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Em Nova York, Craig Mellow, um autor de best sellers, passa por uma crise de
criatividade. Mas, convocado para executar uma missão perigosa no Zimbábue, ele
não hesita ante a chance de rever seu país natal, viver uma aventura excitante
e, quem sabe, recuperar sua inspiração.
Disfarçada pelo pretexto de escrever um livro sobre a África, em colaboração
com uma bela fotógrafa, essa missão consiste em investigar um contrabando de
marfim, parte de um plano soviético para derrubar o governo do Zimbábue.
Assim, Craig se envolve num conflito entre os seguidores do poderoso Shona e
os partidários do marginalizado Matabele. E,por trás dessa sangrenta guerra
tribal, está um fanático capaz de condenar seu povo à escravidão e conduzir o
país ao caos.
A Noite do Leopardo, uma superlativa trama de espionagem e ação, nos
incríveis cenários da África Central.
Wilbur Smith nasceu em 9 de janeiro de 1933, em Zâmbia, e passou toda sua vida
na África. Daí a precisão com que descreve o cenário de seus romances, todos
ambientados nesse continente.
Apreciador de safáris e de numismática, ele vive atualmente na Cidade do
Cabo, na África do Sul. É autor de vinte livros que o transformaram num nome
admirado internacionalmente pelos amantes de tramas de espionagem e suspense.
Ficha Técnica:
A Noite do Leopardo.
Título original: The Leopard Hunts in Darkness.
Autor: Wilbur Smith.
EDITORA Best Seller.
Gênero: Suspense.
ERA UMA TERRA maravilhosa, ainda selvagem e intocada: sem cercas, terras
cultivadas ou construções. Protegida do afluxo de camponeses, agricultores e
criadores de gado pelo cinturão de moscas tsé-tsés que ia do vale do Zambeze até
as florestas ao longo das escarpas.
De um lado, limitava-se com a Reserva da Caça de Chizarira e, do outro, com a
Reserva Florestal de Mzolo, ambas as áreas eram verdadeiros santuários de vida
silvestre. Durante a depressão dos anos 30, o velho Bawu escolhera a terra com
cuidado. Quatro milhões de metros quadrados por duas mil e quinhentas libras.
- Claro que nunca será uma terra adequada para gado - dissera Craig uma vez,
quando acampavam sob as figueiras selvagens à beira de uma piscina natural no
rio Chizarira. - O capim é ruim, e as tsé-tsés matariam qualquer animal que
tentássemos criar, mas, por esta razão, será sempre uma parte preservada da
velha África.
O velho a usara como campo de caça e repouso. Nunca colocara arame farpado ou
construíra sequer uma cabana no terreno, preferindo dormir ao ar livre.
Bawu caçara ali muito seletivamente. Elefante, leão, rinoceronte e búfalo.
Apenas a caça perigosa, mas a protegera ciumentamente de outros caçadores, até
mesmo dos próprios filhos e netos.
- É o meu paraíso particular - dissera a Craig -, e sou egoísta o bastante
para mantê-lo assim.
Craig duvidou que a trilha que levava às piscinas naturais tivesse sido usada
desde que ele e o velho haviam estado lá há dez anos. A vegetação tomara conta
dela completamente, e os elefantes haviam derrubado árvores moparti que formavam
bloqueios em alguns pontos.
- Dane-se, sr. Avis - disse Craig, e seguiu por ela com o Volks evitando as
barreiras das árvores.
O veículo com tração nas rodas dianteiras era leve e ágil o bastante para
enfrentar até o mais difícil leito de rio seco, apesar de ter tido que forrar o
fundo arenoso com ramos para vencer a areia final. Perdeu a trilha uma meia
dúzia de vezes, e tornou a achá-la; por fim abandonou o carro e fez o restante
do percurso a pé. Alcançou as piscinas ao entardecer.
Enrolou-se no cobertor que surrupiara do motel, e dormiu sem sonhos e sem
agitação, para despertar com a magia rosada de um amanhecer africano. Comeu
feijão frio e fez café, deixando então as coisas embrulhadas e o cobertor
debaixo das figueiras silvestres. Andou pela margem do rio.
A pé, só poderia cobrir uma diminuta porção dos quatro milhões de metros
quadrados, mas o rio Chizarira era o coração, a artéria principal. O que
encontrasse ali permitiria julgar que mudanças houvera desde a última visita.
Imediatamente, percebeu que ainda havia grande quantidade das espécies
silvestres mais comuns na floresta; os grandes e fantasmagóricos kudu de chifres
espiralados fugiam aos pulos, balançando as caudas fofas e brancas, e pequenos e
graciosos impala deslizavam como vultos por entre as árvores. Em seguida,
encontrou rastros de animais mais raros. Primeiro, as marcas recentes das patas
de um leopardo na argila à beira do rio, onde o felino bebera durante a noite;
depois, o rastro alongado em feitio de lágrimas e os dejetos semelhantes a bagos
de uvas do magnífico antílope negro.
A guisa de almoço, comeu pedaços de salsicha e chupou as ácidas e cremosas
vagens de baobá. Prosseguiu as andanças e chegou a uma extensa mata de ébano
silvestre, enveredou por uma das tortuosas trilhas. Mal havia dado cem passos
quando divisou a pequena clareira em meio ao matagal cerrado e teve um momento
de júbilo.
A clareira fedia ainda mais forte que um curral. Reconheceu-a como um
monturo, local onde os animais voltavam habitualmente para defecar. Pelo aspecto
das fezes, cascas e folhas de árvore, e o modo como estavam esparramadas, soube
imediatamente que era um monturo de rinocerontes negros, uma das espécies mais
raras e mais ameaçadas de extinção.
Diferente do rinoceronte branco, um animal letárgico e plácido, o negro é,
por natureza, rabugento, estúpido e irritável. Ataca qualquer coisa que o
perturbe, inclusive homens, cavalos, caminhões e até mesmo trens.
Antes da guerra, um rinoceronte que vivera nas escarpas do vale do Zambeze,
onde tanto a rodovia como a estrada de ferro começavam a descer em direção às
cataratas de Victoria, tinha um escore de dezoito caminhões e ônibus atacados
num local da estrada onde eram obrigados a passar em marcha lenta. Agredia-os
frontalmente, metendo o chifre no radiador e provocando um jato de vapor.
Depois, satisfeito, trotava de volta ao matagal, guinchando, triunfante.
Um dia, resolveu atacar o expresso de Victoria, e irrompeu pelos trilhos como
um cavaleiro medieval em um torneio. A locomotiva estava fazendo uns trinta
quilômetros por hora e o rinoceronte, que pesava duas toneladas, também. O
encontro foi monumental. O expresso parou, com as rodas girando em falso, embora
ileso, mas o rinoceronte chegara ao fim de sua carreira como demolidor de
radiadores.
Craig calculou, satisfeito, que o último depósito de esterco fora feito nas
últimas doze horas, e os rastros indicavam um grupo familiar, macho, fêmea e o
filhote. Sorrindo, lembrou-se do velho mito matabele que explicava o hábito do
rinoceronte espalhar as fezes e o medo que tinha do porco-espinho - o único
animal na mata do qual foge em pânico.
Contavam que, certa vez, o rinoceronte pediu uma farpa emprestada ao porco-
espinho para costurar um rasgão no couro espesso e prometeu devolvê-la assim que
terminasse. Depois de consertá-lo com cipó, colocou a farpa entre os dentes, e
inadvertidamente a engoliu. Está ainda à procura dela e foge para evitar as
recriminações do porco-espinho.
A população mundial de rinocerontes pretos não excedia o total de alguns
milhares, e tê-los ainda sobrevivendo ali o alegrava e tornava muito mais
viáveis os planos que traçara.
Continuou a seguir os rastros na esperança de vê-los, mas, ao avançar por
trás da cerrada mata que flanqueava a trilha, ouviu gritos agudos e uma nuvem de
pássaros marrons apareceu sobre as árvores. Essas aves ruidosas viviam em
relação simbiótica com os animais maiores, alimentando-se exclusivamente dos
carrapatos e mutucas que os infestavam, e, em recompensa, agiam como sentinelas
para avisá-los do perigo.
Logo após o alarma, ouviu um ensurdecedor resfolegar como o de uma
locomotiva; com um estrondo, a mata abriu-se e Craig viu quando o enorme animal
irrompeu na trilha a apenas alguns metros de distância. Ainda bufando de
irritação, espiou por cima dos chifres longos e lustrosos à procura do que
atacar.
Sabendo que os olhos míopes do animal não podiam distinguir um homem imóvel a
certa distância e que o vento estava a seu favor ficou imóvel, mas pronto a
atirar-se para o lado caso viesse para cima dele. O rinoceronte balançava o
corpo de um lado para o outro com uma agilidade surpreendente, ainda irado. Em
sua imaginação, os chifres pareciam a cada segundo maiores e mais afiados.
Cautelosamente, pôs a mão no bolso para pegar a faca, mas o animal percebeu o
movimento, e trotou um pouco mais à frente, colocando-o dentro do alcance de
visão e em sério perigo.
Num lampejo, atirou a faca, que passou sobre a cabeça do animal em direção a
uma árvore, causando estrépito ao atingir um galho.
No mesmo instante, o rinoceronte girou e com a enorme força arremeteu carga
furiosa em direção ao som. A mata fendeu-se como diante de um tanque, o ruído
diminuiu à medida que o animal subia correndo a colina e ultrapassava a crista à
procura de um adversário. Craig sentou-se pesadamente na trilha, às gargalhadas,
onde percebiam-se traços de uma leve histeria.
Em pouco tempo, encontrou três poças de água estagnada e malcheirosa que
esses estranhos animais preferem à água corrente e clara do rio, e decidiu o
local dos esconderijos de observação; deles os turistas poderiam vê-los de
perto. Colocaria também pedaços de sal ao lado das poças para atraí-los. Assim
seriam facilmente admirados e fotografados.
Sentado em um tronco, passou em revista os planos. Dali, em uma hora de vôo,
chegava-se às cataratas de Victoria, uma das sete maravilhas naturais do mundo,
que já atraía milhares de turistas todo mês. Um pequeno desvio não aumentaria de
forma significativa a passagem aérea. Poucas reservas ou acampamentos poderiam
oferecer animais tão raros como aqueles e as matas intocadas que ladeavam
Chizarira assegurariam uma fonte permanente de vida silvestre interessante.
O que tinha em mente era montar um acampamento tipo "caviar e champanhe", na
mesma linha das propriedades privadas em torno do Parque Nacional Kruger, na
África do Sul. Construiria pequenos alojamentos isolados entre si para dar aos
ocupantes a ilusão de terem a selva inteira só para eles. Providenciaria guias
carismáticos e afáveis, que levariam os turistas de Land-Rover ou a pé para ver
de perto animais raros e potencialmente perigosos, tornando isso uma aventura; e
acomodações luxuosas quando retornassem da expedição: ar-condicionado, comida e
vinhos finos, jovens e bonitas recepcionistas, filmes e conferências sobre a
natureza para instruí-los e entretê-los. E cobraria uma verdadeira fortuna por
tudo isso, visando a camada mais alta do comércio turístico.
Craig voltou capengando ao acampamento rudimentar debaixo das figueiras
bravas logo depois do pôr-do-sol, o rosto e os braços vermelhos e queimados, o
pescoço inchado e coçando com as mordidas de tsé-tsé, e o coto da perna irritado
e dolorido pelo exercício pouco costumeiro. Estava cansado demais para comer.
Soltou a perna mecânica, tomou um gole de uísque do cantil de plástico, enrolou-
se no cobertor e adormeceu quase que instantaneamente. Acordou durante a noite,
e, enquanto urinava, ouviu com prazer os rugidos distantes de um bando de leões,
e voltou para o cobertor.
Foi acordado pelo arrulhar dos pombos nos galhos das figueiras, e descobriu
que estava faminto e tão feliz como não se sentia há anos.
Depois de comer, foi pulando até a beira d'água, levando um número do
Farmer's Weekly, a bíblia do fazendeiro africano. Sentou-se no raso, estudando o
preço do gado na região, a agradável aspereza da areia branca como açúcar e a
água fria causando alívio no coto ainda dolorido.
Depois de calcular as cifras, seus planos ambiciosos foram rapidamente
moderados, compreendeu quanto custaria reaparelhar King's Lynn e Queen's Lynn
com gado de raça. O consórcio vendera a manada por um milhão e meio e os preços
haviam subido desde então.
Tinha de começar com reprodutores e matrizes de qualidade, e construir
lentamente o pedigree. Mesmo assim, custaria um bocado de dinheiro, os ranchos
tinham que ser reconstruídos e equipados e o empreendimento de um acampamento de
turistas ali, em Chizarira, custaria também um bocado. Teria que tirar as
famílias dos posseiros e as cabras de suas pastagens. A única maneira de fazer
isso era oferecer-lhes dinheiro. O velho avô Bawu sempre lhe dizia, "calcule
quanto acha que vai custar e, depois, dobre a quantia. Assim, conseguirá chegar
perto".
Craig atirou longe a revista e deitou-se, só com a cabeça fora d'agua,
fazendo cálculos.
Vivia frugalmente a bordo do iate, à diferença de outros autores subitamente
bem-sucedidos. O livro estivera nas listas de best-sellers de ambos os lados do
Atlântico durante um ano; fora a escolha principal de três clubes-do-livro,
traduzido para diversos idiomas, inclusive o hindi e condensado para o Reader's
Digest-, transformara-se em uma série para a tevê. Os lucros foram ótimos, mas o
imposto de renda ficou com uma quantia substancial deles.
Com o que lhe restara, passou a especular com ouro e prata, fizera três boas
aplicações na Bolsa e, finalmente, transferira a maior parte dos ganhos para
francos suíços no momento oportuno. Além disso, podia vender o iate. Há um mês,
tivera uma oferta de cento e cinqüenta mil dólares pelo Bawu, mas detestaria ter
de perdê-lo. Sem contar com isso, podia tentar uma facada em Ashe Levy para
conseguir um bom adiantamento sobre o romance por fazer e vender logo a alma.
Chegou ao final dos cálculos e decidiu que, se usasse de todos os recursos e
possibilidades de crédito, poderia levantar um milhão e meio, o que significava
que ainda lhe faltaria outro milhão e meio.
Henry Pickering, meu banqueiro favorito, prepare-se para uma surpresa, riu,
ao pensar em como planejava quebrar a primeira e mais importante regra do
investidor prudente e pôr todos os ovos em um só cesto. Caro Henry, você foi
sorteado por nosso computador para ser o felizardo escolhido para um empréstimo
de um milhão e meio a um escriba perneta. Concluiu que até ter uma resposta do
consórcio através de Jock Daniels não deveria preocupar-se; passou a tópicos
mais amenos.
Levou as mãos em concha aos lábios e tomou um gole da água fresca e clara. O
Chizarira era um afluente menor do grande Zambeze, portanto, estava bebendo de
suas águas novamente, como dissera a Henry Pickering que devia fazer. Chazarira
era um nome muito complicado para o turista pronunciar e, mais ainda, para
lembrar. Precisava de um nome para seu pequeno paraíso africano.
- Águas do Zambeze! - exclamou. - Vou chamá-lo de Águas do Zambeze.
Levou um susto ao ouvir uma voz muito perto dizer claramente em matabele:
- Deve ser um maluco - a voz era profunda e melodiosa.
- Primeiro, vem para cá sozinho e desarmado; depois, fica sentado no meio dos
crocodilos e fala com as árvores!
Craig girou o torso e deparou com três homens que haviam saído
silenciosamente da floresta e estavam agora na margem, a pouca distância,
observando-o.
Todos os três vestiam brim desbotado, o uniforme dos guerrilheiros, e as
armas que carregavam com uma casualidade familiar eram fuzis AK 47 com a
característica câmara de munição curva e o cabo laminado.
Brim, AK 47 e matabele, não havia dúvida sobre quem eram. As tropas regulares
do Zimbábue usavam atualmente uniformes de selva ou túnicas, a maioria armamento
da OTAN e falava a língua shona. Aqueles eram membros do disperso Exército
Revolucionário do Povo de Zimbábue. Agora eram rebeldes políticos, que não se
sujeitavam a nenhuma lei, nem a qualquer autoridade superior; homens
transformados por uma longa guerrilha em seres duros e desapiedados, com a morte
estampada nas mãos e nos olhos. Apesar de ter sido advertido, e, na verdade,
estivesse quase certo de que os encontraria, o choque, mesmo assim, deixou-o
nauseado e de boca seca.
- Não temos de levá-lo - disse o mais jovem. - Podemos matá-lo aqui mesmo e
enterrá-lo secretamente. Isso é a mesma coisa que ter um refém - continuou o
rapaz, que Craig calculou não ter nem vinte e cinco anos e que provavelmente já
matara pelo menos um homem para cada ano de vida.
- Os seis reféns que fizemos na estrada das cataratas de Victoria nos deram
problemas durante semanas, e, afinal, tivemos de matá-los - concordou o segundo
guerrilheiro e ambos olharam para o terceiro homem.
Era apenas um pouco mais velho que eles, mas sem dúvida o líder. Uma cicatriz
fina ia do canto da boca e cruzava o rosto até a têmpora, repuxando a boca num
sorriso sardónico e torto.
Craig lembrou-se do incidente de que falavam. Guerrilheiros haviam emboscado
o ônibus de turistas na estrada principal para Victoria e seqüestrado seis
homens canadenses, americanos e um inglês, e os levado para a selva como reféns
para a libertação de presos políticos. Apesar das buscas intensivas da polícia e
das unidades regulares do exército, nenhum deles fora encontrado.
O líder com a cicatriz fitou Craig por algum tempo com os olhos escuros e
mortiços e ajustou com o polegar o disparador do rifle na posição automática.
- Um verdadeiro matabele não mata um irmão de sangue da tribo. - Dizer isso
custou a Craig um enorme esforço para manter a voz firme, sem qualquer vestígio
de terror, e o sindebele era tão fluente e correto que o líder guerrilheiro
olhou-o espantado.
- Uau! Você fala como um homem. E quem é esse irmão de sangue de quem você se
gaba? - disse, com uma expressão surpresa.
- O camarada ministro Tungata Zebiwe - respondeu, e viu no mesmo instante a
expressão nos olhos do homem mudar e a súbita confusão dos outros.
Conseguira colocá-los fora de guarda e adiara a execução por um momento, mas
o rifle do líder ainda estava apontado para ele com o gatilho em automático
mirando-lhe a barriga.
Foi o mais jovem quem rompeu o silêncio, falando alto para encobrir a
insegurança:
- É fácil para um babuíno gritar o nome do leão de juba negra do alto da
colina e reclamar a sua proteção, mas será que o leão reconhece o babuíno? Eu
digo que é melhor matá-lo e acabar com isso.
- Mas ele fala como um irmão - retrucou o líder - e o camarada Tungata é um
homem duro...
Craig compreendeu que sua vida ainda corria um tremendo risco, e tudo o que
era preciso era um empurrãozinho.
- Vou provar para vocês - disse, ainda sem o menor tremor na voz. - Deixem
que eu pegue minha mochila. - Viu o líder hesitar. - Estou nu, não tenho armas,
nem mesmo uma faca, e vocês são três e armados - insistiu.
- Vá! - concordou o matabele. - Mas cuidado. Há muito tempo não mato um homem
e isso está começando a me fazer falta.
Craig levantou-se cautelosamente da água e notou o interesse com que olhavam
para a perna cortada na altura do joelho, e o desenvolvimento muscular que a
compensava na outra perna e no resto do corpo. O interesse transformou-se em
respeito cauteloso quando viram como se deslocava rápida e agilmente com uma
perna só. Chegou à mochila com água escorrendo dos músculos rijos do peito e do
abdome. Viera preparado para esse encontro; tirou a carteira do bolso da frente
e estendeu ao líder um instantâneo colorido.
Na foto, dois homens estavam sentados na capota de um Land- Rover, abraçados
e sorridentes, com latas de cerveja na mão e brindando o fotógrafo. A amizade e
a camaradagem entre eles era evidente.
O guerrilheiro com a cicatriz estudou-a por algum tempo e, por fim, desarmou
o rifle.
- É o camarada Tungata - disse, e estendeu a foto aos outros.
- Talvez - concedeu com relutância o mais jovem -, mas há muito tempo. Ainda
acho que devíamos dar uns tiros nele. - Estas últimas palavras, contudo, foram
ditas num tom menos determinado.
- O camarada Tungata comeria você inteiro sem mastigar - disse o companheiro
em tom definitivo e pendurou o rifle no ombro.
Craig pegou a perna mecânica e num instante prendeu-a ao coto. Imediatamente
os três guerrilheiros ficaram intrigados, deixaram de lado as intenções
assassinas e o cercaram para examinar aquele maravilhoso apêndice.
Conhecendo o amor dos africanos a uma boa piada, bancou o palhaço para eles.
Dançou, fez piruetas com a perna, dobrou-se ao meio sem esforço e finalmente
agarrou o chapéu do mais jovem, embolou-o, e, com um grito dePelé!', chutou-o em
direção aos galhos da figueira com a perna artificial. Os outros dois sapatearam
de alegria e riram até as lágrimas escorrerem diante da perda de dignidade do
jovem ao ter de escalar a árvore para recuperar o chapéu.
Avaliando a situação, Craig abriu a mochila e tirou o cantil de uísque e uma
caneca, servindo uma dose generosa, e estendeu-a ao líder.
O guerrilheiro apoiou o fuzil em um tronco, esvaziou-a em um só trago e
estalou a língua com satisfação. Foi a vez dos outros dois, que beberam com o
mesmo ânimo.
Quando Craig sentou-se sobre a mochila, colocando o cantil à sua frente,
todos deixaram as armas de lado e acocoraram-se em torno.
- Meu nome é Craig Mellow - disse.
- Vamos chamar você de Kuphela - disse-lhe o líder - porque sua perna anda
sozinha. - Os outros aplaudiram, aprovando, e Craig serviu-os de uísque para
celebrar o batismo.
- Eu sou o camarada Sentinela - disse o líder; a maioria dos guerrilheiros
adotava nomes de guerra. - Este é o camarada Pequim. - Uma homenagem aos
instrutores chineses, pensou Craig.
E este é o camarada Dólar. - Ao ouvir isso, teve dificuldade em ficar sério
diante daquela incongruência ideológica.
- Camarada Sentinela, os kanka marcaram você? - Craig sabia que os africanos
gostavam de falar sobre suas cicatrizes de guerra.
- Foi uma baioneta. Acharam que estava morto e me deixaram para as hienas -
respondeu, acariciando a cicatriz.
- E sua perna? - interveio Dólar. - Também foi na guerra?
Uma resposta afirmativa lhes revelaria que lutara contra eles. A reação era
imprevisível, mas Craig calou-se apenas por um segundo antes de responder;
- Pisei em uma de nossas próprias minas.
- Sua própria mina? - E Sentinela morreu de rir com a piada. - Ele pisou na
própria mina! - Os outros também acharam graça, mas não demonstraram qualquer
ressentimento.
- Onde? - quis saber Pequim.
- No rio, entre Kazungula e as quedas de Victoria.
- Ah, sim - concordou. - Era um mau lugar, aquele.
- Cruzamos por lá muitas vezes - lembrou-se Sentinela. - Foi onde lutamos com os
Batedores.
Uma das unidades de elite das forças de segurança fora a dos Batedores de
Ballantyne e Craig lutara nela, nos blindados.
- O dia em que esbarrei com a mina foi quando os Batedores seguiram o seu povo
cruzando o rio. Houve uma luta terrível na margem do lado de Zâmbia e todos os
batedores foram liquidados.
- Puxa! - exclamaram, surpresos. - Nós estávamos lá. Lutamos ao lado do camarada
Tungata nesse dia.
- Que luta, que bela matança quando os encurralamos - lembrou-se Dólar, com um
brilho assassino nos olhos.
- E como lutaram! Aqueles eram homens de verdade!
Craig sentiu o estômago embrulhar-se com a lembrança. Seu primo, Rholand
Ballantyne, liderara os Batedores na travessia do rio naquele dia fatal.
Enquanto jazia despedaçado e sangrando à beira do campo minado, Rholand e todos
os homens lutaram até a morte. Os corpos tinham sido mutilados e desrespeitados
por aqueles homens e agora discutiam isso como se fosse uma inesquecível partida
de futebol.
Serviu-os de mais uísque. Como odiara a eles e a seus camaradas; costumavam
chamá-los deterrs', terroristas. Odiava-os com a abominação que se tem por algo
que ameaça a própria existência e a tudo o que se ama. Mas, agora, por sua vez,
brindou-os com a caneca e bebeu. Ouvira falar de pilotos da RAF e da Luftwaffe
que depois da guerra reuniam-se e trocavam reminiscências, como estavam fazendo,
mais como companheiros do que como inimigos mortais.
- Onde estava quando explodimos os depósitos de reserva e queimamos a
gasolina? - perguntaram.
- Lembra-se quando os Batedores pularam de pára-quedas no nosso acampamento
de Molingushi? Mataram oitocentos de nós naquele dia, e eu estava lá. Mas não
conseguiram me pegar! - rememorou Pequim com orgulho.
Naquele momento, Craig descobriu que já não sentia tanto ódio. Debaixo do
verniz de crueldade e selvageria que a guerra lhes impusera, eram os verdadeiros
matabele que sempre amara; com um irresistível senso de humor, um orgulho
profundo de si mesmos e da tribo, e um grande sentimento de honra e lealdade ao
seu peculiar código moral. Enquanto conversaram, sua simpatia por eles aumentou
e sentiu que o correspondiam.
- Mas o que faz você aqui, Kuphela? Um homem sensato como você entrando no
covil do leopardo sem ao menos uma vara? Deve ter ouvido falar de nós, e mesmo
assim, veio até cá?
- Sim, ouvi falar de vocês. Ouvi dizer que eram homens duros, como os
guerreiros do velho Mzilikazi - respondeu, adulando-os. - Vim até aqui para
encontrá-los e conversar.
- Por quê? - perguntou Sentinela.
- Vou escrever um livro e dizer a verdade sobre vocês, quem são e por que
ainda estão lutando.
- Um livro? - a voz de Pequim soou imediatamente suspeitosa.
- Que espécie de livro? - ecoou Dólar.
- E quem é você para escrever um livro? - disse Sentinela, com desdém. - Você
é jovem demais. Os escritores são grandes e sábios - continuou, pois, como todo
africano quase analfabeto, tinha uma admiração supersticiosa pela palavra
escrita e reverência pelos cabelos brancos.
- Um escritor perneta - zombou Dólar, enquanto Pequim ria e pegava o fuzil,
colocando-o no colo, mostrando como a atmosfera mudara mais uma vez. - Se ele
está mentindo sobre esse livro, então talvez esteja mentindo sobre a amizade com
o camarada Tungata - sugeriu Dólar, com apetite.
Craig prepara-se para isso também. Pegou um grande envelope na mochila e
tirou de dentro uma pilha de recortes de jornais, folheou-os lentamente,
deixando que a descrença desdenhosa se transformasse em curiosidade; escolheu um
e estendeu-o a Sentinela. O seriado adaptado do livro fora exibido dois anos
antes na televisão de Zimbábue, antes que aqueles guerrilheiros voltassem para a
floresta, e tivera um enorme sucesso.
- Uau! É o velho rei, é Mzilikazi! - exclamou Sentinela.
A fotografia que encabeçava o artigo mostrava Craig no estúdio, com membros
da equipe da produção. Os guerrilheiros reconheceram imediatamente o ator negro
americano que fizera o papel do velho rei Mzilikazi, vestido com uma pele de
leopardo e com penas de garça.
- Este é você com o rei. - Não tinham ficado tão impressionados nem mesmo com
a foto de Tungata.
Havia outro recorte, uma fotografia tirada na livraria da Doubleday, na
Quinta Avenida, com Craig ao lado de uma enorme pirâmide de livros, e um poster
seu, com a capa do livro servindo de fundo.
- Este é você? Você escreveu aquele livro? - perguntaram, parecendo realmente
espantados.
- E agora, acreditam? - perguntou, mas Sentinela examinou as provas
cuidadosamente antes de aceitá-las.
Os lábios moviam-se enquanto lia lentamente o texto dos artigos, e, quando
entregou-os a Craig, disse sério:
- Kuphela, apesar de sua juventude, você é realmente um escritor importante.
Estavam, agora, pateticamente ansiosos para despejar todas as suas queixas,
como requerentes num indaba tribal, onde os casos eram ouvidos e julgados pelos
mais velhos das tribos. Enquanto falavam, o sol ascendeu no céu azul e
imaculado, alcançou o pináculo e começou a majestosa descida para o crepúsculo.
O que contaram era a tragédia da África, as barreiras que dividiam aquele
continente grandioso e que continham todas as sementes da violência e do
desastre, a única doença incurável que infestara a todos - o tribalismo.
Ali, era matabele contra mashona.
- Os comedores de coisas imundas - assim os chamava Sentinela - são como os
morcegos nas cavernas, os covardes nas colinas fortificadas, os chacais que só
mordem quando se está de costas.
Era o desprezo do guerreiro pelo mercador, do homem de ação direta pelo
astuto negociante e político.
- Desde que o grande Mzilikazi cruzou pela primeira vez o rio Limpopo, os
mashona foram os nossos cães, amaholi, escravos e filhos de escravos.
Essa história de expansão e de domínio de um grupo pelo outro não era
limitada ao Zimbábue, mas, através dos séculos, acontecera em todo o continente.
Mais para o norte, os dominadores masai atacaram e aterrorizaram os kikuiu que
não tinham tradição guerreira; os gigantes watusi, que consideravam qualquer
homem com menos de dois metros e dez anão, haviam escravizado os pacíficos hutu.
Em cada um desses casos, os escravos compensaram a falta de ferocidade pela
astúcia política e, assim que a proteção do colonialismo branco foi retirada,
massacraram seus algozes, como os hutu tinham feito aos watusi, ou corromperam a
doutrina do governo de Westminster ignorando os freios e mecanismos de
equilíbrio que tornaram o sistema equilibrado, e usando a superioridade numérica
para colocar os antigos senhores em uma posição de jugo político, como os kikuiu
fizeram com os masai.
Exatamente o mesmo processo estava em curso ali no Zimbábue. Os colonos
brancos tornaram-se inconseqüentes e delegaram a um segundo plano a guerrilha e
os conceitos de integridade e jogo limpo impostos pelos administradores, e todos
os funcionários negros foram demitidos por eles.
- Há cinco mashona comedores de coisas imundas para cada indoda matabele -
disse Sentinela amargamente para Craig. - Mas por que isso lhes dá o direito de
nos dominar completamente? Cinco escravos devem ditar leis para um rei? Se cinco
babuínos guincham, o leão de juba-negra deve tremer?
- É assim que se faz na Inglaterra e na América - respondeu Craig em tom
conciliador. - A vontade da maioria deve predominar.
- Mijo em cima da vontade da maioria - e Sentinela com um gesto liquidou com
a doutrina da democracia. - Essas coisas podem funcionar na Inglaterra e na
América, mas isto é a África. Eles não trabalham aqui e eu não vou dobrar-me à
vontade de cinco comedores de porcaria. Não, nem à vontade de cem deles ou de
mil. Sou um matabele e apenas um homem me comanda: um rei matabele.
Sim, pensou Craig, isso é a África. A velha África despertando do transe
induzido por cem anos de colonialismo e revertendo imediatamente aos velhos
costumes.
Pensou nos milhares de jovens ingleses que por uma recompensa financeira
muito pequena tinham vindo passar a vida no Serviço Colonial, batalhando para
instilar em seus relutantes tutelados o respeito pela ética protestante de
trabalho, pelos ideais de integridade e pelo governo de Westminster. Eles
regressaram à Inglaterra prematuramente envelhecidos e com a saúde arruinada
para receberem uma pensão miserável e a crença de que tinham dado suas vidas por
algo valioso e duradouro. Será, pensou Craig, que jamais chegaram a suspeitar
que tudo fora em vão?
O sistema colonial estabelecera fronteiras claras e ordenadas. Seguiam um
rio, a margem de um lago, ou a crista de uma serra e onde eles não existiam um
supervisor branco usava um teodolito para traçar uma linha através da selva.
Desse lado ficava a África Oriental alemã, e desse, o inglês. Mas não tomaram o
menor conhecimento das tribos que estavam dividindo ao meio e fincaram suas
cercas.
- Muitos do nosso povo vivem do outro lado do rio, na África do Sul. Se
estivessem conosco, as coisas seriam diferentes. Haveria mais de nós, mas agora
estamos divididos - queixou-se Pequim.
- E os shona são espertos, tão espertos quanto os babuínos que atacam as
plantações de milho à noite. Sabem que apenas um de nossos guerreiros mataria
cem deles, então, quando nos revoltamos, usaram os soldados do governo de Smith
que ficaram aqui...
Craig lembrou-se da alegria dos amargos soldados brancos que achavam que não
tinham sido derrotados, mas traídos, quando o governo de Mugabe os lançara
contra a facção matabele rebelde.
- Os pilotos brancos trouxeram em seus aviões as tropas brancas do Regimento
Rodesiano...
Depois da luta, os pátios de carga da estação de Bulawayo tinham ficado
coalhados de caminhões refrigerados, cheios até o teto com cadáveres matabele.
- Os soldados brancos fizeram o serviço para eles, enquanto Mugabe e seus
rapazes corriam de volta para Harare, tremendo e fungando, para se esconderem
debaixo da saia das mulheres. E depois que os brancos tiraram nossas armas,
vieram pavoneando-se para cima de nós como conquistadores.
- Desonraram nossos líderes...
Nkomo, o líder matabele, fora acusado de dar abrigo a rebeldes, de acumular
armas e fora levado à desgraça por um isolamento forçado pelo governo dominado
pelos mashona.
- Eles têm prisões secretas na selva para onde levam nossos líderes -
continuou Pequim. - Fazem lá coisas com nossos homens que não dá nem para
contar.
- Agora, que estamos sem armas, as unidades especiais ficam correndo as
aldeias, batem nos velhos e nas mulheres, estupram as moças e levam os rapazes e
nunca mais se houve falar neles.
Craig vira no jornal uma fotografia de três homens com o antigo uniforme azul
e cáqui da polícia britânica da África do Sul, um uniforme que por muito tempo
simbolizara a honra e a integridade, fazendo interrogatórios nas aldeias. Na
foto, um matabele estava estendido de bruços, nu e com as pernas e braços
estendidos. Um dos policiais estava em pé sobre suas mãos abertas para o impedir
de mexer-se; os outros dois o espancavam com cacetetes. A legenda dizia:
A polícia de Zimbábue interroga suspeito tentando descobrir o paradeiro de
turistas americanos e ingleses aprisionados como reféns pelos dissidentes
matabele.
Não havia nenhuma foto sobre o que faziam com as moças.
- Talvez as tropas do governo estivessem procurando pelos reféns que vocês
mesmos admitiram ter capturado. Há pouco, vocês estavam bem felizes com a idéia
de me matar ou de me transformar em refém também - disse Craig, mordaz.
- Os shona começaram com isso muito antes de termos capturado nosso primeiro
refém - retrucou Sentinela.
- Mas vocês estão capturando inocentes, matando fazendeiros brancos -
insistiu Craig.
- E o que mais podemos fazer para que o mundo fique sabendo o que está
acontecendo com nosso povo? Os nossos poucos líderes, que não foram aprisionados
ou silenciados, estão impotentes. Não temos armas a não ser as poucas que
conseguimos esconder, nem amigos poderosos, enquanto os shona têm aliados
chineses, ingleses e americanos. Não temos dinheiro para continuar a luta; eles
têm todo o apoio do país e os milhões de dólares que esses amigos poderosos lhes
dão.
Craig decidiu prudentemente que não era nem a hora nem o lugar para uma
conferência sobre moralidade política; em seguida, pensou com ironia: talvez
minha moralidade seja antiquada. Havia um novo expediente político nos problemas
internacionais que tornara-se aceitável: o direito das minorias impotentes e sem
voz ativa chamar violentamente a atenção para a própria desgraça. Dos palestinos
e separatistas bascos aos terroristas da Irlanda do Norte, que jogaram bombas em
jovens soldados britânicos a cavalo numa rua de Londres, havia uma nova
moralidade no mundo, sem dúvida. Com esses exemplos e com a própria experiência
em conseguir mudanças políticas pela violência, aqueles jovens eram os frutos
dessa nova moralidade.
Apesar de jamais aceitar esses métodos, nem mesmo se vivesse cem anos,
descobriu relutante que sentia simpatia por seus sofrimentos e aspirações.
Sempre houvera um laço estranho, às vezes sangrento, entre sua família e os
matabele. Uma tradição de respeito e compreensão por aqueles que podiam ser
amigos fiéis ou inimigos terríveis; uma raça aristocrática, orgulhosa e
guerreira que merecia mais do que recebia atualmente.
Havia em Craig um traço elitista que odiava ver um Guliver tornado impotente
por liliputianos. Odiava a política da inveja e a perversidade do socialismo
que, achava, procurava esmagar os heróis e reduzir todo homem excepcional ao
nível comum e cinzento da massa, substituir a verdadeira liderança pelos
grunhidos imbecis dos sindicalistas, emascular toda a iniciativa com esquemas
punitivos de taxação, para depois tanger um rebanho de gente entorpecida e
submissa para a prisão do totalitarismo marxista.
Aqueles homens eram terroristas, Robin Hood também fora, mas, pelo menos, com
alguma classe e estilo.
- Vai visitar o camarada Tungata? - perguntaram com uma ansiedade quase tocante.
- Sim. Vou vê-lo em breve.
- Diga-lhe que estamos aqui, prontos e à espera.
- Vou lhe dizer - concordou Craig.
Caminharam de volta com ele até onde deixara o Volks e o camarada Dólar insistiu
em carregar a mochila. Quando chegaram ao local onde estava o carro empoeirado e
meio amassado, amontoaram-se dentro, com os canos dos AK 47 saindo fora das
janelas.
- Vamos com você até a estrada das cataratas de Victoria - explicou Sentinela. -
Se encontrar outra de nossas patrulhas sozinho, pode ser dureza para você.
Alcançaram a Grande Estrada do Norte, asfaltada, já bem depois do anoitecer.
Craig tirou da mochila tudo o que sobrara de comida e o resto do uísque; juntou
a isso os duzentos dólares que tinha na carteira e deu-lhes de presente,
aumentando o butim. Em seguida, trocaram apertos de mão.
- Diga ao camarada Tungata que precisamos de armas - disse Dólar.
- Diga-lhe que, mais do que armas, precisamos de um líder. - O camarada
Sentinela apertou a mão de Craig com a saudação da palma e polegar reservada aos
amigos de confiança. - Vá em paz, Kuphela. Que a perna que caminha sozinha o
leve sempre avante - acrescentou.
- Fique em paz, meu amigo - disse Craig.
- Não, Kuphela, deseje-me uma luta sangrenta! - e o rosto desfigurado de
Sentinela retorceu-se num sorriso temível à luz dos faróis.
Ao olhar para trás, haviam desaparecido, tão silenciosos como leopardos na
escuridão.
- NÃO TERIA aceito nenhuma aposta se veria você de novo - saudou-o Jock Daniels
quando entrou no escritório de leilões na manhã seguinte. - Conseguiu chegar em
Chizarira ou será que o bom senso venceu?
- Ainda estou vivo, não é? - retrucou Craig, fugindo à pergunta.
- Bom, sabe que é uma loucura envolver-se com aqueles shufta matabele, são todos
uns bandidos. - Jock balançou a cabeça.
- Teve alguma notícia de Zurique?
- Só mandei o telex hoje às nove horas. Eles estão uma hora atrás de nós, em
relação ao fuso horário.
- Posso usar o telefone para fazer umas ligações pessoais?
- Chamada local? Não gostaria que ficasse batendo papo com seus amiguinhos de
Nova York às minhas custas.
- Claro que sim.
- Está certo, conquanto que você cuide das coisas por aqui enquanto dou uma
saída.
Craig instalou-se na escrivaninha de Jock e consultou as anotações em código que
tirara do dossiê de Henry Pickering.
A primeira chamada foi para a Embaixada Americana em Harare, a capital, que
ficava a quase seiscentos quilômetros a nordeste de Bulawayo.
- Por favor, gostaria de falar com o sr. Morgan Oxford, o adido cultural - disse
à telefonista.
- Oxford falando - disse em seguida uma voz com nítido sotaque bostoniano.
- Aqui é Craig Mellow. Um amigo comum pediu-me que ligasse para transmitir-lhe
seus cumprimentos.
- Sim, estava aguardando seu telefonema. Não quer aparecer por aqui uma hora
dessas para dizer alô?
- Será um prazer - disse Craig, e desligou.
Henry Pickering tinha palavra. Qualquer mensagem transmitida a Oxford seguiria
pela mala diplomática e estaria em sua escrivaninha doze horas mais tarde.
A chamada seguinte foi para o escritório do ministro de Turismo e Informação, e
conseguiu finalmente falar com a secretária, cuja atitude mudou quando dirigiu-
se a ela em sindebele.
- O camarada ministro está aqui em Harare para a reunião do Parlamento - e deu-
lhe o número particular que usava no Congresso.
Craig conseguiu falar com uma secretária parlamentar depois de quatro
tentativas, notando que o sistema de telefones estava começando lentamente a
deteriorar. A praga de todos os países em desenvolvimento era a falta de mão-de-
obra qualificada; antes da independência, todos os mecânicos eram brancos e, a
partir daí, a maioria fora embora.
A secretária era mashona e insistiu em falar inglês, para provar sua
sofisticação.
- Por favor, qual é o assunto que tem a tratar com o ministro? - perguntou,
obviamente lendo em um formulário impresso.
- É um assunto de natureza pessoal. Conheço pessoalmente o camarada ministro.
- Ah, sim. P-e-z-o-a-1 - soletrou cuidadosamente a secretária enquanto tomava
nota.
- Não, p-e-s-s-o-a-1 - corrigiu-a pacientemente Craig que estava se
reacostumando ao ritmo dos africanos.
- Vou consultar a agenda do camarada ministro. O senhor terá que telefonar
novamente.
Craig consultou sua lista. O telefonema seguinte foi para o Registro
Governamental de Companhias e daquela vez teve sorte. Foi atendido por um
funcionário eficiente e solícito que tomou nota do requerimento.
- O registro das ações, artigos e memorandos da Companhia Comercial Rholands
LTDA., antes registrada como Companhia Rodesiana de Terras e Mineração LTDA. -
e, ao ouvi-lo, Craig percebeu a desaprovação do funcionário à palavra rodesiana,
que soava como um palavrão naqueles dias, tomando a decisão mental de mudar o
nome da companhia, se conseguisse algum dia poder para isso; Zimlands soaria
muito melhor aos ouvidos africanos. - Sim, terei cópias xerocadas para o senhor
às quatro horas - continuou o funcionário. - A taxa de pesquisa é de quinze
dólares.
A próxima chamada foi para o escritório do superintendente geral, onde tornou
a encomendar cópias de documentos, dessa vez dos títulos das propriedades da
companhia, os ranchos King's Lynn, Queen's Lynn e das terras de Chizarira.
Havia ainda quatorze nomes na lista, todos de fazendeiros de Matabeleland que
estavam lá quando partira, amigos chegados e vizinhos da família, gente em quem
o avô Bawu confiara e de quem gostara.
Dos quatorze, conseguiu localizar apenas quatro; os outros tinham vendido
tudo e tomado a longa estrada para o sul. As famílias que haviam restado
pareciam sinceramente satisfeitas em ter notícias dele.
- Seja bem-vindo, Craig. Todos nós lemos o livro e vimos o seriado na
televisão. - Mas fechavam-se, mal começava a fazer perguntas. - Este telefone
está mais vazado que uma peneira. Venha jantar aqui no rancho e passe a noite
conosco. Há sempre um quarto à sua disposição, Craig. Deus sabe que já não há
muita gente dos velhos tempos por aqui - disse um deles.
Jock Daniels voltou no meio da tarde, de cara vermelha e suarento.
- Ainda gastando meu dinheiro em telefonemas? - resmungou. - Será que a loja
ainda tem outra garrafa daquele Dimple Haig?
Craig correspondeu a essa sutileza atravessando a rua e trazendo uma garrafa
num saco de papel.
- Esqueci que a gente tem de ter um fígado de ferro nesta terra - disse,
enquanto a abria e jogava o envoltório metálico na cesta de papel.
Às cinco, ligou novamente para o escritório parlamentar do ministro.
- O camarada ministro Tungata Zebiwe consentiu em recebê-lo às dez horas da
manhã de sexta-feira. Pode dispor de vinte minutos.
- Por favor, transmita ao ministro meus sinceros agradecimentos.
Isso dava-lhe três dias ainda pela frente e significava que teria de dirigir
os mais de quinhentos quilômetros até Harare.
- Nenhuma resposta de Zurique? - perguntou e encheu novamente o copo de Jock.
- Se tivesse me feito uma oferta dessas, eu também não me daria ao trabalho
de responder - grunhiu Jock, tirando-lhe a garrafa das mãos e enchendo mais o
copo.
Nos dias que se seguiram, Craig atendeu aos convites para visitar os velhos
amigos de Bawu e quase foi sufocado pela velha hospitalidade rodesiana.
- Claro que não se tem mais todos aqueles luxos, as geléias Crosse e
Blackwell ou os sabonetes Bronnley - explicou-lhe uma das anfitriãs enchendo-lhe
o prato de comida saborosa -, mas, de alguma maneira, é divertido arranjar
substitutos - concluiu, fazendo um sinal ao empregado de túnica branca para
reabastecer a travessa de prata com mais batatas-doces assadas.
Passou os dias com homens bronzeados e de fala mansa, com chapéus de feltro
de abas largas e shorts cáqui, examinando o gado luzidio e gordo, sentado em um
Land-Rover sem capota.
- A carne de Matabeleland ainda não tem rival - disseram-lhe com orgulho. -
Essas são as melhores pastagens do mundo. Claro que temos que exportá-la através
da África do Sul, mas os preços são ótimos. Estou contente por ter ficado. Tive
notícias do velho Dereck Sanders na Nova Zelândia, está trabalhando como
empregado em uma fazenda de carneiros e levando uma vida muito dura. Não há
matabele por lá para fazer o trabalho pesado. - Olhou para os vaqueiros negros
com afeição paternal. - Ainda são os mesmos, apesar de toda essa conversa mole
política. São o sal da terra, meu rapaz. São a minha gente, sinto que são parte
da família, e estou contente por não ter desertado.
- Claro que há problemas - disse-lhe um dos anfitriões. - A importação é um
problema e tanto, é difícil conseguir peças de trator e medicamentos para o
gado, mas o governo de Mugabe está começando-a acordar para o fato. Como
produtores de alimento, estamos recebendo prioridade nas licenças para importar
produtos essenciais. Os telefones só funcionam quando bem entendem e os trens já
não andam no horário. A inflação é grande, mas os preços da carne a acompanham.
Eles reabriram as escolas, mas mandamos nossos garotos para o sul, para o outro
lado da fronteira, para que tenham uma educação decente.
- E a política?
- Isso é entre os negros, os matabele e os mashona. Graças a Deus que os
brancos estão fora disso. Deixe que os filhos da mãe se arranquem pedaços uns
dos outros, se é o que querem. Não meto o nariz nisso e não é uma vida ruim;
claro que não é mais como nos velhos tempos, mas nunca é, não é mesmo?
- Você compraria mais terras?
- Não tenho dinheiro para isso, meu rapaz.
- E se tivesse?
- Talvez se possa fazer disso um dia uma mina de ouro, se o país seguir um
bom caminho, com o preço atual das terras; ou se poderia perder tudo, se o país
enveredar por outro - disse o fazendeiro pensativamente, esfregando o nariz.
- Pode-se dizer a mesma coisa do mercado de ações, mas, nesse meio tempo, é
uma vida boa?
- É uma vida boa; e, que diabo, fui amamentado com as águas do Zambeze. Não acho
que seria feliz respirando o smog de Londres ou espantando moscas no interior da
Austrália.
Na manhã de quinta, Craig dirigiu de volta ao motel, apanhou a roupa limpa,
tornou a arrumar a mochila e pagou a conta, indo a seguir até o escritório de
Jock.
- Alguma notícia de Zurique?
- Chegou um telex há uma hora - e estendeu-lhe o papel que Craig leu avidamente.
Daremos a seu cliente uma opção de trinta dias para adquirir todas as ações da
Companhia Rholands por meio milhão de dólares a serem pagos em Zurique por
ocasião da assinatura de venda. Nenhuma outra oferta será aceita.
Não podiam ser mais definitivos. Bawu dissera para sempre dobrar suas
estimativas, e, até ali, estava certo.
- O dobro de sua oferta original - disse Jock, que o estava observando. - Pode
arranjar meio milhão?
- Vou ter de falar com meu tio rico - brincou Craig. - E, de qualquer maneira,
tenho trinta dias. Vou estar de volta antes disso.
- Onde é que eu posso me comunicar com você? - perguntou Jock.
- Eu me comunico com você.
Pediu mais gasolina do estoque particular de Jock, foi com o Volkswagen para a
estrada em direção ao nordeste, para Mashonaland e Harare, e encontrou o
primeiro bloqueio de estrada a uns dezesseis quilômetros fora da cidade.
Quase como nos velhos tempos, pensou, enquanto parava no acostamento. Dois
soldados negros vestidos em uniformes de camuflagem revistaram o Volks à procura
de armas com cuidadosa determinação enquanto um tenente com a boina da Terceira
Brigada, que fora treinada na Coréia, examinava seu passaporte.
Mais uma vez, Craig rejubilou-se com o fato de que todas as mulheres grávidas da
família, tanto do lado dos Mellow como dos Ballantyne, eram enviadas à
Inglaterra para o parto. O caderninho azul, com o leão e o unicórnio dourados e
a divisa Honi Soit Qui Mal y Pense gravados na capa, ainda exigia uma certa
deferência mesmo de um bloqueio de estrada.
Já era quase final da tarde quando chegou ao topo das colinas e olhou lá embaixo
o pequeno amontoado de arranha-céus que levantavam-se tão incongruentemente do
campo africano como pedras fundamentais da crença na imortalidade do império
britânico.
A cidade, que teve um dia o nome de Lord Salisbury, o secretário do Exterior
que negociou a Carta Real da Companhia Britânica da África do Sul, voltara a ter
o nome de Harare em homenagem ao chefe tribal shona cujo povoado de cabanas de
barro e palha havia sido encontrado pelos pioneiros brancos naquele local, em
setembro de 1890, ao completarem a longa expedição vinda do sul. As ruas também
haviam mudado de nome, dos que comemoravam os pioneiros brancos e o império de
Victoria para os dos filhos da revolução negra e seus aliados, a mesma rua com
qualquer outro nome, resignou-se Craig.
Ao entrar na cidade, descobriu que reinava nela uma atmosfera de cidade em
boom. As calçadas estavam apinhadas com uma multidão negra e barulhenta e no
saguão do moderno prédio de dezesseis andares do Hotel Monomatapa ressoavam
dezenas de línguas e dialetos diferentes, em meio aos turistas que se
acotovelavam com os banqueiros e homens de negócio em visita, dignatários
estrangeiros, funcionários civis e conselheiros militares.
Não havia vaga para Craig até conseguir falar com um subgerente que assistira
o seriado de televisão e lera o livro. Foi levado, afinal, a um quarto no décimo
quinto andar com vista para o parque. Enquanto tomava banho, uma procissão de
garçons entrou, trazendo flores, cestos de frutas e uma garrafa, ofertada pelo
hotel, de champanhe sul-africano. Trabalhou até depois da meia-noite no
relatório para Henry Pickering, e estava no prédio do Parlamento em Causeway às
nove e meia da manhã seguinte.
A secretária do ministro deixou-o esperando por quarenta e cinco minutos
antes de introduzi-lo no escritório onde o camarada ministro Tungata Zebiwe
levantou-se da escrivaninha para cumprimentá-lo.
Craig esquecera como era poderosa a presença daquele homem ou talvez sua
estatura tivesse aumentado desde o último encontro. Ao lembrar-se de que um dia
Tungata fora seu criado, o rapaz que carregava sua espingarda na época em que
era um patrulheiro do Departamento de Preservação Animal, pareceu-lhe que isso
acontecera em outra existência. Naqueles dias, seu nome era Samson Kumalo, o
nome da dinastia real dos reis matabele dos quais era descendente direto. Bazo,
o bisavô, fora o líder da rebelião matabele de 1896 e morreu enforcado pelos
colonos por sua participação nela. O trisavô Gandang fora meio-irmão de
Lobengula, o último rei matabele, que sofrera morte ignóbil nas mãos dos
soldados de Rhodes e ficara sem sepultura nas selvas do norte, depois que esses
haviam destruído sua capital, Bulawayo, o local da matança.
Seu sangue era real e o porte ainda era o de um rei. Mais alto que Craig, com
bem mais de um metro e oitenta, e esbelto, sem qualquer traço de corpulência, o
que era com freqüência uma característica dos matabele, o físico de ombros
largos e estômago chato estava realçado à perfeição pelo corte do terno italiano
de seda. Fora um dos mais bem-sucedidos guerrilheiros durante a guerra e ainda
era um guerreiro, quanto a isso não havia dúvidas. Craig sentiu um prazer em vê-
lo novamente.
- Eu o saúdo, camarada ministro - disse em sindebele, evitando ter de
escolher entre o velho e familiar Sam e o nome de guerra que usava agora,
Tungata Zebiwe, que significava "O que procura a justiça".
- Eu o mandei embora uma vez. Desfiz todas as dívidas que haviam entre nós, e
o mandei embora - respondeu Tungata na mesma língua. Não havia um brilho
recíproco de prazer nos olhos escuros e mortiços, o queixo quadrado tinha uma
expressão dura.
- Sou grato pelo que fez - e Craig manteve o semblante sério, para ocultar o
prazer que sentia.
Fora Tungata quem assinara uma ordem ministerial especial permitindo que
levasse para o exterior o iate que ele mesmo construíra, o Bawu. Diante do rigor
das leis de exportação, que proibiam a retirada até de uma geladeira ou de uma
cama de metal, na época, o iate era a única coisa que Craig possuía e ainda
restava, com a explosão da mina, confinado a uma cadeira de rodas.
- Não quero sua gratidão - disse Tungata, mas havia algo por trás dos olhos
cor de canela que Craig não conseguia adivinhar.
- E nem a amizade que ainda lhe ofereço? - perguntou gentilmente.
- Tudo isso morreu no campo de batalha - respondeu Tungata. - Foi arrastado
pela torrente de sangue. Você escolheu partir e, agora, por que voltou?
- Porque esta é a minha terra.
- Sua terra? Fala como um colono branco. Como um dos soldados assassinos de
Rhodes. - Viu o branco dos olhos de Tungata tingir-se do avermelhado da cólera.
- Não quis dizer isso nesse sentido.
- Sua gente conquistou a terra com os fuzis apontados e foi diante de fuzis
apontados que se renderam. Nunca mais fale que esta terra lhe pertence.
- Você odeia quase tão bem quanto lutou - disse-lhe Craig, começando a sentir
a própria raiva comichar-lhe nos olhos -, mas não voltei para odiar. Voltei
porque meu coração me trouxe de volta, porque senti que podia ajudar a
reconstruir o que foi destruído.
Tungata sentou-se atrás da escrivaninha e colocou as mãos sobre o mata-borrão
branco. Eram muito escuras e poderosas e contemplou-as em um silêncio que se
estendeu por alguns segundos.
- Você esteve em King's Lynn - disse Tungata, quebrando afinal o silêncio, e
Craig estremeceu. - E depois foi para o norte até Chizariia.
- Seus olhos são vivos - anuiu Craig. - Vêem tudo.
- Você pediu cópias dos títulos de propriedade dessas terras. - E, de novo,
ficou surpreso, mas manteve-se em silêncio. - Até você deve saber que precisa da
aprovação do governo para comprar terras em Zimbábue. Precisa declarar o uso que
pretende fazer dela e o capital de que dispõe para geri-la.
- Sim, até eu sei disso - concordou Craig.
- E, assim, vem me procurar para protestar sua amizade - e Tungata olhou-o. -
Então, como um velho amigo, pede-me outro favor, não é?
Craig fez com as mãos um gesto resignado.
- Um fazendeiro branco numa terra que poderia sustentar cinqüenta famílias
matabele. Um fazendeiro branco ficando gordo e rico enquanto os criados vestem
trapos e comem os restos que ele lhes atira - Tungata concluiu com zombaria, e
Craig retrucou imediatamente:
- Um fazendeiro branco trazendo milhões em capital para um país que está
faminto por ele; um fazendeiro branco empregando dezenas de matabele,
alimentando-os, vestindo-os e educando seus filhos; um fazendeiro branco
produzindo alimento bastante para dez mil matabele, e não apenas uns meros
cinqüenta. Um fazendeiro branco que ama sua terra, a protege das cabras e da
seca, para que seja produtiva por quinhentos anos e não cinco. - Craig deixou
que a raiva se manifestasse, encarando Tungata também, de pé, apoiado na
escrivaninha.
- Você está acabado por aqui - rosnou Tungata. - O kraal está fechado para
você. Volte para o seu barco, sua fama e suas mulheres bajuladoras. E fique
contente por termos tirado só uma perna de você; antes que arranquemos sua
cabeça também. - Olhou para o relógio de pulso de ouro. - Nada mais tenho a lhe
dizer - concluiu, levantando-se, mas por trás do olhar hostil e duro, Craig
percebeu que aquela coisa indefinível ainda estava lá e tentou sondá-la; uma
desesperança, um pesar profundo, talvez mesmo um sentimento de culpa ou uma
mistura de tudo isso.
- Então, antes de ir, tenho de lhe dizer mais uma coisa - e Craig aproximou-
se da escrivaninha, abaixando o tom de voz. - Sabe que estive em Chizarira.
Encontrei lá três homens chamados Sentinela, Pequim e Dólar que me pediram que
lhe transmitisse um recado...
E não pôde mais prosseguir porque a raiva de Tungata transformou-se numa
fúria cega. Começou a tremer, o olhar ficou vidrado e os músculos do queixo,
retesados.
- Silêncio - sibilou em voz baixa, num esforço hercúleo para controlar-se. -
Você está se metendo em assuntos que não compreende, e que não lhe dizem
respeito. Deixe esta terra antes que seja esmagado por eles.
- Vou embora - disse Craig -, mas só depois que minha solicitação para
comprar terras for oficialmente negada.
- Então, vai partir logo - replicou Tungata. - É uma promessa que faço a
você.
No estacionamento, o Volks cozinhava ao sol da manhã. Craig abriu as portas,
e, enquanto esperava que o interior refrescasse, descobriu que estava tremendo,
numa reação retardada ao confronto com Tungata Zebiwe. No departamento de caça,
depois de abater um leão devorador de gente ou um elefante depredador de
plantações, tinha a mesma reação de queda da adrenalina. Sentou-se ao volante,
e, enquanto recuperava o controle, tentou ordenar as impressões que tivera do
encontro e ver o que apreendera delas.
Obviamente, estivera sob vigilância de uma das agências de inteligência do
governo desde que chegara em Matabeleland. Talvez estivessem lhe dispensando
toda essa atenção por ser um escritor famoso. Provavelmente, cada movimento seu
fora relatado a Tungata.
Entretanto, não conseguia perceber as verdadeiras razões para a violenta
oposição de Tungata aos seus planos. As que dera eram mesquinhas e desprezíveis,
e Samson Kumalo nunca fora mesquinho ou desprezível. Estava certo de haver
percebido um estranho conflito de emoções por trás da recepção hostil, e que
havia correntezas profundas nas águas em que começara a navegar.
Lembrou-se da reação de Tungata à menção sobre os três homens que encontrara
na mata de Chizarira. Tungata havia reconhecido os nomes e a reprimenda fora
muito violenta para ter vindo de uma consciência tranqüila. Havia muita coisa
ainda que Craig gostaria de saber, e muita que Henry Pickering acharia
interessante.
Deu partida no carro e dirigiu devagar de volta ao Monomatapa pelas avenidas
tão amplas que permitiriam a um carro atrelado a uma junta de seis bois dar
meia-volta sem problemas.
Era meio-dia quando entrou no quarto do hotel. Abriu o bar e pegou a garrafa
de gim, recolocou-a em seguida no lugar, sem abri-la, e telefonou para a copa,
pedindo café. O hábito de beber de dia tinha-o acompanhado de Nova York e sabia
que contribuíra muito para a sua falta de propósitos; ia mudar isso.
Sentou-se na escrivaninha perto da janela e ficou contemplando os grandes
jacarandás do parque enquanto ordenava os pensamentos e, em seguida, pegou a
caneta para atualizar o relatório que iria enviar para Henry Pickering. Anotou
inclusive suas impressões sobre o envolvimento de Tungata com os dissidentes de
Matabeleland e sua oposição irada à solicitação para a compra de terras.
Isso levou-o a acrescentar um pedido de financiamento e os dados, os cálculos
de despesa, a opinião que tinha sobre o potencial da Rholands e os planos sobre
Chizarira. Procurou passar a idéia da forma mais favorável possível. Jogando com
o interesse declarado de Henry Pickering pelo turismo em Zimbábue, estendeu-se
longamente sobre o projeto Águas do Zambeze como atração turística.
Colocou os papéis em dois envelopes diferentes, lacrou-os e foi dirigindo até
a embaixada americana. Sobreviveu ao exame do fuzileiro, de guarda dentro de uma
cabine de segurança, e ficou esperando que Morgan Oxford viesse identificá-lo.
O adido cultural foi uma surpresa para Craig. Tinha uns trinta e poucos anos,
como ele, mas o físico de um atleta universitário, de cabelos aparados, olhos de
um azul penetrante e um aperto de mão firme, que sugeria muito mais força do que
demonstrava.
Conduziu-o até um pequeno escritório nos fundos e recebeu os dois envelopes
sem comentários.
- Pediram-me que o apresentasse a algumas pessoas - disse. - Esta noite, vai
haver uma recepção e um coquetel na casa do embaixador francês. É um bom lugar
para se começar. Das seis às sete, está bem?
- Ótimo.
- Está no Mono ou no Meikles?
- No Monomatapa.
- Pego você às quinze para as seis.
Craig notou a maneira militar com que se expressava, e pensou com ironia -
adido cultural, hein?
CRAIG FOI levar o relatório para Henry Pickering sobre a visita ao Centro de
Reabilitação Tuti à embaixada, e Morgan Oxford recebeu-o e ofereceu-lhe café.
- Acho que vou ficar aqui mais tempo do que pensava - disse-lhe Craig - e não
consigo trabalhar num quarto de hotel.
- Achar um apartamento aqui é um inferno, mas vou ver o que posso fazer - disse
Morgan. E telefonou-lhe no dia seguinte:
- Craig, uma de nossas moças vai passar um mês de férias em casa. É uma fã sua e
poderia sublocar o apartamento por seiscentos dólares. Ela viaja amanhã.
O apartamento era um conjugado confortável e arejado. Havia uma mesa larga que
serviria perfeitamente de escrivaninha, colocou uma pilha de papel no centro,
com um tijolo por cima servindo de peso, o dicionário Concise Oxford do lado e
disse em voz alta:
- De volta aos negócios.
Quase esquecera como as horas passavam depressa naquele universo, e na pura
alegria de ver os papéis manuscritos empilharem-se na extremidade da mesa.
Morgan Oxford telefonou-lhe duas vezes durante os dias seguintes para convidá-lo
a comparecer a festas diplomáticas, e, nas duas vezes, Craig recusou, acabando
por desligar o telefone. Quando o religou no quarto dia, o telefone tocou quase
que imediatamente.
- Sr. Mellow? - era uma voz africana. - Tivemos muita dificuldade em achá-lo. Um
instante, por favor, o general Fungabera quer falar com o senhor.
- Craig, é Peter - o mesmo sotaque acentuado e o mesmo charme. - Podemos nos
encontrar hoje à tarde? Às três? Vou mandar um chofer apanhá-lo.
A residência particular de Peter Fungabera ficava a uns oito quilómetros fora da
cidade, nas colinas que dominavam o lago Macillwane. A casa fora originalmente
construída na década de vinte para o filho mais moço de um industrial de aviação
inglês. Era cercada por grandes varandas, beirais brancos em relevo e uns 20 000
metros quadrados de gramados e árvores floridas.
Uma guarda de soldados da Terceira Brigada, em uniforme completo, revistou
Craig e o chofer no portão antes de permitir o acesso à casa principal. Quando
subiu os degraus da frente, Peter Fungabera estava à sua espera no alto. Vestia
calças de algodão branco e uma camisa de seda vermelha de mangas curtas, que
contrastava com a pele negra. Com o braço passado amigavelmente em torno dos
ombros de Craig, levou-o pela varanda até onde sentava-se um pequeno grupo de
pessoas.
- Craig, apresento-lhe o sr. Musharewa, o presidente do Banco Territorial de
Zimbábue. Este é o sr. Kapwepwe, seu assistente, e este é o sr. Cohen, meu
advogado. Senhores, este é o sr. Craig Mellow, o famoso escritor.
Depois de trocarem apertos de mão, Peter perguntou-lhe:
- Um drinque, Craig? Estamos bebendo Bloody Marys.
- Gostaria de um, também, obrigado.
Um criado com um amplo kanza branco, remanescente dos dias coloniais, trouxe-
lhe o drinque e, quando saiu, Peter Fungabera disse com simplicidade:
- O Banco Territorial de Zimbábue concordou em lhe dar uma garantia pessoal
para um empréstimo de cinco milhões de dólares do Banco Mundial ou de seu
associado em Nova York.
Craig olhou-o, boquiaberto.
- Sua ligação com o Banco Mundial não é um segredo tão bem-guardado assim,
sabe. Henry Pickering é também muito conhecido aqui. - Peter sorriu,
prosseguindo rapidamente: - Claro que há certas condições e cláusulas, mas não
acho que sejam proibitivas. - Virou-se para o advogado branco. - Está com os
documentos, Izzy? Ótimo, dê uma cópia ao sr. Mellow e, depois, leia-os para nós,
por favor.
Isadore Cohen ajeitou os óculos, endireitou a grossa pilha de papéis à sua
frente e começou:
- Em primeiro lugar, esta é a permissão para compra de terras - e leu: -
"Autorização para Craig Mellow, súdito britânico e cidadão de Zimbábue, comprar
o controle do interesse da companhia privada de terras conhecida como Rholands
(Pr.) Ltda. Esta permissão está assinada pelo presidente do Estado e pelo
ministro da Agricultura".
Craig lembrou-se da promessa de Tungata Zebiwe de impedi-la a todo custo e,
em seguida, que o ministro era cunhado de Peter Fungabera. Olhou para o general,
mas este ouvia atentamente as palavras do advogado.
Quando começava a ler cada documento da pilha, Isadore Cohen fazia-o sem
omitir sequer o preâmbulo, e dava uma pausa ao fim de cada parágrafo para
perguntas e explicações.
Craig estava tão excitado que mal conseguia controlar-se e ficar quieto,
sentado, mantendo a postura e expressão compatíveis com um homem de negócios. O
pânico momentâneo que sentira com a súbita menção de Peter ao Banco Mundial fora
esquecido e tinha ímpetos de pular e dançar pela varanda: Rholands era sua,
King's Lynn era sua, Queen's Lynn e Águas do Zambeze também.
Mesmo com toda a excitação, houve um parágrafo que soou estranho quando
Isadore Cohen o leu.
- Mas que diabos significa "inimigo do Estado e do povo de Zimbábue"? -
perguntou.
- É uma cláusula-padrão em todos os nossos documentos - acalmou-o Isadore
Cohen -, uma mera expressão de sentimento patriótico. Se o beneficiário se
engajasse em atividades de traição ao Estado e fosse declarado um inimigo do
Estado e do povo, o Banco Territorial seria obrigado a repudiar todas as
obrigações contraídas com o culpado.
- Isso é legal? - Craig estava em dúvida e, quando o advogado o tranqüilizou,
continuou: - Acha que o banco que vai fazer o empréstimo aceitará esta cláusula?
- Já fizeram isso em outros contratos de segurança - disse-lhe o presidente
do banco. - Como disse o sr. Cohen, é uma cláusula-padrão.
- Afinal, Craig - sorriu Peter Fungabera -, você não tem a intenção de
liderar uma revolução armada para derrubar nosso governo, não é?
- Bem, se o banco americano aceitar, suponho que seja legal - e devolveu-lhe
o sorriso, hesitante.
A leitura levou quase uma hora e, em seguida, o presidente Musharewa assinou
todas as cópias, assim como seu assistente e Peter Fungabera. Foi, então, a vez
de Craig assinar, seguido pelas testemunhas e, finalmente, Isadore Cohen lacrou
cada documento com o selo de Comissário Juramentado.
- É isso, cavalheiros. Assinado, lacrado e entregue.
- Ah, será que esqueci de mencionar? - Peter Fungabera sorriu maliciosamente. -
O sr. Kapwepwe falou com Pickering ontem à tarde, às 10 horas de Nova York. O
dinheiro estará à sua disposição logo que a garantia chegue em suas mãos - fez
um sinal para o criado. - Pode trazer o champanhe agora.
Brindaram-se uns aos outros, ao Banco Mundial, ao Territorial e à Companhia
Rholands e, só quando a segunda garrafa estava vazia, os dois banqueiros negros
despediram-se com relutância.
Enquanto a limusine se afastava, Peter Fungabera pegou o braço de Craig.
- Agora, podemos discutir a minha comissão. O sr. Cohen tem os papéis.
Craig os leu e sentiu que empalidecia.
- Dez por cento - arquejou. - Dez por cento das ações ao portador da Rholands.
- Precisamos mudar esse nome - disse Fungabera, franzindo a testa. - Como vê, o
sr. Cohen ficará com as ações como meu preposto. Isso evitará embaraços no
futuro.
Craig fingiu que relia o contrato, enquanto tentava formular um protesto e os
dois homens o observavam em silêncio. Dez por cento era roubo, mas o que mais
podia fazer?
Isadora Cohen destampou lentamente a caneta e estendeu-a a Craig.
- Acho que vai achar um ministro de gabinete e comandante militar sócios muito
convenientes neste negócio - disse, e Craig pegou a caneta.
- Há uma única cópia - Peter ainda sorria - e vou ficar com ela. - Craig
assentiu.
Não haveria qualquer prova da transação, com as ações em mãos de um preposto, e
nenhuma documentação, exceto as de Peter Fungabera. Numa disputa, seria a sua
palavra contra a de um ministro - mas queria a Rholands mais que qualquer outra
coisa na vida.
Assinou o contrato, e, do outro lado da mesa, os dois homens relaxaram
visivelmente e Peter Fungabera mandou buscar outra garrafa de champanhe.
ATÉ ALI, Craig dispusera de tempo, e fez uso dele da maneira que lhe convinha
melhor. Não tinha preocupações a não ser com uma caneta e uma pilha de papéis.
De repente, confrontava-se com a enorme possibilidade de gerir as propriedades e
o tempo de que dispunha. Havia tanta coisa a fazer e tão pouco tempo que sentia-
se paralisado pela indecisão, assustado pela própria audácia e em dúvida sobre
sua capacidade de organização.
Queria sentir-se encorajado e reconfortado, e pensou em Sally- Anne. Foi até o
apartamento, mas as janelas estavam fechadas, a caixa, cheia de correspondência
e ninguém respondeu às suas batidas. Voltou para o conjugado, sentou-se à mesa,
pegou uma folha de papel e escreveu: "Trabalho a ser feito" e ficou olhando para
ela.
Lembrou-se do que Janine lhe havia dito certa vez: "Você só faz bem uma única
coisa na vida..." E escrever um livro era muito diferente do que recuperar uma
companhia de vários milhões de dólares. Sentiu que ia entrar em pânico, mas
conseguiu combatê-lo. Vinha de uma família de fazendeiros, fora criado com o
cheiro de amoníaco das fezes de vaca e aprendera a avaliar gado em pé quando
ainda era pequeno o bastante para dependurar-se no arção da sela de Bawu como um
pardal num poste.
- Posso fazer isso - disse a si mesmo com decisão, e começou a preparar uma
lista:
1) Telefonar para Jock Daniels e aceitar a oferta para a compra da Rholands.
2) Voar para Nova York:
a) Reunião no Banco Mundial.
b) Abrir conta e depositar fundos.
c) Vender o Bawu.
3) Voar para Zurique:
a) Assinar a compra das ações.
b) Providenciar o pagamento aos vendedores.
Pegou o telefone e ligou para a British Airways que tinha passagem no vôo de
sexta-feira para Londres e, de lá, para Nova York. Ligou em seguida para o
escritório de Jock Daniels.
- Mas onde diabos você se meteu? - Percebeu que Jock já começara antes da hora
com os drinques noturnos.
- Jock, meus parabéns, acaba de ganhar uma comissão de vinte e cinco mil dólares
- disse, e ficou gozando o silêncio do outro lado do fio.
A lista começou a expandir-se e cobriu uma dúzia de páginas:
39) Descobrir se Okky van Rensburg ainda está no país.
Okky fora o mecânico de King's Lynn por vinte anos e o avô gabava-se que ele
podia desmontar e montar novamente um trator John Deere e fazer um Cadillac e um
Rolls-Royce Silver Clouds das peças que sobravam; precisava dele.
Soltou a caneta e sorriu ao lembrar-se do avô:
- Estamos chegando em casa, Bawu - disse em voz alta; olhou o relógio, viu que
já eram dez horas, mas sabia que não conseguiria dormir.
Vestiu um suéter leve, saindo para caminhar nas ruas escuras, e, uma hora
depois, estava em frente ao apartamento de Sally-Anne. Parecia que os pés haviam
seguido automaticamente esse rumo.
Sentiu uma ligeira excitação ao ver que a janela estava aberta e a luz acesa.
- Quem é? - ela perguntou com voz abafada.
- Sou eu, Craig - e houve um longo silêncio.
- É quase meia-noite.
- São só onze horas. Tenho uma coisa para lhe contar.
- Oh, está bem, a porta está aberta.
Estava na câmara escura e ele podia ouvir o ruído dos produtos químicos sendo
manipulados.
- Só mais cinco minutos - ela disse. - Sabe fazer café?
Quando saiu, vestia uma malha até os joelhos com os cabelos soltos até os
ombros; nunca a vira assim e arregalou os olhos.
- É melhor que seja importante - disse, com as mãos nas cadeiras.
- Consegui a Rholands - essa foi a vez dela arregalar os olhos.
- Quem ou o que é Rholands?
- A companhia que é dona do Águas do Zambeze. Consegui. É minha, agora. Isso é
suficiente?
Começou a andar em sua direção, ele fez o mesmo, mas ela se dominou parando em
seguida, forçando-o a imitá-la. Só dois passos os separavam.
- São notícias maravilhosas, Craig. Estou tão feliz por você. Como foi que
aconteceu? Pensei que já estava tudo terminado.
- Peter Fungabera arranjou uma garantia para um empréstimo de cinco milhões
de dólares.
- Meu Deus, cinco milhões. Você está pedindo emprestado cinco milhões? Quanto
são os juros sobre cinco milhões?
Ele não queria pensar sobre isso, o que ficou evidente em seu rosto e ela
imediatamente arrependeu-se.
- Sinto muito. Isso foi uma indiscrição minha. Estou muito contente por você.
Precisamos celebrar - foi rapidamente até a cozinha.
Achou no armário uma garrafa de uísque Glenlivet com dois dedos no fundo e
acrescentou-o ao café quente.
- Ao sucesso do Águas do Zambeze - brindou, erguendo a caneca. - Antes de
mais nada, conte-me tudo o que aconteceu. Depois, também tenho "notícias a dar.
Craig contou-lhe os planos: o desenvolvimento das duas fazendas ao sul, a
reconstrução da sede, a formação do novo rebanho com gado de raça, descreveu-lhe
em detalhes o que planejava para o Águas do Zambeze e sua vida silvestre,
sabendo que era um assunto mais interessante para ela. Passava de meia-noite
quando terminou.
- Estava pensando... Vou precisar de um toque feminino no planejamento e na
instalação dos acampamentos, mas não de qualquer mulher. Ela tem de ter gosto
artístico e é necessário que conheça e goste da África... - Que tal você?
- Craig, você esqueceu que tenho uma bolsa do World Wild- life Trust em tempo
integral?
- Não vai lhe tomar muito tempo - ele protestou -, apenas vai agir como
consultora. Voaria para lá por um dia ou dois sempre que conseguisse encaixar
seu tempo. E, naturalmente, quando os acampamentos já estiverem em
funcionamento, gostaria que fizesse uma série de conferências e exibições de
filmes e fotos para os hóspedes. - Viu que abordara o assunto pelo lado certo:
como todo artista, adorava uma oportunidade para mostrar seus trabalhos.
- Não vou lhe fazer nenhuma promessa - disse-lhe severamente, mas ambos
sabiam que o faria, e Craig sentiu a carga de responsabilidades aliviar-se
muito.
- Disse que tinha novidades para me contar - lembrou-a afinal, grato pela
chance de poder esticar mais a noite, mas estranhou o fato de vê-la subitamente
tão séria.
- Sim, tenho novidades - e fez uma pausa, procurando controlar-se, para
continuar -, achei a pista do caçador-mor.
- Meu Deus! O desgraçado que matou todas aquelas manadas de elefantes? Isso é
o que chamo de notícia. Onde? Como?
Sabe que tenho estado nas montanhas do leste nos últimos dez dias. O que não
lhe contei é que estou orientando um estudo sobre os leopardos para o Wildlife
Trust. Tenho pessoas trabalhando para mim na maioria das áreas da floresta onde
existem leopardos. Estamos contando e mapeando o território deles, registrando
os saques e as mortes, tentando avaliar o efeito do novo influxo humano sobre
eles. O que leva a um de meus trabalhadores. É um caçador shangane malcheiroso
que deve andar pela casa dos oitenta anos, sua mulher mais moça tem dezessete e
o presenteou com gêmeos na semana passada. É um tremendo malandro, mas com
grande senso de humor e uma queda por uísque escocês; bastam dois tragos de
Glenlivet e desanda a falar. Estávamos os dois sozinhos, acampados nas montanhas
Vumba e, depois do segundo trago, deixou escapar que tinham lhe oferecido
duzentos dólares por uma pele de leopardo. Queriam todas as que pudesse
conseguir e lhe dariam as armadilhas de mola de aço. Dei-lhe outro gole e
consegui descobrir que a oferta fora feita por um preto jovem e bem-vestido,
dirigindo um jipe do governo. O velho shangane disse que tinha medo de ser
preso, mas o homem assegurou-lhe que não correria perigo, que estaria sob a
proteção de um dos grandes chefes de Harare, um camarada ministro que fora um
guerrilheiro famoso e ainda comandava um exército particular.
Havia uma pasta de papelão, sobre a cama de campanha, que Sally-Anne pegou e
entregou a Craig. Dentro, na primeira folha, havia uma lista completa do
ministério de Zimbábue, com vinte e seis nomes, cada qual com um dossiê
correspondente.
- Podemos reduzir a lista de imediato, poucos dos membros do Gabinete lutaram
realmente - disse Sally-Anne. - A maioria passou a guerra em uma suíte no Ritz
de Londres ou numa dacha à beira do mar Cáspio.
Sentou-se nas almofadas ao lado de Craig e passou para a segunda página.
- Seis nomes. Seis comandantes - apontou.
- Ainda assim, nomes demais - murmurou Craig, que viu o nome de Peter
Fungabera liderando a lista.
- Podemos ir mais longe - ela discordou. - Um exército particular,
dissidentes, o que significa que são todos matabele. Seu líder teria de ser da
mesma tribo - e virou para a página seguinte. - Um dos comandantes mais bem-
sucedidos é matabele e ministro do Turismo e do Departamento de Proteção à Vida
Silvestre. É um velho ditado, mas aqueles que montam guarda a um tesouro são com
freqüência quem os pilha. Tudo se encaixa.
Craig leu o nome: Tungata Zebiwe, e descobriu que não gostaria que aquilo
fosse verdade.
- Mas ele trabalhou comigo no Departamento de Caça, era meu patrulheiro.
- Como eu disse, os guardiães têm mais oportunidade para o botim que qualquer
outro.
- Mas o que Sam faria com o dinheiro? O caçador-mor deve estar amealhando
milhões de dólares e Sam leva uma vida muito frugal, todo mundo sabe disso, nada
de grandes casas ou carros caros, nada de presentes para mulheres ou terras
compradas. Nenhum hábito dispendioso.
- Exceto, talvez, o mais dispendioso de todos - disse calmamente Sally-Anne.
- Poder. - E, diante dos protestos de Craig, tornou a afirmar: - Poder. Você não
vê, Craig? Manter um exército particular de dissidentes custa dinheiro, muito,
muito dinheiro.
Craig teve de admitir que as peças se encaixavam. Henry Pickering o alertara
para um golpe próximo financiado pelos soviéticos. Os russos tinham apoiado a
facção matabele ZIPRA durante a guerra e seu candidato seria quase que
certamente um deles.
Mas ainda resistia a essa idéia, apegando-se à lembrança do homem que fora
seu amigo, provavelmente o melhor amigo que já tivera. Lembrava-se da extrema
decência do homem que conhecera como Samson Kumalo, o cristão educado por
missionários, pessoa de integridade e princípios, que pedira demissão junto com
ele do Departamento de Caça quando desconfiaram que seu superior imediato estava
envolvido numa quadrilha de caça clandestina. Seria ele agora o caçador-mor em
pessoa? O homem que o ajudara, quando estava em uma cadeira de rodas e sem
dinheiro, a recuperar sua única posse, o iate, antes de deixar a África? Seria
agora um conspirador ambicioso?
- Ele é meu amigo - disse Craig.
- Era seu amigo. Está muito mudado. Quando o viu pela última vez, declarou-se
seu inimigo - frisou Sally-Anne. - Você mesmo me contou isso.
Craig concordou, e lembrou-se de repente da busca feita no cofre do hotel por
ordens superiores. Tungata devia ter suspeitado que era um agente do Banco
Mundial e chegado à conclusão de que fora designado para recolher informações
sobre a caça furtiva e o golpe político. Só isso poderia explicar a oposição
violenta e veemente a seus planos.
- Detesto isso - murmurou Craig. - Odeio esta idéia, mas acho que você pode
estar certa.
- Estou segura disto.
- E o que vai fazer?
- Vou levar a Peter Fungabera as provas que tenho.
- Ele vai esmagar Sam - disse Craig, e ela retrucou:
- Tungata é mau, Craig, é um predador!
- É meu amigo.
- Era seu amigo - contradisse veemente Sally-Anne. - Você não sabe no que ele se
transformou, o que lhe aconteceu na guerrilha. A guerra e o poder mudam qualquer
ser humano.
- Oh, Deus, eu odeio isso.
- Vamos juntos ver Peter Fungabera. Fique junto comigo quando eu expuser o caso
contra Tungata Zebiwe. - Sally-Anne segurou-lhe a mão, num gesto afetuoso que
Craig não cometeu o erro de retribuir.
- Sinto muito, Craig - acrescentou. - Muito mesmo - e soltou-lhe a mão.
PETER FUNGABERA podia recebê-los de manhã cedo e foram os dois juntos de carro
até a casa das colinas Macillwane.
Um criado levou-os ao escritório do general, uma enorme sala pouco mobiliada com
vista para o lago, que fora um dia a sala de bilhar. Uma parede estava coberta
por um mapa em blow-up de todo o território, espetado com bandeirinhas
multicores. Sob as janelas, havia uma grande mesa coberta de relatórios,
despachos e papéis parlamentares, e uma escrivaninha de teca vermelha africana
ocupava o centro do assoalho de pedra sem tapetes.
Peter Fungabera levantou-se para cumprimentá-los. Estava descalço e vestido com
um simples pano de algodão branco amarrado nos quadris. A pele nua do peito
estirada sobre os músculos desenvolvidos brilhava como se tivesse sido recém-
untada. Via-se claramente que Peter mantinha-se no auge da forma de um
guerreiro.
- Desculpem-me os trajes - disse, sorridente, ao saudá-los. - Mas sinto-me
mais à vontade quando posso ser completamente africano.
Diante da escrivaninha, havia banquetas de ébano caprichosamente lavradas.
- Vou mandar buscar cadeiras - ofereceu. - Recebo poucos brancos aqui.
- Não, não - respondeu Sally-Anne, ajeitando-se comodamente em uma das
banquetas.
- Sabem que tenho sempre o maior prazer em vê-los, mas devo estar no
Congresso às dez horas - apressou-os Fungabera.
- Vou direto ao assunto - concordou Sally-Anne. - Acho que sabemos quem é o
caçador-mor.
Peter estava a pique de sentar-se, e inclinou-se bruscamente para a frente
com os punhos apoiados na escrivaninha, o olhar penetrante e interrogador.
- Disse-me que bastava que eu lhe desse o nome e o esmagaria - lembrou-o
Sally-Anne, e Peter aquiesceu.
- Diga-me o nome - ordenou, mas antes Sally-Anne contou sobre as fontes de
informação e as deduções que fizera, assim como narrara a Craig; Peter Fungabera
ouviu-a em silêncio, franzindo as sobrancelhas ou balançando a cabeça
pensativamente enquanto acompanhava o raciocínio, até que chegasse ao último
nome da lista.
- Camarada ministro Tungata Zebiwe - repetiu Peter, baixinho, e finalmente
acomodou-se na cadeira e pegou o bastão sobre a escrivaninha, batendo-o na palma
rosada da mão esquerda e olhando por sobre a cabeça de Sally-Anne para a parede
coberta pelo mapa.
O silêncio prolongou-se até que Sally-Anne perguntasse:
- E então?
- Escolheu a brasa mais quente da fogueira para que eu a tirasse com as mãos
nuas - disse Fungabera, olhando-a. - Está segura de não ter sido influenciada
pelo tratamento dispensado pelo camarada Tungata Zebiwe ao senhor Craig Mellow?
- Isso não é justo - respondeu Sally-Anne, baixinho.
- suponho que não seja - e Peter Fungabera olhou para Craig. - O que acha?
Era meu amigo e foi muito bondoso comigo.
Isso foi em outros tempos - apontou-lhe Fungabera.
- Agora, declarou-se seu inimigo.
Eu ainda gosto dele e o admiro.
E no entanto...? - sondou Peter.
E, no entanto, acho que Sally-Anne talvez esteja na pista certa - concedeu
Craig com ar infeliz.
Fungabera levantou-se e atravessou a sala silenciosamente até o grande mapa.
- O país inteiro é um estopim - começou, olhando as bbandeirinhas coloridas.
- Os matabele estão à beira de uma rebelião aqui, aqui e aqui! Suas guerrilhas
estão se reunindo na mata - e bateu no mapa. - Fomos forçados a cortar a
conspiração de seus líderes irresponsáveis que preparavam a luta armada. Nkomo
está em confinamento forçado, dois membros matabele do Gabinete foram presos e
acusados de alta traição. Tungata Zebiwe é o último matabele no governo. É
extremamente respeitado, mesmo fora de sua tribo, enquanto os matabele o
consideram o seu último líder. Se o tocássemos...
- Vai deixá-lo escapar impune! - Sally-Anne desapontou-se. - Vai conseguir
escapar. Mas que belo paraíso socialista este. Uma lei para o povo e outra para
os governantes.
- Cale-se, mulher - ordenou Fungabera, e ela obedeceu. - Estava explicando a
vocês as conseqüências de uma ação precipitada - continuou, voltando para a
escrivaninha. - Prender Tungata Zebiwe poderia mergulhar o país todo em uma
sangrenta guerra civil. Não disse que não ia agir, mas certamente não faria nada
sem provas positivas e o testemunho de pessoas independentes e de imparcialidade
impecável para apoiar-me. - Fixava ainda o mapa na parede. - O mundo já nos
acusa de planejar um genocídio tribal contra os matabele enquanto tudo o que
fazemos é manter a lei e procurar uma fórmula de acomodação com essa tribo
guerreira e intratável. No momento, Tungata Zebiwe é nosso único contato
razoável e conciliatório com os matabele, não podemos arcar com o preço de sua
destruição - e fez uma pausa, aproveitada por Sally-Anne:
- Uma coisa que não mencionei, mas que Craig e eu discutimos, é o fato de
que, se Tungata Zebiwe é o caçador-mor, está usando os lucros para algum fim
especial. Não mostra sinais visíveis de extravagância, mas sabemos que há uma
ligação entre ele e os dissidentes.
- Se for Zebiwe, eu o agarro - prometeu mais para si mesmo Peter, com uma
expressão dura e um olhar terrível. - Mas, quando o fizer, terei provas para que
o mundo veja; ele não me escapará.
- Então, é melhor que se apresse - avisou-o sem rodeios Sally- Anne.
- ESCOLHEU UMA BOA época para vender. - O corretor de barcos estava na cabine
do Bawu e tinha uma aparência náutica com o blazer de lapelas duplas e o boné
com a âncora dourada.
O bronzeado era perfeito, e adquirido com lâmpada ultravioleta. Havia uma
fina rede de rugas em torno dos penetrantes olhos azuis. Craig estava seguro que
não era de tanto franzi-los espiando no sextante ou devido ao sol tropical, mas
de tanto examinar etiquetas de preço e algarismos de talões de cheque.
- Os juros estão caindo, e as pessoas voltaram a comprar iates novamente.
Era como discutir os termos de um divórcio com um advogado ou os arranjos com
um agente funerário. O Bawu fora parte integrante de sua vida por muito tempo.
- Está em boa forma, todo certinho, e o preço é razoável. Vou trazer umas
pessoas para vê-lo amanhã.
ASHE LEVY também parecia um agente funerário quando Craig lhe telefonou.
Contudo, mandou um mensageiro até a marina para buscar os três primeiros
capítulos que completara na África e, depois, Craig foi almoçar com Henry
Pickering.
- É ótimo ver você. - Esquecera como se afeiçoara a esse homem em apenas dois
breves encontros.
- Vamos pedir um vinho primeiro - sugeriu Henry, e decidiu-se por um Grands
Echézéaux.
- Sujeito corajoso - sorriu Craig. - Sinto sempre medo de pronunciar esse
nome e as pessoas acharem que estou tendo uma crise de espirros.
A maioria tem o mesmo receio. Talvez seja por isso que é o menos conhecido entre
os grandes vinhos do mundo, o que faz o preço ficar baixo, graças a Deus.
Sentiram o buquê do vinho e, em seguida, provaram-no seguindo o ritual que um
bom vinho merece.
Agora, conte-me o que acha do general Peter Fungabera - pediu Henry.
Está tudo em meus relatórios. Não os leu?
- Li, sim, mas quero que me conte, de qualquer maneira. Às vezes, em uma
conversa, aparece um detalhe que escapou no relatório.
- Peter Fungabera é um homem culto. Seu inglês é excelente tanto na escolha das
palavras quanto na forma como se expressa, mas tem um pronunciado sotaque
africano. De uniforme, parece um general do Exército Britânico e em trajes
civis, uma estrela de seriado de televisão; mas, com um pano na cintura, parece
o que realmente é, um africano. É o que todos nós tendemos a esquecer. Todo
mundo conhece a impenetrabilidade chinesa e a fleugma britânica, mas raramente
achamos que o africano negro tenha uma natureza especial.
- Aí está! - exclamou Pickering, satisfeito. - Isso não estava nos seus
relatórios, Craig. Continue.
- Pelos nossos padrões os consideramos lentos, não compreendemos que não é a
indolência que os faz assim, mas uma profunda ponderação diante de qualquer
assunto antes de agir. Nós os achamos diretos e simples, quando na realidade são
pessoas muito reservadas e cheias de meandros, mais ligadas ao clã que os
escoceses. Podem manter uma briga de sangue por cem anos, como os sicilianos.
Henry Pickering ouvia atentamente, e aproveitava as pausas para fazer-lhe
perguntas. Em uma das vezes, disse:
- Há algo que ainda acho confuso, Craig, a diferença sutil entre os termos
matabele, ndebele e sindebele. Pode me explicar?
- Um francês chama a si mesmo de "français", mas nós os chamamos de francês. Um
matabele chama-se de ndebele e nós, de matabele.
- Sim - concordou Henry -, e a língua falada é o sindebele, não é?
- É isso mesmo. Na verdade, hoje em dia a palavra matabele parece ter adquirido
conotações coloniais desde a independência...
A conversa fluía fácil e descontraída, por isso foi com surpresa que Craig viu
que eram praticamente os últimos fregueses do restaurante e que o garçom os
rondava com a conta.
- O que estava tentando dizer - concluiu Craig - é que o colonialismo deixou a
África com uma série de valores impostos. A África os rejeitará e voltará aos
seus próprios valores, se tiver oportunidade.
- E provavelmente será mais feliz assim - terminou por ele Henry Pickering. -
Bem, Craig, você fez jus a seu dinheiro. Estou muito contente que esteja de
volta. Posso prever que, em breve, você será nosso agente mais produtivo lá.
Quando pretende voltar?
- Só vim a Nova York pegar um cheque.
A risada peculiar e agradável de Henry foi acompanhada de um comentário.
- Voeê sugere com a sutileza de um martelo. Fico até arrepiado com a perspectiva
de um pedido direto seu. - Pagou a conta e levantou-se. - Nosso advogado está à
nossa espera. Primeiro, vai ter que vender a alma e o corpo a nós, e só depois
entrego o crédito para cinco milhões de dólares.
O interior da limusine estava silencioso e fresco e a suspensão do carro anulava
a trepidação causada pelo asfalto malconservado das ruas de Nova York.
- Agora, fale mais sobre as conclusões de Sally-Anne Jay sobre o cabeça da
quadrilha de caçadores furtivos - incitou-o Henry.
- Neste estágio, não vejo outra possibilidade alternativa para o caçador-mor,
nem mesmo para o líder dos dissidentes.
Henry ficou silencioso por algum tempo.
- O que acha da relutância do general Fungabera em agir?
- É um homem prudente e um africano. Não vai apressar-se. Vai pensar muito
nisso, colocar a rede com cuidado, mas, quando resolver-se a agir, acho que
ficaremos todos surpresos com a rapidez devastadora e decisiva com que o fará.
- Gostaria que desse ao general toda a assistência que puder. Cooperação total,
Craig.
- Sabe que Tungata foi meu amigo.
- Está com a lealdade dividida?
- Não, acho que não, não se for culpado.
- Ótimo! Minha diretoria está muito satisfeita com os resultados até agora.
Estou autorizado a aumentar sua remuneração para sessenta mil dólares por ano.
Lindo - sorriu Craig. - Será de grande ajuda para pagar os juros de cinco
milhões de dólares.
Ainda estava claro quando o táxi o deixou nos portões da marina. O smog de
Manhattan estava transfigurado pelo sol quase posto em uma linda névoa púrpura
que suavizava as silhuetas agressivas das grandes torres de concreto.
Ao descer a prancha e passar para o barco, o iate balançou levemente e alertou a
pessoa que estava na cabine.
- Ashe! - Craig estava espantado. - Ashe Levy, a fada-madrinha dos pobres
escritores!
- Oi, garoto! - e Ashe desceu para o convés com as passadas incertas de um homem
de terra firme. - Não pude esperar, tive de vir vê-lo imediatamente.
- Estou sensibilizado. - O tom de Craig era ácido. - Sempre que não preciso de
ajuda, você aparece a todo galope.
Ashe Levy ignorou a observação e colocou as mãos nos ombros dele.
- Eu li, reli e... tranquei os originais no cofre. - E abaixou a voz: - É lindo.
Craig engoliu a próxima ironia e tentou ver se havia sinais de insinceridade no
rosto de Ashe, mas por trás dos óculos de aro de ouro os olhos estavam brilhando
com as lágrimas represadas.
- É a melhor coisa que você já fez, Craig.
- São apenas três capítulos.
- Foi como um direto no estômago.
- Precisa de revisão.
- Duvido, Craig. Admito que estava começando a acreditar que você era incapaz de
escrever outro livro, mas isto... foi demais para mim. Estive sentado aqui
algumas horas pensando nele e acho que posso até recitar uns trechos de cor.
Craig estudou-o cuidadosamente: as lágrimas podiam ser um reflexo do crepúsculo
nas águas. Ashe tirou os óculos e assoou o nariz ruidosamente. As lágrimas eram
autênticas, mas mal podia acreditar e só havia um teste positivo.
- Pode me dar um adiantamento, Ashe?
Agora que não precisava mais de dinheiro, precisava ainda de uma última
certeza.
- De quanto precisa, Craig? Duzentos mil?
- Então quer dizer que você gostou de verdade? - Craig suspirou, afastando a
eterna incerteza dos escritores por algum tempo. - Vamos tomar um drinque, Ashe.
- Vamos fazer melhor do que isso, vamos tomar um porre.
Craig estava sentado na popa, com os pés apoiados no leme, observando o gelo
formar pequenos diamantes no corpo e já não prestava mais atenção aos
entusiasmos de Ashe sobre o livro. Deixou que os pensamentos tomassem outros
rumos e começou a refletir se não teria sido melhor sua sorte ter vindo em
parcelas, para que pudesse saboreá-la aos poucos. Poder vivenciar cada momento
isoladamente.
Pensou em King's Lynn, e as narinas palpitaram com a lembrança do odor das
ricas pastagens de Matabeleland. Pensou no Águas do Zambeze e ouviu novamente o
ruído de um grande corpo entre as moitas arrancadas, pensou nos vinte capítulos
que sucederiam os três iniciais e sentiu-se cheio de expectativa. Seria possível
que fosse o homem mais feliz do mundo naquele momento?
Não, não era. Compreendeu de repente que o gozo completo da felicidade só
poderia ser atingido se o compartilhasse com outro ser humano. Descobriu em si
um espaço vazio, uma lacuna, ao lembrar dos olhos com estranhos pontinhos
amarelos e da boca jovem e firme de Sally-Anne. Queria contar-lhe tudo, ler para
ela aqueles três capítulos e, de repente, desejou com todas as forças estar de
volta à África.
CRAIG ACHOU um Land-Rover de segunda mão no pátio de carros usados de Jock
Daniels que ficava ao lado do escritório de leilões. Não deu ouvidos à conversa
de vendedor dele e, em vez disso, ficou escutando o motor. Estava desregulado,
mas não havia ruídos estranhos ou "grilos". A transmissão dianteira engatava
perfeitamente e a embreagem resistia aos freios, quando foi testá-lo num terreno
acidentado nos arredores da cidade. O silenciador caiu, mas o resto agüentou.
Houve época em que era capaz de desmontar um Land-Rover e remontá-lo em uma
semana. Sabia que poderia aproveitar bem aquele. Conseguiu baixar o preço em mil
dólares e, mesmo assim, Jock recebeu um pagamento excessivo, mas estava com
pressa.
Empilhou no jipe tudo o que sobrara da venda do iate: uma mala de roupas,
alguns livros favoritos e um baú contendo os diários de família.
Esses diários eram toda a sua herança, tudo o que Bawu lhe deixara. O
restante das propriedades, inclusive as ações da Rholands, ficou para o filho
mais velho, seu tio Douglas, que vendera tudo e fora para a Austrália. No
entanto, aqueles velhos diários com textos manuscritos representavam a melhor
parte da herança. Eles forneceram o arcabouço para escrever o livro que lhe
trouxera tudo: realização, fama, fortuna, e até a própria Rholands viera ter às
suas mãos através daqueles documentos.
Ficou pensando quantas milhares de vezes dirigira em direção a King's Lynn -
mas nunca antes como naquele momento, nunca como o patrão. Parou no portão
principal para que pudesse tocar com os pés a própria terra pela primeira vez.
Pisou-a e olhou em torno a pastagem dourada, as moitas de acácias, a silhueta
das colinas azul-acinzentadas a distância, a cúpula azul do céu, e ajoelhou-se
como em oração. Era o único momento em que a perna o incomodava. Apanhou um
punhado da terra entre as mãos, quase tão rica e vermelha como a carne que nela
crescia. Dividiu-a em duas partes e deixou que uma pequena porção escorresse de
volta ao solo.
- Eis os seus dez por cento, Petèr Fungabera - sussurrou. - Mas esta aqui é
minha, e juro ampará-la por toda a vida, protegê-la e amá-la com a ajuda de
Deus.
Sentindo-se um pouco tolo com toda essa encenação, deixou a terra cair,
esfregou as mãos nas calças e voltou para o Land-Rover.
Na planície que antecedia a sede, encontrou um homem alto e magro que vinha
pela estrada com um cobertor gorduroso e sujo às costas, um pedaço de pano entre
as pernas e, sobre o ombro, um par de porretes. Os pés estavam calçados com
sandálias feitas de pneu velho e os brincos eram tampas de garrafas de ácido
embelezadas com contas coloridas, que tornavam os lóbulos das orelhas três vezes
maiores que o normal. Tocava à frente um pequeno rebanho de cabras.
- Eu o saúdo, irmão mais velho - cumprimentou-o, e o ancião mostrou a falha
dos dentes amarelados ao sorrir diante da cortesia do cumprimento e, também, ao
reconhecê-lo.
- Eu o saúdo, Nkosi. - Era o mesmo velho que encontrara agachado em frente
aos alojamentos de King's Lynn.
- Quando será que vai chover? - perguntou-lhe Craig, estendendo um maço de
cigarros que comprara especialmente para esse encontro.
Começaram a conversar à maneira despreocupada que precede na África qualquer
discussão séria.
- Qual é o seu nome, velho? - Um termo respeitoso e não uma acusação de
senilidade.
- Meu nome é Shadrach.
- Diga-me, Shadrach, suas cabras estão à venda? - pôde, enfim, perguntar sem
ser grosseiro, e a esperteza brilhou instantaneamente nos olhos do velho.
- São lindas cabras - disse. - Separar-me delas seria como me separar de meus
filhos.
Shadrach era o porta-voz e o líder da pequena comunidade de posseiros que
fixara residência em King's Lynn e, através dele, Craig descobriu que podia
negociar com todos, o que foi um alívio. Pouparia muito tempo e um bocado de
desgaste emocional.
Mas não iria privar Shadrach da oportunidade de mostrar sua habilidade em
barganhar, nem insultá-lo tentando apressar as negociações que, assim,
estenderam-se pelos dois dias seguintes, enquanto Craig refazia o teto do velho
bangalô de hóspedes com uma lona pesada, recolocava a bomba com motor para tirar
água do poço e acomodava a nova cama de campanha no quarto vazio.
No terceiro dia, o preço de venda foi acertado e tornou-se o proprietário de
quase duas mil cabras. Pagou-as em dinheiro vivo, entregando cada nota e moeda
pessoalmente a cada um para evitar brigas e, em seguida, amontoou suas ruidosas
aquisições em quatro caminhões alugados e mandou-as para os abatedouros de
Bulawayo, saturando o mercado e fazendo cair o preço em cinqüenta por cento.
Teve uma perda líquida de dez mil dólares na transação toda.
- Mas que grande estréia no mundo dos negócios. - Sorriu, e mandou chamar
Shadrach.
- Diga-me, velho, o que conhece sobre gado? - O que era como perguntar a um
polinésio o que sabia sobre peixe ou a um suíço se algum dia vira neve.
Quando era desta altura - respondeu Shadrach, indignado, abaixando-se e
mostrando o meio de sua perna -, esguichava leite quente da teta da vaca na
minha boca. Desta altura - deslocando a mão um pouco mais para cima -, tinha
duzentas cabeças sob a minha guarda. Ajudava os bezerros a nascerem quando
ficavam presos no ventre da mãe; carregava-os nestes ombros quando o pasto
ficava alagado. E desta altura - colocando a mão pouco acima do joelho -, matei
uma leoa, com minha lança assegai, quando atacou meu rebanho...
Craig ouviu a história pacientemente, até chegar pouco a pouco à altura dos
ombros, e Shadrach finalizou:
- E ainda ousa me perguntar se conheço gado!
- Breve, neste pasto, vou criar vacas tão magníficas e bonitas que, só de
olhá-las, seus olhos vão ficar rasos d'água. Terei touros cujos pêlos vão
brilhar como a água ao sol, suas corcovas serão como grandes montanhas nas
costas e as papadas pesadas e gordas vão se arrastar sobre a terra quando
caminharem.
- Uau! - exclamou Shadrach, de puro assombro, impressionado tanto pelo
lirismo de Craig como pelo fato em si.
- Preciso de um homem que saiba lidar com o gado, e com homens.
Shadrach achou-os para ele. Escolheu vinte, entre as famílias de posseiros,
todos fortes e com boa vontade, nem jovens demais para serem tolos e levianos, e
nem velhos demais para serem frágeis.
- Os outros - disse com desprezo - são o produto do casamento de babuínos com
mashona ladrões de gado. Eu ordenei que saíssem de nossa terra.
Craig sorriu diante daquele possessivo plural, mas ficou impressionado com o
fato de que, quando ele ordenava, os homens obedeciam.
Shadrach reuniu os recrutados defronte ao bangalô rusticamente consertado e
fez-lhes um tradicional giya, o discurso e pantomima inflados com que os velhos
induna matabele levantavam o moral dos guerreiros na véspera da batalha.
- Vocês me conhecem! - berrou. - Sabem que minha trisavô era filha do velho
rei Lobengula, o que corre como o vento.
- Êh-êh! - Começavam a entrar no espírito da coisa.
- Sabem que eu sou um príncipe de sangue real, e, num mundo justo, seria de
direito um induna com mil homens, com penas de pássaro no cabelo e caudas de boi
penduradas no meu escudo de guerra - e balançou no ar os porretes de luta.
- Êh-êh! - Observando-lhes a expressão, Craig viu o verdadeiro respeito que
tinham pelo velho e ficou encantado com sua escolha.
- E agora! - continuou Shadrach em tom de cantilena. - Por causa da sabedoria
e da visão do jovem Nkosi, tornei-me um induna. Sou o induna de King's Lynn -
nome que pronunciava "Kingi Lingi" - e vocês são os meus amadoda, os meus
guerreiros escolhidos - proclamou.
- Êh-êh! - concordaram em coro e bateram os pés nus na terra com estrondo.
- Olhem para este homem branco. Podem achar que é jovem e imberbe, mas saibam
que é o neto de Bawu e o bisneto de Taka Taka.
- Uau! - exclamaram surpresos os guerreiros de Shadrach porque eram nomes
famosos. Tinham conhecido Bawu em carne e osso e Sir Ralph Ballantyne apenas
como uma lenda. Taka Taka era o nome onomatopaico que recebera dos matabele
devido ao som da metralhadora Maxim que usara com tanta eficácia durante sua
revolta, e olharam para Craig com novo respeito.
- Sim - incitou-os Shadrach -, olhem para ele. É um guerreiro que tem
cicatrizes terríveis da guerrilha. Matou centenas de mashona covardes e
estupradores de mulheres. - Craig pestanejou ao ver com que licença poética
recontava sua história. - Matou até bravos lutadores matabele de coração de leão
do ZIPRA e agora vocês o conhecem como ele é: um homem, e não um menino.
- Êh-êh! - aclamaram, sem mostrar qualquer rancor com a suposta morte de seus
irmãos.
- Saibam também que veio para transformar vocês de mulheres guardadoras de
cabras que ficam coçando pulgas ao sol em orgulhosos vaqueiros de novo, porque -
e Shadrach fez uma pausa dramática - breve, neste pasto, vão pastar vacas tão
magníficas e bonitas que só de olhar para elas vão ficar com os olhos rasos
d'água.
Craig notou que Shadrach podia repetir perfeitamente suas próprias palavras,
mostrando a admirável memória dos iletrados. Quando terminou, dando um pulo no
ar como uma grande cegonha e uma batida dos porretes, aplaudiram-no com
entusiasmo e olharam para Craig em expectativa.
Vai ser difícil me sair tão bem quanto ele, pensou Craig, ao levantar-se para
falar em um sindebele baixo e musical.
- O gado logo estará aqui, e há muito trabalho a ser feito antes que chegue.
Vocês sabem qual é o salário que o governo fixou para os trabalhadores do campo.
Vou pagá-lo a cada um e também darei rações de comida para vocês e suas famílias
- o que foi recebido sem qualquer mostra de entusiasmo. - Além disso - e fez uma
pausa -, para cada ano de serviço que completarem, receberão uma vaca jovem de
boa qualidade e terão o direito de fazê-la pastar em Kingi Lingi, e o direito,
também, de cruzá-la com meus grandes touros para que tenha lindas crias.
- Êh-êh! - gritaram e bateram com os pés de alegria, até que Craig estendeu
as mãos.
- Pode ser que alguns de vocês fiquem tentados em tirar o que me pertence ou
achem alguma sombra de árvore para passar o dia em vez de estender o arame
farpado ou cuidar do gado - e olhou-os severamente, fazendo-os se encolherem. -
Este sábio governo proíbe que um homem dê um chute no outro, mas estejam bem
prevenidos, posso chutá-los sem usar meus próprios pés. - E abaixou-se, tirando
a perna com um movimento rápido e ficou diante deles segurando-a nas mãos,
deixando-os atônitos. - Vejam bem, não é o meu pé! - Os rostos começaram a ficar
assustados como diante de uma terrível feitiçaria, começaram a mexer-se
nervosamente e a olhar em torno para fugir. - E assim - gritou Craig - posso
chutar quem eu quero sem quebrar a lei. - Em dois saltos, usou o impulso para
bater com a bota da perna mecânica no traseiro do mais próximo guerreiro.
Por um momento, o silêncio atônito continuou, mas em seguida foram dominados
pelo próprio senso de ridículo. Riram às bandeiras despregadas, girando em
círculos e batendo com as mãos, abraçando-se e arfando com as risadas. Cercaram
o infeliz alvo da brincadeira de Craig, troçando, cutucando-o e morrendo de rir.
Shadrach, deixando de lado a dignidade de príncipe, caiu no chão às gargalhadas.
Craig olhava-os afetuosamente. Já eram a sua gente, a sua responsabilidade.
Claro que haveria maus elementos entre eles e teria de fazer uma seleção. E
claro que mesmo os melhores testariam deliberadamente a sua vigilância e
resolução, como era o costume africano, mas com o tempo acabariam por formar uma
família unida e sabia que aprenderia a amá-los.
NAS SEMANAS seguintes, Craig descobriu que podia sobreviver com muito menos
horas de sono do que imaginara possível. Levantava-se toda manhã às quatro e
meia e ia buscar as equipes matabele nas cabanas. Emergiam de lá sonolentos,
ainda embrulhados em cobertores e tremendo com o frio da madrugada, tossindo por
causa da fumaça das fogueiras e resmungando sem qualquer raiva.
Ao meio-dia, deitava-se à sombra de uma acácia e dormia a sesta como todos.
Reanimado, trabalhava a tarde toda até que ouvissem o som do gongo de estrada de
ferro dependurado em um jacarandá perto da sede; o grito de Shayle!, "bateu a
hora!", era passado adiante de equipe a equipe, e todos voltavam, subindo as
colinas.
Craig lavava o suor e a poeira no reservatório de concreto por trás do
bangalô, fazia uma refeição apressada e, quando ficava escuro, sentava-se numa
mesinha barata de jogo, à luz esbranquiçada e sibilante de um lampião a gás, com
uma pilha de papéis à frente e uma caneta, transportado a outro mundo
imaginário. Algumas noites, escrevia até bem depois de meia-noite, e às quatro e
trinta já estava de pé, no sereno da madrugada ainda indefinida, sentindo-se
alerta e vigoroso.
O sol escureceu-lhe a pele e clareou os cabelos que lhe caíam na testa; o
duro trabalho físico desenvolveu-lhe os músculos e enrijeceu o coto amputado, o
que lhe permitiu andar pelas cercas o dia inteiro sem desconforto. Havia tão
pouco tempo a desperdiçar que a comida que fazia era a mais simples possível e a
garrafa de uísque ficara fechada na mochila - o que o tornou esbelto e com o
rosto anguloso de um falcão.
Uma noite, ao parar o Land-Rover debaixo dos jacarandás e começar a subir em
direção ao bangalô, o aroma de rosbife e batatas atingiu-lhe em cheio as
narinas. Ficou com a boca cheia d'água e recomeçou a subida, repentinamente
esfomeado.
Na minúscula cozinha improvisada, havia uma figura muito magra ao lado do
fogo. O cabelo era macio e branco como algodão e levantou os olhos para Craig
com uma expressão acusadora.
- Por que não mandou me buscar? - perguntou em sindebele. Só eu cozinho aqui
em Kingi Lingi.
- Joseph! - gritou Craig, e abraçou-o impetuosamente.
O velho fora o cozinheiro de Bawu por trinta anos. Podia servir um banquete
formal para cinqüenta convidados ou preparar uma caçarola de carnes de caça em
plena mata. Já havia pão assando em um forno improvisado e preparara um prato de
salada que conseguira catar na horta abandonada.
Joseph libertou-se do abraço, um pouco chocado com aquela quebra de etiqueta.
- Nkosana - ainda usava o diminutivo -, suas roupas estavam sujas e sua cama
por fazer - repreendeu-o severamente. - Trabalhamos o dia todo para endireitar a
bagunça que fez.
Só então Craig reparou no outro homem na cozinha.
- Kapa-lala - riu alegremente, e o criado sorriu e balançou a cabeça
prazerosamente.
Estava passando roupa com o ferro pesado e preto cheio de brasas. Todas as
suas roupas, e as de cama, tinham sido lavadas e estavam sendo passadas de
maneira impecável. As paredes do bangalô tinham sido lavadas, também, e o
assoalho, muito bem polido. Até as torneiras da pia brilhavam como os botões de
um uniforme de fuzileiro.
- Fiz uma lista das coisas que precisamos - disse Joseph. - Por enquanto
servem, mas não é adequado que viva assim nesta choupana. Seu avô Nkosi Bawu
teria desaprovado isso. - Joseph, o cozinheiro, tinha idéias definidas sobre
estilo. - Assim, mandei um recado ao tio de minha mulher mais velha que é um
mestre em empalhar telhados, e disse-lhe que trouxesse também o filho mais velho
que é pedreiro, e o sobrinho, que é um ótimo marceneiro. Amanhã chegam aqui para
consertar os estragos que estes cães fizeram na casa-grande. Quanto aos jardins,
conheço um homem - e contava nos dedos o que achava necessário para restabelecer
um pouco de ordem em King's Lynn. - E estaremos prontos para convidar trinta
pessoas para a ceia de Natal como fazíamos nos velhos tempos. E agora, Nkosana,
vá tomar banho. O jantar vai ser servido daqui a quinze minutos.
Com os pastos bem cercados e o trabalho de restauração dos prédios e da sede
encaminhados, Craig podia finalmente começar o passo vital de recomprar gado.
Chamou Shadrach e Joseph, entregou King's Lynn aos cuidados dos dois durante sua
ausência, e ambos aceitaram a responsabilidade com ar grave. Foi até o
aeroporto, deixou o Land-Rover no estacionamento e tomou um dos vôos comerciais
para o sul.
Por três semanas, viajou por todos os grandes ranchos de criação do Transvaal
do Norte, a província da África do Sul cujo clima e condições mais se pareciam
aos de Matabeleland. A compra de gado de raça não era uma transação que pudesse
ser apressada. Cada uma era precedida por dias de discussão com o vendedor e com
o exame dos animais, enquanto gozava da tradicional hospitalidade campestre dos
sul-africanos brancos, os africânderes. Seus anfitriões eram homens cujos
antepassados tinham trilhado o cabo da Boa Esperança na direção norte em carros
de boi, e a vida inteira criaram esses animais. Enquanto fazia as transações,
aproveitava para acumular informações sobre as técnicas de manejo e as
experiências feitas com raças diferentes para melhorar os rebanhos. Tudo o que
aprendeu reforçou-lhe o desejo de continuar as bem-sucedidas experiências de
Bawu com as cruzas da raça indígena Afrikander, conhecida pela resistência às
doenças e à seca, com a Santa Gertrudes, que procriava mais rapidamente.
Comprou novilhas que já estavam prenhes através de inseminação artificial,
touros de bom pedigree com ascendentes famosos, e ocupou-se da documentação,
inspeção, vacinação, quarentena e seguro que eram necessários antes que fosse
permitido cruzar uma fronteira internacional com o gado. Enquanto isso,
providenciou o envio por estrada até King's Lynn, ao norte, com um pessoal
especializado em transporte de gado de alta qualidade.
Gastou quase dois milhões dos dólares emprestados antes de voltar a King's
Lynn e fazer os preparativos finais para a chegada do rebanho. A entrega dos
animais de raça tinha de ser escalonada ao longo de meses, para que cada lote
fosse recebido adequadamente e pudesse aclimatar-se antes que chegasse a próxima
remessa.
Os primeiros a chegar foram quatro jovens touros, prontos para assumir a
função de reprodutores. Craig pagara quinze mil dólares cada. Peter Fungabera
estava decidido a transformar essa chegada em uma grande ocasião. Convenceu dois
colegas de ministério a comparecer à cerimônia de boas-vindas, apesar de nem o
primeiro-ministro nem o de Turismo, Tungata Zebiwe, estarem livres naquele dia.
Craig alugou um toldo, e Joseph, cheio de felicidade e importância, preparou
um de seus legendários banquetes ao ar livre. E Craig, que ainda estava
preocupado com o fato de ter gasto dois milhões, resolveu economizar no
champanhe, encomendando a imitação feita no cabo da Boa Esperança, em vez do
artigo genuíno.
A comitiva ministerial chegou em uma flotilha de Mercedes negras, acompanhada
por uma guarda fortemente armada, todos usando óculos escuros do tipo predileto
dos pilotos. As senhoras estavam vestidas com longos estampados nas cores mais
improváveis e berrantes. O champanhe barato e doce foi consumido como se
houvessem tirado a rolha de uma banheira cheia, e todas, dali a pouco, estavam
dando risadinhas e pipilando como um bando de pardais vistosos. A mulher mais
velha do ministro da Educação desabotoou a blusa, mostrando seios opulentos e
negros, e tratou de dar ao bebê preso às cadeiras um almoço precoce, enquanto
continuava a tomar uma copiosa quantidade de champanhe.
- Reabastecimento em pleno vôo - observou, rindo, um dos vizinhos brancos de
Craig, ex-piloto de bombardeiro da RAF.
Peter Fungabera foi o último a chegar, em uniforme completo; seu motorista
era um jovem ajudante-de-ordens, capitão da Terceira Brigada, que Craig já
notara em outras ocasiões e, dessa vez, Peter apresentou-o:
- Capitão Timon Nbebi.
Era tão magro a ponto de parecer frágil, os olhos por trás dos óculos de aro
de aço, vulneráveis demais para um soldado e o aperto de mão, rápido e nervoso.
Craig teria gostado de conversar com ele, mas, nesse momento, o transporte que
trazia os touros já subia as colinas.
Dirigiu-se em uma nuvem de fina poeira vermelha até o curral preparado para
os animais. A prancha foi abaixada e, antes de abrirem-se as portinholas, Peter
Fungabera subiu em um dos estrados e dirigiu-se aos convidados.
- O sr. Craig Mellow é um homem que poderia ter escolhido qualquer país do
mundo para viver e, como um escritor de fama internacional, teria sido bem-
vindo. Preferiu voltar ao Zimbábue e, com isso, deixou claro ao mundo que esta é
uma terra onde homens de qualquer cor, de qualquer tribo, pretos ou brancos,
mashona ou matabele, são livres para viver e trabalhar, sem medo e sem serem
molestados, a salvo sob o governo de leis justas. - Depois do comercial
político, permitiu-se uma piadinha. - Vamos agora saudar esses novos imigrantes,
com o conhecimento seguro de que serão os pais de muitos filhos e filhas
admiráveis, contribuindo para a prosperidade de nosso Zimbábue.
Peter Fungabera iniciou os aplausos quando Craig levantou as portinholas e o
primeiro imigrante emergiu, aturdido pela luz do sol. Era um enorme animal, com
mais de uma tonelada de músculos salientes sob o couro castanho-avermelhado e
lustroso. Suportara dezesseis horas aos trancos, preso em um contêiner
barulhento. O efeito dos tranqüilizantes que lhe haviam dado acabara, deixando-o
com uma ressaca enorme e um ressentimento amargo contra o mundo em geral. Olhou
para o ajuntamento que batia palmas, para as cores esvoaçantes dos vestidos
tradicionais femininos, e achou finalmente um alvo para a irritação e a
frustração. Soltou um mugido feroz e, arrastando os manobreiros que o seguravam,
atirou-se como uma avalanche prancha abaixo.
Os homens o soltaram e a barreira de proteção explodiu diante da carga do
animal, assim como o grupo ministerial. Espalharam-se como sardinhas fugindo do
ataque de uma barracuda faminta. Funcionários graduados ultrapassaram as esposas
na corrida para a proteção oferecida pelos jacarandás e as crianças amarradas às
costas das mães berravam tanto quanto elas.
O touro foi a toda velocidade para a tenda onde seria servido o almoço;
atingindo de raspão as cordas que a prendiam, fê-la desabar por cima de uma
horda de celebrantes em pânico. Irrompeu do lado oposto no momento exato em que
uma das mais jovens esposas ministeriais corria, gritando de terror e cruzando
seu caminho. Tentou chifrá-la com um dos longos cornos mas a ponta atingiu
somente a beira do vestido. Ao levantar a cabeça, o pano colorido desenrolou-se
do corpo da jovem que fez uma pirueta involuntária, conseguiu equilibrar-se e,
completamente nua, subiu correndo a colina com as longas pernas e os seios
abundantes balançando.
- Aposto dois contra um como a potranca ganha por uma teta - berrou extasiado
o ex-piloto da RAF, que também bebera um bocado do champanhe barato.
O pano vistoso enrolara-se na cabeça do animal e conseguiu levá- lo da
simples raiva ao ódio mortal. Balançou a grande cabeça onde o vestido tremulava,
como um estandarte de batalha. Acabou libertando um de seus olhos e pousou-o no
honrado ministro da Educação, o menos dotado dos corredores, que ainda subia
penosamente a encosta.
O ministro ostentava o excesso de peso que convém a um homem de tal importância.
A enorme barriga protuberante oscilava sob o fraque, o rosto estava cor de cinza
e gritava em falsete, aterrorizado e exausto:
- Atirem nele! Atirem neste diabo!
Seus guarda-costas ignoraram as ordens. Estavam cinqüenta passos à sua frente e
aumentando a distância.
Craig olhava, impotente, do alto do caminhão, quando o touro abaixou a cabeça e
subiu o declive atrás do ministro. Voava poeira dos cascos e tornou a mugir. O
estrondo, que soou às costas do ministro, pareceu impulsioná-lo. Revelando ser
melhor alpinista que corredor, subiu pelo tronco do primeiro jacarandá à frente
e pendurou-se precariamente nos ramos.
O touro tornou a mugir em frustração assassina, olhando para a figura apavorada,
escavou a terra com os cascos e golpeou o ar com os chifres.
- Façam alguma coisa - berrou o ministro. - Tirem-no daqui!
Os guarda-costas olharam para trás e, vendo o impasse, recuperaram a coragem.
Pararam, tiraram as armas e começaram a se aproximar cautelosamente do touro e
de sua vítima.
- Não! - berrou Craig ao ouvir o ruído de carregar das armas automáticas. - Não
atirem!
Estava certo de que o seguro não cobriria "disparos deliberados de rifle", e,
muito acima dessa consideração, uma rajada ricochetearia por trás do touro,
inclusive no estrado e em seus ocupantes, um bando de mulheres e crianças, e no
próprio Craig.
Um dos guarda-costas uniformizados levantou o rifle e fez pontaria, mas os
recentes acontecimentos e o terror não permitiam que a mão ficasse firme: o cano
da arma descrevia círculos no ar.
- Não! - berrou Craig outra vez e atirou-se no chão do trailer.
Naquele momento, uma figura alta e magra interpôs-se entre o rifle e o touro.
- Shadrach - suspirou Craig aliviado, e o velho empurrou imperiosamente o cano
do fuzil e virou-se para o animal.
- Eu o saúdo, Nkunzi Kakhulu! Grande touro! - cumprimentou-o cortesmente.
O touro virou a cabeça ao som da voz, viu claramente Shadrach e bufou
ameaçadoramente.
- Oh, senhor do gado, como és belo! - Shadrach avançou um passo em direção
aos chifres afiados.
O touro bateu com os cascos na terra e ensaiou uma corrida, mas Shadrach não
se mexeu e o touro parou.
- Que cabeça nobre! - continuou. - Teus olhos são como duas luas negras.
O touro apontou os chifres para ele, mas o movimento foi menos violento e
Shadrach deu outro passo adiante. Os gritos de terror das mulheres e crianças
cessaram e até mesmo os mais medrosos pararam de correr e olharam para trás,
para o velho e o animal enfurecido.
- Teus chifres são afiados como a lança assegai do grande Mzilikazi.
Shadrach continuou a caminhar e o touro piscou, incerto, e olhou-o com os
olhos avermelhados.
- Como são gloriosos os teus testículos - murmurou Shadrach docemente. - São
como bolas de granito e dez mil vacas vão sentir o seu peso e majestade.
O touro esboçou um passo e fez um pequeno movimento com a cabeça.
- Teu sopro é como o vento norte, meu incomparável rei dos touros - Shadrach
estendeu a mão lentamente e todos observavam sem respirar.
- Meu querido - e tocou o pêlo lustroso, molhado e cor de chocolate; o touro
recuou, nervoso, e voltou cautelosamente para cheirar-lhe os dedos. - Meu doce
querido, pai de grandes touros... - Gentilmente, Shadrach passou o indicador
pelo pesado anel de bronze do nariz e segurou a cabeça do animal. Inclinou-se,
colocando a boca nas narinas rosadas e dilatadas e soprou dentro delas.
O touro estremeceu, e Craig pôde ver claramente os músculos do pescoço
relaxarem. Shadrach endireitou-se e, com o dedo ainda passado pelo anel do
nariz, foi-se afastando e o touro seguiu-o placidamente, balançando a papada. A
audiência começou uma pequena ovação de alívio e pasmo, e silenciou, quando
Shadrach lançou-lhes um olhar gelado cheio de desprezo.
- Nkosi! - exclamou para Craig. - Tire estes macacos mashona barulhentos da
nossa terra. Estão perturbando o meu querido e Craig fez votos ardentes para que
nenhum dos ilustres convidados soubesse sindebele.
E maravilhou-se novamente com o elo quase místico que existia entre o povo
Ngusi e o gado. Desde a época, há muito obscurecida pelas névoas do tempo, em
que os primeiros rebanhos tinham sido tangidos do Egito para iniciar, durante
séculos, migrações para o sul, o destino do homem negro e do animal ficara
inexoravelmente ligado. Aquela raça de corcova originara-se na Índia, da espécie
Bos indicus, diferente da Bos taurus européia, mas com o tempo tornara-se tão
africana quanto as tribos que a estimavam e repartiam com ela as vidas. Era
estranho, ponderou, mas as tribos de gado pareciam sempre mais dominantes a
aguerridas, como os Masai, os Bechuana e os Zulu, que sempre dominaram os
agricultores da terra. Talvez fosse a constante necessidade de buscar pastagens,
defendê- las contra os outros e proteger o gado dos predadores, tanto humanos
como animais, que os tornava tão belicosos.
Naquele momento, observando Shadrach conduzir o enorme touro, não havia como
enganar-se com aquela arrogância senhoril; mestre e animal eram nobres em sua
aliança. O que não era o caso do ministro da Educação, ainda agarrado como um
gato ao galho do jacarandá: Craig foi reforçar os encorajamentos dos guarda-
costas para que descesse de lá.
Peter Fungabera foi o último convidado a se retirar e acompanhou Craig numa
turnê pela casa, saboreando o cheiro doce da palha dourada que já cobria metade
do telhado.
- Meu avô substituiu a palha original por telhas de cimento amianto durante a
guerra - explicou Craig. - Seus foguetes RPG7 eram verdadeiras brasas.
- Sim - concordou Peter em voz neutra. - Começamos um bocado de fogueiras com
eles.
- Para dizer a verdade, sinto-me grato pela chance de restaurar o prédio. A
palha é mais fresca e pitoresca, e tanto a fiação como o encanamento precisam de
reparos.
- Preciso cumprimentá-lo pelo que conseguiu em tão pouco tempo. Logo estará
vivendo à maneira grandiosa que seus ancestrais acostumaram-se a ter desde que
tomaram esta terra.
Craig olhou-o vivamente, esperando ver sinais de malevolência, mas o sorriso
de Peter era tão encantador e natural como sempre.
- Todas essas melhorias contribuem enormemente para o valor da propriedade -
frisou Craig -, e você tem uma boa porcentagem dela.
- Naturalmente. - Peter colocou a mão num gesto apaziguador no braço dele. - E
ainda há muito trabalho a fazer. Quando vai começar o projeto do Águas do
Zambeze?
- Estou quase pronto para isso; logo que chegar o resto do gado e tenha Sally-
Anne para me ajudar com os detalhes.
- Ah - disse Peter -, então, pode começar imediatamente. Sally-Anne já chegou a
Harare ontem de manhã. - Craig sentiu uma onda de prazer e antecipação com essas
palavras.
- Vou até a cidade esta noite para lhe telefonar.
Peter Fungabera soltou uma exclamação de aborrecimento.
- Como, ainda não instalaram seu telefone? Vou providenciar isso amanhã. Nesse
meio tempo, pode usar o meu rádio.
O mecânico da companhia telefônica apareceu antes do meio-dia do dia seguinte e
o Cessna de Sally-Anne chegou zumbindo uma hora mais tarde, vindo do leste.
Craig colocara um pote cheio de trapos embebidos em óleo Diesel queimando para
assinalar a antiga pista de pouso e dar-lhe a direção do vento; o avião
aterrissou e taxiou até onde ele parara o Land-Rover.
Quando ela saltou da cabine, viu que esquecera a maneira alerta e viva com que
se movimentava e a forma das pernas dentro dos jeans justos. O sorriso era de
verdadeira alegria e o aperto de mão, firme e quente. Não estava usando nada por
baixo da blusa de algodão e notou o olhar guloso que ele lhe lançou de alto a
baixo, mas não demonstrou qualquer ressentimento.
- Que belo rancho, lá de cima - disse.
- Deixe-me mostrá-lo - convidou-a, e ela colocou a bolsa no assento traseiro do
Land-Rover, passando a perna sobre a porta como um garoto.
Já entardecia quando voltaram à sede.
- Kapa-lala preparou-lhe um quarto e Joseph cozinhou o seu jantar especial. O
gerador está finalmente, funcionando e temos luz elétrica, a caldeira funcionou
o dia inteiro e podemos lhe oferecer um banho quente, ou será que quer ir para
um motel na cidade?
- Vamos economizar gasolina - aceitou com um sorriso.
Veio para a varanda com os cabelos molhados enrolados numa toalha, e deixou-se
cair na cadeira ao lado dele, colocando os pés na mureta.
- Meu Deus, foi ótimo. - Cheirava a sabonete e ainda estava com a pele rosada
do banho.
- Como gosta do uísque?
- Com muito gelo.
Tomou um gole com um suspiro, e ficaram admirando o crepúsculo. O céu estava
esplendorosamente matizado em tons de vermelho. Aquele espetáculo deixou-os
cativos; seria blasfêmia falar enquanto durasse. Viram o sol se pôr em silêncio,
e só então Craig inclinou-se e entregou-lhe um maço fino de papéis.
- O que é? - perguntou, curiosamente.
- Um pagamento parcial pelos seus serviços como consultora e conferencista
visitante no Águas de Zambeze. - E Craig ligou a lâmpada ao lado de sua cadeira.
Ela leu lentamente, relendo três ou quatro vezes cada folha, e, finalmente,
ficou sentada depois de colocar as folhas protetoramente no regaço, contemplando
a noite.
- É apenas um esboço das primeiras páginas. Sugeri também quais as
fotografias que deveriam ser colocadas na outra folha em cada página - Craig
quebrou desajeitadamente o silêncio. - Claro que só vi algumas. Tenho certeza de
que tem centenas de outras. Pensei que podíamos fazer umas duzentas e cinqüenta
páginas, com o mesmo número de fotos. - Todas em cores, naturalmente.
- Estava assustado? - Ela virou lentamente a cabeça para olhá-lo. - Mas que
droga, Craig Mellow, quem está assustada agora sou eu.
Viu que havia novamente lágrimas em seus olhos.
- Isto é tão... - procurou uma palavra e desistiu. - Se colocar minhas fotos
ao lado disso, elas vão parecer insignificantes e desmerecedoras do amor
profundo que você expressa tão eloqüentemente por esta terra.
Ele balançou a cabeça negativamente e ela tornou a pegar as folhas para ler.
- Está mesmo seguro, Craig, de que quer fazer este livro comigo?
- Sim, sem dúvida alguma.
- Obrigada - ela disse com simplicidade, e naquele momento Craig soube afinal
que seriam amantes; não naquele instante, nem naquela noite, era ainda muito
cedo. Mas um dia possuiriam um ao outro.
Percebeu que ela também sabia, porque, apesar de falarem muito pouco depois
disso, suas faces, sob o bronzeado, tingiam-se com um sangue jovem e tímido e
baixava os olhos sempre que a olhava, incapaz de encará-lo.
Depois do jantar, Joseph serviu o café na varanda e, quando saiu, Craig
apagou as luzes; ficaram na escuridão, vendo a lua nascer sobre as árvores msasa
nas colinas do outro lado do vale.
Quando ela levantou-se para recolher-se, ficaram de pé, frente a frente, e
disse-lhe, mais uma vez, suavemente:
- Obrigada. - Inclinou a cabeça para trás, e ficou na ponta dos pés, roçando-
lhe o rosto com os lábios delicados; sabia, no entanto, que não estava pronta e
não fez qualquer esforço para detê-la.
O DR. JOSEPH PETAL, QC, abriu a defesa chamando para depor o chofer de Tungata.
Era um matabele corpulento apesar de jovem, já mais para gordo, com uma cara
redonda que deveria ser jovial e sorridente, mas estava naquele momento
carrancuda e preocupada. A cabeça fora raspada recentemente e nunca olhou para
Tungata durante o depoimento.
- Na noite em que foi preso, que ordens recebeu do ministro Tungata?
- Nenhuma. Não recebi nenhuma ordem.
O dr. Petal ficou realmente intrigado e consultou as anotações.
- Não lhe disse para onde iam? Não sabia para onde estavam indo?
- Ele dizia, "Vá direto em frente", "dobre à esquerda aqui", "vire à direita lá"
- murmurou o chofer.
Era óbvio que o dr. Petal não esperava uma resposta dessas.
- O ministro Tungata não lhe deu ordens de dirigir-se para a missão Tuti?
- Objeção, meritíssimo.
- Não conduza a testemunha, dr. Petal.
O advogado estava visivelmente perplexo. Mexeu nos papéis, olhou para Tungata
Zebiwe, que estava completamente impassível, e resolveu mudar a orientação das
perguntas.
- Desde a noite em que foi preso, onde esteve?
- Na prisão.
- Foi visitado por alguém lá?
- Por minha mulher.
- Mais ninguém?
- Não. - O chofer abanou a cabeça em defensiva.
- Que marcas são essas em sua cabeça? O senhor foi espancado?
Pela primeira vez, Craig notou os calombos escuros na cabeça raspada.
Meritíssimo, preciso fazer objeção a isso - gritou Abel Khori em tom lamentoso.
j)r Petal, qual é o objetivo destas perguntas? - perguntou o juiz Domashawa em
tom ameaçador.
Estou tentando descobrir por que o depoimento da testemunha contradiz o
depoimento que fez à polícia, meritíssimo.
O dr. Petal lutou para obter uma resposta clara da testemunha hostil e nada
cooperativa, e finalmente desistiu com um gesto resignado.
Não tenho mais perguntas. - E Abel Khori levantou-se para interrogá-lo.
- O caminhão piscou as luzes para vocês?
- Sim.
- E o que aconteceu?
- Não compreendo.
- Alguém no Mercedes disse ou fez algo quando viram o caminhão?
- Objeção... - começou o dr. Petal.
- Acho que a pergunta é válida. A testemunha deve responder - interrompeu-o o
juiz.
O chofer franziu as sobrancelhas no esforço de lembrar-se e resmungou:
- O camarada ministro Zebiwe disse: "Lá está ele, vá para perto dele e pare".
- Aí está! - E Abel Khori repetiu lenta e claramente: - "Vá para perto dele e
pare". Foi isto que o acusado disse ao ver o caminhão, não é exato?
- Sim, foi o que ele disse.
- Não tenho mais perguntas, meritíssimo.
- CHAMEM Sarah Tandiwe Nyoni.
O dr. Petal introduziu sua testemunha-surpresa e Abel Khori ficou com uma
expressão preocupada, conferenciando agitadamente com os dois assistentes. Um
deles levantou-se, fez uma mesura para o estrado do juiz e retirou-se apressado.
Sarah Tandiwe Nyoni subiu ao estrado das testemunhas e prestou juramento em um
inglês perfeito. A voz era melodiosa e doce, os modos, tão recatados e tímidos
quanto no dia em que Craig e Sally-Anne a viram pela primeira vez na Missão.
Vestia um traje de algodão verde-lima com gola branca e sapatos brancos de salto
baixo. O cabelo estava trançado à maneira tradicional e, no instante em que
acabou de prestar juramento, olhou para Tungata Zebiwe no estrado. Tungata não
sorriu ou mudou de expressão, mas a mão direita sobre a grade moveu-se
ligeiramente e Craig viu que estava usando a linguagem secreta de sinais com a
moça.
"Coragem!", dizia ele, "estou com você", e a moça encheu-se visivelmente de
força e confiança. Levantou o queixo e enfrentou o dr. Petal.
- Diga o seu nome, por favor.
- Sou Sarah Tandiwe Nyoni - respondeu.
- Tandiwe Nyoni é um nome matabele e quer dizer "Amado Pássaro" - explicou
Craig, baixinho, para Sally-Anne.
- É perfeito para ela - sussurrou-lhe em resposta.
- Qual é a sua profissão?
- Sou diretora da escola primária do Estado de Tu ti.
- Queira dizer à corte suas qualificações.
Joseph Petal estabeleceu rapidamente que era uma jovem educada e responsável, e
depois continuou:
- Conhece o acusado, Tungata Zebiwe?
Olhou para Tungata antes de responder e o rosto pareceu iluminar-se.
- Conheço, sim, eu o conheço - disse em voz rouca.
- Por favor, fale mais alto.
- Eu o conheço.
- Alguma vez ele a visitou na Missão Tuti?
- Sim.
- Quantas vezes?
- O camarada ministro é um homem importante e muito ocupado, e eu sou uma
professora...
Tungata fez-lhe um pequeno gesto de negação com a mão direita, ela viu e deu um
pequeno sorriso com os lábios de linhas perfeitas.
- Vinha ver-me sempre que podia, mas não tantas vezes quanto eu gostaria.
- Esperava-o na noite em questão?
- Sim.
- Por quê?
Falamos por telefone de manhã, e ele me prometeu que viria.
Disse que ia de carro e chegaria antes da meia-noite. - O sorriso desapareceu-
lhe dos lábios e os olhos ficaram grandes e desolados. Eu o esperei até o
amanhecer, mas não chegou.
Ao que sabe, ele tinha alguma razão particular para visitá-la naquele fim de
semana?
Sim. - E as faces de Sarah escureceram, para fascínio de Sally-Anne que nunca
vira uma jovem negra corar antes. - Sim, ele disse que desejava falar com meu
pai e eu providenciei o encontro.
- Obrigado, senhorita - disse Joseph Petal gentilmente.
Durante a inquirição, o assistente voltara à sala e passara a Abel Khori algumas
anotações, e ele as segurava ao levantar-se para o interrogatório.
- Senhorita Nyoni, pode dizer à corte o que significa a palavra sindebele
isifebi?
Tungata Zebiwe resmungou e começou a levantar-se, mas o policial colocou-lhe a
mão no ombro para forçá-lo a sentar-se.
- Significa uma prostituta - respondeu Sarah em voz baixa.
- Não significa também uma mulher solteira que vive com um homem?
- Meritíssimo! - O protesto de Joseph Petal era um pouco tardio, mas ultrajado,
e o juiz Domashawa o aceitou.
- Senhorita Nyoni - tentou Abel Khori de novo -, está apaixonada pelo acusado?
Por favor, fale mais alto. Não conseguimos ouvi-la.
Daquela vez, a voz de Sarah era firme, quase desafiadora.
- Sim.
- Faria qualquer coisa por ele?
- Sim.
- Mentiria para salvá-lo?
- Objeção, meritíssimo. - E Joseph Petal levantou-se de um salto.
- Eu retiro a pergunta. - Abel Khori antecipou-se à intervenção do juiz. -
Deixe-me colocar a questão de outra maneira, senhorita Nyoni; o acusado lhe
pedira que providenciasse um esconderijo em sua escola para estocar marfim e
peles de leopardo ilegais!
- Não - disse Sarah. - Ele nunca faria isso.
- E lhe pedira para supervisionar o carregamento destas presas em um caminhão
para ser despachado.
- Não! Não! - ela gritou.
- Quando falou com ele por telefone, não ordenou-lhe que preparasse um
carregamento?
- Não! Ele é um homem bom - soluçou Sarah. - Um grande homem. Nunca teria feito
uma coisa dessas.
- Não tenho mais perguntas, meritíssimo. - Parecendo muito satisfeito consigo
mesmo, Abel Khori sentou e o assistente inclinou-se para sussurrar-lhe parabéns.
- Chamo o acusado, ministro Tungata Zebiwe, para depor.
Era uma manobra arriscada do dr. Petal. Mesmo como leigo, Craig podia ver que
Abel Khori mostrara ser um osso duro de roer.
Joseph Petal começou por esclarecer a posição de Tungata na comunidade, os
serviços que prestara à revolução e o estilo de vida frugal que levava.
- Possui alguma propriedade?
- Tenho uma casa em Harare.
- Diga à corte quanto pagou por ela.
- Quatorze mil dólares.
- Isso não é muito para se pagar por uma casa, é?
- Não é uma grande casa. - A resposta de Tungata foi incisiva, e até o juiz
sorriu.
- Tem um carro?
- Tenho um carro do ministério à minha disposição.
- Possui contas bancárias no exterior?
- Não.
- Esposas?
- Não - e deu uma olhada na direção de Sarah Nyoni sentada na platéia,
completando -, ainda.
- Concubinas? Outras mulheres?
- Minha velha tia mora comigo. Toma conta de minha casa.
- Chegando agora à noite em questão. Pode dizer à corte por que estava na
estrada de Karoi?
- Estava a caminho da Missão Tuti.
- Por qual razão?
- Para visitar a senhorita Nyoni, e falar com o pai dela sobre um assunto
particular.
- Essa visita fora combinada?
Sim, através de um telefonema para a senhorita Nyoni.
já a visitara antes, em mais de uma ocasião?
Precisamente.
Que acomodações usava nestas ocasiões?
Havia um idlu com teto de palha colocado à minha disposição.
Uma cabana? Com uma esteira e uma fogueira?
- Sim.
Não achava estas acomodações pouco adequadas para o senhor?
Ao contrário, gosto da oportunidade de voltar aos hábitos tradicionais do meu
povo.
- Alguém repartia com o senhor estas acomodações?
- Meu chofer e os seguranças.
- A senhorita Nyoni visitava-o lá?
- Isso teria sido contrário aos nossos costumes e nossa lei tribal.
- O promotor usou a palavra isifebi, o que acha que quis dizer com isso?
- Poderia aplicá-la apropriadamente a mulheres de seu conhecimento. Quanto a
mim, não conheço nenhuma a que se aplique.
O juiz sorriu novamente e o assistente do promotor cutucou-o, brincalhão.
- Agora, senhor ministro, alguém mais sabia de sua intenção em visitar a Missão
Tuti?
- Não fiz segredo nenhum sobre isso. Eu o escrevi na minha agenda.
- Tem esta agenda com o senhor?
- Não. Pedi à minha secretária que a entregasse à defesa, mas ela desapareceu de
minha escrivaninha.
- Compreendo. Quando ordenou ao chofer para que preparasse o carro, disse-lhe
para onde ia?
- Sim.
- Ele declara que não.
- Então, sua memória está falhando... ou foi afetada. - Tungata deu de ombros.
- Muito bem. Agora, na noite em que estavam viajando entre Karoi e a Missão
Tuti, encontraram algum outro carro?
- Sim. Havia um caminhão parado fora da estrada, no escuro, voltado para nós.
- Queira descrever à corte o que aconteceu.
- O chofer do caminhão piscou as luzes três vezes e, ao mesmo tempo, voltou para
a estrada.
- De maneira a obrigá-los a parar?
- Sim.
- O que fez então?
- Disse ao meu chofer: "Pare, mas seja cauteloso. Isto pode ser uma emboscada".
- Não esperava encontrar o caminhão?
- Não.
- Disse-lhe: "Lá está ele! Pare"?
- Não disse tal coisa.
- O que quis dizer com as palavras: "Isso pode ser uma emboscada"?
- Recentemente, muitos veículos foram atacados por bandidos armados, por shufta,
especialmente em estradas desertas à noite.
- O que achou que seria?
- Esperava problemas.
- E o que aconteceu então?
- Dois dos meus seguranças saltaram do carro e foram falar com o chofer do
caminhão.
- De onde estava, no Mercedes, podia vê-lo?
- Sim. Era um completo estranho para mim. Nunca o vira antes na vida.
- Qual a sua reação a tudo isso?
- Estava muito alerta.
- E o que aconteceu?
- De repente, apareceram outros faróis, na estrada por trás de nós. Uma voz
falando com um megafone ordenou a meus homens que se rendessem e soltassem as
armas. Meu Mercedes estava cercado de homens armados e fui arrastado à força
para fora.
- Reconheceu algum desses homens?
- Sim. Quando me arrancaram do carro, reconheci o general Fungabera.
- Isso afastou suas suspeitas?
- Ao contrário, fiquei convencido de que corria um perigo mortal.
- Por quê, senhor ministro?
O general Fungabera comanda uma brigada notória pelos atos de violência
cometidos contra matabele influentes.
Objeção, meritíssimo, a Terceira Brigada é uma unidade regular do Exército, e o
general Fungabera é um oficial conhecido e respeitado! - gritou Abel Khori.
A promotoria tem razão em sua objeção. - O juiz estava de repente tremendo de
raiva. - Não posso permitir que o acusado use esta corte para atacar um soldado
proeminente e os seus bravos homens. Não posso permitir que o acusado esteja
diante de mim para disseminar ódios e preconceitos tribais. Esteja prevenido de
que não hesitarei em acusá-lo de desrespeito grosseiro à corte se persistir
nisso.
Joseph Petal deixou passarem trinta segundos para que a testemunha se
recuperasse dessa invectiva.
- Declarou que achava que sua vida corria perigo?
- Sim - disse Tungata em voz calma.
- Estava sob grande tensão?
- Sim.
- Qual foi sua reação?
- Achei que iriam, de alguma forma, não sabia bem como, tentar incriminar-me e
que isso seria usado como pretexto para me matar.
- Objeção, meritíssimo - aparteou Abel Khori.
- Não vou mais prevenir o réu - prometeu ameaçadoramente o juiz Domashawa.
- O que aconteceu então?
- A senhorita Jay saiu do carro onde estava e aproximou-se de mim. Os soldados
estavam distraídos e eu a agarrei para impedir que atirassem em mim e tentei
escapar com um Land-Rover.
- Muito obrigado, senhor ministro. - O dr. Joseph Petal virou-se para o juiz. -
Meritíssimo, meu cliente teve um interrogatório cansativo. Posso sugerir que a
corte entre em recesso até amanhã de manhã para permitir-lhe descansar um pouco?
Abel Khori levantou-se imediatamente, louco por um pouco de sangue.
- Ainda não é nem meio-dia, o acusado prestou depoimento por menos de trinta
minutos, e seu advogado tratou-o recte et suaviter. Para um soldado treinado e
resistente, isso de per se não passa de uma bagatela. - Abel Khori, excitado,
recaíra no latinório.
- Vamos continuar, dr. Petal - determinou o juiz e Joseph Petal encolheu os
ombros. - Sua testemunha, dr. Khori.
Abel Khori estava em seu elemento, tornando-se lírico e poético.
- O senhor declarou que temia por sua vida, mas eu afirmo que estava dominado
pela culpa, que tinha um terror mortal do castigo, que estava aterrado pela
perspectiva de enfrentar a punição dada por esta corte do povo, de enfrentar a
ira daquela figura douta e justa em vestes escarlates que está à sua frente.
- Não.
- Que foi apenas a consciência culpada que o levou a uma série de ações
hediondas e brutais.
- Não, não é verdade.
- Quando se apoderou da linda senhorita Jay, não usou de força bruta para
agredir seu jovem e delicado corpo? Não deu-lhe uma saraivada de pancadas
brutais?
- Dei-lhe uma única pancada para evitar que se jogasse do carro a toda
velocidade e se ferisse gravemente.
- Não apontou uma arma, isto é, um fuzil militar de combate, que sabia estar
carregada, para o general Fungabera?
- Eu o ameacei com o fuzil. É verdade.
- E, em seguida, disparou deliberadamente na parte inferior do corpo, isto é, no
abdômen?
- Não atirei em Fungabera. Mirei a arma de modo a não acertá-lo.
- Eu o acuso de tentar matar o general que foi salvo apenas por seus magníficos
reflexos.
- Se tivesse tentado matá-lo - disse Tungata com suavidade -, ele estaria morto.
- Quando roubou o Land-Rover, estava consciente de que era uma propriedade do
Estado? Apontou o rifle para o sr. Craig Mellow, e só não o assassinou devido à
brava intervenção da senhorita Jay? ...
Por uma hora, Abel Khori vituperou a figura impassível no estrado, extraindo-lhe
uma série de admissões prejudiciais, e sentou-se finalmente, com ar de galo de
rinha vitorioso. Craig achou que o dr. Joseph Petal pagara um alto preço pela
pequena vantagem que poderia ter tido colocando o cliente no banco de
testemunhas.
Apesar disso, o discurso final do advogado foi habilmente desenvolvido para
suscitar simpatia, e explicar e justificar as ações de Tungata Zebiwe naquela
noite, sem ferir com isso a suscetibilidade patriótica ou tribal do juiz.
Q veredito será dado amanhã - anunciou o juiz Domashawa e a corte levantou-
se, enquanto os espectadores faziam um zum-zum excitado ao deixarem a sala.
No jantar, Sally-Anne admitiu:
Pela primeira vez em toda esta história, senti pena quando Sarah prestou
depoimento. É uma criança tão doce.
Criança? Acho que é um ou dois anos mais velha que você
sorriu Craig -, o que a faz um bebezinho.
- Ela acredita tão obviamente nele que por alguns momentos até eu comecei a
duvidar dos fatos, mas, felizmente, Abel Khori trouxe-me de volta à razão -
continuou ela, em tom sério e ignorando a frivolidade.
O JUIZ Domashawa leu a sentença na sua voz de solteirona velha, cujo tom não
se adequava à gravidade do assunto. Primeiro, discorreu sobre os acontecimentos
que eram objeto da questão entre a promotoria e a defesa, para em seguida
continuar:
- A defesa baseou-se em dois pontos principais. O primeiro é o testemunho da
senhorita Sarah Nyoni de que o acusado estava a caminho do que, por falta de
melhor qualificativo, somos levados a acreditar que fosse um encontro amoroso e
que o encontro com o caminhão tenha sido uma coincidência ou planejado de
maneira inexplicada por pessoas desconhecidas. A senhorita Nyoni pareceu a esta
corte uma jovem ingênua e de pouca experiência, e que, por sua própria admissão,
está completamente sob a influência do acusado. A corte teve, forçosamente, de
considerar a postulação da promotoria de que a senhorita Nyoni poderia ter sido,
de fato, tão influenciada pelo acusado a ponto de consentir em agir como
cúmplice na consignação do contrabando. Em vista do exposto, a corte rejeita o
testemunho da senhorita Nyoni como potencialmente prejudicado e não merecedor de
confiança. O segundo ponto principal da defesa é a premissa de que a vida do
acusado estava ameaçada ou de que ele acreditava que estivesse, pelos oficiais
que o prendiam, e, nessa crença, empreendeu uma série de atos desatinados em
defesa própria. O general Fungabera é um oficial de reputação impecável, um
oficial de alta patente do Estado. A Terceira Brigada é uma unidade de elite das
Forças Armadas regulares do país, e seus membros, apesar de serem veteranos
endurecidos pelas batalhas, são soldados disciplinados e treinados. A corte,
portanto, rejeita a alegação do acusado de que tanto o general Fungabera quanto
seus homens pudessem, mesmo remotamente, ter constituído uma ameaça à sua
segurança, e muito menos à sua vida. A corte também rejeita a alegação de que o
acusado acreditasse ser esse o caso. Assim, chegamos à primeira acusação. Isto
é, a de comerciar ou traficar com produtos de animais selvagens protegidos por
lei. A corte declara o acusado culpado e o sentencia a doze anos de trabalhos
forçados. Da segunda acusação, seqüestrar e manter à força um refém, a corte
considera o acusado culpado e o sentencia a dez anos de trabalhos forçados.
Agressão com intenção de graves danos corporais: seis anos de trabalhos
forçados. Tentativa de assassinato: seis anos de trabalhos forçados. Roubo e
danos deliberados à propriedade do Estado: seis anos de trabalhos forçados.
Ordeno que essas sentenças sejam cumpridas consecutivamente e que nenhuma delas
seja suspensa.
Até Abel Khori ficou surpreso e levantou abruptamente a cabeça. As penas
totalizavam quarenta anos e mesmo com uma redução por bom comportamento, Tungata
ainda assim cumpriria trinta, o resto de sua vida útil.
No fundo da sala, uma negra gritou em sindebele: "Baba! Nosso pai! Estão
tirando nosso pai!", e outros começaram a gritar: "Pai do povo! Nosso pai morreu
para nós!"
Um homem começou a cantar alto com voz de barítono:
Por que choram, viúvas de Shangane...
Por que choram, filhinhos das Toupeiras,
Se seus pais cumpriram a vontade do rei?
Era uma das antigas canções guerreiras dos impis do rei Lobengula, e o cantor
era um homem no apogeu da maturidade, com um rosto forte e inteligente e uma
barba pontiaguda, salpicada aqui e ali por fios brancos. Enquanto cantava, as
lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Em outra época, poderia ter sido um induna
dos impis reais Os homens à volta começaram a acompanhá-lo e o juiz Domashawa
levantou-se furioso.
Se não fizerem imediatamente silêncio, mando evacuar a sala e serão presos
por desrespeito ao tribunal - gritou, tentando se fazer ouvir, mas foram
precisos mais cinco minutos até que os guardas restaurassem a ordem.
Em meio a tudo isso, Tungata Zebiwe estava silencioso, com um leve sorriso
irônico nos lábios. Quando por fim tudo acabou, e antes que os guardas o
levassem, olhou diretamente para Craig Mellow, do outro lado do tribunal, e fez-
lhe um último sinal, antes só usado de brincadeira, talvez depois de uma luta ou
competição amigável. Agora, Tungata o usava a sério: "Estamos quites: o escore
empatou", e Craig compreendeu-o plenamente. Perdera a perna e Tungata a
liberdade. Estavam quites.
Quis dizer ao homem um dia seu amigo que era uma triste barganha aquela, que
não escolhera isso, mas Tungata já lhe dera as costas. Os guardas tentavam tirá-
lo do estrado, e ele se debatia, procurando alguém na corte lotada de gente.
Sarah Nyoni subiu em um banco e estendeu as duas mãos para ele, por cima da
multidão, e Tungata fez-lhe um último sinal, claramente compreendido por Craig.
"Esconda-se! Você está em perigo."
Pela expressão alterada do rosto, viu que a moça também compreendera, e logo
os guardas já arrastavam Tungata para baixo, pela escada que levava às celas
subterrâneas de prisioneiros.
Craig abriu caminho por entre a multidão matabele que lotava a Suprema Corte
e atrapalhava o trânsito da hora do almoço na grande rua defronte. Pegou a mão
de Sally-Anne e abriu caminho bruscamente entre os fotógrafos que tentavam
bloqueá-los.
No estacionamento, ajudou Sally-Anne a entrar no Land-Rover, correndo para o
volante e ameaçando com o punho o último e mais persistente deles. Foi
diretamente para o apartamento dela, e parou sem desligar o motor.
- E agora? - perguntou Sally-Anne.
- Não entendi a pergunta - respondeu, mal-humorado.
- Ei! Sou sua amiga, lembra-se?
Desculpe. - Deixou-se cair sobre o volante. - Estou me sentindo horrível,
simplesmente horrível.
Ela não respondeu, mas os olhos estavam cheios de compaixão por ele.
- Quarenta anos - sussurrou Craig -, nunca esperei uma coisa dessas. Se ao menos
pudesse ter adivinhado...
- Não havia nada que pudesse fazer, nem antes e nem agora, também.
- O pobre filho da mãe... Quarenta anos! - E deu um soco no volante.
- Você vai subir? - ela perguntou suavemente, mas Craig balançou a cabeça.
- Tenho de voltar a King's Lynn. Abandonei tudo por causa desta maldita
história.
- Você vai agora? - Ela estava surpresa.
- Sim.
- Sozinho? - perguntou.
- Quero ficar sozinho.
- Para que possa se torturar à vontade? - E a voz dela ficou mais firme. - Pode
desistir, se acha que vou aceitar isso. Vou com você. Espere um minuto! Vou só
pegar umas coisas; não precisa nem desligar o motor. Já volto.
Demorou cinco minutos e desceu as escadas carregando a mochila e o estojo da
câmera que colocou no banco de trás.
- Podemos ir.
Quase não falaram durante a longa viagem, mas Craig logo sentiu-se grato por tê-
la ao lado, grato pelo sorriso quando a olhava, pelo toque da mão na sua quando
percebia que começava a ficar sombrio novamente, e pelo silêncio cúmplice.
Subiram as colinas de King's Lynn ao anoitecer. Joseph, que gostara de Sally-
Anne no momento em que a conhecera e que já a tratava por "minha pequena
senhora", não podia evitar o sorriso de boas-vindas que contrastava com a solene
dignidade, ao dar ordens aos criados para levarem a pouca bagagem.
- Preparo banho para senhora, muito quente.
- Isso seria ótimo, Joseph.
Depois do banho, foi para a varanda e Craig preparou os drinques, um uísque puro
como ela gostava e uma dose reforçada com pouca soda para ele.
- Um brinde ao juiz Domashawa - e levantou o copo ironicamente -, e à justiça
mashona. A todos os quarenta anos dela.
Sally-Anne recusou tomar vinho ao jantar, apesar dos protestos.
- O barão Rothschild ficaria muito ofendido. Imagine, seu mais fino produto e
contrabandeado pessoalmente por mim. - A alegria de Craig era forçada.
Depois do jantar, pegou a garrafa de conhaque e, quando já ia servir-se, ela
disse:
Craig, por favor, não se embriague.
Ele ficou parado com a garrafa na mão e examinou-lhe o rosto.
Não - disse Sally-Anne. - Não estou sendo mandona, e sim, muito egoísta. Queria
você sóbrio hoje à noite.
Ele botou a garrafa de volta sobre a mesa, levantou e dirigiu-se para ela, que
também ficou em pé.
- Querida, esperei tanto tempo.
- Eu sei - ela sussurrou. - Eu também.
Tomou-a cuidadosamente nos braços, como algo precioso e frágil e sentiu-a
transformar-se lentamente. Parecia suavizar-se e o corpo tornou-se maleável,
amoldando-se ao seu; podia senti-la inteira contra ele, dos joelhos aos seios
jovens e firmes, e o calor que começava a emanar das roupas leves.
Inclinou a cabeça e suas bocas se encontraram. Os lábios dela imediatamente
abriram-se, úmidos e doces como um fruto recém-colhido aquecido pelo sol,
oferecendo seu sumo maduro.
Olhou-a nos olhos enquanto a beijava, maravilhando-se com o colorido e as formas
aureoladas em torno das pupilas verdes pontilhadas de dourado, as pálpebras que
fremiam e as longas e curvadas pestanas que se cerraram. Também fechou os olhos,
e a terra pareceu oscilar, mas permaneceu firme, com ela entre os braços, sem
tentar explorar-lhe o corpo, feliz com a sensação maravilhosa daquela boca
contra a sua.
Joseph abriu a porta da cozinha com a bandeja de café nas mãos, ficou sorrindo
satisfeito por um momento e tornou a fechá-la. Nenhum dos dois o viu. Quando ela
separou-se, Craig sentiu-se roubado e tentou beijar-lhe a boca de novo, mas ela
colocou um dedo em seus lábios e o sussurro foi tão rouco que teve de clarear a
voz.
- Vamos para o seu quarto, querido.
Houve um momento constrangedor quando sentou-se nu na cama para retirar a perna
mecânica, mas ela ajoelhou-se rapidamente, nua também, e desafivelou-a. Inclinou
a cabeça e beijou o coto endurecido abaixo do joelho.
- Obrigado - ele disse. - Estou contente porque pôde fazer isso.
- Isso é você - respondeu -, é parte de você. - E tornou a tocá-lo com a boca,
deslizando os lábios gentilmente pela coxa acima.
Fim.