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Identidades Coletivas e Conflffllitos

Territoriais no Sul do Brasil.

Aline Miranda Barbosa


Dimas Gusso
Douglas Ladik Antunes
Ezequiel Antonio de Moura
Jorge Montenegro
José Carlos Vandresen
Letícia Ayumi Duarte
Marcelo Cunha Varella
Marina Eduarda Armstrong de Oliveira
Marina Gomes Drehmer
Mercedes Solá Pérez
Rafael Palermo Buti
Roberto Martins de Souza
© Roberto Martins de Souza et al., 2015

Editor
Alf redo Wagner Berno de Almeida
UEA, pesquisador CNPq

Projeto Gráfico e diagramação


Grace Stefany Coelho

Fotos
Arquivo Projeto Nova
Cartografia Social Sul

Ficha Catalográfica
I19 Identidade coletiva e conflitos territoriais no Sul do Brasil / Roberto
Martins de Souza ...[et al]. – Manaus, AM: UEA Edições, 2014.
250 p. : il. Color.

ISBN 978-85-7883-317-6

1. Faxinais– Povos e comunidades tradicionais. 2. Pescadores Artesanais


3. Conflitos sociais. 4.Territorialidade. I. Souza, Roberto Martins. II.
Título

CDU 342.726

UEA - Edifício Professor E-mails:


Samuel Benchimol pncaa.uea@gmail.com
Rua Leonardo Malcher, 1728 pncsa.ufam@yahoo.com.br
Centro www.novacartografiasocial.com
Cep.: 69.010-170 Fone: (92) 3878-4412
Manaus, AM
Sumário
Prefácio 5
Apresentação 9
Nas tramas da construção de uma rede de povos
e comunidades tradicionais no Paraná e Santa Catarina:
histórias de sempre, histórias de hoje 9
Narrativa sobre a sistematização das experiências da Rede
Puxirão de Povos e Comunidade Tradicionais 21
Comunidade de Pescadoras e Pescadores Artesanais
Organizados – Processos de R-existência na Vila do Superagüi-PR 53
Da sustentabilidade manifesta à dominação latente: cartografias
participativas e conflitos territoriais 69
A tutela das plantações industriais de árvores e a resistência camponesa
no município de Imbaú - PR 87
R-Existência da Comunidade de Agricultores e Pescadores Artesanais dos
Areais da Ribanceira, Imbituba - SC 103
Tempo, território e conflitos sociais: práticas tradicionais e desterritorialização
de cipozeiros. 121
Nas Margens do Fundão: Política, Expropriação, Direito e História da
Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha/PR 147
Notas Biográficas 177
PREFÁCIO

No planalto meridional do País, tanto quanto no cerrado, no litoral e nas regiões


pantaneira e amazônica, verifica-se, nesta primeira década e meia do século XXI,
um fortalecimento das mobilizações étnicas e das lutas por direitos territoriais.
O reconhecimento da sociodiversidade pelo Decreto n. 6.040, de 07 de fevereiro
de 2007, parece consolidado a partir do funcionamento efetivo da Comissão Na-
cional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais,
propiciando condições de possibilidade para uma ação política permanente. Nas
reuniões desta Comissão paritária, entre 2008 e 2014, os representantes, titulares
e suplentes, de trinta diferentes movimentos sociais, de regiões as mais diversas,
estreitaram seus laços, firmando pactos tácitos de solidariedade e realizando in-
tensas cooperações inter-regionais a partir de conflitos localizados. Embora ainda
não tenham acionado todo o potencial político desta Comissão de maneira apro-
priada, pode-se dizer que tal ação política apóia a criação de Comissões Regionais,
de mecanismos de consulta e de Câmaras Técnicas, ampliando a representação da
Comissão em diversos Conselhos, além de pretender articular as representações
nacionais e inter-estaduais com as entidades locais de representação1. A questão
da representatividade diferenciada e suas implicações encontram nesta Comissão,
composta de faxinalenses, seringueiros, ciganos, quilombolas, indígenas, pomera-
nos, povos de terreiros, quebradeiras de coco babaçu, pantaneiros, pescadores, rep-
resentantes de comunidades de fundos de pasto e caiçaras; uma experiência de di-
versidade identitária e de critérios de mobilização os mais heterogêneos, bem como
de territorialidades específicas construídas consoante as particularidades de cada
uma destas unidades sociais. Semelhante experiência deve ser levada em conta
quando analisamos as articulações das diversas formas de lutas e pautas reivindi-
catórias face aos direitos territoriais. No contexto das mobilizações políticas veri-
fica-se ademais que as reivindicações econômicas mostram-se indissociáveis das
1Desde as discussões da Constituinte de 1987 foram realizados os denominados “encontros”, agrupando seringueiros,
povos indígenas, quebradeiras de coco babaçu, castanheiros e demais unidades sociais que compunham os chamados
“povos da floresta”. A difusão desta forma organizativa na virada do século transcendeu à região amazônica. O I Encontro
dos Povos dos Faxinais ocorreu em Irati (PR), em agosto de 2005, e teve como lema “Terras de Faxinal: resistir em puxirão
pelo direito de repartir o pão”. O I Encontro Regional dos Povos e Comunidades Tradicionais, mobilizando faxinalenses,
quilombolas, cipozeiros, pescadores, ilhéus e indígenas ocorreu quase três anos depois, em 27 e 28 de maio de 2008,
consolidando a Articulação Puxirão dos Povos dos Faxinais.

5
reivindicações identitárias e que os territórios possuem evidente dimensão sim-
bólica. As mobilizações organizadas no Paraná pela Articulação Puxirão, pelos pes-
cadores artesanais, pelos ilhéus, pelos quilombolas e pelos indígenas bem ilustram
isto e propiciam, como exposto neste livro, um debate aberto e fecundo.
Nos meandros deste debate é que é possível, no plano teórico, rever instru-
mentos analíticos e repensar criticamente certos esquemas interpretativos. Assim,
contrapondo-se às explicações metafóricas, que tratam estas mobilizações como
“em rede”, a partir da metáfora weberiana da “teia de aranha”, pode-se asseverar
que a complexa sociodiversidade permite-nos advertir que as formas heterogêneas
de mobilização não seriam fios de uma mesma teia, compondo uma rede de tecido
e textura uniformes. Esta sociodiversidade tão pouco consiste numa trama que en-
reda ou emaranha, formando uma espécie de “rede elástica” projetada como laços
complementares, araneíferos. As metáforas, que insistem em figuras de aproxi-
mação, configurando geometricamente limites relativamente precisos, esbarram
no infinito dos significados desta diversidade complexa e dinâmica, que parece
driblar as delimitações usuais, apoiadas numa noção estritamente formal de ação
coletiva e de participação política.
Transcendendo às demandas de reconhecimento a Comissão Nacional tem con-
tribuído na articulação de estratégias localizadas de resistência e de reivindicações
de apropriação de territórios tradicionalmente ocupados, como no caso do recente
apoio à participação das comunidades caiçaras da Juréia2 em audiência pública na
Assembléia Legislativa de São Paulo. Ao fazê-lo, a Comissão admite, de maneira
implícita, que cada associação comunitária delineia uma forma peculiar de luta,
consoante suas condições intrínsecas de organização política, de mobilização e as
particularidades de suas respectivas territorialidades específicas.
As lutas por direitos territoriais, no presente, balizam os laços de solidariedade
numa quadra em que o governo praticamente não demarca terras indígenas e não
titula territórios de comunidades quilombolas, ribeirinhas e dos demais povos e
comunidades tradicionais. Justificar esta inocuidade pela “ausência de regulamen-
tação” contraria o que já está plenamente ratificado. No âmbito estrito da Con-
venção 169 há dispositivos operacionais reconhecidos e consolidados de maneira
explícita para povos indígenas e quilombolas. Mesmo que não haja dispositivos
específicos direcionados para todos os demais povos e comunidades tradicionais,
eles encontram-se implicitamente contemplados pela ratificação. Esta distinção
operacional não teria significação maior. Prova disto é que não dividiu a Comissão
Nacional e, ao contrário, tem facilitado os laços de solidariedade entre os repre-
sentantes dos diferentes povos e comunidades tradicionais em suas reivindicações

2 Num processo de lutas contra tentativas de deslocamento compulsório de famílias de moradores a União dos Mo-
radores da Juréia apresentou em audiência pública na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo uma proposta,
fundamentada na Convenção 169, para recategorização do chamado “Mosaico da Juréia”, propondo a criação de quatro
reservas de desenvolvimento sustentável (RDS) nas terras tradicionalmente ocupadas pelos moradores, além da criação
de dois parques estaduais. No dia 06 de março de 2013 foi votado, entretanto, em sentido contrário, um Projeto de Lei
de n.60-12 que prevê a reclassificação da Estação Ecológica para um Mosaico de Unidades de Conservação, prevendo a
criação de apenas duas RDS o que acarretará na expulsão de grande parte dos moradores que tradicionalmente ocupam
a região da Juréia.
Vide União dos Moradores da Juréia - PNCSA – “Comunidades tradicionais caiçaras da Jureia,Iguape-Peruibe”. Nova
Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil - São Paulo. Fascículo n.1, junho de 2013.

6
pelos territórios ocupados3. Deste modo, na percepção dos membros da Comis-
são parece prevalecer um princípio operativo: mais que as lutas pelo reconheci-
mento de identidades são as reivindicações de posse de um território, reforçadas
coletivamente, que constituiriam um fator de mobilização política para legitimar
as lideranças e os próprios representantes na Comissão Nacional. A participação
direta e diferenciada nas medidas de implementação dos direitos territoriais torna-
se, portanto um elemento central na estratégia destes movimentos sociais articula-
dos com as reivindicações de comunidades locais4. A força política construída pelas
mobilizações em torno do território institui uma dinâmica que emancipa, portanto,
estas comunidades locais das amarras burocráticas, que visam emparedar definiti-
vamente suas fronteiras. A luta pelos direitos territoriais e as distintas práticas de
delimitação das territorialidades específicas, fundamentais à reprodução social de
cada comunidade, evidenciam uma forma de autoconsciência cultural coextensiva
à capacidade de ampliar suas relações, consolidando de maneira dinâmica o ter-
ritório. (relações sociais)
Ao cotejar diversas possibilidades, sob o critério da divisão em biomas e
ecossistemas, verifica-se que no sertão nordestino, na floresta amazônica ou na
floresta atlântica e no planalto meridional não há uma identidade unitária e as
mesmas práticas que nivelem as comunidades tradicionais. Não há entre os povos
indígenas, nem entre estes e os quilombolas e não há entre as comunidades de
faxinais e de fundos de pasto. A imperiosidade do “denominador comum”, como
elemento explicativo, mais sugere um artifício de pesquisadores acadêmicos do
que uma realidade empírica. As unidades sociais, não obstante uma identidade co-
letiva a mesma, mostram-se heterogêneas e expressas por diferentes formas or-
ganizativas e de mobilização identitária, que enfatizam um processo de relações
associativas marcado por profundas distinções históricas e processos de lutas os
mais variados. A diversidade das unidades sociais aponta para uma difícil articu-
lação de diferenças, que se apóiam em relações quase institucionais e em modus
operandi que aparentemente se contraditam uns aos outros, desdizendo, como já
foi sublinhado, a produção linear da seda de que é feita a “teia de aranha”, que é
uma expressão metafórica do senso-comum erudito, e chamando a atenção para
vínculos hierarquizados, distintos e complexos que não formam necessariamente
laços geometrizados e complementares, característicos de figuras zoológicamente
compostas5. A fronteira identitária não passa necessariamente, portanto, por con-
dicionantes do quadro natural. Não é inspirada na fauna, nem nas comunidades tal
como biologicamente definidas. A metáfora araneiforme consiste numa “verdade
3 Conforme pronunciamento da representante das comunidades pantaneiras na Comissão Nacional, Claudia de Pinho,
em reunião promovida pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) para avaliação da Política Nacional de Desenvolvi-
mento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, realizada no Cenaflor-Ibama, em Brasília, no dia 03 de dezem-
bro de 2012.
4 O geógrafo T. Paoliello estuda a relação entre a luta pelo território e a consolidação de uma identidade coletiva em sua
dissertação defendida, em 2012, junto ao Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. De
acordo com a abordagem do autor, em sua pesquisa sobre os Atikum e Pankará, no sertão pernambucano, não seriam
necessariamente as demandas pelo reconhecimento, mas as reivindicações de posse de um território, feitas de maneira
coletiva no tempo presente, que constituiriam “o gatilho que dispara o processo de etnogênese.” Leia-se Paoliello P. de
Oliveira, Tomas – Revitalização étnica e dinâmica territorial: alternativas contemporâneas à crise da economia sertaneja.
Rio de Janeiro. Contracapa. 2012
5 Para maiores esclarecimentos consulte-se: Almeida, A. W. B. de, e Dourado, S. - Consulta e Participação: a crítica à
metáfora da teia de aranha. Manaus. UEA Edições. Coleção Documentos de Bolso n.5. 2013 pp.11-34.

7
científica aparente”, com todos os atributos acríticos da autoevidencia e todas as
ilusões derivadas. De igual modo a aludida fronteira não se prende a essencialis-
mos ou a características físicas, raciais ou de origem. Ela se mostra balizada por
experiências político-organizativas, de lutas concretas e de resistências cotidianas
refletidas em autorepresentações coletivas e por uma infrapolítica produtora de
dispositivos jurídicos apropriados. Em outros termos, a análise concreta de uma
situação concreta e a própria descrição etnográfica de uma ocorrência de conflito,
reforçada pelas relações sociais próprias do processo de produção cartográfica, po-
dem propiciar uma ruptura crítica com a generalidade dos fatores invariantes deste
modelo de explicação metafórica.
No reforço desta abordagem é que enfatizamos como dispositivo a Conven-
ção 169 da OIT ao apresentar aqui, para efeitos de discussão ampla e difusa, um
repertório de artigos e análises críticas que objetivam um aprofundamento das
questões sociológicas referidas ao entendimento das mobilizações políticas e das
reivindicações identitárias e econômicas dos povos e comunidades tradicionais no
momento atual.

Alfredo Wagner Berno de Almeida 6

6 Antropólogo, professor da UEA e pesquisador do CNPq.

8
Apresentação

Nas tramas da construção de uma rede de povos e comunidades


tradicionais no Paraná e Santa Catarina: histórias de sempre, histórias
de hoje
Jorge Montenegro1

I
Os contadores de histórias, desde sempre, abrem mão de recursos sutis para
desafiar a imaginação do público, prendendo assim sua atenção com artimanhas
de todo tipo, alimentando a curiosidade de quem os escuta e estabelecendo cum-
plicidades imediatas. Um olho que brilha, um sorriso que se esboça. Mas, essa
curiosidade crescente e essa folia da imaginação não se desvanecem no final da
história, senão que marcam profundamente o silêncio que o desfecho do relato
irremediavelmente provoca. O final da história, abrupto ou esperado, arruma a re-
bentação dos sentidos, sopra forças e abre caminhos para continuar em frente.
São essas estórias de sempre, que contadas uma e outra vez, contadas de formas
diferentes, contadas com protagonistas outros, nos fazem e nos refazem também
hoje. Constroem-nos como partes de uma comunidade ampla de indivíduos talvez
esparsos, mas que se juntam ao redor do calor que irradia uma boa história, uma
história que no final das contas também acaba sendo, se olho brilhar, se o sorriso
esboçar, de quem a escuta.
A história, ou melhor, as histórias que este livro conta compõem um olhar cuida-
doso e próximo do processo de organização que os povos e comunidades tradicio-
nais de Paraná e Santa Catarina vêm realizando desde metade dos anos 2000. São
faxinalenses, indígenas, quilombolas, ilhéus, pescadoras e pescadores artesanais,
cipozeiras e cipozeiros, benzedeiras e benzedores e religiosas e religiosos de matriz
africana que com seus próprios ritmos e interesses foram se aproximando em
movimentos sociais específicos que lhes dessem fortaleza e lhes representassem:
a Articulação Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais (APF), a Articulação
1 Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia na Universidade Federal do Paraná (Curitiba-Brasil).
e-mail: <jorgemon00@hotmail.com>.

9
dos Povos Indígenas do Sul (ARPIN-Sul), a Federação de Comunidades Quilom-
bolas do Paraná (FECOQUI), o Movimento dos Ilhéus do Rio Paraná (MOIRPA),
o Movimento dos Pescadores Artesanais do Litoral do Paraná (MOPEAR), o Movi-
mento Interestadual das Cipozeiras e Cipozeiros (MICI), o Movimento Aprendizes
da Sabedoria (MASA) e o Fórum Paranaense de Religiões de Matriz Africana (FPR-
MA).
Porém, são histórias que contam também como eles conseguiram ir além dessas
organizações específicas. Todos esses povos e comunidades tradicionais juntaram
forças, pulando preconceitos e dificuldades, para criar, em 2008, a Rede Puxirão de
Povos e Comunidades Tradicionais. Movimento de movimentos que se apresenta
na areia política para mostrar a vida e o dinamismo do caleidoscópio de identidades
coletivas que existem em estados como Paraná e Santa Catarina, apesar da omissão
dos discursos oficiais.
Os autores dos textos deste livro acompanharam esses processos de perto e
de longe, em um movimento que lhes permitiu viver a história para poder contá-
la. De perto, porque mais do que uma metodologia, a relação social de pesquisa
estabelecida com esses sujeitos que constroem suas identidades coletivas exige uma
interlocução edificada desde a proximidade, o respeito e a participação nos pro-
cessos. De longe, não por um suposto pré-requisito necessário de distanciamento
científico, e sim pela possibilidade de dar dois passos para trás e enxergar elemen-
tos que pudessem trazer para os textos, leituras ainda mais densas, universais e
articuladas das práticas e dos conflitos que identificam esses povos e comunidades
tradicionais.
Este livro retrata um primeiro intento. Um processo iniciático que pretende
registrar práticas, pesquisas e intuições de um grupo heterogêneo de pesquisadores
que foram se encontrando no rasto das problemáticas que tentam compreender e
divulgar: “Identidades coletivas e conflitos territoriais”. Em alguns casos, esses pes-
quisadores já estavam no acompanhamento dos primeiros eventos que marcam a
conformação da Rede Puxirão, como o I Encontro de Povos Faxinalenses, em 2005.
Em outros casos, essas pessoas foram se agregando ao calor da construção de treze
fascículos de cartografia social com faxinalenses, quilombolas, cipozeiras e cipozei-
ros, pescadoras e pescadores artesanais, ilhéus e benzedeiras e benzedores, entre
os anos de 2007 e 20112, além de três mapeamentos situacionais de faxinalenses,
cipozeiras e cipozeiros e benzedeiras e benzedores, também realizados nesses anos.
Desse encontro fecundo de organizações, caminhos sofridos e alegrias de se
reconhecer no outro, foram aparecendo, desde meados dos anos 2000, demandas
concretas que deveriam restabelecer uma justiça social e ambiental sempre esca-
moteada para estes grupos. Registrados nos textos deste livro aparecem algumas
das interpelações que os movimentos de representação desses grupos, por separado
e em conjunto, realizam ao Estado e à sociedade em geral. São demandas para par-
ticipar da necessária redistribuição que o Estado deveria enfrentar e a sociedade em
seu conjunto assumir como projeto nunca mais adiado: terra, renda, acesso a recur-
sos, etc. Mas também são demandas que pedem garantias de reconhecimento para
as especificidades manifestas que os povos e comunidades tradicionais mostram:
2 No momento em que escrevemos estas linhas (dezembro de 2014), há processos abertos de cartografia social com
pescadoras e pescadores artesanais, indígenas, faxinalenses e moradores de bairro.

10
condições de vida nos territórios tradicionalmente ocupados, participação social
como iguais com reconhecimento das diferenças, reconhecimento pleno de uma
identidade autodefinida que se constrói sobre uma tradicionalidade em construção,
etc.
Redistribuição e reconhecimento: demandas apresentadas desde a contundên-
cia da experiência, da vida, de um cotidiano que contra toda lógica subsiste e se
recria, ao mesmo tempo, na manutenção dos tempos passados e na negociação com
os tempos presentes.
Resulta difícil estabelecer uma hierarquia clara e consensual sobre o que se-
ria mais importante nesse processo de construção de uma rede de povos e comu-
nidades tradicionais no Paraná e Santa Catarina, mas sem dificuldade podem ser
elencados uma série de situações e processos que ajudaram nessa questão: a em-
patia de lutas e desafios compartilhados recentemente e desde sempre; os avanços
na criação de uma legislação nacional sobre povos e comunidades tradicionais (es-
pecialmente a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Co-
munidades Tradicionais que permitiu reunir em um foro de escala nacional povos
e comunidades com práticas e conflitos similares); a participação dos grupos na
construção de cartografias e mapeamentos sociais que deram a oportunidade do
mutuo reconhecimento e da soma de experiências em comum, não só no Sul do
país, mas também com grupos de todo o Brasil que realizaram experiências simi-
lares; a colaboração de outras organizações, assessorias e pesquisadores, no pro-
cesso de apoio, diálogo e reivindicações, etc.
No entanto, resulta bastante fácil enxergar qual de todos esses elementos ficou
sempre muito aquém dos desafios, personificando a inação em um contexto de ação
necessária e omitindo-se em seu papel de fundamental mediador: o Estado e sua
proposta de Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais.
Seja como for, o que resulta evidente é que fruto concreto dessa mescla de
elementos geradores, tanto vindos de longe como recentes, e desses desencantos
com a resposta do Estado na escala nacional, foram aparecendo simultaneamente
reivindicações concretas e contundentes nas agendas destes grupos. E a lista não é
pequena, nem leviana. Entre outras podemos destacar as seguintes demandas:

• Necessidade de construir uma Política Estadual de Povos e Comunidades


Tradicionais que aproxime as discussões dos seus protagonistas (tanto os dedica-
dos à execução como dos beneficiários).
• Estabelecimento de uma Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradi-
cionais (recentemente instituída e nomeada) que seja um fórum de debate para a
consolidação de uma política estadual3.
• Participação ativa nas políticas que incorporam esses grupos como sujeitos
com formas de produção diferenciadas (soberania e segurança alimentar, assistên-
cia técnica, etc.).
• Participação com plenos direitos nas legislações que se referem ao uso dos ter-
ritórios tradicionalmente ocupados por eles (como a regulamentação da consulta
livre, prévia e informada existente na Convenção 169 da Organização Internacional
3 Depois de vários anos de negociações, foi criado o Conselho Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais
pela Lei 17.425 de 18 de Dezembro de 2012. No entanto, a nomeação de seus membros só aconteceu em 26 de março de
2014

11
do Trabalho).
• Estabelecimento de um marco de referência e de respeito na relação com os
órgãos de fiscalização do meio ambiente, desativando a concepção meramente re-
pressora instalada até hoje nessas instâncias.
• Negociação renovada e em base a novos paradigmas acerca da sobreposição de
unidades de conservação em territórios tradicionalmente ocupados (rever as uni-
dades de conservação de proteção integral com povos e comunidades tradicionais
em seu interior, proteger o meio ambiente, as populações pré-existentes e os usos
tradicionais através de figuras de conservação de desenvolvimento sustentável, se-
gundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação).
• Necessidade de discutir novas abordagens acerca do que se considera
patrimônio material e imaterial e como apoiar o esbanjo de vida que existe em sua
recreação cotidiana.

A possibilidade de captar toda essa generosa e transbordante realidade ao re-


dor das práticas, conflitos e identidades dos povos e comunidades tradicionais do
Paraná e Santa Catarina, resulta o grande desafio para os textos deste livro. No mo-
mento em que os mesmos foram escritos, discutidos e, em alguns casos, modifica-
dos e atualizados, uma conjuntura complexa e carregada de entraves se apresenta.
Uma pluralidade de sujeitos se debruça sobre múltiplas possibilidades de nego-
ciação e confronto. Sem possibilidade de uma leitura distanciada (que não captaria
a riqueza do real), os textos optam por uma leitura que dialogue francamente e
mostre os limites e as contradições entre os elementos que contribuem a consolidar
a construção de uma rede de povos e comunidades tradicionais e o conjunto de
relações sociais em que essa construção se realiza.
Este é um livro de histórias não encerradas. Contra os relatos sobre povos e
comunidades tradicionais que começam com “era uma vez...” ou que prometem
finais felizes em passados tão bucólicos como distantes, os textos reunidos aqui se
propõem narrar as histórias desses grupos desde a vertigem do real inacabado, dos
processos em marcha. Contra a “museificação” das práticas, das identidades ou dos
conflitos que desarraigam os povos e comunidades tradicionais do seu presente e
do seu território de vida, as histórias deste livro se desafiam a participar, junto aos
seus protagonistas diretos, na compreensão das múltiplas dimensões que os enraíza
ao tempo presente e os permite desafiar o futuro. Uma tarefa imensa que precisa
não só de um livro, mas sim de impulsionar formas de construção do conhecimento
que permitam se aproximar dessas realidades sem as dicotomias empobrecedoras
habituais: desenvolvido-atrasado, moderno-tradicional, sujeito-objeto, natureza-
cultura, senso comum-conhecimento científico, etc.
Nesse sentido, dedicamos os dois próximos itens da apresentação a percorrer
brevemente dois caminhos que permitam conectar a construção da Rede Puxirão
de Povos e Comunidades Tradicionais com duas questões estratégicas na hora de
pensar como as práticas, as identidades e os conflitos dessas comunidades provo-
cam uma reflexão necessária sobre como se organiza e se pensa a sociedade em
geral: a construção epistêmica dos/sobre os povos e comunidades tradicionais e os
conflitos do desenvolvimento.
Um exercício de reflexividade que mostra a riqueza da experiência acumulada

12
por esses grupos e a premente necessidade de escutar socialmente suas demandas
e suas histórias, de conhecer as formas em que se relacionam entre eles e com a
natureza, de não deixar perder a sociobiodiversidade que os define e, em muitos
casos, que os faz únicos.

II
Não perder a riqueza da experiência que esses povos e comunidades tradicio-
nais oferecem, nem enclaustrá-la nos museus ou no preconceito, são desafios de
primeira ordem frente a um mundo que se mercantiliza, se homogeneiza e se indi-
vidualiza rapidamente, dissolvendo-se em um presente míope e autorreferenciado.
Nesse sentido, os saberes acumulados nesses grupos se constituem em um ponto
de referência mais (tão importante e necessário como outros muitos) para refazer o
rumo e repensar a construção dessa sociedade, hoje sem passado nem futuro.
Por isso, a construção epistêmica que esses povos e comunidades realizam a
cada dia, na minuciosidade de um cotidiano que reflete a riqueza do passado e a
peleja do futuro, configura-se em aspecto essencial de suas contribuições para um
mundo que, geralmente, os nega como sujeitos sociais por inteiro. No entanto,
aproximar-se da forma em que é moldado esse conjunto de conhecimentos especí-
ficos apresenta duas dificuldades que se complementam: como abordar os saberes
dessas comunidades? Como socializar esses saberes?
Entre o folclore e a ingenuidade new age, portanto, entre a supervalorização
do que já não é mais e a supervalorização do que de repente se converte em tábua
de salvação única, as comunidades constroem seus conhecimentos em uma nego-
ciação sempre tensionada entre passado, presente e futuro. Uma negociação que
envolve acima de tudo sobrevivência, tanto material como do conjunto de saberes
que dão sentido a suas práticas cotidianas.
Não se trata de saberes menores, atrasados ou pertencentes a um senso comum
mais próximo da intuição natural que da sofisticação da cultura. Ao contrário, o
relato construído ao longo dos textos deste livro está marcado pelo convívio desses
grupos com saberes que reúnem um amplo espectro de elementos definidores: forte
arraigo dos conhecimentos, sempre vinculados estreitamente com a natureza cir-
cundante e com a reprodução da vida; são saberes que se fazem e refazem nas práti-
cas do dia a dia e nos conflitos internos e externos; as mudanças dos mesmos se
realizam habitualmente em processos de longo prazo, sopesando com calma a ver-
dadeira necessidade das modificações; densidade relacionada não só com o acúmu-
lo de tempos ou com o domínio do espaço, mas também com a ampla participação
da comunidade em seu conjunto nesses processos; os conhecimentos construí-
dos conjuntamente também são utilizados de forma conjunta ou apropriáveis por
qualquer membro da comunidade, reduzindo as interdições ao caráter de exceção;
apesar das condições de vida específicas dessas comunidades, não são isoladas, os
processos de construção do conhecimento, portanto, estão sempre condicionados
pelo encaixe das mesmas na sociedade em geral...
Na leitura atenta dos capítulos deste livro, essa lista pode ser ampliada e apro-
fundada, no entanto, sirva esse esboço apenas para introduzir um corolário dual:

13
por um lado, a importância maior de esses saberes é a especificidade comunitária,
histórica e espacial que apresentam e não a abstração teórica que se possa fazer
deles; por outro lado, os profundos processos de subalternização que sofrem essas
comunidades tem um caráter material evidente, mas também um importante viés
de negação e imposição epistêmica.
Ao longo do livro, pode-se constatar um tratamento dado às comunidades, que
tenta se aproximar com atenção à especificidade de cada experiência, em função de
cada comunidade, expressa em um tempo histórico e em um lugar determinado,
situando em primeiro lugar o respeito às formas de construção de conhecimentos
que cada uma realiza nas suas práticas, através dos seus conflitos e na formação de
suas identidades. Afastando-se ao mesmo tempo dos estudos de caso que fragmen-
tam a realidade até esvaziá-la dos seus sentidos comuns e também das extrapo-
lações que permitissem atingir alguma lei geral da formação de identidades ou da
resolução de conflitos em comunidades tradicionais, os trabalhos que formam este
livro principiam leituras e interpretações amarradas a essas racionalidades outras
que como já foi dito estão expressas no cotidiano dessas comunidades.
Racionalidades que significam uma leitura própria do mundo em um mundo
que está precisando de múltiplas leituras.
Menos do que conceitos que abstraem as realidades concretas que conformam
as comunidades, os textos tentam dar conta dos sentidos próprios que os conheci-
mentos próprios de cada comunidade têm na comunidade em si e o eco que os mes-
mos provocam nas formas de entender e pensar a sociedade como um todo. Não
como receita ou como um corolário imprescindível e sim como aquelas histórias
que fazemos nossas… se o olho brilhar, se o sorriso esboçar.
A segunda parte do corolário permite situar a importância desses saberes es-
pecíficos das comunidades em um contexto maior dos processos de disputa e domi-
nação existentes na sociedade em geral. Esses saberes que ganham um sentido con-
creto e fundamental quando considerados nas comunidades onde são produzidos
e que ampliam ainda mais a lista de possibilidades com as quais pensar e impul-
sionar transformações sociais, situam-se em um campo escancarado de conflitos.
Uma parte importante dos processos de controle e/ou dominação que essas comu-
nidades experimentam por parte do Estado (mediante as diretrizes modernizantes
das políticas públicas ou mediante as atitudes preservacionistas das unidades de
conservação) ou do capital privado (através da mercantilização dos seus bens co-
muns), fortalecem-se pela negação/deslegitimação dos saberes comunitários.
As dicotomias acima elencadas (desenvolvido-atrasado, moderno-tradicional,
natureza-cultura, senso comum-conhecimento científico, etc.) são mobilizadas
como forma de reduzir os saberes das comunidades a meros produtos desprezíveis
diante dos desafios do mundo atual. Como expressões de um mundo que não cabe
mais neste mundo, seus saberes deveriam ser substituídos, segundo o pensamento
hegemônico, pelo conhecimento técnico-científico da sociedade moderna, prepara-
do para enfrentar um mundo ávido por eficiência, rapidez e sofisticação tecnológi-
ca, supostamente capaz de reduzir os problemas a soluções padronizadas.
Em função desse corolário duplo, a forma em que são abordados e considera-
dos os saberes dos povos e comunidades e as estratégias de produção dos mes-
mos não são questões secundárias, nem muito menos. Significam uma toma de

14
posição, a construção de um lugar de enunciação que leva a considerar a dimensão
epistêmica dos processos de dominação, mas também dos processos de resistên-
cia e da construção de outras possibilidades societárias. A maneira em que os
próprios povos e comunidades tradicionais incorporam essa dimensão epistêmica
na gramática dos conflitos que enfrentam, ainda não faz parte do que os textos do
livro refletem, apenas se intui como caminhos para continuar em frente. Quem sabe
em um próximo livro?
No entanto, essa percepção nos remete à segunda pergunta que encabeça esta
parte II da apresentação e que serve como provocação para problematizar o papel
da construção dos saberes na criação de uma rede de povos e comunidades tradicio-
nais no Paraná e Santa Catarina: como socializar esses saberes das comunidades?
Após a leitura dos textos que compõem este livro resulta evidente que não
existem convergências definitivas, nem filiações teórico-metodológicas unívocas,
apenas a construção de uma reflexão coletiva, um lugar comum de enunciação que
envolve também as comunidades que participam da Rede Puxirão de Povos e Co-
munidades Tradicionais e que versa sobre: as formas em que se constroem e se so-
cializam as identidades coletivas; e os modos em que se apresentam e se estruturam
os conflitos territoriais, assim como as consequências que provocam.
Portanto, um dos desafios que agrupa estes trabalhos, consiste em que, sem es-
conder, nem substituir as vozes das comunidades, os autores consigam se somar
aos relatos comunitários de desafios cotidianos, reivindicações frente aos poderes
públicos ou reconstrução de um passado comum que não se descarta para pensar
o futuro.
Ainda que, sem decálogos nem cartas de intenções explícitas, alguns dos
caminhos percorridos em comum e que, acima de tudo, provocam encruzilhadas
mobilizadoras mais do que oferecem certezas complacentes são: as formas de
aproximação às comunidades, a relação que se estabelece com as mesmas, o equilí-
brio sempre em tensão que o conhecimento do real junto às comunidades e as pos-
sibilidades da teoria provêm.
Assim, nesse assumir que mais se tateia do que se avança a passo firme, começam
a se configurar então aproximações e distanciamentos epistêmicos na hora de pen-
sar e dialogar sobre as práticas, os conflitos e as identidades dos povos e comuni-
dades tradicionais do Paraná e Santa Catarina, os sujeitos protagonistas deste livro.
Talvez não seja muito por enquanto, mas nessas incertezas se configura também
um alerta face às formas em que os saberes das comunidades são apresentados fora
das comunidades, seja nos espaços acadêmicos, nos ligados aos poderes públicos
ou como conhecimento que a iniciativa privada possa aproveitar.
Por adotar o conhecimento construído por esses grupos o caráter de um bem
comum que se constrói e se utiliza de forma comunitária, sua apropriação de forma
individual significa uma violência. A socialização desse conhecimento deve se colo-
car o desafio de ampliar e não desvirtuar esse caráter de bem comum. Por isso,
todas as precauções são poucas na hora de decidir junto às comunidades com quem
se estabelecem relações sociais de pesquisa quais são as questões que podem ser
socializadas e como utilizar esses conhecimentos.
Seguramente, a especificidade e a diversidade dos saberes e das comunidades
inviabiliza ex ante qualquer pretensão de uma deontologia estrita e universal sobre

15
a socialização desses conhecimentos, no entanto, das práticas habituais de pesquisa
que se podem observar, várias afrontam a importância de considerar a relação es-
treita entre o saber como bem comum e a comunidade que ao mesmo tempo em que
o cria e o cuida, se cria e se cuida. Por exemplo: a falta de retorno que as pesquisas
feitas sobre povos e comunidades tradicionais oferecem aos mesmos; a falta de con-
sulta prévia com o grupo sobre o que a pesquisa pretende divulgar; outorgar o papel
de mero objeto de pesquisa a(s) comunidade(s) estudada(s), roubando-lhe(s) seu
papel ativo e insistindo nesse trejeito residual de um positivismo científico desfo-
cado; a mercantilização dos saberes conhecidos durante as pesquisas na comuni-
dade, como uma “epistemopirataria” espúria que possa se voltar contra ela, seja via
expropriação dos bens comuns, seja fortalecendo novos mecanismos de subalterni-
zação; legitimar qualquer utilização dos saberes comunitários em função de um
desenvolvimento abstrato que melhoraria abstratamente a vida das comunidades e
da sociedade em geral (este aspecto será ampliado na sequência, na parte III desta
apresentação)...
A lista não se fecha aqui, nem pretende ser mais do que um alerta sempre
necessário na prática autorreflexiva dos pesquisadores que entram em contato com
a riqueza de conhecimentos que acumula uma comunidade tradicional. No fim das
contas, trata-se de lidar de igual a igual com o saber do outro, com a construção
epistêmica do outro que desafia a própria construção epistêmica.

III
Essa parte final da apresentação está dedicada a outro grande eixo de problemáti-
cas que os textos deste livro escancaram: os conflitos do desenvolvimento que os
povos e comunidades tradicionais sofrem. Um texto atrás do outro, percebe-se que
as práticas, conflitos e identidades que fazem parte da construção epistêmica desses
grupos enfrentam/padecem a poderosa construção epistêmica do desenvolvimento
com seus discursos, práticas e institucionalidade.
A ideia de desenvolvimento na sociedade atual está atrelada a um imaginário de
crescimento infinito, a práticas que sustentam a reprodução, cada vez mais rápida e
mais ampla, do capital e à formação de uma institucionalidade de controle cada vez
mais poderosa. Longe de qualquer reminiscência de um ideal de melhora da quali-
dade de vida geral, o desenvolvimento realmente existente se constitui como uma
estratégia de controle e de acumulação de capital cujo papel consiste em simplifi-
car a complexidade social a alguns parâmetros que supostamente identificam “uma
vida melhor”. A educação reduzida a anos de escolaridade formal, uma vida com
saúde simplificada no número de anos que se espera viver ou a satisfação de uma
vida plena condicionada à renda que uma pessoa possui, são algumas das formas
de resumir e dirigir o que entendemos pela sempre positivada e autorreferenciada
ideia do desenvolvimento.
No entanto, décadas de fracassos dos programas de desenvolvimento auspicia-
dos pelas instituições internacionais de controle, assim como do desenvolvimento
espontâneo prometido pela “mão invisível do mercado” mostram como a padro-
nização que o desenvolvimento empreende não incorpora, nem muito menos, as

16
diversas possibilidades de inserção social e de uma vida repleta de sentidos.
As formas com que o desenvolvimento se apresenta e se impõe, às vezes como
mal menor e necessário, às vezes como melhor dos mundos possíveis, mas sempre
como única opção no “mundo possível” são diversas: substituição de mata nativa
por plantações industriais de árvores ou de policultura camponesa pelas monocul-
turas do agronegócio; instalação de megaempreendimentos (estradas, portos ou
barragens) que aceleram a reprodução de um capital que nunca distribui suas be-
nesses de forma equitativa; universalização de uma educação formal sem quali-
dade ou medicalização de um atendimento sanitário excludente em sua prática;
generalização do consumo de bens que apenas satisfazem momentaneamente o de-
sejo imediato e compulsório de consumir e não a satisfação ampla de necessidades
(alimentação ou moradia, mas também de participação, proteção ou identidade)...
O desenvolvimento se constitui assim em medida e objetivo de todas as coisas
e sujeitos. Apesar de expressar uma ideia poderosa, o desenvolvimento nasce da
cultura moderno-ocidental, masculina, branca e cristã na sua fase de domínio de
um capitalismo de reconstrução de pós-guerra no sistema-mundo, portanto, trata-
se de uma ideia parcial que não incorpora, nem muito menos, a diversidade de
formas de pensar e de viver que o mundo alberga.
No final da 2ª Guerra Mundial e frente ao duplo desafio de, primeiro, reerguer
a economia e a sociedade europeias, e depois de enfrentar os desejos de descoloni-
zação na África e na Ásia, já em um mundo bipolar, o desenvolvimento se institu-
cionaliza como uma estratégia geopolítica de incorporação dos anseios de melhoras
das populações por dentro do que seria o campo capitalista, diante da ameaça de
um socialismo real que fazia promessas de um mundo menos desigual e sem explo-
radores.
O American way of life que serviu naquele momento como linha que dividiria os
desenvolvidos dos subdesenvolvidos, hoje se naturalizou definitivamente e se com-
plexificou. Porém, continua sendo uma ideia alheia para muitos que, no entanto,
se erige na medida de tudo. Independentemente das especificidades históricas e
espaciais, os diferentes grupos sociais têm que enfrentar uma poderosa constelação
semântica, de práticas e de instituições que promovem como uma missão evange-
lizadora a ideia da supremacia e da bondade do desenvolvimento, que se expressa
com múltiplas faces, atreladas a um núcleo duro de controle social e acumulação do
capital: eficácia econômica; aceleração dos processos de mudança social sem rumo;
impulso modernizador incutido na prática do Estado; papel protagonista da ciência
e da tecnologia; liberdade formal; concorrência; aumento indefinido da produção e
do consumo; alimentação, educação, saúde e acesso à moradia padronizadas mun-
dialmente, entre outros.
Como a modernidade anunciadora do progresso e da liberdade que leva sem-
pre atrelada uma colonialidade que subalterniza e explora o outro (aquele não su-
ficientemente moderno), assim também, a promessa do desenvolvimento sempre
está acompanhada da destruição, da homogeneização e da ampliação das diferen-
ças que o crescimento nessa sociedade capitalista provoca. Como duas caras de uma
mesma moeda.
Essa releitura pouco complacente do desenvolvimento não se constrói apenas
no abstrato de uma filiação teórica determinada, reflete a forma em que os povos e

17
comunidades tradicionais são atingidos pela missão desenvolvimentista. Os textos
deste livro, explícita ou implicitamente, revelam como nas suas diversas modali-
dades o desenvolvimento impacta as comunidades gerando conflitos: conflitos do
desenvolvimento. Cada comunidade conta sua particular relação com esse desen-
volvimento que se imiscui nas suas práticas, que questiona suas identidades e nega
seu cotidiano em prol de uma teleologia associada a um fundamentalismo do pro-
gresso e, como a outra cara da moeda sempre presente, da própria dissolução.
Se acima foi considerado como núcleo duro do desenvolvimento, a dupla face
de controle social e acumulação do capital, nesse momento parece interessante
diferenciar as diversas formas em que o desenvolvimento se apresenta no dia a dia
dos povos e comunidades tradicionais do Paraná e Santa Catarina, na tentativa de
conhecer as modalidades diferenciadas de conflitos que cria. Porém, mais do que
uma classificação, trata-se nesse momento apenas de oferecer um panorama que
permita reconhecer a estreita ligação entre uma parte importante dos problemas
que enfrentam as comunidades tradicionais em função do discurso, das práticas
e da institucionalidade estreitos, impositivos e descentrados do desenvolvimento.
No fim das contas o desenvolvimento não é mais que uma construção epistêmica da
sociedade moderno-ocidental-masculina-branca-cristã que hierarquiza os saberes
dos outros como não saberes, apenas como folklore ou como ideias frágeis e descar-
táveis.
Um dos principais problemas que os povos e comunidades do Paraná e San-
ta Catarina enfrentam se refere à disputa territorial que significa a execução de
megaempreendimentos nas suas terras. No caso dos grupos retratados neste livro,
temos a construção da Usina de Itaipu e as consequências que provocou o alaga-
mento do seu reservatório, expulsando os ilhéus que moravam às suas margens e
nas ilhas do Rio Paraná que foram cobertas pelas águas e que até hoje demandam
uma saída justa para essa situação. Também podemos considerar dentro desse tipo
de empreendimento desenvolvimentista de grandes dimensões, macro, a expansão
das monoculturas de eucalipto em terras dos camponeses de Imbaú-PR, eliminan-
do a policultura, reduzindo a quantidade disponível de água e roubando até o sol
necessário para que as colheitas de alimentos das comunidades rurais do municí-
pio vinguem. A construção da fábrica de cimento da Votorantim no território dos
agricultores e pescadores artesanais dos Areais da Ribanceira (Imbituba-SC) seria
igualmente um exemplo de como o desenvolvimento de enormes dimensões e im-
pactos conflita na hora de disputar o mesmo território eliminando as terras onde se
planta mandioca e se aproveita o butiá.
Deve-se destacar que a assimetria de recursos financeiros, de apoio institucional
e de legitimidade diante da sociedade da escassez forçada em que vivemos é mani-
festa e que as possibilidades dos direitos territoriais e de vida que essas comuni-
dades conseguem fazer valer são mínimos e insuficientes, o que provoca a expulsão
e, acima de todo, a invisibilização do grupo e o silenciamento das suas demandas e
dos mais básicos direitos sociais. O desenvolvimento macro também provoca con-
flitos macro.
Com efeitos menos espetaculares, mas não menos impactantes nos povos e
comunidades tradicionais, o desenvolvimento incutido nas políticas públicas
modernizadoras das formas de vida das classes desfavorecidas apontam para outras

18
formas de desapropriação e de conflitos na implementação do desenvolvimento.
Trata-se de um desenvolvimento micro, dedicado a um público específico (agricul-
tores familiares, povos e comunidades tradicionais, etc.) e centrado na superação
da pobreza e na inclusão das classes marginalizadas. São, por exemplo, políticas
públicas de financiamento da agricultura familiar que obriga aos beneficiários a
adotar as mesmas formas de produção do agronegócio de grande escala (sementes
melhoradas, agrotóxicos, etc.) ou programas de modernização da frota pesqueira
mediante empréstimos. Estas políticas incorporam esses grupos em dinâmicas de
um mercado que afunila o sucesso de poucos. Na maior parte das circunstâncias,
a vantagem de um empréstimo para modernizar a produção significa o fracasso
de não se adaptar à lógica mercantil exigente e seletiva, o que pode até chegar a
expulsar o beneficiário (faxinalense, pescador artesanal, quilombola, etc.) de sua
comunidade por não poder cumprir com as condições desse empréstimo.
As diferentes formas de turismo no meio rural, na natureza ou comunitário,
nas suas expressões normalmente exógenas ao controle dos povos e comunidades
tradicionais e reificadoras de seus costumes também provocam impactos ligados
a um desenvolvimento micro. Até o turismo comunitário realmente existente, sig-
nifica na prática uma alteração das formas de vida, fora do controle dos supostos
beneficiários (as comunidades), que nem sempre se compensa com uma fonte de
renda durável e que traga uma qualidade de vida significativa.
A insistência do Estado em converter esses grupos em um outro modernizado,
em mercantilizar suas formas de vida para vendê-las aos turistas ou em reduzir
seus múltiplos significados a um folclore de museu, mostra a preponderância da
estratégia de controle social que o desenvolvimento possui. Se o desenvolvimento
macro agudizava a face de acumulação do capital, o desenvolvimento micro parece
impulsionar acima de tudo formas de ordenamento social em que a racionali-
dade hegemônica moderno-ocidental se instala como alternativa sem alternativas.
Qualquer outra forma de pensar e construir o mundo se descarta por irracional,
impossível ou irrelevante.
O desenvolvimento sustentável, última dessas tipologias do desenvolvimento
que estão sendo consideradas por mostrar elementos importantes dos conflitos que
as comunidades enfrentam, representa paradigmaticamente um desenvolvimento
micro que de forma sutil confronta os grupos com a expropriação ou com mudanças
radicais nas suas formas de vida.
Diante dos evidentes limites naturais, o capital da reprodução sem limites en-
controu uma saída mais discursiva do que efetiva no desenvolvimento sustentável.
Para conservar a lógica e as formas de reprodução do capital era imprescindível
incorporar minimamente uma preocupação com os recursos naturais e uma
preservação de suas fontes. Nesse sentido, e simplificando em função dos objetivos
deste texto, se instalou uma lógica tão publicitada como ilógica: a poluição e o con-
sumo voraz de recursos naturais a escala planetária poderia ser compensada com a
criação de unidades de conservação locais onde ter um cuidado maior desses recur-
sos, expulsando as populações que ali viviam ou limitando suas práticas.
Os conflitos do desenvolvimento que o desenvolvimento sustentável provoca são
especialmente observados nos casos de ilhéus e pescadores artesanais. A criação
do Parque Nacional de Ilha Grande no caso dos primeiros e do Parque Nacional do

19
Supergüi no caso dos segundos mostra como as populações que contribuíram com
manter a biodiversidade em seus territórios são penalizados, expulsos ou cerceados
nas suas práticas em prol de uma sustentabilidade de fachada que não coloca em
questão as verdadeiras causas dos problemas ambientais do mundo.
Aparentemente se trata de empreendimentos com fins tão louváveis como o cui-
dado do meio ambiente, mas quando enfrentados com as práticas tradicionais das
comunidades e com o tratamento de bens comuns que as comunidades geralmente
oferecem para os bens naturais dos seus territórios se percebe a irracionalidade de
um desenvolvimento que mais disciplina do que avança na melhora das condições
de vida da sociedade em geral e dos povos e comunidades tradicionais em particu-
lar.
O desenvolvimento, macro ou micro, desativado de sua representação habitual
carregada de legitimidade e de positividade, mostra sua face mais sombria. Os con-
flitos que se observam quando o lugar de enunciação se aproxima de quem padece
o desenvolvimento como violência material e epistêmica, neste caso os povos e
comunidades tradicionais, ao mesmo tempo em que revelam a espoliação e a ex-
pulsão que acompanha ao empreendimento desenvolvimentista, também mostra
seu absurdo como projeto de socialização, como um dos princípios fundamentais
da sociedade atual.
***
Esta longa apresentação acabou misturando “o que é” dos textos que compõem
o livro e o “que ainda não é” do grupo que os escreveu e que se tenta entender como
“identidades coletivas e conflitos territoriais”. Entre os ecos dos trabalhos do livro
(trabalhos comprometidos com uma realidade complexa e uns sujeitos em luta por
seus direitos e pela defesa de sua autonomia nos territórios que tradicionalmente
ocupam) e os ecos das práticas dos pesquisadores que assinam os textos (práticas
de longo prazo e proximidade com o que contam) a apresentação foi se conver-
tendo, não apenas na descrição do realmente existe, mas também um desiderato
para pensar a continuidade dessas práticas de pesquisa junto aos povos e comu-
nidades tradicionais do Paraná e Santa Catarina que têm desafiado todas as coisas
em contra para pensar outras formas de pensar o que significa o desenvolvimento,
a organização social, a construção dos saberes, o território e a vida.
Uma lutadora incansável pela visibilização dos conflitos dos povos originários e
camponeses em Argentina e em América Latina em geral, quando se refere ao papel
dos pesquisadores nas relações sociais de pesquisa que constroem, afirma com con-
tundência e como quem lança um desafio: “escrever com eles e não sobre eles”4. O
conjunto de textos e de autores que se reúnem neste livro como ao redor de um fogo
para escutar e contar histórias de sempre, mas também histórias atuais, refletem
esse desafio. Um desafio que se “ainda não é” em todas suas premissas e consequên-
cias, se pensa como caminho possível para perceber e acompanhar a alegre rebeldia
e a tenaz resistência de formas sociais que colocam a vida plena em primeiro lugar.

4 Norma Giarracca, professora da Universidad de Buenos Aires e coordenadora do Grupo de Estudios de los Movimien-
tos Sociales de América Latina (GEMSAL).

20
Narrativa sobre a sistematização das experiências da Rede
Puxirão de Povos e Comunidade Tradicionais
José Carlos Vandresen5
Rafael Palermo Buti6
Roberto Martins de Souza7

Resumo

O presente artigo resulta da sistematização da experiência da Rede Puxirão de


Povos e Comunidades Tradicionais realizada nos anos de 2009 e 2010 a pedido da
coordenação da Rede. A reflexão crítica que deriva desse estudo construído coleti-
vamente com representantes dos grupos sociais, buscou identificar o processo de
constituição dessa nova forma de mobilização das identidades étnicas e coletivas no
Estado de Paraná sob a denominação de povos e comunidades tradicionais, fenô-
meno até então de pouca visibilidade social no cenário de lutas políticas por terra
e território no Sul do Brasil. Por ocasião dessa reflexão, naquele momento interes-
sava a esses novos movimentos sociais identificar limites, dificuldades e desafios
das estratégias políticas para alcançar seus direitos étnicos e coletivos.

Os Primeiros Passos: na caminhada, refletir a caminhada

Refletir é se posicionar, no tempo e no espaço. Se posicionar é partir de um


lugar. Partir de um lugar é agir. Aqui, na Rede Puxirão de Povos e Comunidades
Tradicionais, o agir vem mediante (ou mediado por) uma identidade coletiva, a
um sujeito político que luta pelo reconhecimento formal de sua existência e elabo-
ração de políticas públicas que contemplem direitos fundamentais. Ao agir na Rede
5 Mestre em Geografia, INFOCOS/CRESOL-PR. Email: jcvandresen@yahoo.com.br
6 Mestre em Antropologia e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC). Email: rafaelpbuti@gmail.com
7 Doutor em Sociologia, IFPR. Email: roberto.souza@ifpr.edu.br

21
Puxirão os indivíduos acionam suas identidades coletivas, constroem o reconheci-
mento formal dos coletivos sociais perante o mundo. O tema do reconhecimento
formal passa necessariamente pelo tema e pelo dilema da identidade coletiva. Estão
como que imbricados, fazem parte de um mesmo e único fenômeno: a busca pela
visibilidade, pelo direito, pela necessidade de mostrar ao mundo sua singularidade.
O projeto da sistematização teve como foco os processos de articulação e ex-
periência em rede dos Povos e Comunidades Tradicionais no reconhecimento for-
mal e elaboração de políticas públicas. Estruturamos as vivências e oficinas de sis-
tematização a partir de dois eixos, a saber: aquele que deu conta do processo de
mobilização dos povos e comunidades tradicionais mediante uma identidade cole-
tiva (os históricos, tanto de envolvimento dos grupos com a Rede Puxirão quanto
de formação da própria Rede, seu funcionamento e organização); e aquele que deu
conta das relações estabelecidas com o Estado, os avanços e obstáculos gerados
nessa relação.
Uma vez que reconhecimento formal e identidade coletiva caminham juntos,
pois implicados em um movimento singularizador, foi-nos importante refletir e
melhor problematizar sobre os modos como estas lideranças, que representam gru-
pos e coletivos sociais, formam, pensam, concebem e representam as identidades
coletivas de suas comunidades articuladas no espaço de uma Rede de Povos e Co-
munidades Tradicionais.
A primeira parte dos trabalhos de sistematização foi feita tendo como preocu-
pação esta dimensão: saber o quão a Rede Puxirão possibilitou a produção de novos
sujeitos políticos articulados mediante uma identidade coletiva e o quão estes novos
sujeitos políticos possibilitaram a articulação da Rede Puxirão. Em suma, procura-
mos discutir e problematizar como estes grupos, a partir de suas identidades cole-
tivas, se articulam na, e articulam a Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradi-
cionais.
Para isso elaboramos uma oficina, a Linha do Tempo, que nos permitiu visualizar
a caminhada das lideranças, lugares, demandas, lutas e conflitos dos grupos. Com
a Linha do Tempo, buscamos resgatar o vivido, mapear os percursos de cada indi-
víduo e coletivo social, evocando o “tempo dos antigos”, seus conflitos, assim como
as “boas lembranças”, percebendo sempre o caminho das estratégias destes sujeitos
em relação à outras configurações sociais e ao Estado.
Uma vez mapeado o processo de articulação, mobilização e reconhecimento, em
rede dos povos e comunidades tradicionais, foi importante inquirir sobre os novos
tipos de relações que estas articulações geram entre os Povos e Comunidades Tradi-
cionais e as instituições, secretarias, autarquias, fundações e órgãos dos poderes
públicos, responsáveis pela garantia e preservação dos direitos demandados. Em
outras palavras, no plano jurídico e político, as comunidades tradicionais tiveram
avanços e obstáculos neste percurso.
Importa frisar também que o ato de sistematizar o conhecimento sempre es-
teve presente nas práticas diárias e coletivas da Rede Puxirão. Muitas são as cartas
oficiais, os panfletos, os periódicos, as cartografias e as assinaturas já produzidos
que condensam e sintetizam um enorme conjunto de informações e reivindicações
sobre os movimentos e encontros que a Rede fez gerar, mover, ativar, informar e
provocar.

22
Em suma, na caminhada, buscamos refletir sobre a caminhada, agir sobre ela, e
é justamente a isso que se presta um trabalho de sistematização: apreender e fixar o
fluxo do vivido, e transformá-lo em objeto de reflexão crítica. É neste movimento, o
de transformar o sujeito da ação em objeto de reflexão, que o trabalho de sistemati-
zação de experiências se pretende uma ferramenta importante para a própria ação
(HOLLIDAY, 1996).8
Por andarem juntas, as lutas pela afirmação e reconhecimento da identidade
coletiva e direitos étnicos, que pensamos que estes dois eixos dão conta de nossa
preocupação maior, de nosso foco, que é a experiência social da articulação em rede
destes grupos sociais na busca pelo reconhecimento de seus direitos territoriais e a
efetivação das respectivas políticas públicas.
Tudo o que será exposto ao longo do texto tem como base as oficinas, entrevis-
tas, conversas informais, bate-papos, rodas de conversa, vivências, entre outros,
experimentadas no espaço da Rede Puxirão. Falemos, portanto, um pouco da Rede
Puxirão e do muito que ela é.

A Rede Puxirão em Foco: estruturas, agentes e parceriais

A Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais foi constituída infor-


malmente em maio de 2008, no I Encontro dos Povos e Comunidades Tradicio-
nais do Paraná, encontro ocorrido em Guarapuava-PR. Participaram do encontro
as representações dos seguintes movimentos: Faxinalenses, Quilombolas, Ilhéus
do Rio Paraná, Pescadores Artesanais da Ilha de Superaguí – Guaraqueçaba-PR,
Cipozeiras de Guaruva-SC e representações de indígenas Xetás, Guarani e Kain-
gang. Somaram-se9 a Rede no II Encontro dos Povos e Comunidades Tradicionais
do Paraná ocorrido em Faxinal do Céu-PR, em outubro 2009, o Movimento
Aprendizes da Sabedoria (representante das Benzedeiras) e o Fórum Paranaense
das Religiões de Matriz Africana.
A Rede Puxirão é um espaço de formação e articulação política destes movimen-
tos sociais. Ela não é uma organização, um instituto, uma central, um órgão, uma
ONG, tampouco uma pessoa jurídica. Seus membros gostam de pontuar e afirmar
a informalidade da Rede Puxirão. Nas palavras de José, um de seus assessores:
“ela [a Rede] existe quando as pessoas estão reunidas. Quando não estão reunidas
existem tarefas” (21/06/2010). A Rede é um espaço, um lugar, uma referência, uma
possibilidade de diálogo, que permite com que lideranças (estas sim, vinculadas a
institutos, movimentos sociais, comissões, ONGs) pensem ações para efetivar as
políticas públicas para as comunidades tradicionais no Paraná.
Basicamente duas são as organizações que dão suporte formal à Rede Puxirão.
São elas, a Cempo (Centro de Apoio ao Campesinato Antônio Tavares, com sede
em Guarapuava) e o IEEP (Instituto Equipe de Educadores Populares, com sede
em Irati-PR). Além dessas, a Terra de Direitos (com sede em Curitiba) faz asses-
soria jurídica à Rede, sendo um dos apoiadores. São essas organizações que apoiam
a Rede, na assessoria jurídica e política, além de apoio logístico e contatos para
apoios orçamentários.
8 HOLLIDAY, Oscar Jara. Para Sistematizar Experiências. João Pessoa: Editora Universitária. UFPB, 1996
9 A Associação Brasileira de Ciganos do Paraná participou do II Encontro da Rede, porém não participou das atividades
sequentes.

23
À época do projeto da sistematização, as tarefas e ações da Rede estavam dis-
tribuídas em coordenações, secretarias e setores, dentre as quais:
- Coordenação Executiva: responsável pela articulação e ação política da Rede,
cujo papel era realizar as estratégias e tarefas de representação e negociação junto
aos órgãos do Estado e a relação com outros movimentos sociais;
- Secretarias: responsáveis pela assessoria técnica (elaboração de projetos e cap-
tação de recursos), política (articulação da Rede com as comunidades em vistas a
demanda por direitos), jurídica e de comunicação;
- Setor financeiro: responsável pela administração financeira e contábil dos pro-
jetos da Rede.
Os encontros entre os membros da Rede Puxirão seguiam um calendário especí-
fico, oficializado no início de cada ano: havia a Reunião Mensal (somente da coorde-
nação executiva); a Reunião Bimestral, ou Reunião da Equipe (formada pela Rede
Puxirão e por outros movimentos sociais, cuja finalidade é planejar as ações entre
todos os representantes dos movimentos sociais envolvidos na Rede); e a Reunião
Trimestral, ou Reunião Ampliada (realizadas nas comunidades com o objetivo de
conhecer a realidade social das comunidades envolvidas)10.
A Rede Puxirão, portanto, estava apoiada em instituições formais para viabilizar
seu funcionamento, sem ser, necessariamente, ela mesma, uma instituição formal:
mas um espaço de articulação e formação, um encontro entre diferentes grupos
étnicos da sociedade para lutar pela efetivação das políticas públicas e direitos fun-
damentais dos povos e comunidades tradicionais participantes, um espaço forta-
lecedor do poder de negociação com representantes do poder público.
No que trata da relação com as instituições de pesquisa, desde sua formação,
a Rede dialoga com o Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades
Tradicionais do Brasil (PNCSA), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em So-
ciedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA), da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM), tendo por objetivo a realização de cartografias sociais. Mais do que exer-
citar uma nova cartografia, tal pesquisa tem estimulado processos organizativos
associados ao autorreconhecimento e reconhecimento público da existência cole-
tiva desses grupos sociais. Outro importante parceiro da Rede puxirão foram os
projetos e pesquisadores vinculados ao curso de Geografia da Universidade Federal
do Paraná (UFPR).
A inserção da Rede Puxirão no projeto da Nova Cartografia Social permitiu a
abertura de um diálogo entre as diversas comunidades tradicionais no âmbito na-
cional, possibilitando a autonomização dos movimentos sociais. Sete foram as co-
munidades ligadas à Rede Puxirão já contempladas pelo projeto, o que mostra o
nível de engajamento e avanço de seus membros na luta reivindicatória pelos direi-
tos das comunidades tradicionais.
Neste percurso de quase três anos de envolvimento com o Projeto da Nova
Cartografia Social, foram realizados diversos fascículos11 de povos e comunidades
tradicionais participantes da Rede, interessados em qualificar suas formas organi-
zativas e repensar o padrão das relações políticas internos aos grupos, bem como as
10 Ver em anexo as tabelas elaboradas no planejamento da Rede para 2010.
11 Entre 2006 e 2011 foram realizados 4 fascículos da Série Faxinalenses no Sul do Brasil; 1 Fascículo dos Ilhéus do
Rio Paraná, 1 Fascículo dos Pescadores Artesanais; 3 Fascículo dos Quilombolas, além de 1 Mapeamento do Social dos
Cipozeiros e Cipozeiras e 1 Boletim Informativo das Benzedeiras na Região Centro Sul do Paraná.

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estratégias de negociação12 com o Estado.

O espaço da sistematização

Quando falamos da vivência e das experiências de sistematização da Rede


Puxirão no período de 2009 a 2011, estamos situados em um comum espaço de
discussão e organização política de um movimento que reunia uma gama de movi-
mentos sociais camponeses paranaenses: a Reunião da Equipe. Sob essa denomi-
nação, essa reunião ocorria a cada dois meses, com duração de dois dias, formada
por grupos que se organizavam a partir de três diferentes “setores”: o das comuni-
dades tradicionais, o dos movimentos sociais históricos (MST, MMC, MAB e MPA)
e o dos agroecologistas. Os trabalhos para sistematização foram realizados neste
comum espaço da Reunião da Equipe13, um dos tantos, vale dizer, que organizam a
Rede Puxirão.
À época, os grupos que participavam da Reunião da Equipe estavam inseridos
em cada um destes três setores, de acordo com suas características históricas e de-
mandas reivindicatórias. Uma vez iniciada a Reunião da Equipe, os grupos dis-
cutiam suas pautas nos setores e as encaminhavam posteriormente para todo o
coletivo, em uma reunião que agregava todos os movimentos. O encontro tinha
duração de dois dias, à época sediado na Rureco14, em Guarapuava. Em suma, eram
dois dias bastante intensos e de muita discussão, regadas à cafés, almoços, músicas,
brincadeiras e jantas coletivas.
A frase de José, um dos mediadores da Rede vinculado a Cempo, nos ajuda
entender a importância da Reunião da Equipe: “O espaço da reunião é onde se
pensa e se articula as possibilidades de ações coletivas, um lugar de formação de
lideranças.” (11/02/2009). Formar lideranças para mobilizar pessoas e comuni-
dades. Este sempre foi o intuito deste espaço chamado Reunião da Equipe. Articu-
lar e discutir possibilidades de ações coletivas, de diferentes segmentos dos movi-
mentos sociais, distribuídos nos setores.
Os setores eram: o da Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais (for-
mada por nove representações comunitárias, ou “segmentos da Rede”, como são
chamados internamente); o dos Movimentos Sociais Históricos (formados pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pelo Movimento dos Atin-
gidos por Barragens (MAB) e pelo Movimento das Mulheres Camponesas (MCC));
e o do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e dos agroecologistas.
Estes três setores formavam, portanto, a “Equipe”, que agregava diferentes gru-
pos, demandas e estratégias dos movimentos sociais camponeses paranaenses.
Esta Equipe, reunida, formava este comum espaço da Reunião da Equipe, onde se
12 A criação da Frente Parlamentar dos Povos e comunidades tradicionais criado no âmbito da Assembleia Legislativa
do Estado do Paraná e a criação do Grupo de Trabalho coordenado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos – SAE do
Governo do Paraná, ilustra as mudanças nas relações políticas geradas pela Rede.
13 A denominada Reunião da Equipe tem sua origem em 1995, sendo coordenada pela Comissão Pastoral da Terra –
CPT de Guarapuava. Alguns dos grupos das comunidades tradicionais já participam desde antes da fundação da Rede
– quilombolas, Ilheús e faxinalenses – outros passaram a participar depois da criação da Rede. Nesse espaço ampliado, a
Rede constituiu seu espaço específico – Setor das Comunidades Tradicionais - de discussão em paralelo com momentos
de troca de experiências coletivas com outros movimentos sociais do campo.
14 A Fundação RURECO é uma ONG que atua na região com a temática da agricultura familiar e desenvolvimento
sustentável. O espaço da RURECO possui refeitório, alojamento e auditório viabilizando a realização dos encontros.

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discutiam aspectos da realidade de cada grupo e setor, os andamentos de pautas
reivindicatórias, análise de conjuntura, além do encaminhamento das propostas e
projetos para os poderes públicos. No contexto do projeto de sistematização, a Rede
Puxirão se inserida em algo que não estava a ela circunscrito: pois compunha uma
equipe, sendo um pedaço, portanto, da diversidade. Contemos um pouco sobre a
história deste encontro da diversidade.

A história da Reunião da Equipe: um caminho para a diversidade

Conforme informações advindas do contexto das oficinas da Linha do Tempo


(que estará em anexo mais adiante), a primeira Reunião da Equipe (que era bem
diferente dessa, pois não incluía a organização em setores) foi feita no ano de 1995,
anterior, portanto, à criação da Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais.
Mediada pela Comissão Pastoral da Terra em Guarapuava (então local sede do en-
contro), ela agregava principalmente os diálogos e demandas reivindicatórias de
três “movimentos sociais históricos”: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-
Terra (MST), o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) e o Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB). Não havia, nestas reuniões, nada parecido com
o que hoje chamamos “Rede Puxirão”, “comunidades tradicionais”, tampouco o
conhecimento e formalização de grupos tais quais “cipozeiros”, “pescadores artesa-
nais” ou “religiões de matriz africana”, dentre outros.
Àquele formato (que no ano de 1995 já recebia o nome de “Reunião da Equi-
pe”) foram se agregando outras demandas de grupos sociais emergentes, como a
oriunda da comunidade negra Invernada Paiol de Telha, os Povos Faxinalenses e
os Ilhéus do Rio Paraná. Todavia, a inclusão dos grupos mencionados não signifi-
cava o reconhecimento de uma identidade “étnica”, uma vez que a abordagem das
discussões apoiava-se na perspectiva teórica da “luta de classes”. De outra forma,
foi a posição política desses grupos, internamente à Reunião da Equipe, o que con-
quistou o espaço da Rede Puxirão entre os movimentos sociais do campo. Nesse ín-
terim, estes três grupos (que hoje recebem a denominação de “comunidades tradi-
cionais”), foram os que formaram as bases para a atual Rede Puxirão de Povos e
Comunidades Tradicionais, criada em 2008.
O amadurecimento destes diálogos, com o envolvimento de novos protagonis-
tas, possibilitou a formação e a articulação da Rede Puxirão, composta por grupos
cujos membros, apesar de há muito se inserirem em um histórico de conflitos liga-
dos à ocupação da terra, não estavam articulados politicamente para lutar por seus
direitos. A emergência destas comunidades está ligada, em um âmbito mais geral,
aos avanços das próprias políticas públicas federais, pós 2002, de reconhecimento
jurídico-formal, mediante a criação da Comissão15 Nacional de Povos e Comuni-
dades Tradicionais e da promulgação do Decreto Federal 6040/2007, que dispõe
sobre a Política Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais.
O que estava, portanto, circunscrito aos movimentos que já possuíam algum
tipo de reconhecimento formal frente ao Estado e à sociedade civil se ampliou na
noção “comunidades tradicionais”, cuja ênfase recai sobre as identidades de gru-
15 Desde sua criação a Comissão Nacional tem a participação dos faxinalenses, o que viabilizou a comunicação das de-
mandas dos grupos locais para dentro da pauta da referida Comissão.

26
pos que passam a esboçar um novo padrão de relações políticas com o Estado.
Estas identidades sociais emergem em um contexto no qual a luta pelo direito à
terra está ligada aos modos específicos e tradicionais de sua ocupação, aquilo que
o antropólogo Alfredo Wagner (2006)16 chamou de “territorialidades específicas” e
“existência coletiva” em torno de uma identidade étnica.
A Rede Puxirão, ao compor um destes setores, atuava na Equipe, influenciando e
sendo influenciada política e metodologicamente por ela. Sua especificidade decorre
justamente do fato de se tratar de grupos que evocam identidades emergentes, com
características culturais singulares e modos específicos de territorialidade. A luta
pela manutenção deste ambiente está ligada à luta pela vida, pela reprodução de um
modo próprio de ser e estar no mundo. E isso significa essencialmente lutar pelo
direito aos usos tradicionais da terra, usos estes que não necessariamente seguem a
lógica do capital (especulativa e da propriedade privada) sobre ela.
O uso tradicional da terra diz respeito, portanto, à lógica central dessa diversi-
dade social: seja o gado criado em sistema comum pelos faxinalenses; seja o direito
ao livre acesso dos cipozeiros e benzedeiras ao cipó e às plantas de cura, seja a luta
dos pescadores de Superaguí pelos espaços que permitam a pesca artesanal, seja
a luta contra a intolerância religiosa por parte dos grupos ligados às religiões de
matriz africana, enfim, todas essas diferentes demandas dizem respeito aos modos
tradicionais de viver, de criar e de existir.
É isso o que consiste a Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais. Um
movimento que articula diferentes modos de ser e estar no mundo, e a partir desta
articulação permite agregar o valor do direito à existência destes diferentes modos
de existir socialmente. Essas diferenças, mobilizadas e articuladas em rede, ao seu
tempo e maturidade política, provocam os órgãos públicos a se posicionarem, pres-
sionam as velhas categorias do Estado a se transformarem.
É esta a finalidade da Rede Puxirão: uma vez que o reconhecimento formal des-
tas comunidades seja alcançado, novos padrões de relações político-organizativas
são estabelecidos com o Estado. E uma vez formados, políticas públicas que con-
templem o direito à diferença são demandadas, discutidas e promulgadas17: novos
decretos, novas portarias, novas resoluções, passam a fazer destas comunidades
tradicionais, agora na condição de sujeitos de direito.
Para entender melhor a atuação da Rede Puxirão é necessário desenhar em
que contexto da política nacional para as comunidades tradicionais ela se insere.
Sabemos que, se os encontros introdutórios entre aqueles três movimentos sociais
históricos (MST, MMC e MAB) possibilitaram a emergência de novos protagonistas
e a criação do que hoje conhecemos como Rede Puxirão, importante salientar que
tudo isso está em relação a um contexto maior de lutas e conquistas acumuladas
ao longo de décadas pelos movimentos que se organizam na categoria das comuni-
dades tradicionais, e que encontram espaço para expansão de seus direitos a par-
tir de 2003. Vamos ao contexto, é ele quem nos melhor fará entender a emergên-
cia deste fenômeno que atende pelo nome Rede Puxirão de Povos e Comunidades
16 Almeida, Alfredo Wagner B. de. Terras de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais
e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas”. Manaus: FUA, 2006.
17 Ver Lei 15.673 que dispõe sobre o autorreconhecimento dos faxinalenses e seus acordos comunitários, ou as Leis
municipais aprovadas pelos movimentos faxinalenses e benzedeiras nos municípios de São Mateus do Sul, Rebouças, Rio
Azul, Pinhão, Antonio Olinto e São João do Triunfo.

27
Tradicionais.

Do contexto geral e local: a rede numa rede

A Rede Puxirão foi formada um ano após a promulgação do Decreto Federal


6040, de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), política esta gerida
pela Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comuni-
dades Tradicionais (CNPCT), esta última recriada pelo Decreto de 13 de julho de
2006. Tendo como objetivo geral “promover o desenvolvimento sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais” (cf. Decreto 6040/07). Esta Política Nacional
foi resultado direto das lutas das comunidades tradicionais, e seu esforço de dis-
cussão permitiu a visibilidade de vários grupos sociais, reconhecendo formalmente,
pela primeira vez a existência das comunidades tradicionais no país.
É de carona com este contexto político maior (à luz dos movimentos sociais de
comunidades tradicionais18 espalhadas pelo território nacional) que muitos dos
coletivos sociais, até então sem visibilidade política, existência coletiva e amparo
jurídico, passaram a emergir e, assim, serem reconhecidos por suas identidades es-
pecíficas. Estes são os casos de algumas das comunidades que fazem parte da Rede
Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais.
De distintas maneiras, a partir de diferentes formas organizativas e contribuições
políticas, as comunidades que compõe a Rede Puxirão estão irmanadas com este
contexto político maior, seja porque agenciaram a demanda para a construção da
política nacional (como é o caso dos faxinalenses, que possuem assento na Comis-
são Nacional), seja porque passaram a se articular coletivamente a partir da partici-
pação na Rede (como é o caso das benzedeiras, cipozeiros e pescadores artesanais
do Litoral, que tiveram sua emergência e publicização de identidades nas ações
propostas nesse espaço de articulação).
A própria organização da Rede Puxirão avança neste contexto maior, no caminho
para viabilizar, no plano estadual paranaense, a política nacional voltada para os
povos e comunidades tradicionais, com a criação do Grupo de Trabalho para Elabo-
ração da Política Estadual dos Povos e Comunidades Tradicionais. Se até o ano
2005 e 2006 não se via notícias no Paraná sobre reivindicações por terras e visibili-
dade étnica desses grupos que não estivessem atreladas às demandas dos pequenos
agricultores, camponeses ligados ao MST, indígenas, comunidades atingidas por
barragens e posseiros, de lá pra cá, o panorama reivindicatório da luta por direitos
étnicos e territoriais sofreu uma gradual transformação, o que permitiu pensarmos
em uma nova fisionomia étnica do Estado do Paraná.
Novos protagonistas foram aparecendo e deste modo novas demandas ao Esta-
do foram surgindo, não somente devido à necessidade de criação de leis de amparo
aos direitos fundamentais específicos de acesso à terra e preservação cultural, mas
à urgência na aplicabilidade destas leis e configurando novas atribuições de órgãos

18 Dentre os movimentos sociais com maior capital político que se engajaram nessa conquista foram o Conselho Na-
cional dos Seringueiros – CNS, a Comissão Nacional das Comunidades Quilombolas – CONAQ e o Movimento Inter-
estadual das Quebradeiras de Coco Babaçu – MIQCB compõe os grupos que atuaram diretamente na construção dessa
política pública.

28
públicos (como o IAP, o INCRA e o SEED19), visando o atendimento e execução da
legislação federal e estadual. Essas afirmações sociais e políticas fizeram consonân-
cia com a tônica dos relatos e manifestações empreendidas em razão do lançamento
da Frente Parlamentar de Apoio aos Povos e Comunidades Tradicionais que reuniu
mais de 600 representantes desses grupos étnicos na Assembleia Legislativa do
Estado do Paraná, no dia 29 de abril de 2009.
Visando suprir a fragilidade dos marcos legais que garantam direitos aos povos e
comunidades tradicionais no Estado do Paraná, bem como reforçar os já existentes
no plano nacional, surgiu a proposta de elaboração da Política Estadual de Povos
e Comunidades Tradicionais, em audiência pública realizada na ocasião do lança-
mento da Frente Parlamentar. Para tanto, neste momento foi acordada a necessi-
dade de constituir um grupo de trabalho com representantes de comunidades tradi-
cionais e órgãos do governo Estadual com a finalidade de preparar uma Minuta de
Decreto Estadual que dispusesse sobre a criação da Comissão Estadual de Povos
e Comunidades Tradicionais, tendo como um dos seus objetivos a elaboração da
Política Estadual para esses grupos sociais.
Todas essas ações foram resultado de um acúmulo de forças entre uma demanda
que diz respeito às comunidades localizadas em todo o território nacional e uma
demanda das próprias comunidades situadas no Paraná que, a cada ano, passaram
a se mobilizar e mobilizar outras, gerando a possibilidade de proposições no plano
político paranaense. Uma rede maior, portanto, implicada nas demandas de uma
Comissão Nacional para os povos e comunidades tradicionais, em relação a uma
rede menor que, articulada na Rede Puxirão, reivindicava a efetivação de uma Co-
missão Estadual e criação de política voltada aos povos e comunidades tradicionais
paranaenses. Parafraseando José, um dos agentes mediadores vinculados à Cempo:

a Comissão é o espaço entre os Povos e Comunidades Tradicio-


nais e o Estado (...) um jeito de construir a política estadual (...), e
construir a política é mudar de verdade. José, 11/08/2009

É neste contexto que muitas pessoas, que representam grupos sociais historica-
mente marginalizados, passam a agir em rede, a encarnarem a existência coletiva
de suas identidades emergentes: quilombolas, faxinalenses, ilhéus, cipozeiros, ben-
zedeiras, religiões de matriz africana, pescadores artesanais, passam a existir en-
quanto sujeitos de direito, sujeitos que não somente se fundamentam em direitos
já estabelecidos (como a Constituição Federal de 1988, a convenção 169 da OIT
e o decreto 6040/2007), mas que passam a participar da criação e elaboração de
leis, decretos, resoluções, portarias, fiscalizações para a preservação de seus modos
específicos de reprodução física e social.
Ou seja, uma luta que se inicia de modo atomizado se transforma em mobili-
zação coletiva. Esta mobilização, uma vez que galga visibilidade, tenciona o Estado
ao reconhecimento. Uma vez que o Estado a reconheça, abre-se a necessidade do
diálogo. E uma vez que o diálogo se torna possível há participação ativa na elaboração
e proposição de políticas públicas que garantam os direitos demandados. A questão
é saber até que ponto este diálogo entre Estado e Rede Puxirão tem realmente pos-
19 O IAP é o Instituto Ambiental do Paraná. O INCRA é o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. O SEED
é a Secretaria de Educação do Estado do Paraná.

29
sibilitado a efetivação de políticas públicas para as comunidades tradicionais.

Acionando e Costurando Identidades: a questão da emergência

O tema da “identidade coletiva” passou a ser trabalhado na Reunião da Equi-


pe desde o começo de 2008. Como já mencionado, foram os sujeitos ligados às
questões e causas dos movimentos sociais históricos paranaenses (como o MAB,
MMC, MST) quem acionaram e incorporaram a mobilização das identidades. A
questão que se coloca é: como os diferentes grupos (“históricos” e “emergentes”)
construíram suas estratégias organizativas e políticas no Paraná? Há, por exemplo,
o MST, que possui uma marcha de reivindicações datada da década de setenta.
Como já mencionado, para o caso específico paranaense, os diálogos entre a então
Pastoral Rural e o MST se deram nos anos oitenta, se intensificaram nos anos no-
venta e culminaram nas primeiras reuniões agregando outras demandas dos movi-
mentos sociais, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movi-
mento das Mulheres Camponesas (MMC).
Na ocasião, a experiência de lutas e resistência daqueles movimentos sociais
considerados “históricos” foi objeto de estranhamento e reflexão disponibilizados
para outros coletivos sociais “emergentes”. Para o caso que se segue, são eles: os
Faxinalenses, os Ilhéus do Rio Paraná e os Quilombolas, sobretudo, os membros da
comunidade Invernada Paiol de Telha. Estes três grupos foram os que compuseram,
no ano de 2007, a “Reunião do Setor”, na CPT-Guarapuava, já introduzindo a
questão dos direitos étnicos ligados às comunidades tradicionais. Considera-se que
eles possibilitaram, portanto, a formação da Rede Puxirão de Povos e Comunidades
Tradicionais.
Interessante notar que a entrada de novos coletivos sociais na Reunião da Equi-
pe não significou literalmente entrada de novas lideranças: alguns dos atores en-
volvidos naquele espaço, que antes respondiam enquanto pequenos agricultores,
trabalhadores rurais sem-terra, atingidos por barragens, camponeses, posseiros,
entre outros, passaram a responder enquanto faxinalenses, quilombolas, ilhéus. Ou
seja, passaram a se articular mediante uma identidade coletiva emergente.
O faxinalense Sr. Hamilton é um destes casos, bem como o Ilhéu do Rio Paraná,
Sr. Tavares. Estavam desde o início do ano de 1995 vinculados à luta camponesa
junto à CPT por serem, ambos, pequenos agricultores, camponeses e, um deles,
atingido por barragem e morador de um assentamento do MST no Candói-PR. Ta-
vares foi, como outros antigos moradores da Ilha Grande-PR, realocado para tal
Assentamento devido tanto às enchentes ocasionadas pela hidrelétrica de Itaipu,
no início dos anos oitenta, quanto pela criação do Parque Nacional de Ilha Grande
em 1997, que os expulsou definitivamente das Ilhas.
Ambos passaram da condição de camponeses, assentados, atingidos por bar-
ragens e pequenos agricultores, à de faxinalense (Hamilton) e ilhéu do Rio Paraná
(Tavares), sem que, no entanto, a “nova” categoria negasse a “antiga” condição:
continuam eles camponeses, pequenos agricultores, atingidos por barragens, ex-
propriados, passando a assumir, por isso, uma nova condição no mundo, ligada
às especificidades étnico-culturais de seus diferentes modos de existência social e
trajetórias de vida.

30
Se trata da “descoberta” desses sujeitos de sua identidade coletiva, que possi-
bilita que eles continuem sendo o que sempre foram. Essas identidades “emergem”
porque estavam “imersas”. Dona Ana, Benzedeira, nos disse, em uma das oficinas
de sistematização, algo bastante ilustrativo sobre esta “emergência”: “a prática
das benzedeiras sempre existiu, estamos valorizando, mapeando, no movimento,
para criar a Rede.” (11/10/2010).
Portanto, a Rede acelera o processo de emergir e visibilizar, num movimento
singularizador de publicização e evidência social. As oficinas para sistematização
indagaram sobre o fenômeno da emergência das identidades coletivas inseridas na
Rede. Uma questão central, colocada por nós, e que nos permitiu boas reflexões, foi
essa: “o que é identidade coletiva?”; ou, “o que significa ser faxinalense, cipozeira,
quilombola, benzedeira?”
Por exemplo, assim como nos casos do faxinalense Hamilton e do ilhéu Tavares,
se hoje eu pergunto para Mariluz o que ela é, ela vai dizer que é quilombola. Se eu
pergunto pra Dona Maria o que ela é, ela vai dizer que é cipozeira. Se eu pergunto
pro Tarcísio o que ele é, ele vai dizer que é faxinalense. Isto é a identidade deles,
uma identidade que é coletiva pelo fato de ser acionada por um grupo de pessoas
que possui uma trajetória histórica em comum, muitas vezes ligados por vínculos
de parentesco e afeto, bem como por uma memória acerca dos fatores que deter-
minaram suas existências e dos eventos que culminaram em expropriações territo-
riais.
Mas se há 10 anos eu perguntasse pra Mariluz, pra Dona Maria e pro Tarcísio o
que eles eram, eles certamente não responderiam o que hoje respondem. Mas, se
antigamente eles não se diziam quilombolas, faxinalenses e cipozeiros, e hoje se
assumem enquanto tais, isso quer dizer que esta é uma identidade inventada, falsa,
forjada? Certamente não.
Como já mencionado, existe um contexto especial, atual, ligado às políticas for-
mais estatais, que possibilita que Mariluz se diga quilombola, que Dona Maria se
diga cipozeira e que Tarcísio se diga faxinalense. Esse contexto é fruto tanto da
mobilização, a nível nacional, das comunidades que passaram a discutir a questão
da política nacional dos povos e comunidades tradicionais, quanto dos esforços que
os movimentos sociais históricos, mediados pelo CPT, engendraram na região de
Guarapuava desde a década de oitenta, permitindo que esses coletivos reivindi-
cassem, através das categorias identitárias, a condição de sujeitos de direito junto
ao Estado, vis-a-vis ao movimento singularizador mediante a afirmação de uma
identidade coletiva.
O próprio Tavares tem três interessantes definições sobre seu envolvimento na
Rede, por ele colocadas em uma das oficinas: “Eu era pessoa, depois sou o movi-
mento. A nossa identidade sempre existiu, mas estava abafada (...) A partir do
diálogo com o outro é que sabemos quem somos.” (06/10/2009).
Sem dúvida nenhuma essas reflexões militantes nos ajudam a compreender este
fenômeno das identidades emergentes e a importância de uma rede que as arti-
cule. Estas pessoas, que hoje respondem como ilhéus, faxinalenses, quilombolas,
cipozeiros, entre outros, sempre foram o que sua identidade recentemente revela,
mas nunca fizeram disso a bandeira pela luta dos direitos, seja porque ser Ilhéu,
ser Faxinalense, ser Banzedeira, ser Quilombola nunca foram modos de ser bem

31
vistos pela sociedade hegemônica geral, seja porque nunca foram identidades nor-
matizadas e reconhecidas no mundo jurídico, nunca foram sujeitos de pleno direito
diante do Estado.
Podemos dizer que um grande desafio da Rede é o avanço no debate acerca
dos direitos diferenciados. É justamente para mostrar estes impasses que a Rede
Puxirão organizou dois seminários de direitos étnicos que contribuíram para o re-
finamento da questão, em um espaço de diálogos institucionais entre secretarias
do governo, órgãos federais, promotores públicos, deputados estaduais, lideran-
ças comunitárias e agentes mediadores ligados aos movimentos sociais. A própria
Sra. Margit, chefe do Departamento Socioambiental do IAP presente na Reunião da
Equipe de junho de 2010, fez uma importante afirmação:

Deve-se levar em conta as questões culturais. Culturalmente o


agricultor constrói a casa na beira do rio, e também coloca os ani-
mais em volta da casa. Temos que trabalhar com direitos diferencia-
dos. (Margit, 08/06/2010)

Isso leva a entender que era preciso mudar a concepção, o discurso e as ações
dos agentes públicos no trato com esses grupos sociais. Nesse campo simbólico,
reconhecer pela identidade específica cada grupo passa a ser o alvo da disputa.
Como afirma Tavares “nossa identidade sempre existiu”, e por não ser reconhe-
cida e valorizada, estava “abafada”. Hoje não está mais. Porque é no “diálogo com
o outro” que juntas, estas identidades abraçam uma causa, uma causa que passa
pela visibilidade e pelo reconhecimento. A “pessoa” Tavares se tornou o “movimen-
to”, um movimento de milhares de Ilhéus, tornando-as, também, movimentos que
movimentarão outras, e assim por diante, criando-se a rede, criando-se em rede.
Roberto, um dos agentes mediadores vinculados a CEMPO, ilustra bem este
fenômeno. Diz ele que: “É no encontro em rede que há o reconhecimento. É no
comum enfrentamento que elas [as comunidades] vão se identificando como rede
(...) O cruzamento das mesmas demandas faz com que eles fortaleçam suas articu-
lações em rede.” (07/04/2009).
O pescador artesanal Samuel também pontuou, em uma reunião do setor, a im-
portância do “diálogo com o outro”:

Estamos na busca por direitos humanos. As políticas públicas es-


taduais devem contemplar esses direitos. É isso o que harmoniza as
demandas das diferentes comunidades (...) Nós não tínhamos força,
não éramos movimento. Havia rejeição dos órgãos do governo em
relação às comunidades tradicionais. Agora parece que estão nos
vendo, sinto que pra eles [os representantes do Estado] nós estamos
existindo. Estão dando credibilidade pra nós. (11/08/2009)

Tavares também nos diz algo sobre a importância da rede: “Não éramos
legitimados” (...) “hoje estamos mais fortes, mais preparados”. E estar mais forte
é ter credibilidade, é ser ouvido, é ser visto, é ganhar legitimidade, é fazer jun-
to. E fazer junto não é esperar que os governantes, as secretarias e os órgãos do
governo elaborem a política estadual dos povos e comunidades tradicionais. Não! A
reclamação das lideranças comunitárias é que o diálogo com o Estado está sempre

32
orientado pelo próprio Estado.
A Rede Puxirão sempre se pretendeu o contrário: são as comunidades quem
devem chamar o Estado, coordenar os encontros, e a Comissão Estadual está para
criar este espaço de interlocução entre os povos e comunidade tradicionais e o Es-
tado. Um exemplo destes se deu no encontro com o ITCG (Instituto de Terras, Car-
tografia e Geociências do Paraná), no dia 04 de agosto de 2009. Ao falarem dos tra-
balhos do ITCG com as comunidades tradicionais do Paraná, os técnicos do órgão
mencionaram somente os indígenas e os quilombolas. Sobre esse episódio, há um
interessante relato de um dos agentes da Rede Puxirão:

se o Estado estava com um discurso que no Paraná só existem ne-


gros e índios, a Rede Puxirão estava para confirmar a participação
no evento de outros grupos tradicionais do Paraná, como as cipozei-
ras, os faxinalenses e os ilhéus, que acabaram compondo a “mesa ofi-
cial” do encontro (11/08/2009).

Dessa maneira, manifestaram o interesse em serem reconhecidos como repre-


sentantes diretos de grupos específicos, e não mais representados ou confundidos
com outros grupos sociais. Esta é a emergência: de uma identidade que estava aba-
fada e ocultada, mas que ganha substância e se afirma face aos conflitos. O manto
da bandeira das comunidades tradicionais no Paraná é tecido por estas identi-
dades coletivas, ainda que existam outras que não encontraram caminhos para sua
manifestação. Isso é a Rede Puxirão: a diversidade, pluralismo e polifonia, de onde
emergem novos protagonistas.
Estes novos protagonistas são os faxinalenses, os quilombolas, as benzedei-
ras, os pescadores artesanais, as cipozeiras e as religiões de matriz africana. Junto
com estes se manifesta o movimento dos indígenas, antigo protagonista de reivin-
dicação por direitos étnicos. Algumas, no entanto, se reconheciam desde antes,
outras a fizeram acontecer, e outras só foram reconhecidas coletivamente após sua
formação. Cada qual ao seu modo e ao seu tempo, estas comunidades estão lutando
pela garantia de seus direitos étnicos e coletivos. Falemos um pouco da formação
desta Rede, e de como alguns grupos sociais fizeram a “roda girar”, enquanto outros
embarcaram já nos “trilhos”.

As Oficinas da Linha do Tempo: um caminho que se faz ao caminhar

À época das oficinas para sistematização, somente os pescadores artesanais, os


indígenas e os ciganos não estavam representados por nenhuma de suas lideranças
ligadas ao espaço da Rede. Essas ausências tem algumas implicações: uma delas é a
não inclusão destes segmentos no gráfico da Linha do Tempo, oficina esta que tinha
como principal intuito acionar e enquadrar a memória dos participantes sobre os
históricos de luta das comunidades, possibilitando a reconstrução das experiências
vivenciadas, quer pelos próprios participantes, quer pelas pessoas àqueles vincula-
das.
Além de não estarem presentes nas oficinas, estes segmentos não constaram na
Linha do Tempo porque nenhum dos então participantes os mencionou diretamente,
por justamente pensarem que cada movimento deve falar por si mesmo. Ou seja, a

33
Linha do Tempo, assim como outras oficinas e formas de reflexão e construção de
saber coletivos, foi fruto de uma construção datada e com um número específico de
participantes. Embora tais limitações tenham determinado algumas ausências no
gráfico da Linha do Tempo, buscamos, através da narrativa que segue, evidenciar
a importância desses segmentos no cenário dos movimentos sociais paranaenses,
bem como sua relação no espaço da Rede Puxirão.
Para a elaboração da Linha do Tempo, uma linha foi traçada em um quadro-
negro e, a partir dela, foram sendo colocadas as datas e os períodos que represen-
tam momentos marcantes na trajetória de cada grupo social desde seus primeiros
conflitos territoriais e processos mobilizadores. O resultado desta dinâmica está
colocado na imagem que segue.

34
TABELA

35
O propósito desta visualização geral do movimento foi permitir aos agentes a re-
construção da sua própria experiência em conjunto com as experiências de agentes
de outras comunidades. Eles eram provocados a discorrerem acerca dos aconteci-
mentos marcantes da vida de seu grupo, e relacioná-los com os acontecimentos e
momentos da Rede Puxirão e de outros grupos.
Conseguimos mapear o histórico de luta que vai do ano de 1983, com a criação
do Movimento dos Ilhéus, até o ano de 2010, com a lei municipal das Benzedei-
ras. Nossa memória marchou, portanto, ao longo destes 27 anos. Passamos, por
exemplo, pela criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pinhão em 1984,
tivemos conhecimento sobre a criação da APIG (Associação dos Pescadores e Il-
héus da Ilha Grande) em 1997, além da primeira Reunião da Equipe na CPT, em
1995.
Conversamos sobre a primeira reunião do setor, em 2007, mapeamos o início do
resgate das práticas das benzedeiras, naquele mesmo ano, descrevendo o I Encon-
tro Regional dos Povos e Comunidade Tradicionais, ocorrido em 2008. Refletimos
sobre a criação da Federação Quilombola do Paraná, em 2009, além do lançamento
da Frente Parlamentar, dentre outros episódios importantes da trajetória histórica
dos movimentos. O sentido era avançar da existência atomizada para a existên-
cia coletiva objetivada em movimentos sociais, como condição para a formação da
Rede.
De um período ao outro, mapeamos o histórico de luta e conflito de oito grupos
sociais: os Ilhéus, os Quilombolas, os Faxinalenses, as Cipozeiras, as Benzedeiras,
os Indígenas (kaingang e guarani), Pescadores Artesanais e as Religiões de Matriz
Africana. Nossa preocupação era fazer uma relação entre os períodos marcantes
dessas coletividades e os momentos em que passaram a se articular mediante uma
identidade coletiva. Assim, abaixo da linha do tempo marcada no quadro-negro,
colocávamos as datas históricas pontuadas pelos agentes, e acima da linha colocá-
vamos o período em que cada grupo passou a se mobilizar mediante uma identi-
dade coletiva.
Esta dinâmica permitiu às lideranças dos movimentos reflexões bastante inter-
essantes. A partir dos posicionamentos, percebemos que há diferentes tempos de
mobilização dos grupos ao longo do histórico de luta. Há movimentos que são an-
teriores à Rede Puxirão e outros que são posteriores a ela. Estes diferentes movi-
mentos refletem também os diferentes níveis de maturidade política e engajamento
das comunidades em relação às demandas da Rede Puxirão. Pelo tempo na luta
reivindicatória, há movimentos que de algum modo “sustentam” politicamente a
Rede, e que esperam a maturidade dos outros grupos para “caminharem juntos”
em Rede. Há aspectos positivos e negativos neste nivelamento, que pretendemos
explorar adiante.
Falemos um pouco dos movimentos que formaram a Rede, são deles as bases
que traçaram as linhas de ação da Rede Puxirão. Depois falaremos dos movimentos
que entraram na Rede, e que com as outras comunidades compõe a Rede Puxirão
de Povos e Comunidade Tradicionais.

36
Dos que fizeram acontecer a Rede

Os Faxinalenses

Dados produzidos por levantamento preliminar coordenado pela Articulação


Puxirão dos Povos Faxinalenses, Instituto Equipe de Educadores Populares (IEEP)
e Projeto Nova Cartografia Social indicam a presença de aproximadamente 227
faxinais no Paraná, com uma estimativa populacional de 40.000 faxinalenses. Na
Carta Final do II Encontro dos Povos e Comunidades Tradicionais, ocorrido em
Faxinal do Céu-PR entre os dias 19 e 22 de outubro de 2009, os faxinalenses exter-
nam sua preocupação com

o abandono do Estado, pois segundo levantamento feito por este,


os faxinais estariam acabando, e que, portanto não haveria a necessi-
dade de política pública. Em 1994 o Estado mapeou 121 comunidades,
e em 2004 em seus registros constavam apenas 44 faxinais. O que
nos anos de 2007 e 2008 foi desmentido pelos próprios faxinalenses
que sozinhos mapearam 227 faxinais e cerca de 40 mil faxinalenses.
(Carta Final do II Encontro dos Povos e Comunidades Tradicionais,
OUT/2009).

Este mapeamento foi consequência da mobilização e engajamento dos própri-


os faxinalenses. A formação do movimento reivindicatório faxinalense iniciou em
2005, no I Encontro dos Povos de Faxinais. A legitimidade social da “identidade
coletiva” faxinalense nascia aí. A partir daquele momento muitas pessoas, que até
então se diziam ou eram classificadas como camponesas, pequenos agricultores,
posseiros, e que acompanhavam o discurso do Estado, no qual os faxinais estavam
se extinguindo, passaram a se autodefinir faxinalenses e a reivindicar os direitos de
preservação do modo e vida faxinalense.
Ainda em 2005, suas ações conjuntas receberam o nome público de Articulação
Puxirão dos Povos Faxinalenses (APF), marcada por encontros entre membros das
comunidades autodefinidas faxinalenses em um formato que é muito parecido ao
da Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais. Dividindo suas ações em
cinco níveis de atividades (os Encontros Estaduais, as Coordenações, Geral, Ex-
ecutiva, de Núcleos e Comissões Locais) são os faxinalenses o movimento politica-
mente mais organizado da Rede Puxirão.
A estrutura de ação da Rede Puxirão de algum modo se valeu da estrutura de
ação da APF. Segundo o faxinalense Tarcísio, em termos de organização política, a
estrutura da Rede Puxirão tem suas bases no movimento dos faxinalenses: o mes-
mo formato criado pelos faxinalenses, com apoio da CPT, do IEEP e da CEMPO. Es-
timulada pela inspiração mobilizadora dos faxinalenses, a Rede Puxirão se mantém
aberta como espaço de acolhimento das visões de mundo, formas e estratégias de
lutas de cada grupo que vai compondo sua formação. O ato de conhecer faz-se pela
troca constante de experiências e aprendizados entre os grupos, onde as demandas,
as estratégias de mobilização e de reivindicação confluem para o planejamento das
ações coletivas. São elas que movem esse espaço de formação e articulação.

37
Segundo o mesmo Tarcísio, foi a APF que iniciou, em 2007, as tentativas, junto
a Assembleia Legislativa do Paraná, da criação da Frente Parlamentar de Apoio aos
Povos e Comunidades Tradicionais do Paraná. Mas a proposta se efetivou quando
a maioria dos grupos percebeu a necessidade estratégica, o que impulsionou os
faxinalenses a levarem a discussão para outras comunidades tradicionais do Es-
tado.
Como os diálogos iniciais agregavam os grupos dos ilhéus e dos quilombolas,
foram estes três quem formaram as bases para a própria criação da Rede Puxirão,
embora suas estratégias de ação tenham se espelhado apenas no formato do movi-
mento dos faxinalenses (politicamente autônomo) representado pela APF. Com a
adesão de mais movimentos e a oficialização da Rede Puxirão no ano de 2008, no-
vas formas de organização da luta e resistência foram se engajando, sobretudo o
Fórum das Religiões de Matriz Africana e o movimento indígena, representado pela
ARPINSUL (Articulação dos Povos Indígenas do Sul do Brasil).
Foi também o movimento faxinalense quem esteve à frente das discussões sobre
a Política Nacional para os Povos e Comunidade Tradicionais, sendo atualmente
um dos grupos que compõe a Comissão Nacional dos Povos e Comunidades Tradi-
cionais. De um modo bastante claro, os faxinalenses são o grupo que mais avanços
no plano político e efetivo tem alcançado, e por isso, servido de força motriz para os
demais grupos que compõe a Rede Puxirão.
A própria trajetória de reivindicações e conquistas dos faxinalenses já os coloca,
frente aos outros movimentos, como referência quando se trata do reconhecimento
formal dos “acordos comunitários”, priorizando ações de uso comum da terra dos
recursos naturais e sua conservação através da aprovação de leis, à nível munici-
pal e estadual, o que evidencia os consideráveis avanços nas negociações com os
poderes públicos. Ainda que suas demandas territoriais tenham permanecido es-
tagnadas, as políticas de reconhecimento da identidade e das práticas sociais fazem
dos faxinalenses precursores dessas conquistas.
No Paraná, os faxinalenses estão amparados pela lei Estadual 15.673, de novem-
bro de 2007, que dispõe sobre o reconhecimento dos faxinais, dos modos especí-
ficos de sua territorialidade e dos seus acordos comunitários. O processo de auto-
definição coletiva passou a ser formalmente reconhecido pelo Estado do Paraná,
assim como em cinco leis municipais. O direito ao modo de vida faxinalense está
amparado por um documento do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), conhe-
cido por Procedimento Operacional Padrão (POP), criado em outubro de 2009
em vistas a regulamentar sobre o uso das terras tradicionalmente ocupadas pelos
faxinalenses. Tal documento coloca os técnicos do IAP como fiscalizadores do cum-
primento dos acordos comunitários elaborados pelos faxinalenses.20
Embora tais ganhos à nível jurídico (Lei Estadual e o POP) sejam resultado das
reivindicações e lutas da Articulação Puxirão, o reconhecimento formal dos faxinais
(e não dos faxinalenses) diante do Estado é anterior a ela. Data, por exemplo, de
agosto de 1997 a criação do Decreto Estadual n. 3446 que reconhece a existência
“do modo de produção denominado Sistema Faxinal” (cf. decreto n. 3446/1997).
É devido a este reconhecimento que o mesmo decreto cria, para a preservação das
20 A elaboração deste documento foi determinada por constantes pressões da APF junto ao IAP. O evento emblemático
para sua efetividade foi a ocupação da própria sede do Instituto por parte de mais de 100 militantes.

38
populações inseridas neste sistema, as Áreas Especiais de Uso Regulamentado,
conhecidas como ARESUR.
Os faxinalenses também estão amparados por leis municipais, todas elas decor-
rentes das reivindicações mediadas pela Articulação Puxirão, tais quais: as leis
municipais, de Rebouças (n.1.235/2008), de Pinhão (n.1.354/2007), de Antonio
Olinto (n. 1.354/2007) e de São Mateus (n.1.780/2008).
Ante o avanço jurídico e simbólico, os faxinalenses veem poucas conquistas na
criação de ARESUR’s e das Reservas de Desenvolvimento Sustentável – RDS via
ICMBio, enquanto políticas de acesso e controle do território, o que fragiliza as
conquistas anteriores. Soma-se a essas dificuldades a falta de sensibilidade dos
órgãos ambientais (como o IBAMA e a Força Verde) na aplicabilidade de suas leis,
desvalorizando os modos específicos de ocupação territorial faxinalense. Segundo o
faxinalense Hamilton, a discussão sobre legislação ambiental

não deve ser somente sobre as leis, mas sobre a quem se deve
aplicar as leis. O que é e o que não é crime. (...) Os modos de vida
diferentes tem que ter tratamento diferenciado. Para o nosso órgão
[IAP], o porco pode fuçar na água, para a Força Verde isso é crime.
Deve haver diferença no tratamento. O problema não é o porco,
mas a moto-serra do agronegócio. A legislação ambiental é nossa
inimiga. Não foi feita pra pegar a gente, mas pra pegar o grande, o
agronegócio. (Hamilton, 08/06/2010).

Nesse período, muitos faxinalenses são indiciados, multados e criminaliza-


dos por não cumprirem stricto sensu as premissas do Código Florestal Brasileiro,
acarretando no impedimento do modo tradicional faxinalense que em muito, vale
dizer, contribui para a preservação ambiental. O procedimento leniente e parcial
dos órgãos ambientais é também resultado de uma visão de mundo apoiada numa
interpretação preservacionista que credita ao uso comum o motivo da degradação
dos recursos naturais.
Das principais lideranças faxinalenses à época vinculadas à Rede Puxirão es-
tavam Hamilton, Tarcísio, Ivan, Dimas e Ismael. Todos estes tinham participação
ativa, não somente nas coordenações da Rede Puxirão, mas na própria Articulação
Puxirão. Hamilton, como já mencionado, foi quem esteve desde os primórdios
da discussão, participando inclusive da primeira Reunião da Equipe. Os outros
entraram posteriormente no movimento.

Os Ilhéus

“Ilhéus” é a autodenominação de todos aqueles que vivem e trabalham no com-


plexo de ilhas do Rio Paraná chamadas de Ilha Grande. Ser ilhéu é, portanto, ter
uma memória e uma herança em comum com aquele conjunto de ilhas, estar vin-
culado àquele território específico. Atualmente, boa parte dos Ilhéus está fora da
Ilha Grande, tanto em decorrência do alagamento provocado pela hidrelétrica de
Itaipu, construída entre as décadas dos anos setenta e oitenta, quanto pela criação
do Parque Nacional da Ilha Grande, oficializado em 1997, e da Área de Proteção
Ambiental das Várzeas do Rio Paraná.

39
Conforme os dados obtidos durante a Reunião da Rede foram aproximadamente
dez mil os Ilhéus afetados, direta e indiretamente, pela hidrelétrica. Destes, poucos
ficaram nas ilhas. Muitos saíram sem nenhum amparo do governo, “com uma mão
na frente e outra atrás”, como costumam dizer em várias das reuniões no espaço da
Rede. Aproximadamente dois mil Ilhéus se organizaram para trocar as terras alaga-
das por outras. Destas, trezentas e setenta famílias foram assentadas pelo INCRA.
Dos que ficaram na Ilha, todos foram atingidos tanto pelo decreto federal que
oficializou a criação do Parque Nacional da Ilha Grande, em 1997, quanto pela im-
plementação da Área de Proteção Ambiental Federal dos Rios e Várzeas do Rio
Paraná (APA), ambas sobrepostas às áreas tradicionalmente ocupadas pelos Ilhéus.
Tais normatizações não somente dificultaram a vida dos que estavam na ilha, dada
a impossibilidade de plantio, manejo da terra, pesca, entre outras atividades tradi-
cionais dos habitantes das ilhas, quanto impossibilitaram o retorno daquelas outras
famílias expropriadas no início dos anos oitenta.
A fala de Tavares, principal liderança dos Ilhéus do Rio Paraná no contexto da
Rede Puxirão, ilustra a mobilização do segmento: “Em 1983 nasceu o movimento
dos Ilhéus, e isso é uma identidade. Daí ela se apagou, e depois ela foi crescendo.
Nós, ilhéus, temos três momentos. (Tavares, 06/10/2009).
Este movimento pode melhor ser visualizado no gráfico da Linha do Tempo: o
primeiro momento é o da expulsão e da diáspora dela consequente. O movimento
dos Ilhéus nasce daí, da condição de expropriados. O segundo é o da mobilização
decorrente da oficialização do Parque Nacional de Ilha Grande. Logo após sua
criação, em 1997, os Ilhéus instituíram a Associação dos Atingidos pelo Parque Na-
cional da Ilha Grande (APIG), no intuito de oficializar uma entidade jurídica que os
representasse e que respondesse pelos problemas advindos da criação do parque. O
terceiro é o da inserção dos ilhéus no movimento de povos e comunidades tradicio-
nais, consequência dos diálogos do próprio Tavares, este, a principal liderança do
Ilhéus no âmbito das Reuniões da Equipe.
Como dito, assim como o faxinalense Hamilton, Tavares esteve na primeira Re-
união da Equipe, na condição de Ilhéu morador do assentamento do Candói-PR,
no ano de 2000, e de algum modo encarna o próprio movimento dos Ilhéus no
contexto da Rede Puxirão. Ele foi a via de acesso do movimento dos Ilhéus com a
própria Rede Puxirão, principal articulador do movimento no âmbito do reconheci-
mento formal enquanto comunidade tradicional. O fato, no entanto, de ser Tavares
a única liderança de peso traz algumas fragilidades ao movimento dos Ilhéus no
âmbito da Rede.
De alguma forma a representatividade dos Ilhéus na Rede Puxirão parecia estar
circunscrita aos ilhéus que vivem no Candói-PR, ou seja, aqueles que saíram em
decorrência das enchentes ocasionadas pela hidrelétrica. Este foi, inclusive, um de-
sabafo feito pelo próprio Tavares em uma das reuniões do Setor:

Muitas vezes não sabemos quem estamos representando. Eu sei


das coisas da base do Candói, mas do Parque Nacional não, e isso
me traz insegurança. (...) Dizer uma coisa pelo segmento, sem a con-
sulta, é feio. Tavares (06\10\2009).

Como o próprio Tavares aponta, o problema do movimento dos Ilhéus no con-


40
texto da Rede é o da representatividade. Quando ele fala pelos Ilhéus, está falando
de uma parcela deles. Esta dificuldade se deve a dois fatores principais. O primeiro é
a condição de espalhamento em que se encontram os expropriados da Ilha Grande:
estão por todo Paraná, Região Sul do país e Paraguai, o que dificulta o diálogo, o
mapeamento e o comum sentido de pertencimento enquanto grupo, enquanto luta.
O segundo diz respeito aos diferentes momentos e antagonistas ligados à de-
manda em e pela Ilha Grande. Alguns brigam pra retornar à Ilha, expropriados
que foram, na década de oitenta, pelas enchentes de Itaipu. Outros brigam contra
o Parque Nacional e a criação da APA. Não que estas demandas não possam andar
juntas, mas elas dizem bastante sobre as dificuldades de se unificar a luta pelos di-
reitos tradicionais na Ilha Grande.
Tendo como ponto de partida estas dificuldades, os Ilhéus articulados no espaço
da Rede Puxirão estavam, à época da sistematização, tentando aproximar as de-
mandas dos membros de seu grupo, formando lideranças que consigam articular
ações coletivas. Uma dessas ações estava implicada no já referido projeto da “Nova
Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais”, importante ferramenta
para visibilidade do movimento e reivindicação de seus direitos.
O grande desafio do movimento dos Ilhéus no âmbito da Rede Puxirão é, além
de fomentar a criação de leis que reconheçam e preservam o modo de vida ilhéu,
coletivizar a demanda geral dos ilhéus, tanto os que foram “atingidos” pelas barra-
gens de Itaipu quanto os que foram “afetados”, mais recentemente, pela criação do
Parque Nacional e da APA. Em ambos os casos, o principal antagonista é o Estado,
seja “enchendo” de água o mundo dos Ilhéus, seja criando restrições ambientais
que excluem os sujeitos de seu território tradicional.

As comunidades remanescentes de quilombo

Segundo levantamento realizado pelo Grupo de Trabalho Clóvis Moura, vincula-


do à Secretaria Estadual de Assuntos Estratégicos (SEAE), até o ano de 2010 foram
identificados no Paraná 86 comunidades negras rurais quilombolas. Em 2008, na
ocasião do Encontro Regional das comunidades tradicionais, o movimento quilom-
bola apresentou estimativas que indicam a existência de 20.000 quilombolas no
Estado paranaense.
Assim como para o caso dos Ilhéus e dos Faxinalenses, o movimento Quilom-
bola em relação ao contexto de reivindicações junto à antiga CPT-Guarapuava é
anterior à criação da Rede Puxirão. Data de início dos anos noventa a assessoria da
CPT-Guarapuava à comunidade negra Invernada Paiol de Telha, cujos membros
na década de setenta foram expulsos das terras chamadas Fundão, doadas a 15 es-
cravos seus ascendentes pela então senhora destes, na segunda metade do século
dezenove.
Foi a assessoria que a CPT prestou aos herdeiros do Fundão o que permitiu a
aproximação entre as demandas que dizem respeito ao direito étnico quilombola
com as demandas de direito ao acesso à terra que embasam a luta dos movimen-
tos sociais históricos do Paraná. A ligação, portanto, entre os movimentos sociais
históricos e as demandas de uma comunidade remanescente de quilombo se deu
via CPT. Assim como os ilhéus e os faxinalenses, os quilombolas estiveram pre-

41
sentes na primeira reunião do Setor de Povos e Comunidades Tradicionais, no ano
de 2007.
É válido dizer que a comunidade Invernada Paiol de Telha foi a primeira do
Paraná a receber, no ano de 2005, a certidão de autorreconhecimento enquanto
quilombola, emitida pela Fundação Cultural Palmares. Ou seja, nos primeiros
diálogos entre CPT e a comunidade Invernada Paiol de Telha (datados do início
dos anos noventa) não havia a referência à categoria jurídica “remanescentes de
quilombo”. Ela só foi possível graças à mobilização das comunidades que objeti-
varam o cumprimento do decreto federal 4887/2003, que regulamenta o artigo 68
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de 1988. Desde então, muitas
comunidades que possuem uma comum herança histórica com a escravidão pas-
saram a se autodefinir remanescentes de quilombo, assumindo assim a identidade
quilombola e a luta pelos direitos que o artigo 68 da ADCT da Constituição Federal
garante.
Podemos dizer que, à nível legal, os quilombolas (juntamente com os indíge-
nas) são os grupos da Rede melhor amparados juridicamente. Foi a partir do de-
creto 4887/2003 que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (IN-
CRA) ficou responsável pelos procedimentos necessários aos trabalhos técnicos
de reconhecimento, demarcação e identificação das terras quilombolas. O decreto
também delega à Fundação Cultural Palmares a responsabilidade nas emissões da
certidão de autorreconhecimento quilombola por parte das comunidades propo-
nentes.
De lá para cá, muitas comunidades quilombolas localizadas no Paraná rece-
beram a certidão de autorreconhecimento como requisito necessário para abertura
do processo administrativo junto ao INCRA. Das que deram entrada em tal pro-
cesso, nenhuma comunidade teve suas terras tituladas, uma vez que os processos
estão em litígio judicial. As ações comunitárias estão, ao que parece, circunscri-
tas aos esforços das próprias comunidades, não havendo uma articulação coletiva
quilombola de peso, um movimento auônomo que fiscalize, presencie e pressione
as atividades do Estado representado pelo INCRA.
As dificuldades de uma articulação e existência coletiva quilombola se devam,
como já mencionado, ao caráter emergente do fenômeno, o que refletia as dificul-
dades de articulação do movimento quilombola no âmbito de sua relação com a
Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais. Não havia, como para o caso
dos faxinalenses, um movimento coletivo autônomo das comunidades remanes-
centes de quilombo no Paraná: somente ações atomizadas de cada comunidade
frente ao Estado, ou tentativas de agrupamentos por parte do próprio Estado21.
Tendo como ponto de partida estas dificuldades, os quilombolas articulados
no espaço da Rede Puxirão estavam, à época das oficinas, tentando aproximar as
demandas comunitárias, em um processo de formação de lideranças. Uma dessas
ações estava também implicada no já referido projeto da “Nova Cartografia Social
dos Povos e Comunidades Tradicionais”. Foram contemplados no projeto as co-
munidades quilombolas Paiol de Telha, João Surá e Rocio. Desses diálogos, a Rede
conseguiu mobilizar mais comunidades quilombolas e assim aumentar os planos de
21 O Grupo de Trabalho Clóvis Moura, sediado na Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governo Estadual, estimulou
o processo de criação da Federação Quilombola do Paraná.

42
mobilização coletiva frente o Estado (no caso, o INCRA), além de formar algumas
lideranças que passaram a assumir papel junto a Rede Puxirão.
Na Rede, Mariluz, membro da comunidade Invernada Paiol de Telha, é a prin-
cipal liderança quilombola. Além dela, participam das ações políticas, Alcione, da
comunidade do Rocio e Adir representando a comunidade de Manoel Ciríaco dos
Santos. Estes dois últimos se vincularam ao movimento a partir dos trabalhos de
assessoria da Rede, posteriormente, portanto, à sua criação.
À nível dos diálogos com o Estado, os quilombolas do Paraná estão represen-
tados pela Federação das Comunidades Quilombolas do Paraná, criada em 2009.
Tal Federação, embora simbolize um avanço para o movimento, pouco representa,
conforme o posicionamento da própria Rede, os reais anseios das comunidades
quilombolas paranaenses. Como resultado da falta de representatividade da Fed-
eração Quilombola, foi criada no contexto da Rede, neste ano de 2010, a Coorde-
nação Regional Quilombola do Vale do Iguaçu (COREQ), responsável por articular
as ações coletivas e mobilizar as lideranças das comunidades remanescentes de
quilombo localizadas nesta região específica, o Vale do Iguaçu.
Segundo Mariluz,

a Federação Quilombola é do Estado, ela não existe, pois não há


uma demanda de reuniões. É quando o Estado chama e elabora a
pauta que a Federação existe. A COREQ se reúne mensalmente, é
um movimento informal, que já tem agenda no INCRA. (Mariluz,
21/06/2010).

Como para o caso dos Ilhéus, o principal desafio dos quilombolas no contexto
da Rede Puxirão era dar conta da representatividade do movimento entorno das
muitas e diferentes comunidades que hoje respondem pelo nome de remanescentes
de quilombo. Seria necessário criar, a exemplo dos faxinalenses, um movimento
engajado e autônomo, que tivesse capacidade mobilizadora e resistisse para além
dos espaços das ações coletivas da Rede Puxirão.
Este é um problema que transcendia a própria atuação da Rede, pois se enraiza-
va nas dificuldades inerentes a quaisquer grupos sociais que, em interlocução com o
Estado, aderem a uma categoria jurídica englobante para lutarem por seus direitos
fundamentais. Se havia um comum entendimento dos membros da Rede Puxirão
acerca dos quilombolas era o da necessidade de tirar do Estado o monopólio da
mediação entre os quilombolas e a efetivação de seus direitos. É pra dar conta desse
problema que a COREQ foi criada.
De todo modo, estes três grupos foram os que impulsionaram a formação
da Rede Puxirão de Povos e Comunidade Tradicionais. A articulação política en-
tre Faxinalenses, Ilhéus e Quilombolas, ainda com representação parcial de cada
grupo, nos diz muito sobre a importância da mobilização de diferentes identidades
coletivas e contextos sociais em prol da defesa de seus direitos étnicos e coletivos.
Há aspectos positivos já mencionados anteriormente, no fato da Rede ser
“puxada” pelos faxinalenses, mas há também os aspectos negativos, ligados tanto às
dificuldades de mobilização e representação dos outros grupos, quanto o “desgaste”
dos faxinalenses em aguardar o estabelecimento das estratégias de formação e diálo-
go dos outros grupos, assim como compreender suas formas sócio-organizativas

43
diferenciadas.

Dos que chegaram depois

Se tomarmos como referência a Linha do Tempo, percebemos que tanto os


quilombolas quanto os ilhéus e os faxinalenses têm sua mobilização política ini-
ciada anteriormente à Rede Puxirão. São eles quem, de algum modo, formaram o
espaço da Rede e possibilitar que outros grupos se aliem à causa. Estes são os casos
das cipozeiras, das benzedeiras, dos pescadores artesanais, dos indígenas, das re-
ligiões de matriz africana e dos ciganos.

As Cipozeiras, as Aprendizes da Sabedoria e os Pescadores Artesanais

O Movimento Interestadual de Cipozeiras e Cipozeiros (MICI), o Movimento


Aprendizes da Sabedoria (MASA) e o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Ar-
tesanais do Litoral do Paraná (MOPEAR) foram criados no âmbito de interlocução
e da influencia política refletida pela Rede Puxirão. Não havia, até a criação da Rede,
uma demanda reivindicatória organizada na forma de movimento ou articulação
política de base que representasse a causa dos cipozeiros e benzedeiras. No caso
dos pescadores artesanais, sempre existiram representações mobilizadas no litoral
paranaense, porém, nunca na forma de um movimento social e, sim, de grupos
atomizados em função de demandas contingenciais. A demanda pelos seus direitos,
a formalização jurídica da identidade ocorreram por influencia da Rede Puxirão.
Os povos autodenominados “cipozeiros”, por viverem e se identificarem en-
quanto grupo étnico (justamente pelo trabalho tradicionalmente desenvolvido de
extração do cipó imbé) constituem outro tipo de comunidade que busca sair da
invisibilidade social e jurídica fazendo valer seus direitos históricos. Estes grupos,
atualmente, se concentram no litoral norte de Santa Catarina e em todo o litoral
paranaense. Além da extração do cipó imbé, coletam diversos outros recursos natu-
rais na floresta e desenvolvem agricultura de autoconsumo de base familiar.
A mobilização política dos cipozeiros se objetiva no I Encontro dos Povos e
Comunidades Tradicionais, em 2008. Nesse espaço, duas são as lideranças que
representam os cipozeiros: Dona Maria e Seu Avelino. Conforme percepção dessas
lideranças o trabalho dos cipozeiros foi fortalecido em decorrência das oficinas que
subsidiaram os trabalhos do Mapeamento Situacional dos Cipozeiros nos estados
de Santa Catarina e Paraná. Mas é a experiência política dos grupos que compõe a
Rede que lhes fornece conhecimento militante para organizarem o MICI. Segundo
seu Avelino,

Em Garuva nosso movimento ainda depende do nosso povo se


mexer e lutar pelos seus direitos, assim como acontece com as outras
comunidades daqui. Mas a gente tá aprendendo com eles – Rede –
nesse ponto, mas também ensinando (Avelino, 11/08/2009).

Até o fechamento das oficinas, havia poucas informações sobre os cipozei-


ros. Representantes do movimento apontam para existência de 10.000 membros

44
no litoral do Paraná e Santa Catarina. O principal antagonista do modo de vida
cipozeiro é o impedimento do “livre acesso” ao Cipó-Imbé e outras fibras da floresta
utilizadas para a produção de artesanatos. Além disso, o movimento reivindica o
fim das restrições impostas pelo IBAMA, FATMA e IAP para coleta desses produ-
tos, bem como o retorno de seus territórios tradicionalmente ocupados.
Diferentemente do caso das cipozeiras, o Movimento Aprendizes da Sabedoria
foi formalizado no I Encontro Regional das Benzedeiras, Rezadeiras, Curadores,
Costureiras e Parteiras, realizado na cidade de Irati-PR, em setembro de 2008. Ou
seja, a formalização da identidade de benzedeira, curandeiro, costureira e parteira
é posterior à criação da própria Rede Puxirão. A criação daquele espaço de articu-
lação foi o que permitiu às benzedeiras iniciarem seu movimento reivindicatório a
partir de uma identidade coletiva.
Segundo o Movimento Aprendizes da Sabedoria são estimadas 7.000 pessoas no
Paraná praticantes do ofício de curar e ensinar remédios caseiros, colaborando di-
retamente para a saúde de milhares de pessoas todos os dias. Os principais conflitos
relativos a esses grupos se encontram na repressão dos conhecimentos e práticas
tradicionais de cura, praticada por diversas pessoas ligadas a instituições religiosas
e a medicina oficial. Outra situação enfrentada por esses grupos se traduz na dis-
puta pelo acesso aos recursos florestais medicinais, com a privatização do uso, além
de diversas formas de preconceitos praticadas por diversos atores da sociedade,
dentre eles padres, pastores, médicos e enfermeiras.
No âmbito da interlocução com a Rede Puxirão, o Movimento Aprendizes da
Sabedoria impulsionou a criação, no início de 2010, da Lei 1401, aprovada por una-
nimidade pela câmera de vereadores de Rebouças-PR. Tal lei é pioneira no gênero
em todo país ao reconhecer os donos de ofícios tradicionais como agentes promove-
dores da saúde popular através de suas práticas. Entre os direitos garantidos pela
lei aos benzedores estão a carteirinha, o certificado de reconhecimento e o livre
acesso às ervas e plantas medicinais do município.
Do litoral do Paraná grupos de Pescadores Artesanais localizados na Vila de Su-
peragui iniciam um processo mobilizador em 2008. Nesse contexto a produção da
cartografia social foi instrumento fundamental para reflexão que derivou em mo-
bilização dos pescadores. Uma das contribuições da Rede, segundo as lideranças
do MOPEAR, foi a necessidade de ampliar sua base, fazer formação e organizar
a coordenação do movimento. Os pescadores artesanais vinculados ao MOPEAR
receberam fortes estímulos para o fortalecimento de sua organização, da assessoria
da Rede e, especialmente dos faxinalenses. O processo de mobilização possibilitou
a articulação de várias comunidades pesqueiras, e não mais somente a da vila de
Superaguí.
Os principais conflitos ligados a esses grupos se traduzem na disputa pelo acesso
aos recursos pesqueiros com as embarcações industriais, além de restrições oriun-
das do IBAMA, projetos de pesquisa (Recifes Artificiais), impedimentos e limites
de uso dos recursos naturais resultante da sobreposição do Parque Nacional de Su-
peragui aos seus territórios tradicionais, além das áreas limitadas para pesca de
arrasto (conhecidas como milha de pesca) instituídas por normativa do Ministério
do Meio Ambiente.
O ano de 2010 foi particularmente promissor para a articulação do movimento

45
dos pescadores artesanais paranaenses. Através da mobilização conjunta com a
Rede, foi realizado, em novembro de 2010, o I Encontro dos Pescadores e Pescado-
ras Artesanais do Sul do Brasil, que agregou organizações de pescadores do Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Os Indígenas, os Ciganos e as Religiões de Matriz Africana

Diferentemente dos grupos anteriores (cipozeiros, pescadores artesanais e ben-


zedeiras) que formalizaram seu movimento no período posterior à Rede Puxirão,
o Fórum Paranaense das Religiões de Matriz Africana (FPRMA), a Articulação dos
Povos Indígenas do Sul, bem como a Associação Brasileira dos Ciganos do Paraná,
são representações que articulam demandas de grupos sociais anteriores e de for-
mas políticas distintas à Rede Puxirão. Todos estes são movimentos que represen-
tam, à nível regional, trajetórias próprias de reivindicações já existentes à nível na-
cional.
As demandas e articulações políticas que fundamentam a existência coletiva dos
indígenas, religiões de matriz africana e ciganos nascem em contextos históricos
específicos muito distintos dos que originaram a Rede. Tais grupos somente guar-
dam relações com os novos movimentos de comunidades tradicionais na medida
em que as ações da Rede ganham repercussão política através do I e II Encontro
Estadual dos Povos e Comunidades Tradicionais. Todavia, cada grupo participa de
modo peculiar na Rede Puxirão.

Os Ciganos

Destes três, apenas os ciganos não participaram de nenhuma das reuniões da


Rede que subsidiaram os trabalhos para a sistematização. Por esse motivo, pouco
temos a refletir sobre seu envolvimento e interesse dessa proposta. Dos espaços de
articulação organizados pela Rede o grupo dos ciganos esteve presente somente
no II Encontro em 2009. Prova disso é que a Associação dos Ciganos não constou
na cartilha oficial da Rede Puxirão de 2010, intitulado “Processo de Construção da
Política Estadual de Povos e Comunidade Tradicionais”.

Os Indígenas

Apesar de não dispormos de um levantamento censitário oficial, dados coletados


junto ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI-PR, 2009) revelam a presença
de 93 Xetás, 3.500 Guaranis e cerca de 10.000 Kaingangs no Paraná. Os conflitos
a que estão submetidos são basicamente de acesso ao território tradicionalmente
ocupado e de políticas públicas referentes à saúde e à educação que respeitem as
especificidades culturais de cada etnia.
Sua primeira participação ocorreu no I Encontro dos Povos e Comunidades
Tradicionais em 2008. Nos espaços sequentes a ARPINSUL (Articulação Regional
dos Povos Indígenas do Sul do Brasil) passou a participar com representantes dos
espaços das reuniões e ações coletivas da Rede Puxirão de forma intermitente, uma
vez que internamente ao movimento indígena havia questionamentos acerca dessa

46
aliança. Os representantes indígenas mais presentes eram os Guarani e, nas ações
coletivas, os Kaingangs.
A troca de experiências políticas entre os indígenas e os grupos da Rede foi fun-
damental para os novos movimentos, sobretudo no que se refere ao processo de
formação de lideranças e as estratégias de negociação com o Estado. Em muitas
ocasiões como no acampamento da Rede22 e na criação da Frente Parlamentar dos
Povos e Comunidades Tradicionais, a presença dos indígenas foi fundamental para
pressionar as autoridades públicas.
Observa-se, no entanto, que as pautas dos indígenas tinham em suas nego-
ciações agentes públicos e legislações distintas, o que dificultava aproximações nas
mobilizações. Por exemplo: na questão do território, enquanto o movimento indí-
gena negociava com a Funai a demarcação de suas terras, os quilombolas tinham no
INCRA suas demandas territoriais, os faxinalenses, pescadores, ilhéus e cipozeiros
no ICMBio a criação de seus territórios tradicionais.

As Religiões de Matriz Africana

O Fórum Paranaense das Religiões de Matriz Africana (FPRMA) foi criado em


2009, por iniciativa de um grupo de religiosos que, durante as discussões da cri-
ação do Fórum Nacional das Religiões de Matriz Africana - realizado durante a
Segunda Conferencia Nacional de Promoção da igualdade Racial (II CONAPIR)
-, orientou a instituição de fóruns estaduais, visando propor formas de contribuir
para a solução de problemas existentes nas comunidades de Religiões de Matriz
Africana. Tal movimento mobilizou grupos de Ilês, Terreiros, Tendas, Abassás,
roças, instituições, além de adeptos e simpatizantes pela causa.
O FPRMA, incentivado pelo êxito das iniciativas já implantadas em outros esta-
dos brasileiros, constitui-se numa instância de caráter deliberativo sem fins lucra-
tivos, reforçando seu potencial de articulação e representatividade para o apoio à
implantação de políticas públicas de inclusão social e promoção das comunidades
de Religiões de Matriz Africana em âmbito estadual.
No contexto da Rede Puxirão, a entrada do Fórum Paranaense de Religiões de
Matriz Africana ocorreu no II Encontro dos Povos e Comunidades Tradicionais do
Paraná, em Faxinal do Céu-PR. Ou seja, apenas alguns meses após a criação do
Fórum Nacional, em junho de 2009, estava sendo oficializado o Fórum Paranaense,
no contexto daquele segundo encontro das comunidades tradicionais paranaenses.
Podemos dizer que os grupos ligados às religiões de matriz africana vieram à
Rede em razão da proposta de criação da Política Estadual dos Povos e Comuni-
dades Tradicionais, da qual participaram de modo efetivo, inclusive, a mobilização
do Fórum foi fundamental para a criação do Grupo de Trabalho sobre a Política
Estadual em 2009.
Importa ressaltar o estranhamento inicial que resulta do encontro e mobilização
conjunta entre os representantes do Fórum (Candomblé e Ubanda) com grupos
sociais que possuem membros com fortes vínculos com a fé católica e neopente-
22 O Acampamento foi uma ação coletiva realizada em outubro de 2010 organizada pela Rede Puxirão. Na ocasião os
representantes dos grupos envolvidos com a Rede armaram acampamento na frente do Palácio do Governador do Paraná
– Palácio Iguaçu – por 3 dias a fim de pressionar pela criação da Politica Estadual dos Povos e Comunidades Tradicionais
e da Comissão Estadual dos Povos e Comunidades Tradicionais.

47
costal. Os relatos mais abaixo dão conta do que foi um exercício de relação com a
alteridade por parte dos sujeitos protagonistas da rede (nesse caso de ecumenismo
“às cegas”), pois, face às estratégias comuns que mobilizavam ambos os grupos,
para articular era preciso conhecer o outro, compartilhar de sua luta. Nesse espaço,
os preconceitos eram tratados de modo silencioso para evitar constrangimentos23.
O Fórum trouxe três contribuições importantes. A primeira é o ganho que a Rede
Puxirão teve com a entrada destes novos protagonistas, suas articulações e estra-
tégias de mobilização (como, por exemplo, a Parada da Diversidade). A segunda é
pelo fato de tirar da Rede sua característica de lidar somente com territorialidades
vinculadas a grupos camponeses. São urbanas as terras tradicionalmente ocupadas
pelos grupos que compõe o Fórum Paranaense das Religiões de Matriz Africana.
Reivindicam seus direitos em um contexto urbano, de luta pela preservação e au-
toestima da religiosidade afrodescendente, onde a preservação destes territórios
existenciais, religiosos, simbólicos e efetivos está intimamente ligada às formas de
ser e estar no mundo de seus adeptos. Tal característica alarga também o campo de
articulação, contatos e atuação da Rede Puxirão para Curitiba, capital do Estado
paraense.
E terceiro: ao abraçar a causa dos grupos e expressões de matriz africana, a
Rede Puxirão está lidando com a verdadeira dimensão do respeito e do diálogo
com a diferença. Se até então a Rede mobilizava as diferentes comunidades tradi-
cionais do Paraná, todas estas diferenças estavam como que mediadas por um co-
mum modo de ver e entender o mundo, por um comum fundo religioso ligado ao
cristianismo. Hoje não: os grupos ligados às religiões de matriz africana mostram,
ensinam e dialogam diferentes maneiras de ver o mundo, relacionar-se com as coi-
sas do mundo, além ter diferentes expressões, referências e símbolos religiosos. Ou
seja, possibilitam o contato e a valorização com a verdadeira diferença: aquela que,
num primeiro momento, causa espanto.
Isso ficou claro em uma dos espaços de vivências religiosas que dão início a todos
os encontros da Reunião da Rede: a “mística”. Comumente feita pelos membros dos
grupos tradicionais, e sempre regada às leituras dos versículos bíblicos, a mística
do dia 01 de dezembro de 2009 teve como mediador Rômulo: principal liderança
do FPRMA vinculada à Rede Puxirão. Ali ele mostrou aspectos de cura de algumas
plantas, além da relação entre os elementos da Terra com os poderes das entidades
espirituais ligadas à religiosidade afro-brasileira.
Pedindo a permissão para todos que ali estavam, Rômulo, além de cantar refrões
que remetem à religiosidade afro, benzeu cada um dos participantes com a erva que
portava nas mãos. Foi um momento emocionante, e por dois motivos: o primeiro é
que a mística foi realmente emocionante. O segundo é talvez a causa do primeiro:
havia pessoas ali que estavam com receio, e que de algum modo estranharam todo
aquele discurso pautado na umbanda, macumba e no candomblé, estas, referências
vistas como “coisas do diabo e da bruxaria” no imaginário de muitas das populações
tradicionais paranaenses.
E estranharam por quê? Ora, porque desconheciam, porque nunca tinham ex-
perimentado, porque nunca tinham conversado sobre, porque nunca tinham senti-
23 Em novembro de 2009, membros do Fórum realizaram reunião da Rede no Terreiro de Candomblé. Ao final re-
alizaram uma cerimonia para proteger e abençoar os diferentes grupos na sua luta.

48
do o cheiro, porque nunca tinham visto. O fato é que no contato com o diferente sur-
giu a possibilidade da atenuação de certos preconceitos, surgiu a possibilidade do
diálogo, da tolerância e do respeito religiosos. E isso basta para que seja construído
um mundo novo, admiravelmente novo.
E isso para ambos os lados. O próprio Rômulo afirmou o pavor que os religiosos
de matriz africana têm dos dogmas das religiões cristãs, porque é no discurso pau-
tado na bíblia e no cristianismo que tem se dado a maioria das desautorizações
e dos desrespeitos às crenças e religiosidade de matriz africana. No contexto da
Rede, não somente as comunidades tradicionais cristãs camponesas aprendem
com as comunidades de religiosidade africana, mas estas também aprendem muito
do modo de vida cristão das comunidades tradicionais. Modos este que, vale dizer,
estão falando de uma mesma coisa: do respeito à natureza, do amor ao próximo e
da organização dos diferentes e excluídos como meio de transformar as relações de
poder na sociedade.
E essa abertura é, sem dúvida, o exemplo do verdadeiro diálogo com a alteridade
e o grande desafio deste novo momento da Rede, um momento onde ela se abre para
o novo, desvincula territorialidade do campesinato e religiosidade do cristianismo,
abrindo as portas para movimentos que lutam, sobretudo, pela justiça e o direito à
existência social, estes sim norteadores de quaisquer lutas e sonhos.

Considerações Finais

Como mencionado no início do texto, a finalidade da sistematização foi refle-


tir sobre as experiências da Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais,
apreendendo o fluxo da experiência. Este experiência, no entanto, continua se
realizando, porque é dinâmica. Assim, ao apreender o fluxo da experiência, a apri-
sionamos. Em verdade, ela é inapreensível, ilimitada. Toda apreensão é, portanto,
limitação de algo que é infinito e muito mais complexo, intangível. Ou seja, o que
podemos apreender são somente aspectos, esboços, tentativas de aproximação de
uma experiência infinita, que não se traduz em um texto.
O trabalho para sistematização apreendeu aspectos do vivido em Rede. Retemos
aqui o que se passou, com a certeza de que a condição deste material produzido é
a sua própria limitação. Muito, mas muito mais há que se narrar, e mesmo assim,
toda narrativa estará fadada a ser somente um testemunho (o que é muito), uma
semente da reflexividade, da memória e da autoconsciência, uma forma de contar a
história a partir de outros marcos e referências, recontá-la, portanto.
Enquanto estas linhas foram escritas, muitas ações, práticas, encontros, senti-
mentos, concernentes às experiências disso a que chamamos Rede Puxirão, acon-
teceram. No meio disso tudo, e cada vez mais forte, a Rede Puxirão vem fincando
sua realidade, efetivando-se enquanto espaço de mediação entre os movimentos
sociais e a garantia de seus direitos. Esses movimentos sociais representam e tra-
duzem o afã de um sem fim de pessoas e coletivos na busca por seus direitos à vida
plena, à justiça e à dignidade.
Como já destacado, todas as comunidades vinculadas à Rede Puxirão têm na
mobilização entorno de uma identidade coletiva a via para o reconhecimento for-
mal diante do Estado, em especial de seus direitos territoriais. Em se tratando da

49
Rede Puxirão, cada uma vai compor, em seu tempo, um tipo de relação consigo
mesma e com o mundo que a cerca.
Há grupos e consciências de sua identidade anteriores à Rede. Há, também,
movimentos e consciências que foram formados por ela. É neste movimento de for-
mar e ser formado que pudemos vivenciar a riqueza e as limitações da mobilização
entorno de uma identidade coletiva, além de tudo o que este encontro de diferenças
permite gerar, tanto à nível dos diálogos formais com Estado, como novas formas
de mobilização política integradas.
Procuramos mostrar ao longo do texto que, por mais que oficialmente a Rede
Puxirão tenha sido formada no ano de 2008 (no I Encontro dos Povos e Comu-
nidades Tradicionais), é anterior a tal data o início das mobilizações dos grupos
e atores que a formaram. Ela é, portanto, produto de um sem fim de articulações,
ações, passeatas, acampamentos, demandas, resistências, diálogos e reivindicações
feitas pelos movimentos sociais paranaenses desde, no mínimo, o início dos anos
oitenta.
Daquele tempo até o momento, as condições políticas se transformaram e no-
vas formas de luta atreladas ao localismo e os particularismo dos conflitos sociais
encontrou pontos de contato que esboçam essa articulação que atende pelo nome
de Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais. A Rede, no entanto, é uma
articulação ou espaço de congregação de um processo em que algumas identidades
coletivas categorizadas como povos e comunidades tradicionais em luta no Paraná
projetam possibilidades de efetivação de direitos em um contexto novo da política
nacional voltada às comunidades tradicionais.
Apesar da multiplicidade de demandas, atores, comunidades, encontros, o
caminho para que a Rede efetivamente se consolide no campo político e reivindi-
catório paranaense é um só: a continuidade de sua marca, que é agregar diferentes
movimentos sociais, e daí fazer surgir um corpo de referência que permita o em-
poderamento desses agentes sociais e a efetivação dos seus direitos fundamentais.
Ou seja, não há outro caminho para a Rede senão continuar suas estratégias de
mobilização comunitária agregando um número cada vez maior de grupos e agen-
tes sociais: é isso o que fez com que ações atomizadas, de pessoas e movimentos
sociais, adquirissem o caráter de mobilização coletiva e étnica engendrada por uma
rede de comunidades tradicionais. Vimos que é nesse encontro de diferentes gru-
pos sociais e suas demandas que as bases para a luta foram alicerçadas, que novos
padrões de relacionamento com o Estado foram criados, que novos aprendizados
foram potencializados, que velhos preconceitos foram revistos, que novas alianças
foram efetivadas, que novas realidades e tornaram possíveis.
Cabe pensar nos dilemas relacionados a continuidade da Rede e seu papel
de articulação e formação, e não de representação, evitando com isso a concen-
tração de tarefas, a fragilidade organizacional de alguns grupos, a não substituição
das representações dos movimentos pela Rede. São essas algumas preocupações
apontadas pela sistematização com os representantes das diferentes comunidades
tradicionais. Para tanto, propõe-se estimular trabalhos de formação de base, for-
talecer as coordenações dos movimentos, abrir canais de negociação permanentes
dos órgãos públicos com os movimentos e suas demandas.
A continuidade da Rede depende, portanto, tanto da permanência de sua agenda

50
aglutinadora e agregadora quanto de sua abertura para novas alianças e possibi-
lidades. É assim que ela fortaleceu suas bases e fundamentos históricos ligados à
proposta de viabilizar condições para o fluxo das demandas dos movimentos sociais
aqui mencionados, bem como permitiu que novas propostas, demandas e grupos
sociais a ela se aliassem. São esses dois movimentos, o de continuar a proposta
histórica e o de se abrir para os novos movimentos sociais, que possibilitarão que a
Rede se efetive como um espaço de articulação política não somente circunscrita ao
contexto paranaense, mas nacional e internacional.
Podemos dizer que a via para a efetivação desses direitos passa pela visibilidade
das comunidades diante do Estado e do mundo que as cerca. Esse primeiro passo, o
de mostrar as marcas, as trajetórias, as histórias, as demandas, as vozes, as bandei-
ras, está sendo dado. No encontro em rede, cipozeiras, pescadores artesanais, re-
ligiões de matriz africana, faxinalenses, benzedeiras e ilhéus têm lutado para emer-
girem enquanto sujeitos jurídicos, de pleno direito. Daí o rótulo de emergente a
todas essas comunidades que aos olhos do mundo e do Estado pareciam até então
inexistir. A Rede permite essa emersão, possibilitando o fortalecimento de uma
política estadual voltada aos povos e comunidades tradicionais. É sob o manto da
bandeira da Rede Puxirão que as vozes desses segmentos, dessas identidades cole-
tivas, passaram a aparecer e se fortalecer politicamente.
Um segundo passo também está sendo dado: o de, a partir da visibilidade, fazer
com que o Estado reconheça esses modos culturais específicos e defina um com-
promisso de amparo e proteção jurídica. Embora em fase germinal, esse amparo
já se esboça, de diferentes maneiras, para as comunidades tradicionais. Decretos
federais e estaduais, portarias, leis municipais, minutas, entre outros mecanismos
estatais, são tanto resultado da mobilização dos movimentos sociais quanto conse-
quência de um diálogo inicial entre sociedades civil, movimentos sociais e os po-
deres públicos brasileiros. Com todas as limitações inerentes ao processo, a Rede
Puxirão tem sido um importante espaço de diálogo e mediação entre as comuni-
dades tradicionais e o Estado brasileiro.

51
52
Comunidade de Pescadoras e Pescadores Artesanais Organizados –
Processos de R-existência na Vila do Superagüi-PR24

Dimas Gusso25
Marina Drehmer 26
Marina Eduarda Armstrong de Oliveira27
Mercedes Solá Pérez28

Resumo

Os pescadores artesanais da Vila do Superagüi enfrentam diversos conflitos nos


seus territórios de vida. Analisam-se aqui dois principais. O primeiro é em decor-
rência das proibições de reproduzir os seus modos de vida específicos devido à su-
perposição dos seus territórios com o Parque Nacional do Superagüi. Diante das
restrições impostas, os pescadores se especializam no trabalho da pesca no mar.
Assim, o segundo conflito implica diretamente a atividade da pesca artesanal em
relação às políticas de modernização da pesca e à concorrência desigual com a pesca
industrial. Ambos os conflitos geram a indignação dos pescadores artesanais que,
buscando encontrar soluções, se organizam como movimento social e se inserem na
categoria política de povos e comunidades tradicionais. Propõe-se aqui tratar sobre
o processo de organização da r-existência dos pescadores e pescadoras artesanais
do Superagüi-PR.

Introdução
24 Este texto é realizado com concordância dos pescadores e pescadoras da Vila do Superagüi – sujeitos da pesquisa –,
buscando privilegiar o olhar desses sujeitos e em diálogo permanente com eles.
25 Faxinalense, estudante do Curso de Direito e assessor político do MOPEAR.
26 Estudante do Mestrado do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e integrante do
ENCONTTA - Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra.
27 Estudante do Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Geografia pela Universidade Federal do Paraná, integran-
te do ENCONTTRA – Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra e assessora política do MOPEAR.
28 Estudante do Doutorado em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco. Integrante do ENCONTTRA – Co-
letivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra –, CEGeT – Centro de Estudos de Geografia do Trabalho – e
NEACA – Núcleo de Estudos sobre Espaço Agrário, Campesinato e Agroecologia.

53
O extenso litoral brasileiro é marcado por distintos e recorrentes conflitos terri-
toriais atrelados ao contemporâneo panorama global cuja lógica econômica pauta-
se, entre outros aspectos, na mercantilização da natureza29 (CECEÑA, 2008). O
litoral norte do Estado do Paraná não é diferente. Os conflitos territoriais decor-
rem da disputa entre as comunidades locais – caiçaras e pescadores artesanais – e
os órgãos públicos ambientais – Instituto Ambiental do Paraná, Instituto Chico
Mendes de Biodiversidade, Ministério de Meio Ambiente. Essa região caracteri-
za-se pela presença da natureza exuberante – mangue, mata atlântica e restingas
– devido às práticas das comunidades locais de manutenção da mesma. Marcada
pela diversidade ambiental e cultural, essa região viu-se alvo de diversos interesses,
públicos e privados, especialmente a partir de meados do século XX. Esse cenário
de mercantilização da natureza – cujas ações são orientadas por uma perspectiva
na qual esta aparece como uma fonte infinda de mercadorias reais ou potenciais
que configura “uma paisagem de oportunidades” (CORONIL, 2005, p. 111), foi
acarretando conflitos e consequente mobilização de algumas comunidades locais
que viam seus territórios de vida ameaçados diante dos interesses de outrem.
Este artigo propõe um relato sobre o processo de organização dos pesca-
dores e pescadoras artesanais da Vila de Superagüi, município de Guaraqueçaba que
em decorrência de conflitos socioambientais, viram a necessidade de se organizar
como movimento social diante desse cenário de conflitos relacionados especial-
mente às proibições devido à implementação do Parque Nacional do Superagüi e
aos impactos da pesca industrial. Ambas as políticas – de conservação da natureza e
de modernização da pesca - comprometem a continuidade do acesso e manutenção
dos territórios e modos de vida tradicional desses pescadores, constituindo uma
disputa que envolve os próprios pescadores artesanais, o Estado – aqui represen-
tado por órgãos ambientais – e a iniciativa privada.
O processo de organização social do grupo teve como marco inicial o pro-
cesso da cartografia social que resultou – além da confecção do fascículo 16 da Nova
Cartografia Social publicado em 2010 – na formação do Movimento dos Pescadores
e Pescadoras Artesanais do Litoral do Paraná (MOPEAR) - em 2008, bem como no
autorreconhecimento como “pescadores e pescadoras artesanais”, o que permitiu
sua inserção na categoria política de Povos e Comunidades Tradicionais e a auto-
demarcação dos seus territórios de vida. Para compreender melhor esse processo, é
importante debruçar-se sobre os aspectos conjunturais que ajudaram a conformá-lo.
Para tanto, daremos início ao relato, por meio de uma contextualização da região
para compreender o panorama no qual as lutas e reivindicações dos pescadores e
pescadoras artesanais do Superagüi foram se delineando e ganhando força. A Vila
do Superagüi, comunidade situada na Ilha do Superagüi, teve um grande protago-
nismo nesse processo de mobilização política, o que a coloca no foco deste texto. A
realização do fascículo 16 da cartografia social contou com a participação de inte-
grantes da comunidade de Barbados – também trabalhada neste livro por Duarte e
Varella – e da comunidade da Vila das Peças.
A estrutura deste artigo divide-se em quatro partes. Após breve apresen-
tação da comunidade de pescadores artesanais de Superagüi passa-se à descrição
29 “Todo mundo parece concordar com este preceito [desenvolvimento sustentável], porém trata-se de um conceito
vazio que só aponta a um fim: desenvolvimento sustentável implica entregar a natureza para ser valorizada, para ser
desapropriada, para ficarmos despossuídos mais uma vez daquilo que nos pertence” (CECEÑA, 2008, p. 152).

54
dos conflitos – com o Parque Nacional do Superagüi e a pesca industrial, ao pro-
cesso de mobilização e conquistas do MOPEAR e finaliza-se com a agenda de ações
do Movimento.

Panorama das comunidades da Ilha do Superagüi

Na Ilha do Superagüi vivem atualmente seis comunidades: Vila do Superagüi,


Colônia, Barbados, Canudal, Vila Fátima e Barra do Ararapira. Sendo a mais den-
samente habitada, a Vila do Superagüi, com 280 famílias. A Vila do Superagüi en-
contra-se na parte sudoeste da Ilha do Superagüi. Esta Ilha é costeira e pertence ao
município de Guaraqueçaba, litoral norte do Paraná. Está situada na extensa Baía
de Paranaguá, fazendo parte da região do Complexo Estuarino Lagunar de Iguape–
Cananéia e Paranaguá, que se localiza na fronteira entre os estados do Paraná e
São Paulo e é formado por um conjunto de baías, morros, desembocadura de rios
e ilhas litorâneas costeiras que auxiliam na proteção desse complexo ecossistema
(WHINTER; RODRIGUES; MARICONDI, 1990). Esta baía é constituída por cinco
setores denominados de, no eixo leste-oeste, Baía de Antonina e de Paranaguá, e
no eixo norte-sul, Baía de Pinheiros, de Laranjeiras e de Guaraqueçaba. Em seus
setores mais interiores possui características propriamente estuarinas, com exten-
sas áreas de manguezal e forte influência continental das serras e rios, já em suas
porções mais externas, encontradas próximas às barras de mar, há maior influência
do oceano adjacente.
A região é historicamente ocupada por comunidades cuja reprodução social está
associada a modos específicos de produção e ocupação de seus territórios. Relacio-
nadas à sua descendência – indígena, negra, branca – têm como práticas: a pesca
artesanal, o roçado, a caça e o extrativismo, uma combinação de múltiplas ativi-
dades que, conjuntamente, ajudam a compor seus modos específicos de ser/viver. E
estão nas ilhas há cerca de trezentos anos (NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL, 2010).
Relatos históricos da ocupação da Ilha de Superagüi datam do século XVI, época
na qual era habitada por índios carijós e tupi-guarani e passou por fases distintas de
ocupação. Resumidamente, essas fases são: segunda metade do século XIX; início
do século XX e década de 1980. Na segunda metade do século XIX, constitui-se
um núcleo urbano devido à exportação de produtos agrícolas por vias marítimas e
fluviais (BAZZO, 2010). No início do século XX devido à decadência das atividades
econômicas houve um êxodo populacional, mas ao mesmo tempo, a consolidação
de diversas comunidades (WHINTER; RODRIGUES; MARICONDI, 1990). Em
1970, Superagüi já começou a ser alvo de políticas ambientalistas sendo inscrita,
sob o n° 27, no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico da Divisão
do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Paraná. Ainda assim, no começo
da década de 1980 houve uma tentativa da Companhia Agropastoril Litorânea do
Paraná S.A. (CAPELA) de criar búfalos, mas a pressão das comunidades, apoiadas
pelo ITC Instituto de Terras e Cartografia (hoje Instituto de Terras, Cartografia e
Geociências - ITCG) não permitiu a continuação das atividades.
Bazzo (2010), Duarte (2013) e lideranças do MOPEAR (informação verbal)30,
30 Informação verbal em trabalho de campo realizado por Mercedes Solá Pérez por motivo da dissertação de Mestrado
em Geografia (2011).

55
compreendem que a luta contra essa Companhia foi um dos elementos que influ-
enciou a atuação ambientalista na região, tendo sido uma ação que fortaleceu a
implementação do Parque Nacional do Superagüi (PARNA do Superagüi). Isso,
aliado à “falta de importância econômica”31 da região que permitiu a manutenção
da natureza e a reprodução da vida dessas comunidades não ligada totalmente ao
modelo de produção capitalista, mas a um modo específico de reproduzir a vida. E
é exatamente por essa causa, que a região se torna alvo de políticas de desenvolvi-
mento sustentável, através da criação de diversas unidades de conservação (UC)
da natureza, que não levam em consideração os modos de vida das comunidades
locais.
Dentre as seis UCs existentes em Guaraqueçaba estão a Área de Proteção
Ambiental de Guaraqueçaba e três Reservas Particulares de Patrimônio Natural
(Figueira, Sebuí, Salto Morato) como UCs de Uso Sustentável, e a Estação Ecológica
de Guaraqueçaba e o PARNA de Superagüi como – UCs de Proteção Integral.– A
criação e implementação do PARNA do Superagüi foi um dos marcos que deu início
aos conflitos de ordem socioambiental, relacionados às restrições legais referentes
a esta categoria de UC delimitada sobre os territórios tradicionalmente ocupados32
dos grupos locais.
Na área que atualmente constitui o Parque Nacional do Superagüi, há aproxi-
madamente 15 comunidades, sendo cinco na Ilha das Peças (Vila das Peças, Laran-
jeiras, Guapicum, Tibicanga e Bertioga), seis na Ilha do Superagüi (Vila do Super-
agüi, Colônia, Barbados, Canudal, Vila Fátima, Barra do Ararapira) e três, bastante
próximas, na área continental (Sebuí, Saco da Rita, Abacateiro), que por vezes, são
agrupadas e nomeadas como Costão do Sebuí. Dentre as comunidades, sete estão
dentro dos limites do PARNA: seis na Ilha do Superagüi (todas, com exceção da Vila
do Superagüi) e uma na área continental (Abacateiro) (FIGURA 1). Porém, todas
as outras ainda que recortadas dos limites do PARNA encontram-se impactadas
pela sobreposição com essa UC, uma vez que o território de vida dos pescadores
não se restringe aos limites da vila, estendendo-se, não só aos espaços das práticas
produtivas (pontos de pesca, coleta, roçado), como também aos espaços sociais e
culturais. Um território sobre o qual, como alegam Whinter, Rodrigues e Maricon-
di, “é impossível delimitar um perímetro exato, contíguo e permanente, (…), uma
vez que, por exemplo, a própria dinâmica do ecossistema alterna, sazonalmente, as
possibilidades de realização das práticas produtivas” (1990, s/p).

31 A falta de importância econômica remete, segundo Bazzo (2010), a que não havia na Ilha do Superagüi nenhum ciclo
que se inserisse na economia do país, como poderia ser o açúcar, o café, a borracha, etc.
32 Conceito cunhado por Almeida (2005) para referir àqueles territórios que possibilitam a partir de modos específicos
a reprodução da vida das comunidades que têm um histórico identitário neles.

56
FOTO MAPA

FIGURA 1 – Comunidades e área do Parque Nacional do Superagüi. Fonte: RÖSLER 2006 apud BAZZO,
2010.

Este panorama apresentado permite perceber que há grande diversidade so-


cioambiental, ou seja, da natureza e das práticas produtivas das comunidades dis-
tribuídas nessa área. Uma vez que as comunidades têm uma relação estreita com a
natureza, dependendo de suas características locais para reprodução de seus mo-
dos de ser e viver podem-se notar algumas diferenças nas práticas preponderantes
entre as comunidades locais. Um exemplo disso é o tipo de pesca, se dentro da baía
ou em mar aberto, ou a importância do extrativismo de mangue, que varia de comu-
nidade para comunidade. Isso evidencia que há uma heterogeneidade de práticas e
especificidades que devem ser respeitadas na íntegra, mas a luta que articulam é co-
mum, uma vez que todas as comunidades se veem impactadas, em maior ou menor
grau, pelos mesmos antagonistas.Entre os principais antagonistas, encontram-se
os agentes responsáveis por implementar e executar as políticas públicas de desen-
volvimento pensadas para região, quais sejam: a instalação de áreas protegidas que
responde às políticas ambientais de desenvolvimento sustentável referentes à con-
servação e às políticas de modernização da pesca e da aquicultura, que incentivam
a pesca industrial, a incorporação de equipamentos modernos e estabelecem áreas
aquícolas para criação de ostras, camarões, ou peixe (SOLÁ PÉREZ, 2012).

Processo de organização da comunidade e conflitos

Diante dos permanentes conflitos vividos, os pescadores artesanais de Vila de


Superagüi procuraram estratégias de luta para garantir a manutenção dos seus
territórios. Nessa procura, em 2008, foram convidados pela Articulação Puxirão
dos Povos Faxinalenses (APF) a participar do I Encontro Regional de Povos e Co-
munidades Tradicionais33. Nesse encontro participam sete grupos étnicos – Xetás,
33 Esse Encontro é produto da criação da Comissão Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (Lei 10 884/06),

57
Kaigangs, Guaranis, Quilombolas, Cipozeiras, Ilhéus e Pescadores artesanais, que
trocaram experiências e resolveram unir as lutas na articulação da Rede Puxirão
dos Povos e Comunidades Tradicionais do Paraná (REDE, 2013). A Rede visa o
fortalecimento político e institucional dos movimentos tanto individual quanto co-
letivamente, de modo que a luta por direitos se torne mais viável. Estes direitos
se referem especialmente ao acesso e manutenção dos seus territórios tradicional-
mente ocupados, e portanto, à sua identidade.
Os pescadores artesanais da Vila do Superagüi, diante desse fervilhar dos diver-
sos segmentos congregados também pelo Projeto da Nova Cartografia Social dos
Povos e Comunidades Tradicionais, solicitam o auxílio para o automapeamento de
sua comunidade.
O processo durou em torno de oito meses, nos quais a comunidade se reunia,
discutia diversas questões relativas às formas de organização da própria comuni-
dade (infraestrutura, legislação, direitos), práticas sociais (autorreconhecimento
coletivo, identidade e os limites impostos para sua reprodução por determinadas
políticas públicas), os conflitos no território (conflitos socioambientais) e as pos-
síveis formas de resistência (OLIVEIRA et al, 2012).
Durante o tempo de trabalho e elaboração do seu mapa, do qual resultou, em
2010, o Fascículo n.º 16 dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil “Pesca-
dores Artesanais da Vila do Superagüi”, eles fizeram um resgate da memória co-
letiva, trocaram experiências, compartilharam e sistematizaram as dificuldades
que passam. Todo esse processo de cartografia social fortaleceu a comunidade
especialmente no que diz respeito à construção da sua identidade coletiva e seu
autorreconhecimento34 enquanto comunidade tradicional, enquanto pescadores e
pescadoras artesanais.
Ainda que para o Estado, a pesca artesanal seja reconhecida estritamente como
uma atividade econômica35, para as comunidades dessas ilhas, a pesca artesanal é
uma arte36 que permite o ser/viver específico. Os pescadores artesanais têm lógicas
territoriais de relação estreita entre a água e a terra. Na água (rio, mar ou man-
gue), eles desempenham a atividade da extração do pescado e na terra têm suas
moradias, os espaços de beneficiamento do pescado para venda e espaços para ali-
da Política de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto 6040/07) e da articulação
entre movimentos sociais e o Projeto Nova Cartografia Social (atuando no Paraná desde 2005), vinculado ao Programa de
Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia –PPGSCA- da Universidade Federal do Amazonas – UFAM - com
apoio do Instituto Equipe de Educadores Populares –IEEPE- e Centro Missionário de Apoio ao Campesinato (CEMPO)
na produção da Autocartografia Social.
34 O autorreconhecimento é promulgado no Brasil através do Decreto Nº 5051/04 que institui a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho no país. Esse Decreto, aliado aos Decretos 6040/07 da PNPCT, 6476 do Tratado
Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura e, 2519 sobre a Convenção da Diversidade
Biológica; , trazem à tona os direitos territoriais, étnicos e culturais dos povos e comunidades tradicionais, reconhecendo
também a relevância dos saberes tradicionais.
35 Lei n.º 11.959 de 29 de junho de 2009, classifica-se a pesca artesanal a atividade comercial “quando praticada direta-
mente por pescador profissional, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próp-
rios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações de pequeno porte” (Art. 8º §I, a).
36 Em depoimento colhido para o fascículo da cartografia social, Azuir Barboza diz: “Ser um pescador artesanal é viver
da arte, a gente vive da arte manualmente, a gente sai pesca sete hora da manhã, seis hora da manhã, volta às três da tarde
e o trabalho é tudo manual, não tem nada de guincho, de equipamento sofisticado como: GPS e a sonda. O barco de
pequeno porte trabalha das sete às três, volta pra casa e lá no mar começa as se cria o pescado de volta, das três às seis da
manhã do outro dia. Viver da arte é desse tipo: pesca um dia, à noite descansa. Como não temos equipamento sofisticado
pra fica à noite lá fora, pra pesca à noite, dia e noite, então o nosso tipo de vida é esse aí” (NOVA CARTOGRAFIA, 2010).
Para informações sobre a arte da pesca, consultar Ramalho (2007).

58
mentação (CARDOSO, 2009). Quer dizer que a pesca artesanal é um modo de vida
que não se restringe à arte da pesca na água, mas inclui outras atividades em terra,
constituindoseus territórios de vida.
Neste sentido, a discussão identitária adquire papel central no contexto desses
grupos que recorrem à identidade coletiva como uma forma de bandeira mobili-
zadora, de articular suas lutas. Inserem-se, assim, no âmbito político-jurídico por
meio da categoria de Povos e Comunidades Tradicionais e r-existem aos processos
expropriatórios que dificultam ou coíbem a reprodução de suas vidas e o acesso
aos seus territórios. Por isso, torna-se muito importante insistir nessa discussão do
autorreconhecimento – que é pauta de muitos debates atuais - relatando o processo
pelo qual os moradores da Vila do Superagüi se autoidentificaram como pescadores
artesanais37, uma identidade que reflete a sua principal atividade, na qual foram se
especializando após as restrições impostas pelas políticas ambientais à boa parte de
suas outras práticas.
Além do autorreconhecimento, nesse processo de construção do fascículo da
cartografia social realizado pela comunidade, evidenciaram-se diversos conflitos,
entre os quais se foca na instalação do Parque Nacional do Superagüi e na pesca
industrial.

O Parque Nacional do Superagui

O estabelecimento de uma unidade de proteção integral, tanto em sua primeira


legislação – Decreto Nº 84.017/79 – quanto na atual – Sistema Nacional de Uni-
dades de Conservação (SNUC – Lei Federal Nº 9985/01) – proíbe a presença hu-
mana dentro da área instituída. Isso significa, o impedimento da coexistência entre
o ser humano e a natureza. Em outras palavras, este tipo de unidade considera que
o ser humano não faz parte da natureza, antes, constitui um predador em relação à
mesma, devendo um e outro serem separados, e a natureza ser mantida intocada,
estabelecendo-se, dessa maneira, “santuários naturais” (DIEGUES, 2000).
Especificamente, a superposição do PARNA de Superagüi afetou a vida, dire-
ta ou indiretamente, de doze comunidades38 que tradicionalmente ocupam esses
territórios. Essa superposição acontece desde 1989, quando da criação do Parque
Nacional do Superagüi (Decreto 97.688/89), mas piorou a situação especialmente
depois da ampliação da sua área em 1997 ( Decreto 9513/1997). As consequências
são a impossibilidade de: ter áreas de roçado, caçar, coletar produtos na floresta,
criar animais, coletar caranguejo e ostras e, inclusive construir ou reformar suas
casas (SOLÁ PÉREZ, 2012). Ou seja, todas as práticas tradicionais de reprodução
da vida dos pescadores e pescadoras artesanais são proibidas. Isso é devido ao mito
da natureza intocada, que limita os usos da natureza, acreditando que só assim
será possível a sua preservação. Ainda que as comunidades locais, especificamente
aqui, os pescadores artesanais não possam obter plantas medicinais e madeira para
construção de ferramentas de trabalho, instrumentos musicais ou canoas (NOVA
37 Para uma discussão sobre a identidade das comunidades locais de Superagüi, consultar Duarte (2013).
38 As doze comunidades são, na Ilha do Superagüi: Vila de Superagüi, Saco do Morro (Colônia), Barbados, Canudal,
Vila Fátima e Barra do Ararapira. Na Ilha das Peças: Vila das Peças, Laranjeiras, Guapicum, Tibicanga e Bertioga. E no
continente, o Costão do Sebuí, que compreende as comunidades de Sebuí, Rita e Abacateiro.

59
CARTOGRAFIA SOCIAL, 2010). Claramente, isso repercute na manutenção de
seus modos de reproduzir a vida que são cerceados pelas proibições e fiscalizações
dos órgãos ambientais. E, se já é comum os pescadores frequentemente transitarem
pelas ilhas e pelo interior da baía, inclusive mudando de comunidade, conforme as
relações sociais e de parentesco; as pressões fruto da política de desenvolvimento
sustentável têm provocado a ida de muitos pescadores artesanais à Ilha de Vala-
dares (periferia de Paranaguá) e, em menor grau, à sede do Município de Gua-
raqueçaba.
Outro aspecto importante, relacionado ao contexto do conservacionismo, é a
presença de inúmeras instituições não governamentais (Sociedade de Pesquisa em
Vida Selvagem e Educação Ambiental - SPVS -, Fundação O Boticário, SOS Mata
Atlântica, dentre outras) com interesses de realizar projetos e pesquisas vincula-
das à preservação da natureza excluindo as comunidades tradicionais desses ter-
ritórios (KASSEBOEHMER, SILVA, 2008). É exatamente o que o pescador da Vila
do Superagüi retrata em diálogo de campo39 quando comenta que vai “colocar uma
máscara de mico leão dourado para ver se nos preservam”. Ou seja, essa situação
provoca em seus moradores a sensação de que as questões ambientais são muito
mais valorizadas do que a sobrevivência das populações locais. Recentemente os
guaraqueçabanos organizaram uma campanha de denúncia intitulada de “Gua-
raqueçaba: Meio Ambiente Preservado & Autoestima Destruída”40 na qual alegam
que o Município possui os piores indicadores de desenvolvimento humano – IDH –
no ranking estadual e municipal. Quer dizer, que a preservação da natureza – como
natureza intocada – não garante a sobrevivência das comunidades, além disso, o
IDH, não incorpora a dimensão da biodiversidade.
A questão do lixo41 também gera controvérsias e justifica a intromissão dos órgãos
gestores ambientais. Segundo um funcionário da Força Verde(informação verbal)42,
o excesso de lixo acumulado se deve à ignorância das comunidades locais às quais
falta capacitação para gerenciá-lo. Isso evidencia a responsabilização atribuída
ao grupo por suas ações, postura que prevalece nas correntes ambientalistas he-
gemônicas, que tendem a deslocar as responsabilidades para os sujeitos, tirando
de cena os reais causadores dos impactos que, no limite, encontra-se associado à
produção massiva de plástico, sustentáculo do modo de produção capitalista cuja
principal matriz é o uso de petróleo e seus derivados. Esse comentário carregado
de preconceito expressa bem os posicionamentos dos executores das políticas am-
bientais, que, pensam ter como uma de suas “missões” levar às comunidades locais
o desenvolvimento para que deixem de ser atrasadas e, ao mesmo tempo, retira a
responsabilidade da Prefeitura de Guaraqueçaba de dar um destino ao lixo da Vila
do Superagüi. O excesso de lixo acumulado torna-se, então, mais um elemento, en-
tre muitos, para legitimar a ação tutelada dos gestores ambientais.

39 Informação oral em trabalho de campo realizado por Mercedes Solá Pérez por motivo da dissertação de Mestrado em
Geografia (2011).
40 Disponível em: http://vozdoguara.blogspot.com.br/
41 Solá Pérez (2012), em sua dissertação de Mestrado em Geografia, explica que a Prefeitura argumenta haver poucos
barcos para coletar o lixo e, por isso, somente é possível realizar a coleta uma vez por mês, o que implica uma carga em
torno de duas a três toneladas. Como essa carga de lixo não é a total produzida na Ilha o IBAMA pretende que os turistas
levem seu lixo de volta às cidades de origem onde há coleta frequente de lixo.
42 Informação verbal em trabalho de campo realizado por Marina Drehmer em 2012.

60
Políticas setoriais e a pesca industrial

Diante das proibições já citadas referentes à instalação do Parque Nacional do


Superagüi, os pescadores artesanais voltam suas atividades produtivas à especiali-
zação na pesca. Isso leva a novos confrontos com os órgãos ambientalistas não so-
mente pelas restrições do PARNA, mas devido às restrições na pesca.
O principal conflito é relacionado à Instrução Normativa do Ministério do
Meio Ambiente – a IN/MMA n.º 29 – que estabeleceu, em 2004, que a pesca de
arrasto só seria permitida a partir de uma milha náutica da costa (1.852m). Segun-
do a carta de denúncia realizada pelo MOPEAR, dirigida ao promotor da Comarca
de Antonina/PR, em 5 de março de 2009, há vários argumentos para revogar essa
Instrução: 1) não há estudos que determinem que, de fato, a pesca artesanal gera
qualquer dano aos recursos pesqueiros se pescar na primeira milha náutica, e inclu-
sive com a prancha, petrecho de baixo impacto utilizado para captura de no mais de
15 kg. de camarões e pescado; 2) a ausência de fiscalização da pesca industrial que
causa altos impactos ambientais devido ao uso de petrechos de grande porte e por
se localizar ilegalmente dentro das milhas (após 1,5 milha é permitido, sendo que
costumam estar a 250 metros da costa) não permitidas para esses tipos de embar-
cação; 3) faltam referências evidentes da milha náutica e os pescadores artesanais
não têm GPS para saber o posicionamento exato das suas embarcações e; 4) a IN
não diferenciar entre a pesca industrial e a artesanal sendo que a última implica um
modo de vida e, portanto a reprodução integral da vida dos pescadores. Este fato
contradiz o Decreto Nº 5051 – que promulga a no país a Convenção 169 da OIT do
autorreconhecimento – e o Decreto Federal 6040 de 2007 que institui a Política
Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e versa sobre a existência de comu-
nidades com modos de vida específicos que devem ser respeitados.

Os conflitos que dificultam mais os pescadores artesanais seriam


as formas como os órgãos ambientais colocam as leis deles, porque
eles colocam as mesmas leis que eles colocam pros pescadores indus-
triais eles colocam para o pescador artesanal e deveria ser diferen-
ciado. O pescador industrial fica dias, quinzenas, meses no mar, a
noite toda virando. Não tem hora pra eles pescarem o peixe. Não tem
limite, o mar pode tá manso, como pode tá bravo, eles tão pescando,
dia e noite, enquanto eles não lotam o convés deles, as geladeiras de-
les, eles não vão embora. Outro conflito é o parque nacional, que se-
ria a mata, mas também o próprio mar que, teria que ser fiscalizado
por parte dos órgãos ambientais pra pegar quem destrói e não quem
pesca como nós. Ser fiscalizado assim, só assim o pescador artesa-
nal conseguia sobreviver, seria mais pescado no mar. Ivair José
da Silva, Pescador Artesanal da Vila de Superagüi (NOVA
CARTOGRAFIA SOCIAL, 2010).

A diferença entre o barco industrial e o artesanal, segundo o relato de um pes-


cador da Vila do Superagüi, é que as duas portas43 dos barcos dos pescadores arte-
43 A rede de arrasto com portas é uma estrutura com forma cônica que mede 8 metros de comprimento e 9 metros de
boca, com malhas de 4 cm. na boca, 3 cm. no meio e 2 cm no copo. As portas são peças de madeira de 0,70 m. de com-
primento aproximadamente e 0,50 m. de largura. Nelas, amarram-se os cabos da rede e servem para abrir a boca da rede
horizontalmente (LOYOLA e SILVA et. al. 1977).

61
sanais pesam juntas, em torno de 24 quilos e as da pesca industrial chegam a pesar
aproximadamente 150 quilos cada uma. Além disso, comenta que, as redes que os
pescadores artesanais utilizam não são pesadas o suficiente para atingir o fundo
depois da primeira milha, ao contrário das utilizadas na pesca industrial que são
bem pesadas e por isso conseguem varrer o fundo. Por esse fato, os pescadores ar-
tesanais acabam querendo pescar dentro da milha. A questão é, portanto, qual tipo
de portas e quais redes se utilizam e quais se proíbem: as dos pescadores artesanais
ou da pesca industrial (SOLÁ PÉREZ, 2012).
Ainda com respeito à concorrência entre a pesca artesanal e a industrial, “Os
conflitos internos à pesca resultam da competição pelos recursos entre diferentes
grupos de interesse. Em particular, o desenvolvimento da pesca empresarial na
plataforma costeira paranaense gerou uma série de conflitos com a pesca de menor
escala” (ANDRIGUETTO FILHO, 1999, p. 210). Embora tais grupos não tenham
limites precisos, os pescadores paranaenses conflitam com os grandes barcos de
outros estados que fazem pesca de arrasto pescando camarão rosa e sete barbas, ou
utilizam portas e parelhas, bem mais pesadas que aquelas dos pescadores artesa-
nais, que varrem o fundo do mar. Segundo os pescadores do Paraná, os barcos da
pesca industrial degradam o meio ambiente acabando com a biodiversidade e não
respeitam o limite de três milhas da costa reservados para os pescadores artesanais
(ANDRIGUETTO, 1999).
Somente apontando os principais conflitos dos pescadores e pescadoras artesan-
ais identifica-se a negação da vida44 deles por parte do Estado com base na aplicação
de políticas públicas de conservação da natureza e modernização da pesca. Tanto
a sua identidade como os seus territórios estão sendo espremidos, reduzidos para
inseri-los marginalmente ao modo de produção e consumo capitalista. As práticas
produtivas, a transmissão de saberes e os acordos comunitários são desqualificados
como formas possíveis de reproduzir a vida.

As conquistas do MOPEAR

Como dito anteriormente, no contexto do processo da cartografia social, os pes-


cadores e pescadoras artesanais fundaram o Movimento dos Pescadores e Pesca-
doras Artesanais do Litoral do Paraná (MOPEAR). Desde então, o MOPEAR con-
seguiu importantes conquistas locais como: deter o processo de instalação de recifes
artificiais, autonomia da escola de Superagüi, aulas de reforço para os estudantes
e construção e melhoramento dos trapiches em comunidades do interior das ilhas.
Especificamente, a respeito da atividade de pesca, em 2010, o MOPEAR con-
seguiu o cancelamento da instalação de recifes artificiais e antiarrasto nas proximi-
dades de Superagüi após a decisão do Ministério Público Federal que intercedeu
em favor dos pescadores artesanais que eram contrários à colocação. O Movimento
declarou que os pescadores artesanais não tinham sido devidamente consultados,
que a instalação de blocos de concreto não garantiria a proliferação de diversidade
marinha e, ainda, que se fosse estritamente necessária, a colocação a fizessem em
áreas de pesca industrial em lugar de colocá-los nos territórios dos pescadores ar-
44 Este termo de “negação da vida” faz referência àquilo que Boaventura de Souza Santos (2006) chama de sociologia
das ausências. Invisibiliza-se aquilo que não interessa, aquilo que não é hegemônico, que “o que não existe é produzido
ativamente como não existente” (SANTOS, 2006, p. 23).

62
tesanais.
Sobre a Instrução Normativa Nº 29/04, que proíbe a pesca na primeira milha, o
MOPEAR enviou ao Instituto Ambiental do Paraná (IAP) uma contraproposta, que
ainda aguarda resposta, na qual se solicita a sua modificação. Essencialmente trata
de três pontos: não incluir aos pescadores artesanais na proibição; dar ênfase na
especificidade das artes do pescador artesanal e, em função delas; permitir a pesca
em distâncias determinadas segundo as artes de pesca.
O MOPEAR também fez uma proposição de lei municipal junto à Câmara de
Vereadores de Guaraqueçaba em 2011, que ainda tramita, sobre o patrimônio ima-
terial que representam os pescadores e pescadoras artesanais. Essa lei reconhece-
ria no âmbito municipal aos pescadores artesanais como comunidade tradicional e
lhes permitiria o reconhecimento de suas práticas culturais.
A organização social, junto às oficinas sobre direitos na comunidade realizadas
pela cartografia social, gerou diminuição da repressão de órgãos ambientais que,
por vezes, abusava do poder chegando a prender os petrechos e os próprios pesca-
dores artesanais por pescarem antes da milha náutica ou por estarem com alguma
caça.
Ainda por conta da organização, através do MOPEAR, os pescadores unem suas
lutas com a Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais45; estreitam o
diálogo com o Ministério Público Estadual e o Ministério Público Federal e; cri-
am parcerias com diversos grupos, por exemplo, o Núcleo de Prática Jurídica, a
Terra de Direitos, o Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra
(ENCONTTRA)46, entre outros.
As ações do MOPEAR – como visto – trouxeram diversas conquistas no âmbito
da vida dos pescadores artesanais da Vila do Superagüi e em 2010, a partir da reali-
zação do I Encontro de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Sul do Brasil na sede
do Município de Guaraqueçaba, conseguiram organizar a Articulação Sul do Brasil
de Pescadores e Pescadoras Artesanais (REDE, 2010). Foi também a partir deste
encontro que as outras comunidades da Ilha vêm se interessando pela inserção na
organização social do MOPEAR e, por isso, há dois anos que se realiza o processo de
mapeamento social – a cargo da Nova Cartografia Social – de todas as comunidades
atingidas pela instalação do Parque Nacional do Superagüi47.
Até o momento foram realizadas entrevistas, registro fotográfico e coleta de
pontos de GPS nas comunidades Tibicanga, Barbados, Sebuí e Abacateiro e várias
lideranças têm intensificado as relações com o MOPEAR. O mapeamento tem sido
um grande desafio para o Movimento, já que além de persistir na lida cotidiana da
45 Em setembro de 2010 a Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais organizou o I Acampamento dos Povos
e Comunidades Tradicionais do Paraná. O intuito era aprovar uma proposta de lei estadual de reconhecimento da cat-
egoria Povos e Comunidades Tradicionais. Em 18 de dezembro de 2012, através da publicação da Lei 17.425 foi criado o
Conselho Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Estado do Paraná.
46 Entre os dias 19 e 21 de maio, foi realizado o curso de extensão “Cartografia social: uma ferramenta para o for-
talecimento identitário e a mobilização social” junto à Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais e pes-
quisadores da UFPR, IFPR, UNICENTRO, UDESC e UFSC. Os jovens pescadores artesanais ligados ao MOPEAR
participaram desse curso. Mas informações, consultar o site da Rede Puxirão < http://redepuxirao.blogspot.com.br/
search?q=curso+de+cartografia >.
47 Se o mote inicial é o conflito da superposição entre os territórios de vida e o PARNA do Superagüi, ao longo do pro-
cesso visibilizaram-se outros conflitos que as comunidades vivem, mas também o fortalecimento do movimento de luta
pela manutenção dos modos de vida – que claramente implicam em seu autorreconhecimento e autodemarcação territo-
rial – dos pescadores e pescadoras artesanais das Ilhas das Peças e do Superagüi.

63
pesca, os pescadores artesanais buscam driblar as dificuldades e continuar organi-
zados para manter seus territórios de vida.
Todos esses mecanismos que o MOPEAR vai criando, junto à Rede Puxirão e
às outras parceiras, permitem demonstrar que os pescadores e pescadoras artesa-
nais da Vila do Superagüi se reinventam a cada dia. Fortalecem a sua organização
através do autorreconhecimento com o objetivo de manter os seus territórios e, com
eles os seus modos de vida. Não somente resistem, mas se resignificam, r-existem
(PORTO-GONÇALVES, 2006).

Agenda das ações do MOPEAR48

As estratégias para finalizar o mapeamento social levam em conta o atual mo-


mento do PARNA do Superagüi que, diante da elaboração do Plano de Manejo,
mostra-se uma boa oportunidade para a reivindicação de regulamentação das
práticas dos pescadores que se viram afetadas ou impossibilitadas por conta das
proibições impostas pela unidade de proteção integral. Nos próximos passos o
MOPEAR propõe aproximar às lideranças das outras comunidades e promover re-
uniões acompanhadas de formação com todos os moradores.
Outro debate pautado pelo Movimento diz respeito à Reserva Extrativista – RE-
SEX – Marinha requisitada ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodi-
versidade (ICMBio) vinculado ao Ministério de Meio Ambiente (MMA). Buscando
pressionar o órgão para agilizar os processos de realização dos estudos, o Movimen-
to conta com o apoio de pesquisadores e se articula junto a deputados estaduais e
federais favoráveis à causa. Uma das intenções é esclarecer melhor do que se trata
a RESEX, sua importância e como deve ser pensada para assegurar a atividade
pesqueira. A área da RESEX devido à área que se procura demarcar beneficiará,
principalmente, quatro comunidades locais: Vila do Superagüi, Vila das Peças, Ber-
tioga e Barbados, as quais realizam pesca em mar aberto.
Também tem ocorrido uma aproximação de lideranças de outras comunidades
dispersas pela Baía de Paranaguá ao MOPEAR, como os moradores das comuni-
dades de Ilha Rasa e da Ilha de Valadares (zona urbana de Paranaguá) que vêm par-
ticipando de espaços de articulação internos e externos ao grupo. Esses membros
agregam outros debates, como, por exemplo, a necessidade de confrontar os dados
apresentados pelo Porto de Paranaguá sobre a pesca no interior da baía. Essa tem
sido uma aproximação importante diante da necessidade apresentada pelas lider-
anças do MOPEAR de descentralizar o movimento procurando dar voz a outras
lideranças, tanto no contexto do Superagüi, como no de outras localidades.
A pesca no interior da baía, segundo relato dos membros do MOPEAR encontra-
se bastante escassa, acarretando em dificuldades para as comunidades locais que
necessitam dessa atividade para assegurar seu sustento. Essa é uma das questões
levantadas pelos moradores das comunidades que pescam predominantemente no
48 Esse quadro correspondia ao momento em que o artigo foi escrito, em meados de 2013. De lá para cá, diante de novas
circunstâncias, outras estratégias foram traçadas, e os ventos apontaram para direções distintas (e bastante profícuas) que
aqui não cabem ser exploradas, sendo tema de futuras exposições. Porém, não deixa de contribuir para retratar um certo
momento específico do movimento. O importante desta ressalva é que ajuda atentar para o dinamismo da luta social,
além de refletir partes dos percalços que encontramos para realizar a publicação deste livro.

64
interior da baía. Segundo relato obtido em entrevista com pescadores da comuni-
dade de Tibicanga, localizada na Ilha das Peças, essa escassez tem muito a ver com
o acidente de derramamento de óleo ocorrido no Porto de Paranaguá em 200449.
A Petrobrás já foi sentenciada a pagar uma multa de alto valor, porém as comuni-
dades pesqueiras impactadas ainda não conseguiram obter essa indenização.
O MOPEAR também vem dialogando com pescadores artesanais de outros mu-
nicípios numa tentativa de ampliar, fortalecer e visibilizar a luta dos pescadores
artesanais no Estado do Paraná. No fim de junho, foi sancionada a criação de um
Parque Nacional Marinho (PARNA Marinho dos Currais) no município de Pontal
do Paraná. Os pescadores artesanais desse município mostram-se apreensivos com
a criação dessa UC devido ao seu grau de restrição, e têm procurado os membros do
MOPEAR para articularem uma luta conjunta.
A Campanha Nacional pela Regularização do Território das Comunidades Tradi-
cionais Pesqueiras50, fomentada pelo Movimento Nacional dos Pescadores Artesa-
nais, também é um ponto de convergência entre os pescadores artesanais do MO-
PEAR, que têm colocado a campanha como pauta em todo o estado. Esta campanha
propõe uma lei federal de iniciativa popular que, através de abaixo-assinado, busca
garantir o acesso e manutenção dos territórios de vida das comunidades tradicion-
ais de pescadores e pescadoras artesanais em todo o país.

Considerações finais

Os pescadores e pescadoras artesanais da Vila do Superagüi ao se organizarem


como movimento social no Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do
Paraná – MOPEAR – e ao se inserirem na categoria política de povos e comuni-
dades tradicionais; têm se deparado com algumas barreiras diante dos conflitos
que se apresentam nos seus territórios. A política de desenvolvimento sustentável
mediante a instalação do Parque Nacional do Superagüi e a política de moderni-
zação da pesca com suas instruções normativas e o incentivo à pesca industrial vêm
ameaçando os modos de ser/viver das comunidades que tradicionalmente ocupam
os territórios do Superagüi. Em nome do desenvolvimento sustentável, parafrase-
ando Porto-Gonçalves (2006), se tira o envolvimento das comunidades e se despro-
tege a natureza ao não permitir o manejo tradicional.
Se a política dos povos e comunidades tradicionais realmente começar a validar,
será imprescindível repensar as unidades de conservação integral, especialmente
nos territórios de vida de diversos povos que são os que efetivamente mantêm em
pé a natureza. Se o verdadeiro interesse fosse manter a natureza e não mercantilizá-
la a legislação seria outra, inclusive seria possível recategorizar o PARNA a uma
RESEX.
Os diferentes interesses que conflitam entre a manutenção da natureza e o uso
de recursos naturais implicam na reprodução da vida ou na reprodução do capi-
tal. A diferença fundamental entre a primeira lógica e a outra segunda é que na
última não há possibilidade de coexistência com outras racionalidades. O modo
49 Mais informações, consultar o Relatório de acompanhamento do acidente do navio Vicuña, porto de Paranaguá. Dis-
ponível em: <http://www.neivoberaldin.com.br/downloads/naviovicuna-relatorio.pdf>.
50 Para mais informações, consultar o site da Campanha: <http://peloterritoriopesqueiro.blogspot.com.br/>

65
de produção e consum(ism)o capitalista é perverso e avassalador. Nega qualquer
outro modo de vida que não participe do círculo vicioso da acumulação de capital. A
lógica de sustentação é justamente privar, des-envolver, negar, mercantilizar todas
as esferas da vida.
Uma possível saída diante do panorama de conflitos posto parece ser r-existin-
do, se organizando socialmente e se envolvendo em modos de vida, de ser/fazer que
não busquem a cobiça, a privação, o individualismo, um como único caminho a ser
seguido. Provavelmente não haja “a” resposta, mas um leque de possibilidades que
se abrem quando se propõem novas experiências, caminhos a serem percorridos.

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68
Da sustentabilidade manifesta à dominação latente: cartografififfiias
participativas e conflffllitos territoriais

Letícia Ayumi Duarte51


Marcelo Cunha Varella52

Resumo

O presente estudo visa fazer uma análise sobre os processos metodológicos


empregados nos estudos cartográficos realizados na comunidade de Barbados,
encomendados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio) como subsídio ao Plano de Manejo do Parque Nacional de Superagui
(Guaraqueçaba-PR). Para tanto, são utilizados, como instrumentos metodológicos
deste artigo, princípios da etnografia e da entrevista semiestruturada, além de re-
visão bibliográfica. O artigo vale-se, ainda, das seguintes categorias teóricas: terri-
tório, territorialidade específica e discurso. Concluímos que o processo cartográfico
não teve como fim permitir a resolução do conflito territorial existente na região,
visto que a pretensão do órgão foi tão-somente utilizar as produções cartográfi-
cas participativas meramente como instrumentos administrativos para a gestão do
Parque, sem preocupar-se, de fato, com a compreensão e regularização da territo-
rialidade específica dos grupos afetados pelo protecionismo ambiental da referida
Unidade de Conservação (UC).

Notas para uma leitura sobre a realidade da comunidade de Barba-


dos (PR).

O objetivo central deste artigo é discutir as latentes nuances políticas que per-

51 Doutoranda em Geografia na Universidade Federal do Paraná – lecayumi@hotmail.com


52 Professor substituto de Geoprocessamento na Universidade Federal do Paraná (Setor Litoral) e doutorando em Geo-
grafia na mesma instituição – mvarella@hotmail.com

69
mearam os estudos cartográficos realizados na comunidade de Barbados como fun-
damento ao Plano de Manejo do Parque Nacional do Superagui (PNS), em Gua-
raqueçaba, no Estado do Paraná, a partir da análise de dados colhidos durante o
estudo que embasou a dissertação de mestrado de um dos autores e cujo conteú-
do possuía um caráter territorial, baseado no método etnográfico e em entrevis-
ta semiestruturada com um dos gestores do Parque.
Sem querer desviar o foco do tema central deste estudo, julgamos necessário
fazer um breve esclarecimento quanto a alguns princípios que norteiam a discussão
aqui proposta.
Salientamos que não é nossa intenção posicionarmo-nos contra as discussões
científicas que se prontificam a estudar as características e/ou a diminuição dos
impactos ambientais causados pela ação antrópica em Áreas Naturais Protegi-
das - não se nega, aqui, a importância e credibilidade destes estudos. Contudo,
levando-se em consideração que a ciência é vista nas sociedades hodiernas como o
principal instrumento “revelador da verdade”, e considerando-se, também, que sua
produção não possui um caráter de neutralidade (MINAYO, 2001), devemos alertar
quanto a algumas consequências desta tecnocracia aplicada à resolução de conflitos
territoriais entre comunidades autoidentificadas como tradicionais e Unidades de
Conservação.
As leis ambientais acabam vigorando impositivamente acima das leis sociais
locais, recriando culturas e territorialidades específicas. Tal imposição justifica-
se, nesse caso, a partir do conceito da “sustentabilidade”, apreciado como um dos
objetivos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC - Lei Federal
9985/2000). Para a citada lei, é sustentável aquele uso que é socialmente justo, eco-
nomicamente viável e que garante a perenidade dos recursos naturais renováveis
e dos processos ecológicos (art. 2º, inciso XI) - assim, sempre que possível, os ge-
stores das UCs devem assegurar a “sustentabilidade econômica” das Unidades (art.
5º, inciso VI) a partir dos recursos naturais (art. 4º, inciso IV) - e não das comuni-
dades que tem seus territórios tradicionalmente ocupados por UCs.
Tal “sustentabilidade” e “Desenvolvimento Sustentável” apresentados na lei são
pautados no tripé “economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente
correto” - e este, por sua vez, traz consigo latentes verdades do modelo de desen-
volvimento dominante, que se embasa, entre outras coisas, no modelo capitalista/
industrialista/ consumista (BOFF, 2012, p. 44): “economicamente viável” significa
“lucrar” e, assim, manter a ordem vigente.
Vale lembrar, aqui, as palavras de Almeida (2008a, p. 17) sobre a utilização
de conceitos científicos: estes não podem ser frigorificados, ou seja, não podem
ter uma definição pré-determinada, como se fossem consensuais, neutros e lidos
em eterna sinonímia pelos pesquisadores. Os conceitos científicos não têm uma
definição, mas, do contrário, assumem significados específicos para cada cientista
que reivindica para si a verdade sobre um determinado assunto - destarte, os con-
ceitos são sempre passíveis à contestação.
Neste sentido, antes de tratar sobre a sustentabilidade ou não de um grupo so-
cial que está em conflito territorial com uma UC, deve-se ter em mente quais são as
pretensões dos pesquisadores que arvoram discursivamente a “verdade científica”
sobre o que é ser “sustentável” - e de como, a partir disso, assumem para si o direito

70
e o poder de ditar como usar o território de acordo com suas convicções.
Como já afirmou Varella (2013, p. 190), o conceito da sustentabilidade pode “pro-
var” que empresas como a gigante suíça Eternit agem em prol do Desenvolvimento
Sustentável: algo extremamente contestável, uma vez que a empresa é proibida de
atuar em determinados países da Europa, dado o comprovado impacto ambiental
que ela gera. Por outro lado, o mesmo conceito pode aferir um caráter de “insus-
tentáveis” às diversas comunidades que se autoidentificam por identidades cole-
tivas que estão em conflito com Áreas Naturais Protegidas. Ainda que não se diga
isto de maneira explícita, muitas das proibições (diretas e indiretas) que sofrem
as comunidades que vivenciam este tipo de conflito provêm da aplicação (justifi-
cativa) genérica do discurso hegemônico sobre o que é sustentável (ignorando as
possibilidades dos grupos sociais contribuírem – o que muitas vezes já ocorre – na
conservação ambiental).
Em Barbados, comunidade autoidentificada como tradicional de Guaraqueçaba,
uma nova lógica de uso e apropriação territorial vem sendo imposta por agentes
externos a partir da aplicação do discurso hegemônico da sustentabilidade - o que,
por sua vez, vem desencadeando um complexo conflito territorial. Uma das princi-
pais causas deste conflito vem a ser o próprio Parque Nacional de Superagui, que se
manteve 24 anos sem um Plano de Manejo. Segundo Duarte (2013), mesmo com a
ausência deste documento, moradores de Barbados relataram que diversas práti-
cas tradicionais foram afetadas ou proibidas (formal ou informalmente) desde o
advento da Unidade de Conservação.

Conceitos norteadores

Apresentamos os seguintes conceitos teóricos como norteadores para nossa


linha de pensamento: território, territorialidade específica e discurso.
Para Santos (1997), o “espaço” é apenas uma categoria abstrata, sem delimi-
tações físicas determinadas. O “espaço” apresenta-se genericamente como o palco
onde acontecem as manifestações naturais, sociais e geográficas, de maneira con-
junta e indissociável (SANTOS, 1997, p. 27). Para o autor, nenhuma sociedade pode
existir independente da natureza/espaço (SANTOS, 1982), ou seja, “o conteúdo (a
sociedade) não é independente da forma (os objetos geográficos)” (SANTOS, 1997,
p. 27). Neste sentido, tudo que é incorporado pela sociedade acaba também sendo
materializado no espaço geográfico.
O território, por sua vez, diz respeito à materialização espacial do poder: cor-
responde às frações do espaço que estão sobre o controle de um grupo social,
que determina as normas e o funcionamento interno de uso e ocupação do solo.
A categoria teórica “território”, enfim, diz respeito ao espaço vivido e apropriado
(usado e ocupado) pelos seres humanos. Souza (2005, p. 99), contudo, adverte:

Não é só o espaço em seu sentido material que condiciona as


relações sociais! Também as relações de poder projetadas no es-
paço (espaço enquanto território) e os valores simbólicos e culturais
inscritos no espaço (espaço vivido e sentido, dotado de significado

71
pelos que nele vivem), tudo isso serve de referencia paras as relações
sociais: barreiras ou fronteiras físicas ou imaginárias (SOUZA,
2005, p. 99).

Os lugares, enfim, estão conectados dentro do espaço social - e, assim, não se


pode esquecer que a relação homem-território não obedece tão-somente à lógica
local, visto que recebe influencias diretas de decisões externas. O poder, deve-se
lembrar, é e não é local: é local porque nunca é global; mas não é local, porque
nunca é localizável (DELEUZE, 1988:36).
A segunda categoria teórica essencial a este estudo é a territorialidade específica,
cujo significado é dado por Almeida:

[tratam-se das] delimitações físicas de determinadas uni-


dades sociais que compõem os meandros de territórios etnica-
mente configurados. As “territorialidades específicas” [...] podem
ser consideradas, portanto, como resultantes de diferentes proces-
sos sociais de territorialização e como delimitando dinamicamente
terras de pertencimento coletivo que convergem para um território
(ALMEIDA, 2008b, p. 29, grifo nosso).

À medida que os grupos sociais se apropriam e modificam determinados


fragmentos do quadro natural, o espaço, pela dialética e por não ser um palco inerte,
também determina a dinâmica das sociedades - ou seja: conforme as sociedades
produzem suas territorialidades específicas em um lugar, o território produz, con-
comitantemente, culturas específicas. Atualmente, como afirma Almeida (2008a,
p. 82), o governo brasileiro vem tentando buscar figuras de direito que sejam mais
adequadas a tais realidades sociais e identitárias. Destarte, populações tradicionais
que eram ignoradas nos mapeamentos dos órgãos públicos, como se suas territori-
alidades específicas fossem meros espaços naturais, passam a lutar por direitos no
interior do Estado: este processo pode ser denominado “politização da natureza”.
O terceiro conceito importante utilizado para este estudo diz respeito à catego-
ria teórica do “discurso”, defendida por Foucault (2011, p. 53) como sendo “uma
violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo o
caso”. Em outras palavras, o discurso não é somente a tradução em palavras das lu-
tas e/ou dos sistemas de dominação - ainda mais, representa o próprio motivo pelo
que se luta: “o poder do qual nós queremos nos apoderar” (FOUCAULT, 2011, p.
10). Por isso, para o autor, o discurso, em toda a sociedade, é produzido, controla-
do, selecionado, organizado e redistribuído segundo um determinado número de
procedimentos que têm por fim “conjurar seus poderes e perigos, dominar seu ac-
ontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT,
2011, p. 09). Ao organizarem a realidade, os discursos impõem uma ordem subja-
cente, que, dentre outras coisas, separa a sociedade a partir de determinados con-
ceitos – aqui, o discurso que se lerá será o da sustentabilidade, reificado nos ter-
mos das leis ambientais (como o SNUC). Mais que encontrar um significado oculto,
quer-se compreender as consequências diretas da aplicação deste discurso sobre a
realidade.
Por fim, como última categoria teórica, trazemos a ideia do “discurso hegemôni-
co de sustentabilidade”: queremos dizer, com isto, que o discurso sobre a temática
72
ambiental no Brasil é tratado a partir das premissas do “Desenvolvimento Susten-
tável” que, por sua vez, enuncia de maneira sempre questionável a possibilidade da
congregação entre a manutenção do capitalismo (dado no crescimento econômico,
ou seja, o lucro implícito na máxima “economicamente viável”) e a justiça socio-
ambiental53 – concordamos com Acselrad (2001), que afirma não haver uma úni-
ca matriz discursiva possível sobre o “Desenvolvimento Sustentável”. Contudo,
acreditamos que suas lacunas têm sido preenchidas, em muitos casos, não para se
buscar uma solução aos problemas postos pelo Desenvolvimento Econômico, mas,
sim, para conciliar este a um novo discurso que o justifica. Tal discurso funciona,
nestes casos, como instrumento de controle dos corpos, almas e territórios, justifi-
cados pela “sustentabilidade” de uma região: dominar o discurso, enfim, reflete em
dominar as práticas em uma determinada região do território.

Aspectos metodológicos

A ciência, assim como proposto inicialmente sobre os conceitos científicos, não


é consensual ou neutra. Sua construção é produzida socialmente e, assim, submete-
se a um teor ideológico na qual ela é tanto produto como produtora. A ciência per-
mite o estudo de uma determinada realidade a partir de um dado método de análise
e se realiza em um momento histórico específico. Para garantir a confiabilidade nos
dados produzidos cientificamente é imprescindível explicitar com clareza os per-
cursos de cada pesquisa e indicar opções metodológicas uma vez que essas escolhas
e estratégias influenciam diretamente nos resultados alcançados.
De acordo com a necessidade de compreensão acerca o objeto de estudo, optamos
pela abordagem qualitativa que propicia, segundo Goldenberg (1999) e Haguette
(2005), uma aproximação em relação a dinâmica, origem e justificativa dos fenô-
menos sociais. Estruturamos o estudo, primeiramente, em um levantamento teórico
temático embasado em pesquisas bibliográficas e documentais e, posteriormente,
um levantamento empírico inspirado no método etnográfico. A vivência da cultura
estudada buscando captar a significação que os indivíduos dão aos seus compor-
tamentos para além de uma leitura dos aspectos exteriores de um grupo social é o
que Laplantine (1993) define como a etnografia. Geertz (1989) complementa sobre
a perspectiva etnográfica caracterizando-a como uma descrição densa de estruturas
conceituais complexas e que supõe a diferença

[...] que surge nas ciências experimentais ou observacionais entre


“descrição” e “explicação” [que] aqui aparece como sendo, de forma
ainda mais relativa, entre “inscrição” (“descrição densa”) e “especifi-
cação” (“diagnose”) – entre anotar o significado que as ações sociais
particulares têm para os atores cujas ações elas são e afirmar, tão
explicitamente quanto nos for possível, o que o conhecimento assim
atingido demonstra sobre a sociedade na qual é encontrado e, além
disso, sobre a vida social como tal. [...] Em etnografia o dever da
teoria é fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso o que o
53 Não se quer, com isto, afirmar que exista um discurso homogêneo no globo sobre a sustentabilidade, mas, do con-
trário, que a existência de um discurso hegemônico faz-se a partir de regras variáveis e facultativas, de maneira que se
pode definir regularidades, e não homogeneidades (DELEUZE, 1988, p. 17).

73
ato simbólico tem a dizer sobre ele mesmo – isto é, sobre o papel da
cultura na vida humana (GEERTZ, 1989, p. 37).

A presente pesquisa conta com dados coletados desde o ano de 2009, e teve
como instrumentos de pesquisa a observação participante, diários de campo, en-
trevistas semiestruturadas e mapeamentos temáticos. Entendendo que para captar
o sentido dos acontecimentos e dos discursos sociais dos moradores locais era
necessário “estar lá”, no cotidiano da comunidade estudada, como ressalta Geertz
(1989). A permanência em Barbados ocorreu em cinco visitas curtas (ficando na co-
munidade entre quatro e nove dias) e uma visita prolongada (de aproximadamente
três meses) ao longo dos anos de 2011 e 2012 (período de elaboração da dissertação
de um dos autores deste artigo). As visitas anteriores, desde o ano de 2009, tiveram
duração entre dois e quinze dias; no ano de 2013 realizaram-se duas visitas de qua-
tro dias para a atualização dos dados. Em 2014 foram realizadas visitas mensais
(com duração de dois dias).
O universo de pesquisa refere-se às comunidades tradicionais que têm suas
territorialidades específicas atingidas pelo “discurso hegemônico da sustentabili-
dade”, no Estado do Paraná, região Sul do Brasil, e o recorte do objeto consiste na
comunidade de Barbados, localizada no interior do Parque Nacional do Superagui,
situada na baía de Pinheiros.
Barbados possui, em média, 69 moradores, divididos em 19 famílias. Foram re-
alizadas entrevistas com a gestora do Parque, com representantes de 12 famílias
de Barbados, além de conversas informais com os moradores de vilas vizinhas (em
especial com aqueles mobilizados em torno do enfrentamento ao PNS). Dentre os
momentos da pesquisa em campo, destacamos a observação que fizemos da primei-
ra reunião dos moradores para fazer o mapeamento coletivo solicitado pelo ICMBio
para fundamentar o Plano de Manejo e a reunião promovida pelos moradores, de-
nominada de “Encontro sobre a Violação de Direitos Humanos Provocados pelos
Parques Nacionais em Territórios de Comunidades Caiçaras e Pescadores e Pes-
cadoras Artesanais no Paraná” – esta última será mais frisada no decorrer deste
artigo.

Discursos sobre o território: notas sobre os estudos preliminares do


Plano de Manejo do PNS

Diversos autores já abordaram a temática que envolve as UCs em Guaraqueça-


ba e sua relação com as comunidades locais, como Vivekananda (2001), Lourei-
ro (2002), Teixeira (2003, 2004) Kasseboehmer (2007), Uejima (2009), Bazzo
(2010), Kashiwagi (2011), Glass (2012), Duarte (2013). Esta última autora relatou
o processo sócio-histórico da proteção ambiental no município e suas consequên-
cias na reprodução social de grupos locais. A autora identificou que parte das trans-
formações culturais das comunidades locais são apontadas pelos moradores como
consequências das interpretações e aplicações da legislação ambiental - ou seja: por
controle externo de sua cultura e de sua territorialidade específica.
A título de exemplificação do que foi citado no parágrafo anterior, podemos sali-
entar a proibição da técnica de pesca tradicional denominada de “cerco” no Estado

74
do Paraná: ora, como lembra Adams (2000), o próprio termo que dá origem ao
nome “caiçara” (como se autoidentificam parte dos moradores de Barbados) advém
do tupi guarani “Caá-içara”, que diz respeito à prática do cerco. Ou seja, umas das
principais práticas fundantes da cultura em questão é proibida e criminalizada por
uma imposição exterior às lógicas locais, pautada no discurso hegemônico da sus-
tentabilidade.
Outra questão polêmica refere-se ao cultivo de roças de subsistência. De acordo
com o SNUC o objetivo básico de um Parque Nacional é o de preservar os “ecos-
sistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica”, permitindo-se
apenas o desenvolvimento de pesquisas científicas, de atividades de educação am-
biental, de recreação e de turismo ecológico (Art. 11 da Lei 9.985 de 2000). Seg-
undo essa mesma lei (parágrafo 1º do Art. 11), por ser de posse e domínio públicos,
deve ocorrer a desapropriação de áreas particulares inclusas em seus limites. O
estabelecimento do Parque, por si só, impede o uso direto dos recursos, como o
cultivo de roças ou produção artesanal de determinados objetos (como canoas e re-
mos), prevendo, portanto, não só a interrupção de determinadas atividades, como,
também, a retirada das populações que poderiam desenvolvê-las.
Diversas outras práticas culturais foram afetadas direta e indiretamente pelo
estabelecimento da UC, como é o caso do fandango, dos mutirões e do extrativismo.
É importante lembrar que as práticas citadas não estão “desaparecendo esponta-
neamente” (Duarte, 2013), tampouco foram extintas: a modificação destas práticas
são consequências do processo sócio-histórico atual, consequência de outras causas
e eventualidades.
Duarte (2013) aponta que o conflito territorial local tem gerado uma articulação
entre os moradores das comunidades do interior e entorno da UC, que passam a
adotar estratégias de enfrentamento à questão, através de práticas como o boicote
coletivo ao estudo do Plano de Manejo e do Conselho Gestor da UC. Além disso,
passaram a desenvolver algumas de suas práticas (hoje criminalizadas) de forma
escondida.
Foi em meio a este turbulento processo de conflito territorial que o processo de
cartografia que aqui será relatado ocorreu, ainda no ano de 2012. Em meados deste
ano, sem grandes explicações, a comunidade de Barbados recebeu pessoalmente de
funcionários do ICMBio um mapa da região que, segundo os próprios moradores,
deveria ser preenchido coletivamente pela comunidade, de maneira a mapear todos
os usos territoriais que os moradores faziam, a fim de regularizar tais atividades no
Plano de Manejo da UC.
Durante o primeiro encontro para o mapeamento da comunidade, o qual par-
ticipamos como observadores, os moradores apresentaram dificuldades em inter-
pretar e preencher a carta do ICMBio - e isto se deu por diversos fatores como,
por exemplo, pela ausência de uma orientação sobre o que e como fazê-lo, como
interpretá-lo (localizar objetos espaciais) e preenchê-lo.
Outro aspecto que intrigou os moradores foi a ausência de algumas vilas no
mapa: para alguns moradores isto poderia ser estratégico, a fim de se criar a im-
pressão de um “vazio demográfico” - fenômeno este já identificado em outros lu-
gares por Almeida (2008a, p. 33). Vale frisar que um mapa é sempre um recorte e
um discurso sobre o mundo e, por isso, visa apresentar uma realidade a partir de

75
um documento técnico e científico – trata-se, portanto, de um discurso oficial que
visa retratar a própria realidade do local.
Dados os empecilhos encontrados, a comunidade decidiu e produziu, coletiva
e independentemente do órgão e dos pesquisadores, uma maquete de Barbados.
Julgaram que, assim, seria mais fácil apontar seus usos territoriais naquele instru-
mento que em um mapa: assim, poderiam animar (ou seja, explicitar os objetos
mapeados) de maneira dinâmica, à medida que a explicassem verbalmente aos
gestores do Parque.
Apesar deste processo, a equipe gestora dos estudos preliminares da UC optou
por outras estratégias “complementares” de mapeamento - a própria gestora nos
explicou em entrevista que depois deste mapeamento do uso e ocupação do solo,
houve um segundo mapeamento (realizado por uma bióloga) baseado no que a
gestora denominou de “mapa falado”. Segundo ela, foram produzidos dois mapas:
“[um mapeamento era para] falar sobre as coisas que eles têm orgulho e localizá-
las, como a paisagem, rio, manguezal. O outro era dos problemas [...]” (Guadalupe
Vivekananda em entrevista concedida em 2012).
De toda a forma, quando os estudos preliminares que foram encomendados pelo
ICMBio para servirem de subsídio ao Plano de Manejo do Parque foram entregues
aos moradores e ao público em geral, pelo menos três fatos chamaram nossa
atenção: 1) os estudos não apresentavam os mapas – nem os produzidos pelos mo-
radores (que, ainda que não possuíssem detalhes técnicos, como escala ou uso de
equipamentos de localização por satélite, apresentavam ricos detalhes sobre o uso e
ocupação do solo de parte do PNS), nem os produzidos pelos técnicos contratados:
isto, claro, impede uma real análise crítica do documento, uma vez que os mapas
do Plano de Manejo ditarão o uso territorial da UC; 2) os discursos dos moradores
não foram relatados: não se encontra, nos estudos preliminares, que tanto arvoram
o título de “participativo”, nenhuma menção ao processo de automapeamento pro-
duzido pela comunidade de Barbados: não se trata apenas de ignorar o produto (a
maquete), mas, também, de tornar invisível o próprio processo de politização da
natureza que ali acontece – ou seja, ignora-se o processo de mobilização política e
identitária dos moradores Barbados, que, atualmente, apresenta uma organização
social em torno da defesa de suas práticas territoriais tradicionais: é por isso que
em dezembro de 2013 aconteceu uma reunião organizada pelos moradores atingi-
dos pelo PNS, envolvendo mais de 200 moradores54. A intenção do encontro era,
resumidamente, tratar sobre os conflitos territoriais advindos do PNS; 3) as conse-
quências da participação local nos estudos preliminares - que fora resumida a uma
tutela. A prova maior disso é o fato do estudo ter ignorado as propostas elaboradas
pelos moradores diretamente afetados pelo PNS – ao invés da “participação” en-
volver os moradores como sujeitos da pesquisa, foram vistos/utilizados como ob-
jetos de pesquisa. Os dados extraídos deles foram (e serão) utilizados para se fazer
(direta ou indiretamente) a gestão do território da UC - incluindo, aqui, espaço, re-
cursos naturais (fauna e flora) e as próprias populações humanas - mas não foi in-
corporada ou sequer questionada a opinião dos moradores acerca suas demandas.
Ainda tratando da reunião de dezembro de 2013, cita-se que por se sentirem
54 Encontro sobre a Violação de Direitos Humanos Provocados pelos Parques Nacionais em Territórios de Comunidades
Caiçaras e Pescadores e Pescadoras Artesanais no Paraná, ocorrido na Ilha de Superagui, em Guaraqueçaba-PR.

76
disciplinados por estudos científicos que não dominavam, os moradores buscaram
apoio de alguns pesquisadores e de algumas universidades para tentar contrapor
os estudos preliminares do ICMBio – 20 pesquisadores se uniram para realizar
uma análise crítica do documento, a fim de demonstrar as inconsistências teóricas
e metodológicas dos estudos. Além disso, os pesquisadores acionados pelos mora-
dores realizaram análises dos documentos visando possibilitar uma tradução da
linguagem acadêmica e técnica para uma mais acessível aos moradores, uma vez
que grupos de diferentes comunidades reclamavam não compreender tais docu-
mentos e se mostravam preocupados com os conteúdos que seriam validados sem o
seu conhecimento pleno. Estas e outras críticas foram repassadas diretamente aos
gestores do PNS durante o evento de dezembro de 2013 (citado no parágrafo aci-
ma), juntamente com um abaixo-assinado com mais de 450 assinaturas de comuni-
tários que se autoidentificavam como pescadores tradicionais e caiçaras. No evento,
ao cabo de seu fim, fora produzida uma “Carta aberta à sociedade brasileira”, onde
podia se ler, entre outras coisas:

Estamos organizados para denunciar o preconceito e o descaso


sobre nossas comunidades tradicionais que tem caracterizado as
ações da gestão do ICMBio e outros órgãos ambientais do Paraná, ao
criminalizar nossas comunidades e impedir o avanço de iniciativas e
entendimentos baseados no diálogo democrático, uma vez que nosso
interesse é verdadeiramente participar da elaboração do Plano de
Manejo do PNS, para tanto o ICMBio necessita reconhecer nossos
direitos territoriais (trecho da Carta aberta à sociedade brasileira
elaborada pelo Movimento dos Pescadores e Pescadoras do Litoral
do Paraná - MOPEAR e Movimento dos Pescadores e Pescadoras Ar-
tesanais do Brasil - MPP em 2013).

Percebe-se, no trecho acima, que o conflito territorial existe na percepção dos


moradores – e isto já havia sido relatado em outro momento pelo MOPEAR, du-
rante o processo de automapeamento feito pelos moradores da Vila de Superagui,
no projeto Nova Cartografia Social, em 2010. Este mapeamento, qual aconteceu
com o de Barbados, fora ignorado pelos estudos preliminares do Plano de Manejo.
A fim de fazer valer a ordem imposta pela UC para os moradores locais, os gestores
utilizam um discurso coercivo que visa contextualizar o conflito territorial do PNS
a partir da incompatibilidade dos moradores em viver em seu próprio território. A
fim de se exemplificar isto, cita-se a fala de um membro da gestão da UC:

eu acho que é complicado [existirem pessoas dentro do Parque


Nacional], porque se não tivessem pessoas naqueles ambientes, não
se precisaria levar energia elétrica e toda infra-estrutura de um
modo geral. Mas a gente conseguiu observar que dá, sim, para con-
viver: quando não se tem outra solução, você tem que se adaptar à
realidade e tentar fazer algo bom. De toda forma, ali isto só está sen-
do compatível porque eles [moradores] são pescadores - se tivessem
atividades extrativistas, como existe em outras áreas, aí seria incom-
patível (Guadalupe Vivekananda em entrevista concedida em 2012).

77
A gestora posiciona-se à favor de um protecionismo ambiental regulado pelas
leis reificadas – assim, a presença humana em um Parque Nacional só pode ser vista
como um empecilho. Nota-se que, em geral, se ignora o próprio processo histórico
de surgimento da UC e a toma como um fato dado: encarada como um processo,
pode-se afirmar que o conflito não é da comunidade com o Parque (os moradores,
alias, não se colocam contra a proteção ambiental), mas, sim, do Parque com a co-
munidade (que, de maneira preconceituosa, impede ou considera como negativa a
existência dessas comunidades em seu interior).
Os estudos preliminares do Plano de Manejo apresentam outra característica
marcante: tratam a experiência da identidade coletiva (e, consequentemente, a for-
ma de construir uma territorialidade específica e uma cultura específica) de manei-
ra também tutelada, explicitando o discurso hegemônico da sustentabilidade que
ali se impõe. Neste caso, o ponto de apoio de tal discurso se dá no próprio SNUC:
a permanência da comunidade de Barbados acontece a partir do disciplinamento
desta à atividades condizentes com as premissas do PNS. Indiferente à autoiden-
tificação e à identidade territorial da comunidade, esta (e outras) são induzidas a
terem sua existência material pautada em um “turismo ecológico/comunitário/de
base comunitária”: atividade esta preconizada como uma das únicas a poder existir
em um Parque Nacional. Ou seja: nenhuma atividade entra no escopo de discussão
do Plano de Manejo, senão aquelas que o órgão ambiental prevê como possíveis.
Como preconiza o discurso hegemônico da sustentabilidade do PNS, a sustenta-
bilidade da área só é atingível com a viabilização plena do Plano de Manejo que está
sendo elaborado – sustentabilidade, esta, que está diretamente ligada à ação de
manejar o território do Parque e, consequentemente, a territorialidade específica
das populações locais. O controle territorial (material) incide, claro, necessari-
amente sob o controle cultural da população: o Plano de Manejo não definirá so-
mente o que se pode fazer naquele lugar, como, também, que tipo de atividades as
populações poderão realizar ali. Tudo isto, enfim, balizando-se no discurso (cientí-
fico) sobre a sustentabilidade hegemônica.

Análise dos dados

De acordo com os processos atuais, pode-se perceber a mobilização de dois dis-


cursos antagônicos sobre a sustentabilidade da área: de um lado, tem-se a manuten-
ção da realidade e das disciplinas discursivas trazidas pela hegemonia (ou seja, pela
manutenção da ordem vigente) – pautada em leis ambientais, o órgão ambiental
assume uma posição que coage os moradores locais a aceitarem lógicas externas de
uso, ocupação e manutenção do território, em nome da sustentabilidade; por outro
lado, sem se colocar contra a sustentabilidade, as pessoas afetadas por este discurso
se mobilizam para terem suas experiências identitárias e territoriais reconhecidas
pelos órgãos.
Durante a reunião realizada e organizada pelos moradores, já citada neste ar-
tigo, pôde-se perceber que o processo de participação da comunidade nos estudos
foi pífio ou, no mínimo, falho: por diversas ocasiões, os moradores se mostraram
insatisfeitos com os resultados e os procedimentos tomados nos estudos. Muitas
falas tratadas na ocasião sustentavam que alguns moradores sequer sabiam o que

78
se tratava o Plano de Manejo. O fato dos mapas autoproduzidos terem sido ig-
norados apontam para que tipo de participação o Plano de Manejo irá se munir:
daquela que possui menor caráter de espontaneidade e de polêmica – afinal, estas
eram as principais características dos produtos produzidos pelos moradores, visto
que questionavam diretamente as ordens impostas pelo discurso hegemônico da
sustentabilidade travada pelo órgão gestor da UC. Além disso, os estudos ignoram
os processos de mobilização em torno das práticas territoriais do grupo: as falas
dos moradores atingidos pelo PNS nos estudos preliminares resumem-se a citações
indiretas e, em grande medida, são relacionados a uma prática de turismo tute-
lado pelo órgão – assim, tem-se a impressão que esta atividade é prioridade para o
grupo.
Por fim, acreditamos que os estudos e proposições referentes ao Plano de Mane-
jo da UC enveredam à gestão dos conflitos existentes (ou seja, não discutem os
conflitos existentes, mas, sim, tentam modular a realidade e os moradores, de ma-
neira a inseri-los na realidade legal que se impõe sobre eles), de maneira que as
populações locais continuarão submetidas às imposições de um controle territorial
(e, assim, da própria vida material e imaterial) exógeno, embasado, por sua vez,
no discurso científico sobre a sustentabilidade hegemônica. A partir dos discursos
acerca a suposta busca pela “sustentabilidade”, o órgão gestor centraliza as decisões
territoriais locais - modificando não só a territorialidade específica das comuni-
dades que habitam o local onde o Parque instaurou-se, como, também, a própria
cultura da população em questão.
Neste sentido, acreditamos que a produção dos “estudos cartográficos” partici-
pativos realizados em Barbados, que tiveram origem de uma necessidade exógena
(leia-se: exigência do ICMBio), não serviu como um instrumento para uma reso-
lução real dos conflitos territoriais enfrentados naquele lugar: quando os mora-
dores apresentaram um discurso de práticas territoriais incompatíveis à UC, estes
dados simplesmente foram deixados de fora dos estudos, como se nunca tivessem
sido exigidos ou realizados. Com isto, tanto o processo quanto os produtos desta
politização da natureza vão sendo perdidos e, com isto, diminui-se cada vez mais
a possibilidade de uma discussão franca e democrática sobre a gestão de um ter-
ritório tradicionalmente ocupado e atingido por um Parque Nacional.
O desenrolar dos processos de mapeamento para os estudos do Plano de Manejo
não tiveram como premissa uma discussão efetiva sobre o uso e apropriação do
território, sequer sobre seus recursos. Ora, o estudo tinha apenas duas finalidades
claras: fornecer subsídios para a gestão e controle do território da UC; e para, no
máximo, servir de subsídio a possível criação de uma regionalização específica à
comunidade, como uma “zona histórico-cultural”, que possuiria, como fim maior,
novamente, o controle da população naquele território.
Além disso, Souza (2007), em estudo sobre os conflitos territoriais enfrentados
pelos faxinalenses, observou que a elaboração de leis e políticas públicas que não
tornavam explícitas a existência do grupo étnico mobilizado acabaram sendo insu-
ficientes para resolver as questões fundiárias e os conflitos do grupo, visto que tais
medidas mantinham “na invisibilidade o sujeito coletivo e o contexto em que nele
atuam e se manifestam” (SOUZA, 2007, p. 577).
Um dos moradores locais faz a crítica sobre os processos participativos para a

79
fundamentação do Plano de Manejo:

Essas categorias de unidade não são feitas pra humanos, então


porque você acha que eles [os gestores] perderiam tempo tentan-
do fazer a comunidade entender o que é isso? [...] Quer fazer con-
servação? Faça, mas conserva tudo, conserva o homem dentro tam-
bém. De que adianta uma floresta inteira preservada, com um país
inteiro pobre? Qual é o sentido disso? De que adianta a gente discutir
o Plano de Manejo se o tipo de UC que a gente tem aqui não nos per-
mite nada? Estamos na discussão errada! (Relato de um morador da
região do Parque Nacional de Superagui extraído da dissertação de
Duarte, 2013, p. 144).

Pode-se notar na fala acima, que o morador da região percebe que a sustentabi-
lidade visada nos Planos de Manejo a partir da participação dos moradores locais
serve tão-somente para fazer o controle social do território: como o SNUC apregoa,
esta categoria de UC não permite sequer a existência de comunidades habitando
seu interior. “Participação”, neste contexto, significa legitimação das ordens exóge-
nas ditadas pelo órgão ambiental e pelos reprodutores do discurso hegemônico da
sustentabilidade.
A participação da comunidade no processo mapeamento poderia ser um dos
principais instrumentos para indicar a sua territorialidade específica, como já sa-
lientamos em outro momento (VARELLA; DUARTE; MARTINS, 2013) - mas vale
destacar, também, aquilo que Acselrad & Coli (2008) alertaram: existe a possibi-
lidade destes mapeamentos participativos servirem como instrumentos de domi-
nação contra os próprios mapeados, caso estes não compreendam técnicas empre-
gadas e a importância de seus usos. Enquanto o instrumento for utilizado por e para
agentes externos, os grupos continuarão sendo meros objetos de pesquisa.
A participação da comunidade em processos cartográficos que não visam servir
às comunidades mapeadas, mas somente à legitimação do controle externo sob o
território, pode dar à comunidade a ilusão de possuir algum controle sobre o terri-
tório. Mas, ao discutir o espaço sem abordar suas nuances sociais (o controle sobre
o território), estes processos podem desviar o foco dos questionamentos sobre a
própria formulação de políticas e distribuição do poder nas sociedades (ACSELRAD
& COLI, 2008, p. 37). Daí deriva a importância de se compreender as diferenças
entre espaço, território e territorialidade específica – categorias estas que foram
renegadas pelo órgão gestor: a única territorialidade percebida e concebida nos
estudos preliminares tem sido aquela que genericamente impede a existência de
comunidades no interior do PNS.
Além disso, se os mapas podem incorporar os conceitos da comunidade, podem,
da mesma forma, “excluir os de quem não participa” (ACSELRAD & COLI, 2008, p.
37). Neste sentido, ressaltamos que a metodologia consagrada e utilizada conven-
cionalmente em estudos de Planos de Manejo de UCs que têm populações em seu
interior, o DRP (Diagnósticos Rurais Participativos, que alega ter como vantagem
a rápida aplicação e que fora incorporado nos estudos preliminares do Plano de
Manejo do PNS), ao pautar-se em representantes da comunidade acaba recortando
e forjando uma “opinião pública” sobre a visão da coletividade. O recorte, em boa

80
verdade, não é o problema: afinal, isto é parte de qualquer estudo científico. Porém,
ao optar por um método de curta duração, os pesquisadores realizaram um estudo
sobre a realidade de cada comunidade em questão de horas: acreditamos que mais
de 20 anos de conflito não podem ser apreendidos em poucas horas de estudos,
feitos por pessoas estranhas à comunidade e que representavam, acima de tudo, o
interesse dos órgãos gestores (lembramos, aqui, que os moradores não se sentiram
representados nos estudos, e que tampouco este levou em consideração a visão e as
propostas espontâneas e polemicas trazidas pelos atingidos pelo PNS).
O valor intrínseco ao Plano de Manejo da referida UC advém do fato de balizar-
se em um discurso científico sobre a sustentabilidade, o que permite ao órgão aferir
o “grau de sustentabilidade” das culturas locais. A partir dessa lógica, estes estudos
servirão para legitimar o poder do órgão gestor da UC para controlar a cultura e
a territorialidade específica dos moradores, que passarão a ter de existir segundo
os preceitos da preservação ambiental compatíveis com os interesses do Parque
Nacional. Em um panorama mais crítico, onde a lei é lida e aplicada tal qual está
prevista, ou seja, como uma noção operacional, a própria permanência das comuni-
dades em seu território tradicionalmente ocupado torna-se inviável.
De maneira geral, pode-se afirmar que o conflito no lugar ainda vem sendo
encarado de maneira alienada: ignoram-se os processos sociais históricos que pro-
duziram o Parque Nacional de Superagui, e enfatiza-se a necessidade de se aplicar
as diretrizes impostas por “estudos científicos”, feitos por pessoas externas ao lu-
gar, que ditam quais os meios e formas mais “sustentáveis” de se usar o território:
mais que gerir o território, o Plano de Manejo do PNS apresenta-se potencialmente
como um discurso hegemônico da sustentabilidade.

Considerações finais

Acreditamos que ao longo do processo de estudos para a elaboração do Plano


de Manejo do Parque Nacional do Superagui, a discussão acerca o controle do ter-
ritório foi renegada, sendo resumida a uma mera descrição espacial e ignorando os
conflitos territoriais. O problema oriundo do fato do Plano de Manejo ter resumido
as questões territoriais a questões espaciais não se resume ao aspecto semântico:
trata-se da fundamentação conceitual. A questão espacial não engloba as nuances
sociais de controle do território - e, assim, o intuito da participação no mapeamento
foi tão-somente adquirir informações pertinentes ao controle do órgão sob a terri-
torialidade específica de Barbados.
Isso nem sempre se dá pela falta de planejamento - pelo contrário: a ausência da
discussão sobre o controle social do espaço serve, justamente, para manter o con-
trole já exercido por alguém. Isto alias, nunca foi a pauta da discussão, uma vez que
o próprio Plano de Manejo vem sendo utilizando (mesmo durante a sua ausência)
como um instrumento para se fazer valer o discurso hegemônico da sustentabili-
dade - discurso este validado por uma abordagem científica e balizada por justifi-
cativas (já aceitas pelo senso comum) de uma sustentabilidade condizente com os
objetivos específicos de cada UC.
Os automapeamentos poderiam ter servido para dar voz às comunidades dentro
dos estudos preliminares, mas a efetivação destas territorialidades muitas vezes

81
“mostra-se dependente da estrutura de poder na qual ele se instaura” (ACSELRAD
& COLI, 2008, p. 40) - como foi o caso dos processos que observamos. Destarte,
é necessário identificar e relacionar as tramas territoriais do espaço mapeado (a
disputa territorial), e as tramas dos sujeitos relacionados ao mapeamento (disputa
cartográfica), para então questionar: “qual é a ação política a que o gesto cartográ-
fico serve efetivamente de suporte?” (ACSELRAD & COLI, 2008, p. 41).
Ao ignorar os automapeamentos, os estudos preliminares perderam dupla-
mente: primeiro, porque acabaram estrategicamente com a perspectiva da comu-
nidade sobre a sobreposição de territorialidades - os dois processos de automapea-
mentos (feitos pelos moradores de Barbados e outro anterior, feito pelos da Vila de
Superagui) apontavam para uma mobilização social em torno dos conflitos territo-
riais que existem na região, frutos do discurso hegemônico da sustentabilidade; em
segundo lugar, os estudos perderam a oportunidade de se munirem de um produto
realmente participativo: o mapa e a maquete produzidos pela comunidade tinham o
potencial de servir como um instrumento jurídico para a regularização de questões
fundiárias do conflito territorial em questão.
Por fim, concluímos que os mapeamentos participativos ou qualquer outra es-
tratégia semelhante de identificação das territorialidades específicas de comuni-
dades afetadas pelo discurso hegemônico da sustentabilidade só servirão como
instrumentos contra hegemônicos quando deixarem de servir unicamente à repre-
sentação espacial da noção operacional do desenvolvimento sustentável e passarem
a questionar a essência dos processos cartográficos, ou seja, quando tratarem de
fato sobre a democratização dos territórios e o acesso aos recursos.

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85
86
A tutela das plantações industriais de árvores e a resistência camponesa
no município de imbaú - PR55

Roberto Martins de Souza56

Resumo

O discurso socialmente justo e ambientalmente sustentável se tornou o man-


tra do setor de papel e celulose, cujo interesse principal é estruturar sua visão de
desenvolvimento, com interesse de ser a única explicação possível da realidade re-
gional. No entanto, tal pretensão demonstra não resistir a uma aproximação crítica
de seus efeitos socioambientais negativos, quando confrontada com a realidade dos
atingidos pelas plantações industriais de árvores, o que torna seu discurso em uma
peça de ficção nessa região do Paraná. O campo de debates aqui examinado obje-
tiva apresentar discursos e práticas acerca dos efeitos socioambientais produzidos
por este modelo dominante de desenvolvimento, tendo por objeto de análise as
posições contestatórias de agricultores familiares, assentados de reforma agrária,
povos e comunidades tradicionais, que baseiam sua existência social em formas
diferenciadas de produção, trabalho e cultura. No período de um ano e meio, pro-
cedemos a coleta de dados em 12 comunidades rurais no Município de Imbaú - PR,
além de realizarmos 8 oficinas de mapas com a participação dos “Atingidos”. Os
resultados do projeto indicam contradições do discurso empresarial, frente nar-
rativas e registros de seus efeitos nocivos à sociabilidade nas comunidades, suas
práticas culturais e a degradação dos recursos naturais. A execução deste projeto
de extensão pretendeu servir de base para revelar a violação de direitos humanos
fundamentais de grupos sociais denominados de “Atingidos”, ao permitir sua visi-

55 Este artigo é o resultado parcial das discussões empreendidas durante a realização do Projeto de Extensão intitulado
Cartografia Social dos Impactos dos Monocultivos de Eucaliptos no Município de Imbaú – PR. A pesquisa somente foi
possível com apoio da CRADE, IFPR/PROEPI/Diext e dos bolsistas de extensão: Damaris Garces, Gislaine Lacerda,
Suzana Figueirdo e Simeia França.
56 Doutor em Sociologia - Docente Campus Paranaguá – IFPR. Coordenador do Projeto. roberto.souza@ifpr.edu.br

87
bilidade e situação de vulnerabilidade social decorrente de ameaças que assolam às
plurais formas de existência da cidadania no Município e região.

PALAVRAS-CHAVE: Plantações arbóreas; Atingidos; Conflitos ambientais.

Introdução

No mundo todo, o monocultivo industrial de eucaliptos gera inúmeras práticas


lesivas as comunidades rurais, tais como a ocupação de grandes extensões de terra,
a secagem e poluição dos recursos hídricos, bem como a desestruturação dos siste-
mas produtivos tradicionais e condições de vida dos povos tradicionais57 que viviam
anteriormente no lugar.
Na região de Telêmaco Borba, especificamente no Município de Imbaú58, os
agentes empresariais deste setor promovem a mais de meio século mudanças sig-
nificativas das relações entre agricultores familiares e povos tradicionais e o seu
território. Ante o argumento pautado pelo empresariado e reforçado pelos agen-
tes governamentais, de uma pretensa “vocação natural” da região, o que justifi-
caria a contínua ampliação de investimentos – públicos - na expansão do setor,
organizações da sociedade local, em resistência há mais de duas décadas contra
este modelo, solicitaram a realização de uma cartografia social dos conflitos decor-
rentes da desregulamentada e autoritária expansão das plantações de eucaliptos59
no município.
Uma das tarefas iniciais da proposta apontava para o trabalho de desoculta-
mento das formas sociais diferenciadas presentes na região. Desacreditadas em
sua existência econômica, cultural e social, face o domínio dos monocultivos, esses
grupos se veem suprimidos de direitos diferenciados de cidadania, ausentes no ter-
ritório em estudo. De fato, é a ocultação e a assimetria de poder enfrentada por essa
diversidade social a fonte para a violação de direitos humanos relativos a garantias
de seus modos de vida, motivos pelo qual, nos últimos dez anos, se acentuam confli-
tos entre populações locais e o complexo de celulose e papel. Tais conflitualidades,
ainda que não publicizadas, estão na base da formação e agregação da categoria60
emergente sujeitos sociais em Imbaú, autodenominados de “Atingidos” pelo De-
serto Verde.
Diante o exposto, o registro e análise dos conflitos socioambientais, por este
procedimento que associa pesquisa/extensão, intencionou criar condições para a
desnaturalização e problematização do modelo autoritário de desenvolvimento de
plantações industriais arbóreas, que se impõe na região há muitas décadas. Ao tra-
tar oficialmente de uma ação de extensão, interessou-nos desenvolver inicialmente
57 No Município de Imbaú encontram-se terras tradicionalmente ocupadas pelos povos faxinalenses e indígenas.
58 O Município de Imbaú viu em quase duas décadas o incremento da área de plantações industriais de árvores crescer
em mais de 150%.
59 As plantações industriais aqui mencionadas se referem aos monocultivos de eucaliptos e pinus. Entretanto, no Mu-
nicípio de Imbaú, prevalecem as plantações de eucaliptos. Por este motivo, cita-se de modo corrente a expressão “mono-
cultivos de eucaliptos”.
60 O debate que convergiu para essa definição surgiu em uma das oficinas de mapas realizada em julho de 2012. Nela os
participantes, após perceberem a similaridade dos conflitos que as plantações de eucaliptos provocavam em suas comu-
nidades, manifestaram pertencer ao grupo de “Atingidos”, no caso específico, por plantações industriais de eucaliptos. A
partir daí deu-se início a Comissão Regional dos Atingidos pelo Deserto Vede – CRADE.

88
uma relação social de pesquisa com os “Atingidos” pelas plantações arbóreas, a fim
de produzir conhecimentos e disseminar tecnologias apropriadas ao monitoramen-
to dos impactos pelas comunidades afetadas. Durante o período de um ano visita-
mos comunidades e participamos de reuniões com representantes de comunidades
para compreender a dinâmica dos conflitos sociais.
Destaca-se especial atenção as recorrentes violações de direitos fundamentais
evidenciadas pelo conhecimento das realidades localizadas de grupos socialmente
vulneráveis, em situação de injustiça ambiental, uma vez que sua existência social
no território se encontra fortemente ameaçada pelos planos de expansão61 do setor
de papel e celulose na região.

Os Procedimentos da Análise

Para conhecer as distintas posições nesse campo de lutas simbólicas e materi-


ais, estabelecemos o confronto entre os diferentes discursos presentes no campo
socioambiental em análise: de um lado, a versão anunciada pelo modelo domi-
nante, tomada como oficial, que produz efeitos simbólicos e ideológicos capazes de
subverter a realidade social e ambiental, de outro, os agentes portadores de inter-
esses diversos, agrupados na categoria dos “Atingidos” pelos impactos das práticas
produtivas empresariais, em especial, os promovidos pela expansão das plantações
industriais. No primeiro caso62 focalizamos o discurso dos representantes da em-
presa KLABIN Papel e Celulose, do poder público e da mídia, sendo selecionadas e
ordenadas amostras da prática discursiva – escrita -, na forma de relatórios anuais,
boletins, reportagens, entrevistas e documentos da empresa e dos demais partici-
pantes do campo social estudado.
A exposição das contradições, facilitado pelo exercício de comparação entre os
diferentes discursos, o empresarial e dos atingidos, pretendeu servir como uma fer-
ramenta de visibilidade e de legitimação de demandas de comunidades envolvidas
em conflitos territoriais e ambientais ante o processo de expansão capitalista em
escala regional e suas implicações na intensiva exploração e ordenamento dos re-
cursos naturais sobre territórios ocupados pela agricultura familiar e povos tradi-
cionais. Conquanto, reafirmam em seu discurso a insustentabilidade do modelo
dominante, considerando as ameaças à diversidade dos arranjos sociais, culturais e
produtivos locais e, a materializam seus conhecimentos na aprendizagem dos pro-
cedimentos de georreferenciamento - GPS, imagens, fotografias - na qualidade de
tecnologias de controle social utilizadas para diagnosticar, planejar e democratizar
o acesso ao planejamento territorial, tanto quanto, diminuir a assimetria de poder
entre agentes e redes que desenvolvem diferentes dinâmicas produtivas e educacio-
nais no território de maneira desigual.
Os procedimentos da cartografia social resultaram nas oficinas de mapeamento,
nas quais as fronteiras entre os sujeitos e o objeto de pesquisa procuram desfazer-
se. Pesquisadores apoiam o processo em que agentes sociais embasados, princi-
palmente, em conhecimentos cartográficos elementares e em seus próprios depoi-
61 No início de 2012, a KLABIN anunciou a construção de sua nova fábrica no município de Ortigueira, adjacente a
Imbaú.
62 No início de 2012, a KLABIN anunciou a construção de sua nova fábrica no município de Ortigueira, adjacente a
Imbaú.

89
mentos para registrar histórias sociais, de trabalho, da relação com o ambiente,
resistência e lutas contra a expansão dos monocultivos arbóreos.
As coordenadas geográficas foram marcadas pela própria comunidade por meio
de GPS, as localidades foram nomeadas e narradas em detalhes, juntamente com os
conflitos e/ou práticas produtivas que ganham forma nas legendas do mapa final.
Os expoentes nesse debate são o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida
(PPGSA - UFAM) e o geógrafo Henri Acselrad (IPPUR – UFRJ). Ambos esclarecem
que nessa forma de mapeamento, há uma interrelação entre as ferramentas tec-
nológicas e os conhecimentos tradicionais. O resultado é uma autodemarcação sufi-
cientemente precisa dos conflitos socioambientais a partir do que denominamos de
processos sociais de territorialização63 narrados pelos agentes sociais “Atingidos”
nas referidas comunidades.
Ao todo foram realizadas 8 “oficinas de mapas” ao longo do ano de 2012, onde
os agentes sociais utilizaram 3 formas de narrativas para exporem os conflitos entre
seus modos de vida e a expansão dos monocultivos: croquis (desenhos), entrevis-
tas e imagens (fotográficas). No entremear das oficinas, foram colhidas imagens
fotográficas e georreferenciados conflitos pelos “Atingidos”, a fim de qualificar o
banco de dados de conflitos de cada uma das comunidades afetadas. Tais dados,
organizados em entrevistas transcritas, imagens e croquis foram coligidos e os ma-
pas reelaborados, segundo revisões dos “Atingidos”. Identifica-se nessa interação
de pesquisa, novos conhecimentos64 sendo produzidos e apropriados pelos agri-
cultores, estudantes – bolsistas - e organizações que são colocadas em confronto
com as informações pretensamente triunfalistas sobre o desenvolvimento da região
produzidas pela empresa e reproduzidas pela mídia e agências governamentais.
No entremear da pesquisa documental e dos procedimentos cartográficos, man-
tivemos vigilância e aproximação crítica através da observação direta e a coleta de
relatos orais a campo, empreendidas ao longo de um ano e meio e, nas mais di-
versas situações de pesquisa e extensão. A metodologia constituiu uma busca de-
liberada pela comparação entre os discursos, na tentativa de exercitar a contra-
dição e a manifestação do antagonismo entre a realidade vivida pelos atingidos e
a publicidade empresarial. Para tanto, o esforço de análise exigiu a decomposição
dos elementos fundamentais presentes nos relatos orais obtidos nas “oficinas de
mapas” e, em visitas realizadas em 12 comunidades rurais, onde foram entrevis-
tados 22 agricultores “Atingidos” pelos monocultivos arbóreos. À confirmação dos
argumentos seguia-se o registro de imagens e coleta de dados georreferenciados
sobre situações conflituosas mencionadas que indicavam a espacialização dos im-
pactos socioambientais relacionados à redução dos espaços sociais na agricultura
camponesa; desestruturação dos sistemas produtivos tradicionais; degradação dos
63 Segundo ALMEIDA (2004) trata-se do processo de reorganização social decorrente de situações de conflito territorial
envolvendo grupos sociais que historicamente se contrapuseram ao modelo agrário exportador, apoiado no monopólio
da terra, no trabalho escravo e em outras formas de imobilização da força de trabalho. No entanto, o processo de ter-
ritorialização é um fenômeno complexo que não deve ser simplesmente considerado como uma imposição exógena e
hegemônica do Estado sobre a diversidade de expressões territoriais. Apesar de seus dispositivos de dominação e de re-
ordenamento da vida desses grupos sociais, ele também é reapropriado e reinterpretado pelos mesmos, que lhe atribuem
64 O conjunto desses dados ganhou o formato de Boletim Informativo n° 1, tendo como autores os próprios participantes
das oficinas de mapas. No dia 06/06/2013 foi realizado evento, intitulado: Seminário Regional sobre Violação dos Direitos
Humanos e as Plantações Arbóreas de Eucaliptos, que contou com a participação de 250 pessoas, momento em que ocor-
reu o lançamento público do Boletim.

90
recursos naturais, em detrimento de outros projetos sócioterritoriais para a região.
A Hegemonia Empresarial e a Resistência Camponesa

Silenciar as histórias sociais e ocultar os sujeitos – atingidos – são regras básicas


do discurso empresarial em análise. Assim como a recorrente produção de infor-
mações de uma realidade social segundo os moldes idealizados pelo discurso da
sustentabilidade. Ao olhar dos atingidos, esses argumentos são uma ficção, quando
o assunto é a realidade das comunidades camponesas. O mapa da ocupação do solo
no Município de Imbaú foi apresentado em períodos – 1990, 2006 e 2011 – o que
permitiu visualizar nas imagens de satélites65, a evolução da área ocupada por plan-
tações industriais no período de 1990 a 2011. A evidência dessas informações serviu
como explicação da intensificação dos conflitos socioambientais e, abriram possi-
bilidades a troca de experiências do grupo sobre os impactos dessas plantações em
suas comunidades, criando condições para a formação de um discurso específico
em torno das práticas de resistência dos atingidos, consoante as tensões entre a
visão empresarial e seus conhecimentos e práticas locais.
Nesse cenário, os monocultivos revelam uma dinâmica acelerada que opera pelo
ordenamento territorial exercendo pressão direta sobre os recursos naturais e as
práticas tradicionais das comunidades, inviabilizadas em seus arranjos sociais, cul-
turais e econômicos. São em geral comunidades de agricultores que sustentam uma
economia de base familiar, – muitas das quais desmanteladas nas últimas duas
décadas pelas plantações industriais - fragilizadas do ponto de vista dos direitos
territoriais, da segurança alimentar, do acesso à terra e a água. Atesta-se nessas
narrativas a aguda aflição e falta de expectativas, dessas comunidades camponesas,
ainda que em situações que se assemelham a confinamentos humanos, represen-
tam o exercício da resistência ao avanço industrial sobre as terras do Município de
Imbaú, e podem ser melhor compreendidas pela análise da Tabela 1.

65 Imagens Lansat 5, 2011 e CBERS 2B, 2009.

91
TABELA1

92
TABELA2

93
TABELA3

94
A despeito do uso das imagens de satélites, como princípio de reflexão crítica do
grupo - demonstração da expansão das plantações de madeira - o exercício com-
parativo entre os diferentes discursos ilustrou as dissonâncias entre o vivenciado
pelas comunidades locais atingidas pelas plantações de madeira e as estratégia de
comunicação empresarial, ressaltando as contradições do modelo que se sustenta
em grande medida na propaganda produzida pelo discurso empresarial pautado
pela suposta eficiência do conceito de “modernização ecológica”66.
Por outro lado, os dados apresentados no mapa dos conflitos confirma as nar-
rativas dos atingidos, visto que, os dados relativos ao avanço das plantações são
inequívocos e expressam com nitidez a evolução dominial do modelo celulose e pa-
pel sobre as comunidades rurais deste município, com área aproximada de 33.000
ha. Em 1990 as plantações de eucaliptos ocupavam 17% da área total. Em 2006,
passaram para cerca de 29%. E, no último levantamento, com imagens de 2011,
demonstram que mais de 40% da área de Imbaú está tomada pelas plantações de
arbóreas exóticas, em especial, eucaliptos.
A primeira observação de alguns participantes nas oficinas de mapas, se refe-
ria a situações de “desaparecimento” e “confinamento” de 9 comunidades rurais
nos últimos 20 anos: KM 222, Charqueada dos Betim, Imbaú dos Prestes, Serra do
Facão, São Geraldo, Charqueadinha, Bairro dos Bueno, Vila dos Crespos e Bairro
Gramado. Acrescenta-se a análise que tais comunidades não são informadas no
mapa oficial do município (Plano Diretor, 2009), ainda que, em visita a campo,
a equipe de pesquisa as tenha constatado, e membros dessas localidades estives-
sem participando das oficinas. Todavia, no confronto com as imagens de satélite é
notório o predomínio no uso do solo pelas plantações industriais de árvores nes-
sas localidades. Denota-se, no entanto, a resistência camponesa pela descrição dos
atingidos e a visualização pelos agentes de pesquisa de pequenas lavouras cercadas
por plantações de eucaliptos, sendo gradualmente substituídas por madeira, guar-
dando forte relação com o processo de desterritorialização dessas comunidades.
Relata-se ainda, de modo geral, uma diminuição acentuada das áreas de uso comum
dessas comunidades, tal como matas e beiras de rios, e até mesmo nascentes, rios e
córregos, que nos últimos dez anos foram comprometidos em sua vazão.
As conseqüências decorrentes desse controle territorial imposto pelo modelo de
papel e celulose foram narradas em tom de denúncia pelos agricultores nas visitas
realizadas em suas comunidades, bem como durante realização das oficinas de ma-
pas, podendo ser conhecidas na sua forma gráfica no mapa acima.
Dentre todas as denuncias aqui arroladas, fato marcante se refere a quatro situ-
ações de conflito: secagem de fontes de d’água, substituição de áreas de produção
de alimentos, casas abandonadas e confinamento das famílias. Todas as comuni-
dades visitadas apresentaram essas ocorrências em suas narrativas, a partir de situ-
ações mencionadas com objetividade e veracidade, sendo muitas delas registradas
em fotos e georreferenciadas. Em muitos casos a constatação foi realizada pelos
próprios pesquisadores a campo, ao serem conduzidos pelos atingidos até a locali-
66 A noção de “modernização ecológica”, segundo Acserald (2000), designa o processo pelo qual as instituições políticas
internalizam preocupações ecológicas no propósito de conciliar o crescimento econômico com a resolução dos proble-
mas ambientais, dando-se ênfase à adaptação tecnológica, à celebração da economia de mercado, à crença na colaboração
e no consenso.

95
zação de nascentes secas e casas abandonadas, que tinham nas suas proximidades
densas plantações de eucaliptos. O paralelo entre os conflitos e suas razões foram
descritos de modo testemunhal, ou seja, os atingidos narravam com precisão de
quem vivenciou a experiência ao descrever a relação de causa e efeito dos impactos
mencionados.

96
MAPA

97
Os Direitos Humanos Violados pelas Plantações Industriais de
Árvores

Modelo de desenvolvimento autoritário, predatório e excludente, amplamente


financiado pela ditadura militar, o complexo celulose e papel sempre guardou es-
treita vinculação com regimes autoritários (DALCOMUNI, 1990; MAGALDI, 1991;
FERREIRA, 2002). Situação que explica de forma recorrente as violações aos direi-
tos humanos provocadas pelos impactos sociais, culturais, econômicos e ambientais
que atingem as comunidades camponesas e povos tradicionais na região, podendo
ser aferidos por meio de diversas formas de registros já citados, que ganham sua
legitimidade pela vocalização e representação cartográfica dos atingidos, somente
possíveis de se constituírem fora do campo ideológico de domínio do setor de papel
e celulose.
Afirma-se que os direitos humanos fundamentais são violados na medida em
que as garantias ao direito à vida, à liberdade, à igualdade e à cultura sofrem im-
pedimentos. Assim, um direito individual – plantar eucaliptos e pinus - não pode
impedir a realização do direito de outros cidadãos, assim como não pode violar os
direitos que são de todos. Cada cidadão tem o direito fundamental à liberdade as-
segurado, no entanto, ele não pode impedir a liberdade dos outros ou então violar
direitos de toda a coletividade, como o direito ao meio ambiente e ao seu modo de
vida. A propriedade privada sobre os recursos da natureza, como os rios, as minas
de água, por exemplo, apesar de estar prevista em leis específicas, não pode violar o
direito ao trabalho, à alimentação adequada, o direito ao meio ambiente e também
o direito aos modos de vida dos povos.
No caso em estudo, trata-se de grupos em condição social de interdito, visto que
encontram cada vez mais limitações territoriais para reproduzir-se física e social-
mente, dado o ritmo descontrolado de expansão das plantações industriais. Importa
ressaltar, que seus diferentes modos de criar, de viver e de expressar-se na condição
de camponeses e povos tradicionais é indissociável do uso sustentável da biodiver-
sidade e dos bens comuns presentes nos territórios tradicionalmente utilizados por
estes grupos, na forma de práticas e técnicas sociais que proporcionam a autogestão
dos territórios, o que na prática, vem garantindo não apenas a sobrevivência de
seus modos de vida, como a conservação e a recuperação dos ecossistemas e da so-
berania alimentar dos territórios em que historicamente estão inseridos.
Pode-se averiguar no decorrer das visitas a campo, e na ocasião das oficinas
de mapas realizadas pelo projeto, manifestações contra diversas situações que
sistematicamente ameaçam seus modos de vida. O que significa dizer, que os dis-
positivos jurídicos constitucionais que deveriam assegurar direitos individuais e
coletivos, ainda não operam abertamente com o reconhecimento de formas difer-
enciadas de organização social, ambiental e cultural de distintos grupos da socie-
dade local. Esse é o caso, por exemplo, dos direitos diferenciados reconhecidos aos
agricultores camponeses e povos tradicionais, mas não assimilados pela burocracia
do Estado ao permanecer operando com adaptações às políticas universalistas, que
hierarquizam direitos ao desconsiderar as peculiaridades dos grupos sociais afeta-
dos pelo modelo hegemônico das plantações industriais de árvores.
Em que pese o poder simbólico desse setor ocultar as realidades sociais locali-

98
zadas, como estratégia de dissimulação do modelo de desenvolvimento, que se pre-
tende sustentável em sua forma discursiva, sua antítese manifestada via cartografia
social pela Comissão regional dos Atingidos pelo Deserto Verde confirma o sofri-
mento das comunidades que veem seu direito a cidadania diferenciada ameaçada
(Cf Constituição Federal art. 215, 216 e 225; Plano Nacional de Direitos Humanos,
Convenção OIT 169). Ou seja, seu modo de criar, de viver e de se expressar na
condição de camponeses e povos tradicionais em consonância as formas distintas
de uso dos recursos naturais encontra-se em condições de poder extremamente
desiguais nos últimos 70 anos, levando ao aguçamento das pressões territoriais e
ao limite o exercício da resistência camponesa para permanecer reproduzindo-se
física e socialmente.
A pressão da racionalidade dominante sobre as outras formas de conhecimento
corresponde a uma situação de colonialismo feito de marginalização, descrédito e
liquidação do que não possa ser reduzido aos imperativos da ordem racionaliza-
dora. Segue-se a um ordenamento do território por meio de incentivos, isenções e
flexibilização ambiental, que tem permitido uma acumulação de capital acelerada,
sem que as populações possam discernir sobre a mudança em seus lugares e suas
vidas, o que significa a completa perda da autonomia política e social sobre seu
destino, restando-lhes acatar as regras do jogo - vender suas terras ou plantar eu-
caliptos – da exclusão social, enquanto estratégia de sobrevivência.

Se nem as prefeituras têm força para mudar esse rumo, que dirá
nois que somo pequeno, sem reconhecimento, sem força. Digo mais,
quantia de gente que vendeu e foi embora, porque não tinha mais o
que fazer com essa situação. (Agricultora Atingida, Jacutinga)

O ocultamento dos conflitos entra em cena com a promoção de estratégias de


publicidade sob slogans verdes de programas ambientais e compromissos com
a responsabilidade social que maquiam a violação aos direitos sociais, culturais,
ambientais e políticos que acarreta. Essa forma de “dizer” o desenvolvimento ao
seu modo, e de tê-lo aceito sem contraditórios, denota a violência simbólica como
uma das principais características desse modelo, qual seja: a produção simbólica
de um discurso que na prática não se efetiva, ao contrário, sua persistência en-
cobre desiguais condições sociais, políticas e econômicas de projetos alternativos
preexistentes na região. Nela, o predomínio das escolhas empresarias se sobrepõe
aos interesses públicos, na medida em que o próprio poder público local e a popu-
lação são embalados pela visão de mundo dirigida por esta ideologia desenvolvi-
mentista, sem compreenderem o seu real significado, são arrebatados em seus di-
reitos fundamentais, sobretudo, as populações camponesas e povos tradicionais,
em razão da incomensurável expansão do capital sobre o território.

Considerações Finais

Chegados a essa etapa do projeto, a análise proposta infere conclusões de que a


hegemonia do modelo de desenvolvimento pautado pelas plantações industriais de
árvores na região de Telêmaco Borba, se garante, dentre outros fatores, pelo con-
vencimento e pela força do discurso empresarial, enquanto estratégia de projeção
99
de sua visão de mundo sobre a realidade regional. Simula, considerando a assime-
tria de condições de poder, uma peça de ficção que omite e oculta a desigualdade e
a exclusão social causada pelo domínio social que impõe há mais de sete décadas
sobre a região.
O descontrole público sobre a expansão das plantações industriais de árvores
tem levado ao limite as estratégias de resistência do campesinato, ao mesmo tempo
em que ameaça os recursos naturais e os privatiza ao dissociar os diferentes grupos
sociais de seu uso, levando ao que o mapa denuncia: o deserto verde.
Ao acionar o léxico difuso e genérico atribuído pela noção de sustentabili-
dade para validar e legitimar suas ações, o discurso ambientalizado pela empresa
mantem-se em posição privilegiada67 em relação aos demais agentes com proje-
tos para o território. Todavia, ao procedermos exercício de comparação entre os
discursos antagônicos, o discurso empresarial explicita fartas contradições na sua
operacionalização, uma vez que a mobilidade dessa forma de capital tem dester-
ritorializado grupos sociais, degradado os recursos naturais e cerceado a realização
de direitos humanos fundamentais, constatados nas verificações a campo: a con-
centração da terra, confinamento humano das comunidades rurais, a degradação
de córregos, rios, nascentes, redução da biodiversidade e conseqüente extinção das
práticas de caça e pesca, sem contar a drástica redução de áreas de produção ali-
mentar e a constatação do aumento do êxodo rural.
O fato é que, as respectivas vozes dos atingidos, antes dispersas, iniciam uma nova
fase de articulação política na região, demonstrado sua capacidade de resistência
através da CRADE, ao negar o caráter irredutível, e nada residual, das assimetrias
de poder que acompanham a diversidade que emerge do território. Dentre os ques-
tionamentos iniciais desta coalizão, que demandou a realização do projeto, tem-se a
realização do Seminário Regional dos Atingidos pelo Deserto Verde e o lançamento
do Boletim Informativo, além da proposta de Lei Municipal de Inciativa Popular
que dispõe sobre o disciplinamento das Plantações Industriais de Árvores.

Referências

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e democracia. In. IBASE/CUT-RJ/IPPURUFRJ. Movimento sindical e defesa do
meio ambiente – o debate internacional. Rio de Janeiro: [s.n.], 2000.

ALMEIDA, A. W. B. Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”,


“castanhais do povo”, faixinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocu-
padas. Alfredo Wagner Berno de Almeida. – 2.ª ed, Manaus: pgsca–ufam, 2004
(Coleção tradição e ordenamento jurídico, v.2).192p.

BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus


Editora, 1996.

67 Ao que tudo indica, esta dominação desdobra-se em vantagens obtidas junto a instituições estatais, financeiras e
de certificação, visto que, a adequação aos “critérios sociais e ambientais” alcançados segundo regras formuladas pelo
mercado de certificação lhe confere essas condições, além é claro, do poder simbólico que opera no campo das relações
políticas, visando atender seus interesses econômicos.

100
DALCOMUNI, S. M. A implantação da Aracruz Celulose no Espírito
Santo – principais interesses em jogo. (Dissertação de Mestrado) em Economia.
Rio de Janeiro: UFRRJ. 1990.

FERREIRA, S.R.B. Da fartura à escassez: a agroindústria da celulose e o


fim dos territórios comunais no Extremo Norte do Espírito Santo (Dissertação de
Mestrado) São Paulo, PPGH – USP, 2002.

MAGALDI, S. Ação do Estado e do grande capital na reestruturação da


atividade econômica: o cultivo florestal e a cadeia madeira-celulose/ papel. Dis-
sertação de Mestrado em Geografia. São Paulo: USP. 1991.

SMARTWOOD. Relatório Klabin – FSC. Resumo Público de Certificação. Agosto


de 2003.

101
102
R-Existência da Comunidade de Agricultores e Pescadores Artesanais dos
Areais da Ribanceira, Imbituba - SC

Aline Miranda Barbosa68


Ezequiel Antonio de Moura69

Há um sonho...
(Valdira da Rocha Farias70)
Há um sonho a se realizar É farinha do mesmo saco
Dos agricultores que lutam Mas esta não vai para a mesa
em adquirir as terras Do agricultor honesto
Para plantar e para colher Que serve na incerteza
De realizar seus sonhos
Em ver seus frutos crescer Tem alguém da grande elite
Querendo nos afastar
É plantando que se colhe Das terras que nos pertence
Assim diz o velho ditado Do direito de plantar
Quem planta boa semente Humildade é nossa arma
Colhe frutos à vontade Por isso vamos lutar
Vai com fartura para a mesa
Do pobre e da alta sociedade Pedir não é feio. Feio é roubar
Por isso quero pedir
Eu só queria saber Para alguém nos ajudar
Porque tanto preconceito A encontrar uma solução
Com os pobres agricultores E nosso sonho realizar
Que lutam por seus direitos
E esperam que um dia Não sou contra o progresso
Tenham um final perfeito Nem daquele que o faz
Que a sua cidade cresça
Mas que não seja capaz
De pisar no mais pequeno
Introdução Em destruir a sua paz

68 Professora do Instituto Federal do Paraná – Campus Paranaguá; aline.barbosa@ifpr.edu.br


69 Professor do Instituto Federal do Paraná – Campus Paranaguá; ezequiel.moura@ifpr.edu.br
70 Agricultora dos Areais da Ribanceira

103
Esta poesia nos parece ser a melhor maneira de iniciar este texto que tem a preten-
são de auxiliar a ecoar a voz de uma comunidade tradicional que vem reivindicando
direitos, enfrentando tensos e intensos conflitos na luta pela terra e pelo território.
A comunidade de Agricultores e Pescadores Artesanais dos Areais da Ribanceira,
Imbituba – SC, vem resistindo historicamente à diversas formas de usurpação das
terras de uso tradicional, através da organização comunitária e da continuidade das
práticas tradicionais mesmo diante do violento processo de avanço da acumulação
por espoliação do capital (Harvey, 2004). Estas formas de resistência representam
uma luta pelo direito de continuar existindo enquanto comunidade, que se materi-
aliza em uma luta pelo reconhecimento do seu território tradicional.
Queremos desta forma, elucidar o processo de luta e r-existência dos Agricul-
tores e Pescadores Artesanais dos Areais da Ribanceira que organizados politica-
mente por meio da afirmação dessa identidade coletiva acionam junto a essa
identidade a própria territorialidade do grupo como forma de resistência e luta por
direitos territoriais, ou seja, a afirmação identitária e territorial configura-se neste
caso como um elemento de r-existência da comunidade. Segundo Porto-Gonçalves
(2008), falar de movimentos de r-existência é falar de movimentos que não lutam
somente para resistirem a determinadas pressões, mas que lutam também por uma
determinada forma de existência, um determinado modo de vida e de produção,
por modos diferenciados de agir e de pensar.
Buscaremos, assim, falar da relação interdependente da existência e resistên-
cia dos agricultores e pescadores dos Areais da Ribanceira, uma vez que a própria
existência do grupo é uma forma de resistência, sobretudo ao modelo de desen-
volvimento hegemônico que vem se estabelecendo na região. Em contrapartida,
essa resistência política em si torna-se um elemento que alimenta a unidade do
grupo e a sua própria existência.
Procuraremos mostrar também como a luta pela terra ganha a dimensão de luta
pelo território nesta comunidade, visto que estes se referem às terras de uso tradi-
cional não apenas como a base material de produção agropecuária, mas também
como a base de produção e reprodução (material e simbólica) da vida da comuni-
dade.

Agricultores e Pescadores Artesanais dos Areais da Ribanceira

A comunidade tradicional de agricultores e pescadores artesanais dos Areais da


Ribanceira está localizada no município de Imbituba, litoral de Santa Catarina. O
termo “areais” faz referência ao solo arenoso e “ribanceira” por se tratar de uma
área de declive, onde o terreno é formado por deposições arenosas cobertas origi-
nalmente por restingas e a altitude diminui gradativamente em direção à linha de
praia. Assim surge a denominação “Areais da Ribanceira” que é também denomi-
nada por diversos membros da comunidade como “barranceira”. A área é formada
por depósitos sedimentares da planície costeira, com o predomínio de vegetação de
restinga e com presença de algumas dunas móveis entremeadas por um mosaico de
roças com cultivos tradicionais. Está situada próxima ao mar e nas proximidades da
lagoa de Ibiraquera e da lagoa do Mirim, fato que possibilitou a combinação entre a
prática da pesca artesanal, extrativismo vegetal e cultivo de roças.

104
A área dos Areais da Ribanceira é utilizada principalmente para o plantio e o
extrativismo vegetal sob a modalidade de uso comum. Desde tempos imemoriais
os locais de moradia da comunidade são distribuídos no entorno dos Areias da
Ribanceira, principalmente nas proximidades do mar e de lagoas para a realização
da pesca artesanal. Contudo, devido à intensificação do processo de urbanização a
partir da década de 1970, os locais de moradia dessa comunidade se transformaram
em áreas urbanas e correspondem atualmente aos seguintes bairros71: Ribanceira,
Divinéia, Aguada, Ribanceira de Baixo, Arroio e Nova Brasília (conforme pode ser
observado no mapa 1). Mesmo com essa mudança, Areais da Ribanceira continuou
sendo o principal local de produção agrícola da comunidade e o uso comum tornou-
se um de seus elementos centrais de r-existência.
Almeida (2008: 133) ressalta que a modalidade de uso comum da terra trata-se
de um aspecto frequentemente ignorado da estrutura agrária brasileira. Afirma que
não se trata de situações nas quais o controle dos recursos básicos é exercido livre e
individualmente por um grupo de pequenos produtores, pois a terra de uso comum
é controlada por seus membros e “tal controle se dá através de normas específicas
instituídas para além do código legal vigente e acatadas, de maneira consensual,
nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares, que
compõem uma unidade social”.

71 Colocamos o nome dos bairros conforme a comunidade denomina e reconhece cada uma dessas localidades. Os
nomes oficialmente reconhecidos pela prefeitura corresponde respectivamente a: Ribanceira, Vila Nova Alvorada, Vila
Alvorada, Vila Esperança, Arroio e Nova Brasília.

105
Mapa 1 - Localização dos Areais da Ribanceira, Imbituba – SC.

106
A trajetória de luta pela terra e pelo território da comunidade tradicional dos
Areais da Ribanceira está atrelada a um processo perverso que transforma terras de
uso comum em terras de domínio de empresas de capital privado. Tal processo se
efetiva a partir de projeções de desenvolvimento calcadas, principalmente, em in-
teresses industriais e portuários e imobiliários, onde se busca “superar” quaisquer
aspectos agrários pelo viés da urbanização e industrialização.
Vale enfatizar que muitos territórios tradicionais são descontínuos, marcados
por vazios aparentes (sistemas rotativos de cultivos de terras com períodos de
pousio, áreas de estuários que são usados pela pesca somente em algumas épocas
do ano, etc.) e, assim, muitas vezes são vistos como “espaços vazios” onde os pro-
jetos hegemônicos se instauram. Contudo, trata-se de territórios tradicionais onde
a ofensiva do capital retira das populações tradicionais o poder real de definir
seu próprio destino. Esta lógica passou a assolar o uso tradicional dos Areias da
Ribanceira, sobretudo a partir da década de 1970 a partir de projeções que visavam
transformar a área em um distrito industrial tornando essas terras em situação de
litígio e que recentemente, no ano de 2010, culminou na instalação da empresa do
grupo Votorantim Cimentos72.
A construção da identidade coletiva de agricultores e pescadores artesanais dos
Areais da Ribanceira emerge diante desse contexto de tensão, de conflitos e carrega
em sua constituição uma dimensão territorial onde o território exerce um impor-
tante papel de aglutinador de dimensões materiais e simbólicas na constituição do
que Haesbaerth (1999) denomina de “identidades territoriais”. A identidade ter-
ritorial é aquela em que o poder simbólico tem como referencial um recorte ou
uma característica espacial, geográfica, que pode resultar na construção de uma
identidade pelo/com o território e que, por outro lado, esse concreto (material) de
dimensão espacial depende de uma apropriação simbólica para a constituição de
um território e de uma identidade territorial. Segundo o autor:

Produto e produtor de identidade, o território não é apenas um


‘ter’, mediador de relações de poder (político-econômico) onde o
domínio sobre parcelas concretas do espaço é sua dimensão mais vi-
sível. O território compõe também o ‘ser’ de cada grupo social, por
mais que sua cartografia seja reticulada, sobreposta ou descontínua
(HAESBAERT, 1999:185).

Assim ocorre com os agricultores e pescadores artesanais abordados neste estu-


do, que evocam o território denominado por eles de Areais da Ribanceira como parte
da identidade do grupo. A evocação dessa base material e simbólica traz consigo a
ideia de ser e pertencer a um território ao qual está atrelada a forma de existência
da própria comunidade enquanto comunidade tradicional. A organização política
dessa comunidade por meio da construção de uma identidade coletiva, de uma
identidade territorial é uma forma de reivindicar não apenas o reconhecimento da
identidade do grupo, como também reivindicar o território.
Território constituído simbolicamente e materialmente por meio de práti-
cas tradicionais desenvolvidas há várias gerações pela comunidade, práticas que
constituem o modo de vida e a territorialidade da comunidade. Nesse sentido,
72 O Grupo Votorantim atua nos segmentos de cimento, metais, energia, siderurgia, celulose, agroindústria e finanças.

107
reivindicar o território é neste caso reivindicar o reconhecimento do modo de vida
e da própria territorialidade do grupo. Afinal, conforme enfatiza Porto-Gonçalves
(2003), a territorialidade precede o território, pois não há um território sem ter-
ritorialidade e que não tenha sido resultado de um processo de territorialização,
Os agricultores e pescadores artesanais dos Areais da Ribanceira constituíram
um conjunto de práticas sociais em que a posse e o usufruto dos bens naturais (ter-
ra, mar, lagoas, vegetação) têm um forte componente comunitário que se distingue
do modelo historicamente legitimado pelo Estado: o modelo de apropriação pri-
vada da natureza, com destaque para a apropriação privada da terra e a exploração
incessante de bens naturais como terra, água, minerais, madeira, etc.

A territorialidade como componente de r-existência dos agricultores


e pescadores artesanais dos areais da ribanceira

A construção coletiva da identidade territorial de agricultores e pescadores ar-


tesanais dos Areais da Ribanceira torna-se um instrumento político que está dire-
tamente relacionado com a forma de r-existir da comunidade. Uma r-existência
que se estabelece em um contexto no qual os conflitos travados não se resumem
somente à luta pela terra como espaço físico de trabalho e de reprodução material
da vida. Trata-se de conflitos travados pela terra e pelo território, pois combinam
a luta pela terra com a luta pela continuidade de seu modo de vida, do modo de ser
agricultor(a) e pescador(a) artesanal dos Areias da Ribanceira.
Esse modo de vida está diretamente vinculado à territorialidade do grupo e as-
sim, a luta pela afirmação e continuidade do modo de vida deste grupo corresponde
a uma luta pela afirmação de sua territorialidade, de sua identidade territorial e
especialmente do seu território tradicional. Compreender traços da territorialidade
dos agricultores e pescadores artesanais dos Areais da Ribanceira significa também
compreender a sua forma de r-existência e nesse sentido, buscaremos aqui apre-
sentar um pouco desses traços que compõem a territorialidade da comunidade.
Com a concepção de que a terra é um bem natural, as práticas agrícolas e ex-
trativistas nos Areais da Ribanceira foram estabelecidas e se territorializaram sob
a forma de sistemas de uso comum com suas características e normas específicas
estabelecidas por acordos comunitários. Assim, para esta comunidade a terra é en-
tendida como um bem comum e a apropriação individual se dá sobre aquilo que
cada um produz, ou seja, o fruto do trabalho na terra é o que se torna propriedade
familiar. Atribuem à terra um importante “valor de uso” que se opõe à noção de
propriedade capitalista, que atribui à terra um “valor de troca”, ou seja, um valor
comercial que se sobrepõe ao seu valor de uso (CAMPOS, 2000). Nesse mesmo
sentido, Martins diferencia “terra de negócio” de “terra de trabalho”:

Quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em


terra de negócio, em terra de exploração do trabalho alheio; quando
o trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de tra-
balho. São regimes distintos de propriedade, em aberto conflito um
com o outro (MARTINS, 1991: 55, grifo do autor).

Pode-se até mesmo afirmar que para além da concepção da terra como “valor

108
de uso” e da “terra de trabalho” há uma concepção, inerente em muitas comuni-
dades tradicionais e no caso da comunidade em questão, da terra como espaço
de produção e reprodução da vida. Trata-se de uma dimensão que envolve outros
planos da prática sociocultural (religioso, identitário, cosmológico, linguístico,
etc.). Neste sentido, a terra não se restringe apenas como parcela de produção
agropecuária, mas ganha a dimensão de território, território de vida, base para a
produção e reprodução da vida de uma comunidade tanto em sua dimensão mate-
rial (espaço físico), política (relações de poder), econômica (atividades produtivas),
cultural (simbólico) e ambiental (bens de uso comum).
Mesmo não havendo cercas nas áreas de roças dos Areais da Ribanceira, é
bastante claro para cada agricultor(a) os limites da roça de cada um. A prática
agrícola se estabelece por meio de roças itinerantes, ou seja, ocorre uma rotação de
terras a serem plantadas, com intervalos de descanso da terra (pousio) de um ciclo
de produção ao outro, que varia de acordo com as condições do solo e das diferentes
formas de manejo.
O preparo da terra para o plantio ocorre de maneira individual e também por
meio de relações de reciprocidade na qual famílias se reúnem para ajudar mutua-
mente a realizar o preparo da terra e os plantios, depois cada família é responsável
por cuidar de sua roça à sua maneira. Dentre os cultivos destacam-se o plantio de
mandioca, aipim, milho, amendoim, batata-doce, abóbora, melancia, melão, pe-
pino, dentre outros. Esses cultivos são, por vezes, estabelecidos por sistemas de
consórcio de plantas, no qual é realizado o cultivo simultâneo de diferentes culturas
como, por exemplo, o plantio de milho, melancia, abóbora e amendoim entre as
mandiocas.
Dentre as diferentes práticas de manejo e uso dos recursos naturais destacam-
se a coleta do butiá e da palha do butiazeiro (Butia catarinensis), uma das mais
importantes práticas extrativistas que ocorre na região (Figura 1). A polpa do butiá
é consumida in natura ou então utilizada no preparo de doces, geléias, sucos e até
mesmo curtida na cachaça; e a palha do butiazeiro é utilizada no preparo de cha-
péus, vassouras, telhados, colchões, etc.

Figura 1 - Extrativismo do butiá e confecção de chapéu com palha de butiá.


Foto: Ezequiel Antonio de Moura, 2010 e 2011.

109
Além da forte relação e conhecimento sobre essas terras, a territorialidade dessa
comunidade está atrelada também a uma forte relação com as lagoas e o mar que
circundam e conformam o território de uso tradicional da comunidade de agricul-
tores e pescadores artesanais dos Areais da Ribanceira. Desde a Lagoa de Ibiraquera
e a Lagoa do Mirim, homens e mulheres se deslocavam para tarrafear camarão e
pegar siri; e voltados para o Oceano Atlântico, no mar e nos costões, a extração do
marisco e a pesca artesanal tinham o maior destaque:

Já pesquei muito quando eu era solteira, eu saia da roça e quando


chegava em casa voltava de volta e saia pra pescar [...] pescava tudo
quanto era peixe. Peixe pescado, tarrafeado na praia, siri, e marisco
tirava também. Pescar de anzol no costão; Rosa Souza Sabino, 83
anos (BARBOSA, 2011:100).

Dentre as atividades pesqueiras praticadas pela comunidade vale destacar a pes-


ca da tainha, tradicionalmente marcada pelo trabalho coletivo. Na figura 2 podemos
observar imagens da pesca da tainha ou “lanço de tainha” na prainha da Ribanceira
onde, em 1995 foram pescadas 8.760 tainhas e em 1998 cerca de 6.000 tainhas.

Figura 2 - Fotos da pesca da tainha em 1995 (à esquerda) e 1998 (à direita).


Foto: Arquivo pessoal de Adílio Manoel Francelino

Pode-se afirmar de forma geral que as terras e as águas são os principais elemen-
tos da territorialidade desta comunidade, é essa relação única com a terra e com as
águas que garantiram o sustento, a criação e propagação de uma cultura singular.
Adaptando-se às condições naturais do local esses agricultores e pescadores artesa-
nais se territorializaram, criaram o seu modo de vida, a sua territorialidade e con-
stituíram assim, material e simbolicamente o seu território tradicional: os Areais
da Ribanceira.
Outro aspecto importante da territorialidade dessa comunidade e também as-
sociado ao trabalho coletivo é o de processamento da mandioca, momento este de-
nominado de “farinhada” (Figura 3), que se inicia no mês de maio e se estende
110
até meados de agosto com a colheita da mandioca e seu processamento nos en-
genhos de farinha. Entre as décadas de 1960 e 1970 esta atividade representava
a base econômica de muitas famílias. Atualmente a importância dos engenhos de
farinha de produção familiar é relativamente pequena na economia estadual, mas
há aproximadamente quarenta anos eram centrais nas economias de muitas comu-
nidades do litoral catarinense.

Figura 3 - Farinhada: a produção da farinha de mandioca no engenho coletivo da comunidade: a mandioca é


descascada, passa pelo cevador, é prensada e depois seca no forno (da esquerda para a direita).
Foto: Marcelo B. Spaolonse, 2010 e Aline Miranda Barbosa, 2010.

De acordo com os relatos da comunidade havia aproximadamente 40 engenhos


de farinha na área dos Areais e entorno. A produção da farinha era feita por quase
todas as famílias e por muito tempo foi uma das principais atividades que garantia
a subsistência das mesmas. Mesmo aquelas famílias que não tinham o seu próprio
engenho conseguiam produzir a sua farinha usando o engenho de outra família
da comunidade. Além da farinha de mandioca, também é produzido nos engenhos
de farinha: a tapioca, o polvilho e o biju. O pirão d’água, farofa de banana e a bi-
jajica são exemplos de pratos derivados da farinha de mandioca presente a várias
gerações na base alimentar da comunidade.
Atualmente há cerca de quatro engenhos ativos sendo que um deles é de uso
coletivo pela comunidade e começou a ser construído no ano 2009 por meio de
mutirões. A redução da quantidade de engenhos de farinha está diretamente as-
sociada à redução das áreas de roças diante do avanço do capitalismo espoliatório
sobre sistemas de produção de uso comum privilegiando, no caso em questão, in-
teresses industriais, portuários, turísticos, especulativos imobiliários e de expansão
urbana.
É principalmente a partir da década de 1970 que os agricultores e pescadores ar-
tesanais dos Areais da Ribanceira passam a se deparar com empecilhos para seguir
com suas práticas de uso comum da terra e começam a vivenciar conflitos por terra,
111
sobretudo pelo território. A luta pelo território envolve o direito de seguir com suas
práticas de uso comum tanto na terra quanto no mar, sendo que a partir da década
de 1960 a pesca artesanal passa por grandes conflitos sob a ameaça do avanço da
pesca industrial e da atividade portuária.

Organização comunitária: ação coletiva e ação política

É, sobretudo no ano 2000 que se inicia o processo de privatização das terras


de uso comum nos Areais da Ribanceira. A transferência do domínio da terra para
a iniciativa privada se torna uma forte ameaça à continuidade das práticas tradi-
cionais da comunidade, visto que até então estas terras estavam sob o domínio do
Estado e ocupadas há várias gerações pelos antepassados dos agricultores e pesca-
dores artesanais dos Areais da Ribanceira.
As ações decorrentes da privatização motivaram a comunidade a se organizar
politicamente e criar a Associação Comunitária Rural de Imbituba (ACORDI),
entidade que passa a representar institucionalmente e defender os direitos dos
agricultores e pescadores artesanais dos Areais da Ribanceira. Dentre as iniciati-
vas resultantes da organização da comunidade em torno da ACORDI destaca-se
a criação da Feira da Mandioca, evento que ocorre anualmente, desde 2004, na
sede da Associação e que atrai o público local de Imbituba e região. A Feira da
Mandioca tornou-se uma importante ferramenta de afirmação identitária e territo-
rial e dá grande visibilidade ao caráter comunitário e tradicional da comunidade,
onde demonstram que suas práticas e saberes então imbricados ao território de uso
tradicional: os Areais da Ribanceira.
Como parte do processo de organização política da comunidade, em 2008, a
ACORDI convidou a Universidade Federal de Santa Catarina para participar de
uma palestra na 5ª Feira da Mandioca. A partir deste contato, pesquisadores da
UFSC se interessaram em desenvolver estudos acadêmicos nesta comunidade so-
bre os usos, manejos e conhecimentos relacionados às suas atividades produtivas.
Assim, diversos projetos de pesquisa e de extensão, tanto de graduação quanto de
pós-graduação foram desenvolvidos por professores e alunos da UFSC73.
A atuação da UFSC também propiciou a realização da cartografia social nos
Areais da Ribanceira, demandada pela ACORDI e coordenada pelo Laboratório de
Estudos do Espaço Rural (LabRural – Departamento de Geografia) e pelo Núcleo
de Estudos Identidades e Relações Interétnicas (NUER). As oficinas, encontros e
reuniões do Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicio-
nais74 foram realizados entre os anos de 2009 e 2011. O processo de construção
da cartografia da comunidade acompanhou ao longo desse período momentos de
tensão e conflito da comunidade com seus antagonistas. Podemos dizer que, o pro-
cesso de construção da cartografia contribuiu com a própria coesão da comunidade,
73 Consultar: BARBOSA, 2011; CAVECHIA, 2011; PINTO, 2010; SAMPAIO, 2011; ZANK, 2010 e HANAZAKI et al.,
2012
74 O projeto “Nova Cartografia Social da Amazônia” (PNCSA) é coordenado pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno
de Almeida, professor da Universidade Estadual do Amazonas (UEA). Em Santa Catarina, o PNCSA articula-se com
pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), por meio do projeto “Nova Cartografia Social dos
Povos e Comunidades do Brasil”.

112
na compreensão dos conflitos em que estavam inseridos, na construção de uma
identidade coletiva e no acionamento de uma luta por direitos.
Concomitantemente a mobilização política ocorrida durante a cartografia a co-
munidade organizou, no início de 2010, um abaixo-assinado de auto-reconheci-
mento. Se auto-identificaram enquanto comunidade tradicional de Agricultores e
Pescadores Artesanais dos Areais da Ribanceira. Esta identidade coletiva é caracte-
rística dos que estão envolvidos na prática da agricultura itinerante, no extrativismo
e na pesca artesanal nos Areais da Ribanceira. De acordo com Almeida (2008:119
e 123):

A construção política de uma identidade coletiva, coadunada com


a percepção dos agentes sociais de que é possível assegurar de ma-
neira estável o acesso a recursos básicos, resulta, deste modo, numa
territorialidade específica que é produto de reivindicações e de lu-
tas. Tal territorialidade consiste numa forma de interlocução com
antagonistas e com o poder do estado (...) aqueles agentes sociais
que quinze anos atrás eram considerados como “residuais” ou “re-
manescentes” hoje se revestem de uma forma vívida e ativa, capaz
de se contrapor a antagonistas que tentam usurpar seus territórios
(ALMEIDA, 2008:119 e 123).

A construção coletiva da identidade territorial de agricultores e pescadores arte-


sanais dos Areais da Ribanceira, aliada à categoria política de povos e comunidades
tradicionais, torna-se um instrumento político que está diretamente relacionado
à maneira de r-existir da comunidade. Uma r-existência que se estabelece em um
contexto marcado por conflitos e ameaças à continuidade de suas práticas.
A comunidade tradicional de agricultores e pescadores artesanais evoca o ter-
ritório denominado por eles de Areais da Ribanceira como elemento formador da
identidade do grupo. A evocação dessa base material e simbólica traz consigo a id-
eia de ser e pertencer a um território e nesse sentido implica também, na evocação
da territorialidade a qual está atrelada à forma de existência da própria comuni-
dade enquanto comunidade tradicional.
Uma das ações mais graves e violentas ocorreu no dia 18 de fevereiro de 2005
numa ação ilegal e violenta que culminou com a destruição da casa de uma família
que residia na área em que a ENGESSUL75 buscava a reintegração de posse. Esta
ação ocorreu durante a noite quando toda a família estava em casa (um casal e duas
crianças) e foram surpreendidos com a presença de homens que os retiraram a
força de sua casa e a demoliram com o uso de uma retroescavadeira (figura 4).

75 Seguindo a lógica de privatização de terras públicas, parte das terras dos Areais da Ribanceira sob domínio estatal da
Indústria Carboquímica Catarinense foi passada no ano 2000 para o domínio da Petrobrás Gás S/A (GASPETRO) e no
mesmo ano vendida à empresa privada ENGESSUL Indústria e Comércio Ltda. Fato que foi questionado pelo Ministério
Público Federal por meio da Ação Civíl Pública nº 2006.72.16.000828-9 que visava a nulidade da venda dos imóveis à
ENGESSUL.

113
Figura 4 – Seu Antero e Dona Aurina com os dois filhos e casa demolida aos fundos.
Foto: Acervo pessoal do casal, Antero e Aurina.

A mobilização dos agricultores e pescadores dos Areais da Ribanceira foi alvo de


diversas perseguições, como por exemplo, a destruição de benfeitorias e o impedi-
mento de trabalhar na área, pressões de todo tipo e inclusive prisões de lideranças.
Foi o que ocorreu entre a noite do dia 28 e a manhã do dia 29 de janeiro de 2010,
quando uma ação da Polícia Militar resultou na prisão de três pessoas em Imbituba:
a presidente da ACORDI, uma liderança do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) e um sindicalista (ambos apoiadores da luta da ACORDI). As
prisões foram realizadas sob a acusação de esbulho possessório (tomada violenta de
um bem), formação de quadrilha e incitação à violência. Segundo a Polícia Militar,
estas prisões foram “preventivas”, ou seja, para evitar que os possíveis crimes fos-
sem cometidos.
Os acusados foram soltos por meio de pedido de habeas corpus no dia 30 de ja-
neiro. É importante enfatizar que mesmo depois de soltos, várias manifestações de
diferentes organizações e instituições sociais questionaram a legalidade das prisões
preventivas; e sem provas suficientes, nenhum processo foi aberto contra os acusa-
dos sobre os supostos crimes que seriam cometidos. Vale lembrar também que, na
época das prisões, a presidente da ACORDI estava grávida de três meses, com uma
gestação de risco e não teve nenhum tratamento especial por conta isso.
Por meio da ACORDI, a comunidade passou a recorrer aos órgãos governa-
mentais, às entidades e movimentos sociais para buscar apoio e denunciar as
ações cometidas em detrimento desse território tradicional, assim como a realizar
manifestações e passeatas (Figura 5). Em 2010 a ACORDI fez uma manifestação
nas ruas de Imbituba e contou com o apoio do MST, de lideranças sindicais, do
movimento estudantil, dentre outras organizações sociais. O ato se deu por meio de
uma caminhada até a prefeitura do município, com a distribuição de um jornal que
tratava das prisões arbitrárias que ocorreram como forma de criminalização dos
movimentos sociais; esse jornal denunciava também o processo de privatização de
áreas públicas no município de Imbituba.

114
Figura 5 - Ato organizado pelo MST em Imbituba (fevereiro / 2010) contra a criminalização dos movimentos sociais,
dias após ter sido presa; no microfone a presidente da ACORDI.
Foto: Juliana Adriano, 2010.

Dando continuidade às mobilizações e articulações em busca de garantir seu


reconhecimento como comunidade tradicional e de regularizar a situação de seu
território, a ACORDI realizou, entre os dias 24 e 27 de junho de 2010, a 7ª Feira
da Mandioca, cujo tema central foi: “Pelo Reconhecimento dos Direitos das Comu-
nidades Tradicionais de Imbituba”. Durante a Feira a ACORDI pautou a situação
do eminente despejo e mostrou a todos que por lá passaram a cultura viva de uma
comunidade tradicional de Imbituba. Marco importante desta edição da feira foi
também a inauguração do engenho coletivo de farinha de mandioca da ACORDI.
Diante das ameaças de despejo em decorrência do processo de reintegração de
posse movido pela empresa ENGESSUL/SULFACAL, em julho de 2010 a ACORDI
realizou outra manifestação em Imbituba para chamar a atenção da população e
dos órgãos administrativos do município sob o eminente despejo da comunidade
tradicional. Os agricultores, pescadores, familiares e apoiadores da ACORDI fiz-
eram essa caminhada com seus carros de bois, faixas e cartazes (Figura 06).

Figura 6 - Caminhada dos Areais da Ribanceira até a prefeitura de Imbituba em julho de 2010, ato organizado pela
ACORDI
Foto: Pepe Pereira dos Santos, 2010.

115
Mesmo com todas as mobilizações e articulações feitas pela ACORDI em defesa
do território tradicional ocorreu, no dia 28 de julho de 2010, a ação de despejo so-
bre uma área com cerca de 250 hectares de terras nos Areais da Ribanceira. Casas
foram demolidas76 (Figura 7), caminhos históricos foram obstruídos, animais de
criação ficaram desaparecidos, houve ameaças intensas e frequentes gerando um
clima de grande tensão na comunidade. A ação de despejo foi o ápice da constante
violência (simbólica e material) que essa comunidade sofreu nos últimos anos e
causou imenso abalo emocional, psicológico, material e econômico às famílias:

Falaram pra mim: eles vão derrubar a sua casa lá em cima... Eu


entrei dentro de casa, saí assim, olhei, uma poeira, os bichos (a polí-
cia) chegaram armado... O que tá acontecendo? – É para você tirar
o que tem aí dentro. Eu disse, se eu fosse o teu pai você faria isso pra
mim? Não tem conversa! – Eu não vou tirar coisa nenhuma. Vamos
tirar! E tem que ser agora, quanto antes melhor, tem que tirar agora
mesmo, vamos, vamos, vamos... Vieram com duas máquinas... Eu
virei pro lado, nem olhei pra trás... Naquela hora ali veio tanta coisa
ruim na cabeça... Hoje, eu venho aqui (na sede da ACORDI) e nem
gosto de olhar pra lá. Eles me tiraram e agora o gado deles é que tá
lá. José João Farias (NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL, 2011:9).

Figura 7 - Sr. Antero Cardoso e sua casa ao fundo sendo demolida (à esquerda); Sr. José João Farias e sua casa
demolida ao fundo (à direita).
Foto: Pepe Pereira dos Santos, 2010.

Figura 8 - Área em que se localizava a casa do Sr. Antonio Valentim, demolida e queimada (à esquerda) e do Sr.
Anilton Sabino (à direita)
Foto: Ezequiel Antonio de Moura, 2010

76 Uma das casas demolidas foi da mesma família vítima de ato semelhante realizado em 2005, de forma ilegal, como já
relato anteriormente.

116
Alguns dias após a reintegração de posse foram realizados atos de mobilização
em solidariedade à comunidade: uma missa e um longo período de vigília que se
configuraram como importantes formas de acolhimento e fortalecimento dessa co-
munidade que se sentia violada e desamparada frente à execução da ação de despe-
jo (Figura 9).

Figura 9 - Missa em apoio à comunidade (à esquerda); reunião durante o período de vigília (à direita): ambas na
sede da ACORDI.
Foto: Pepe Pereira dos Santos, 2010.

Na área onde foram destruídas algumas das casas durante a ação de reintegração
de posse contra a comunidade, foi construída uma gigantesca Indústria de Cimen-
tos da Votorantin (Figura 10):

Figura 10 - Visão geral dos Areis da Ribanceira, durante a terraplanagem para instalação da empresa de cimentos
da Votorantim.
Foto: Pepe Pereira dos Santos, 2010.

Apesar de fragilizados, os agricultores e pescadores dos Areais da Ribanceira


seguem plantando em uma área de 24,3 hectares que, aparentemente, não foi pri-

117
vatizada, tampouco possuem alguma garantia de continuidade de posse da área. No
entanto, devido à redução da área disponível para os roçados e à violência material/
simbólica gerada pela ação de despejo, algumas famílias deixaram de seguir com
seus cultivos nos Areais da Ribanceira. Muitos agricultores e pescadores artesa-
nais, contudo, seguem ocupando parte de seu território tradicional, resistindo e
r-existindo frente às forças e ameaças da acumulação por espoliação do capital que
fazem com que seu território siga em litígio; e também continuam buscando forma
de produzir e reproduzir a sua forma de ser e estar que a caracteriza enquanto co-
munidade tradicional.

Considerações Finais

O processo de r-existência dos agricultores e pescadores dos Areais da Riban-


ceira nos permite fazer uma leitura ampla da questão que envolve a luta de diver-
sos povos e comunidades tradicionais na construção de identidades coletivas. Estas
identidades são construídas em contextos políticos determinados e que geralmente
estão associados a conflitos no território. Nesses casos, a identidade/diferença
de um grupo é constituída sob relações (assimétricas) de poder que permeiam o
cenário de lutas e conflitos por terra e pelo território. O termo “povos e comuni-
dades tradicionais” tem um significado político-estratégico, capaz de agregar força
a estas populações nos diferentes conflitos nos quais estão envolvidas, sobretudo
aqueles que se referem à posse de suas terras e ao direito de uso dos recursos natu-
rais que necessitam.
Quando um grupo se auto-reconhece enquanto comunidade tradicional, seja se
identificando como quilombola, seringueiro ou por outras categorias identitárias
como a de “Agricultores e Pescadores Artesanais dos Areais da Ribanceira”, geral-
mente traz consigo uma relação com a terra diferenciada na qual essa identidade
se constitui. A identidade, nestes casos, é fundamentalmente estratégica e política.
O elemento central está na dimensão territorial que essas lutas acionam para con-
quistar o direito à terra e aos demais recursos necessários a sua sobrevivência, di-
ante das ameaças às suas formas de existência.
Diferentes identidades de povos e comunidades tradicionais estão emergindo
diante de conflitos gerados pelo processo de acumulação de capital e pelo enfren-
tamento e r-existência à expansão espoliatória que expulsa pessoas, expropria
comunidades de suas terras e, sobretudo, de seus territórios. Os territórios tradi-
cionalmente ocupados estão sendo transformados em novas fronteiras de avanço
do capital, novas frentes de expansão do capital ou ainda – na perspectiva das co-
munidades – frentes de invasão do capital. Mais do que “fronteiras” ou “frentes”, os
territórios tradicionalmente ocupados estão se configurando como fronts, ou seja,
espaço em disputa. O capital está se expandindo de diferentes formas sobre ter-
ritórios tradicionais e essa expansão implica diretamente em uma reestruturação
espacial.
Nessa dinâmica de reconfiguração espacial, a eliminação de direitos consue-
tudinários e principalmente das formas de uso comum é uma estratégia para inserir
as comunidades na logica da propriedade privada. Desta forma, tal processo segue

118
atualizando a expansão do capital por meio da acumulação por espoliação e da le-
gitimação da propriedade capitalista, promovendo pressões crescentes em direção
à mercantilização de bens não mercantis (terra, água e ar).
Trata-se de projetos amplamente antagônicos às formas de vida dessas popu-
lações, implicando na fragilização e, até mesmo, no desaparecimento dessas co-
munidades à medida que ocorre a usurpação de seus territórios tradicionais. Ter-
ritórios estes, constituídos por populações que detém a posse real da terra sem, no
entanto, possuir o título da terra porque isso implicaria o Estado reconhecer os usos
reais do território, assim como as múltiplas territorialidades existentes. São popu-
lações sem reconhecimento de jure, entretanto, as terras tradicionalmente ocupa-
das estão longe de serem “vazios demográficos”. Podemos afirmar que o reconheci-
mento dos usos reais do território por parte do Estado exige que se reconheçam as
múltiplas territorialidades existentes, ou seja, territorialidades constituídas a partir
do uso e apropriação comunitária da terra.
A comunidade tradicional dos Areais da Ribanceira e tantas outras comuni-
dades tradicionais envolvidas em situações de conflitos territoriais estão colocando
em debate as terras de uso comum, suas práticas, seus saberes, suas identidades/
diferenças, seus territórios e suas múltiplas territorialidades. A complexidade des-
tas dimensões da luta pelo território apontam para a reconfiguração da questão (da
reforma) agrária e a questão ambiental brasileiras.

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120
Tempo, território e conflitos sociais: práticas tradicionais e
desterritorialização de cipozeiros.
Douglas Ladik Antunes77
Roberto Martins de Souza78

Resumo

Desde 2008 um grupo de cipozeiros e cipozeiras da região de Garuva-SC vêm


desenvolvendo em parceria com o grupo de pesquisa Identidades Coletivas e Con-
flitos Territoriais no Sul do Brasil o trabalho de mapeamento situacional que tem
como objetivos promover o fortalecimento identitário do grupo social, identificar
situações de conflitos sociais e práticas tradicionais de uso do território. Os procedi-
mentos de pesquisa permitiram um maior autoconhecimento e reconhecimento da
condição social dos cipozeiros não somente em Garuva-SC, mas em pelo menos 5
municípios dos estados de Santa Catarina e Paraná. A pesquisa qualitativa apon-
tou diversas situações sociais históricas que repercutem atualmente na desterrito-
rialização dos cipozeiros. Entre os conflitos sociais declarados, podemos destacar:
o “fechamento” do território tradicionalmente ocupado, a restrição de acesso aos
recursos naturais, as ameaças por pistoleiros, a exploração do trabalho artesanal,
entre outros. A evidência destas situações sociais pelos próprios cipozeiros tem co-
laborado no processo de construção identitária do grupo e, num maior interesse
pelo conhecimento de seus direitos que efetivem a garantia de proteção de seu
modo de vida tradicional .

Palavras-chave: cipozeiros, identidade, território, conflitos sociais, direitos co-


letivos.
77 Doutor em Design, professor adjunto do Departamento de Design, Centro de Artes, da Universidade do Estado de
Santa Catarina – UDESC – douglasladik@hotmail.com.
78 Doutor em Sociologia - Docente Campus Paranaguá – IFPR. Coordenador do Projeto. roberto.souza@ifpr.edu.br

121
Introdução

Este trabalho busca dar conta de relatar os resultados de pesquisa em campo


com o grupo de Cipozeiros e Cipozeiras objetivados no Movimento Interestadual de
Cipozeiros e Cipozeiras – MICI de Santa Catarina e Paraná. A pesquisa feita, defi-
nida quanto Mapeamento Situacional, apresentada em detalhes mais adiante, ocor-
reu fundamentalmente no ano de 2010, embora as discussões e novos encaminha-
mentos estejam ocorrendo até a atualidade. Nosso compromisso aqui se estende
prioritariamente aos resultados primários desta pesquisa, e em menor medida ao
referenciamento teórico-conceitual.
Para fins deste ensaio, Cipozeiros e Cipozeiras são sujeitos auto-definidos como
tais em seu modo de ser, viver e criar baseados em práticas tradicionais como a
roça, a pesca, a caça, a criação e o extrativismo de diversas espécies vegetais. O
processo histórico, social e econômico de construção identitária dos Cipozeiros
impuseram problemas latentes mediante o conflito em torno de suas práticas
tradicionais. Primeiramente um saber prático transformou em mercadoria, a par-
tir de um fazer especializado (artesanato), e, a mercantilização do artesanato, ou
seja a cadeia produtiva organizada pelos atravessadores, fez do artesanato com o
cipó-imbé o principal recurso natural dos sujeitos, logo no único trabalho artesanal
em moldes padronizados. Assim, as práticas materiais de uso dos recursos naturais
vão ficando cada vez mais distantes, à medida em que transformam-se de cipozei-
ros em artesões. No caso de muitos, o trabalho tornou-se absolutamente alienável
da natureza local, visto que não precisam mais “tirar” cipó para produzir; na enco-
menda do “pedido” são dispostas todas as matérias-primas pelo atravessador, po-
dendo inclusive, esta ser qualquer fibra, o que importa é a produção da manufatura
pelos artesões/tecedore

Histórico dos Processos de Ocupação da Região

O afastamento de seu meio natural se relaciona à história local, que, como em


boa parte do Brasil, foi marcada pela “abertura” do mercado de terras no regime
de Sesmarias. Em Santa Catarina, após as concessões pelo regime de sesmarias em
Garuva e região, houve também o pagamento da construção de estradas de rodagem
com terras devolutas. Segundo Vieira, o governo do Estado pagou 61% das estradas
de rodagem com terras devolutas, e “(...) entre estas terras estavam as do Palmital
(em nome da Empreza Industrial Agrícola Palmital Ltda (...)” (VIEIRA, 2007, p.
120). A concessão de terras na região de Garuva para empresas de extrativismo,
destacando-se a madeira e o palmito, marcou significantemente a paisagem e a
cultura local. Almeida, quando discute a questão dos territórios tradicionalmente
ocupados e o mercado de terras esclarece que

A ocupação permanente de terras e suas formas intrínsecas de


uso caracterizam o sentido peculiar de “tradicional”. Além de deslo-
car a “imemorialidade” este preceito constitucional contrasta critica-
mente com as legislações agrárias coloniais, as quais instituíram as
sesmarias até a Resolução de 17 de julho de 1822 e depois estrutu-
raram formalmente o mercado de terras com a Lei n. 601 de 18 de

122
setembro de 1850, criando obstáculos de todas as ordens para que
não tivessem acesso legal às terras os povos indígenas, os escravos
alforriados e os trabalhadores imigrantes que começavam a ser re-
crutados. Coibindo a posse e instituindo a aquisição como forma de
acesso à terra, tal legislação instituiu a alienação de terras devolutas
por meio de venda, vedando, entretanto, a venda em hasta pública,
e favoreceu a fixação de preços suficientemente elevados das terras,
buscando impedir a emergência de um campesinato livre. A Lei de
Terras de 1850, nesta ordem, fechou os recursos e menosprezou as
práticas de manter os recursos abertos seja através de concessões de
terras, seja através de códigos de posturas, como os que preconiza-
vam o uso comum de aguadas nos sertões nordestinos, de campos
naturais na Amazônia ou de campos para pastagem no sul do País.
(ALMEIDA, 2008 p.39-40)

Mais especificamente no contexto em estudo, a grande beneficiária da concessão


de terras foi a companhia francesa Paix & Cia, como explica Vieira (2007, p.130):

A Sociedade Agrícola & Florestal do Sahy recebeu do Governo de


Santa Catarina as terras do Sahy que estavam devolutas e/ou que
estavam atreladas às “perdidas” sesmarias incultas, somando uma
extensão de 35 mil hectares, conforme títulos públicos de 14 de ja-
neiro de 1921 e de 26 de abril de 1922, ressalvando as antigas posses./
As terras em nome da Paix & Cia eram vastas, conforme um antigo
mapa da Empreza Palmital Ltda, que apresenta lotes em nome da
Paix no Palmital, no Saí-Mirim, nas Minas Velhas, no Sol Nascente,
entre outras. (...) Em ofícios da Florestal do Sahy encontra-se um
termo: Sesmaria Portella. Em 1925, a dita sociedade cumpriu as
devidas demarcações, pois o governo legitimaria, definitivamente, a
concessão plena das terras devolutas do Sahy em favor da Paix. Isso
se restringia às terras pendentes, lotadas por posseiros do interior
do Sahy, alguns vivendo em suas respectivas terras desde meados do
século XIX. Porém, provar isso tem gerado alguns impasses. Esses
posseiros tinham suas terras “encravadas” - isto é, dentro da área de
concessão da Paix & Cia”.

Para Vieira (2007, p. 184)

“As concessões obtidas pela Paix & Cia., aliado as suas iniciati-
vas, modificaram a paisagem humana pelo Sahy, armando-se um
cenário apropriado para a implementação de diferentes atividades
econômicas que vieram a consolidar a vila dos Barrancos”

Nos interessa ressaltar neste momento que as iniciativas do Estado, desde o Im-
pério através das sesmarias, privilegiou a posse e a concessão de terras aos interes-
sados em “torná-las produtivas” na economia baseada no extrativismo, de madeira
e palmito principalmente, e agropecuária para consolidar a posse, posteriormente.
Cabe-nos questionar se os colonos, caboclos, ou ribeirinhos, como afirmaria Vieira
(2007), teriam as condições (informações, acesso aos cartórios, respaldo político,
letramento) ao tempo das sesmarias, em tornar-se posseiros das respectivas terras.
Embora o território em discussão não fosse definitivamente caracterizado por “de-

123
sertos territoriais”, sendo “tradicionalmente ocupados”, o domínio da posse per-
meou meios alheios às possibilidades dos “caboclos”. Assim, mesmo que as práticas
tradicionais locais determinassem uma estratégia de “uso comum” do território,
como vimos em campo, com o tempo, a destituição da posse e o “fechamento” do
território passou a impor uma nova lógica de relações entre os sujeitos e a natureza.
Vieira ilustra o fato na passagem:

Atualmente, as terras do Lamin pertencem quase que em sua to-


talidade aos empreendimentos extrativistas da Comfloresta, que re-
manejou a população daquele lugar no fim da década de 1970, por
meio de compras e indenizações. O difícil acesso por uma estrada
precária aliado à atividade florestal da Comfloresta, que pratica-
mente não usa mão de obra, fez do lugar um “deserto populacional”.
O Lamin, outrora, fora intensamente povoado, em 1939, possuia 38
habitações constitiundo um vilarejo tão expressivo quanto os Bar-
rancos. A atual Estrada do Cantagalo, que se apresenta veicular,
é mais recente - era uma mera picada para carroças, e seu cur-
so primitivo era mais à beira do canal. O Lamin que no passado foi
próspero e promissor, não possui na atualidade qualquer morador,
sendo coberto somente por pinus” (2007, p. 168).

Há de se entender a emergência da identidade coletiva dos cipozeiros, suas


práticas tradicionais, suas formas de relação com a natureza e seus problemas à
face do processo histórico. Embora deveras complexo o processo histórico de posse
e mercantilização do território é possível compreender em linhas gerais a lógica
como tendo origem nas sesmarias, com posterior início de sua comercialização
com o loteamento, a regularização por intermédio da Lei de Terras de 1850, e a
deflagração da comercialização e formação das grandes propriedades fundadas nas
antigas posses. Entendemos que esta estruturação do mercado de terras seja abso-
lutamente distinto das formas e uso e práticas tradicionais sobre o território, assim
como afirma Almeida (2008) na citação anterior.
Muitas informações historiográficas levantadas por Vieira (2007), enriquecem a
compreensão sobre a dinâmica de fluxos populacionais no território em questão, fi-
cando mais claros os dados coletados em campo, como a concentração populacional
nas sedes dos municípios, o “fechamento” de grandes extensões territoriais e de
seus recursos naturais, a construção de estradas - estratégicas à “entrada e saída” de
produtos no Estado, a mercantilização dos recursos naturais e, por fim, o contexto
histórico territorial daqueles que atualmente se auto-definem como cipozeiros.

Ambiente e Território Tradicionalmente Ocupado

Para o Cipozeiro Seu Jango (2007) “o que é da natureza é de todo mundo”, e em-
bora na prática cada vez menos os recursos naturais estejam abertos, a frase denota
um valor de uso e uma compreensão de quem sobrevive do uso direto dos recursos
naturais, da natureza. Dona Judith reforça a afirmação de Seu Jango, quando diz
que “Isso aqui, esse mato, esse rio, tudo que você vê daqui, é nosso, porque faz
parte da nossa vida...” (2007).

124
Os relatos colhidos durante o percurso de pesquisa demonstram uma preo-
cupação dos cipozeiros frente ao processo de “perda” dos recursos naturais. Essa
noção de “perda” acentua-se no processo de formação dos cipozeiros quanto su-
jeitos políticos organizados no MICI. A manifestação sobre os direitos de uso da
natureza seria um indício de “desnaturalização” dos sujeitos, numa compreensão
de que os sujeitos não são parte da natureza, mas possuem direito de uso dela, para
sua sobrevivência em seu jeito de ser e existir.
Muitas são as narrativas que expressam essa preocupação; entre elas destacam-
se aqueles que apontam que, antigamente não se comprava nada, e hoje se com-
pra tudo, a necessidade de se percorrer longas distâncias para acesso aos recursos
naturais, a restrição de livre acesso por jagunços, que mantém partes do território
“fechados”, onde antigamente eram “livres”, repressão por orgãos ambientais de
fiscalização, que os tratam como “agentes da degradação”, o problema do desmata-
mento que exaure toda riqueza natural, a produção em monocultivo de vastas ex-
tensões de terra, que suprimem as áreas naturais e contaminam rios pelo uso de
agrotóxicos, a ação do Estado na construção de rodovias, onde fiscais agem com
repressão e as obras destroem áreas naturais, etc. Assim, a descrição sobre o ambi-
ente local no passado é exposto no léxico do “novo” ambiente.

“Antes tinha muito mais cipó. Tá acabando não é por causa da


nossa tirada de cipó, porque se tira certo, o cipó brota de volta, não
estraga nada. O pai tirou sempre cipó, há 50 anos; tirando assim
certo, continua mais 50 anos. Diminuiu mesmo por causa do des-
matamento, desmatação. Pra plantar pinheiro e eucalipto, também
plantar arroz, pastagem, muita banana. / O pior é que hoje tem mui-
ta gente que tira, quando aperta as contas, mas que não é cipozeiro,
mal sabe andar no mato, entra e tira tudo, verde, maduro, tiram até
a mãezera! Aí vende, bruto, tudo misturado. Antes não tinha quem
vendia, era só pra uso próprio, pra fazer seu artesanato - aí vai se
acabando, e a nossa fama que fica ruim. A gente quer licensa pra
tirar do mato, e o pessoal que não sabe tirar acaba atrapalhando.” 79
(PROJETO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DOS POVOS E COMUNI-
DADES TRADICIONAIS DO BRASIL, 2007, p. 3)

Assim, a realidade descrita pela noção de “perda” do ambiente natural se revela


em depoimentos de diversas formas, em variadas narrativas. Nas diversas locali-
dades em que o MICI realizou o trabalho de mapeamento tais fatos vieram à tona
rapidamente nos depoimentos, assim como foram percebidos pelos pesquisadores
através das vastas áreas transformados em monocultivos de espécies como, o pinus
e o eucalipto, o arroz e a banana.
O contraste é claro entre as diferentes formas de uso dos recursos naturais ,
de um lado, o grupo de cipozeiros, buscam a reprodução física e social, com es-
tratégias de acesso a áreas de coleta e, realizam práticas de manejo que permitem
a renovabilidade da floresta ; de outro, a força de exploração imposta pela lógica
da “super-produção” centralizada e acumulação de capital na mão de antagonistas
diversos identificados como bananeiros, arrozeiros e reflorestadoras. A despeito
desse jogo de classificações, o fato “curioso” é o tratamento dado aos povos e comu-
79 Houve a solicitação durante a oficina para que estas falas não fossem individualizadas no fascículo. Conforme Projeto
Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil, Fascículo 9 (2007, p. 3).

125
nidades tradicionais, pelos agentes governamentais da área ambiental, que con-
sideram os cipozeiros “agentes da degradação”, conquanto parecem ignorar a ação
devastadora das plantações sobre a Mata Atlântica, mesmo em áreas de proteção
como a APA de Guaratuba, localizada no Paraná. Uma frase corriqueira entre mui-
tos informantes é de que “... o grande pode tudo, o pequeno não...”.
No depoimento de Dona Maria, da comunidade Sol Nascente, fica clara a
desigualdade de tratamentos e a indignação, quando sua família não podia fazer
uma roça que “... o meio ambiente vinha...”, enquanto que paradoxalmente, na
mesma localidade um morro inteiro foi subtraído para o aterramento de uma es-
trada. Neste morro estavam localizadas duas nascentes de água, e nem este fato im-
pediu tal desmonte de terra. Quando questionamos à essa senhora se “a fiscalização
tá em cima de caça e palmito?”, ela respondeu remetendo-se ao passado:

“- Palmito mesmo acabou-se, caça... matava um, dois, pra comê.


Mas é difícil né... me lembro podia matá anta e botá em cima da car-
roça [hoje oque é feito, é absolutamente escondido], carne a gente
fazia... Agora... era época de fartura... bolo, bolacha, essas coisa não
tinha. Mas a carne, o arroz, o feijão, a farinha tinha... a roça era
a mesma coisa... hoje é cada um pra si. Se minha mãe matava um
porco, nóis ia levá um presentinho pra cada vizinho... era bem unido
mesmo... Hoje não tem vizinho né?! [devido ao êxodo intenso] se não
é registrado, não é nada, é perigo perder ainda a vaca que criou, o
boizinho pra matá, o porco, porque agora tem que botá brinco, tem
que dá baixa se morreu, se matou... Vamo pro morro [convidando-
nos para fotografar o resto do morro em frente à sua casa]. É só ti-
rar pedra, explorar, como eles dizem... o barro eles tão botando por
aí [uso na construção da estrada para o porto de Itapoá]” (outu-
bro/2009)

Em meio à situação da entrevista para o mapeamento, os comentários e as foto-


grafias, Dona Maria Hernaski (outubro/2009) afirmou:

“Nós cipozeiro vive da água, do meio ambiente, e eles falam que


nóis estraguemo o meio ambiente. Mas quem estraga o meio ambi-
ente? É eles... os grande... O tio Feleco [Seu Felício] morou aqui uns
trinta ano, ou mais né?! E não pôde mexê um [pau] ... pra fazê um
cabo de foice. Como eles puderam fazê uma desgraça dessas no mor-
ro? Como eles podem fazê isso?(...) [e Dona Maria complementou:]
- Tu acha que essa cachoeira não vai secar com eles estourando ali?”

Algumas destas localidades visitadas, referenciadas como território de uso co-


mum no “tempo dos antigos”, levam nomes que remetem à determinados recursos
e à paisagem natural, como por exemplo Palmital, Tamanduá, ou ainda Bom Futuro
que até 1938 era conhecido por “Chiqueiro” pela grande quantidade de catetos nas
imediações (VIEIRA, 2007); Sahy-mirim quer dizer em tupi “olho vivo pequeno”,
bem como Sahy-guaçú significa “olho vivo grande”, mas também é o nome de uma
ave (idem, 2007, p. 184). Para o mesmo autor, que documenta o processo de con-
cessão de terras e o uso dos recursos por empresas extrativistas e agropecuárias na
colonização da Península do Sahy e nas localidades de Três Barras, Palmital e Bar-

126
rancos, um fator de forte influência na paisagem local foi a intensa extração de ma-
deira desde o século XIX, que foi responsável pelo uso do boi na região, empregado
no reboque das toras (ibidem, 2007). Atualmente, em grande parte do território
destas comunidades, sob posse de grande empresários, estão “fechadas” ao uso dos
cipozeiros, como demonstra a Figura 1.

Figura 1: Restrição de acesso ao território, em Mina Velha. Foto: Douglas L. Antunes.

As placas, como esta acima, são muito comuns nas diversas comunidades da
região em estudo. Em Palmital, uma placa era complementada pela ameaça “sujeito
à prisão”, o que representa a inacessibilidade aos recursos que permitem a sobre-
vivência e a reprodução de sua cultura no território que há tempos atrás era de livre
acesso e uso comunal, e também a repressão e violência institucionalizada prati-
cada. Em entrevista, Dona Judith Lopes, ilustra bem alguns aspectos da paisagem
local e sua dinâmica, bem como a restrição ao livre acesso no território:

“... mudou muita coisa por causa do reflorestamento né... o reflo-


restamento acabou muito com a natureza... a distância era bem mais
perto, no caso aqui já ao redor de casa tinha cipó... agora não, agora
a gente tem que se deslocar pra mais longe. Antes atravessava o rio
e já tinha cipó ali... agora não, agora tem que ir mais longe. Porque
agora alí é proibido... na Weg no caso, nessa fazenda que pertence à
Weg já não pode mais tirar cipó. Onde eu tiro não é autorizado tam-
bém, só que os proprietários não se importam, eles querem a terra,
eles não querem o que tem em cima, desde que não haja invasão de
terras, não tem como eles se negar a dar cipó... Caça tem bastante
ainda, desde que não seja caça esportiva né?! No caso de caçar pra
comer tem... e tem até onça pra quem quiser [risos]... e, tem peixe,
ainda tem bastante no rio, quando não tem excesso de veneno de ar-
rozeira... Palmito tem muito pouco, porque quanto mais proibido,
mais se tira... Palha tem, o musgo, tem lugar que tem, que é o veludo
que dizem, né, que é o musgo molhado e musgo seco... Que mais, tem

127
a samambaia, tem o cipó timbopeva que é o cipó de liaça, isso quase
ninguém tira também... só que depende do lugar, varia de um lu-
gar pra outro, tem lugar que tem e lugar que não tem... acho que é,
a palha, o musgo, o palmito, palmito mesmo é muito difícil de você
achar um palmito na matriz, só palmitinho novo, porque os palmito
melhor mesmo já foi tirado tudo, porque quem não tira de algumas
fazenda, o pistolero mesmo vende, por isso que eles não permite as
muitas vezes que as pessoa entra pra tirá cipó, porque eles qué vendê
o palmito né, se aparece uma pessoa tirando cipó lá, vai vê que tá
sendo tirado palmito e vai botá a boca no trombone...aí... por isso que
eles não qué mistura de cipozeiro com pistolero... [sobre as caças:]
Tem veado, tem capivara, tem quati, tem o tamanduá, tem onça,
tem cutia, tem tatú, que é o que mais tem, tem... porco do mato... o
cateto... isso só o que eu conheço que eu sei que tem que eu já vi...”
(fevereiro/2011)

Mesmo hoje a cobertura vegetal remanescente, é de extrema importância à so-


brevivência dos cipozeiros em seu modo de vida. Como já mencionado anterior-
mente, a pesquisa indica que são diversas as fontes de recursos naturais utiliza-
dos no modo de vida dos cipozeiros, em que vale destacar os mais referenciados:
cipó imbé (cipó preto), cipó liaça (cipó branco ou timbopeva), peri, taboa, bambu,
musgo verde (veludo), samambaia, plantas medicinais (remédio do mato), palmito,
tucum, embira (embira de embaúva), palha (guaricana), madeiras (cacheta e ga-
piruvú), frutas (pitanga, goiaba, araçá, acerola, etc), caça (quati, paca, tatu, ma-
cuco, queixada, capivara, veado, etc), pesca artesanal (tainha, robalo, etc), “criação”
(vaca, galinha, porco, etc).

O Mapeamento Situacional

O processo de mapeamento situacional, descritivo da situação atual dos cipozei-


ros é também conhecido por mapeamento social. Seu foco central está no uso de
tecnologias acessíveis para a elaboração de mapas que expressem as situações so-
ciais vividas, e, em que ao mesmo tempo seja um meio de pesquisa - em nosso
caso qualitativa, e instrumentalização dos grupos auto-cartografados. As formas
de mapeamentos “participativos” vem sendo realizados no mundo todo, cada qual
com enfoques e interesses específicos. Para Acselrad & Coli (2008), embora a elab-
oração de mapas por pessoas de comunidades remonte o início dos anos 1970, sua
disseminação de uso ocorreu somente por volta dos anos 1990 em diversos lugares
do mundo. Os autores afirmam que

A partir dos anos 2000, constituem-se no mundo diversas redes,


grupos e “comunidades” envolvidas com o uso de SIG e de mapea-
mentos que se afirmam participativos, constituindo uma espécie
de “sub-campo” da cartografia participativa no campo mais am-
plo das práticas da representação cartográfica. Este sub-campo da
cartografia participativa constitui o domínio social delimitado por
premissas institucionais, culturais e cognitivas, onde atores sociais
orientam estrategicamente suas ações disputando legitimidade no
âmbito das representações espaciais. Neste sub-campo constroem-se

128
fronteiras simbólicas, técnicas e morais com relação a outras práti-
cas organizadas, configurando certa perícia legitimada, redes inter-
pessoais e organizacionais, distribuição de recursos e regras internas
de jogo. Tendo como referência o campo da produção cartográfica,
este sub-campo caracteriza-se pelo fato de nele certos empreende-
dores institucionais empenharem-se em problematizar a cartogra-
fia convencional promovendo as tecnologias do mapeamento dito
participativo, alegando sua autoridade/perícia legítima para fazer
valer as reivindicações sobre territórios e seus recursos por parte de
populações locais.
(ACSELRAD & COLI, 2008, p. 17-18)

As formas de uso das tecnologias de registro cartográfico são variadas, desde


aquelas elaboradas “ilustrativamente” a partir de mapas “mentais” em represen-
tações por desenhos até as elaboradas com o uso de equipamentos como GPS e Sis-
temas de Informações Geográficas – SIG (Idem, 2008). Para os autores o emprego
de tecnologias digitais pode repercutir no afastamento das pessoas das comuni-
dades do processo de sua construção. O que é um fato, à medida que o manuseio
de softwares e computadores se tornem inascessíveis por exigirem especialização.
Assumindo a existência destas possíveis limitações, o que ocorreu no campo de
pesquisa foi o afastamento da comunidade no processo computacional, de uso de
softwares para a preparação do mapa final, porém, mesmo assim é inegável sua im-
portância quanto processo de discussão, formação e apropriação do discurso sobre
os conflitos territoriais vividos na extensão do território, não se limitando à visão
particular da família em sua comunidade; o que caracteriza a formação política dos
atores envolvidos no processo cartográfico. Como enfatizam Acselrad & Coli:

Verificamos como, no Brasil, as experiências podem estar asso-


ciadas tanto à afirmação identitária e territorial de grupos subalter-
nos, como à fundamentação cognitiva da gestão racional de recursos
naturais, a formas de explicitação de conflitos sócio-territoriais ou
a formas de antecipação dos mesmos para fins de controle estatal
do território. É importante, por essa razão, buscar-se identificar a
natureza das tramas territoriais subjacentes às práticas de mapea-
mento, assim como da trama propriamente cartográfica em que
estão envolvidos os distintos sujeitos dos mapeamentos, e, por fim,
a interação entre esses dois planos, o da disputa cartográfica e da
disputa territorial. Para clarificar o sentido dos esforços realizados
em nome de uma democratização das políticas cartográficas, caberá
sempre perguntar: qual é a ação política a que o gesto car-
tográfico serve efetivamente de suporte? Esta ação política
terá, em permanência, que ser esclarecida nos termos das lingua-
gens representacionais, das técnicas de representação e dos usos dos
resultados, assim como, da trama sócio-territorial concreta sobre a
qual ela se realiza. (2008, p. 40-41) (grifos nossos)

No caso específico dos cipozeiros, em termos práticos / metodológicos, a dis-


cussão estratégica sobre a pesquisa territorial envolvendo o mapa ocorreu so-
bre a base cartográfica da região delimitada, sendo ela mesma uma elaboração
demandada pelo grupo a partir de diferentes bases80 dos estados do Paraná e Santa
80 Foram utilizadas as seguintes bases cartográficas: Hidrografia 1:1.000.000 - Serviço Geológico Brasileiro; Mapoteca

129
Catarina. A base cartográfica foi montada no Laboratório do Projeto Nova Car-
tografia Social de Guarapuava, sendo impressa em plotter (em formato A1) e tendo
os registros dos lugares81 principais feitos manualmente, à caneta. A referida estra-
tégia de pesquisa se deu nas discussões em reuniões, quando foram estabelecidas as
partes do território de início de pesquisa e seu desencadeamento. Em um segundo
momento do mapeamento houve o espaço aos esquemas de representação do grupo,
digamos simbólicos, no processo de elaboração das legendas, pois foi quando al-
guns elementos gráficos representativos emergiram durante o debate sobre os con-
flitos territoriais e as práticas tradicionais existentes, como será visto mais adiante.
Em termos de procedimentos de pesquisa empírica, o mapeamento situacional,
ou mapeamento social foi uma forma muito apropriada para a coleta de infor-
mações, tendo em vista a qualidade dos depoimentos registrados. Esta qualidade se
deu principalmente pela forma de abordagem das entrevistas, feitas pelos próprios
cipozeiros, em que, se estabelecendo uma relação de confiança, a partir de um
reconhecimento entre “iguais” e da solidarização aos problemas apontados, muitos
temas “vieram à tona” sem receios em sua colocação. Em alguns momentos os de-
poimentos foram tomados à medida que os “cipozeiros entrevistadores” ajudavam
no “tecido” do artesanato do “cipozeiro entrevistado”. Por se caracterizar como pes-
quisa qualitativa, as entrevistas foram realizadas por indicação de conhecidos entre
uma entrevista e outra, tendo como “pergunta-chave” a solicitação da indicação de
um nome considerado referência quanto cipozeiro em cada localidade, de forma
que cada entrevistado fosse reconhecidamente identificado como cipozeiro em sua
comunidade. Algumas entrevistas, por ocorrerem sem agendamento prévio e sim-
plesmente com a abordagem dos informantes no decorrer de suas práticas diárias,
aconteceram com mais de uma família ao mesmo tempo, em ocasiões em que coin-
cidentemente estavam reunidas.
Mesmo que determinadas famílias estivessem afastadas do “tecido” atualmente,
elas foram consideradas e registradas como “cipozeiras”, por entendermos que pa-
rar o “tecido” é uma condição circunstancial, devido à motivos específicos que im-
pediram a continuidade dessa prática quanto atividade econômica, sendo que, para
estas famílias, continua havendo o domínio do saber tradicional, e quando se apre-
sentam as condições de possibilidades, tal saber pode ser acionado quanto prática.
Esta compreensão temporal se estende ao conceito de “situacional” do mapeamen-
to, pois este contextualiza a realidade expressa da situação atual, devendo ser re-
elaborado conforme se apresentam novas dinâmicas territoriais.
O processo de mapeamento situacional pode ser entendido como a continui-
dade do processo de auto-cartografia dos cipozeiros publicada no Fascículo 9, in-
titulado: Cipozeiros de Garuva, da série Povos e Comunidades Tradicionais do Bra-
Topográfica Digital de Santa Catarina - EPAGRI/IBGE 2004; Mapa de Unidades Higrográficas de Santa Catarina - EPA-
GRI/SDS 2005; Remanescentes Florestais de Mata Atlântica - Centro de Sensoriamento Remoto/IBAMA 2007; Malha
Municipal Digital do Brasil IBGE/DGC/DECAR 2001; Base Digital da América do Sul - NIMA 2005; Levantamento de
Campo 2010.
81 Para Bourdieu (2008, p. 160) (...) O lugar pode ser definido absolutamente como o ponto do espaço físico onde um
agente ou uma coisa se encontra situado, tem lugar, existe. Quer dizer, seja como localização, seja, sob um ponto de
vista relacional, como posição, como graduação em uma ordem. (...) Os agentes sociais que são constituidos como tais
em e pela relação com um espaço social (ou melhor, com campos) e também as coisas na medida em que elas são apro-
priadas pelos agentes, portanto constituídas como propriedades, estão situadas num lugar do espaço social que se pode
caracterizar por sua posição relativa pela relação com os outros lugares (acima, abaixo, entre, etc) e pela distância que os
separa. (...)

130
sil em 2007. Esta última, distingui-se do mapeamento por ser um procedimento
restrito a um grupo de representantes escolhidos pelos próprios agentes sociais que
elaboram a cartografia em oficinas de mapas. De outro modo, o mapeamento se
caracteriza pela investigação in loco, através de abordagens dos agentes cipozeiros
junto às comunidades onde há indicações da presença de outros cipozeiros. Nesse
procedimento são observados os locais de conflitos, os principais pontos de coleta
de diversos recursos naturais - incluindo o cipó imbé, as principais dificuldades
e reivindicações do grupo articulado e mobilizado em torno dos temas que con-
vém ao grupo social. Nesse momento, fora toda a sistematização do conhecimento
produzido, expressa-se elementos situacionais que colaboram com a construção
da afirmação da identiária quanto cipozeiros , pode-se inferir que é o limite das
relações sociais conflituosas face seus antagonistas que tem definido este povo e
não o conteúdo da condição de cipozeiro.
Nas discussões propostas pelo MICI , o mapeamento supera o fascículo, pela
necessidades estratégica de explicitar toda abrangência territorial e situacional em
que vivem os cipozeiros, ou seja, desfocar sua existência somente indicada no mu-
nicípio de Garuva, para garantir a visibilidade dos sujeitos no litoral Sul do Brasil.
O processo de ampliação da visibilidade dos cipozeiros envolveu principalmente
o citado fascículo e a divulgação, no âmbito nacional, do vídeo Cipozeiros da Mata
Atlântica, no programa Globo Ecologia veiculado a partir de maio de 2008. Após
tal divulgação, membros da Rede Puxirão passaram a participar de reuniões de ar-
ticulação em Garuva, e posteriormente os representantes indicados dos cipozeiros
passaram a atuar nas ações da Rede no Paraná. Tal processo de articulação vem re-
percutindo no amplo processo de formação política dos cipozeiros, que é facilmente
perceptível nas elaborações discursivas dos mais participantes, bem como no maior
envolvimento e comprometimento com as ações em rede. Vale ressaltar a contigui-
dade entre Garuva e o município de Guaratuba - PR, e a grande proximidade entre
Garuva e Curitiba, capital desse estado.
O trabalho da Rede Puxirão, consiste em articulações nacionais e estaduais, ten-
do em foco a efetivação do Decreto Federal 6040/2007, via assessoria jurídica aos
grupos sociais, parcerias em projetos de desenvolvimento local, relações políticas
com Ministério Público, Assembléia Legislativa e órgãos do Governo do Paraná e
Federal. No âmbito local estimula tanto a mobilização das identidades coletivas,
através de discussões de leis municipais, elaboração de acordos comunitários, e
denúncias contra aqueles que ferem os direitos das comunidades envolvidas. Atual-
mente, em constante articulação, a Rede envolve os seguintes povos e comunidades
tradicionais: faxinalenses, ilhéus (atingidos pela represa da usina de Itaipú, até hoje
sem indenização), quilombolas (de diversas comunidades), guaranis mbyá, xetás,
benzedeiras, pescadores artesanais, cipozeiros e integrantes das religiões de matriz
africana. Desta Rede foi indicado um representante por grupo, ou segmento - como
os mesmos se referem, que constituíram um grupo de trabalho para a elaboração
da minuta da Lei Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comu-
nidades Tradicionais (que é a versão estadual do Decreto nº 6.040), tal grupo de
trabalho foi instituído na gestão do governador do Estado Roberto Requião.
Em meio a este processo de mobilização dos cipozeiros estimulados pelo pro-
cesso cartográfico, e na ampliação da compreensão política sobre a existência de

131
sua identidade coletiva em um amplo território, os cipozeiros propuseram e ini-
ciaram o mapeamento situacional do grupo, com o apoio de assessores da Rede
Puxirão e pesquisadores do Projeto Nova Cartografia Social.
Como forma de comprovação da coleta das informações em suas respectivas
comunidades, os locais de entrevista foram geo-referenciados com o uso de GPS
- Global Positioning System (ou Sistema de Posicionamento Global), também
foram feitos registros fotográficos das famílias entrevistadas (entrevistas semi-
estruturadas), as entrevistas foram gravadas em sua maioria, sendo transcritas
pelos pesquisadores. As entrevistas não gravadas foram imediatamente descritas
nos cadernos de campo e nas planilhas de dados. Assim, as informações foram sis-
tematizadas com o apoio dos pesquisadores82 e encaminhadas para o processo de
elaboração cartográfica em ArcGis, com apoio do Laboratório do Projeto Nova Car-
tografia Social em Guarapuava.
Os roteiros de mapeamento foram definidos pelos cipozeiros do grupo de co-
ordenação das ações do MICI, com participação direta de 5 adultos e jovens - fil-
hos e netos dos cipozeiros envolvidos (vale salientar a participação de Dona Maria
Hernaski, Dona Judith, Dona Judith Lopes, Dona Ruth, Dona Marlene, Seu Jango,
Seu Carlos, Dona Laurinda, Seu Avelino, Dona Irene, e entre os jovens - Leslie,
Neguinho e Bianca). Tais interessados foram capacitados, em novas oficinas, para
o uso dos equipamentos: máquina fotográfica digital, GPS e gravador portátil, na
ocasião das saídas a campo para registro dos depoimentos. Os adultos se sentiram
mais a vontade ao uso de gravadores e máquina fotográfica, enquanto que os jovens
manusearam com facilidade todos equipamentos, ficando ao seu encargo princi-
palmente a “marcação” de pontos no GPS, visto que praticamente todos os adultos
tinham maior dificuldade com este equipamento e delegaram seu uso ou aos jovens
ou aos pesquisadores, sempre lembrando: “pegue o ponto aqui”, ou ainda: “já mar-
cou o ponto? Então marque!”. Fora a importância das informações coletadas, e
descritas adiante, a situação social de realização do mapeamento foi muito rica, por
conta das discussões geradas a partir dos depoimentos e também pelos relatos ao
longo dos trajetos entre as comunidades.
Nas comunidades, sempre os cipozeiros eram os primeiros à fazer a abordagem
nas casas e a apresentação dos objetivos de estarem em pesquisa. Quando nos jun-
távamos ao grupo éramos apresentados como pesquisadores, aparentemente não
produzindo apatia inicial, pois somente somávamos ao trabalho. Assim, as conver-
sas se davam de iguais para iguais, naturalmente, nossa participação se resumia a
dúvidas ocasionais, à lembretes sobre informações em esquecimento, e em algumas
ocasiões em maior detalhamento sobre aspectos de direitos como a Constituição
Federal de 1988, a Convenção 169 da OIT, o Decreto 6040 de 2007, entre outros.
Nos oito meses de mapeamento social foram entrevistados informantes de 46
famílias, em 23 comunidades de cinco municípios diferentes; onde registramos a
referência a 534 famílias de cipozeiros nestas localidades (149 em Guaratuba - PR,
281 em Garuva - SC, 56 em Joinville - SC, 20 em Itapoá - SC e 28 em Araquari -
SC). Os relatos no mapeamento, bem como anteriores a ele, enalteceram alguns
elementos em que arriscamos classificá-los como categorias nativas. O fato relatado
82 A equipe de pesquisadores e assessores incluiam: Taísa Lewitzki (assessora da Rede Puxirão), Roberto de Souza Mar-
tins (professor do Instituto Federal do Paraná), Renato Alves Ribeiro Jr. (ex-bolsista de iniciação científica da UFPR) e
Douglas Ladik Antunes.

132
em “tirar cipó” está muito além que simplesmente “ir pro mato” e coletar a matéria
necessária ao artesanato, estando mais relacionado à uma forma de operacionalizar
os fazeres da vida diária da família que resulta de uma estreita relação com a na-
tureza, onde as atividades se dividem claramente entre as feitas “em casa” e as “fora
de casa”. Muitos dos conflitos relatados estão relacionados à restrição em “tirar
cipó”, ou seja, no “fechamento” do recurso.
O ato de “tirar” se relaciona aos fatos de acessar, pegar, utilizar, coletar, matar
e pode ser acionado ainda em relação à outras práticas culturais como pescar (ou
matar um peixe), caçar (matar uma caça), tirar palmito, etc, tendo repercussões
profundas na educação dos filhos e parentes, pois para “tirar cipó” é necessário que
se saiba “andá no mato”, entre outras coisas; e assim, para cada atividade relacio-
nada ao modo de vida são acionados uma diversidade de saberes e práticas que os
definem num sentimento de pertencimento, e consequentemente e dialeticamente
constroem sua territorialidade específica, junto às “malhas de cipó” ainda “abertas”
ou com restrições que representam ameaças a integridade dos cipozeiros.
Outra categoria que merece ênfase é o “tempo”, sendo referido em diferentes
situações, como na afirmação de sua tradicionalidade quando acionam as lembran-
ças do “tempo dos antigos”; ou ainda quando enfocam a “exploração do trabalho”
que lhes impõe uma rotina de trabalho fixa à prática do artesanato, não restando
tempo para outras práticas “fora da casa”, visto que um tempo significativo do ar-
tesanato ocorre no “tecido”, dentro de casa. Assim, o trabalho como meio de ex-
ploração, como forma de poder, impõe uma “nova” lógica de relações sociais e es-
paciais, significando, além da relação de dependência financeira, sua ingerência,
sua perda de domínio sobre o próprio tempo. Quando os cipozeiros, como Dona
Judith Lopes (2006), afirmam que “ir pro mato” é como uma “terapia”, entende-se
sua perspectiva em compreendê-lo quanto um momento “raro”, em oposição ao
trabalho com artesanato, que nunca seria afirmado quanto “terapia”, mas sim já foi
registr como “cachaça”.
Os conflitos verificados nas localidades parecem apontar uma articulação com
fatos da globalização da economia, ao se relacionar ao plantio de pinus e eucalipto,
produção de banana, arroz, etc, implementação de unidades de conservação, em
que Acselrad & Bezerra chamam de “nova geopolítica mundial dos recursos natu-
rais”, em que explicam que

(...) A “grande” geopolítica, com seu jogo de interesses expresso


na arena internacional, seus macromovimentos de cena nos fóruns
multilaterais, é acompanhada, também, por ações “no terreno”: im-
plantação de redes de infraestrutura, reconversão de atividades, al-
teração das formas de ocupação do espaço em função de inserção
crescente de territórios latino-americanos nos fluxos internacionais
de acumulação. Assim é que o avanço da fronteira de exploração
de recursos choca-se, com frequência, com a disposição de sujeitos
sociais localizados a dar outros sentidos a seus territórios, atribuir
outros destinos a seus recursos comunais, optar por outros modelos
de regular o tempo-espaço aos quais, muitas vezes, associam suas
próprias identidades. Esta é a raiz do que se tem visto na América
Latina como uma crescente disseminação de conflitos ambientais.
(2010, p. 34)

133
Os conflitos relatados em cada comunidade são muito específicos às mesmas,
e, embora sejam perceptíveis semelhanças entre eles não há possibilidade de
generalizações, da mesma maneira que entender o cipozeiro como um traço gené-
rico do sujeito seria um enorme erro.
Uma terceira categoria de realidade, que deriva das anteriores é a noção de in-
justiça, quando os cipozeiros mencionam o “preço injusto”, ou “o grande pode tudo,
o pequeno não”, por estar atrelada ao processo de exploração de sua força de tra-
balho, e consequentemente ao domínio externo sobre seu tempo cotidiano, ao “fe-
chamento” do território tradicionalmente ocupado, onde os grandes proprietários
além de restringir o acesso, não são alvos sistemáticos da fiscalização ambiental, ao
mesmo peso que os cipozeiros. Enfim, a noção de injustiça permeia de um lado a
condição imposta por domínio de poderes sobre os cipozeiros, e de outro por uma
desigualdade de tratamentos estabelecidos pelo poder público.
Assim, os conflitos têm relevância e graus de importância diferentes de uma lo-
calidade para outra. Desta forma, procuramos interpretar e especificar os relatos
sobre os conflitos que foram mais marcantes no processo de mapeamento situa-
cional. Caracterizar o mapeamento quanto situacional, como dito anteriormente,
leva em consideração justamente o fato de que a situação relatada atualmente é
essa em cada comunidade, ou lugar, podendo mudar a dinâmica de relações justa-
mente como se considera a dinâmica da cultura.

Conflitos no Território Tradicionalmente Ocupado

São elencados adiante os aspectos que mais chamaram a atenção no processo


de construção do mapeamento situacional, que enaltecem os impasses sobre as
práticas dos cipozeiros em sua territorialidade específica. Embora tais conflitos se-
jam plenamente correlacionados e de natureza imbricada, eles estão dispostos de
maneira subdividida como forma de facilitar sua análise, bem como representam
a forma de enunciação das dificuldades vividas e percebidas pelos cipozeiros entre-
vistados. Em seus depoimentos ficam claras as características específicas de cada
localidade bem como sua correlação no território mais ampliado, não sendo pos-
síveis homogenizações e generalizações, mas sim campos e jogos de correlações.
Os termos utilizados a seguir, sob grifos em negrito, são expressões interpretadas a
partir de nossa compreensão dos depoimentos dados:
A restrição do livre acesso ao território é o processo de usurpação ao
direito de livre acesso ao território tradicionalmente ocupado e seus recursos natu-
rais, caracteriza-se localmente, ao longo do tempo e dependendo da comunidade,
em formas diferenciadas . Sua origem pode estar relacionada, no passado, aos anti-
gos processos de titularização das terras ainda na época do Império. Vieira (2007)
explica o processo de titularização das terras, onde hoje se encontram os municí-
pios de Garuva, Joinville, Itapoá e São Francisco do Sul, mediante as sesmarias, que
era o processo de concessão de terras devolutas pelo Império - através do pedido
formal de interessados, frente à justificativa de propriedade de escravos e necessi-
dade de produção agropecuária. Assim, mesmo que “caboclos”, ao que diria Vieira
(2007), mantivessem pequenas roças e tirassem da natureza seus meios de sobre-

134
vivência, a concessão de título estava vinculada a fatores externos às práticas ter-
ritoriais destes sujeitos, mantendo-os alheios e/ou submissos às decisões de acesso
aos territórios de uso comunal pelos então titulados “posseiros”.
A figura do “pistoleiro” ou “jagunço”, que é de contrato direto pelo “fazendeiro”,
surge como a figura de controle ao acesso à diversas áreas de manejo ou mesmo
de importância ritual, como o cemitério. A restrição do livre acesso ao território é
enunciada como a ameaça dos “pistoleiros” aos cipozeiros, salvo exceções por laços
de familiaridade, amizade e autorizações pontuais. Certos “pistoleiros” mais restri-
tivos ficam famosos por sua rigidez e maldade, como é o caso do chamado “Maneco
Preto”, que segundo Dona Maria P. (agosto/2009) era um cara ruim que matava,
arrancava a cabeça e com o corpo ainda quente violentava sexualmente a vítima.
A veracidade sobre tal fato fica em dúvida, como enfatiza a própria informante,
porém a permanência do “Maneco Preto” quanto um “mito” local, citado por mui-
tos, mostra claramente a relação entre a violência simbólica e a restrição de acesso
ao território imposto pela ameaça direta e o medo.
Em determinadas localidades os próprios “pistoleiros” tem maiores permissivi-
dades mediante cobranças pelo acesso, como por exemplo, no caso em que cipozei-
ros devem deixar parte do material coletado, como o cipó imbé, como forma de
pagamento ao direito de acesso. Em muitos casos os depoentes afirmam maior
restrição devido à caça e palmito, que, sendo confundidos com caçadores ou pal-
miteiros perdem todo e qualquer direito pelo manejo de diversos recursos antes uti-
lizados. Assim, uma tendência apontada é a maior restrição, notoriamente em áreas
mais abundantes em caça e palmito. Segundo a informação de uma cipozeira, isso
ocorre porque os próprios pistoleiros seriam “agentes” de venda do palmito, autori-
zando seu “roubo” no território sob seu cuidado, assim a circulação de cipozeiros
representariam aos mesmos um risco de denúncia aos órgãos de fiscalização am-
biental. Os depoimentos apontam que existem também pessoas “especializadas”
na caça, realizando uma forma de caça esportiva - sem respeito às formas corretas
e critérios de manejo “sustentável”, “tirando” mais que o necessário ao sustento,
como também aos palmiteiros - entendidos socialmente como ladrões, numa for-
ma de crime organizado. Ouvi, de informantes que optaram por não se identificar,
de que alguns chacreiros fazem a “ceva” (engorda) da paca para posterior caçada
“esportiva” local, e que, os interessados deste tipo de caça seriam autoridades de
cargos públicos da região de Joinville. Recentemente um caso muito comentado
foi sobre o vice-prefeito de Guaratuba, que foi preso sob acusação de liderar uma
quadrilha de “roubo de palmito”, segundo Seu Narciso (dezembro/2009) esse fato
é sabido há muitos anos. Para os cipozeiros, “no mato” fica difícil diferenciar quem
é cipozeiro, quem é palmiteiro e quem é caçador; sendo todos considerados poten-
ciais suspeitos de crimes. A dificuldade do reconhecimento coloca na mesma con-
dição de ilegalidade os cipozeiros, expondo-os a todas as formas de violência, seja
do Estado, como das quadrilhas de palmito e caçadores esportivos. Enquanto de
um lado há depoimentos sobre o envolvimento de autoridades na caça “esportiva”,
de outro, cipozeiros são violentamente reprimidos por policiais da Força Verde, que
invadem suas casas sem ordem judicial, e com força “prenderam uma senhora que
tava com o tatu na panela” e deram “um soco na boca” de um cidadão que negou-o

135
acesso à casa83.
A restrição do livre acesso aos recursos naturais é conseqüência à
restrição de livre acesso ao território, porém, esta categoria trata de situações em
que o cipozeiro passa a estar susceptível à fiscalização e ameaça de prisão pelo porte
do material colhido. Neste caso, a “ambientalização do direito” (ALMEIDA, 2008)
coloca em situação vulnerável os sujeitos da ação sem ao menos considerar e veri-
ficar a existência de estratégias de manejo “sustentável” e a relação entre a cultura
local e sua materialidade, considerando suas práticas espaciais. Cabe-nos lembrar
as reflexões de Almeida (2008) quando problematiza sobre quem são os verdadei-
ros agentes da degradação dos recursos naturais.
Em sua territorialidade os recursos são acessados de maneiras diversas,
atualmente certos depoimentos mostram a violência física e a violência simbólica
quando demonstram os mecanismos de restrição direta. Dona Nica e seu marido
(outubro/2009) afirmaram que “(...) se colocar o barco na água, leva tiro (...)”,
enfatizando a impossibilidade de pesca em rio próximo à sua casa, pois o mesmo
corta uma propriedade privada. Dona Ruth (2006) contou sobre outro cipozeiro,
que quando abordado pela polícia ambiental teve todo seu cipó picotado com facão
pelo policial, em outro depoimento foi afirmado que “(...) se cortar uma vara de
bambu, o meio ambiente vem (...)” (Seu Zé Cadomiro, março/2010). Tais ações res-
tritivas ignoram completamente as práticas de manejo dos recursos, pois existe um
forte laço entre o reconhecimento quanto cipozeiro tradicional e o reconhecimento
social sobre as práticas de manejo local. Dona Judith (2006), assumindo a necessi-
dade de caça para consumo da proteína, afirmou que “(...) sei quando posso tirar
uma paca, por exemplo, agora não é época de paca, ela tá prenha (...)”, o mesmo
afirmou ainda que na caça para o consumo é retirado somente o necessário para a
alimentação, que é dividida entre os familiares vizinhos. Existe uma ética de silên-
cio por tal assunto, visto sua forte restrição legal e violência praticada pela Polícia
Ambiental e Força Verde. Uma afirmação é sempre recorrente: de que cipozeiro não
é caçador nem palmiteiro.
Outra prática em vulnerabilidade é a “roça”. Em certas localidades a prática de
“roça”, ou corte de árvores em áreas com regime de pousio e rotatividade, é restri-
tiva por ação do “meio ambiente”, em referência aos orgãos de fiscalização ambien-
tal, como a Força Verde, por exemplo (polícia ambiental do Paraná). Nesta situação
a limitação da prática tradicional da roça - que é algo muito mais amplo que o sim-
ples plantio de espécies como mandioca, milho, feijão, etc - torna-se um problema
de ordem alimentar, econômica e de saúde, pois não recorrendo ao próprio alimen-
to o cipozeiro passa a necessitar de ganho econômico para a compra de alimentos
industrializados. Tal fato, não se restringindo aos cipozeiros, é bem explicado por
Litaiff (1996) como uma ameaça aos Guarani Mbyá, quando investem seu tempo de
trabalho na prática do artesanato - na perspectiva de venda em grandes centros -, e
assim deixam de plantar sua roça e passam a consumir produtos industrializados,
com claros prejuízos à saúde. Analogamente, aos cipozeiros a falta de alternativas
econômicas e a impossibilidade de subsistência na “roça” agravam suas condições
e práticas em sua territorialidade específica, mediante mecanismos de violência di-
83 Depoimentos (em fevereiro de 2011) de pessoas moradoras da APA de Guaratuba, que optaram por não se identificar
por medo de repressões locais.

136
reta e simbólica. O aparecimento dos orgãos de fiscalização, para Dona Judith (fe-
vereiro/2011), ocorre devido à queimada posterior ao roçado da área, assim, ao ver
a fumaça da queima, ou mediante denúncias anônimas, ocorre a fiscalização sobre
a área, podendo resultar na prisão do “dono da roça”. De maneira geral a prática do
roçado, do plantio e colheita é facilitado pelo regime de “matirão”.
As formas de Ameaças e Repressão acontecem em diversas situações sociais
que envolvem o acesso ao território tradicionalmente ocupado e aos recursos natu-
rais, porém não somente restritas à essas situações. Mais recentemente a região de
Garuva e Itapoá, principalmente, vem recebendo recursos oriundos do PAC - Plano
de Aceleração do Crescimento, do governo federal, para a construção do porto de
Itapoá e as estradas de acesso à ele. Nessas localidades, em depoimentos gravados,
alguns cipozeiros da Mina Velha afirmaram formas de ameaças que vem recebendo
dos agentes do governo, que segundo eles são fiscais das obras, que em suas investi-
das mais duras ordenaram a saída de suas casas para a construção da estrada, visto
que o traçado da estrada passava sobre seus terrenos (Seu Antonio Laite, setem-
bro/2009). Ao que tivemos notícias em tempo, tal depoente - conhecedor de seus
direitos -, não se retirou, moveu ação judicial, recebeu indenização, construiu sua
casa e finalmente mudou-se. Entre o tempo de a abertura da ação e a mudança, as
ameaças ocorriam sistematicamente como afirmou Seu Antonio Laite, de que não
ganharia nada e que “(...) seria melhor pegar os três mil reais, senão não vai ficar
com nada (…)’’, o fiscal sugeria assim sua mudança imediata, e, de fato, o litígio
sobre essa área atrasou o desenrolar das obras. Essa forma de violência abateu de
tal forma o cipozeiro que o mesmo afirmava ter “parado de tecer” por causa da es-
trada, pois “(...) o estado tá ameaçando (...)”, e que pretendia “voltar a tecer” tão
logo fosse possível, o que mantinha-o economicamente era a aposentadoria (setem-
bro/2009).
Em situação muito semelhante, Dona Maria (de Sol Nascente) foi obrigada re-
centemente ao seu deslocamento pelo mesmo motivo, embora não tenha infor-
mações sobre sua devida indenização; a mesma (em outubro/2009) demonstrou
grande indignação com a obra da mesma estrada, que passou em sua proximidade.
Neste caso, visitamos sua casa que situava-se defronte a um pequeno morro, que
segundo ela era de grande importância natural pois existiam ali duas nascentes
de água e duas cachoeiras que alimentavam um rio que delimitava seu terreno.
Ela dizia que antigamente não se podia nem fazer uma roça ali, pois logo vinha o
“meio ambiente” para multar, nessas condições ela foi impedida de possuir uma
vaca, por conta da proximidade do rio, de fazer carvão - oriundo das áreas de roça
-, de tirar cipó, etc. Certa vez ela afirmou ao policial: “(...) se vocês trouxerem cinco
litros de leite todo dia não precisa desmatar isso aqui (..)”, se referindo à uma área
de roça. Nesta condição a cipozeira afirmava que a sobrevivência ficou tão difícil
naquela localidade que “(...) todo mundo foi embora (...)”, a restrição dos meios
materiais, das práticas de sobrevivência foram condicionados de tal forma, que não
houve alternativas locais para a maioria dos antigos moradores, que se mudaram,
dando lugar aos novos proprietários - grandes produtores de banana e arroz. A
indignação desta senhora morava no fato de que as ameaças que sofreu historica-
mente foi em nome de um meio ambiente “preservado”, e que hoje, os mesmos
“agentes da preservação” estavam destruindo as fontes d’água, as duas cachoeiras

137
e a mesma natureza preservada em que antes ela era acusada de prejudicar. Mais
recentemente em nova saída para o mapeamento, passamos em frente à casa desta
senhora e percebemos que o mesmo morro que havíamos visto desmatado na época
da entrevista hoje não existe mais, a terra que o constituía foi utilizada como aterro
da estrada para o porto de Itapoá. Atualmente fomos informados de que sua casa
também havia sido derrubada e que esta senhora agora é residente da sede do mu-
nicípio de Garuva.
Histórias como essas são recorrentes em muitas das comunidades visitadas, que
apontam a existência de Grilagem, Golpes, Expulsão do Território e Êxodo,
como fatos ocorridos e vividos por familiares, vizinhos e amigos. Nestas ultimas
situações relatadas em Mina Velha e Sol Nascente, respectivamente, ficam claras
as formas de ação de agentes do estado - em diversos orgãos -, e dos empresários
agricolas, que sob a égide da necessidade de produção encabeçam duras investidas
aos “pequenos”, limitando cada vez mais as possibilidades em manter seu modo de
vida. No primeiro depoimento, do cipozeiro de Mina Velha, a conquista pelo direito
de indenização aconteceu primeiramente por seu conhecimento de seus direitos
fundamentais em viver com dignidade, porém o conhecimento por seus direitos
aconteceu da ocasião em que foi expulso de sua casa em situação anterior.
Os relatos de grilagem de terra e golpes também demonstram uma lógica, talvez
histórica, onde, em alguns casos os domínios da grande propriedade avançam sobre
os “pequenos”, derrubando-lhes a cerca e atropelando até seu direito pela proprie-
dade; em outros casos, são relatados fatos que começam na parceria da produção
agrícola, e que avançam no domínio do mais forte - seja por força física, ou outras
formas de violência - em golpes que repercutem no êxodo de seu território de
origem (Seu Felício e Dona Maria, novembro/2009). Tais situações sociais colocam
frente a frente os antagonistas sociais e influenciam profundamente as relações so-
ciais locais, visto que, no caso das grandes propriedades, seus trabalhadores são
também moradores locais, que em alguns casos agem sob ordens contra os próprios
vizinhos, e assim encampam um jogo de forças presente no dia a dia da comunidade
- do boteco ao mato.
Os relatos sobre os êxodos das comunidades foram coletados, obviamente, em
sua maioria, a partir da sede do município, ou nas comunidades de destino dos
“retirantes”. Na grande maioria dos relatos as pessoas raramente declararam que
viviam na mesma localidade desde o nascimento, porém, originários da região, ou
não, sempre houve a prática de uso comum do território tradicionalmente ocupado
principalmente em atividades relacionadas ao “mato”, à pesca, e claro à roça. Em
depoimento (Dona Maria, Dona Ruth e Dona Marlene, junho/2009) na região onde
se localiza o cemitério próximo ao Morro Grande, considerado um local sagrado por
muitos cipozeiros, fica clara a residência de aproximadamente trinta famílias até a
década de setenta, e que hoje não há mais ninguém, somente um fazendeiro que
restringe o acesso àquele antigo território ocupado (vide foto anterior da placa de
restrição ao acesso). Uma antiga moradora da localidade (Dona Maria Hernaski)
afirmou que houve um projeto do governo municipal na década de sessenta em
levar os cipozeiros das comunidades mais afastadas à sede do município, e que
o bairro nesta sede conhecido como Jorgia Paula, foi construído a partir dessa
mudança “em massa”; para ela o motivo de tal mudança foi de abrir caminho aos

138
grandes produtores de banana e arroz no município a partir da desocupação do
território, outros depoimentos convergem com este, embora Vieira (2007) aborde
a transformação da região do Lamim em um “deserto populacional” não investi-
gamos outros documentos historiográficos que confirmem tais indicações, nesse
ponto faz-se necessária uma pesquisa objetivada ao assunto. Segundo Dona Maria,
concomitante a este processo foi a implementação da empresa madeireira Batis-
tella, na sede do município, que foi responsável por grande transferência de mão-
de-obra das comunidades.
A concentração de mão-de-obra especializada em artesanato na sede do mu-
nicípio de Garuva é um fato amplamente conhecido, que, se por um lado garan-
tiu a desocupação de parte do território da região para a produção em regime de
monocultura, por outro, garantiu o exército de reserva e o lucro dos empresários do
artesanato. O afastamento de práticas como a roça, a pesca, o mato - que faz com
que os cipozeiros se realizem na plenitude de sua cultura e se reconheçam como tal
- tem repercussões psicológicas muito negativas que envolvem baixa auto-estima,
submissão, baixa coesão social, etc. Os relatos sobre depressão ou “tristeza” são
frequentes, um pouco menos frequentes são os relatos sobre suicídios. Isso parece
estar relacionado ao distanciamento entre o modo de ser e existir em uma cultu-
ra, passando a virar um trabalhador ou trabalhadora de um fazer especializado da
relação capital / trabalho. Onde o afastamento de suas práticas culturais em sua
territorialidade específica gradativamente significa o afastamento de sua identi-
dade cultural e coletiva.
Este cenário histórico e complexo abre campo ao fato facilmente verificável da
Exploração do Trabalho e Baixa Remuneração. Já em pesquisa preliminar
neste campo foi verificada a renda média mensal individual de aproximadamente
cento e cinco reais, ou um sexto de um salário mínimo, com o trabalho no arte-
sanato de cipó imbé (ANTUNES, 2007). Tal fato se explica em diversos fatores.
Primeiramente pela exploração do trabalho exercida pelos atravessadores, que ape-
sar de remunerar muito mal os cipozeiros e artesãos, são a única garantia de renda
mais perene aos mesmos. Outro problema relatado em relação aos atravessadores
é a recorrência de calotes no pagamento, cheques sem fundo, encomendas que não
são retiradas, etc, que produzem um certo “mapeamento” local dos atravessadores
“bons” que pagam pouco, mas pagam “direitinho”, dos atravessadores caloteiros,
que não trabalham por muito tempo na região com os mesmos cipozeiros e ar-
tesãos, diferenciando as fontes de fornecimento do artesanato na medida que reali-
zam seus “calotes”.
A falta de coesão social dos cipozeiros contribui para a compra de artesanato
distribuída na extensão do território (pelos atravessadores), com a comercialização
centralizada em grandes centros e mercados como os CEASAs, impondo também a
prática de barganha e certa concorrência entre um cipozeiro e outro. Outro aspec-
to que verificamos em certas comunidades foi a prática comercial exploratória de
famílias de cipozeiros moradores de comunidades em localidades remotas, como é
o caso do Descoberto, Empanturrado, Riozinho, Rasgado, Rasgadinho e Saí-mirim.
Os próprios cipozeiros que realizavam o mapeamento ficaram impressionados com
alguns preços relatados, como foi o caso dos “lequinhos” - leques trançados em
miniaturas - que o valor pago era de um real e setenta e cinco centavos a dúzia pro-

139
duzida, ou quinze centavos a unidade. Neste caso, a impossibilidade de envio aos
mercados interessados, e o completo desconhecimento sobre tais mercados, coloca
os cipozeiros em condição de dependência dos atravessadores para a comerciali-
zação do artesanato, que garante uma renda extra à família. São poucos os casos em
que as famílias de cipozeiros vivam exclusivamente do artesanato de cipó imbé. Na
oportunidade de venda direta em 2010, em uma feira promovida pelo Ministério de
Desenvolvimento Agrário - MDA, Seu Avelino, liderança cipozeira, vendeu a dois
reais e oitenta centavos uma bandeja que normalmente é vendida a trinta centavos
ao atravessador. Assim, novas perspectivas de mercado tem sido investigadas por
alguns cipozeiros mais sensibilizados às problemáticas da exploração comercial.
Assim, a Dificuldade de Comercialização também é fruto deste cenário
onde figura: a existência de atravessadores exploradores, o distanciamento entre
o mercado de consumidores finais e os cipozeiros produtores do artesanato, a falta
de coesão social e mobilização política pelos interesses e direitos coletivos funda-
mentais, e a concentração de produção direcionada somente à mercados de produ-
tos com baixíssimos valores agregados. A dependência em relação aos atravessa-
dores somada à distância dos pontos de coleta de matérias-primas tem submetido
algumas famílias de cipozeiros à dependência da compra destes materiais, fato
que agrava a situação, pois, para tecer não é mais necessário “ir pro mato”, o que
caracteriza uma especialização do trabalho ligado exclusivamente à mão de obra do
artesanato, “descolando” os cipozeiros das práticas e fazeres que caracterizam sua
cultura, sendo empregados somente como força de trabalho. Este deslocamento,
esta especialização, resulta no distanciamento entre o sujeito e seu ambiente, in-
clusive entre o sujeito e sua identidade cultural, que repercutem na perda de seu
“domínio” territorial pelo afastamento direto. Assim, através da imposição de um
poder econômico, comercial, há uma forma de “desterritorialização” dos sujeitos e
suas práticas. Entendemos que a dependência de uma lógica comercial, que produz
a dependência material, inclusive com a encomenda de peças diretamente ligada
ao fornecimento de matérias-primas, é um fato extremamente grave, visto que, é
reflexo do processo de desterritorialização do grupo, ligado é claro, ao processo
histórico - como vem sendo exposto.
A dificuldade de comercialização e exploração do trabalho artesanal, vem tra-
zendo outra preocupação aos pais de família, que é o Desinteresse dos Filhos.
Esta leitura, do afastamento dos filhos como uma preocupação, não foi algo dire-
tamente exposto na ocorrência das entrevistas feitas nas comunidades, mas surgiu
como produto dos debates das Oficinas de Legendas, ocorridas ao final de 2010.
Assim, nestas situações de discussões sobre as categorias de conflitos e sistemati-
zação do processo de entrevistas, algumas mães (Dona Iracema, Dona Ruth, Dona
Ângela) expuseram que seus filhos não querem mais tecer, não se interessam pela
atividade que propciou renda à sua própria criação, sob a justificativa de que é
“muito trabalho para pouco ganho”, que é algo lógico e compreensível, frente tais
formas de exploração.
Os relatos por Falta de Matéria-Prima são bem frequentes, embora tam-
bém seja enunciado como as “longas distâncias” que devem ser percorridas para
o manejo do cipó, entre outros materiais, e, embora hajam estratégias de manejo
responsável. Estes critérios de manejo, passados de pais para os filhos, permitem,

140
segundo os cipozeiros, a permanente presença de cipó nas áreas naturais, visto que
muitas dessas áreas são acessadas há muitos anos. Em outras palavras, tendo o
manejo correto não falta cipó. E nesse sentido os cipozeiros tradicionais, que se
reconhecem pela detenção de práticas e conhecimentos sobre o manejo, acusam
a presença mais recente do que denominamos de “cipozeiros ocasionais”, que não
possuem práticas de manejo com critérios, e portanto, destroem as mãezeiras, ti-
ram cipó verde, aumentam o peso do feixe com pedras ou banho do cipó em água
e “tiram só para vender”. Tais práticas predatórias, segundo eles, exercem maior
pressão sobre o recurso natural pois além da coleta em grandes volumes não há o
respeito ao ciclo natural da planta, que é compreendida como um bem somente
comerciável. Essas práticas são mais relatadas pelos cipozeiros residentes na sede
do município, onde há grande concentração dos mesmos, e uma procura por “ex-
tratores”, tendo em vista a necessidade de grande volume de matéria-prima para
suprir o mercado dos atravessadores e a falta de localidades próximas com livre
acesso e disponibilidade de recurso ao manejo. Importante frisar que a compra do
“cipó de fora” teve início na década de 90, segundo os relatos, o que está condicio-
nado a fatores já mencionados acima.
Outro fato que decorre na falta de matéria prima é o Desmatamento. Afinal,
sem “mato”, ou, sem floresta, não há cipó, sendo uma importante forma de geração
de renda com as florestas em pé. Mas claro que sua importância não se resume à
geração de renda. A percepção pelos desmatamentos é concordante com o “fecha-
mento” de grandes fazendas na região, entre algumas mais citadas: Comfloresta,
Weg - a Sentinela, entre outras, que tiveram como marco o plantio de pinus e eu-
calipto em monocultivo; para Vieira (2007) esse processo ocorre desde a ação das
empresas da Paix e Cia, como dito anteriormente. Nestas localidades os cipozeiros
apontam a supressão da floresta para a produção agrícola, como a banana, o arroz,
e as espécies exóticas como o Plantio de Pinus e Eucalipto. Sendo o desmata-
mento associado a formas de produção em escala, geralmente em regime de mono-
cultura.
Estas formas de produção também são associadas, em diversos depoimentos, à
Poluição e Envenenamento de Rios. Em depoimento na região de Bom Futuro
os cipozeiros (Dona Nica e seu marido, outubro/2009) afirmaram que na ocasião do
início da produção de arroz neste local, eles encontravam muitos pássaros mortos,
que “(...) chegava a tirar de saco (...)”, e que antigamente “(...) tinha cipó no quin-
tal (...)”, não precisando entrar grandes distâncias mato adentro para o manejo. Já
na região conhecida como Palmital, onde se localiza o Rio Palmital (principal aflu-
ente da Baia de Babitonga - que divide a ilha de São Francisco do Sul de Joinville),
ocorreu em mais de uma ocasião a morte de grande quantidade de peixes, quando
os cipozeiros desconfiavam do lançamento de “veneno” pelos arrozeiros; em 2009
dois senhores passaram mal ao ingerir os peixes “contaminados” (Dona Ruth, Seu
Jango e Dona Marlene, 2009). Tal fato foi denunciado à prefeitura e nada foi feito.
Localmente surgiu um boato de que os peixes haveriam morrido “(...) por causa
de uma fábrica de queijos, que laçou o soro na água (...)”. Até hoje ninguém sabe
exatamente os motivos.
As histórias de Assassinatos ocorreram em algumas localidades de maneira
mais enfática, como no caso do Rasgado e Rasgadinho, em que eram apontadas já

141
em um primeiro contato para o mapeamento, mas de maneira mais cuidadosa em
outras localidades. Nestas, informantes ilustram a violência do “pistoleiro” como
no Descoberto, em menção ao famoso e temido “Maneco Preto”, ou em situações
de ameaça como o dito em que “(...) o pistoleiro não matou meu marido porque ele
tava na cerca e falou que era pistoleiro também, mas o feixe tava amarradinho es-
condido (...)” (Dona Margarida, novembro/2009). Assim, os assassinatos estão en-
voltos por um receio ao depoimento, figurando de certa forma o que Arruti (2006)
denomina como o ethos do silêncio, mas também são mais abertamente declara-
dos nos casos de brigas pessoais como no conflito em uma ocupação de terra em
Sol Nascente. Os fatos mais impressionantes foram declarados em Rasgado e Ras-
gadinho (Guaratuba - PR), quando do assassinato de cinco pessoas em um ano, em
2008. Os informantes declararam que na ocasião das mortes, eram implantados
pequenos feixes de palmito ao lado dos corpos dos ditos cipozeiros, para que fossem
confundidos com palmiteiros. Nestas localidades os conflitos deflagrados colocam
em linha de frente algumas famílias de cipozeiros que vivem “do mato”, das peque-
nas roças, entre outras atividades, com os grandes produtores de banana e arroz.
Em tais localidades os trabalhadores da agricultura extensiva são trazidos do nor-
deste do Brasil e moram em casas padrão de madeira branca e azul, que em muito
lembram pequenas vilas operárias.
Os conflitos são muito particulares a cada comunidade, e, como dito, não é pos-
sível afirmar sua generalização no território mais abrangente. Estes resultados es-
tão postos no processo de mapeamento situacional dos cipozeiros, cujo mapa fi-
nal84 foi divulgado no 1º Encontro Interestadual de Cipozeiros e Cipozeiras (em
17 de dezembro de 2010). As subdivisões dos conflitos resultam de interpretações
comuns aos cipozeiros e a equipe de pesquisa durante a ocasião das oficinas de
legendas, considerando as ricas declarações obtidas e nos valendo das anotações
tomadas e das gravações feitas nas ocasiões das saídas a campo em oito meses de
mapeamento, principalmente.
A organização das informações dispostas no mapa final foi feita em duas Ofici-
nas de Legendas, que ocorreram nos meses de outubro e novembro de 2010. Assim,
foram discutidas todas as categorias de conflitos, e estes reorganizados de maneira
agrupada para sua exposição mais clara. Para cada conflito significativo foi elabo-
rado um desenho representativo, cujo ícone central do desenho foi um consenso do
grupo (composto por sete adultos e três crianças). Assim o grupo foi dividido em
três grupos menores, para divisão dos trabalhos e maior envolvimento de todos,
bem como maior produção de desenhos no curto período de tempo, sendo dois
grupos formados por três pessoas e um grupo de quatro pessoas. O trabalho das
crianças foi concentrado em grupo só, sendo estas orientadas por um adulto no
direcionamento dos desenhos.
O mapa situacional em sua forma final contou com longo trabalho de síntese
das legendas, e também um longo trabalho de adequação da base cartográfica, jun-
tamente com um geógrafo85. Na adequação da base cartográfica, houve vasta in-
vestida na adequação de cores e conteúdos ao reconhecimento das localidades do
84 O Mapa final não é posto na presente publicação por simples questão de espaço e formato do livro, caso haja interesse
em acesso a este, solicitamos contato com os autores.
85 O geógrafo Erwin Becker Marques antigo membro do Laboratório do Projeto Nova Cartografia Social de Guarapuava
- PR.

142
território pelos cipozeiros, como, por exemplo, na especificação de rios, estradas de
terra, escolas, igrejas, estradas estaduais e federais, nomes de municípios, distri-
tos e comunidades. Tal trabalho rendeu a elaboração de dezoito versões do mapa,
em aproximadamente seis meses de trabalho, desde o envio dos primeiros dados
como os pontos coletados nas comunidades até o fechamento propriamente dito.
Importante salientar que esse trabalho só foi possível por nossa viabilidade de co-
municação pela internet (através do software skype), interface do GPS através de
software livre (Track Maker) e trocas de arquivos pesados por sites de acesso livre
(4shared). Sem tais ferramentas o tempo do trabalho iria aumentar muito.
Salientamos tais aspectos de procedimentos para registrar que toda a descrição
detalhada dos conflitos e domínios sobre o território, feita pelo trabalho de pes-
quisa dos cipozeiros, e por nós assessorada, teve como objetivo a publicação e vali-
dação do mapa final cuja linguagem deveria representar essa tradução, em tempo
hábil ao seu lançamento no 1º Encontro Interestadual de Cipozeiros e Cipozeiras,
promovido pelo MICI, tendo como foco a mobilização política do grupo. Assim,
não bastassem os objetivos específicos à pesquisa de campo, para levantamento
de informações e sua sistematização, o mapeamento como sistema de represen-
tação de fatos direcionou-se à síntese e ampliação da visibilidade da identidade
coletiva objetivada em seu movimento social, cujas repercussões ainda estão em
andamento, não cabendo aqui uma avaliação conclusiva sobre seus resultados, e
sim somente sobre os meios de sua elaboração.
Após a divulgação do mapa final devemos registrar aqui outra forma de antago-
nismo social que recentemente assola o grupo em questão. Trata-se da negação da
autodefinição, imposta por categorias sociais externas ao grupo, notadamente de
análises acadêmicas que insistem em classificar o grupo segundo critérios fundiári-
os e de ocupação econômica, fugindo aos critérios indentitários. No próprio En-
contro do Movimento em 2010 e, em reunião do MICI em 2011 testemunhamos a
arrogância de pesquisadores que insistiram em afirmar que determinados sujeitos
de uma comunidade não são cipozeiros, como pode ser visto também em Ferreira
et al, 2011. Tal fato, de gravidade extrema, contradiz o fato registrado de que os
mesmos sujeitos se auto-definiram como cipozeiros nas entrevistas realizadas, bem
como contradiz os próprios pesquisadores em mensagem anterior no blog da Rede
Puxirão86, ao afirmarem literalmente que: “Sou professora na Federal do Paraná e
trabalho com um grupo de 20 cipozeiros na Comunidade Rural de São joaozinho na
APA de Guaratuba. Tenho muito interesse em participar do Encontro em agosto.
Gostaria de saber se o espaço contará com mesas de debates entre os cipozeiros?
Continue postando para que eu possa me inteirar dessas noticiais.”. Salientamos
aqui, que esta mensagem trouxe a informação sobre a existência de cipozeiros nesta
comunidade, e que isso influenciou na busca de maiores detalhamentos no pro-
cesso de mapeamento situacional. Entendemos que tal situação prejudica exclusi-
vamente aos grupos sociais envolvidos, pois confunde e inviabiliza seu processo de
mobilização política e de territorialização. Entendemos que a atitude destes pes-
quisadores vem tão somente afirmar e legitimar suas próprias categorias teóricas,
definidas em trabalhos acadêmicos quanto “caiçaras rurais” e “lavradores”, e que
86 Disponível em http://redepuxirao.blogspot.com.br/2010/02/cipozeiros-em-fase-final-de-seu.html, acessado em 13 de
novembro de 2012.

143
não somente desmobiliza os povos tradicionais envolvidos, como também subsume
seus direitos à auto-definição sob a ética da fenomenológica “democracia dialógi-
ca”. Como afirmado em situações práticas, mantemos a postura de que somente os
sujeitos sociais tem o poder de afirmar quem são, de se auto-definir em sua identi-
dade cultural como é posto nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal (BRASIL,
1988), na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT (BRA-
SIL, 2004) e no Decreto Federal nº. 6.040 (BRASIL, 2007).

Considerações Finais

A descrição e o mapa situacional ora apresentados representam uma tentativa


de se desenhar a cartografia social dos cipozeiros e seu processo de desterritoriali-
zação associado ao processo de devastação da Mata Atlântica.
Tal processo é estimulado pelos interesses vinculados aos diferentes circuitos
do mercado de commodities (banana, arroz, pinus e eucaliptus) e das políticas
governamentais, que tem sido favoráveis à expansão de obras de infraestrutura im-
pactantes ao grupo social. Com efeito, o que está em jogo é a preservação de um
vasto território ocupado por cipozeiros e uma diversidade de povos tradicionais
na Mata Atlântica, os quais se colocam em oposição às ações de desmatamento e
devastação provocadas pelos projetos agropecuários, de grãos, de papel e celulose,
madeireiros e, as grandes obras de infraestrutura, em especial, portos e estradas.
A pesquisa, portanto, registra a existência de um conflito aberto, intenso e vio-
lento, que envolve a participação de diferentes agentes sociais e interesses, cuja
resultante maior consiste na desestruturação da economia familiar dos cipozeiros,
inclusive colocando-os diante da possibilidade iminente de escassez dos recursos
básicos, que são utilizados para sua reprodução social. Os resultados visíveis desse
processo, que já se anuncia, podem ser constatados pelas diversas modificações de
práticas produtivas impostas aos chamados cipozeiros, entre as quais, a necessidade
de caminhar distâncias cada vez maiores para encontrar o cipó e outros recursos;
a intensificação da coleta e, retirada de cipó verde; o surgimento da categoria de
“tirador” de cipó, que tem provocado a destruição das mãezeiras e a criação de um
mercado de venda de cipó verde aos cipozeiros e, uma intensificação do trabalho
assalariado eventual em situação análogo ao trabalho escravo, dos denominados
“artesões ou tecedores”.
Cabe salientar que o crescimento econômico do município de Garuva e região
vem recebendo investidas significativas no âmbito municipal, estadual e federal.
Com isso, o município, antes caracterizado por uma economia baseada na produção
rural, atualmente vem apresentando amplo crescimento do setor industrial, por ser
uma região estratégica em termos de produção e logística (salvo sua presença entre
Joinville e Curitiba, proximidade ao Porto de Itapoá e instalação de empreendi-
mentos transnacionais). Tais fatos, visíveis em campo, apontam novas demandas
de pesquisa com enfoque nas formas de antagonismos sociais sobre as comuni-
dades tradicionais da região. Este detalhamento deve não somente investigar as no-
vas situações sociais dos conflitos territoriais, como também fomentar o processo
de politização dos cipozeiros e outras comunidades (Guaranis Mbyá, pescadores
artesanais, quilombolas, etc).

144
Atualmente a pauta de trabalho dos cipozeiros do MICI se concentra em três
linhas de ação:
1. Na construção de uma lei municipal, inicialmente para Garuva, que permita
a reabertura do território tradicionalmente ocupado. O ponto de partida para esta
política pública surge dos debates sobre as experiências das Quebradeiras de Coco
Babaçú, com a lei do babaçu livre, da experiência das Benzedeiras e Agentes de cura
do Paraná, e dos acordos comunitários de comunidades Faxinalenses. E, embora a
esfera da conquista de novos direitos circunde a câmara municipal, os trabalhos de
formação e discussão sobre o contexto social vivido, frente aos seus direitos, deve
ser feito nas diferentes comunidades de cipozeiros, na compreensão de sua instru-
mentalização quanto operadores de direitos;
2. Na realização de pesquisas botânicas referentes ao Censo de Mãezeras e suas
áreas de decorrência em dois territórios distintos em Garuva, visando o possível
encaminhamento para a implementação de uma unidade de conservação de uso
sustentável dos recursos. Tal pesquisa deve testar a hipótese de que as estratégias
de manejo dos cipozeiros tradicionais respeitam a manutenção de estoque de cipó
imbé nas “malhas de cipó”, bem como questionar a superficialidade de determi-
nadas pesquisas e a proposta de sugestões desengajadas do contexto social, como
pode ser visto em Vieira, 2011.
3. Nas discussões sobre a formalização do grupo de cipozeiros e objetivação das
questões mercantis através de uma cooperativa de trabalho. Trata-se aqui de uma
demanda estreitamente engajada com a lógica de produção de uma coletividade,
que portanto necessita do trabalho de formação que contraponha a lógica das situ-
ações mercantis individualistas focadas na acumulação de capital.
Considerando a importância deste trabalho do MICI objetivado nas três linhas
de ação, enfatizamos aqui sua fundamental articulação, que se pese a importância
do processo de politização do grupo focado nestes trabalhos.

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146
Nas Margens do Fundão: Política, Expropriação, Direito e História da
Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha/PR

Rafael Palermo Buti87

Resumo

O artigo é uma tentativa de descrever o presente e o histórico de luta e de estraté-


gias de mobilização e autopreservação da comunidade quilombola Invernada Paiol
de Telha (Reserva do Iguaçu-PR). Apoiado em fontes documentais e etnográficas,
ele pretende mostrar como o caso Paiol de Telha se confunde com a própria história
social, agrária e jurídica brasileira, nos permitindo tomá-lo como emblema para se
pensar os quilombos no Brasil de hoje. Primeiro porque os membros comunitários
foram expulsos, na década dos anos sessenta e setenta, das terras legadas aos seus
ascendentes escravos libertos no século dezenove. Segundo porque os fatores que
culminaram com a saída dos mesmos foram determinados por ações orquestradas
por atores ligados ao poder público local. E terceiro, pelo fato de as possibilidades
efetivas de retorno às terras serem fruto de uma convergência de forças acionadas
pelas políticas nativa, dos movimentos sociais e do Estado Brasileiro, em um con-
texto mais amplo de emergência das identidades frente às políticas de reconheci-
mento do Estado.

A comunidade quilombola Invernada Paiol de Telha no cenário bra-


sileiro

A comunidade quilombola Invernada Paiol de Telha foi a primeira no Estado do


Paraná a receber o certificado de autoatribuição enquanto “comunidade quilom-
bola”. Emitido pela Fundação Cultural Palmares, tal feita se dera no ano de 2005,
como resultado do histórico de mobilização de seus membros junto a alguns gru-
87 Doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Fed-
eral de Santa Catarina (PPGAS/UFSC) - rafaelpbuti@gmail.com

147
pos ligados aos movimentos sociais daquele Estado. Com o processo administra-
tivo para fins de regularização aberto junto ao Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária do Estado do Paraná (INCRA/PR) naquele mesmo ano, vislum-
brou-se a possibilidade de, pela primeira vez na história nacional, uma comunidade
quilombola paranaense ter um título de terras emitido pelo Estado, como condicio-
nante dos direitos constitucionais adquiridos.88
Muito embora todas as etapas de tal processo junto ao INCRA tenham sido cum-
pridas até o no ano de 2009, um relativo hiato, ou silêncio, por parte do órgão,
caracteriza o atual cenário reivindicatório do grupo. De um modo bastante con-
tundente, pode-se dizer que a história da comunidade quilombola Paiol de Telha
se confunde com a própria história social, jurídica e agrária brasileira, por basica-
mente três principais fatores. Primeiro porque, expulsos de suas terras desde a dé-
cada dos anos setenta, boa parte dos “negros do Fundão”, como são conhecidos -
hoje espalhados pela região de Guarapuava - jamais tiveram a possibilidade efetiva
de, pelos canais da justiça comum, reaver as terras das quais foram expropriados e
que reivindicam enquanto legítimos herdeiros.
Segundo, os fatores que culminaram com a saída dessas famílias das mesmas
foram determinados por ações orquestradas por atores ligados ao poder público
local: na ocasião, um delegado de Guarapuava foi o principal responsável pelas
ações envolvendo a saída das famílias, que tiveram que deixar as terras para que
estas acolhessem a então Cooperativa Central Agrária Ltda., formada por imi-
grantes de origem germânica recém-ingressos no Brasil conhecidos por “Suábios
do Danúbio”89. Além disso, essas terras só seriam legalizadas em nome da referida
cooperativa em decorrência de um processo de usucapião minado por vícios e im-
peditivos legais, movido pela mesma.
Terceiro, os fatores que incidiram na possibilidade, vinte anos depois de expulsos,
de o grupo reaver seus direitos pelas terras, foram determinados pela convergência
entre as estratégias de mobilização e autopreservação do grupo, a participação ativa
de setores ligados aos movimentos sociais paranaenses implicados com a questão
agrária e étnica do Estado, e a existência de uma política de reconhecimento le-
gal do direito quilombola por parte do Estado Nacional embasada na Constituição
88 O número do Processo administrativo da comunidade junto ao INCRA/PR é 54200.001727/2005-08. De acordo com
a Fundação Cultural Palmares, atualmente o Estado do Paraná conta com 35 comunidades quilombolas com certificado
de autodefinição emitido pela mesma. O INCRA informa que 37 comunidades quilombolas paranaenses estão com pro-
cesso administrativo aberto na autarquia para fins de regularização fundiária. Para maiores informações acessar: http://
www.palmares.gov.br/quilombola e file:///C:/Documents%20and%20Settings/Rafael/My%20Documents/Downloads/
processos_abertos.pdf.
89 Sua atual denominação é Cooperativa Agrária Mista Entre Rios Ltda. Seus associados imigrantes chegaram ao Brasil
a partir de 1951, vindos da região do médio Danubio, nos países da antiga Iugoslávia, Hungria e Romênia. A região
de origem dos suábios pertencia ao extinto império Austro-Húngaro, este, desmembrado após a I Guerra Mundial e
dividido entre os países acima mencionados. Apoiados por agências internacionais e pelo governo brasileiro no período
Vargas, os suábios vieram para o Brasil motivados, principalmente, motivados a desenvolver a cultura do trigo. Para
assentá-los foi adquirida uma área de 8.500 hectares decorrente de antigas fazendas de criar, na região nos campos de
Guarapuava. Era um grupo formado por 222 indivíduos que deram origem à colônia Entre Rios, organizados em cinco
núcleos, ou aldeias. Para dar suporte à imigração e representar os interesses dos colonos recém-chegados, em 1951 foi
criada a Cooperativa Central Agrária Ltda., à qual os colonos se associaram. A melhora no rendimento das lavouras
destes imigrantes exigiu a ampliação das áreas cultivadas e os colonos adquiriram outras fazendas locais, dentre as quais
a Fazenda Invernada Paiol de Telha Atualmente, a colônia Entre Rios ocupa uma área de 22.000 ha, continua sendo for-
mada por cinco aldeias e totaliza perto de 2.500 indivíduos. As culturas hoje praticadas são trigo, soja, cevada, milho e
outras menores, como batatas e verduras. Há também uma pecuária expressiva, com produção leiteira. Sobre o assunto
ver HELM, 1967. Ver também o site da Cooperativa http://www.agraria.com.br/.

148
Federal e outras condicionantes normativas. Foi a partir, portanto, desse encontro
entre política étnica, movimentos sociais e política de reconhecimento do Estado no
contexto de redemocratização do país, que o movimento pelo retorno às terras do
Fundão ganhou novos contornos, transformando-se em caso emblemático e carro-
chefe do movimento quilombola e social do Estado paranaense.
O presente artigo é uma tentativa de descrever, à luz de uma perspectiva
etnográfica e historiográfica, o histórico de luta e de estratégias de mobilização e
autopreservação do grupo. Primeiramente ele se apoiará na documentação que le-
gitimou a apropriação das terras da Invernada Paiol de Telhas por parte da Agrária
para, posteriormente, descrever, baseado em fontes documentais e etnográficas, as
ações de engajamento do grupo no intuito de reverter um quadro que sempre lhe foi
estruturalmente desfavorável e perverso naquele contexto social.

Algumas informações sobre as terras da Invernada Paiol de Telha

As terras da Invernada90 remetem à herança deixada por uma senhora de nome


Balbina Francisca de Siqueira a quatorze dos seus escravos no ano de 186691. Na
ocasião, Balbina, ao fazê-lo, também libertava os escravos legatários, cujos suces-
sores ali viveram por mais de um século. Os membros comunitários de hoje são,
portanto, descendentes destes escravos e herdeiros do “Fundão”, boa parte teste-
munha ocular dos eventos ocorridos na década de setenta que culminaram na saída
das famílias.
Contabilizados em aproximadamente trezentas famílias, os membros comuni-
tários vivem hoje principalmente em quatro diferentes bases espaciais ou “núcleos”,
como são denominadas as localidades por parte dos mesmos, de acordo com os
diversos atores envolvidos no processo de reivindicação. São as localidades: os
municípios paranaenses de Guarapuava e Pinhão, um assentamento do INCRA,
localizado na Colônia Socorro, distrito de Entre-Rios, e constituído com o intuito
de mediar e resolver o conflito gerado a partir do alargamento do processo reivin-
dicatório da comunidade no ano de 1996, com o estabelecimento de um acampa-
mento com diversas famílias de herdeiros no entorno da estrada que dá acesso à
área reivindicada, cuja retomada sob a designação de Barranco constitui a quarta
base espacial.92
Em boa medida, a atual caracterização do grupo diz muito sobre os processos
históricos pelos quais seus membros estão inseridos. Trata-se de famílias e parentes
que, mesmo espalhados por diferentes regiões e lugares (sobretudo por decorrência
da expulsão) deram continuidade às suas relações e laços. Em parte, esta continui-
dade foi determinante para que, mesmo depois de dispersas pós-expulsão, as famíl-
ias criassem estratégias de mobilização e autopreservação. E foram justamente es-
90 De acordo com as informações do grupo e com a documentação histórica consultada, a área reivindicada pela comu-
nidade Invernada Paiol de Telha tem aproximadamente 3.500 alqueires de terras, situando-se no município de Reserva
do Iguaçu (-25.838889° S -52.027778° W). Localizada no Centro-Sul Paranaense, integra a Microrregião de Guarapuava,
tendo como municípios limítrofes Pinhão, Candói, Foz do Jordão, Mangueirinha, Coronel Domingos Soares e Bituruna.
91 A partilha dos bens de Balbina, embora tenha sido feita após a abertura do Inventário da mesma, no ano de 1866,
é uma ação que remete ao testamento elaborado por seu marido Manoel Ferreira dos Santos, falecido no ano de 1852,
conforme informações arroladas no Testamento de Manoel Ferreira dos Santos. Arquivo de notas do Cartório Gouveia.
Livro 8, fls. 3v-6 Bairro do Pinhão, Freguesia de Guarapuava, 2 de abril de 1851.
92 Prova da importância e autonomia política dos núcleos é o fato de cada um deles ter sua própria associação.

149
sas estratégias que permitiram que algumas delas passassem a viver, novamente,
juntas. Para compreender essas dinâmicas, passemos a descrever os bastidores do
processo que determinou a saída das famílias do Fundão.

Os bastidores de uma “reforma agrária pacífica”: documentação so-


bre a aquisição e regularização das terras da Invernada por parte da
Cooperativa.

Em 1974, Mathias Leh, presidente da Cooperativa Central Agrária Ltda, envi-


ava uma carta aos diferentes órgãos e representantes dos poderes do governo lo-
cal e nacional, informando sobre o quinhão de terras denominado “fazenda Paiol
de Telhas”, à época localizado no município de Guarapuava e oferecido por um
delegado da mesma cidade.93
Em resposta, tanto o INCRA quanto diversos outros órgãos apoiavam as in-
vestidas da Agrária em relação ao referido imóvel94. Dizia a carta que o projeto de
“reforma agrária pacífica” ofertado pela Cooperativa tinha como intuito “proporcio-
nar aos cooperados”, no caso, os imigrantes suábios, “possuidores de áreas muito
pequenas, maiores áreas agricultáveis”. Isto justificava o fato da Agrária, que já
contava com projetos do tipo em localidades vizinhas no Estado, estar “adquirindo
extensa área de terras no município de Pinhão”.
Apoiados por agências financiadoras nacionais (“Banco do Brasil”, “Banco Cen-
tral”, “BRDE”, “INCRA e o Ministério da Agricultura”) e internacionais, (“universi-
dades dos Estados Unidos, da Áustria, Suíça e Alemanha, e departamentos gover-
namentais destes países”), a Cooperativa, ao mesmo tempo que pedia auxílio sobre
a idoneidade do negócio, avisava que já havia comprado as terras da fazenda “Paiol
de Telha”, ou “Fundão”, oferecidas havia algumas semanas pelo “Dr. Oscar Pacheco
dos Santos”, então delegado em Guarapuava.
O negócio teria sido feito, segundo a carta, mesmo sabendo que haveria de ain-
da serem legalizadas as terras legadas aos herdeiros, e que tal ato, “a legalização
definitiva de posse da fazenda”, faria extinguir-se “uma situação de crise social e
política”. A carta ainda salienta que a Agrária prestava estas informações “para pre-
venir futuros mal-entendidos ou comentários” que imputassem a empresa “seg-
undas intenções ao negócio”. Em resposta, o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA), recomendava o negócio, - que estaria sendo realizado
por “prestigiosa entidade, em prol de seus associados”-, mas somente uma vez que
esteja “respaldado pelos cuidados legais que a matéria exige”95.
A suposta iminência do que Mathias Leh denominava “convulsão social e políti-
ca” estaria sendo resolvida, segunda a carta, com a aquisição, por parte da Agrária,
daquele quinhão de terras. É por isso que se fazia necessário avisar aos órgãos com-
petentes sobre tal feita, e anunciar que sua legalização se tornava imprescindível
à idoneidade do ato. Somente sete anos depois, em 1981, é que, sob nova denomi-
93 Em decorrência de processos de desmembramento e criação de novos municípios na antiga área de abrangência de
Guarapuava, as terras estão hoje localizadas no município de Reserva do Iguaçu.
94 Cf. Carta da Agrária Ltda., assinada por seu presidente, aos seguintes destinatários: Coordenação Regional do IN-
CRA, Direção do Ministério da Agricultura do Estado do Paraná, Comando do 26º GAC, Comarca de Guarapuava. 18
de outubro de 1974.
95 Cf. Carta do Diretor Estadual do Ministério da Agricultura do Paraná. 01º de novembro de 1974. (SILVA, 1997)

150
nação, a “Cooperativa Agrária Entre-Rios Limitada” formalizaria o pedido de ação
de usucapião contra os “sucessores dos escravos Heleodoro e Outros”.
Parte do histórico de ocupação da Invernada Paiol de Telha está relatado no
próprio processo de usucapião. De acordo com o documento Autos do Processo
n. 136/86, Ação de Usucapião movida pela Cooperativa Agrária Mista Entre Rios
Ltda. sobre a área designada Invernada Paiol de Telhas, a ação de usucapião estava
fundamentada no fato de “alguns herdeiros terem cessionado seus direitos heredi-
tários a Oscar Pacheco dos Santos, que os cessionou à Autora”, na ocasião, a Coop-
erativa Agrária. Esta, por sua vez, “plasmada nos direitos hereditários (...) veio re-
sidir neste juízo com a presente ação” (AUTOS DO PROCESSO n. 136/86, p. 236).96
O documento traz a seguinte argumentação:

Desde 1866, os referidos ex-escravos, primeiro por si e depois


através de seus descendentes, vieram mantendo pacífica, ininter-
rupta e incontestavelmente a POSSE do imóvel, até o ano de 1973,
quando começaram a vender seus direitos de posse ao sr. OSCAR PA-
CHECO DOS SANTOS, através de inúmeras escrituras de “cessão de
direitos de posse hereditários”. Essas operações de compra e venda
de POSSE se iniciaram em meados do ano de 1973 e se alongaram
até setembro de 1974, época em que OSCAR PACHECO DOS SANTOS
já havia adquirido os “direitos” de grande maioria dos descendentes
dos escravos legatários que residiam e mantinham a posse do imóvel,
maioria essa que se estimava em mais de 90% (Idem, p. 05).

E prossegue afirmando que

aos 17 de setembro de 1974, OSCAR PACHECO DOS SANTOS


transferiu à autora, Cooperativa Agrária Mista Entre-Rios Ltda.,
TODOS os direitos de POSSE que já exercia sobre o imóvel adquiridos
através das escrituras sobreditas, transferência ou cessão essa que
fez através da escritura pública outorgada naquela data (Ididem).

O documento dá a entender também que “os posseiros remanescentes” que ain-


da permaneciam no imóvel já estavam combinados a ceder ou vender seus direitos
ao Sr. Oscar Pacheco, que deste modo, transferia, “por antecipação, aqueles direitos
já negociados e que pendiam de documentar” (AUTOS DO PROCESSO n. 136/86,
p. 06). Assim,

após adquirir a maior posse dos direitos de posse sobre


a fazenda, ali ainda estadeavam alguns possuidores, cujos
direitos, após várias demarches, tanto do Sr. Oscar Pacheco
dos Santos quanto da ora autora, foram sendo acertados e
adquiridos através das competentes escrituras (Ididem).

Deste modo, conforme o argumento da cooperativa no tocante a legitimidade do


pedido de usucapião,

a autora já havia adquirido, até outubro de 1975, os direitos pos-


96 Cf. Carta do Diretor Estadual do Ministério da Agricultura do Paraná. 01º de novembro de 1974. (SILVA, 1997)

151
sessórios de todos os remanescentes que mantinham posse no imóvel,
os quais se retiraram da terra e lhe transferiram as posses, de sorte
que, nessa época, a autora passou a ter POSSE INTEGRAL da fa-
zenda (Idem, p. 07).

Em março de 1983, o então juiz de direito, José Amoriti Ribeiro, homologa-


va “por sentença a justificação de posse procedida nos autos n.390/81 de Ação de
Usucapião proposta pela Cooperativa”, declarando “justificada a posse da Autora”
(Idem, p. 224). Se atentem para este nome: José Amoriti Ribeiro. Como veremos
adiante, ele é ninguém menos do que o filho de uma das pessoas que, juntamente
com Oscar Pacheco dos Santos, adquiriu os direitos possessórios de alguns herdei-
ros. Mas para que este fato viesse à tona, algumas águas deveriam rolar. Continue-
mos com a ação de usucapião, nos atentando para os contestantes da ação movida
pela Agrária.

Os contestantes

Tanto a procuradoria do Estado do Paraná, quanto alguns herdeiros e curi-


osamente o próprio Oscar Pacheco dos Santos, contestaram a ação proposta pela
Agrária. Segundo eles, a Agrária não preenchia os três requisitos básicos a serem
cumpridos para tal finalidade: a posse contínua, exclusiva, e pacífica das terras a
serem usucapidas. Pelo contrário, o fato de a posse ser “duvidosa, em partes in-
certas e não especificadas” (Idem, p . 233), ligada ao fato de a Agrária não ter com-
provado a aquisição dos direitos de todos os herdeiros, não os nomeando nem os
identificando (Idem, p. 278), são os argumentos dos contestantes que deslegitima-
vam a condição “exclusiva” da posse das terras referidas. Nas linhas que seguem
a procuração feita pelo advogado dos descendentes da escrava Rita Batista Bello,
Edgar Virmond Arruda:

A posse, não sendo certa ou individuada, se constitui numa fração


ideal dentro do todo que é a fazenda Fundão, e, não pode assim a Au-
tora alegar posse exclusiva sobre o imóvel, pretendendo o reconheci-
mento da prescrição aquisitiva em seu favor, caso assim o faça, es-
tará em oposição aos seus próprios títulos, que diz serem originários
do seu direito (Idem, p. 255).

E mais, o argumento que pesa a este dado pelo advogado, se deve ao fato mostra-
do pelo então advogado de Oscar Pacheco, João Fernando Cunha e Cunha, de que
“vários descendentes dos escravos ainda residiam na área”, e que o documento que
lega os direitos hereditários dos herdeiros à Cooperativa, comprova isto, sem se-
quer os identificar ou esclarecer se seus direitos foram adquiridos (Idem, p. 267).
A posse também não seria “contínua” pois não se poderia “somar essa atual e
recentíssima posse a dos antecessores de todos os descendentes vivos”, haja vista o
fato de a “ocupação se situar aquém do prazo legal” (Idem, p. 282, 283). Ligado a
isto, um dos argumentos do advogado de alguns herdeiros era o fato de, já em 1976,
os contestantes terem ajuizado uma ação de reintegração de posse, fundamentados
pelo “direito de arrependimento”.

152
O mesmo advogado de João Pacheco é quem contestaria, não somente a não “ex-
clusividade” da Agrária no exercício da posse da terra (“somente uma parcela dos
herdeiros teria vendido seus quinhões”, diria ele), mas o fato de que, se se guiasse
pelos artigos 550 e 552 do Código Civil97, a Cooperativa Agrária jamais poderia se
valer dos anos de ocupação dos herdeiros (que data do século dezenove) para, plas-
mada nos direitos hereditários a ela cessionados, fundamentar o pedido de “posse
contínua”. Pelo contrário, deveria ser contada a “continuidade” da posse da Autora
somente a partir dos anos que ela adquiriu, de seu próprio contestante (Oscar Pa-
checo dos Santos), as terras que em 1981 intentava usucapir: 17 de setembro de
1974, “data da escritura por ela celebrada, isto é, menos de sete anos quando do
aforamento desta ação” (Idem, p. 278). 98
A posse não seria “pacífica” pelo fato de a Agrária ter “maliciosamente se apro-
priado dos quinhões hereditários dos herdeiros que não venderam seus direitos”
(Idem, p. 277, 278). Eis, curiosamente, a argumentação dos defensores de Oscar
Pacheco. Ela se fundamenta no fato da Cooperativa ter se apropriado maliciosa-
mente dos quinhões hereditários daquela suposta minoria de famílias de herdei-
ros que não vendeu seus direitos. Justo Oscar Pacheco que, em carta de um dos
descendentes dos escravos em questão ao então presidente Ernesto Geisel, datada
de 1975, aparecia como a persona non grata dos descendentes dos escravos de
Balbina, por tê-los ludibriado, falsificado assinaturas e representações em prol da
aquisição daquele quinhão.99
A Procuradoria-Geral do Estado do Paraná também contestou a ação da Agrária,
sob a fundamentação de que tal Estado “jamais revalidou, ou legitimou para os
sucessores de Balbina ou os escravos libertos, ou mesmo à Autora, com relação
à área ali pretendida” (AUTOS DO PROCESSO n. 136/86, p. 337). O argumento
dos procuradores se baseava no fato de que as terras referentes ao imóvel Paiol de
Telha eram “devolutas do Estado”, tanto por que seus proprietários não receberam
as Cartas de Sesmarias quando ainda vigorava o regime imperial, quanto pelo fato
de, a partir da criação da “primeira e única legislação sistemática sobre as terras no
Brasil” (Idem, p. 338), - a Lei n. 601 do ano de 1850 -, não requereram a legitimação
de posse perante o Estado do Paraná, prevista por aquela nova legislação (Idem, p.
339).
Segundo a procuradoria, o imóvel legado por Balbina, remonta o ano de 1829,
quando seu marido, Manoel Ferreira dos Santos, “obteve direito a requerer uma
sesmaria”. Com seu falecimento, - “que apesar de ter sido contemplado com os di-
reitos para requerer uma sesmaria, não o fez - as terras em que se localizara ficaram
pertencendo à sua mulher, Balbina Francisca de Siqueira”. Ela, por sua vez, não
teria regularizado as terras, que poderia ser feita requerendo ao “Juízo de Comis-
sário de Guarapuava a medição para fins de legitimação da sua área, (...) a assim
obter a regularização do seu imóvel através de legitimação. Não o fazendo, tal área
97 Nas letras de Cunha e Cunha: “não o socorre o disposto no art.552 do cód. Civil, uma vez que não é possível acrescer
a posse dos antepassados em favor de um só herdeiro, em detrimento dos demais” (Idem, p. 273).
98 Para deslegitimar a condição de “posse contínua” defendida pela Agrária, Cunha e Cunha recorre ao entendimento
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quando parafraseia a Ementa: “As coisas possuídas em comum não são
suscetíveis de usucapião, salvo se o condômino prescribente prove haver cessado, de fato o condomínio, passando a
possuir a coisa como exclusivamente sua por mais de 30 anos”. Como se vê, este não foi o caso do exercício de posse da
Autora: nem exclusiva, nem contínua, e, como se verá, nem pacífica.
99 Discorreremos adiante sobre esta carta.

153
não foi estremada do Domínio Público, permanecendo até a presente data como
devoluta do Estado do Paraná”. (Idem, p. 331, 332).
De acordo com os advogados da procuradoria, os então proprietários da fazenda
portavam somente “Confirmação Régia”, datada de 1855, espécie de “Registro de
Posse Paroquial”, simples autorização para se localizar. Não contavam, portanto,
com título legítimo emitido pela Coroa, mas mera autorização para “ocuparem” a
gleba de terras. Nas palavras de um deles:

Aquele diploma legal [a legislação de 1850] ordenava que todas


as terras existentes no país fossem medidas, discriminando as devo-
lutas das do domínio particular (...), por não portar título hábil, que
se prestasse para registrar (Escritura Pública legalmente válida), ou
mesmo simplesmente para pedir revalidação ao Estado, caberia a
Dona Balbina, única e exclusivamente a via da legitimação da posse.
Não a utilizando, como não utilizou, a área, ora usucapienda, desde
aquela época, 1850, se caracterizou como devoluta, permanecendo
até a presente data com tal caráter (Idem, p. 339).

Eis, portanto, que, para a procuradoria do Estado do Paraná, a fazenda Paiol de


Telha não poderia ser usucapida a favor da Agrária pelo fato de o Estado jamais ter
legalizado as terras em nome de Manoel, Balbina ou os herdeiros, seja na época em
que vigorava o regime de sesmarias, seja durante a Lei de Terras de 1850, seja de-
pois da força do dispositivo da Constituição de 1891, momento no qual foi editada
a “lei n. 68, que passou a reger as formas de regularização das terras devolutas que
passaram a serem públicas devolutas estaduais” (Idem, p. 338).

Juízos e juízes finais ?

Porém, nenhum dos argumentos acima citados fez com que a ação de usucapião
movida pela Agrária contra os sucessores dos escravos de Balbina fosse negada pe-
los juízes que responderam ao caso. Em 29 de março de 1989, o caso foi julgado pelo
poder judiciário, em 1ª Instância na Comarca de Pinhão, como favorável à Agrária.
O juiz da sentença, José Sebastião Fagundes Cunha, julgou “procedente o pedido
contido na demanda, para declarar o domínio da área em favor da Cooperativa
Agrária Mista Entre Rios Limitada” (AUTOS DO PROCESSO n. 136/86, p. 801).
Este julgamento foi fundamentado nas provas mostradas pelas “testemunhas
confrontantes”, que afirmavam que “todas as famílias que ali residiam cederam
seus direitos a Oscar ou a Autora, de forma pacífica e sem qualquer incidente”,
informando “que a Autora adquiriu os direitos de todos os herdeiros conhecidos e
que estavam na posse” (Idem, p. 799). Há de se ressaltar um dado importante no
documento. O fato de que somente “uma das testemunhas [de defesa dos herdei-
ros] afirma que foi retirada da área, e outra que ouviu comentários de que a violên-
cia fora utilizada para retirar posseiros do local”. Porém, absolutamente nenhum
desses argumentos pesou contra a Agrária.
De um lado temos uma testemunha que comprova não ter sido “pacífico” o pro-

154
cesso de aquisição de posse da área por parte da Agrária, e do outro, podemos ver,
do ponto de vista jurídico, corroborada a afirmação dada pelo presidente da Agrária,
Mathias Leh, em carta datada de 1974 a importantes órgãos e setores estaduais, de
que a aquisição, por parte da Agrária, daquelas terras, faria extinguir uma iminente
convulsão política e social na área, deflagrada por supostos “posseiros” que habita-
vam o local.100
Além disso, contrariando a fundamentação da defensoria pública do Estado,
Cunha afirma que não necessariamente “as terras que não foram registradas no
registro imobiliário sejam devolutas”. O juiz ainda salienta que a Lei n. 601 de 1850
evocada pelos procuradores do Estado é clara ao afirmar que as “terras públicas
deveriam ser consideradas devolutas”, mas não que “toda gleba que não seja par-
ticular é pública”.
O caso seguiria com o recurso de apelação, um mês depois, tanto da Procura-
doria Geral do Estado quanto de alguns autodenominados “herdeiros das terras
de Baibina”101, junto ao Egrério Tribunal de Justiça do Estado. As representações
adentradas por estes continuaram se fundamentando principalmente no fato de
que na “referida sentença de 1º grau, a posse não foi mansa e pacífica”, além de que
a Agrária adquiriu os direitos mencionados, de alguns herdeiros, o que significa,
não de todos, e em prejuízo dos contestantes que ora apelam, os quais adquiriram
os direitos de quase 40 cedentes herdeiros (...) sobre a totalidade da área, sem saber
a fração exata de cada um dos que lhes cederam (AUTOS DO PROCESSO n. 136/86,
p. 817).
Já a procuradoria do Estado continuava argumentando contra a sentença pelo
fato de as terras em questão serem devolutas do Estado do Paraná. O desconten-
tamento do então e atual advogado da Agrária, Edison José Sanches, contra as in-
vestidas da procuradoria, se devia ao fato de o Estado estar se opondo à Coopera-
tiva, uma vez que “deveria ser cúmplice, e não contestador” (Idem, p. 837).
Para Sanches, era justamente a Agrária que assegurava a produção de alimentos
para a região, amparada historicamente por um projeto fundiário arregimentado,
inclusive, por grupos e setores importantes da sociedade paranaense, como mostram
aquelas correspondências trocadas em 1974 entre o presidente da Agrária e repre-
sentantes dos poderes municipal e estadual. Sobre elas, nas letras do advogado:

coube ao comandante do 26 GAC, e ao bispo diocesano, Dom


Frederico Helmel, que procuraram aquele presidente da Autora,
para sugerir-lhe a aquisição do Imóvel Fundão, assegurando sua
ocupação e exploração racional, a fim de evitar o foco de convulsão
social que já se esboçava na área, em conseqüência de disputa das
terras por intrusos e especuladores (Idem, p. 836).

Alguns herdeiros contestaram, tais quais “Oscar de Castro”. Sobre ele Edison
José Sanches alega que nunca houvera qualquer “convicção” de sua parte, quando
afirma ter sido expulso das terras, comprovada pelo fato de nunca ter “reclamado ou
contestado a ação”. Tudo se passa como se, aqueles ou estes herdeiros ludibriados
100 Conforme a já mencionada carta da Cooperativa Central Agrária Ltda., assinada por seu presidente, aos seguintes
destinatários: Coordenação Regional do INCRA, Direção do Ministério da Agricultura do Estado do Paraná, Comando
do 26º GAC, Comarca de Guarapuava. 18 de outubro de 1974.
101 Os referidos herdeiros são: Waldemiro Odia, Jurandir Sebastião Teixeira e Izauri Fidêncio Madureira (Idem, p. 815)

155
pelos poderes constituídos, estivessem sempre aptos a se situarem juridicamente
em prol de seus direitos.
O exemplo mostrado por Sanches nos faz pensar que, se não houve contestação
jurídica da ação, não houve injustiça efetivada. É como se a linguagem das repre-
sentações e contestações “oficiais” fosse a única via pela qual o mundo efetivo pu-
desse ser legitimado. E é justamente este abismo, entre um mundo “efetivo”, e um
mundo “político” e “jurídico” - que ideologicamente representam, reportam e tra-
duzem o efetivo -, que possibilitou ao projeto de “reforma agrária pacífica” proposto
pela Agrária ignorar as vozes, contestações e situações daqueles que, tendo que cor-
rer - e recorrer - atrás de prazos e direitos situados em instâncias outras, perderam
as terras onde “efetivamente” nasceram e viveram.
E isto fato e feito, a força contestatória dos descendentes na busca por suas ter-
ras, fundamentados pelo “direito hereditário”, foi como que ocultada pela argu-
mentação já posta, de Sanches, de que “a sucessão hereditária não é oponível aos
direitos de posse da Autora”, haja vista que “os direitos hereditários foram anulados
pelo direito novo, nascido da posse exclusiva” (AUTOS DO PROCESSO n. 136/86,
p. 838), sabendo-se ignorado o fato de que, de exclusiva, pacífica e mansa, tal posse
nunca teve de nada.
O “juízo final” deste continuum de vozes e posições foi dado em outubro de 1991,
pelos juízes Duarte Medeiros e Mendes Silva, no Tribunal de Alçada do Estado do
Paraná. Ao Estado, o argumento de que o Registro do Vigário (datado de 1855)
“visava legalizar a situação de fato das posses”, fez com que “as terras de Balbina
teriam sido homologadas” e, por isso “a posse dos antecessores da Autora está esco-
rada em título reconhecido judicialmente, título legítimo” (fls. 926).
Aos herdeiros, (no caso, “Waldemiro Odia e outros”, estes, como já mencionado,
os únicos que contestaram a sentença proferida em 1989), houve improcedência
quanto ao apelo, pois não comprovaram sua condição de sucessores dos antigos
adquirentes - ex-escravos - e nem posse na área em questão. A prova testemunhal é
no sentido de que a autora adquiriu os direitos de todos os herdeiros conhecidos e
que estavam na posse e que desconhecem outros herdeiros que estivessem na posse
do imóvel e não foram cedentes (Idem, p. 927).
E assim parecia estar encerrada a questão judicial que envolveu, por dez anos, os
vivos e os mortos ligados àquelas terras e os direitos sobre elas. Nem os advogados
do Estado, nem os advogados dos herdeiros convenceram os juízes de que as terras
do Fundão não deveriam ser usucapidas à favor da Cooperativa Agrária Mista Entre
Rios. Mas quem disse que a briga terminaria por aí?

Para muito além dos prazos de contestação: estratégias do grupo


para reaver as terras do Fundão

No ano de 1994 alguns fatos foram levados por Domingos Guimarães


- descendente de um dos escravos legatários de Balbina - ao conhecimento do
Ministério Público, em representação por ele adentrada questionando a sentença
favorável à Agrária. As limitações legais desta investida se davam em decorrência
de haver prescrito o prazo de dois anos da ação rescisória, esta, “única ação judicial

156
que tem o poder de mudar uma sentença transitada em julgado”102. Tal limitação
jurídica dificultava bastante as possibilidades de se encaminhar a luta dentro dos
canais do poder judiciário.
Simultaneamente às investidas de Domingos junto ao Ministério Público, no iní-
cio nos anos noventa ações praticadas por outros herdeiros das terras da Invernada
fizeram alavancar um tipo de insurgência que convergiu para a formação, materiali-
zação e visualização de um movimento que dia após dia agregava um número maior
de pessoas em prol da causa dos herdeiros das terras da Invernada. A possibilidade
do retorno às mesmas ganhou novos contornos em decorrência do engajamento
dos membros da família Santeiro – também descendentes dos escravos de Balbina -
que no ano de 1996 acamparam às suas margens reivindicando o direito às mesmas
e permitindo a publicização do conflito.
Não se tratava somente daqueles poucos herdeiros que responderam, atomi-
zada e judicialmente, no transcurso de toda a década dos anos oitenta, pelas ações
contestatórias ao pedido de usucapião movido pela Agrária. Assessorados pela en-
tão Pastoral Rural103, outros personagens e ações foram surgindo, e com eles as
inúmeras histórias e relatos das injustiças vividas entre os anos de 1973 a 1975
que não constavam nos autos do referido processo foram ganhando visibilidade
nas reuniões organizadas pelos parentes da Invernada, relatadas em pareceres,
representações jurídicas e notas de jornal que passaram a interpretar, traduzir e
dar novas luzes ao caso.
Este movimento permitiu agregar parentes que não se viam desde a época da
expulsão: gente espalhada pelos bairros populares e favelas de Guarapuava, pelos
quinhões de terra no município de Pinhão, de Reserva do Iguaçu, de Coronel Vivida,
Mangueirinha, pelas periferias das cidades catarinenses e paulistas. Famílias que
há muito não se viam passaram a evocar um estatuto que as elevava à condição
de novos sujeitos políticos e de direito, instituindo o “conflito como fato político
e público” através do reconhecimento coletivo de uma “situação de desrespeito”
(ARRUTI, 1997, p. 2006).
É a partir desta época que as ações atomizadas ganharam o corpo daquilo que
Almeida (2006) chama de “existência coletiva” em torno de uma “mobilização étni-
ca”. Ela se ancorava no fato de os “negros do Fundão” serem os legítimos donos das
terras doadas aos seus ascendentes por Balbina e que, ao agregarem suas trajetórias
à possibilidade de reativar a luta pelo direito as mesmas (legitimados por um docu-
mento da herança datado do século dezenove), encarnaram conjuntamente uma
condição que os diferenciava de quaisquer outras pessoas e grupos da região: a de
serem “herdeiros das terras da Invernada”, ou “negros da Invernada”, “do Fundão”,
ou da “Fazenda Paiol de Telha”.104
Vejamos, pois, o que ocorreu com os sucessores dos escravos no período que
sucedeu a sentença final do processo de usucapião julgado favorável à Agrária. As-
sim desenharemos as estratégias do grupo, dadas a partir de ações quer de cunho
102 Cf. Anotações sobre as possibilidades de luta jurídica e política em relação à grilagem da fazenda Paiol de Telha ,
Arquivo Cempo (Central de Apoio ao Campesinato Antônio Tavares – Guarapuava), s/d, s/autor.
103 A Pastoral Rural se transformaria na Comissão Pastoral da Terra de Guarapuava (CPT), dando prosseguimento à
assessoria junto ao grupo.
104 Como veremos adiante, a assunção ao rótulo “quilombola”, por parte do grupo, será dada em um período posterior
a este.

157
jurídico-formais e dentro da esfera do direito estatal (como pedidos de Audiência
Pública e abertura do processo administrativo junto ao INCRA), quer de cunho de
uma política étnica e dentro da esfera das tomadas de decisão “práticas” do próprio
grupo (como a formação do acampamento e a ocupação do território reivindicado).
Elas nos permitirão conhecer também as estratégias das agências do Estado em
suas tentativas de mediar e resolver o conflito, que não se traduzia a uma questão
meramente fundiária, mas, sobretudo, cultural e étnica.

De 1994 a 1996: herdeiros das terras, dos papéis e das enxadas

Foram Domingos, Santeiro e sua falecida esposa, Anália, as figuras que con-
seguiram agregar e mobilizar um número grande de pessoas em prol de reaver as
terras do Fundão. Como se verá adiante, a seus modos, e a suas estratégias, estes
“anciões”105 costuraram o fio que pareceu formar o corpus do sistema político da
comunidade. Embora o guiando de modos bem diferentes, eles aparecem como os
principais protagonistas do movimento de retorno às terras, justamente por que
simbolizam e encabeçam dois diferentes tipos de estratégia e ação.
A família Santeiro106 foi a responsável direta por necessariamente todos os
acampamentos que ocorreram desde o primeiro, no ano de 1996. Passado o curso
dos anos que transcorreram a expulsão, as ações em vistas a luta por retornar ao
Fundão passaram a ser efetivadas na medida em que Santeiro, Anália e Osvaldo107
saíram de suas dependências do bairro Aeroporto, em Guarapuava, em dezembro
de 1996, para ocupar aquelas mesmas paragens de onde, vinte anos antes, foram
obrigados a sair assistindo, inclusive, um incêndio á sua casa. Como veremos adi-
ante, devido uma ação de reintegração de posse movida pela Agrária, o grupo de
acampados ficou apenas três dias no local.108
Eles tornariam a ocupar as terras seis meses depois, levando consigo não so-
mente os parentes mais próximos, mas muitas daquelas famílias que reivindicavam
o direito de ali viver. Nas palavras de Santeiro: “se a gente não acampar, as terras
nunca vão voltar pra gente”. Esta é a sina da família Santeiro, perdurada desde os
anos noventa até hoje, haja vista ainda estarem acampados. Foi a partir daquele
primeiro acampamento, em 1996, que a questão dos sucessores dos escravos de
Balbina tomou corpo e dimensão inesperados.
Simultaneamente a este movimento, desde pelo menos 1994, Domingos e seu
irmão, Geninho, passaram a se articular para atingir a mesma finalidade que a da
outra família. Porém, diferente das estratégias orquestradas pela família Santeiro,
Domingos se ancora em outros planos de ação e resistência. Seu material não é
105 Anciões é uma referência aos mais velhos, àqueles que viveram no Fundão e que reportam o “tempo dos antigos”.
Estes possuem bastante legitimidade para se posicionar no grupo, e resolver questões que a princípio só poderiam ser
resolvidas por aqueles que viveram nas terras da Invernada. Para oficializar esta posição de legitimidade, no ano de 2007
foi criado o “conselho dos anciões”.
106 Refiro-me aqui não somente às pessoas de Domingos Santeiro e sua esposa Anália, mas seus filhos, Milton, Gilson,
Nena, bem como o cônjuge desta, Osvaldo. É assim que muitas pessoas da comunidade se referem à eles, como “os
Santeiro”, ou “dos Santeiro”.
107 Osvaldo é casado com Nena, filha do casal Santeiro.
108 Estava também neste acampamento Ovídio, outro ancião da comunidade que à época vivia no Assentamento. Fa-
lecera no ano de 2010.

158
uma enxada, lonas e madeiras de um acampamento que se faz surgir em meio à
madrugada. Pelo contrário, suas ações são diurnas, pois é nesta fase do dia que
os procuradores, advogados, ativistas da causa se reúnem para discutir questões e
papéis que garantem direitos.
É de casa em casa, colhendo assinaturas dos herdeiros, promovendo reuniões
para a formação de uma associação, acessando a memória para contar as incríveis
histórias do Fundão, a saga dos seus ancestrais, que Domingos elabora seu plano de
retornar ao Fundão. Pode-se dizer que ele é o “teórico nativo” do grupo, a via pela
qual boa parte da história já escrita sobre a comunidade foi contada.
Muito embora ausentes no processo de usucapião, haja vista residentes no Es-
tado de São Paulo, foram os dois irmãos, Domingos e Geninho, quem, através de
documentações que reportam o ano de 1975, contaram e contam a história das pes-
soas que viveram no Fundão. São deles também as primeiras procurações e repre-
sentações que visavam, logo no início dos anos noventa, problematizar o sucesso
da Agrária no pedido de usucapião, reivindicando a necessidade de se instaurar
Inquérito Civil Público referente ao caso.
É com base nestes personagens que podemos elucidar duas diferentes estraté-
gias de mobilização e busca por direitos por parte da comunidade Paiol de Telha, e
assim entender por que a costura entre estes dois modos de reivindicação formou
o tecido no qual a bandeira da herança foi escrita. Passemos a descrever esses pro-
cessos.

O primeiro acampamento: a família Santeiro e a ação de reintegração


de posse

Na madrugada do dia 15 de dezembro de 1996, Santeiro, Anália e Osvaldo,


acompanhados de mais 11 pessoas, subiram em uma caminhonete emprestada de
um conhecido, e acamparam nas mesmas paragens que serviram de terreno para
as casas da família Santeiro, na “parte baixa” das terras da Invernada, onde o rio
Capão Grande percorre seus últimos quilômetros para encontrar o Rio da Reserva.
Na ocasião, foram os únicos a ocuparem as terras. Até então moradores do bairro
do Aeroporto, em Guarapuava, viviam em condições muito precárias. Foram para
Guarapuava depois de viverem na fazenda de “Tico Naivith”109. Após a expulsão das
terras da Invernada, na década de setenta, trabalharam e viveram ali por 18 anos,
como empregados do fazendeiro, até que, com problemas de saúde, Santeiro teve
que se mudar com a família para Guarapuava.
Ficaram aproximadamente 10 anos na cidade, de 1986 a 1996, quando decidiram
voltar para o Fundão. Embora em ambiente urbano, o casal sempre trabalhou nas
lidas do campo: colhendo batata, tomate, fazendo serviços esporádicos em serrar-
ias e plantações, como muitos que vivem em Guarapuava. Na ocasião do dia 15 de
dezembro de 1996, ficaram três dias acampados, tempo suficiente para que os ad-
vogados da Cooperativa entrassem com uma ação de despejo contra os “invasores”.
Saíram dali pacificamente.
Nesta ocasião já tinham em mãos a certidão expedida no 1º Cartório de Pro-
109 Conforme relatos de Santeiro, a fazenda é próxima das terras da Invernada

159
testo de Títulos e Registro de Títulos da Comarca de Guarapuava, dando conta da
alforria e doação feita por Balbina aos seus ascendentes escravos com cláusula de
inalienabilidade. O oficial de justiça que cuidava da ação, ao lê-lo, disse a um dos
administradores da Agrária que acompanhava o caso que as terras eram realmente
dos negros. No dia seguinte, o Grupamento de Operações Especiais da Polícia Mili-
tar de Guarapuava já estava ali para despejá-los110. A saída foi noticiada no telejor-
nal da cidade. Nena, esposa de Osvaldo que não participou, assistiu de casa o ato.111

Novas luzes sobre o caso: a imprensa local e as possibilidades de se


encaminhar o caso junto às políticas de reconhecimento do Estado

Nessa época (dezembro de 1996), um jornal da região alertava a comunidade lo-


cal ao fato de um “grupo de desempregados, idosos e crianças” ter invadido a “pro-
priedade de uma das cooperativas mais produtivas do Estado”112. Embora Santeiro
diga que o primeiro acampamento não tenha contado (ao menos diretamente) com
nenhum grupo de apoio, o informativo salientava que aqueles desempregados afir-
maram “ter apoio da Pastoral da Terra de Guarapuava113 e do deputado Rosinha114.
Na interpretação da Cooperativa, o fato de supostos herdeiros reclamarem a
posse das terras significava “tentativa de extorsão de dinheiro”. O noticiário ainda
explicava que todos os descendentes dos escravos que se mantiveram na posse “ven-
deram seus direitos à Cooperativa, abrindo mão de forma documentada a qualquer
reivindicação futura”.
Antes mesmo do acampamento, no início deste mesmo ano, algumas reporta-
gens sobre o caso Invernada, publicadas no jornal “A Tribuna de Guarapuava”, pela
sua proprietária e jornalista Cristina Estech115, já haviam dado grande visibilidade
à história e situação dos sucessores dos escravos de Balbina. A primeira, datada de
fevereiro de 1996, noticiava, além do histórico do grupo e de relatos sobre os abusos
das ações que culminaram com a expulsão - cujos envolvidos eram ninguém menos
que o então delegado de Guarapuava, Oscar Pacheco dos Santos e um prestigiado
comerciante local, João Trinco Ribeiro -, a realização da quarta reunião dos herdei-
ros das terras da Invernada, no Clube Operário, em Guarapuava.116
Segundo a reportagem, o ponto de pauta da referida reunião se apoiava “em
110 Cf. noticiário local (s/d e título). Arquivo Cempo
111 Como já elucidado, Nena é filha do casal Santeiro e esposa de Osvaldo.
112 Cf. noticiário local (s/d e título). Arquivo Cempo.
113 Em resposta, Dionísio Vandresen, da Pastoral Rural, diria, no noticiário do jornal “A Tribuna de Guarapuava” datado
de 1996, que apesar de estar vinculado à demanda do grupo, o referido acampamento não contou com a participação da
Pastoral, por ser uma ação isolada daqueles que o fizeram.
114 Florisvaldo Fier, o Dr. Rosinha, acompanha o movimento de reivindicação dos herdeiros das terras da Invernada
desde meados da década de noventa. Ele é atual deputado federal do Paraná, pelo PT, e também vice presidente do Par-
lamento do Mercosul.
115 Cristina Estech foi a fundadora, em 2004, do jornal “A Tribuna Regional do Centro-Oeste” - antigo “A Tribuna de
Guarapuava” -, do qual é proprietária. “Com 12 páginas no formato tabloide americano com 7 mil exemplares, o jornal
“genuinamente guarapuavano” circula no centro, nos bairros e em distritos do município, além de 14 municípios da
Cantuquiriguaçu (região de Laranjeiras do Sul) e Amocentro (região de Pitanga)”. (http://www.redesuldenoticias.com.
br/noticias/noticia.asp?id=20588, visto em 30 de setembro de 2009).
116 O jornal salientava a criação de um “movimento nacional, com apoio de várias entidades sindicais e políticas”, como
o deputado federal Roque Zimmermann, a CUT, o Centro de Direitos Humanos, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais,
a Pastoral da Terra, a Associação dos Agentes de Pastoral Negros, entre outros.

160
um novo recurso dos herdeiros para driblar a sentença da Procuradoria Geral da
República do Paraná que, em 1995, arquivou uma representação adentrada por
Geninho e Domingos”. Tratava-se de uma proposta de emenda ao artigo 68 dos
Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal
de 1988 apresentada pela então senadora petista Benedita da Silva.117
Se tal artigo estabelecia a obrigatoriedade de o Estado emitir a posse definitiva
das terras habitadas por comunidades remanescentes de quilombo, “pela emenda
constitucional, porém, o conceito de descendente passa a ser ampliado e as ter-
ras conhecidas como antigos quilombos poderiam ser tombadas como patrimônio
histórico cultural”.118
Sem explicar ao certo como ou porque, a partir da ampliação do conceito de
“descendente”, as terras conhecidas como “antigos quilombos” tornar-se-iam
patrimônio histórico cultural, a reportagem nos mostra que, pelo menos no âmbito
das estratégias políticas do grupo em sua relação com os agentes mediadores, a
costura entre o tema da comum herança histórica com a escravidão e o artigo 68 já
estava sendo feita desde meados da década de noventa.
Com base em uma emenda constitucional, tentava-se “driblar” uma sentença
judicial cujo prazo da ação rescisória já teria prescrito. Mário José Gisi, que foi o
procurador responsável pelo arquivamento da representação adentrada pelos herd-
eiros em 1995, recorreu a dois estatutos para fazê-lo: o artigo 109 do Código Penal
e o próprio artigo 68 dos ADCT. O primeiro estaria baseado na “extinção da puni-
bilidade pela prescrição”, ou seja, não haveria como, nas argumentações de Gisi,
instaurar inquérito policial para apurar as denúncias por que os crimes teriam sido
cometidos há mais de 20 anos, (em 1995), e por isso prescreveram pelo tempo.119
Já o argumento embasado no artigo 68 sentenciava a impossibilidade de tratar
do caso dos descendentes das terras da Invernada pelo fato destes não mais ali
viverem. Seria, portanto, uma saída para o movimento adequar a questão trazida
pela senadora Benedita Silva às suas pautas reivindicatórias. A emenda traria a li-
gação entre o “antigo quilombo” e seus “descendentes”. E é justamente esta ligação,
esta cola, entre o histórico de vida que remete à escravidão, e as estratégias políti-
cas do grupo em relação às políticas de reconhecimento do Estado embasadas nos
desdobramentos da constituição federal de 1988 que irão compor as principais e fu-
turas ações e reações da comunidade em sua necessidade de “driblar” os inúmeros
impeditivos legais postos em jogo.

Donos do negócio, Donos da lei: as “familiaridades” entre os envolvi-


dos nos processos de aquisição das terras e julgamento da ação de usu-
capião

O fato é que a reportagem da Tribuna de Guarapuava causou um grande reboliço


na região, a começar pela versão dos fatos apresentada pelo ex-juiz Amoriti Trinco
117 Diz o Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988: “Aos rema-
nescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
118 Cf. A Tribuna de Guarapuava, ano I. n. 74, pp. 12, 3 a 9 de fevereiro de 1996.
119 Cf. ofício n. 255/95-PRDC/PR.

161
Ribeiro, em matéria reportada no mesmo jornal, no dia 10 de fevereiro daquele
ano. Foi Amoriti Trinco Ribeiro o juiz que proferiu a sentença do pedido de ação
de usucapião movido pela Agrária no ano de 1981. Nada de anormal no fato se não
se tratasse do grau de parentesco entre o mesmo e uma pessoa que, como o del-
egado Oscar Pacheco dos Santos, é apontada pelos herdeiros e pela assessoria da
CPT como uma das principais responsáveis pelo processo de expropriação por eles
sofrido: João Trinco Ribeiro.
Como indicam suas assinaturas, Amoriti é ninguém menos que filho de João.
Foi João quem, no ano de 1967, juntamente com Alvy Vitorassi, adquiriu parte dos
“direitos hereditários” de algumas pessoas que viviam no local, sendo esses direi-
tos mais tarde cedidos e transferidos, em 1974, ao delegado local, Oscar Pacheco
dos Santos120. Neste mesmo ano, mas um mês antes de tê-los adquirido, o referido
delegado vendia à Cooperativa Central Agrária Ltda. “uma área de campos e capões
no imóvel Paiol de Telha, também conhecido como Fundão”, bem como cedia a esta
Cooperativa “os direitos hereditários e de posse” sobre a referida área.
Já na posse da área, em 1981, a Cooperativa, objetivando a regularização da área
e dos direitos adquiridos, demandou usucapião sobre as terras adquiridas em 1974.
O ganho de causa à Cooperativa foi dado em 1991. As terras dos libertos legatários
passavam, definitivamente, às mãos da referida empresa.
Ao longo de todo este processo, no entanto, não faltaram episódios que, no
mínimo, nos chamam a atenção, uma vez que também já foram postos a prova e
analisados por pessoas, movimentos e organizações que assessoram os negros da
Invernada. São várias as relações e os vínculos entre os “compradores” dos “direitos
hereditários e de posse” sobre aquelas terras e os que “regularizaram” as diferentes
aquisições.
Sabemos, por exemplo, que,

em 18 de dezembro de 1966, João Trinco Ribeiro foi instituído


procurador de alguns dos descendentes dos libertos legatários para,
conforme uma das procurações, “os fins especiais e expressos de, em
caráter irrevogável, dispôr pela maneira que entender da área de
terras, pinheiros, imbuias etc. enfim todo material existente, que te-
mos direito dentro do imóvel Paiol de Telha”121. Seis meses depois, em
17 de agosto de 1967, o mesmo João Trinco Ribeiro substabeleceu à
sua esposa, a Sra. Iracema Trinco Ribeiro, estas várias procurações
recebidas em dezembro de 1966. Neste mesmo dia, Antônio Ferreira
dos Santos e outros vinte e nove indivíduos da comunidade Invernada
Paiol de Telha cederam e transferiram a João Trinco Ribeiro e a Alvy
Baptista Vitorassi, em partes iguais, “todos os direitos” que possuíam
ou viessem a possuir no “imóvel denominado Paiol de Telhas (...) in-
clusive a flora existente constituída de pinheiros, imbuias e outras
madeiras de Lei”122. Ou seja, o procurador dos vendedores – portan-
to, legalmente vendedor – poderia dispor como bem entendesse das
terras da Invernada e de tudo o que nela existisse, podendo, inclusive,
120 Cf. HARTUNG, p. 2004
121 Foram localizadas sete procurações que totalizam 29 indivíduos que cederam seus direitos sobre as áreas que teriam
direito dentro da Invernada. 81 . Ou seja, o procurador dos vendedores – portanto, legalmente vendedor – poderia dis-
por como bem entendesse das terras da Invernada e de tudo o que nela existisse, podendo, inclusive, e como foi o caso,
adquiri-las (HARTUNG et al, 2008, p.87).
122 Cf. Escritura Pública de Cessão e Transferência de Direitos Hereditários. 17.08.1967. Tabelionato Farah.

162
e como foi o caso, adquiri-las (HARTUNG et al 2008, p.87).

Além destas “coincidências” marcadas pela “familiaridade” entre “procura-


dores”, “vendedores” e “compradores”, uma outra marcaria o processo: o vínculo
entre o “comprador” e o “juiz” que julgou a ação, vínculo este, literalmente, pater-
nal. Como já mencionado,

o juiz que julgou a ação movida pela Cooperativa, Dr. José


Amoriti Trinco Ribeiro, não era ninguém menos do que o filho de
João Trinco Ribeiro, este último, como se viu acima, procurador,
marido da procuradora e comprador dos bens daqueles a quem ele e
sua esposa representavam. É de amplo e comum conhecimento que
tais relações interditariam juridicamente a participação do referido
juiz na ação123. Aos olhos dele, e dos demais poderes legais que no
processo tiveram parte, tal fato, entretanto, não pareceu irregular,
tanto que foi registrado nos documentos das diversas transações com
as terras dos descendentes dos libertos legatários (Idem, p. 88).

Em nenhum momento, entretanto, estas familiaridades apareceram como im-


peditivos legais aos poderes constituídos envolvidos neste processo de compra e
venda dos direitos hereditários dos sucessores dos escravos legatários. “Juízes, pro-
curadores, cartórios e tabeliães, que, em diferentes momentos, estiveram envolvi-
dos e foram chamados a testemunhar, opinar e decidir sobre todas as transações
com aquelas terras, não nada estranharam neste confuso e obscuro processo de
compra, venda, cessão e transmissão de direitos hereditários” (Idem, 2008, p. 86).
Na referida matéria publicada pela “Tribuna de Guarapuava”, Amoriti admite
que seu pai adquiriu tais direitos da fazenda Paiol de Telha, mas que “nunca pisou
ali”. E mais. Para justificar seu desconhecimento dos fatos, o ex-juiz afirma que em
1974, durante a aquisição da fazenda pela Agrária, exercia função em outra locali-
dade, na comarca de Chopinzinho, sudoeste do Estado. Teria sido mera coincidên-
cia o fato de, em 1983, ter tramitado, na 1ª Vara Civil de Guarapuava, o pedido de
ação de usucapião do imóvel, da qual Amoriti era titular. Em suas próprias pala-
vras, colocadas no texto jornalístico: “recebi a ação e simplesmente dei andamento
como faria com qualquer outra ação”.124
Sem dúvida nenhuma este não era um processo qualquer. Conhecer o desen-
rolar destes e outros acontecimentos deu, ao movimento dos herdeiros, amparado
juridicamente pela Pastoral Rural, a possibilidade de analisar e problematizar os
fatos que ocasionaram a saída dos sucessores dos escravos de Balbina nos anos
setenta e as nuances que fizeram com que a Agrária conseguisse que o imóvel fosse
usucapido a seu favor.

123 Cf. COFRE & IACOBACCI. Considerações sobre a ação de usucapião que tramitou sob o número 136/86, na Co-
marca de Pinhão. Mimeo, s/d.
124 Cf. A Tribuna de Guarapuava, ano I. n. 75, pp. 05, 10 a 16 de fevereiro de 1996.

163
Mais luzes sobre o caso: o protagonismo da CPT e as histórias docu-
mentadas por Domingos Guimarães

A relação entre herdeiros e a Pastoral Rural125 foi iniciada no final da década de


oitenta, em uma ocupação dos MST em áreas pertencentes ao município de Iná-
cio Martins/PR. Na ocasião, Dionísio Vandresen, então coordenador da Pastoral,
esteve ali e conheceu algumas famílias que diziam terem sido expulsas das terras
pertencentes aos ex-escravos legatários de Balbina. Embora ali passasse a conhecer
as histórias e os dramas pessoais daquelas e de outras famílias que deixaram às
pressas o território, somente no início da década de noventa é que tomou conheci-
mento do testamento de Balbina legando o quinhão de terras aos referidos escravos.
Quem apresentou o documento a Dionísio foi Domingos. Tanto ele quanto seu
irmão, Geninho, há muito tentavam, sem sucesso, articular os parentes com fins de
lutar para reaver as terras. Foram eles quem conseguiram, em fevereiro de 1977, a
certidão expedida no 1º Cartório de Protesto de Títulos e Registro de Títulos da Co-
marca de Guarapuava, dando conta da alforria e doação feita por Balbina aos seus
escravos com cláusula de inalienabilidade.126
No ano de 1975, Domingos já havia endereçado uma carta ao então presi-
dente da República, Ernesto Geisel, pedindo para o mesmo “evitar a ação ilegal da
Cooperativa” e respeitar “as tradições dos representantes da cultura negra oriundas
da escravidão”. Referência ausente nos documentos que formaram todo o processo
de usucapião movido pela Agrária, Domingos reaparece nesse campo de batalhas
das investidas judiciais no dia 24 de maio do ano de 1994, quando documentou,
com firma reconhecida em cartório de Guarapuava, algumas histórias da “Fazen-
da Invernada Paiol de Telha”, desde a época em que pertencia ao “senhor Manoel
Ferreira dos Santos e a Dona Balbina de Siqueira (...) colonizadores brasileiros
paulistanos”, até o momento em que “apareceu o Dr. Oscar Pacheco dos Santos,
fingindo comprar dos herdeiros e que, para amedrontar o pessoal, fazia a ronda da
polícia, pois era o delegado titular da Comarca de Guarapuava.”
Em documento posterior, intitulado “História dos Remanescentes de Escravos,
Contada por Domingos”, seu autor revela o envolvimento de João Trinco Ribeiro
e Oscar Pacheco dos Santos na venda das terras da Invernada. Dizia o documento
que,

ele [João Trinco Ribeiro] foi um espertalhão, vivia de mara-


cutaias, ele era acostumado a tomar terreno de pessoas de menos
poderes assim como nós. Ele dizia que ia fazer uma divisão com o
pessoal, pegou o nome do pessoal, de cima de uma capota de um jipe,
pegou o nome dos netos dos escravos, e o pessoal ficou na boa fé, cada
um queria ter suas coisinhas documentadas, nós vivíamos em uma
área em comum. Só que foi ao contrário, ele não fez divisão alguma,
ele veio aqui [Guarapuava], registrou uma sessão de direito, e fez
uma escritura. Com o passar do tempo, tinha um filho dele que tava
se formando a juiz [Amoriti Trinco Ribeiro] (...) ele informou o Dr.
Pacheco, pra ir lá comprar, que era ele o dono de 400 alqueires (...).
125 A Pastoral Rural se transformou na Comissão Pastoral da Terra (CPT). Dionísio Vandresen foi o coordenador da
CPT-Guarapuava até 2007. Em 2008, ele e José Vandresen criaram a CEMPO (Central de Apoio ao Campesinato Antônio
Tavares Pereira), dando continuidade aos trabalhos de assessoria aos sucessores dos escravos libertos de Balbina.
126 Cf. SILVA, 1997.

164
A época que ele [João Trinco] foi lograr o pessoal era 1966, quando o
Dr. Pacheco adquiriu a área foi em 1972, aí que começou os desfechos,
a apartar o pessoal, e o pessoal saiu, ele fingiu que tava dando es-
critura, que tava pagando, mas não pagou ninguém (GUIMARÃES,
1994).

Em maio de 1995, o mesmo Domingos assinava, conjuntamente com seu irmão


Geninho, João Maria Rodrigues e Diógenes Marques, um Termo de Declaração no
“Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Defesa dos Direitos e Garan-
tias Constitucionais”, contando a história da Fazenda Invernada Paiol de Telha e
reafirmando as versões dos fatos apresentadas no documento de 1994, sobre as
ações violentas de Oscar Pacheco dos Santos. Conforme o Termo:

Em 1972 surgiu o Oscar Pacheco dos Santos, o qual se intitu-


lou proprietário da área em tela, porém querendo comprá-las das
famílias que ali residiam, forçando a realização do negócio, medi-
ante assinatura de documento, sob pena de surras de seus próprios
jagunços. Em 1975 todas as famílias já haviam se retirado do local,
pois foram obrigadas através da ação de policiais, munidos de au-
torização judicial.127

Uma vez arquivada a representação pelo procurador Mario Gisi, em outubro de


1996, em documento intitulado “Instrumento Particular de Mandato”, tanto Do-
mingos quanto Geninho, delegaram poderes jurídico aos advogados Dimas Salus-
tiano da Silva, Daniel Gaio, André Sabóia Martins com a finalidade de “promover
medidas jurídicas referentes à integração, indenização e outras necessárias para a
garantia e defesa das terras dos descendentes de escravos”.128
Foi na relação com estes advogados, juntamente com Dionísio Vandresen e
Darci Frigo, então advogado da Pastoral, que as primeiras investidas foram dadas
no sentido de introduzir ao grupo a necessidade de criar uma associação que repre-
sentasse o grupo frente as agências estatais.
A primeira reunião sobre o tema, em novembro de 1995, já contava com uma
malha de assuntos que iam, desde a leitura do testamento de Balbina doando os
quinhões de terra às necessidades de, em se mapeando os herdeiros espalhados
pela região afora, se criar uma associação que os representasse juridicamente.129 Se
esta primeira reunião, em novembro de 1995, contou com aproximadamente trinta
herdeiros, as que viriam depois agregariam um número sempre maior de pessoas,
chegando a somar, aproximadamente, duzentas pessoas.130
A associação foi constituída em meados de 1996, mediante Assembleia Geral ocor-
rida na Universidade Estadual do Centro Oeste – Unicentro, de Guarapuava -, local
sede dos inúmeros encontros ao longo do histórico do grupo na década de noventa
e na primeira década do século vinte e um. Neste mesmo lugar, nove anos depois,
em setembro de 2005, a comunidade receberia a certidão de autorreconhecimento
emitida pela Fundação Cultural Palmares.
127 Cf. Termo de Declaração apresentada no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Defesa dos Direitos e
Garantias Constitucionais. Ministério Público do Estado do Paraná. Maio de 1995.
128 Cf. Instrumento Particular de Mandato. Outubro de 1996.
129 Cf. Ata da Reunião do dia 24 de Novembro de 1995. Arquivo Cempo.
130 Cf. A Tribuna de Guarapuava, ano I. n. 74, pp. 12, 3 a 9 de fevereiro de 1996

165
O período que atravessa estes dois acontecimentos emblemáticos e importantes
para o grupo nos revela diferentes e surpreendentes estratégias na luta por reaver
aquelas terras referenciadas como primordiais à existência daquela coletividade.
Foram nestes nove anos - que separam a “constituição” de uma associação da “cer-
tificação” de um traço cultural - que muitas, mas muitas águas rolaram neste oceano
revoltoso das estratégias de mobilização e autopreservação do grupo.
No intervalo destes dois episódios, muitos acampamentos no entorno das ter-
ras da Invernada foram feitos, e desfeitos. Foi neste período também que alguns
membros da comunidade foram assentados pelo INCRA, em um quinhão de terras
localizado na Colônia Socorro, município de Guarapuava. O Estado, portanto, es-
teve presente no processo de assentamento, dando às sessenta e quatro famílias dos
sucessores dos escravos de Balbina terras pra viver.

1997 e o estopim: acampamento, violência e a instituição do conflito


como fato político e público

Mas para que estes fatos ocorressem, seria necessário um novo “estopim”, uma
nova “desobediência civil” chamada acampamento. A família Santeiro, em conjun-
to com outras famílias de herdeiros, voltaram a ocupar as estradas que dão margem
ao território. O “Relatório de Deslocamento da Polícia Militar Devido à Invasão”
informava, no dia 16 de junho de 1997, que a propriedade da Agrária “foi invadida
por pessoas que se dizem donas da área, às 3 horas da manhã do dia 15 de junho”
(AUTOS DO PROCESSO n. 136/86, p. 24). Tratava-se de “09 barracas, no inte-
rior da fazenda”, contando com “41 pessoas, 30 adultos e 11 crianças”, cujos líderes
respondiam pelos nomes de “Santeiro e Ovídio”.
Diferentemente daquele primeiro, que contava apenas com 14 pessoas da família
Santeiro e de Ovídio, e sem apoio direto de nenhum grupo mediador, o acampa-
mento de junho de 1997 agregou um número maior de pessoas, além de respaldo da
CPT de Guarapuava e outros grupos que através dela passaram a conhecer a causa.

Imagens do acampamento de 1997 (Acervo: Cempo)

166
Conforme o relatório, as pessoas acampadas diziam ser “remanescentes de es-
cravos”, “procedentes de Guarapuava”, e que “os líderes, e mais pessoas, são os que
estiveram acampados em 15 de dezembro de 1996”. Além disso, “em breve acam-
parão ali mais 150 famílias”. O documento apenas adiantava algo que realmente
estava por suceder. Três dias depois, o oficial de justiça responsável pela ação de
despejo encontraria o local desabitado. A fazenda, pois, estava desocupada, mas
não a estrada que a rodeia.
Data, portanto, de 19 de junho de 1997, o dia que os tais 40 acampados monta-
ram suas barracas nas cercanias do Fundão. Com o passar dos dias, a estas famílias
se juntaram outras, totalizando aproximadamente 150 pessoas. E se para Edson
José Sanches - advogado contratado pela Agrária no processo de reintegração de
posse -, ao liberar a ocupação na estrada a justiça local não estava cumprindo o
respeitável “mandato liminar de manutenção de posse” (AUTOS DO PROCESSO n.
136/86, p. 75), para Odir Antônio Gotardo, então advogado do grupo de acampa-
dos, o fato de os herdeiros estarem fora da área ora pertencente à Cooperativa era
uma justificativa mais do que plausível para fundamentar o pedido de revogação da
liminar concedida.
E foi em obediência à medida liminar de reintegração de posse que os “réus”
saíram da fazenda para acampar “do lado de fora da cerca do imóvel”131. Ali per-
maneceram até agosto de 1998, quando o INCRA os removeu até os 1.050 alqueires
das terras localizadas na Colônia Socorro. O período deste acampamento foi pos-
sivelmente o mais importante para o movimento. E também o mais conturbado,
principalmente para as famílias acampadas.
O “Relatório da 14ª Subdivisão Policial de Guarapuava” informava que em 25
de agosto de 1997 a Cooperativa Agrária Mista Entre Rios solicitava a instauração
de Inquérito Policial, “contra as pessoas de Domingos Santeiro, Ovídio da Silva e
Osvaldo Alves dos Santos, por furto de madeiras e erva mate em folhas do imóvel
denominado Fazenda Fundão” (Idem, p. 30).
O relatório conclui que as pessoas que se dizem “descendentes de escravos filia-
dos à Associação Pró-Reintegração Paiol de Telha”, herdeiras das terras da Fazenda
Fundão, lideradas por aquelas três pessoas, adentraram no imóvel e após acam-
param a beira da estrada que liga os municípios de Reserva de Iguaçu e Pinhão,
exploraram o corte de árvores de pequeno porte para a instalação dos barracos,
fizeram ainda o uso de lenhas secas do imóvel e podaram alguns pés de erva mate
nativa. Ficou também evidenciado que os acampados, mesmo instalados ao lado da
estrada, fazem uso do imóvel para apanharem água, lavar roupas e tomar banho em
um riacho ali existente (Idem, p. 31).
Em outras palavras, uma vez vivendo às margens da fazenda, os herdeiros usu-
fruíam daqueles bens naturais para ali sobreviverem. Havia aproximadamente 90
barracas, construídas com lenha e lona, que se estendiam por dois quilômetros
de ambos os lados de um trecho da estrada que liga os municípios de Reserva do
Iguaçu e Pinhão. O trecho ocupado naquele período é próximo ao local onde atual-
mente alguns herdeiros permanecem acampados. E como hoje, ali eles apanhavam
a lenha para servir de estrutura das barracas e combustível para alimentar o fogo,
se utilizando do rio da Reserva para tomar água, se banhar, lavar os utensílios do-
131 Cf. relatório do poder Judiciário. Agosto de 1997

167
mésticos e vestimentas pessoais.
Estas ações, interpretadas pelo advogado da empresa como “ilegais”, justifica-
vam a instalação, por parte da Cooperativa, de uma guarita de segurança vizinha
à área ocupada pelos sucessores dos escravos de Balbina. A construção da guar-
ita foi autorizada pela Superintendência Regional do Paraná que, um ano antes,
em novembro de 1996, concedeu a Agrária um alvará autorizando “os serviços de
Vigilância Orgânica, exclusivamente dentro dos limites territoriais onde se encon-
tram localizadas suas instalações (...) em virtude da necessidade de segurança física
do patrimônio e mercadorias e bens de terceiros” (Idem, p. 36).
Uma vez acampados em 1997, a empresa acionava este dispositivo para legitimar
a presença de aproximadamente “35 profissionais”, sendo “16 vigilantes, cursados,
e 19 guardas de segurança” que cuidariam deste novo “problema” para a seguridade
da empresa. A Vigilância tinha como função também acompanhar e documentar
tudo o que ocorria entre os acampados. Temos, por exemplo, uma “Comunicação de
Ocorrência”, datada de 1º de setembro de 1997, que traz as seguintes informações:

data: 27/08/97, ocorrência: 13:00: Dois homens saíram do


acampamento e foram buscar lenha no mato de cima; 14:41min: O
veículo Del Rey Abi 6206 chegou no acampamento, saiu às 14:53min;
14:45min: Um homem saiu do acampamento e foi buscar água no
rio; 15:06min: Uma mulher e uma criança foram ao rio lavar
roupas; 15:49min: A viatura da Polícia Militar chegou ao acampa-
mento” (AUTOS DO PROCESSO n. 136/86, p. 38).

Estas informações, contidas nesta espécie de “diário de campo policial”, são as


primeiras de uma série de outras que se estendem, nestas mesmas minúcias, até
12 de setembro daquele ano. A comunicação foi assinada por Luiz Carlos Branco,
conhecido como “Branco”, “3º Sargento Reservista do Exército”, responsável pelo
“armamento e munição” da Vigilância (Idem, p. 36). A tensa relação entre “Branco”
e os “negros” se estende até hoje, uma vez que os sucessores dos escravos de Balbina
ainda continuam acampados, permanecendo Branco responsável pela segurança
da empresa. A guarita é que está abandonada. Atualmente vizinha ao barraco de
Osvaldo, serve como depósito para lenha.
Em decorrência da Vigilância Orgânica, alguns fatos foram levados ao Minis-
tério Público pelos herdeiros e pela CPT a partir do dia 21 de agosto de 1997132. O
promotor de justiça, Marcos Bittencourt Fowler, foi atualizado da situação perigosa
à qual estavam expostos os acampados ante as ações ameaçadoras praticadas pelos
vigilantes da Agrária. Conforme noticiava a Folha de Londrina, “jagunços encapu-
zados e armados teriam ameaçado no dia 21 de agosto os descendentes de escravos
acampados às margens de uma estrada rural no município de Reserva do Iguaçu”.
A matéria também informava que,

segundo o lavrador Domingos Santeiro, no final da tarde do dia


21 deste mês, mais de 30 pessoas, encapuzadas armaram um cer-
co em torno do acampamento. Por volta de 20 horas, os jagunços
começaram a atirar para o alto (...) Os jagunços também teriam
132 Cf. Folha de Londrina, 28 de agosto de 1997

168
colocado veneno nas águas utilizadas pelos acampados, o que os
levou para o hospital da cidade de Reserva do Iguaçu. O lavrador
aposentado disse que o grupo de pistoleiros é comandado por um
pessoa conhecida por “Luiz Branco”. Desde o início do acampa-
mento, há pessoas realizando filmagens e outras formas de pressões
psicológicas. Além dos acampados, também os funcionários da CPT
e um padre estariam recebendo ameaças. O coordenador Vandresen,
e o padre Antônio Potuski, da Paróquia de Pinhão, estariam sendo
seguidos à vários dias e receberam ameaças 133.

Em decorrência de situações como estas, vários comitês e chamadas de apoio


à situação dos “negros da Invernada”, “herdeiros do Fundão”, foram organizados,
possibilitando “instituir o conflito como fato político e público” (ARRUTI, 2006
p.128), através do reconhecimento de uma “situação de desrespeito”. A partir deste
momento os requerentes das terras da Invernada estreitaram os laços com agências
ligadas ao governo e aos movimentos sociais.
Um mês antes destes atentados, a “Folha de Londrina” noticiava, no dia 09 de
julho de 1997, a formação de uma comissão responsável pelo acompanhamento das
famílias “descendentes dos escravos acampadas na “Fazenda Fundão”, ou “Paiol de
Telha”134. A comissão era formada pela “Associação Cultural de Negritude e Ação
Popular (ACNAP), Pastoral da Terra, Associação de Professores do Paraná (APP-
Sindicato), Coletivo de Mulheres Negras, sindicatos, lideranças políticas e vários
outros segmentos organizados”, responsável por preparar um dossiê sobre o caso.
Em agosto daquele ano esta mesma comissão organizava uma chamada para
o “Comitê de Apoio à Associação Reintegração Invernada Paiol de Telha para Ato
Público na Unicentro”. O texto salientava que o caso ia “além de uma reivindicação
por reforma agrária”, por dizer respeito “à reintegração da área que foi tomada das
famílias de negros, as quais são os verdadeiros donos”. Ao colocar “a responsabili-
dade” do caso como fundamentalmente “do Estado”, o comitê clamava aos órgãos
públicos o reconhecimento destes que eram os verdadeiros proprietários das terras
da Invernada, hoje pertencentes à Agrária.
Foi em outubro deste mesmo ano que os herdeiros contataram o Nuer - Núcleo
de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas - da Universidade Federal de
Santa Catarina, solicitando “assessoria jurídica e antropológica para viabilizar a
reintegração da área que a comunidade reivindicava”135. A relação do Nuer com o
grupo havia sido iniciada no ano anterior, quando este foi convidado a “integrar o
grupo de apoio à comunidade Invernada Paiol de Telha”.136
133 Idem.
134 Cf. Folha de Londrina, 09 de julho de 1997.
135 Cf. Carta do Nuer a Maria Eliane Menezes de Farias, Coordenadora da 6ª Câmara. Brasília/DF. Dezembro de 1998.
136 Desde o ano de 1994, o referido núcleo de pesquisa, sob orientação da antropóloga Ilka Boaventura Leite, passou,
com o projeto “Plurietnicidade e Intolerâncias: relações interétnicas no sul do Brasil”, a “investigar e aprofundar o con-
hecimento sobre a invisibilidade dos afrodescendentes, sua história e estratégias para sobreviver até os dias atuais, nos três
estados do sul do Brasil” (cf. LEITE, in HARTUNG, 2004, p.08). Tanto Ilka quanto Miriam Hartung, então antropóloga
da Universidade Federal do Paraná, passaram a desenvolver pesquisas nas referidas “comunidades negras” situadas nos
três estados da região sul, escolhidas “por serem terras cedidas à ex-escravos através de testamentos anteriores a 1888”
(idem, p.09). O então projeto “Acesso à Terra e à Cidadania Negra: expropriação e violência, no limite dos direitos”, de-
senvolvido pelo Nuer de 1998 a 2000, tinha como lócus de pesquisa a Invernada dos Negros, em Santa Catarina, a comu-
nidade de Casca, no Rio Grande do Sul, e a Invernada Paiol de Telha, no Paraná. Miriam Hartung foi a responsável pela
pesquisa no Paraná, que teria como resultado a publicação do livro “O Sangue e o Espírito dos Antepassados: Escravidão,
Herança e Expropriação no Grupo Negro Invernada Paiol de Telha – PR”, no ano de 2004, com apoio da Fundação Ford e

169
O Nuer tinha como assessor jurídico o já mencionado Dimas Salustiano da Sil-
va, que, anos antes, advogou a favor da comunidade quilombola de Frechal, no
Maranhão137. Foi Dimas quem organizou o Dossiê Paiol de Telha (SILVA, 1997),
uma espécie de compêndio formado por documentos antigos e recentes relativos
às terras da Invernada. Ali, o Artigo 68 já era acionado no intuito de dar suporte
jurídico à luta dos até então juridicamente conhecidos herdeiros das terras da In-
vernada138. É a partir das relações entre Dimas, Nuer e a comunidade, que foram
abertos os primeiros diálogos e possibilidades de o coletivo assumir o rótulo de
“remanescentes de quilombo”.139

1998: a caminho do Assentamento

Ante as convulsões vividas no acampamento, já salientadas, algumas passea-


tas foram organizadas no intuito de resolver e dar visibilidade à tensão existente,
como o “ato público silencioso em uma caminhada pelas principais ruas da Colônia
Vitória”, no dia 21 de março de 1998, então Dia Internacional de Combate à Dis-
criminação Racial 140. Portando uma faixa com os dizeres “Paiol de Telha, proprie-
dade de ex-escravos que a seus descendentes pertence”, cerca de 50 herdeiros (entre
acampados e não acampados) caminharam pelas principais ruas da Colônia onde
está localizada a sede da Agrária, em protesto contra a situação da comunidade.

Passeata na Colônia Vitória, março de 1998 (Acervo: Miriam Hartung)

CNPQ. Segundo Leite, “o projeto buscou um conhecimento mais aprofundado das situações existentes, tendo em vista a
possibilidade de sua inclusão no artigo 68 que prevê a regularização fundiária das terras das comunidades de quilombos.
O projeto previa a elaboração de laudos antropológicos para esclarecer sobre as terras herdadas, de modo a auxiliar os
herdeiros em sua luta pelo reconhecimento, regularização e retomada das áreas perdidas” (Idem, p.09).
137 Em 20 de maio de 1992, foi decretada como de interesse social, a Reserva Extrativista do Quilombo de Frechal (de-
creto n. 536/92). É da autoria de Dimas Salustiano da Silva o capítulo “Considerações Jurídicas”, que compôs o “relatório
básico referente às denominadas “terras de preto” de Frechal” (Projeto Frechal Terra de Preto, 1996, p.09).
138 Encontra-se também no dossiê, o resumo da ação de usucapião, o testamento de Balbina, as assinaturas dos herdeiros
alegando terem sido expulsos das terras da Invernada, documentos judiciais referentes ao caso, cartas do grupo endereça-
das ao então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, além das representações adentradas por Domingos,
incluindo as histórias por ele narradas. Muito possivelmente foi Dimas quem impulsionou Domingos A contá-las, dada
a importância do registro.
139 No ano de 1998, inclusive, a Fundação Cultural Palmares organizou uma comissão para investigar se ao grupo po-
deria ser relegada a condição de “remanescentes de quilombo”. A comissão foi ao acampamento feito pelos herdeiros, e
constatou que aquilo que viam não era um grupo remanescente de quilombo. Acerca dos critérios usados pela comissão,
podemos somente imaginar.
140 Cf. A tribuna de Guarapuava, 28 de março de 1998.

170
Dois dias antes, uma comissão da associação Heleodoro esteve em audiência
com o secretário de Estado para Assuntos Comunitários, José Carlos Vieira, e com
a Superintendência do INCRA no Paraná. No encontro foram discutidos tanto a
possível vistoria que o INCRA faria na área na Fazenda Paiol de Telha quanto o ca-
dastro das famílias descendentes dos escravos legatários de Balbina141. Já naquela
época, estava sendo cogitada a possibilidade de os acampados serem re-locados
para um quinhão de terras ofertado pelo INCRA.
Tratava-se de 586 hectares de terras localizadas no município de Reserva do
Iguaçu, distante aproximadamente 30 quilômetros do acampamento. Pelo fato de
as terras serem de pouca qualidade para o cultivo e terem dimensões imensamente
menores do que as da fazenda Paiol de Telha, os herdeiros preferiram continuar
acampados. O próprio Domingos, em entrevista concedida ao jornal A Tribuna de
Guarapuava, afirmava que a terra ofertada pelo INCRA era “bem menor que os 3,6
mil alqueires que temos de direito”, e que uma vez divididas entre as 400 famílias,
e mais aquelas que estavam por aparecer, só faria “aumentar ainda mais a fome que
atinge os acampados”.142
A discussão sobre um possível relocamento das famílias acampadas para outros
quinhões de terra que não os da Invernada se prolongou até o mês de julho de
1998, quando chegaram no acampamento Romeu, da App-Sindicato, Jorge Tadeu,
da ACNAP, e José Vandresen, da CPT, propondo a Ovídio, Santeiro e Domingos
conhecerem os 1.050 alqueires das terras que o INCRA estava negociando com o
Banco do Brasil, na Colônia Socorro.
A transação se deu principalmente devido aos diálogos entre o INCRA e o “pro-
fessor Romeu” da App-Sindicato, de Curitiba. O envolvimento de Romeu com
a causa se iniciou em 1997, quando compôs a comissão formada pelos grupos
já salientados. Foi Romeu quem mobilizou e sensibilizou vários dos grupos que
integraram a comissão, sendo também um dos responsáveis pelo “Jornal Paiol de
Telha”, uma publicação que, datada de julho de 1997 e assinada pelo “Movimento
de Apoio à Comunidade da Invernada do Paiol de Telha”, contou com uma tiragem
de 5 mil exemplares distribuídos por cidades da região de Guarapuava e Curitiba.
Nem Dionísio, nem a jornalista Cristina Estech (volta e meia atribuídos como
responsáveis pela transação com o INCRA) estiveram diretamente envolvidos na
mesa de negociações daquela autarquia. Foi Romeu quem o fez, e partiu para Guar-
apuava, juntamente com Jaime Tadeu, da ACNAP, para propor aos herdeiros as
terras que serviriam de base espacial para o Assentamento.
Foram com eles visitar as terras, aqueles dois anciões que moravam no Bar-
ranco, acompanhados de Domingos, que tem casa em Guarapuava. Voltaram com
o negócio já feito. O único destes que não gostou da proposta foi o referido ancião
que, pelos mesmos motivos acima mostrados quando a questão eram as terras lo-
calizadas em Reserva do Iguaçu, nem sequer almejou um lote na Colônia Socorro.
Na época desta transação, Osvaldo, genro de Santeiro, estava trabalhando em uma
cerraria vizinha ao acampamento e, quando voltou, se deparou com os barracos de-
sarmados. Embora não tivesse gostado da decisão, nada pode fazer: com os demais,
141 Estas duas ações só seriam iniciadas nove anos depois, em 2007, pelos técnicos responsáveis pelo processo de RTID
aberto no INCRA. A vistoria foi feito em dezembro de 2007, pela equipe de antropólogos responsável pelo relatório. O
cadastro foi entregue ao INCRA pela comunidade em maio de 2009.
142 Cf. A tribuna de Guarapuava, 28 de março de 1998.

171
desarmou seu barraco e foi se juntar aos outros, seus companheiros de vida, de luta.
Foi, portanto, em agosto de 1998, que o então presidente de República, Fernan-
do Henrique Cardoso, assinou, por “interesse social para fins de reforma agrária”,
o “decreto de 13 de agosto de 1998” que assentava, no “Imóvel Rural conhecido
como Fazenda Socorro, com área de um mil cinquenta e um hectares e noventa
ares, situado no município de Guarapuava143, aqueles que antes e ora acampavam
nas cercanias da Fazenda Paiol de Telha. Foram, portanto, a caminho da Colônia
Socorro, aqueles que se encontravam acampados, assumir uma outra condição no
mundo: a de assentados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária,
contemplados no Programa de Readequação Fundiária do Município, instituído
pela prefeitura de Guarapuava, na gestão de Vitor Hugo Burko.144
Desde então algumas famílias se encontram assentadas, embora metade dos
primeiros “parceleiros” tenha abandonado o local, sendo que parte retornara ao
acampamento. Em boa medida, os atuais acampados são membros da família
Santeiro, a mesma que iniciara o movimento de retorno às terras no ano de 1996.
Diante da morosidade do processo administrativo de regularização fundiária aber-
to no INCRA/PR no ano de 2005, estão os acampados vivendo em gritante situação
de vulnerabilidade e às margens de um sistema social cujas raízes nos dizem muito
acerca da história social, agrária, do direito e da escravidão, não só paranaense, mas
brasileira.

A questão hoje

Por seu protagonismo na arena do movimento quilombola paranaense, a co-


munidade faz parte atualmente da Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradi-
cionais, buscando, junto a outros segmentos das minorias étnicas paranaenses e
catarinenses, lutar em prol dos direitos constitucionais pró-diversidade. Formada
em boa parte pelos agentes mediadores que, junto a CPT/Guarapuava estiveram
na luta com os negros do Fundão desde a década dos anos noventa145, a Rede Pux-
irão articula e assessora juridicamente o grupo em uma nova arena dos movimen-
tos sociais do sul do Brasil, em conjunção com as demais comunidades tradicio-
nais da região, dentre quilombolas, cipozeiros, faxinalenses, ilhéus, religiões de
matriz-afro, benzedeiras e pescadores artesanais146.
143 Cf. Diário Oficial da União, n. 155, 14 de agosto de 1998.
144 O Programa teve aprovação do então ministro da agricultura Raul Julgmann. Mais quatro assentamentos foram
feitos, todos em Guarapuava.
145 Refiro-me aqui às pessoas de Dionísio Vandresen e José Vandresen. Criadores da CEMPO e assessores da Rede
Puxirão, ambos estavam vinculados a CPT/Guarapuava nos primórdios da mobilização do grupo nos anos noventa. Im-
portante mencionar a atuação do advogado Darcy Frigo, um dos criadores da ONG Terra de Direitos. Fora Frigo quem,
junto a Dimas Salustiano, advogara a favor da causa Paiol de Telha no início dos anos noventa. Atualmente é a Terra de
Direitos quem presta, na figura de Fernando Prioste, assessoria jurídica à comunidade. Tais informações são relevantes,
pois indicam a continuidade dos laços e relações fundamentais entre comunidade e agentes mediadores.
146 A Rede Puxirão foi oficialmente formada um ano após a promulgação do decreto 6040/2007, de fevereiro de 2007,
que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), políti-
ca esta gerida pela Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CN-
PCT), esta última recriada pelo Decreto de 13 de julho de 2006. Tendo como objetivo geral “promover o desenvolvimento
sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais” (cf. Decreto 6040/07) a referida Política Nacional abriu as portas
para que vários segmentos de populações tradicionais articulassem suas demandas e lutassem pelo direito à preservação
cultural e desenvolvimento sustentável, permitindo o reconhecimento formal do Estado da existência jurídica das co-
munidades tradicionais. Foi de carona com este contexto político maior que muitos dos coletivos sociais até então sem

172
Não bastasse a morosidade do poder público no trato com o caso Paiol de Telha,
uma ação ordinária na Justiça Federal, sob o n. 2008.70.00.000158-3, foi movida,
no ano de 2008, pela Cooperativa Agrária e outras pessoas físicas contra o processo
administrativo aberto pela comunidade junto ao INCRA para fins de regularização
fundiária. Dando início a uma batalha judicial entre os procuradores do INCRA e os
advogados da Agrária, tal ação foi julgada em última instância no Tribunal Regional
Federal da Quarta Região (TRF 4) do Rio Grande do Sul em novembro e dezembro
de 2013. Baseados em uma Ação de Inconstitucionalidade (ADI-3239) movida pelo
extinto Partido da Frente Liberal (PFL) no ano de 2004, os advogados da Agrária
justificavam a ilegalidade do referido processo administrativo do INCRA alegando
a inconstitucionalidade do decreto 4887/03 que, por regulamentar o artigo 68 dos
ADCT da Constituição Federal, fundamenta a política pública fundiária do Estado
Nacional para com os grupos quilombolas.147
Um resultado favorável à Agrária certamente criaria um precedente negativo
para a continuidade de uma política pública do Estado para com os quilombos de
hoje, impedindo que, não somente a comunidade Paiol de Telha, mas milhares
destes, reivindicassem, na esfera administrativa estatal, seus direitos de acesso à
terra, reparação histórica e bens de serviço fundamentais historicamente inviabi-
lizados nas esferas judiciais. O caso Paiol de Telha é também emblemático nesse
sentido.
Por doze votos contra três, os desembargadores do TRF 4 decidiram pela
constitucionalidade do decreto 4887/03, invalidando a ação da Agrária e dando
ganho de causa ao INCRA e à comunidade quilombola Invernada Paiol de Telha, na
ocasião assessorada pela Terra de Direitos. Talvez seja este um novo marco, do pon-
to de vista jurídico, no sentido de reverter os vícios e as injustiças que caracterizam,
no plano do cotidiano e do direito formal, a história, não somente da comunidade
Paiol de Telha, mas de inúmeros grupos negros e quilombolas que sempre viveram
às margens dos projetos de cidadania e justiça social do Estado Nacional.
Trata-se, portanto, de pensar a questão Paiol de Telha como um caso que diz
muito sobre a história e a atualidade brasileiras: um grupo de descendentes de
mobilização política, existência coletiva e amparo jurídico passaram a emergir e assim serem re-conhecidos por suas
identidades específicas. Estes são os casos de algumas das comunidades que fazem parte da Rede Puxirão de Povos e
Comunidades Tradicionais. Foi a Rede Puxirão quem protagonizou, na Assembléia Legislativa Paranaense no ano de
2009, a proposição de uma “Frente Parlamentar de Apoio aos Povos e Comunidades”, articulando a política estadual para
as comunidades tradicionais através da criação da “Comissão Estadual dos Povos e Comunidades Tradicionais”. Alguns
membros da comunidade Paiol de Telha tiveram participação direta nestes processos. De um bastante contundente,
pode-se dizer que a existência da Rede Puxirão se deve ao histórico de mobilização da comunidade Paiol de Telha.
A ADI-3239, movida pelo PFL, questiona o Decreto Federal 4887/03 junto ao Supremo Tribunal Federal. Seu julgamento
teve início no ano de 2012 quando o então Ministro Relator, Cesar Peluso, votou pela inconstitucionalidade do decreto.
Outros ministros do Supremo Tribunal Federal ainda deverão votar, não sendo possível afirmar a posição do STF acer-
ca do tema. Para maiores informações sobre a questão jurídica da ADI-3239 ver: BOLETIM INFORMATIVO NUER/
UFSC, 2005. Sobre a questão judicial envolvendo a Agrária e o INCRA, consultar os sites: http://www.conflitoambiental.
icict.fiocruz.br/index.php?pag=ficha&cod=170 e http://terradedireitos.org.br/2013/12/19/por-12-votos-a-3-trf4-decide-
pela-constitucionalidade-do-decreto-de-titulacao-de-terras-quilombolas/.
147 A ADI-3239, movida pelo PFL, questiona o Decreto Federal 4887/03 junto ao Supremo Tribunal Federal. Seu jul-
gamento teve início no ano de 2012 quando o então Ministro Relator, Cesar Peluso, votou pela inconstitucionalidade do
decreto. Outros ministros do Supremo Tribunal Federal ainda deverão votar, não sendo possível afirmar a posição do
STF acerca do tema. Para maiores informações sobre a questão jurídica da ADI-3239 ver: BOLETIM INFORMATIVO
NUER/UFSC, 2005. Sobre a questão judicial envolvendo a Agrária e o INCRA, consultar os sites: http://www.conflitoam-
biental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=ficha&cod=170 e http://terradedireitos.org.br/2013/12/19/por-12-votos-a-3-trf4-
decide-pela-constitucionalidade-do-decreto-de-titulacao-de-terras-quilombolas/

173
escravos que foram obrigados a sair de suas terras para abrigar um projeto imi-
grantista determinado pelo conluio de interesses entre setores dos poderes, público
e privado, municipal e estadual. Cujos membros, mesmo espalhados pelo entor-
no, protagonizaram estratégias de autopreservação, mediados pelos movimentos
sociais e amparados por uma política pública brasileira que ensaia, mesmo com
inúmeros antagonistas, colocar em novos termos a história, o lugar e o direito das
sociedades quilombolas e negras.
Um grupo que, mesmo tendo a seu favor provas incontestáveis das injustiças
pretéritas sofridas, continua desamparado de seus direitos constitucionais viola-
dos. A luta continua: certamente não serão os descendentes dos escravos libertos
legatários de Balbina, os “negros do Fundão” (dentre acampados, assentados, mo-
radores de Guarapuava e região), quem desistirão: quem dirão não! Em boa me-
dida, parte deles a reescrita da história, do direito e da política de uma nação.

Referências Bibliográficas

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mento de foguetes de Alcântara. Vol. 01. MMA. Brasília, 2006.

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mação quilombola. São Paulo. Edusc/Anpocs, 2006.

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cravidão, herança e expropriação no grupo negro Invernada Paiol de Telha - PR.
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doro Paiol de Telha: remanescentes do regime da escravidão. Mimeo. Curitiba,
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1995. Acervo Cempo.
Autos findos de inventário e partilha procedido no ano de 1865 - por falecimento
de dona Balbina Francisca de Siqueira. Cartório da 1ª Vara Cível, Guarapuava, PR,
Livro de Registro, fl., 260.
Autos do Processo no 136/86, Ação de Usucapião movida pela Cooperativa
Agrária Mista Entre Rios Ltda. sobre a área designada Invernada Paiol de Telhas.
Carta do Nuer à Maria Eliane Menezes de Farias, Coordenadora da 6ª Câmara.
Brasília/DF. Dezembro de 1998. Acervo Cempo.
Diário Oficial da União, n. 155, 14 de agosto de 1998.
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e Remanescentes de Quilombos no Estado do Paraná. Grupo de Trabalho Clóvis
Moura. 02 de novembro de 2005.
Ofício n. 255/95-PRDC/PR.195
Procedimento Administrativo MPF PRM/GP n°1.25.004.000035/2000-92.
Jornal A Tribuna de Guarapuava, ano I. n. 75, pp. 05, 10 a 16 de fevereiro de
1996.
Jornal A Tribuna de Guarapuava, ano I. n. 74, pp. 12, 3 a 9 de fevereiro de 1996.
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Jornal Folha de Londrina, 09 de julho de 1997.

175
Jornal A tribuna de Guarapuava, 28 de março de 1998
Jornal A Nova Tribuna, março de 2000
Jornal A Tribuna Regional do Centro-Oeste, 30 de setembro a 6 de outubro de
2005
Jornal Paiol de Telha - Movimento de Apoio à Comunidade da Invernada do
Paiol de Telha, julho de 1997.
Jornal Diário de Guarapuava, 30 de setembro a 6 de outubro de 2005
Termo de Declaração apresentada no Centro de Apoio Operacional das Promo-
torias de Defesa dos Direitos e Garantias Constitucionais. Ministério Público do
Estado do Paraná. Maio de 1995.
Testamento de Manoel Ferreira dos Santos. Arquivo de notas do Cartório Gou-
veia. Livro 8, fls. 3v-6 Bairro do Pinhão, Freguesia de Guarapuava, 2 de abril de
1851.

176
Notas Biográficas

Aline Miranda Barbosa

Graduada em Geografia (2011) pela Universidade Federal de Santa Catarina e


mestre em Geografia (2014) pela Universidade Federal Fluminense. Integrante do
Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades (LEMTO/UFF).
Professora do Instituto Federal do Paraná – Campus Paranaguá, onde leciona Geo-
grafia em Cursos Técnicos integrados ao ensino médio. Atua em temas relacionados
a: Questão Agrária, Movimentos Sociais, Povos e Comunidades Tradicionais, Con-
flitos Territoriais e Cartografia Social.

Dimas Gusso

Possui curso técnico profissionalizante pela Fundação da UFPR para o Desen-


volvimento da Ciência, Tecnologia e Cultura (2007). É graduando em Direito em
Campo Real, onde pesquisa temas ligados aos Conflitos Socio Ambientais em Ter-
ritórios de Povos e Comunidades Tradicionais. É assessor do Movimento dos Pes-
cadores Artesanais do Paraná – MOPEAR.

Douglas Ladik Antunes

Graduado em Engenharia Mecânica pelo Instituto Mauá de Tecnologia / Es-


cola de Engenharia Mauá – IMT/EEM/SP, mestre em Engenharia Ambiental pela
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e Doutor em Design pela Pontifí-
cia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/Rio. É professor adjunto do
Departamento de Design, do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa
Catarina – CEART/UDESC, onde atua em pesquisa e extensão em temas relaciona-
dos à comunidades tradicionais, tecnologias sociais, cartografia social e sistemas de
representação, tecnologia assistiva.

Ezequiel Antonio de Moura

Camponês, Educador, Biólogo pela Universidade Federal de Santa Catarina


(bacharel e licenciatura). Professor do Instituto Federal do Paraná – Campus Para-
naguá. Possui Especialização em Ensino de Ciências Humanas e Sociais em Escolas
do Campo (UFSC/ITERRA). Mestrando em Desenvolvimento Territorial Susten-
tável na Universidade Federal do Paraná. Atua com temas relacionados a: Socio-
biodiversidade; Populações Tradicionais; Etnoecologia; Agroecologia; Segurança
Alimentar; Educação Profissional e Tecnológica.

177
Jorge Montenegro

Geógrafo formado entre Espanha (Valladolid e Barcelona) e Brasil (Maringá e


Presidente Prudente). Professor na UFPR (Curitiba-Brasil), participa de várias re-
des de pesquisa e intercâmbio: o Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território
e pela Terra (ENCONTTRA), a Rede de Estudos do Centro de Estudos Geografia
do Trabalho (CEGeT), do Grupo de Trabalho “Desenvolvimento Rural: disputas
territoriais, camponeses e decolonialidade” da CLACSO e do grupo Identidades
Coletivas e Conflitos Territoriais no Sul do Brasil. Atua em temas como conflitos
territoriais, leituras críticas do desenvolvimento, lutas pela terra e pelo território e
povos e comunidades tradicionais.

José Carlos Vandresen

Trabalha desde 2000 com pesquisas e projetos com movimentos sociais do cam-
po, desde 2005 com pesquisas vinculadas aos Povos e Comunidades Tradicionais
do Paraná. Mestre em Geografia pelo PPGG/UNICENTRO (2014) realizando pes-
quisa sobre a “Sobreposição de Unidades de Conservação em Territórios de Povos
e Comunidades Tradicionais”. Graduado graduação em Filosofia pela Universi-
dade Estadual do Centro-Oeste (2006). Pesquisador do Instituto Nova Cartografia
Social/Centro de Estudos do Trópico Úmido-CESTU, Universidade do Estado do
Amazonas-UEA. Integra o Núcleo de pesquisa Laboratório Nova Cartografia Social:
Processos de Territorialização, Identidades Coletivas e Movimentos Sociais - UEA/
CNPq e também o Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra-
ENCONTTRA - UFPR/CNPq. As pesquisas realizadas têm como foco a promoção
das identidades coletivas dos povos e comunidades tradicionais do Paraná, or-
ganizados na Rede Puxirão, sendo: faxinalenses, pescadores artesanais, indígenas,
ilhéus do rio Paraná, quilombolas, religiões de matriz africana, ciganos, portado-
res de ofícios tradicionais de benzimento e cipozeiras. A localização das pesquisas
estão dispostas principalmente na região centro sul do Paraná, noroeste e litoral
do Estado. Os principais temas pesquisados dizem respeita a identidades coleti-
vas, territórios, práticas e saberes tradicionais, soberania e segurança alimentar,
mapeamento e cartografias sociais, políticas públicas, direitos étnicos/coletivos e
unidades de conservação em territórios tradicionais. Atualmente, atuando como
coordenador estratégico e de formação no Sistema de CRESOL, vinculados ao
Instituto de Formação do Cooperativismo Solidário, sediado em Francisco Beltrão
no Paraná.

Letícia Ayumi Duarte

Turismóloga formada na Universidade Federal do Paraná, com Mestrado em


Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental na Universidade do
Estado de Santa Catarina. Atualmente é Doutoranda em Geografia na Universidade
Federal do Paraná. Faz parte do Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território
e pela Terra (Enconttra) e do grupo Identidades Coletivas e Conflitos Territoriais no
Sul do Brasil. Atua com os temas: Planejamento Territorial, Povos e Comunidades

178
Tradicionais, Unidades de Conservação, Cartografias Sociais e Geoprocessamento
Livre.

Marcelo Cunha Varella

Gestor Ambiental e especialista em Questão Social pela Abordagem Interdisci-


plinar pela Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral. Possui Mestrado em
Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental na Universidade do
Estado de Santa Catarina. É Doutorando em Geografia na Universidade Federal do
Paraná e professor substituto de Geoprocessamento em Softwares Livre na Univer-
sidade Federal do Paraná – Setor Litoral. Faz parte do Coletivo de Estudos sobre
Conflitos pelo Território e pela Terra (Enconttra) e do grupo Identidades Coletivas
e Conflitos Territoriais no Sul do Brasil. Atua com os temas: Planejamento territo-
rial, Cartografias Sociais e Geoprocessamento Livre.

Marina Eduarda Armstrong de Oliveira

Cursa Mestrado em Geografia na Universidade Federal do Paraná na linha de


pesquisa: Produção e Transformação do espaço urbano-regional, possui graduação
em Geografia - licenciatura - pela mesma instituição (2010). Tem atuado na área de
Geografia, com ênfase em Geografia Agrária, nos temas: conflitos territoriais, Povos
e Comunidades Tradicionais e Cartografia Social. É também membro do Centro de
Estudos de Geografia do Trabalho (CEGET), grupo de pesquisa do CNPQ.

Marina Gomes Drehmer

Bióloga formada na Universidade Federal do Paraná, atualmente é mestranda do


Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Participa do Projeto Cartografia Social, Terra e Território,
ligado ao Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN). Integra
o Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra (ENCONTTRA),
o grupo Identidades Coletivas e Conflitos Territoriais no Sul do Brasil. Interessa-se
pelos temas: Povos e Comunidades Tradicionais, Conflitos ambientais, Movimen-
tos sociais do campo, luta pela terra e pelo território, Conservação Ambiental e de-
bate sobre sustentabilidade

Mercedes Solá Pérez

É graduada em Geografia (2008) pela Universidade Federal do Paraná e mestra-


do em Geografia na mesma universidade. Desde 2012 faz o doutorado no Programa
de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Pernambuco. É inte-
grante do Núcleo de Estudos sobre Espaço Agrário, Campesinato e Agroecologia -
NEACA do Laboratório de Espaço, Cultura e Política - LECGeo; da Rede de Estudos
do Centro de Estudos de Geografia do Trabalho -CEGeT- e do Coletivo de Estudos
sobre Conflitos pelo Território e pela Terra -ENCONTTRA. Atuou nos temas: En-
sino em Geografia, Educação não formal e cartografia social. Atualmente trabalha

179
com povos e comunidades tradicionais, campesinato, resistências sociais, conflitos
territoriais e questões sobre desenvolvimento.

Rafael Palermo Buti

Mestre e doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Gradu-


ação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/
UFSC). Desde o ano de 2005 atua em pesquisa e políticas públicas junto às co-
munidades quilombolas e tradicionais brasileiras, incluindo execução de relatóri-
os antropológicos, junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA), para fins de regularização de terras e promoção dos direitos quilombo-
las. Foi consultor da Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais e atual-
mente atua junto ao projeto “Pesquisa Quilombo: Acervo Digital e Guia Qualificado
Acadêmico sobre a produção quilombola localizada nos acervos das Instituições
de Ensino Superior dos Estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina” (UFSC/
UFPR-Litoral e UNICAMP). Colabora junto ao Coletivo Quilombola, vinculado ao
Laboratório de Pesquisa e Extensão com Povos Tradicionais Afro-americanos da
Universidade Estadual de Campinas (LAPA/CERES/UNICAMP). Atua com os te-
mas: etnologia quilombola, política e ação quilombola, políticas de reconhecimento
do Estado, direitos étnicos.

Roberto Martins de Souza

Engenheiro Florestal (UFPR), Mestre em Extensão Rural e Desenvolvimento


Sustentável (UFSM) e Doutor em Sociologia (UFPR). Pesquisador do Grupo Identi-
dades Coletivas e Conflitos Territoriais no Sul do Brasil. Atua como educador do
campo e na formação docente no ensino de sociologia no IFPR - Campus Parana-
guá.

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