem maiores. Provavelmente o velho feiticeiro e os ajudantes haviam
utilizado todas as pedras maiores e, à medida que o trabalho avançava, tiveram
que usar material menor, que mesmo assim era mais volumoso que o tamanho de uma
cabeça.
Craig segurou uma das pedras menores e tentou deslocá-la. Com a pele amolecida
pela água, cortou-se na beirada áspera, e um pouco de sangue toldou a água mas o
frio o anestesiara e nada sentiu.
Quase que imediatamente a mancha de sangue foi substituída por uma mais escura,
quando a sujeira e os detritos há tanto tempo sedimentados foram agitados por
seus esforços. Em segundos, ficou cego e desligou a lâmpada para poupar a
bateria. Partículas de sujeira irritaram-lhe os olhos e fechou-os com força,
trabalhando apenas com o tato.
Havia graus de escuridão, mas aquela era total. Parecia ter peso físico e o
esmagava, aumentando a sensação de ter acima dele dezenas de metros de água e de
rochas sólidas. O oxigénio que aspirava pela boca tinha um desagradável gosto
químico e, de vez em quando, uma golfada de água entrava na máscara
precariamente vedada, engasgando-o e obrigando-o a esforçar-se para não tossir,
o que poderia deslocá-la.
O frio parecia uma doença terminal, afetando-lhe o julgamento e as reações,
tornando cada vez mais difícil ficar de sobreaviso contra o envenenamento, e o
intervalo entre cada sinal da corda vindo da superfície parecia uma eternidade.
Mas continuava a trabalhar na parede com obstinação, começando a odiar os
ancestrais de Vusamanzi pelo empenho com que a tinham feito.
Finalmente, ao acabar o turno de meia hora, conseguira deslocar uma pilha de
pedras no alto da parede e fazer um buraco de uns noventa centímetros, largo o
bastante para acomodar a parte superior do corpo e o volumoso equipamento de
oxigénio, mas ainda não tinha ideia sobre a espessura do muro.
Livrou-se da rocha que deslocara fazendo-a rolar pelo declive que levava às
profundezas da grande galeria. E com enorme alívio desamarrou a corda e começou
a longa ascensão de volta à superfície.
Tungata ajudou-o a subir na laje, já que estava fraco como uma criança e o
equipamento pesava muito. Tirou-lhe a máscara enquanto Sarah servia-lhe uma
caneca de chá bem quente e açucarado.
- Onde está Sally-Anne? - perguntou.
- Pêndula está de guarda na caverna de cima - respondeu Tungata.
Craig colocou as duas mãos em torno da caneca e chegou mais perto do foguinho
fumarento, tremendo de frio.
- Comecei a fazer um pequeno buraco no alto do muro e consegui aumentá-lo cerca
de noventa centímetros, mas não dá para calcular a espessura ou quantos
mergulhos vão ser necessários para abri-lo. - Tomou um pouco do chá. -
Esquecemos de um detalhe: vou precisar de alguma coisa para carregar a
mercadoria, se a achar. - Craig cruzou os dedos e Sarah também esconjurou o
azar. - Os barris de cerveja devem estar quebradiços, o velho Insutsha quebrou
um deles, e são incómodos de carregar. Vamos ter de usar as sacolas que fiz das
lonas dos assentos. Quando Sarah for substituir Sally-Anne, deve pedir para que
os traga cá para baixo.
À medida que o frio foi desaparecendo com o calor do fogo e do chá ingerido,
começou a dor de cabeça. Craig sabia que era o efeito do oxigénio de alta
pressão, o primeiro sintoma de envenenamento, uma forte enxaqueca que esmagava-
lhe o cérebro, quase fazendo-o gemer em voz alta. Procurou três comprimidos no
estojo de primeiros socorros e os engoliu com o resto do chá quente.
Ficou sentado, encolhido, esperando que fizessem efeito. Temia tanto voltar à
parede que sentia o estômago embrulhado e a vontade fraquejar. Descobriu-se
procurando uma desculpa para adiar o próximo mergulho, qualquer coisa para
evitar o frio terrível e a pressão sufocante das águas escuras sobre sua cabeça.
Tungata o observava silenciosamente junto ao fogo e Craig tirou a pele dos
ombros, estendeu a caneca à Sarah, levantando-se. A dor de cabeça diminuíra e
transformara-se em um latejar entre os olhos.
- Vamos - disse, e Tungata apertou-lhe o braço antes de colocar o equipamento.
Craig encolheu-se ao novo contato com a água gelada, mas forçou-se a mergulhar e
a pedra levou-o rapidamente ao fundo. Em sua imaginação, a entrada do túmulo já
não mais parecia a órbita vazia de um crânio, e sim a bocarra desdentada de
alguma criatura horrível da mitologia africana, pronta a devorá-lo.
Entrou, nadou para cima pelo poço inclinado e ancorou-se diante do buraco
irregular que cavara na parede. Os detritos haviam sedimentado e, à claridade da
lâmpada, as sombras e as formas das pedras avultavam-se sobre ele, o que o fez
lutar contra outro ataque de claustrofobia, lembrando-se das nuvens de sujeira
que o haviam cegado. Estendeu as mãos machucadas e tocou a superfície áspera e
brutal das pedras. Conseguiu soltar um pedaço de calcário e um pequeno
deslizamento em torno provocou um redemoinho de sedimentos que o fez desligar a
lâmpada e trabalhar na mesma escuridão fria de antes.
Os sinais da corda na cintura eram o único contato com a realidade e o tempo,
mas de alguma maneira ajudavam-no a controlar o crescente terror do frio e da
escuridão. Em vinte minutos, a dor de cabeça estava vencendo os comprimidos. Era
como o martelar nas têmporas de um prego rombudo cuja extremidade penetrasse por
trás dos olhos.
Não vou aguentar mais dez minutos aqui, pensou. Vou subir agora. Começou a
afastar-se da parede, mas conseguiu controlar-se. Cinco minutos, prometeu-se,
apenas mais cinco minutos.
Forçou a parte superior do corpo pela abertura e o cilindro de oxigénio bateu na
rocha, ressoando como um sino. Agarrou as bordas de uma pedra triangular que
resistia aos seus esforços, enfiando os dedos doloridos por uma frincha
apoiando-se nos lados do buraco, começou a pressioná-la, aumentando a força
gradativamente e sentindo todos os músculos doerem.
Algo moveu-se e ouviu o ruído rascante de pedra contra pedra. Tornou a empurrar
e a fenda fechou-se sobre seus dedos, fazendo-o gritar de dor. Mas a dor deu-lhe
novas energias. Atirou-se contra a pedra que rolou, soltando-lhe os dedos. Houve
um estrondo e um reboar de blocos rochosos caindo, desmoronando.
Ficou imóvel dentro da cavidade, segurando os dedos machucados e gemendo
baixinho, meio afogado pela água que entrara na máscara ao gritar.
Vou subir, decidiu, já chega. Começou a lutar para sair da cavidade e estendeu a
mão para apoiar-se e dar um impulso para trás mas nada encontrou: tateava no
vazio. Ficou imóvel, com água chocalhando dentro da máscara, tentando tomar uma
decisão. De alguma maneira, sabia que, se voltasse naquele momento à superfície,
não seria mais capaz de mergulhar.
Mais uma vez, tateou à frente, e avançou, fazendo outra tentativa. A corda
amarrada o deteve e desmanchou o nó, avançando mais um pouco. O equipamento às
costas prendeu-se ao teto de pedra, deu um meio giro e conseguiu soltar-se.
Ainda não conseguira tocar nada em frente. Atravessara a parede e um súbito
terror supersticioso o invadiu.
Recuou e o equipamento tornou a prender-se no teto, daquela vez ficou totalmente
entalado. Começou a lutar para soltar-se, com a respiração acelerada além do
ritmo das válvulas e não conseguiu oxigénio suficiente para respirar; o coração
disparou e a pulsação nos ouvidos o deixou completamente surdo.
Não conseguiu recuar e, apoiando o coto de perna contra uma rocha, impulsionou o
corpo; numa súbita arremetida deslizou pela abertura da tumba para o espaço
além.
Tentou agarrar-se desesperadamente e a mão esbarrou na superfície lisa do poço,
mas, livre da corda que o ancorara, a bolsa cheia de ar o impelia
irresistivelmente para cima. Estendeu os braços para evitar bater com a cabeça
no teto do poço e tentar agarrar-se em algo. A rocha era escorregadia como sabão
e, à medida que ascendia, a bolsa expandia-se com a perda de pressão e acelerava
ainda mais a subida; apenas a corda de sinalização na cintura diminuía um pouco
a velocidade. Enquanto lutava para se estabilizar, o oxigénio excessivo começou
a vazar pelas bordas da máscara e por fim entrou em pânico total. Foi arrastado
por um redemoinho numa escuridão terrificante e total.
Explodiu de repente à superfície e ficou boiando de costas, balançando como uma
rolha. Arrancou a máscara do rosto e aspirou profundamente. Era ar puro, com um
leve cheiro de fezes. Ficou boiando e respirando, cheio de gratidão.
A corda na cintura deu vários puxões rápidos, seis em seguida. Era o código de
Tungata para "Você está bem?" A subida descontrolada devia ter desenrolado a
corda violentamente entre os pés de Tungata e o alarmado. Craig devolveu o sinal
para tranquilizá-lo e tentou ligar a lâmpada.
O brilho fraco da luz era ofuscante, estivera muito tempo na escuridão. Os olhos
estavam irritados pelas águas lamacentas e ficou piscando e olhando em volta.
A passagem descrevia um ângulo cada vez mais acentuado a partir do muro de
alvenaria, até tornar-se um poço vertical. Os velhos feiticeiros tinham escavado
nichos nas paredes e construído uma escada rústica de madeira para fazer a
escalada. Os postes eram presos com cordas feitas de casca de árvore que se
entrelaçavam pelo poço acima, mas a luz da lanterna era fraca demais para
iluminar o topo: a escada desaparecia na penumbra.
Craig nadou de costas até lá e segurou-se na escada primitiva, tentando ordenar
os pensamentos e deduzir sua posição. Percebeu que ao retornar à superfície
devia ter subido uns doze metros depois de atravessar a parede e descrito uma
trajetória em U. A primeira perna do "U", descendo a grande galeria, depois o
fundo através do túnel até a parede, e a segunda, subindo o poço de volta à
superfície da água.
Testou a escada que, apesar de estalar e ceder um pouco, suportou bem o peso.
Teria que deixar o equipamento flutuando no poço para subir a estrutura meio
desconjuntada, mas precisava refazer-se primeiro e recuperar o controle. A dor
de cabeça era quase insuportável e apertou as têmporas com as mãos.
Naquele momento, a corda na cintura esticou-se e deu três puxões, tornando a
repeti-los depois de um pequeno intervalo: era o sinal de urgência, de perigo
mortal. Algo estava gravemente errado e Tungata fazia um pedido de socorro.
Craig enfiou a máscara e assinalou a volta. A corda distendeu-se e foi
rapidamente içado à superfície.
Haviam permitido à jovem mãe matabele ficar com o filhinho preso às costas, mas
estava sendo vigiada pelo sargento grandalhão da Terceira Brigada.
Peter Fungabera ficara tentado a usar o helicóptero para apressar a perseguição
e recapturar os fugitivos, mas acabou optando por continuar a pé e
silenciosamente. Conhecia a têmpera dos homens que perseguia. O ruído de um
helicóptero os alertaria e lhes daria uma chance de escapar novamente para a
floresta. Pelas mesmas razões cautelosas, usou um pequeno grupo de vanguarda
mais facilmente manobrável; vinte homens escolhidos, e instruiu cada um
pessoalmente.
- Precisamos capturar esse matabele vivo. Mesmo que tenham de sacrificar a
própria vida por isso, quero ele vivo!
Comunicariam pelo rádio ao helicóptero logo que houvessem feito um contato
seguro e mais trezentos homens seriam mandados para cercar a área.
A pequena força agiu com rapidez. A jovem foi arrastada pelo sargento, e,
chorando de vergonha pela traição, mostrou-lhe as curvas e encruzilhadas quase
imperceptíveis da trilha.
- Os aldeões se encarregaram de alimentá-los e supri-los - murmurou Fungabera ao
russo. - Esta vereda tem sido regularmente usada.
- Bom lugar para uma emboscada. - Bukharin examinou os barrancos do vale que
davam para o caminho. - Podem ter alguns dos fugitivos com eles.
- Uma emboscada significa um contato e estou rezando por isso - disse Peter em
voz baixa. E mais uma vez o russo sentiu-se satisfeito com a escolha que fizera.
Tudo o que seria necessário agora era uma pequena mudança no destino da guerra e
os patrões de Moscou teriam um bastião na África Central.
Uma vez que o conseguissem, esse Fungabera teria que ser cuidadosamente vigiado.
Não era apenas mais um gorila manipulado por cordéis. Tinha aspectos de
personalidade ainda pouco conhecidos e era sua tarefa fazer essa exploração, o
que requeria sutileza e tato. A ideia desse trabalho agradava-lhe, sentiria
nisso tanto prazer quanto o que sentia naquela caçada.
Caminhou agilmente pela trilha, atrás de Fungabera, sem qualquer dificuldade.
Sentia-se extremamente alerta, quase eufórico pela antecipação da caçada humana.
Só ele sabia que a expedição não se limitava apenas à captura do matabele; havia
uma outra presa, tão difícil quanto valiosa. Olhou o homem que marchava à sua
frente, deleitado com seu passo elástico, o porte ereto e o suor que molhava-lhe
o uniforme camuflado; sim, pensou, aquele odor que emanava de Fungabera era o
odor animal da própria África, e sorriu. Que troféus para coroar sua longa e
brilhante carreira: os matabele, os shona e toda aquela terra.
Os pensamentos não prejudicavam os sentidos de Bukharin. Estava consciente de
que o vale estreitava-se à medida que desciam, e os barrancos tornavam-se mais
íngremes, com uma vegetação peculiar e deformada. Tocou no ombro de Peter para
chamar-lhe a atenção sobre a formação geológica em torno, uma irrupção dolomita
em região rochosa, quando a mulher matabele começou inesperadamente a gritar. Os
berros ecoavam nos rochedos e repetiam-se pela floresta, quebrando o silêncio
quente e parado daquele vale fantasmagórico. Apesar de ininteligíveis, eram um
aviso.
Fungabera correu até ela, tapando-lhe a boca; em seguida, passou-lhe o outro
braço pelo pescoço, quebrando-o com um estalido e os gritos cessaram tão
rapidamente como haviam começado.
Deixando cair o corpo sem vida, Peter virou-se, fazendo sinais urgentes aos
soldados que reagiram atirando-se de imediato para fora da trilha e descrevendo
um círculo para cercarem a área.
Ao assumirem a posição, Fungabera olhou para o russo e fez-lhe um sinal;
Bukharin movimentou-se silenciosamente até ele, e continuaram a avançar juntos
de armas em punho.
A trilha quase indistinta levou-os ao sopé do rochedo e desapareceu diante de
uma fenda estreita e vertical na pedra. Fungabera e Bukharin jogaram-se ao chão
de cada lado da abertura.
- A toca da raposa matabele - exultou baixinho Fungabera.
- Consegui agarrá-lo!
- Os shona estão aqui! - O grito veio da entrada da caverna, abafado pela
vegetação e pela dobra na pedra. - Os shona vão agarrá-los! Fujam! Os shona... -
E a voz feminina foi bruscamente cortada.
Sarah levantou-se de um salto de perto do fogo, derrubando o caldeirão de ferro,
e correu agarrando a lanterna de passagem, disparando pelo labirinto das
cavernas.
Do alto da íngreme escadaria natural na grande galeria, gritou avisando:
- Os shona estão aqui, meu senhor! Conseguiram nos descobrir! - E o eco ampliava
o terror e a urgência das palavras.
- Vou até aí! - berrou Tungata, disparando em direção à luz da lanterna. Galgou
a escadaria de pedra e abraçou-a.
- Onde estão?
- Na entrada... Ouvi a voz de uma mulher nos avisando, aterrorizada, e depois
não ouvi mais nada. Acho que a mataram.
- Desça até o lago, e ajude Pêndula a trazer Pupho de volta à superfície.
- Meu senhor, estamos perdidos, não é?
- Vamos resistir - ele respondeu. - E pode ser que consigamos escapar. Depressa,
Pupho lhe dirá o que fazer.
Carregando o AK 47, Tungata desapareceu pela passagem que conduzia à caverna
superior. Sarah desceu aos tropeções, caindo de joelhos nos últimos metros.
- Pêndula! - gritou, desesperada pelo conforto de uma voz humana.
- Sarah, aqui, venha me ajudar.
Chegando à laje no fundo da galeria, viu Sally-Anne que estava dentro do lago
com água pela cintura, puxando a corda.
- Ajude-me, está presa em alguma coisa!
Sarah pulou dentro d'água e agarrou a corda também.
- Os shona nos acharam.
- Nós escutamos você.
- O que vamos fazer, Pêndula?
- Primeiro, vamos tirar Craig daí. Ele vai pensar em alguma coisa.
A corda cedeu de repente quando Craig, doze metros abaixo, conseguiu esgueirar-
se pela estreita abertura da parede, e as duas começaram a içá-lo com toda
força.
A superfície começou a borbulhar e viram Craig subindo na água transparente,
transformado pela máscara em um grotesco animal marinho. Ao emergir, arrancou-a,
tossindo e aspirando o ar puro.
- O que está acontecendo? - disse, meio sufocado, ao nadar em direção à borda.
- Os shona estão aqui - disseram as duas ao mesmo tempo em inglês e sindebele.
- Ah, meu Deus! - Craig tombou exausto na laje.
- O que vamos fazer, Craig? - Ambas o olhavam desamparadas enquanto o frio e a
dor de cabeça pareciam paralisá-lo.
De repente, o ar reverberou com sons estridentes, metálicos e furiosos.
- Tiros! - sussurrou Craig, tapando os ouvidos para protegê-los. - Encontraram
Sam.
- Por quanto tempo será que pode detê-los?
- Depende; se usarem granadas ou gás... - Não chegou a concluir a frase.
Levantou-se, tremendo convulsivamente e olhou-as. Ambas pareceram compreender
seu desespero e desviaram o olhar.
- Onde está a pistola? - perguntou Sarah medrosamente, olhando de esguelha para
a pele de cabra enfiada na fenda de pedra.
- Não - retrucou bruscamente Craig. - Isso não. - Andou até ela e segurou-a pelo
braço, o que o ajudou a recompor-se.
- Já usou um aqualung? - perguntou a Sally-Anne que balançou a cabeça em
negativa.
- Bem, já é hora de começar...
- Não posso fazer isso! - disse Sally-Anne, olhando apavorada para a água.
- Pode fazer qualquer coisa que tiver de fazer - disse Craig asperamente. -
Escutem, descobri outra galeria no poço que vai dar na superfície. Vai levar só
três ou quatro minutos...
- Não - Sally-Anne fugiu de perto dele.
- Primeiro levo você e depois volto para pegar Sarah - ele disse sem dar-lhe
ouvidos.
- Prefiro morrer aqui mesmo, Pupho - sussurrou a moça negra.
- Então, vai satisfazer o seu desejo.
Craig já estava trocando o tubo de oxigénio, atarraxando um dos cilindros novos,
e voltou-se para Sally-Anne.
- Coloque os braços à minha volta e respire lenta e regularmente. Segure cada
respiração o mais que puder e expire com cuidado. A abertura na parede é
estreita, mas você é menor do que eu, pode passar por lá mais facilmente. -
Levantou o aparelho de oxigénio e colocou-o em seus ombros. - Vou passar
primeiro e puxar você por ela. Assim que a atravessarmos, basta subir direto.
Mas nesse momento lembre-se de expirar quando o oxigénio dos pulmões começar a
expandir-se, senão vai subir como um balão de gás. Vamos.
- Craig, estou com medo.
- Nunca pensei que ouviria você dizer uma coisa dessas. Com água até a cintura,
colocou-lhe a máscara no rosto.
- Não lute com ela - disse. - Fique de olhos fechados e relaxe. Eu vou levando
você. E, pelo amor de Deus, não se debata, não comece a se debater.
Ela assentiu, emudecida pela máscara, e ouviram novamente o estrondo
ensurdecedor de disparos vindos de cima.
- Estão mais perto - murmurou Craig. - Sam começou a recuar. - E chamou Sarah
até a borda do lago. - Dê-me a minha perna! - Sarah a estendeu e ele prendeu-a
na cintura. - Enquanto não volto, trate de colocar toda a comida que puder nos
sacos de lona. As lâmpadas e baterias, também. Venho pegar você dentro de dez
minutos.
Começou a inspirar e expirar, segurando uma pedra. Fez um sinal a Sally-Anne que
postou-se por trás dele, abraçando-o pelas axilas.
- Respire bem fundo e finja-se de morta - ordenou, enchendo os pulmões pela
última vez, então mergulhou em direção à entrada da tumba.
A meio caminho, ouviu o estalido da válvula da máscara e sentiu o peito de
Sally-Anne contrair-se e dilatar-se ao respirar e ficou tenso, temendo que
tossisse, mas nada aconteceu.
Chegaram à abertura e ele deixou cair a pedra, conduzindo-a até a parede.
Retirou gentilmente os braços que o envolviam, tentando fazer movimentos lentos
e calmos. Entrou pela abertura segurando-a pelas mãos e, sem o aparelho de
oxigénio para atrapalhá-lo, deslizou facilmente por ela.
Ouviu-a respirar novamente e aplaudiu-a mentalmente.
Por um instante, o aparelho empacou na passagem, mas conseguiu desengatá-lo e a
trouxe até ele. Tinham conseguido, havia feito com que ela atravessasse.
Rápido para cima, pensou. Estavam acelerando e a pressão zumbia-lhes nos
ouvidos. Cutucou-lhe as costelas e ouviu as borbulhas quando ela expeliu
oxigénio dos pulmões.
Garota inteligente, pensou, e apertou-lhe a mão.
A subida parecia tão longa que começou a temer que houvesse errado e enveredado
por uma falsa passagem quando finalmente chegaram à superfície.
Ofegante, apressou-se em ligar a lâmpada.
- Você não é só boa, é simplesmente sensacional!
Foi levando-a até a escada e começou a retirar-lhe o equipamento.
- Suba a escada e fique fora d'água. Tome, prenda minha perna no poste. Volto o
mais rápido possível.
Não havia tempo a perder com a difícil tarefa de colocar a aparelhagem e nem
tinha um contrapeso para mergulhar; resolveu esvaziar a bolsa de oxigénio do
colete, colocando os pesados tubos debaixo dos braços. Não poderia utilizar o
oxigénio e teria que tornar a mergulhar só com o que conseguisse reter com a
respiração. Segurou-se em um dos degraus enquanto enchia os pulmões de ar, e
mergulhou.
Ao chegar à parede, enfiou-se de costas pela abertura, rebocando o aparelho e,
com a bolsa meio murcha, atravessou-a rapidamente. Na entrada da grande galeria,
pressionou a tampa do cilindro tornando a inflar a bolsa que o levou rapidamente
à superfície.
Sarah estava parada à beira da laje, mas havia arrumado os sacos de lona.
- Vamos! - ofegou Craig.
- Pupho, não posso.
- Trate de botar esse traseiro dentro d'água - ordenou-lhe asperamente.
- Tome as sacolas, eu vou ficar.
Craig agarrou-a pelos tornozelos e puxou-a para dentro d'água.
- Sabe o que os shona vão fazer com você? - Enfiou-lhe a máscara com rudeza no
rosto e ouviram novos disparos de metralhadora que ricochetearam pelas paredes
mais altas da galeria.
Craig pressionou-lhe a máscara no rosto.
- Respire! - ordenou, e ela sugou ar pela máscara. - Vê só como é fácil? - Ela
concordou com um aceno. - Segure a máscara com as duas mãos. Respire devagar e
com regularidade. Vou rebocar você, não se mexa! - Ela tornou a assentir. Craig
amarrou as sacolas na cintura, pegou uma pedra como contrapeso e inspirou
profundamente.
Acima deles, ouviu-se o disparo de um lança-granadas, algo rolou pela galeria
abaixo e a caverna iluminou-se toda com um clarão azulado e fosforescente.
Com a pedra segura embaixo de um braço e Sarah do outro, Craig tornou a
mergulhar. A meio caminho, sentiu-a tentar respirar e percebeu que estavam em
apuros. Inspirou água e começou a engasgar-se e a arquejar dentro da máscara.
Arqueou o corpo e começou a debater-se e a lutar. Conseguiu segurá-la com
dificuldade; para sua surpresa era muito forte e o corpo esbelto e musculoso
retorcia-se em seus braços.
Chegaram à abertura do poço e, quando Craig soltou a pedra, a situação alterou-
se drasticamente. Sarah girava acima dele e meteulhe o cotovelo no rosto com
toda força. A pancada o tonteou e fez com que fraquejasse por momentos. Ela
soltou-se e começou a subir, girando e dando pontapés.
Estendeu o braço e conseguiu agarrar-lhe o tornozelo, segurando se com a outra
mão na saliência da abertura. Puxou-a e viu, à luz da lanterna, que arrancara a
máscara do rosto, fazendo-a serpentear loucamente na extremidade do tubo
flexível.
Arrastou-a à força até a parede, e ela começou a arranhá-lo e a lhe dar pontapés
no baixo ventre, obrigando-o a levantar o joelho para proteger-se. Conseguiu
girá-la e, segurando-a por trás, arrastoua até o buraco, enquanto ela lutava com
a força que lhe emprestavam o pânico e o terror. Conseguiu enfiá-la até a metade
pela parede antes que o tubo enganchasse em uma fenda de pedra, retendo-os.
Enquanto lutava para soltá-lo, Sarah começou a fraquejar e os movimentos
tornaram-se espasmódicos e descoordenados. Estava se afogando.
Craig agarrou o tubo com as duas mãos, e escorando-se na rocha puxou-o com toda
a força, fazendo com que se rompesse e se soltasse da bolsa de oxigénio. O gás
escapou pelo rasgão, provocando um estrépito de bolhas prateadas, mas Sarah
estava livre.
Puxou-a para fora do buraco e começou a subir, lutando com o peso do equipamento
vazio e das sacolas presas à cintura.
Os esforços de Craig para dominar Sarah haviam minado suas reservas de oxigénio.
Sentia os pulmões em fogo e espasmos violentos no peito, mas, mesmo assim,
continuou a nadar. Sarah jazia imóvel em seus braços e sentiu que, apesar dos
seus esforços, já não se deslocavam mais, estavam afogando-se lentamente. A
necessidade premente de respirar foi diminuindo e tudo perdeu qualquer sentido.
Era muito melhor relaxar e deixar que acontecesse. Lentamente, começou a sentir
uma dor meio vaga. Através da indiferença que o invadira, mal a percebia, e foi
só ao emergir de repente que percebeu que alguém o puxava pelos cabelos.
Mesmo meio afogado, compreendeu que Sally-Anne devia ter visto o brilho da
lanterna sob a água e percebera a gravidade da situação. Mergulhara e o agarrara
pelos cabelos, arrastando-o para a superfície.
Enquanto lutava para respirar, viu também que ainda estava agarrado ao braço de
Sarah que flutuava de rosto para baixo na superfície.
- Ajude-me! - disse, engasgado com a própria respiração. - Tire-a daqui!
Conseguiram retirar a aparelhagem danificada e levaram-na, inconsciente, para o
primeiro degrau na escada, onde Sally-Anne a colocou no colo de rosto virado
para baixo, inerte.
Craig enfiou-lhe o dedo na boca para assegurar-se de que a língua não estava
presa e pressionou-o na garganta para fazê-la vomitar.
Sarah expeliu água e começou a esboçar pequenos movimentos convulsivos.
Dentro d'água, a seu lado, Craig limpou-lhe o vómito e começou uma respiração
boca a boca, forçando-lhe ar nos pulmões, enquanto Sally-Anne a amparava o
melhor que podia no degrau desconjuntado.
- Está respirando novamente.
Craig parou o boca a boca, sentindo-se nauseado, tonto e fraco com o quase
afogamento.
- O equipamento está danificado - sussurrou. Tentou pegá- lo, mas havia
afundado. - Sam! Preciso ir buscar Sam.
Desamarrou desajeitadamente as sacolas de comida da cintura e pendurou-as junto
com a perna na escada. Agarrou-se a ela, respirando o mais profundamente que
podia enquanto Sarah tossia e arquejava, mas já tentava sentar-se. Sally-Anne
levantou-a e amparoua no colo como uma criança.
- Craig, querido, trate de voltar são e salvo - suplicou-lhe.
- Pode contar com isso - respondeu, permitindo-se mais uma meia dúzia de
inspirações antes de mergulhar e sentir a água gelada fechar-se sobre ele.
A parte submersa da grande galeria estava iluminada por clarões; e, à medida que
foi ascendendo, a intensidade da luz aumentava até tornar-se de um azul intenso,
como o das lâmpadas de alta voltagem.
Ao emergir na superfície do lago, viu que a parte superior da galeria estava
tomada por nuvens de fumaça. Tentou respirar e imediatamente uma dor penetrante
invadiu-lhe a garganta e o peito, seus olhos começaram a arder e lacrimejar,
deixando-o quase cego. Era gás lacrimogênio. Os shona estavam enchendo a caverna
com ele.
Viu Tungata dentro d'água, agachado por trás de uma rocha. Rasgara um pedaço da
camisa, e o amarrara, molhado, em torno da boca e do nariz, mas os olhos estavam
vermelhos e escorrendo água.
- A caverna está cheia de soldados - disse a Craig com a voz abafada pelo pano
molhado, e calou-se quando uma voz fantasmagórica distorcida por um megafone
ecoou pela galeria falando em inglês.
- Se render-se imediatamente, nada lhe acontecerá.
Como para sublinhar essa intimação, ouviu-se o estalo de um lança-granadas e
outra bomba de gás voou para a galeria, quicando no chão de calcário como uma
bola de futebol e expelindo gás.
- Já conseguiram descer a escada, não pude impedi-los. - Tungata saiu de trás da
rocha e fez um breve disparo para o alto. As balas sibilaram e o AK 47 silenciou
de repente.
- O último pente - rosnou, deixando cair a arma dentro d'água e procurando a
pistola na cintura.
- Vamos sair daqui, Sam - arquejou Craig. - Há uma passagem no fundo do lago.
- Não sei nadar. - Tungata carregava a pistola.
- Consegui fazer Sarah atravessar. - Craig tentava respirar por entre as nuvens
escaldantes de gás. - Vou fazê-lo atravessar também. - Tungata olhou-o. - Confie
em mim, Sam.
- Sarah está bem?
- Está perfeitamente bem. Tungata hesitou, lutando com o medo da água.
- Não pode ser capturado - disse Craig. - Deve isso a Sarah e a seu povo.
Talvez houvesse descoberto o único argumento que o demoveria. Tungata colocou a
pistola de volta no cinto.
- Diga-me o que devo fazer - disse.
Era impossível respirar na caverna tomada pelos gases.
- Tente prender o máximo de ar que puder. Retenha-o e faça força para não
respirar de novo. - Craig arquejou. O gás parecia arrebentar-lhe os pulmões e
sentiu a fria e mortal letargia começar a circular pelas veias. Seria uma longa
e dolorosa jornada de regresso.
- Aqui! - Tungata o puxou para baixo. - O ar aqui ainda está puro! - Havia um
bolsão de ar limpo sob a saliência da rocha e Craig aspirou-o avidamente.
- Segure-se bem! - Colocou as mãos de Tungata seguras à sua cintura, por dentro
do cinto de lona, tomou mais um hausto e mergulharam juntos, descendo
rapidamente.
Ao chegarem à abertura, não tinham a volumosa aparelhagem de oxigénio para
atrapalhá-los e Craig foi levando Tungata através dela com as forças que ainda
lhe restavam. Mas estava enfraquecendo drasticamente e tornando-se lento, mais
uma vez perdendo a ânsia de respirar, um sintoma da falta de oxigénio.
Haviam atravessado a parede mas não conseguia mais pensar o que devia fazer a
seguir. Estava confuso e desorientado e o cérebro pregava-lhe truques. Descobriu
que ria baixinho, deixando escapar por entre os lábios preciosas bolhas de ar. O
clarão da lâmpada tornou-se uma maravilhosa esmeralda verde que se fragmentou em
prismas do arco-íris. Era lindo, e ficou olhando embriagado, começando a
resvalar para o nada, como se tivesse ingerido uma dose de pentatol.
Para cima!, pensou, meio grogue. Tenho que subir! E começou a bater a perna
lentamente.
Sentiu, então, um empuxo poderoso na cintura. Tungata batia as pernas
vigorosamente, levando-os para a superfície. A última coisa que pensou foi: "Se
morrer é isso, então é melhor do que a publicidade que fazem a respeito", e
desmaiou.
Acordou com dor e tentou regressar ao confortável ventre obscuro da morte, mas
mãos o esfregavam e o comprimiam, e a madeira áspera da escada machucava-lhe a
carne. Sentiu os pulmões em fogo e os olhos pareciam boiar em ácido. Todos os
nervos do corpo despertaram e cada músculo começou a doer.
Ouviu, então, uma voz que dizia, e que desejava que se calasse:
- Craig! Craig, querido, acorde! - E as pancadas doloridas no rosto que não
queria sentir.
- Está voltando a si!
Eram como ratos afogados no fundo de um poço, meio submersos e agarrados à
escada desconjuntada, tremendo de frio.
As duas moças estavam no degrau inferior, e Craig amarrado a um poste por uma
tira de lona passada pelos braços, enquanto Tungata, ao lado dele, segurava-lhe
a cabeça.
Craig olhou com esforço para os rostos ansiosos e sorriu fracamente para
Tungata.
- Sam, você disse que não sabia nadar... bem, me enganou direitinho!
- Não podemos ficar aqui. - Os dentes de Sally-Anne batiam de frio.
- Só há um caminho... - E todos olharam para cima, para o poço sombrio ao alto.
A cabeça de Craig mal se sustinha, mas empurrou a mão de Tungata e esforçou-se
para examinar as condições da escada de madeira.
Fora construída sessenta anos antes e as cordas de casca de árvore usadas pelos
velhos feiticeiros estavam podres e dependuradas como barbantes. Toda a
estrutura parecia ter tombado para o lado, a menos que o primitivo construtor
não soubesse colocá-la a prumo.
- Será que aguenta com nosso peso? - Sarah perguntou o que todos queriam saber.
Craig ainda tinha dificuldade em pensar e via tudo através de um véu de náusea e
fadiga.
- Um de cada vez - engrolou -, primeiro os mais leves, você, Sally-Anne, e
depois Sarah... - Estendeu a mão e pegou a perna artificial. - Levem a corda com
vocês. Quando chegarem lá em cima, icem as sacolas e as lâmpadas.
Obedientemente, Sally-Anne colocou a corda enrolada no ombro e começou a subir
pela escada.
Subia ágil e rapidamente, mas a madeira estalava e balançava. À medida que ia
progredindo, a lâmpada clareava as sombras acima no poço. Continuou avançando
até que via-se apenas a luz da lanterna a assinalar sua posição e, em seguida,
desapareceu abruptamente.
- Sally-Anne!
- Tudo bem! - A voz ecoou pelo poço. - Há uma plataforma aqui.
- De que tamanho?
- Grande bastante para nós todos. Vou jogar a corda. Depois de atirá-la, Tungata
amarrou as sacolas na extremidade.
- Pode puxar. - E a carga subiu aos arrancos, balançando na ponta da corda.
- Certo, pode mandar Sarah subir. - A moça fez a escalada, desaparecendo na
escuridão, e logo ouviram os sussurros das duas lá no alto. - Tudo bem, agora,
mais um!
- Suba, Sam!
- Você é menos pesado do que eu - Tungata protestou.
- Ora, pelo amor de Deus, vá logo!
A estrutura de madeira balançava com o peso de Tungata e um dos degraus soltou-
se.
- Cuidado!
Craig mergulhou rapidamente e a prancha caiu com toda força na superfície da
água. Tornou a içar-se para fora e, sentado no degrau inferior, começou a
atarraxar a perna.
- Assim é outra coisa. - Deu-lhe pancadinhas afetuosas e experimentou-a dando
alguns pontapés.
- Vou subir - gritou.
Ainda não chegara à metade quando sentiu a estrutura mover-se, atirando-o
violentamente para cima.
Um dos postes quebrou, e o som ecoou como um tiro; todo o madeirame tombou para
um lado. Craig agarrou-se ao balaústre no momento exato em que três ou quatro
degraus abaixo dele partiam-se e caíam ruidosamente na água. Ficou com as pernas
penduradas no espaço vazio e, cada vez que tentava alçar-se, a estrutura
afundava perigosamente.
- Pupho!
- Estou em apuros. Não posso me mover ou toda esta geringonça vem abaixo.
- Espere! - Depois de alguns segundos de silêncio, ouviu novamente a voz de
Tungata. - Vou jogar a corda. Fiz um laço na ponta.
A corda caiu a quase dois metros de distância.
- Vá um pouco mais para a esquerda, Sam. O laço balançou em sua direção.
- Mais um pouco! Isso, agora abaixe-a mais!
- Segure firme!
Craig esticou o braço e conseguiu enfiá-lo no laço.
- Vou me segurar só nela!
Soltou o outro braço e passou-o pela corda. Estava fraco demais para tentar
subir.
- Puxe-me para cima!
Começou a ser lentamente guindado e, mesmo naquela situação perigosa, admirou a
força de Tungata, capaz daquela proeza com um homem adulto. Sem ele, nunca
conseguiria.
Viu o brilho da lanterna refletido no poço aumentar gradativamente e a cabeça de
Sally-Anne espiando pela borda da plataforma.
- Falta pouco agora. Aguente firme!
Chegou ao nível da saliência e lá estava Tungata apoiado ao fundo, na parede de
pedra, com a corda passada pela cintura e pelos ombros, os músculos do pescoço
saltados e a boca aberta e ofegando com o esforço. Apoiou o cotovelo e com um
novo esforço de Tungata conseguiu dar um impulso e cair de barriga na borda.
Só depois de algum tempo conseguiu sentar-se e olhar onde estava. Os quatro
amontoavam-se, tremendo de frio e ensopados, em uma saliência de pedra calcária
onde mal cabiam.
Acima deles, o poço continuava vertical, perdendo-se na escuridão, com paredes
lisas e impossíveis de serem escaladas. A estrutura de madeira só chegava até
ali e, no silêncio, Craig podia ouvir o ruído de água gotejando em algum lugar
no alto, na escuridão, e os guinchos dos morcegos alvoroçados com as vozes e os
movimentos. Sally-Anne levantou a lâmpada o mais alto que pôde mas não
distinguiam o final do poço.
Craig tornou a examinar a plataforma. Tinha cerca de dois metros e meio de
largura e viu na parede mais afastada uma abertura para o que parecia um túnel
secundário, muito menor e mais estreito que o poço principal e que se abria
horizontalmente na rocha.
- Isso parece a única saída - sussurrou Sally-Anne. - É para lá que foram os
velhos feiticeiros.
Ninguém respondeu. Estavam todos exaustos e gelados até os ossos.
- Devíamos continuar! - insistiu Sally-Anne, e Craig conseguiu levantar-se.
- Vamos deixar as sacolas e a corda aqui. - A voz estava ainda rouca por causa
do gás lacrimogênio e tossia muito. - Podemos voltar quando precisarmos.
Não confiava ainda nas próprias pernas. Sentia-se fraco e com vertigens, e o
abismo escuro do poço estava bem perto; foi engatinhando até a abertura.
- Dê-me a lâmpada. - Sally-Anne alçou-a e ele arrastou-se para dentro do buraco.
O túnel aumentou um pouco depois de cerca de quinze metros, permitindo-lhe ficar
agachado e amparar-se na parede, avançando mais rápido. Os outros o seguiam.
Avançaram por mais trinta metros e Craig abaixou-se para cruzar o último vão
natural de pedra e finalmente ficar em pé, olhando em torno com um assombro
crescente. Os outros, à medida que emergiam do túnel, o empurraram sem que
sequer os percebesse.
Ficaram todos juntos e imóveis, como se tirassem conforto e coragem uns dos
outros e viravam lentamente as cabeças, olhando para todos os lados.
- Meu Deus, que beleza - sussurrou Sally-Anne, tirando a lanterna de Craig e
levantando-a bem alto.
Tinham penetrado em uma caverna de luzes, uma caverna de cristal. Durante
milénios, a água infiltrada pelo grande teto abobadado formara depósitos de
cálcio, criando esculturas maravilhosas. As paredes estavam cobertas por
arabescos semelhantes a antigas rendas venezianas, tão delicados que a lanterna
brilhava através deles como se fossem de porcelana preciosa. Havia cornijas e
pilares monolíticos do teto ao chão, maravilhas suspensas, com todas as cores do
arco-íris, que pareciam asas de anjos em pleno vôo. Enormes estalactites de
pontas afiadas suspendiam-se ameaçadoramente como brunidas espadas de Dâmocles
ou caninos brancos de tubarões devoradores de homens. Outras pareciam
gigantescos candelabros ou tubos de órgãos celestiais, e do chão erguiam-se
estalagmites em fileiras serreadas, pelotões e esquadrões de formas fantásticas,
monges encapuçados em hábitos de madrepérola, lobos e corcundas, heróis de
armadura resplandecente, bailarinas e duendes, graciosos e grotescos, mas todos
ardendo em milhões de diminutas cintilações à luz da lanterna.
Avançaram pela caverna passo a passo hesitantes, procurando caminho por entre as
fileiras de altas estalagmites e tropeçando nas pontas afiadas de calcário
desprendidas do teto que coalhavam o solo como antigas pontas de flechas.
Craig tornou a parar e os outros amontoaram-se em torno, formando um grupo
compacto.
O centro da caverna estava limpo. Haviam retirado os detritos caídos e mãos
humanas haviam construído no calcário reluzente uma plataforma quadrada; um
palco ou altar pagão. Em cima, com as pernas cruzadas sobre o peito, envolvido
na pele mosqueada e dourada de um leopardo, estava o corpo de um homem.
- Lobengula. - Tungata caiu de joelhos.
As mãos do rei estavam trançadas sobre os joelhos, mumificadas, negras e
ressequidas. As unhas haviam continuado a crescer depois da morte, longas e
recurvas como as de um animal predatório. Deviam ter-lhe colocado na cabeça um
grande adorno de plumas e peles, que tombara a seu lado. As plumas de garça
ainda estavam azuis e perfeitas, como se tivessem sido arrancadas na véspera.
Talvez intencionalmente ou mais provavelmente por coincidência, o corpo fora
colocado diretamente abaixo de uma das infiltrações do teto. No instante em que
o contemplavam, outra gota caiu delicadamente sobre a testa do velho rei,
escorrendo-lhe pelo rosto como uma lágrima. Milhões e milhões de gotas deviam
ter caído sobre ele, e cada uma delas depositara cálcio luminoso na cabeça
mumificada.
Lobengula estava se transformando em pedra e o crânio já estava coberto por um
elmo translúcido, como o gotejar de uma vela, escorrendo para as órbitas e
formando um depósito perolado, demarcando os lábios ressequidos e a linha do
queixo. Os dentes perfeitos do rei sorriam para eles na máscara de pedra.
O efeito era fantasmagórico e aterrador. Sarah gemeu, cheia de temor
supersticioso, e agarrou-se a Sally-Anne que a segurou, tão apavorada quanto
Sarah. Craig examinou com a lanterna aquela cabeça terrível e foi lentamente
abaixando o foco de luz.
No altar de pedra diante de Lobengula havia cinco objetos escuros: quatro barris
de cerveja com losangos ornamentais desenhados, as partes superiores fechadas
com membranas de bexiga de cabra, e o quinto era um saco de pele de feto de
zebra costurado com couro.
- Sam, você... - E a voz de Craig falhou. Pigarreou e completou: - Você é seu
descendente. É o único que deve tocar em qualquer coisa aqui.
Tungata ainda estava ajoelhado e não respondeu. Olhava fixamente para o crânio
do velho rei e os lábios moviam-se numa oração silenciosa. Estaria rezando ao
Deus cristão, pensou Craig, ou aos espíritos de seus ancestrais?
Os dentes de Sally-Anne batiam espasmodicamente e era o único som que se ouvia
na caverna. Craig abraçou as duas moças que se aconchegaram a ele, tremendo de
frio e de medo.
Tungata levantou-se lentamente e dirigiu-se ao altar.
- Eu o saúdo, grande Lobengula - disse em voz alta. - Eu, Samsom Kumalo, de seu
totem e sangue, saúdo-o através dos tempos! - Usava novamente o nome tribal,
reclamando sua linhagem enquanto prosseguia em voz firme: - Se sou o filhote de
leopardo da profecia, peço sua bênção, ó rei. Mas, se não o for, castigue minha
mão sacrílega ao tocar os tesouros da casa de Mashobane.
E estendeu a mão direita lentamente, tocando um dos barris.
Craig descobriu que estava com a respiração suspensa, à espera não sabia de quê,
talvez de uma voz vinda da garganta do rei há tanto tempo morto ou que uma das
enormes estalactites se espatifasse no solo ou ainda que um raio os dizimasse.
O silêncio prolongou-se e Tungata colocou a outra mão sobre o pote e levantou-o
lentamente fazendo um gesto de saudação ao corpo do rei.
Ouvíu-se um forte estalido e a argila partiu-se, desprendendo o fundo do
recipiente, de onde jorrou uma torrente luminosa que fez empalidecer o
revestimento cristalino da grande caverna. Diamantes cascatearam sobre o altar,
empilhando-se em pirâmide e luzindo como um braseiro à luz da lanterna.
- NÃO posso acreditar que sejam diamantes - sussurrou Sally- Anne. - Parecem
seixos, bonitos e reluzentes, mas apenas seixos.
Haviam esvaziado o conteúdo dos quatro barris, do saco de pele de zebra na
sacola de lona, deixando os vasilhas vazias aos pés do rei, e retirando-se da
presença de Lobengula até a outra extremidade da caverna de cristal, mais
próxima à abertura.
- Bem, em primeiro lugar a lenda não estava certa. Estes barris não tinham quase
cinco litros, e sim pouco mais de meio cada.
- Mesmo assim, dois litros e meio de diamantes são melhores do que uma chifrada
de rinoceronte no olho - aparteou Tungata.
Haviam recolhido vários postes da parte superior da estrutura de madeira e
acendido uma pequena fogueira na caverna. Estavam sentados em círculo em torno
do fogo e as roupas molhadas fumegavam com o calor das chamas.
- Se forem diamantes. - Sally-Anne ainda estava cética.
- São diamantes - declarou Craig enfaticamente -, todos eles. Vejam isto!
Escolheu uma das pedras, um cristal com uma borda pontiaguda em uma das facetas,
e passou-o sobre a lente espessa da lanterna, produzindo um ruído desagradável e
abrindo um profundo arranhão no vidro.
- Eis aí a prova! É um diamante!
- Mas é tão grande! - Sarah pegou o menor que pôde encontrar. - Mesmo o menor
deles é maior do que a articulação do meu dedo.
- Os antigos garimpeiros matabele pegavam apenas os que fossem grandes o
bastante para aparecer logo na primeira lavagem - explicou Craig. - E lembrem-se
de que perderão sessenta por cento ou mais de massa ao serem cortados e
lapidados. Esse aí vai acabar provavelmente do tamanho de uma ervilha.
- Têm coloridos tão diferentes - murmurou Tungata.
Alguns eram de um verde-limão translúcido, outros como âmbar escuro ou cor de
conhaque, de tonalidades variadas, outros, brancos como a neve, com facetas
geladas que refletiam as chamas da pequena fogueira fumarenta.
- Olhem só esse aqui.
A pedra que Sally-Anne segurava era azul-purpurino, a mesma cor da torrente do
Moçambique ao refletir o sol tropical do meio-dia.
- E esse? - Tinha o tom vermelho brilhante do sangue.
- E mais esse! - De um verde límpido e impossivelmente belo, mutável a cada
faiscar da luz.
Sally-Anne começou a arrumar uma fileira no chão da caverna.
- Tão bonitos - disse. Estava graduando-os pela cor, amarelos, dourados e
ambarinos em uma fila, rosados e vermelhos em outra.
- O diamante pode ter qualquer uma das cores primárias. Parece sentir prazer em
imitar o colorido de outras gemas. John Mandeville, o viajante do século
quatorze, descreveu isso. - Craig estendeu as mãos para o fogo. - E pode
cristalizar-se em qualquer forma geométrica, desde um quadrado perfeito até um
octaedro ou um dodecaedro.
- Credo, meu camarada - troçou Sally-Anne. - O que vem a ser um octaedro?
- Duas pirâmides com uma base comum e lados triangulares.
- Puxa! E um dodecaedro? - desafiou-o.
- São dois losangos ou rombos com facetas comuns.
- Como é que sabe tanto a respeito?
- Escrevi um livro, lembra-se? - Craig sorriu. - E metade dele era sobre Rhodes,
Kimberley e diamantes.
- Já chega - disse ela, dando-se por vencida.
- Não, não chega, ainda posso continuar. O diamante é o mais perfeito refletor
de luz que existe. Só o cromato de chumbo tem refração maior e o crisólito, uma
maior dispersão. Mas essas qualidades combinadas no diamante são únicas.
- Chega - ordenou Sally-Anne, mas continuava com uma expressão interessada e ele
prosseguiu.
- Seu brilho não esmorece, apesar do fato de os antigos não saberem lapidá-lo
para revelar todo seu esplendor. Por esse motivo, os romanos valorizavam mais as
pérolas e até os primeiros artesãos hindus limitaram-se a raspar as facetas
naturais do Kohinoor. Teriam ficado desolados se soubessem que os lapidadores
modernos reduziram-lhe o tamanho de setecentos quilates para cento e seis.
- Que tamanho tem setecentos quilates? - quis saber Sarah. Craig escolheu uma
das pedras arrumadas por Sally-Anne, do tamanho de uma bola de golfe.
- Esse tem provavelmente uns trezentos. Pode transformar-se em um brilhante
perfeito, um de primeira água, com mais de cem quilates. Os homens vão batizá-
lo, como fizeram com o Grão Mogol, o Orloff ou o Shah e criar lendas sobre ele.
- O Fogo de Lobengula - arriscou Sarah.
- Ótimo! - Craig acrescentou. - Um bom nome. O Fogo de Lobengula!
- E quanto valem? - perguntou Tungata. - Qual o valor deste monte de pedrinhas
bonitas?
- Só Deus sabe. - E Craig encolheu os ombros. - Algumas não têm valor... - E
pegou uma grande pedra amorfa de um cinzento escuro, onde viam-se jacas e
imperfeições óbvias a olho nu e linhas fraturadas que a atravessavam como
lâminas finas e prateadas. - Este aqui só tem utilidade industrial, será usado
em ferramentas e em perfuradoras de petróleo, mas algumas das outras... a única
resposta seria: valem o que pagaria um homem rico. Seria impossível vendê-las
todas de uma só vez, o mercado não poderia absorvê-las. Cada pedra vai requerer
um comprador especial e envolver uma complicada transação financeira.
- Quanto valem, Pupho? - insistiu Tundaga. - Qual seria o valor mínimo ou
máximo?
- Realmente, não sei. Não poderia sequer dar um palpite. - Craig pegou outra
pedra cujas facetas imperfeitas escondiam o verdadeiro fogo de suas entranhas. -
Técnicos altamente qualificados vão ter que trabalhá-la durante semanas, talvez
até meses, avaliando o corte e descobrindo as jacas. Vão abrir uma espécie de
janela na pedra para poderem examinar microscopicamente o interior. E, então,
depois de tomarem uma decisão de como "fazer" a pedra, um mestre cortador com
nervos de aço vai fendê-la pelo corte com um instrumento parecido com o cutelo
de um açougueiro. Uma martelada em falso e a pedra pode explodir em fragmentos
sem nenhum valor. Dizem que o cortador do brilhante Cullinan desmaiou de alívio
quando acertou um golpe preciso e o diamante fendeu-se perfeitamente. - Craig
brincou com o grande diamante pensativamente.
- Se esta pedra se "fizer" perfeitamente, e se o colorido for grau D, poderá
valer, digamos, um milhão de dólares.
- Um milhão! Por uma pedra! - exclamou Sarah.
- Talvez mais. Talvez, muito mais.
- Se uma pedra vale isso - e Sally-Anne encheu as mãos com um punhado delas,
deixando-as escorrer lentamente por entre os dedos -, quanto valeria este lote?
- Um mínimo de cem milhões e um máximo de quinhentos - respondeu Craig em voz
calma e aquelas cifras astronómicas pareceram deprimi-los ao invés de deixá-los
eufóricos.
Sally-Anne deixou cair as últimas pedras como se lhe queimassem os dedos e
cruzou os braços sobre o peito, estremecendo. O cabelo molhado pendia grudado em
torno do rosto e o fogo acentuava-lhe as olheiras. Estavam exaustos e sujos.
- Estamos aqui sentados - disse Tungata - com uma enorme fortuna nas mãos e eu
desistiria de tudo isso em troca de um raio de sol e um instante de liberdade.
- Pupho - pediu Sarah -, conte-nos mais histórias.
- Sim - insistiu Sally-Anne. - É a sua profissão. Conte histórias sobre
diamantes. Ajude-nos a esquecer. Conte mais uma história.
- Está bem - concordou Craig, e, enquanto Tungata botava mais lenha no fogo,
refletiu por alguns instantes. - Sabiam que a palavra Kohinoor significa
"Montanha de Luz" e que Baber, o Conquistador, achava que valia a metade da
despesa diária de todo o mundo conhecido? Podem achar que fosse única, mas era
apenas uma das grandes jóias que havia em Delhi. Essa cidade ultrapassava a Roma
imperial e a orgulhosa Babilónia em tesouros. E essas outras jóias tinham nomes
maravilhosos também: Mar de Luz, Coroa da Lua, Grão Mogol - Craig vasculhou a
memória atrás de histórias que os fizessem esquecer aquela situação
desesperadora de enterrados vivos nas profundezas da terra.
Contou-lhes a história do criado fiel a quem De Sancy confiara o grande diamante
Sancy que mandava de presente a Henrique de Navarra, enriquecendo, assim, as
jóias da coroa francesa.
- Alguns ladrões souberam dessa jornada e emboscaram o pobre homem na floresta.
Cortaram-no em pedaços e examinaram as roupas e o cadáver. Não encontrando nada,
enterraram-no apressadamente e fugiram. Anos mais tarde, Monsieur de Sancy achou
o túmulo na floresta e ordenou que exumassem o corpo. O lendário diamante foi
achado em seu estômago.
- Que horror - disse Sally-Anne, estremecendo.
- Talvez - concordou Craig. - Mas todo grande diamante tem uma história
sanguinária. Imperadores, rajás e sultões conspiraram e guerrearam por eles,
outros seres humanos torturaram, cegaram olhos com ferros em brasa, derramaram
óleo fervente em outras criaturas, mulheres usaram veneno ou prostituíram-se,
palácios foram saqueados e templos profanados. Cada uma dessas pedras parece ter
deixado um rastro de sangue e selvageria. E, no entanto, nenhuma dessas
terríveis desgraças e acontecimentos parece ter desencorajado o apetite por
elas. Quando Shah Shuja defrontou-se com Runjeet Singh, "O Leão do Punjab",
reduzido a um mero esqueleto pela fome e com as mulheres e a família mutiladas
pelas torturas que o forçaram finalmente a entregar o Grão Mogol, o homem que
fora um dia o seu melhor amigo, rejubilando-se com a grande pedra entre as mãos,
perguntou-lhe: "Díga-me, Shah Shuja, que preço ela vale?" E mesmo então, Shah
Shuja, alquebrado e vencido, sabendo-se à beira de uma morte ignóbil, respondeu:
"O preço da tortura. Porque o Grão Mogol sempre foi o talismã dos grandes
triunfadores".
Tungata resmungou ao final da história e tocou no tesouro empilhado ao pé da
fogueira com um dedo.
- Gostaria que uma delas nos trouxesse só um pouco dessa boa fortuna.
Craig esgotara o repertório, estava completamente rouco de tanto falar, sofrendo
os efeitos do frio e do gás lacrimogênio e a nenhum dos outros ocorria dizer
qualquer coisa que os animasse um pouco. Comeram em silêncio os bolos de milho
pouco apetitosos sapecados pelo fogo e deitaram-se o mais perto possível da
fogueira. Craig ficou silencioso, vendo os outros dormirem, mas apesar da fadiga
o cérebro rodava-lhe em círculos, impedindo-o de descansar.
A única saída da caverna era pelo lago subterrâneo até a grande galeria, mas por
quanto tempo os soldados shona montariam guarda lá? E quanto tempo resistiriam
ali? Havia comida para um ou dois dias, e a água infiltrada pelo teto da caverna
era suficiente, mas as baterias das duas lanternas estavam falhando, já com a
luz amarelada e difusa; a madeira da escada poderia ainda alimentar a fogueira
por alguns dias e depois teriam de enfrentar o frio e a escuridão. E quanto
tempo levariam para enlouquecer? Quanto tempo teriam antes de tentar a volta
terrível, nadando pelo poço para cair nas mãos dos soldados?
Os pensamentos de Craig foram bruscamente interrompidos. A rocha onde estava
estendido tremeu violentamente.
Das sombras do teto da caverna, uma das grandes estalactites, vinte toneladas de
calcário cintilante, partiu-se como um fruto maduro e espatifou-se no solo a dez
passos de onde estavam, enchendo a caverna de detritos e poeira. Sarah acordou
aos gritos, aterrorizada, e Tungata debatia-se aos berros, arrancado de um sono
profundo.
O tremor durou ainda alguns segundos e a quietude e o silêncio total daquelas
profundezas caiu sobre eles novamente que se entreolharam assustados no clarão
da fogueira em brasas.
- Que diabos foi isso? - perguntou Sally-Anne, e Craig relutou em responder,
olhando para Tungata.
- Os shona... - disse Tungata num tom gentil. - Acho que dinamitaram a grande
galeria. Encerraram-nos aqui dentro.
- Oh, meu Deus! - Sally-Anne cobriu a boca um gesto lento.
- Estamos enterrados vivos - disse Sarah, expressando o pensamento de todos.
O poço tinha cinquenta metros de comprimento até a água. Tungata sondou-o com a
corda de náilon antes que Craig iniciasse a descida. A distância era grande o
bastante para matar ou ferir seriamente alguém que escorregasse e caísse no
abismo.
Prenderam uma extremidade da corda em um dos postes colocado horizontalmente por
dentro da abertura do túnel que dava para a gruta de cristal e Craig deslizou
pela corda até o fundo do poço, mergulhando na água, o que bastou para confirmar
o pior: o túnel que levara à grande galeria estava bloqueado por grandes pedaços
de pedra. Não conseguiu chegar sequer à parede construída pelos feiticeiros.
Rochas haviam rolado do teto, tornando-o perigosamente instável. Ao tocá-lo,
provocou uma nova avalanche.
Saiu do túnel e fugiu a toda pressa para a superfície. Agarrou-se à estrutura de
madeira, arquejando com a ideia de haver quase ficado preso lá dentro.
- Pupho, você está bem?
- Estou ótimo - gritou Craig. - Mas você estava certo. O túnel foi dinamitado.
Não há mais saída!
Quando subiu pela corda de volta à plataforma, esperavam-no com expressões
sombrias e tensas à luz da fogueira.
- O que vamos fazer? - perguntou Sally-Anne.
- A primeira coisa a fazer é explorar cuidadosamente a caverna. - Craig ainda
estava ofegante com o mergulho e a subida. - Cada recanto, cada abertura e
túnel. Vamos trabalhar dois a dois. Sam e Sarah, comecem pela esquerda e usem a
lanterna com cuidado, tratem de economizar a bateria.
Três horas mais tarde, pelo relógio de Craig, reencontraram-se junto ao fogo. As
lanternas estavam quase sem força e as baterias a ponto de esgotar-se.
- Encontramos um túnel por trás do altar - disse Craig. - Parecia realmente uma
saída durante algum tempo mas terminou em um beco sem saída. E vocês?
Conseguiram alguma coisa? - Limpava um esfolado no joelho de Sally-Anne que
escorregara no solo traiçoeiro.
- Nada - admitiu Tungata. - Encontramos umas duas passagens que pareciam
prometedoras mas que acabaram dando em nada.
- O que vamos fazer agora?
- Vamos tratar de comer um pouco e descansar. Temos que tentar dormir.
Precisamos conservar as forças. - Craig sabia que era apenas um artifício, mas
surpreendentemente caiu em um sono profundo.
Ao despertar, Sally-Anne estava aninhada perto dele e tossia com um som cavo e
encatarrado. O frio e a umidade estavam afetando a todos, mas Craig sentia-se
bastante revigorado pelo sono. Apesar de ainda estar com a garganta e o peito
doloridos, sentia-se melhor e mais animado. Encostou-se na parede rochosa, com
cuidado para não molestar Sally-Anne. Tungata roncava do outro lado da fogueira
e, ao mudar de posição, silenciou.
O único som que se ouvia na caverna era o gotejar da água pelas infiltrações do
teto e, logo a seguir, distinguiu vagamente um outro, algo como um sussurro tão
baixo que talvez não passasse da reverberação do silêncio em seus ouvidos, e
concentrou-se nele. O ruído o incomodava e tentava descobrir o que seria.
- Claro! São morcegos! - disse em voz alta.
Lembrou-se de havê-los ouvido mais nitidamente quando chegara pela primeira vez
à plataforma. Estendeu-se novamente no assoalho e ficou pensativo durante algum
tempo, até que retirou com delicadeza a cabeça de Sally-Anne do ombro e
levantou-se.
Pegou uma das lanternas e voltou pelo túnel até o poço. Ligou-a apenas uma ou
duas vezes para economizar as baterias e encostou-se na rocha, ouvindo com a
maior atenção.
Havia longos períodos de silêncio, interrompidos apenas pelo gotejar da água até
que subitamente ouviu guinchos ecoarem pela chaminé do poço e depois
silenciarem.
Ligou a lanterna para ver o relógio: eram cinco horas. Não estava certo se da
manhã ou da tarde, mas, se os morcegos estavam reunidos lá no alto, ainda devia
ser dia no mundo lá fora. Sentou-se e esperou uma hora, verificando volta e meia
o relógio, quando houve uma nova explosão distante de guinchos, não mais sons
ocasionais, e sonolentos, mas um coro excitado de milhares de pequenos roedores
despertando para a caçada noturna.
O coro foi logo diminuindo e Craig tornou a olhar o relógio: seis e trinta e
cinco. Podia imaginar em algum lugar acima a horda em revoada saindo pela
abertura de uma caverna para o céu crepuscular, como fumaça escapando de uma
chaminé.
Moveu-se cautelosamente até a beira da plataforma, segurou-se na parede lateral
e inclinou-se com cuidado sobre o abismo. Levantou a cabeça para espiar a parte
superior do poço, estendendo a lanterna o máximo possível.
O poço era semicircular, com cerca de três metros até a parede oposta. Desistiu
de sondar a escuridão acima e concentrou-se na rocha do outro lado, usando
prodigamente as baterias.
Era lisa como vidro, desbastada pela água que a abrira. Não havia um nicho, uma
saliência, exceto... E esticou mais o pescoço. Havia uma mancha mais escura
diretamente oposta a ele e bem acima do nível de sua cabeça. Seria uma simples
estratificação ou uma fenda? Não podia ter certeza à luz esmaecida da lanterna.
Podia até ser um truque das sombras.
- Pupho - disse Tungata inesperadamente às suas costas. - O que está
acontecendo?
- Acho que esse é o único caminho aberto para a superfície. - Craig desligou a
lanterna para poupá-la.
- Por esta chaminé acima? - A voz de Tungata soou incrédula na escuridão. -
Ninguém conseguiria subir por aí.
- Os morcegos estão aninhados em algum lugar lá no alto.
- Eles têm asas - lembrou-lhe Tungata, e depois de uma pausa perguntou: - Que
altura terá?
- Não sei, mas acho que há uma fenda ou saliência no outro lado. Ligue a outra
lanterna que está mais forte.
E ambos inclinaram-se para espiar.
- O que você acha?
- Acho que realmente há algo lá.
- Se pudesse passar para o outro lado! - Craig desligou novamente a luz.
- Como?
- Não sei, deixe-me pensar.
Sentaram-se apoiados na parede, ombro a ombro. Depois de algum tempo, Tungata
murmurou:
- Craig, se conseguirmos escapar daqui, os diamantes... Você tem direito a uma
porcentagem...
- Cale-se, Sam. Estou pensando. - E depois de longo tempo: - Sam, aquele poste
mais comprido da escada... acha que com ele chegaríamos ao outro lado?
Fizeram outra fogueira na plataforma e o poço íluminou-se com uma luz trémula e
incerta. Craig desceu pela corda mais uma vez até os restos da escada de madeira
e examinou cada poste da estrutura. A maioria fora cortada em tamanhos menores,
provavelmente para facilitar o transporte através dos túneis e passagens, mas as
estruturas laterais eram feitas em peças mais compridas. A maior delas tinha a
largura de um braço, mas a casca era da cor pálida peculiar à árvore que os
africanos chamavam de "presa de elefante", e os ingleses, de pau-ferro, uma das
madeiras mais resistentes daquela região do continente.
Examinando-a e medindo-a com os braços, calculou que tivesse quase seis metros
de comprimento. Amarrou a ponta da corda na extremidade superior do tronco,
gritando a Tungata o que estava fazendo, e usou o canivete para cortar a corda
de casca de árvore que o prendia. Houve um momento terrificante quando o poste
soltou-se e ficou dependurado na corda, balançando como um pêndulo e toda a
estrutura, sem o apoio principal, começou a partir-se e a deslizar para o poço.
Craig escalou de volta e atirou-se, aliviado, na plataforma; ao recuperar o
fôlego, o poste ainda balançava na ponta da corda mas o resto da escada caíra
dentro d'água.
- Esta foi a parte fácil - avisou-os Craig com o rosto sério. Tungata e ele
fizeram o esforço maior para içá-lo, enquanto as moças enrolavam e manobravam a
corda. Puxaram-na centímetro a centímetro até a ponta atingir o nível da
plataforma. Prenderam-na, e Craig ficou de bruços, usando a outra extremidade da
corda para laçar a ponta de baixo. Conseguiram prendê-la de ambos os lados e
começaram a esforçar-se para içá-lo e colocá-lo em posição horizontal.
Depois de uma hora de muitos esforços, tinham conseguido colocar uma extremidade
contra a parede oposta e enfiado a outra pelo túnel atrás deles.
- Temos que levantar mais a outra extremidade - explicou Craig enquanto
descansavam -, e tentar enfiá-la naquela fenda da parede, se é que é mesmo uma
fenda.
Tentaram por duas vezes e quase perderam o controle do poste que teria rolado
para o fundo do poço, mas conseguiram manobrar a corda a tempo e recomeçaram a
árdua tarefa.
Já era mais de meia-noite quando conseguiram finalmente tocar a parede oposta à
altura da mancha escura apenas visível ao clarão da lâmpada.
- Mais uns centímetros para a direita - gemeu Craig, e moveram com cuidado o
poste que, com um ligeiro ruído, encaixou-se na fenda, fazendo com que Craig e
Tungata caíssem de joelhos e se abraçassem.
Sarah colocou mais madeira no fogo e examinaram o trabalho na claridade. Tinham
feito uma ponte bastante sólida sobre o poço que se elevava da plataforma em
ângulo acentuado até a outra parede.
- Alguém vai ter de atravessar isso. - A voz de Sally-Anne soou trémula e
insegura.
- E o que vai acontecer do outro lado? - perguntou Sarah.
- Vamos descobrir quando chegarmos lá •- prometeu-lhes Craig.
- Eu vou - disse Tungata em voz calma.
- Alguma vez já escalou? - Tungata negou com a cabeça. - Bem, isso resolve o
problema - disse-lhe Craig com firmeza. - Vamos descansar por duas horas e
tentar dormir um pouco.
Mas ninguém conseguiu dormir e Craig os fez levantar antes das duas horas.
Ensinou a Tungata a posicionar-se firmemente como homem de apoio, sentado e com
os pés bem plantados e a corda passada pela cintura e por sobre as costas e o
ombro.
- Não me dê muita corda e também não a retenha muito - explicou Craig. - Se
cair, dou um grito de aviso. Enrole a corda assim e aguente firme, certo?
Pendurou uma das lanternas no ombro com uma tira de lona, e fez as duas moças
sentarem-se sobre o poste; começou a atravessar segurando-se com as mãos e os
pés dependurados, e a corda, lentamente solta por Tungata.
Viu logo que o ângulo de ascensão era excessivo e montou no poste, com os
tornozelos cruzados, dando impulso com as pernas. Saiu rapidamente do círculo de
luz da fogueira, e a escuridão abaixo era hipnotizante, mas procurou não olhá-
la. O poste flexionava-se ao peso de cada movimento e ouvia a extremidade
raspando-se na rocha, até finalmente tocar com os dedos o calcário frio da
parede.
Apalpou, ansioso, à procura da fenda e sentiu-se melhor ao verificar-lhe a
forma. Era uma rachadura vertical, com uma abertura de dez centímetros, apenas
suficiente para acomodar a extremidade do poste e que se estreitava rapidamente
para dentro.
- É mesmo uma fenda! - avisou-os. - Vou fazer uma tentativa.
- Tenha cuidado, Craig.
Meu Deus, que frase mais fora de contexto, pensou.
Arrastou-se mais um pouco até poder estender com folga o braço esquerdo e enfiou
a mão na rachadura com os dedos fechados o mais fundo que pôde, até sentir o
pulso bem firme. Abriu os dedos e viu que tinham um bom apoio onde poderia jogar
o peso do corpo.
Sentou-se no poste, levantou um joelho até o peito e apertou a manivela do
tornozelo artificial, deixando-o rígido.
Respirou fundo e disse baixinho:
- Está bem, vamos em frente.
Estendeu a outra mão, enfiando-a na fenda e repetindo a mesma manobra. Usou a
força dos dois braços para ficar de joelhos, equilibrando-se no poste.
Relaxou a mão direita, enfiada abaixo da outra, e retirou-a facilmente da fenda,
levantando-a e tornando a enfiá-la mais no alto, o que lhe permitiu ficar de pé,
de frente para a parede.
Estendeu o pé artificial, introduzindo-o na rachadura até o calcanhar e, ao
distender a perna, a parte da frente ficou firmemente segura entre os lados da
pedra e conseguiu sair de cima do poste.
- Bons e velhos dedos de metal - murmurou. A perna e o pé naturais não o teriam
suportado sem botas especiais de alpinismo.
Distendeu os braços novamente, tornando a firmar um de cada vez na rachadura, e
suspendeu-se só com a força dos braços. Assim que aliviou o peso da perna, tirou
o pé lá de dentro e, levantando o joelho, tornou a enfiá-la quarenta centímetros
acima. Foi avançando para o alto, suspenso alternadamente pelos braços e pela
perna mecânica e a corda ia deslizando atrás dele.
Estava na mais completa escuridão e só tinha o tato para guiá-lo; o abismo negro
parecia querer sugar-lhe os calcanhares quando se afastava um pouco da parede.
Contava cada passo dado para cima,, calculando-os em quarenta centímetros. Já
escalara cerca de doze metros quando a fenda começou a alargar-se, obrigando-o a
enfiar as mãos mais fundo para conseguir um apoio firme, o que tornou os passos
menores e forçava-lhe mais as mãos e a perna.
As juntas dos dedos estavam esfoladas pela pedra e cada esforço sucessivo
tornava-se mais penoso; o exercício deixava-lhe os músculos da coxa e da virilha
em fogo.
Não ia aguentar muito tempo: tinha que descansar. Descobriu-se fazendo força
contra a parede e tocando o calcário gelado com a testa. Reclinar-se contra a
parede é a morte, era a primeira lei do alpinista, uma atitude de derrota e
desespero. Craig sabia disso, mas não podia evitá-la.
Tomou consciência de que estava soluçando. Retirou um dos punhos da fenda,
flexionando os dedos para restabelecer a circulação e levando-os à boca para
lamber as feridas. Trocou de mão, gemendo quando o sangue começou a circular na
extremidade dormente.
- Pupho, por que parou? - A corda parara e estavam ansiosos.
- Craig, não desista, querido. Não desista. - Sally-Anne intuíra seu desespero
mas havia algo em sua voz que lhe deu novas forças.
Afastou-se gradualmente da parede, reequilibrando-se, colocando o peso do corpo
na perna e recomeçou a esticar as mãos, uma de cada vez, para cima, esquerda e
direita; segurar firme, esticar a perna, firmá-la e de novo toda aquela tortura:
mais três metros, mais seis metros, contava na escuridão.
Levantar a mão direita... e... nada. Apenas espaço vazio.
Tateou freneticamente à procura da fenda, e nada, até que esbarrou lateralmente
em pedra; a rachadura ampliara-se em um nicho em forma de V, grande o bastante
para abrigar um homem.
- Obrigado, meu Deus, obrigado, obrigado... - Craig alçou-se para lá, acomodando
os quadris e os ombros e cruzando sobre o peito as mãos feridas.
- Craig! - ressoou o grito de Tungata no poço.
- Estou bem - respondeu. - Descobri um nicho e estou descansando um pouco.
Sabia que não poderia esperar muito ou as mãos ficariam enrijecidas e inúteis e
continuou a flexioná-las enquanto descansava.
- Vou continuar a subida! - gritou.
Continuou a escalar, com as palmas das mãos apoiadas nas laterais da abertura e
de frente para a escuridão total do poço.
A abertura surgiu e tornou-se uma chaminé grande e profunda, onde já não
alcançava mais as paredes com os braços estendidos. Teve de virar-se de lado,
apoiar os ombros em uma superfície e apoiando-se com os pés, deslizando e
alçando-se com as palmas coladas à pedra poucos centímetros de cada vez.
Prosseguiu rapidamente até que a chaminé terminou de repente, tornando-se uma
fenda tão estreita que não conseguia meter a mão por ela.
Apalpou o topo da chaminé o mais alto que pôde e não havia qualquer
irregularidade ou protuberância no calcário liso acima.
- Fim da linha! - sussurrou e, de repente, cada músculo do corpo começou a
contrair-se de dor, deixando-o esmagado e derrotado. Não tinha mais forças para
o longo e perigoso regresso chaminé abaixo e nem aguentaria manter-se onde
estava.
Ouviu de repente o grito agudo de um morcego, tão perto e claro que quase
afrouxou os músculos com o susto. Conseguiu controlarse e, apesar de as pernas
quase cederem, deslocou-se até a extremidade da chaminé. O morcego tornou a
gritar e foi respondido por centenas de outros. Devia estar amanhecendo e os
animais voltavam ao abrigo em algum lugar lá em cima.
Conseguiu firmar-se e deixar uma das mãos livre. Agarrou a lanterna dependurada
ao pescoço, arrastou-se o mais que pôde para a beira da chaminé, e esticou a
cabeça na quina aguda que se abria para o poço.
Ligou a lanterna e houve imediatamente uma reação alarmada dos morcegos,
guinchos e bater de asas; a quase um metro acima, fora de alcance, havia uma
abertura na parede de pedra de onde reverberavam os sons. Tentou alcançá-la, mas
os dedos ficavam a centímetros da beirada.
Durante a tentativa, a luz da lanterna apagou; viu ainda os filamentos
avermelhados na minúscula ampola de vidro que logo desapareceram e a escuridão
tornou a engoli-lo, fazendo-o abrigar-se na chaminé.
Atirou com raiva a lanterna que foi descendo barulhentamente pelo poço e caiu na
água com um ruído distante.
- Craig!
- Deixei cair a lanterna.
Ouviu a raiva e a amargura da própria voz, mas fez mais uma tentativa para
alcançar a abertura. As unhas arranhavam inutilmente, a pedra e desistiu,
começando a descer de volta para o nicho.
- Craig, o que está acontecendo?
- Não dá - respondeu. - Não há saída. Estamos acabados, a não ser... - e
interrompeu-se.
- A não ser o quê?
- A não ser que uma das moças suba para me ajudar. Fez-se silêncio na escuridão
abaixo dele.
- Vou subir - disse Tungata.
- Não. Você é pesado demais. Não vou aguentar seu peso. Fez-se novo silêncio e
então Sally-Anne disse:
- Diga-me o que tenho de fazer.
- Amarre-se na extremidade da corda.
- Certo.
- Depois, atravesse o poste que eu seguro você.
Espiando para baixo, podia ver sua silhueta ao clarão da fogueira enquanto
atravessava a ponte. Segurou a corda cuidadosamente, preparando-se para uma
possível queda.
- Consegui.
- Está vendo a fenda?
- Sim.
- Vou começar a subi-la e tem que me ajudar apoiando os pés pela fenda.
- Está bem.
- Comece!
Sentiu todo o peso dela na corda que começou a cortar-lhe o ombro.
- Dê um impulso para cima! - ordenou e, ao sentir a carga diminuir, puxou mais a
corda.
- Mais impulso! - Ela subiu mais alguns centímetros.
- Mais uma vez! - Parecia não ter fim, até que Sally-Anne gritou de repente e
sentiu a corda deslizar violentamente pelo ombro, deixando-o com as palmas das
mãos em carne viva, mas conseguiu finalmente freá-la, o que quase o arrancou do
nicho.
Sally-Anne ainda gritava, balançando na extremidade da corda como um pêndulo.
- Cale a boca! - berrou. - Trate de se controlar!
Parou de gritar e as oscilações foram diminuindo gradualmente.
- Meu pé soltou-se da parede. - A voz era quase um soluço.
- Pode achar a rachadura de novo?
- Sim.
- Está bem, diga-me quando estiver pronta.
- Pronta.
- Dê um impulso!
Achou que aquilo nunca acabaria até sentir-lhe a mão agarrando-o pela perna.
- Você conseguiu - sussurrou. - Que mulher maravilhosa. Abriu espaço para ela no
nicho, mostrou-lhe como ancorar-se com firmeza e abraçou-a longamente.
- Não posso continuar - foram as primeiras palavras que ela disse.
- Essa foi a pior parte, o resto é fácil. - Não iria contar-lhe ainda sobre a
abertura. - Ouça os morcegos - procurou animá-la. - A superfície deve estar
muito próxima. Pense no primeiro raio de Sol, na primeira golfada de ar fresco.
- Estou pronta para continuar - disse depois de algum tempo, e ele a guiou pela
chaminé.
Quando atingiram o topo, Sally-Anne falou desesperada:
- Craig! Craig! Está fechada. É um beco sem saída.
Podia senti-la à beira do pânico, tremendo e tentando reprimir os soluços.
- Pare com isso - disse com voz dura. - É só mais um esforço. Só mais um, eu
prometo.
Esperou que se aquietasse e continuou:
- Há uma abertura na parede logo acima de você, dobrando a quina da chaminé. São
apenas uns trinta centímetros e pouco...
- Não vou conseguir alcançar.
- Vai, sim! Vou fazer uma ponte com meu corpo. Você sobe em cima de meu estômago
e vai alcançá-la facilmente. Está me ouvindo, Sally-Anne?
- Não. - A voz estava quase inaudível. - Não posso fazer isso.
- Pois então nenhum de nós vai conseguir chegar a lugar nenhum - disse em tom
áspero. - Ou você consegue ou vamos apodrecer aqui. Está me ouvindo?
Aproximou-se dela até tocar-lhe as nádegas com a barriga e, reunindo forças,
colocou os dois pés numa parede, amparando-se na outra com os ombros, formando
uma ponte humana por baixo dela.
- Solte-se devagar - sussurrou -, e sente-se em meu estômago.
- Craig, sou muito pesada.
- Diabos, trate de fazer o que digo!
Sentiu-a apoiar-se nele; os músculos pareciam que iam rebentar e os olhos
encheram-se de pontos faiscantes.
- Agora levante-se - conseguiu dizer.
Ela ajoelhou-se primeiro, e as articulações dos joelhos pareciam pregos
enterrando-se na carne. - Rápido! Fique de pé! - gemeu. Ficou de pé, meio
vacilante, sobre seu corpo.
- Estenda os braços o mais que puder!
- Craig, há um buraco aqui!
- Será que consegue entrar por ele?
Não houve resposta. Ela mudou de posição, fazendo-o gritar de dor com o esforço.
Deu um impulso e o peso desapareceu. Ouviu-a tatear com os pés e o ruído da
corda deslizando para o alto atrás dela, como uma cauda de macaco.
- Craig, é uma plataforma... uma caverna.
- Ache alguma coisa para amarrar a corda.
Um minuto, mais outro... já não aguentava mais, as pernas estavam dormentes, os
ombros...
- Consegui! Está bem firme.
Puxou cautelosamente até sentir a corda retesada e segura. Amarrou-a na cintura
e soltou os pés. Balançou-se para fora da chaminé, dependurado no poço aberto.
Começou a içar-se lentamente até ultrapassar a abertura de pedra e tombou no
solo rochoso. Abraçaram-se em silêncio, incapazes de dizer palavra.
- O que está acontecendo aí em cima? - perguntou Tungata, incapaz de controlar-
se mais.
- Encontramos outra saída - respondeu Craig. - E deve ter uma abertura para a
superfície. Está cheia de morcegos.
- O que precisamos fazer?
- Vou atirar a corda para vocês, com um laço na ponta. Sarah vai subir primeiro.
Tem que atravessar o poste e prender-se no laço. Nós dois conseguimos suspendê-
la. - Era uma mensagem muito longa para ser gritada. - Compreenderam?
- Sim, ela vai fazer isso.
Craig fez um laço na extremidade da corda e arrastou-se até o ponto onde Sally-
Anne a amarrara, e começou a tatear. Era uma saliência rochosa, a uns três
metros e meio de abertura, e o nó estava bem seguro. Arrastou-se de volta e
jogou a corda pela janela na rocha, deitando-se de barriga para baixo e espiando
a escuridão cheia de ecos. O brilho do fogo cintilava à distância como uma
fornalha ténue e vermelha. Podia ouvir os dois cochichando.
- Por que estão demorando? - perguntou.
Viu então a forma escura, apenas visível ao clarão da fogueira, movendo-se pela
ponte. Era grande demais para ser uma única pessoa e compreendeu que Tungata e
Sarah cruzavam juntos o poste. Tungata a conduzia lentamente à sua frente,
encorajando-a.
Por um momento, sumiram logo abaixo da janela.
- Pupho, mova a corda mais para a esquerda.
Craig obedeceu e sentiu o puxão quando Tungata a segurou.
- Tudo bem, passei a corda em Sarah.
- Explique-lhe que precisa caminhar pela rocha à medida que a formos puxando.
Sally-Anne sentou-se diretamente atrás de Craig e segurou a corda passada pelo
ombro dele que apoiara os pés na parede lateral.
- Dê um impulso - ordenou a Sarah, que pegou o ritmo rapidamente. Apesar de
pequena e esbelta, foi uma longa subida e as mãos de Craig estavam em carne
viva. Foram cinco minutos de trabalho duro antes que a içassem para dentro da
caverna e ficaram os três descansando durante algum tempo.
- Certo, Sam. Estamos prontos para você. - E Craig tornou a jogar a corda.
Eram três agora, um sentado atrás do outro, mas Tungata era grande e pesado.
Podia ouvir as moças gemendo com o esforço.
- Sam, pode agarrar-se um pouco na chaminé e nos dar um descanso? - arquejou
Craig.
Sentiu a corda aliviar-se do peso e os três ficaram atirados por alguns
instantes, recuperando as forças.
- Está bem, vamos recomeçar.
Tungata parecia ainda mais pesado, mas finalmente surgiu pela abertura e
cambaleou no solo pedregoso; ninguém conseguiu falar durante algum tempo.
Craig foi o primeiro a recuperar a voz:
- Merda! Esquecemos os diamantes! Deixamos os malditos diamantes!
Ouviu-se um clique e o clarão da lanterna trazida por Tungata iluminou-se.
Ficaram piscando, meio cegos, e Tungata deu uma risada rouca.
- Por que acham que estava tão pesado?
Levantou a sacola de lona do colo e deu-lhe umas pancadinhas. Os diamantes
soaram como um esquilo devorando nozes.
- Que herói! - Craig respirou aliviado. - Mas desligue a lanterna, essa bateria
só vai durar mais alguns minutos.
Usaram a luz com moderação. Da primeira vez, viram que a abertura dava para uma
caverna baixa e tão ampla que não conseguiam ver as paredes laterais. O teto
estava coalhado de morcegos, com os olhos parecendo miríades de pontinhos
luminosos nos rostos horrendos, todos dependurados de cabeça para baixo.
O assoalho da caverna estava coberto de detritos. As fezes malcheirosas
recobriam toda irregularidade, tornando o solo macio, e abafando os passos ao
avançarem em grupo, de mãos dadas para não se perderem no escuro.
Tungata ia à frente, acendendo volta e meia a lanterna para olhar o chão e
orientar-se. Craig ia na retaguarda com a corda enrolada e enfiada no ombro. O
solo começou a subir gradualmente e o teto ficava mais próximo.
- Esperem - disse Sally-Anne. - Não acendam a luz de novo.
- O que há?
- Ali adiante, perto da subida. Será a minha imaginação? Craig olhou à frente
para o local de onde emergia um fraco halo, uma réstia de luz na escuridão da
caverna.
- Luz - sussurrou. - Há luz lá na frente.
Começaram a correr, esbarrando-se na escuridão, empurrando-se e rindo ao
começarem a distinguir as próprias formas, até que as risadas transformaram-se
numa louca euforia. A luz tornara-se dourada e escalavam as fezes macias
tentando alcançá-la.
O teto foi diminuindo de altura até obrigá-los a ficar de joelhos e, depois, de
rastos no chão; a luz era uma fina fresta horizontal que os cegava com a
claridade brilhante. Escalavam com as mãos, enterrando os dedos e provocando
nuvens de pó nas fezes secas, que os cobriu por inteiro, mas continuavam a
subir, tossindo, engasgando-se e gritando histericamente.
Craig viu que Sarah chorava desabaladamente, com as lágrimas escorrendo-lhe pelo
rosto. Tungata soltava grandes gargalhadas e Craig apressou-se para segurar-lhe
os tornozelos antes que alcançasse a abertura estreita da caverna.
- Espere, Sam. Tenha cuidado.
Tungata começou a dar pontapés, querendo soltar-se, mas Craig o agarrou firme.
- São os shona! Há shonas lá fora!
Aquele nome os silenciou e os fez parar. Ficaram junto à abertura e toda a
euforia evaporou-se.
- Craig e eu vamos sair para examinar o terreno. - Tungata passou-lhe uma pedra.
- É a única arma que tenho. Vocês duas fiquem aqui até nós as chamarmos.
Craig passou uma grossa camada de fezes no rosto para escurecê-lo, tirou a corda
dos ombros e arrastou-se atrás de Tungata. Estava contente em deixá-lo assumir a
iniciativa. Na caverna, fora o líder, mas lá fora era o mundo de Tungata. Na
floresta, ele era o leopardo.
Arrastaram-se até a entrada, uma fenda baixa e horizontal, com pouco mais de
meio metro de altura, escondida pela grama dourada de elefante que crescia bem
na abertura. Ficava de frente para o nascer do Sol, pois o sentiam arder no
rosto. Ficaram imóveis durante algum tempo, deixando os olhos acostumarem-se a
toda aquela claridade depois de tanto tempo na escuridão.
Em seguida, Tungata começou a arrastar-se sinuosamente como uma cobra, mal
mexendo o capim alto que atravessava.
Craig contou até cinquenta e seguiu-o. Foi dar à beira de uma colina, cheia de
pedras calcárias que serviam de proteção, e onde crescia uma vegetação rasteira
e ressequida e capim de elefante.
Estavam logo abaixo da crista, e o declive abaixo deles, muito íngreme, dava
para o vale cheio de florestas. O Sol já estava alto e Craig deliciava-se ao seu
calor.
Tungata estava a seu lado e fez para Craig o sinal "Cubra meu flanco esquerdo".
Craig mexeu-se cuidadosamente, arrastando-se pelos cotovelos, assumindo a
posição.
"Examine tudo!" Tungata fez-lhe o sinal e ficaram por dez minutos examinando o
terreno abaixo, acima e dos lados, cobrindo cada centímetro, cada moita, rocha e
pedaço do campo.
"Tudo limpo", sinalizou Craig, e Tungata começou a rastejar em direção à dobra
da colina, com Craig atrás, dando-lhe cobertura.
Um pássaro trombeta, branco e preto com um enorme bico amarelo e recurvo, voou
até eles. Tinha um vôo caracteristicamente errático e pousou numa moita pequena
logo adiante, abaixo de Tungata, soltando quase em seguida um grito agudo de
alarme e alçou vôo.
"Perigo!" Tungata fez o sinal de urgência e ambos ficaram imóveis.
Craig olhava para a massa de rocha e vegetação de onde o pássaro fugira,
tentando descobrir a causa.
Algo moveu-se ligeiramente e tão perto, que ouviu o ruído de um fósforo sendo
riscado. Uma golfada de fumaça evolou-se de lá e sentiu o aroma de tabaco.
Distinguiu em seguida a forma de um capacete de aço coberto por uma rede
camuflada, que se moveu enquanto o homem dava outra tragada.
Distinguia-o nitidamente agora. O homem, de uniforme camuflado, estava deitado
ao lado de uma metralhadora leve, armada sobre um tripé e disfarçada com
vegetação.
"Quantos?", sinalizou Tungata e Craig viu o outro, recostado perto de uma
pequena árvore espinhenta. As sombras dos galhos sobre a cabeça mesclavam-se com
as listras tigradas do uniforme. Era um homem grandalhão, de cabeça descoberta e
divisas de sargento, com uma metralhadora Uzi ao lado.
Craig preparava-se para sinalizar "Dois", quando o fumante estendeu o maço de
cigarros e um terceiro homem, deitado à sombra, que pegou-o, tirando um e
atirando-o em seguida a um quarto, que se mostrou pela primeira vez.
"Quatro!", sinalizou Craig.
Era um ninho de metralhadora, situado na dobra da colina para cobrir os declives
abaixo. Peter Fungabera previra a existência de outras saídas da caverna
principal. As colinas deviam estar cheias de emboscadas semelhantes. Fora por
pura sorte que haviam saído acima daquele posto. O artilheiro apontava a arma
para baixo e os companheiros aproveitavam para relaxar daqueles dias aborrecidos
de uma vigília infrutífera.
"Assuma posição de ataque", sinalizou Tungata.
"Objeção." Craig levantou o polegar. "Quatro?"
"Vá", assinalou Tungata, e reforçou a ordem com o punho fechado: "É imperativo!"
Craig sentiu a descarga de adrenalina e a boca seca, e agarrou a pedra com a mão
direita.
Estavam tão próximos que pôde ver a ponta umedecida do cigarro quando o atirador
o tirou da boca. O ninho estava cheio de detritos: pontas de cigarro, embalagens
vazias, latas de comida e as armas estavam descuidadamente postas de lado. O
homem deitado de costas cobrira os olhos com o braço e o cigarro pendia-lhe dos
lábios. O sargento cortava um pedaço de madeira com a baioneta. O terceiro
desabotoara o uniforme e procurava com minúcia algum inseto no peito cabeludo.
Só o homem da metralhadora estava atento.
Tungata colocou-se em posição ao lado de Craig.
"Pronto?" Levantou a mão e olhou-o.
"Afirmativo", Craig respondeu-lhe.
Baixou a mão num gesto brusco para iniciar a ação.
Craig atirou-se pela beira, atingindo o homem da baioneta na cabeça e viu que
batera com muita violência. Sentiu os ossos partirem-se dentro do crânio.
O sargento tombou sem um som e Craig ouviu no mesmo instante um som quando
Tungata atacou o artilheiro, mas nem olhou para trás. Agarrou a metralhadora Uzi
e apontou-a.
O soldado que procurava insetos levantou os olhos e ficou de queixo caído quando
Craig enfiou-lhe o cano no rosto, dominando-o e obrigando-o a ficar em silêncio.
Tungata pegara a baioneta do sargento e inclinava-se sobre o soldado deitado,
atirando-lhe bruscamente com um joelho no peito, forçando-lhe o ar dos pulmões e
pressionando a ponta da arma contra a pele macia atrás do ouvido. Ainda de
costas, o rosto do homem inchou e contorcia-se com o esforço que fazia para
respirar.
- Se alguém gritar - sussurrou Tungata -, corto-lhe os testículos e os enfio
garganta abaixo.
Tudo levara menos de cinco segundos.
Tungata ajoelhou-se junto ao sargento, tentando tomar-lhe a pulsação no pescoço.
Depois de alguns minutos, balançou a cabeça e começou a despir-lhe o uniforme.
Enfiou-se nele com dificuldade: era muito pequeno para seu tamanho. - Pegue o
uniforme do atirador - ordenou, enquanto pegava com Craig a Uzi e mantinha os
outros doís sob sua mira.
O pescoço do homem estava quebrado. Tungata dera-lhe um golpe brusco na garganta
e a tira do capacete pressionara-o sob o queixo.
O uniforme fedia a gordura rançosa e cigarro, mas coube bem em Craig. O capacete
era grande demais, mas ajudava a disfarçar o cabelo comprido e liso.
Tungata encarou os prisioneiros.
- Arrastem os corpos destes cães shona com vocês.
Craig e Tungata vigiavam enquanto os soldados arrastavam pelos pés os dois
cadáveres despidos até a entrada da caverna e os atiravam pelo buraco escuro.
As moças ficaram chocadas e silenciosas.
- Tirem a roupa! - ordenou Tungata. Quando estavam só de cuecas, ordenou a
Craig: - Amarre-os!
Craig fez-lhes sinal para deitarem de barriga para baixo e amarrou-os pelos
pulsos e tornozelos, deixando-os completamente impotentes. Tírou-lhes as meias,
enfiando-as nas bocas e amordaçando-os.
Enquanto trabalhava, Tungata ajudava as moças a vestirem os uniformes, grandes
demais, mas que conseguiram ajeitar, enrolando as mangas e as pernas e
prendendo-os na cintura.
- Escureça o rosto, Pêndula - ordenou Tungata. - E também as mãos, e cubra o
cabelo. - Tirou uma boina do bolso do uniforme que usava e atirou-a para ela. -
Vamos. - Segurou a sacola de diamantes e começou a escalar o declive, de volta
ao ninho de metralhadora. Agarrou um saco de campanha, esvazíou-o e guardou nele
a sacola. Amarrou-o com cuidado e colocou-o às costas.
Craig examinava os outros equipamentos. Dera duas granadas a Tungata e metera
duas nos bolsos. Descobriu uma pistola Tokarev que entregou a Sarah e deu a Uzi
para Sally-Anne. Ficou com um AK 47 e cinco pentes extras. Tungata ficou com a
outra Uzi. Craig pegou também um cantil de água e abriu um pacote de chocolate,
que mastigaram às pressas enquanto se preparavam para partir e cujo sabor
encheu-lhe a boca de água.
- Vou na frente - disse Tungata de boca cheia. - Vamos tentar descer até o vale,
protegendo-nos entre as árvores.
Mantiveram-se na dobra da colina, descendo o barranco. Jogaram com a sorte,
torcendo para que o outro declive aberto à direita estivesse sem vigilância.
Estavam chegando logo acima das copas das árvores quando ouviram o helicóptero
que vinha em direção ao vale. Estava ainda além da curva da colina, mas
aproximava-se rapidamente.
- Atirem-se no chão! - ordenou Craig, e empurrou Sally- Anne. Ficaram
estendidos, cobrindo os rostos, mas o ruído das hélices alterou-se para um ponto
logo atrás do barranco rochoso.
- Está aterrissando - disse Sally-Anne, e o motor calou-se. Levantou a cabeça
para espiar. - Escutem! Cortou o motor!
No silêncio que se seguiu, ouviram vozes gritando ordens.
- Pupho, venha até aqui - ordenou Tungata. - E vocês duas, esperem.
Arrastaram-se até a curva da colina e levantaram as cabeças para espiar sobre a
crista.
A meio quilómetro abaixo, no vale, numa pequena clareira à beira da floresta,
havia uma barraca de lona armada na extremidade mais distante. O helicóptero
estava no centro da clareira e o piloto descia da cabine. Havia soldados com o
uniforme da Terceira Brigada sob as árvores perto da barraca onde sentavam-se
três ou quatro homens.
- Quartel-general avançado - murmurou Craig.
- Este é o vale por onde entramos, a caverna principal está bem abaixo de nós.
- É isso mesmo. - Craig não reconhecera o terreno daquela posição.
- Parece que estão se preparando para partir. - Tungata apontou para a mata. Uma
patrulha de soldados em uniformes camuflados descia para o vale em fila indiana.
- Provavelmente esperaram umas vinte e quatro horas depois de dinamitarem a
grande galeria e devem achar que estamos mortos e enterrados.
- Quantos são? - perguntou Tungata.
- Estou vendo uns vinte, pelo menos. - E Craig apertou os olhos. - Sem contar
com os da barraca. Deve haver outros pelas colinas, naturalmente.
Tungata afastou-se da beira e fez sinal a Sally-Anne que se arrastou até lá.
- Que tipo de helicóptero é aquele?
- É um Super Frelon - respondeu sem hesitação.
- Sabe voar nisso?
- Posso fazer qualquer coisa voar.
- Pelo amor de Deus, Sally-Anne, pare de contar vantagem - disse Craig,
irritado. - Já voou num desses?
- Não, mas tenho quinhentas horas de vôo em helicópteros.
- Quanto tempo levaria para levantar vôo quando já estivesse dentro da cabine?
Ela hesitou.
- Uns dois ou três minutos.
- Tempo demais. - Craig balançou a cabeça.
- E se conseguíssemos afastar os guardas da clareira enquanto Pêndula liga o
motor? - perguntou Tungata.
- Pode ser que dê certo - concordou Craig.
- Então é isso. - Tungata levantou-se rapidamente. - Vou subir até a cabeceira
do vale e você leva as moças pelo barranco até a clareira. Entendeu?
Craig fez que sim.
- Daqui a quarenta e cinco minutos - e checou o relógio de pulso -, exatamente
às nove e trinta, vou começar a atirar granadas e a disparar com AK 47. Isso
deve atrair a maioria dos shona para fora da clareira. Assim que começar o
tiroteio, vocês correm até o helicóptero. Quando ouvi-lo levantar vôo, vou
correr até aquele barranco aberto.
- Vamos. - Craig passou-lhe o fuzil e os pentes de reserva. - Fico com a Uzi e
uma granada.
- Leve os diamantes, também. - Tungata passou-lhe o saco e Craig pendurou-o ao
ombro.
- Até mais tarde. - Deu uma palmada de despedida no ombro de Tungata.
Craig guiou as duas moças colina abaixo, por entre a vegetação e as pedras. Foi
um alívio alcançar as árvores e descobrir uma ravina que acompanhava a borda da
clareira. Desciam com cautela e Craig espiava pela beira a cada cem metros.
- Já chegamos o mais perto possível do helicóptero - sussurrou, e as moças
deitaram-se no solo. Craig livrou-se do pesado saco e deu uma outra olhadela
sobre a borda.
O helicóptero estava a uns cento e cinquenta passos, com o piloto agachado ao
lado. O Super Frelon era uma máquina pesada, e estava pintado de verde. Craig
tornou a estender-se junto a Sally-Anne.
- Qual a autonomia de vôo? - perguntou em um sussurro.
- Não estou bem certa - sussurrou de volta Sally-Anne. - Com os tanques cheios,
creio que uns mil quilómetros.
- Reze para que os tanques estejam cheios. - Craig olhou para o relógio. -
Faltam dez minutos. - Tirou do bolso outro tablete de chocolate e deu-o às duas.
O suor de Sally-Anne deixara marcas claras no rosto e Craig esfregou-o com
terra.
- Dois minutos - verificou Craig, e olhou sobre a borda. O piloto levantou-se,
espreguiçando-se, e subiu para a cabine.
- Algo está acontecendo - murmurou Craig.
O helicóptero ocultava parte da barraca do outro lado da clareira, mas pôde
perceber que havia atividades por lá também.
Um pequeno grupo deixou a tenda. Os guardas agitavam-se e batiam continência e
de repente as hélices do helicóptero começaram a girar, e o motor principal do
aparelho foi ligado.
Um par de oficiais afastou-se do grupo em frente à barraca e começou a dirigir-
se à clareira, direto para o helicóptero.
- Estamos em apuros - Craig disse sombrio. - Estão indo embora. - E estremeceu
de repente. - Aquele é Peter Fungabera!
Fungabera estava com a boina vermelha de distintivo prateado, uma fileira de
condecorações no peito, o bastão debaixo do braço e um lenço ao pescoço. Estava
tão enfronhado numa discussão com um homem branco alto e velho que Craig nunca
vira antes.
O branco usava uma simples jaqueta caqui de safari. A cabeça estava descoberta e
completamente raspada, e a pele tinha uma tonalidade pálida desagradável.
Carregava uma pasta de couro preta presa ao pulso por uma corrente e ouvia as
palavras veementes de Fungabera enquanto encaminhavam-se para o helicóptero.
A meio caminho, pararam e discutiram animadamente. O branco gesticulava com
veemência e estava tão perto que Craig viu-lhe os olhos gélidos que mais
pareciam os de uma estátua. A pele estava coberta por antigas cicatrizes mas era
a figura dominante entre os dois. Suas maneiras eram bruscas e quase desdenhosas
como se Fungabera não lhe merecesse atenção. Esse, por sua vez, parecia o
sobrevivente de uma catástrofe, confuso e com voz plangente. Não era
absolutamente o homem que Craig conhecera.
O branco fez um gesto final e recomeçou a andar em direção ao aparelho.
Naquele momento, ouviu-se a explosão de uma granada e os dois homens na clareira
voltaram-se para olhar em direção ao vale. Ouviu-se a seguir o disparo de um AK
47 vindo da mesma direção e ordens começaram a ser gritadas em torno da barraca.
Os soldados correram até a borda da clareira, em direção ao vale.
Houve outros disparos de arma automática e a atenção de todos se concentrava
naquela direção. Craig suspendeu apressadamente o saco.
- Vamos! Vocês sabem o que fazer! - Os três subiram pela ravina e foram para a
clareira.
- Não se apressem - preveniu-as Craig, baixinho. Mantiveram-se agrupados
movendo-se com rapidez e determinação, dirigindo-se para onde estavam Fungabera
e o companheiro.
Craig tirou a granada do bolso, arrancando o pino com os dentes, e segurou-a com
a mão esquerda. Levava a Uzi na direita, carregada e apontada. Estavam apenas a
cinco passos quando Fungabera os avistou e a expressão atónita no rosto, ao
reconhecer Craig, era quase cómica.
- Posso cortá-lo em dois a esta distância - preveniu-o, mirando a Uzi em sua
barriga. - Esta granada está preparada. Basta deixá-la cair e vamos todos para o
inferno. - Teve que gritar para ser escutado por causa do ruído do helicóptero.
O homem branco virou-se para encará-lo e os pálidos olhos gelados tinham uma
expressão de selvageria.
- Tratem do piloto - ordenou Craig às duas que correram em direção à cabine. - E
agora, vocês dois caminhem até o helicóptero.
Craig seguia-os três passos atrás. Antes de alcançarem o aparelho, o piloto
apareceu com as mãos levantadas, e Sarah apontava-lhe a pistola Tokarev.
- Saia! - ordenou Craig, com evidente alívio, e o piloto pulou no chão.
- Diga-lhes que o general Fungabera é um refém e que qualquer tentativa de
ataque vai colocar sua vida em risco. Compreendeu?
- Sim - disse o piloto.
- Vá até a barraca, e lentamente. Não corra e não grite.
O piloto afastou-se, aliviado, mas, assim que se viu fora de alcance, desatou a
correr.
- Subam! - E Craig fez um gesto com a Uzi, mas Fungabera olhou-o
ameaçadoramente. - Não faça isso - Craig deu um passo atrás. Fungabera tinha o
ar desesperado de quem não tinha mais nada a perder.
- Mexa-se! E suba esta escada! - Fungabera atacou-o de repente, correndo direto
para o cano da Uzi, mas Craig estava preparado: levantou-a e desferiu-lhe um
golpe na cabeça que o jogou de joelhos.
Ao vê-lo caído, girou a Uzi, mirando o homem branco.
- Ajude-o a subir a escada - ordenou e, apesar de atrapalhado pela pasta negra
acorrentada ao pulso, a ameaça da arma era persuasiva o bastante para fazer com
que o homem branco se curvasse sobre Fungabera e o ajudasse a levantar-se. Ainda
tonto pela pancada, Fungabera cambaleava resmungando.
- Não tem mais importância, está tudo acabado.
- Cale-se, seu tolo - sibilou o branco.
- Faça-o entrar no helicóptero. - Craig enfiou o cano da Uzi nas costas do
branco e os dois começaram a subir as escadas.
- Aponte a arma para eles, Sarah - disse Craig, e olhou para trás. O piloto
estava quase chegando à borda da clareira. - Tratem de se apressar - e o branco
empurrou Fungabera pela porta adentro, subindo rapidamente, com a pasta ainda
acorrentada ao pulso.
Craig pulou para dentro da cabine.
- Lá para trás - ordenou aos prisioneiros. - E amarrem os cintos! - Disse a
Sarah, em seguida: - Diga a Pêndula para ir em frente.
O helicóptero levantou vôo pairando acima da clareira e Craig atirou a granada
pela porta aberta, que explodiu na floresta abaixo. Esperava aumentar a confusão
que reinava por lá.
Postou-se por trás de Fungabera, com a Uzi em seu pescoço, e tirou-lhe com a mão
livre a pistola Tokarev do coldre. Meteu-a no bolso, e foi tratar das correias
de segurança da porta. Ordenou a Sarah que mantivesse a arma apontada para os
prisioneiros e inclinou-se para espiar.
Viu Tungata, que já estava fora do abrigo das árvores, logo abaixo do declive
rochoso, brandindo o AK 47.
- Espere! Vou descer para apanhá-lo - berrou Sally-Anne pelo microfone acima da
cabeça de Craig.
O grande helicóptero desceu em direção a Tungata, e Sally-Anne estabilizou-o e
ficou pairando.
A ventania das hélices fustigava o capim em torno dele. Atirou o AK 47 fora e
olhou para Craig. O aparelho desceu mais uns poucos metros, Craig inclinou-se e
estendeu-lhe o braço. Tungata agarrou-o e foi içado para bordo.
- Vamos embora! - berrou ao microfone. E o avanço foi tão rápido que os joelhos
de Craig dobraram-se.
A um pouco mais de mil pés, Sally-Anne estabilizou o aparelho e tomou rumo
oeste.
Tungata virou-se para olhar as figuras jogadas nos bancos e lançou um olhar
feroz a Fungabera que se encolheu, arrasado.
- Onde os achou, Pupho? - perguntou em voz rouca.
- São um presentinho para você, Sam. - Craig entregou-lhe a Uzi. - Está
carregada e pronta para disparar. Pode tomar conta dessas duas belezinhas?
- Será um enorme prazer. - E Tungata apontou-a para os dois homens.
- Vou verificar como Pêndula está se saindo. - Já começara a dar as costas
quando percebeu um movimento furtivo do homem branco e virou-se rapidamente. O
prisioneiro, aproveitando a dis-tração, conseguira abrir o cadeado de aço no
pulso e estava tentando atirar a pasta pela porta aberta.
Numa ação reflexa, Craig atirou-se para o lado, como um jogador de basquete
interceptando uma jogada, e conseguiu derrubá-la no assoalho, impedindo que
voasse porta afora.
- Isso deve conter coisas muito interessantes - observou calmamente ao levantar-
se. - Vigie-o bem, Sam, é cheio de truques.
Levando a pasta, Craig foi até a frente do aparelho, sentou-se na cadeira do co-
piloto, ao lado de Sally-Anne, e prendeu o saco de diamantes firmemente ao lado
do assento.
- Então, sabe mesmo fazer essa coisa voar, hein?
Ela sorriu-lhe, com os dentes muito brancos contrastando com a pele suja.
- Estou voltando para o depósito salino onde deixamos o Land-Rover.
- Bem pensado... Como está o combustível?
- Temos um tanque cheio e três quartos do outro, é mais do que o suficiente.
Craig colocou a pasta no colo e verificou a fechadura que era de segredo.
- Quanto falta para a fronteira? - perguntou.
- Estamos fazendo cento e setenta nós, faltam menos de duas horas... melhor do
que ir a pé, não?
- Pode crer! - Craig devolveu-lhe o sorriso.
Arrancou a fechadura com o canivete e abriu a pasta. Na parte de cima, continha
duas camisas limpas, algumas meias, uma garrafa de vodca pela metade, uma
carteira ordinária com quatro passaportes, um finlandês, um sueco, um alemão
oriental e outro russo, e passagem aéreas da Aeroflot, a companhia soviética.
- Que cavalheiro viajado! - exclamou Craig, destapando a vodca e tomando um
gole. - Brrr! É autêntica! - Passou a garrafa a Sally-Anne e levantou as
camisas. Embaixo delas havia três pastas, com títulos em alfabeto cirílico,
usado pelos russos, e os selos da foice e do martelo.
- Mas é russo, meu Deus! O homem é um bolchevique! Abriu a primeira, e seu
interesse cresceu.
- Está datilografada em inglês! - Leu a primeira página e ficou cada vez mais
absorvido na papelada. Nem mesmo levantou a cabeça quando Sally-Anne perguntou;
- O que diz aí?
Examinou a primeira pasta e, depois, as outras duas. Vinte e cinco minutos mais
tarde, olhou com uma expressão atónita e distante pelo vidro.
- Mal posso acreditar. - E balançou a cabeça. - Estavam tão seguros de si mesmos
que os datilografaram em inglês para uso de Peter Fungabera. Não houve nenhuma
tentativa de mascarar-se. Nem se deram ao trabalho de usar nomes em código.
- Do que se trata? - Sally-Anne olhou-o.
- É de estontear. - Tomou mais um gole da vodca e levantou-se. - Sam tem que
tomar conhecimento disso!
Voltou à parte de trás e dirigiu-se apressadamente para Tungata.
Sarah e ele estavam sentados à frente dos dois reféns. Tungata usara os cintos
de segurança de reserva para amarrá-los pelos tornozelos e pulsos. Peter
Fungabera parecia um pouco recuperado e ele e Tungata trocavam olhares ferozes,
discutindo com a acrimônia e a exaltação de inimigos mortais.
- Pare com isso! - Craig jogou-se na cadeira vizinha a Tungata. - Dê-me essa
Uzi. - E agora, leia isso aqui! - Colocou a pasta no colo de Tungata.
- Prazer em conhecê-lo, coronel Bukharin - disse Craig em tom amável. - Deve
estar satisfeito em não estar passando o inverno em Moscou, suponho? - Apontou-
lhe a Uzi diretamente para a barriga.
- Sou um membro do corpo diplomático da União Sovié...
- Sim, coronel, li seu cartão de visitas. Por outro lado, sou um fugitivo
desesperado capaz de lhe infligir sérios danos se não se calar. - Dirigiu-se,
então, a Fungabera. - Espero que esteja cuidando bem de King's Lynn, sem se
esquecer de limpar os pés antes de entrar e tudo mais.
- Escapou uma vez, sr. Mellow - disse Fungabera com voz macia. - Não costumo
cometer o mesmo erro duas vezes.
Apesar da arma nas mãos e do fato de que Fungabera estava atado como um bode a
ser oferecido em sacrifício, sentiu um arrepio de medo e não conseguiu sustentar
aquele olhar cheio de ódio, voltando-se para Tungata que examinava rapidamente
as três pastas e, à medida que lia, sua expressão passava do espanto para o
ultraje.
- Sabe o que é isso, Pupho?
- São planos para um golpe de Estado e uma revolução, escritos em inglês,
obviamente para Peter Fungabera.
- Está tudo planejado... tudo. Olhe isso - as listas de pessoas a serem
executadas... dão todos os nomes... e os que vão colaborar. Já têm inclusive os
comunicados a serem feitos pelo rádio e pela televisão no dia do golpe!
- Dê uma olhada na página vinte e cinco - sugeriu Craig.
Tungata procurou-a.
- É a meu respeito... - leu em voz alta. - "Deve ser mandado para uma clínica
psiquiátrica na Europa para uma lavagem cerebral, e transformado num traidor sem
vontade própria para liderar o povo matabele em escravidão perpétua..."
- Sim, Sam, você era a peça principal de toda a operação. Quando escapou de
Fungabera na caverna, e ele dinamitou a grande galeria, teve que admitir a
derrota. Olhe só para ele.
Mas Tungata não estava mais escutando. Atirou a pasta de volta a Craig e
inclinou-se, fixando Fungabera com olhos injetados e cheios de ódio.
- Você ia vender esta terra e condenar o povo a uma nova escravidão nas mãos de
um imperialismo perto do qual o regime de Smith parece benigno e altruístico em
comparação? Condenaria sua própria tribo, a minha e as outras... que loucura...
- A raiva estava deixando Tungata incoerente. - Um cão raivoso, enlouquecido
pelo poder.
Soltou um rugido de angústia, ódio e ultraje. De repente atirou-se em cima de
Fungabera e agarrou-o pelas cordas que o prendiam, desprendendo o cinto de
segurança e arrancando o gigantesco shona da cadeira. Com a força de um búfalo
ferido, carregou-o até a porta aberta da fuselagem.
- Cão danado! - vociferou e, antes que Craig pudesse fazer algo, empurrara
Fungabera para fora, deixando-o pendurado no ar.
Craig jogou a Uzi para Sarah e correu até lá. Tungata caíra de joelhos, devido
ao peso; agarrava-se com uma das mãos no batente e, com a outra, ainda sustinha
Fungabera pela corda passada no peito.
Fungabera balançava no espaço, impotente, com as mãos amarradas e os olhos fixos
nos de Tungata. A setecentos metros abaixo, jaziam as bravias colinas africanas,
com as cristas rochosas a descoberto.
- Espere, Sam! - Craig berrou, tentando fazer-se ouvir acima do ruído
ensurdecedor do motor.
- Morra, traidor assassino... - berrou Tungata.
Craig nunca vira antes um terror tão profundo como o estampado nos olhos negros
de Fungabera. A boca estava aberta e o vento soprava-lhe saliva pelo rosto, mas
não lhe saía um som da garganta.
- Espere, Sam, não o mate - gritou Craig. - É o único que pode inocentá-lo e a
nós também. Se o matar, nunca mais poderá viver no Zimbabué...
Tungata virou a cabeça para olhá-lo.
- A única chance de provarmos nossa inocência?
O brilho vermelho do ódio começou a desaparecer dos olhos, mas os músculos ainda
estavam saltados com o esforço de manter Fungabera pendurado no forte
deslocamento de ar.
- Ajude-me! - disse com voz rouca, e Craig pegou um cinto de segurança,
prendendo-o na cintura, deitou-se ao chão, passou os tornozelos pela base de um
assento e estendeu a mão para agarrar a corda de náilon. Com o esforço
combinado, conseguiram trazer Fungabera de volta ao helicóptero, de pernas tão
bambas que não conseguia ficar de pé.
Tungata atirou-o de volta para a cabine fazendo-o bater com a cabeça na parte de
trás, onde caiu, agarrado aos joelhos em posição fetal, esmagado pela derrota e
pela capitulação, gemendo baixinho e cobrindo o rosto.
Craig voltou à cabine do piloto meio cambaleante e deixou-se cair no assento
lateral.
- Que diabos está acontecendo? - perguntou Sally-Anne.
- Nada de mais. Apenas consegui impedir que Sam matasse Fungabera.
- E por que se deu ao trabalho de fazer isso? - Sally-Anne levantou a voz. -
Adoraria botar as mãos naquele porco.
- Querida, será que consegue uma ligação pelo rádio para a embaixada americana
em Harare?
Ela refletiu por instantes.
- Não desse aparelho.
- Dê-lhes o registro do Cessna, aposto que ainda não anunciaram o
desaparecimento.
- Vou ter de fazer um contato com Joanesburgo, é a única estação com potência
bastante para isso.
- Não me interessa como... Dê um jeito de entrar em contato com Morgan Oxford.
O rádio de Joanesburgo respondeu prontamente ao chamado de Sally-Anne e aceitou
sem problemas o sinal de chamada.
- Qual é sua posição, Kilo Yankee Alpha?
- Botsuana do Norte - Sally-Anne antecipou em uma hora o tempo de vôo. - Em rota
de Francistown para Maun.
- Qual é o número com que deseja falar em Harare?
- Chamada pessoal para o adido cultural Morgan Oxford, na Embaixada dos Estados
Unidos. Desculpe, mas não sei o número.
- Aguarde um momento. - E, em menos de um minuto, Morgan Oxford respondeu pelo
microfone cheio de estática.
- Aqui é Oxford. Quem está falando?
Sally-Anne passou o microfone para Craig que apertou o botão de transmissão.
- Morgan, é Craig, Craig Mellow.
- Mas que merda! - A voz de Morgan ficou estridente. - Onde diabos você anda?
Isso aqui virou um inferno. Onde está Sally-Anne?
- Morgan, ouça. O que vou dizer é da maior importância. Que tal interrogar um
legítimo coronel da inteligência russa, e examinar os planos de agressão russa
para a desestabilização do sul do continente africano?
Por muitos segundos, ouvia-se apenas o ruído da estática até que Morgan disse:
- Aguarde dez segundos!
A espera pareceu muito maior até ouvirem novamente a voz.
- Não diga mais nada, dê-me apenas um ponto de encontro.
- Anote as coordenadas... - Craig transmitiu-lhe as anotações escritas por
Sally-Anne. - Há um campo de pouso de emergência lá. Vou fazer um sinal com
fogueiras. Em quanto tempo pode chegar?
- Espere um pouco! - Daquela vez foi mais rápido. - Amanhã ao amanhecer.
- Entendido. Estaremos à espera. Câmbio e desligo. Tudo arrumado - disse a
Sally-Anne, entregando-lhe o microfone.
- Vamos cruzar a fronteira em quarenta e três minutos - ela respondeu. - Essa
lama toda fica muito bem em você. Estou começando a achar até que é um
melhoramento.
- E você, belezinha, merecia ser capa da Vogue! Ela tirou o cabelo do rosto e
mostrou-lhe a língua.
Atravessaram a fronteira do Zimbabué com a Botsuana do Norte e dezessete minutos
depois avistaram o Land-Rover alugado exatamente no mesmo lugar onde o haviam
deixado à beira do grande depósito salino.
- Meu Deus, os amigos de Sarah ainda estão lá... isso é que é fidelidade. -
Craig avistara as duas figuras minúsculas ao lado do carro. - É melhor avisá-los
senão vão pensar que é um aparelho do governo e começar a atirar.
Sarah falou através do megafone especial do helicóptero aos dois matabele para
tranquilizá-los, e Craig viu-os baixar os fuzis enquanto o Super Frelon
aterrissava. Viu também os sorrisos beatíficos dos dois jovens.
Jonas matara um gamo de manhã e foram banqueteados com caça assada e bolos de
milho à noite. Mais tarde, tiraram a sorte para os turnos de vigia aos
prisioneiros.
O amanhecer era ainda impreciso quando ouviram o ronco de um avião que se
aproximava, e Craig foi até o depósito no Land-Rover para acender os sinais. Um
enorme avião cargueiro Lockheed surgiu, vindo do Sul, com o emblema da Força
Aérea Americana, e Sally-Anne reconheceu-o.
- É o aparelho da NASA sediado em Joanesburgo para o programa de transporte.
- Estão realmente nos levando a sério - murmurou Craig, enquanto o avião
aterrissava.
- Observe como tem uma capacidade incrível para aterrissar e levantar vôo em um
espaço pequeno - disse-lhe Sally-Anne.
O gigantesco aparelho percorreu apenas a mesma distância que havia sido
necessária ao Cessna. O nariz do avião abriu-se como um bico de pelicano e cinco
homens desceram a rampa, liderados por Morgan Oxford.
- Parecem cinco sardinhas saindo da lata - gracejou Craig, enquanto se
encaminhavam para eles. Vestiam todos ternos tropicais, camisas sociais brancas,
gravatas e tinham um físico atlético.
- Sally-Anne, Craig - cumprimentou Morgan Oxford, trocando rápidos apertos de
mão, e virando-se para saudar Tungata. - Claro que o conheço, senhor ministro,
esses são meus colegas. - Não os apresentou e foi direto ao assunto. - São essas
as pessoas?
Os dois jovens matabele, com armas na mão, trouxeram os prisioneiros.
- Deus do céu! - exclamou Morgan Oxford. - É o general Fungabera... Craig, ficou
louco?
- Leia isto - e Craig estendeu-lhe a pasta. - E, depois, faça algum comentário.
- Esperem aqui, por favor.
Jonas e Aaron conduziram os dois prisioneiros em direção ao avião e os
americanos se aproximaram para recebê-los.
Peter Fungabera ainda estava com os pulsos amarrados. Parecia ter encolhido de
estatura e já não era mais uma figura impressionante e afável. O manto da
derrota pesava-lhe sobre os ombros. A pele estava acinzentada e não levantou os
olhos para Tungata Zebiwe.
Foi Tungata quem o agarrou pelo queixo, obrigando-o a levantar a cabeça para
encará-lo. Fitou-lhe os olhos por longo tempo e empurrou-o com desprezo,
fazendo-o cambalear e teria caído se um dos americanos não o segurasse.
- No fundo de quase todo tirano e fanfarrão, existe um covarde - disse Tungata
com voz grave. - Fez bem ao me impedir de matá-lo, Pupho, uma queda de avião é
boa demais para um tipo como esse. Vai enfrentar agora um destino mais justo.
Levem-no para longe de meus olhos, ele me dá náuseas.
Peter Fungabera e o russo foram levados para dentro do avião, e Craig e os
outros ficaram à espera. Foi uma longa demora. Sentaram-se à sombra do Land-
Rover e mal conversaram, ficando silenciosos vez por outra quando ouviam a
estática do rádio no Lockheed.
- Estão falando com Washington via satélite - arriscou Craig. Já eram mais de
dez horas quando Morgan e um dos colegas desceram a rampa.
- Este é o coronel Smith - disse-lhes, e o tom era suficiente para esclarecê-los
de que não deviam levar o nome a sério. - Examinamos todos os itens e
concluímos, pelo menos por enquanto, que são genuínos.
- É muita generosidade de sua parte - ironizou Craig.
- Ministro Tungata Zebiwe, ficaríamos muito gratos se nos cedesse um pouco de
seu precioso tempo. Há pessoas em Washington que estão ansiosas para conversar
com o senhor. Asseguro-lhe que será para nosso benefício mútuo.
- Gostaria que essa senhora me acompanhasse - respondeu Tungata, indicando
Sarah.
- Sim, naturalmente. - Morgan voltou-se para Craig e Sally- Anne. - No caso de
vocês, não é um convite, é uma ordem... virão conosco também.
- E o que vai acontecer com o helicóptero e o Land-Rover? - perguntou Craig.
- Não se preocupe com eles. Serão devolvidos aos legítimos donos.
Três semanas mais tarde, no edifício das Nações Unidas, foi entregue uma série
de documentos ao chefe da delegação do Zimbabué, contendo trechos extraídos das
pastas e transcrições do interrogatório do general Fungabera por pessoas não-
nomeadas. Os documentos foram imediatamente enviados a Harare e, como resultado
direto, o governo de Zimbabué fez um pedido urgente para a repatriação do
general. Dois inspetores da Divisão Especial da polícia de Zimbabué voaram até
Nova York para escoltá-lo de volta.
Quando o vôo da Pam Am aterrissou em Harare, o general Fungabera desceu a escada
da primeira classe algemado a um dos policiais. Havia uma caminhonete fechada
aguardando na pista e nenhuma cobertura pela imprensa.
Foi levado diretamente para a prisão central de Harare, onde morreu dezesseis
dias mais tarde em uma das celas de interrogatório. Quando o corpo foi
discretamente retirado pela porta traseira, o rosto estava irreconhecível.
Naquele mesmo dia, pouco depois da meia-noite, uma Mercedes preta ministerial
saiu da estrada a toda velocidade, num trecho deserto fora da cidade e explodiu
em chamas. Dentro, havia um único passageiro. O corpo carbonizado do general
Fungabera foi identificado pela ficha dentária e, cinco dias mais tarde,
enterrado com honras de Estado no cemitério dos patriotas da revolta Chimurenga,
"Terra dos Heróis", nas colinas que circundavam Harare.
Às dez horas da manhã do Dia de Natal, o coronel Bukharin foi deixado por uma
escolta da polícia militar americana na casa de guarda da fronteira de Berlim
Oriental e cruzou a pé as poucas centenas de metros que o separavam do outro
lado.
Usava um sobretudo militar americano por cima das roupas de safari e uma boina
de marinheiro cobrindo a cabeça raspada.
A meio caminho, cruzou com um homem de meia-idade metido em um terno barato que
vinha da direção oposta. Parecia ter sido um homem corpulento, pois a pele do
rosto pendia-lhe em pregas e tinha o tom acinzentado de um longo cativeiro.
Entreolharam-se sem curiosidade.
Uma vida por outra, pensou Bukharin, e sentiu-se subitamente muito cansado.
Caminhava finalmente com o andar de um velho sobre o asfalto gelado.
Havia um sedan preto à sua espera além da fronteira, com dois homens sentados no
banco traseiro, e um deles saltou quando Bukharin aproximou-se. Vestia uma
comprida capa de chuva e um chapéu de abas largas no estilo favorito da KGB.
- Bukharin? - perguntou em tom neutro, mas o olhar era frio e perscrutador.
Diante do aceno de Bukharin, saudou-o com um cumprimento seco de cabeça,
fazendo-o sentar no banco de trás, e entrou em seguida batendo a porta. O
interior do carro estava muito quente e recendia a alho, a vodca consumida na
véspera e a meias sujas.
O carro deu partida e Bukharin recostou-se, fechando os olhos. Ia ser ruim,
pensou, talvez pior do que imaginara.
Henry Pickering era o anfitrião do almoço no salão particular do Banco Mundial
que dava para o Central Park.
Sarah e Sally-Anne não se viam há cinco meses e trocaram abraços afetuosos,
retirando-se para um canto do salão, onde tentaram contar-se as novidades o mais
rápido possível, ignorando o resto dos presentes.
Tungata e Craig comportaram-se de maneira mais moderada.
- Sinto-me tão culpado, Pupho... Cinco meses. É muito tempo.
- Sei como esteve ocupado - desculpou-o Craig. - E eu também andei numa roda-
viva. A última vez que o vi foi em Washington...
- Quase um mês de conversações com o Departamento de Estado Americano, e,
depois, aqui em Nova York, com o embaixador de Zimbabué e o Banco Mundial. Há
tanta coisa para contar que nem sei por onde começo.
- Muito bem, então - sugeriu Henry Pickering -, conte-lhe primeiro sobre a
dispensa que conseguiu do governo de Zimbabué.
- É um bom começo - concordou Tungata. - Antes de mais nada, minha acusação e
sentença por caça e tráfico ilegais foram anuladas...
- Mas Sam, isso era o mínimo que podiam fazer...
- Isso é só o começo. - Tungata sorriu e pegou-o pelo braço. - A confissão que
Fungabera obrigou-o a assinar foi anulada também por ter sido obtida sob coação.
A ordem que o declarava inimigo do Estado e do povo foi revogada, e a venda das
ações da Rholands a Peter Fungabera, declarada nula. King's Lynn e Águas do
Zambeze revertem para você.
Craig olhava-o, emudecido, enquanto continuava:
- O primeiro-ministro aceitou o fato de que todo e qualquer ato de violência que
cometemos foi em defesa própria, desde a morte dos soldados da Terceira Brigada
que o perseguiam na fronteira da Botsuana ao roubo do helicóptero Super Frelon,
concedendo-nos um perdão irrestrito...
Craig limitou-se a abanar a cabeça.
- A Terceira Brigada retirou-se de Matabeleland, foi desativada e integrada no
exército regular, acabaram com a matança de meu povo e permitiram que
observadores independentes fossem para as áreas tribais matabele para "controlar
a paz".
- São as melhores notícias possíveis, Sam.
- Ainda há mais... muito mais. - retrucou Tungata. - Devolveram minha cidadania
e passaporte de Zimbabué. Posso voltar para casa, com a promessa de que não
haverá restrições às minhas atividades políticas. O governo aceita levar em
consideração um referendo para instituir uma forma de autonomia federal para o
povo matabele, em troca do quê deverei usar toda minha influência para convencer
os dissidentes em armas a abandonar a selva e entregar as armas numa anistia
geral.
- E tudo pelo que você tem trabalhado... Parabéns, Sam, de todo coração.
- Mas só consegui com "sua ajuda. - Tungata virou-se para Henry Pickering. -
Posso contar-lhe sobre o Fogo de Lobengula?
- Espere - disse Henry Pickering. - Vamos começar o almoço primeiro. O salão de
jantar era apainelado em carvalho claro, uma moldura perfeita para as cinco
telas a óleo de Remington sobre o velho Oeste que decoravam três das paredes. A
quarta era uma enorme janela envidraçada, dando para a cidade e para o Central
Park, com as cortinas abertas.
À cabeceira, Henry sorriu para Craig.
- Achei melhor passar de todos os limites - e mostrou-lhe o rótulo do vinho.
- Puxa! Um 61!
- Bem, não é todo dia que se tem o prazer de receber o atual autor best-seller
número um...
- É mesmo, não é maravilhoso? - interviu Sally-Anne. - Craig foi o primeiro da
lista do New York Times logo na primeira semana de lançamento!
- E sobre o negócio com a televisão? - perguntou Tungata. - Ainda não está
assinado - objetou Craig.
- Mas a informação que tenho é de que logo o será - disse Henry, enquanto enchia
as taças. - Senhoras e senhores, um brinde: ao último livro de Craig Mellow e
que fique por muito tempo no topo!
Beberam, alegres e festivos, e Craig protestou, com o copo intocado:
- Ei! Façam um brinde do qual eu possa participar também.
- Eis aí, então! - Henry levantou novamente o copo. - Ao Fogo de Lobengula!
Agora, pode contar-lhe.
- Se essas duas senhoras pararem de tagarelar por um momento...
- Isso não é justo! - protestou Sally-Anne. - Nunca tagarelamos, só conversamos
a sério.
Tungata sorriu-lhe ao continuar:
- Como sabem, Henry providenciou para que os diamantes de Lobengula ficassem em
lugar seguro e fossem avaliados. O pessoal da Harry Winston's os examinou e
chegou a uma estimativa...
- Quanto? - exclamou Sally-Anne.
- Como sabem, o mercado de diamantes está em séria depressão no momento...
pedras que eram vendidas por setenta mil dólares há dois anos atrás estão
cotadas apenas em vinte mil...
- Vamos, Sam, não nos mate de curiosidade!
- Está bem, a Winston's avaliou a coleção em seiscentos milhões de dólares.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo e Tungata levou algum tempo para
recuperar a audiência.
- Como concordamos desde o início, os diamantes serão colocados num fundo e vou
pedir a Craig que seja um dos curadores.
- Aceito.
- Entretanto, quatorze deles já foram vendidos. Autorizei a transação e a venda
rendeu cinco milhões de dólares. Toda essa quantia foi entregue ao Banco Mundial
em pagamento total do empréstimo feito por Craig. - Tungata tirou um envelope do
bolso e estendeu-o. - Aqui está o recibo, Pupho, sua parte no Fogo de Lobengula.
Está completamente livre de qualquer dívida. King's Lynn e Águas do Zambeze são
seus.
Craig girava, atónito, o envelope entre os dedos, olhando para Tungata, que
inclinou-se para ele, de fisionomia séria.
- Em compensação, há uma coisa que gostaria de lhe pedir.
- Qualquer coisa - respondeu Craig.
- Prometa que vai voltar para a África. Precisamos de homens como você para
afastar essa nova era sombria que ameaça a terra que amamos.
Craig estendeu a mão sobre a mesa e pegou a de Sally-Anne.
- Diga-lhe você, querida.
- Sim, Sam, vamos voltar para casa, para junto de vocês.
Sally-Anne e Craig subiam as colinas de King's Lynn no velho Land-Rover. O
crespúsculo transformara as pastagens em um manto dourado e as árvores ao alto
teciam uma renda delicada contra o azul sereno do céu africano de verão.
Os empregados de King's Lynn os aguardavam à sombra dos jacarandás, no gramado.
Quando Craig abraçou Shadrach, a manga vazia do velho batia-lhe sobre o peito
magro.
- Não se preocupe, Nkosi, posso trabalhar muito melhor com um braço só do que
esses garotinhos com os dois.
- Vou lhe propor uma troca - sugeriu Craig em voz alta, para que todos ouvissem.
- Empresto-lhe um braço se me emprestar uma perna. - Shadrach riu até lhe
escorrerem lágrimas dos olhos e a nova e mais recente esposa teve que levá-lo
embora.
Joseph esperava-os na grande varanda, longe das pessoas comuns, resplandecente
em uma kanza branca como neve e o grande chapéu de cozinheiro na cabeça.
- Eu a saúdo, Nkosikazi - disse a Sally-Anne com solenidade quando a viu subir
os degraus, mas não podia ocultar o brilho de satisfação nos olhos.
- Eu também o saúdo, Joseph. E gostaria de lhe dizer que decidi convidar
duzentas pessoas para o casamento - respondeu-lhe em sindebele fluente, fazendo
com que Joseph botasse as mãos na boca de espanto; era a primeira vez que o via
perder a pose.
- Nossa! - exclamou, e virou-se para os subordinados. - Temos agora uma grande
senhora em Kingi Lingi que entende toda essa tagarelice de vocês - disse com
severidade. - Portanto, ai daquele que mentir, enganar ou roubar!
Craig e Sally-Anne ficaram de mãos dadas na varanda, assistindo ao povo de
King's Lynn entoar o cântico de boas-vindas ao viajante depois de uma longa e
perigosa jornada e, ao terminar, ele lhe disse:
- Seja bem-vinda, minha querida.
Enquanto as mulheres dançavam e cantavam com os filhos amarrados às costas, com
as cabecinhas negras saltitando ritmadamente, e os homens soltavam gritos de
alegria, Craig beijou-a na boca.

Fim.

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