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PROJETOS DE FILOSOFIA III

Chanceler
Dom Dadeus Grings
Reitor
Joaquim Clotet
Vice-Reitor
Evilázio Teixeira
Conselho Editorial da Série Filosofia Conselho Editorial
(Editor) Agemir Bavaresco Ana Maria Lisboa de Mello
Cláudio Gonçalves de Almeida Agemir Bavaresco
Draiton Gonzaga de Souza Augusto Buchweitz
Eduardo Luft Beatriz Regina Dorfman
Ernildo Jacob Stein Bettina Steren dos Santos
Felipe Müller Carlos Gerbase
Norman Roland Madarasz Carlos Graeff Teixeira
Nythamar H. F. de Oliveira Junior Clarice Beatriz de C. Sohngen
Ricardo Timm de Souza Cláudio Luís C. Frankenberg
Roberto Hofmeister Pich Elaine Turk Faria
Thadeu Weber Érico João Hammes
Urbano Zilles Gilberto Keller de Andrade
Jane Rita Caetano da Silveira
Jorge Luis Nicolas Audy – Presidente
Lauro Kopper Filho
Luciano Klöckner
EDIPUCRS
Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor
Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe
AGEMIR BAVARESCO
EVANDRO PONTEL
FRANCISCO JOZIVAN GUEDES DE LIMA
Organizadores

PROJETOS DE FILOSOFIA III

Série Filosofia - 219

Porto Alegre, 2013


© EDIPUCRS, 2013

CAPA: RODRIGO VALLS


REVISÃO DE TEXTO: JOZIVAN GUEDES
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: RODRIGO VALLS
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS: SIMONE DIEFENBACH

EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS


Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33
Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900
Porto Alegre – RS – Brasil
Fone/fax: (51) 3320 3711
E-mail: edipucrs@pucrs.br - www.pucrs.br/edipucrs

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P964        Projetos de filosofia III [recurso eletrônico] / org. Agemir


Bavaresco, Evandro Pontel, Francisco Jozivan Guedes de
Lima. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2013.
(Série Filosofia ; 219)

ISBN 978-85-397-0371-5 (on-line)
Modo de Acesso: <http://www.pucrs.br/edipucrs>

1. Filosofia - Teorias. I. Bavaresco, Agemir. II. Pontel,


Evandro. III. Lima, Francisco Jozivan Guedes de. IV. Série.

CDD 100

Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente
por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a
recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento
de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos
autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com
busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...................................................................................7
DRAITON GONZAGA DE SOUZA
FRANCISCO JOZIVAN GUEDES DE LIMA

O PRINCÍPIO DA UTILIDADE E
A COMUNICAÇÃO EM SOBRE A LIBERDADE, DE J. S. MILL.............9
PROF. DR. AGEMIR BAVARESCO
JOÃO VITOR F. DOS SANTOS
DR. PAULO R. KONZEN

A LIBERDADE DE PENSAMENTO E DE EXPRESSÃO


NA PERSPECTIVA DE JOHN STUART MILL: SUA
ESSÊNCIA E SUA RELATIVIDADE.....................................................43
PROF. DR. ANTONIO HOHLFELDT

RIQUEZA E TRABALHO:
O QUE DEVERIA SER APRENDIDO
DE MARX SOBRE O CAPITALISMO?.................................................57
PROF. DR. CHRISTIAN IBER

INDÚSTRIA CULTURAL,
MÍDIA E RELIGIÃO: ANÁLISE DE UMA RELAÇÃO..........................83
PROF. DR. JÚLIO CÉZAR ADAM
LIBERDADE TEÓRICA E
LIBERDADE PRÁTICA EM HEGEL.....................................................99
PROF. DR. KONRAD C. UTZ

WAHRHEIT UND VERSTÄNDIGUNG


RADIKALE INTERPRETATION ALS
VERSTÄNDIGUNGSMOTIVIERTES HANDELN...............................125
PROF. DR. MARCEL NIQUET

A ÉTICA EM ALAIN BADIOU E A SUA


FUNDAMENTAÇÃO ONTOLÓGICA.................................................149
PROF. DR. NORMAN R. MADARASZ

FILOSOFIA COMO
CRÍTICA DA VIOLÊNCIA..................................................................185
PROF. DR. RICARDO TIMM DE SOUZA

HEGEL E O ESTADO
CONSTITUCIONAL PÓS-NACIONAL...............................................203
PROF. DR. STEPHAN KIRSTE
APRESENTAÇÃO
Draiton Gonzaga de Souza
Francisco Jozivan Guedes de Lima

Este número do livro Projetos de Filosofia – fruto, sobretudo, de pa-


lestras e conferências desenvolvidas durante o ano letivo de 2012, no Pro-
grama de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS, tem como características
centrais a interdisciplinaridade e a internacionalização, haja vista contar
com a colaboração de professores de outros países, de outras universidades,
com formações acadêmicas variadas que transcendem os muros da filosofia
tornando, assim, o debate possivelmente mais rico.
Tematicamente, as pesquisas que se seguem discutem de modo crí-
tico e pertinente questões precípuas que perpassam os diferentes campos
de pesquisa da filosofia, a saber: dois estudos que contemplam a problemá-
tica da liberdade de expressão, o princípio da utilidade e a comunicação em
John Stuart Mill; uma investigação sobre a relação entre riqueza e trabalho
em Karl Marx; uma análise acerca da imbricação entre indústria cultural,
mídia e religião a partir de Adorno e Horkheimer; um exame crítico sobre
liberdade teórica e liberdade prática em Hegel; uma investigação sobre ver-
dade e entendimento em Donald Davidson; um estudo sobre a fundamen-
tação ontológica da ética de Alain Badiou; uma abordagem sobre a filosofia
enquanto crítica da violência a partir da contribuição de teóricos contem-
porâneos; e uma investigação sobre a ideia de um Estado constitucional
pós-nacional a partir de Hegel.
Enfim, agradecemos aos colaboradores as suas relevantes produ-
ções, e, ao leitor, desejamos uma instigante e produtiva leitura.
O PRINCÍPIO DA UTILIDADE
E A COMUNICAÇÃO EM SOBRE A LIBERDADE,
DE J. S. MILL
Prof. Dr. Agemir Bavaresco1, João Vitor F. dos Santos2 e Dr. Paulo R. Konzen3

INTRODUÇÃO
O embate sobre a liberdade de expressão e de informação, no âmbito
da comunicação, deu-se, historicamente, em dois níveis: primeiro, a liberdade
de expressar a própria opinião sobre o que é do interesse privado e público;
segundo, a liberdade de informação, ou seja, a liberdade de ser informado
sobre o que ocorre na esfera política ou dos poderes estatais. Esse direito é
reivindicado, sobretudo, contra a política do segredo, própria dos regimes au-
toritários ou despóticos absolutistas. Ora, essas reivindicações do liberalismo
clássico permanecem atuais no Brasil. Vejamos dois fatos ainda recentes: 1) a
Lei de Acesso às Informações Públicas e 2) a Comissão Nacional da Verdade4.
Lei de Acesso às Informações Públicas: A lei abrange todo o território
nacional e os três níveis da administração pública ( federal, estadual e muni-
cipal), bem como os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário).

No primeiro dia de vigência da Lei de Acesso à Informação, foram feitos


708 pedidos de consultas. Isso pode ser um indício de que o brasileiro re-
conhece a importância da medida e está ávido por exercitar o direito cons-
titucional ao conhecimento dos dados do Executivo, do Legislativo e do
Judiciário. A positiva reação ante o novo direito tem mobilizado o e-SIC
(Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão). Trata-se de

1
Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris 1. Professor do PPG/Fil/PUCRS. E-mail: abavaresco@
pucrs.br
2
Graduando em Filosofia na PUCRS. Bolsista do CNPq - Brasil. E-mail: joao.santos.002@acad.pucrs.br
3
Doutor em Filosofia pela UFRGS. Bolsista do CNPq - Brasil. E-mail: prkonzen@yahoo.com.br
4
A presidenta Dilma Rousseff sancionou, em 18 de novembro de 2011, o projeto de lei (PL 7.376/10) que
cria a Comissão Nacional da Verdade e a Lei Geral de Acesso às Informações Públicas (PLC 41/10).
avanço institucional que alinha o Brasil ao grupo de 91 nações nas quais as
informações guardadas pelo Estado são oficialmente reconhecidas como
um bem público. Efetivou-se, agora, o princípio constitucional, instituído
pela Carta de 1988, que já garantia aos indivíduos o total acesso às infor-
mações que lhes diziam respeito. A nova lei é um estímulo à democracia
participativa, ao garantir o acompanhamento de dados gerais de progra-
mas, ações, projetos e obras da União, Estados e municípios, incluindo a
sua administração direta, autarquias, fundações, empresas de economia
mista e entidades privadas sem fins lucrativos que recebam recursos pú-
blicos. Também não haverá mais obstáculos à obtenção de informações
históricas, pois o prazo máximo de sigilo ficou limitado a 25 anos para do-
cumentos ultrassecretos, 15 anos para os secretos e cinco anos para os re-
servados. Uma consequência prática da nova lei será a divulgação pública
dos votos de cada um dos membros do Comitê de Política Monetária (CO-
POM), do Banco Central, organismo responsável pela definição de nossa
taxa básica de juros, a Selic. Agora, a presidente Dilma decidiu, também,
publicar os salários dos funcionários do Executivo, apoiada na Lei de Aces-
so à Informação. Estes são exemplos de como a sociedade passa a contar
com um forte mecanismo de interação e controle do Estado. Informação
é o bem contemporâneo mais precioso, um valor tangível e estratégico. É
por isso que os regimes ditatoriais sempre calaram os veículos de comuni-
cação. Conhecimento, educação e cultura são os fatores condicionantes da
consciência coletiva. Assim, a nova lei, somada à conquista da liberdade de
imprensa garantida no processo de redemocratização do Brasil, nos coloca
numa posição excelente quanto à transparência. Por outro lado, o irrestrito
acesso aos arquivos do Estado implica séria responsabilidade, à participa-
ção no processo de aperfeiçoamento da sociedade, na solução dos proble-
mas nacionais e no desenvolvimento do país.5

Comissão da Verdade: A Comissão Nacional da Verdade terá a função


de investigar violação dos direitos humanos desde 1946 até 1988 no Brasil. A
Lei de Acesso à Informação reforça o poder da Comissão da Verdade: ordena
a liberação de toda a documentação sobre violações de direitos humanos. A
experiência dos países latino-americanos com legislação semelhante serve de
indicativo para grupos que lutam pelo acesso à informação e trazer esses re-
gistros para domínio público. A Lei de Acesso à Informação entrou em vigor

5
SILVA, José Gomes da. “Avanço Institucional”. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 20/05/2012, Opinião.

10
no dia 16 de maio de 2012 e tem por meta inibir o mau uso do dinheiro público
e as violações de direitos humanos, disse a presidente Dilma Rousseff durante
discurso na cerimônia de posse dos integrantes da Comissão da Verdade:

A transparência, a partir de agora obrigatória também por lei, fun-


ciona como o inibidor eficiente de todo mau uso do dinheiro público
e também de todas as violações de direitos humanos. Fiscalização,
controle e avaliação são a base de uma ação pública ética e honesta.
[...] a nova lei representa grande aprimoramento institucional para o
Brasil, uma expressão da transparência do Estado, garantia básica de
segurança e proteção para o cidadão.6

Para Mill, a liberdade de ter acesso à informação e a liberdade de po-


der expressar a própria opinião são direitos que têm sua fundamentação no
princípio da utilidade. Assim, nesta pesquisa, apresentamos como o mesmo
aplica esse princípio da utilidade, sobretudo em relação à liberdade de ex-
pressão e de informação, analisando sua obra Sobre a Liberdade.

1. BREVE HISTÓRICO
DE MILL E DE SEU LIVRO SOBRE A LIBERDADE
John Stuart Mill, economista e filósofo do século XIX (que segundo Ha-
rald Hoffding7 teria sido “o maior filósofo do século”8), nasceu em Londres, em
20 de maio de 1806, e desde cedo recebeu de seu pai (James Mill9) uma rigorosa
educação, fazendo com que, segundo a sua biografia, aos três anos de idade, já
conhecesse o alfabeto grego e, aos oito anos, já lesse Platão, Xenofonte, Heródo-
to, etc.10 Com 14 anos, consta que já tinha estudado Química, Botânica e Mate-

6
Cf. http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-05-16/dilma-diz-que-lei-de-acesso-informacao-vai-
-inibir-mau-uso-do-dinheiro-publico de 16/05/2012
7
Filósofo dinamarquês, 1843-1931. Além de sua atividade teórica, destaca-se a sua atividade historio-
gráfica. Disponível em: http://www.biografiasyvidas.com/biografia/h/hoffding.htm
8
LAFER, Celso. “Apresentação”. In: MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Tradução e prefácio de Alberto
da Rocha Barros. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. p. 37.
9
Historiador, filósofo erudito e economista escocês nascido em Northwater Bridge, Forfarshire, autor
de várias obras, dentre elas: Analyse des phénomenes de l’esprit humain e Éléments d’économie politi-
que. Disponível em: http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/JamesMil.html
10
Cf. LAFER, Celso. “Apresentação”. In: MILL, John Stuart. Sobre a liberdade, p. 37.

11
mática na França11 e, em 1821, quando voltou para a Inglaterra, estudou Direi-
to12. Assim, trata-se de uma trajetória pessoal de estudos que começou muito
precoce, promovendo um desenvolvimento intelectual diferenciado.
Anos mais tarde, em 1851, Mill casou-se com Harriet Taylor13, que
teve grande influência nas suas obras e contribuiu com suas ideias, por
exemplo, sobre a emancipação das mulheres e o voto feminino14. Inclusive,
em 1858, quando escreveu o seu ensaio intitulado Sobre a Liberdade, ele o
dedica à sua esposa, que havia falecido no mesmo ano.
Em 1858, é fechada a chamada Casa da Índia (pertencente à Com-
panhia das Índias Orientais), na qual Mill era dirigente15. A partir disso, em
1865, ingressou na política como deputado, mas por seus ataques aos pro-
cessos de um governador colonial perdeu a sua cadeira. Depois disso, após
uma intensa vida acadêmica, política e filosófica, retirou-se para sua casa
em Avinhão, França, local em que veio a falecer no dia 8 de maio de 187316.
Em resumo, John Stuart Mill escreveu o seu livro Sobre a Liberdade
em meio a uma modernização econômica e política da Grã-Bretanha, na
qual a sociedade já gozava de muitas liberdades (mas não tantas quanto nos
dias de hoje), características de uma sociedade mais moderna; um exemplo
disso é que desde 1833 já não havia escravidão no país. Todavia, em plena
Era Vitoriana (de 1837 a 1901), a luta por mais direitos, por exemplo, para as
mulheres e para os pobres era constante, e apesar de a então Grã-Bretanha
ser bastante liberal com relação à esfera pública e política, o mesmo não
pode ser dito com relação aos costumes, sendo muitas obras censuradas por
estarem em conflito com os “bons costumes”.

11
“John Stuart Mill”. Disponível em: http://augusto-economia.vilabol.uol.com.br/johnstuartmill.htm
12
“Galeria dos Autores Liberais - John Stuart Mill: 1806-1873”. Disponível em: http://www.institutolibe-
ral.org.br/galeria_autor.asp?cdc=918
Harriet Taylor (1807-1858) foi filósofa e defensora dos direitos das mulheres. Membro da Sociedade
13

Kensigton, que produziu a primeira petição requerendo o direito de votos para as mulheres. Taylor tam-
bém defendeu o direito das mulheres no sentido de serem autorizadas a tomar parte no governo local.
Suas obras a respeito dessas causas são muito reduzidas. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Harriet_Taylor
14
Cf. LAFER, Celso. “Apresentação”. In: MILL, John Stuart. Sobre a liberdade, p. 39.
15
Ibid.
16
Ibid., p. 40.

12
1.1 PRINCÍPIO DA UTILIDADE
John Stuart Mill usou o “princípio da utilidade” de forma original.
Apesar de essa expressão ter sido utilizada, sobretudo, por Jeremy Ben-
tham17, foi Mill que a aplicou “estendendo seu uso aos mais diversos aspec-
tos da sociedade, a saber, sistema político, legislação, justiça, democracia,
imprensa, economia, liberdade sexual, entre outros”18. Ora, segundo alguns
autores, ele “também idealizou a fundação de uma sociedade utilitarista”19.
Inclusive, sobre isso, na “Introdução” ao livro Da Liberdade (tradução de
1963), afirma-se que Mill “aos dezessete anos fundou a sociedade utilitária,
grupo de jovens radicais que se reunia na casa de Bentham”, ressaltando até
que Mill teria sido criado por seu pai, aí chamado como “ardoroso bentha-
mita”, para ser o “legítimo herdeiro filosófico de Bentham”20.
Sobre isso, na sua Autobiografia, Mill mesmo ressalta: “Eu via mui-
to [...] Sr. Bentham, devido a sua intimidade com meu pai”21. Depois disso,
registra: “Em certo sentido, minha educação prévia já havia sido um curso
de benthamismo. Aprendi sempre a aplicar o critério da ‘maior felicidade’,
de Bentham”22. Por fim, afirma: “O ‘princípio da utilidade’, entendido como

17
Jeremy Bentham (1748-1832) é considerado o criador da filosofia política conhecida como Utilita-
rismo. Familiarizou-se, desde criança, com as línguas grega e latina. Estudou no Queen’s College, em
Oxford, de 1760 a 1763, e graduou-se aos 15 anos. Seu primeiro livro chama-se Um fragmento sobre o
governo (1776). Tornou-se famoso em toda a Europa e na América após publicar, em 1789, Uma intro-
dução aos princípios da moral e da legislação, pelo qual Bentham recebeu, em 1792, o título de cidadão
francês; por essa época, mantinha correspondência com importantes líderes políticos. Em 1824, fundou
com outros intelectuais a Westminster Review (Revista de Westminster), que representou, para Bentham,
um importante veículo de propagação de ideias. Disponível em: http://educacao.uol.com.br/biografias/
jeremy-bentham.jhtm
18
“Galeria dos Autores Liberais - John Stuart Mill: 1806-1873”. Disponível em: http://www.institutolibe-
ral.org.br/galeria_autor.asp?cdc=918 Acessado em 11/10/2011
SANTANA, Ana Lucia. “Utilitarismo”. Disponível em: http://www.infoescola.com/etica/utilitarismo/.
19

Acessado em: 02/09/2001.


“Introdução”. In: MILL, John Stuart. Da liberdade. Tradução de E. Jacy Monteiro. São Paulo: IBRASA,
20

1963, p. IX.
21
MILL, John Stuart. Autobiografia. Introdução e tradução de Alexandre Braga Massella. São Paulo: Ilu-
minuras, 2006, p. 65. Cf. MILL, John Stuart. Autobiography e Literary Essays. London: Routledge, 1996, p.
54: “Of Mr. Bentham I saw much more, owing to the close intimacy which existed between him and my
father”.
22
Cf. MILL, 2006, p. 72. Cf. MILL, 1996, p. 67: “My previous education had been, in a certain sense, already
a course of Benthamism. The Benthamic standard of ‘the greatest happiness’ was that which I had always

13
Bentham o entendia e aplicado como ele o havia aplicado [...], encaixava-se
perfeitamente como a pedra angular que unia todos os elementos fragmen-
tados de meus conhecimentos e crenças”23.
Mas o que defende o princípio da utilidade? O princípio da utilidade,
em síntese, consiste em uma doutrina (e/ou moral) que aceita como funda-
mento ou regra o “princípio da maior felicidade, ou seja, quando uma ação
gera felicidade está correta, quando gera infelicidade está incorreta”24. Ora,
o Utilitarismo tem suas origens na Antiguidade, sobretudo com Epicuro, que
em sua filosofia dava grande ênfase à questão da felicidade. Segundo o Utilita-
rismo de Epicuro, o homem é um ser sempre em busca do prazer e/ou de sua
felicidade, de modo que todas as nossas ações devem ser pensadas segundo
as suas consequências práticas. Mill em seu livro Utilitarismo afirma:

Ora, essa teoria da vida suscita em muitos espíritos, alguns dos quais pos-
suem os mais estimáveis sentimentos e propósitos, uma aversão invetera-
da. Admitir que a vida – para empregar suas expressões – não tenha ne-
nhuma finalidade mais elevada que o prazer, nenhum objeto de desejo e de
busca melhor e mais nobre, é, conforme dizem, inteiramente vil e abjeto.25

Porém, na mesma obra, Mill busca defender o Utilitarismo, recorren-


do até a Bentham: “o princípio da utilidade, ou como mais tarde Bentham o
denominou, o princípio da maior felicidade, teve um grande papel na forma-
ção das doutrinas morais, mesmo entre aqueles que com mais desdém rejei-
tam sua autoridade”26. E, depois, Mill define o que é princípio da utilidade:

O credo que aceita a utilidade ou o princípio da maior felicidade como


a fundação da moral sustenta que as ações são corretas na medida
em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a

been taught to apply”.


23
MILL, 2006, p. 74. Cf. MILL, 1996, p. 68: “The ‘principle of utility’, understood as Bentham understood
it, and applied in the manner in which he applied it through these three volumes, fell exactly into its pla-
ce as the keystone which held together the detached and fragmentary component parts of my knowledge
and beliefs”.
24
Cf. http://www.institutoliberal.org.br/galeria_autor.asp?cdc=918. Acessado em: 11/10/2011.
MILL, John Stuart. Utilitarismo. Prefácio do livro Isaiah Berlin. Tradução de Eunice Ostrensky. São
25

Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 187.


26
Ibid., p. 181.

14
produzir o contrário da felicidade. Por felicidade se entende prazer e a
ausência de dor; por infelicidade, dor e a privação de prazer.27

Em outro livro, Mill é enfático: “Eu encaro a utilidade como a última


instância em todas as questões éticas, mas a utilidade no seu mais largo
sentido”28. Trata-se de uma escolha do princípio da utilidade aplicado à éti-
ca, porém para nós interessará, ao longo do artigo, aproximá-lo ao conceito
de liberdade pública de expressão e de informação.
Assim, sabendo quem foi Mill e o seu contexto histórico, queremos
com este artigo dar ênfase à questão da apresentação e da análise do prin-
cípio da utilidade de J. S. Mill em relação à comunicação, à liberdade de im-
prensa, às mídias, à opinião pública e à democracia, delimitando, assim, o
campo de pesquisa. Usaremos como texto-base o livro já mencionado Sobre
a liberdade (On Liberty), de J. S. Mill, publicado em 1859, ao “estilo dedutivo
do reformismo utilitarista”29. O livro é dividido, segundo o Sumário, em Ca-
pítulo I: Introdução, que apresenta os “princípios básicos da obra”; Capítulo
II, que fala sobre a liberdade de pensamento e discussão; Capítulo III, que
analisa a individualidade como um dos elementos do bem-estar; Capítulo
IV, que trata dos limites da autoridade da sociedade sobre o indivíduo; e o
Capítulo V, que apresenta “alguns exemplos de aplicações práticas do seu
modo de defender a liberdade”30. Sobre isso, convém citar o seguinte:

Tem portanto [...] [muitos] anos a obra que apresentamos. Nela John Stu-
art Mill defende o direito que o indivíduo tem de pensar e agir. Não pre-
coniza a irresponsabilidade, o pensar e o agir segundo o que aprouver ao
indivíduo, e sim a responsabilidade, a liberdade de saber e o que pensar
e o que fazer. Que cada indivíduo opte, em liberdade, por determinada
maneira de pensar e agir – eis o pensamento central de John Stuart Mill.31

27
Ibid., p. 187. Cf. MILL, John Stuart. Utilitarianism. Boston: William V. Spencer, 1865, p. 308. “The cre-
ed which accepts, as the foundation of morals, Utility, or the Greatest-happiness Principle, holds that
actions are right in proportion as they tend to promote happiness, wrong as they tend to produce the
reverse of happiness. By happiness is intended pleasure and the absence of pain; by unhappiness, pain
and the privation of pleasure”.
28
MILL, Sobre a liberdade, p. 54.
29
LAFER, Celso. “Apresentação”. In: MILL, Sobre a liberdade, p. 14.
30
Idem, p. 14.
31
“Apresentação”. In: MILL, John Stuart. Da Liberdade de Pensamento e de Expressão. Tradução de Maria

15
Trata-se do texto de apresentação da edição publicada em Portugal
de uma das partes da obra Sobre a Liberdade, especificamente o capítulo
“Da Liberdade de Pensamento e de Expressão” (On the Liberty of Thought and
Discussion). Afirma-se aí que seriam “textos controversos, suscetíveis de
provocar no leitor não só a necessidade de se debruçar sobre assuntos que
dizem respeito a todos nós, num mundo em rápida transformação, como
também a necessidade de discuti-los”32. Procura registrar, assim, entre ou-
tros, que se trata de obra que merece ser estudada, pois expõe aspectos de
grande importância e/ou atualidade.

1.2 SOBRE A LIBERDADE:


LIMITES AO PODER E LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
O livro Sobre a Liberdade começa fazendo uma análise crítica sobre a
evolução do conceito de liberdade no decorrer da História, registrando que
haveria uma “luta entre a Liberdade e a Autoridade”, enquanto característi-
ca mais comum em todas as épocas33. Segundo Mill, muitas vezes, os gover-
nantes exerciam ou exercem seu poder sem se preocupar com os governados,
pois se viam ou veem como melhores e mais preparados do que o restante da
população que vivia ou vive sem opinar, por exemplo, sobre questões políti-
cas. Assim, a população aceitava ou aceita tais condições (às vezes, sem nem
ao menos desejar contestar), porque o poder desses governantes era ou é en-
carado como necessário e também perigoso, pois a mesma arma que usariam
ou usam contra os inimigos externos, eles poderiam ou podem usar contra
seus próprios súditos. Vejamos, sobre isso, o que nos fala Mill:

Os governantes eram concebidos (exceto em alguns governos popu-


lares da Grécia) como uma oposição necessariamente antagônica ao
povo por eles governados. Consistiam ou numa única pessoa que go-
vernava, ou numa tribo ou casta governante, os quais derivavam a sua
autoridade da herança ou da conquista, jamais a exerceram de acordo
com a vontade dos governados e cuja supremacia os homens não se

Helena Garcia. 2ª ed. Lisboa, Portugal: Dom Quixote, 1976, p. 5.


32
Ibid., p. 3.
33
MILL, Sobre a liberdade, p. 45.

16
aventuravam – talvez nem desejassem – contestar, fossem quais fos-
sem as precauções tomadas contra o seu exercício opressivo34.

Diante disso, Mill dá exemplos, contudo, de manifestações de liber-


dade, como a dos “patriotas” que buscavam “pôr limites ao poder” mediante,
por exemplo, o “estabelecimento de freios constitucionais”, que era quando
uma representação popular devia estar presente nas decisões políticas mais
importantes. Os “patriotas” buscaram transformar o “homem comum”, que
não passava de um mero súdito que prestava cega obediência ao rei, em um
cidadão fiel à sua pátria, ou seja, um patriota, com direitos e não meramen-
te deveres. Cansados das monarquias absolutistas que vigoravam naquele
período, procuraram criar a chamada “sociedade do futuro”, baseando-se
nos exemplos de civismo e de cidadania, em que os indivíduos constituem
uma parte do Estado. Essas foram grandes conquistas que prepararam, por
exemplo, o caminho da democracia35. Sobre isso, Mill afirma:

A finalidade, pois, dos patriotas consistia em pôr limites ao poder


que ao governante se toleraria exercesse sobre a comunidade. Essa
limitação era entendida como liberdade. [...] Um segundo expediente,
geralmente posterior, consistia no estabelecimento de freios consti-
tucionais, pelos quais o consentimento da comunidade, ou de algum
corpo que se supunha representar os interesses da mesma, se tornava
uma condição necessária para alguns dos mais importantes atos do
poder dominante36.

Depois, com a ideia de democracia, as pessoas pensaram que pode-


riam limitar o poder em si, pois os governantes seriam substituídos em inter-
valos de tempo preestabelecidos, atendendo ou levando em conta, assim, a
vontade ou os interesses do povo, e não o contrário. Acerca disso, Mill escreve:

Paulatinamente, essa nova aspiração de governantes efetivos e tem-


porários se tornou a matéria proeminente dos esforços do partido po-
pular, onde este existisse, e invalidou, numa considerável extensão,
os passos preliminares para limitar o poder dos governantes. Como

34
MILL, Sobre a liberdade, p. 45-46.
35
“Política – Os Patriotas”. Disponível em: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/politica/patriotas.htm
36
MILL, Sobre a liberdade, p. 46.

17
prosseguisse a luta por fazer o poder dirigente emanar da escolha pe-
riódica dos governados, algumas pessoas começam a pensar que se
havia dado uma importância excessiva à limitação do poder em si.
Isso (podia parecer) constituía um recurso contra governantes cujos
interesses eram habitualmente opostos aos do povo37.

A . Utilidade e interesses: Neste ponto, entra o princípio da utilidade, pois


a democracia só tem sentido se atende ao bem-estar comum. Pensava-se
que o governo que estivesse em “sintonia” com os interesses do povo, não
precisaria de uma “limitação do poder”, pois o poder seria do próprio povo;
mas quem iria defender a sociedade de si própria? Não é por ser um governo
que está em “plena sintonia com os interesses do povo” que será um governo
bom, e o que está em desacordo com o povo não será necessariamente ruim.
Por isso, Mill faz referência à possibilidade de tirania do próprio povo.

Porém, o autor declara: “A nação não carecia de se proteger contra


a própria vontade. Não havia receio da tirania dela sobre si mesma”38, re-
ferindo-se a um povo com consciência de seus interesses e a um governo
que respeita tal vontade. No caso, haveria uma “forma conveniente ao seu
exercício [do poder]” e a “nação poderia aceder em confiar-lhes um poder
de que ela própria ditaria o uso a ser feito”39. Sobre isso, Isaiah Berlin afirma:

Se a vida humana deve se tornar tolerável, é necessário centralizar a


informação e disseminar o poder. Se todos sabem tanto quanto possí-
vel, e não possuem um poder excessivo, então podemos ainda evitar
um Estado que “tolhe seus homens” [...].40

Trata-se, segundo o autor, de evitar que as pessoas sejam “enganadas


e manipuladas”. Mas a democracia, hoje espalhada em grande parte dos pa-
íses do mundo, está sujeita a disfuncionalidade, críticas e erros, assim como
afirma Mill: “o sucesso revela defeitos e fraquezas que o insucesso poderia
ter ocultado à observação”41, pois a democracia é a forma de governo que a

37
Ibid., p. 47.
38
MILL, Sobre a liberdade, p. 47.
39
Ibid.
40
BERLIN, Isaiah. “Prefácio do livro”. In: MILL, Utilitarismo; Liberdade, 2000, p. XLV.
41
MILL, Sobre a liberdade, p. 47.

18
maioria das nações adotaram, e a realidade mostra que o conceito de “von-
tade do povo”, muitas vezes, está longe de acontecer, porque o povo que
exerce o poder quase sempre não é o mesmo pelo qual o poder é exercido42.
Um exemplo prático dessa realidade ocorre atualmente em nosso
país, como afirma a reportagem da Gazeta do Povo, de 03 de maio de 2009,
com o título “Brasil é democracia falha”, que traz uma pesquisa da revista
britânica The Economist, que coloca o nosso país como o 41º mais democrá-
tico do mundo, pois se afirma que existe pouca participação popular e “bai-
xa cultura política”43. Isso reafirma que o povo que exerce o poder, muitas
vezes não é o mesmo pelo qual o poder é exercido. Na concepção cultural do
Brasil, a maioria das pessoas participa da política e da democracia apenas
na hora de eleger um governante ou se está vinculada a algum partido polí-
tico ou movimento social.
Nesse sentido, sobre o conceito de democracia, Mill comenta ainda
o significado de “vontade do povo”, que pode ser interpretado apenas como
a vontade de uma maioria ativa (um partido político, por exemplo), ou seja,
que não atende a todos, tratando-se de um caso de “abuso de poder” em que
uns procuram “oprimir” os outros. Vejamos a citação abaixo:

Ademais, a vontade do povo significa praticamente a vontade da mais


numerosa e ativa parte do povo – a maioria, ou aqueles que logram
êxito em se fazerem aceitar como a maioria. O povo, consequente-
mente, pode desejar oprimir uma parte de si mesmo, e precauções
são tão necessárias contra isso quanto contra qualquer outro abuso
de poder. A limitação, pois, do poder do governo sobre os indivíduos
nada perde de sua importância quando os detentores do poder são
regularmente responsáveis perante a comunidade – isto é, perante o
partido mais forte no seio desta44.

B . Tirania da opinião: Mill denomina isso de “tirania do maior nú-


mero” e também de “tirania da opinião”, a qual seria uma tendência de

42
Cf. Ibid., p. 48.
Gazeta do Povo – “Brasil é democracia falha”. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vi-
43

dapublica/conteudo.phtml?id=882766
44
MILL, Sobre a liberdade, p. 48.

19
parte da sociedade em impor as suas ideias (“até mesmo além das pe-
nalidades civis”), a fim de que não surja nenhuma opinião ou forma de
conduta individual que não esteja em sintonia com suas metas45.

No entanto, é necessário o “combate” a esse sentimento dominante


da sociedade que reprime a individualidade. Se essa tirania não for “com-
batida”, apenas o que resta para a minoria é o silêncio e, assim, a grande
maioria não poderá ouvir todas as opiniões sobre determinados assuntos e,
com isso, fundamentá-los.

Como outras tiranias, a tirania do maior número foi, a princípio, e


ainda é vulgarmente, encarada com terror, principalmente quando
opera por intermédio dos atos das autoridades públicas. [...] A pro-
teção, portanto, contra a tirania do magistrado não basta. Importa
ainda o amparo contra a tirania da opinião e do sentimento dominan-
tes: contra a tendência da sociedade para impor, por outros meios
além das penalidades civis, as próprias ideias e práticas como regras
de conduta, àqueles que delas divergem, para refrear e, se possível,
prevenir a formação de qualquer individualidade em desarmonia com
seus rumos, e compelir todos os caracteres a se plasmarem sobre o
modelo dela própria.46

Hoje no mundo, a “tirania do maior número”, muitas vezes, está li-


gada às questões de liberdade religiosa e de expressão da fé, como no Egito,
onde os cristãos são apenas 10% da população e, por essa razão, sofrem res-
trição para ocupar, por exemplo, postos de trabalho, ter acesso à educação
e se casar. Para citar um caso de imposição que vai “além das penalidades
civis”, no dia 09 de outubro de 2011, morreram vinte e cinco cristãos coptas
em um confronto com civis e o exército em que “os tanques passavam por
cima dos manifestantes sem dó”47, segundo foi divulgado. Isso acontece em
plena “Primavera Árabe”48, movimento de suposta luta por mais liberdade,

45
Ibid.
46
Ibid., p. 48-49.
47
Rodrigo Cardoso - Revista Isto é – 19/10/2011. São Paulo: Editora Três, 2011, p. 126.
48
“Primavera árabe: Primavera árabe corresponde ao conjunto de manifestações contra os regimes di-
tatoriais e autoritários dos países do Norte da África e Oriente Médio. Egito, Líbia, Bahrein, Tunísia,
Marrocos, onde a população vem sofrendo desde muitas décadas, violência, falta de liberdade eleitoral,
sem direito a voto, inclusive com o poder sucessivo de uma única família. Em 2011, com a utilização da

20
mas em que muitos muçulmanos extremistas tentam demarcar território
em meio às incertezas políticas.
Para Mill, “há um limite à legítima interferência da opinião coletiva
com a independência individual. E achar esse limite é indispensável tanto
a uma boa condição dos negócios humanos como à proteção contra o des-
potismo político”49. Apesar dos modos comuns de conduta e opinião, a in-
dividualidade deve ser reconhecida e assegurada. Isso é um exemplo, entre
outros, de problemas políticos e filosóficos.

C . Utilidade e progressividade: Sobre isso, Mill, falando do princípio de


utilidade, afirma que a última instância em todas as questões éticas é a uti-
lidade baseada nos interesses do homem como “ser progressivo” (interests
of man as a progressive being)50, ou seja, defende que a ética deve ser levada
em consideração com relação à sua utilidade prática em favor do progresso
humano. Contudo, o que seria o progresso humano ou “ser progressivo”?
Para Mill, o progresso humano se dá quando gera maior felicidade e prazer
ou menor infelicidade e dor para um indivíduo ou uma sociedade. Trata-se
de regra ou preceito para a conduta humana. Vejamos:

Assim, é possível definir a moralidade como as regras e os preceitos da


conduta humana, cuja observação permitiria que uma existência tal
como a descrita fosse assegurada, na maior medida possível, a todos
os homens; e não apenas a eles, mas também, na medida em que com-
porte a natureza das coisas, a todos os seres sencientes da criação.51

Todavia, o princípio da utilidade não pode gerar problemas ou extre-


mos? Vejamos um exemplo no qual, em tese, o princípio da utilidade é con-
duzido a extremos, deixando de lado as possíveis questões morais ou éticas:

Um crime horrível ocorreu numa cidade. O chefe da polícia descobriu

internet, pelas redes sociais a população vem buscando mudar essa tradicional situação, em busca do
liberalismo e dos direitos humanos, em alguns desses países, já ocorreu a queda dos presidentes, como
no Egito e na Líbia”. Disponível em: http://pt.shvoong.com/social-sciences/education/2216005-prima-
vera-%C3%A1rabe/
49
MILL, Sobre a liberdade, p. 49.
50
MILL, John Stuart. On Liberty. Oxford: B. Blackwell, 1948, p. 9.
51
MILL, Utilitarismo; A liberdade, p. 194-195.

21
que o assassino está morto. Todavia, ninguém acreditará nele caso apre-
sente os indícios conclusivos que tem em sua posse. O estado de pânico
na cidade é incontrolável. Rapidamente um suspeito terá de ser julgado
e condenado. Se tal não acontecer, revoltas semearão o caos e a violên-
cia. Haverá certamente mortos e feridos. Estava o angustiado chefe da
polícia a pensar no caso e eis que entra no seu gabinete um desconheci-
do que lhe diz vaguear pela cidade e não ter relações ou amizades que o
prendam ao mundo. O chefe da polícia tem de repente a solução para o
caso. Por que não prender o vagabundo solitário e manipular as provas
de maneira a que ele seja julgado, condenado e executado, uma vez que
a lei estabelece a pena de morte para casos do gênero? Ninguém saberá
o que de fato se passou. Se for esta a opção, morrerá uma pessoa, mas
a vida e o bem-estar de outras serão preservados. A consequência será
claramente mais felicidade para o maior número52.

Nesse caso (bastante exagerado), estaria exemplificada uma condu-


ta para resolver problemas desse tipo, supostamente levando em conta o
princípio da utilidade. O autor desse exemplo faz uma apresentação do ex-
tremo que pode significar o utilitarismo, pois, no caso, a justiça só é levada
em consideração segundo sua utilidade. Assim, segundo o autor, seria pos-
sível ferir o princípio básico de que um inocente não pode ser condenado,
pois o utilitarismo justificaria tal opção. Mas o princípio da utilidade de Mill
é diferente? Vejamos um trecho em que Mill refere-se à utilidade em ques-
tões éticas:

Eu encaro a utilidade como a última instância em todas as questões


éticas, mas a utilidade no seu mais largo sentido, a utilidade baseada
nos interesses permanentes do homem como ser progressivo. Esses
interesses, sustento, autorizam a sujeição da espontaneidade indivi-
dual ao controle exterior somente quanto àquelas ações de cada um
que concernem ao interesse alheio. Se alguém pratica um ato lesivo a
outrem, é esse, prima facie, um caso para puni-lo, pela lei ou, onde pe-
nalidades legais não sejam seguramente aplicáveis, pela reprovação
geral. Existem também muitos atos positivos em benefício alheio que

52
VAZ, Faustino. “Alfafilos – blog de filosofia”. Disponível em: http://alfafilos.blogspot.com/2007/05/
tica-de-john-stuart-mill.html

22
o indivíduo pode legitimamente ser impelido a praticar [...]53.

Na passagem, a utilidade, mesmo sendo apresentada como “última


instância em todas as questões éticas”, não afirma literalmente que pode
permitir condenar uma pessoa inocente em prol do bem maior ao maior
número de pessoas, mas apenas apresenta que existem ações que devem ser
realizadas para o bem de um indivíduo ou sociedade ou punidas caso sejam
um “ato lesivo a outrem”. Nesse sentido de “utilidade” em questões éticas,
quando um indivíduo pratica um ato lesivo à sociedade, deve ser punido
pela lei (ou, então, pela reprovação geral), mas também existem atos bené-
ficos à sociedade que o indivíduo pode ser impelido a realizar, tais como
salvar uma vida, depor em um tribunal, etc. Mill defende o “modelo utili-
tarista, pois esse modelo não é a maior felicidade do próprio agente, mas a
maior soma de felicidade conjunta”54, tanto sob o ponto de vista quantitati-
vo quanto qualitativo:

Segundo o princípio da maior felicidade, como se explicou acima, o


fim último, com referência ao qual e por causa do qual todas as outras
coisas são desejáveis, é uma existência isenta tanto quanto possível
da dor, e tão rica quando possível em deleites, seja do ponto de vista
da quantidade como da qualidade.55

A questão do princípio da utilidade envolve uma complexidade de


possibilidades que tentaremos expor a seguir: (1°) Existe o maior bem para
o maior número de pessoas ou para o menor número de pessoas; (2°) Existe
o menor bem para o maior número de pessoas ou para o menor número de
pessoas; (3°) Existe o maior mal para o maior número de pessoas ou para o
menor número de pessoas; (4°) Existe o menor mal para o maior número de
pessoas ou para o menor número de pessoas. Trata-se da questão da quan-
tidade e qualidade do bem ou mal.
No caso, Mill defende que não pode ser infligido o mal da pena para
quem não tenha cometido um delito. Assim, mesmo que o ato de condenar
um inocente produza o maior bem para o maior número de pessoas, ele não

53
MILL, Sobre a liberdade, p. 54-55.
54
MILL, Utilitarismo; A liberdade, p. 194.
55
Ibid.

23
estaria justificado pelo princípio da utilidade, pois, como vimos, infligiria o
maior mal para uma pessoa.

2. UTILIDADE E
LIBERDADE DE OPINIÃO E DE IMPRENSA
Sobre a liberdade de opinião ou expressão e de imprensa, o autor
defende que as opiniões subjetivas, enquanto estão na esfera individual, de-
vem ser asseguradas, mas quando uma ideia ou uma notícia é divulgada ou
publicada deve haver certo critério, pois envolve as outras pessoas. Qual é
o critério para expor uma ideia ou notícia? Deve a pessoa ou a imprensa ter
seus próprios critérios? Cabe à sociedade ou ao governo impor os critérios?
Para Mill, a liberdade de expressão é tão importante quanto a liber-
dade de pensamento individual, e cada pessoa deve ter o direito de expres-
são assegurado, desde que não prejudique outra pessoa. Também o indi-
víduo tem o direito de se unir aos demais indivíduos que comunguem das
mesmas ideias ou propósitos e, a partir desse grupo, expor ideias56.

A liberdade de exprimir e publicar opiniões pode parecer que cai sob


um princípio diferente, uma vez que pertence àquela parte da conduta
individual que concerne às outras pessoas. Mas, sendo quase de tanta
importância como a própria liberdade de pensamento, e repousando,
em grande parte sobre as mesmas razões, é praticamente inseparável
dela. Em segundo lugar, o princípio requer a liberdade de gostos e de
ocupações; de dispor o plano de nossa vida para seguirmos nosso pró-
prio caráter; de agir como preferirmos, sujeitos às consequências que
possam resultar; sem impedimento da parte dos nossos semelhantes
enquanto o que fazemos não os prejudica, ainda que considerem a nos-
sa conduta louca, perversa e errada. Em terceiro lugar, dessa liberdade
de cada indivíduo segue-se a liberdade, dentro dos mesmos limites, de
associação entre os indivíduos, liberdade de se unirem para qualquer
propósito que não envolva dano, suposto que as pessoas associadas
sejam emancipadas, e não tenham sido constrangidas nem iludidas57.

56
Cf. MILL, Sobre a liberdade, p. 56.
57
Ibid.

24
Porém, é difícil dizer qual é o critério para a divulgação de notícias
na imprensa, e se é o governo ou a própria imprensa que devem definir os
critérios. Mas novamente caímos no princípio da utilidade, pois para Mill
seria esse o critério a ser usado.

A . Utilidade, governo e liberdade de imprensa: A partir desses pres-


supostos, o autor expressa uma esperança de que chegaria um tempo
em que a imprensa não correria o risco de ser censurada, e em que a
opinião dos governantes seria identificada com a opinião do próprio
povo; mas, como estamos em um mundo real, nem sempre a opinião do
povo é a melhor, nem sempre a imprensa age de maneira correta e nem
sempre o governo possui a melhor opinião. Por isso, Mill não defende
uma liberdade de imprensa irrestrita ou sem limites, e afirma que os
governos não podem guiar-se somente pela opinião do povo (pois ela
pode ser também nociva). Então, deve haver critérios na liberdade de
imprensa baseados na sua utilidade, pois ela é, por exemplo, uma arma
poderosa de informação e de formação da opinião pública, não poden-
do o governo simplesmente querer censurar a imprensa.

É de se esperar tenha chegado o tempo em que não se faz necessária


defesa alguma da “liberdade de imprensa” como uma das garantias
contra os governos tirânicos e corruptos. Podemos supor seja dispen-
sável qualquer argumento contra a permissão de uma legislatura ou
um executivo, de interesses não identificados com os do povo, pres-
crever opiniões a este e determinar que doutrinas ou que argumentos
lhe serão concedidos ouvir58.

A “liberdade de imprensa”, segundo Mill, é “uma das garantias contra os


governos tirânicos e corruptos”, pois se pode, assim, denunciar abusos de poder
e esclarecer a opinião da grande massa, mas, também inversamente, pode ser-
vir para difundir uma ideologia particular e/ou transmitir apenas as informa-
ções que lhes são úteis ou mesmo simplesmente não transmitir a verdade dos
fatos. Por isso, a mídia deve ter certa autonomia em relação ao governo, mas
também não pode agir sem critérios, os quais precisam ser estabelecidos pelo
conjunto da sociedade. No Brasil, por exemplo, foi alegado que é necessário ins-

58
Ibid., p. 59.

25
tituir a Comissão da Verdade, pois a mídia e a propaganda durante a ditadura
militar, muitas vezes, manipularam a mentalidade e a ação das pessoas.
Para Mill, não existe governo bom meramente pelo fato de estar em
“inteira harmonia com o povo”, pois pode haver um governo “nocivo” mes-
mo “quando exercido de acordo com a opinião pública”, dado que esta pode
trocar verdade pelo erro e vice-versa. Inclusive, Mill afirma o seguinte: “O
melhor governo não tem a ele título superior ao do pior. É tão nocivo, ou ain-
da mais nocivo, quando exercido de acordo com a opinião pública, do que
em oposição a ela”59. Com isso, o autor ressalta o problema da possibilidade
de a opinião pública estar errada, equivocada.

B . Utilidade, mentira e verdade: É necessário que haja sempre uma


discussão a respeito dos problemas para que o homem busque as me-
lhores decisões, pois o fato de “todos os homens menos um” terem
certa opinião não significa que este um esteja errado. O mesmo vale
no caso da minoria frente à maioria do povo. Além disso, como Mill
bem afirma, é um “mal específico”, para as “gerações presentes” e para
a “posteridade”, a ação de “impedir a expressão de uma opinião”, pois
ela inviabiliza a “oportunidade de trocar o erro pela verdade”, quando a
“opinião é certa”, ou “a percepção mais clara e a impressão mais viva da
verdade”, quando a opinião é “errônea”.

Assim, para Mill, até mesmo a mentira ou a verdade incompleta tem


valor, pois somente conhecendo a mentira é que teremos uma melhor visão
da verdade. Apenas a expressão de uma opinião já é útil, sendo ela verdadei-
ra ou falsa. Vejamos:

Fosse uma opinião um bem pessoal sem valor exceto para o dono; se ser
impedido no gozo desse bem constituísse simplesmente uma injúria
privada, faria diferença que o dano fosse infligido a poucos ou a muitos.
Mas o mal específico de impedir a expressão de uma opinião está em
que se rouba o gênero humano; a posteridade tanto quanto as gerações
presentes; aqueles que dissentem da opinião ainda mais que os que a
sustentam. Se a opinião é certa, aquele foi privado da oportunidade de
trocar o erro pela verdade; se errônea, perdeu o que constitui um bem

59
Ibid., p. 60.

26
de quase tanto valor – a percepção mais clara e a impressão mais viva
da verdade, produzidas pela sua colisão com o erro.60

Nesse sentido, é muito importante o exercício do senso crítico, pois


nos faz repensar as nossas opiniões, compará-las com outras e fundamen-
tá-las. O autor comenta que nenhum sábio adquiriu sabedoria de outra for-
ma61. Afinal, não é porque a maioria das pessoas tem certa opinião, que ela
é a certa, e é apenas nesse confronto de opiniões que alguém pode confiar
nas suas crenças.
Entretanto, para Mill, a verdade não necessariamente “vence” a
mentira62:

E sentindo que o único meio de um ser humano aproximar-se do co-


nhecimento completo de um assunto é ouvir o que sobre ele digam
representantes de cada variedade de opinião, e considerar todas as
formas para que cada classe de espíritos o possa encarar. Jamais qual-
quer homem sábio adquiriu a sua sabedoria por outro método que
não esse, nem está na natureza do intelecto humano chegar à sabedo-
ria de outra maneira. O hábito firme de corrigir e completar a própria
opinião pelo confronto com a dos outros, muito ao contrário de cau-
sar dúvida e hesitação no levá-la à prática, constitui o único funda-
mento estável de uma justa confiança nela.63

C . Opinião, felicidade e utilidade: Além disso, depois que uma opi-


nião é formada, ainda existe a questão de colocá-la em prática. Mas
uma opinião pode ter diversas utilidades. Inclusive, segundo Mill, “a uti-
lidade de uma opinião é ela própria matéria de opinião: tão disputável,
tão aberta a debate, exigindo tanto debate, como a própria opinião”64.
Ele quis dizer, com isso, que a própria questão da utilidade de uma de-
terminada opinião pode gerar um grande debate, pois o que é útil para
uma pessoa pode não ser útil para outra e, mesmo se for, pode não ser

60
Ibid.
61
Ibid., p. 64: “Jamais qualquer homem sábio adquiriu a sua sabedoria por outro método que não esse
[...]”.
62
Ibid., p. 65.
63
Ibid., p. 64.
64
Ibid., p. 66.

27
na mesma proporção. Uma opinião pode ter uma utilidade para uma
pessoa (no sentido prático em que gera a felicidade ou ausência de dor),
mas pode não ter essa mesma utilidade para outra pessoa (pode gerar
infelicidade ou dor nessa pessoa). O que Mill defende é que se determi-
nada ação ou opinião gera a maior felicidade ou a menor infelicidade
para o maior número de pessoas, então deve ser colocada em prática.

Também surge a relação da utilidade e da verdade, pois nem sempre


uma afirmação para ser útil precisa ser verdadeira (por exemplo, no sentido
individual e egoísta, afinal, ela pode ser útil para uma pessoa, porém preju-
dicar outra pessoa, quando se trata de mentira); mas, sendo ela verdadeira,
por si só já é útil. Vejamos:

A verdade de uma opinião faz parte da sua utilidade. Se quiséssemos


saber se a crença numa assertiva é, ou não, desejável, seria possível
excluir a consideração de ser ela, ou não, verdadeira? Na opinião, não
dos maus, mas dos melhores, não ter crenças contrárias à verdade
pode ser realmente útil; e podeis impedir a tais homens essa defesa
quando se veem inculpados de negar alguma doutrina, de cuja uti-
lidade se lhes fala, mas que creem falsa? Os que estão do lado das
doutrinas aceitas jamais deixam de tirar toda a vantagem possível
dessa defesa. Não os encontrareis manejando o argumento da utili-
dade como se esta pudesse ser completamente abstraída da verdade.
Ao contrário, é sobretudo porque a sua doutrina é a “verdade”, que
reputam tão indispensável o conhecimento dela ou a crença nela. Não
pode haver discussão leal da questão da utilidade, se apenas se permi-
te o emprego de tão vital argumento a uma das partes65.

Mill entende, assim, que é útil o debate público para que a verdade
da opinião torne-se verdadeira:

E, de fato, quando a lei ou o sentimento público interdizem a dispu-


ta sobre a verdade de uma opinião, mostram precisamente a mesma
intolerância para com a negativa de sua utilidade. O mais que elas
concedem é que a opinião não seja de tão absoluta necessidade, sen-
do sempre necessária, ou que se atenue a positiva culpa que há em
rejeitá-la. A fim de ilustrar mais amplamente o mal que existe em não

65
Ibid.

28
darmos ouvido a opiniões por as ter a nossa apreciação condenado,
convirá limitar o debate em um caso concreto. E eu escolho, de pre-
ferência, os casos menos favoráveis a mim, nos quais o argumento
contra a liberdade de opinião é havido pelo mais forte, fundado que é,
ao mesmo tempo, na verdade e na utilidade66.

D . Utilidade da Informação: Então, na “opinião dos bons”, uma opi-


nião verdadeira já tem por si só uma utilidade, pois não se trata de uma
mentira, mas, para Mill, uma mentira deve ser levada em consideração
em favor de sua utilidade. Por exemplo, existe uma ameaça de um gi-
gantesco meteoro colidir com a Terra, e nenhum cientista ou tecnolo-
gia já criada podem destrui-lo, e essa colisão aconteceria em um mês.
É mais útil ao governo dizer a verdade e criar uma situação de pânico
coletivo, saques, desespero, etc. ou simplesmente não informar a po-
pulação de seu fim iminente? A princípio, para Mill, o mais útil seria
[parece ser] negar a informação da possibilidade do fim do mundo.

Além disso, para o autor, para que haja o bem-estar humano é neces-
sário que as pessoas não se atenham apenas a uma opinião, por exemplo,
acerca de assuntos religiosos, morais e políticos, mas sim busquem ouvir
todas as partes ou o máximo delas e procurem a possível parcela de verdade
contida em cada uma delas. Esse bem-estar depende, assim, da “liberdade
de opinião” e da “liberdade de exprimir a opinião”. Para o autor, “raramente,
ou nunca”, uma opinião é a “verdade inteira”, isto é, tem apenas parte da
verdade; com isso, assumir apenas uma opinião seria negar as possíveis ou-
tras partes da verdade contidas em outras opiniões. Sobre isso, Mill afirma
o seguinte: “Reconhecemos, agora, a necessidade para o bem-estar mental
humano (de que todo o bem-estar humano de outra natureza depende), da

66
Ibid.

29
liberdade de opinião, e da liberdade de exprimir a opinião”67.

E . Passos metodológicos do opinar verdadeiro: Mill descreve quatro


passos metodológicos da opinião para alcançar a verdade.

1. Romper o silêncio e o vir a ser da opinião: “Se uma opinião é com-


pelida ao silêncio, é possível que ela seja verdadeira, em virtude de
algo que podemos vir a conhecer com certeza. Negar isso é presumir a
nossa infalibilidade”. Uma opinião que é logo silenciada por ser consi-
derada errônea (individualmente, ou pela sociedade, ou pelo governo,
etc.) pode, contudo, ser verdadeira, pois não somos infalíveis. Se nós
silenciarmos, sem critérios, uma opinião, então pode ser que esteja-
mos silenciando a verdade.

2. Do conflito de opiniões emerge a verdade: “Mesmo que a opinião a


que se impôs silêncio seja um erro, pode conter, e muito comumente
contém, uma parte da verdade. E, uma vez que a opinião geral ou do-
minante sobre um assunto é raramente, ou nunca, a verdade inteira,
só pela colisão das opiniões contrárias se faz provável que se comple-
te a verdade com a parte ausente”. Se essa opinião que foi silenciada
é falsa, mesmo assim pode ter uma parte de verdade, pois geralmente
uma opinião não é verdade inteira. Uma opinião errada pode conter
um grão de verdade necessário para a descoberta de toda a verdade.

3. Opinar verdadeiro passando pelo crivo da contestação: “Ainda que a


opinião aceita não seja apenas verdadeira, mas a verdade toda, só não
será assimilada como um preconceito, com pouca compreensão ou
pouco sentimento das suas bases racionais, pela mor parte dos que a
adotam, se aceitar ser, e efetivamente for, vigorosa e ardentemente con-
testada”. Se a opinião é inteiramente verdadeira, ela só é provada atra-
vés da dúvida e da contestação. Mesmo se a opinião comumente aceita
for toda a verdade, as pessoas irão mantê-la, não em bases racionais,
mas como um preconceito, a menos que sejam forçadas a defendê-la.

4. Convicção efetiva gera-se do debate de opiniões: “Se tal não se der,


o significado mesmo da doutrina estará em perigo de se perder, de se
debilitar, de se privar do seu efeito vital sobre o caráter e a conduta: o

67
Ibid., p. 94.

30
dogma se tornará uma mera profissão formal, ineficaz para o bem, mas
a estorvar o terreno e a impedir o surgimento de qualquer convicção
efetiva e profunda, vinda da razão ou da experiência pessoal”68. A verda-
de debatida e contestada não corre o risco de se dogmatizar ou tornar-
-se uma mera profissão de fé formal. Afinal, se as opiniões comumente
aceitas não são contestadas de vez em quando, elas perdem a vitalidade
e o efeito sobre o comportamento e o caráter dos opinantes69.

Assim, para Mill, a liberdade de cada indivíduo deve ser assegurada, a


fim de que todos tenham o direito de poder expressar as suas opiniões. Além
disso, ninguém possui a faculdade da infalibilidade, ou seja, todos podem er-
rar em suas opiniões e concepções políticas, morais e religiosas; por isso, essa
liberdade de expressão envolve limites, pois não pode lesar os mesmos direitos
à liberdade de opinião de outras pessoas70. Por exemplo, eu não posso impor a
minha opinião de que as outras pessoas não podem ter uma opinião contrária
a minha, porque seria invadir a liberdade e o direito de opinião de outras pes-
soas. Com isso, Mill não defende que os homens tenham “liberdade de formar
opiniões e de exprimi-las sem reservas”, pois “a liberdade do indivíduo deve ser
[...] em grande parte limitada – ele não deve tornar-se prejudicial aos outros”71.

F . Opinião da minoria e força da espontaneidade: Segundo Mill, a


individualidade de cada pessoa deve ser reconhecida, apesar dos pos-
síveis modos comuns de pensamento, ou seja, a pessoa tem direito de
ter uma opinião contrária à da maioria. A espontaneidade, contudo,
não é vista com bons olhos pela “maioria dos reformadores sociais e
morais”, pois, quase sempre, a consideram perigosa, mas é necessária
para a própria formação do pensamento coletivo72.

No Brasil, depois de 1964, começou a vigorar uma ditadura militar,


na qual o povo brasileiro sofria com a censura na imprensa, dados os atos

68
Ibid.
Cf. PETERSON, Theodore; JENSEN, Jay W.; RIVERS, William. Os meios de comunicação e a sociedade
69

moderna. Tradução de Jovelino Pereira Ramos (traduzido do original norte-americano The Mass Media
and Modern Society, 1965). Rio de Janeiro: Edições GRD, 1966, p. 142.
70
MILL, Sobre a liberdade, p. 97.
71
Ibid.
72
Ibid., p. 99.

31
institucionais (como o AI 5) e a perseguição dos que eram contra o regime.
Diante disso, “em 1983, surgiu um dos maiores movimentos de participação
popular do Brasil”, conhecido como “Diretas já”, que conseguiu mobilizar a
opinião pública e pressionar o governo a realizar eleições diretas73. Esse é,
portanto, um exemplo de espontaneidade que formou o pensamento coleti-
vo brasileiro. Ora, sobre isso, Mill afirma:

E, o que é mais, a espontaneidade não participa do ideal da maioria dos


reformadores sociais e morais, mas é antes olhada com desconfiança,
como obstrução, fonte de perturbações e de rebeldia, à acolhida geral
do que esses reformadores têm como melhor para a humanidade.74

G . Opinião individual – diversidade X uniformidade: Para Mill, é ne-


cessário estimular e cultivar a individualidade, pois tendo mais valor
para a pessoa mesmo, acaba tendo mais valor para toda a sociedade.
Trata-se de realizar o que é o “melhor para a humanidade”. Todas as
ideias de reformas, mudanças e inovações surgiram (ao menos no iní-
cio) de uma ideia ou desejo individual que foi assumido por mais pesso-
as. Assim, a individualidade transforma o coletivo ou o comum.

Não é fazendo desvanecerem-se na uniformidade tudo o que existe de


individual dentro de nós, e sim cultivando-o e estimulando-o, dentro
dos limites impostos pelos direitos e interesses alheios, que os seres
humanos vêm a ser um belo e nobre objeto de contemplação.75

Trata-se de um argumento defendendo a diversidade (versus a mera


uniformidade), a qual permite que o “belo e [o] nobre” possam ser “objeto
de contemplação”, na medida em que são estimulados e cultivados. O papel
das mídias é permitir tal diversidade. De um lado, na atualidade, constata-
-se que as redes sociais são uma efetivação da liberdade de expressão das
individualidades e da espontaneidade da opinião; de outro lado, ainda a mí-
dia pode massificar a população e induzir a uniformidade de pensamento.
Para Habermas, “os processos de comunicação dos grupos estão sob

73
Cf. “Infoescola – Diretas já”. Disponível em: http://www.infoescola.com/historia/diretas-ja/
74
MILL, Sobre a liberdade, p. 99.
75
Ibid., p. 104.

32
a influência dos meios de comunicação (que são de massa)”; inclusive, afir-
ma: “Os processos de comunicação dos grupos estão sob a influência dos
meios de comunicação de massa, de modo imediato ou, o que é o caso mais
frequente, intermediado por opinion leaders (líderes de opinião)”76.
Sobre isso, Mill dá o exemplo das pessoas que a partir de suas con-
cepções individuais assumiram atitudes e tomaram posições diferentes da
grande maioria e, consequentemente, foram excluídas e taxadas de “extra-
vagantes e excêntricas” pela opinião comum, como Sócrates, que foi morto,
acusado de corromper a juventude com suas ideias. Ora, o homem sempre
tem medo daquilo que ele não consegue dominar.

Se patenteiam um caráter forte e quebram as cadeias que os restrin-


gem, a sociedade, que não logrou êxito em reduzi-los ao lugar comum,
os aponta, numa atitude de solene advertência, como “extravagantes”,
“excêntricos”, e coisas análogas – qual alguém que se queixasse do
rio Niágara por não fluir docemente entre suas margens como um rio
canal holandês77.

Aqui se trata da questão de não reprimir as individualidades em


nome de um comportamento geral. Para que haja desenvolvimento huma-
no e progresso é necessário que haja liberdade de expressão, pois uma das
maiores conquistas humanas, com certeza, foi o direito de poder pensar e se
comunicar livremente. O progresso, inclusive científico e tecnológico, deu
“um salto” justamente em sociedades em que os indivíduos têm tal liber-
dade. O mesmo avanço não se vê em sociedades onde os seus cidadãos são
privados dos mesmos direitos. Trata-se do vínculo direto com o princípio da
utilidade. Sobre isso, Mill afirma o seguinte:

A Europa deve inteiramente, ao meu ver, o seu desenvolvimento pro-


gressivo e variado a essa pluralidade de caminhos. Já começa, po-
rém, a usufruir esse benefício num grau consideravelmente menor.
[...] Guilherme de Humboldt, numa passagem já citada, aponta duas
coisas como condições necessárias do desenvolvimento humano,
porque necessárias à dessemelhança das pessoas, a saber, liberdade e

76
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro, 1984,
p. 286.
77
MILL, Sobre a liberdade, p. 106.

33
variedade de situações78.

A “passagem já citada” declara que:

[...] todo ser humano deve incessantemente dirigir os seus esforços,


e ao qual especialmente aqueles que tencionam influenciar os seus
semelhantes devem dar, sempre, a sua atenção, é a individualidade de
poder e desenvolvimento; de que para isso há dois requisitos, ‘liber-
dade e variedade de situações’, e da união dos dois surge ‘o vigor indi-
vidual e a múltipla diversidade’ que se combinam em originalidade79.

H . Opinião, interesses, autocontrole e punição: No entanto, qual o li-


mite da liberdade do indivíduo em relação à sociedade? Onde começa a
autoridade da sociedade sobre o indivíduo? Conforme Mill, o indivíduo
é livre até que sua liberdade interfira na liberdade de outro (ou seja,
quando passa a ser nociva):

O fato de viver em sociedade torna indispensável que cada um seja


obrigado a observar certa linha de conduta para com o resto. Essa
conduta consiste, primeiro, em não ofender os interesses de um ou-
tro, ou antes, certos interesses, que, ou por expressa cláusula legal ou
por tácito entendimento, devem ser considerados direitos80.

A liberdade de expressão e de opinião deve servir, então, para o bem-


-estar comum (princípio da utilidade), e quando essa liberdade de um não
fere a de outros, deve ser assegurada por lei. “Os atos de um indivíduo podem
ser danosos a outro, ou faltar com a devida consideração ao bem-estar deste,
sem irem ao ponto de violar alguns de seus direitos estabelecidos. Nesse caso,
o ofensor pode ser justamente punido pela opinião, ainda que não pela lei”81.
Percebe-se que a tese de Mill permite um autocontrole da própria sociedade,
pois a própria sociedade punirá o indivíduo no embate das opiniões e das in-
formações, sem recorrer de imediato ao controle ou à punição legal.
Quando essa liberdade individual causa danos ao bem comum, deve

78
Ibid., p. 114.
79
Ibid., p. 99.
80
Ibid., p. 117.
81
Ibid., p. 118.

34
ser limitada pela sociedade ou pelo Estado. “Desde que algum setor da con-
duta de uma pessoa afete de maneira nociva interesses alheios, a jurisdição
da sociedade o alcança, e a questão de a interferência nesse setor promover,
ou não, o bem-estar geral torna-se aberta a controvérsia”82. Constata-se que
Mill segue veementemente o pensamento liberal vinculado à defesa dos in-
teresses individuais, garantindo a liberdade:

Tal problema porém não tem lugar quando a conduta de um indivíduo


não afeta interesses de outros ao seu lado, ou não necessite afastá-los
a não ser que estes outros o queiram. Em todos esses casos, deve ha-
ver perfeita liberdade, legal e social, de praticar a ação e suportar as
consequências83.

Todavia, o mesmo pode ser dito com relação à liberdade de im-


prensa? Até que ponto a liberdade de imprensa interfere na liberdade do
indivíduo? Será que cabe ao Estado intervir na liberdade de expressão e de
imprensa? Também na questão da liberdade de propaganda, por exemplo,
acerca da bebida alcoólica e do fumo ou no que se pode ou não comprar?
Sim, essas são questões que exigem distintas interferências do Estado,
como, por exemplo, nas questões de bebida alcoólica e de fumo, em que
Mill afirma, entre outros, ser necessário limitar um horário para a venda de
bebidas alcoólicas, aumentar os impostos (o que “é uma medida que apenas
em grau difere da completa proibição”84, mas é inevitável ao Estado, pois de
alguma forma deve arrecadar fundos). Sobre isso, Mill ainda declara:

Uma nova questão consiste em dever, ou não, o Estado desencorajar


indiretamente uma conduta que ele permite, mas que, não obstante,
julga contrária aos melhores interesses do agente; saber, por exemplo,
se deveria tomar medidas que tornassem mais custosos os meios da
embriaguez, ou aumentar a dificuldade de os procurar limitando os
locais de venda. Nisso, como em muitas outras questões práticas, se
requer muitas distinções85.

82
Ibid.
83
Ibid.
84
Ibid.
85
Ibid.

35
Mas, além disso, ele afirma:

Já se disse, numa das primeiras partes deste ensaio, que a liberdade


do indivíduo, em coisas nas quais só ele é interessado, implica uma
correspondente liberdade em qualquer número de indivíduos para se
acordarem mutuamente em regular coisas que digam respeito a eles
em conjunto, e só a eles e a mais ninguém86.

Assim, deve-se ter cuidado para não violar a liberdade individual, pois
é apenas de interesse pessoal, mas, quando essa liberdade exerce influências
negativas sobre os outros, o Estado pode ou deve exercer um “controle vigi-
lante”, afinal “o Estado, ao mesmo tempo que respeita a liberdade de cada um
no estritamente individual, é obrigado a manter um controle vigilante sobre o
exercício de qualquer poder sobre os outros que conceda a alguém”87.
Por fim, Mill faz algumas objeções à interferência estatal nas ques-
tões de negócios e limitação do poder, pois o mal começa quando os gover-
nantes trocam os interesses da sociedade pelos seus próprios.

O mal começa quando, ao invés de excitar a atividade e as energias


dos indivíduos e grupos, o governo troca a sua atividade pela deles;
quando, ao invés de informar, aconselhar, e, na oportunidade, censu-
rar, ele os faz trabalhar sobre grilhões, ou lhes determina fiquem de
lado e faz o trabalho deles em seu lugar. O valor de um Estado, afinal
de contas, é o valor dos indivíduos que o constituem88.

Com isso, o Estado ou as leis não podem constituir “grilhões”, mas


antes permitir e promover o desenvolvimento do “valor dos indivíduos”,
dos seus cidadãos.
Assim, após fazermos a reconstituição da teoria de Mill sobre o prin-
cípio da utilidade e sua aplicação em Sobre a Liberdade, tendo como foco o
problema da liberdade de expressão e de imprensa, apresentamos, a seguir,
uma breve recepção de sua teoria, com intuito de mostrar que, assim como
a diversidade de opinião que ele defende, diversas são as opiniões sobre sua
obra que trata da liberdade de opinião numa sociedade e Estado liberais.

86
Ibid., p. 145.
87
Ibid., p. 147-148.
88
Ibid., p. 158.

36
3. LEITURAS E CONTRADIÇÕES
DA TEORIA DE J. S. MILL
Celso Lafer, estudioso do pensamento de Mill, apresenta que há “vi-
sões diferentes ou até divergentes umas com relação às outras” sobre o au-
tor em questão:

John Stuart Mill tem sido interpretado de diversas maneiras. [...] Wal-
ter Coralluzzo aponta que alguns autores, como M. Cowling e S. Le-
twin, consideravam-no um precursor da teoria das elites, ao passo
que outros, como é o caso de R. J. Halliday e de C. L. Ten (que polemi-
za com Cowling), reafirmam o acerto da imagem tradicional de Mill
como um grande liberal de vocação democrática89.

Assim, alguns o consideram um “elitista” e “dogmático”, outros um


“democrático” e “tolerante”. Em suma, alguns autores dizem que Mill propõe
“uma gestão elitista do poder”, enquanto “elitista, dogmático conservador”,
mas outros declaram que ele é um “democrático tolerante e libertário”90. Em
uma tentativa de explicar tal dualidade contrastante, Gertrude Himmelfarb
lançou a teoria de que existem dois J. S. Mill: “o jovem Mill dos anos [18]30”,
que “reaparece depois da morte de sua mulher”, denominado de “elitista
conservador”, e o “Mill de Sobre a Liberdade e dos escritos sobre a paridade
dos sexos, profeta da liberdade e teórico, por excelência, do liberalismo de-
mocrático”91. Em suma, o Mill do livro On Liberty (Sobre a Liberdade) seria
diferente do anterior e do posterior a essa obra.

A . Liberalismo elitista X Liberalismo democrático: Mill é exposto entre os


que defendem o “liberalismo elitista” e, também, o “liberalismo democrá-
tico” com “exigência de igualdade, procurando estender a liberdade a um
número cada vez maior de pessoas por meio da legislação e de garantias
jurídicas”92. Segundo outros, “no âmbito da Política, o caminho seguido por

LAFER, Celso. Ensaios Liberais. São Paulo: Editora Siciliano, 1991, p. 62-73. (disponível em: http://
89

www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/liberalismostuartmill.html).
90
Ibid.
91
Ibid.
92
WOLLMANN, Lauri José. “O pensamento liberal”. Disponível em: <http://www.nossaversao.pro.br/
liturgia _detalhes.php?numero=70>. Acessado em: 08/05/2012.

37
Mill foi o de um liberalismo extremado, muito próximo do anarquismo”;
porém, igualmente se defende que ele teve “sensíveis modificações no de-
correr de sua vida intelectual”, tornando-se um “autor de transição entre o
pensamento econômico antigo (que dá maior ênfase aos aspectos ligados
à produção da riqueza) e o pensamento econômico moderno (que enfatiza
os aspectos ligados à distribuição da riqueza)”93. Enfim, tudo isso é muito
parecido com a teoria de dois Mill’s que Gertrude Himmelfarb defende.

B . Ambivalência da esfera pública e implicações sobre a opinião: Entre


os autores que criticam o pensamento de Mill, destaca-se J. Habermas,
que no seu livro Mudança Estrutural da Esfera Pública, questiona igual-
mente o Mill de On Liberty. Ora, com isso, questiona-se a teoria de Ger-
trude sobre o Mill do livro Sobre a Liberdade enquanto suposto defensor
do “liberalismo democrático”.

No caso, Habermas inicialmente até parece enaltecer o pensamento


do autor:

[...] Mill observa como os trabalhadores manuais, como (nos Estados


Unidos) mulheres e pessoas de cor, pressionam a fim de obter o su-
frágio universal. Ele apoia expressamente todos os movimentos que
se insurgem contra a aristocracia do dinheiro, do sexo ou da cor, a
plutocracia da grande burguesia94.

Porém, logo depois afirma o seguinte:

A unidade da opinião pública e a sua univocidade não é mais garanti-


da através do inimigo comum. Liberais como Mill e Tocqueville, que
apoiavam a esfera pública em nome do princípio da publicidade, con-
denavam-na também novamente em seus efeitos em nome do mesmo
princípio. Pois os irreconciliáveis interesses que, com a ampliação do
público, afluem à esfera do que é público, arranjam a sua representa-
ção numa opinião pública fragmentada e fazem da opinião pública,
na configuração da opinião dominante em cada momento, um poder
coercitivo, embora uma vez se tivesse pensado que ela deveria dis-

93
Site: http://www.institutoliberal.org.br/galeria_autor.asp?cdc=918. Acessado em: 08/05/2012.
94
HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 158.

38
solver toda a espécie de coerção na coerção tão somente da compre-
ensão que se impusesse. Assim, Mill deplora diretamente o “jugo da
opinião pública”, os “meios de coerção moral da opinião pública”; e o
seu grande Plaidoyer, On Liberty, já se volta contra o poder da esfera
pública, que, até então, tinha sido considerado garantia da razão con-
tra o poder de um modo geral95.

Na verdade, em uma passagem anterior, Habermas enquadra Mill entre


os autores que se viram obrigados “a condenar o princípio da esfera pública”:

Por outro lado, a crítica à ideologia estava tão evidentemente certa


em relação à ideia de esfera pública burguesa que, por volta da me-
tade do século, sob os pressupostos sociais alterados da “opinião pú-
blica”, quando o liberalismo econômico recém alcançava seu apogeu,
os seus representantes sócio-filosóficos já se veem quase obrigados a
condenar o princípio da esfera pública enquanto ainda a saudavam e
festejavam96.

Todavia, propriamente, Habermas enquadra o Mill maduro, de On


Liberty, também como elitista, defensor de um governo aristocrático e/ou
burguês, em que apenas uma minoria supostamente culta iria decidir as
questões políticas em detrimento da maioria ou da multidão. No caso, Ha-
bermas afirma literalmente que:

Ele [Mill] é muito mais a favor de que “questões políticas não devem
ser decididas através de um apelo direto ou indireto à visão ou vontade
de uma multidão inculta, mas só através dos pontos de vista formados
depois de considerações pertinentes por um número relativamente pe-
queno de pessoas, criadas especialmente para essa tarefa” [Cit. 138]97.

Assim, mostramos que existem, pelo menos, duas interpretações a


respeito de Mill, destacando que o autor de Sobre a Liberdade seria defen-
sor do liberalismo democrático. Mas existe tal dualismo também no Mill
do livro On Liberty? Ora, sem falar no jovem Mill, dos anos 1830, Habermas
identifica um Mill aristocrata burguês também na obra On Liberty. Porém, a

95
Ibid., p. 159.
96
Ibid., p. 156.
97
Ibid., p. 163. [Cit. 138. Ibidem {MILL, Über die Freiheit. Frankfurt: Ed. Pickford, 1860}, p. 247.]

39
crítica de Habermas ao Mill maduro é coerente?
Segundo Habermas, Mill era um elitista que procurava apoiar a aris-
tocracia dominante em detrimento da grande massa. Ora, ele busca justificar
essa interpretação a partir da citação supracitada que supostamente privi-
legia um “número relativamente pequeno de pessoas”. Mas o que seria esse
“número relativamente pequeno de pessoas, criadas especialmente para esta
tarefa”? Difícil dizer, pois Habermas afirma citar a versão em alemão (Über der
Freiheit, p. 163) do livro de Mill, mas não foi possível encontrar tal trecho nem
na versão original em inglês nem na tradução brasileira de On Liberty. Porém,
considerando que Mill tenha realmente afirmado tal trecho, estaria ele sendo
elitista, negligente com a grande massa ou, então, apenas preocupado com
a possível manipulação ou ideologização da “multidão inculta”? Além disso,
dado que o princípio da utilidade defende, como vimos, o maior bem possível
ou o menor mal possível para o maior número de pessoas, será que Mill não
está defendendo um liberalismo democrático? Isto é, será que ele não defende
a participação do maior número possível de pessoas, aspecto que apenas se
restringiria no caso de “multidão inculta”? Afinal, é necessário ou não ter “cul-
tura” ou se deve seguir ou respeitar, inclusive, uma opinião pública “inculta”?

C . Liberdade/igualdade formal X liberdade/igualdade social: A crítica


de fundo à teoria de Mill reside no seu conceito de liberdade e igualdade
formal. Ele defende apenas, segundo Habermas, uma liberdade formal. A
igualdade é entendida como igualdade formal dos direitos e deveres jurídi-
cos individuais do cidadão. Porém, ele não trata da liberdade e da igualda-
de materiais, ou seja, a busca da concretização da efetivação da igualdade
social. É isso que Habermas detecta em seu pensamento e que John Rawls,
ao que consta, igualmente constata no formalismo de Mill. As concepções
liberais ou os “liberalismos da liberdade” garantem os direitos e as liberda-
des básicas; “atribuem-lhes uma prioridade especial e asseguram a todos
os cidadãos meios suficientes, para todos os propósitos, para que as suas
liberdades não sejam puramente formais. Nisso, estão com Kant, Hegel e,
menos obviamente, J. S. Mill”98. Ora, isso tem implicações sobre a formação

98
RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, nota 7, p. 21 (grifo nosso).

40
e a liberdade de opinião: trata-se de uma pequena elite aristocrática que
pode dizer sua opinião? Ou a opinião é, efetivamente, garantida a todos?

Concluindo, trata-se de questionamentos críticos ao pensamento de


Mill que merecem ser investigados com mais atenção, a fim de analisar o
mérito ou não de seu texto On Liberty, principalmente na relação entre o
princípio da utilidade e a liberdade de expressão e de imprensa, aspectos
tratados na presente pesquisa.

BIBLIOGRAFIA
BERLIN, Isaiah. “Prefácio do livro”. In: MILL, John Stuart. Utilitarismo; A liberdade.
Tradução de Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a


uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro, 1984.

LAFER, Celso. “Apresentação”. In: MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Tradução e
prefácio de Alberto da Rocha Barros. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.

______. Ensaios Liberais. São Paulo: Siciliano, 1991. (Disponível em: http://www.
cefetsp.br/edu/eso/filosofia/liberalismostuartmill.html).

MILL, John Stuart. Autobiografia. Introdução e tradução de Alexandre Braga


Massella. São Paulo: Iluminuras, 2006.

______. Autobiography e Literary Essays. London: Routledge, 1996.

______. Da Liberdade de Pensamento e de Expressão. Tradução de Maria Helena


Garcia. 2ª ed. Lisboa, Portugal: Dom Quixote, 1976.

______. Da liberdade. Tradução de E. Jacy Monteiro. São Paulo: IBRASA, 1963.

______. Dissertations and discussions: political, philosophical, and historical. Vol. 3. –


Utilitarianism. Boston: William V. Spencer, 1865.

______. On Liberty. Oxford: B. Blackwell, 1948.

______. Sobre a liberdade. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.

______. Utilitarismo; A liberdade. Prefácio do livro Isaiah Berlin. Tradução de Eunice


Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

41
PETERSON, Theodore; JENSEN, Jay W.; RIVERS, William. Os meios de comunicação e a
sociedade moderna. Tradução de Jovelino Pereira Ramos (Traduzido do original norte-
americano The Mass Media and Modern Society, 1965). Rio de Janeiro: Edições GRD, 1966.

RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

SITES CITADOS:

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SANTANA, Ana Lucia. “Utilitarismo”. Disponível em: http://www.infoescola.com/


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VAZ, Faustino. “Alfafilos – blog de filosofia”. Disponível em: http://alfafilos.blogspot.


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http://augusto-economia.vilabol.uol.com.br/johnstuartmill.htm.

http://educacao.uol.com.br/biografias/jeremy-bentham.jhtm.

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http://pt.shvoong.com/social-sciences/education/2216005-primavera-
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Harriet_Taylor.

http://www.biografiasyvidas.com/biografia/h/hoffding.htm

http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/JamesMil.html

http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/ThomaPai.html

http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/conteudo.phtml?id=882766

http://www.infoescola.com/historia/diretas-ja/

http://www.institutoliberal.org.br/galeria_autor.asp?cdc=918

http://www.nossaversao.pro.br/liturgia_detalhes.php?numero=70

http://www.suapesquisa.com/biografias/rousseau.htm

http://www.ushmm.org/wlc/ptbr/article.php?ModuleId=10005202

42
A LIBERDADE DE PENSAMENTO E DE EXPRESSÃO
NA PERSPECTIVA DE JOHN STUART MILL: SUA ES-
SÊNCIA E SUA RELATIVIDADE1
Prof. Dr. Antonio Hohlfeldt2

I
Uma das obras de referência de John Stuart Mill, a partir da pers-
pectiva dos estudos sobre comunicação, especialmente sobre a liberdade
de expressão e de opinião, é Sobre a liberdade (1859).3 Livro complexo, mas
que se pode dizer maduro, Sobre a liberdade discute, com propriedade e
coerência admiráveis, ainda para os dias de hoje, as questões pertinentes
à necessidade e à importância – na sua perspectiva, a utilidade (diríamos
hoje, a instrumentalidade) - da opinião, tanto a opinião individual quanto a
que denominamos, contemporaneamente, a opinião pública ou, ao menos,
a opinião de um grupo de indivíduos/cidadãos que se reúnem justamente a
partir dessa coincidência e identidade.
A discussão em torno da importância da opinião e de sua circu-
lação livre na sociedade surge já ao final do texto de introdução da obra.
A passagem é grande, por isso vamos citá-la apenas em parte. Depois de
conceituar a opinião enquanto “toda essa parte da vida e da conduta de
uma pessoa que afeta apenas a ela, ou, se também aos outros, somente
com o livre, voluntário e esclarecido consentimento desses outros”,4 cons-

1
Paper apresentado ao debate “Projetos de filosofia – O princípio da utilidade e a comunicação em
Sobre a liberdade, de John Stuart Mill”, com a participação do prof. Dr. Argemiro Bavaresco e do Douto-
rando Paulo R. Konzen.
2
Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação
em Literatura, ambos da PUCRS. Presidente da INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdis-
ciplinares da Comunicação. Pesquisador do CNPq e integrante do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Sul.
3
MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Petrópolis: Vozes, 1991 [1859]. Para este artigo, essa foi a edição
consultada.
4
MILL, 1991 [1859], p. 55.
tituindo, pois, uma “esfera adequada da liberdade humana”,5 Mill discorre
mais profundamente:

A liberdade de exprimir e publicar opiniões pode parecer que cai sob


um princípio diferente, uma vez que pertence àquela parte da condu-
ta individual que concerne às outras pessoas [...]. Em segundo lugar,
o princípio requer a liberdade de gostos e de ocupações; de dispor
o plano de nossa vida para seguirmos nosso próprio caráter; de agir
como preferirmos, sujeitos às consequências que possam resultar;
sem impedimento da parte de nossos semelhantes enquanto o que
fazemos não os prejudica [...]. Em terceiro lugar, dessa liberdade de
cada indivíduo segue-se a liberdade, dentro dos mesmos limites, de
associação entre os indivíduos, liberdade de se unirem para qualquer
propósito que não envolva dano, suposto que as pessoas associadas
sejam emancipadas, e não tenham sido constrangidas nem iludidas.6

Estabelece o autor, assim, os diferentes níveis e condições da li-


berdade de expressão e de opinião, bem como de associação. E quando
se registram as restrições relativas, é sob uma perspectiva pragmática e
utilitarista, na melhor tradição de seu mestre Jeremy Bentham7, que, por
sua vez, está inspirado no Aristóteles da Política8: as ações humanas são
politicamente boas e corretas se servem a toda sociedade. Esse é o bem
maior da pólis, segundo o estagirita, e por isso essas coisas são boas e be-
las. Já se compreende bem o princípio norteador do pensamento liberal de
Mill: todo e qualquer sujeito tem absoluta liberdade, desde que esta não
interfira sobre a liberdade do outro.
A grande preocupação do filósofo é o excessivo fortalecimento do
Estado em detrimento da liberdade individual. Assim, todo o segundo capí-
tulo da obra é dedicado à “Liberdade de pensamento e discussão”.
De certo modo recordando o famoso discurso de John Milton, di-
rigido ao Parlamento, em 1644, e conhecido como Areopagítica9, Mill abre

5
MILL, 1991 [1859], p. 56.
6
MILL, 1991 [1859], p. 56.
7
BENTHAM, Jeremy. On the liberty of the press and public discussion, 1820.
8
ARISTÓTELES. Política. Brasília: Universidade de Brasília, 1985.
9
MILTON, John. Areopagítica. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
o capítulo com certa ironia, ao escrever: “É de se esperar tenha chegado o
tempo em que não se faz necessária defesa alguma da liberdade de imprensa
como uma das garantias contra os governos tirânicos e corruptos” (p. 59).
Numa nota de pé de página, contudo, o próprio autor reconhece que um ano
antes, em 1858, haviam ocorrido processos contra a imprensa na Inglaterra.
De qualquer modo, mais oportuno era seu livro, sobretudo porque um dos
argumentos de Milton é a base da reflexão trazida por Mill a seus leitores:
uma das principais utilidades sociais da liberdade de imprensa é que ela
pode ou alertar o governante para algum desvio de conduta, ou, ao contrá-
rio, apoiá-lo em alguma decisão que necessite de compreensão da opinião
pública. Mas o fundamental é que a ideia, opinião ou ação seja conhecida,
divulgada e discutida, com o que ganhará legitimidade, mesmo que tenha,
já, a legalidade. Voltar-se-á a esse tema logo adiante.
Mill defende a liberdade de imprensa, assim como antes defendera a
liberdade de opinião e de expressão. E defende a liberdade de imprensa por-
que é através dela que a opinião se difunde e passa a ser discutida, depois de
conhecida. O mesmo princípio vai ser valorizado, alguns anos mais tarde,
pelo francês Gabriel Tarde, em seu A opinião e as massas10, para quem a im-
prensa11 organiza as massas urbanas em grandes grupos de opinião, que ele
denomina públicos: esse processo, eminentemente social, se dá justamente
porque a imprensa permite a conversação, ou seja, a troca de opiniões em
torno de determinado assunto. Essas opiniões, num primeiro momento in-
dividuais, vão-se solidificando, ganhando robustez e apoios (ou rechaços)
e assim se socializam ou, ao contrário, são sepultadas no seio da coletivi-
dade. Tarde, ao contrário de seu antecessor, o também francês Gustave Le
Bon, não temia essas multidões, justamente porque confiava na imprensa.12
Para Le Bon, as multidões significavam um perigo, pela sua irracionalida-
de. Tarde, sem negar completamente esse risco, entendia que o problema
poderia ser contornado justamente pela popularização da imprensa. Ele
confiava que a circulação e o debate das ideias amadureceriam as pessoas

10
TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005[1901].
Na época ele se referia à imprensa apenas. Hoje em dia, poderíamos nos referir à mídia em geral, apli-
11

cando-lhe as mesmas reflexões do autor.


12
LEBON, Gustave. A psicologia das multidões. São Paulo: Martins Fontes, 2008 [1895].

45
e as distanciariam da irracionalidade. Tarde era um sociólogo; Le Bon, um
psicólogo. Mill, por seu lado, foi fundamentalmente um filósofo, mas aqui
ele se aproxima bastante do sociólogo, pelo viés utilitarista e pragmático
que marca seu pensamento.
O final do século XIX é caracterizado, na Europa, por um conjunto
de obras que se preocupam com as profundas modificações que o continen-
te vem sofrendo, sobretudo na segunda metade do século, após a descober-
ta da eletricidade, que permite a industrialização, responsável pela migra-
ção rural e consequente urbanização. Quem melhor estudou o fenômeno
foi o alemão Ferdinand Tönnies, em Comunidade e sociedade.13 Para ele, a
antiga comunidade, eminentemente rural, era constituída de pequenas po-
pulações, cujos integrantes se conheciam entre si e podiam, pois, acompa-
nhar cotidianamente os acontecimentos daquele grupo social. A industria-
lização, contudo, transforma a antiga comunidade em sociedade, de que o
anonimato é a principal característica, na medida em que as pessoas já não
se reconhecem mais, devido à amplitude da população. É assim que surge
a função dos que, mais tarde, serão denominados meios de comunicação so-
cial ou meios de comunicação de massa: na medida em que as pessoas já não
podem mais acompanhar os acontecimentos de seu cotidiano de maneira
direta, os meios de comunicação – hoje, as mídias – cumprem essa tarefa e
por isso são tão importantes na sociedade contemporânea.
Mill está escrevendo justamente no âmago dessas modificações. Sua
sensibilidade leva-o a se dar conta da importância de tais processos e do pa-
pel destacado que a imprensa neles tem, talvez porque, na Inglaterra, esse
processo era um pouco mais antigo, cerca de um século mais, iniciado logo
no início do século XVIII, com o surgimento dos primeiros jornais e a figura
dos publicistas.14 Stuart Mill reconhece, contudo, que não é só o Estado que
traz perigos à liberdade de opinião e de expressão. O indivíduo, em geral,
tende a pensar que a sua opinião é a correta e imagina impô-la aos demais.
No entanto, argumenta ele, a infalibilidade humana inexiste e, mais que

13
TÖNNIES, Ferdinand. Comunidad y sociedad. Losada: Buenos Aires, 1947 [1887].
Literalmente, aqueles encarregados de publicizar as ideias então em formação, os debates ideológicos
14

entre tories e whigs e, mais tarde, as reflexões dos essays de David Hume e outros pensadores, boa parte
dos quais divulgados através das páginas dos jornais.

46
isso, “negar ouvido a uma opinião porque se esteja certo de que ela é falsa é
presumir que a própria certeza seja o mesmo que a certeza absoluta.”15
Daí porque a liberdade de expressão é fundamental: ela garante o de-
bate e certa segurança: e se a ideia que se pretende proibir for a melhor e a
mais correta? Para Mill, proibir um erro não garante a infalibilidade: deve-se
lembrar que muitos famosos cientistas da antiguidade defenderam ideias
que hoje em dia consideramos erradas. Para Mill, portanto, o debate público
é fundamental, o que garantirá a legitimidade de uma ideia, que nasce do
embate entre a opinião particular e a opinião pública (ou dos demais): mais
que isso, deve-se testar e pôr à prova a própria opinião, colocando-a em con-
fronto com as demais,16 até porque a validade de uma opinião depende de
sua utilidade: daí sua instrumentalidade. E se ela prejudicar uma só pessoa
que seja, naquele grupo social, ela perde sua utilidade e, por consequência,
a sua utilidade: é o momento em que o autor recorre à memória histórica
para mostrar o quanto ela está repleta de verdades derrotadas por força da
perseguição e da proibição. E se, na sua contemporaneidade, os autores não
são mais mortos, na verdade eles são silenciados através de diferentes arti-
manhas17 e da intolerância.18
Valeria a pena lembrarmos o que ocorreria nas décadas seguintes na
mesma Europa: o processo do nazifascismo, cujo estudo foi, de certo modo,
antecipado por Sigmund Freud, que, partindo de Le Bon, desenvolveu aná-
lises em torno do que ele chamou de psicologia das massas19, mostrando
que, de fato, as multidões são irracionais e profundamente emotivas e que
um líder é aquele que, de certo modo, assume o papel de pai (pressupondo
que as multidões sintam-se desvalidas e abandonadas e busquem um prote-
tor). Ora, muitos anos depois, Hannah Arendt20 iria estudar detidamente os
processos da violência política e voltaria a esses mesmos fenômenos, que,
mais recentemente, também mereceram atenção de Elisabeth Noelle-Neu-

15
MILL, 1991 [1859], p. 61.
16
MILL, 1991 [1859], p. 63-64.
17
MILL, 1991 [1859], p. 74.
18
MILL, 1991 [1859], p. 75.
19
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 [1921].
20
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras. 2007 [1951].

47
mann21, para quem o que Walter Lippmann22 teria denominado de opinião
pública não passava, na verdade, da expressão de uma minoria que alcança-
va maior circulação e repercussão de suas ideias através da mídia, calando
as demais opiniões.
Vê-se, pois, que a discussão encetada por John Stuart Mill nada tem
de irrelevante ou menor, sobretudo quando ele destaca que, se as opiniões
são verdadeiras, elas podem e devem ser sustentadas publicamente, porque
novas ideias significam o progresso, na melhor das hipóteses, e, na pior de-
las, saberemos as ideias equivocadas ou erradas do adversário.
Essa posição de Mill ecoa, uma vez mais, a perspectiva adotada por
Aristóteles em sua Política, na medida em que o sábio grego defendia que, ao
administrador da cidade, não bastava fazer bem, mas deveria ser capaz de de-
fender suas ideias frente aos demais e ter argumentos capazes de sustentá-las
(na verdade, já então se colocava a tensão entre a legalidade e a legitimidade).
Mais do que Aristóteles, contudo, John Stuart Mill se preocupa com a
circulação das diferentes opiniões e, para isso, reúne uma série de argumen-
tos em defesa de sua posição: (i) até mesmo a melhor opinião se deteriora
ou perde argumentos com o passar do tempo; (ii) a falta de unanimidade
seria condição para a Verdade?; (iii) duas opiniões não podem conter cada
uma algo de verdade e algo de equivocado?
A preocupação maior de Mill é que, para ele, a essência da democra-
cia é a existência de uma situação e de uma oposição, tão atuante quanto a
própria situação. Mais que isso, mesmo que essa oposição seja ínfima, ela
tem legitimidade e precisa ser levada em conta. Daí resulta a dupla pers-
pectiva, por ele defendida, sobre a liberdade de opinião e a liberdade de ex-
pressão dessa opinião (o que garantirá a circulação dessa mesma opinião): a
verdade resulta das múltiplas opiniões expressas.23
Na continuidade de sua obra, Mill advertirá que, se as opiniões de-
vem ser absolutamente livres, o mesmo não deve ocorrer com as ações, já

21
NOELLE-NEUMANN, Elisabeth. La espiral del silencio. Opinión pública: Nuestra piel social. Barcelona:
Paidós. 1995 [1974].
22
LIPPMANN, Walter. Opinião pública. Petrópolis: Vozes, 2008 [1922].
23
MILL, 1991 [1859], p. 94.

48
que uma ação decorre de costume ou de escolha, mas, no caso da escolha
(livre, do indivíduo), significa também a sua responsabilização. Esse tema,
embora extremamente oportuno na atual realidade política brasileira, não é
o que preocupa esta reflexão; de modo que, resgatado o pensamento de Mill
– espera-se que com fidelidade –, passa-se a uma reflexão mais ampla em
torno das ideias por ele levantadas e do quanto elas provocam diferentes
debates na atualidade.

II
O que mudou desde a segunda metade do século XIX para a primeira
metade do século XXI? Comecemos pela relativização do conceito de infor-
mação. Hoje, tal conceito não é mais pensado apenas quantitativa quanto
qualitativamente. O excesso de informação constitui um fenômeno a que
chamamos de entropia24. Ela é uma das principais características do século
XXI. Diariamente, estamos expostos a uma quantidade inimaginável de in-
formações e o pior – absolutamente dispensáveis. Freud já havia, de certo
modo, tangenciado o problema. Quando ele propõe o tratamento psicanalí-
tico através da fala, ele tem subentendido que escondemos elementos da re-
alidade de nós mesmos, consciente ou inconscientemente, mas ao falarmos
acabamos por expressar essas realidades escondidas. Isso levaria à cura. Na
realidade de hoje, não há cura: somos assaltados permanentemente por um
sem-número de informações absolutamente dispensáveis, mas às quais não
conseguimos nos furtar. Elas nos invadem e nos envolvem, nos dominam
e nos fazem perder o controle sobre elas. Em vez de trabalharmos com e a
partir delas, trabalhamos dentro delas, sem nos darmos conta disso. Elas
nos dominam, em vez de nós as dominarmos. Este é o desafio (e o perigo)
do século XXI. Vemo-nos compelidos a saber, falar e ter opinião sobre tudo,
mesmo que o tema tenha menor interesse para nós.25
Para uma ditadura explicitamente amparada pela força bruta, ou

24
Entropia é o excesso de informação recebida, o que gera certa inutilidade, pois a informação não
organizada ou hierarquizada não pode ser utilizada.
Pierre Bourdieu estudou esse fenômeno, em “A opinião pública não existe”. In: BOURDIEU, Pierre.
25

Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, p. 173-182, assim como seu discípulo, Patrick
Champagne, em Formar opinião: O novo jogo político. Petrópolis: Vozes, 1998.

49
para uma ditadura apoiada num pretenso apoio da opinião pública, expres-
sa através dos meios de comunicação de massa, tal como a em que vivemos
hoje em dia, a grande questão é justamente esta: como manter as aparên-
cias? Antes de John Stuart Mill, já Aléxis de Tocqueville26 havia antevisto o
risco da chamada opinião pública – então visualizada enquanto opinião das
massas –, um anonimato que se torna força imperiosa, pela qual, de modo
geral, as pessoas sucumbem. É o desafio de se estar ou ser in ou out. Mill,
cerca de meio século depois, retoma a mesma questão:

Hoje os indivíduos estão perdidos na multidão. Em política, é quase


trivial dizer que a opinião pública rege o mundo. A única força que
merece o nome é a das massas, e a dos governos enquanto se fazem
o órgão das tendências e instintos das massas [...]. Aqueles cujas opi-
niões se conhecem pelo nome de opinião pública não são sempre o
mesmo público: na América, são o conjunto da população branca, na
Inglaterra, principalmente a classe média. Entretanto, são sempre
uma massa, isto é, a mediocridade coletiva27.

Deve-se registrar que houve, no decorrer de pouco mais de dois sé-


culos, permeados pela chamada Revolução Burguesa de 1789, na França,
uma sutil, mas profunda modificação no significado da expressão opinião
pública, provavelmente utilizada, explícita e literalmente por Jean-Jacques
Rousseau, no sempre citado O contrato social.28 Num primeiro momento,
a opinião pública estava vinculada à opinião das elites de uma sociedade.
Com os processos emergentes da popularização da imprensa, a partir das
primeiras décadas do século XIX, a opinião pública desloca-se para as gran-
des massas. Se, na primeira situação, aquela opinião deveria estar bem in-
formada e, portanto, ser racional, no segundo caso ela é eminentemente
emocional e, nesse sentido, irracional.
Mill antecipa admiravelmente alguns temas de referência do final do
século XX e do princípio do século XXI. A massificação é um fenômeno que
preocupou o final do século XIX e se tornou praticamente um pesadelo nas
primeiras décadas do século XX. Resultou nos processos de mistificação das

26
TOCQUEVILLE, Aléxis de. A democracia na América. Brasília: Universidade de Brasília. 1982 [1835].
27
MILL, 1991, p. 107.
28
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Petrópolis: Vozes, 1996 [1762].

50
massas e nos sistemas ditatoriais que quase destruíram a civilização oci-
dental. Nesse sentido, a referência aos governos “que se fazem o órgão das
tendências e instintos das massas” antecipa tais experiências que se am-
pliaram, no Oriente, nos fundamentalismos islâmicos e que hoje são com-
batidas através dos movimentos que constituíram a chamada “Primavera
árabe”, mas que têm custado milhares de vidas, como nos casos da Líbia29
e da Síria. É também o processo do populismo, tal como o conhecemos nos
anos 1930 a 1960, na América Latina, com lideranças como Juan Domingo
Perón, na Argentina, ou Getúlio Vargas, no Brasil. Caracterizavam-se pela
utilização do rádio como meio de contato entre a liderança e as massas po-
pulares. No final do século XX, surge o neopopulismo, em figuras como Lula
da Silva, no Brasil; Evo Morales, na Bolívia; ou Hugo Chávez, na Venezuela.
A mídia preferencial é a televisão. É que o processo de manipulação da opi-
nião pública acaba traindo o princípio do interesse geral, identificado, ainda
no século XVIII, por Jean-Jacques Rousseau. Segundo esse princípio, a socie-
dade depende de uma espécie de altruísmo de seus integrantes, que deve-
rão decidir segundo o interesse geral, mais amplo, do grupo social, mesmo
que em detrimento do interesse imediato e particular de um indivíduo. É
sob essa perspectiva que a identidade entre o bem (comum, geral, social,
político) de Aristóteles e a felicidade se torna possível: ele pressupõe, evi-
dentemente, também, a alternância de poder, tal como a idealizara Aristó-
teles, para quem o cidadão tinha apenas o direito, mas também o dever de
participar do Governo, cujo Poder deveria sofrer revezamentos periódicos.
Mas qual é o limite da liberdade individual? Para Mill está claro: a
liberdade do próximo. E como legislar a respeito disso?
É aqui que entra a importante e fundamental função da Constituição
de uma nação. A informação tem um valor extraordinário: trata-se de uma
matéria-prima que, quanto mais dividida, mais potente se torna. Nesse sen-
tido, deter informações ou controlar seu fluxo significa enorme percentual
de poder, como já o evidenciaram Harold Innis30 e Marshall McLuhan.31 Por

29
ANDREI NETO. O silêncio contra Muamar Kadafi. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
30
INNIS, Harold Adams. O viés da comunicação. Petrópolis: Vozes. 2011 [1950].
McLUHAN, Marshall. A Galáxia de Gutenberg: A formação do homem tipográfico. São Paulo: EDUSP,
31

1969 [1962].

51
isso, um dos temas mais enfocados nas constituições modernas nacionais
é a questão da livre opinião e da livre expressão. No caso brasileiro, o tema
está trabalhado no artigo 5º, muito extenso e amplo, mas cujo cabeçalho
explicita aquilo que nos interessa:

Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer na-
tureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à se-
gurança e à propriedade, nos termos seguintes:

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além


da indenização por dano material, moral ou à imagem;

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa


ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-
-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir presta-
ção alternativa, fixada em lei;

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e


de comunicação, independentemente de censura ou licença;

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações te-


legráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último
caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabele-
cer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o


sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.

Lidos os incisos aqui destacados, as coisas parecem fáceis, mas não


o são. Por que essa dificuldade? Porque, na verdade, há certa hierarquia en-
tre o direito de expressão e o direito de informação. Num primeiro momen-
to, o direito de expressão implica o direito de informação: quer dizer, o su-
jeito se expressa na medida em que informa. Mas e se esse mesmo indivíduo
quiser guardar a informação só para si, quando, na verdade, ela deveria ser
posta em circulação (censura)? Ou se esse indivíduo divulgar apenas parte
das informações, subtraindo outras a respeito do mesmo tema, de modo

52
a interferir na percepção de uma determinada realidade (manipulação de
informações)?
Há um caso conhecido ocorrido no Brasil: em 1986, a Editora Revi-
são e seu proprietário, Siegfried Ellwanger Castan, foram processados por
terem publicado, entre outros, Holocausto: Judeu ou Alemão?, do próprio edi-
tor, e A Indústria do Holocausto, de Norman Finkelstein. Em sua defesa, os
réus alegaram o direito de expressão e a liberdade de opinião. Contudo, o
Supremo Tribunal Federal, ao final do processo, em 2001, reiterou a conde-
nação, sob a alegação de que havia sido ferido outro preceito constitucional,
que era o de racismo.
Observa-se, assim, que, de fato, nesse campo da liberdade – e espe-
cialmente da liberdade de opinião e de expressão – vale a essencial observa-
çao de Mill: a liberdade de um não pode avançar sobre a liberdade do outro.
De outro lado, pode-se reconhecer que um dos grandes debates so-
ciais contemporâneos toca exatamente nessa questão, tanto aqui no Brasil,
quanto na Argentina32 ou mesmo na Venezuela33: boa parte dos profissionais
das comunicações (destacadamente os jornalistas) denuncia a manipula-
ção da informação por parte dos empresários que são os proprietários das
empresas que possuem os meios de comunicação. Ora, a informação é um
bem público e as empresas, sobremodo as chamadas empresas de mídias
eletrônicas (rádio e televisão), são concessões dos governos em nome da
cidadania. Quanto à imprensa, ainda que seu status possa ser considerado
parcialmente diferente, na verdade constitui uma área de atividade pública
que está entre o espaço estatal e o espaço privado, conforme já explicitou
magistralmente Jürgen Habermas34: ela possui um compromisso com a Ver-
dade, compromisso que nem sempre respeita. Daí o longo debate que pros-
segue, ao longo de décadas, com o Estado por vezes pretendendo legislar

32
Os reiterados esforços da presidente Cristina Kirchner de controlar o grupo La Nación nem sempre
têm sido bem recebidos pelo Judiciário do país, ainda que boa parte da opinião pública, sobretudo aque-
la ligada ao pensamento de esquerda no país, veja com bons olhos os esforços da administradora.
33
São contraditórias as leituras que se fazem dos choques entre o governo de Hugo Chávez e os dife-
rentes veículos de comunicação da Venezuela, assim como a interpretação do envolvimento de algumas
empresas de comunicação com uma tentativa de golpe contra Chávez, em abril de 2002, em especial a
RCTV e a Venevisión.
34
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1984 [1961].

53
sobre o tema e os proprietários das empresas de mídia se rebelando contra
tal medida, que denunciam como tentativa censorial. Mas é evidente que
existem dois direitos que por vezes apresentam interesses contraditórios:
um direito de iniciativa de se expressar e informar, de um lado, e o direito de
ser informado, de outro: mais que isso, de ter acesso à possibilidade de ex-
pressão e de informação. Basta lembrar as queixas que diferentes segmen-
tos sociais, como ONGs e movimentos civis, os mais variados, expressam,
manifestando dificuldade de acesso aos canais de livre expressão. Não é de
hoje que se valoriza a importância desse acesso. Desde Karl Marx (que de-
fendia o acesso ao papel de imprensa e à tipografia por parte das massas
trabalhadoras) até os movimentos sociais contemporâneos, pretende-se ter
rádios e televisões comunitárias, internet livre etc.
O espaço ideal para o debate político e das opiniões é o Legislati-
vo, isto é, o Parlamento, o lugar onde se fala e onde se discutem as ideias.
Mas sabemos que, pelo menos desde o século XIX, a imprensa (e, hoje em
dia, a mídia em geral) tornou-se aquilo que se convencionou denominar de
o quarto poder.35 A imprensa surgida no século XVIII, na Inglaterra, dedi-
cou-se justamente ao publicismo, como já se mencionou: Daniel Defoe, Jo-
nathan Swift, Joseph Addison, Richard Steele, Henry Fielding, entre outros,
misturam seus nomes, quer na história do romance moderno36, quer na do
nascimento da imprensa de ideias. No século seguinte, a partir da França,
surge a empresa jornalística, através dos jornais La presse, de Émile de Gi-
rardin, e Le débat, de Armand Dutacq: aqui, vale mais a informação do que
a opinião. A opinião passou a circunscrever-se à página dos editoriais e dos
artigos de fundo. Mas a informação tornou-se também uma mercadoria a
ser vendida/comprada.
No início do século XXI, estamos vivendo um novo momento: chega-
-se a falar em jornalismo cívico ou jornalista cidadão37, referindo-se ao fato
de se abrir mão da pretensa neutralidade do profissional da mídia em favor

35
Além do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, haveria a imprensa (hoje a mídia). A expressão foi cunhada
pelo conservador Edmund Burke, autor, dentre outros textos, de Reflections on revolution – in France (1790).
36
WATTS, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 [1957].
37
MEYER, Philip. Public Journalism and the problem of objectivity. Publicaciones Electrónicas de USIS,
v. 1, n. 8, jul. 1996. Há tradução brasileira.

54
de seu posicionamento, sem que isso afete a veracidade e a fidelidade do re-
lato (prática que, aliás, em parte, caracteriza o bom jornalismo de referência
norte-americano). Chega-se a imaginar que a figura profissional do jornalis-
ta possa ser dispensada, na medida em que todo e qualquer cidadão, graças
às novas tecnologias e a constituição das chamadas redes sociais, poderia
desempenhar tal função.
Na verdade, pode-se dizer que o debate recém se inicia, ainda que
sob outra ótica que não aquela de John Stuart Mill na segunda metade do
século XIX. Seja como for, porém, a discussão por ele encetada é extrema-
mente importante e ainda tem atualidade, embora, como ele mesmo reco-
nhecia, alguns dos conceitos ali trabalhados talvez estejam ultrapassados
(porque a própria realidade se modificou). O certo é que não podemos ima-
ginar uma real e efetiva Democracia sem a presença da mídia, sem a liber-
dade de pensamento, de opinião e de expressão, sem a liberdade, enfim, da
circulação das informações e das opiniões.

BIBLIOGRAFIA
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Letras, 2012.

ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras,


2007.

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BENTHAM, Jeremy. On the liberty of the press and public discussion, 1820.

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sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 173-182.

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55
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electrónicas de USIS, vol. 1, nº 8, jul. 1996.

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social. Barcelona: Paidós, 1995.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Petrópolis: Vozes, 1996.

TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. Brasília: Universidade de Brasília,


1982.

TÖNNIES, Ferdinand. Comunidad y sociedad. Losada: Buenos Aires, 1947.

WATTS, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

56
RIQUEZA E TRABALHO: O QUE DEVERIA SER
APRENDIDO DE MARX SOBRE O CAPITALISMO?
Prof. Dr. Christian Iber1

Na presente contribuição proponho uma reflexão e discussão sobre


um tema inusitado: O Capital de Marx, livro I.2 O que se pode aprender de
Marx sobre o capitalismo? No meu artigo, a teoria do capitalismo de Marx
será investigada sob um aspecto totalmente determinado. Meu questiona-
mento é: como, em nossa sociedade, a riqueza e o trabalho se comportam
em conjunto?
Em primeiro lugar, algumas notas preliminares:

Também nos comentários de O Capital encontra-se um manejo de-


sajeitado com as categorias teóricas. A obra supracitada é conside-
rada como uma construção teórica elaborada abstratamente, e pre-
cisamente como uma dentre muitas outras. Quando eu me ocupo da
mesma não pretendo seguir essa direção. Eu não quero tão-somente
compreender internamente a teoria de Marx. Nas universidades há
muitos conhecedores de Marx, portanto, pessoas familiarizadas te-
oricamente com sua obra. Assim como se pode escrever uma tese de
doutorado sobre a Lógica de Hegel, também se pode escrever sobre
O Capital marxiano. Nesse caso, a medida não é a capacidade de es-
clarecimento da realidade efetiva que esse livro possui, mas sim se se
discute os problemas internos da teoria e como eles são postos em
relação uns com os outros. Dessa abstração filosófica da realidade eu

1
Universidade Livre de Berlin. Bolsista da CAPES na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS).
2
O motivo imediato desse estudo é a pretensão de publicar em breve um comentário sobre o livro I de O
Capital de Karl Marx em língua portuguesa. Trata-se de uma tradução do meu livro Grundzüge der Marxs-
chen Kapitalismustheorie [Elementos da teoria marxiana do capitalismo]. Berlin: Parerga-Verlag, 2005.
não compartilho neste artigo. O Capital deve ser tomado como escla-
recimento sobre a realidade social;

Há duas correntes na interpretação de Marx. Em primeiro lugar, há


os marxistas tradicionais, que gostaram da teoria marxiana da mais-
-valia, porque nela encontraram uma crítica da exploração dos traba-
lhadores. Nesse caso, não fizeram uso de uma teoria do valor. Tinham
até a posição de que o valor e a lei do valor poderiam ser bem apro-
veitados para uma produção planejada conscientemente.3 Os críticos
modernos da escola de Frankfurt e o grupo em torno de Robert Kurz
e a revista “Krisis”, que compõem a outra corrente interpretativa, têm
uma crítica ao valor, mas nenhuma teoria da mais-valia e da explora-
ção.4 Pelo valor se realiza uma reificação, uma alienação do homem.
A teoria do valor de Marx apresenta criticamente a reificação e a alie-
nação do homem de si mesmo. Eu não queria me juntar nem a uma
nem a outra direção. Eu assimilo isso de maneira muito mais simples,
a saber, assim como é. No seu escrito Marx forneceu explicações sobre
a economia de mercado capitalista e é importante examinar se são
convincentes ou não. Isso eu quero fazer. Caso contrário, não quero
fazer nada. E isso já é muito;

Há aparições verdadeiramente paradoxais dessa economia. Nos paí-


ses desenvolvidos, a economia cresce há sessenta anos e, ao mesmo
tempo, aumenta a pobreza. Os homens não podem mais viver nem
mesmo do seu salário em tempo integral. O desenvolvimento da pro-
dutividade é enorme. São produzidos mais produtos em um tempo
menor de trabalho, mas, nas fábricas, os homens têm que trabalhar
sempre mais. Há milhões de desempregados que estão impedidos de
trabalhar. O subemprego aqui é associado ao sobretrabalho em outro
lugar. Um terceiro exemplo: esses desempregados, assim se entende,
são uma carga insuportável aos fundos sociais do Estado. Eles são
muitos, mas também para o trabalho eles são muitos. Fosse isso um
problema dos bens de uso produzidos, então seria necessário aumen-

3
“O aproveitamento planejado da lei do valor serve para formar preços que correspondem sempre
ao valor do produto e, com isso, exprimem o emprego de trabalho socialmente necessário” (RICHTER,
Horst. Politische Ökonomie des Kapitalismus und des Sozialismus – ein Lehrbuch [Economia política do
capitalismo e do socialismo – compêndio]. Berlin: Dietz-Verlag, 1994, p. 584).
4
Cf. Krisis (Grupo Krisis). Manifesto contra o trabalho. Lisboa: Antígona, 2003.

58
tar a produção dos bens de uso. Mas, disso, bens de uso, essa socieda-
de não tem precisão. Assim, nessa economia, trata-se de algo diferen-
te do que o atendimento dos homens com os bens necessários. Nessas
aparições mencionadas da sociedade há, portanto, alguma coisa que
deve ser explicada.

Eu quero explorar a crítica da riqueza capitalista assim como Marx


o fez em O Capital. Sobretudo, eu gostaria de evidenciar o que de crítica
já está contido nas primeiras páginas dessa obra acerca da mercadoria, do
dinheiro, do trabalho e da riqueza.5 Uma explicação do potencial crítico
dos pensamentos marxianos me parece necessária, porque esse potencial
é, com facilidade, mal interpretado e mal compreendido. Ao mesmo tempo,
eu quero mencionar os contra-argumentos mais importantes que foram le-
vantados contra Marx.
Minha contribuição se orienta pela seguinte estruturação: I. Valor
de uso e valor de troca, valor e trabalho. II. Trabalho abstrato – a força vital
despendida é a substância do valor-riqueza. III. O capital é o aumento do
valor medido em dinheiro pelo comando sobre o trabalho alheio. IV. Traba-
lho rentável, produtividade e riqueza. V. O trabalho empregado é a medida
da riqueza somente numa economia da exploração. VI. O que Marx oferece
como alternativa?

I – VALOR DE USO E VALOR


DE TROCA, VALOR E TRABALHO
Comecemos com a primeira determinação, a qual Marx descobre na
riqueza capitalista. A primeira sentença do livro diz:

A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-


-se numa “imensa acumulação de mercadorias”, e a mercadoria, iso-
ladamente considerada, é a forma elementar dessa riqueza. Por isso,
nossa investigação começa com a análise da mercadoria (CI, p. 57).

5
Oriento-me, antes de tudo, pelo capítulo 1, “A mercadoria”, do livro I de O Capital de Marx (= CI),
in: Marx, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política. O Processo de Produção do Capital. Vol. I e II.
Tradução de Reginaldo Sant’Anna. 26ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. (cit.: CI), p. 55-
106. Em alemão: Marx, Karl. Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Vol. I. In: Marx, Karl/Engels,
Friedrich: Werke (cit.: MEW). Vol. 23. Berlin: Dietz Verlag, 1977, S. 49-98.

59
Essa é uma afirmação que, com certeza, nenhum homem contradiz:
a riqueza da sociedade capitalista se apresenta como uma “imensa acumu-
lação de mercadorias”. Com essa expressão “imensa acumulação de mer-
cadorias”, está posto em evidência que essa sociedade não conhece a cate-
goria da escassez. Cada supermercado na esquina é um corte do mercado
mundial. Há tudo, tudo existe, mas não enquanto disponível para todas as
pessoas. Essas coisas úteis povoam o mercado como mercadorias, as quais
têm que ser compradas por dinheiro.
A riqueza da sociedade, portanto, deve ser comprada, e só compran-
do pode-se utilizá-la e gozá-la. Isso Marx esclarece no valor de uso e no va-
lor de troca dos bens. Valor de uso são as coisas úteis, como, por exemplo,
ferramentas, telefones, carros, casas, pão, mas também serviços, etc., satis-
fazendo qualquer carecimento. De qual natureza esse carecimento é, se é
material ou espiritual, ou pura extravagância, como, por exemplo, um Pors-
che ou um “Pappnase” (nariz de papelão), não vem ao caso. Os valores de
uso constituem a riqueza material em todas as sociedades. A peculiaridade
do capitalismo consiste no fato de que os valores de uso são tão somente os
portadores materiais do valor de troca.6
O valor de troca das coisas úteis é, primeiramente, um obstáculo a
ser superado, a fim de poder utilizar o valor de uso. O valor de troca é fami-
liar a cada um como o dinheiro com que se paga alguma coisa ou como o
dinheiro que se poupa para alguma coisa. E essa troca geral no mercado, a
qual não se realiza ocasionalmente, mas sim constitui o princípio da troca
de mãos em nossa sociedade, é uma indicação de qual é o objetivo da pro-
dução. Não se produz para a necessidade, mas para a troca. A necessida-
de do produtor é eliminada, desde o início, como finalidade. Os produtores
de mercadorias não produzem para si e nem para o comprador. Através do
comprador, o produtor quer, sim, adquirir o dinheiro.
Se isso é assim, então se pode concluir que: tal coisa como uma divi-
são racional do trabalho não existe no capitalismo. Aqui, a coisa não funcio-
na como se se fizesse um planejamento adequado e se olhasse para o que é

6
“Os valores de uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dela.
Na forma de sociedade que vamos estudar, os valores de uso são, ao mesmo tempo, os veículos materiais
do valor de troca” (CI, 58).

60
utilizado. Aqui domina uma concorrência privada, uma competição na qual
os produtores usam uns aos outros e produzem um para o outro e, ao mesmo
tempo, se privam mutuamente do que eles criam e carecem.7 Os consumido-
res são chantageados, seu carecimento é tomado como sua fraqueza, a fim de
obter seu dinheiro. O preço da mercadoria é a separação do comprador do
produto. Só pelo pagamento de um equivalente, ele obtém o que ele precisa.
Aqui não há nenhuma operação conjunta, mas prepondera uma dependência
um do outro, que inclui uma oposição entre si. A afirmação de Marx é: isso
não é nenhuma relação racional entre produtores e consumidores.
Retenhamos: qual papel os bens úteis desempenham no capitalis-
mo? Se mercadorias são produzidas, e têm que ser vendidas e compradas,
então o lado útil não é o fim, mas sim o meio para o comprador desembol-
sar dinheiro. O carecimento do comprador vale como a fraqueza na qual se
pode capturá-lo, a fim de obter seu dinheiro. Se não for possível comprar os
alimentos que são necessários, então se passa fome nessa sociedade.
Então vem uma primeira objeção dos economistas profissionais. Es-
ses renomearam a dependência e a oposição dos produtores e dos consumi-
dores no mercado numa invisible hand (numa mão invisível). Eles têm a po-
sição de que o mercado regulamenta, muito melhor do que uma economia
planificada, a produção para o consumo. Por isso, pela produção privada, a
totalidade é abastecida otimamente com o necessário.
Contudo, essa afirmação é irrealista, quer dizer, alheia ao mundo: há
carência e miséria, por um lado, e, por outro, ricos sem fim. Além das mer-
cadorias invendáveis, há uma quantidade de pessoas que poderiam utilizar
bem tais coisas. Não se produz nem para uso pessoal, nem para as neces-
sidades das outras pessoas. Em última instância, o consumidor tem acesso
à riqueza se ele tem poder aquisitivo. O consumidor conta somente como
alguém que possui poder de compra, logo, solvência. Para Marx não se trata,
portanto, do elogio da troca de mercadoria por dinheiro como grande inte-
gração entre produção e consumo, mas sim da descoberta das contradições
inerentes a esse movimento.

7
“Só se contrapõem, como mercadorias, produtos de trabalhos privados e autônomos, independentes
entre si” (CI, 64).

61
Em princípio, na compra e venda universal das mercadorias por di-
nheiro, realiza-se uma equiparação prática delas. Na identificação das mer-
cadorias por dinheiro, estas são equalizadas também uma com a outra. Se
se pode, diz Marx, trocar um quartel de trigo por x de graxa, ou por y de seda
ou z de ouro, então essas coisas são valores de troca com a mesma grandeza
de um quartel de trigo.8
Pergunta Marx: Onde reside a coisa comum dessa equiparação? Os
valores de troca vigentes da mesma mercadoria exprimem o igual. Se coisas
diversas possuem o mesmo valor de troca, então elas exprimem algo que ne-
nhuma das coisas diversas é para si. Qual é um terceiro ponto em comum?
Procurada, é a propriedade que torna as mercadorias permutáveis.
A igualdade dos bens diversos na troca não reside nas propriedades
das mercadorias que as tornam coisas úteis, tampouco na avaliação que os
homens fazem das mercadorias. A igualdade consiste no trabalho existente
nelas. E precisamente se trata do trabalho puro e simples. Esse trabalho, no
qual não mais conta aquilo em que ele consiste, esse trabalho puro, Marx
denomina de trabalho humano abstrato. Não o que é trabalhado, nem em
que consiste o produto do trabalho útil, mas sim a força de trabalho des-
pendida é o que é decisivo, de modo que se põe somente ainda a questão:
quanto trabalho existe nisso?
O trabalho abstrato empregado é o que constitui o valor das mer-
cadorias. Esse é o conteúdo trivial da assim chamada teoria marxiana do
valor-trabalho, a qual tem por conclusão o trabalho como a substância dos
valores, dos valores das mercadorias. Mercadorias que são trocadas têm va-
lor de troca. Isso é indiscutível. Quando se chega ao trabalho como a subs-

8
“Mas, uma vez que cada um dos itens, separadamente – x de graxa ou y de seda ou z de ouro –, é o
valor de troca de uma quarta de trigo, devem x de graxa, y de seda e z de ouro, como valores de troca, ser
permutáveis e iguais entre si. [...] Os valores de troca vigentes da mesma mercadoria expressam, todos,
um significado igual. [...] As duas coisas [trocadas] são, portanto, iguais a uma terceira, que, por sua vez,
delas difere [...]. Se prescindirmos do valor de uso da mercadoria, só lhe resta ainda uma propriedade, a
de ser produto do trabalho. [...] Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, também desa-
parece o caráter útil dos trabalhos neles corporificados, desvanecem-se, portanto, as diferentes formas
de trabalho concreto, elas não mais se distinguem umas das outras, mas reduzem-se, todas, a uma única
espécie de trabalho, o trabalho humano abstrato. [...] Esses produtos passam a representar apenas a
força de trabalho humana gasta em sua produção, o trabalho humano que neles se armazenou. Como
configuração dessa substância social que lhes é comum, são valores, valores-mercadorias” (CI, 60).

62
tância do valor, então há disputa. Não muito depois de Marx desenvolver
sua teoria, já no final do século XIX, uma nova seção da Economia Política
virou-se contra a teoria do valor-trabalho com a afirmação: não o trabalho,
mas a avaliação subjetiva decide sobre o valor de uma coisa. A conclusão do
valor ao trabalho não foi registrada.9
O terceiro ponto em comum, assim foi afirmado, é a utilidade. Con-
tudo, não há uma utilidade comum nas coisas diversas. A utilidade se mede
num valor de uso determinado. Uma dimensão comum da “utilidade” é uma
ideia absurda. A utilidade não pode ser comparada. O ato de sentar e o de
comer não se deixam comparar. O que vale mais: uma cadeira ou uma mesa?
Comer cinco vezes não vale sentar-se por uma vez. A utilidade diversa dos
valores de uso é apenas o pressuposto da troca. Só diversos valores de uso
são trocados um com outro. A utilidade, que as coisas diversas servem aos
homens, não pode, portanto, constituir a uniformização das mercadorias.
A teoria do valor-trabalho de Marx não é nenhuma teoria que calcu-
la os preços no mercado. Mas exatamente, dessa maneira, a Economia Polí-
tica moderna compreende a teoria do valor-trabalho. Marx não quer calcu-
lar os preços, mas sim explicar o movimento deles. Os preços são resultado
de uma luta de concorrência anárquica no mercado. Nós não vivemos numa
sociedade na qual o emprego do trabalho é planejado antecipadamente,
mas sim a sociedade é constituída pelos produtores privados concorrentes
um contra o outro. Dessa concorrência resulta, pelas costas dos homens, tal
coisa como o trabalho socialmente necessário.

9
Já o socialista e poeta Georg Bernard Shaw não acompanhou a conclusão da equiparação praticada
na troca de bens diferentes como mercadorias equivalentes no seu fundamento, o trabalho humano abs-
trato, e fixou a determinação do valor das mercadorias na dimensão abstrata da utilidade: “[...] Por que
o processo de reduzir o trabalho do sapateiro e o trabalho do carpinteiro ao trabalho humano abstrato
com aquilo que é abstraído do seu caráter específico não é aplicado à utilidade dos sapatos e das mesas?
Se se abstrai também da sua utilidade específica como calçados e portadores de alimento e se tem sua
desejabilidade abstrata, a sua propriedade comum é a de servir às necessidades humanas. Essa desejabi-
lidade abstrata é o fundamento verdadeiro, a razão, a substância, a causa final, a causa eficiente – como
sempre se gosta de nomear – do valor” (SHAW, Georg Bernard. Wie man den Leuten die Werttheorie
aufherrscht [Como se impõe às pessoas a teoria do valor] (1889). In: FETSCHER, Iring. Der Marxismus.
Seine Geschichte in Dokumenten [O marxismo. Sua história nos documentos]. Vol. II, München: Piper
Verlag, 1964, p. 216. “O valor não é, segundo isto, de natureza subjetiva apenas conforme sua essência,
mas sim também conforme sua medida” (MENGER, Carl. Grundsätze der Volkswirtschaftslehre [Princí-
pios da economia política]. 2a ed. Wien: Hölder, Pichler, Tempsky; Leipzig: Freytag, 1923, p. 86).

63
O trabalho formador de valor é o mesmo trabalho humano-abstrato,
realizado numa duração que é a do tempo de trabalho socialmente necessá-
rio. Esse padrão do tempo de trabalho resulta de uma comparação dupla: em
primeiro lugar, da comparação com outros fornecedores da mesma mercado-
ria. A preguiça e a falta de habilidade não são a medida, mas sim uma média
universal de quanto trabalho é necessário com um dado método de produ-
ção.10 Quem permanece abaixo desse padrão, quem fica sentado sobre seus
produtos, não é remunerado pelo seu tempo de trabalho individual. A segun-
da comparação é a comparação com o “estômago” do mercado e seu poder
de compra, quer dizer, com a necessidade de riqueza solvente da sociedade.11
Numa produção privada anárquica, todos os riscos são privatizados.
O desajeitado produz com seu trabalho menos valor, embora ele produza
necessariamente uma utilidade. Isso vale também para os doentes e os fra-
cos. Aquele que se engana com a avaliação da necessidade social tem azar.
Muitos se arruínam para que o mercado possa seguir sua marcha. Muitos
tentam estabelecer uma abertura de crédito com uma empresa, que, então,
fracassa. Então essas pessoas apoiam suas dívidas na sua vida. No que con-
cerne ao tempo de trabalho, não é, portanto, o tempo de trabalho individu-
al, mas sim o trabalho médio socialmente necessário que determina o valor
da mercadoria. Nisso reside o aviso de um paradoxo da produção capitalis-
ta: se e quanto dinheiro se poupa no mercado pelo emprego do trabalho é o
que decide sobre o tempo de trabalho socialmente necessário e, com isso,
sobre o valor do produto do trabalho.
Com o padrão do tempo de trabalho socialmente necessário, levan-
ta-se uma pretensão dupla no trabalho: - Ele tem que ser relativamente,
quer dizer, por pedaço, o mais curto possível, para que se possa vencer o
concorrente no mercado e, desse trabalho relativamente o mais curto pos-
sível, tem que - ser despendido absolutamente muito.

10
“Tempo de trabalho socialmente necessário é o tempo de trabalho requerido para produzir-se um
valor de uso qualquer, nas condições de produção socialmente normais, existentes e com o grau social
médio de destreza e intensidade do trabalho” (CI, 61).
11
“Uma vez que o mercado não absorve a quantidade global de linho ao preço normal de 2 xelins por
metro, fica demonstrado que foi gasta em tecelagem de linho uma porção excessiva do tempo de traba-
lho total da comunidade. Haveria o mesmo efeito se cada tecelão, individualmente, tivesse despendido
em seu produto mais do que o tempo de trabalho socialmente necessário” (CI, 134).

64
Se for assim que o emprego do trabalho em comparação com outros
determina o valor dos produtos, então o dinheiro não é meio da produção,
mas sim, inversamente, a produção é meio para a geração do dinheiro. O
dinheiro é a finalidade de todo o trabalhar. O dinheiro não é o suplemento
da produção. A venda não é um adicionamento, um “também ainda”, mas
a aquisição do dinheiro, que foi ambicionada com o emprego do trabalho,
é que finaliza o objetivo da produção. Esses são pensamentos insólitos de
Marx sobre trabalho e sobre tempo de trabalho. Ao mesmo tempo, torna-se
saliente que nisso reside um grande conhecimento.
O dinheiro, através do qual o valor de cada coisa é mensurado, é po-
der social enquanto objeto. O dinheiro é poder social sobre pessoas, sobre
seu trabalho e seus serviços e sobre as coisas que elas têm. A riqueza nessa
sociedade é o poder de acesso aos bens, e não o seu deleite. A riqueza não
consiste de coisas belas, que melhoram e embelezam a vida. A riqueza, em
torno da qual tudo gira, é o dinheiro. O dinheiro é a possibilidade da rique-
za. Precisamente a riqueza abstrata, não a real, é o mais importante nessa
sociedade. O dinheiro é a única necessidade que é realmente desmedida.12
Diz-se que o homem é insaciável. Isso não é verdade. Cada neces-
sidade tem sua medida em si. Ninguém quer beber cerveja ou fazer sexo
infinitamente, etc. Só o dinheiro não tem nenhuma medida. Dele nunca
se tem o suficiente. Muitos riem sobre o entesourador, por exemplo, sob a
figura de Tio Patinhas, de Walt Disney. Ele ama a riqueza abstrata por si.
Isso é entendido como loucura. Mas, por nossa miséria, somos obrigados a
adorar a riqueza abstrata. Por exemplo: tem-se que poupar para a velhice.
Tem-se que acumular dinheiro sem pensar nas necessidades atuais, a fim

12
“O dinheiro é […] a comunidade real, desde que ele seja a substância universal do existente para todos
e, ao mesmo tempo, o produto comunitário de todos” (MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos
de 1857/58. Esboços da crítica da economia política. Tradução Mario Duayer, Nélio Schneider (colabo-
ração de Alice Helga Werner e Rudiger Hoffman. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011, p.
169). “A dependência recíproca e universal dos indivíduos indiferentes um contra outro forma sua cone-
xão social. Essa conexão social está expressa no valor de troca, em que para cada indivíduo sua própria
atividade ou seu produto apenas se torna uma atividade e um produto para ele; ele tem que produzir o
produto universal – o valor de troca ou, este isolado para si, individualizado, o dinheiro. De outro lado, o
poder que cada indivíduo exerce sobre a atividade dos outros ou sobre as riquezas sociais consiste nele
como proprietário de valores de troca, de dinheiro. Ele carrega consigo seu poder social, assim como sua
conexão com a sociedade, na bolsa” (idem, p. 105). “Por essa razão, o dinheiro não é apenas um objeto da
mania de enriquecimento, mas sim o seu objeto” (idem, p. 165).

65
de satisfazer as necessidades futuras. Nesse caso é sempre melhor poupar
mais do que menos.
Resumindo: 1. No capitalismo, a produção está voltada para o mer-
cado; o trabalho produz mercadorias e cria, com o valor delas, o meio com
o qual se compete na apropriação do dinheiro. 2. Produz-se propriamente o
dinheiro, o valor de troca como coisa independente, o poder de disposição
sobre o produto e o trabalho alheio. 3. O carecimento social, ao qual o valor
de uso serve, não é o objetivo da produção no capitalismo, mas sim o meio
da apropriação do dinheiro, a fraqueza pela qual aqueles que carecem são
capturados. 4. Porque o trabalho é organizado como meio para a apropria-
ção do valor de troca, no valor ninguém recebe “trabalho remunerado”, mas
sim na troca por dinheiro se experimenta se e em que medida se tem reali-
zado em geral o trabalho socialmente necessário.

II – TRABALHO ABSTRATO – A FORÇA VITAL DESPENDI-


DA É A SUBSTÂNCIA DO VALOR-RIQUEZA
Da produção para o mercado Marx tira conclusões acerca do cará-
ter da riqueza moderna e chega a uma série inteira de pontos críticos fun-
damentais. Que o trabalho cria o valor era, para Marx, algo óbvio. Sabiam
também disso os economistas clássicos Adam Smith e David Ricardo. Prati-
camente todos sabem, hoje em dia, que nessa sociedade se depende funda-
mentalmente do trabalho. Todo político diz, e também os empresários in-
sistem, que se depende de mais postos de trabalho rentáveis. Teoricamente
se contestou esse fato a Marx; praticamente, ele sempre é confirmado. Que
o trabalho é a substância do valor era, contudo, para Marx, de forma alguma
a questão. A questão para ele era: qual o papel que o trabalho desempenha
quando cria o valor? Que tipo de trabalho é que produz o valor? Marx o des-
creve como trabalho humano abstrato.
A quantidade de trabalho que vai para as mercadorias é crucial. Esse
emprego do trabalho constitui o valor das mercadorias e determina, com
isso, o poder de disposição social privado sobre as coisas de necessidade
social. Essa afirmação tinha, para os socialistas tradicionais, um grande sig-
nificado. O trabalho cria o valor inteiro, a riqueza inteira. Que o trabalho

66
seja a única fonte da riqueza, contudo, deve ser entendido em Marx como
crítica. Se o trabalho é a substância do valor, isso não é bom, mas sim algo
merecedor de crítica.13 O trabalho criador de valor é algo negativo.
Essa crítica foi mal compreendida como elogio do trabalho. Que o
trabalho cria o valor inteiro significava, para os socialistas, que a classe tra-
balhadora era a classe mais importante da sociedade, enquanto o lucro dos
capitalistas era roubo, era imerecido. Da doutrina do valor-trabalho, os so-
cialistas deduziram um direito dos trabalhadores na renda inteira do traba-
lho, portanto, exigiram uma redistribuição do valor-riqueza. Que isso não é
nenhuma exigência com sentido é o que Marx quis mostrar.
A visão sobre a dupla natureza do trabalho como útil e abstrato é a
visão fundamental de Marx.14 No capitalismo, o trabalho é tanto útil quanto
abstrato. Para produzir o valor de uso, precisa-se de um trabalho útil deter-
minado. Isso é o trabalho concreto. Enquanto concreto-útil, o trabalho se
distingue respectivamente conforme o caráter especial do valor de uso que
ele produz. Enquanto produtores de valor, os trabalhos, ao contrário, valem
como iguais. Essa equiparação se torna saliente na equiparação dos bens
como valores de troca. Abstrai-se da sua utilidade específica. Os trabalhos
são tomados como iguais, embora sejam, todavia, diversos.
Enquanto abstrato, o trabalho está, diz Marx, reduzido ao seu aspec-
to negativo, no dispêndio do cérebro, dos nervos, músculos, sentidos etc. do
homem, ao trabalho “em sentido fisiológico”.15 Esse aspecto existe, por um
lado, em todo o trabalho, por exemplo, também quando, no meu jardim, eu

13
“O trabalho é a fonte de toda a riqueza” (Programa de Gotha do Partido Socialista dos Trabalhado-
res da Alemanha, 1875). Sobre isso diz Marx: “O trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A natureza é
igualmente fonte dos valores de uso (e dos quais consiste, pois, a riqueza objetiva!) tal como o trabalho”
(MARX,Karl. Crítica do programa de Gotha. Seleção, tradução e notas Rubens Enderle. São Paulo: Boi-
tempo, 2012, p. 23).
14
“A mercadoria apareceu-nos, inicialmente, como duas coisas: valor de uso e valor de troca. Mais tarde,
verificou-se que o trabalho também possui duplo caráter: quando se expressa como valor, não possui
mais as mesmas características que lhe pertencem como gerador de valores de uso. Quem primeira-
mente analisou e pôs em evidência essa natureza dupla do trabalho contido na mercadoria fui eu. Para
compreender a Economia Política, é essencial conhecer essa questão [...]” (CI, 63).
15
“Pondo-se de lado o desígnio da atividade produtiva e, em consequência, o caráter útil do trabalho,
resta-lhe apenas ser um dispêndio de força humana de trabalho, [...] dispêndio humano produtivo de
cérebro, músculos, nervos, mãos etc.” (CI, p. 66), “dispêndio de força humana de trabalho, no sentido
fisiológico” (CI, 68).

67
cavo o solo com gotas de suor na testa. Também nisso reside a dificuldade
do trabalho. Só no capitalismo esse momento negativo do trabalho é o único
que conta. Isso é o ponto crítico decisivo de Marx, a saber, que no capitalis-
mo o dispêndio da força vital humana é a fonte e o índex da riqueza. Aqui-
lo que o trabalho custa para o homem em dificuldade, o lado negativo do
trabalho, constitui a medida da riqueza moderna. Se, portanto, o trabalho
abstrato é a substância do valor, então isso tem por consequência que quan-
to mais trabalho é incluído num produto, mais valor ele tem, tanto mais
poder de compra ele pode chamar para si. Com isso, algo negativo se torna
positivo. Que tudo dependa do fato de que nos produtos esteja depositada a
maior quantidade possível de trabalho é, para Marx, algo irracional.
A relação inversa da riqueza material e da riqueza de valor Marx escla-
rece no aumento da produtividade do trabalho, que se refere sempre ao traba-
lho útil. Qual efeito tem o aumento da produtividade do trabalho, portanto, a
circunstância em que é trabalhado com uma maquinaria aperfeiçoada? Com
isso é aumentada a riqueza material. Considerada sob o ponto de vista do va-
lor, uma hora de trabalho é uma hora de trabalho, portanto, com o aumento
da produtividade, não se realiza nenhum aumento do valor. O lado do valor de
uso ganha; o lado do valor não ganha. Isso significa: tem que ser trabalhado
sempre o dia inteiro para que o valor da jornada de trabalho inteira subsista.
No capitalismo, o aumento da produtividade do trabalho é, portanto, nenhu-
ma razão e nenhum meio para a redução do tempo de trabalho.16
Que o aumento da produtividade do trabalho, sem dúvida, aumenta
a riqueza material, mas sob o ponto de vista do valor não torna mais rica
a sociedade, é algo que se deixa mostrar num exemplo: cem anos atrás, um
camponês alimentava quatro cidadãos. Hoje em dia, alimenta quatrocen-
tos. O camponês se torna a esse respeito mais rico? Não, ele sempre ainda
tem uma existência precária.
O aspecto negativo do trabalho os homens realmente querem mini-

16
Na economia de mercado produtora de mercadorias, a seguinte lei absurda domina: “A grandeza do
valor de uma mercadoria varia na razão direta da quantidade e na inversa da produtividade do trabalho
que nela se aplica” (CI, p. 62). Dali se segue: “quanto maior a produtividade do trabalho, tanto menor o
tempo de trabalho requerido para produzir uma mercadoria, e quanto menor a quantidade de trabalho
que nela se cristaliza, tanto menor seu valor” (idem).

68
mizar. Contudo, nessa sociedade, isto é, na sociedade capitalista, o aspecto
negativo do trabalho é o ponto de vista crucial do trabalho, o ponto de vista
decisivo, do qual depende. O crescimento do valor e do dinheiro depende do
crescimento da dificuldade do trabalho. Tal definição da riqueza e do traba-
lho é impossível de ser favorável aos trabalhadores.
Uma relação racional entre a riqueza e o trabalho seria a seguin-
te: com o menor trabalho possível, produzir a maior riqueza possível. Por
exemplo: se eu reformo a minha casa, eu tento, com o menor esforço possí-
vel, rápida e efetivamente chegar a um resultado satisfatório. Na sociedade
capitalista, na qual se trata da produção do valor, ao contrário, vige uma
necessidade incontrolável por trabalho. A riqueza do valor e a do dinheiro
podem somente aumentar a necessidade de trabalho. Pode-se dizer que isso
não é de fato nenhuma riqueza real. Lamentavelmente, isso já acontece em
nossa sociedade.
Resumindo: 1. No capitalismo, o resultado é medido pelo dispêndio
do trabalho, ou seja, pelo emprego do trabalho. 2. Mais riqueza só é possível
por meio de mais trabalho. 3. Nessa sociedade há uma necessidade desme-
dida para o trabalho. 4. Isso não é nenhum conceito racional de riqueza, ou,
em todo caso, não para o trabalhador.

III – O CAPITAL É O AUMENTO DO VALOR MEDIDO EM


DINHEIRO PELO COMANDO SOBRE TRABALHO ALHEIO
O que eu quis demonstrar através das primeiras páginas de O Capital
foi o que está contido de potência crítica já nas determinações elementares
da mercadoria e do dinheiro, da riqueza e do trabalho. Que riqueza é essa,
se ela existe como uma imensa acumulação de mercadorias, e que riqueza
é essa, à qual há de ser aplicada a maior quantidade possível de trabalho?
Eu gostaria de insistir ainda um pouco mais sobre esse pensamento de que
a riqueza da sociedade capitalista é imediatamente idêntica ao emprego do
trabalho. Consideremos, então, qual o papel que o trabalho desempenha
numa empresa capitalista.
O empresário não compra para si qualquer mercadoria, mas sim
uma mercadoria que é, ao mesmo tempo, sua fonte de dinheiro, a mercado-

69
ria força de trabalho. Os empresários e os trabalhadores ganham dinheiro
com o trabalho. A diferença é somente que o trabalhador ganha dinheiro
com seu próprio trabalho e o empresário com trabalho alheio. Por que os
trabalhadores são pobres e os empresários são ricos? Por essa questão Marx
se interessou fortemente. Qual é o princípio do sistema de enriquecimento
geral? Que aparência o trabalho e a riqueza possuem se a acumulação do
dinheiro é o objetivo da produção?
O trabalho abstrato como fonte da riqueza existe permanentemen-
te e como relação determinante somente no fundamento da separação dos
meios de produção das forças de trabalho; portanto, como trabalho assala-
riado. No capitalismo, as condições de produção estão separadas dos pro-
dutores, porque eles pertencem aos proprietários privados. Por isso, o tra-
balho é desempenhado sob a fiscalização do empresário.
O empresário compra a força de trabalho e deixa os operários traba-
lharem por mais tempo, resultando num produto com um valor maior do
que é necessário para a reprodução dos trabalhadores, ou seja, seus custos.
O trabalhador tem que, portanto, trabalhar mais do que seria necessário
para ele; logo, desempenha trabalho excedente para o empresário. O traba-
lho necessário, o qual é preciso para a reprodução do trabalhador, hoje está
reduzido a uma quantidade mínima. Que o trabalhador desempenha traba-
lho excedente para o empresário não deixa este, contudo, satisfeito. Ele quer
permanentemente aumentar a relação do trabalho excedente e do trabalho
necessário, a qual Marx denomina de taxa de mais-valia.17
Para isso, há três meios: 1. O prolongamento do tempo de trabalho
aumenta o tempo de trabalho excedente para além do tempo de trabalho
necessário. 2. A redução do salário, portanto, o empobrecimento imediato
do trabalhador assalariado. Esse é igualmente um meio para o lucro como o
aumento da produtividade. Isso já é muito significativo para o capitalismo.
3. O aumento da produtividade do trabalho. Ele cria, sem dúvida, material-
mente mais riqueza, mas não aumenta a riqueza sob o ponto de vista do
valor.
Esses meios têm um caráter diferente, mas o efeito é igual: o aumen-

17
Cf. o capítulo 7, “A taxa da mais-valia”, CI, p. 247-358.

70
to da taxa de mais-valia. Para o método de prolongamento do tempo de
trabalho – Marx o denomina como método da produção da mais-valia abso-
luta18 – há limites. Nos países industriais modernos há a jornada de trabalho
normal de oito horas, fruto das lutas da classe trabalhadora. O empobreci-
mento dos trabalhadores através da redução do salário tem também seus
limites. Quanto é possível nesse âmbito, depende da correlação de forças
das classes. O método que marca uma época é o aumento da taxa de mais-
-valia pelo aumento da produtividade do trabalho, porque aqui é produzido
um lucro cada vez maior com cada vez menos trabalho. Marx o define como
método da produção da mais-valia relativa.
Resumindo: 1. Não é o uso do próprio trabalho, mas o uso do di-
nheiro que torna um empresário rico; 2. O segredo aberto da utilização do
capital é permitir que outros trabalhem para você; 3. A separação da pro-
priedade e do trabalho é a produtividade decisiva da riqueza capitalista; 4.
Trabalho cria riqueza, obviamente não para o trabalhador, mas sim para
aquele que paga o salário; 5. O trabalhador é empregado pela empresa para
gerar lucro. Ele trabalha mais do que seria necessário para o recebimento
do seu salário. A mais-valia é gerada pelo trabalho excedente; 6. O aumento
do proveito capitalista do trabalho ocorre igualmente pelo prolongamento
da jornada de trabalho, pelo aumento da produtividade do trabalho, por-
tanto, pela redução do tempo de trabalho necessário, e simplesmente pela
redução compulsória do salário – tudo tem o mesmo efeito: o aumento da
taxa de mais-valia, quer dizer, a relação do trabalho excedente e do trabalho
necessário.

IV – TRABALHO RENTÁVEL,
PRODUTIVIDADE E RIQUEZA
Eu quero me deter um pouco mais sobre a relação do trabalho, da
produtividade e da riqueza no capitalismo.19 O aumento da produtividade

18
Cf. a parte terceira, “A produção da mais-valia absoluta”, de CI, p. 207-246.
19
O aumento da taxa da mais-valia pelo desenvolvimento da produtividade do trabalho para aumentar
o tempo de trabalho excedente pela redução do tempo de trabalho necessário, quer dizer, pago, Marx
denomina como “a produção da mais-valia relativa” (CI, p. 359-572). Para o seguinte, cf. esp. o capítulo
10, “Conceito de mais-valia relativa” (CI, p. 361-372).

71
é considerado, tecnologicamente, algo muito simples: com uma máquina
nova, o trabalhador pode produzir uma multiplicidade de produtos em um
intervalo de tempo mais curto. Contudo, no capitalismo, o aumento da for-
ça produtiva do trabalho significa uma redução no valor do produto. Por
quê? Se o trabalho abstrato é a medida do valor, então o aumento da produ-
tividade é algo negativo, porque com isso o trabalho é economizado. Mais
riqueza material se reflete em menor valor, embora se trate, todavia, para o
empresário, somente do valor e seu aumento.
Por que os capitalistas aumentam, então, assim veementemente a
produtividade do trabalho se tal aumento tem essa consequência negativa?
Isso resulta da concorrência das empresas no mercado. A meta dos empresá-
rios é aumentar a porcentagem do mercado, o que somente é possível com a
diminuição da porcentagem de outro. Para isso, o empresário tem que reduzir
seus custos unitários. Com isso, ele pode baixar levemente o preço de venda
da sua mercadoria e, assim, fazer uma oferta atraente para sua freguesia.
O que se passa na racionalização?20 Sua finalidade é uma diminuição
dos custos por unidade. Investimentos em máquinas são feitos levando em
conta que a máquina significa um aumento dos custos, o qual deve ser mais
do que reparado com uma redução dos custos do salário. Tem que aconte-
cer uma sobrecompensação do aumento dos custos de máquinas novas pela
redução dos custos do salário. O aumento da produtividade do trabalho não
serve, portanto, para facilitar o trabalho, mas sim para baixar os custos da
empresa, e, precisamente, e mais importante, os custos do trabalho.21 O pre-
ço de venda das mercadorias permanece igual ou diminui a fim de se poder
vender uma maior quantidade de mercadorias no mercado; a margem de
lucro cresce.
No entanto, esse proveito para o empresário individual é eficaz desde

20
A finalidade e o impacto da racionalização sobre os trabalhadores assalariados Marx esclarece no
capítulo 13, “A maquinaria e a indústria moderna”, de CI (cf. esp. p. 451ss.).
21
O modo de contabilidade capitalista contém uma contradição: por um lado, não se pode trabalhar
o suficiente quando não se é pago; por outro, o custeamento para o trabalho pago não pode ser insufi-
ciente; para o interesse do saldo positivo está, portanto, imposta uma economia extrema no emprego do
trabalho pago. A necessidade desmedida do capital para o trabalho como fonte do seu lucro é acompa-
nhada por seu desprezo pelo trabalho, que ele torna a fonte de seu lucro. O trabalho apenas se realiza se
e enquanto é rentável.

72
que seja uma exceção. Logo que o aumento da produtividade se generaliza,
sua utilidade para o empresário individual está destruída, porque o produ-
to do valor diminui para todos. Feita a abstração do fenômeno da inflação,
chega à queda geral dos preços das mercadorias. Por causa da inflação, essa
queda dos preços se realiza em um nível sempre mais alto.
O que por si só é uma bênção, no capitalismo é o flagelo da humani-
dade. O meio, o aumento da produtividade, colide com o objetivo, produzir
mais valor. Dessa contradição da racionalização resultam as demissões e o
trabalho mais intenso e mais longo para os que permanecem na empresa.
Esses resultados são em si o atestado fulminante da produção capitalista.
A contradição tem o seguinte significado para os trabalhadores: em-
bora tudo mais vá de “vento em popa”, uns têm que trabalhar mais e mais
intensivamente e outros estão desempregados. A contradição para o capita-
lista significa: cada mercadoria vale menos, todo empresário tem que ven-
der uma maior quantidade de mercadorias para obter igual produto de va-
lor. Entretanto, de onde vêm os clientes para a quantidade de mercadorias
aumentada? Ao mesmo tempo, pelo aumento da produtividade, o poder de
compra, o qual se precisaria para a realização dessa quantidade de merca-
dorias aumentada, está precisamente dizimado, desconsertado.
Os desempregados são anulados primeiramente como clientes e
também alguns concorrentes são arruinados. A geração de lucros se torna
sempre mais difícil pelo método do seu aumento. Essa é a maneira como
se deixa dizer a mesma contradição de que o emprego do trabalho que está
materializado na massa de mercadorias aumentada se estreitou. Sempre
mais valor, sempre mais capital deve se valorizar por um trabalho cada vez
menor, embora todo capital consista de nada mais do que trabalho objeti-
vado. Isso não pode dar certo.
Contra o desvario da concorrência há uma ideologia: a concorrên-
cia anima o negócio, assim se diz. A competição em torno dos métodos de
produção mais inovadores inventa os melhores métodos de produção. Isso é
falso. Se se levar a sério a sentença de que a concorrência é o procedimento
para averiguar os melhores métodos de produção, então é necessário cons-
tatar que, se um se adianta e faz algo inovador e todos os outros produzem
ainda de maneira antiquada, isso não é racional. É o desperdício do tempo

73
de trabalho humano e dos meios de produção. Por outro lado, tem que se
dizer: pelo fato de se ter encontrado ou inventado algo melhor, o antigo não
se torna, com efeito, ruim, de tal modo que possa ser jogado fora.
Na competição capitalista não é desenvolvido o “melhor”, que é pos-
to à disposição de todos. No capitalismo não conta, de forma alguma, a pro-
dutividade como tal, mas somente a vantagem da produtividade. Cada um
quer somente permanecer em sua vantagem competitiva e não deixar rever-
ter suas inovações em favor do público. O que importa é vantagem extra na
comparação com os outros.
Agora eu deixarei de lado o capitalista e examinarei a última ques-
tão. A última questão diz: o trabalhador não se beneficia com o aumento
da produtividade? Nós vimos: a racionalização envolve três variantes para
empobrecer ainda mais o trabalhador: a demissão dos trabalhadores supér-
fluos, a intensificação e a simplificação do trabalho e o prolongamento do
tempo de trabalho. Porque pode ser produzido mais com menos esforço, os
trabalhadores têm que trabalhar por mais tempo e mais intensivamente em
vez de poderem retornar mais cedo para o seu lar.
No que diz respeito ao salário, assim que alguém é demitido, seu sa-
lário é imediatamente suprimido. Para os outros que permanecem na em-
presa, a racionalização significa o seguinte: desqualificação pela simplifi-
cação do trabalho e depreciação na hierarquia do salário. Cada facilitação
do trabalho é utilizada para dificultar o ganho de dinheiro do trabalhador.
O meio, que igualmente é instalado contra os trabalhadores, é o exército de
reserva dos trabalhadores desempregados, os quais exercem pressão sobre
os trabalhadores no que diz respeito à fixação do salário.
Sem dúvida, os produtos se tornam mais baratos pelos métodos de
produção modernos, de modo que o trabalhador hoje pode comprar, de fato,
uma calça com menos dinheiro do que seu avô compraria. Mas também sob
esse aspecto o aumento da produtividade não se reverte em favor do tra-
balhador. Assim que os custos da alimentação cessam de subir, o salário se
torna menor. A inflação é a única razão oficialmente reconhecida para um
aumento salarial.22

22
A inflação tem seu fundamento no fato de que a indústria de crédito cria mais solvência que, de fato,

74
Resumindo: 1. O aumento da produtividade do trabalho é meio da va-
lorização do capital. Ele conduz à redução do trabalho pago necessário, quer
dizer, do salário, a fim de aumentar o tempo de trabalho excedente. 2. Os ca-
pitalistas conduzem uma concorrência com o nível reduzido do custeamento.
A mais-valia extra é gerada enquanto se produz abaixo da média do ramo da
indústria. 3. Assim que o nível da produtividade é generalizado, a utilidade da
produtividade do trabalho para o capitalista individual desaparece.

V – TRABALHO EMPREGADO É MEDIDA DA RIQUEZA SO-


MENTE NUMA ECONOMIA DA EXPLORAÇÃO
Nos Grundrisse de 1857/58, Marx resume sua crítica ao trabalho
como medida da riqueza.23 O capital é, segundo ele, a contradição proces-
sante, razão pela qual, através do aumento da produtividade do trabalho,
o tempo de trabalho é, por um lado, diminuído sempre mais e, de outro,
a riqueza capitalista é medida no tempo de trabalho. Essa contradição é
mediada pelo fato de que o trabalho necessário é reduzido para aumentar o
tempo de trabalho excedente. O último se torna, progressivamente, a condi-
ção para que se possa executar o trabalho necessário.
Por um lado, a quantidade das mercadorias que devem ser fatura-
das fica maior, por outro, o número dos clientes com poder de compra é di-
minuído. Por um lado, os produtos multiplicam-se sempre mais, por outro,
fica sempre mais difícil vendê-los. Precisa-se sempre de menos trabalho, e,
todavia, ainda se demanda muito trabalho. Tanto mais o trabalho se torna
supérfluo, quanto maior é a miséria na forma do desemprego. O fato das

é aplicada com êxito pelos empreendedores no crescimento capitalista. O endividamento público contri-
bui essencialmente para a desproporção entre a criação do crédito e o crescimento capitalista.
23
“O próprio capital é a contradição em processo (pelo fato) de que procura reduzir o tempo de trabalho
a um mínimo, ao mesmo tempo em que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e
fonte da riqueza. Por essa razão, ele diminui o tempo de trabalho na forma do trabalho necessário para
aumentá-lo na forma do supérfluo; por isso, põe em medida crescente o trabalho supérfluo como condi-
ção – questão de vida e morte – do necessário. Por um lado, portanto, ele traz à vida todas as forças da
ciência e da natureza, bem como a combinação social e do intercâmbio social, para tornar a criação da
riqueza (relativamente) independente do tempo de trabalho nela empregado. Por outro lado, ele quer
medir essas gigantescas forças sociais assim criadas pelo tempo de trabalho e encerrá-las nos limites re-
queridos para conservar o valor já criado como valor” (MARX, Karl.Grundrisse, p. 588s.) – precisamente
como sua riqueza que tem sua medida na quantidade do tempo de trabalho excedente apropriado.

75
coisas precisarem ser produzidas sempre mais fácil e rapidamente, no capi-
talismo não é nenhuma bênção. Sempre maiores adiantamentos de capital
se tornam necessários para que valha a pena empregar trabalhadores. Esse
estado de coisas se reflete numa versão absurda: os postos de trabalho se
tornam sempre mais caros! De tão hostil que o capitalismo é em relação ao
consumo e ao valor de uso, a miséria não se origina aqui porque há escassez,
mas porque se produz em demasia, e precisamente demais em relação aos
lucros e ganhos progressivos que são objetivados com os bens produzidos.
Com o aumento da produtividade do trabalho, o trabalhador é ex-
cluído progressivamente da riqueza produzida por ele. Quanto mais a ri-
queza capitalista cresce, mais trabalhadores são excluídos dela. Se de uma
quantidade de trabalho sempre menor se produz sempre mais riqueza de
valor, então a porcentagem do salário na riqueza torna-se sempre menor.
Esse último ponto, que transcende o livro I de O Capital de Marx, nos con-
duz para o absurdo desse modo de produção, que conhecemos como crise:
produz-se para o mercado, mas por meio do crédito sem se preocupar com o
mesmo. Uma maior quantidade de mercadorias com cada vez menos traba-
lho dizimou, ao mesmo tempo, o poder de compra da sociedade. A riqueza
restringida das pessoas é a barreira do capital. A pobreza das massas é a
última razão das crises, diz Marx.24
Precisa-se ainda dar muitos passos para compreender coerente-
mente esse fenômeno da crise. Em geral, pode-se dizer: a crise significa que
há produtos em demasia, não para o uso, mas sim para a geração de lucros.
O capitalismo é a primeira sociedade na história do mundo que não sofre

24
“A última razão de todas as crises reais permanece sempre que a pobreza e a estreiteza do consu-
mo das massas, frente ao impulso da produção capitalista, buscam desenvolver as forças produtivas de
modo como se só a capacidade de consumo absoluta da sociedade formaria seu limite” (MARX, Karl.
CIII, MEW 25, p. 501). Na solvência das massas, a produção capitalista da riqueza se depara necessaria-
mente com sua última barreira. Através da indústria de crédito, o capitalismo cria permanentemente
uma solvência artificial nos empreendedores, quer dizer, uma solvência cuja justificação econômica re-
side no crescimento econômico futuro antecipado, ao mesmo tempo em que ele restringe a solvência
da sociedade nas massas pela sua contabilidade com o trabalho pago. Essa contradição entre a criação
artificial e a redução da solvência social, que está contida na produção para o lucro, conduz à crise. Marx
trata da crise sempre sob o título “concorrência e crédito”: “[...] a crise real pode apenas ser apresentada
no mesmo movimento real da produção capitalista, concorrência e crédito” (MARX, Karl. Theorien über
den Mehrwert [Teorias sobre a mais-valia], MEW 26.2, p.513). Por causa disso, a crise não é mais tema do
livro I de O Capital.

76
de uma falta, mas de um excesso de riquezas. Não a falta, mas uma riqueza
demasiada gera a pobreza. O excedente de riqueza se mede – como dito –
não na necessidade, mas nos lucros. Em minha opinião, esses argumentos
de Marx são atuais e vão direto ao ponto em questão.
Vimos que se o tempo de trabalho é a medida da riqueza, então isso
é uma mesquinhez para o trabalhador. Se o tempo de trabalho mede a ri-
queza, então significa mais riqueza, mais trabalho, mais sofrimento. Isso
significa que o fato de o tempo de trabalho ser a medida da riqueza não é
algo racional. Hoje em dia se afirma acerca do pensamento de Marx: tudo
depende do crescimento econômico. Crescimento é um imperativo nesse
mundo. Entretanto, isso é uma determinação incorreta da riqueza, porque
ela, de forma nenhuma, toma sua medida na necessidade. Por que se deve
depender, em geral, de sempre mais? No crescimento econômico em geral
não reside, de modo algum, a riqueza real, mas a riqueza do dinheiro. E do
dinheiro não se pode, de fato, nunca estar farto.
Uma determinação racional da riqueza seria a seguinte: de maneira
racional, a necessidade dos homens serviria como medida para a quantida-
de de trabalho que eles exercem. Um esforço maior para além dessa medida
seria desperdício de material e de trabalho, porque ambos não seriam ne-
cessários. Uma medida racional para a riqueza, diz Marx, não é o trabalho,
mas o “tempo disponível”, o tempo livre: os bens de uso são produzidos o
mais fácil e rapidamente possível, a fim de, então, ter-se tempo para apro-
veitar os frutos do trabalho. Quanto mais espaço e tempo livre existem para
se aproveitar os produtos que satisfazem a sua necessidade, tanto maior é a
riqueza real ou verdadeira.25
Resumindo: 1. O capital crescente reduz progressivamente o traba-
lho necessário, contudo, numa quantidade mínima; o trabalho é cada vez
menos necessário; e, precisamente por isso, o limite do uso produtivo do

25
“Verdadeiramente rica é uma nação, se se trabalha 6 horas em vez de 12. Riqueza é [...] tempo dispo-
nível além do utilizado na produção imediata para cada indivíduo e da sociedade inteira” (MARX, Karl.
Grundrisse, p. 589). “Visto que a riqueza efetiva é a força produtiva desenvolvida de todos os indivíduos.
Então não é de modo algum o tempo de trabalho, mas sim o tempo disponível a medida da riqueza. O
tempo de trabalho como medida da riqueza põe a própria riqueza como fundamentada na pobreza [...] ou
colocar o tempo inteiro do indivíduo como tempo de trabalho e degradação do mesmo a mero trabalha-
dor, subsunção sob o trabalho” (idem, p. 591).

77
trabalho é sempre maior. Esse estado de coisas se reflete numa versão ab-
surda: os postos de trabalho ficam sempre mais caros! E o que se pode pro-
duzir ainda para que o trabalho possa ser empregado e despendido? “Nós
precisamos de novos produtos”, “Novos produtos para novos mercados”, as-
sim se diz. 2. Em toda inutilidade relativa do trabalho, o acesso das massas
aos meios de sustento é vinculado ao fato de que realizem trabalho rentável
para o capital. 3. Desemprego crescente, miséria crescente não há apesar
do, mas por causa do estado avançado das fontes de riqueza material, quer
dizer, do assim chamado avanço tecnológico.

VI – O QUE MARX OFERECE COMO ALTERNATIVA?


Eu analisei a questão de qual aparência, na economia de mercado
moderna, a relação entre riqueza e trabalho assume. Existem inúmeros ou-
tros aspectos para serem discutidos em O Capital de Marx, mas esse aspecto
é central.
O essencial da minha contribuição foi o seguinte: houve e há, ainda,
muitas incompreensões da teoria marxiana, as quais sempre vão em dire-
ção do que não depende da supressão da relação de produção capitalista,
mas sim da distribuição justa da riqueza capitalista, sem tocar o caráter da
própria riqueza. Marx põe em evidência que o capitalismo não é um proble-
ma de distribuição. O que merece ser criticado não é que as mercadorias e
o dinheiro estão mal distribuídos. Há realmente riqueza material suficiente
nessa sociedade. O problema não consiste em haver escassez. A questão é:
o que falta a essa riqueza? Toda a riqueza vale somente como riqueza do
dinheiro, a qual tem sua medida no dispêndio do trabalho.
Nessa sociedade não há nenhuma ordem racional de satisfação das
necessidades, porque precisamente o dinheiro decide a esse respeito, o di-
nheiro dita o que conta como necessidade. O problema não são os bens de
luxo, mas sim que o consumo dos bens de luxo existe concomitantemente
à maior pobreza. O quadro das necessidades é no fundo muito simples. Em
primeiro lugar, trata-se da habitação, da vestimenta e da alimentação. Só
então se pode pensar em luxo. Mas essa sequência racional da satisfação
das necessidades não pode existir no capitalismo.

78
No final, eu quero pôr a questão acerca da alternativa a esse cenário,
à qual Marx mesmo faz alusão. Quando vem a questão acerca da alternativa,
ele tem um problema, pois, resistiu sempre contra a imaginação de uma al-
ternativa. E, de fato, depende, sim, primeiramente, de apreender a sua crítica.
Mas uma coisa resulta claramente de sua crítica: se a produção do
valor tem as consequências apresentadas, então isso é uma indicação do fato
de que Marx defende uma produção racionalmente planejada dos valores de
uso.26 Para isso, o trabalho deve ser organizado. A finalidade não é planejar
um produto do dinheiro. Há que se planejar uma produção dos bens de uso
para a necessidade social. Economia planificada para a necessidade em vez
de concorrência anárquica pelo dinheiro; isso é, para ele, o lema.27
Para isso, os homens teriam de ser libertados das condições de exis-
tência que os obrigam para a produção do valor, quer dizer, a propriedade
privada dos meios de produção teria que ser abolida. Nessa sociedade, isso
seria a luta de poder contra o Estado moderno, porque ele põe a proprieda-
de privada dos meios de produção no mundo e garante essa propriedade
com sua violência. A vontade para essa luta de poder tem que ser engen-
drada somente uma vez. Antes da transformação prática das circunstâncias
sociais, a crença nesse sistema tem que ser abalada teoricamente. Essa foi
a aspiração de Marx, que aduz argumentos a favor da posição de que essa
sociedade deve ser reformulada radicalmente, pois está organizada irracio-
nalmente e é prejudicial para os produtores.

26
“Sociedade de homens livres” (CI, p. 100) é o título para o fim ético-social de Marx que ele já emprega
em 1842 num artigo do Jornal Renano (cf. MEW 1, 95).
27
A dúvida que a questão pela “viabilidade” de um modo de economia racionalmente planejado mani-
festa nega esse objetivo com a inexequibilidade representada e com a indicação para a concepção política
supostamente ausente em Marx. Sobre isso deve ser dito que Marx, em primeiro lugar, não ficou devendo
uma concepção positiva de uma organização racional da sociedade e, em segundo lugar, em toda a sua
vida esteve à procura de uma dimensão política adequada para a criação de uma nova sociedade (cf. sua
análise da comuna de Paris in: MARX, Karl. Bürgerkrieg in Frankreich [Guerra civil na França] (1871), MEW
17). Ele discute sua alternativa desde sua Crítica ao direito estatal hegeliano (1843) (cf. MEW 1, p. 203-333)
sob o título “democracia verdadeira”, que não é mais uma forma estatal separada da sociedade, uma forma
da dominação estatal sobre a sociedade, mas sim uma forma da auto-organização da sociedade (cf. ABEN-
SOUR, Milguel. Democracia contra o Estado. Marx e o momento maquiaveliano. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1998). Pode-se dizer que a ideia de Marx é a de uma nova autocriação da sociedade. Longe disso
que nesse caso se trata de uma abolição do político; na democracia verdadeira o político, para Marx, chega
a sua verdade, na medida em que nela o político converge com a configuração racional da sociedade. Sua
primeira tarefa seria trazer as oposições sociais produzidas pelo capital a um equilíbrio.

79
Mas, assim se pergunta, como deve funcionar esse plano? A essa
questão deve-se responder: cada empresa planeja sua produção no seu pró-
prio âmbito, com todos os pormenores. Em toda empresa planeja-se para o
lucro; na sociedade, ao contrário, domina a concorrência selvagem. Pode-se
contra-argumentar: no socialismo real, em que, sim, tudo foi planejado, aí
sim nada funcionou. Os “socialistas reais” tinham a posição de que a lei do
valor deve ser implementada conscientemente. Eles têm instalado a merca-
doria, o dinheiro, o capital, o lucro, o crédito etc., portanto, as categorias do
capitalismo como alavanca para o plano. Ao contrário, diria Marx: a lei do
valor deve ser revogada.
Plano ou não plano não é, também, de forma alguma, a diferença entre
capitalismo e socialismo. É o objetivo do plano que constitui a diferença. No
capitalismo, o empresário planeja seu lucro e, consequentemente, sua produ-
ção. No socialismo é planejada uma produção do valor de bens de uso para a
necessidade. Quem será o vencedor na concorrência, na verdade, não se pode
planejar. Se a vantagem na concorrência de uma empresa fosse planejável, isso
significaria que seria possível planejar o fracasso do concorrente no mercado,
portanto, o exercício ativo e consciente do desperdício da força de trabalho, do
material e dos meios de produção. Isso, porém, no capitalismo, não é o caso.
O pensar da utilidade, portanto, o ponto de vista prático-materialis-
ta que se trata da sua própria utilidade, Marx não teve que propagandear,
pois existe de uma maneira ou de outra. A consolidação da própria utilida-
de não tem, de forma alguma, outro caminho que não seja o da renda do
dinheiro, que é a barreira para a utilidade, à qual os homens almejam. Esse
desvio para a aquisição do dinheiro, levando a um desvio pelo capital como
uma condição do benefício, é o objeto da crítica de Marx. O ponto de vista
da própria utilidade existe – como disse - também no capitalismo. Que os
homens, com os meios econômicos com os quais se defrontam (mercadoria,
dinheiro e capital), perseguem sua utilidade é o que é criticado por Marx. O
que importa é o conhecimento de que as trajetórias sociais dadas, as quais
são as condições para a utilidade individual, não estão aí para a utilidade
dos homens. Que o objetivo individual não concorda com a finalidade so-
cial – e isso em função de razões sistêmicas necessárias – é o que merece, na
ótica de Marx, ser o objeto da crítica.

80
Resumindo: como alternativa ao capitalismo, Marx oferece a pers-
pectiva de que a divisão social do trabalho necessário seja planejada ra-
cionalmente e organizada coletivamente, ou seja, comunitariamente para
a necessidade social. Economia planificada para a necessidade em vez de
concorrência pelo dinheiro: eis o lema. Para discutir esse projeto seria ne-
cessária outra apresentação.

81
INDÚSTRIA CULTURAL, MÍDIA E RELIGIÃO: ANÁ-
LISE DE UMA RELAÇÃO
Prof. Dr. Júlio Cézar Adam1

1. INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo analisar a indústria cultural segundo
Adorno e Horkheimer e, a partir de seus pressupostos, observar criticamen-
te elementos religiosos presentes em produtos da indústria cultural, como
filmes, músicas, comerciais, programas de televisão e espaços na internet.
Parte-se da ideia de um revestimento religioso presente em elementos e ex-
pressões da indústria cultural. Que indústria cultural é esta que se reveste
também religiosamente? Que religião é esta que se torna cultura e indústria
cultural? Por que exatamente a religião se torna parte da indústria cultural?
O artigo está divido em três partes: na primeira parte, apresentam-
-se os principais aspectos da indústria cultural a partir do capítulo escrito
por Adorno e Horkheimer no livro Dialética do Esclarecimento; na segunda
parte, analisa-se a relação da indústria cultural a partir de elementos reli-
giosos da mídia; por fim, na terceira parte, pretende-se refletir sobre a possi-
bilidade de relacionar a indústria cultural com a religião a partir do capítulo
sobre o conceito de esclarecimento na obra já citada.

2. A INDÚSTRIA CULTURAL: DEFINIÇÕES


O principal texto sobre a indústria cultural está no livro Dialética do
Esclarecimento, de T. Adorno e M. Horkheimer.2 O livro foi escrito durante o

1
Júlio Cézar Adam, doutor em teologia pela Universidade de Hamburgo/Alemanha, professor na Facul-
dade EST, São Leopoldo/RS e na Faculdade IENH, Novo Hamburgo/RS. Realizou, no ano de 2012, estágio
pós-doutoral no PPG em Filosofia da PUCRS, sob a supervisão do Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza.
julioadam@est.edu.br
2
Posteriormente há outros escritos de Adorno que reforçam a teoria da indústria cultural, como:
ADORNO, T. Theorie der Halbbildung. In: Gesammelte Schriften 8. Soziologische Schriften 1, Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1996; ADORNO, T. Ohne Leitbild. Parva Aesthetica. In: Gesammelte Schriften 10-1.
exílio dos autores nos Estados Unidos, entre os anos 1941 e 1944. O subtítulo
do capítulo aponta o conteúdo ali desenvolvido: “O esclarecimento como
mistificação da massa” (Aufklärung als Massenbetrug). A indústria cultural é
parte integrante das “astúcias”, do engano (betrug) do esclarecimento.3 Não
se trata de uma cultura feita pela massa4, mas de uma produção econômica
intencional, industrialmente organizada nos padrões do capitalismo, com
intenções de mistificar, iludir o público. A indústria cultural, portanto, cor-
robora a visão dos autores na Dialética do Esclarecimento, de que a cultura
contemporânea confere a tudo um ar de semelhança.5 “A indústria cultural
é, portanto, o órgão de concretização da pressão pela identidade que já se
realizava no mito, na forma do eterno sempre igual. A indústria cultural é
reprodutora da pseudo-individuação dos integrantes da massa.”6
Assim, os autores condenam tudo que a indústria produz, inclusive
e principalmente a arte reproduzida mecanicamente, pois tudo que ela pro-
duz serve como meio de estultificação, que não permite a participação inte-
lectual dos espectadores. Há, na arte produzida pela indústria cultural, uma
tendência de reconciliação entre o universal e o particular. Em sua tentati-
va de integração social, ela é uma imitação, uma serialização, que condena
seus consumidores à mesmice. Dessa forma, a indústria cultural não deixa
de ser uma nova e perspicaz forma de domínio, uma nova nuance, talvez
mais astuta, do próprio fascismo ou do stalinismo. A ela deve submeter-te,
sem que tenha sido indicado o porquê.
A indústria cultural é uma indústria de diversão e entretenimento e,
ao mesmo tempo, de repressão, pelo excesso. Está muito ligada à arte produ-
zida e veiculada pela mídia de então, cinema, rádio e revistas, em especial.
Tudo vira “arte”. Sua produção é moralista e pornográfica ao mesmo tempo.

Kulturkritik und Gesellschaft I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997; ADORNO, T. Prolog zum Fernsehen.
In: Eingriffe. Neuen kritische Modelle. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984; ADORNO, T. Fernsehen als
Ideologie. In: Eingriffe. Neuen kritische Modelle. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984.
3
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Adorno. São Paulo: Publifolha, 2003, p. 68.
4
Ver diferenciação entre indústria cultural e cultura de massa em HERMANN, Nadja. A indústria cultu-
ral. In: TIBURI, Marcia; DUARTE, Rodrigo. A indústria cultural. Ijuí: Unijuí, 2009, p. 72.
5
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro:
Zahar, 1985, p. 99.
6
SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 69.

84
Usa o trágico como forma de eliminar o indivíduo, como lembra Adorno: “o
trágico dissolveu-se neste nada que é a falsa identidade da sociedade e do
sujeito, cujo horror ainda se pode divisar fugidiamente na aparência nula
do trágico. [...] A liquidação do trágico confirma a eliminação do indivíduo.”7

A indústria cultural aparece como manifestação da razão objetivado-


ra, calculadora, unificante, potencializada pelo próprio desenvolvi-
mento científico e tecnológico; ou seja, a expressão indústria cultural
aparece pela primeira vez em um texto filosófico justamente para ex-
pressar como as forças do mercado moldam a cultura nas sociedades
massificadas.8

Como não é mais arte, ela não permite o desenvolvimento da ima-


ginação, da atividade intelectual, pois os próprios produtos (como o filme)
impõem seu ritmo e paralisam as possibilidades da atividade reflexiva.9
O capítulo sobre a indústria cultural é dividido em sete seções, se-
gundo Steinert10 e Duarte11:
(I) A indústria, a produção de mercadorias culturais: nessa seção,
os autores constatam que o declínio da religião e da moral enquanto ele-
mentos estruturantes da sociedade pré-capitalista não resultou no caos cul-
tural temido, porque surgiu em seu lugar um sistema ideológico eficiente
composto pela mídia cinema, rádio e revistas. “Cada setor é coerente em si
mesmo e todos o são em conjunto. Até mesmo as manifestações estéticas
de tendências políticas opostas entoam o mesmo louvor do ritmo do aço.”12
Nesse aspecto, está muito presente a falsa identidade do universal
e do particular, como uma forma de generalização, sem espaço para ex-
pressões autônomas. Os produtos são criados e oferecidos não levando em
conta a necessidade dos indivíduos, mas as da própria indústria cultural e

7
SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 71.
8
HERMANN, 2009, p. 71.
9
HERMANN, 2009, p. 72.
10
STEINERT, Heinz. Kulturindustrie. Münster: Westfälisches Dampfboot, 1998, p. 41.
11
DUARTE, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003, p. 50-
69.
12
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 99.

85
do sistema que a gera. “Os padrões teriam resultado originariamente das
necessidades dos consumidores: eis por que são aceitos sem resistência.”13

A televisão visa uma síntese do rádio e do cinema, que é retardada en-


quanto os interessados não se põem de acordo, mas cujas possibilida-
des ilimitadas prometem aumentar o empobrecimento dos materiais
estéticos a tal ponto que a identidade mal disfarçada dos produtos da
indústria cultural pode vir a triunfar abertamente já amanhã – numa
realização escarninha do sonho wagneriano da obra de arte total.14

(II) O hobbysta nas garras do estilo da indústria cultural: nessa segunda


seção, os autores tomam por base o conceito kantiano de “faculdade de julgar”
na Crítica da razão pura. Trata-se da capacidade de enquadrar casos específicos
sob regras gerais, um talento peculiar do sujeito. Segundo Kant, o “esquematis-
mo dos conceitos puros do entendimento” é uma forma elaborada de atribuir
significado aos objetos. Para Adorno e Horkheimer, a indústria cultural, como
uma instância exterior ao sujeito, com o objetivo de proporcionar rentabilida-
de, usurpa do sujeito a capacidade de interpretar os dados fornecidos pelos sen-
tidos segundo padrões que originalmente lhe eram internos.

A função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a


saber, referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos
fundamentais, é tomada ao sujeito pela indústria. O esquematismo
é o primeiro serviço prestado por ela ao cliente. Na alma devia atuar
um mecanismo secreto destinado a preparar os dados imediatos de
modo a se ajustarem ao sistema da razão pura. Mas o segredo está
hoje decifrado. Muito embora o planejamento do mecanismo pelos
organizadores dos dados, isto é, pela indústria cultural, seja imposto a
esta pelo peso da sociedade que permanece irracional apesar de toda
racionalização, essa tendência fatal é transformada em sua passagem
pelas agências do capital de modo a aparecer como o sábio desígnio
dessas agências. Para o consumidor, não há nada mais a classificar
que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção. A arte
sem sonho destinada ao povo realiza aquele idealismo sonhador que
ia longe demais para o idealismo crítico. Tudo vem da consciência,

13
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 100.
14
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 102.

86
em Malebranche e Berkeley da consciência de Deus; na arte para as
massas, da consciência terrena das equipes de produção.15

O esquematismo funciona, pois, como uma expropriação, um trei-


namento dos sentidos para algo já previamente programado e previsto, com
uma promessa embutida de felicidade.

O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A


velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como
um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende
ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quoti-
diana, tornou-se a norma da produção.16

(III) As origens históricas do liberalismo, cultura como adestramen-


to, diversão como disciplina: a indústria cultural é filha do liberalismo e de
onde ela toma o estilo, um tipo de equilíbrio entre oferta e procura. A indús-
tria cultural confere certa possibilidade de escolha do mesmo, por um lado,
e garante, por outro, a lucratividade e a adesão ideológica. Usa para isso, por
exemplo, a arte em forma de entretenimento. Arte “leve” como tal, a diver-
são, não é uma forma decadente. Quem a lastima como traição do ideal da
expressão pura está alimentando ilusões sobre a sociedade.17
“O entretenimento e os elementos da indústria cultural já existiam
muito antes dela. Agora, são tirados do alto e nivelados à altura dos tempos
atuais.”18 O que há de novo na indústria cultural, já que esse tipo de sobre-
posição havia anteriormente, além da transferência da arte para a esfera
do consumo, é a impossibilidade do novo. A indústria gira no mesmo lugar:
“Ela consiste na repetição”.19
A indústria cultural se fixa no entretenimento, no humor leve, por-
que não pode e não deve de fato oferecer o que promete. Adorno e Horkhei-
mer chamam essa promessa não cumprida da indústria cultural de logro.

A indústria cultural não cessa de lograr seus consumidores quanto

15
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 103.
16
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 104.
17
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 111.
18
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 111.
19
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 112.

87
àquilo que está continuamente a lhes prometer. A promissória so-
bre o prazer, emitida pelo enredo e pela encenação, é prorrogada
indefinitivamente: maldosamente, a promessa a que afinal se reduz
o espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o
convidado deve se contentar com a leitura do cardápio. [...] Expondo
repetidamente o objeto do desejo, o busto no suéter e o torso nu do
herói esportivo, ela apenas excita o prazer preliminar não sublimado
que o hábito da renúncia há muito mutilou e reduziu a masoquismo.20

(IV) A atualidade da confiscação (Vereinnahmung) – sobreviver


como jogo de azar, a promessa de obediência: nessa parte, novamente os
autores retomam a ideia da confiscação do caso, da realidade, da vida de
cada um, através, principalmente, da diversão teleguiada. “Divertir-se signi-
fica estar de acordo. [...] Divertir significa sempre: não ter que pensar nisso,
esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. A impotência é sua
própria base.”21 E trazem exemplos concretos de como isso se dá:

Outrora, o espectador via no filme, no casamento representado no


filme, o seu próprio casamento. Agora os felizardos exibidos na tela
são exemplares pertencendo ao mesmo gênero a que pertence cada
pessoa do público, mas esta igualdade implica a separação insuperá-
vel dos elementos humanos. A semelhança perfeita é a diferença ab-
soluta. A identidade do gênero proíbe a dos casos. A indústria cultural
realizou maldosamente o homem como ser genérico.22

À ilusão da escolha do mesmo soma-se o cálculo de probabilidades


como um método para eliminar o acaso, fazendo com que esse coincida
com uma espécie de destino fatídico. “O próprio acaso é planejado.”23
(V) Provimento autoritário e liquidação do trágico: essa seção trata
da ambientação social imposta pela indústria cultural de forma a não ad-
mitir manifestações individuais destoantes do regulamentado. Mesmo que
a liberdade formal de cada um esteja garantida, a indústria cultural procla-
ma que as melhores chances estão com aqueles que se identificam com seu

20
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 115.
21
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 119.
22
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 120.
23
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 121.

88
regulamento último, a exploração do trabalho alheio. A miséria passa a ser
uma excentricidade imperdoável. A culpa mais grave do sistema é ser um
outsider. Por isso, os sistemas produtivos buscam criar laços afetivos dos
indivíduos com o próprio sistema.
Dentro desse quadro, surge, mais especificamente, a referência ao
trágico, como uma força poderosa que oportuniza deixar sua marca no
mundo como inspiração para os seguintes, mesmo que seja a partir do trá-
gico como aperfeiçoamento moral, como num filme com final feliz.

Assim é a vida, tão dura, mas por isso mesmo tão maravilhosa, tão
sadia. A mentira não recua diante do trágico. Assim como a sociedade
total não elimina o sofrimento de seus membros, mas o registra e pla-
neja, do mesmo modo a cultura de massa procede com o trágico. Daí
seus insistentes empréstimos à arte. Ela fornece a substância trágica
que a pura diversão não pode por si só trazer, mas da qual ela precisa,
se quiser se manter fiel de uma ou de outra maneira ao princípio da
reprodução exata do fenômeno.24

(VI) Indivíduo confiscado, propaganda: segundo o texto, o indivíduo


deixa de ser indivíduo, tornando-se mera encruzilhada de tendências uni-
versais. A indústria cultural principalmente torna-o propaganda:

Na indústria, o indivíduo é ilusório não apenas por causa da padroni-


zação do modo de produção. Ele só é tolerado na medida em que sua
identidade incondicional com o universal está fora de questão. Da im-
provisação padronizada no jazz até os tipos originais do cinema, que
têm de deixar a franja cair sobre os olhos para serem reconhecidos
como tais, o que domina é a pseudoindividualidade.25

(VII) Cultura como reclame: nessa parte, os autores tratam de expli-


citar o caráter publicitário da indústria cultural, observável na quase total
confluência entre o produto e o patrocinador. “Tanto técnica quanto eco-
nomicamente, a publicidade e a indústria cultural se confundem.”26 Ou seja,
“A publicidade aparece como um dos principais responsáveis pela plena in-

24
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 125.
25
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 128.
26
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 135.

89
serção da indústria cultural no âmbito da dialética do esclarecimento, isto
é, da regressão à mitologia mediante um - um unilateral - desenvolvimento
superlativo da racionalidade”.27 O uso da linguagem com objetividade extre-
mada, típico da linguagem publicitária, faz da propaganda algo petrificado
que se assemelha aos sortilégios da magia.

As mais íntimas reações das pessoas estão tão completamente reifi-


cadas para elas próprias que a ideia de algo peculiar a elas só perdura
na mais extrema abstração: personality significa para elas pouco mais
que possuir dentes deslumbrantemente brancos e estar livres do suor
nas axilas e das emoções. Eis aí o triunfo da publicidade na indústria
cultural, a mimese compulsiva dos consumidores, pela qual se identi-
ficam as mercadorias culturais com eles [...]28.

3. A INDÚSTRIA CULTURAL-RELIGIOSA NA MÍDIA


A partir dessa descrição da indústria cultural, pode-se conjecturar
que, na sua pretensão de totalidade, a indústria cultural absorveu também
elementos religiosos da cultura, tornando-se ela mesma religiosa. Oferta,
assim, uma forma de religiosidade implícita, intimista, experiencial, car-
regada de elementos mágicos, de encantamento cego, padronizador e ine-
briante, que contribui ainda mais para o ofuscamento da própria realidade,
como mais uma forma totalizante da cultura da mesmice, inclusive da pró-
pria religião e seu potencial de autorreflexão, não-totalidade, singularidade,
furtando sua aura (W. Benjamin). Essa constatação não é tomada primeira-
mente dos autores da teoria da indústria cultural, mas de estudos na área da
religião, da teologia prática e da comunicação.
A teologia prática e as ciências afins têm se ocupado nos últimos
tempos em delinear o chamado fenômeno de desregulação e desinstitucio-
nalização religiosa.29 A desregulação e a desinstitucionalização da religião
buscam analisar e entender formas de religião fora da esfera propriamente

27
DUARTE, 2003, p. 68.
28
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 138.
29
HERVIEU-LÉGER, Daniele. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes,
2008; BOBSIN, Oneide. Correntes religiosas e globalização. São Leopoldo: CEBI/PPL/IEPG, 2002, p. 13ss; e
BOBSIN, Oneide. O subterrâneo religioso da vida eclesial, 261ss.

90
religiosa institucional. Segundo esses estudos, a religião rompe as fronteiras
do sagrado e faz-se presente na própria cultura. Já em sua teologia da cultu-
ra, Paul Tillich30 apontava para uma teologia presente na cultura: “religião é
a substância da cultura e a cultura é a forma da religião”.31
Conforme estudos32 sobre desregulação e desinstitucionalização da
religião, rituais, expressões e festas religiosas são realizados com intensida-
de fora da esfera religiosa institucional e tradicional. Seja nas festas popula-
res, nos desfiles de escolas de samba, nos estádios de futebol, nas academias
de ginástica, no uso das vestes da moda e em outros locais inusitados, há
algo de religioso que permeia os conteúdos e expressões. Tradições religio-
sas das mais variadas desfilam nas telas de cinema, rodam nas músicas dos
iPhones, iPads, nos vídeos do You-Tube, nos pensamentos e nas imagens
no facebook. A midiatização do religioso é tamanha que inclusive os cultos
das igrejas assumem elementos midiáticos e da cultura pop.33 Vê-se aqui,
claramente, um cruzamento do religioso na chamada indústria cultural e
nos seus produtos.
Segundo esses estudos, experimenta-se na atualidade uma religião
vivenciada34 na e através da cultura pop, midiática, em que circulam os pro-
dutos da indústria cultural.

Onde, pois, encontramos hoje pistas desta religião? Com certeza não
apenas na Igreja. Podemos encontrá-la nas colunas de aconselhamen-

30
P. Tillich, em sua obra Teologia da Cultura, já falava que a cultura – como produção humana em toda a
sua riqueza e diversidade – seria já resultado não apenas da razão, mas também da religião e do espírito.
O fenômeno que se observa hoje vai além das artes, literatura, filosofia e política, mas abrange a esfera
popular e cotidiana da cultura. TILLICH, Paul. Teologia da cultura. São Paulo: Fonte Editorial, 2009. Tam-
bém o trabalho de Henning Luther, Religion und Alltag, aponta para esse caminho.
31
TILLICH, 2009, p. 83.
32
Cabe aqui citar os seguintes estudos: GRÄB, Wilhelm. Auf den Spuren der Religion. In: Zeitschrift für
Evangelische Ethik 39, 1995. p. 43ss.; GRÄB, Wilhelm. Lebensgeschichten, Lebensentwürfe, Sinndeutungen:
eine praktische Theologie gelebter Religion. 2. ed. Gütershoh: Kaiser/Gütersloher Verlag, 2000; GRÄB, Wi-
lhelm. Sinn fürs Unendliche: Religion in der Mediengesellschaft. Gütersloh: Kaiser/Gütersloher Verlag, 2002;
FAILING, Wolf-Eckart; HEIMBROCK, Hans-Günter. Gelebte Religion wahrnehmen, 1998. CORNEHL, Peter.
Die Welt ist voll von Liturgie. Studien zu einer integrativen Gottesdienstpraxis. Stuttgart: Kohlhammer, 2005.
33
KLEIN, Alberto. Imagens de culto e imagens da mídia. Sulina, 2006.
34
FAILING, Wolf-Eckart; HEIMBROCK, Hans-Günter. Gelebte Religion wahrnehmen: Lebenswelt, Allta-
gskultur, Religionspraxis. Stuttgart : Kohlhammer, 1998.

91
to nas revistas e nas ilustrações dos personagens fictícios dos comic
strips, nas páginas de horóscopo, e no vasto mercado dos livros eso-
téricos. Podemos encontrá-la nas artes plásticas com suas chocantes
e questionáveis obras, apontando para nossa imperceptível transcen-
dência cotidiana. Podemos encontrá-la na terapêutica com sua oferta
de vivência individual e meditações sincréticas. Podemos encontrá-la
em facções políticas, que exigem relações de inclusão social e assegu-
ram identidades pessoais. Podemos encontrá-la no consumo, através
das propagandas com promessas religiosas. Podemos encontrá-la na
indústria do turismo, no culto em torno à alimentação e aos exercí-
cios físicos, que faz do paraíso uma promessa.35

W. Benjamin, ao descrever a estrutura religiosa do capitalismo,


aponta exatamente para características dessa religião vivenciada. “Im Kapi-
talismus ist eine Religion zu erblicken, d. h. der Kapitalismus dient essentiel
der Befriedigung derselben Sorgen, Quallen, Unruhen, auf die ehemals die
so gennanten Religionen Antwort gaben” 36 Ele destaca quatro aspectos des-
sa estrutura religiosa do capitalismo:

Erstens ist der Kapitalismus eine reine Kulturreligion, vielleicht die


extremste, die es je gegeben hat. Es hat in ihm alles nur unmittelbar
mit Beziehung auf den Kultus Bedeutung, er kennt keine spezielle
Dogmatik, keine Theologie. Der Utilitarismus gewinnt unter diesem
Gesichtspunk seine religiöse Färbung. Mit dieser Konkretion des Kul-
tus hängt ein zweiter Zug des Kapitalismus zusammen: die perma-
nente Dauer des Kultus. Der Kapitalismus ist die Zelebrierung eines
Kultes sans treve es sans merci (ohne Waffenruhe und ohne Gnade). Es
gibt da keinen “Wochentage”, keinen Tag der nicht Festag in dem für-
chterlichen Sinne der Entfaltung alles sakralen Pompes, der äussers-
ten Anspannung des Verehrenden wäre. Dieser Kultus ist zum dritten
verschuldend. Der Kapitalismus ist vermutlich der erste Fall eines
nicht entsühnenden, sondern verschuldenden Kultus. Hierin steht
dieses Religionssystem im Sturz einer ungeheuren Bewegung. Ein un-
geheures Schuldbewusstsein das sich nicht zu entsühnen weiss, greift

35
GRÄB, 1995, p. 47. (tradução nossa).
36
BENJAMIN, Walter. Kapitalismus als Religion. In: BAECKER, Dirk (Ed.). Kapitalismus als Religion. Ber-
lin: Kulturverlag Kadmos, 2009, p. 15.

92
zum Kultus, um in ihm diese Schuld nicht zu sühnen, sondern univer-
sal zu machen, dem Bewusstsein sie einzuhämmern und endlich und
vor allem den Gott selbst in diese Schuld einzubegreifen, um endlich
ihn selbst an der Entsühnung zu interessiert. [...] Gottes Transzen-
denz ist gefallen. Aber er ist nicht tot, er ist Menschenschicksal einbe-
zogen. Dieser Durchgang des Planeten Mensch durch das Haus der
Verzweiflung ind der absoluten Einsamkeit seiner Bahn ist das Ethos
das Nietzsche bestimmt. Dieser Mensch ist der Übermensch, der ers-
te der die kapitalistische Religion erkennend zu erfüllen beginnt. Ihr
vierter Zug ist, dass ihr Gott verheimlich werden muss, erst im Zenith
seiner Verschuldung angesprochen werden darf. Der Kultus wird vor
einer ungereiften Gottheit zelebriert, jede Vorstellung, jeder Gedanke
an sie verletzt das Geheimnis ihrer Reife.37

Droogers, já nos anos 80, no caso concreto do Brasil, chama o fenô-


meno de RMB (Religiosidade Mínima Brasileira). A RMB assume as seguin-
tes características:

Trata-se de uma religiosidade que se manifesta publicamente em con-


textos seculares, que é veiculada pelos meios de comunicação de mas-
sa, mas também pela linguagem cotidiana. Ela faz parte da cultura bra-
sileira. [...] a RMB não é o acervo ou mesmo matéria-prima da qual as
religiões tiram seu repertório. [...] não tem clero, a não ser as pessoas
que são os seus porta-vozes. Ela não tem escritura sagrada, a não ser
os jornais e as revistas. Rituais são raros, mas talk shows na televisão
podem acabar se tornando cultos da RMB. Ela não conhece hinos, a
menos que certas músicas de Roberto Carlos sejam vistas assim.38

Essa religião na e da cultura, ou essa indústria cultural-religiosa,


tem sido observada pelos estudos da religião vivida como um fenômeno,
um rastro do sagrado a ser seguido, como tarefa da teologia. A partir da
teoria crítica, da filosofia de Adorno e Horkheimer, cabe ainda perguntar
pelas origens desse acoplamento do religioso dentro da indústria cultural e
de seus produtos.

37
BENJAMIN, p. 15-16.
38
DROOGERS, André. Religiosidade Mínima Brasileira. Religião e Sociedade, v. 14, Caderno 2, 1987, p.
63ss. A seleção brasileira orando ajoelhada em círculo, no campo de futebol. Disponível em: http://ieqin-
dustrialcontagem.zip.net/arch2009-07-05_2009-07-11.html Acesso: 26/08/2010.

93
4. ASPECTOS RELIGIOSOS DA INDÚSTRIA CULTURAL NO
CONCEITO DE ESCLARECIMENTO
Especificamente no capítulo sobre a indústria cultural na Dialética
do Esclarecimento, não há uma abordagem explicitamente religiosa por par-
te dos autores. Podemos entender o engendramento religioso da indústria
cultural, no entanto, tomando o primeiro capítulo da obra, sobre o conceito
do esclarecimento.
Segundo Adorno e Horkheimer, ao tentar suplantar o mito e a re-
ligião, o próprio esclarecimento se reveste de elementos míticos e religio-
sos. Antes disso ainda, o próprio mito é para eles uma elaboração primiti-
va do esclarecimento.

[...] os mitos que caem vítimas do esclarecimento já eram o produto


próprio do esclarecimento. [...] O mito queria relatar, denominar, di-
zer a origem, mas também expor, fixar, explicar. [...] Muito cedo deixa-
ram de ser um relato, para se tornarem uma doutrina.39

A superação do mito faz parte do desejo do esclarecimento de supe-


ração da própria natureza. “O programa do esclarecimento era o desencan-
tamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imagina-
ção pelo saber.”40 Na tentativa de superação do mito e da natureza, o próprio
esclarecimento assume para si o próprio mito e “[...] o esclarecimento ainda
se reconhece a si mesmo nos próprios mitos”.41

Desse modo, o esclarecimento regride à mitologia da qual jamais


soube escapar. Pois em suas figuras, a mitologia refletia a essência
da ordem existente – o processo cíclico, o destino, a dominação do
mundo – como a verdade e abdicara da esperança. Na repugnância da
imagem mítica, bem como na clareza da fórmula científica, a eterni-
dade do factual se vê confirmada e a mera existência expressa como o
sentido que ela obstruiu.42

39
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20.
40
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 17. Observe-se que esse vai ser o tema central do excurso I, “Ulisses
e o mito do esclarecimento”.
41
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19.
42
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 34.

94
Aqui temos, portanto, o possível entrelaçamento entre a religião, a reli-
giosidade, enquanto espaço mitológico na cultura, e a indústria cultural e seus
produtos, como espaço totalizante e catalisador. Assim, o próprio sistema capi-
talista constrói-se como um sistema ao qual o religioso retorna e invade.

No mundo esclarecido, a mitologia invadiu a esfera profana. A exis-


tência expurgada dos demônios e de seus descendentes conceituais
assume em sua pura naturalidade o caráter numinoso que o mundo
atribuía aos demônios. Sob o título dos fatos brutos, a injustiça social
da qual esses provêm é sacramentada hoje como algo eternamente
intangível e isso com a mesma segurança com que o curandeiro se
fazia sacrossanto sob a proteção dos deuses.43

A própria compreensão da indústria cultural como confiscadora do


pensar crítico humano e substituidora da capacidade de reação diante dos
produtos não deixaria escapar a religião como dimensão humana e cultu-
ral, individual e trágica, como forma de ampliar seu controle. Em nome do
produto, a indústria cultural substitui o mito, na tentativa religiosa de dar
conta da realidade, de arquitetar uma totalidade e dominar o ser humano,
como irá observar Hermann:

Ao mesmo tempo que a humanidade procurou combater o mito, as


forças mágicas, emancipar-se, segundo o saber racional, a razão recai
na dominação que é uma expressão da barbárie. [...] A indústria cul-
tural é parte da lógica de desintegração social, gestada no interior do
próprio processo da civilização.44

Com isso, podemos concluir que estamos absorvendo diariamente


na e através da indústria cultural e seus produtos elementos de caráter má-
gico, místicos e míticos. A indústria cultural oferta assim algo de transcen-
dente na vida e na realidade humana, com um único interesse: adesão ao
produto e à própria indústria cultural. Num tempo em que a religião insti-
tucional já não exerce grande influência na cultura e na sociedade, a indús-
tria domina o ser humano também por um viés religioso embutido em sua
produção.

43
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 35.
44
HERMANN, 2009, p. 70.

95
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. Fernsehen als Ideologie. In: Eingriffe. Neuen kritische Modelle.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984.

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Kulturkritik und Gesellschaft I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997.

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am Main: Suhrkamp, 1984.

ADORNO, T. Theorie der Halbbildung. In: Gesammelte Schriften 8. Soziologische


Schriften 1, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996.

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als Religion. Berlin: Kulturverlag Kadmos, 2009.

BOBSIN, Oneide. Correntes religiosas e globalização. São Leopoldo: CEBI/PPL/IEPG,


2002.

CORNEHL, P. Die Welt ist voll von Liturgie. Studien zu einer integrativen
Gottesdienstpraxis. Stuttgart: Kohlhammer, 2005.

DROOGERS, André. Religiosidade Mínima Brasileira. Religião e Sociedade, v. 14,


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UFMG, 2003.

FAILING, Wolf-Eckart; HEIMBROCK, Hans-Günter. Gelebte Religion wahrnehmen,


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97
LIBERDADE TEÓRICA E
LIBERDADE PRÁTICA EM HEGEL1
Prof. Dr. Konrad C. Utz2

LIBERDADE EM HEGEL
Como tentei mostrar em outros trabalhos, Hegel explicita seu con-
ceito de liberdade por primeiro na Ciência da Lógica (CdL), como autodeter-
minação reflexiva.3 Destarte, ela é um conceito lógico, no sentido hegeliano,
isto é, semântico-apriórico.4 Não se trata de autonomia como em Kant, pois
o contexto não é o agir, a prática, mas o elemento puro das formas abstratas
de pensar que existem apenas em e pela sua determinação. No conceito, essa
determinação, que em sua essência é dialética especulativa, é plenamente
interiorizada. Portanto, seu movimento torna-se movimento por ele mesmo,
isto é, “vida”, e as mudanças que ocorrem são efetuadas por ele mesmo, ou
seja, ele se “desenvolve”. Por causa de sua reflexividade interiorizada, sua
estrutura de autorrelação determinante, o conceito é “livre” e “sujeito”, pois
Hegel iden­ti­fica liberdade e subjetividade. A razão é que, a seu ver, o concei-
to tem a mesma estrutura como o Eu, embora o último seja concebido, nor-
malmente, a partir da consciência no sentido comum do termo, enquanto
o conceito não precisa ser necessariamente consciente. Na CdL, o concei-

1
O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do governo brasileiro voltada para
a formação de recursos humanos.
2
Professor do PPG em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
3
Este trabalho baseia-se em trabalhos anteriores meus. Menciono estes para aqueles que buscam ex-
planações mais detalhadas sobre as teses que proponho aqui: O projeto da “Ciência da Lógica”, Revista
Eletrônica de Estudos Hegelianos (REH), v. 15, p. 43-57, 2012. A subjetividade na “Ciência da Lógica”, Ve-
ritas: Porto Alegre, v. 33, p. 116 -129. O existencial da liberdade: Hegel e as pré-condições da democracia,
Ethic@, v. 8, p. 169 -186, 2009. Filosofia da Amizade: uma proposta, Ethic@, v. 7, p. 151-164, 2008; O método
dialético de Hegel, Veritas, Porto Alegre, v. 51, p. 165-185; Liberdade em Hegel,Veritas, Porto Alegre, v. 50,
257-283, 2004.
4
A rigor, a liberdade (como também a subjetividade) não é um dos conceitos que surgem no percurso
do próprio pensar puro. Mas esse conceito, junto com o conceito da subjetividade, explicita, na CdL o
que o conceito lógico é (o conceito da subjetividade aparece também no título do Segundo Volume).
to livre alcança essa consciência e, consequentemente, a consciência de si,
apenas quando se torna ideia.
Mas não é apenas a consciência que falta à liberdade teórica ou lógi-
ca de Hegel. Também lhe falta a ausência da necessidade ou, positivamente
falando, a presença de uma pluralidade de alternativas que podem ser esco-
lhidas. O movimento e o desenvolvimento do conceito con­tinuam estrita-
mente necessários, assim como todo o desenvolvimento anterior da Ciência
da Lógica. A única diferença é que o objeto ou a “substância” do desenvolvi-
mento tornou-se tam­bém seu sujeito, seu ator. O conceito é o “pensar puro”
que, desde início, era o elemento ou o éter das formas lógicas. Agora é ele
mesmo, quer dizer, é a necessidade sua que movi­men­ta e desenvolve a ele
mesmo. Mas a necessidade continua a mesma. Não há alternativas no ca-
minho da Lógica, nem nas suas partes iniciais, nem na sua última parte, na
Lógica do Conceito.
Para o sentido comum, uma liberdade sem consciência e sem esco-
lha parece algo estranho. Mas pelo menos o segundo ponto não é novo. Já a
liberdade de Kant não reconhece alterna­tivas de escolha, mas apenas a lei
moral. A liberdade de Espinoza é o reconhecimento da neces­sidade univer-
sal. Já antes, alguns teólogos, principalmente os protestantes, chamaram de
livre apenas aquele homem que obedece a Deus. E o estoicismo já prega o
consentimento com a ordem imutável do cosmo, embora não possua ainda
uma teoria da liberdade.
Contudo, na Enciclopédia das Ciências filosóficas em epítome (Enc.)
de 1830, no capítulo sobre o Espírito subjetivo (§ 387s), nós encontra­mos
aquela liberdade da qual falamos na linguagem comum: aí é o sujeito indivi-
dual, con­cre­to que é livre. Este é consciente e encontra-se diante de alterna-
tivas a escolher. A liberdade “real” e prática, isto é, a liberdade em espaço e
tempo, nasce na vontade do sujeito individual consciente. A vontade é “espí-
rito prático” (diferente de Kant, para quem ela é razão prática) e origina-se
do “espírito teórico”. O espírito eleva-se da consciência (no sentido hegelia-
no) e supras­sume essa na autoconsciência universal, quer dizer, ele já tem o
Eu como ponto de referência apriorístico absoluto e universal. Esse espírito,
por seu desenvolvimento dialético, chega ao pensamento que apropria seu
conteúdo a si, isto é, à forma do conceito, e, com isso determina-o por si

100
mesmo, de modo espontâneo. Isso não é algo novo, a espontaneidade de-
terminante do intelecto na conceituação do objeto já se encontra em Kant.
Porém, para Hegel, essa inteligência que determina seu conteúdo
agora toma consciência ou torna-se ciente dessa sua determinação espon-
tânea e, com isso, torna-se inteligência prá­tica: vontade. “O espírito enquan-
to vontade sabe a si mesmo como aquilo que se decide em si e que se enche
a partir de si mesmo” (§ 469). Com isso, o espírito “faz sua entrada na reali­
dade” (ibid.). O espírito torna-se real pela vontade, pois essa muda, modifica
e forma seu mun­do. O espírito teórico, ao contrário, só “recebeu” a realida-
de, ele a apropriou e interio­ri­zou-a no conhecer. Na vontade, a direção é in-
vertida; agora, o espírito vai ativamente para fora. Ele dá à realidade alguma
determinação que é tomada dele mesmo, e que não é recebida pelo espí-
rito de fora. Com isso, a estrutura da autodeterminação que encontramos
no conceito lógico restabeleceu-se de forma plenamente ciente em espaço
e tempo, no real. Portanto, essa vontade é “livre”, mas ainda apenas “livre
simplesmente” (ibid.). Sua verdadeira liber­dade ela ainda precisa conquis-
tar por um desenvolvimento sucessivo.
A deficiência da vontade imediata é a imediatez e, portanto, a con-
tingência de seu conte­údo. Este é seu, como foi dito, mas ele ainda não é
conscientemente e racionalmente determi­na­do pelo espírito. Esse espírito
simplesmente encontra-se nessas determinações singulares suas enquanto
naturais (cf. § 471). Ele tem fome, por exemplo, e quer comer. Portanto, a
von­tade é, primeiramente, “sentimento prático” e, depois, “paixão” (§ 471s).
Depois, o desenvolvimento chega a um passo decisivo, pois apenas
por esse passo o espí­rito prático pode chegar a sua liberdade verdadeira.
A vontade dissocia-se de seu conteúdo e, com isso, encontra-se diante da
possibilidade da escolha. Ela pode eleger entre vários impulsos naturais di-
ferentes. Encontrando-se no restaurante diante do menu, por exemplo, es-
colhe-se entre o apetite pela carne e aquele pelo peixe. Esse é o livre-arbítrio.
Com ele chegamos, finalmente, ao elemento eleitoral que parece essencial
para a noção comum da liberdade.
Mas o livre-arbítrio, para Hegel, tem um sentido quase exclusiva-
mente negativo. É impor­tan­tíssimo, mas apenas como necessário estágio
de passagem, de dissociação da vontade de si mesma. Isso se torna mais

101
claro ainda pelo texto da Filosofia do Direito (FD; cf. a Introdução, §§ 4-30)
do que pelas breves explicações da Enc. A base da escolha da vontade, isto
é, os impulsos naturais, é algo contingente e, portanto, vão. Fazendo tal es-
colha, a liberdade na forma do livre-arbítrio destrói a si mesma, pois, feita a
decisão, a possibilidade da decisão não existe mais. E a vida no livre-arbítrio
só pode buscar a distração, a contínua substituição de uma inclinação ou
um prazer por outro, escolhendo cada vez novas finalidades contingentes.
Isso leva a um progresso ao infinito, uma infinitude má (cf. § 478). Essa não
pode ser a liber­da­de verdadeira. Pelo contrário, no livre-arbítrio, a liberdade
encontra-se abalienada, serva de algo que ela não é e que nem tem a forma
do espírito – bem como em Kant.
O espírito só pode reencontrar a sua liberdade, e isso quer dizer: re-
encontrar a si mesmo, quando ele supera a contingência e particularidade
dos conteúdos do livre-arbítrio e eleva o conteúdo da vontade à forma do
universal. Isso ele faz na concepção da felicidade (§ 479 - elemento que falta
na Introdução à Filosofia do Direito). Essa é a finalidade última, engloban­te
e, portanto, única, à qual a vontade está orientada – assim parece, pelo me-
nos, neste estágio que pode ser entendido, por exemplo, como o ponto de
vista da ética aristotélica.
Mas esse conceito formal abstrato só pode ser a preparação para o
retorno verdadeiro do Espírito a si mesmo. O “espírito livre”, isto é, “real-
mente livre” (§ 481), só pode ser aquele que a si mesmo quer, ou seja, a von-
tade que tem a si mesma como objeto, conteúdo e fim (§ 21, cf. § 27). Ele só
pode ter a si mesmo como tal se se relaciona consigo mesmo na forma do
conceito, isto é, em seu próprio conceito universal (sem isso, sua própria au-
torrelação seria não compre­en­di­da, cega – e, consequentemente, não seria
autorrelação ciente, verdadeira). Portanto, a vontade livre que a vontade li-
vre quer não quer apenas a liberdade sua, particular, mas a vontade livre em
qualquer sujeito individual. Ela é “vontade racional” (§ 482). Com isso, esse
espírito transcende sua subjetividade limitada e torna-se “objetivo”.
O espírito livre agora precisa efetuar-se pela atividade, e nessa ele
põe suas determinações racionais internas na realidade externa. Ele forma
e determina seu mundo conforme seus conceitos, de forma racional. Com
isso, cria o mundo do “espírito objetivo”, isto é, aquelas realidades que não

102
são mais subjetivas, individuais, puramente mentais, mas que, de certa for-
ma, “existem” como entidades próprias, autossubsistentes, porém, entida-
des não materiais, mas espirituais ou ideais. Tais entidades são, por exem-
plo, o direito, a propriedade, a moral, a família, a sociedade, com todas as
suas estruturas e instituições, e o Estado. Hegel subsume todas essas rea­li­
zações objetivas ou transubjetivas da liberdade sob o conceito do direito.
A liberdade do indivíduo consiste, pois, em sua vida nessas estru-
turas e na afirmação emo­ci­onal e intelectual dessa sua participação num
todo maior, objetivo. No caso da propriedade, essa afirmação é o respeito
pela propriedade (em geral, i.e., tanto minha quanto de outros); no caso da
moral é a consciência moral; no caso da família, o amor; no da sociedade
civil, a honra profissional; e no do Estado, o patriotismo. Observa-se que, no
desenvolvimento dialético do direi­to da propriedade até o direito do Estado,
o espaço da contingência e da escolha é cada vez mais diminuído. No come-
ço, no direito abstrato, nos apropriamos de qualquer coisa que quisermos
– se ela ainda não tiver dono; e trocamos nossas propriedades com quem
quisermos (e pelo preço que quisermos). Na última instância, na aceitação
e afirmação de sua participação no Estado concreto em que o indivíduo
está vivendo, este não faz nen­hu­ma escolha, só aceita o fato contingente
de ser membro de sua nação, e não outra. (No caso da família, também não
escolhemos nossa comunidade de origem; mas podemos, quando adul­tos,
escolher um parceiro para fundar uma nova família.) Portanto, a vida como
cidadão é a forma mais alta da liberdade que podemos alcançar nesse mun-
do concreto, de espaço e tempo e de nexos causais. Consequentemente, o
Estado é o “absoluto na terra”. Apenas no “espírito absoluto”, que, pela arte,
religião e filosofia, transcende o empírico, é possível superar este últi­mo res-
to de contingência. Com isso, a liberdade real se reaproxima passo a passo
daquela liberdade lógica do conceito e da ideia que era pura autodetermi-
nação necessária, sem espaço algum para a contingência.
Evidentemente, essa realidade da liberdade não pode ser mais aque-
la do Sujeito individual, pois este nunca determina a si mesmo completa-
mente. Esse era o problema da filosofia de Fichte, que concebeu o sujeito
num caminho infinito da aproximação a este fim inalcançável, pela técnica
e pela formação ética. Para Hegel, este fim é alcançável. De fato, ele foi atin-

103
gido; porém, não pelo sujeito individual, mas pelo Espírito Absoluto. Nós,
espíritos subjetivos, só podemos compreender que nossa verdadeira identi-
dade enquanto o Eu está naquele Espírito Absoluto e que, portanto, partici-
pamos nele e em sua absoluta liberdade. Nisso – e não em nós mesmos, en-
quanto indivíduos contingentes - temos aquela certeza plena e inalienável
de nossa liberdade, que, segundo Hegel, é o anseio supremo de cada sujeito:
Nós temos a consci­ência (ou melhor: o saber) de nossa própria existência
como plenamente cumprida e, portanto, feliz.

PRIMEIRA OBSERVAÇÃO CRÍTICA: O PROBLEMA DA


NORMATIVIDADE DA ÉTICA HEGELIANA
Vejo vários problemas com essa concepção. Aqui só posso discutir
três. Para fazê-lo, quero retornar àquele instante do desenvolvimento da li-
berdade hegeliana que mais parece com nos­sas “intuições normais”, isto é, a
liberdade de um ente particular consciente em espaço e tempo que contém
um aspecto eleitoral: o espírito subjetivo prático.
Uma vez que aceitamos que existiam e certamente continuam existin-
do indivíduos que se identificam com esse espírito subjetivo e veem no livre-
-arbítrio sua liberdade, qual é a relação desses indivíduos com o dever moral e
as exigências da eticidade? Minha dúvida fundamental diz respeito ao caráter
obrigatório das estruturas do espírito objetivo para tal indivíduo. Por que este
deveria obedecer ao direito: ao direito formal, à moral e às normas sociais,
inclusive ao direito do Estado? Hegel talvez dissesse: o indivíduo – exceto, de
certa maneira, no caso da moral – não obedece a um dever externo quando
afirma e segue às normas do espírito objetivo, mas por sua própria vontade
afirma essas normas e, com alegria e satisfação, cumpre suas exigências. Mas
é óbvio que nem todos os homens fazem isso. Alguns preferem insistir em seu
livre-arbítrio, isto é, em seu espírito subjetivo e na vontade deste. Por que é
que estes deveriam mudar sua perspectiva e aceitar as normas da eticidade?
Mais ainda: como é que eles podem ser seres éticos se simplesmente pararam
no desenvolvimento de seu espírito (isso, evidentemente, é possível: mesmo
quando a História mundial já chegou até o nível da eticidade e do Estado,
há povos e – tanto mais – indivíduos que ainda vivem “ana­cro­nisticamente”
em formas anteriores do Espírito, por exemplo, sem Estado; e, evidentemente,

104
cada homem precisa, em sua infância, desenvolver seu espírito: não nasce-
mos com consciência de propriedade, moral, eticidade, Estado e patriotis-
mo)? Eles não seriam como crianças que ainda não sabem e não podem saber
o que é a eticidade, mas que, portanto, não têm culpa? Se, por outro lado,
nós assumíssemos que, necessariamente, todos os homens adultos já tenham
per­cor­rido aquele desenvolvimento dialético do espírito subjetivo e objetivo
que Hegel descreve e que todos já tenham chegado até a eticidade ou pelo
menos até a moralidade, por que, então, alguém poderia ter a vontade de re-
troceder até o espírito subjetivo e seu livre-arbítrio?
Talvez a comparação com Kant torne minha dúvida mais clara. Kant
explica a possibili­dade da moralidade e da imoralidade pelas duas fontes
das nossas ações: a razão prática pura e a inclinação. Estas duas existem
uma ao lado da outra em nós. Se faltassem as inclinações, como seria o caso
dos anjos ou de Deus – se estes existem –, não poderíamos ser imorais. As
duas fontes de motivações em nós explicam porque temos duas “opções”:
aquela de agir moral­mente e aquela de agir imoralmente. E as característi-
cas dessas fontes explicam as cara­cterísticas de suas respectivas exigências:
as exigências das inclinações têm um caráter subje­tivo, particular, contin-
gente e condicionado, pois a nossa sensibilidade, à qual as inclinações per-
tencem, tem essas características. A razão pura, apriorística, por outro lado,
é universal, obje­tiva, necessária, incondicionada e absoluta. Portanto, a mo-
ral tem essas características. Porém, o caráter incondicionado do dever mo-
ral não garante que o sujeito siga as suas normas, pois sem­pre há essa outra
fonte da motivação, as inclinações que, enquanto tais, continuam existin­do
ao lado da razão prática, e não subjugada a ela (ou suprassumida), embora
esta última seja a exigência da razão.
Isso, evidentemente, leva a um dualismo, o dualismo de razão práti-
ca e sensibilidade, de moralidade e inclinações, de autonomia e heterono-
mia – alguns dos vários dualismos da filosofia de Kant. Junto com Fichte e
Schelling, Hegel opõe-se a todos os dualismos kantianos e quer, por assim
dizer, reconstituir a unidade tanto da realidade quanto do espírito. Sua so-
lução é, geralmente falando, transformar as oposições fixas do sistema kan-
tiano em fases ou momentos de um desenvolvimento dialético, em que os
dois lados não são simplesmente dados, mas o nega­tivo surge a partir do

105
positivo. Uma vez que as oposições nascem e desenvolvem-se, elas também
podem mudar e ser superadas. É isso que acontece na famosa suprassunção
hegeli­ana: cada vez que uma oposição surge, é destinada, por sua dinâmica
dialética interna, a autodestruir-se e a levar a sua suprassunção que une os
opostos. Essa certamente é uma solu­ção genial.
Porém, no caso da questão da obrigação ética, isso leva a um proble-
ma. Se as duas opções da determinação de nosso agir, isto é, no caso de He-
gel, a opção pelo direito e a opção pelo livre-arbítrio, não existem mais uma
ao lado do outra, mas a primeira já superou a última no desen­vol­vi­mento
dialético, como é que um homem pode decidir por uma ou por outra? Ou
como é que ele pode ser culpado por um comportamento antiético se, no
seu desenvolvimento pes­soal, ainda não atingiu a eticidade?
E qual poderia ser a razão à base da qual, para tal pessoa, seu compor-
tamento poderia ser mostrado sendo errado? Hegel poderia argumentar, para
tal pessoa, que o livre-arbítrio é ima­nentemente incoerente e que, portanto,
seria irracional permanecer nele. Mas não parece claro como a exigência teó-
rica de evitar o irracional pode, nesse contexto, ganhar o caráter de uma obri-
gação ética. Muitas pessoas perseguem fins incoerentes. Provavelmente elas
ajam, destar­te, contra seu interesse próprio. Mas não é claro por que tal com-
portamento seja, por si só, imo­ral. Pelo contrário, se a pessoa em questão não
compreende a incoerência de sua ação, normalmente diríamos que ela não
pode ser moralmente responsável por esta. Antes, mere­ce nossa compaixão.
E, mesmo quando ela compreende, não é claro porque sua vontade con­sci­en­
te­mente incoerente é imoral. Diríamos que uma pessoa que age conscien­te­
mente de maneira irracional é maluca - mas não má.
Talvez o recurso a Kant nos ajude mais uma vez a esclarecer o ponto.
O Imperativo Categórico diz exatamente isso: que minha ação só é moral e,
portanto, devida, quando seu princípio moti­vacional subjetivo (a máxima)
é coerente e continua coerente quando for universalizado. Contudo, o fato
que este é um Imperativo, evidencia que a exigência da coerência não é, em
si, uma exigência moral, mas que o princípio da não contradição precisa
tornar-se um prin­cí­pio moral; e justamente isso acontece quando a razão
(prática) pura se dá na sua própria forma (o agir racionalmente sob prin-
cípios) como lei. A coerência apenas torna-se uma exigência mo­ral quando

106
é exigida – da razão (prática) pela razão (prática); quando a razão impera
esse princípio (sobre si mesma). Sem essa autoaplicação, autoimperação
ou autolegislação (i.e., essa autonomia), o princípio da coerência não tem
caráter moral. Isso parece evidente, pois, do contrário, a lógica seria, simul-
taneamente e imediatamente, a moral. Mas o contraditório, por si só, não
é necessariamente imoral. Ele apenas é necessariamente não verdadeiro.
Hegel também poderia argumentar para tal indivíduo, que é no seu
próprio interesse, isto é, no interesse de sua autoperfeição que ele supera o
livre-arbítrio e chega à vontade livre que a vontade livre quer e daí ao espí-
rito objetivo. Mas com isso, ele reduziria a decisão pela eti­cidade ao inte-
resse próprio. E com isso não parece mais possível explicar o caráter incon­
di­cionado das exigências da moral ou da eticidade, como foi claramente
mostrado por Kant. Fal­tando uma teoria da vida depois da morte e de remu-
nerações nessa, também não é claro como Hegel poderia motivar um sujeito
individual, por exemplo, a arriscar sua vida para o Estado, como Hegel exige
no caso da guerra, se o último ponto de referência do agir, em última instân­
cia, for o interesse próprio.
Parece-me que a filosofia prática de Hegel fracassa em articular o ca-
ráter específico da obrigação moral, ou, na terminologia do próprio Hegel,
das exigências da eticidade. Acho que ele está certo em que estas podem, de
fato, ser compreendidas como tais exigências nas quais o dever e a aspira-
ção são unidos, em que um não contradiz mais o outro, porque o indivíduo
vê nas leis do Estado os desejos de sua própria razão. Esse é o grande mérito
da teoria hegeliana da eticidade. Mas, a meu ver, ele não chega a explicar
qual é o caráter normativo dessas exigências para um indivíduo que não
chegou a essa compreensão, isto é, que não consegue identificar-se com o
espírito de seu povo, seja porque, pessoalmente, ainda está preso numa for-
ma anterior do desenvolvimento do espírito, seja porque o estado de seu
povo está ruim. Nesse caso, não basta oferecer a concepção da eticidade ao
espírito individual como uma chance de superar suas limitações e reconci-
liar suas incoerências inerentes. Não basta lhe ofertar a perspectiva gran-
diosa de uma liberdade real, objetiva, num espírito transindiviudal, pois tal
oferta não tem caráter obrigatório. Penso, portanto, que a filosofia prática
de Hegel seja incompleta e insuficiente.

107
Hegel tem plena razão em sua análise das deficiências da moral kan-
tiana e oferece, na forma da eticidade, uma concepção na qual, da perspec-
tiva do sujeito individual, dever e aspiração podem ser reconciliados. Com
isso, ele certamente oferece uma nova perspectiva existencial promissora.
Mas, como a vida ética permanece do ponto de vista do indivíduo uma mera
possibilidade existencial, e não uma necessidade moral ou ética, Hegel não
consegue estabelecer uma nova teoria normativa que possa substituir a te-
oria kantiana. Ele nos fornece o que falta em Kant, porque Kant, aparen-
temente, não viu sua importância: a dimensão existencial da vida prática.
Mas perde o que Kant, talvez pela primeira vez, explicitou de maneira satis-
fatória, pois Kant foi o primeiro a realmente entender sua importância: o
caráter singular e irreduzível da obrigação moral.

SEGUNDA OBSERVAÇÃO CRÍTICA: CONTRA A LIBERDA-


DE NÃO EGOCÊNTRICA
Uma outra crítica minha é pouco original. É a velha observação que
Hegel parece dar uma importância tão grande ao Estado que o cidadão indi-
vidual, no final das contas, precisa subju­gar-se a ele, que Hegel não está em
favor da democracia direta e que ele não parece prever a possibilidade de uma
oposição efetiva ao governo. Com tais críticas quero, até certo ponto, apo­iar,
sem acusar Hegel, por isso, de afinidades ao totalitarismo. O que talvez seja
original em minha apresentação é a perspectiva: a primazia que Hegel dá ao
todo em detrimento do indivíduo finito tem sua base já no conceito lógico da
liberdade. Portanto, as explanações sobre o Estado na Filosofia do Direito são
coerentes e consequentes com relação ao sistema hegeliano como um todo.
Por isso, me parece difícil modificar a filosofia política de Hegel permanecen-
do fiel a ele. Sua opção por essa filosofia não foi apenas histórica.
No Idealismo de Fichte, o Eu é o princípio absoluto a partir do qual
todo o resto origina-se (pelo menos na Doutrina da Ciência de 1794 – de-
pois, Fichte modificou sua teoria). Esse Eu é o Eu meu, da 1ª pessoa. Sou
eu. Para distinguir esse Eu do Eu enquanto forma lógica ou como conceito,
sob o qual eu pessoalmente apenas sou subsumido (como em Hegel), isto
é, para distingui-lo do Eu como forma universal, chamarei esse primeiro de
“Eu egocêntrico”. Não basta chamá-lo de “Eu individual”, pois certas formas

108
do Espírito objetivo (sobretudo o Esta­do) como também do Espírito absolu-
to também têm individualidade.
Fichte explica esse Eu por uma intuição intelectual, um captar ou
uma ciência imediata que o Eu tem de si mesmo, ciência que é idêntica ao
ato – o famoso ato de ação – pelo qual o Eu põe a si mesmo. Com isso, o Eu
constitui a si mesmo e sabe a si mesmo sem que haja uma diferença entre
o agente e o resultado da constituição e entre o sujeito e o objeto do saber.
Tudo é uno na imediatez do “eu sou”. Tal Eu, necessariamente, permanece
conectado à 1ª pessoa, ao eu egocêntrico, ao eu que eu sou, pois apenas esse
eu pode intuir-se. A intuição sempre é algo subjetivo, individual, ela é rela-
cionada a um centro (no tempo e, normalmente, também no espaço, isto é,
a um aqui e agora, para o qual ela é).
Esse Eu, depois, deve tornar-se livre pelo agir. Toda a realidade para
Fichte não é senão um objeto para e uma resistência a esse agir, resistência
tal, contudo, que é necessária, pois sem ela, isto é, no espaço vazio, o agir
não poderia realizar-se. O agir precisa de um (oposto) a ele mesmo para se
realizar, ou seja, para mudar algo. Porém, como o Eu fichteano sempre per-
manece o Eu subjetivo, finito, ele nunca pode concluir sua eterna vocação
de tornar-se livre. Ele vive e luta numa interminável aproximação a esse fim.
Com isso Hegel não está contente. Não sabemos bem se seu descon-
tentamento com a teoria de Fichte era mais existencial ou mais formal. De
qualquer maneira, Hegel, por um lado, não gosta de um fim que nunca pode
ser alcançado, de um esforço perene, de um desafio interminável, isto é, de
um peso sobre nossa existência que nunca pode ser aliviado. Isso ele já cri-
ticou na teoria moral de Kant. Por outro lado, Hegel, assim como Kant, não
aceita uma intuição intelectual. Parece-lhe que uma estrutura que deve ser
apreendida de imediato, numa só intuição, mas que, ao mesmo tempo, deve
ser complexa, é um absurdo. Como, pergunta Hegel, o Eu absoluto de Fichte
pode ser a si mesmo seu objeto e seu efeito, ou seja, ter uma relação consigo
mesmo, e, ao mesmo tempo, ser absolutamente uno? Parece que, em vez de
explicar a realidade por um princípio, Fichte explica o mistério do ser por
um outro mistério, o enigma do Eu.
Hegel, portanto, concebe o Eu como uma estrutura discursiva. Essa es-
trutura, evidente­mente, é apriorística. Portanto, ela é lógico-discursiva. Como

109
tal, é uma estrutura universal e necessária. Tal estrutura, evidentemente, não é
mais exclusivamente e primordialmente eu – não é mais uma estrutura egocên-
trica. Melhor dizendo: em Hegel, a palavra “eu” não designa mais, em primeiro
lugar, a 1ª pessoa, mas uma estrutura (discursiva). Claro que, conforme ele, é
também aquela estrutura pela qual eu (isto é, qualquer indivíduo egocêntri-
co, autoconsciente) posso compreender a mim mesmo e, com isso, chegar à
consciência da 1ª pessoa. Mas eu, enquanto indivíduo em espaço e tempo, não
constituo essa estrutura, ela existe como estrutura lógica, independentemente
de espaço e tempo. O Eu não existe apenas nem primordialmente na intuição,
isto é, na autointuição da 1ª pessoa. A estrutura lógica do Eu não é, de alguma
ma­neira, especificamente minha. Eu mesmo posso e devo compreender outros
entes sob essa mes­ma estrutura. O “Eu” é algo que tenho em comum não apenas
com outras pessoas indivi­du­ais, mas também com estruturas como a família, o
Estado ou o espírito absoluto; e também com estruturas lógicas como o concei-
to, o silogismo, a ideia e a Ideia absoluta.
Uma vez que compreendo isso, torna-se claro que eu nem sou
um ente que é um Eu de maneira mais eminente. Evidentemente, o Es-
pírito Absoluto cumpre e realiza essa estrutura de forma mais perfeita
que nós, sujeitos finitos. O Eu verdadeiro é necessariamente a estrutura
lógica do Eu, isto é, a Ideia Absoluta, que, no espaço e no tempo, reali-
za-se no Espírito Absoluto. Eu enquanto espírito individual, portanto,
só sou um Eu por minha participação neste Eu lógico ou por sua pre-
sença ou sua inabitação em mim. Com isso, eu não tenho mais a tarefa
interminável de, como ser finito, tornar-me livre por mim mesmo. Esse
completar da liberdade eu posso e devo deixar tranquilamente para o
Espírito Absoluto, que, diferentemen­t e de espíritos finitos, é capaz de
realmente efetuá-lo e, na verdade, já o fez. Diz Hegel: “O homem é em si
destinado à suma liberdade”, mas apenas enquanto ele é “destinado a ter
sua relação absoluta para com Deus enquanto espírito, enquanto tem
este espírito morando em si”. “[...] o homem sabe sua relação ao espíri-
to absoluto como sua essência” (Enc. § 482, nota). – É justamente isso
que se expressa pelo fato que a liberdade aparece, no sistema hege­liano,
pela primeira vez como característica do conceito lógico, depois surge,
na filosofia real, no espírito subjetivo, isto e, nos indivíduos, e, depois,
realiza-se em estruturas espirituais supra­in­dividuais e suprassubjetivas:

110
no espírito objetivo e absoluto. A liberdade nossa, de seres hu­m anos fi-
nitos, é apenas um estágio intermediário no grande caminho da realiza-
ção da suma liberdade. Nós não somos os protagonistas e autores, nós
somos os participantes nessa camin­h ada, e nossa felicidade e satisfação
existencial não estão em primeiro lugar, naquilo que individualmente
conquistamos, mas na perfeição até a qual aquele espírito maior no qual
par­ticipamos se desenvolveu. A liberdade é uma característica da razão,
e a razão é universal. Ela é nossa, mas não no sentido que pertence a nós,
e sim no sentido que nós pertencemos a ela, que nós temos uma relação
com ela que define nossa essência, isto é, pela qual somos o que somos.
Essa visão é grandiosa e genial. Talvez não seja aceitável para todos,
mas certamente é uma opção teórica que resolve vários problemas – em-
bora também crie alguns. A meu ver, o ponto problemático não é tanto a
questão da nossa relação com o Absoluto. A grande dificuldade aos meus
olhos são as formas da liberdade no percurso do desenvolvimento a partir
da liber­da­de do espírito subjetivo até chegar ao Espírito absoluto, isto é, às
formas do espírito objetivo. Em consequência de sua concepção de liberda-
de, Hegel defende que a liberdade e a existência nossa não dependem ape-
nas de nossa relação essencial com o Absoluto. Sua efetivação em espaço e
tempo também depende de nossa relação com formas não absolutas, mas
supraindi­vi­duais do espírito, estruturas que são objetivamente reais em es-
paço e tempo, assim como o direito, a família, a sociedade civil e o Estado.
Hegel não pula, por assim dizer, do espírito subjetivo diretamente para o
espírito absoluto. Ele estabelece essa relação mediante elos interme­diários,
por um desenvolvimento dialético contínuo.
Isso, em primeiro lugar, dá muita credibilidade a seu projeto. Hegel
não introduz o Absoluto como “um tiro saindo da pistola”, como ele mesmo
diz. Ele aproxima-se passo a passo da noção de um Espírito que não seja
nem subjetivo, nem apenas intersubjetivo/objetivo, mas absoluto. Também
acho muito importante e essencial para toda filosofia posterior a grande
mensagem que resulta disso: nós não realizamos nossa existência em isola-
mento. Nós somos aquilo que somos não apenas por nós mesmos, mas pelas
relações intersubjetivas, pelas estruturas do direito, da família, da socieda-
de civil e do Estado aos quais pertencemos, pela nossa cultura e pelas nos-

111
sas estruturas econômicas e políticas. Essa é, certamente, uma das grandes
contribuições de Hegel ao pensamento filosófico.
Porém, principalmente no caso do Estado, isso também leva a con-
sequências problemáticas, pois Hegel não apenas diz que o indivíduo pre-
cisa das estruturas políticas para realizar sua liberdade plena. Ele defende
que o Estado é um todo espiritual próprio, um espírito próprio que realiza
a estrutura do conceito. Mas se o Estado é o todo, o todo, evidentemente,
não é mais a unidade de indivíduos e Estado. Hegel não aceita essa relação
de opostos entre o indivíduo e o Estado. O indivíduo é integrado ao Estado,
ele não tem uma posição autônoma diante do Estado. Por consequência,
o Estado hegeliano tem certa tendência de subordinar o indivíduo a seus
interesses e decisões. Ele é “o absoluto na terra” que reconhece o indivíduo
e seus direitos, mas se relaciona com ele de cima para baixo. Certamente
não é justo afirmar, como Popper, que Hegel seja um dos pais do totalitaris-
mo, mas certamente tampouco defende a visão liberal que é o fundamento
das democracias contemporâneas. Por isso, inclusive, Hegel se opõe ao voto
direto. Os indivíduos não devem participar no Estado como átomos, mas
como já socialmente organizados e articulados através de suas corporações.
A dificuldade do Estado hegeliano é aumentada pelo fato que He-
gel concebe a liberdade como forma da autoafirmação da vontade. Como
já vimos, o Estado não é apenas um “lugar” ou um “lar da liberdade”, ele é,
ele mesmo, sujeito livre. Portanto, suas estruturas devem ser estruturas da
autoafirmação. Isto é, quando o espírito objetivo entrou na esfera do Estado,
suas relações dialéticas deixaram de ser conflituosas – como ainda são na
sociedade civil, que não é um sujeito autônomo por sua vez. Por isso, Hegel
manifesta-se decididamente contra tais estruturas políticas que institucio-
nalizam a desconfiança e a suspeita entre os diferentes órgãos do Estado.
Ele critica a divisão dos poderes ou o sistema de controles e balanços que
os Estados Unidos, pela primeira vez, tinham estabelecidos. Aparentemen-
te, Hegel também não gostou do parlamentarismo britânico (e, consequen-
temente, do contemporâneo), que institucionaliza o conflito pela disputa
perene entre governo e oposição e pela existência dos partidos. Um Estado
com tais estruturas, para Hegel, é hostil contra si mesmo. Ele é fundado na
desconfiança mútua, não apenas dos cidadãos, mas dos próprios órgãos do

112
Estado. Tal estrutura não é expressão da autoafirmação da vontade livre que
a si mesma quer, que está em consonância consigo mesma.
Diante das experiências históricas da época de Hegel, até agora pa-
rece desejável “reconflitualizar” o Estado hegeliano. Certamente, o próprio
Hegel oferece o arsenal metódico para isso, pois ele talvez seja o maior pen-
sador do conflito, do antagonismo e da contradição na tradição ocidental da
filosofia – pelo menos depois de Heráclito. Mas, para isso, seria necessário
abrir mão do conceito hegeliano da liberdade como, em primeira instância,
algo lógico e, em última instância, algo supraindividual, pois, desta maneira,
a liberdade do sujeito individual finito sempre permanecerá algo interme-
diário, algo a ser suprassumido. Para democratizar Hegel, me parece, seria
necessário voltar a Fichte e defender a liberdade como algo radicalmente
meu, isto é, do Eu da 1ª pessoa, do sujeito finito, egocêntrico, sem abrir mão
da grande inteligência hegeliana que diz que nunca tenho essa minha liber-
dade por mim mesmo, porque ela não é uma propriedade particular. Seria,
então, a tentativa de pensar o Eu fichteano não a partir da intuição, mas da
discursividade ou, mais concretamente, a partir do discurso real, ou seja,
da comunicação com outros. Num tal modelo, talvez fosse possível salvar
as grandes inteligências de Hegel sobre o condicionamento social, cultural
e político da existência subjetiva, como também sobre sua constituição his-
tórica – sem, contudo, dissolver a exigência da moral numa ordem sucessiva
de concepções (existenciais) da liberdade; e sem dissolver o sujeito indivi-
dual em formas supraindividuais de subjetividade.
Seria este, então, o ponto que quero reivindicar contra Hegel: o su-
jeito sempre é sujeito encarnado, sujeito num corpo em espaço e tempo;
um eu que constitui um centro (em espaço e tempo), um eu cêntrico, isto
é, egocêntrico; um eu que, consequentemente, vê o mundo e age no mundo
sempre a partir desse centro, ou seja, numa perspectiva individual, de um
ponto de vista dentro do mundo – e não numa visão universal, global, num
olhar “de lugar nenhum”. Não há sujeito antes deste, isto é, sujeito puramen-
te lógico, universal, acima de toda perspectividade e centricidade; nem há
sujeito depois, ou seja, sujeito real transindividual ou transcorporal, a não
ser num sentido metafórico. Há, sim, concepções universais da subjetividade
e da liberdade; e há, sim, comunidades de sujeitos nas quais estes assumem

113
responsabilidades e fazem exigências em comum. Mas ambos se baseiam
no sujeito encarnado, no eu cêntrico – nem o precedem nem o superam. O
sujeito individual, egocêntrico, continua sendo a subjetividade originária,
intransponível e irredutível. Pretendo mostrar isso na próxima seção.

TERCEIRA OBSERVAÇÃO CRÍTICA: A INSUFICIÊNCIA DA


LIBERDADE COMO PRINCÍPIO SUPREMO
A terceira crítica que quero levantar contra a concepção hegeliana
da liberdade não se limita a Hegel, mas é uma crítica ao pensamento do
Idealismo alemão como um todo. Ela não diz respeito às suas implicações
morais ou políticas, mas ao próprio conceito da liberdade – e ao lugar siste-
mático que é dado a ela, como fim supremo de toda teoria filosófica. O pro-
blema da liberdade tem pelo menos quatro aspectos (os primeiros já foram
mencionados nas seções anteriores): (i) o aspecto da 1ª pessoa: sempre é
um Eu que é livre, e quando eu sou livre, eu sou de certa forma mais Eu que
quando não sou. Quanto mais livre eu sou, tanto mais sou Eu quem decide
e age; (ii) o aspecto eleitoral: liberdade tem a ver com escolha. Onde não
há escolha, onde não há opções diferentes, não há liberdade; (iii) o aspecto
dinâmico: liberdade tem a ver com a potência de mudar algo no mundo.
Uma liberdade que é meramente interna, que apenas decide intelectual-
mente sem efetuar nada fora do intelecto, não é completa, não é liberdade
verdadeira; (iv) o aspecto racional: liberdade tem a ver com razões. Se eu
ajo ou decido por mero acaso, sem razão nenhuma, eu não sou livre. Um
ato sem deliberação alguma é meramente impulsivo, não livre; (v) o aspecto
cosmológico: a liberdade sob os primeiros quatro aspectos precisa ser com-
patível com a estrutura do cosmo como um todo. A questão fundamental
é aquela da determinação causal da natureza: se essa for total, não parece
haver espaço para o primeiro e o segundo aspecto da liberdade. Num deter-
minismo universal, não pode ser Eu o autor ou a fonte verdadeira de minhas
ações, pois essas acontecem por causalidade natural, e a cadeia das razões
vai além de mim até o início do mundo – ou ao infinito, se o mundo for eter-
no. E, se tudo está completamente definido pela causalidade natural, não há
mais espaço para a escolha.
Esses cinco aspectos não são meras intuições. Cada um capta algo

114
que pode ser teorica­men­te explicitado como exigência imprescindível de
nossa compreensão do mundo ou de nós mesmos. Isso não poderá ser de-
monstrado aqui. Apenas quero indicar que esses cinco pontos, a meu ver,
têm mais força do que aparece aqui, onde, por razões de espaço, simples-
mente os listo, aparentemente de forma arbitrária.
Com relação a esses pontos, a concepção hegeliana da liberdade não
consegue superar realmente as limitações do quadro idealista – e aqui in-
cluo Kant, pois sua concepção da liberdade é fundamentada completamen-
te no aspecto idealista de sua filosofia, não no aspecto realista empírico.
Todos os idealistas alemães respondem bem aos desafios do primeiro e do
último ponto: Todos explicitam que a liberdade é liberdade de um eu e que
este eu – o Eu – precisa ser compreendido essencialmente como livre. E to-
dos respondem ao desafio de compatibilizar essa liberdade do Eu com a
ordem do cosmo. As respostas dadas, naturalmente, podem ser criticadas,
mas pelo menos há propostas teóricas a partir dos quais os respectivos pro-
blemas podem ser resolvidos.
Com relação aos outros três pontos, a situação é mais difícil. Kant afir-
ma o quarto ponto, o aspecto racional da liberdade, e o coloca no centro de
sua teoria. O recurso à racionalidade da liberdade explica como a liberdade
pode ser minha, isto é, da pessoa: eu sou livre enquanto ser racional. Sou li-
vre exatamente porque minha razão determina minha vontade. E quando ela
não faz isso, quando minha vontade não é determinada por minha razão, eu
não sou livre, não sou autônomo. Infelizmente, com isso, Kant não consegue
mais dar conta do segundo e do terceiro aspecto da liberdade: liberdade não
tem mais a ver com a escolha entre opções alternativas, pois ela opta sempre
exclusivamente pela moralidade. Liberdade é simplesmente autonomia, e a lei
que a razão dá a si mesma é simplesmente a lei moral. Depois, Kant deu-se
conta de que ele precisava explicar também o aspecto eleitoral da liberdade.
Para isso, ele introduziu, na Metafísica dos Costumes, o livre-arbítrio. Mas este
permanece um elemento ao lado da autonomia, desvinculado dela. Kant não
explica como o sujeito pode escolher entre livre-arbítrio e autonomia: não há,
em seu sistema, lugar para tal escolha de ordem maior. Nem pode Kant expli-
car como o sujeito supera o livre-arbítrio e torna-se autônomo. Não há transi-
ção entre os dois, nem teórica nem prática.

115
Como a liberdade em Kant é apenas autonomia, o aspecto dinâmico
da liberdade também perde sua importância: a vontade não se torna me-
nos livre pelo fato que ela, eventualmente, não pode realizar-se; ou pelo fato
que, eventualmente, a ação que ela inicia tem outras consequências que as
previstas e desejadas. Conta apenas a qualidade (moral) da decisão ou da
postura interna (das Gesinnung).
Os Idealistas depois de Kant sentiram as deficiências de sua teoria
e tentaram superá-las. Para simplificar bastante a história que se seguiu,
Fichte deu ênfase principalmente ao aspecto dinâmico: ele queria mostrar
como a liberdade realiza-se no mundo e, com isso, como ela realiza-se: como
o sujeito não apenas é livre, mas torna-se livre num processo inconcluso de
interação com seu mundo e com outros sujeitos. Portanto, sua liberdade
não é uma liberdade da Gesinnung, mas, antes de tudo, uma liberdade do
agir. Schelling, em suas Investigações filosóficas sobre a essência da liberdade
humana, reivindicou, contra Kant, o aspecto eleitoral da liberdade: ser-livre
não pode ser idêntico a ser-moral, pois liberdade também tem a ver com
a escolha entre moralidade e imoralidade.5 Ambos os pensadores, de certa
forma, introduziram um aspecto irracional na liberdade. Ou, para formular
com mais cuidado, eles aceitaram que a liberdade não é completamente
fundamentada ou realizada pela razão. Em Schelling, a primeira decisão do
sujeito, na qual ele decide, não é mais guiada por uma lei pressuposta, aprio-
risticamente dada pela razão. Portanto, não é mais autônoma no sentido
kantiano. E em Fichte, a liberdade, no processo de sua realização, torna-se
dependente do mundo, da sociedade e da história junto com suas contin-
gências. Consequentemente, a razão, enquanto tal, não pode garantir por si
só a liberdade – e, assim, não há nunca liberdade plenamente realizada, mas
apenas um processo de aproximação infinita.
Hegel, como já foi indicado, não está contente com isso. Ele volta,
nesse aspecto, a Kant, quando fundamenta a liberdade na racionalidade
pura. Ele até radicaliza Kant quando desvincula essa racionalidade do su-
jeito individual e explica a liberdade como algo lógico, como uma determi-

5
Como disse, essa apresentação é muito simplificada. Fichte também se deu conta da importância do
aspecto eleitoral da liberdade, como Schelling se deu conta de seu aspecto dinâmico. Se aqui atribuo
apenas um aspecto a cada um, quero indicar com isso apenas que esse aspecto está no foco principal da
atenção do respectivo pensador (na obra mencionada).

116
nação do pensar puro. Ao mesmo tempo, Hegel, naturalmente, não perde
de vista as lições de Fichte e Schelling: os aspectos dinâmico e eleitoral pre-
cisam ser incorporados à concepção da liberdade. Por isso, ele desenvolve,
por primeiro, o que faltava em Kant: uma teoria da transição entre livre-ar-
bítrio e liberdade verdadeira. Essa teoria, como já mencionamos, encontra-
-se na Enciclopédia e na Introdução à Filosofia do Direito. E, por segundo,
Hegel desenvolve uma teoria do desenvolvimento da liberdade, de sua reali-
zação sucessiva na história. Mas, ao mesmo tempo, Hegel evita o problema
da irracionalidade da liberdade em Fichte e Schelling, pois toda forma de
liberdade, inclusive o livre-arbítrio, é fundamentada no conceito lógico da li-
berdade; e a realização plena desta no processo de seu desenvolvimento his-
tórico é garantida pela necessidade do desdobramento dialético desse con-
ceito plenamente racional. Há contingência. Esse é o passo genial pelo qual
Hegel vai para além de Kant: apesar de sua fundamentação da realidade na
racionalidade pura da Lógica, Hegel consegue dar espaço para o contingen-
te. Ao mesmo tempo, a contingência nunca pode ameaçar a racionalidade
do mundo e da história como um todo, pois ela apenas tem o poder que a
própria razão, o próprio lógos concedeu-lhe, para este poder exteriorizar-se
e realizar-se nessa exteriorização.
Mas, com isso, o lugar sistemático que Hegel dá aos aspectos eleito-
ral e dinâmico da liberdade, é apenas o espaço intermediário entre a liber-
dade lógica, fundamental, apriorística, “antes da criação” do mundo con-
tingente, e a liberdade plenamente realizada no mundo pelo decorrer da
história. É, para assim dizer, a liberdade que se processa entre a liberdade
da Ideia absoluta na Lógica e a liberdade do Espírito absoluto (ou, mais exa-
tamente, da Ideia absoluta no Espírito absoluto) na Filosofia real. Já discuti
antes como a dimensão eleitoral da liberdade hegeliana reduz-se em cada
passo de seu desenvolvimento real: no final das contas, resta ao indivíduo
apenas a decisão pelo Estado em qual ele – contingentemente, mas inaltera-
velmente – nasceu (ou para o qual, por alguma contingência, ele se mudou,
como o próprio Hegel mudou-se para a Prússia). E tentei mostrar como o
aspecto dinâmico da liberdade real garante, de fato, a transição entre livre-
-arbítrio e liberdade verdadeira que faltava em Kant (mas, como critiquei,
perde nisso a distinção entre facticidade e normatividade moral). Porém,
como esse processo é, por um lado, puramente necessário com relação à

117
dialética subjacente, por outro lado, é puramente contingente com relação
aos tempos e lugares, aos povos, Estados e indivíduos nos quais ele se re-
aliza; Hegel também não consegue dar conta daquela liberdade de ordem
maior pela qual o sujeito se decide entre as diferentes formas da liberdade
e entre seus dois extremos, o livre-arbítrio e a liberdade verdadeira plena.
Pior ainda, como também já indicado, Hegel parece perder, pelo
menos parcialmente, um outro aspecto da liberdade que todos os três
pensadores anteriores respeitavam: o aspecto da pessoa, do eu egocêntri-
co. Evidentemente, Hegel continua falando do Eu, continua referindo-se
à evidência da autoconsciência, mas explicita essa evidência de maneira
discursiva, conceitual: por um conceituo universal da subjetividade e da
liberdade. Com isso, o Eu perde sua exclusividade ou sua centricidade: o
Eu hegeliano não é mais o Eu egocêntrico; ou, para melhor dizer, Hegel
explica essa visão egocêntrica do Eu como um mal-entendido dele sobre si
mesmo, como uma autocompreensão incompleta e deficiente. O concei-
to lógico já é um Eu; e o Eu plenamente realizado e plenamente livre é o
Espírito que não é mais de um eu cêntrico, que ocupa um específico lugar
no mundo, mas que é Espírito objetivo, transindividual e “transcêntrico” e,
em última instância, Espírito absoluto.
Quando insistimos, contra Hegel, no primeiro aspecto da liberdade,
insistimos, com isso, na centricidade do Eu. Insistimos que o Eu da pessoa
não pode ser dissolvido ou suprassumido em racionalidade ou no conceito:
no lógos da Ciência da Lógica. Kant garantiu isso por seu realismo empíri-
co: o intelecto pode fornecer apenas as formas, o conceito permanece va-
zio sem a intuição, e essa, por sua vez, se baseia na afeição. Contudo, quem
pode ser afetado é apenas o sujeito individual, cêntrico, que está em contato
causal com seu mundo circundante – não o sujeito lógico, puramente inte-
lectual. Como se sabe, Kant também não resolveu o problema de maneira
satisfatória, pois, por causa de seu dualismo, não conseguiu mais dar conta
daquela afeição do sujeito pela coisa-em-si que constitui a contrapartida da
espontaneidade do intelecto. Mas parece que a solução de Hegel também
não funciona, porque uma liberdade que me liberta de mim mesmo, que
exige que eu abandone minha egocentricidade, não pode ser mais minha.
Por outro lado, a liberdade não pode ser apenas minha, não pode ser

118
algo que tenho por mim só, em abstração de qualquer outra realidade, outro
objeto ou outro sujeito. Liberdade não pode ser pura autonomia – sem os
aspectos eleitoral e dinâmico. Portanto, o Eu, se ele deve ser Eu livre, de fato
precisa transcender-se. E isso significa: ele precisa transcender justa­mente
sua egocentricidade. Nisso, Hegel estava certo. Mas esse transcender não
pode assumir a forma da suprassunção num Eu lógico-conceitual ou num
Espírito objetivo ou absoluto – esse era o erro de Hegel. Para realizar-se, o
eu egocêntrico-livre precisa transcender-se. Mas o fim desse transcender,
a orientação desse movimento de superar a si mesmo, não pode ser uma
liberdade transcêntrica, pois liberdade só pode ser liberdade de um eu cên-
trico. Mas, se isso é o caso, se a liberdade leva o homem para além de si
mesmo e, ao mesmo tempo, ela não pode ser ela mesma esse além, pois,
como liberdade acêntrica, perderia seu sentido, a liberdade não pode ser
mais o princípio supremo da filosofia e, com isso, a autocompreensão de
nossa existência. Não somos, em primeiro lugar, sujeitos livres.
Também podemos explicar assim: o Eu, enquanto Eu livre, não pode
ser explicado apenas pela racionalidade, de maneira discursiva, por um con-
ceito lógico do Eu. Mas, com isso, o Eu que é Eu livre não pode ser explicado
por si só, pois a razão é o único fundamento que ele tem por si só. O Eu
precisa ser pensado a partir de seu transcender-se – justamente em virtude
daquilo em que ele é mais Eu: em sua liberdade.
Mas, com isso, a própria liberdade não pode ser pensada a partir de
si só ou por ela mesma. Com isso, a liberdade transcende a si mesma – ou
ela nos obriga a transcendê-la. A liberdade não pode ser o conceito supremo
da filosofia, como ela era em todo o Idealismo alemão, inclu­sive em Kant. Os
aspectos fundamentais da liberdade só podem ser realizados num contexto
que transcende à liberdade. Não é apenas o Eu que precisa transcender a
si mesmo e inserir-se no mundo, na sociedade e na história para realizar
sua liberdade, como bem mostraram Fichte, Schelling e Hegel. A própria
liberdade precisa transcender-se. Ou, para formular de maneira menos mís-
tica: o homem precisa superar o conceito da liberdade como conceito su-
premo da compreensão de sua existência. A liberdade, na sua realização,
exige ao indivíduo que ele transcenda a si mesmo em sua egocentricidade.
Isso, Fichte, Schelling e, sobretudo, Hegel já compreenderam. Mas eles não

119
compreenderam que, destarte, a liberdade não pode mais ser o fim último
do homem. O homem só pode realizar sua liberdade se ele larga mão da
absolutez da liberdade, pois a liberdade absolutizada destrói a si mesma:
nela se dissolve pelo menos um de seus aspectos essenciais: seja o aspecto
eleitor (e positivo) como em Kant, seja o aspecto racional como em Fichte e
Schelling, ou seja, o aspecto da pessoa egocêntrica, como em Hegel. Isso era
o resultado geral e mais fundamental de nossa investigação.
Portanto, a liberdade apenas pode existir como momento: como um
momento, o momento egocêntrico, nesse processo do transcender-se do
Eu. A liberdade articula o aspecto que sou eu quem transcende a si mesmo,
quando transcendo a mim mesmo.
Mas qual é o outro aspecto? O que é aquilo para o qual ou em direção
ao qual o Eu tran­scende a si mesmo? Ironicamente, este outro aspecto tam-
bém é liberdade – e talvez seja por isso que os idealistas não viram a solu-
ção. O Eu realiza sua liberdade transcendendo-se a outra liberdade: a outro
Eu livre. Não pode ser outra coisa, pois apenas a liberdade pode desa­fiar a
liberdade a sair de si mesma. Um mero objeto, isto é, um não-eu, constitui
apenas uma oposição ao sujeito livre, ou seja, algum tipo de negação (como
bem mostrou Fichte) – mas não de transcendência. O Outro do Eu livre pre-
cisa ser outro Eu livre.
Contudo, essa alteridade não pode ser pensada como nos idealis-
tas alemães: como outra instância da liberdade, pois, com isso, a liberdade
tornar-se-ia um conceito universal que se aplica igualmente a mim como
ao outro sujeito. A lição que aprendemos foi que, com isso, nós perdemos
o sentido da liberdade: seu aspecto fundamental da egocentricidade. A
liber­da­de precisa ser pensada como radicalmente egocêntrica, como li-
berdade de tal Eu que apenas eu sou para mim. Portanto, a outra liberda-
de com direção à qual eu preciso transcender-me, precisa ser concebida
também como tal liberdade egocêntrica. Eu preciso realmente transcen-
der minha própria existência em direção à egocentricidade do outro eu
livre – e não apenas compreendê-lo intelectualmente sob um conceito ge-
ral de liberdade ou de subjetividade. Ou seja: preciso transcender minha
existência à alteridade irredutível do outro, que é radicalmente desigual a
qualquer outra coisa, inclusive a mim mesmo. A “liberdade”, portanto, não

120
pode ser o conceito universal e idêntico que aplico tanto a mim quanto a
esse outro. Ela é o nome pelo fato que eu sou apenas eu, egocentricamen-
te, desigual a tudo; e o Outro é “igual” a mim nessa desigualdade radical:
como outra centricidade – não apenas em espaço e tempo, mas de espaço
e tempo -, que vê o mundo a partir de sua perspectiva inalienável e insubs-
tituível; pois, se eu me coloco realmente no lugar do outro, ele não pode
mais ocupar esse lugar, pois não podemos ocupar exatamente o mesmo
espaço (no mesmo tempo). Meu Eu aqui-e-agora é apenas meu aqui-e-ago-
ra – e aquele do outro é apenas o dele. Não posso conhecer o aqui-e-agora
de outro Eu cêntrico. Apenas posso reconhecer que ele também é centrici-
dade, que ele também tem seu aqui-e-agora e, portanto, suas perspectivas
e visões do mundo próprias são inigualáveis. Esse reconhecer, então, é o
transcender da liberdade no qual ela se realiza.
Evidentemente, a reflexão abstrata vai subsumir ambos os sujeitos,
aquele que sou eu e aquele que é o outro, sob tal conceito geral da liber-
dade. E, naturalmente, a teoria precisa trabalhar com tal conceito (e nós
aqui, neste texto, usamos tal conceito), pois ela é um empreendimento
discursivo. Mas a realidade ou a realização da liberdade não pode ser tal
reflexão abstrata – justamente porque a liberdade não pode existir, isto é,
não pode ser real apenas como conceito, como pensava Hegel. E quando
efetuamos a abstração reflexiva do conceito da liberdade, fazemos isso
à base da liberdade original, que é “a-conceitual”, que não apresenta um
predicado do sujeito, mas expressa seu modo de ser egocêntrico (mais
precisamente sob o aspecto volitivo, mas nisso não posso entrar aqui).
Portanto, um conceito teórico adequado da liberdade precisa refletir que
a própria abstração conceitual que a reflexão sobre a liberdade inevitavel-
mente produz é inadequada justamente com vistas a sua conceitualidade
abstrata e sua universalidade discursiva.
Ao transcender-se do Eu livre rumo ao outro Eu livre no ato original
do reconhecimento de sua liberdade irredutível (não apenas praticamen-
te, mas também teoricamente) podemos chamar a conversão do Eu ou de
sua consciência, pois, nesse ato, o sujeito não apenas se vira para o outro
e olha para ele para conhecê-lo; ele também não apenas se coloca no lugar
do outro e assume sua perspectiva (isso ele nunca pode fazer na realidade,

121
como mostramos, sempre se trata de uma conjectura). Ele olha para o ou-
tro reconhecendo que este tem seu olhar próprio das coisas, que efetua seu
próprio conhecer, querer e agir, que é irredutível a ele ou a qualquer outra
coisa no mundo. Mas isso, evidentemente, ele não pode ver: a subjetividade
do outro não é algo objetivo. Nunca vejo no mundo conhecer e querer, nunca
vejo liberdade, como Kant bem notou. Conheço conhecer, querer e liberdade
apenas da minha própria perspectiva, como conhecer, querer e liberdade
meus, da pessoa. Portanto, quando reconheço a liberdade do outro, preciso
converter ao outro o que sou mais intimamente Eu – e conceder a ele que
ele é eu como eu sou; que ele é igualmente desigual, que ele é igual a mim
justamente nisso: que sua identidade mais íntima não pode ser captada por
conceitos universais – e que, consequentemente, eu não posso, em última
instância, compreender o outro eu, mas apenas o respeitar.
Essa conversão para o outro eu cêntrico livre tem mais um aspecto:
quando realmente o aceito como ser livre, isto é, como ser que é vontade
autodeterminante e autoafirmativa, eu aceito isso não apenas teoricamente
ou cognitivamente; aceito isso (inevitavelmente, pelo menos no ato originá-
rio da conversão) volitivamente ou praticamente. Afirmo a vontade livre do
outro não apenas em meu (re-)conhecer, mas também em meu querer: eu
quero que a liberdade do outro se realize – assim como a minha. Eu quero
bem ao outro: o outro aspecto da conversão de meu eu à liberdade do outro
é a benevolência. Como nunca posso conhecer (completamente) a vontade
do outro, justamente por causa da alteridade de sua liberdade, essa bene-
volência permanece aberta: ela não pode se tornar um catálogo de valores
morais; Tampouco pode ser institucionalizada em alguma eticidade objeti-
va. Não posso saber de antemão qual é o bem do outro. Não posso, a partir
de conceitos universais, decidir para ele o que seja seu bem. Preciso respei-
tar que ele determine sua vontade livremente, egocentrica­mente, irreduti-
velmente. Pois é esse bem, o bem da autodeterminação livre do outro, que
quero quando quero bem a ele na conversão da liberdade.
Isso não implica que aceito e afirmo qualquer finalidade e qualquer
ato do outro. Eviden­te­mente preciso muitas vezes impedir outros de reali-
zar seus fins, pois estes poderiam violar meus direitos ou direitos de outras
pessoas. A conversão da consciência não é a abnegação da própria cons-

122
ciência, da própria vontade e do próprio conhecer. O reconhecimento do
outro não é a subordinação a ele. Mas implica, sim, que não aceito apenas
o fato de que ele é livre, e sim a dimensão normativa dessa liberdade: que
ele tenha o direito de realizar sua liberdade. E este, para mim, na conversão
original, não é apenas um direito abstrato, mas é minha vontade concreta:
minha benevolência direcionada ao outro. Mas esse querer da realização
da liber­dade do outro não é incondicionado. Ele é irrevogável e irredutível,
mas pode – e precisa – ser balanceado pelo respeito e pela benevolência por
outras pessoas, assim como por mim mesmo.
A liberdade, portanto, não pode ser o princípio mais fundamental da
existência humana e da compreensão da subjetividade. O mais fundamental
é o transcender-se da liberdade rumo à outra liberdade na conversão do Eu.
O próprio Eu não tem seu sentido, sua razão e sua essência em si e por si
mesmo, mas nesse ato originário de transcender-se. A liberdade continua
um conceito muito fundamental da filosofia, pois é justamente o eu livre
que se transcende rumo a outro eu livre no respeito por seu ser livre e na
benevolência por sua livre vontade. Porém, o princípio mais fundamental
não é mais a liberdade, mas a própria conversão do meu conhecer e querer
no reconhecimento e no bem-querer do outro: o amor.6

6
Essa palavra, em seu uso cotidiano, tem muitas conotações românticas, eróticas, religiosas e emo-
cionais que fazem com que o filósofo hesite em usá-la em seu discurso sóbrio, racional, científico. Mas
é essa a única palavra que a linguagem comum tem para a conversão do eu cêntrico livre para outro eu
cêntrico livre no respeito e na benevolência.

123
WAHRHEIT UND VERSTÄNDIGUNG RADIKALE
INTERPRETATION ALS VERSTÄNDIGUNGSMOTI-
VIERTES HANDELN
Prof. Dr. Marcel Niquet1

TRUTH AND UNDERSTANDING: RADICAL INTERPRETA-


TION AS A FORM OF HERMENEUTICAL ACTION
Abstract: According to D. Davidson Radical Interpretation must be
understood as a truth-based semantics of reconstruction conceptually re-
mote languages. The paper tries to show that this interpretative activity can
be understood as an explicitly hermeneutical endeavour, namely as a form of
a Radical Hermeneutics ´from scratch´. Furthermore such a hermeneutics
must be understood as a Hermeneutics of shared or basic understandings.

EINLEITUNG
Was hat Verstehen mit Wahrheit zu tun? Und was hat die Idee ei-
ner Art von Theorie, die, als formale Bedeutungstheorie für eine gegebene
natürliche Sprache L, Begriffe des Verstehens und der Wahrheit in engste
Abhängigkeit setzt, mit Hermeneutik zu tun?
Ich glaube, daß man dem sprachphilosophischen Werk D. Davidsons
eine interessante Antwort auf letztere Frage entnehmen kann, damit aber
auch eine Antwort auf die erste Frage erhält, denn es gehört zum Kern der-
jenigen Intuitionen, die Davidsons Theorie radikaler Interpretation erläu-
tert, daß wir nur dann das sprachliche (und nicht-sprachliche) Verhalten
von Sprechern (oder Aktoren) verstehen können, wenn wir (als Interpreten)
eine große Menge von Überzeugungen und Einstellungen mit ihnen teilen,
und die meisten dieser Überzeugungen wahr sind (Vergleichbares gilt für

1
J. W. Goethe-Universität, Frankfurt am Main. Professor visitante na Universidade Federal do Ceará
(UFC) / CNPq.
das Verstehen unserer selbst als Sprecher und Aktoren).
Und eine davidsonianische Antwort auf die zweite der oben expo-
nierten Fragen ließe sich in Form von zwei vorgreifenden Thesen angeben:
(1) Die Situation der radikalen Interpretation, der Interpretation
„from scratch“, ist eine Situation hermeneutischen Verstehens;
(2) Das dem radikalen Interpreten abgeforderte Verstehen ist kri-
tisch-normatives Verstehen, d.h. es ist intern mit Geltungsbeurteilungen im
Hinblick auf Wahrheit und Rationalität von Überzeugungen und Handlun-
gen verknüpft.
Nun ist es freilich schon fast zu einem Gemeinplatz geworden, Da-
vidson zu einer Art von Hermeneutiker zu machen. Seit D. Foellesdal Mitte
der siebziger Jahre Quine und Davidson als bedeutende Hermeneutiker be-
zeichnet hat, hat sich die Zahl derer, die dieser Einschätzung folgen, stetig
vermehrt: die deutsche Diskussion widmet sich mittlerweile insbesondere
der Rekonstruktion des Interpretationsbegriffs und seiner Groß-Implikatio-
nen (G. Abel; H. Lenk), und aus dem Lager der Davidson-Kommentatoren
(B. Ramberg; S. Evnine; K. Stüber)2 ist zu vernehmen, Davidson habe die
Hermeneutik sprachlichen Verstehens quasi neu begründet.
Schließlich hat Gadamer selbst in der 5. Auflage von „Wahrheit und
Methode“ in einer Fußnote der Einschätzung Ausdruck verliehen, auch bei
Davidson werde so etwas wie die Idee eines „Vorgriffs der Vollkommen-
heit“ untersucht, freilich, wie Gadamer scheint, „auf zu enger semantischer
Basis“.3 So richtig mir die Einsicht zu sein scheint, Radikale Interpretation
sei eine Art oder Form von Hermeneutik - z.b. eine systematische Herme-
neutik des Verstehens sprachlichen Sinns -, findet sich doch bei fast allen
diesen Theoretikern keine Bezugnahme auf einen Begriff, der prädestiniert
scheint, die genuin hermeneutische Tiefenstruktur Davidson´scher Radi-
kaler Interpretation über Gemeinplatzniveau hinaus zu erhellen - den der
Verständigung.
Wenn Wahrheit und Bedeutung, Verstehen und Charity - Nachsicht -

2
Vgl. Ramberg 1989, S. 64 ff. sowie Stüber 1993, S. 134 ff, bes. 142 ff und S. 184 ff. Vgl. auch: Evnine 1991,
S. 94 ff. Zum Gesamtkomplex vgl. auch die Aufsätze in: LePore 1986, S. 29 ff. und bes. S. 356 ff.
3
Vgl. Gadamer 1976, S. 300, Fn. 224.

126
Hand in Hand gehen, dann auch Radikale Interpretation und Verständigung
- könnte man vermuten. Faßt man nämlich ´sich verständigen´ als (min-
destens) 3-stelliges Prädikat in folgenden prototypischen Verwendungskon-
texten auf:
(a) Interpret A versteht den wortwörtlichen (oder gemeinten) Sinn
einer satzartigen Äußerung eines fremden Sprechers B, indem A sich mit B
in einem Interpretationskontext über diesen Sinn verständigt; sowie
(b) Interpret A verständigt sich mit Sprecher B darüber, was in ei-
ner von beiden geteilten Weltsituation der Fall ist, indem A eine Übereins-
timmung mit B hinsichtlich dessen, was in dieser Situation wahr ist, ans
Licht zieht oder bekräftigt;
- dann liegt es nahe, Radikale Interpretation im Sinn des David-
son´schen Gedankenexperiments als eine Form verständigungsmotivierten
hermeneutischen Handelns zu begreifen.
Im Folgenden möchte ich dieser Vermutung nachgehen. Was also, so
ließe sich ergänzend fragen, hat Verständigung mit Radikaler Interpretation
zu tun? Eine zureichende Antwort sollte erläutern, was es mit einer David-
sonianischen Hermeneutik auf sich hat.
Zu diesem Zweck werde ich mich hauptsächlich auf eine Untersu-
chung der allgemeinen Strukturen der Situation radikaler Interpretation
konzentrieren und diejenigen Überlegungen, die Davidson zum generellen
Problem einer nach-frege‘schen Semantik vorträgt, weitestgehend verna-
chlässigen.
Gleiches gilt für seine Ausführungen zum Problem einer ‚einheitli-
chen‘ Theorie von Bedeutung und Handlung und seine Untersuchungen zu
Anwendungen einer an Tarski orientierten Wahrheits-qua-Bedeutungsthe-
orie auf verschiedene Arten von nicht-deklarativen Sätzen in natürlichen
Sprachen oder solchen Arten von deklarativen Sätzen (z.b. Handlungssät-
ze), deren ‚grammatische‘ Formen nicht zwanglos durch den Vorrat an logis-
chen Strukturen der Prädikatenlogik 1. Stufe eingefangen werden können.
Ich werde in drei Schritten vorgehen: Zuerst sind einige einführen-
de Erläuterungen zum Zusammenhang von Wahrheit und Bedeutung, Wa-
hrheits -und Bedeutungstheorie notwendig, sodann werde ich zwei Modelle

127
der Situation radikaler Interpretation (bzw. Übersetzung) untersuchen, abs-
chließend dann in Anknüpfung an das letzte dieser Modelle eine verstän-
digungshermeneutische Lesart der Idee radikaler Interpretation erläutern
und verteidigen.

I
Einen Zusammenhang von Verstehen und Wahrheit kann man sich
an Wittgensteins Satz 4.024 des ‚Tractatus logico-philosophicus‘ klarma-
chen: „Einen Satz verstehen heißt, wissen was der Fall, wenn er wahr ist.
Man kann ihn also verstehen, ohne zu wissen, ob er wahr ist.“
Wittgenstein erläutert das Verstehen als Verstehen eines sprachli-
chen Ausdrucks einer bestimmten Art unter Bezugnahme auf dessen Wa-
hrheitsbedingungen: den Satz ‚Brutus ist der Mörder Caesars‘ versteht man,
wenn man weiß, unter welchen Bedingungen er wahr ist - kennt man diese
Bedingungen, verfügt man über ein Verständnis des Satzes, also über ein
Verständnis dessen, war er (standardmäßig) bedeutet. Kenntnis der Wa-
hrheitsbedingungen ist nicht Kenntnis des faktischen Wahrheitswerts:
Wissen davon, ob Brutus tatsächlich Caesars Mörder ist - Weltwissen - ist
unterscheidbar von dem Wissen, über das man verfügt, wenn man den Satz
versteht - Bedeutungs- oder Wahrheitsbedingungswissen.
Der angedeutete Zusammenhang von (Satz)-Verstehen, Bedeutung
und Wahrheit läßt sich auf den Begriff einer Sprache (vorläufig wie folgt)
generalisieren: Eine Sprache L als indefinit große Menge von syntaktisch
wohlgeformten Sätzen versteht man, wenn man die Wahrheitsbedingungen
der Elemente dieser Menge kennt. Bevor dies weiter erläutert wird, zwei
Zwischenbemerkungen:
(1) Wittgensteins Erklärung deutet einen zweifachen Bezug von Sa-
tzverstehen und Wahrheit an. Bedeutungsverstehen kann als Kenntnis von
Wahrheitsbedingungen expliziert werden; zu wissen, ob der betreffende
Satz wahr ist, ist keine Bedingung dieser Kenntnis. Dies könnte sich aber,
für spezielle Situationen des Satzverstehens, als unzulässige, methodisch
unerwünschte Engführung erweisen, denn es ist nicht ausgeschlossen, daß
wir, in solchen Fällen, Verstehen auf Wahrheit in dem Sinn beziehen müs-

128
sen, daß wir nur auf dem Hintergrund der Unterstellung der faktischen Wa-
hrheit des zu verstehenden Satzes zur Kenntnis seiner Wahrheitsbedingun-
gen, zum Verständnis dessen, was er bedeutet, gelangen können;
(2) Was hat Satz- bzw. Sprachverstehen mit hermeneutischem Vers-
tehen zu tun? Sind nicht die paradigmatischen Situationen hermeneutis-
chen Verstehens von ganz anderer Art? Ist nicht, für die ‚eigentlich‘ herme-
neutische Anstrengung des Aufschließens fremder Sinnhorizonte - seien
dies nun Texte, Kunstwerke, geschichtliche Handlungszusammenhänge,
Institutionen oder ganze ‚Gesellschaften‘ - ein zureichendes Verständnis der
Sprache des fremden Sinns schon vorausgesetzt? Die Frage ist offensichtlich
rhetorischer Natur. Gerade wenn es so ist, scheint doch Sprachverstehen
zum Kern hermeneutischen Verstehens zu gehören. Der gängige Hinweis
auf ‚die Sprache‘ - die eigene und fremde - als ‚Sinnhorizont allen Verstehens‘
leistet ein übriges, um den Irrelevanzverdacht zu entkräften.
In seinen grundlegenden Abhandlungen zur formalen Semantik hat
A. Tarski den vorgängig angedeuteten Zusammenhang von Wahrheit und
Bedeutung in die Idee einer formalen Wahrheitstheorie (oder Wahrheits-
erklärung)für eine gegebene formale Objektsprache O aufgenommen. Eine
solche Erklärung liefert eine vollständige extensionale Bestimmung des ein-
fachen Prädikats ‚wahr-in-O‘; um bekannte semantische Paradoxien zu ver-
meiden, wird sie in einer Metasprache MO formuliert, die die Objektsprache
enthält. Eine derartige Theorie ist endlich axiomatisiert, die Wahrheitsaxi-
ome für einfache nichtlogische Prädikate und Relationsausdrücke werden
mithilfe des Begriffs der Erfüllung durch Sequenzen von Objekten einge-
führt, aussagen- und prädikatenlogisch komplexe Satzausdrücke werden
rekursiv durch die üblichen (klassischen) Wahrheitswerttafeln und Quan-
torenschemata erfaßt.
Entscheidend für die sachliche Angemessenheit einer Wahrheits-
theorie für O ist, daß diese zwei Bedingungen genügt, die Davidson im An-
schluß an Tarski als ‚Convention T‘ zusammengefaßt hat.4
1. Die Theorie muß, für jeden Satz s von O, eine Äquivalenz (oder ein
T-Theorem) ‚S ist wahr dann und nur dann, wenn p‘ erzeugen, wobei ‚S‘ der

4
Vgl. Davidson 1985, S. 65 ff.

129
metasprachliche Strukturname des objektsprachlichen Satzes s ist, und p
ein metasprachlicher Satz, der dem objektsprachlichen Satz s entspricht.
Die zweite Bedingung erläutert, was ‚entsprechen‘ heißt: der metasprachli-
che Satz p muß für s ‚translatorisch‘ sein, d.h. informell ausgedrückt, die Be-
deutung von s korrekt wiedergeben. Im Zusammenhang einer Tarski‘schen
Wahrheitserklärung ist diese Forderung trivialerweise, d.h. aus rein forma-
len Gründen erfüllt, da die Objektsprache Teil der Metasprache sein muß,
p als metasprachlicher Ausdruck also nach rein syntaktischen Kriterien re-
chts des Äquivalenzoperators substituiert werden kann.
In seinem klassischen Aufsatz ‚Die semantische Konzeption der Wa-
hrheit und die Grundlagen der Semantik‘ ist Tarski, um die erkenntnisthe-
oretische Neutralität seiner semantischen Wahrheitserklärung zu betonen,
so weit gegangen zu behaupten, in einer Äquivalenz wie ‚Der Satz ‚Schnee
ist weiß‘ ist wahr iff wenn Schnee weiß ist‘ werde gar keine Bedingung an-
gegeben, unter der der Satz ‚Schnee ist weiß‘ behauptet werden könne. Die
Äquivalenz zeige nur, daß wir, wenn wir diesen Satz behaupten oder verwer-
fen, nicht umhin können, die ‚korrelative‘ Formulierung ‚Der Satz ‚Schnee ist
weiß‘ ist wahr‘ zu behaupten oder zu verwerfen!
T-Theoreme, die Konvention T erfüllen, sind daher analytische Sät-
ze, da sie aus den Axiomen der Wahrheitstheorie für O, die als stipulative
Definitionen aufgefaßt werden können, logisch folgen.
Eine Wahrheitsdefinition für O umfaßt also eine indefinit große
Menge an T-Sätzen, die Konvention T erfüllen und sie legt die Extension des
Prädikats ‚wahr-in-O‘ vollständig fest. Davidson hat an diese Konzeption ei-
ner formalen Wahrheitserklärung nun in explizit semantischer Absicht an-
geknüpft und ist in dreifacher Hinsicht über Tarski hinausgegangen:5
(1) Der erste Schritt kehrt die Tarski‘sche ‚Richtung‘ der Explikation
um und bringt den oben angedeuteten Zusammenhang von Wahrheit und
Bedeutung explizit zur Geltung: eine Wahrheitstheorie für eine gegebene
Sprache O kann als Bedeutungstheorie für O genau deshalb angesehen wer-
den, weil sich die Bedeutung eines Satzes s in Begriffen seiner Wahrheitsbe-
dingungen angeben läßt. Tarski konnte sich auf den formal legitimen Begriff

5
Vgl. Davidson 1985, ´klassisch´: S. 17 ff und natürlich: S. 125 ff.

130
der ‚translatorischen Entsprechung‘ stützen und eine explizite Erklärung
des Wahrheitsprädikats für O geben. Wenn aber eine solche Definition sa-
chlich angemessen ist, kann sie auch ‚in Gegenrichtung‘ als Bedeutungs-
theorie für O unter Zugrundelegung des Wahrheitsprädikats aufgefaßt
werden. Die Gesamtheit der wahren T-Theoreme einer solchen Definition
charakterisieren nicht nur extensional das Prädikat ‚wahr-in-O‘, sondern
auch die Bedeutung jedes objektsprachlichen Satzes in Begriffen von Wa-
hrheitsbedingungen.
(2) Tarski hat das Konzept einer formalen Wahrheitstheorie nur für
formale Objektsprachen entworfen; ob sich natürliche Sprachen wahrheit-
sdefinitorisch ohne semantische Paradoxa einfangen lassen, hat er, wenn
nicht geleugnet, so doch pessimistisch offengelassen. Davidsons seman-
tisches Programm besteht nun gerade darin, genau dies zu versuchen. Die
Aufgabe ist, für eine gegebene natürliche Sprache N eine Wahrheitstheorie
zu formulieren derart, daß die Gesamtheit der T-Sätze als T-Theoreme der
Theorie die Bedeutung jedes einzelnen syntaktisch wohlgeformten (und wa-
hrheitsfähigen) Satzes von N sachlich angemessen, d.h. in Begriffen seiner
Wahrheitsbedingungen, charakterisiert. Offensichtlich bedeutet dies aber:
(3) daß eine derartige Theorie ihren ‚analytischen‘ Charakter verliert:
davidson‘sche Wahrheitstheorien für natürliche Sprachen sind empirische
Theorien. Ihre T-Theoreme sind empirische Aussagen darüber, unter wel-
chen Bedingungen die entsprechenden Sätze der natürlichen Sprache N
wahr sind.
Das heißt aber: Für eine derartige Theorie wird der Bedeutungsbe-
griff selber ein empirischer Begriff oder bezeichnet zumindest ein empirisch
anzugehendes Problem: nämlich aufgrund empirischer Evidenzen darüber
zu entscheiden, ob die Theorie den objektsprachlichen Sätzen korrekte,
d.h. semantisch angemessene Wahrheitsbedingungen zuordnet oder ni-
cht. Im Gegensatz zu klassisch-tarski‘schen Wahrheitsdefinitionen verfügt
eine davidson‘sche Wahrheitstheorie über keine Garantie ‚translatorischer‘
Korrektheit: ob der die Wahrheitsbedingung für einen Satz r ausdrückende
rechtseitige Teil des T-Theorems R für r tatsächlich dasjenige empirisch ri-
chtig charakterisiert, was ein Sprecher versteht (oder meint), der den Satz
r in Äußerungen richtig verwendet, bezeichnet gerade das Problem. David-

131
son muß daher ein intuitives Verständnis eines Wahrheitsprädikats für die
Sprache N zugrundelegen, um dann für N die entsprechende empirische
Wahrheitssemantik aufbauen zu können.
Empirische Wahrheitstheorien tragen keine essentialistischen Ans-
prüche; ob sie Regelwissen, das auf der Seite des Sprechers kognitiv tatsä-
chlich operant ist, abbilden, ist aber auch nebensächlich: als (im Idealfall)
gut bestätigte Theorien ermöglichen sie es einem Interpreten, Sprecher von
N zu verstehen und spezifizieren insofern ein Wissen hermeneutischer Art.
Bevor nun die exemplarische Situation der Konstruktion und Über-
prüfung dieses hermeneutischen Wissens qua empirischer Wahrheitstheo-
rie - die Situation der radikalen Interpretation - untersucht wird, seien die
bisherigen Überlegungen und Erläuterungen in Form von drei Thesen fixiert:
(1) Alles hermeneutisches Verstehen setzt das Verstehen von Spra-
che voraus - die Sprache ist ‚der Sinnhorizont allen Verstehens‘.
(2) Alles Verstehen von Sprache muß auf einen Begriff von Wahrheit
(mindestens) insoweit rekurrieren, als das Verstehen von Sätzen, die Sach-
verhalte ausdrücken, in Begriffen der Kenntnis von Wahrheitsbedingungen
expliziert werden kann.
(3) Die Explikation der Wahrheitsbedingungen für indefinit große
Mengen solcher Sätze einer natürlichen Sprache N erfolgt in Form einer
empirischen Wahrheitstheorie für N. Verfügt ein Interpret über eine solche
(empirisch bewährte) Theorie, so verfügt er über eine Form hermeneutis-
chen Wissens, das ihn befähigt, das Sprachverhalten von Sprechern von N
zu verstehen.
Im Hinblick auf die Einführung der Situation der radikalen Interpre-
tation muß der Begriff einer empirischen Wahrheits-qua-Bedeutungstheo-
rie für N nun noch etwas näher erläutert werden:
(A) Es ist offensichtlich, daß natürliche Sprachen, syntaktisch-se-
mantisch betrachtet, nicht nur Aussagesätze enthalten, und nicht nur sol-
che Arten von Aussagesätzen, deren grammatische Form zwanglos auf das
Repertoire logischer Formen von Satzschemata der klassischen Prädikaten-
logik 1. Stufe abgebildet werden kann. Diese Logik (mit Identität) bildet aber
das Skelett einer empirischen Wahrheitstheorie. Davidson stellt sich daher

132
den ersten Schritt einer wahrheitssemantischen Interpretation einer natür-
lichen Sprache N bekanntlich so vor, daß diese logische Struktur zur Gänze
auf einen Kernbestand an Sätzen von N übertragen wird. Das gilt nicht nur
für die logischen Konstanten, sondern es wird auch eine erste Analyse in
Begriffen subsententialer Ausdrücke - einfache und mehrstellige Prädikate,
Subjektausdrücke etc. - vorgenommen. Die Ausweitung der Interpretation
ist Teil des davidson´schen Programms: Befehlssätze, Konstruktionen in-
direkter Rede, singuläre Kausalaussagen etc. müssen dann in die Formen
prädikatenlogischer Schemata gebracht werden.6
Ähnliches gilt für das Problem indexikalischer Sätze: Das Pro-
gramm der Wahrheitstheorie reagiert darauf mit einer Relativierung des
Wahrheitsprädikats derart, daß ´ist-wahr-in-N´ nicht mehr als einstelliges
Prädikat, sondern als Ausdruck einer dreistelligen Relation zwischen Spre-
chern, geäußerten Sätzen und Äußerungszeitpunkten aufgefaßt wird. Etwa
so: „Der Satz ´Es regnet´, geäußert von Petra zum Zeitpunkt t ist wahr-in-
-Deutsch iff es zum Zeitpunkt t in der Umgebung von Petra regnet“.
(B) Empirische Wahrheitstheorien müssen zwei formalen Bedingun-
gen genügen. Sie müssen, für jeden (wahrheitsfähigen) Satz der zu interpre-
tierenden Objektsprache N, ein wahres T-Theorem der Form „´s` ist wahr iff
p´ durch expliziten Beweis erzeugen und sie müssen, im Sinn von Konven-
tion T, ´translatorisch korrekt´ sein, d.h. dem Satz, vertreten durch ´s´, die
´richtigen´ Wahrheitsbedingungen zuordnen. Gerade diese letzte Forde-
rung aber, die Tarski je schon als trivialerweise erfüllt unterstellen konnte,
drückt für empirische Wahrheitstheorien die Grundbedingung empirischer
Angemessenheit aus: es zeigt sich nämlich, daß die bloße Forderung nach
wahren T-Theoremen zu kurz greift. Ein T-Theorem für den Satz ´Schnee ist
weiß´ von der Art „Der Satz ´Schnee ist weiß´ ist wahr-in-Deutsch iff Gras
grün ist“ , ist, unter der Standardinterpretation der materialen Äquivalenz,
wahr, enthält aber ersichtlich keine korrekte Analyse des Satzes in Begriffen
seiner Wahrheitsbedingung.
Davidson führt daher die (zusätzliche) Bedingung des semantischen
Holismus ein: nicht das einzelne T-Theorem für ´Schnee ist weiß´ enthält die

6
Vgl. Davidson 1985, S. 79 ff.

133
vollständige semantische Analyse des Satzes, sondern die Gesamtheit aller
wahren und empirisch gut bestätigten T-Theoreme der Theorie legt den se-
mantischen Ort des Satzes innerhalb der charakterisierten natürlichen Spra-
che fest. Auf diese Weise wird zugleich erreicht, daß der Beweis des T-The-
orems, der den Satz auf seine subsententialen Ausdrücke bezieht, an die
Beweise der anderen T-Theoreme ankoppelt und so die Verwendungsweise
dieser Ausdrücke im Ganzen der Objektsprache charakterisieren kann.
(C) Empirische Wahrheitstheorien dürfen, neben dem Wahrheits-
prädikat, keine weiteren voranalysierten oder ´primitiven´ semantischen
Begriffe verwenden. Dies gilt für Begriffe wie Referenz, Regel, Konvention ,
Sprachspiel, erst Recht den der Bedeutung. Die Intuition ist, daß die seman-
tische Analyse allein in Begriffen von Wahrheitsbedingungen und (näher zu
beschreibenden) Einstellungen von Sprechern zu Sätzen zu erfolgen hat.
Begriffe wie Regel oder Konvention auf dieser Ebene einzuführen
würde schon unabhängiges Bedeutungswissen über die zu charakterisieren-
de Sprache in Anspruch nehmen: solche Begriffe können erst im Schlepp-
tau einer empirisch erfolgreichen Wahrheitstheorie eingeführt werden oder
dienen, wie der Referenzbegriff, als nützliche theoretische Konstrukte, die
den internen Aufbau der Theorie regeln, aber keine unabhängige empiris-
che Evidenz für sich beanspruchen können.
Davidson fügt noch eine weitere verschärfende Bedingung hinzu:
Der Interpret einer, im Sinn der bisherigen Strukturelemente einer empiris-
chen Wahrheitstheorie, fremden Sprache hat auch kein Wissen über dieje-
nigen Überzeugungen, die Sprecher dieser Sprache, indem sie Sätze, die sie
für wahr halten, äußern, zum Ausdruck bringen.. Der propositionale Gehalt
solcher Überzeugungen erschließt sich erst über die semantische Analyse
der geäußerten Sätze. Hält ein Sprecher den Satz „Gras ist grün“ für wahr,
so tut er das deshalb, weil er den Satz in der Bedeutung, die dieser hat, vers-
teht, und glaubt, daß Gras grün ist. Wüßte nun der Interpret, daß der Spre-
cher den Satz für wahr hält und damit die Überzeugung, daß Gras grün ist,
ausdrückt, könnte er die Bedeutung des Satzes in der Objektsprache daraus
gleichsam ableiten; kennte er die Bedeutung des Satzes und wüßte, daß der
Sprecher ihn für wahr hält, dann wüßte er auch, welche Überzeugung der
Sprecher damit zum Ausdruck bringt. Bedeutungs- und Überzeugungswis-

134
sen hängen in beiden Fällen unauflöslich zusammen. Da aber der Interpret
die semantische Analyse des Satzes noch vor sich hat, verfügt er auch über
kein davon unabhängiges inhaltliches Überzeugungswissen.
Davidson zieht daraus die Schlußfolgerung, daß der Interpret in die-
sen ´Zirkel´ der Interpretation nur einbrechen könne, wenn er ´die Überzeu-
gung konstant hält und das Problem nach der Bedeutungsseite hin löst.´ Dies
ist im folgenden als Strategie der radikalen Interpretation weiter zu erläutern.
Festzuhalten ist, daß sich die Beschreibung der Situation der radi-
kalen Interpretation, in die sich der verstehend-wahrheitstheoretisierende
Interpret versetzt sieht, aus den methodologischen - formalen und empiris-
chen - Bedingungen des Aufbaus einer davidson´schen Wahrheitstheorie
zwangsläufig ergibt. Es stellt ein Mißverständnis dar, wollte man diese Situ-
ation als bloß forschungspragmatisch zu bewältigende ´realistische´ Situ-
ation eines empirischen ´Feldanthropologen- oder Linguisten´ auffassen.
Wir sind jetzt in der Lage, die evidentielle Beschaffenheit der Situa-
tion der radikalen Interpretation und die Strategie ihrer wahrheitstheoretis-
chen Bewältigung kompakt zu beschreiben:
1. Die Situation radikaler Interpretation ist eine von Sprecher und
Interpret geteilte Situation: beide befinden sich im raum-zeitlich selben Wel-
tausschnitt, können einander beobachten und miteinander in Kontakt tre-
ten; sie können ihre jeweilige Umgebung beobachten und diese (in Grenzen)
instrumentell manipulieren.
2. Der Interpret verfügt über zureichende empirische Evidenz da-
für, daß der Sprecher einen Satz S für wahr hält (Wir können unterstellen,
daß die Wahrheitstheorie für die Sprechersprache schon so weit entwickelt
ist, daß der Interpret über eine syntaktische Analyse von S verfügt, also z.b.
weiß, daß S die logische Form eines Aussagesatzes besitzt).
Diese Evidenz liegt entweder in der Form vor, daß der Sprecher den
Satz S beobachtbar behauptet oder, vorsichtiger, daß er auf die Vorlage des Sa-
tzes durch den Interpreten zustimmend, d.h. affirmativ reagiert Der Interpret
ist also in der Lage, aufgrund von identifizierbaren Zustimmungsreaktionen
des Sprechers auf vorgelegte Sätze dem Sprecher die Einstellung des ´Für-wa-
hr-haltens´ in bezug auf diese Sätze zuzuschreiben. Davidson beruft sich für

135
die evidentielle Einführung von Zustimmungsreaktionen auf Quine: Für-wa-
hr-halten von Sätzen muß sich öffentlich identifizieren und nachprüfen las-
sen. Davidson verwendet den Ausdruck ´prompted assent´; Kommentatoren
haben darin auch eine ´method of query and assent´ sehen wollen.
3. Die Aufgabe des Interpreten besteht nun darin, das T-Theorem
für den vom Sprecher mit Zustimmung versehenen Satz S rechtsseitig zu
vervollständigen, etwa: „Der Satz ´Se tenger´ geäußert vom Sprecher X
zum Zeitpunkt Y (in der Situation A) ist wahr-in-L genau dann, wenn fra-
gt es: „Wie gelingt dies nun?“ Davidson vertraut auf das sog. ´Principle of
Charity´: eine einfache Formulierung ( für den Interpreten) lautet: „Unters-
telle, daß Sprecher Sätzen nur dann zustimmen, wenn diese Sätze in der
Äußerungssituation auch tatsächlich wahr sind“. Eine andere Formulierung
lautet: „Wähle als interpretierende Wahrheitsbedingungen im Licht deiner
Beurteilung dessen, was in der Äußerungssituation wahr ist, diejenigen Wa-
hrheitsbedingungen, die so effizient wie möglich Sprecher veranlassen, Sät-
ze für wahr zu halten (ihnen zuzustimmen) gerade dann, wenn diese Sätze
tatsächlich wahr sind“. Eine weitere Formulierung: „Wähle solche Wahrheit-
sbedingungen, die die Übereinstimmung zwischen dem, was du und der
Sprecher in der Äußerungssituation gemeinsam für wahr haltet, möglichst
umfangreich gestalten“.
Der Sinn des Prinzips ist klar: Da der Interpret weder die Bedeutung
von S noch die ausgedrückte Überzeugung des Sprechers ´daß S´ kennt,
bleibt ihm nichts anderes übrig, als ´die Seite der Überzeugung konstant
zu halten und nach der Seite der Bedeutung das Problem zu lösen: er muß,
im Licht seiner eigenen Überzeugungen hinsichtlich dessen, was im Welt-
ausschnitt der Äußerungssituation wahr ist, die semantische Hypothese
aufstellen und zugleich den Sprecher als ein epistemisch (oder attitudinal)
rationales Wesen auffassen. Wenn nämlich der Sprecher tatsächlich dann S
für wahr hält, wenn S wahr ist, besteht die Chance, den ´Zirkel von Bedeu-
tung und Überzeugung´ zu durchbrechen: die vom Sprecher ausgedrückte
Überzeugung kann dann mit (mindestens) einer der Überzeugungen des
Interpreten übereinstimmen, und es ist genau der Satz, den der Interpret
verwenden würde, um seiner Überzeugung Ausdruck zu verleihen, den die-
ser in das T-Theorem für S hypothetisch einfügen kann. Etwa: „Der Satz ´Se

136
tenger´ geäußert von [...] ist wahr-in-L iff es regnet“.
Dieses Theorem läßt sich dann in weiteren Äußerungskontexten,
die Regeneigenschaften aufweisen, und an weiteren Sprechern empirisch
überprüfen. Der induktive Befund, daß Äußerer von ´Se tenger´ (oder Zu-
stimmer zu ´Se tenger?!´) dies zuverlässig unter Regenbedingungen tun,
und sonst nicht, kann als prima facie gute Evidenz dafür gelten, daß das
T-Theorem empirisch wahr ist, d.h. daß ´Se tenger´ in der Tat wahr ist genau
dann, wenn es regnet und deshalb bedeutet ´es regnet´.
Das in sich komplexe Prinzip interpretatorischer Nachsicht - nach
Davidson „epistemology seen in the mirror of meaning“7 – ist kein empiri-
sches Prinzip, sondern formuliert eine Bedingung der Möglichkeit interpre-
tierenden Verstehens.
Selbst wenn seine Anwendung in einzelnen Fällen zu empirisch fal-
schen T-Theoremen führt, gibt es keine Alternative. Soll nicht das Geschäft der
Interpretation aufgegeben werden, muß der Interpret immer erneut im Sinn
des Prinzips ansetzen - es gibt keine höhere oder sinnstiftend stärkere Instanz.
Zugleich ist damit aber eine normative Rationalitätsunterstellung in die Be-
dingungen der Interpretation eingebaut: Sprecher können in ihren Äußerungs-
handlungen und Überzeugungen nur verstanden werden, wenn sie als rationale
Wesen konzeptualisiert werden. Jede weitere, d.h. den fortschreitenden Prozeß
der Interpretation voraussetzende Charakterisierung von Sprechern der frem-
den Sprache ist von dieser Unterstellung abhängig und kann sie, sollen Spre-
cher überhaupt verstanden werden, nicht rückgängig machen.

II
Ich möchte nun im folgenden zwei Interpretationsvarianten der
skizzierten Situation der radikalen Interpretation diskutieren. Die erste Va-
riante nenne ich die hart kausalistische oder Quine-Variante:
(1) Die Quine-Variante rekonstruiert die Situation der radikalen In-
terpretation in Begriffen eines reflexiv harten Naturalismus. Daß der Spre-
cher einen Satz S wie (in Übersetzung) ´Es regnet´ oder ´Dort sitzt eine

7
Zum allgemeinen Begriff einer ´externalisierten Erkenntnistheorie´ vgl. Davidson 1993, S. 65 ff.

137
Nachtkatze´ für wahr hält, wird durch das Auftreffen von physikalisch
beschreibbaren Reizmustern, die durch gewisse Regen- oder Nachtkatze-
neigenschaften des Weltausschnitts der Äußerungssituation kausal her-
vorgerufen werden, auf seine ´sensorischen Oberflächen´ kausal durch
Aktivierung von Zustimmungs- und/oder Äußerungsdispositionen bewirkt
Diese Reizmuster repräsentieren zugleich die positive Stimulus-Bedeutung
des betreffenden Satzes, d.h. seine Wahrheitsbedingungen. Die vom Inter-
preten beobachtete Zustimmungsreaktion des Sprechers auf den ihm vorge-
legten Prompt-Satz muß ebenfalls strikt kausalistisch verstanden werden.
Indem der Interpret den Satz dem Sprecher gegenüber äußert, erzeugt er
ein verbales Reizmuster, welches die Zustimmungsreaktion des Sprechers
kausal dadurch bewirkt, daß die durch das Regen- oder Nachtkatzen-Reiz-
muster bewirkte (oder dispositional aktivierte) Einstellung des Führ-wahr-
-haltens sich unter Einschaltung weiterer Dispositionen in der Zustimmun-
gsreaktion entlädt. Vergleichbares gilt für den Interpreten: Da auch er es
für wahr hält, daß es regnet oder dort eine Nachtkatze sitzt, weil er der
Einwirkung entsprechender Reizmuster ausgesetzt ist; er zudem aber, als
guter ´armchair´-Naturalist, über eine umfassende empirische Theorie ver-
fügt, die erklärt, wie Reizmuster, Glaubensdispositionen und Zustimmun-
gsverhalten kausal funktionieren und die ihn außerdem darüber informiert,
daß biologisch ähnliche Wesen epistemisch und verbal auf Ähnliches ähn-
lich reagieren, sieht er sich in den Stand gesetzt, das entsprechende T-The-
orem seiner empirischen Wahrheitstheorie durch ´für ihn´ kausal ähnlich
effiziente Wahrheitsbedingungen zu vervollständigen.
Das ´Principle of Charity´ hat im Rahmen dieser umfassenden The-
orie den Stellenwert einer hochstufigen empirischen Hypothese, an der der
Interpret auch gegen die prima facie widerständige Evidenz fehlschlagender
Interpretationsversuche festhält, weil er anders, z.b. im Hinblick auf die In-
terpretation der logischen Konstanten der fremden Objektsprache, zu kei-
nen empirisch befriedigenden Ergebnissen gelangt.
Die dem Prinzip eingebaute Rationalitätsunterstellung läßt sich
auf empirische Dispositionen des Sprechers abbilden; die Anweisung, die
Übereinstimmung von Sprecher und Interpret im Hinblick auf ihre wahren
(wahrheitstheoretisch basalen) Überzeugungen als möglichst umfassend zu

138
unterstellen, findet ihre Fundierung in deren vergleichbarer Biologie.
Es ist leicht zu sehen, daß eine in solchen Begriffen rekonstruierte Si-
tuation der radikalen Interpretation keine Situation hermeneutischen Vers-
tehens sein kann. Die Wahrheitstheorie ist Teil einer umfassenden Theorie,
die in der objektivierenden Einstellung eines Physikers-Behavioristen aufge-
baut und angewendet wird. Worin auch immer die Schwächen oder Parado-
xien einer derartigen hart-naturalistischen Rekonstruktion bestehen mögen,
der entscheidende Einwand gegen diese Variante liegt m. E. in dem Hinweis,
daß der Begriff der Wahrheit, an den Davidson als ´primitiven´ Begriff sein
ganzes Unternehmen bindet,8 einfach verloren geht. Daß ein T-Theorem wie
„Der Satz ´Se tenger´ geäußert von Sprecher X zu Zeitpunkt t ist wahr-in-L iff
es zum Zeitpunkt t in der Umgebung von X regnet“ empirisch wahr ist, weil es
eben jetzt (Zeitpunkt t) regnet, kann nicht selbst in Begriffen von Reizmustern,
Glaubensdispositionen etc. hinreichend kausal erläutert werden.
Denn entweder müßten diese erklärenden Stücke der umfassen-
den Theorie selber wahr sein - das Interpretationsspiel müßte sich also in
Bezug auf ´kausal tiefliegende´ Eigenschaften des Sprechers wiederholen,
oder die Verwendung des Wahrheitsprädikats müßte für den Bereich der Wa-
hrheitstheorie zurückgezogen werden: dies würde aber bedeuten, daß sich
´die Bedeutungen´ der geäußerten oder vorgelegten Sätze und mit ihnen die
propositionalen Gehalte der Einstellungen der zu interpretierenden Sprecher
überhaupt nicht mehr semantisch erfassen lassen - was das ganze Unter-
nehmen einer auf Wahrheit abzielenden empirischen Wahrheitstheorie ad
absurdum führt. Ich komme daher zur zweiten Rekonstruktionsvariante, der
schwach kausalistischen D. Davidsons.
(2) In seiner Heisenberg-Vorlesung konzipiert Davidson die Situa-
tion der radikalen Interpretation als Triangel-Situation:

Um der Ursache eines Gedankens einen Ort zuzuschreiben und so sei-


nen Inhalt zu bestimmen, sind zwei Standpunkte nötig. Diesen Vorgang
können wir uns als eine Art Triangulation vorstellen: Jede der beiden
Personen reagiert unterschiedlich auf Sinnesreize, die aus einer bes-
timmten Richtung heranströmen. Projizieren wir die herankommen-

8
Vgl. dazu jetzt: Davidson 1990, S. 279 ff.

139
den Linien nach außen, ist ihr Schnittpunkt die gemeinsame Ursache.
Bemerken die beiden Personen nun die Reaktionen des jeweils anderen
(im Fall der Sprache: die verbalen Reaktionen), kann jeder von ihnen
diese beobachteten Reaktionen zu den eigenen, von der Welt herkom-
menden Reizen in Beziehung setzen. Jetzt kann die gemeinsame Ursa-
che den Inhalt einer Äußerung und eines Gedankens bestimmen. Das
Dreieck, das dem Denken und Sprechen Inhalt verleiht, ist abgeschlos-
sen. Aber um eine Triangulation vorzunehmen, sind zwei Personen
nötig - zwei oder natürlich auch mehr. Ehe durch Kommunikation mit
einem anderen eine Grundlinie festgelegt ist, ist es witzlos, vom Inhalt
der Gedanken oder Worte einer Person zu sprechen.9

Diese Charakterisierung scheint sich nur durch den Hinweis auf eine
Kommunikation zwischen Sprecher und Interpret von der Quine-Variante
zu unterscheiden. Zugleich aber betont Davidson den Kern normativer Ra-
tionalität des ´Principle of Charity´: „Eine erfolgreiche Interpretation kann
gar nicht umhin, dem Interpretierten eine elementare Rationalität zu un-
terstellen.“10 Dies folgt „aus dem Wesen der richtigen Interpretation.“11
Begriffe wie ´einen Satz für-wahr-halten´ oder ´Glauben´ sind in-
tentionale oder ´geistige´ Begriffe: da sie nicht-eliminierbar in die Interpre-
tation eingehen,

[...] verlangen sie vom Interpreten, daß er sich überlegt, wie das interpre-
tierte Lebewesen als ein verstehbares dargestellt werden kann, das heißt:
als ein vernunftbegabtes Wesen. Daraus ergibt sich, daß der Interpret
gemeinte Bedeutung und Meinung zum Teil anhand normativer Gründe
auseinanderhalten muß, indem er entscheidet, wodurch von seinem ei-
genen Standpunkt aus gesehen die Verständlichkeit maximiert wird. Bei
diesem Unterfangen kann sich der Interpret natürlich auf keine anderen
Rationalitätsmaßstäbe verlassen als auf seine eigenen.12

Im Gegenzug zu einer bloß kausalistischen Rekonstruktion scheint


Davidson also die Situation der radikalen Interpretation als Situation des

9
Davidson 1991, S. 1006-1007.
10
Davidson,1991, S. 1005.
11
Davidson 1991, S. 1005
12
Davidson 1991, S. 1009.

140
rationalen Verstehens des Äußerungsverhaltens von Sprechern der fremden
Sprache auf der Basis von Gründen aufzufassen. Sprecher stimmen dem
Prompt-Satz zu, weil sie richtigerweise glauben, daß dort eine Nachtkatze
sitzt; sie sind epistemisch und insofern auch sprechhandelnd rational, eben
nicht nur durch gewisse Reizeigenschaften der Äußerungssituation dispo-
sitional aktiviert. Dann aber scheint Davidson in das hart-kausalistische
Idiom zurückzufallen; die Erklärung nämlich, die von Sprecher und Inter-
pret geteilte, ihnen gemeinsame ´Auffassung der Welt in ihren schlichtes-
ten Merkmalen sei weitgehend richtig´, sieht er darin, daß „[...] die Reize,
die unsere grundlegenden sprachlichen Reaktionen auslösen, zugleich die
Bedeutung dieser sprachlichen Reaktionen und den Inhalt der mit ihnen ei-
nhergehenden Überzeugungen bestimmen.“13
Zudem bleibt die Bezugnahme auf die Art der Kommunikation zwis-
chen Sprecher und Interpret merkwürdig unbestimmt. Davidson beruft sich
auf Quines Verfahren des ´prompted assent´, erwähnt aber in seiner Cha-
rakterisierung der Situation der radikalen Interpretation nur Beobachtun-
gsverhalten auf Seiten des Interpreten; zugleich aber soll das Zustimmungs-
verhalten des Sprechers als durch Gründe bedingt verstanden werden.
Das von Davidson in seinen einschlägigen Veröffentlichungen en-
tworfene Panorama ist ambivalent. Um weitere Komplizierung zu vermei-
den, möchte ich vorschlagen, diese Lesart der Situation der radikalen Inter-
pretation als Projekt der Konstruktion und Überprüfung einer empirischen
Wahrheitstheorie im Sinne einer quasi-nomologischen sozialwissenschaftli-
chen Theorie aufzufassen, die Satzbedeutungen, Sprecherverhalten- und
Überzeugungen in Begriffen von kausal wirksamen Wahrheitsbedingungen
und kausal wirksamen Gründen rekonstruiert.
Sprecher werden kausal veranlaßt, Sätze für wahr zu halten; solche
Überzeugungen sind zugleich rational hinreichende Gründe für Zustimmun-
gsverhalten und für derartiges Verhalten (ceteris paribus) kausal wirksam.
Die T-Theoreme der Wahrheitstheorie sind quasi-nomologische
empirische Aussagen; sie drücken die gesetzesartige Beziehung zwischen
Wahrheitsbedingungen und Satzbedeutungen in dem Sinn aus, daß das

13
Davidson 1991, S. 1007.

141
durch die reizvermittelte Einwirkung dieser Wahrheitsbedingungen hervor-
gerufene Zustimmungsverhalten des Sprechers einen zureichenden Grund
darstellt, dem entsprechenden Satz genau diese Wahrheitsbedingungen
zuzuordnen. Sprecher würden eben, entsprechende Umgebungsbedingun-
gen vorausgesetzt, dem Satz ´Se tenger?!´ genau dann zustimmen, wenn
es regnet; und dies ist der beste Grund für den Interpreten, den Satz so zu
verstehen, daß er wahr-in-L ist genau dann, wenn es regnet. Das ´Principle
of Charity´ bleibt daher in seinem Kern einer nicht-empirischen Rationali-
tätsunterstellung in Kraft.
Das den Sprecher zu Zustimmungsverhalten herausfordernde ´satz-
-kommunikative´ Verhalten des Interpreten darf nicht als explizit kommu-
nikatives Handeln aufgefaßt werden, sondern als Form signalvermittelten
experimentellen Sondierungsverhaltens (´probing´) in der Einstellung ob-
jektivierender Theoriekonstruktion. Der Interpret versteht zwar das Spre-
cherverhalten in Begriffen von Gründen, stellt diese aber in den umfassen-
den Kontext einer Überzeugungsverursachung durch reizmustervermittelte
Wahrheitsbedingungen ein.
Überblickt man diese Rekonstruktionsvariante der Situation der ra-
dikalen Interpretation, so scheinen zwar einige ´hermeneutische´ Elemen-
te darin vorzukommen, letztlich aber kann sie nicht befriedigen.14
Ich möchte daher diese Art ´empirischer Hermeneutik´ nicht weiter
analysieren, sondern sogleich zur explizit verständigungshermeneutischen
Lesart übergehen.

III
Die zu entfaltende Grundintuition läßt sich in die These fassen: Si-
tuationen radikaler Interpretation sind Situationen reziprok verständigun-
gsmotivierten Handelns unter normativ einschränkenden Bedingungen von
Rationalitätsunterstellungen. Empirische Wahrheitstheorien sind Konstrukte
hermeneutischen Verstehens in Kontexten kommunikativer Interaktion von
Sprechern der fremden Sprache N und davidsonianischen Interpreten.

14
Für die ´extensionale´ Rekonstruktion eines Begriffs von ´reasons´ vgl. klassisch: Davidson 1980, S. 3
ff. sowie: LePore/McLaughlin (eds) 1985, S. 149 ff., bes. S. 116 ff und S. 311 ff.

142
Im Zentrum steht die verständigungshermeneutische Reinterpre-
tation der Methode des ´prompted assent´ bzw. des ´query and assent´.
Die Ausgangslage ist einfach: Der Weltausschnitt der vom Interpreten mit
dem Sprecher geteilten Äußerungssituation ist für den Interpreten je schon
sprachlich erschlossen und in Überzeugungen, die sich ihm aufgrund von
empirisch anflutenden Evidenzen gebildet haben (´Es regnet´; ´Dort sitzt
eine Nachtkatze´ usw.), sedimentiert. Indem er diese Überzeugungen hat,
verfügt er über Kenntnis von Wahrheitsbedingungen, die er, als in der In-
terpretationssituation erfüllt, in Sätzen wie ´Es regnet´ ausdrücken kann.
Seine Wahrheitstheorie liefert ihm den syntaktisch analysierten Satz ´Se
tenger´ und er vermutet, daß dieser Satz der fremden Sprache in dem Sinn
bedeutet, daß es regnet, daß er genau dann wahr ist, wenn es regnet.
Er muß das T-Theorem „Der Satz ´Se tenger´ geäußert von Sprecher
X zum Zeitpunkt t ist wahr-in-L iff es (jetzt hier) regnet“ an dem Verhalten
des fremden Sprechers überprüfen. Er äußert also gegenüber diesem ´Se
tenger?!´ - und erhält (beobachtet) eine Zustimmungsreaktion. Weitere
Tests - auch an anderen Sprechern - ergeben das gleiche Resultat.
Nun ist einsichtig, daß der so verfahrende Interpret den Sprecher
nicht nur durch Ein-Satz-Reizmuster affiziert. Er geht, in performativer
Einstellung der 1. Person Singular, mit dem Sprecher eine kommunikative
Beziehung ein, etwa in Form einer illokutionär impliziten Frage-Behauptun-
gshandlung ´Se tenger!?´ oder, explizit gemacht, in Form des performativen
Doppel-Sprechakts ´Ich frage dich hiermit - behaupte hiermit dir gegenüber:
Se tenger!?´. Indem nun der Sprecher Zustimmung signalisiert, nimmt er
die kommunikative Rolle des Antwortenden ein, akzeptiert also das Spre-
chaktangebot, drückt ein Für-wahr-halten des Satzes aus und bekundet da-
mit seine Überzeugung, daß es regnet, indem er die Frage beantwortet bzw.
die Behauptung bestätigt.
Bewahrheitet sich so die semantische Hypothese des Interpreten,
darf er den Satz als (holistisch) verstanden betrachten: der Interpret gelangt
zu einem empirisch korrekten Verständnis des Satzes, indem er sich mit dem
Sprecher darüber verständigt, daß es regnet.
Freilich gelingt dem Interpreten diese Verstehensleistung nicht ohne
die Anwendung des ´Principle of Charity´: er muß dem Sprecher in dem Sinn

143
Rationalität unterstellen, daß dieser den Satz ´Se tenger´ genau dann für wahr
hält und dies ehrlicherweise zu erkennen gibt, wenn es wahr ist, daß es regnet.
Dies bedeutet aber zugleich, daß der Interpret die Maxime der
Übereinstimmungsmaximierung- oder Optimierung für Überzeugungen
befolgt: da er, um festzustellen, was in dem Weltausschnitt der Interpre-
tationssituation wahr ist, über keine anderen (oder besseren) Standards
epistemischer Rationalität verfügt als die, an denen er seine eigenen Über-
zeugungen bildet, kann er den ´Zirkel von Bedeutung und Überzeugung´
aufbrechen. Da er den fremden Sprecher als epistemisch rational auffassen
muß, ist er berechtigt, diesem die Überzeugung, daß es regnet, zuzuschrei-
ben und kann dann, im Handlungskontext kommunikativen Verstehens, die
Wahrheitsbedingungen des zu interpretierenden Satzes an der affirmativen
Stellungnahme des Sprechers zu seinem Verständigungsangebot darüber,
ob es wahr ist, daß es regnet, ablesen.
Der Interpret kann jetzt auch die Überzeugungen und Handlungen
des Sprechers im Licht der Zuschreibung guter Gründe verstehen; daß es
regnet, ist eben die beste Evidenz für die Überzeugung, daß es regnet - un-
geachtet ihrer kausalen Mächtigkeit. Gleichfalls: daß es tatsächlich regnet,
ist eben auch der beste Grund für den Sprecher, affirmativ auf die Frage-
-Behauptungshandlung des Interpreten zu antworten - denn wenn der In-
terpret Recht hat, versteht ja der Sprecher den ihm gegenüber geäußerten Satz
´Se tenger?!´ in der Bedeutung, daß dieser wahr ist genau dann, wenn es regnet.
Sind die vorstehenden Überlegungen triftig, dann scheint sich tat-
sächlich die Situation radikaler Interpretation explizit als Situation herme-
neutischen Verstehens im Kontext einer Form verständigungsorientierten
Handelns rekonstruieren zu lassen.
Freilich erheben sich sofort Bedenken: Wird durch die Einführung
sprechakttheoretischen Vokabulars nicht die bestechende Einfachheit, Nü-
chternheit und Eleganz der Idee radikaler Interpretation unnötig beschädigt
oder aufgeweicht? Läßt sich wirklich sicherstellen, daß auch jetzt noch nur
nicht-semantische Begriffe zur Beschreibung der evidentiellen Grundlagen
des Verfahrens verwendet werden? Was eigentlich leistet eine verständigun-
gshermeneutische Explikation der kommunikativen Basislinie zwischen
Sprecher und Interpret innerhalb des ´Triangels´ über das hinaus, was Da-

144
vidson selber an logischen Konsequenzen gewinnt? Könnte sich der Radika-
le Interpret nicht auf die Rolle eines reinen Beobachters zurückziehen, der
keine eigene kommunikative Beziehung zu Sprechern der fremden Sprache
aufnimmt, sondern diese Sprecher in ihren jeweiligen Rede -und Handlun-
gszusammenhängen beobachtet und sich so die erforderlichen Evidenzen
für Aufbau und Überprüfung seiner Wahrheitstheorie verschafft?
Nun, m.E. lassen sich diese Bedenken entkräften: Die Prompt-
-Äußerung des Interpreten kann auch ohne bezug auf sprechakttheoretische
Begriffe, nüchterner gewissermaßen, eingeführt werden - etwa so: ´Hältst
Du ´Se tenger?´ für wahr?´ ´Glaubst Du, daß es jetzt regnet?´ ´Würdest Du
´Se tenger?´ nur dann bestätigen, wenn ´Se tenger?´ wahr ist?´ .
Schon Quine hatte in ´Word and Object´ vorausgesetzt, der Über-
setzer wisse, welche Art von Reaktion des Sprechers als Zustimmung bzw.
Ablehnung zu deuten sei; Davidson geht - auch hier - weiter: ´prompted as-
sent/dissent´ wird als Sorte ehrlicher Äußerungen in Anspruch genommen!
Nicht nur sagt, oder bestätigt, der Sprecher, was er für wahr hält - er sagt,
oder bestätigt, auch, was er meint, oder mit dem ihm vorgelegten Promp-
t-Satz des Interpreten meinen würde, wenn er ihn zum Ausdruck seines
Für-Wahr-Haltens, daß es regnet, verwenden würde – die Fiktion einer Mrs.
Malaprop kommt ja für ´prior theories´ noch gar nicht ins Spiel!15
Eine bloß kausal bewirkte Reaktion aber läßt sich gar nicht als ehr-
liche Äußerung, die zudem die epistemische Rationalität des Sprechers
bekunden soll, verstehen. Ein kausaler Zwang zur durch Regeneigenschaf-
ten der Interpretationssituation angestoßenen Ausbildung einer perzep-
tuellen Überzeugung überträgt sich nicht schon deshalb auf das Wirkpo-
tential des Reizmusters des Prompt-Satzes des Interpreten, weil dieser Satz
wahr ist, wenn es genau jetzt regnet - der Sprecher könnte auch anders oder
gar nicht reagieren, wenn nur ein Mechanismus kausaler Reizung mit ents-
prechend anspringender Reaktion im Spiel wäre.
Natürlich kann sich der Sprecher irren - aber damit wird eine reflek-
tierte Methode der Nachsicht fertig. Natürlich kann der Sprecher auch täus-
chen - aber mit einer solchen Unterstellung kann Radikale Interpretation

15
Vgl. Davidson 1986, S. 433 ff.

145
nicht beginnen. Die Rekonstruktion strategischen Sprachgebrauchs gehört
in den Aufbau einer empirischen Wahrheitstheorie - nicht an deren Anfang.
Verständigungsmotiviert handelt aber auch der Interpret - er kann
gar nicht anders: schließlich muß er, um den Zirkel von Überzeugung und
Bedeutung aufzubrechen, mit Sätzen anfangen, die er in der Interpreta-
tionssituation für wahr hält und deren Wahrheitsbedingungen dort auch
für den Sprecher wirkmächtig gegeben sind. Nicht nur wäre es absurd für
ihn, mit Sätzen der fremden Sprache zu beginnen, die er für falsch hält, um
den Sprecher zu täuschen - es würde das ganze Projekt einer empirischen
Wahrheitstheorie zerstören.
Eine verständigungshermeneutische Lesart ist also nicht auf voraus-
setzungsreiches sprechakttheoretisches Vokabular angewiesen - verständi-
gungsmotiviertes Handeln kommt eben in der Interpretationssituation in
einfacher, ´primitiver´, meinetwegen ´animalischer´ Form vor.
Zugleich ist leicht zu sehen, daß diese Lesart an keiner Stelle auf ´ver-
botene´ semantische Evidenzen rekurriert - schließlich bietet sie ja nur eine
Reinterpretation des Handlungscharakters vom Prompt und Prompt-Reak-
tion, ohne auf den Gehalt von Sätzen oder Überzeugungen vorzugreifen.
Der weitere Einwand, der Interpret könne als reiner Beobachter au-
fgefaßt werden, ist m.E. illusionär. Selbst wenn er sich auf die ´begleitend-
-teilnehmende´ Beobachtung des Sprachverhaltens miteinander kommuni-
zierender Sprecher beschränken würde – aber wie eigentlich: als eine Art
´reiner Geist´ der Interpretation? – müßte er doch ihrem Sprachspiel, oder
zumindest Teilen davon, verständigungsmotivierte Struktur zuschreiben,
um überhaupt voranzukommen. Darüberhinaus haben beide, Quine und
Davidson, die Interaktion von Sprechern und Interpreten in die Spielregeln
Radikaler Übersetzung bzw. Interpretation eingebaut – es scheint daher
müßig, ein anderes Spiel zu eröffnen.
Abschließend nun zum Einwand des Zweifels an der explikativen
Mehrleistung des verständigungshermeneutischen Modells: Mir scheint,
daß dieses Modell nicht nur einige entscheidende Aspekte Radikaler Inter-
pretation vollständiger beschreibt und damit durchsichtiger macht, ohne
andere Aspekte - z.b. die kausale Beziehung von objektiven Wahrheitsbe-
dingungen auf die Bedeutung von Sätzen und den semantischen Gehalt von

146
Überzeugungen - zu leugnen. Mehrwert entsteht auch durch die Reinterpre-
tation der kommunikativen Basislinie des Triangulationsmodells der Inter-
pretationssituation.
Der Begriff der Verständigung ist wie geschaffen dafür zu verstehen,
was es, mit Davidson, heißt, daß diese Situation Dreieckscharakter besit-
zt: Sprecher und Interpret verständigen sich darüber, daß es (jetzt) reg-
net, oder dort hinten eine Nachtkatze sitzt, indem sie den entsprechenden
Prompt-Satz im Hinblick auf diese Wahrheitsbedingungen verstehen und
zugleich, und in eins damit, eine geteilte Überzeugung von dessen Wahr-
-Sein ausdrücken oder bestätigen. Der Sach -oder Gegenstandsbezug des
Sich-Verständigens-Über schließt das Dreieck im Hinblick auf objektive Wa-
hrheitsbedingungen, der doppelte Subjektbezug im Hinblick auf Sprecher
und Interpreten.
Zugleich – und hier m. E. deutlich über Davidson hinausgehend –
gewinnt das kommunikative Verhältnis von Sprecher und Interpret eine
Symmetrie-Eigenschaft, die die Basislinie noch einmal strukturiert. Der
Interpret rückt aus der Perspektive oder Rolle der 3. Person Singular eines
behavioristischen Beobachters oder ´testenden´ Experimentators in die
Rolle der 2. Person eines mit einem ebenfalls in 2. Person vorkommenden,
gleichgestellten Sprecher verständigungsmotiviert Interagierenden. Beide
interpretieren sich gewissermaßen wechselseitig im Hinblick auf Sinn und
Wahrheit von Satzäußerungen sowie der Rationalität von Überzeugungen
und Handlungen.
Der Begriff der Verständigung muß deshalb dem Kategorialschema
der Idee Radikaler Interpretation hinzugefügt werden. Er ist dort genauso
´zu Hause´, wie die Begriffe der Wahrheit, Bedeutung, Nachsicht oder Ra-
tionalität.
Freilich wird damit der Aufbau einer empirischen Wahrheitstheorie
im Sinne Davidsons nicht leichter - und erst recht nicht vermag Radikale In-
terpretation als Idee einer Verständigungshermeneutik sprachlichen Sinns
die substantiellen Hermeneutiken voranzubringen - oder gar zu ersetzen -,
die sich wie eh und je an den verschiedensten sachhaltigen Problemen der
Sinnaneignung abarbeiten.
Aber immerhin: es scheint, daß auf der logischen Landkarte der

147
Hermeneutik Berkeley von z.B. Frankfurt/Main oder Heidelberg doch nicht
allzu weit entfernt liegt - zwar auch nicht ´just around the corner´, aber
auch nicht so weit, wie die physische Geographie glauben machen könnte.

LITERATURVERZEICHNIS
Davidson, D. (1980) Essays on Actions and Events. Oxford.

Davidson, D. (1985) Inquiries into Truth and Interpretation. Oxford.

Davidson, D. (1990) The Structure and Content of Truth. The Journal of Philosophy
87, S. 279, 328.

Davidson, D. (1991) Subjektiv, Intersubjektiv, Objektiv. Merkur 11, S. 999,1014.

Davidson, D. (1993) Der Mythos des Subjektiven. Stuttgart.

Evnine, S. (1991) Donald Davidson. Cambridge, Polity Press.

Gadamer, H.-G. (1976). Wahrheit und Methode. Tübingen.

LePore, E / McLaughlin, B. (eds). (1985) Actions and Events: Perspectives on the


Philosophy of Donald Davidson. Oxford.

LePore, E. (ed). (1986) Truth and Interpretation: Perspectives on the philosophy of


Donald Davidson. Oxford.

Ramberg, B. (1989) Donald Davidson´s Philosophy of Language. Oxford.

Stüber, K. (1993) Donald Davidsons Theorie sprachlichen Verstehens. Frankfurt/Main.

148
A ÉTICA EM ALAIN BADIOU E A SUA
FUNDAMENTAÇÃO ONTOLÓGICA1
Prof. Dr. Norman R. Madarasz2

Proponho-me a discutir, neste artigo, a fundamentação ontológica


da ética na filosofia de Alain Badiou. Existe já uma ampla bibliografia3 sobre
a ética que Badiou apresentou num livro publicado em 1993, cujos destina-
tários eram, conforme uma tradição francesa, alunos da disciplina de filo-
sofia no ano “terminal” do ensino médio. Nesse livro, ele orienta a sua apre-
sentação desse campo de reflexão contra alguns alvos da atualidade que
acabam aproximando a ética de uma posição ideológica e abre uma discus-
são crítica contra o discurso dos “direitos humanos”. Mas a sua posição não
é apenas crítico-negativa. Na verdade, ela raramente é. Isso porque Badiou
pretende, no mesmo gesto, representar a ética nos termos de uma cuidado-
sa saída da ontologia, tal como exposta na sua forma completa em L`Être
et l’événement.4 Ao pronunciar o termo “saída”, não pretendo salientar uma
separação, apenas frisar uma florescência: a ética sai de uma latência por
dentro da ontologia de Badiou.
Desta forma, a ética desenha uma delimitação em relação aos dis-
cursos com os quais a filosofia está relacionada, mesmo se a ontologia pro-
posta por Badiou é imanente aos discursos que condicionam a filosofia. Um
dos objetivos nesta aula inaugural é elaborar esta tese segundo a qual a fi-
losofia é posterior a um conjunto de discursos que, ipso facto, a condiciona.
Mas a tese principal é situar como a ética é parte intrínseca da ontologia.
Que essa ontologia é redefinida por Badiou como a matemática não cria
mais dificuldades que se ela tivesse sido articulada em torno do dizer poé-

1
Este artigo reproduz a palestra proferida, em 28 de agosto de 2012, na ocasião da Aula Inaugural do
PPG em Filosofia, pelo segundo período do ano de 2012. O autor agradece o convite feito pelo Coorde-
nador do Programa, Prof. Agemir Bavaresco, e todos os presentes, professores e alunos, pela recepção
cordial e pelo interesse.
2
Professor do PPG em Filosofia da PUCRS.
3
Por exemplo: Hallward (2000); MacCannell (2005); Critchley (2008).
4
BADIOU, 1988; tradução brasileira, 1995.
tico, tal como exemplificado por Heidegger, numa visão desprovida de um
sujeito na ontologia. Que a ética possa ser situada na ontologia sugere que
Badiou supera a dicotomia posta por críticos da ontologia fundamental de
Heidegger, como E. Levinas, que incansavelmente argumentou em favor da
irredutibilidade entre ontologia e ética.
Afirmar que a ontologia é imanente, isto é, que não ocupa uma posi-
ção fora, nem na beira da tensão vivida em situações de práticas discursivas,
implica uma circulação fluida entre ela e os discursos denominados anterior-
mente. Ademais, ao designar uma ontologia, uma ética, e um conjunto de dis-
cursos que existe numa relação particular com a filosofia, eu acredito que dá
para perceber os planos de um sistema em construção. Por isso, ao entrar em
debate com as teses que estruturam a ética em contextos políticos, científi-
cos, artísticos ou amorosos, isto é, ao sair logo da sua formalidade e da sua
generalidade, é imprescindível não perder de vista que a ética de Badiou visa
a uma extensão universal. A mera aplicação empírica da ética numa única
condição, como é a tendência em Critchley5, camufla o seu caráter mais ousa-
do, que é a sua fundamentação ontológica. Para entender bem a proposta de
Badiou, a ética deve ser pensada simultaneamente na aplicação aos discursos
que condicionam a filosofia e na exposição da sua dimensão formalista.
Nesta aula inaugural, pretendo manter a tensão envolvida no postu-
lado de uma ética inerente à ontologia, cujo caráter imanente aos discursos
conexos à filosofia leva a ética a circular também de forma contínua com
casos empíricos e históricos. Contudo, a minha pretensão primária é salien-
tar a originalidade de uma ética que, ao se apresentar como uma ética das
verdades, aponta, no contexto teórico e histórico francês, para a superação
da ontologia fundamental de Heidegger. Essa ambição decorre das críticas
formuladas por Levinas e da separação de uma fusão enganosa que Heideg-
ger operou entre matemática e técnica.

A FILOSOFIA FRANCESA CONTEMPORÂNEA


Numa apresentação consagrada a situar o problema específico da
ética numa das linhas de pesquisa que caracteriza o Programa de Pós-Gra-

5
CRITCHLEY, 2008.

150
duação em Filosofia da PUCRS, não há como contextualizar nem o pensa-
mento mais abrangente de Alain Badiou, nem a tradição de filosofia france-
sa contemporânea em que se desenvolveu o seu pensamento. Todavia, na
medida em que as primeiras formulações da ética em Badiou são feitas, em
grande parte, em relação ao contexto da França após a queda do Muro de
Berlim – e o enxugamento da influência internacional da cultura francesa
– e, bon gré mal gré, a filosofia francesa contemporânea, com poucas exce-
ções além de Derrida, Lyotard e Ricoeur, continuava, pelo menos naquela
época, a seguir seu caminho principalmente dentro dos perímetros da he-
xágona, pretendo tentar recapitular algumas das suas grandes linhas de ar-
ticulação teórica. Assim, visarei a incluir os principais conceitos da filosofia
francesa contemporânea em confronto com aqueles com que a filosofia de
Badiou foi articulada.
No preâmbulo, afirmava-se o caráter sistemático do pensamento de
Badiou, e particularmente a interação entre ontologia, ética e outros discur-
sos. Nesse momento, precisa acrescentar esses planos com o de uma ciência
do aparecer e da existência, isto é, com uma fenomenologia rearticulada,
apenas para salientar duas distinções no que diz respeito à ética proposta
por Badiou. Ao defender uma fundamentação ontológica da ética, deve-se
supor, por conseguinte, uma ontologização da categoria de sujeito. Frisar o
caráter ontológico do sujeito implica sua desobjetificação. Afirmar que na
ontologia haja um sujeito “sem corpo” deve ser entendido em conformidade
com aquele postulado da desobjetificação, que avança não tanto uma ideia
do sujeito sem objeto, mais a de um sujeito que se pensa fora da categoria de
objeto, ou sem a categoria de objeto. Desta forma, opõe-se tanto a um mo-
delo de biologizar o sujeito e a ética, quanto a um de naturalizar o sujeito e a
ética. Nesse óptico, situa-se no âmbito da filosofia francesa contemporânea
em que o impacto do prefácio ao Sein und Zeit de Heidegger, tal como a sua
reflexão sobre Ereignis, se deixa vislumbrar.6
No entanto, o que será, nesse sentido, tão “contemporâneo” na filo-
sofia francesa? Para deparar um entendimento, exploraremos, no primeiro
momento, os contornos da significação de “contemporânea” na designação
filosófica da “filosofia francesa contemporânea”.

6
HEIDEGGER, 1986; 1969.

151
Poderemos começar com uma pergunta geral, a saber: porque a
afirmação da temporalidade da filosofia francesa adquire uma dimensão
significante bem além do seu momento no tempo, enquanto não encontra-
mos tal extrapolação na expressão filosofia alemã contemporânea? A mes-
ma pergunta diz respeito à filosofia analítica contemporânea, aliás, que,
em muitos autores da própria tradição, deixa de ter uma referência segura,
já que se encontra na fase pós-analítica? Contemporânea pronuncia algo
além de um momento e de um tempo. Existe certo consenso sobre a pe-
riodização desse pensamento, o que não exclui que o contemporâneo está
durando bastante tempo. Ao começar pelo próprio pensamento de Badiou7,
a periodização dessa filosofia cita como origem ainda o período da segunda
Grande Guerra, quando foram publicados os maiores livros de Sartre e Mer-
leau-Ponty. Porém, no que diz respeito especificamente a uma periodização
da filosofia francesa contemporânea, existe uma pré-história que Vincent
Descombes relatou de maneira exemplar já nos anos 70.8 Ela inclui o pode-
roso impacto dos cursos de Alexandre Kojève sobre A Fenomenologia do
Espírito, interpretação de claro cunho heideggeriano. Nisso, deve-se mais
que aludir ao papel determinante de Levinas, embora nem tenha entrado
no livro de Descombes por ainda ser desconhecido nos anos 70. No entanto,
Levinas exerceu um papel significante sobre o decurso da filosofia francesa,
pois foi ele, malgré tout, que introduziu na França tanto o pensamento de
Heidegger quanto o de Husserl.
Portanto, a designação de “filosofia francesa contemporânea” sugere
algo do método em que ela se articula. Igualmente, o qualitativo “contempo-
rânea” evoca algo da tensão conceitual no reconhecimento da coerência em
tal designação, apesar das grandes diferenças que ameaçam periodicamente
render à realidade a instabilidade classificatória que tenta cercar a filosofia.
Entendemos que a filosofia francesa é contemporânea mesmo sem o ser li-
teralmente. Ao verificar os componentes bibliográficos que determinam o
seu campo referencial, que são nitidamente contemporâneos, percebe-se que
eles não designam apenas a filosofia francesa atual, nem tudo o que se faz na
França hoje, mesmo que não se referem à filosofia produzida num passado

7
BADIOU, 2012.
8
DESCOMBES, 1977.

152
que estaria agora superado. A designação “contemporânea” puxa tanto uma
periodização quanto uma abordagem bibliográfica, e metodológica.
Continuando na pista desta indagação que confronta o caráter tem-
poral com sua dimensão metodológica e bibliográfica, é possível entender
que a própria noção de “presente” se torna alvo da análise filosófica. Um
dos principais pensadores da filosofia francesa contemporânea, Michel
Foucault, certamente advogava em favor da construção de “uma ontologia
do presente. Uma ontologia de nós mesmos”.9 A reflexão kantiana sobre a
atualidade do Auklärung lhe serve de alicerce para tal ontologia. Ao mesmo
tempo, não pode deixar de apontar o lado paradoxal de um projeto filosó-
fico sobre o presente que, de maneira sistemática, fazia recurso aos arqui-
vos históricos para desenhar genealogias de alguns dos principais conceitos
filosóficos. Isto é, principais conceitos filosóficos da contemporaneidade.
Esse descobrimento de Foucault é também o de Jacques Rancière10, mesmo
que no seu caso mais concentrado sobre a política operária, e, assim, menos
conhecido. Nos casos de Foucault e Rancière, evidencia-se que, em muitas
circunstâncias, é a própria voz do filósofo, na sua ocupação do discurso do
mestre, que lhe impede de voltar a tratar das questões fundamentais da atu-
alidade, bem que estritamente enquanto abordagem filosófica. Em outras
palavras, pensar o contemporâneo, ou pensar a partir da contemporaneida-
de, como gesto espontâneo e imediato, não atesta uma disposição filosófica
automática, mesmo ao ser feito por filósofos. Os erros políticos de Heideg-
ger, e talvez os de Foucault, são exemplos dos riscos envolvidos ao intervir
em processos de subjetividade coletiva ainda longe de se estabilizaram e
longe das suas consequências.
Por mais que “contemporânea” denote a contemporaneidade dessa
“escola” francesa, na verdade essa caracterização é secundária ao fato que
os pensamentos que se reconhecem nessa linha admitem que o “presente”
da contemporaneidade é sempre passado, ou, ainda mais, por vir. Portanto,
ameaça-se criar um incômodo conceitual - pelo menos, ameaçava-se até re-
centemente. Hoje, em decorrência do pensamento de Derrida e Agamben
(cujo pertencimento nacional é tanto francês quanto italiano), o “por vir”

9
FOUCAULT, 1984c, p. 111-112.
10
RANCIÈRE, 2012.

153
se tornou um dos grandes conceitos da filosofia francesa contemporânea.
Agamben se destaca ainda mais nesse respeito, já que ele publicou uma re-
flexão aprofundada na questão do “contemporâneo”.11 Outro expoente que
merece ser citado, nessa diáspora filosófica, é Slavoj Zizek.
Uma pergunta surge então: até que ponto essa filosofia se restringe,
se determina, ou se limita ao território nacional da França, ou a sua exten-
são linguístico-cultural francófona, em que talvez certo Brasil sudeste tam-
bém faça parte? Nesse respeito, Éric Alliez, um dos grandes “exportadores”
do pensamento francês, especifica a designação de filosofia francesa con-
temporânea no que segue:

Contemporary French philosophy is not simply the philosophy produ-


ced in France (or in the French language), by and in the institution of
the university, according to a diachronic line whose moments and di-
versity could be gathered up in a calendrical present/presence, whose
variable dimensions stand for the “contemporary epoch”.12

Nessa descrição, Alliez dispersa a referência nacional da sua base


geolinguística, o que, de qualquer forma, não faz polêmica, na medida em
que um dos grandes terrenos de prática da filosofia francesa contemporâ-
nea é justamente o mundo universitário, artístico e literário anglo-america-
no. Desde o famoso colóquio sobre o estruturalismo -, organizado por Johns
Hopkins University em 1966 -, que traz para os EUA Derrida, René Girard,
Roland Barthes, Jacques Lacan et al., o pensamento norte americano expira
um perfume outre-atlantic, de qual demonstrava dificuldades de se apartar,
antes de insistir com violência.
O referente nacional está longe de ser vazio. Os principais inovadores
da bibliografia em nosso tempo (veja a importância inflacionária adquirida
pelo pensamento de Quentin Meillassoux, ou o menos conhecido Jocelyn
Benoist e Catherine Malabou) são franceses. Essa convicção decorre tam-
bém ao contemplar-se o caso da retomada das problemáticas do estrutura-

11
AGAMBEN, 2009.
12
ALLIEZ, 2000. “A filosofia francesa contemporânea não é simplesmente a filosofia produzida na Fran-
ça (ou no idioma francês), por e numa instituição da Universidade, conforme uma linha diacrônica cujos
momentos e cuja diversidade poderiam ser agrupados num/numa presente/presença de calendário,
cujas dimensões variáveis significam a “época contemporânea”.

154
lismo, num livro importante publicado em 2011: Le Moment philosophique
des années 1960 en France, livro este organizado por Patrice Maniglier. Em
cabeçalho: Philosophie Française Contemporaine. Um dos focos principais
do livro é o acontecimento, como conceito, mas também para caracterizar o
“momento” dos anos 60, o momento do estruturalismo, que, de acordo com
Maniglier, jaz “na borda de nosso presente”.13
Portanto, propomos a seguinte equação: a filosofia francesa contem-
porânea é “contemporânea” em parte, e na medida em que exerce um esfor-
ço conceitual para pensar não tanto o tempo presente quanto o “tempo” do
acontecimento, a sua singularidade, as suas consequências e os seus múlti-
plos significados: “Auprès de mon coeur, aux sources du poème/entre le vide
et l’événement pur”.14 Na medida em que acontecimento significa ruptura, a
filosofia francesa contemporânea organiza a crítica radical do humanismo,
que seja como refutação (anti-humanismo), substituição (não humanismo)
ou superação (pós-humanismo), tendo em vista o compromisso teórico a
abordar os fenômenos subjacentes aos conceitos do humanismo que proje-
tam a presença viva do sujeito.
Esse conjunto de afirmações agora deve nos reconduzir ao ponto de
início: o campo de pesquisa filosófica denominada “filosofia francesa con-
temporânea” continua sendo inequivocamente contemporâneo.

A ONTOLOGIA NO SISTEMA DE BADIOU


A doutrina axiológica de Alain Badiou se expressa no livro A Ética.
Ensaio sobre a consciência do mal.15 Ela se consolida na seguinte afirmação:
não existe uma ética geral: a ética é sempre situada.16 Na inclusão da ética
no sistema, cuja articulação vem à tona na publicação de L’Être et l’événe-
ment, em 1988, e, por conseguinte, na verificação das teses do sistema pela
ética, destacaremos os seguintes momentos: São Paulo. A fundação do uni-

13
MANIGLIER, 2011, p. 22.
14
VALÉRY, Paul. “Le Cimetière marin” (1920). “Junto ao peito, nas fontes do poema/Entre o vazio e o
puro acontecer.” [Trad. Darcy Damasceno e Roberto Alvim Confia]. Disponível em: http://www.cultura-
para.art.br/opoema/paulvalery/poema_db.html. Acesso em: 17 nov. 2012.
15
BADIOU, 1993; tradução brasileira em 1995.
16
BADIOU, 1995.

155
versalismo17; “Prefácio à tradução inglesa de Ética18; O Século19; Logiques des
mondes, 2006; “On Simon Crichtley’s Infinitely Demanding: Ethics of com-
mitment, Politics of Resistance”20; e Second Manifeste pour la philosophie.21
Percebe-se nesse corpus de publicações a integração da ética nos dois pila-
res do sistema, ou seja, tanto na ontologia quanto na fenomenologia, cuja
articulação é anunciada várias vezes desde 1998, mas que será apresentada
finalmente apenas em 2006, em Logiques des mondes.
A possibilidade de uma ética na dimensão histórica das formações
subjetivas variadas é trivial. Como se afirmava antes, a originalidade e a ou-
sadia de Badiou, no que diz respeito à ética, se encontram na integração da
ética na ontologia. Porém, não é apenas essa integração que conta. A tradi-
ção metafísica e teológica, há muitos séculos, de Santo Agostinho até São
Tomas de Aquino, a não ser até Descartes e Espinosa, já operava com a mes-
ma postulação sobre ética (ou pelo menos sobre moral). O que caracteriza
a diferença da tese em Badiou é que a ontologia seja imanente aos discursos
que condicionem a filosofia, e que se trata de uma ontologia secularizada do
múltiplo irredutível ao Um/Uno. Já que a base estrutural, que traz coerência
e estabilidade à determinação absoluta das categorias centrais da ontolo-
gia, tais como a verdade, o ser e o infinito, é eliminada por um argumento
apagógico, Badiou procede a secularizar a noção de “mal radical”.
Essa crítica fundamental do mal radical é ousada porque, se for com-
provada, terá um efeito recursivo sobre a história da filosofia que decorre
da rearticulação da ontologia feita no âmbito de um sistema. O mal radical
será então relativizado aos termos do sistema. Porém esses termos não são
sistêmicos, ou seja, meramente descritivos. O sistema não visa repetir as
falhas dos seus ancestrais. O âmbito do sistema é o universo dos múltiplos.
Portanto, importa apenas uma relativização do mal radical que mantém sua
intensidade destrutiva, ao mesmo tempo em que expõe certas razões pela
sua ocorrência.

17
BADIOU, 1995; tradução brasileira em 2010.
18
BADIOU, 2001.
19
BADIOU, 2005; tradução brasileira em 2009.
20
BADIOU, Symposium: Canadian Journal of Continental Philosophy, 2007.
21
BADIOU, 2009.

156
Cabe agora perguntar: de que se trata essa articulação em sistema
da filosofia de Alain Badiou? No Manifesto pela filosofia, Badiou convida
para “um passo na configuração moderna, essa que, depois de Descartes,
liga as condições da filosofia a três conceitos nodais que são: a verdade, o
ser e o sujeito”.22 Examinaremos agora cada um desses conceitos-chaves.

(I) A VERDADE
Em várias instâncias, Badiou teve ocasião de homenagear um dos
seus mestres, Louis Althusser, por emprestar uma articulação argumentati-
va que prossegue por meio da afirmação de teses e da defesa destas.23 Uma
das teses mais profundas que Badiou afirma no contexto do sistema, cujos
primeiros perfis serão apresentados em meados dos anos 80, é o seguinte:
“A filosofia não produz verdades”.24 Uma tese provocadora, sem dúvida algu-
ma. Porém, assim que passou o frisson, a tese engana mesmo na exigência
de certo reconhecimento de um relativismo forte. A tese segundo a qual a
filosofia não produz verdades, de fato, afirma um relativismo rigorosamente
demonstrado no que diz respeito à relação entre filosofia e verdade, mas
afirma isso de maneira derivada. O objetivo de Badiou é reinstituir a viabili-
dade, a necessidade, de um conceito de verdade universal. Para realizar isso,
ele precisa passar pela relativização das verdades.
A relativização do mal radical é o êxito axiológico dessa tese na on-
tologia de Badiou. Mas o reconhecimento da natureza relativa do mal não
visa diminuir a sua gravidade, nem o medo que sua expressão pode pro-
porcionar, sem falar do sofrimento, às vezes além do imaginável, que o mal
pode evidenciar. A tese não visa avaliar os efeitos do mal, nem simplesmen-
te condenar a sua inelutável presença no mundo. Ao invés, a ambição da
tese é aumentar a força explicativa por trás de atos cuja provação coabita
com a sua incompreensão. O recurso ao senso comum sobre os males que
a “natureza humana” não pode deixar de cometer, ou sobre a narração da
queda do Homem, não serve aqui como solução didática. O mal deve ser

22
BADIOU, 1991, p. 5.
23
BADIOU, 1991.
24
BADIOU, 1989/91, p. 9.

157
compreendido como ato, não como substância. Nesse respeito, a instabili-
dade delimita seus contornos verdadeiros.
Há como especificar uma definição do mal a partir da participação
da filosofia em dessubstancializar a verdade. O mal será então o efeito de
um comprometimento da centralidade que a verdade ocupa na filosofia. Ve-
remos adiante o que isso significa especificamente. Cabe, neste momento,
lembrar que na posição ontológica encontra-se a condição para reafirmar a
extensão universal da verdade. Contudo, a verdade não deixa de ser o resul-
tado de um ato, mesmo a partir da perspectiva ontológica preconizada por
Badiou. Mais ainda, ela é o resultado em ato, assim devendo entender-se a
sua conceptualização dita “genérica”, em que num determinado momento
prescritivo a verdade deixa de ser produzida e começa a produzir.
Portanto, ao contrário dos efeitos históricos e empíricos dos atos de
verdade nos discursos não especificamente filosóficos, na ontologia a verda-
de é tanto efeito quanto ato. É o efeito da subjetividade em ato, que este seja
um ato de fala, de pensamento, de poiesis, ou deveras, de produção. Surge a
interrogação, então, sobre onde localizar a produção da verdade.
Na articulação do sistema, a filosofia se descentraliza no que diz res-
peito à verdade. Já se afirmou a tese segundo a qual a filosofia não é pro-
dutora de verdade. Aliás, quando a filosofia determina a produção da ver-
dade como sendo a sua própria atividade, encontra-se uma reativação do
que Gilbert Ryle chamava “erro de categoria”, e Badiou denomina “sutura”.25
Trata-se de uma situação em que a filosofia arrisca se dispersar num dis-
curso alheio. Ora, no sistema, são delimitados quatro discursos em que a
produção de verdades participe de um procedimento isomorfo. Esses pro-
cedimentos em que são produzidas verdades se configuram num complexo
de práticas discursivas envolvendo decisões, justificações e demonstrações.
Entre a arte, a ciência, a política de emancipação e o amor, existe uma re-
lação de “compossibilidade”, e a ontologia analisa essa relação no que diz
respeito ao caráter comum entre eles.
Ademais, a novidade da posição de Badiou é que, na verdade, frisa-
-se a construção de algo novo. Para atribuir um sentido à novidade, é im-

25
BADIOU, 1989/91.

158
prescindível entender a reformulação da noção de situação de base. Na es-
teira de Heidegger e Sartre, a situação vem designando o “es gibt” –, o que
há. O que suponha que, antes de qualquer representação, o que é é a multi-
plicidade, consistente e inconsistente. É importante salientar logo certa va-
cilação no rigor demonstrativo de Badiou no que diz respeito a essas quali-
ficações da noção de multiplicidade. A multiplicidade consistente é um
múltiplo bem formado, que necessita da existência do fenômeno primordial
do pertencimento a outro múltiplo.26 Reconhece-se logo o princípio funda-
mental da teoria dos conjuntos, o pertencimento, simbolizado por:

Por isso, Badiou avançará que a tese fundamental pela coerência do


seu sistema é a de que a ontologia é a matemática, ou seja, a ciência do ser
enquanto ser é a mesma ciência que a do múltiplo enquanto múltiplo. Na
filosofia, conhecem-se as tentativas não sucedidas, especialmente na filoso-
fia francesa contemporânea, de se criar uma ciência do múltiplo irredutível
à figura da unidade. Porém, na área da fundamentação da matemática, uma
teoria que não pressupõe a unidade antes de compor um universo de múlti-
plos é a bem conhecida teoria dos conjuntos. A proposta de Badiou é que o
seu conceito não redutível à unidade não foi adequadamente avaliado para
a filosofia. Um conjunto bem formado pode ser “contado por um”, num ato
representacional, mas a sua essência, na medida em que cabe aplicar tal
noção, é a de uma “multiplicidade inconsistente”.
Ora, existem dois significados para a inconsistência nessa teoria. O
primeiro se opõe a um múltiplo bem formado. Inconsistente é um múltiplo
não formado, que não pode ser “contado”, e que não entra na conta pela
qual ganha coerência num “estado da situação”, estado de representação da
situação sempre relativo a uma condição. Mas existe outro significado de
inconsistência: inconsistente é a noção segundo a qual um elemento de um

26
BADIOU, 1994, p. 93.

159
conjunto deve ser necessariamente uma unidade. Na sua essência, o ele-
mento é um múltiplo sem Um/Uno, não porque um elemento-múltiplo seja
contraditório, mas porque um elemento é um múltiplo de múltiplo repre-
sentado como unitário. É assim porque não há como lhe atribuir proprieda-
des sem considerá-lo conforme ao princípio de identidade. A fortiori, uma
multiplicidade nova quando se apresenta num mundo concreto é algo cuja
definição pelo menos tem de ser articulada. Por isso, uma multiplicidade
nova será considerada equivalente a uma criação local.
A perspectiva dos procedimentos em comum forma um conjunto de
potencial “genérico” no que diz respeito à força prescritiva da verdade. A di-
mensão prática do pensamento de Badiou se expressa por meio do conceito
genérico que, por uma coincidência, desenha uma conexão entre filosofia
política e matemática. O genérico denota o credo de Marx e Engels de que
o proletariado alienado contém, em negação, a força transformadora para
ativar uma nova superação histórica por meio do movimento dialético.27 Na
sua pura negatividade, conforme a definição hegeliana, o proletariado é a
humanidade universal por vir, mas, sendo apenas por vir, ainda não tem
propriedades, ainda é genérico. Por outro lado, o conjunto genérico de Paul
Cohen é uma projeção a partir do universo conjuntístico, mas que não acei-
ta elementos, pois não “existe” enquanto tal.28
Na terminologia ontológica, isto é, matemática, o genérico constitui
o conceito que ativa uma perspectiva puramente especulativa a partir da
qual a indeterminabilidade da Hipótese do Contínuo, expressa na prova dita
diagonal pelo principal descobridor da multiplicidade, o matemático ale-
mão Georg Cantor, não influi diretamente sobre este universo. A Hipótese
do Contínuo tem como extensão na situação a reta. A reta inscreve a dimen-
são inteira do contínuo, com esta reserva: que não existe totalização, ou
seja, não existe um conjunto que totaliza todos os outros conjuntos. Por
conseguinte, o contínuo reverte a concepção grega do não finito, isto é, do
apeíron, do sem limite. A forma canônica da Hipótese do Contínuo demons-
tra um desequilíbrio num universo conjuntístico. Na terminologia, mais

27
MARX: ENGELS, 1998.
28
O livro histórico de Paul Cohen é Set Theory and the Continuum Hypothesis, New York: Dover, 1963.
Para o tratamento de Badiou do conceito matemático do genérico, confira: Badiou (1988).

160
uma vez, isso se afirma assim: o tamanho, “cardinalidade”, ou “poder” do
conjunto dos elementos de um conjunto E infinito, é igual ou menor em
número que o poder das partes, ou subconjuntos desse conjunto E. Confor-
me o Axioma do Conjunto-Poder:

Para qualquer X, existe um conjunto, Y=P(X), o conjunto de todos os


subconjuntos:
A Hipótese do Contínuo trata então do tamanho diferencial entre o
conjunto dos elementos e/ou das partes ou subconjuntos. Trata-se de um
princípio formal fundamental de estar-dentro, que no caso é dividido em
duas possibilidades: em termos de elemento ou de grupo.29 Na ontologia de
Badiou, a dimensão dos elementos, na medida em que um elemento é de-
finido não como unitário, mas como múltiplo de múltiplo, é a inscrição da
situação enquanto tal. A dimensão das partes, ou dos subconjuntos, já se
trata do estado da situação. De acordo com Badiou,

Um dado fundamental da ontologia é que o estado da situação excede


sempre a própria situação. Há sempre mais partes do que elementos,
a multiplicidade representativa é sempre de tipo superior à multipli-
cidade apresentadora. Esta é de facto a da potência. A potência do
Estado é sempre superior à da situação.30

Mas o problema na ordem ontológica é que a previsão indutiva e re-


cursiva da veracidade dessa hipótese não consegue ser comprovada, mesmo
que isso não prejudique a coerência e a abrangência da teoria dos conjun-
tos: o universo conjuntístico não corre risco de entrar em colapso. Contu-
do, a verdade deste universo dos múltiplos irredutíveis existe certamente,

29
BADIOU, 1999.
30
BADIOU, 1999, p. 168.

161
mesmo que perigosamente, na especulação sobre os tipos de construções
formais capazes de traçar aquilo de que a verdade é capaz quando recebida
pelo pensamento subjetivo.
Em outros termos, a Hipótese é independente dos modelos da teoria
dos conjuntos. Isso sugere que, por meio de recursividade, o que foi desig-
nado como o “estado de uma situação”, localmente entendido nos discursos
da arte, da política de emancipação, do amor e da ciência, poderá ser subs-
tituído por uma nova concepção, um novo sujeito, da verdade. Nesse caso,
a verdade terá sido vivenciada por um sujeito no modo produtivo, ou seja,
a verdade terá contribuído com a expansão de uma nova subjetividade na
sua criação. Mas qualquer que seja a determinação do genérico, que seja em
Marx e Engels, ou em Cohen, em Duchamp, ou Tristan e Iseut, não poderá
manifestar uma determinação qualitativa sem logo perder seu caráter gené-
rico. Nessa condição, o genérico supõe o conceito de verificar a existência
do universal, mesmo se for por meio indireto.
Portanto, a filosofia, tal como Badiou a entende, trata da produção
local e relativa de verdades. Ademais, ela organiza um conjunto formal da
verdade universal, a partir do qual reitera a definição do ser enquanto ser.

(II) O SER
O domínio do ser enquanto ser é o da multiplicidade irredutível ao
Um/Uno, a formação num universo aberto sem absoluto (a “situação”). Nes-
se sentido, o conceito do ser em Badiou já apresenta um passo em direção
ao conceito de Ereignis em Heidegger, mas realmente retoma a definição do
ser avançada por este na introdução do Sein une Zeit. Badiou textualmente
afirma que o ser implica um pensamento desobjetivado. Porém, a grande
inovação em Badiou não existe no lugar do ser enquanto tal, mesmo que ele
faça, com a assistência hermenêutica e filológica de Barbara Cassin, uma
redução da noção aristotélica do ser ao existente, tal como apresentado no
livro Gama da Metafísica.31 A sua grande inovação é considerar o ser como
um corte no universo aberto de multiplicidades, em que a multiplicidade é
irredutível ao Um/Uno em virtude de que a figura do infinito não é mais úni-

31
BADIOU, 1998.

162
ca. O que Georg Cantor liberou com o “objeto” Mannigfaltigkeit, era a equa-
ção infinito-Um-absoluto.32
Desta forma, a tese de 1988 é que a ontologia, ciência do ser enquan-
to ser, é a ciência da multiplicidade, ou seja, o Um é o resultado da “con-
ta-por-um”.33 Em outras palavras, o Um é uma representação da dimensão
primordial do ser. Se for confirmado que o universo é unitário, composto
de “elementos”, então a posição inicial deve ser necessariamente múltipla.
O ser é múltiplo, mas também não há determinação da posição inicial que
seja transversal a sua multiplicidade, a não ser que esta seja “bem formada”.
É preciso um conceito genérico da essência do múltiplo, porque a multipli-
cidade é geralmente representada como composta de elementos unitários.
Exige-se um recolhimento aquém das propriedades, o lugar mais formal da
metafísica. Na genealogia dessas questões de matemática moderna que Ba-
diou apresenta em 1990, a teoria dos conjuntos se desenvolve a partir de
indagações sobre a relação entre finito e infinito.34 Ora, a inscrição da mul-
tiplicidade na língua do ser corresponde à proposta da axiomatização da
teoria dos conjuntos. Portanto, a ontologia é a matemática (ou seja, a teoria
dos conjuntos, na sua versão axiomatizada “ZF com axioma de escolha”).
Ora, a ontologia trata estritamente do domínio do ser enquanto ser.
Mas ontologia e filosofia não são idênticas. No que diz respeito à filosofia,
ela trata também daquilo que não-é-o-ser-enquanto-ser (i.é., o aconteci-
mento), assim como dos paradoxos e das incoerências das multiplicidades
inconsistentes. Na gama dos grandes conceitos inconsistentes nos anais da
filosofia, pode-se citar a extensão infinita das agitações que Leibniz chama-
va “petites perceptions insensibles”35, o análogo dos infinitesimais na ordem
sensorial e perceptual. Pensa-se também em Kant, quando escreve que “eu
sempre reconheço as barreiras do meu real conhecimento da terra, mas não
as fronteiras de toda a descrição possível da terra”.36 Desta forma, a essência
da finitude é a repetição, a repetição de um pensamento que cria as bar-

32
GOMIDE, 2009.
33
BADIOU, 1988.
34
BADIOU, 1990.
35
LEIBNIZ, Nouveaux Essais sur l’entendement humain, préface; Monadologie, § 21.
36
KANT, (KrV, 495-496).

163
reiras para não as reconhecer. Sustenta-se, por isso, que a filosofia deveria
também apostar naquilo que não é o ser, por exemplo, pensado na sua lógi-
ca desviada por Górgias.37 A grande sofística permite à filosofia se situar a
distância das suas partes, mas o risco é perder de vista o sistema. A filosofia
pensa o acontecimento fora da ontologia, no limiar, na beira dos seus efei-
tos. Portanto, nem filosofia nem acontecimento se reduzem à ontologia, à
inscrição formal das verdades.
Dada essa determinação do acontecimento, e que a multiplicidade
não representa uma ruptura com o acontecimento, mesmo que o aconteci-
mento estabeleça uma ruptura no estado da situação localizado num discur-
so, pode-se afirmar que a multiplicidade não é nem finita nem infinita, mas
um efeito do vazio. Um axioma conjuntístico (não ZF) afirma o seguinte:

denota o conjunto sem elemento algum, conjunto este que é um sub-


conjunto de qualquer outro conjunto.

Em outras palavras, na ontologia o vazio não é nada. O nada cessa de


existir. Stricto sensu, a multiplicidade só pode ser representada em função
de unidades, ou elementos. Mas, por um postulado do pensamento, afirma-
-se que a multiplicidade é um múltiplo de múltiplo. A decisão ontológica é
anterior à ontologia mesma e se verifica retroativamente. Essa decisão visa
resolver o caráter da necessidade do universo da multiplicidade, isto é, seu
caráter “realista”. O seu “início”, o seu ponto de enraizamento primordial,
deriva do pertencimento necessário a esse universo.
Na segunda ordem da ontologia, na ordem da representação e da

37
GORGIAS, Tratado do não ser.

164
conta-por-um, um estado da situação existe como perspectiva sobre os dis-
cursos em que as verdades são produzidas, já que elas não são produzidas
pela filosofia. O estado da situação representa a normalização de um discur-
so pelo qual a sua coerência produz a justificação também da configuração
da sua existência. O estado da situação admite uma perspectiva individu-
al, que o considera geralmente como fixo e o representa conforme modelos
de normalidade. Mas o estado da situação pode também se tornar alvo de
uma crítica ontológica que, então, necessita de uma perspectiva subjetiva.
A noção de sujeito nesta organização dos alicerces de um universo da mul-
tiplicidade não é mais individual, nem tampouco individualista. O sujeito,
quando e se surge, aponta para o caráter real do universo que está sendo
desviado, falsificado, degenerado, pela configuração dominante num dis-
curso cujo ponto de legitimação se encontra nas verdades que produz. Mas
se estruturalmente um discurso configurado como estado da situação (que
pode ser nominalista, naturalista, biologista etc.) admite uma relação con-
traditória com a essência múltipla do universo, as verdades supostamente
criadas nele são também falsificações.
Admitimos que em nossas sociedades a novidade é altamente va-
lorizada. As relações de trabalho afirmam necessitar novidades tanto nos
aspectos do aperfeiçoamento pessoal, quanto nas capacidades de inovação
e de ampliação do capital. Como então esta configuração do ser e dos proce-
dimentos de verdades pode aparecer a partir de uma perspectiva individua-
lista? Os múltiplos por mais que sejam reais, são entidades que estruturam
o pensar. Uma dinâmica teleológica da cognição humana é representá-los
como unidades.
A partir do princípio fenomenal de base, pelo qual se caracteriza
o ser como múltiplo, a decisão de entender o múltiplo como múltiplo, ou
como unidade, se articula na ordem representacional, que é irredutível à
conjectura sobre a apresentação do ser. Em termos da tese segundo a qual
a ontologia é a matemática tal como se formaliza na teoria dos conjuntos, a
ordem do ser representado corresponde ou à existência derivada de subcon-
juntos, ou a uma teoria que modeliza de modo semântico esses subconjun-
tos. Esses modelos são semânticos no sentido lógico-matemático. Por isso
se encontra até por dentro da reflexão conjuntística exigências como a de

165
que um elemento deve ser pensado no modo bem formado e unitário. Tais
perspectivas sobre a multiplicidade do ser, conforme a tese de Badiou, são
representações do Ser. Neste momento por razões ilustrativas, serve passar
a outra perspectiva representativa, a do indivíduo.
Neste primeiro sentido, meramente interpretativo, podemos enten-
der os discursos em que as verdades são produzidas num estado de norma-
lidade, na seguinte forma:

. A ARTE no estado da situação seria representada por meio do


academismo, administrado por investidores essencialmente, em que o
risco de um artista em não se adequar às normas desse mercado, cuja
estrutura é altamente volátil, é ultimamente a pobreza. Nesse contexto,
o individualismo se caracteriza na figura conceptual do “artista cínico”,
ou, ao se fundir com as correntes do tempo, o artista “psicopata”.

. A CIÊNCIA na sua forma normalizada já tem uma evocação


semelhante nas análises de Thomas Kuhn no livro Estruturas da re-
volução científica ou pior nas de Feyerabend. O seu modus operandi
depende da pesquisa e da inovação que permitem renovar os modos
de produção, que são tanto de caráter material quanto intelectual.
Na perspectiva individualista, esse discurso produtor de verdades se
pensa hoje em termos de conhecimento e informação. O avanço do
indivíduo depende da sua capacidade captar fomento. Nesse sentido,
o estado da situação é configurado por meio do complexo militar-in-
dustrial por um lado, ou seja, pelo grande estado de exceção no que
diz respeito às leis do mercado, e, por outro lado, pela indústria far-
macêutica, em que atua a mesma dialética nefasta para os seres hu-
manos há muito tempo denunciada por Adorno e Horkheimer.

. Na condição da POLÍTICA, a sua configuração se reconhece no


valor atribuído às instituições e à autonomia através das quais fun-
cionam a sociedade e o Estado. Mas a administração da sociedade
passa, além das ideologias, por uma política tributária que, de fato,
amplia o Estado em detrimento da sociedade, por meio do qual o pri-
vilégio é concentrado. Desta forma, a política existe nos policies e na
fabricação da opinião pública, o que expõe a política ao que Foucault
chamava governamentalidade. Trata-se de uma doutrina econômica

166
e administrativa que domina os discursos oficiais sobre os deveres
das classes e dos cidadãos à entidade narrativa chamada “país” ou
“nação”. O comportamento individualista nesse contexto é certamen-
te bem representado, conforme a sugestão do meu colega, Nythamar
de Oliveira, pelo “jeitinho brasileiro”, em atos de corrupção ordinária,
já que a corrupção é generalizada. Mas onde o individualista se dota
de poder, ele é reforçado por uma ética da exclusão de mulheres, de
negros, de indígenas, dos lugares em que as decisões significativas são
tomadas. Não é que as decisões dos excluídos são ausentes, reprimi-
das, mas nitidamente não são efetivas.

. Finalmente, a quarta condição ou procedimento é o AMOR, que


se configura por meio de acasalamentos. É sabido que nossas socie-
dades estão em fluxo no que diz respeito aos termos que constituem
uma união fixa. Desde Aristóteles, a posição discursiva que visa a
questões de casais é a do orçamento familiar e do lar, o que o termo
oikonomia significa literalmente.38 O que desestabiliza o casal, e o leva
a ser também o palco de atos individualistas ou até antiéticos, são o
ciúme, o abuso e/ou o tédio.

Essas descrições dadas das composições de discursos que condicio-


nam a filosofia foram feitas assim a partir de uma normalização, na con-
temporaneidade, da produção de verdades, e a partir da perspectiva do in-
divíduo que acredita ocupar uma posição de sujeito neles. Ora, a posição
do sujeito se manifesta raramente, tal como a presença ética daqueles que
ocupam o espaço. O que é nossa realidade normal, segundo Badiou, é ser
meros animais humanos até que ocorra um acontecimento.
Ao convocar esse conceito, seu sentido em Badiou se destaca por
três qualificativos estritos. Um acontecimento é raro. É um ato que é nada
sem uma nominação. Finalmente, o acontecimento é desmaterializado.
A definição do acontecimento é mínima não por causa da sua rari-
dade, mas em função de ser um ato “assubjetivo”, sem força causal. Trata-se
de uma ruptura no estado da situação, uma quebra na normalidade, uma
fissura na tessitura do equilíbrio normativo das potências da situação. O

38
Nesse sentido, além de Foucault, G. Agamben trabalhou uma genealogia da oikonomia em O Reino e a
glória. São Paulo: Boitempo, 2011.

167
acontecimento pode bem implicar o bem, se não demonstra uma promessa
de transformação radical; então não é por esse conceito que cabe indicar o
que tinha ocorrido. A promessa de inaugurar algo melhor no que diz res-
peito ao estado da situação, em que se configura um dos procedimentos
genéricos, é uma condição suficiente, porém não necessária, para que um
ato seja designado “acontecimental”. Ademais, no sentido de proporcionar
uma ruptura na tessitura de um estado da situação, um acontecimento não
deve ser concebido, pelo menos em princípio, apenas como superação de
uma normalidade. A normalidade em que há efração do acontecimento, nas
leis em relação às quais o acontecimento surge fora da lei, ressalta que tal
estado de situação é nada menos que uma camuflagem de corrupção, um
desfecho de decadência ou um parque de perversão. Um acontecimento é
uma excrescência sobre o estado da situação, mas, visto pela ontologia, ele é
sempre e especificamente localizado no âmbito delimitado de uma das con-
dições, da arte, da ciência, da política de emancipação ou do amor. Não há,
por definição, acontecimentos filosóficos. Nas condições, o acontecimento
tem as seguintes designações formais:

. No amor, o acontecimento é o encontro.

. Na arte, o acontecimento é quando a captura da sem forma ad-


vém no sensível da finitude de uma obra.

. Na política (na sua dimensão como pensamento, inovadora, de


emancipação) é a revolução.

. Na ciência é o descobrimento.

Já como antecipação da abertura de um domínio da aparência e da


existência, que vem acrescentando o âmbito ontológico que está sendo apre-
sentado neste momento, cabe frisar que o acontecimento, na perspectiva
existencial, não é equivalente ao nada. O acontecimento existe minima-
mente no mundo, e se torna uma existência no sentido mais forte.
A sua fundamentação lógica se baseia na força implicativa do mo-
dus ponens. Esse modelo fundamental de implicação permite a separação
de uma proposição que subsista enquanto o acontecimento some, pois não
há como o acontecimento existir enquanto tal sem a atribuição dêitica do

168
nome ou da proposição que atesta o seu surgimento.39 Contudo, o aconteci-
mento não cria nada. Está proporcionada, na vizinhança do seu ato, a cria-
ção de uma proposição. A proposição em si não manifesta nada original.
Assim, ela já existe, mas como indecidível. Ao falar deste modo, estamos
situados na máxima tensão entre manter a dimensão acontecimental do
ato, isto é, da sua não objetividade, e o surgimento de um novo processo de
subjetivação, despertado pela primeira nominação do ato. O que o aconte-
cimento “determina” é meramente o valor da proposição, o seu valor de ver-
dade. Mas o valor específico a ser atribuído nos conduz ao terceiro conceito
fundamental da ontologia de Badiou, que é o do sujeito.

(III) O SUJEITO
Na situação de base, e no estado normalizado da situação, nós exis-
timos como animais humanos, ou indivíduos. Mas, para nos tornarmos “su-
jeito”, temos que escolher. O momento em que escolher se confronta com
um acontecimento, encontramos a manobra pela qual Badiou, numa certa
forma na esteira de Sartre, reintroduz o conceito de sujeito no âmbito da
ontologia. Essa reintrodução segue um período longo de desconstrução e
parte dos argumentos de Heidegger e se estende aos estruturalistas fran-
ceses. O sujeito não manifesta nenhuma individualização, nem, para ser ri-
goroso, nenhuma projeção coletiva. O sujeito é anônimo e sem forma. Ao
entender essa qualidade ao pé da letra, o sujeito é sem identidade material,
além de enunciados afirmados na beira do audível. O sujeito é ainda sem
corpo no âmbito da ontologia. Mesmo ao ser visto de maneira imanente às
condições, continuará a seguir sem corpo. No âmbito da ontologia, isto é, no
da multiplicidade irredutível às figuras do Um e do Uno, o postulado sobre a
espacialidade não supera uma propriedade plana.
Portanto, o sujeito é o suporte genérico do radicalmente novo. Não
há “um” sujeito (a proposta não preconiza um retorno ao paradigma do car-
tesianismo/kantianismo, ao solipsismo, às filosofias pré-dialógicas, pré-in-
tersubjetivas, ou pré-discursivas, ou seja, nenhum retorno para uma confi-
guração ontológica livre, isenta ou anterior à ética). Existem quatro formas

39
BADIOU, 2008a.

169
locais de sujeito relativas às condições, que em expansão afirmativa dizem
respeito às piores forças inerciais, de estagnação ou de corrupção que con-
cretizam um “estado da situação”, forças estas que evidenciam a instalação
de um banal etos ou uma “para-ética” da normalidade oca.
Da perspectiva da ontologia, o sujeito se reforça na acumulação de
enunciados feitos sobre o acontecimento. Mas essas proposições são for-
mais, no mesmo nível de formalismo que a matemática formal de Russell,
Whitehead e Wittgenstein, mesmo que as consequências e modelos inter-
pretativos divirjam radicalmente. A estrutura posicional, a moda e a força
do sujeito se organizam na vizinhança do acontecimento, denominada o
“sítio do acontecimento”. Mas o sujeito cresce em função de duas disposi-
ções cuja terminologia demonstra uma sobredeterminação, por um lado, e
numa tendência a transformar o estado de situação, se for avançada em sua
configuração, por outro. A inscrição formal dessa configuração se verifica
ser em continuidade com a terminologia formalista da “lógica matemática”.
Todavia, é pertinente ressaltar aqui que Badiou não aplica as determina-
ções padronizadas da organização da “lógica matemática” feita pela filo-
sofia analítica. A teoria dos conjuntos é a matemática designada na tese da
identidade entre ontologia e matemática. A lógica terá a designação de for-
malizar o domínio da aparência e da pluralidade de mundos possíveis. Em
outras palavras, a lógica trata dos códigos pelos quais o estado de situação
se configura em diversas instâncias.
A primeira disposição do sujeito é nomear o acontecimento. Em rea-
ção a seu despertar, o sujeito tende a entender as condições do seu próprio
surgimento em relação ao ato inicial. Na medida em que, num dos discursos
históricos e genéricos, o corpus de enunciados sobre o acontecimento de-
monstra uma expansão, os sujeitos individualizados que pertencem ao seu
conjunto podem flutuar para subconjuntos nocivos que dizem respeito ao
novo conjunto do sujeito. Por isso, a disposição do sujeito, no concerne às
verdades, é a fidelidade para produzi-las de modo específico e local. Isso é a
diagramação ontológica da verdade.
Uma segunda disposição do sujeito, que é uma disposição da própria
verdade, é forçar a verdade do acontecimento. Mesmo que seja uma propen-
são do sujeito, a perspectiva crescente da nova subjetividade, comparada

170
com a diagramatização ontológica, deve ter em perspectiva as limitações do
universo conjuntístico. Nessas limitações, trata-se especificamente da não
existência do conjunto dos conjuntos. Com a decomposição da identidade
entre absoluto e infinito-um, o absoluto não existe mais para fechar o uni-
verso conjuntístico. Nas palavras de S. Zizek, “o grande Outro não existe”.40
No heurístico, o grande Outro não deve ser confundido com outro
axioma, isto é, dito de escolha. Esse axioma expressa que num conjunto
qualquer composto de conjuntos separados (ou disjuntos) existe um con-
junto composto arbitrariamente de exatamente um elemento de todos os
conjuntos num universo. Isso permite verificar a coerência, isto é, a verda-
de, de uma afirmação com extensão universal sobre um subconjunto nesse
(grande) conjunto. É importante salientar que o axioma da escolha não é
fundamentado de modo que todas as teorias de conjuntos o admitam. Ade-
mais, Paul Cohen demonstrou a independência do axioma. A consequência
imediata desse teorema é que a função decisionista, o que desperta uma
nova forma do sujeito, não faz parte de todas as ontologias. Porém, vem le-
gitimando também a inclusão de um espaço discriminatório por dentro da
ontologia, a partir do qual um conjunto possa se ampliar.
O sujeito é o veículo para pelo menos três teorias de verdade. A pri-
meira considera o universo conjuntístico como fechado, isto é, com base
na teoria de completude de Gödel, o universo será definido apenas a partir
dos conjuntos “construtíveis”, ou seja, consistentes no sentido específico de
serem contados por um em função de serem bem formados. Da perspectiva
heurística, isso implica que as condições de mudança radical do universo
são praticamente nulas, por que não há como enxergar o surgimento de
novas formas a partir de uma lógica bivalente rigorosa. A segunda teoria
de verdade, de que a ontologia estabelece o diagrama, é uma teoria trans-
cendente. É a admissão de que na construção do universo conjuntístico há
uma necessidade de que este universo seja fechado. Portanto, existiria um
absoluto em relação ao qual o universo mantém sua coerência e coesão. É
eventualmente a posição do próprio Cantor.41 Finalmente, a grande contri-
buição de Paul Cohen à teoria dos conjuntos é a técnica que ele criou para

40
ZIZEK, 2010.
41
GOMIDE, 2008.

171
provar a independência da hipótese do contínuo, que é a construção de uma
“extensão da situação”, irredutível à lógica clássica do universo conjuntísti-
co, e diferida da sua temporalidade. Essa terceira visão é a do genérico.

UMA ÉTICA DA VIRTUDE


E DE UM MAL RELATIVIZADO
A inclinação primeira de Badiou na reconstrução literal da onto-
logia como parte de um sistema não teve como objetivo a articulação de
uma ética. A política, quando deparada na lógica de transformação, alça a
ética ao paroxismo, que não infrequentemente acaba suspendendo-a. Ba-
diou afirma em vários momentos que a ética surgiu, pelo menos na França,
num momento suspeito para a reflexão crítica, já que coincidiu com a perda
do ímpeto decorrendo das análises marxistas que advogavam em favor de
uma mudança radical da sociedade.42 A ética não podia substituir a política
de emancipação como foco de compromisso filosófico pelo fato de que, no
período em que certos países socialistas revelaram a decadência no ideal
aplicado de igualdade, as desigualdades começaram a rápida ascensão nos
países ocidentais praticamente de maneira concomitante. Estamos falando
na França do fim dos “Trente glorieuses”, os trinta gloriosos anos de cresci-
mento econômico, após o sucesso keynesiano do Plano Marshall.
A substituição econômica, num Ocidente se reposicionando após a
formação da OPEP, seguiu os princípios econômicos de Milton Friedman,
que defendeu que “A society that puts equality before freedom will get nei-
ther. A society that puts freedom before equality will get a high degree of
both”.43 Se isso for uma legítima máxima da liberdade, então, Badiou a opõe
à máxima da igualdade. Para proporcionar um avanço de qualquer tipo para
que a máxima da igualdade esteja aberta por um acontecimento, é preciso
entender primeiro o que significa um estado de situação em que a entidade
específica à prática discursiva da política, a saber, o Estado, é posto à distân-
cia e medido. Nisso, Badiou entende que o “Estado é efetivamente servidão
sem medida das partes da situação, servidão cujo segredo é precisamente

42
BADIOU, 2001.
43
FRIEDMAN, 1990.

172
a errância da suprapotência, a sua ausência de medida”.44 A errância do ex-
cesso efetua a manifestação da máxima liberdade.
Ora, o excesso do estado da situação sobre a situação é verificado,
pela Hipótese do Contínuo, como descrição do real. É a errância que impos-
sibilita a lógica igualitária, não o excesso em si. A errância defende que o
Estado não tem medida, o que retroage sobre a própria lógica do ser, e sobre
a língua do sujeito. Pois a lógica do ser inscreve a transformação regular que
afeta a relação entre estado da situação e a situação, em momentos quando
a essência múltipla do ser está reduzida por uma superpotência do excesso,
que oculta sua medida.
A doutrina de choque que veio substituir o “New Deal” nos Estados
Unidos, na aplicação dos princípios econômicos de Milton Friedman, des-
pertou os salários de executivos, estrelas e funcionários do complexo mili-
tar-industrial-segurancial, legitimando-se a partir de um misto publicitário
de meritocracia e demanda do mercado. No mesmo movimento, revoga-
ram-se as agências de supervisão dos setores industriais, do meio ambien-
te e do setor financeiro, sem falar do corte massivo dos programas sociais,
tudo em nome da crítica contra o“Big Government”. Não podemos esquecer
que os anos 80 representam para o Brasil, ao lado do retorno crepitante da
democracia, o início da “década perdida”, em que, após décadas de ditadura,
a América do Sul confrontou-se com mais de dez anos de estagnação econô-
mica e inflação espiralando.
Nessas condições, torna-se difícil sustentar a substituição da políti-
ca de emancipação pela ética em resposta a uma exigência histórica. Porém,
o público profissional, de colar branco, defende a importância de manter as
instituições democráticas decorrentes da Constituição de 1988, principal-
mente pela convicção de que o Estado de Direito poderia prevalecer diante
de novas aspirações ditatoriais. A despeito do sentimento popular de vul-
nerabilidade tanto às crises econômicas quanto à efervescência golpista, a
decisão de Badiou de articular uma ética de pleno direito tem mais a ver
com as exigências internas do seu sistema do que com a admissão em favor
de manter a crença em exemplos de democracia em falência.

44
BADIOU, 1998, p. 170.

173
O início da reflexão ontológica da ética em Badiou começa com o
livro Ética: Ensaio sobre a consciência do mal (1993). De acordo com ele, esse
livro foi escrito “numa fúria genuína” contra o “mundo mergulhado num
delírio ‘ético’”.45 O livro se distribui em dois eixos:
1º [I] Crítica da “ideologia dos presumidos ‘Direitos humanos’”; [II]
Defesa das teses “anti-humanistas” dos anos 1960; [III] Eliminação das filoso-
fias da alteridade e da figura do Tudo outro: que são substituídas pelo prin-
cípio fundamental da verdade, que é o seguinte: a verdade é a mesma e igual
para todos. 2º [iv] Crítica da noção de “mal radical” ou “mal absoluto” - e críti-
ca da consciência de vitimização que decorre especificamente do conceito de
mal radical; [v] “A ética não pode ser geral, […] mas é uma ética da verdade.”
A Ética da(s) verdade(s) é assim a flexão operada por Badiou na ética
das virtudes, que é a sua base. Como essa ética se distingue de outras dou-
trinas em voga? A ética das verdades não é uma ética normativa (o sujeito
verdadeiro, isto é, o sujeito coletivo pós-acontecimental, é ou “fora da lei”,
ou cria suas próprias normas universais). Por isso, não se trata de uma ética
da justificação. A verdade surge da falha no estado da situação articulado no
âmbito de uma condição, e despertado por um acontecimento. O aconteci-
mento, se for verdadeiro, justifica sem argumento a verdade, mesmo que o
acontecimento tem que ser verificado diga respeito a sua veracidade. Trata-
-se de uma ética da virtude na medida em que necessita de persistência, es-
forço, disciplina na transformação radical do estado da situação, seguindo
uma orientação indicada formalmente pela Letra do Ser.
Desta forma, aproximamo-nos, então, do caráter específico dessa
ética, que é uma ética formulada por dentro da ontologia proposta. Em ou-
tras palavras, a ética é inseparável da progressão crescente do sujeito, e ao
mesmo tempo afirma que as categorias, os conceitos e os operadores pro-
vêm de uma ontologia da multiplicidade. Há quatro etapas determinantes
à ética de Badiou:
1ª reconhecimento/identificação do acontecimento;
2ª participação/organização no processo de subjetivação e sua ex-
pansão: a criação de verdades. A máxima é: “Continue! Persista na criação

45
BADIOU, 2000, p. LIII.

174
de verdades: seja fiel a esse processo”. (Neste sentido, a fidelidade é a varian-
te ético-ontológica da demonstração, da verificação, da objeção descartada
e da refutação rebatida, tal como da confirmação conveniente do aconteci-
mento e das suas consequências);
3ª Para realizar isso, um animal humano, individualizado, deve se
tornar sujeito numa abnegação (contra as tentações do egoísmo, da infide-
lidade e da fraqueza da alma): “cada ser humano é capaz de ser imortal, nas
grandes e pequenas circunstâncias, por uma verdade importante ou secun-
dária, pouco importa. Em todos os casos, a subjetivação é imortal e faz o Ser
Humano”46;
4ª “Forçamento”: a subjetividade em formação deve ser prudente e
ousada, um cálculo de singularidades, uma antecipação de circunstâncias
inusitadas.

46
BADIOU, 1999, p. 50.

175
Para desenhar esses processos, remetemo-nos à primeira configura-
ção completa da ontologia, apresentada, num primeiro exemplo, no diagra-
ma distribuído por Badiou em 1990, o “Schéma Gama”.

Fonte: Manuscrito distribuído na “Conférence sur la soustraction”,


na École de la Cause freudienne, junho 1990, Paris.

176
A sua tradução em português segue:

Fonte: BADIOU, Alain. Para uma nova teoria do sujeito.


Rio de Janeiro: Relume-Dumara, 1994.

177
Os exemplos formais de sujeito relativos às condições são os seguintes:

. Arte: configuração de obras

. Ciência: teorias

. Política de emancipação: organização

. Amor: O Dois do casal

Para repetir: a relativização do mal radical não intenta amenizar as


devastações, que são a sua marca. Ao contrário, objetiva intensificar a com-
preensão das suas consequências ainda mais, já que são resultados de atos
feitos por mãos humanas, às quais se deve imputar a responsabilidade de-
corrente de uma decisão, bem que seja em nome ou por força de um grupo
que detém ou busca o poder. O mal se qualifica de desastre de pelo menos
três tipos, mas todos localizados no diagrama da ontologia como desviando
a função progressiva e crescente de uma nova forma de sujeito. A distinção
entre o Bem e o Mal surge por dentro da subjetivação. Portanto, o mal existe;
existe enquanto categoria não do animal humano, mas do sujeito. Uma fi-
gura do mal tão negativa quanto a do Mal radical, talvez mais ainda, porque
é livre e se organiza com o universal como ideal. A máxima “Continuar!” se
estende ao mal: continua conjurando o mal.
No entanto, na primeira configuração do processo subjetivo, Badiou
mantém uma postura à beira do moralismo. As figuras do desastre afetam a
nominação do acontecimento, a fidelidade subjetiva continua criando a ver-
dade e o fim inominável do processo, no qual força a verdade a uma recursão
sobre o estado da situação. Ao surgir um acontecimento quando os dados em-
píricos demonstram que nenhuma ruptura tenha ocorrido constitui uma ins-
tância de desfiguração ou de mentira organizada coletivamente, o que mere-
ce o nome “simulacro” na ética de Badiou. Da mesma forma, quando o sujeito
rumo a um projeto universal é rejeitado em nome de interesses particulares,
constata-se um ato de traição de graus diferentes. Quando o forçamento se
torna força para sacralizar o nome de verdade e reifica um ato em prol de ino-
vações, estratégias e criações, quando as vozes que persistem nesta articula-
ção da verdade em criação são silenciadas, extinguidas, depara-se claramente
com um regime desastroso para a verdade, um regime de terror.

178
Na medida em que as consequências da ontologização da ética se ex-
puseram, para se tornarem mais evidentes que na ontologia, não se pode supor
como criação completa apenas o Bem. Essas consequências se demonstram a
partir das análises das condições de seus desdobramentos. As consequências
locais são da ordem não apenas do ser mais da existência, não apenas a par-
tir da posição sujeito formal, universal e necessário, qualquer que seja a sua
imanência às práticas discursivas, mas daquele sujeito incorporado cuja pos-
sibilidade é regida por um ponto transcendental independente da ontologia.
Apresenta-se, então, a possibilidade de análises normativas.
A fenomenologia então comprova três tipos de sujeito. Um sujeito
fiel, obscuro e reativo. O sujeito fiel corresponde à necessidade posta na on-
tologia para que a nova forma de sujeito realize uma correção do estado da
situação. A fenomenologia acrescenta que o novo sujeito é uma nova in-
corporação, o que implica uma nova possibilidade de mundo. O sujeito fiel
tece o presente do seu corpo como novo tempo da sua verdade.47 No caso
do amor, por exemplo, a universalidade “trans-individual” da lógica do Dois
implica que o amor seja a primeira passagem de um indivíduo para um ime-
diato além dele mesmo, isto é, além da repetição. O amor ensina a cada um
de nós “indivíduos” que viver se faz da maneira em que o mundo se expõe a
“nós”, da maneira tão limitada, tão ariscada que seja.48
Contudo, o sujeito não pode ser concebido exclusivamente como
fiel ao acontecimento.49 O sujeito tem uma tendência não apenas natural,
mas ontológica, a se tornar reativo. O sujeito reativo se destaca em tudo que
conserva o antigo na forma da existência de um novo corpo (decorrendo de
um acontecimento). Ele transforma em falso-presente a sua não-presença
ao novo presente. De fato, trata-se de um novo sujeito. Por isso, há mudan-
ça da posição defendida na Ética de 1993. Visto pela nova “fenomenologia
das verdades”, o sujeito reativo realiza a invenção de novas práticas conser-
vadoras. Dissimula o presente, pela aparência da descontinuidade, embo-
ra tenha sido, no primeiro momento, articulado pelo acontecimento e pelo
reconhecimento do novo. No caso do amor, determina o estado jurídico da

47
BADIOU, 2009.
48
BADIOU, 2007, p. 114-115.
49
BADIOU, 2000, p, LVII.

179
“conjugalidade”, a saber, preservar o casal sem amor. No caso da política,
reconhece-se no estado “democrático neoliberal”, cada vez menos democrá-
tico, em que a liberdade é cada vez mais disponível apenas aos que têm os
meios, aos que capturaram o poder representativo e judiciário.
Mesmo assim, o sujeito reativo mantém um grau de racionalidade
superior ao terceiro tipo de subjetivação, o sujeito obscuro. Na avaliação de
Badiou, no efeito recursivo da fenomenologia sobre a ontologia, pode-se con-
cluir que o sujeito obscuro quer terminar com o presente do novo presente e
deseja a morte do corpo novo. É o corpo novo tal como afirmado pelo fascis-
mo: não um crescimento a partir de um acontecimento, mas a recomposição
furiosa de uma substância particularizada em nome do universal, desmen-
tido pelas extensões particularizadas dos seus principais operadores: Raça,
Cultura, Nação e Família. O seu corpo é fictício, pois não há nada universal.
Porém, é disponível a todos, como no caso de amor que procura um corpo de
fusão, o corpo da submissão sacrificial do Dois ao Um/Uno.

UMA PERSPECTIVA CONCLUSIVA


Nesta demonstração da tese da fundamentação ontológica da éti-
ca, encontramos uma transformação significativa: a partir do formalismo
estritamente ontológico em que são dispersos os corpos em seu ser-múlti-
plo, encontramos uma proposta rumo a uma nova forma de sujeito como
necessidade na lógica de transformação do estado da situação. Da ética,
passamos a uma fenomenologia, cuja apresentação será reservada para ou-
tra ocasião. Acreditamos que o sistema de Badiou, que já reconfigurou de
maneira latente a antropologia pós-humana, ainda não chegou a seu termo,
mesmo que as dobraduras e recursividades sejam em número convincente
para aspirar a uma independência do sistema para com a sua assinatura
autoral, sem prejudicar a sua coerência. A proposta sobre o corpo-sujeito
corresponde em Badiou à articulação do eixo do sistema consagrado à exis-
tência e ao aparecer. Por isso, tivemos, leitores, ouvintes e alunos de Alain
Badiou, todos que aguardar. Tivemos que aguentar o ar rarefeito no sítio
acontecimento, entre McMurdo e Tombuctu. A impressão de abafamento
era incomum na celebração do pensar. Descobrimos que essa celebração
não era uma festa, mas uma disciplina.

180
Não chegamos a nenhuma certeza. Por mais que esta nova articu-
lação fenomenológica (de 2006 até o presente) se oponha a um modelo de
biologizar o sujeito e a ética, tanto quanto a um de naturalizá-los, será que
ainda faz sentido defender a ontologização do sujeito e da ética? Como po-
deríamos ter certeza? Ouçam o tom da pergunta não como um de dúvida,
mas como o de uma afirmação: “C’est la dit-mension, la mention du dit. La
dimension de la Vérité, c’est de repousser la réalité dans le fantasme. On ne
peut que le mi-dire”.50

BIBLIOGRAFIA
AGAMBEN, G. O que é contemporâneo, e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro
Honesko. Chapecó, SC: Ed. Argos, 2009.

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183
FILOSOFIA COMO
CRÍTICA DA VIOLÊNCIA

Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza1

I – A HISTORICIDADE DOS CONCEITOS


Paralelamente à história – histórias – da civilização – civilizações
–, acontecem as histórias dos processos de legitimação e deslegitimação
de conceitos que sustentam as concepções de mundo, as cosmovisões, as
Weltanschauungen, a partir das quais, e no interior das quais, tais histórias
civilizacionais se desenvolvem e se tornam de algum modo descritíveis, in-
corporando-se ao imaginário de uma cultura em uma determinada época.
Há uma história dos conceitos e categorias que legitimam e oficializam as
historiografias oficiais; porém, no processamento dos dados e dos símbolos,
essa história dos conceitos e categorias se dilui no decorrer do que se esta-
belece; naturaliza-se e se torna dificilmente perceptível no conjunto hiper-
complexo de fatores em questão.
A história – a historicidade – dos conceitos e categorias interpreta-
tivas da realidade, que servirão para credibilizar as narrativas historiográfi-
cas, não poderia, por evidente, ser oriunda senão do labor filosófico, que é a
fonte da qual todos e quaisquer conceitos interpretativos dos quais alguma
ideia de realidade provêm, em última instância. É a filosofia que tem a res-
ponsabilidade pela geração, crítica e regeneração de categorias interpreta-
tivas suficientemente sólidas e conceitos formais suficientemente burilados
para que os acontecimentos não se tornem, na observância livre do temor
de Kant, conteúdos cegos da reflexão e do encadeamento que se pretende.
E, sem dúvida, o que estamos aqui chamando de “história dos conceitos e
categorias interpretativas da realidade” se estatui e se constitui como um
campo de contínuas atribulações e dificuldades, em sintonia com as forças

1
Professor do PPG-Filosofia, PPG-Letras e PPG-Ciências Criminais da PUCRS. www.timmsouza.blogs-
pot.com.br
e interesses em luta que se servirão, exatamente, desses conceitos e cate-
gorias, em cada tempo e lugar, para legitimar seu agir e a concretude do
efetivamente acontecido. Pois a realidade nada tem de inerte; seu âmago é
a dialeticidade do que a constitui, daquilo que se dá, a cada momento, como
real, e a apropriação possível do real é, no sentido aqui abordado – ou seja,
filosófico em sentido clássico –, totalmente dependente do conceitual.
É, assim, em função dessas expressões de concretude, ou de expres-
sões de realidade, se preferirmos – o que significa: do jogo de forças que
as geram –, que os conceitos assumem sua dignidade propriamente con-
ceitual, inscrevem-se em uma determinada tradição e beiram um status de
autonomia. Ajudarão, em cada momento, e de acordo com as intenções pre-
valentes em determinada situação do jogo dialético, a legitimar ou a deslegi-
timar o que se apresenta, simplesmente, como verdadeiro ou como real. Pois
o que se apresenta simplesmente como real ou verdadeiro a um observador
casual tem uma história extremamente tensa, que se dá pela imbricação de
elementos intelectuais – os conceitos e categorias em processo de formação
e legitimação – com elementos concreto-temporais – as realidades que se
sucedem no tempo, que vivem desde a temporalidade que nenhum conceito
pode abarcar, pois é a condição de surgimento de todos eles.2

II – A TENSÃO ORIGINÁRIO-ORIGINAL DA FILOSOFIA


Nesse sentido, a filosofia padece congenitamente de uma espécie
de estranho paradoxo, que quiçá fosse melhor chamar uma tensão origi-
nário-originante, ou originário-original, pois simultaneamente dá origem e
pertence a essa origem. Surgido o filosofar feito crítica, estabelece-se desde
sempre e paralelamente como instância primigênia de acompanhamen-
to, sanção e legitimação do estatuído.3 A tensão o habita em seu próprio
aparecimento, desde seus mais remotos estertores categoriais. Se, por um
lado, ocupa o papel intrínseco ao intelecto de verter-se àquilo que aparece
como significativo a esse intelecto, e nesse sentido propõe-se crítica de si e

2
Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Adorno & Kafka – paradoxos do singular, passim; SOUZA, R. T., Ética
como fundamento – uma introdução à ética contemporânea, passim.
3
Cf. SOUZA, R. T., “Da neutralização da diferença à dignidade da alteridade – estações de uma história
multicentenária”, In: SOUZA, R. T., Sentido e Alteridade.

186
de tudo, por outro lado toma para si a tarefa de sancionar o percebido como
real, nas mais diversas escolas, tendências e eras do pensamento filosófi-
co, exatamente como sendo real, ou seja, verdadeiro, ao qual empresta sua
chancela intelectual, seu selo conceitual.
É evidente que essa posição congenitamente oscilante do trabalho fi-
losófico tem levado a questões de imensa importância. Uma dessas questões
diz respeito, indubitavelmente, à relação do conceito com o tempo percebido
(aqui: temporalidade). A importância dessa questão é extraordinária; a de-
pender da posição que vai sendo tomada ao longo da história do pensamento
filosófico, a compreensão das questões do sentido e do não sentido de cada
momento especulativo – pedras basilares de todo pensamento filosófico - se
alterna em função da lógica que, em cada ponto, tem o privilégio de se impor
como veraz ao intelecto movido pela congênita curiosidade pelo real. Outra
questão magna refere-se à potência crítica da qual o pensamento filosófico
não pode abdicar; de fato, não é possível subestimar a força ideológica dos
mecanismos de dominação e legitimação do estatuído – o positivismo –, que
a cada momento tenta, insidiosa ou abertamente, abortar a reflexão; pois,
como sabemos, “recusar a reflexão, isto é o positivismo”.4

III – LUZES E SOMBRAS DA REALIDADE


Como derivação, por assim dizer, natural e definitivamente necessá-
ria da tensão filosófica original, na qual não têm lugar ingenuidades, é pos-
sível o acompanhamento não apenas da linhagem hegemônica do pensa-
mento filosófico – o que se encontra decantado e plasmado nas milhares de
dicionarizações conceituais que se enfileiram ao longo do tempo e habitam
o lugar-comum da mentalidade inclusive de não especialistas – como tam-
bém daquele lado obscurecido da história filosófica, os desvios e variações,
o recalcado, a sombra que acompanha a luz do intelecto em praticamente
todo autor, e em alguns – Pascal, Benjamin – de forma especialmente elo-
quente. É assim intrínseca à filosofia uma dialética interna sem síntese, à
Adorno, que a habita em sua mais densa profundidade.
No que diz respeito à referida relação entre os conceitos e a tem-

4
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse, J. Zahar: Rio de Janeiro, 1987, p. 23.

187
poralidade, não parece ser muito difícil perceber que uma das formas mais
produtivas de compreender a própria gênese conceitual das categorias
é compreender o modo como cada categoria está, em cada momento da
história, temporalmente implicada. Porém, cuidado: a imbricação antes
enunciada pode mimetizar exatamente a extrema dificuldade de lidar com
conceitos – v. g. “tempo” – que não são e não podem ser, na presente cadeia
lógica, exatamente “conceitos”, já que, como se pode observar sem muito
esforço, não só não “cabem” em um conceito5 como sua natureza experien-
cial é diversa.6 Pois, diferentemente de realidades cuja percepção se dá con-
dicionada por categorias anteriores, erigem-se como possibilidade de todo
condicionamento e, portanto, de todo pensamento, inclusive do pensamen-
to conceitual-categorial, filosófico no sentido clássico do termo.
Esse pensamento filosófico no sentido clássico do termo é, portan-
to, habitado por uma variância em sua íntima constituição, a qual, ao longo
dos séculos, aparece com mais ou menos evidência, conforme a disponi-
bilidade e o estilo intelectual dos pensadores em questão. E, como temos
consciência da variância aqui referida, nos é interditado o estabelecimento
de hierarquias ou axiologias primárias entre os múltiplos estilos de pensar
crítico; tal seria uma simples violência aporética, a cessação desde fora do
que mantém o filosofar vivo, da tensão vital que o habita. Luzes e sombras
reproduzem a vitalidade do intelecto que se depara com o que não é ele.

IV – CRÍTICA E CRISE, CRISE E CRÍTICA


Assim, mantida à vista a dialética interna do pensar filosófico desde
sua gênese e em todas as épocas que esse pensamento mereceria o nome
de filosófico, e não meramente de ideológico, afastada a possibilidade do
recalque primitivo de um dos polos da tensão, resta-nos avaliar a possibili-
dade da fidelização que podemos demonstrar ao próprio pensamento filo-
sófico enquanto crítica do real e do seu sentido. Pois, e tal é desde sempre
percebido e incontestado, a crítica nascida da crise do desconforto, da dor,
do sofrimento ou do thaumazein ante a exuberância do mundo – portanto,

5
Idem, ib.
6
Cf. ROSENZWEIG, Franz. “Das neue Denken In: ROSENZWEIG, F. Zweistromland - Kleinere Schriften
zu Glauben und Denken.

188
uma quebra do estado de bonomia que uma pretensa neutralidade poderia
oferecer é o coração de todo e qualquer filosofar, que existe em função da
requalificação, da configuração intelectual da crise de origem, do choque
que o mundo apresenta ao intelecto. Desse modo, temos aqui uma indica-
ção suficiente da pertinência filosófica de uma interrogação, de uma cadeia
lógica, de um salto intelectual: o quanto de crítica o motiva, o move e o ha-
bita. Mais uma vez, superamos a ingenuidade de uma descrição do passado
pretensamente neutra, para adentrarmos o universo da insegurança que a
temporalidade em seu decorrer significa.
No presente texto, tomaremos dois - e não mais que dois, por sufi-
cientes e, ademais, por interligados – aspectos críticos do filosofar que, pela
própria coerência interna daquilo a que a filosofia se propôs (e não por algum
capricho ou predileção particular de alguém), necessitam assumir a visibili-
dade que efetivamente seja fiel à sua importância no universo dos significan-
tes filosóficos, em fidelidade, igualmente, à motivação primeva de todo e qual-
quer significante filosófico, em todo o arco de sua história. Tais aspectos são
o exorcismo intelectual da temporalidade e a falácia sedutora do “positivismo
filosófico”. Tal é necessário para que se compreenda em que sentido entende-
mos a filosofia como se estatuindo em crítica privilegiada da violência.

189
V – A QUESTÃO PROPRIAMENTE DITA DO PENSAR E SUA
NEGAÇÃO: O EXORCISMO INTELECTUAL DA TEMPO-
RALIDADE E A FALÁCIA SEDUTORA DO “POSITIVISMO
FILOSÓFICO”, OU: A VERDRÄNGUNG DA CRÍTICA – EXOR-
CISMO DA TEMPORALIDADE E “POSITIVISMO FILOSÓFI-
CO” COMO CONTEÚDO ORIGINAL DA VIOLÊNCIA7
A cegueira é uma arma contra o tempo e o espaço. Nossa
existência é uma única, imensa cegueira, exceção feita às
poucas coisas que nos são transmitidas por nossos míseros
sentidos, míseros por sua índole e por seu alcance. O princípio
dominante do Cosmo é a cegueira. Ela permite a justaposição
de coisas que seriam impossíveis se se vissem umas às outras.
Possibilita a interseção do tempo onde este seria insuportável...

Elias Canetti8

O pensamento ocidental se estrutura, desde os seus primórdios, em


torno à questão da diferença. É em torno a esse núcleo referencial
que os grandes problemas clássicos da filosofia se articulam e ama-
durecem enquanto, exatamente, problemas fundamentais: particular
versus universal, necessário versus contingente, finito versus infinito,
sensível versus racional, alma versus corpo – as dualidades opostas
são infindas e remetem, em última análise, sempre ao mesmo proble-
ma anterior que as gera: à questão da não unidade – da diferença – da
realidade com relação a si mesma. Houvesse tudo em tudo, e o resul-
tado seria a onisciência e a dispensabilidade do pensar; mas é porque
há desvãos na estrutura do real (seja esta qual for, porque a concepção
de realidade se estrutura justamente em torno a esses desencontros)
que o pensamento se gera, e se gera como urgência, urgência de índole
cognoscente-classificatória. No início, não é o verbo Ser, mas os de-
sencontros que o verbo Ser tenta de algum modo identificar. Se “isso”
fosse desde sempre apenas “isso” {X = X}, não teríamos provavelmente
filosofia alguma, pois a tautologia perfeita desaparece em si mesma
inclusive enquanto problema; mas é porque “isso” é também “aquilo”,

7
A presente seção baseia-se em parte em nosso texto “Da neutralização da diferença à dignidade da
alteridade – estações de uma história multicentenária”, in: SOUZA, R. T., Sentido e Alteridade.
8
Auto-de-fé. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, p. 93.

190
ou não é somente “isso”, ou deve ser “aquilo”, ou pode ser compreendido
de outra forma, ou se constitui em instância de uma síntese maior –
{X não é Y} – que o pensamento se põe em marcha em seu processo
essencialmente identificante – de forma que, ao fim e ao cabo, “isso”
“se encontra”, ainda que na órbita fechada de uma racionalidade par-
ticular, consigo mesmo. Uma série de funções do processo de identifi-
cação, do processo cognoscitivo, se unem nessa tarefa: a localização,
a comparação, a nominalização etc. Quando, ao final de minhas aná-
lises, promulgo que “o pinheiro é um vegetal”, isso significa a culmi-
nância de um longo e árduo itinerário. Tive de “perceber” a realidade;
destacar dali algo especial a ser “classificado”; destacar desse “algo” o
seu “conceito” (ou mesmo “construí-lo”); tive de comparar esse “con-
ceito” com semelhantes e dessemelhantes; “atribuir” a esse conceito
um “nome”; e, finalmente, propor a identificação entre esse nome e o
alvo de minhas atenções. Mas, a rigor, o processo é o desdobramento
de uma fórmula mais simples. Inicia com um “o que é isso?” {X=?};
desdobra-se em “isso pertence à classe lógica dos vegetais” {X=Y}; e
desemboca na nominalização em que se pretende que a essência, ou
o essencial do pinheiro seja dado, coincida com seu nome: “isso é um
pinheiro”, ou seja, “isso, que é identificado como sendo um pinhei-
ro, é um pinheiro” {X=X}. O que esteve por trás e é anterior a todo
esse procedimento, como já dito, é um processo identificante; e esse
processo identificante consiste justamente na tentativa de retirar da
diferença seu caráter, exatamente, de “diferente” enquanto tal, trans-
mutando-a em diferença lógica, ou seja, em uma espécie de combus-
tível da máquina identificante do pensamento. E é interessante notar
que tal dado é comum a todas as grandes lógicas ocidentais, sejam
de índole formal, sejam de teor dialético. No primeiro campo, temos
a articulação da variedade do mundo em torno a uma referência sig-
nificante que lhe dá sentido; o verbo Ser, a presença do real em tor-
no às definições da possibilidade de o real ser, exatamente, real. No
segundo caso, a diferença – a negação – assume uma posição mais
consistente, é levada pretensamente “mais a sério”; mas, pela sua pró-
pria dinâmica, a dialética não cessa, porém segue adiante na direção
de uma Aufhebung ou síntese que, contendo embora a diferença, não
a trata como tal, mas como momento dialético a ser ultrapassado no
momento seguinte, que é, de uma ou outra forma, rei-dentificante. E

191
a Dialética Negativa é uma tentativa radical de deter essa compulsão
à identidade que afeta o cerne do movimento que leva a diferença a
sério ontologicamente.9

Assim, podemos considerar que a diferença é a questão propriamen-


te dita do pensar; é sua condição, como é o impedimento de seu
completar. A questão da diferença é a provocação a um processo de
compreensão do “todo”, ao mesmo tempo em que bloqueia, por sua
recorrência incômoda e indeclinável, qualquer invectiva de universa-
lização totalizante. É por isso que o pensamento – e a filosofia, en-
quanto determinada forma de organização do pensamento – tem de
se ver continuamente confrontado com o problema das origens, dos
fundamentos, dos pressupostos – ainda que nunca o esgote –, antes
de se preocupar com as consequências e com os sistemas. É por isso
também que o pensar é uma tarefa infinita, e tem de necessariamente
reiniciar a cada momento. Para além de qualquer fabulação ou imagi-
nação, antes de toda síntese e organização mental, dá-se a diferença:
este fato é tão real aqui e agora, nesse exato momento, como o foi
para o primeiro pensador que percebeu sua não coincidência com o
que não era ele, e entendeu, segundo sua cosmovisão, a necessidade
de superar tal não coincidência como condição ou realização do pro-
cesso compreensivo do real enquanto tal. Superar a diferença é o ato
fundante que se concebe, muito prematuramente, como movente do
grande projeto do pensamento cognoscente, como a base da possibili-
dade de se pensar a própria condição de inteligibilidade do real.

Inicia-se, portanto, historicamente, o processo de “compreensão


apropriativa” da diferença, ou seja, de sua integração a uma ordem
maior de sentidos que compõe as diversas formas de avançar do
pensamento que pretende conhecer. Tal não se dá por uma escolha
consciente de algum gênio isolado, mas por um arranjo pré-original
do que se considera implicitamente condição de todo conhecimento:
identificar o conhecido consigo mesmo, chegar ao real desde dentro
dele mesmo.

Constituir-se-á originalmente a filosofia ocidental por esse viés?

9
Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Estética e restos da história. In: SOUZA, R. T., Totalidade & Desagrega-
ção – Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas.

192
Muito provavelmente. As questões originais que a tradição nos lega, ainda
que fragmentariamente, bem o sugerem; as partículas de poemas cosmo-
lógicos, as obscuridades e clarezas dos antigos, assumem essa tonalidade
inquieta. Logo se propõem um antes e um além do visível; à sua procura
se dedicam as mentes mais agudas. Caminha-se por sobre a inquietude do
dado da diferença; mas essa inquietude é a base que, segundo a convergên-
cia das energias unificantes, é preciso superar; é necessário chegar à sabe-
doria, superar as aparências, abordar solidamente o existente, afrontar e
vencer a insegurança das não coincidências, do universo da multiplicidade.
No contexto da presente reflexão, destacaremos agora os aspectos
já anunciados: a espacialização (neutralização) da temporalidade e a ob-
jetificação intelectual-neutralizante (positivística) do dado que é alvo das
energias filosóficas, ou seja, do que se apresenta como real ao intelecto cog-
noscente.

A . A espacialização da temporalidade

De nada adiantariam tais esforços lógicos se a temporalidade sim-


plesmente continuasse a ocorrer pelas bordas dos sistemas lógicos, por mais
sofisticados que estes sejam. E a temporalidade, expressão da diferença, dá-
-se originalmente como fundamento de toda inquietação filosófica, ainda
que sob nomes os mais diversos: finitude, contingência, acidente, mundo
empírico etc. – e, até mesmo, exatamente, diferença.
Há, portanto, com relação à temporalidade, de se neutralizá-la; caso
contrário, cada categoria lógica teria de ser reinventada a cada passo, para
repor na ordem plenamente inteligível da realidade do ser aquilo que o tem-
po acaba de corroer. A univocidade do conceito estaria perdida, e cada ge-
neralização, indução ou dedução estaria condenada a priori ao fracasso.
Essa neutralização, porém, não pode padecer de ingenuidade – pois
o poder desagregador da temporalidade real é imenso. Para tratar dessa
questão são, portanto, mobilizadas imensas potências racionais; e uma
das primeiras soluções, e das mais clássicas, procura equiparar a não-vi-
sibilidade do tempo à visibilidade do espaço, “logicizando” espacialmente
a primeira: quando se pensa em termos de ser o tempo a medida do mo-
vimento, pensa-se exatamente em subordinar o que não se dá no espaço

193
enquanto categoria àquilo que se dá neste espaço; e, portanto, avança-se
decididamente no controle do imponderável desagregante, manietando-o
à controlabilidade de uma rede de conceitos. E pode-se perceber que, ao
longo de mais de dois milênios de pensamento filosófico, esta é uma das
questões mais recorrentes: como transformar o tempo em intemporalidade,
para neutralizá-lo em seus efeitos corrosivos das certezas conceituais.
Assim, em termos práticos, o tempo que penetra até mesmo a equa-
ção do verbo Ser é congelado no verbo Ser. A rigor, não existem propriamente
o passado e o futuro, exceto como antevisão e celebração da conquista do
Ser. No presente do “é”, o passado e o futuro deixam de assustar: encontra-
ram-se a si mesmos, neutralizando-se mutuamente. Não se necessita colo-
cá-los como alternativas prospectivas ou retrospectivas de realidade, pois a
realidade está já resolvida na fixação de alguma espécie de presente eterno
ao qual o logos, a iluminação, tem acesso completo. Na construção pré-so-
crática, na platônica, com suas “idealidades realistas”, ou na aristotélica,
com seu “empirismo”, e em todas as suas derivações, inclusive nos processos
modernos de subjetivação propedêutica ou radical (inclusive em sua inver-
são em “objetivação” radical do idealismo absoluto) – em cada instância,
grosso modo, a preocupação “determinativa” é a mesma.
Mas o que “determina” praticamente essa linguagem ao mundo que a
utiliza? Desde a perspectiva da fixação do correr do tempo no espaço próprio do
presente, são perceptíveis ao menos duas grandes características, que se apre-
sentam também como dimensões de interpretação Em primeiro lugar, uma du-
alidade definitiva explícita estabelecida na antropologia, que não se opõe, mas
antes remete, no fundo, a um monismo radical implícito: o monismo do Ser.
A realidade está cindida em dois níveis de difícil aproximação: o em-
pírico, a doxa, o corruptível, o impuro, o plural, o temporal, e a dimensão da
felicidade ideal, a episteme, racional, meta-empírica, incorruptível, transcen-
dental, “para além das aparências”, pura, singular, atemporal. Mas essa cisão
também pertence ao mundo das aparências, já que, em verdade, somente a
realidade atemporal é, conforme vimos, legitimamente real para essa concep-
ção de realidade. A vita activa, com seus percalços e inconstâncias, não parti-
cipa da realidade plena da contemplação atemporal das essências.
O Bem reside na atemporalidade da Totalidade de sentido do verbo

194
Ser, “presente eterno”, totalidade esta que se encontrou consigo mesma: eis
o motto de fundo, “inconsciente”, a anterioridade da determinação de rea-
lidade do mundo. E, em segundo lugar, e como consequência da concepção
de atemporalidade atribuída à realidade plena, percebe-se a radical anti-his-
toricidade que habita esta concepção de “verdadeira realidade”, anuncian-
do, então, o estilo positivístico de pensar. A história do desdobramento do
logos, apesar das aparências em contrário, é uma anti-história, uma espécie
de história “endógena” –, porque é, afinal de contas, um encontro consigo
mesmo. Ulisses, um dos mitos fundadores do Ocidente, nos esclarece isso.
Sua aventura tem a finalidade do retorno à sua pátria, a si mesmo.
A mutabilidade que caracteriza a história – o tempo como condição
de efetivação da realidade – é, na verdade, um desembocadouro do incon-
trolável e, portanto, um escândalo para qualquer constelação bem-arranja-
da de conceitos. A temporalidade é a expressão última e mais aguda da ne-
gatividade enquanto tal. A Anti-historicidade se expressa especialmente na
redução do imprevisível à inofensibilidade, através da positivação violenta do
estatuído pela negação da reflexão sobre a historicidade dele - pois, como
constatamos ao início, “recusar a reflexão, isto é o positivismo”. A cosmo-
visão original anti-histórica tenderá mais tarde, em seus desdobramentos
modernos, a subsumir o particular, o propriamente concreto da história, no
universal e abstrato do Espírito e da Totalidade – tarefa empreendida por
Hegel com tanto brilhantismo, e que dará a Benjamin, na intuição do movi-
mento contrário, oportunidade para tanto trabalho.10

B . A objetificação intelectual-neutralizante (positivística) do real

Um segundo elemento é fundamental no processo de inofensibili-


zação da diferença: trata-se da neutralização do real através do crivo neu-
tralizante do “objetivismo intelectual”, o qual chamamos, nesse contexto,
de “objetificação”. E não falamos, aqui, de um “objetivismo” que meramente
se oponha a um “subjetivismo”, mas em algo mais profundo, que remete às
origens do fluxo identificante que tem como resultado a articulação lógica
intemporal da realidade à qual já fizemos referência.

Cf. BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, W. Obras Escolhidas. São
10

Paulo: Brasiliense, 1984.

195
Em poucas palavras, o que aqui chamamos de “objetificação” se
constitui, exatamente, no conjunto dos processos maiores, chanceladores da
legitimação dos processos parciaisdenominados “autopostulação da identi-
dade” e “espacialização da temporalidade”; ou seja, a objetificação é a forma
de emprestar legitimidade às lógicas da postulação absoluta do ser enquan-
to realidade e da temporalidade enquanto não mais que “pré-realidade”,
lógicas estas que, como vimos, têm como impulso inicial e objetivo final
despojar a diferença de seus elementos desagregantes originais. As variadas
formas de como tal processo se tem dado ao longo da história do pensamen-
to desembocam todas neste mesmo desaguadouro da pretensa naturalida-
de, que faz com que, em cada época, se tenha categorias-chaves para enten-
der e legitimar a cada passo deste grande processo de “des-diferenciação”,
categorias estas tratadas geralmente como sagradas ou intocáveis. É apenas
quando um grande quadro cultural entra em crise que essa sacralidade é
posta em dúvida; e, imediatamente, a inteligência guardiã do grande impul-
so neutralizante localiza uma substituta à altura, no campo das ciências ou
dos grandes sistemas políticos e intelectuais.
O grande horror da consciência ocidental é ter de se ver às voltas
com a realidade sem as chaves compreensivas que a própria cultura recria
constantemente. É assim, por exemplo, com a categoria de “infinito”, como
mostramos alhures11; enquanto tal pensamento trazia em seu bojo um po-
der de inquietação incontrolável, se lhe tinha repugnância – os gregos, de
modo geral, pensavam desde o ponto de vista da ordem, do “cosmo”, en-
quanto o ilimitado, o apeiron, permanecia como uma instância de escânda-
lo intelectual. Foi apenas bem mais tarde, nos inícios da modernidade, que
se pôde afirmar a infinitude do universo sem temor do descontrole “caótico”
(dos antigos) ou da alteridade divina (dos medievais); e é exatamente este o
momento em que se inicia propriamente a modernidade.
Assim, a “objetificação-neutralização” é o próprio exercício da inte-
ligência, enquanto esse exercício visa à preservação de sua segurança ori-
ginal: sua referencialidade em torno ao núcleo auto e hetero-identificante.
É por isso que se tem considerado tradicionalmente a inteligência como

Cf. SOUZA, R. T., Sentidos do Infinito – a categoria de “Infinito” nas origens da racionalidade ocidental,
11

dos pré-socráticos a Hegel.

196
avessa a condicionalidades que atenuam sua agudeza identificante, como,
por exemplo, a própria possibilidade de ela se deparar com o dela diferente.
No contexto que aqui nos interessa, tal é conseguido, ao longo do proces-
samento intelectual da realidade, pela articulação íntima entre esses dois
movimentos: a espacialização (neutralização) da temporalidade e a objetifi-
cação intelectual-neutralizante (positivística) de tudo aquilo que é alvo das
energias filosóficas, ou seja, como vimos ao início desse texto, das energias
congenitamente críticas da filosofia.
É por isso que, no atual momento sócio-histórico, em meio a uma
crise civilizatória da qual se está longe de ter a dimensão exata, o germe fi-
losófico inclina-se fortemente à sedução do quietismo que um pensamento
fora do tempo significaria e, especialmente, ao “positivismo filosófico”, que
ocupa com jogos lógicos e experimentos mentais o lócus próprio do pensar
filosófico em seu sentido propriamente crítico, ou seja, fustigado pelo con-
creto, substituindo-o decididamente por imagens fugazes e irrelevâncias
aparatosas. Finge pensar para ocupar o lugar do pensamento.
Síntese:

A . O primeiro aspecto crítico que se faz absolutamente necessário


relevar é a necessidade da desconstrução das lógicas de exorcismo inte-
lectual da temporalidade que a filosofia engendrou e vem engendrando
ao longo dos séculos.

B . O segundo aspecto crítico que cumpre imprescindivelmente tra-


zer à tona da consciência contemporânea é a falácia sedutora do po-
sitivismo acrítico que impera em inúmeros meios travestido de falsa
legitimidade filosófica.

Eis, portanto, o trabalho da crítica filosófica da violência.

VI – FILOSOFIA COMO CRÍTICA DA VIOLÊNCIA


“Violência” tem, aqui, o sentido de real opaco, medíocre, superabun-
dante, imagético, vulgar, no qual a contemporaneidade está em boa medida
imersa e que significa a falência de promessas e modelos econômicos, so-
ciais e ecológicos evidentemente irreais, se for percebido em sua profundida-

197
de e percutância.12 Dá-se como proliferação descontrolada de simulacros e
caricaturas do vital e abre espaço para a ocorrência de estilos tradicionais e
particulares de exercício da violência classicamente entendida.13
Compreender que a tentativa desesperada de transformar a tem-
poralidade numa abstração é a maior de todas as quimeras – como diria
Rosenzweig, “ninguém nunca assinou um tratado de paz antes de travada
a guerra” – é a possibilidade primeira de evasão do alcance paralisante da
poderosa Medusa imoral em que se constitui a combinação maciça entre
razão “filosófica” vulgar (anulação da temporalidade pela espacialização
do tempo) e razão pseudo-filosófica (os diversos estilos de “positivismo
filosófico”), que consumam por sua vez, em sua combinação mortal, a le-
gitimação e naturalização pseudo-filosófica do “estado de exceção em que
vivemos”. A temporalidade do pensamento opõe-se ao mundo paralelo no
qual o tempo não tem lugar; toda crítica da razão, hoje, necessita iniciar por
uma crítica da própria ideia de razão a partir da racionalidade que invagina
as autoconstruções legitimantes do positivismo, que a si mesmo procura
constantemente legitimar. Não resta, portanto, outra conclusão. Filosofia,
hoje, se quiser ser fiel à sua vocação crítica primigênia, e se desejar renun-
ciar cabalmente à tentação suicida de recalcar a crítica, não pode ser senão
exatamente crítica radical da violência que a pseudo-filosofia quietista-po-
sitivista dirige a ela e ao mundo.

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Cf. SOUZA, R. T., Em torno à Diferença – aventuras da alteridade na complexidade da cultura contem-
12

porânea; SOUZA, R. T., “O nervo exposto – por uma crítica da ideia de razão desde a racionalidade ética”.
13
Cf. SOUZA, R. T., “Três teses sobre a violência”.

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202
HEGEL E O ESTADO
CONSTITUCIONAL PÓS-NACIONAL1
Prof. Dr. Stephan Kirste2

Os comentários de Hegel sobre a tarefa do Estado e sobre sua posi-


ção no mundo dos Estados parecem excluir uns aos outros como comen-
tários críticos da estadidade3 aberta. Contudo, a soberania compartilhada
com outros Estados e o fundamento da resolução pacífica de conflitos são,
entrementes, uma realidade política, diante da qual a filosofia há de se colo-
car, caso ela queira apreender o “seu tempo em pensamentos”.4 Sua [tarefa]
não pode girar em torno nem de delinear o Estado na sociedade mundial,
assim como ele deve ser, nem de criticá-lo, porque ele não mais é como ela
já foi uma vez.
Aos desafios da estadidade mudada para a filosofia, as considera-
ções que seguem querem se colocar em três passos. Em primeiro lugar, deve
ser esboçada a abertura dos Estados atuais para o direito internacional e
supranacional (I); em segundo lugar, a partir dos pontos de partida hege-
lianos, essa situação é avaliada controversamente (II); e, baseando-se na
concepção hegeliana da tarefa do Estado para a liberdade, deve, então, em
terceiro lugar, ser tentada uma abordagem própria (III).

1
Tradução de Márcio Egídio Schäfer, doutorando em Filosofia pela PUCRS.
2
Professor da Universidade de Heidelberg.
3
Usou-se aqui o neologismo estadidade para traduzir Staatlichkeit, para fazer menção àquilo que é re-
lativo, que tem a qualidade de ser Estado, usando o conceito de Estado para traduzir estritamente Staat.
Ademais, seguimos, as traduções referentes à Filosofia do Direito: HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da
Filosofia do Direito. Trad. Paulo Meneses et al. São Paulo; São Leopoldo: Loyola; UNISINOS; UNICAP, 2010; e
para os Adendos a tradução de Marcos Lutz Müller. As iniciais que aparecem antes da citação do § indicam
a obra em questão, a saber, (E) Enciclopédia e (R) Filosofia do Direito, tal como são citadas pelo autor. [N. T].
4
Filosofia do Direito, Prefácio, p. 12.
I – O ESTADO ABERTO
CONSTITUCIONAL DA ATUALIDADE
O Estado soberano da Modernidade, no cumprimento de sua tarefa,
ficou sob uma pressão cada vez mais intensa e, por isso, através da abertura
de sua soberania, reagiu para dentro e para fora.
Iniciando com o século XIX, primeiramente na França e na Alema-
nha – na Inglaterra, as estruturas superadas por ora ainda são levadas a
cabo –, uma parcela dos poderes soberanos da soberania interna é transferi-
da para os sujeitos jurídicos intraestatais, para fazer justiça à complexidade
das tarefas e para fomentar a autonomia política dos cidadãos. Assim, não
somente as administrações regionais, mas também câmaras e outras orga-
nizações obtiveram poderes soberanos para o exercício de responsabilidade
ou puderam encontrar novas tarefas. O controle do Estado encolheu ampla-
mente. Mais tarde, tentou-se resolver solidariamente problemas solúveis de
questões sociais através de um seguro público autoadministrado. No século
XX, também o problema da diversidade cultural e ética deveria ser vencido
pela federalização constitucional.
Para a garantia da paz e a prosperidade econômica, os Estados euro-
peus, depois da Segunda Guerra Mundial, e – seguindo seu modelo – mais
tarde também os Estados em outras partes do mundo, entregaram momen-
tos de sua soberania externa a organizações internacionais e supranacio-
nais. Enquanto as tarefas soberanas internas, também no caso da devolução
na Grã-Bretanha ou da regionalização na Espanha ou Itália, são retomadas
pelo soberano e, visto pelo prisma jurídico, não alcançam a integração cons-
titucional de Estados em Federações com soberania compartilhada, a tare-
fa da soberania externa é tão ampla que aqui a pergunta pelo surgimento
de um federalismo genuíno com soberania compartilhada entre a Federa-
ção e os Estados-membros é levantada, como é o caso aproximadamente
na União Europeia (EU). Mas também lá onde a transferência dos poderes
soberanos não vai tão longe como na UE, a blindagem da soberania é, com
base na justificação imediata de indivíduos e também de grupos, quebrada
também contra a vontade do soberano respectivo.
Desde muito tempo, as renúncias da soberania não se limitam mais

204
necessariamente àquela medida que as associações de Estados forneceram
à Federação dos Estados, a saber, sua estreita limitação dos objetivos, para
cuja efetivação tais associações se reuniram. De qualquer modo, na realida-
de, as interdependências cresceram para além disso; perante isso também o
direito não se revogou. Assim, entre a forma fortemente integrada de um Es-
tado federado e a forma de um Estado federado teleologicamente ordenado
para uma organização supranacional, entrou o conceito adequado à União
Europeia de Federação de Estados.
Ambas as renúncias de soberania têm vantagens para uma execução
adequada de tarefas. Seus efeitos sobre a autonomia política dos cidadãos
são, contudo, muito diversos. Enquanto a descentralização conduz a um
ganho de autonomia dos cidadãos, a europeização e a internacionalização
levam a uma perda de controle do próprio soberano. Isso vale tanto mais se
formas de globalização são levadas em consideração.
O problema de organizações supranacionais permanece sendo a le-
gitimidade e a controlabilidade. Aqui se mostra, em especial, o significado
remanescente da soberania nacional. Ela requer que, em órgãos decisórios
centrais, cada Estado tenha um peso mínimo. No entanto, esse peso mínimo
obstaculiza uma igualdade de sufrágio genuína e, com isso, a influência de
todos os cidadãos sobre as instâncias decisórias supranacionais. Uma legiti-
mação output somente indicando os resultados positivos do poder do Esta-
do não faz justiça às reivindicações de autonomia política dos cidadãos. Por
isso, permanece consequente a posição marcante dos povos e seus repre-
sentantes nos parlamentos nacionais no processo de legitimação suprana-
cional. Mas, um povo europeu da União, forte no mesmo sentido dos povos
dos Estados, ainda não existe. Mas há tentativas para isso. A cidadania da
União não é a alavanca insignificante para a formação da mesma. Igualmen-
te se encontram tentativas para uma opinião pública europeia.
Através da transferência de competências soberanas às organiza-
ções intraestatais – a perseguição de metas ambiciosas, recorrendo, para
isso, aos seus órgãos como meios que incidem imediatamente nos Estados-
-membros – esses Estados perderam seu poder de decisão independente.
Precursor desse desenvolvimento foi aqui a União Europeia. Com a Comis-
são e o Tribunal Europeu, em Luxemburgo, foram edificadas aqui, desde o

205
início, instituições supranacionais genuínas, que conduziram, construíram
e aprofundaram os fundamentos jurídicos sob uma qualidade de lei interna-
cional e, acima de tudo, colaboraram para uma eficácia. Nos demais órgãos,
os pesos nacionais desempenham um papel considerável e levam, com isso,
seu particularismo para dentro das instituições.
Exatamente os dois órgãos citados têm, portanto, um papel absolu-
tamente substancial para a integração. Eles organizam o estabelecimento
de padrões comuns para todos os Estados-membros e cuidam de sua re-
alização. A partir disso, o significado de ambos mostra algo para os pro-
cedimentos de quebra de contrato ou o procedimento conforme o Art. 7,
I, da Constituição da UE, por causa de sérias infrações a valores europeus
fundamentais. Esses órgãos supranacionais contribuíram essencialmente
para que rivalidades e necessidades nacionais tenham sido decididas pro-
cedimentalmente por vias especiais dentro da UE.
Finalmente, há que se chamar atenção à integração jurídica. A base
para a formação de organizações supranacionais são contratos de acordo
com os contratos internacionais – tratados, como diria Hegel. Em sua base,
desdobram-se, contudo, estratos de normas derivadas, que são criadas pe-
los órgãos supranacionais e suas instituições, de cujo comprometimento os
Estados-membros não podem se libertar, mesmo quando a programação
não se realiza [de forma] mais (prescrição) ou menos (princípio) justa. En-
trementes, a maior parte das regulações nacionais é influenciada de ma-
neira puramente quantitativa ou até mesmo já dada por esses atos jurídi-
cos supranacionais. Esse direito supranacional também não é mais, como
o clássico Direito dos Povos, dependente de uma implementação nacional,
mas ele gera também direitos imediatamente para os cidadãos, que podem,
por causa disso, reportar-se diretamente aos seus tribunais nacionais. So-
bre direitos e liberdades fundamentais e o direito secundário concretizante,
define-se a posição do indivíduo em relação ao poder público europeu, ao
qual também pertence à administração nacional que executa o direito euro-
peu. O tribunal europeu monitora o cumprimento desses preceitos jurídicos
e profere, em cooperação com a Comissão, sanções quando da sua violação.
Agora, semelhantes associações de Estados não significam o fomen-
to do progresso econômico e o bem-estar social à custa da soberania estatal

206
e da autonomia política dos povos dos Estados-membros. Mais propria-
mente, o pertencimento à União Europeia deve provocar para alguns Es-
tados-membros, como Portugal e Espanha, um aumento de sua influência
política. Também a inclusão mais incisiva da soberania nacional em organi-
zações supranacionais possibilitou primeiramente determinadas decisões
políticas. Assim, o caminho da Alemanha para a reunificação sob as condi-
ções da segunda metade do século XX não foi possível através de um esforço
isolado, poderoso, possivelmente bélico, mas somente através de um amplo
passo de integração com elevadas responsabilidades supranacionais e inge-
rências da UE. Exagerando um pouco, pode-se dizer que a recuperação da
soberania e a unificação foram produto da supranacional UE.
Para além do domínio supranacional, o Direito Internacional ga-
nhou, na segunda metade do século XX, consideravelmente em influência
e, entrementes, não se direciona mais somente aos Estados, mas amplia o
círculo dos sujeitos do Direito Internacional a organizações e indivíduos.
Contra as violações pelo próprio Estado, os direitos humanos somente po-
dem ser validados frente a tribunais internacionais, como o Tribunal Euro-
peu dos Direitos Humanos.
Paz, progresso econômico, proteção dos direitos humanos são re-
sultados de processos que conduziram para o melhoramento da situação
social de muitas pessoas. Com a transferência dos poderes soberanos e au-
toridades para as organizações intraestatais, as formas de legitimação do
poder público se tornaram, contudo, mais difíceis. Em face das publicidades
internacionais e supranacionais fracamente desenvolvidas, uma influência
efetiva e regular dos cidadãos sobre a autoridade política é atualmente pos-
sível apenas através dos parlamentos nacionais.

II – DUAS TENTATIVAS DE EXPLICAÇÕES


HEGELIANAS PARA ESSA ESTADIDADE ABERTA
Ora, como essa estadidade aberta, esboçada aqui apenas em alguns
poucos aspectos, é compreensível com base na filosofia de Hegel? Para isso,
serão apresentadas duas abordagens.

207
1. O HEGEL NACIONAL-ESTATISTA
A primeira abordagem está antes na tradição da direita hegeliana,
que tentou ganhar Hegel para o pensamento do Estado-Nação, na perspec-
tiva de Treitschke ou também Meinecke. Aqui há que ser nomeada, em espe-
cial, a interpretação do Estado de Hegel por Hermann Heller, que também
hoje ainda encontra adeptos.5
Assim, defende-se a opinião de que Hegel, 200 anos depois de seu
escrito sobre a Constituição, retomaria a expressão de que a Alemanha não
é mais um Estado. O que naquele tempo valeu por causa da fragmentação
interna do Sacro Império Romano-Germânico deveria valer hoje por causa
da entrega de competências na UE. Mas, para Hegel, o Estado é um aparato
de poder [direcionado] para dentro e para fora. Ele é, em especial, uma co-
munidade de defesa e financeira. Competências correspondentes podem,
contudo, atualmente, somente ser exercidas em cooperação com outros Es-
tados (OTAN) ou, em todo caso, poderiam ser controladas por organizações
supranacionais, como acontece com respeito às finanças pela Zona do Euro
e a UE. De fato, no escrito sobre a Constituição, Hegel havia dito:

Uma multidão de pessoas pode se denominar de Estado quando ela


está vinculada para a defesa comum de sua propriedade; depreende-
-se aqui propriamente por si mesmo, mas é necessário que se observe
que essa vinculação não tem somente a intenção de se defender, mas
que ela pode ser o poder e o sucesso que ela quer, que ela se defende
através de lutas efetivas; pois ninguém negará que a Alemanha está
unificada para sua defesa comum por leis e palavras [...].6

Também nas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, ele vê a


soberania exterior, a soberania defendida por exércitos permanentes (R §
326), ao lado da soberania interior (R § 278 e seguintes), como momento es-
sencial do Estado. Na curta Enciclopédia de 1830, não mencionado especifi-
camente, ele assegura igualmente a necessidade da defesa nesse sentido.7 O
mesmo se deixa dizer para a soberania financeira (E § 544, A; R § 301).

5
Lübbe/Mäder.
6
Constituição, p. 15.
7
Enciclopédia, § 545.

208
Isso não é algo como um mero tributo ao tempo. Mais propriamente,
a independência dos Estados entre eles mesmos (individualidade) é neces-
sária, para que, com isso, o espírito do povo em questão possa se desdobrar
neles e, na separação dos outros Estados, possa se apresentar como mo-
mento especial do espírito do mundo.8
O que Hegel explicita para a Alemanha também precisa valer para os
outros Estados da UE e – mutatis mutandis – também para outros Estados
pós-nacionais.9 Todos eles se encontram em conexões jurídicas, que enter-
ram a sua independência e obstaculizam que esses Estados sejam encarna-
ções vigilantes de espíritos do mundo.

2. O HEGEL UNIVERSALISTA10
Por sua vez, e amplamente independente disso, uma outra aborda-
gem interpretativa esforça-se, desde a dissertação de Avineri, sobre “O pro-
blema da guerra no pensamento de Hegel”, de 1961, em vista de encontrar,
na obra de Hegel, elementos para esclarecimento da globalização e de uma
ordem política universal e aduzir uma compreensão contemporânea de sua
concepção de Estado. O ponto de partida foi, em Avineri, ainda uma leitura
atenta de Hegel, em sua defesa contra autores que, como Popper, o tornaram
sumariamente corresponsável pelo nacional-socialismo e o caracterizaram
como belicista. Com isso, não interessava a Avineri a defesa da concepção
hegeliana de guerra, mas somente salientar o significado relativo desta.
O ponto de partida para uma compreensão universalista de Hegel
são os seus comentários acerca dos princípios comuns vividos na Euro-
pa, como eles estão incluídos especialmente no § 339.11 Ottmann escreve
aproximadamente – e justificadamente – que o conceito de nacionalismo

8
R § 259, Adendo: “O Estado enquanto efetivamente real é essencialmente um Estado individual e,
além disso, também, um Estado particular. É preciso distinguir a individualidade da particularidade:
a individualidade é um momento da própria Ideia do Estado, enquanto que a particularidade pertence
à história. Os Estados como tais são independentes uns dos outros, e a relação entre eles só pode, por-
tanto, ser exterior, de modo que tem de existir acima deles um terceiro [elemento] que os vincule. Esse
terceiro é o espírito que se dá realidade efetiva na história mundial e constitui o juiz absoluto sobre eles”.
9
MÄDER, 2002, p. 16 ss. – na tradição de Hermann Heller.
10
Assim já pontua Hicks no título de sua dissertação.
11
HICKS, 2002, p. 50.

209
é estranho à doutrina de Hegel. Já a expressão “nação” é empregada por ele
muito raramente. A História Mundial, que Hegel introduz na passagem do
Espírito Objetivo para o Espírito Absoluto, é uma história da liberdade; os
portadores do espírito do mundo de uma forma determinada de desenvol-
vimento da liberdade.
Ela indica que o Direito Internacional, desde muito, não mais caracte-
riza uma internacionalidade devendo-ser, mas que é progressivamente assegu-
rada por instituições. Também as ONGs se formaram na publicidade interna-
cional, as quais almejam uma eticidade que não é só orientada nacionalmente.
Steven Hicks expressa, sob a evocação de Hegel, a esperança de que,
“sob as condições da lei, um sistema jurídico internacional válido e efeti-
vo pode nos habilitar a preservar nossas identidades (nacionais, estatais,
regionais) e lealdades e de participar num novo e mais amplo modelo de
lealdade – numa ordem global cooperativa, pacífica e justa”12.
No entanto, enquanto a interpretação nacionalista se apoia unilate-
ralmente nos comentários de Hegel, que no século XIX foram aduzidos na
Alemanha para a justificação da exigência de um Estado-Nação, a posição
universalista cai no perigo de querer demonstrar uma situação perfeita-
mente desejável de uma eticidade internacional como uma situação exigida
com base na filosofia hegeliana.
Ambas as abordagens negligenciam, contudo, matérias centrais da
filosofia de Hegel. O pensamento nacionalista continua, à maneira de Lu-
dwig von Haller, a restaurar o Estado, a despir a estrutura histórica do Esta-
do à época de Hegel de sua necessidade e, através disso, o trata acidental-
mente, de modo que eleva a estrutura do Estado ao padrão da estadidade na
atualidade e toma a abordagem interpretativa antes narrada do “meramen-
te pensado racional” como o conteúdo de uma exigência de um mundo dos
Estados justo, como Hegel repreende a Fichte (R § 258 A). Em vez de tomar
a filosofia hegeliana como meio para o conhecimento do presente, ambas
as abordagens se servem normativamente de Hegel: em perspectiva nacio-
nalista, para a justificação da exigência de que o Estado pós-nacional pre-

12
HICKS, 2002, p. 58. Com o que as exigências hegelianas para uma situação mundial ética são preen-
chidas.

210
cisaria novamente se tornar um Estado; em perspectiva universalista, para
a justificação da exigência de uma ordem mundial justa. Mas a “filosofia” é,
como é bem conhecido segundo Hegel, “a apreensão do seu tempo em pen-
samentos”. A filosofia de Hegel está direcionada à razão no presente ou ao
presente da razão e não normativamente a “um Estado, como ele deve ser”.13

III – HEGEL E A ESTADIDADE


ABERTA DA ATUALIDADE
Ora, o que significa essa reivindicação erguida [como] algo exube-
rante para a compreensão da estadidade aberta da atualidade em perspec-
tiva hegeliana? O Estado pós-nacional não é mais um Estado? As organiza-
ções supranacionais como a União Europeia precisam ser compreendidas
como Estados?

1. ORGANIZAÇÕES SUPRANACIONAIS E SEUS ESTADOS-MEM-


BROS COMO INSTITUIÇÕES DO ESPÍRITO OBJETIVO
A liberdade precisa ser o ponto de partida se se quer compreender
as organizações transnacionais e sua incrustação nos Estados na perspec-
tiva hegeliana. Para essa liberdade não importa como ela está na consci-
ência, portanto, no Espírito Subjetivo, mas como ela se externa. Estados e
organizações internacionais ou supranacionais são instituições do Espírito
Objetivo. Mais adiante, o que importa não é simplesmente a expressão da
liberdade no reconhecimento recíproco de sujeitos livres como pessoas ou
em objetos externos da propriedade e a sua troca contratual. Também não
vem ao caso, em primeira linha, a liberdade subjetiva de poder criticar essa
ordem jurídica externa e suas instituições moralmente. Mais propriamente,
o que importa dentro do Espírito Objetivo é a eticidade, se as organizações
supranacionais devem ser entendidas no pano de fundo da filosofia da li-
berdade de Hegel. Nessa esfera, a liberdade não se tornou ou interna ou ex-
terna, mas uma segunda natureza do homem enquanto pessoa. A liberdade
se externa em instituições e, também, a partir delas deve ser compreendida.
Ela é o sistema no qual ele se realiza e que ele, através disso, continua simul-

13
R, Prefácio, p. 22.

211
taneamente a desenvolver (E §§ 514, 515). Mas a figura objetiva dessa liber-
dade ainda é uma que encontra lugar no tempo, e que na história se dá uma
forma particular. Os portadores objetivos dessa unidade Hegel denomina de
espírito do povo.

2. ORGANIZAÇÕES SUPRANACIONAIS COMO INSTITUIÇÕES


DA SOCIEDADE CIVIL-BURGUESA
Mais difícil de responder é a questão da integração de organizações
inter e supranacionais nas instituições da eticidade: a família, a sociedade
civil-burguesa e o Estado. Isso pode surpreender, mas a estadidade aberta
enquanto pergunta acerca da relação do Estado ao Direito Internacional e
às organizações internacionais aparece como um domínio de problema que
Hegel tematiza na soberania exterior (R § 321 e seguintes), no direito estatal
exterior (R § 330 e seguintes) e na história mundial (§ 341 e seguintes). Se a
UE admite, contudo, o princípio da autoridade individual limitada, se ela se
compreende como comunidade de direito, se ela se retoma sobre valores co-
muns (Art. 2, S. 2, da Constituição da UE) e evoca tradições constitucionais
(Art. 6, III, da Constituição da UE), então, em todo caso, está posta a questão
se ela já representa a efetividade de uma única ideia ética (R § 257) ou se
ela ainda representa uma instituição dedicada aos interesses particulares
da sociedade civil. A União Europeia “oferece aos seus cidadãos e cidadãs
um espaço de liberdade, de segurança e de direito sem fronteiras internas”,
como é dito no Art. 3, II, da Constituição da UE. Se isso é visto como Estado,
então subsiste o perigo, como Hegel exprime na observação ao § 258 das
Linhas Fundamentais, de que

se o Estado é confundido com a sociedade civil-burguesa e se sua de-


terminação é posta na segurança e na proteção da propriedade e da
liberdade pessoal, então o interesse dos singulares enquanto tais é o
fim último, em vista do qual eles estão unidos, e disso se segue, igual-
mente, que é algo do bel-prazer ser membro do Estado.

Formar sua particularidade e protegê-la através de Instituições da


administração da justiça (R § 209 e seguintes), da polícia (R § 231 e se-
guintes) e da corporação (R § 250 e seguintes) pertencentes à esfera da
sociedade civil-burguesa. Aqui os interesses pessoais e as capacidades dos

212
singulares podem se desenvolver e encontram reconhecimento jurídico
na família, no sistema de carecimentos e nas instituições denominadas
(R § 260). A jurisdição serve aqui à proteção de seus interesses subjetivos,
enquanto o Estado ético sub specie persegue o interesse do bem comum
sob a paz da lei. O Estado ético hegeliano, ao contrário, realiza inconscien-
temente a eticidade objetiva trazida no impulso à aquisição e em outras
formas de autorrealização. Institucionalizar esses [os interesses pessoais]
trazidos pelos singulares em seu egoísmo e não alcançados na divisão do
trabalho por causa da estrutura da sociedade civil-burguesa e de uma
substância ética objetiva produzida por uma mão invisível é a tarefa do
Estado ético. Por isso, “o princípio dos Estados modernos tem essa extra-
ordinária força e profundeza”, a saber, “de deixar o princípio da subjetivi-
dade se completar até o extremo autônomo da particularidade pessoal e,
ao mesmo tempo, o reconduz para a unidade substancial e, assim, mantém
essa nele mesmo” (R § 260).
Também as liberdades fundamentais revelam a União Europeia an-
tes como parte da sociedade civil-burguesa do que como Estado. O rompi-
mento das economias nacionais pelas liberdades fundamentais gerou um
mercado comum em que a divisão do trabalho se diferencia ainda mais, em
que fluxos de capital, produtos e serviços podem circular para seu lugar eco-
nômico vantajoso. Do ponto de vista econômico, isso possibilita chances de
diferenciação, as quais o Estado nacional – especialmente já aquele do tem-
po de Hegel – sequer remotamente pode oferecer. Contudo, a substância
ética produzida por meio disso é trazida de volta novamente à unidade com
o princípio da família? O Estado unifica, para Hegel, o elemento formador
da unidade do afeto imediato da família juntamente com a diferenciação da
liberdade externa na sociedade civil-burguesa (E § 535).
Quando Hegel escreve que a “vinculação de tráfego” e “de uma
relação jurídica que introduz o contrato, e nesse tráfego encontra-se, ao
mesmo tempo, o mais elevado meio de formação e é nele que o comércio
recebe sua significação histórico-mundial” (R § 247), então as liberdades
fundamentais são meios de formação importantes para a produção da
eticidade. O mar aparece a Hegel como o pendente às guerras para a so-
ciedade civil-burguesa: também ele traz dinâmica às economias de resto

213
fechadas. Em Griesheim, ainda é citada a expressão verbal de Hegel: “Os
povos cessam de ser inimigos, de ser hostes, para os romanos qualquer
estranho era inimigo.”14
De fato, aqui Hegel se encontra com a concepção kantiana “À Paz
Perpétua”. Lá Kant nomeia entre as garantias naturais da paz perpétua:

É o espírito comercial que não pode coexistir com a guerra e que, mais
cedo ou mais tarde, se apodera de todos os povos. Porque entre todos os
poderes (meios) subordinados ao poder do Estado, o poder do dinheiro
é decerto o mais fiel, os Estados veem-se forçados (não certamente por
motivos da moralidade) a fomentar a nobre paz e a afastar a guerra me-
diante negociações, sempre que ela ameaça rebentar em qualquer parte
do mundo, como se estivessem por isso numa aliança estável [...].15

Entretanto, com isso, não está garantido de modo algum que o co-
mércio leva à paz. Em Kant, ele também é somente um subsídio natural no
caminho para a realização da exigência jurídico-moral em direção a uma
paz perpétua. E, em Hegel, se associam a apreciação da função pacificadora
do comércio e a discussão da expansão desenfreada do mesmo sob a forma
da colonização, que está vinculada a acidentalidades e também pode con-
duzir a guerras comerciais.
Mas, como Kant não exige um Estado mundial, e somente um “fe-
deralismo de Estados livres“, assim Hegel reconhece que desse espírito co-
mercial pacífico e promotor da paz não se segue imediatamente nenhum
Estado16. Falta-lhe, portanto, a eticidade institucionalizada.17

14
GRIESHEIM, 1824/25, p. 614.
15
Kant: Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer Entwurf. Kant-W Bd. 11, S. 226. * [N.T.] A tradução ci-
tada é de Artur Morão, disponível em http://www.lusosofia.net/textos/kant_immanuel_paz_perpetua.
pdf
16
§ 324, Adendo: “Na paz, a vida civil-burguesa se expande mais, todas as esferas se encasulam e a longo
prazo os homens estagnam como pântanos; a sua particularidade torna-se sempre mais fixa e se ossifica.
Mas faz parte da saúde a unidade do corpo, e quando as partes em si mesmas endurecem a morte está aí. Paz
perpétua foi frequentemente exigida como um ideal, do qual a humanidade deveria se aproximar. Kant pro-
pôs, assim, uma coligação de príncipes, que deveria arbitrar os conflitos dos Estados, e a Santa Aliança tinha
a intenção de ser aproximadamente um tal instituto. Só que o Estado é um indivíduo e, na individualidade, a
negação está essencialmente contida. Ainda que, portanto, um certo número de Estados se constitua numa
família, essa associação, enquanto individualidade, tem de criar uma oposição e engendrar um inimigo”.
17
R § 333 “Entre os Estados não há pretor, no máximo um árbitro e um mediador, e também esse apenas

214
Se se tomam esses aspectos – aqui mencionados apenas parcial-
mente – conjuntamente, a ordem comunitária [Gemeinschaftsordnung] da
União Europeia é caracterizada antes por elementos de uma sociedade ci-
vil-burguesa do que por um tal Estado ético no sentido hegeliano. Ela per-
manece na heterogeneidade de algumas atividades especiais de liberdade.
Certamente não exclui, nas próprias palavras de Hegel, o surgimento de um
Estado. Já no escrito sobre a Constituição, de 1802, que com tanta boa von-
tade é arrolado pelos defensores do Estado-Nação e pelos críticos à Europa
para a defesa de sua Constituição, é dito que:

Em consideração à própria lei burguesa e à guarda da justiça, nem a


igualdade das leis e do procedimento legal transformará a Europa num
Estado, como tampouco a igualdade de pesos, massas e de dinheiro,
a sua diversidade ainda suprassume a unidade de um Estado; quando
isso já não está contido no conceito de Estado, que as determinações
próximas das relações jurídicas sobre a propriedade de um singular
contra outro singular não o afetam enquanto poder estatal [...].18

Não são a pluralidade do direito e a diversidade da sociedade civil-


-burguesa que exprimem algo sobre a estadidade de uma organização; antes
pelo contrário, isso precisa ser esclarecido a partir do seu conceito.

3. A ESTADIDADE DAS ORGANIZAÇÕES SUPRANACIONAIS


À União Europeia – que aqui deve servir de protótipo de organiza-
ção supranacional – não faltam elementos do Estado ético ou político. Ela
se funda sobre práticas éticas comuns nos Estados-membros. Quando se
observa como o Tribunal Europeu alcançou os assim chamados princípios
jurídicos universais, então isso já vai para além do estabelecimento de puras
similaridades. Mais propriamente, o Tribunal Europeu ganha esses princí-
pios jurídicos universais – como eles aproximadamente subjazem ao direito

de modo contingente, isto é, segundo vontades particulares. A representação kantiana de uma paz perpé-
tua, mediante uma liga de Estados, que arbitraria todo litígio e regularia toda desavença enquanto força
reconhecida por todo Estado singular e, com isso, tornaria impossível a decisão pela guerra, pressupõe a
concordância dos Estados, que repousaria em razões e considerações morais, religiosas ou outras, em ge-
ral, repousaria sempre na vontade soberana particular e, por isso, permaneceria afetada de contingência”.
18
Escrito sobre a Constituição, p. 17.

215
administrativo europeu – com uma comparação jurídica valorativa. Com
a construção desses princípios jurídicos, portanto, não vige nem o menor
denominador comum de princípios, como eles aproximadamente subjazem
à proteção à confiança, nem a proteção à confiança máxima, como ela apro-
ximadamente é reconhecida na República Federal da Alemanha. Antes pelo
contrário, o que importa é o princípio jurídico europeu da proteção da con-
fiança naquela medida de proteção em que a garantia da implementação do
direito europeu é indispensável. Também aqui, quando o direito ainda está
no nível do judiciário (R § 211 e 219 s.) e não é conhecido como lei universal
(R § 212), é formado um direito universal-concreto que, um lado, procede
das práticas dos Estados-membros, mas, de outro, o modela conforme o di-
reito europeu e obtém sua orientação deste. Os valores sobre os quais a UE
se apoia não são meros princípios devendo-ser, e sim práticas conservadas
de compreensões do bem nos Estados-membros. Também quando a UE se
apoia nos direitos humanos, estes não são as liberdades naturais, pré-esta-
tais, mas direitos, tais como eles são reconhecidos nos ordenamentos jurí-
dicos dos Estados-membros e nas declarações do Direito Internacional e
praticados pelos tribunais nacionais.
Um Estado precisa de uma Constituição. No caminho do Tratado
Constitucional ao Tratado de Lisboa, como é bem conhecido, os Estados-
-membros chegaram a um acordo de que a Europa não deve receber uma
Constituição. Ainda isso caracteriza uma constituição como um texto consti-
tucional. Quando Hegel fala de constituição, ele a entende como a ordem con-
creta da organização do Estado e das liberdades no Estado (E § 539 A, no fim).
Essa organização precisa ser diferenciada correspondentemente ao conceito
de Estado (R § 272). Posto que o Estado é a unidade da liberdade concreta e
de um interesse universal historicamente limitado, também a organização do
Estado precisa ser diferenciada, de acordo com os momentos do seu conceito:

a) O poder de determinar e de fixar o universal – o poder legislativo;


b) a subsunção das esferas particulares e dos casos singulares sob o
universal – o poder governamental; c) a subjetividade enquanto última
decisão da vontade, o poder do príncipe, no qual os poderes distintos
são reunidos em uma unidade individual, que é assim o ápice e o co-
meço do todo – a monarquia constitucional (R § 273).

216
Antes de tudo, problemático é o poder legislativo. Isso concerne,
em primeiro lugar, à composição do Parlamento Europeu, que – natural-
mente – não é nem expressão da sociedade civil-burguesa europeia, nem é
constituído por representantes de cidadãos iguais. Igualmente as estrutu-
rações da sociedade civil-burguesa sobre o direito de ser ouvido do comitê
social e econômico e do comitê das regiões enquanto “momento consultivo”
(R § 300) são inseridas no processo de implementação do direito europeu.
Também é tomada para si a influência dos outros órgãos no processo de
implementação do direito, como ele é diferenciado de acordo com os tipos
de procedimentos e, desde Lisboa, foi reforçado a favor do Parlamento Eu-
ropeu, compatível com a concepção hegeliana. Pois Hegel vê os outros po-
deres como momentos subordinados participantes no poder legislativo (R
§ 300). Em face da composição do parlamento, que antes da eleição direta
era constituído até mesmo por representantes dos parlamentos nacionais,
a influência da comissão assegurou por muito tempo o interesse europeu
universal, supranacional no legislativo. Entretanto, através do direito de ini-
ciativa da comissão que, na declaração adjacente ao legislativo de um prin-
cípio universal que se deu de um modo problemático, o direito se misturou
a este. Na participação estruturada dos poderes com o legislativo, o poder
subordinado ao legislativo obtém, assim, uma influência particular na de-
claração do universal.
O Poder Governamental, sob o qual Hegel entende tanto a Admi-
nistração quanto a Justiça (R § 287), é fortemente desenvolvido na União
Europeia. A Comissão e o Tribunal Europeu são a parte propriamente
supranacional da UE e foram, desde o início, o fundamento para que ela
pudesse ser distinguida de outras organizações internacionais. Foram si-
multaneamente as forças impulsionadoras da supranacionalização do or-
denamento jurídico (Rechtsordnung) da UE. Levaram a integração adiante
particularmente também em tempos em que, no plano do Direito Inter-
nacional, no direito primário, dominava a estagnação política, porque os
interesses particulares dos Estados-membros obstaculizaram maiores co-
munitarizações. Ambos são independentes nas suas decisões das instru-
ções dos Estados-membros e podem, por isso, com base no direito primá-
rio e nas suas regras de conduta, ter em vista o interesse comum da União.
Contudo, o universal – portanto, o direito primário –, que é o fundamento

217
de sua “ocupação da subsunção” (R § 287), não é ele mesmo expressão de
um universal europeu, mas é gerado pelos Estados-membros como Direito
Internacional; para que esse universal possa se desenvolver, a atividade da
Comissão e do Tribunal não parte de um universal real, mas de um deven-
do-ser. O direito primário do Direito Internacional não é ainda a ordem
concreta vivida de um Estado. Correspondentemente, a tarefa da Comis-
são e do Tribunal – particularmente nos anos 60 – não é primeiramente
subsunção – como ela é atribuída por Hegel ao órgão da particularidade
do Estado. Mais propriamente, ela é em medida bem considerável a auto-
programação através do desenvolvimento do direito para a efetivação do
direito europeu. Assim se esclarecem as figuras argumentativas fortemen-
te teleológicas do Tribunal Europeu com o Effet Utile de sua posição como
órgão supranacional num ambiente ainda internacional e, com isso, ainda
não marcado pelo direito estatal através do direito primário.
O Poder do Príncipe enquanto “a subjetividade da última decisão da
vontade”, que pode colocar o “pontinho” no “i”, falta claramente na organi-
zação da União Europeia; com ele, também a soberania do Príncipe. A esse
respeito, falta à UE claramente a vontade de decisão da subjetividade indi-
vidual que traz a totalidade do Estado ao ponto, ao nível da Ideia.
Certamente, com isso, se pode assegurar que a Europa, também no
sentido de Hegel, possui uma constituição; a ordem dos poderes, sua igual-
dade institucional, porém, não é expressão de uma eticidade universal, mas
reflete o caminho da emergência da identidade europeia, a emergência de
uma universalidade substancial (R § 265), proveniente da liberdade de seus
cidadãos, que novamente seria carregada por uma disposição (Gesinnung)
política universal (R § 268). A liberdade universal expressada permanece, de
um lado, insuficientemente mediada contra a sociedade civil-burguesa eu-
ropeia e, de outro, mais adiante afetada pela influência dos Estados-mem-
bros pela declaração do direito primário e pela formação assimétrica das
leis universais no parlamento.
Assim, a estadidade da UE vai para além das instituições da socieda-
de civil-burguesa europeia; ela também não é mais somente uma associa-
ção de Estados pelo Direito Internacional. Por outro lado, faltam momentos
importantes da estadidade ou estes estão insuficientemente desenvolvidos

218
para poder assumir as funções políticas que, segundo Hegel, necessaria-
mente lhe competem. No fundo, isso prova a analogia permitida de Pufen-
dorf e a posterior análise de Hegel do Sacro Império Romano-Germânico, ao
qual essa estadidade é desacreditada à União Europeia, não propriamente
por sua aplicação negativa, mas positiva: com efeito, a União Europeia não é
um Estado – a saber, não um Estado federado – mas ela também não é mais
uma federação de Estados, e sim – e nisso reside a aplicação positiva – uma
associação de Estados, como é dito no Tratado de Maastrich do tribunal
federal constitucional.

IV – ALEMANHA NÃO É MAIS UM ESTADO: SOBRE


A ESTADIDADE DOS ESTADOS PÓS-NACIONAIS
Se a União Europeia não é um Estado, então também os Estados-
-membros não são mais Estados, como alguns críticos afirmam evocando
Hegel?
Se agora se quiser pensar epopeias – assim Hegel, no fim dos anos
30, dita aos seus estudantes na preleção de Estética na primavera – que pos-
sivelmente serão no futuro, essas somente poderiam apresentar a vitória da
racionalidade americana viva e única sobre um encarceramento e mensurar
um progresso ao infinito. Pois na Europa cada povo é, agora, limitado por
outro e não pode por si deflagrar nenhuma guerra com nenhuma outra na-
ção europeia; se se quiser, agora, guerrear a partir da Europa, assim somen-
te pode ser para a América.
Já na primeira metade de século XIX, Hegel viu a Europa não mais
como o chão no qual a função ética da guerra seria alcançável, a saber, a
formação e a conservação da identidade dos povos19. Sem mais, coloca-se
a questão se do ponto de vista de guerras destruidoras totais, da dissolu-

19
Ver também Mill: “mas o mal é que se eles não têm amor suficiente à liberdade para serem capazes de
arrancá-la de opressores meramente domésticos, a liberdade que lhes é dada por outras mãos do que de
suas próprias não terá nada de real, nada permanente. Nenhum povo foi e permaneceu livre, mas porque
foi determinado para ser assim; porque nem seus soberanos nem partido algum na nação o puderam for-
çá-lo a ser de outra maneira [...]”. MILL, Breves palavras sobre a não-intervenção. http://oll.libertyfund.
org/index.php?option=com_staticxt&staticfile=show.php&title=255&search=%22A+Few+Words+On+-
Non-intervention%22&chapter=21666&layout=html#a_809352

219
ção da distinção entre agitações internas e guerra externa entre Estados
através do terrorismo e por guerras civis ainda pode ser preenchida essa
função ética da guerra tomada de Hegel. Tal como senhor e servo se re-
conhecem reciprocamente na luta comum na sua função concreta, assim
também, no plano dos espíritos do mundo, a guerra deveria conduzir ao
reconhecimento do espírito marcante do tempo20. Ela deveria ser conduzi-
da de tal modo que estivesse direcionada para a paz e nada pudesse inter-
ditar o assumido. Pois a independência dos Estados se deve, para Hegel, ao
seu reconhecimento recíproco: sob as condições da finitude, a autonomia
é um resultado da não-autonomia21, ou ela é dependente de outros.22 A in-
dependentização do desdobramento do poder contra a sua missão ética e
a destruição do reconhecimento – não somente da subjetividade dos com-
batentes, mas particularmente também dos não envolvidos – está próxi-
ma; o não reconhecimento do espírito marcante do mundo não é mais
procurado no campo do confronto militar, mas antes no domínio econô-
mico da sociedade civil-burguesa. São processos do mercado que decidem
qual cultura se tornará o espírito do mundo.23
Para isso, é apropriado que as associações de Estados hoje não sejam
mais tão impotentes como o eram à época de Hegel, mas que ao lado dos
contratos – “tratados” – do Direito Internacional também se apoiem em ins-
tituições, que em procedimentos de monitoramento como para a proteção
dos direitos humanos controlam a observância do Direito Internacional, e
tribunais, que – pelo menos nas declarações regionais dos direitos humanos
– aplicam e executam esses direitos também efetivamente. Assim, aquilo

20
No fato de que os Estados se reconhecem reciprocamente como tais, também na guerra, permanece
a situação da ausência de direito, de violência e de contingência, um laço em que eles valem uns para os
outros sendo em si e para si, de modo que, na guerra mesma, a guerra é determinada como algo que deve
ser passageiro (R § 338).
21
AVINERI, 1961, S. 469: “alguém pode paradoxalmente dizer que se os Estados no plural deixam de
existir, por definição também não poderá mais existir o Estado no singular”.
A individualidade, enquanto ser-para-si excludente, aparece como relação a outros Estados, cada um
22

dos quais é autônomo face aos outros.


23
Mais uma vez o Adendo ao § 259: “Vários Estados como coligação podem, certamente, constituir um
tribunal sobre outros, coalisões entre Estados podem ocorrer, como por ex. a Santa Aliança, mas estas
são sempre apenas relativas e limitadas, como a paz perpétua. O único juiz que se faz valer sempre e pre-
valece perante o particular é o espírito sendo em si e para si, que se apresenta como o universal e como
o gênero operante na história mundial”.

220
que Hegel não acertou no Direito Internacional está a caminho da realiza-
ção. Hegel precisou da “história do mundo enquanto tribunal do mundo”
bélico (R § 340), porque um outro juiz não estava à disposição.24 Para isso,
entram sempre mais ordenamentos dos direitos humanos, para instituir tri-
bunais próprios. Entrementes foram instituídas instituições que, em todo
caso, assumem uma parte dessas tarefas.
Essa realização, de fato, somente se tornou possível porque os Esta-
dos renunciaram a uma parte de sua soberania. Nesse sentido, eles também
perderam em estadidade. As organizações internacionais e supranacionais
ganharam, na mesma medida, em estadidade; mas elas ainda não são Esta-
dos. E, por isso, para o domínio do Espírito Objetivo pode valer o que Hegel,
na sua lição inaugural de Berlim, formulou para o absoluto (o domínio do
Espírito Absoluto):

A decisão para filosofar lança-se pura no pensamento como um oceano


desprovido de costa. Todo o variegado de cores, todas as bases desa-
pareceram, todas as demais luzes afáveis estão apagadas. Somente
uma estrela, a estrela interior do espírito ilumina; ele é a estrela polar.
Mas é natural que o espírito em seu estar-só caia em pavor; ainda não
se sabe, para onde quer ir, aonde se chegará. Entre aquilo que desa-
pareceu, encontra-se muito que por tudo nesse mundo do que não se
queria abandonar, e que em sua solidão ainda não se recobrou, e não
se tem certeza se se recuperará, se tornará a voltar.25

Isto também vale para a teoria do Estado: ela precisa pensar a esta-
didade de forma renovada, se quiser compreender a função do Estado tam-
bém sob as condições do século XXI. Ela faz bem se aqui se orientar pelo
conceito hegeliano de liberdade e sua institucionalização, mesmo que disso,
na presente conferência, puderam ser dadas somente algumas provas.

24
GRIESHEIM, 1824/25, § 132 A, p. 340: “permanece somente no dever observar dos tratados, porque a
relação fundamental dos Estados sempre permanece a autonomia dos mesmos. – Falta a última realida-
de, pois nenhum tribunal faz valer o estabelecido. – A subjetividade somente perfaz aqui a garantia do
tratado. – Portanto, nenhuma outra decisão do que guerra e paz”.
25
HEGEL, Hegel’s Werke, vol. 10, p. 399.

221

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