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Semântica neoliberal :
o respeito as “diferenças” ou mascaramento das
contradições?
Introdução
História
Definições necessárias
Sonho...
Não por mera coincidência, se na atualidade ( séc. XXI ) alimentamos certos sonhos
como o citado acima, a mais de cem anos atrás ( séc. XIX ), Machado de Assis, interpretado
por alguns como amargo e pessimista, já punha o dedo na ferida, pois, ainda no auge das
relações escravocratas no Brasil, o escritor realista apontou, em seu “Memórias Póstumas
de Brás Cubas”, uma aparente contradição ( ver quadro de definições ), quando o narrador-
personagem, Brás Cubas, diz no capítulo LXVIII ( O vergalho ):
Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora,
logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento;era
um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir;
gemia somente estas únicas palavras:-“Não, perdão, meu senhor; meu
senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia
com uma vergalhada nova.
- Toma, diabo! Dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
- Meu senhor! Gemia o outro.
- Cala boca, besta! Replicava o vergalho.
Parei, olhei...justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos
que o meu moleque Prudêncio, - o que meu pai libertara alguns anos antes.
Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a benção; perguntei-lhe se aquele
preto era escravo dele.
-É, sim, nhonhô.
-Fez-te alguma coisa?
-É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na
quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para
ir na venda beber.
-Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
-Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas.
Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver
inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez
alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era
torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais
dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo.
Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas,
- transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio
na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém,
que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar,
folgar, dormir, desagrilhoado da antigo condição, agora é que ele se
desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as
quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!
A contradição é aparente, pois, como está dito acima, a condição de identidade biológica
entre sujeitos não impede que entre ambos se instaurem relações de poder e exploração. O
realismo machadiano não deixou de perceber tal fato e o ilustrou com pormenores. A
desfaçatez de Brás Cubas, por exemplo, o demonstra. Como bom representante da elite,
cônscio de sua posição, Cubas relativiza a atitude de Prudêncio, seu ex-escravo. Porém,
velhaco e patife é o próprio Brás Cubas em sua análise, pois Prudêncio nada mais fez do
que refletir a forma de organização das relações econômico-sociais prevalecentes. Da
mesma forma, como aparente contradição, mas já a mostrar a ausência de fronteiras
do descaramento da elite brasileira, conforme citado por Caio Prado Júnior, em “História
Econômica do Brasil”, ao comentar acerca da guerra do Paraguai: Encontraram-se as
maiores dificuldades no recrutamento de tropas, e foi-se obrigado a recorrer a escravos,
desapropriando-os de seus senhores e concedendo-lhes alforria. Velhaca como Cubas, pois
que dele descende, hoje, a elite travestida de modernosa nos propõe
cinicamente a abolição das “diferenças”.
Academia
Contudo, o determinismo biológico não é privilégio das interpretações ingênuas. Aí, não
passa de reflexo. Como orientação ideológica mais elaborada, o determinismo biológico
tem sua matriz localizada no seio da intelectualidade acadêmica e migra para o senso
comum.
No campo psicopedagógico, por exemplo, Vigotski, ao comentar a concepção piagetiana,
conforme citado pelo professor Newton Duarte em “Vigotski e o Aprender a Aprender”, diz
o seguinte:
Em essência, essa tentativa de justificar o egocentrismo no desenvolvimento tardio do instinto
social e no egoísmo biológico da natureza infantil é inerente à própria definição piagetiana do
pensamento egocêntrico, considerado como pensamento individual em contraposição ao
pensamento socializado que, para Piaget, coincide com o pensamento racional ou realista.
Uma vez que os comentários de Vigotski se referem ao jovem Piaget, mesmo porque o
primeiro morreu muito jovem e Piaget continuou suas pesquisas, o professor Newton
Duarte destina o sexto capítulo de sua obra para verificar se a ênfase ao aspecto biológico
das obras iniciais de Piaget permaneceu nas obras posteriores. Neste capítulo, “A psicologia
de Piaget é sociointeracionista”, dentre várias obras, do autor, o Professor cita “Biologia e
Conhecimento” [ Piaget, 1969, p. 332 ]. No fragmento mostrado, destaca-se a afirmação de
que, se a verdade é uma organização do real, a questão prévia é compreender quem e
como se organiza uma organização e essa é uma questão biológica. Em outros termos,
sendo o problema epistemológico saber como é possível a ciência, convêm, antes de
recorrer a uma organização transcendental, esgotar os recursos da organização
imanente. Segundo o professor Newton Duarte, no que está certo, com base no fragmento
por ele mencionado, a epistemologia piagetiana não foca a questão da existência da
conexão entre o conhecimento e a realidade objetiva. Ora, não há transcendentalidade e
nem tampouco imanência. Que relevância pode adquirir o aspecto biológico, como
imanência, na estruturação de atividades cerebrais superiores, sendo que as mesmas são
produto do desenvolvimento histórico do ser e da espécie?
Também este caso, da influência da biologização a partir da elaboração acadêmica,
Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho, mostrou em sua obra, tanto em “MPBC”
como em “Quincas Borba”, com o mesmo tom utilizado ao apresentar a relação entre Brás
Cubas e Prudêncio, o ex-escravo. Não é por mera coincidência que o mestre ou guru de
Cubas, o patife, seja Quincas Borba, cuja filosofia, o Humanitismo, tem como lema “AO
VENCEDOR AS BATATAS”. Segundo tal filosofia, à moda do darwinismo social, guerras
e pestes têm seus aspectos positivos, uma vez que depuram a espécie e conservam
Humanitas, o princípio.
Não é `a toa que Carlos Drummond de Andrade diz, referindo-se a Machado de Assis,
em“A um Bruxo, Com Amor”: Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
Possibilidades de diferenças
Do ponto de vista dialético, a referida idéia de diferença biológica, afora sua projeção no
social, não diz nada e, quando muito, redunda em “igualdade”. Não se trata da igualdade
como identidade, mas de uma igualdade que, ao desconsiderar relações dinâmicas entre um
“em-si” e um “para-si” num mesmo objeto e/ou entre objetos, relações de oposição ou
funcionais, se fixa em aspectos de forma e/ou conteúdo sob uma ótica estática, uma simples
comparação.
Contudo, não se pode negar a importância e eficácia de outro conceito comum de
diferença, o utilizado em nosso dia-a-dia, pois a todo momento fazemos comparações e
constatamos diferenças a partir das quais estabelecemos juízos de valor que norteiam a
nossa existência prática. Por exemplo, na aquisição de qualquer bem, a constatação de
diferenças implica na valoração negativa ou positiva que determina se o bem deve ou não
ser adquirido.
Na área de linguagem, o conceito de diferença adquiriu maior elaboração. O que importa
à fonologia, por exemplo, é o estudo da função diferenciadora. Na língua portuguesa, “p” e
“b” são fonemas diferentes por causa desta função, pelo fato de que esta oposição permite a
distinção entre conceitos, como por exemplo: “pote” / “bote”, “bilha” / “pilha”; daí deriva a
relação de rendimento funcional da oposição fonológica p/b ( ou, mais geralmente, da
oposição surda/sonora, pois ambos são oclusivos e labiais ). Da mesma forma, tanto na
frase como na representação numérica, os valores de palavras e números variam em
decorrência das posições que ambos ocupam, as quais expressam relações contrastivas
lastreadas nas diferenças.
Destas ocorrências relevantes do conceito de diferença não deriva que toda e qualquer
diferença tenha importância, especialmente a “diferença” proposta pela semântica
neoliberal. Aliás, tal “diferença”, como dito acima, encaixa-se muito bem no comentário
feito por Hegel, em “Temas Filosóficos - Ontologia e Lógica / Isto, algo e o outro”, quando
diz:
Como podemos perceber, segundo Hegel, onde vemos diferença não há senão
“mesmidade” que se desfaz na “comparação”. Em nosso caso, uma comparação descabida
que toma o aspecto biológico como justificativa da existência econômico-social.
Ainda na representação da linguagem, fora das determinações relacionais, esboços de
relações contraditórias, os termos incidem na “mesmidade” mencionada por Hegel : o pai é
algo também por si, ainda fora da relação com o filho; mas então não é mais o pai, sim um
homem em geral; do mesmo modo acima e abaixo, direita e esquerda são também algo
refletido em si, fora da relação, mas apenas são lugares em geral.
Diferença e Relação
“Um ser, que não tenha objeto fora de si, não é nenhum ser objetivo. Um ser que
não seja ele próprio objeto para um terceiro ser, não tem existência para o respectivo
objeto, quer dizer, não possui relação objetiva, o seu ser não é objetivo.
[ XXVII ] Um ser não objetivo é um não-ser. ( ... )
Mas o homem não é exclusivamente um ser natural; é um ser natural humano; ou
melhor, um ser para si mesmo, por conseqüência, um ser genérico, e como tal tem de
legitimar-se expressar-se no ser como no pensamento”.
...é uma referência recíproca de dois termos, que em parte têm uma existência
indiferente, mas em parte cada um é apenas por meio do outro e na unidade do
ser determinado”.
Os dois termos postos em relação, no ser determinado, são a imediatidade ( ser posto ou
o que está ) e o não-ser ( o que será, possibilidade ). Na semente da árvore, por exemplo, já
se encontram implicadas todas as determinações da árvore futura, assim como no embrião
humano já estão postos como possibilidades, as determinações da criança, adolescente etc.
E Hegel, em “O SER-A Qualidade / Propedêutica Filosófica”, complementa:
“Qualidade-Parágrafo 8
A qualidade é a determinidade imediata, cuja alteração é o passar para algo
oposto.
perecer perecer
A partir do conhecimento mais elementar acerca de um objeto ( pereira ), o concreto como imediato, cada
grau de conhecimento é ampliado de modo a possibilitar o conhecimento mais completo do referido objeto,
sua real concreticidade. Disto deriva, como diz Marx: O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas
determinações, logo, unidade na diversidade.
HUMANO NÃO-HUMANO
eu pereira
ser para si ser em si
Vida e Dialética
Assim, é desta forma que o mundo orgânico, a vida, se manifesta. E o homem, como ser
natural humano, além de biologicamente manifestar-se deste modo, no seu ser, manifesta-
se também como ser para si por via do pensamento, desde que raciocine dialeticamente.
Embora, em termos gerais, ser para si possa significar forjar sentidos novos, produzir
cultura, transformar a realidade; um ser para si conseqüente não faz o que os ideólogos
neoliberais propõem com base nesta semântica enganosa. Muito pelo contrário, um ser para
si verdadeiro, conectado com as necessidades históricas de transformações radicais e com
base no aguçamento das contradições insolucionáveis, almeja e luta pelo fim da contradição
maior, a relação contraditória de exploração entre capital e trabalho. Neste sentido, antes de
tudo, ser para si é apropriar-se da forma dialética de compreensão da vida, tanto biológica
como histórico-social; como também apropriar-se do conhecimento acumulado por via do
processo de transformação exercido pelo homem sobre a natureza e si próprio através da
prática social. Aliás, sem perder de vista a relação necessária entre conhecimento e
realidade objetiva que aponta necessidade de transformação, pois o resto é adaptação ao
meio, teorização do comportamento, biologização da vida prenhe de dialética, que a todo
momento nos convida a sair da caverna para percebermos que A é, sim, B. Devemos
almejar mais do que uma simples inteligência prática. Como diz Agnes Heller, a
essencialidade da nossa existência não se resolve por via de uma consciência caricatural e
fetichizada. Esta, quando muito, nos propicia a capacidade de podermos decidir aos vinte
anos o que se poderá ganhar em determinado emprego quinze anos mais tarde, quando será
conveniente casar, quantos filhos convirá ter etc. Isto não é nada mais do que
espontaneidade do homem que tudo aceita, sem preocupações além das comezinhas, do
modo como lhe aparece na vida. Trata-se do homem que age conforme o princípio do “seja
o que deus quiser” ou, como diz a música, “o acaso vai me proteger enquanto eu andar
distraído”, sem nenhuma perspectiva que transcenda o dia-a-dia.
Em suma e sem mais delongas, mesmo porque o propósito deste texto não é o de
concentrar-se no materialismo dialético, empreitada que demandaria muito mais estudos e
alongaria demais o trabalho, sob pena de perdermos o eixo central da discussão proposta,
um pequeno exemplo da semântica neoliberal; o ser para si é o que capta, por via do
fenômeno, a essência dos objetos e fatos para si e para nós.
Desta forma, cai por terra a concepção de que exista alguma coisa em si, inacessível.
Nesse sentido, Lênin, em “Materialismo e Empiriocriticismo”, diz o seguinte:
“Qualquer diferença misteriosa, engenhosa e subtil entre o fenômeno e a coisa
em si é um completo disparate filosófico. Na realidade cada homem já observou
milhões de vezes a transformação simples e evidente da coisa em si em
fenômeno, em coisa para nós. Esta transformação é precisamente o conhecimento”.
Consideração final
QRADRADO SEMIÓTICO
VERDADE
SER PARECER
SEGREDO MENTIRA
FALSIDADE
Referências Bibliográficas