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NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1974.

“De que lenho brotou? Que nobre instinto da prensa fez surgir esta obra de arte. Que vive
junto a nós, sente o que sinto e vai clareando o mundo em toda a parte?” (MELO NETO,
J. C.

“Esta folha branca me proscreve o sonho” (MELO NETO, J. C.)

“A grande dignidade das pedras / exclui arcos de triunfo” (Murilo Mendes)

“Como o ser vivo


que é um verso,
um organismo

com sangue e sopro,


pode brotar
de germes mortos?”
(João Cabral)

“Procura a ordem
que vês na pedra:
nada se gasta
mas permanece.
(Pequena ode mineral – João Cabral)

“É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

É mineral, por fim,


qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

da palavra escrita.”
(Psicologia da composição – João Cabral)
Os poemas de seu primeiro livro Pedra do sono (1942) revelam-se como exercícios
repetitivos de uma mesma inquietação. Tudo voa (inspiração surrealista?).

Contra o romantismo e o surrealismo


“Mas pouca é a intimidade do poeta com as cenas variadas desse espetáculo onírico,
diferente da Traumdichtung romântica e da exploração surrealista do inconsciente. Aqui
e ali, uma observação irônica, a modo de pausa meditativa, em versos parentéticos, como
os que são frequentes em Drummond, ou uma interrogação de dúvida, comprometem a
integridade do espetáculo onírico” (p. 37)

[É como se a pergunta pela possibilidade da criação interrompesse o mero fluxo


vital]

Assim, não é o mero fruto de um deixar-se ir em seu contínuo fluxo o acaso da emergência
do conhecimento. É necessário ao menos um estalo, um momento de espanto, em que
alguém (quem?) se pergunta: mas como isso é possível? como esse espetáculo
maravilhoso que conhecemos por este nome “a vida” é possível? E é como se
descobríssemos que para nos colocarmos tais questões é necessário estarmos desperto.

“Só quando o sono, tematizado em O engenheiro, tonar-se o plano de fundo, o aspecto de


retaguarda, cada vez mais recuado, da experiência poética, é que se abrirá uma saída do
estado de sono para o estado de vigília, do mundo onírico para o mundo perceptivo” (p.
38).

Na segunda obra O engenheiro, a nuvem (figura onírica) transitará “da simbologia onírica
para a morfologia do sensível, onde conotará a luminosidade, a leveza e a brancura dos
fenômenos atmosféricos” (p. 39-40).

O sonho em construção
“Do voo noturno das visões imaginárias, que antes prevalecia, passamos às sugestões
visuais das coisas. São coisas dessa espécie vaporosa e diáfana as nuvens que pairam
acima do edifício, numa completa exteriorização do sonho, que perde a sua conotação
onírica para transformar-se num sonho de construção” (p. 40).
“a criação como ato de pensamento lúcido, que se completa no ato de escrever, ambos
dirigidos no sentido do controle racional dos efeitos poéticos contra as interferências do
acaso, que a inspiração e o sonho favorecem; o poeta-engenheiro, que calcula a impressão
a ser produzida pela sua obra, adquirindo esta ‘o caráter de um mecanismo destinado a
impressionar um público’”. (p. 41-42).

[A poesia (e a vida) não como expressões de uma subjetividade (emotiva) mas como
a consecução de um ato ordenado e guiado do início ao fim pela meticulosidade do
saber.]

O poema como máquina de linguagem que, para nascer, deve fazer morrer tudo o que há
na experiência subjetiva do poeta nos diversos níveis de sua experiência psicológica.

Segunda metamorfose:
“A passagem do estado poético à expressão implica, pois, numa dupla calcinação: a que
começa interiormente para terminar no verso, e a outra, do próprio verso, que sendo vivo
se mineraliza no chão consistente da escrita” (p. 44).

A ordem das coisas


“Se o engenheiro sonha coisas claras, sonha ao mesmo tempo dominar as regras de
construção de seu poema, e construí-lo de tal modo que a obra não seja, pela sua
ressonância puramente evocativa, uma réplica da fecunda desordem dos estados
interiores, fadada a restaurar na linguagem a transitoriedade da emoção originária, mas
sim uma coisa sólida e ordenada” (p. 45).

O acaso e a manhã
“Mas na superfície da folha em branco, exposta aos golpes do acaso mallarmeano, podem
ocorrer transmutações enganosas de uma falsa alquimia do espírito. Será preciso aguardar
que ‘a jovem manhã’ revele o poema” (p. 53). Essa manhã resulta da paciência.

Vontade de petrificar:
Nos poemas posteriores a O engenheiro, João Cabral já não se preocupa mais com a fusão
entre linguagem (morta) e experiência psicológica (vida), direcionando-se lucidamente
no sentido daquela, já que esta última se fundiu completamente numa impessoalidade que
se configura no próprio processo de sua composição poética.

Invocação de Heidegger:
“Quando vamos à fonte, quando atravessamos a floresta, nós atravessamos o nome
‘fonte’, o nome ‘floresta’, ainda que não os enunciemos e não estejamos considerando a
língua’” (Holzwege in p. 55, nota 21).

Consumação da distância
“Entre o Eu que se exprime, e o objeto da expressão, que são os seus próprios estados ou
modificações, a posição reflexiva e crítica do poeta introduziu uma distância que a
expressão lírica não comporta” (p. 62).

A partir de O cão sem plumas, inicia-se a fase da construção da poesia de Cabral, superada
a fase de crise.

[A obra de Cabral tem origem ou genealogia? A crítica genética tem mostrado que a
composição da poesia ao modo da engenharia ou da arquitetura pode recuar
indefinidamente, sem encontrar ou antever o que seria algo como uma gênese]

João Cabral sobre a atitude inerte do poeta moderno, da qual tenta se diferenciar: “Mas
esse tipo de poema não foi obtido através de nenhuma consideração acerca de sua possível
função social de comunicação. O poeta contemporâneo chegou a ele passivamente, por
inércia, simplesmente por não ter cogitado do assunto. Esse tipo de poema é a própria
ausência de construção e organização, é o simples acúmulo de material poético, rico, é
verdade, em seu tratamento do verso, da imagem e da palavra, mas atirado
desordenadamente numa caixa de depósito” (MELO NETO, J. C. “Da função moderna
da poesia”, in Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 769-770, apud p.
155-156).

João Cabral: “Poesia e composição”


Para o grupo de poetas que creem que a poesia é expressão: “Para ele, o autor é tudo. É o
autor que ele comunica por debaixo do texto. Quer que o leitor sirva-se do texto para
recompor a experiência, como um animal pré-histórico é recomposto a partir de um
pequeno osso. A poesia deles é quase sempre indireta. Ela não propõe ao leitor um objeto
capaz de lhe provocar uma emoção definida. O poema desses poetas é o resíduo de sua
experiência e exige do leitor que, a partir daquele resíduo, se esforce para colocar-se
dentro da experiência original” (João Cabral, p. 59). “Neles o poema não se desliga
completamente de seu autor” (p. 60). – poesia passiva do ser que espera a inspiração, que
espera o poema.
Isso conduz a um empobrecimento técnico:
“A fragmentação da arte limite o artista forçosamente ao exercício formal. O caso da
pintura moderna parece mostrar o fenômeno bastante claramente. E mesmo o caso de
certos poetas. O caso daqueles que se dedicaram, com intenções seríssimas, à exploração
de certas qualidades de ressonância, ou mesmo semânticas, de palavras isoladas, isto é,
de palavras que não devem servir, que não devem transmitir ideias – me parece bastante
significativo. Esses mágicos, esses metafísicos da palavra acabaram todos entregues a
uma poesia puramente decorativa. Se se caminha um pouco mais na direção apontada por
Mallarmé, encontra-se o puro jogo de palavras” (p. 63-64)

No outro grupo de poetas “já o trabalho artístico não se limita ao retoque, de bom gosto
e de boa economia, ao material que o instinto fornece. O trabalho artístico é, aqui, a
origem do próprio poema. Não é o olho crítico posterior à obra. O poema é escrito pelo
olho crítico, por um crítico que elabora as experiências que antes vivera, como poeta.
Nestes poetas, geralmente, não é o poema que se impõe. Eles se impõem ao poema, e o
fazem geralmente a partir de um tema, escolhido por sua vez, a partir de um motivo
racional. A escrita neles não é jamais pletórica e jamais se dispara em discurso. É uma
escrita lacônica, a deles, lenta, avançando no terreno milímetro a milímetro. Estes poetas
jamais encaram o trabalho de criação como um mal irremediável, a ser reduzido ao
mínimo, a fim de que a experiência a ser aprisionada não fuja ou se evapore. O artista
intelectual sabe que o trabalho é a fonte da criação e que a uma maior quantidade
de trabalho corresponderá uma maior densidade de riquezas. Quanto à experiência,
ela não se traduz neles, imediatamente em poema. Não há por isso o perigo de que fuja.
Eles não são jamais os possessos de uma experiência. Jamais criam debaixo da
experiência imediata. Eles a reservam, junto com sua experiência geral da realidade,
para um momento qualquer em que talvez tenham de empregá-la. Não será de estranhar
que muitas vezes esqueçam essa experiência, como tal, e que ela, ao ressuscitar, venha
vestida de outra expressão, diversa completamente. (p.65)
“Também o trabalho nesses poetas jamais é ocasional ou repousa sobre a riqueza de
momentos melhores. Seu trabalho é a soma de todos os seus momentos, melhores e piores.
Por isso, seu poema é raramente um corte num objeto ou um aspecto particular de um
objeto visto pela luz especial de um momento. Durante seu trabalho, o poeta vira seu
objeto nos dedos, iluminando-o por todos os lados. E é ainda seu trabalho que lhe vai
permitir desligar-se do objeto criado. Este será um organismo acabado, capaz de vida
própria. É um filho, com vida independente, e não um membro que se amputa, incompleto
e incapaz de viver por si mesmo” (p. 65-66).
“Ora, apesar de ser primordialmente artista, este poeta é, antes de tudo, de seu tempo. Ele
é tão individualista quanto aqueles outros poetas que aceitam cegamente o ditado de seu
anjo ou de seu inconsciente. Da mesma forma que aqueles, este poeta-artista ao criar seu
poema cria seu gênero poético. Só que nele esse gênero não é definido pela originalidade
do homem mas pela originalidade do artista. Não é o tipo novo de morbidez que o
caracteriza mas o tipo novo de dicção que ele é capaz de criar. E é aqui que começa o
desesperado de sua situação. Porque essas leis que ele cria para o seu poema não tomam
a forma de um catecismo para uso privado, um conjunto de normas precisas que ele se
compromete a obedecer. Ao escrever, ele não tem nenhum ponto material de referência.
Tem apenas sua consciência, a consciência das dicções de outros poetas que ele quer
evitar, a consciência aguda do que nele é eco e que é preciso eliminar, a qualquer preço.
Com a ajuda que lhe poderia vir da regra preestabelecida ele não pode contar – ele não a
tem. Seu trabalho é assim uma violência dolorosa contra si mesmo, em que ele se corta
mais do que se acrescenta, em nome ele não sabe muito bem de quê.” (p. 66).
“A obra perde em importância. Passa a ser pretexto do trabalho. Todos os meios são
utilizados para que este se faça mais demorado e difícil, todas as barreiras formais o artista
procura se impor, a fim de ter mais e mais resistências a vencer. Este seria o estágio final
do caminho que a arte vem percorrendo até o suicídio da intimidade absoluta. Seria a
morte da comunicação, e nela esse tipo de poesia iria se encontrar com a outra
incomunicação, a do balbucio, que, por outros caminhos, estão também buscando os
poetas do inefável e da escrita automática” (p. 67).
A literatura é algo de moderno, antes o que hoje chamamos de literatura tinha uma função
orgânica com as sociedades:
“Houve épocas, e creio que ninguém duvida disso, em que o entendimento foi possível.
Infelizmente, o plano teórico a que me obriga o tamanho desta conversa não me permite
a descrição concreta de uma delas. Naquelas épocas, inspiração e trabalho artístico não
se opunham essencialmente. Isto é, não se repeliam como polos de uma mesma natureza.
Nessas épocas, a exigência da sociedade em relação aos autores é grande. A criação está
subordinada à comunicação. Como o importante é comunicar-se o autor usa os temas da
vida dos homens, os temas comuns aos homens, que ele escreve na linguagem comum.
Seu papel é mostrar a beleza no que todos veem e não falar de uma beleza a que somente
ele teve acesso.” (p. 69).
“Nessas épocas, a espontaneidade ganha novo sentido. Não é mais uma facilidade
extraordinária de indivíduo eleito. É o sinal de uma enorme identificação com a realidade.
Não é mais uma maneira de valorizar, indiscriminadamente, o pessoal. Nessa espécie de
espontaneidade o que se valoriza é o coletivo que se revela através daquela voz individual.
Como na poesia popular, funde-se o que é de um autor e o que ele encontrou em alguma
parte. A criação inegavelmente é individual e dificilmente poderia ser coletiva. Mas é
individual como Lope de Vega escrevendo seu teatro e seu ‘romancero’, de aldeia em
aldeia de Espanha, em viagem com seus comediantes e profundamente identificado com
seu público.” (p. 69)
“Nessas épocas, também é essencialmente diferente da que vemos hoje, a atitude do poeta
em relação ao tema imposto. Esse poeta cuja emoção se identifica com a de seu tempo,
jamais considera violentação à sua personalidade o assunto que lhe é ditado pela
necessidade da vida diária dos homens. Para o poeta de hoje essa exigência é violenta
porque em sua sensibilidade ele não dispõe senão de formas pessoais, exclusivamente
suas, de ver e de falar. Ao passo que no autor identificado com seu tempo não será difícil
encontrar a mitologia e a linguagem unânimes que lhe permitirão corresponder ao que
dele se exige” (p. 69-70).
“Nessas épocas de equilíbrio, fáceis de encontrar nas histórias literárias, não há na
composição duas fases diferentes e contraditórias – não há um ouvido que escuta a
primeira palavra do poema e uma mão que trabalha a segunda. Nessas épocas, pode-se
dizer que o trabalho de arte inclui a inspiração. Não só as dirige. Executa-as também. O
trabalho de arte deixa de ser essa atividade limitada, de aplicar a regra, posterior ao sopro
do instinto. Também não se excede nunca num exercício formal, de atletismo intelectual.
O trabalho de arte está, também, subordinado às necessidades de comunicação” (p. 70).
“As regras nessas épocas, não são obedecidas pelo desgosto da liberdade, que segundo
algumas pessoas é a condição básica do poeta. A regra não é a obediência, que nada
justifica, as maneiras de fazer defuntas, pelo gosto do anacronismo, ou as maneiras de
fazer arbitrárias, pelo gosto do malabarismo. A regra é então profundamente funcional e
visa a assegurar a existência de condições sem as quais o poema não poderia cumprir sua
utilidade. Para o poeta ela não é jamais uma mutilação mas uma identificação. Porque o
verdadeiro sentido da regra não é o de cilício para o poeta. O verdadeiro sentido da regra
está em que nela se encorpa a necessidade da época” (p. 70).

Benedito: como João Cabral tenta resolver esse problema colocado pela poesia moderna
– na medida em que ela ganha em conquistas formais, afasta-se da comunicabilidade com
o público:
“Por oposição a esse poema, que traiu Anfion, deixando-o distante da ‘nuvem civil
sonhada’, às portas da cidade onde não pôde entrar; por oposição a esse poema é que João
Cabral, numa atitude contrária ao envolvimento da expressão, que levou a tal produto
fechado e híbrido da poesia contemporânea, passa a considerar nas formas tradicionais
‘sua possível função social de comunicação’. O poeta, que não renuncia ao espírito de
pesquisa formal dominante, desvia porém as fundamentais conquistas técnicas que desse
espírito derivam, da forma típica representativa da estrutura da lírica moderna, - na qual
o dilaceramento e a clausura da linguagem poética atingiram o mais alto grau, - para
formas e gêneros relegados ao abandono, insuficientemente aproveitados, e mais
compatíveis com os meios de comunicação da sociedade de massa. Submetidos a uma
intencionalidade diferente da que lhes deu origem histórica, essas formas de verso e de
estrofe se integrarão como formas parciais, às estruturas gerais da lógica da composição,
passando a constituir, do mesmo modo que certos gêneros – a parábola e a sátira – partes
de um sistema poético aberto, que aproxima mais do que separa a prosa da poesia (p.
156).

João Cabral sobre Miró:


“Seria possível outra forma de composição? Seria possível devolver à superfície aquele
sentido antigo que seu aprofundamento numa terceira dimensão destruiu completamente?
A pintura de Miró me parece responder afirmativamente a esta pergunta. Ela me parece,
analisada objetivamente em seus resultados e em seu desenvolvimento, obedecer ao
desejo obscuro de fazer voltar à superfície seu antigo papel: o de ser receptáculo do
dinâmico. Ela me parece uma tendência para libertar o ritmo do equilíbrio que o
aprisiona e que aprisiona toda a pintura criada com o Renascimento. [...] a história de sua
luta [de Miró] contra o estático e, assegurada sua vitória sobre este, a maneira como se
entregou às possibilidades de um ritmo livre de qualquer limitação” (Prosa, p. 11-12).
O caminho de Miró é da tridimensionalidade para a superfície: “Miró, colocado diante da
superfície, começou a fazer, em sentido inverso, o caminho que a superfície havia
percorrido até que pudesse conter aquela terceira dimensão imaginária” (Prosa, p. 12).

[Miró liberta a pintura da terceira dimensão assim como João Cabral propõe
libertar a palavra de seu sentido interno, histórico, cotidiano, comum, tratando-a
como mera palavra escrita]

Cifras da realidade – simplificação da realidade – “estilização saída da realidade mais


imediata porém levada a um ponto de abstração sempre crescente” (Prosa, p. 13).
“O abandono da terceira dimensão foi seguido do abandono, quase simultâneo, da
exigência de centro do quadro” (Prosa, p. 13).
Rompimento com a hierarquia das imagens:
“Nesse tipo de composição não há uma ordenação em função de um elemento dominante,
mas uma série de dominantes, que se propõem simultaneamente, pedindo do espectador
uma série de fixações sucessivas, em cada uma das quais lhe é dado um setor do quadro”
(Prosa, p. 13). – “Desintegração da unidade do quadro” (p. 14).
Depois, Miró abandonará as composições muito complexas, reduzindo o tamanho das
telas e a quantidade de objetos nelas figurados. Ataque contra o estatismo, já que não há
mais centro nem terceira dimensão, acompanhado do abandono da composição. Produção
de uma energia, sensação de que algo vai se precipitar ou mudar de lugar na tela.
Atitude psicológica: “apesar daqueles recuos aparentes e da coexistência de maneiras
dentro dos quadros de uma mesma época, existe como que uma luta oculta, mas constante,
entre a velha maneira de compor e certos elementos perturbadores que a vão corroendo
internamente. Luta que se resolve pela vitória posterior desses elementos, que acabam por
se tornar predominantes nas obras que o artista pintou nestes últimos anos” (p. 16).
Poder da linha: “Essa constante dinâmica se expressa por um crescente poder da linha e
pelo desejo de obter, com sua linha, melodias absolutamente livres das limitadas melodias
admitidas pela pintura fundada no Renascimento” (p. 16).
Dinamismo: “O dinamismo dessa sua pintura mais recente se caracteriza bem mais pela
presença de pequenas melodias dentro do quadro, que o olho aborda por onde melhor lhe
parece” (p. 17).
A linha: “Uma linha, pelo contrário, pertence à categoria do dinâmico e exige, para ser
percorrida, um movimento do espectador. O corpo de uma linha pode ser mesmo, a
expressão de um movimento” (p. 17). – “Nesta composição, a linha não é um elemento
perigoso como se dá com a composição tradicional, onde ela, se não está dominada, é um
elemento dissociador. Nesta composição, a linha é a mola. E não somente o que
contemplar, mas a indicação, o guia, a norma da contemplação. Ela vos toma pela mão,
tão poderosamente, que transforma em circulação o que era fixação; em tempo, o que era
instantâneo” (p.17)
Na pintura renascentista, o ritmo (a linha sendo o seu elemento propiciador) era
compreendido como ameaça ao estático, necessário à criação da ilusão de profundidade.
A linha, elemento já contido na pintura desde o Renascimento, agora é reencontrada e
liberta de sua submissão ao estatismo.
O organismo:
Depois de ter libertado a linha do estatismo ao qual ela estava submetida na pintura
clássica, para criar a ilusão da perspectiva, João Cabral percebe em Miró um
movimento que dará movimento às figuras, já que a linha convoca o olhar do
expectador a percorrê-la abolindo o centro da tela e a hierarquia entre as formas.
Assim, o quadro passa a existir, não mais como moldura, mas como um organismo:
“Mais do que a uma linha, isto é, em lugar daqueles organismos harmônicos e frios,
sobre os quais nossa atenção deslizava meio indiferente, que nos agradavam
precisamente pela indiferença com que podíamos executar nelas melodias
conhecidas, o que nos parece assistir, diante de suas obras dessa época é ao próprio
crescimento de um organismo. Assistimos, temos a ilusão de assistir, ao nascimento
dessa linha, que parece estar crescendo a nossos olhos, acabada de nascer com mil
reservas de surpresa” (p. 18-19).
E João Cabral fará mesmo desse procedimento em pintura o modelo para o seu
próprio procedimento em poesia. Sobre a tela branca, como as palavras sobre a
folha branca nos poemas de O engenheiro, as linhas se estabelecerão e traçarão
caminhos só existentes na medida em que o olhar as contemplar. Mas elas também
parecem escapar ao olhar, modificar a sua trajetória a cada vez, fixarem-se apenas
provisoriamente ali onde as havíamos deixado antes de desviarmo-nos delas para
saltar à figura vizinha. Desobedientes ao hábito do olhar que tudo prefigura,
confiante nos poderes da memória em recuperar cada percurso há pouco seguido, o
que as linhas de Miró oferecem é, ao contrário, um espetáculo de surpresas
inapreensíveis. Um dinamismo outro, um espaço outro, uma forma outra, é o que a
arte compõe no limite da distância que mantém com relação ao olhar que dela quer
se assenhorar. Há sempre algo que escapa e surpreende mesmo o mais paciente dos
observadores, como ocorre com a vida que parece recriar-se a cada tentativa de
formalização pelo saber.

Naturalização do processo de composição, que resultou de uma elaboração teórica por


parte dos pintores renascentistas:
“Esse elemento, a composição, que deve ter exigido dos criadores da pintura renascentista
um máximo de elaboração intelectual, terminou por ser o mais instintivo dentro dos
diversos componentes da pintura. Pode-se mesmo dizer que em todo quadro há boa
composição, isto é, composição renascentista, equilíbrio; e que é a presença dessa
composição que dá, normalmente, a um quadro, a categoria de pintura. Ela é um elemento
que o espectador, mesmo o menos informado, pressupõe, obscuramente” (Prosa, p. 21).

Psicologia de composição contrária a essa atitude criadora, essa que naturalizou a


composição:
“Ela [a obra de Miró] me parece nascer da luta permanente, no trabalho do pintor, para
limpar seu olho do visto e sua mão do automático. Para colocar-se numa situação de
pureza e liberdade diante do hábito e da habilidade. / Miró parte, portanto, de uma atitude
psicológica. Se conseguirmos entendê-la, teremos, a meu ver, a explicação de sua
originalidade em relação à pintura posterior ao Renascimento. E, sobretudo, a explicação
do processo através do qual essa originalidade se foi consolidando, apesar das oscilações
próprias a um trabalho que não quer apoiar-se no teórico, e adquiriu uma continuidade
perfeitamente consequente. Em todo caso, absolutamente distinta do simples e ocasional
abandono deste ou daquele princípio compositivo tradicional (como em Bonnard,
Matisse, Chagall). (Prosa, p. 22).
Intelectualismo:
“Esse conceito de trabalho, em virtude, principalmente, dessa disponibilidade e vazio
inicial, permite, ao artista, o exercício de um julgamento minucioso e permanente sobre
cada mínimo resultado a que se trabalho vai chegando. / Talvez pudéssemos chamar a
isso, o intelectualismo de Miró, aproveitando o que na palavra possa indicar uma atitude
de vigilância e lucidez no fazer, e, ao mesmo tempo, de contrário ao deixar-se fazer e ao
saber fazer, ou por outra, ao espontâneo e ao acadêmico” (p. 23).

Posição com relação ao surrealismo:


“Porque se oposta, essencialmente ao automatismo psíquico que os surrealistas
apontavam como norma de criação, é evidente que Miró não parece haver sido estranho
ao programa daqueles mesmos surrealistas, de buscar uma arte que pudesse atingir, e
revelar, um fundo existente no homem por debaixo da crosta de hábitos sociais
adquiridos, onde eles localizavam o mais puro e pessoal da personalidade. / A
originalidade de Miró em relação a eles está em que buscaria realizar de maneira
inteiramente diferente essa proposição inicial. A Miró, a seu espírito artesanal,
quase, haveria de soar estranhamente a estética antiplástica dos surrealistas, que
pareciam interessados em criar um tipo de arte superior e independente dos gêneros
de arte, pairando independente da realização objetiva de uma obra e, às vezes, capaz
de existir apesar da obra” (Prosa, p. 23).
“Se essa estética – ou mais justamente: essa ética – termina por significar um enorme
desprezo pela forma, isto é, pela presença objetiva de uma obra, o meio que ela propõe,
esse automatismo psíquico, significa – e a isso Miró haveria de ter sido mais sensível –
um desprezo absoluto pelo fazer, pelo trabalho de criação da obra. Que o surrealismo
tenta anular, reduzir ao máximo, submetendo-o ao ditado do espontâneo; ou menosprezar
completamente, admitindo o frio e amaneirado registro de estados psicológicos ou visões
oníricas, realizando posteriormente, dentro do clima de academia” (p. 23-24).
“A Miró, tão pintor, isto é, tão unicamente pintor, ou pintor tão pouco literário, esses tipos
de antipintura não devem ter absolutamente interessado. Ele aceitou aquela proposição
inicial do surrealismo, mas transformou-a num outro sentido. Ele entendeu-a não
como a introdução do subjetivo e do psicológico como assunto da pintura de seu
tempo. O que ele aceitou foi a ideia de levar até o campo mais profundo do psicológico
a busca de renovação formal a que a pintura se entrega há um século, com uma
intensidade somente interrompida nos anos de ascendência dos pintores surrealistas”.
(Prosa, p. 24).
“Assim, ao automatismo psíquico Miró opôs o que havia em seu espírito de mínimo e
minucioso, de artesanal. A anulação da razão como caminho para aquele autêntico
humano, preferiu o excesso de razão, de trabalho intelectual, na luta pelo autêntico.
Uma atitude de luta, a sua, absolutamente contrária à atitude de abandono dos
surrealistas que, entregues ao puro instintivo, foram encontrar, mais intensos, os
hábitos visuais armazenados, a memória” (p. 24).
“Contrariamente também aos surrealistas, não é uma pintura psicológica, de tema ou de
tese, de anedota psicológica, que Miró realiza. Miró sempre quis, e quase sempre o
conseguiu, realizar pintura. Essa atitude psicológica, a partir da qual ele empreende sua
aventura, informa apenas seu trabalho criador, seu processo mental de criação” (Prosa,
p. 24).
“Aquela lua ou estrela não são jamais luas metafísicas ou luas de sonho. São luas e
estrelas pintadas absolutamente puras de outras representações de luas ou de
estrelas” (p. 24).
De como a observação dos padrões da pintura renascentista se tornou um hábito:
“Sua consciência [a de Miró], seu rigor, não se apoia num elemento concreto: a lei, a
norma exterior. Quando este elemento está presente, o trabalho da consciência se exerce
no sentido, apenas, de uma fiscalização de resultados. E o rigor dessa consciência estará
em eliminar ou ajustar tudo o que não se adapte a essa regra ou ideia, sólida, externa ao
artista e para ele uma realidade precisa, inalterável. E a qualidade do artista estará na
maior atenção com que exerça essa polícia e em sua capacidade de aceitar os
despojamentos a que ela o obrigue. / Inegavelmente esse tipo de trabalho pode evitar o
espontâneo e o não autêntico. Mas somente até um certo momento. Porque a verdade é
que essas formas exteriores, intelectuais apenas enquanto se opõem a uma fácil
manipulação, podem ser prontamente transformadas em hábito. Elas acabam mesmo,
sempre por perder esse caráter inicial de disciplina e se transformam em excitante do
espontâneo e do instintivo. É possível a uma pessoa acostumar-se a conversar em
sonetos camonianos como foi possível ao olho ocidental acostumar-se com as sutis e
complicadas proporções da pintura nascida com a exploração da terceira dimensão”
(Prosa, p. 24-25)
“No trabalho de Miró, essa norma fixa de julgamento não existe. Nada existe exterior à
sua atividade. Nada a que ele confie seu problema permanente, nenhuma fórmula à qual
ele deixe a missão de buscar tal solução, com a qual ele compara sua criação. Será a sua
uma espécie de criação absoluta, em que cada mínimo passo tem de ser realizado? O
trabalho de criação de Miró, eu o imagino como o de um homem que para somar 2 e 2
constasse nos dedos. Não por ignorância de sua tabuada – como se dá com a pintura
infantil. Mas – e nessa capacidade de esquecer sua tabuada está uma das coisas mais
importantes de sua experiência – pelo desejo de colocar seu trabalho, permanentemente,
num plano de invenção da aritmética. / Se é verdade que a lucidez da criação de Miró não
se apoia em leis ou elementos teóricos – a que obedecer ou desobedecer – é verdade
também que seu julgamento – e a lucidez não é mais do que o uso de um estado de
julgamento permanente – não pode dispensar uma base, um critério de escolha e
apreciação. Miró, e nisso ele se assemelha ao artista automatizado de seu tempo, usa,
também, o critério de seu gosto, a reação de sua sensibilidade. / Mas somente nessa
atribuição, que ambos fazem à sensibilidade, da missão de apreciar. Porque enquanto o
pintor integrado na tradição trabalha em sua linha até chegar a reconhece-la, até dar-lhe
tal aparência que ele não sabe porque chega a satisfazer-lhe, até colocá-la na linha da
tradição e da memória, Miró luta para que, em nenhum momento, possa vir a
reconhecer, na sua, harmonias obscuramente aprendidas. Isto é: em Miró, não
coincidem seu gosto e seu impulso obscuro; o gosto não é nele expressão de cultura,
de hábito visual. / Assim, o processo mental dessa consciência de Miró é essencialmente
negativo. Não é o rigor para reproduzir o visto, para criar variações novas dentro de
harmonias vistas, mas uma depuração de todo costume. E a expressão dessa luta que
aparece no quadro de Miró. Sua pintura é a expressão desse fazer com luta, desse fazer
em luta. Jamais fáceis criações de um homem que tenha anulado em si todo o costume e
a memória. / Não será difícil compreender-se a natureza dolorosa de um trabalho dessa
ordem. Para o artista contemporâneo que imaginamos, integrado nessa tradição e
aceitando-a inconscientemente, haverá luta e esforço, apenas, enquanto não houver
domínio e habilidade. Para Miró, essa luta será permanente. Trabalhar contra seus
hábitos visuais não significa anulá-los. Esse esforço para vencê-los terá de renovar-se
cada dia. O mínimo gesto criador será, necessariamente para ele, uma luta aguda e
continuada” (Prosa, p. 25-26).
Rigor: “Nesse trabalho, não há, assim, momentos de facilidade em que as coisas se
resolvem ajudadas por uma descoberta anterior. Não há soluções que signifiquem uma
vitória mais longa que a de um momento. Cada milímetro de linha tem de ser avaliado.
Não há, como no trabalho de certos poetas, o equivalente daquela primeira palavra,
fecunda de associações e desenvolvimentos, que contém em si todo o poema. A luta,
aqui, se dá na passagem de uma a outra palavra e se uma dessas palavras conduz
uma outra, em lugar de aceitá-la em nome do impulso que a trouxe, essa consciência
lúcida a julga, e ainda com mais rigor, precisamente por sua origem obscura. / Essa
atitude equivale a colocar-se, permanentemente, não diante de um quadro a criar mas
diante da pintura a criar. É uma aspiração a colocar-se num ponto anterior à primeira
grafia pelo abandono de toda experiência que significa a pintura que tem existido até ele.
Não por desprezo dessa experiência ou de seu valor. Apenas, para encontrar e explorar
em sua obra, a virgindade do homem anterior ao primeiro quadro, que podia traçar sua
linha em condições de absoluta liberdade” (Prosa, p. 26).
Criação: “Criação, portanto, como equivalente de invenção e não de descoberta.
Equivalente a uma invenção permanente. Porque o rigor dessa consciência, a única talvez
que conseguiu passar da luta contra o ponto de partida da regra, levando-a mais longe, à
luta contra o resultado da regra assimilado a ponto de hábito, exerce-se tanto contra esse
mesmo hábito como contra a solução ou a maneira por meio da qual, um momento atrás,
ele conseguiu criar à margem do costume. / Colocado – pela permanente depuração de
seus hábitos visuais, através da luta contra o hábito e a habilidade – nesse ponto anterior
à pintura, Miró refez a sua em sentido diverso do que realizou a pintura posterior ao
Renascimento. Não se pode dizer que Miro tenha desejado – nem mesmo que ele tenha
uma consciência teórica disso – realizar aquele tipo de pintura para o qual tentei oferecer
uma teoria na primeira parte deste trabalho. O trabalho de Miró busca simplesmente outra
coisa: a validade de seus resultados. O que acontece é que nossos hábitos visuais estavam
moldados por mil maneiras de composição estática e fugir a eles significou,
simplesmente, fugir ao estatismo” (Prosa, p. 26-27).

Sentido do “vivo”: “Na curta conversa de Miró, uma palavra existe: vivo, a meu ver
muito instrutiva. Vivo é o adjetivo que ele emprega, mais do que para julgar, para cortar
qualquer incursão ao plano do teórico, onde jamais se sente à vontade. Vivo parece valer
ora como sinônimo de novo, ora de bom. Em todo caso, expressão de qualidade. Essa
palavra a meu ver indica bem o que busca sua sensibilidade e, por ela, sua pintura. Essa
sensação de vivo é o que existe de mais oposto à sensação de harmônico ou de
equilibrado. Ela nos é dada precisamente pelo que sai desse harmônico ou desse
equilibrado, diante do qual nossa sensibilidade não se sente ferida, mas adormecida. / É
a esse vivo que parece aspirar a pintura de Miró. Isto é, a algo elaborado nessa
dolorosa atitude de luta contra o hábito e a algo que vá, por sua vez, romper, no
espectador, a dura crosta de sua sensibilidade acostumada, para atingi-la nessa
região onde se refugia o melhor de si mesma: sua capacidade de saborear o inédito,
o não-aprendido. / A descoberta desse território livre, onde a vida é instável e difícil,
onde o direito de permanecer um minuto tem de ser duramente conseguido e essa
permanência continuadamente assegurada, não tem uma importância psicológica
em si, independente do que no campo da arte ela pudesse ter produzido?” (Prosa, p.
27).
Para além de ser apenas mais um estilo, a fórmula-Miró vale porque “por debaixo do
conjunto de maneiras pessoais que constituem a fórmula-Miró, há uma luta que
transcende o limitado alcance de uma exclusiva busca de expressão original. Há uma
luta contra todo um conjunto de leis rígidas que vem estruturando a pintura posterior ao
Renascimento e que está presente, sem exceção, por debaixo das fórmulas individuais
mais contraditórias, exploradas por pintores de hoje. / A obra de Miró é, essencialmente,
uma luta para devolver ao pintor uma liberdade de composição há muito tempo perdida.
Não uma liberdade absoluta, nem uma angélica liberação de qualquer imposição de
realidade ou da necessidade de um sistema para abordar a realidade. É sim, uma luta para
libertar o pintor de um sistema determinado, de uma arquitetura que limita os
movimentos da pintura. / Essa luta dá à história do pintor Miró a continuidade de um
sistema e explica certas questões que algumas pessoas conhecidas do pintor não se podem
deixar de propor. / Explica, por exemplo, porque este homem, em cujos começos se
notava tão grande amor à realidade, e em quem se nota, ainda hoje, tão desmedido amor
por esse outro tipo de realidade – os materiais humildes de sua arte, dos quais sempre
parte – foi levado a um ponto extremo de estilização, de abstração. / De certa maneira, se
pode dizer que o abstrato está nos dois polos do trabalho de representação da realidade.
É abstrato o que apenas se balbucia, aquilo a que não se chega a dar forma, e
abstrato o que se elabora ao infinito, aquilo a que se chega a elaborar tão
absolutamente que a realidade que podia conter se faz transparente e desaparece.
No primeiro caso, a figura é abstrata por ininteligível; no segundo, por disfarçada. No
primeiro, se permanece aquém da realidade; no segundo, se nega a realidade. / O
movimento que me parece haver determinado na obra de Miró o que se poderia entender
como um desejo de dar caça à realidade, não me parece poder enquadrar-se nessas duas
formas de ódio ou desprezo. Nesse homem tão próximo ao que há de mais concreto na
natureza e em seu trabalho, nesse sólido artesão da Catalunha, é impossível seguir o rastro
de qualquer idealismo. Não há nele nenhuma intenção de expulsar o assunto. (Ele poderá,
mesmo, vos decifrar qualquer das manchas de seu quadro; ele até parece se manifestar
surpreendido de que não as possais decifrar imediatamente.) / Melhor se definirá seu caso
dizendo que, interessado em criar uma dinâmica para seu quadro – embora nem sempre
se tenha dado conta disso – Miró teve de ir simplificando, a um ponto de puros esquemas,
o assunto de seus quadros. A estilização abstrata na obra de Miró está determinada pela
luta de lograr uma mecânica diferente para a pintura; está determinada pelas exigências
desse trabalho que se poderia chamar teórico. / É esta intenção e, principalmente, os
resultados objetivos a que ela chegou, que salvam sua obra de ser um formalismo a
mais. Não é necessário que o pintor, agora seguro de sua mecânica, inicie a volta a um
assunto e a uma pintura mais largamente humana, independente de tudo o que, por
excesso de valorização do indivíduo, mantém a arte – e as artes – estagnada e sem saída
possível. Com sua nova mecânica, e com a liberdade de composição que logra em sua
obra, Miró terá aberto uma perspectiva. E a pintura, quando se lance numa nova história,
mais arejada e menos fechadamente individualista, quando empreenda a síntese dos
elementos técnicos positivos que há em tal ou qual pintura de hoje, que há nas pinturas
de hoje (não foi, na verdade a pinturas diferentes, a gêneros de pintura diferentes que nos
conduziu o formalismo atual?), saberá aproveitar o exemplo e os ensinamentos do pintor
de Barcelona.” (Prosa, p. 28-29).

[posição clara com relação ao surrealismo; desconstrução dos hábitos estéticos


historicamente constituídos; grau incessante de superação e de auto-superação dessa
arte, donde o seu verdadeiro caráter vital; necessidade de racionalização do fazer
artístico-vital]

Benedito Nunes sobre João Cabral e Ponge:


“Precisamente porque João Cabral opera com os ‘dez mil dedos da linguagem’, sua poesia
não está fechada no universo do discurso por ela própria construída. O movimento dessa
poesia, que se desloca quase sempre, conforme constatamos, do plano da linguagem-
objeto ao da metalinguagem, vai além ‘da oscilação inquieta entre palavra e objeto’. No
intervalo dos dois planos, a intencionalidade criadora do poeta encontra o horizonte
perceptivo, que é o seu ‘ponto de ancoragem no mundo’. Assim como a lógica lhe dita o
rigor da construção, o horizonte perceptivo regula a clareza de suas imagens, por
intermédio das quase irrompe não só a riqueza do mundo visível, como a penúria e a
impureza do mundo humano, ambos dessubstancializados. / Dada a consciência
linguística de sua poesia, nenhuma distinção preliminar estabelece João Cabral entre
palavra e coisa, uma nascendo da outra na trama do discurso, de que também se formam
as conexões desse mundo, onde os objetos são entes verbais divisíveis, e a linguagem a
condição a priori que torna possível esse modo de objetificar denominada ‘coisa’. A
própria clareza que seduz o objeto não é a do realismo ingênuo, que pressupõe um
encontro intuitivo com o real, anterior a qualquer esforço de simbolização. É o ideal de
adequação do realismo reflexivo, consciente de que o máximo de clareza a nós acessível
‘não está no começo da linguagem, coo uma idade de ouro, e sim no extremo de seu
esforço’ (MERLEAU-PONTY, Signos: “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”).
Mas vem desse mesmo ideal a experiência das tensões entre a realidade perceptiva e as
significações, da diferença entre os signos, nos quais as coisas se objetificam ou se
constroem, e a percepção como horizonte de abertura, por onde elas aparecem e se fazem
presentes. Por sob o movimento das palavras, lateja sempre o movimento das coisas. O
essencial ao poeta é ver e dar a ver, como no poema intitulado ‘A palavra Sêda”, de
Quaderna, esses dois movimentos, jamais desligados, fazendo-se e completando-se um
no outro. Nessas condições, ir da coisa à palavra ou da palavra à coisa são percursos
equivalentes no âmbito da linguagem-objeto. / Mas esse âmbito não é mais para João
Cabral o recinto mágico, a forma substancializada da linguagem poética, cuja
instransitividade resultaria da atitude fatal do poeta, ‘que considera as palavras como
coisas e não como signos’ (SARTRE, Qu’est-ce que la littérature?). / Infenso ao
envolvimento mágico da obra, a que se esquiva e de que procura resguardar o leitor,
expondo, principalmente pela desagregação da metáfora, os mecanismos ocultos da
poesia construída como máquina da linguagem, move-se João Cabral num espaço poético
mais livre, dimensionado pelo horizonte da percepção, entre a linguagem-objeto, em que
não se fecha, e a metalinguagem, que lhe permite cultivar a consciência de poeta-
construtor, e suspender a sentença de intransitividade que alcançara a natureza da poesia.
/ Em consequência disso tudo, o fracasso de Anfion é relativo. Se os meios de
comunicação social o marginalizam, sua obra já não o clausura mais na cidadela do
poema. É que ligando a composição poética a registros temáticos definidos,
independentemente do sujeito que fala, João Cabral procurou devolver à poesia o seu
poder de comunicação. Mas sob o ângulo desses registros temáticos, outros serão, na
linguagem poética, que é linguagem afetiva, a função e o valor dos sentimentos atingidos
pela depuração e pelo esvaziamento. / Se a poesia é linguagem afetiva, não quer isso
dizer, entretanto, que ela o seja apenas porque e quando exprime as modificações internas
do sujeito, que a psicologia clássica abrangeu no domínio geral da sensibilidade ou da
afetividade. Ela o é ainda quando os sentimentos ou emoções integram, deixando de
condicionar a unidade do sujeito e do objeto, aquele plano de fundo da experiência
subjetiva, para onde, já na primeira fase da poesia cabralina, o sonho tematizado e as
imagens visionárias transitaram. Com esse trânsito, evidentemente, as vivências afetivas,
atingidas por uma espécie de epoqué que lhes retira a afetividade e a imediatidade
empíricas, mudam de valor. Enquanto na expressão lírica pura, a emoção se transporta ao
conteúdo anímico da palavra, que funde todo e qualquer objeto à fala do sujeito, na arte
decorrente da experiência de construção, que nos dará a máquina do poema, o conteúdo
emocional funciona como instancia motivadora. É ainda a Stimmung, mas com o valor de
a priori afetivo. O sentimento condiciona o uso da linguagem, marcando o limiar de
acesso a uma situação temática ou a um objeto determinado. / Incorporada ao poema
construído como “machine à émouvoir”, a emoção, abstrata e geral, produto do
pensamento reflexivo, e que é a medida maior de toda arte, torna-se, por sua vez,
despertando no leitor a receptividade às significações que os temas da composição
condensam, o a priori da comunicação. De todo oposta ao estado emocional passivo,
como reação de defesa e de fuga, de evasão ou de apropriação mágica do mundo, a
emoção assim valorizada converte-se num estado de compreensão intuitiva, que deverá
produzir a poesia transparente, capaz de desnudar as coisas ao desnudar-se a si mesma. /
Nessa perspectiva, que a construtividade lhe impõe, fica o poeta não só distanciado de si
próprio como das coisas mesmas. Apreendê-las significará construí-las na linguagem por
meio de decomposições e recomposições sucessivas, que aparentam o ato de elaboração
do poema a uma atividade estruturalista (BARTHES). Por outro lado, desarticulando-se
a unidade lírica entre linguagem e estado de ânimo, o poeta agencia, independentemente
da voz individual de seus sentimentos, um discurso proso-poético, que fala, absorvendo
a sintaxe lógica do pensamento discursivo, de objetos comunicáveis, numa dicção cuja
transparência, sujeita a controle, objetifica as palavras sem mitificar a linguagem. /
Semelhante posição resulta, finalmente, numa total responsabilidade do poeta construtor
para com a linguagem, responsabilidade que não se esgota no dever abstrato de cultivar
e enriquecer o patrimônio coletivo da língua que às suas mãos passou. Ele responderá
pela utilização língua como ‘langage operant’ (MERLEAU-PONTY, Signos: “A
linguagem indireta e as vozes do silêncio) que, num sentido oposto ao da mitificação da
linguagem, deverá manifestar o oculto e revelar o encoberto. Dessa forma, não será
indiferente a João Cabral nem o modo de dizer nem aquilo que a poesia possa dizer. Se
são os temas, desligados do predomínio lírico dos sentimentos, que mobilizam o discurso,
se são ainda os temas que garantem a comunicabilidade desse discurso, importa escolhê-
los e tratá-los de maneira a que se concretize a total responsabilidade do poeta perante a
linguagem. / O sentido didático da poesia de João Cabral comprova que ele assumiu
plenamente essa atitude de compromisso. Daí a relevância do humor cabralino, a serviço
da sátira social, mas também associado à reflexão sobre a poesia. São os dois capítulos
inseparáveis de uma só didática da pedra.” (NUNES, B. João Cabral, p. 177-182).
Cronologia:
[fase de transição para a máquina linguística, já não é o romantismo/surrealismo]
Pedra do sono (1942)
[fase da crise]
Os três mal amados (1943)
O engenheiro (1945)
Psicologia da composição, com a Fábula de Anfion e Antiode (1947)
[fase da construção]
O cão sem plumas (1950)
Poemas reunidos – contendo os livros anteriores (1954)
O Rio ou Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade de Recife
(1954)
Pregão turístico (195)
Duas águas – contendo Poemas reunidos + O Rio; Morte e vida Severina; Paisagem com
figuras; Uma faca só lâmina (1956)
Aniki Bobó (1958)
Quaderna (1956-1959)
Dois Parlamentos (1958-1960)
Terceira feira – contendo Quaderna e Dois Parlamentos + Serial (1959-1961)
Poemas escolhidos (1963)
Antologia poética (1963 e 2ª edição 1969)
Morte e vida Severina (1965)
A educação pela pedra (1966)
Funeral de um lavrador (1967)
Poesias completas (1940-1965) (1968)

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