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T(tulo da Edição Francesa /

EXISTENCIALISME OU MARXISME georg lukács


© 1948 Editions Nagel - Paris

EXISTENCIALISMO .
ou MARXISMO
DEDALUS - Acervo - FFLCH-FIL

Capa de:
YVONNESARUÊ l1111111111111111 lllll lllll lllll ll/1111/ll lllll lllll 1111111111111
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· Tradução de JOSÉ CARLOS BRUNI /

). . ; .., . SBD-FFLCH-USP

· © Copyright by L.E.C.H. Livraria Editora Ciências Humanas Ltda. 1111111111mm111


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Impresso no Brasil ' SÃO PAULO
Printed in Brazil
1979 -
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ÍNDICE
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Apresentação do Tradutor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Nota do Autor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

Capítulo I
.A Crise da Filosofia Burguesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
1. O pensamento fetichizado e a realidade . . . . . . . . . . . 27
2. A evolução do pensamento burguês . . . . . . . . . . . . . . 30
3. A filosofia do imperialismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
4. A pseudo-objetividade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
5. O "terceiro caminho" e o mito . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 1
6. Intuição e irracionalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
7. Os sintomas da crise . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
...
Capítulo II
Da Fenomenologia ao Existencialismo . . . . . . . . . . . . . . 65
l. O método enquanto comportamento . . . . . . . . . . . . . 66
2. O mito do nada ... . ... . . . '-: ~ . . ... . . . . . . . . . . . 77 (
3. O mundo fetichizado e o fetiche dã liberdâde . . . . . . . 89

Capítulo III
O Impasse da Moral Existencialista ... .. . . . . .. ... . . 101
1. A situação histórica do existencialismo . . .. ..... . . . 101
2. Moral da intenção e moral do resultado ........ . . .
3. Sartre contra Marx .. . . . .. . . .. ... . ... . . . · · · ·
4. A moral da ambigüidade e a ambigüidade da moral
120
110 1
existencialista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
5. A ética existencialista e a responsabilidade histórica . .. 164
Capítulo IV
A Teoria Leninista do Conhecimento e os Problemas da
Filosofia Moderna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
1. A atualidade ideológica do materialismo filosófico . . . . 207
2. Materialismo e dialética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
APRESENTAÇÃO DO TRADUTOR
3. Significação dialética da aproximação na teoria do
conhecimento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 228
· 4. Totalidade e causalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238
• 5. O sujeito do conhecimento e ação prática. . . . . . . . . . 245 É sem dúvida na França que se têm mos trado
mais ricas e complexas as relações entre as dua s
filosofias mais representativas dos problemas huma·
nos de nossa época. Os existencialistas sempre fize-
ram questão de tomar posição em relação ao marxis-
mo (aproximando-se ou afastando-se dele ), até che-
gar, em Sartre, a um determinado tipo de adesão
t"Xplícita, enquanto, por outro lado, os próprios mar-
xistas nunca se furtaram ao debate e sempre procura-
ram "conquistar " os existencialistas, principalmente
após o XX Congresso.
Mas até onde realmente pode o existencialismo
filiar-se ao marxisll)o? Essa questão permite dois
níveis de resposta: do JlOnto de vista prático, as po-
sições do existencialismo francês, enquanto atitudes
políticas concretas, são inegavelmente progressistas
e democráticas - e existem I)..UPlerosos exemplos dis-
so, desde a Resistência até hoie; mas do ponto de
vista teórico é possível a sua, para não dizer integra-
ção, aproximação? Sartre é dos que dizem sim, Lu-
kács um dos primeiros a dizer não.
Na Crítica da Razão Dialética, Sartre acusa o
marxis mo atual, seus representantes franceses, - e
chega a nomear também Lukács - de esclerose, de
i~capacidade de apreender o particular, de esquemá-
tico, fácil, em suma de "idealismo", porquanto
se deixa levar antes por esquemas preconcebidos
("idéias") gerais e abstratos, ao invés de proceder,

7
pela síntese de todas as mediações, à representação, nuamente a reformular suas idéias e se aproxim.ar
como o faz Marx, do homem na sua vida concr eta , cada vez mais do_marxismo. Lukács, inflexível, vem
do movimento de sua totalização. mantendo as ,c ríticas expostas em Existencialismo ou
Lukács, por sua vez, aponta o "ser social" em Marxismo?, que data de 1947. Na segunda edição

Ique está apoiado o existencialismo, cujas conclusões


' 'poderiam ser feitas por qualquer pequeno-burguês",
mas cujó auditório não estaria apenas "entre os esnÓ-
da tradução francesa, publicada em 1960, escreve:
"Impossível dissimular que a intenção do meu editor
de reeditar antigos estudos meus, _publicados há mais
bes, mas também nos meios reacionários". Para de uma década, causa-me alguma hesitação." Mas
Lukács, o existencialismo francês está definitivamen- "não a. propós!to do fundo filosófico dessa peq uena
te comprometido com certa camada social e mesmo obra: amda hoJe mantenho minha crítica de princípio
aparentando ser uma ideologia democr ática e pro- em relação ao existencialismo". E mesmo reconhecen-
g ressista, não se pode conciliar, sob hipótese alguma, do que "Sartre e Merleau-Ponty tenham mudado fun-
com o marxismo. damentalmente nesse lapso de tempo" e que os gran-
Ora, Questão de Método e Existencialismo ou des processos de 1938 na Rú ssia tivessem sido "inú-
Marxismo? são antes de mais nada escritos essen- teis", mantém o ponto de vista de 1947, pois tais dados
cialmente polêmicos e portanto não podemos esperar novos do problema "não tocam nem as bases do mar-
de seus autor es ·a necessária imparcialidade, obrigató- xismo, nem sua oposição ao existencialismo". O má-
ria numa análise rigorosamente científica. Assim, as ximo que tais fatos novos poderiam acarretar seriam
_discussões, os ataques muitas vezes si tuam-se em ní- alguns resultados diferentes, no que diz respeito a cer-
veis diferentes, e até opostos. Sartre, ao exigir dos tas reflexões filosófico-históricas e éticas, e a certos
marxistas atuais instrumentos para a análise de si- des~nv.olvimentos pa~ t!c~lares, que nunca atingiriam a
tuações particulares concretas, e propondo para tanto essenc1a mesma da critica.
seu próprio método, que seria diretamente fundado Mais recentemente, Lukács, numa entrevista que
em Marx, aponta deficiências antes de mais nada c~nc;deu a Naim Kattan, pu~Jí..cada em La Quinzaine
metodológicas. Lukács, ao querer apreender a sig- Latt~raire (1-12-1966), mantém. novamente seu ponto
nificação do exis tencialismo- como um todo, na sua de vista em relação ao existencialismo: "Não tenho
generalidade e não de cada existencialista em parti- muita confiança nas tendências do pensamento oci-
cular, refere-se ao conteúdo ideológico próprio a certa dental contemporâneo, quer se trate de neopositivis-
camada social, num determinado momento da evolu- ~o ou de existencialismo. Acho mais útil reler Aris-
ção da sociedade. Daí a rudeza das acusações mú- toteles pela vigésima vez." E referind_o-se especial-
tuas e a mesma cert eza de falar em nome de Marx. mente a Sartre, afirma: " .. . é um homem muito vi-
Na história das relações entre as duas filosofias, ~º· Passei a compreendê-lo bem melhor depois que
Lukács tem-se mantido mais constante que Sartre. h As Palavras, uma ob.ra admirável, que demonstra
Aliás, o próprio Sartre reconhece que sua primeira tue este. ~ornem jamais teve contacto com a r ealidade.
posição continha contradições que o levaram conti- omo filosofo, fez progressos depois de O Ser e o

8 9
Nada, aproximando-se do marxismo. Entretanto há E m suma, A Destruição da R.azão é a análise
nele uma debilidade: quando a vida o obriga a mudar do existencialismo alemão, enquanto Existencialis-
de ponto de vis ta, não se sujeita a modificá-lo radi- mo ou Marxismo? é a análise do existencialismo
calmente e procura dar-nos uma ilusão de continui- francês. Ora, Lukács assinala nesta última a di-
dade. Em sua Crítica da R.azão Dialética aceita
I
I
Marx, mas quer conciliá-lo com Heiclegg_er. A con-
t radição é clara: Há um Sartre número um no co-
S
'i1 ferença profunda que existe entre os dois existen-
cialismos: o primeiro, como demonstra com detalhes
em A Destruição da R.azão, é antes de mais nada a
meço da página e um Sartre número dois no fim da
.-'V filosofia da pura subjetividade, do isolam~ to, ~ -
mesma página. Que confusão de método e de ~ -
samen!Q_ !" lncia de qualquer comprotn!.§.S.Q__c..Qm_a_história e a
~~ e, i~ Q!Qgiâ típ!.ç~ s intel! ~tu.aj§ pequeno-
Assim, seu ceticismo mantém-se de 1947 até hoje.
... burgueses do período entre-g uerras, e cuja irraciona-
Por quê? Por que não lhe basta a declaração de ~ idade mu'ito bem se prestou para compor na assim
Sartre, segundo a qual o marxismo é a filosofia do chamada "concepção nacional-socialista do mundo"
nosso tempo, por que não se impressiona com as po- Mas o existencialismo francês demon strou logo uma
sições de Sartre e seus amigos durante a guerra da preocupação pelos problemas sociais e políticos, ten-
Argélia ( se bem que reconheça a sua coragem na f' do de se haver de imediato com o marxismo. Assim,
ocasião), por que essa desconfiança mesmo quando quando se fala na polêmica existencia lismo-marxismo,
Sartre aceita o fundamento econômico da história, a é antes ao existencialismo francês que se refere, se
verdade da luta de classes etc. etc.? bem que, segundo Lukács, o próprio Ser e tempo de
Ora, Sartre é um dos existencialistas e não o Heidegger é uma ob!:_a destt!!_a-ªª ~ ecifiç_ament e a
existencialismo. Se reconhece como positiva a apro- combater o ~ terialismo histór'co, mesmo que Hei-
ximação com o marxismo, isto não o impede de con- dêgger nunca o tenha confessado.
tinuar a afirmar a oposição das duas filosofias, no No presente trabalho, LuKács, após caracterizar
seu conjunto e na sua essência. Cremos que ficá.rá a filosofia burguesa de hoje COijlO uma filosofia em
mais clara a posição de · LU:kács, se a leitura de Exis- crise ( ensaio 1) , e apontar as origens metodológicas
tencialismo ou Marxismo? for completada pela leitu- 1 do existencialismo ( ensaio II ), analisa o existencia-
ra de outra obra sua, A Destruição da R.azão, em que lismo francês em particular ( ensaio III) , dado o seu
trata especificamente do existencialismo alemão, es- caráter acentuadamente político que o leva a se re-
ttfd'~ ·doe m pormenor Heidegger e Jaspers, ~s fontes lacionar abertamente com o marxismo. E, finalmente
do existe~ncialismo (Kierkegaard e Nietzsche), os fi- ( ensaio IV), Lukács expõe os princípios norteadores
lósofos que influíram decisivamente para o seu apa- <le sua crítica, princípios estes que ao mesmo tempo
recimento (Husserl e Scheler) e na qual ainda situa constituem uma resposta ao seu próprio História e
o existencialismo no quadro geral do panorama filo- Consciência de Classe, cuja teoria do conhecimento
sófico-cultural da época. considera superada.
10 11
A idéia do presente livro nasceu em 1946, nos
Encontros Internacionais de Genebra, em que sua in-
tervenção foi particularmente notável nos debates
que travou com Merleau-Ponty e com Jaspers. E
constitui um dos textos indispensáveis para a eluci- NOTA DO AUTOR
dação da questão: o existencialismo é compatível com
o marxismo? Se a recente adesão de Sartre pode
tentar os mais apressados a dar a sua afirmativa, Impossível dissimular que a intenção de meu edi-
não podemos esquecer, como o faz Lukács, de que o tor de reeditar antigos estudos meus, publicados há
existencialismo, na pessoa de seus vários represen-
mais de uma década, causa-me alguma hesitação. Não
tantes, em outras oportunidades, como em Heidegg.er,
para citar o ex;emplo mais conheciêlõ, não só ignora a propósito do fundo filosófico desta pequena obra:
( ou finge ignorar) o marxismo, como Õ combate na ainda hoje mantenho minha crítica de princípio em
prática. Desta forma:ântes mesmo do aparecimento \ relação ao existencialismo. Mas, nesse meio tempo,
<là Crítica da .Razão Dialética, Lukács aponta como minhas convicções sobre certos fatos históricos mu-
pode haver essa aproximação e aparente compatibili-
dade: à custa da coerência do sistema; a noção sar- r daram. Sei, por exemplo, depois do discurso de Krut-
treana de liberdade sofre uma substancial modifica- chev, de 1956, que os grandes processos do ano 1938
ção e serve de ponte para a ação política concreta. foram inúteis. Portanto, as reflexões filosófico-his-
Em suma, tanto aos existencialistas como aos tóricas e éticas que,, no meu livro, estão ligadas a
marxistas, ainda hoje é válido o desafio de Lukács estes fatos, podem ser •justas de um ponto de vista
·para resolver a questão: trata-se antes de tudo de
procurar, se houver, os elementos comuns aos funda- abstrat~; mas os exemplos históricos são caducos.
mentos teóricos dessas duas concepções do mundo. t evidente que essas novas CS2ncepções podem engen-
Se bem que apenas esboçado, o confronto que Lukács drar igualmente conseqüências f,ilosóficas. Mas 1 sen-
estabelece lança novas luzes sobre um problema que, do dado que elas não tocam nem as bases do marxis-
por não ter ainda sido resolvido, merece toda a a ten-
ção e nos obriga a pesquisar as justificativas de todas mo, nem sua oposição ao existencialismo, podemos
as posições, e principalmente daquele que é conside- deixá-las de lado.
rado o maior filósofo marxista do nosso século. O mais importante é que Sartre e Merleau-Ponty
tenham mudado fundamentalmente, nes~e lapso de
José Carlos Bruni
tempo, sua posição política, e portanto filosófica. Uma
polêmica atual levaria, sob vários aspectos·, a resul-
tados diferentes.

12 13
Estando muito ocupado em terminar minha obra
sôbre estética, não posso pensar numa transformação
completa do "Existencialismo ou Marxismo?". Ao
contrário, espero poder voltar à maioria dos proble- INTRODUÇÃO
mas atuais da filosofia de Sartre, na minha obra sobre
ética, que empreenderei após ter terminado a estética.
O estudo que apresentamos hoje não tem a pre-
Budapeste, 11 de abril de 1960.) tensão de esgotar - nem do ponto de vista metodo-
1 ,,
lógico nem do ponto de vista histórico - os proble-
Oeorg Lukács mas que evoca.
Os debates entre o materialismo dialético e o
existencialismo têm lugar, em geral, num terreno
muito estreito ou muito largo. Na realidade, não se
trata de uma preocupação efêmera nem tampouco
de um combate filosófico "eterno", se bem que nume-
rosos são aqueles que afirmam uma ou outra coisa.
De fato, o objeto do debate é um problema ideo-
lógico próprio do estágio do imperialismo; s9mente,
como todos os problc:,.m as desta ordem, o nosso tam-
bém remonta, quanto às ~uas origens, ao período con-
secutivo à Revolução Francesa. Num sentido mais
geral, trata-se do choque de duas orientações do pen-
samento: de um lado, daqueJ..a. que vai de Hegel a
Marx, e de outro lado, daquela que liga Schelling (a
partir de 1804) a Kierkegaard. Pôr em paralelo Marx
e Kierkegaard é, certamente, um processo muito em
moda e filosoficamente indefensável, mas que se jus-
tifica por um p;i.no de fundo muito real: a derrota do
idealismo objetivo. Sua herança constitui o ponto de
partida do debate entre a esquerda, isto é, a dialética
materialista, e a direita, representada pelo existen-
cialismo. Em Kiekegaard, como do último período .
de Schelling, a concepção do existencialismo é teo-
lógico-mística. Isto explica porque o existencialismo
14 15
não consegue então estender sua influência e que aca· materialismo antigo está ultrapassado. O grande
ba, na sua forma original, num impasse de caráter combate da filosofia desenrola-se essencialmente en·
manifestamente reacionário. tre o "terceiro caminho", do qual o existencialismo
A derrota da revolução de 1848 foi seguida de representa a forma mais up to date e o materialismo
um longo período de "segurança" econômica e polí· dialético.
tica, graças ao reino da burguesia. No plano da filo· Três principais grupos de problemas resultam
sofia, esse período podia, portanto, satisfazer-se com desta situação histórica. No domínio da teoria do
um agnosticismo oscilante entre o "materialismo en· co!1hecimento, é a pesquisa da objetividade que do-
vergonhado" (Engels) e o solipsismo. mina; no plano da moral, tenta-se salvar a liberdade
Uma mudança dever-se-ia produzir somente no e a personalidade; do ponto de vista da filosofia da
início do estágio do imperialismo. Uma oportunidade história, enfim, a necessidade de perspectivas novas
de salvar o idealismo filosófico aparecia então, sob o se faz sentir no combate contra o niilismo.
aspecto desse "terceiro caminho", que vai de Mach , ~ntre es~es· t~ês g~upos de problemas, a ligação
e Nietzsche até o existencialismo e que consiste em ~ mmto estreita; filosoficamente, devemos resolvê-los
se proclamar neutro também frente ao materialismo _1untos.
e ao idealismo, que se pretende ultrapassar, do ponto A base comum, sobre a qual repousam esses três
de vista da teoria do conhecimento. De um outro la· 1 grupos de problemas, é fornecida pelo caráter mani·
do, o revisionismo filosófico combate o materialismo festamente transitório da realidade social e histórica
e a dialética, orientando a ideologia da classe operária anterior à atual. A filosofia anterior à Revolução Fran·
para as concepçoes - burguesas. E ssa "a d ap taçao
-" cesa ignorava esse pr~ blema. Para ela, a luta histórica
vai desde a aceitação pura e simples da ideologia bur· e social tinha lugar entre a razão (a sociedade bur-
guesa do período da "segurança" até o serviço das guesa ascendente) e a não-razão ( o absolutismo feu·
ideologias reacionárias extremas: a carreira de um dai decadente). As contradições entre a s ituação his-
de Man, por exemplo, está longe de ser fortuita. Face tóri~a real e sua definição filosj>jica aparecem apenas
a essa evolução, encontramos a renovação leniniana no fim desse período e mesmo então sob formas filo-
da dialética, a partir de um materialismo conseqüente. sóficamente inconscientes. Em ·Kant, por ex.emplo,
Aqui, os fatos novos da história e os problemas filo- apresentam-se como a antinomia entr e o dogmatismo
sóficos novos, trazidos pela evolução das ciências na· (a objetividade injustificada) e o ceticismo (relativis-
turais, recebem uma definição exaustiva. mo) . Mas porque Kant não era consciente da base
É assim que se constitui essa tensão particular, real do problema que se lhe colocava, não pôde chegar
que caracteriza a situação do pensamento atual: o senão a pseudo-soluções, que deveriam, notadamente
idealismo objetivo, após sua derrota definitiva, sobre· d~trante o per'íodo de "segurança" filosófica, influen-
vive apenas sob o aspecto de mitos reacionários; o c!ar todo o pensamento europeu. O problema dialé·
idealismo subjetivo, que perdeu suas perspectivas, h~o da relação entre o relativo e o absoluto não pode
encontra-se em plena retirada para o pessimismo; o ser colocado ·~ orretamente e resolvido senão mais tar·

16 17
de, quando ·a consciência tivesse realizado o caráter trato de uma necessidade inumana, fatalista e des-
histórico do conjunto da realidade e, antes de tudo, provida de vida.
o caráter transitório do presente capitalista. A pesquisa de uma perspectiva leva, também, a
Criada por Hegel e colocada sobre fundamentos um resultado concreto. O leninismo dotou, com efeito,
justos por Marx, somente a concepção da interpene- o problema da perspectiva de um conteúdo concreto.
tração mútua e da inseparabilidade do absoluto e do Não se trata mais, agora, das perspectivas do socia-
relativo pode trazer a solução dos três grupos de pro- lismo somente, mas da determinação da evolução his-
blemas de que falamos acima. O problema da objeti- tórica concreta da sociedade - e dos indivíduos que
vidade do conhecimento só é r~~jdo eela teo~ - a compõem - pelas ações concretas a realizar, em
lética da consciência humanaq ue reflete um mundo função da significação concreta que possui a perspec-
exf"erior a existir independentemente do._sµ,jeito. É tiva do socialismo para o presente do conjunto social
essa doutrina ainda que responde ao problema colo- e dos indivíduos que o compõem.
cado na teoria do conhecimento pela função da sub-
jetividade (papel ativo do sujeito do conhecimento, Mas o socialismo é possível somente - propo-
em razão da unidade inseparável da teoria e da prá- mo-nos demonstrá-lo nos quadros da presente obra -
tica, e da situação histórica subjetiva no conhecimen- sôbre a base do materialismo.dialético. A ligação des-
to da realidade) e o caráter absoluto de seu conhe- sa filosofia com o socialismo reveste-se, portanto, de
cimento, sem suprimir a objetividade do mundo exte- um caráter de necessidade essencial.
rior. A posição concreta, mat'erialista-dialética da Ocorre o mesmo. no campo oposto do pensamen-
questão, ressalta, além disso, a função da subjetivida- to: a resistência à epistemologia materialista e à dia-
de na História, enquanto função da atividade humana lética materialista está êm ligação íntima com a re-
concreta na evolução e autocriação da humanidade. sistência da ideologia burguesa ao socialismo. A con-
É assim que o problema da personalidade aparec~ co- tribuição
. nova da nossa época ~~
consiste somente no
mo um elemento de uma sociologia histórica· geral. tato de que a aprovação do socialismo em geral eqai-
Esta demonstra, até nos seus detalhes maii sutis, os vale a um aspecto preciso da oposição intelectual à
riscos, a ameaça de. aniquilamento que o capitalismo perspectiva concreta e real do socialismo. Quanto
estende à personalidade humana, desde sua existência mais essa aprovação se faz sob uma forma "elevada",
econômica até seus aspectos ideológicos mais matiza- mais isto ocorre. E eis porque essa aprovação - se
dos. Oferece, igualmente, em ligação íntima com essa bem que ao preço de ecletismos e de contradições -
descrição, soluções concretas. ( Problemas da vida pú- pode revestir as formas atuais do idealismo filosófico.
blica, crítica do particularismo individualista, enquan- É assim que o existencialismo aparece como a
to sufocamento e mutilação da personalidade etc.). última variante - e também a mais evoluída - des-
A liberdade humana aparece então em união dialética sa oposição. Sua ontologia, baseada na fenomenolo-
com a necessidade e não mais como o antípoda abs- gia, representa o cume atual e o aspecto mais extremo
18 19
do "terceiro caminho" filosófico, próprio do estágio enquanto aspectos diversos do mesmo "totalitarismo"
do imperialismo. e enquanto adversários e destruidores, um e outro,
No que concerne ao problema da personalidade e da liberdade e da personalidade. (Ver o caso Silone.)
da liberdade, a burguesia tem um interesse vital - Idéias desse gênero são responsáveis pelo caos
interêsse que corresponde aliás à sua inteligência es- monstruoso que reina na filosofia, em torno da noção
pecífica e a seus instintos imediatos - e~ não con- de liberdade. O que aumenta ainda esse caos, é a
siderar as ameaças que a estrutura da sociedade faz incompreensão de amplos setores da "intelligentzia"
pesar sobre a personalidade como um fenômeno pró- burguesa para o problema social essencial de nosso
prio ao capitalismo. Ao contrário, concorda em ver tempo, sob seu aspecto concreto: a luta das formas
no socialismo o perigo principal. A burguesia consi- novas da democracia contra suas formas antigas,
dera instintivamente seu poder de exploração como que servem o capitalismo e que lhe são subordinadas.
fazendo organicamente parte de sua concepção da Nisto ainda, o existencialismo representa a forma
personalidade a da liberdade. A inteligência bu.rgue- ma is evoluída do "terceiro caminho", porque opera
sa está aliás profundamente imbuída desse sentimen- com uma concepção extrema, abstrata e subjetiva da
to geral, que considera como a forma original da li- liberdade, em ligação com uma aprovação - abstrata
berdade essa liberdade aparente, própria ao capita- ainda - do socialismo e com um protesto contra a
lismo, que concê>rdam úitõ bem com a opressãototal, ausência de liberdade nas mais notadas manifesta-
afé a prostítüíção da personalidade. É assim que se ções do capitalismo. O existencialismo reflete, assim,
constitui uma concepção puramente formal e subje-
tiva da liberdade, em 9posição com a noção de liber- J no plano da ideologia, o caos espiritual e moral da
inteligência burgues~ atual.
dade concreta e objetiva, que nos legaram os antigos,
como também Hegel e Marx. fà. ~ No que concerne, enfim, ao niilismo, acha-se es-
i treitam~nte ligado a todas. :ss~s questões e primeira-
Nesse domínio igualmente, o existenci~!ismo .!e-
presenta o cume da evolução burguesã, ainda que
seus resultados sejam do tipo de um ,rferceiro cami-
nho". O estágio do imperialismo dá origem, um
pouco em cada lugar, a uma luta contra certos aspec-
~

~
J 1~
9 ~ ~ ~e?te a tomada de consc1encia, que a evolução· his-
~ ~ ~ tonca tende_ cada vez mais ~mp@r aos homens, do

i
ca:át~r. transitório das bases de"'JSua existência social
~ e. individual. É essa tomada de consciência, despro-

tos - antes de tudo culturais - do capitalismo, que


se identifica com a perspectiva do socialismo. A gros-
',J> À v1,da de. tôda persp~~~iva concreta e verdadeira que
da nascimento ao n11hsmo. As perspectivas míticas
~ c~j~ eclosão _maciça caracterizou o e~tágio do impe~
seira demagogia do fascismo traçou um "terceiro ca- n_~l.ismo, estiveram e permanecem amda ligadas ao
minho" da moral: capitalismo e socialismo são, a seus nnhsmo. Essas tendências são fáceis de constatar já
olhos, idênticos. Essa demagogia foi, parcialmente, em Nietzsche, melhor ainda em Spengler ou em
derrotada. Seus adversários quase não ultrapassaram K lages, para atingir seu ponto culminante na pre-
seu nível, porque confundem fascismo e bolchevismo, tensa concepção do mundo do fascismo.
20 21
No plano ideológico, a necessidade social do nas- mocracia nova, combate que não nos deixou o des-
cimento dos mitos explica-se pela incapacidade · dos canso que teria sido necessário para o levar a cabo
pensadores de romper radicalmente com as sobrevi- no sentido
. indicado. Representa' apenas' portanto, u;
vências teológicas da filosofia. A conservação dessas ensaio, ~m.a tentativa em vista de definir os proble-
representações de origem teológica faz, aliás, parte mas mais importantes e de indicar o caminho de sua
do esfôrço - freqüentemente inconsciente - que de- solução.
ve impedir a realização, pela ideologia, das conse-
Matrahaza (Hungria), julho de 1947.
qüências decorrentes do caráter transitório das bases
sociais da pessoa humana. Dostoievski formulou es-
se sentimento de uma maneira surpreendente, colo-
cando a questão seguinte na boca de um de seus per-
sonagens: "Que capitão sou eu, se Deus não existe?"
O existencialismo não soube, ao menos, vencer
essas sobrevivências teológicas. O ateísmo de Hei-
degger e de Sartre é tão religioso quanto o de Niet-
zsche, se bem que deva suas bases a Kierkegaard. O {

horizonte religioso, que se forma assim, aproxima-se


perigosamente de todos os mitos modernos. O exis-
tencialismo leva, portanto, a marca do mesmo niilismo
espontâneo de toda ideologia burguesa moderna. Ve-
remos a seguir que o existencialismo - sobretudo nas
definições mais recentes - não pode superar esse
, abismo senão às custas de um certo ecletismo.
O que foi esboçado aqui, representa apenas um
apanhado dos problemas que surgiram. Não consi-
deramos de forma alguma a obra que se vai ler como
uma resposta exaustiva a todas as questões colocadas.
Os estudos que a compõem representam apenas es-
boços polêmicos e os problemas não são aí tratados
nem do ponto de vista histórico, nem do ponto de
vista sistemático. Eis porque, no momento de pu-
blicar esse livro, não podemos defender-nos de uma
certa resignação. Nasceu em pleno combate pela de-

22 13
Capítulo I

1. A CRISE DA FILOSOFIA BURGUESA

1~ !11 ~.:>
Nós, marxistas, não somos os únicos a constatar
a crise da filosofia burguesa. Essa noção tornou-se
~
J
J
: is
()' de há muito moeda corrente na própria filosofia bur-
guésa. Assim, por exemplo, o neo-hegeliano Siegfried
Marck, querendo determinar~.,....o lugar de Rickert na

1 , ~
'

$:.:
.
evolução da filosofia, declara que ele pertence ao pe-
ríodo anterior à crise. Com efei to, se nos dermos ao
trabalho de estudar atentamente a evolução da filo-
~ sofia burguesa destes últimos tempos, veremos que
'2 ~ suas próprias bases são periodicamente postas em
~ questão. E não é por acaso que no ponto de partida
dessa evolução encontra-se o programa de Nietzsche :
J / r efazer a escala dos valor es. ~ode-se dizer que o
ano no qual um domínio qualquer do pensamento
~ não conhece uma crise aguda, perde-se na banalidade.

25
Mas o signo mais sério da crise é, sem dúvida,
o fato de que sua evolução chega àquilo que se de-
í por seu lado, remonta até Descartes, enquanto que,
de acordo com o irraciona·lismo alemão, é de Des-
nomina, com algum exagero, a concepção do mundo cartes que começaria o desvio da filosofia moderna.
do fascismo. É aliás fácil constatar que a resistência Poderíamos multiplicar estes exemplos ao infinito.
que lhe opõe a filosofia burguesa é igual a zero. Nu- Nessa busca desordenada e incessantemente retoma-
merosas escolas filosóficas nas quais o fascismo am- da de fontes antigas sempre diferentes, manifestam-
parou-se (Nietzsche, por exemplo) continuam a be- se ainda uma vez os sinais da crise no plano histórico.
neficiar-se de uma popularidade inalterada nos am- Essa crise exprime um mal-estar profundo: a filoso-
plos meios antifascistas burgueses. fia perdeu seu caminho. Onde e quando perdeu-se?
O fato da crise é, portanto, quase indiscutível. Sua Até onde é necessário retroceder para reencontrar o
descrição e seu estudo crítico constituem já uma ta- bom caminho?
refa bem complexa, tanto no plano histórico como
de um ponto de vista particularmente filosófico. É 1.
aí, com efeito, que desde já se coloca a questão: o
que há de especificamente novo na filosofia ço perío- O PENSAMENTO FETICHIZADO E
do imperialista? É na verdade radicalmente nova? A REALIDADE
E, em caso afirmativo, em que reside sua novidade?
· No estudo das questões desse gênero, a prudên- O que há então de novo na filosofia do período
cia é de rigor. Durante a discussão do programa do imperialista? No seu conjunto, essa filosofia é o ·re-
imperialismo, fazendo abstração da evolução geral do flexo, no plano do P.,.ensamento, do imperialismo mes-
partido comunista russo, Lenin levantou-se contra a mo, isto é, do estágio sppremo do capitalismo, que é
tendência representada por aqueles que se propunham também o mais rico em contradições. As contradições
estudar a estrutura econômica e as leis internas do próprias à sociedade capitalista, que determinam a
capitalismo. Pensamos que esse princípio metodoló- evolução, a forma e o conteú~Q. da filosofia burguesa,
gico aplica-se perfeitamente ao domínio da ideologia aparecem no imperialismo sob.• uma forma objetiva
e da filosofia. A filosofia do imperialismo não pode levada ao extremo. É ·entretanto de interesse vital
ser compreendida e criticada senão à luz das leis fun- para a burguesia não reconhecer esse caráter funda-
damentais da sociedade capitalista, porque é evidente mentalmente contraditório de seu pensamento. Dito
que a influência da estrutura econômica manifesta-se de outra forma, quanto mais essas contradições são
igualmente no domínio da filosofia. profundas e irreconciliáveis, tanto mais nítida é a rup-
Sintomas que nada têm de profundo revelam a tura - a causa mesma da crise da filosofia - entre
crise: esta se traduz na filosofia moderna pela pro- o pensamento filosófico burguês e a evolução da rea-
cura incansável de suas fontes no passado. É fácil, lidade social. Mas o problema não consiste somente
por exemplo, seguir a influência de Kant até H. St. em uma contradição entre o pensamento burguês e
Chamberlain e, através deste, até Rosenberg. Sartre, a realidade social do imperialismo, pois acrescenta-se

26 27
li
~
~
f
1,-1/. .- .
ainda uma outra contradiça?: a 9ue subsiste entre
evolução efetiva e a superficie diretamente P:rceptt-
vel dessa realidade social. É essa contradiçao que
~ maçã ou a côr da rosa. O mesmo processo de aliena-
ção ocorre no caso do dinheiro, no do capital e no
de todas as categorias da economia capitalista: as
relações humanas tomam o aspecto de coisas, de qua-
explica que certos pensadores, que são, no entanto, de lidades óbjetivas de objetos. Quanto mais uma dessas
~ :S boa fé, nos dêem uma representação completamente categorias está distanciada da produção material efe-
~ falseada da realidade social, si":p!es~ente porque se tiva, mais o fetiche está vazio, desprovido de todo
<:s' ~ limitam ao exame dessa superficie diretamente per- conteúdo humano. É evidente que, para o pensamento
~ ceptível. burguês, seu efeito de fet iche é apenas o mais pro-
~· Essa contradição constitui naturalmen~e um pro- fu ndo. Eis como a evolução do capitalismo no estágio
blema constante para o pensamento burgues. Na so- imperialis ta não faz senão intensificar o fetichismo
ciedade capitalista, o fetichismo é inerente a todas .as geral, pois, do fato da dominação do capital financei-
manifestações ideológicas. Isto quer dizer, sm?ana- ro, os fenômenos a partir dos quais seria possível des-
mente, que as relações humanas, que se mantem na vendar a reificaçio de todas as relações humanas,
maior parte dos casos, por intermédio de objetos, a.pa- tornam-se cada vez menos acessíveis à reflexão da
recem, para esses observadores e? ganados pe~a mira- média das pessoas.
gem superficial da realidade social, como coisas; as
relações entre os ser es humanos apare~em, portanto,
, Do ponto de vista da filosofia, importa notar que
esta intensificação do fetichismo ex.erce um efeito
sob o aspecto de uma coisa, de um fetich e. É o ele- ant idialético sobre o pensamento. Cada vez mais, a
mento fundamental da produção capitalista, a merca-
sociedade se apr esenta ao pensamento burguês como
doria, que fornece o exemplo mais ~laro dessa alie-
um amontoado de ~ isas mortas e de relações entre
nação. Tanto quanto por sua produçao como por sua
objetos, em lugar de nele se refletir como é, ou seja,
circulação, a mercadoria é, com efeito, o age~te. me-
como a reprodução inintetrrupta e incessantement e
diador de relações humanas concretas ( capitaltsta-
cambiante de relações humanas. O clima mental as-
operário, vendedor-comprador et~. J, e é ne~es~ário o
sim criado é muito desfavor t~l para o pensamento
funcionamento de condições sociais e econon11cas -
dia lético. O parasitismo própriô ao estágio imperia-
isto · é, de relações humanas - muito concretas e
lista só intensifica essa evolução. A maior parte dos
muito precisas para que o produto do trabalho d?
intelectuais encontra-se, com efeito, mui to afastada
homem se torne mercadoria. Ora, a sociedade capi-
do processo de trabalho efetivo que determina a es-
talista mascara essas relações humanas e as torna trutura verdadeira e as leis de evolução da sociedade;
indecifráveis: dissimula cada vez mais o fato de que estão tão profundamente ajustados na esfera das ma-
o caráter de mercadoria do produto do trabalho hu- nifestações secundárias da produção social - que con-
mano é apenas a expressão de certas relações ~ntre sideram aliás como fundamentais - que a descoberta
os homens. Assim, as qualidades de mercadoria do
das relações humanas mascaradas pela alienação, tor-
produto ( seu preço, por exemplo) dele se destacam na-se para eles coisa impossível.
e se tornam qualidades objetivas, como o gosto da
29
28
l ~( definitivo, é tão grande o abismo entre a rea·
i ~lidade e o pensamento, que só reflete s~as manifest~a-
escritores sabem representar, nas suas obras, as re-
lações humanas enquanto tais, a despeito de suas
j ções superficiais, que toda transformaçao na evoluçao idéias individuais contrárias. Mas, na filosofia, onde
~
1
~
111r(J social se apresenta para º pensamento sob º aspecto
de uma ruptura inespera.da e apen~s pode provocar
uma série contínua de crises. É evidente que, se fa-
os próprios princípios últimos são postos em questão,
o objeto de estudo não poderia exercer esta influência
salutar.
~ !amos de uma crise constante da filosofia no estágio Partindo dessas considerações, seria talvez pos-
sível delimitar sumariamente os principais períodos
Ij do imperialismo, é necessári~ disting~ir v~ria~ etapas
~ dessa crise. Até 1914, a crise da filosofia e de na- de evolução da filosofia burguesa, a fim <le melhor
tureza latente ; tornar-se-á evidente apenas depois poder examinar em seguida, auxiliando-nos de ste re-
de 1918. sumo histórico, as características essenciais da filo-
sofia no decorrer do período imperialista.
2. O primeiro período é o da filosofia burguesa clás-
sica, que vai até cerca do fim do primeiro terço do
A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO BUROUÊS sécu lo XIX ou, no máximo, até 1848. É esta época
que dá origem à expressão mais elevada da concepção
Mas tudo o que precede não resume as caracterís- do mundo da burguesia, isto é, revolta da burguesia
ticas gerais do estágio imperialista, do ponto de vista contra a sociedade feudal em declínio. A filosofia des-
ideológico. A filosofia constitui, entretanto, uma ma- ta época codifica os princípios últimos e a concepção
nifestação ideológica particular, cuja evolução não geral do mundo, próprios a este vasto movimento
é sempre exatamente paralela à das outras manifesta- progressivo e liberta1:ior, que tão profundamente r e-
ções ideológicas, das ciências exatas ou da literatura, formou a sociedade. Assfatimos agora à transforma-
por exemplo. Essa particularidade da filosofi~ reside ção r evolucionária da lógica, das ciências naturais e
no fato que tem por objeto as questões últimas da das ciências sociais. As intervenções da fil osofia nos
existência e do conhecimento: is to é, a concepção do grandes problemas concretos 6hs ciências naturais e
próprio mundo, sob suas formas abstratas e gerais. Ao sociai s mostraram-se férteis e "é então que ela se
contrário, onde a manifestação ideológica tem por ob- eleva à reg ião das abstrações mais elevadas. É assim
jeto imediato a realidade social diretamente dada -_ e que se manifesta seu caráter de universalidade e seu
não sua soma abstrata ou seus princípios gerais - a papel de fermento das ciências, que lhe permite des-
visão corajosa e imparcial da realidade compensa fre- cobrir tantas perspectivas novas.
qüentemente os defeitos da concepção ideológica .. A Vejamos agora o que esta filosofia representa,
literatura oferece-nos numerosos exemplos de escrito- do ponto de vista das classes sociai s em presença.
res com idéias pessoais influenciadas pelo fetichismo A primeira vista, a resposta parece muito simples;
e que sabem, em larga medida. dele se desembaraçar mas é bastante mais difícil de form ular no plano
na sua criação literá ria. Em outros termos. esses da realidad e concreta. São os vastos interesses gerais

30 31
de uma classe colocados no palco da história mundial, acabado: sucede-lhe a defensiva contra o proletariado
' .
objetivamente chamados a transformar no sentido do ascendente. Outro grande processo histórico da épo-
progresso o conjunto da sociedade, que re.cebe?1 ~ua ca das revoluções burguesas, o da formação dos Es-
e)..pressão adequ~da n~s ob~as_ d~ f!losof ia cla~sica. tados nacionais, termina igualmente pela realização
Eis porque esta filosofia esta tao 1nt11~amente ligada da unidade nacional alemã e italiana, no quadro dos
a esses imensos interesses e aos conflitos que devem Estados reacionários. É a era dos compromissos so-
ocasionar. Os pensadores desta época têm ao mesmo ciais asfixiantes, a era de Napoleão III e de Bismarck.
tempo um senso suti l e robus.to ,d~ realida.de, e seus A antiga democracia burguesa periclita e se de#az
próprios erros dependem da historia mundial, porque continuamente depois de 1848. Liberais e democratas
são oriundos de ilusões heróicas que correspondem a separam-se e terminam por se voltar uns contra os
necessidades históricas. outros: o liberalismo se transforma em um "libera-
Desta unidade profunda e íntima entre a filoso- lismo nacional" de caráter conservador.
fia e os interesses gerais da burguesia ascendente, re- ~ O desenvolvimento tumuituoso da produção ca-
sulta uma independência considerável dos filósofos,
frente à tática momentânea de sua classe e, sobre- o pano de fundo econômico desta corrupção da de-
tudo, de certas camadas desta. Esta independência mocracia. O capitalismo ·continua sua ascensão, apa-
confere-lhe a possibilidade de uma crítica muito séria: rentemente ilimitada, desembaraçado de todo pro-
a crítica vem do interior, porque se funda sobre a blema. (Notemos, de passagem, que estas observa-
grande missão histórica da burguesia, e a situ~ç~o ções não se aplicam à Rússia. Na evolução política
do filósofo é tal que o autoriza a tomar a posiçao e econômica da Rússi~ e, portanto, da luta ideológica,
mais nítida mais decidida e mais corajosa. E, enfim, 1905 corresponde àquilo que o ano 1848 significa para
por não se; esta coragem somente uma virtude indi- a Europa Ocidental e Central. Eis porque poderia
vidual, mas, sim, função precisamente desta relação ainda haver na Rússia da segunda metade do século
com sua classe, o filósofo se sente com direi~o de XIX pensadores tais como Tchernichevski e Dobro-
criticar da maneira mais radical o menor desvio da liubov.) ,.:i..
missão histórica, em nome dessa própria missão. A filosofia deste período cortstitui reflexo exato,
Mas, as revoluções de 1830, e ainda mais as d~ no plano do pensamento, do compromisso social. Re-
1848, atestam que a burguesia perdeu seu lugar a nuncia à missão de dar resposta às últimas questões
frente do progresso social. Em 1830 começa ? 1~ro- cdo espírito. No plano da teoria do conhecimento:
cesso de decomposição da filosofia burguesa classica, esta tendência se manifesta pelo agnosticismo, o qual
que termina com a revoluc;ão de 1848. Esta data pretende que não podemos nada saber da essência
forma na evolução da filosofia, o limiar de um novo verdadeira do mundo e da realidade e que este co-
períod'o que termina mais ou menos no início do p~- nhecimento não teria aliás nenhuma utilidade para
ríodo imperialista. O combate ofensivo da b~rgues!a nós. Só temos que nos preocupar com as aquisições
contra as sobrevivências do feudalismo esta entao das ciências, especializadas e separadas umas das ou-

32 33
tras, conhecimentos indispensáveis do ponto de vista vel à burguesia da época, pois que assegura a estabi-
da vida prática de todos os dias. O papel da filosofia, lidade de um compromisso social durável com as for-
segundo o agnosticismo, deve limitar-se a vigiar para ças da reação. Em compensação, os métodos e os
que ninguém ultrapasse os limites definidos pelas objetos, a evolução e os frutos dessa filosofia, con-
ciências e para que ninguém ouse tirar das ciências vertida em uma ciência especializada como as outras,
econômicas e sociais conclusões que poderiam desa- tornam-se cada vez mais indiferentes à burguesia.
creditar o regime. No mesmo sentido, o agnosticismo Esta cede aos intelectuais burocratizados, que fazem
proibe-nos de explorar as descobertas das ciências na- parte do aparelho de Estado, o direito de explorar
turais contrárias aos dogmas religiosos. Esta filoso- seus métodos e seus resultados. É assim que, em
fia repudia por princípio todas as pesquisas que ten- perfeita conformidade com a divisão do trabalho, pró-
dem a elaborar uma concepção coerente do mundo, pria do capitalismo evoluído, esta camada de intelec-
pois uma visão de conjunto definiria os limites traça- tuais, beneficiária de uma independência relativa, tor-
dos pela ciência, que considera como autoridade su- na-se depositária da filosofia nova.
prema. l\fas essa independência é completamente relati-
Esta filosofia que se apresenta na maioria das va. Tem por condição a execução estrita das obriga-
vezes sob os traços de um neokantismo ou de um . ções que resultam da função de "guarda-fronteira".
positivismo, não é a única filosofia da época. Mas t - Forma e objeto da filosofia são então determinados
essas duas tendências são dominantes. Paralela- pelos problemas especiais dessa camada de intelectuais
mente à sua evolução, podem-se registrar certas ten- que. mesmo gozando de uma certa independência, tor-
tativas de renovar o antigo materialismo mecanicista, nou-se, nesse novo P.eríodo da evolução da filosofia
tentativas às vezes assaz medíocres (Moleschott, burguesa, o depositàrio social do pensamento. Do
Büchner etc.). A influência de Schopenhauer, sobre- ponto de vista sociológico, há, ao menos à primeira
tudo entre os intelectuais independentes, é igualmen- vista, uma certa contradição, porque é essa mesma ca-
te assaz profunda. Filósofo do pessimismo, gozou mada social que se encontra igt,Jalmente na origem da
do prestígio de ser apóstolo do desprezo por uma exis- filosofia clássica. Mas, se o t spírito da filosofia era
tência completam~nte desprovida de sentido. então radicalmente diferente, a fu nção social dos in-
A filosofia dominante da época é uma filosofia telectuais, autores diretos dessa filosofia, era tam-
de professores. Fora da psicologia, que apenas se bém diferente, e é essa diferença que explica a mu-
inicia, tem por objeto quase exclusivo a teoria abstra- dança. A camada de intelectuais, da qual a filosofia
ta do conhecimento. Torna-se ciência especializada. burguesa era a emanação direta, falava então em
Renuncia à sua antiga missão social: cessa de ser nome das perspectiYas uniYersais da burguesia ascen-
expressão, no plano do pensamento, dos grandes in- dente. Ora. essas perspectiYas deviam perder-se e
teresses históricos da burguesia e abandona o exame aniquilar-se na luta defensiYa contra o proletariado e
de todo problema ideológico. Aceita encarregar-se no compromisso das classes que seguiram 1848. As
da função de "guarda-fronteira", função indispensá- aspirações filosóficas da burguesia estreitaram-se;

34 35
tornaram-se mesmo negativas, para acabar por se determinismo não equivale à definição direta da for-
transformar em princípios puramente limitativos. A ma e do objeto da filosofia, mas manifesta-se pela
partir da segunda metade do século XIX os intelectuais criação 'de uma margem de liberdade de acordo com
têm dentro de certos limites, uma perfeita liberdade
' .
de movimento: a filosofia torna-se de seu interesse
os interesses da burguesia e se encontra delimitado
por esses mesmos interesses. No interior des sa mar-
exclusivo. A burguesia se desinteressa completamen· gem, a "intelligentzia" pode elaborar sua s doutrinas
te de conhecer o que ensina tal ou tal professor de ideológicas com toda liberdade.
filosofia com a condição de que a filosofia realize
'
sua função de "guarda-fronteira". O ensino univer-
. ,J Esse rigor extremo do determinismo social toma
sitário da filosofia transcorre, cada vez mais, em meio
à indiferença da sociedade.
Vejamos agora o que distingue a filosofia do es-
tágio imperialista daquela das épocas precede~tes. ~
~
l ~r...~

~,,:
sua forma concreta no fascismo. Com efeito, o fas-
cismo traduz para a linguagem do capitalismo rea-
cionário dos trustes, ou melhor, para a linguagem
da demagogia nacional e social da reação, todas as

~
primeira vista, há um desenvolvimento. A f1losof1a "conquistas" da filosofia do estágio imperialis ta.
torna-se de novo "interessante" - somente para os ,~ Transpõe para o vocabulário da rua as abstrações
meios intelectuais, bem entendido - enquanto a indi- . ~ .~ ideológicas que essa filosofia difunde do alto da cá-
ferença gerá! da burguesia persiste a seu r espeito. En- 1 ~~ tedra, nos salões e nos cafés.
tra em cena, em numerosos casos, sob o aspecto de uma
oposição à filosofia universitária, qu{: não acusa quase 'e]? 3.
nenhuma mudança. Nun1erosos são aqueles, entre os ~
grandes pensadores do estágio imperialista, que se A FILOSOFIA DO IMPERIALISMO
~

encontram fora do ensino oficial (Nietzsche, Spengler,


Keyserling, Klages etc.); Simmel e Scheler, também, . A filosofia, tornando-se "interessante", conquis-
permanecem muito tempo fora das Faculdades. Pou- tou uma certa independência. i!"~ ssa constatação sig-
co a pouco a nova orientação se i°:p.õe a um~ par~e nifica que, partindo de sua próprj~ situação particular,
do ensino oficial, que acaba por adm1t1r que a f1l?~of1a os intelectuais burgueses colocam seus próprios pro-
deve ser " interessante" ( Croce, Bergson, Huizmga blemas particulares de uma maneira mais concr~ta e
etc.). mais consciente que no período precedente. É uma
Assistimos a uma mudança radical? Não o cre- conseqüência do fato de que o papel dos intelectuais
mos. Examinando o problema de mais perto, cons- independentes é mai s considerável que o dos intelec-
tatamos um impulso no sentido afirmado após 1848, tuais l;mrocratizados. Esses intelectuais não colocam
porque é sempre uma camada de intelectuais que faz mais os grandes problemas universais da burguesia
a filosofia para seu próprio uso. Vemos igualmente na sua fase ascendente, mas limitam sua reflexão aos
que o determinismo social mais rigoroso não deixa interesses defensivos da burguesia, por volta do fim
de exercer-se em nenhum momento. Somente esse do século XIX.

36 37
Que se pode concluir de tudo isto quanto ao con- Eis porque a independência essencial da filosofia
teúdo e à forma da filosofia nova? É fácil ver, pri- e sua atitude crítica fundamental sofrem uma dege-
meiramente, que os fundamentos burgueses persistem, nerescência que nada pode interromper. Bastaria
invocar, para exemplo do contrário, Hobbes, Rousseau
sem ter sofrido nenhuma crítica séria. Além disso,
ou Fichte. Não são as construções utópicas que fal-
a camada social que se tornou depositária da filoso- tam, visando à transformação da cultura, mesmo pelos
fia nova, conhece cada vez menos a estrutura econô- meios revolucionários, como, por exemplo, em Nietz-
mica da sociedade burguesa e se mostra mesmo cada sche, mas a intangibilidade da base social e econômica
vez menos inclinada a estudá-la enquanto problema do capitalismo é sempre respeitada. Nietzsche critica
filosófico. Certamente, o tom da crítica torna-se apa- severamente os sintomas culturais d!1 divisão capita-
rentemente mais agressivo, mas quase diz respeito lista do trabalho, sem considerar a menor transfor-
somente à cultura propriamente dita e à moral in- mação da organização social.
dividual, isto é, problemas que interessam diretamente É a idéia de progresso que se encontra no centro
aos intelectuais enquanto camad a soc1a . 1. E ssa u·m- da crítica filosófica, e esta não prescinde de um élan
telligentzia" afasta-se, portanto, voluntariamente, dos quase r evolucionário. Ninguém sonha em dizer, bem
problemas econômicos, políticos e sociais e é precisa- entendido - o que na maior parte dos casos o filósofo
mente esse abandono que equivale ao respeito muito e seu público de intelectuais ignoram pela mesma
razão - que essa posição "audaciosa" do problema
escrupuloso dos limites que foram traçados à filosofia
é apenas o reflexo ideológico da evolução da burgue-
pela burguesia imperialista. Esse respeito, aliás, vale
sia, evolução que a. opõe- ao progresso. Trata-se aí,
por uma margem de liberdade que lhe permite tor- simplesmente, do ref lexo ideológico do compromisso,
nar-se "interessante" e esboçar mesmo, às vezes, intervindo entre a burguesia e as forças reacionárias
um gesto de revolta. da sociedade. Ninguém diz tampouco que, se esta
Acrescentemos, de passagem, que esse afasta- questão se coloca com tanta acuidade na filosofia do
mento das questões sociais, dos problemas da eco- imperialismo, é porque o pacl'o....dós dirigentes da pro-
nomia e da vida política, coincide objetivamente com dução capitalista com todas as forças reacionárias da
as exigências de classe da burguesia imperialista e sociedade faz-se cada vez mais íntimo sob o reino do
que é, ao mesmo tempo, a conseqüência necessária capitalismo dos trustes. Numer-osos pensadores vin-
da posição social da "intelligentzia" desse período. ·. dos dos mais diferentes horizontes não hesitam em
Se o respeito escrupuloso das barreiras das quais realizar esse casamento "interessante" do conteúdo
falamos não significa necessariamente, nos filósofos reacionário e do gesto revolucionário: Lagarde,
enquanto indivíduos, uma sujeição consciente às exi- Nietzsche, Sorel, Ortega y Gasset e muitos outros.
gências da burguesia imperialista, não lhe equivale E, na véspera da tomada do poder pelo fascismo,
menos na realidade, apesar de toda inconsciência e Freyer lança o g rito de união da " r evolução de di-
toda boa fé pessoais. reita" (Revolution von rechts).

38 39
Paralelamente a essa evolução, no curso da qual e o mundo, fornece a esse respeito um dupla indicação.
as questões propriamente ideológicas ganham terre- De um lado, demonstra que o mundo material existe
no, as relações entre a filosofia e a religião sofrem independentemente da consciência. De outro lado,
uma transformação profunda. As barreiras levanta- todo processo de trabalho é teleológico, o que quer
das pelo agnosticismo do período precedente estavam dizer que seu fim é dado na consciência do trabalha-
destinadas a desacreditar, antes de tudo, o materialis- dor, antes do seu começo efetiv o. Ora, a consciência
mo ateu. A orientação para uma concepção mais po- da "intelligentzia" está dominada por seu afastamen-
sitiva conduzirá uma parte dos filósofos a uma nova to crescente do trabalho material. É essa evolução
justificação da religião e outra a um ateísmo religioso que explica que numerosos cientistas se comportam,
novo, mas cujo conteúdo ideológico e moral será dia- dentro de sua especialidade, como materialistas es-
metralmente oposto ao do ateísmo materialista. É pontâneos, o que é completamente contrário à sua
fácil acompanhar essa evolução que vai de Nietzsche atitude no domínio da filosofia. Assim, por exemplo,
até o existencialismo de Heidegger e de Sartre. Rickert lamenta ver certos grandes cientistas decla-
Acrescentemos que, no estágio do imperialismo, rarem-se adeptos de um "realismo ingênuo", no ter-
a vulgarização das ciências naturais _torna-se essen- reno de sua especialidade. Quanto mais ganha em im-
cialmente uma arma a serviço da ideologia reacio- portância o papel independente e específico da "in-
nária. No decorrer do período precedente. a filosofia ( telligentzia" na filosofia tanto mais fo rte se torna
limita\"a-se ainda à defensiva. O agnosticismo de a posição do idealismo subjetivo no domínio da teoria
Ou Bois Reymond sen·ia antes de mais nada para do cqnhecimento.
neutralizar as conseqüências ideológicas do materia-
lismo de Haeckel. A escola de Mach, Avenarius e de 4.
Poincaré constitui já uma plataforma para a defesa
aberta das concepções reacionárias. Dora\"ante, essa A PSEUDO-OBJETIVIDADE
tendência não deixa de intensificar-se e a fil osofia
interpreta todas as no,·as descobertas das ciências A -base da . teoria do con1iecimento continua a
naturais como outros tantos argumentos em favor 1:1es111a_, por~anto, mas a fil osofia do período imperia-
das ideologias da reação. lt~h nao deixa de representar uma evolução conside-
Do ponto de \"ista do conhecimento, é necessano ravel em relação à do período precedente. As carac-
constatar que o idealismo subjeti\"o do período pre- terísticas mais importantes dessa evolução resumem-
cedente permanece, sem alteração, a base mesma da se mais ou menos assim: tendência ao objetivismo e
teoria do conhecimento no estágio imperialista. Esse nas cim~nto de uma pseudo-objetividade; luta contra
fato não é devido ao acaso porque o idealismo cons- o !ormalismo na teoria do conhecimento - o que
titui a ideologia espontânea, por assim dizer natural , v~1 a par com a apologia da intuição da qual se fará
da "intelligentzia". O trabalho material, que deter- o ms trumento novo de uma filosofia nova - e' enfim ,
mina em última instância a relação entre o indivíduo retomada do estudo das questões id eológicas, no lu-
40 41
gar do agnosticismo conseqüente do período prece- Georg Simmel o representante mais eminente dessa
dente. filosofia da crise latente.
Todos esses temas correspondem às necessidades Dissemos que a necessidade da ideologia constitui
particulares dessa fase da evolução social. São todos um signo da crise. Essa afirmação, à primeira vista,
outros tantos sintomas da crise da filosofia. A pre- pode passar por piada ou paradoxo. Mas a · verdade
tensa segurança, o equilíbrio das condições sociais é apenas concebível sob o aspecto de uma verdade
que tinham toda a aparência de estabili?ade e que concreta. Eis porque é necessário examinar rapida-
pareciam poder durar etername~te! assim .c?mo ~ mente a função social da ideologia no decorrer dos
ilusão de uma prosperidade economica e pohhca, ti- três períodos do pensamento burguês que precedente-
nham criado um clima filosófico que permitiu aban- mente delimitamos.
donar todos os problemas objetivos, isto é, toda a A filosofia burguesa clássica deu lugar ao nasci-
realidade, e confiar seu exame às ciências especiali- mento e ao desenvolvimento de uma ideologia uni-
zadas, à técnica industrial e enfim à "sábia adminis- versal e potente, colocada sob o signo do progresso.
. " , no re.speito
tração" das "autoridades superiores . es- Nessa época, a filosofia ocupava o cume das ciências
crupuloso às barreiras traçadas pela teona do co- humanas; era o termo, a base e o quadro de todo
nhecimento.
A necessidade de uma ·ideologia faz-se sentir , o conhecimento. A ideologia constituía então o objeto
propriamente dito da filosofia, ela própria produto
cada vez mais e isto é ainda um signo, ou ao menos orgânico do progresso social ininterrupto, término e
um signo precursor, da crise. Essa procura revela corolário do conjunto da atividade científjca de cada
o pressentimento de um abalo geral das bases, a des- etapa da evolução social.
peito de toda estabilidade aparente e mesmo de toda O período econ"J micamente repleto de compro-
consolidação da superfície. A vanguarda da "intelli- missos sociais desviou-s·e com preguiça e covardia
gentzia", sensível às abstrações filosóficas, pr~ssen~e de toda questão ideológica, cujo estudo julgava inútil,
a crise que se prepara: uma boa parte da filosofia declarando anticientíficas as grandes realizações ideo-
acusa esses signos precursores já bem antes de 1914. lógicas do período precedent~.i.. Quanto. à "intelli-
É evidente que estes são, até. essa data, completa- gentzia" do período de crise, aspira à resignação e
mente abstratos: não se trata, no momento, senão ao reconforto que uma ideologia nova devia forne-
de veleidades que se propõem salvar a integridade da cer-lhe.
pessoa humana isolada, diante do retalhamento criado Mas ·estamos ainda - aparentemente ao menos
pela divisão capitalista do trabalho; trata-~e- ap~nas, - em pleno paradoxo: como se J:>ode esperar, .com
agora, de comentar longamente as contradiçoes inso- efeito, um reconforto do .s ombrio pessimismo de
lúveis, produzidas pela cultura capitalista e imperia- N~etzsche, de Spen~ler, de Klages ou de Heidegger?
lista. É necessário dizer que não se fala nunca das Digamos logo que esse paradoxo só é de tal natureza
contradições da cultura capitalista, mas das da cul- porque está implicitamente contido no idealismo filo-
tura em geral, da cultura simplesmente? É talvez sófico, que apresenta, com um aspecto anti-histórico

42 43
e abstrato, o destino do homem do período do impe- do conhecimento tinha por m1ssao readmitir direta-
rialismo, como sendo o destino humano em geral. me?te em seus privilégios o idealismo filosófico, não
Cria, assim, sem o saber, um clima onde nosso juízo mais defensável, o "terceiro caminho" filosófico es-
parece ser um paradoxo. O. reconforto reside, com tá investido da missão social que consiste em impedir
efeito, precisamente nessa fatalidade (bastará evo- a "intelligentzia" de tirar da crise a conclusão socia-
car o amor fati de Nietzsche, o ser-para-a-morte de lista. Por ser indireto, o "terceiro caminho" não
Heidegger, o pessimismo heróico do pré-fascismo e deixa de ser uma apologia do capitalismo.
do fascismo etc.). Os precursores de toda essa ten- Assim, a luta contra o socialismo torna-se numa
dência são Schopenhauer e Kierkegaard. Não é o °!e~ida cada vez mais considerável, a questã~ ideo-
contentamento que opomos a essa doutrina da fatali- log1ca fundamental. É uma luta filosófica contra o
dade, porque nada motivaria um tal contentamento. materialismo dialético, isto é, tanto contra o mate-
Queremos entretanto chamar a atenção sobre o fato rial.ismo como contra a dialética. No plano da ideo-
de que certos pensadores modernos, tais como Key- logia, essa tendência significa a eliminação conse-
serling ou Jaspers, preconizam uma existência volta- qüente de toda consideração econômica ou social. A
da sobre si mesma, isolada de toda a vida pública e filosofia ~ã? está em condições de produzir argu-
cujo equilíbrio repousa precisamente num pessimismo mentos senos contra as concepções do socialismo;
total a respeito do mundo exterior. aparenta crer e esforça-se .por fazer crer que a ciên-
A finalidade verdadeira dessa tendência é im- cia especializada da economia nacional burguesa des-
pedir o· descontentamento engendrado pela crise, de de há muito despedaçou a doutrina econômica do mar-
se voltar contra as bases da sociedade capitalista xis~o. Sua tarefa limita-se, portanto, aqui, a desa-
e proceder de tal forma que a crise não possa fazer creditar todo ponto'"de vista social e econômico e a
com que a "intelligentzia" se levante contra a socie- atenuar sua importância no plano da ideologia.
dade do imperialismo. Não se trata mais de fazer Como também a sociologia burguesa especiali-
o elogio direto e grosseiro da sociedade capitalista, zou-se para se tornar uma ciência independente da
como o fizeram os turiferários assalariados ou vo- economia, a filosofia mudou i:le atitude frente a ela.
luntários no passado. A crítica da cultura capitalista Enquanto a filosofia do período precedente contes-
constitui, ao contrário, o tema central dessa filosofia tava o lugar da sociologia entre as ciências a do
nova. À inedida que a crise se prolonga, a concepção período novo abre-lhe as portas e admite ~esmo,
de um "terceiro caminho" progride cada vez mais no momento da crise aguda, a "Wissenssoziologie"
no plano social: é uma ideologia segundo a qual nem de .Scheler e de Mannheim como uma arma de pri-
o capitalismo nem o socialismo correspondem às ver- meira ordem a serviço do relativismo. A sociologia
dadeiras aspirações da huma~idade. Essa concepção da reação, aberta, que daí deriva diretamente ' encar-
parece a~eitar tacitamente o fato de que o sistema regar-se-a em seguida de lançar as bases das con-
capitalista é teoricamente indefensável tal como exis- cepções fascistas, por intermédio de Freyer e de C.
te. Mas assim como o "terceiro caminho" na teoria Schmitt.

44 45
O desenvolvimento das filosofias antiprogressis- reformismo encontraram na Europa ocidental e cen-
tas constitui a segunda grande ofensiva ideológica tral uma oposição considerável, mas esta não estava
contra o socialismo. A filosofia burguesa, por não em condições de devolver ao materialismo dialético
estar em condições de produzir argumentos sérios seus direitos. Esta fraqueza ideológica do movimento
contra a concepção socialista do progresso, é obri- operário na Europa central e ocidental reflete-se nas
gada a combatê-la no domínio das ciências naturai~ carências ideológicas da oposição democrática e anti-
e das ciências sociais. Por outro lado, tenta esboçar imperialista, aliás fraca e incapaz de· combater seria-
perspectivas suscetíveis de satisfazer os desejos da mente a filosofia reacionária do imperialismo.
''intelligentzia" imersa na crise. A fusão dessas duas
orientações - mistificação da idéia do progresso de 5.
um lado e sua negação pura e simples do outro -
faz nascer entre os precursores do fascismo a teoria O "TER.CEIR.O CAMINHO" E O MITO
do racismo, que antecipa uma teoria mítica à guisa
de solução dos "mistérios" da sociedade e da história.
É evidente que todas essas tentativas fazem par-
te do grande combate contra o materialismo histó-
, As considerações precedentes permitem-nos pas-
sar agora ao exame dos principais problemas colo-
cados pela filosofia do perí9do imperialista. lretrios
rico, mesmo se a maior parte dos protagonistas se estudar primeiramente a noção de objetividade, ba-
abstiverem de toda polêmica expressa. Na Europa se~da na teoria do conhecimento do idealismo sub-
ocidental e central, o socialismo não conquistou os jetivo. -.
intelectuais numa medida que estivesse em relação Já falamos do "terceiro caminho" na teoria do
com a influência real do movimento operário. Essa c~nhecimento. Sua origem remonta em parte a
eficácia relativa dos filósofos burgueses é devida, em Nietzsche, em parte a Mach e Avenarius e vai, pas-
grande parte, aos serviços que o reformismo lhes sando por Husserl, até a ontolog· existencialista,
prestou. Este último contesta ao marxismo seu ca- que reconhece uma existência independente da cons-
ráter de uma ideologia; para ele, Marx é um "cien- ~iência, mas persiste em seguir o antigo método idea-
tista especializado" em economia e em sociologia, ltsta quanto à definição, o conhecimento e a inter- .
cientista cujo método e descobertas foram em parte pretação dessa existência. As teorias do conhecimen-
ou no conjunto ultrapassadas pela evolução científica. t~ ~?minantes do período preceden'te negam a inteli-
Nada mais natural que ver os reformistas quererem g1b1hdade da realidade objetiva. O "terceiro cami-
" completar" o marxismo pela junção de Kant (Max nho':, que mantém intactos todos os princípios da
Adler) ou de Mach (Friedrich Adler). Quanto a teoria do conhecimento do idealismo subjetivo, esca-
Bernstein, que é sem dúvida o representante mais moteia seus limites, apresentando a questão de uma
consciente do reformismo, toma muito nitidamente maneira a parecer admitir implicitamente que as idéias
posição contra a dialética, método "superado e en- e as noções que existem apenas na consciência são
ganador". Certamente, as concepções políticas do elas mesmas realidades objetivas.

46 47
Vejamos, portanto, qual é a realidade de que fala da filosofia oficial. Sua teoria do conhecimento e
esta filosofia. (Notar, de passagem, que a filosofia sua moral afirmam e defendem os direitos do corpo,
burguesa fala sempre da polaridade idealismo-realis- sem fazer nenhuma concessão ao materialismo filo-
mo. sem mesmo pronunciar a palavra materialismo.) sófico. Ora, o aspecto filosófico de um corpo assim
Mach e os neokantianos elaboram uma teoria do co- privado de toda matéria só pode ser mítico. Aí está
11hecimento que se limita a fazer concessões termino~ um elemento desse biologismo particular e dessa psi-
lógicas às ciências naturais e esforça-se por aparar cologia que repousam em pretensas bases biológicas,
as arestas do "realismo ingênuo" dos sábios. Assim que tomam em Nietzsche o lugar de uma concepção
como para Berkeley, idéias e realidades são idênti- social. Essa introdução está completa e por assim
cas para eles. A realidade de que falam torna-se as- dizer coroada pela perspectiva mítica da evolução da
sim efeti,·ainente una e indivisível - mas ~ a reali- humanidade, pela aceitação do imperialismo, pela cria-
dade do idealismo subjetivo. Esse novo agnosticismo ção da noção de uma aristocracia nova e pela negação
está entretanto longe de ser semelhante ao do período do socialismo, ao qual opõe seu mito biológico. Todas
.as bases filosóficas do racismo encontram-se assim
precedente, ao qual Engels pôde com razão chamar de
preparadas.
"ateísmo envergonhado", porque, a doutrina segundo
Contentar-nos-emos igualmente em fazer algu-
a qual a realidade é incognoscível significava sim-
plesmente a recusa da filosofia em tirar conseqüên- mas observações de princípio a respeito de alguns ou-
cias ideológicas das descobertas das ciências naturais. tros mitos (Bergson, Spengler, Klages etc.), sem
A escola de Mach ultrapassa de muito essa aspiração comentá-los em detalhe. Digamos logo que não é
puramente negativa, pois seu agnosticismo volta a preciso confundir os mitos assim formados com certos
afirmar que as descobertas da$ ciências naturais estão elementos de sistemas filosóficos antigos, a despeito
em perfeita harmonia com qualquer ideologia reaci~- do apecto às vezes também mítico desses últimos.
nária. Desde que abandona o agno; ticismo, o idealismo,
Mas, chegada a esse ponto, a evolução da filo- qualquer que se.ja, cai na fabricaç?o de mitos, porque
s?fia não parou. . A variante moderna do agnosti- está forçado a atribuir às construções puras do espí- .
c~smo torna~se mística e, criadora de mitos. É impos- rito um papel de realidade na explicação dos fenô-
StYel subestimar aqui a influência decisiva de Nietzs- menos reais.
c.he na evoluçã~ do conjunto do pensamento imperia- Quanto mais um sistema filosófico se aproxjma
lista: poder-se-ta mesmo dizer que ele criou o ar- do idealismo objetivo, mais denota essa tendência de
quétipo da n1itificação. Sem nos querer . estender fabricar mi tos : o "lch" de Fich te mostra-o mais for-
!on~a!nente sobre os temas principais desses mitos, temente que o "Bewusstsein überhaupt" de Kant e
ms1sttremos no papel que neles desempenham o corpo o "Weltgeist" de Hegel ainda mais claramente que
e a carne. Nietzsche rompe efetivamente com a es- a construção fichteana. Só que essas construções do
piritualidade abstrata e a moral pequeno-burguesa espírito tomadas por realidades contêm ainda, nesse
48 49
estágio, os elementos de uma exploração completa- em presença de uma função completamente nova
mente leal da realidade. É ainda perfeitamente pos- desse agnosticismo, função que consiste em criar um
sível reconhecer em toda parte os elementos de rea- novo pseudo-objetivismo, franqueando o limite que
lidade dos quais essas construções do espírito são o separa do mito.
ao mesmo tempo a primeira revelação e a r epresen-
tação desfigurada no plano do pensamento. Essas 6.
construções de aparência mítica são apenas, na ver-
INTUIÇÃO E IRRACIONALISMO
dade, a bruma da filosofia, que precede o nascer do
sol do conhecimento. O novo objetivismo pressupõe a existência de
A situação é completamente diferente quando um instrumento novo de conhecimento. Uma das
consideramos a filos ofia do período imperialista. preocupações essenciais da filosofia moderna consiste
Aqui, a construção do espírito, o mito, opõe-se pri- em opor essa nova atitude, esse novo instrumento
meiramente ao conhecimento científico ; a primeira do conhecimento, que é a intuição, ao pensamento ra-
missão do mito é dissimular e tornar obscuras as cional e discursivo, conquanto na realidade a intui-
conseqüências sociais das aquisições da ciência. Desde
o início desse período da filosofia, a mitificação nietz-
scheana assume esse papel em relação às descobertas
,. ção faça parte, psicologicamente, de todo método cien-
tífico do conhecimento. No plano psicológico, a in-
tuição pretende ser, com efeito, mais concreta e mais
do darwinismo. Na época da fi losofia clássica, o mito sintética que a reflexão discursiva, que trabalha. com
se apresentava 'sob o aspecto do próprio conhecimento noções abstratas. Sem dúvida, isto é apenas uma
científico, ao passo que, na filosofia da fase imperia- ilusão, porque a intuí"Ção, considerada à luz da psico-
lista, representa uma atitude, uma relação com o logia, nada mais é do que a entrada brusca na cons-
mundo, que seria, por assim dizer, de uma essência ciência de um processo de reflexão até então sub-
superior à que é acessível ao conhecimento científico consciente. É evidente que todo pensamento cientí·
e que vai até mesmo condenar a ciência. A função fico escrupuloso deve ter por pr-incipal missão integrar
social da ideologia, isto é, dos mitos, é, portanto, atual- esse processo inconsciente no se~próprio sistema ra-
mente, a seguinte: sugerir uma concepção do mundo cional. Essa adoção deve ser completamente org·â-
que corresponda à da filosofia do imperialismo, onde nica, para que seja quase impossível distinguir a pos-
quer que a ciência se mostre incapaz de oferecer uma teriori os resultados da reflexão discursiva dos da
visão de conjunto, e substituir a perspectiva oferecida intuição. Estabeleçamos, portanto, de uma vez por
pela ciência, cada vez que esta contradisser a con- todas, que na realidade a intuição não é o contrário,
cepção proposta pela filosofia paradoxal do estágio mas o complemento do pensamento discursivo e que
do imperialismo: a filowfia mantém de um lado a seu emprego não poderia ser jamais um critério da
teoria do conhecimento do idealismo subjetivo her- verdade. A observação psicológica superficial da
dada do agnosticismo, mas, por outro lado, estamos r eflexão científica é que engendra a ilusão segundo

50 51
a qual a intuição seria um instrumento independente dialética de noções puramente especulativas. Desde
do pensamento discursivo e destinado à compreensão que a reflexão pretenda ultrapassar esses limites, e
das verdades superiores. almeje o conhecimento filosófico concreto, deve ne-
Essa ilusão, que consiste em confundir um método cessariamente recorrer de um lado à teoria materia-
·rnbjetivo de trabalho com uma metodologia objetiva lista, segundo a qual o pensamento é capaz de refletir
e que é mantida pelo subjetivismo geral próprio da o mundo exterior real e, por outro lado, ao sistema
filosofia do estágio imperialista, servirá portanto de discursivo universal da dialética. Deve considerar
base a todas as teorias modernas da intuição. En- esse sistema não somente como uma doutrina da cor-
contra-se ainda reforçada por certas falsas referên- relação estática de entidades do mundo exterior, mas
cias ao método dialético. A filosofia subjetiva admite como uma lei universal da evolução progressiva e
com efeito de bom grado a origem da polaridade dia- da história racional. A filosofia moderna serve-se do
lética pela via discursiva, conquanto atribua a solução falso aspecto da intuição para abandonar aparente-
(devida à síntese) à intuição, que opera num plano
mente tanto o formalismo do conhecimento como o
mais elevado. É evidente que é um erro, porque a
verdadeira dialética dá a toda síntese uma expressão idealismo subjetivo e o agnosticismo, conquanto con-
perfeitamente racional e não reconhece a nenhuma servando-os sobre bases que parecem inatacáveis.
síntese um caráter definitivo e absoluto. O pensamen- Nessas condições, o objeto dessa filosofia, a fi-
to dialético, que reflete a realidade efetiva, constitui nalidade ideológica que se propõe atingir, dar-se-á
sempre, por essa mesma razão, um sistema discursi- sempre como uma realidade de essência superior e
vo. Eis porque a intuição, enquanto instrumento do qualitativamente diferente da.quilo que é acessível à
conhecimento ou elemento de uma metodologia cien- reflexão discursiva. -... Graças a esse subterfúgio, a
tífica, não poderia encontrar nenhum lugar na dia· própria noção da intuição parecerá ser a prova irre-
lética. Tudo isto foi aliás explicado claramente por futável de um conhecimento superior. É aqui que
Hegel, em resposta a Schelling, na introdução da a negação de toda crítica analítica torna-se uma
Fenomenologia. questão de vida ou de morte:. par.a a filosofia nova.
A filosofia do estágio do imperialismo atribui à Nos sistemas filosóficos antigos ,pesse gênero e mes-
intuição um lugar central na sua metodologia obje- mo .em certa místicas religiosas antigas, a defesa da
tiva. A intuição adquiriu esse lugar preponderante, i~tuição estava assegurada por uma teoria aristo-
antes de mais nada porque os filósofos abandonaram crática do conhecimento. Essa última afirma, desde
o ·formalismo do conhecimento, próprio ao período o início, que todo o mundo não é suscetível de com-
precedente. Estavam de fato obrigados a afasta'r-se preender a realidade superior de uma maneira intui·
dele, porque a própria procura de uma ideologia obri- tiva. Aquele que procura encaixar as descobertas in-
gava-os. a colocar a questão do conteúdo da filosofia, tuitivas num quadro racional prova, por consegumte,
enquanto a teoria do conhecimento própria ao idea- que não é capaz de ascender à realidade superior por
lismo subjetivo esgota-se fatalmente na análise não· via intuitiva.

52 53
Como não pensar no conto de Andersen, onde racionalismo nascente contra as superstições da Ida-
os que não vêem o traje maravilhoso do rei - que de Média e conclui que temos todas as razões para
na verdade passeava completamente nu - eram pro- crer que os séculos que virão terão de nossas ciências
clamados desonestos? A teoria do conhecimento da uma opinião análoga àquela que temos das crenças
intuição presta aliás serviços apreciáveis, porque as supersticiosas da Idade Média. Esse agnosticismo
"realidades" apreensíveis pela intuição são de na- relativista, esse ceticismo a respeito de tudo, conduz
tureza arbitrária e incontrolável. Órgão de um co- em linha reta ao mito da filosofia atual, cujo valor
nhecimento pretensamente superior, a intuição serv·e central é o anti-racionalismo, e até o irracionalismo
ao mesmo tempo para justificar o arbitrário. ou, em todo caso, a aceitação de métodos e realidades
Uma rápida recapitulação nos permitirá melhor supra-racionais. Antes da primeira guerra mundial,
compreender o essencial da filosofia no estágio do im- Bergson foi o precursor em maior evidência dessa
perialismo. A filosofia do período clássico colocava filosofia. A crise geral que se seguiu a 1918, trans-
o problema da ideologia sob o signo do conhecimento formou o irracionalismo em uma filosofia concreta
científico. Em outras palavras, sua ideologia era a da história, a qual terminou por levar, através de
ideologia da ciência. A filosofia do período de tran- Spengler, Klages e Heidegger, às visões infernais do
sição traçava-se limites intransponíveis justamente fascismo.
onde terminava o conhecimento registrado pelas ciên- Analisando os objetos propriamente ditos desse
cias especializadas. A filosofia no estágio do impe- supra-racionalismo, veremos os laços estreitos que o
rialismo aceita êsses limites, pretendendo criar uma ligam a sistemas filosóficos mais antigos. Veremos
nova ideologia supracientífica ou anticientífica, gra- também que no fundo apenas atualiza certos pontos
ças à intuição, novo instrumento do conhecimento. fracos da filosofia hJlrguesa. Toda filosofia antidia-
Essa nova ideologia procura antes de tudo des- lética, portanto desprovida de compreensão verdadei-
tronar a razão. Os precursores dessa orientação são ra para a história, engana-se sobre a realidade ao
Schopenhauer e Kierkegaard, assim como o roman- fazer do presente uma "lei eterna" ou uma "exis-
tismo filosófico. Dilthey é o homem da transição tência eterna". Na época eOF..que florescia a fé em
para a nova época da qual Nietzsche, Bergson, Spen- um capitalismo eterno, era regra, mesmo para os
gler, Klages e enfim o existencialismo marcam as historiadores com tendências empiristas, projetar so-
etapas mais importantes. Ainda uma vez: a base, bre toda a história as noções essenciais do capitalismo
no plano da teoria do conhecimento, é sempre o ag- (por exemplo Mommsen}; A moral abstrata da filo-
nosticismo e o relativismo que o acompanha. A única sofia kantiana reforçava estas concepções. No mo-
diferença é que a nova filosofia vai mais longe que mento da crise do imperialismo, quando tudo vacila
a antiga na sua ofensiva contra o pensamento racio- e tudo está em vias de desmoronar, a "intelligentzia"
nal. Simmel, em um dos seus livros, esboça uma crí- burguesa obrigada a duvidar das verdades que ela
tica do conjunto dos últimos resultados da ciência acreditava eternas, encontra-se diante de uma alter-
atual, para compará-la às críticas que formulava o nativa filosófica. De um lado, deve reconhecer-se

54 55
incapaz de abarcar intelectualmente toda a verdade. contra a cultura capitalista, na "Kulturkritik" geral
Neste caso, a própria realidade não estaria privada de Simmel e em sua teoria do "trágico da cultura".
de seu caráter racional, o que provaria a falência do Mas todas estas formas incertas terminam por atin-
pensamento burguês. Ora, a burguesia não pode . um "t erceiro
gir . camm . ho " , isto
. , uma apologia indi-
e,
reconhecer sua falência porque seria preciso então reta do capitalismo. Enquanto que em Nietzsche a
aderir ao socialismo. Eis porque a filosofia burguesa visão mítica de uma sociedade nova ocupa o primeiro
deve fatalmente se orientar em direção ao outro ter- plano, em Simmel o retorno do indivíduo sobre si mes-
mo da alternativa e declarar a falência da razão. A mo, o voltar-se para a interioridade pura encontram-se
filosofia está em condições de cumprir esta operação, facilitados pelo fetichismo rígido que reina na socie-
considerando a razão como uma atitude subjetiva dade capitalista. Simmel utiliza-se desse "racionalis-
relativamente ao mundo real, o qual, por seu lado, mo" frio do mundo capitalista fetichizado como de um
abriria a todo instante brechas nesta razão subjetiva trampolim, para chegar ao irracionalis~o pretensa-
(cf. Scheler, Benda, Valéry, "a impotência da ra- mente superior de uma existência puramente indivi-
zão") . É necessário entretanto reconhecer que este dualista.
esquema não corresponde à orientação geral da filo- É aq~i que ~nc~:>ntr~mos. o elemento mais impor-
sofia da crise. Segundo os pensadores em maior evi- t~nte da ideologia irracionalista: transformar, misti-
dência, nessa época, na verdade a ra:zão não existe, f~ca.ndo-a, a condição do homem do capitalismo impe-
a verdadeira realidade, a realidade superior, é irra- nahsta em uma condição humana geral e universal.
cional e supra-racional. O dever da filosofia é antes O cumprimento desta tarefa exige um desdobramento
de tudo levar em conta este dado fundamental da ?º ~étodo. Tudo que é social, racional e conforme
existência humana e é assim que se constitui o irra- as leis da e~olução será declarado inumano e inimigo
cionalismo, ideologia da filosofia da crise. da personalidade. A personalidade será declarada
A evolução em direção a este objetivo está tam- anti-racional e irracional por sua própria natureza.
bém sublinhada e acelerada pelo fato de que o capi- ~otemos de passagem, que as origens desta a titude
talismo, e em particular o imperialismo, destrói ou Ja. se encontram entre os pnhneiros neokan tianos,
pelo menos restringe de uma maneira extrema toda tais como Windelband e Rickert. -~s diversas varian-
margem de liberdade necessária ao desenvolvimento tes misti~icadas desta atitude correspondem por sua
da personalidade. O exame abstrato deste problema vez perfeitamente às necessidades universais da épo-
abre possibilidades a duas reações diferentes. É, de ca, que se resumem sob o signo do "terceiro cami-
um lado, perfeitamente possível explicar esta situação nho:'· _Com efeito, desde que se conseguiu opor a
a partir da ordem social e econômica do capitalismo razao, m_uma~a e inferior, à realidade superior, hu-
e daí tirar as conseqüências que se impõe. Nos pri- mana e 1rrac1onal, capitalismo e socialismo apresen-
mórdios do período imperialista, esta atitude está tam-se como duas entidades inteiramente semelhan-
presente, se bem que sob formas bastante incertas, tes, que se colocam num mesmo plano, posto que am-
como por exemplo no ataque romântico de Nietzsche bas foram criadas pela fria razão. Ambos, contudo,
56 57
devem ser combatidos, em nome da personalidade, As relações das ciências especializada,;, as que
categoria puramente individual ( cf. Klages, o círculo foram produzidas pela divisão capitalista do trabalho,
de Stefan George). É necessário acrescentar que apresentam o .1!1e~mo problema. Na sociedade em que
o fascismo adota integralmente esta metodologia, vIVemos, as c1enc1as especializadas estão com efeito
.
rigorosamente ' Cada uma'
separadas umas das outras.
limitando-se somente a completá-la com algumas ex-
posições grosseiramente demagógicas? ... delas possui seu próprio método formalista, baseado
nas categorias não dialéticas do entendimento. Eis
7. porque certas correlações que qualquer uma das ciên-
cias especializadas pode perfeitamente bem tratar
OS SINTOMAS DA CRISE conquan!o dependente de seu dominio, não poden;
ser _consideradas por uma outra ciência especializada
Examinemos agora, sumariamente, a metodolo- senao como dados irracionais. A filosofia do direito
gia do irracionalismo. Hegel já demonstrou que desde do neokantiano Kelsen fornece um exemplo carac-
que se descubram as contradições necessárias da razão, terís:ic? des te fenômeno. Examinando o problema
isto é, do pensamento discursivo, o problema que se do d1re1to, problema que a sociologia da época podia
coloca apresenta-se sob o aspecto imediato do irra- bem ou m_al tratar, Kelsen viu-se obrigado a concluir
cional. É à dialética que cabe agora a tarefa de colo- q~e ~s ong~ns. de toda legislação constituem para a
car em evidência a síntese superior dos termos contra- c1enc1a do direito "um grande mistério". A validade
ditórios, e quando se desi.ncumbe bem desta tarefa: formal do direito de que trata a ciência jurídica tor-
podemos verificar que a razão superior resulta pre- na-se cont~do um mi~té rio inteiramente análogo para
os economistas burgueses ...
cisamente das antinomias necessárias do raciocínio
discursivo, as quais haviam produzido uma aparência , ~ necessida?e social de uma ideologia unificada
d_e irracionalidade. da origem, a fim de suplantar estas necessidades
Mas, como vimos, o método dialético não tem c~pe.c~lativas, à te?ria das ciências e ao seu quadro
h1s~onco. Contranamente aos füósofos menores do
lugar na filosofia do período imperialista. Esta se
penodo precedente, procura-se a totalidade e a uni-
detém, com efeito, simplesmente na irracionalidade dade. Mas, como o demonstramos, os pesquisadores
que se manifesta nas contradições necessárias da ra- se~uem um caminho falso. Na realidade, seria per-
zão discursiva. Transforma a questão colocada, des- feitamente possível estabelecer a base comum de to-
figurando-a, em resposta e, da contradição que en- das as ~iências pelo estudo da evolução da sociedade,
cerra a posição provisória do problema, fabrica dois determinada pelo fator econômico. O.a, é evidente
mundos distintos: de um lado, a .razão impotente e que o pe~samento burguês moderno não pode adotar
d~sumana e, de outro, a "realidade ininteligível e "su- esse cammho, que conduziria à reforma de todas as
perior" que só é acessível à intuição. ciências pelo método da dialética materialista. O

58 59
estágio do imperialismo não soube e não quis resolver
Entre as grandes questões que a filosofia mo-
as contradições fundamentais, encontradas pelas derna se mostra decididamente incapaz de resolver,
ciências especializadas oriundas da divisão capitalista citamos em primeiro lugar o das relações entre o
do trabalho, devido a sua metodologia antidialética. pensamento e a realidade, questão inseparável da
Não pode resolvê-las porque, como já vimos, retomou, estrutura interna da lógica. O triunfo do irraciona-
sem modificação o idealismo subjetivo, que é a base Jismo representa igualmente um recuo, porque, para
filosófica da metodologia das ciências especializadas. o irracionalismo, a contradição entre a reflexão ló-
É unicamente na mitificação das relações irra- gica não dialética e a realidade se apresenta como
uma contradição absoluta e insuperável. O irracio-
cionais que a síntese especulativa seria capaz de ofe-
nalismo significa, então, de um lado, a justificação fi-
recer qualquer coisa de novo. Desde a "intuição ge-
losófica dos mitos arbitrários, e de outro, a submersão
nial" de Dilthey, a intuição tornou-se o método es- da filosofia especulativa na lógica formal. É precisa-
sencial da síntese especulativa. Deu origem a toda mente a reivindicação da superioridade da intuição
uma série de símbolos míticos e fetichizados que que encerra a filosofia na prisão dessa lógica formal,
uma nova mitificação converterá em figuras preten- da qual a dialética da filosofia clássica já havia con-
samente reais, mas puramente individuais e irra- seguido escapar.
cionais. O problema da liberdade e do determinismo é
Afinal, tudo isto só leva a pseudo-soluções, às da mesma ordem. Conquanto a filosofia clássica e,
vezes muito espirituais, de todos os problemas da filo- em primeiro lugar, Hegel tenham conseguido escla-
sofia. O arbitrário "genial" da intuição, torna-se recer, em larga med..ida, as relações que unem esses
o método geral da filosofia. Se Nietzsche não fez dois termos, encontramo-nos hoje em face de uma
nenhum esforço para camuflar este arbitrário, mais noção abstrata, hipostasiada e absurda da liberdade,
tarde tudo foi tentado para dar-lhe uma aparência de oposta a um fatalismo rígido e mecânico. Nietzsche,
objetividade. Esse mascaramento atinge sua forma Spengler e ultimamente Sartr.e··ilus-tram perfeitamen-
mais refinada quando a fenomenologia puramente es- te nossa tese. A "concepção do. mundo" fascista é
peculativa torna-se a assim chamada contemplação apenas a caricatura desta dualidade abstrata e rígida,
da realidade, isto é, a ontologia existencialista. A que se tornou absurda.
solução é, entretanto, apenas uma pseudo-solução,
O fascismo representa, com efeito. a crise da
porque a despeito de todos os métodos novos, todos os
filosofia burguesa moderna. Só que esta cari-
mitos brilhantes ou sombrios e "profundos", os gran-
catura foi ao mesmo tempo uma realidade sangrenta
des problemas da filosofia permanecem todos sem
que não durou muito tempo. E é talvez um dos
resposta e pode-se mesmo dizer que, em relação ao
sintomas mais importantes da crise da filosofia bur-
período clássico, a filosofia moderna representa, sob
muitos aspectos, um recuo considerável. guesa o ter dado \rigem à pretensa ideologia do fas-
cismo, da qual a mica contribuição consiste em uma
60
61
vulgarização demagógica da filosofia burgue's a do es- festações da crise. t somente o materialismo dialé-
tágio do imperialismo, tal como se encontra origi- tico que anima com vida real os problemas do mundo
nàriamente em Nietzsche. t ainda pela mesma razão novo e que os integra organicamente em sua ideo-
que, no plano ideológico, só o materialismo dialético logia.
desenvolveu uma resistência ativa contra o fascismo. Ninguém poderá prever, no momento, quanto
Certamente, o humanismo antifascista levantou mui- tempo a sociedade capitalista pode ainda durar e em
tas vezes seu protesto contra certos fatos do fascis- que momento o socialismo a sucederá. Mas nada
mo e mesmo contra o fato bárbaro do próprio fas- indica que a burguesia seja ainda hoje capaz de criar
cismo, sem poder entretanto opor aos mitos arbitrá- uma ideologia autônoma, universal e progressista.
rios e à pretensa ideologia do fascismo uma ideologia
progressista e eficaz, que fosse verdadeiramente dig-
na desse nome.
No plano social, a única diferença entre o exis-
tencialismo francês e o pré-fascista Heidegger é a
seguinte: o existencialismo levantou seu protesto ar-
bitrário não contra o conjunto da crise, mas contra
o fascismo em particular. Mas seu protesto perma-
nece também abstrato, e isto não se deve ao acaso.
A maior parte dos pensadores antifascistas partem
com efeito, ideológica e metodologicamente, do mes-
mo plano que seus adversários. Salvar Nietzsche
ou Schopenhauer, tornando-os pensadores humanistas,
era uma operação destinada ao fracasso frente ao
fascismo, que tinha a vantagem, a despeito de toda fl.. -·
a sua vulgaridade, de ser seu verdadeiro continuador ·~
espiritual.
A crise da filosofia burguesa ainda perdura. O
fato de que a libertação, o fim do terror intelectual
do fascismo, não pôde produzir uma mudança na
filosofia burguesa, denuncia a crise. Contrariamente
à vanguarda da literatura, a filosofia burguesa en-
contra-se exatamente no ponto em que estava no
momento do surgimento do fascismo. Desse ponto
de vista, o existencialismo é também uma das mani-

62 63

h,
Capítulo II

li. DA. FENOMENOLOOIA AO


EXISTENCIALISMO
"Tudo se passa como se o mundo, o
homem e o homem-no-mundo conse-
guissem realizar apenas um Deus
imperfeito."
(J.-P. Sartre: L'~tre et le N~ant)

Sem dúvida nenhuma, o e-xistencialismo tornar-


se-á dentro em breve a corrente e§piritual dominante
dos intelectuais burgueses de nosso tempo. Essa
evolução prepara-se há muito tempo. Depois do apa-
recimento de Seio und Zeit, ·de Heidegger, a vanguar-
da espiritual vê no existencialismo a promessa de
um renascimento da filosofia e a expressão adequada
da ideologia da nossa época. Desde antes do fim
da guerra, o existencialismo havia invadido o Oci-
dente. Durante os anos da luta sangrenta e sem
mercê contra a Alemanha, os existencialistas alemães

65
mais evidentes, assim como o precursor de seu mé- pris, próprio a uma camada social sem base profunda?
todo, Husserl, fizeram grandes conquistas na França Tais são as questões às quais será preciso procurar
e na América e até na América Latina. A obra fun- a resposta, pois é somente assim que saberemos se
' .
damental do existencialismo ocidental, a que citamos nos encontramos em face de uma preocupação passa-
em epígrafe neste capítulo, aparec~u em 19~3 e, .de,sde geira ou de uma filosofia nova, destinada a durar.
essa data assistimos à marcha tnunfal e 1rres1shvel Uma crítica filosófica puramente universitária, que
do existe~cialismo, nas discussões filosóficas, nas re- não incorporasse as considerações que precedem, se-
vistas especializadas, assim como nos romances e pe- ria apenas vã pedanteria. (Não queremos repetir o
ças de teatro. exemplo daqueles que reprovam à dialética hege-
liana seus "erros de lógica".)
1. Todas as grandes filosofias que marcaram época
na história do pensamento fundavam-se no emprego
O MÉTODO ENQUANTO COMPORTAMENTO de um método original. Assim foi para Platão e
para Aristóteles, para Descartes, Spinosa, Kant, He-
Trata-se de uma moda passageira, destinada a gel e tantos outros. Vejamos portanto a originalidade
durar no máximo alguns anos, ou antes uma filosofia ão método existencialista. Declarar que o existen-
nova, fadada a fazer época? A questão não poderia cialismo deriva da fenomenologia de Husserl não se-
ser decidida, em última instância, senão pelo exame ria uma resposta satisfatória à questão que coloca-
das razões de ser dessa nova filosofia; em outras mos. Quem sonharia aliás contestar a originalidade
palavras, será necessário saber de início a profun- de Spinosa, invocando os empréstimos que lhe fez
didade na alma dos protagonistas, da representação Descartes? Husserl não foi existencialista, mas o
do mu~do que tomaram por base de sua nova ideolo- método fenomenológico influenciou profundamente o
gia e como esta coloca e apreende os pr?blemas es- existencialismo.
senciais com os quais se debate a humanidade atual. A questão essencial é entretanto saber quais
Será preciso portanto medir o lugar que o objeto foram as contribuições verdadeir-amente novas des-
dessa filosofia nova pode e deve ocupar na vida do se método. Repetimos que esse problema não depende
homem; será preciso examinar seu método enqua~to da filosofia enquanto ciência especializada, mas do
comportamento humano. Qual é o ponto de partida exame da atitude da filosofia enquanto comporta-
dessa filosofia, para quais objetivos se dirige, o que mento humano abstrato, em face das grandes ques-
apreende no caminho de sua evolução? .Abarca a tões da humanidade de nosso tempo. Considerando
totalidade da existência humana, como sena o caso, a questão desse ângulo, veremos que a fenomenologia
nos limites específicos de sua época, para cada um moderna é um desses numerosos métodos filosóficos
dos grandes sistemas filosóficos, ou a~t~s oferece~nos que se propõem ultrapassar tanto o idealismo como
apenas uma representação fragme~tana e desf1gt~- o materialismo, engajando-se num "terceiro cami-
rada do mundo, constituída sob o signo de um parta- nho" do pensamento e fazendo da intuição a fonte
67
66
de todo conhecimento verdadeiref Desde Nietzsche, cm uma época de estabilidade sem choque. Lembre-
passando por Mach e Avenarius até Bergson e mes- mo-nos da anedota de Goethe sobre o idealismo sub-
mo além, a maior parte dos pensadores burgueses jetivo de Fichte. Um dia, no transcurso de uma
modernos orientam-se nesse sentido. A Wesenuchau manifestação na Universidade, os estudantes quebra-
de Husserl representa apenas uma etapa dessa re- ram as janelas de seu professor e Goethe aproveitou
volução. para declarar: "Eis uma ocasião bem desagradável
para Fichte convencer-se da realidade do mundo ex-
Essa constatação por si própria não poderia en-
terior".
tretanto constituir um argumento decisivo contra o
método fenomenológico. Para poder responder à nos- Este incidente material anódino foi seguido, no
.{ sa questão, é necessário primeiramente apreciar no domínio espiritual, de destruições de uma amplitude

, (']
ªª ç seu justo valor filosófico e histórico o "terceiro cami-
nho" e determinar o lugar da intuição no processo
sem precedente na história. Uma das primeiras ví-
timas dessas destruições foi o idealismo filosófico

1j
\..::
do conhecimento.
Existe um "terceiro caminho" fora do idealismo
e do materialismo? Para quem considera a questão
sincero. Abstração feita de alguns pensadores tão
oficiais quanto insignificantes, os últimos idealistas
foram freqüentemente invadidos por uma resignação
profunda e foram obrigados a reconhecer a falência
.s de modo sério, no espírito das grandes filosofias do do idealismo em face do mundo real (Valéry, Ben-
,~·~ ~ passado, desdenhando as frases ocas de certo? pens~- da etc.).
dores modernos, a resposta só pode ser negativa: ~a, O ascetismo pequeno-burguês dos idealistas de

I ~
~ com efeito, duas possibilidades : primado d~ existen-
"~ · eia sobre a consciência ou inversamente primado da
- ~ consciência sobre a existência. Os sistemas filosóficos
meados do último século deveria igualmente contri-
buir para preparar'\'o declínio do antigo idealismo.
Vimos que desde Nietzsche, o corpo reconquistou di-
..,."]
"'{ ~ " ·
~ em voga, que se orientam para o terceiro camm
· ho" , reito de cidadania na filosofia burguesa. O pensa-
.... colocam habitualmente a correlação da existência
l ._; e da consciência, proclamando que uma não poderia
~ existir sem a outra. Por essa afirmação chega-se a
mento moderno exige um aparelho conceituai próprio
para demonstrar e para manter a realidade primor-
dial das alegrias terrestres e da vida corajosa, sem
·'; ~"i
',) '~ expulsar o idealismo pela porta, para fazê-lo voltar entretanto fazer a menor concessão ao materialismo.
~s ·~ pela janela, porque admitindo-se que a exjstência n~o Essa reserva é de uma importância capital, pois ao
~ c:::5' pode existir sem a consciência, abandona-se o matena- passo que florescia esse novo idealismo, o materialis-
~ tismo, segundo o qual a existência é independente da mo deveria tornar-se a ideologia do proletariado re-
~ 1'C) onsciência. volucionário. A posição de um Gassendi ou de um
Tal é a cruel realidade do período imperialista Hobbes tornou-se então i.ndefensável para os pen-
.§ que impô~ aos pensadores burgueses o "terceiro ca- sadores burgueses. Em suma, foi preciso abandonar
---;::,
minho" nas suas pesquisas filosóficas. O idealismo o método do idealismo, mas salvaguardando todos os
intransigente não pode afirmar-se abertamente senão seus resultados e seus fundamentos : eis a necessidade

68

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histórica do "terceiro caminho" na existência e na Em Heidelberg, onde Scheler veio ver-me duran-
consciência burguesa no decorrer do período impe- te a primeira guerra mundial, tivemos uma conversa
rialista. muito interessante e muito característica sobre esse
A fenomenologia, especialmente na sua evolução assunto. Scheler dizia que sendo um método uni-
após Husserl, acreditou descobrir na Wesensschau versal, a fenomenologia pode tomar tudo por objeto
um instrumento de conhecimento capaz de apreender intencional. Assim por exemplo, disse ele - pode-se
a essência da realidade objetiva, sem no entanto ul- proceder perfeitamente ao exame fenomenológico do
trapassar a consciência humana, mesmo a individual. Diabo, colocando anteriormente entre parênteses o
A Wesensschau é uma espécie de introspecção intui- problema de sua existência.
tiva, que não tem por objeto o processo de reflexão Muito bem, disse eu. Em seguida, quando a
em si mesmo, enquanto processo psicológico, mas a análise fenomenológica do Diabo está terminada, res-
estrutura dos objetos desse processo, e a natureza do ta-lhe só suprimir o parênteses e eis que o diabo surge
ato abstrato pelo qual a reflexão põe seu objeto. É diante de nós ...
assim que se constitui a noção fenomenológica do ato Scheler riu, ergueu os ombros e não respondeu
e do objeto intencionais. nada.
Esse método convinha bem a Husserl, que se
consagrou exclusivamente às questões de lógica pura. .
t
O que a intuição fenomenológica apreende é ver-
dadeiramente a realidade? Com que direito a feno-
O emprego do método é muito menos justificável em menologia fala da realidade de seu objeto? Essas
Scheler, que se volta para os problemas da moral e questões e_sclarecem cruamente o arbitrário do mé-
da sociologia, ou em Heidegger e Sartre, que estudam todo. Como explicar que ninguém tenha sonhado
os últimos problemas da filosofia. Seria, com efeito, até o presente em~ ressaltar o fato espantoso de
perfeitamente possível perguntar-se se esse método que as "realidades" descobertas pelos representantes '
está ou não apto a apreender a realidade objetiva e mais conhecidos do método intuitivo eram muito di-
se não é em si mesmo subjetivo e arbitrário por sua ferentes umas das outràs por seu tipo e sua estru-
natureza. tura? A intuição de Dilthe~ âeseobre, por exemplo,
Quando se trata das questões decisivas da rea- a "cor" do processo histórico, a de Bergson identifica
lidade social, os fenomenólogos facilmente resvalam a realidade à própria continuidade, isto é, à duração
para os problemas essenciais da teoria do conheci- que dissolve as formas rígidas da vida cotidiana; a
_mento. Têm o hábito de apaziguar seus escrúpulos de Husserl, em compensação, chega a justapor de
teóricos, declarando que o próprio do método fenome- maneira rígida, e por _assim dizer espacial, as catego-
nológico consiste em "pôr entre parênteses,, o pro- rias lógicas do existente. Contentavam-se com uma
blema da realidade do objeto intencional. A aplicação ha_rmonia relativa que reinava no interior de cada
rigorosa desse método mostra-nos que o conhecimen- escola sobre a na tu reza dessa realidade. Além do
to da realidade é simplesmente inacessível à feno- mais, os partidários de intuições completamente
menologia. opostas cooperavam num espírito bastante amistoso...
70 71
Essa situação espantosa explicava-se tanto pela com suas tábuas trabalhadas de diversas maneiras
necessidade do "terceiro caminho", quanto por ra- não constitui uma sala de aula senão porque nós da-
zões ideológicas precisas. A tendência dominante mos esse sentido preciso a esse amontoado de ma-
da filosofia no estágio do imperialismo consiste em deira. Fazêmo-lo porque esse sentido está a priori
negligenciar as condições sociais, em considerá-las co- em estreita correlação com nossa tarefa comum".
mo dados secundários, não afetando quase "a es- E, partindo dessas constatações, Szilasi deduz o que
sência da realidade humana". A W esensschau, que segue: "A situação atual do Miteinandersein deter-
toma por ponto de partida absoluto os dados ime- mina sempre a priori o Wassein".
diatos da experiência vivida, sem analisar sua estru- Seria útil submeter esses resultados da We-
tura e suas condições, para chegar às suas últimas re-
sensschau a um pequeno· exame metodológico. Cons-
velações abstratas, podia facilmente aparentar total
tatemos primeiramente que o fato de ver numa sala
objetividade científica. É assim que se constituiu um
mito lógico que convinha, magnificamente, à atitude de aula "tábuas trabalhadas de diversas maneiras"
da "intelligentzia" burguesa de hoje: o mito de um em lugar de dizer simplesmente que estão lá mesa~
mundo que se pretende objetivo, do qual o pensador ou carteiras, é uma abstração artificial e primitiva.
proclama a existência independente da consciência - É certamente inevitável do ponto de vista do método
um mundo que a consciência contenta-se em conhecer empregado, pois se Szilasi declarasse simplesmente
e não em criar, como nos idealistas do passado - que, por sua instalação, a sala de aula presta-se igual-
mas um mundo cuja estrutura e essência não deixam men!e. a ser o teatro de conferências lingüísticas, ma-
de _ser determinadas pela consciência individual. temattcas etc., destruiria automaticamente o efeito
Para esboçar uma crítica ao método fenomeno- mágico
. próprio à n9ção de experiência intencional,
lógico, tentaremos uma análise sumária de um exem- isto é, a criação a priori do Wassein.
plo de sua aplicação. Escolhemos a obra intitulada Apressemo-nos entretanto em acrescentar que o
Wissenschaft ais Philosophie, de Wilhelm Szilasi, que falta nessa análise é muito mais importante do
discípulo bem conhecido de Husserl e de Heidegger. que o que nela figura. A sálla de aula em questão
Escolhemo-lo de propósito, porque Szilasi é um pen- encontra-se em Zúrique e a conferência que nós ci-
sador sério, imbuído de objetividade científica, e não tamos 0<:orreu por volta de 1940. Szilasi dá sua con-
um fabricante de mitos como Scheler. Por outro ferência em Zúrique e esse fato é função de diversos
lado, o exemplo que oferece presta-se muito bem a dados de ordem social. Antes do advento de Hitler
ser tratado brevemente. S~ilasi ministrava seus cursos em Friburgo. Em 1933:
Szilasi começa seu curso submetendo a um exame fo1 suspenso, e alguns anos mais tarde, teve de deixar
fenomenológico o "ser-com-outro" (Miteinandersein) a Alemanha, onde sua segurança pessoal estava amea-
dele mesmo e de seus auditores. A Wesensschau çada. Por que a "contemplação da essência do Mi-
dá-lhe a seguinte imagem "objetiva" do mundo exte- teinanderaein" era incapaz de abarcar e de revelar ,
rior, isto é, da sala onde se encontra: " . . . esse espaço esse conjunto de dados que são entretanto ao m~nos

72 73

b
...,....,,,
tão essenciais como as tábuas trabalhadas de diversas aliás a mais alta estima - não teria superado o kan- .
.
maneiras ?
.... tismo. Quanto a Heidegger - que estima igualmente
Mas voltemos um instante às nossas tábuas. O ··- eis como fala dele: "O "ser-com," (mitsein) conce-
fato de que estas puderam ser transformadas em me- bido como estrutura de meu ser, isola-me tão segura-
sas carteiras etc., supõe um certo grau de desenvol- mente quanto os argumentos do solipsismo... Seria inú-
vi~ento da indústria e da propria sociedade. Seu til, conseqüentemente, procurar em Sein und Zeit a
estado e a condição de conjunto da sala - aqueci- superação de todo idealismo e de todo realismo"
mento, janelas, ventilação, iluminação etc. -. são por (L'Être et le Néant, p. 306). A palavra realismo pode
sua vez inseparáveis de outros fatos e conJuntos de aliás ser substituída por materialismo, sem nenhum
natureza social. Poderíamos continuar ao infinito. risco de confusão. .
Portanto não é necessário aprofundar muito a o ·exame da filosofia de Sartre mostrará que esta
crítica especulativa do método fenon:ie?~lógico. pa r:1 se expõe ao ataque das mesmas acusações por ele
constatar que, mesmo entre seus partidanos mais se- dirigidas contra Husserl e contra Heidegger. Já em
rios e mais objetivos, esse método chega a opor a Heidegger, o Dasein não é uma modalidade objetiva
consciência· do indivíduo isolado ao pretenso caos das da existência, mas uma forma da existência ( da cons-
coisas e dos homens, porque, sem confess~-lo, faz ciência) humana. Ora, Sartre está preocupado bem
abstração de todo elemento social. Po~tanto, somen- mais que seu predecessor com a relação vivida entre o
te o sujeito pensante é suscetível de criar uma orde~ homem e a natureza, em muitas ocasiões a natureza
objetiva nesse cao~: Em definitivo, o íamos~ ".tercei- sob a dependência da consciência. N uma passagem
ro caminho" que julgou ultrapassar o matenahs~o ~ de sua obra, declara que a natureza ignora a destrui-
o idealismo, assim como a não menos famosa obJeh- ção e conhece apenal a transformação. "E mesmo
vidade da fenomenologia, levam-nos ex.atamente ao essa expressão é imprópria, pois, diz ele, para pôr
neokantismo. a alteridade, é necessário um testemunho que possa
A fenomenologia e a ontologia que dela deri~a reter o passado de alguma forma e compará-lo ao
ultrapassam apenas em aparência o solipsismo e~is- presente sob a forma de não-m'1iis" '(Ibid., p. 43). E,
temológico do idealismo s~bjetivo. Co~tei:itam-se si°!"- noutra passagem: "Quando-olho 'ésse quarto-crescen-
plesmente em substituí-lo por um sohpsismo ontolo- te, a lua cheia está no meu futuro como "no mundo"
gico, graças a uma nova defi?ição dos mesmos pro- que se revela à realidade humana: é .pela realidade
blemas. Exatamente come ha quarenta anos, quan- humana que o Futuro chega ao mundo" (Ibid., p. 168).
do os discípulos de Mach acusavam-se mutuamente Eis-nos aqui, portanto, .por um desvio, de volta ao
de tender para o idealismo e cada u~ deles estava bravo bispo Berkeley ...
convencido de ser o único a ter reahiado. o famoso Essa tendência perfeitamente idealista é ainda
"terceiro caminho", os existencialistas atuais a_cusam- sublinhada pela natureza das considerações de Sartre
se, também, de tendências idealistas. Assim por que .afetam bem mai.s freqüentemente que as de Hei-
exemplo, segundo Sartre, Husserl - por quem tem degger as questões precisas do "ser-com-outro". Li-

74 75
vra-se da dificuldade, escolhendo seus exemplos entre " ... contar com a unidade e com a vontade desse par-
os "ser-com-outro" suficientemente fortuitos para tido é exatamente contar com o fato de que o trem
chegará na hora ou que o trem não descarrilará. Mas
poderem ser reduzidos, de uma maneira bastante pla~- i não posso contar com homens que não conheço, fun-
sível a experiências vividas do eu ( encontro no cafe, 1
viag~m no metrô etc.). Quando acontece-lhe afl~~ar \

dando-me na bondade humana ou no interesse do
um dado efetivamente social ( o trabalho, a consc1en- homem pelo bem da sociedade, uma vez que o homem
cia de clas·se), descarta-se logo de seu próprio mét?do é livre e que não há nenhuma natureza humana em
e declara: " ... que essa experiência é de ordem ps1c?- que eu possa confiar" (L'Existentialisme est un Hu-
lógica e não ontológica" (lbid., p. 496). ~m. outras manisme, p. 52). Salvo a terminologia um pouco es-
palavras, se Scheler estava prestes a suprimir o pa- pecial e complicada, as considerações que acabamos
r ênteses no caso do Diabo, Sartre r ecusa-se a dar de citar poderiam ser feitas por qualquer pequeno-
esse passo em r elação ao t rabalho e à _consciênc~a ~e burguês, pouco importando quem fosse.
classe. Só os iniciados da contemplaçao da essenc1a
poderiam dizer com que direito um e outro agem 2.
assim.
Não é portanto ocasionalmente que examinando O MITO DO NADA
as relações que unem o indivíduo a seus semelhantes,
Sartre possa dar importância ontológica apenas ao "É absurdo que tenhamos nascido, é
absurdo que tenhamos de morrer".
amor, à linguagem, ao masoquismo, à indiferença, ao (J.-P. Sartre : L'~tre et le Néa.nt)
desejo, ao ódio e ao sadismo. É tudo. (A ordem des- ~
sas categorias é também a de Sartre.) São somente Seria um erro crer que esse estreitamento abstra-
essas as r elações humanas, segundo Sartre, que faze m to da realidade e essa desfiguração idealista pudessem
parte do para-si. Tudo o que ultr~pass; essa~ cate- ser o efeito, num pensador de elite, de uma intenção
gorias no plano do ser-com-outro, isto e, a vt~a co-
consciente de enganar seu m1iildo: Ao contrário:
letiva o trabalho coletivo, a luta travada em conJunto.
pode-se dizer que as experiências vividas, sobre as
são a~enas, para Sartre, categorias psicológicas, ou
quais se funda o comportamento que se manifesta pe-
seja, que concernem só à consciência e não pertencem
la intuição da Wesensschau, são tão sinceras e es-
à realidade humana, à ontologia.
pontâneas quanto possível. É evidente no entanto,
Tudo isto, traduzido em linguagem clara, leva a que essa sinceridade não poderia ser a garantia de
lugares comuns de uma banalidade perfeitamente pe-
sua verdade objetiva. Sua espontaneidade atesta mes-
queno-burguesa. No seu escrito polêmico intitulado
L'Existencialisme est un Humanisme, Sartre pergun- mo a sujeição absoluta, e desprovida de toda crítica,
ta-se em qual medida o homem que age livremente dessas experiências vividas a esse fenômeno funda-
pode contar com seus camaradas. E eis a resposta: mental da sociedade capitalista que é o fetichismó.

76 n
A existência humana tornou-se insignificante. Os é necessariamente fetichizada, alienada e desumana.
laços profundos que mantêm a unidade da existência É então somente a atitude revolucionária, frente aos
se relax.am, o homem perde sua personalidade e a próprios fundamentos dessa sociedade, que pode dar
própria vida obriga-o a tomar consciência desse fato. uma cla.ra v~sã? de conjunto da realidade. A fuga
É a história de Peer Gynt que descascando a cebola, para a mtenondade leva a um impasse tragicômico.
encontra apenas camadas sucessivas, sem poder che- . En~uanto, as. bases da sociedade capitalista pa-·
gar à "cebola em si mesma" .. . re~1an~ mabalave1s, isto é, até a época precedente à
O indivíduo é, portanto, finalmente obrigado a se P.nme1ra guerr~ .mundial, a vanguarda da inteligên-
colocar a seguinte questão: como dar um sentido à cia burguesa v1v1a no meio de uma espécie de car-
minha existência? O homem que vive num mundo na vai permanente da interioridade fetichizada. Cer-
fetichizado ignora que a riqueza, o valor e o conteúdo tamente, mais de um grande escritor previu clara-
verdadeiro de sua existência encontram-se em ramifi· mente a catástrofe inevitável. Pensemos em Ibsen
cações numerosas e profundas que o ligam à exis- em Tolstoi, em Thomas Mann e em tantos outros~
tência de seus semelhantes e à da sociedade. O indi- Esse carnav~l deslumbrante, em que se percebia no
víduo isolado e egocêntrico que vive só para si, vive . entanto frequentes ecos delirantes, exercia uma fas-
num mundo empobrecido. Quanto mais suas expe· cinação irresistível. As filosofias de Simmel e de
riência.s pertencem-lhe exclusivamente, mais são ex- I Bergson, parte dominante da atividade da época, ilus-
clusivamente interiores e mais correm o risco de per· tra?1 claramente o que queremos dizer. . O exemplo
der todo conteúdo e de se perder no nada. mais eloquente é talvez o chiste de, Oscar Wilde, se-
O homem que vive num mundo f etichizado não gundo o qual o nevoei,ro de Londres não existiria sem
pode vencer o vazio interior senão por uma espécie os quadros de Turner.
de embriaguez contínua, assim como o morfinômano Mais de um grande escritor da época, mais de um
não vê saída senão no aumento da dose, quando seria pensador, via claramente que o que sucedia era a
o caso para ele de reorganizar sua vida de tal man~ira perda de substância do eu fetid1izado. Mas o reco-
que não tivesse mais necessidade de seu veneno. Eis nhecimento dessa verdade só poderia ter como re-
porque o homem que vive num mundo f etichizado não sultado, no máximo, a projeção de certas perspectivas
poderia reconhecer que foi a perda de todo contacto trágicas ou tragicômicas, destinadas a servir de se-
com a vida pública, a reificação do processo do tra- gundo plano à festa cintilante do carnaval. Os fun-
balho, o desligamento do indivíduo da vida social - damentos fetichizados da vida pareciam ser tão na-
<"Onseqüência da divisão capitalista do trabalho - que turais e tão inabaláveis, que era impossível subme-
lhe inspirou a necessidade dessa embriaguez perma- tê-los a uma crítica ou mesmo a um exame pouco
nente/ Incapaz de reconhecer a realidade, persiste na seno. A única dúvida que surgia às vezes era com-
sua evolução fatal e sua atitude corresponde a uma parável à daquele hindu, convencido de que o mundo
necessidade subjetiva, porque a sociedade capitalista repous~va sobre o dorso de um elefante e que se

78 79
permitiu um dia colocar a questão de saber sobre o A representação dessa condição do homem cor-
que se apoiava o elefante. Tendo aprendido que era responde nos grandes escritores ao reflexo subjetivo
uma tartaruga que serv.ia de pedestal àquele, nosso de uma situação objetiva. Máis exatamente, é a re-
hindu achou a resposta perfeitamente satisfatória. A presentação de uma atitude precisa, ela mesma fun-
consciência individual estava a tal ponto submetida ção das circunstâncias e dos lados do caráter, em uma
à sugestão do fetichismo social, que quando a pri- situação concreta, perfeitamente real e muito bem
meira guerra mundial problematizou toda possibili- determinada. Bastará pensar na situação de Ras-
dade de existência, quando esse abalo usiversal trans- kolnikov após o assassinato, ou em Svidrigailov ou
formou todos os objetos possveis do pensamento hu- Stavroguin compelidos ao suicídio. Trata-se, em ca-
mano, revalorizando todos os princípios estabelecidos, da um desses casos, de uma forma particular da evo-
quando enfim a grande penitência sucedeu ao carna- lução trágica, forma tomada à vida atual e que per-
val do individualismo puro, a estrutura fundamental mite a um escritor autêntico criar destinos e caracte-
dos problemas da filosofia permaneceu quase inalte- res especificamente atuais. mas tão vivos e tão trá-
rável. gicos como foram Édipo ou Hamlet na sua época.
A orientação e a missão da fenomenologia de- São essas mesmas situações, enquanto situações-
viam entretanto sofrer uma ·rransformação importan- tipo, que servem de ponto de partida para Heidegger.
te e foi essa transformação que determinou as origens A particularidade de sua filosofia consiste em inscre-
desse existencialismo propriamente dito que é a filo-
ver, com o auxílio do método extremamente complexo
sofia de Heidegger e de Jaspers. É relativamente fácil I
resumir a experiência vivida que serve de base para da fenomenologia, o conjunto do problema na estru-
essa filosofia: o homem encontra-se em face do vazio, tura fetichizada da p,~icologia burguesa, ou mais exa-
do Nada; a relação fundamental entre o homem e o tamente, no pessimismo niilista e sem saída da inte-
mundo corresponde à situação do vis-à-vis de rien. 1 ligência burguesa do período entre guerras.
Essa situação decorre, segundo o existencialismo, Quais são então as operações inspiradas pelo fe-
da essência da realidade humana. De fato, correspon- tichismo da fenomenologia e ,:da ontologia às quais
de a um estado da consciência individual f etichizada, Heidegger submete essa experiênc-ia vivida, fundamen-
que reflete' a crise do imperialismo. tal, para dela derivar o sistema fílosófico autônomo
A originalidade da experiência vivida que aca- do existencialismo? A primeira fetichização é a cria-
bamos de resumir sumariamente é muito relativa. ção da noção do Nada. Tocamos aqui o problema
Depois de Edgar Allan Poe, que foi sem dúvida o que se encontra no centro mesmo da ontologia, da ex-
primeiro a representar uma tal situação do homem ploração da realid_ade, tanto em Heidegger como em
e as atitudes que 51,ela decorrem, a literatura moderna Sartre. No primeiro, o Nada é um dado ontológico
familiarizou-nosftórri a condição do homem levado à tanto quanto a existência. No segundo, o Nada não
beira do abismo, privado de toda saída, condição que tem existência independente do Ser, é absolutamente
a fenomenologia resume na · noção de face ao nada. inseparável dele.

80 81
Voltemos agora à nossa análise metodológica. v1'd a d e
d e um " ser " autonomo
. e rea l. Q uando coloco,
Examinando, à luz da fenomenologia, a personalidade por exemplo, a questão de saber quais são as leis que
de Stavroguin e sua atitude na situação de "face ao governam o sistema solar, não ponho nenhum "ser
nada" em que se encontra ao fim do livro de Dos- negativo", nenhum vazio, nenhuma solução de con-
toievsky e, encerrando, conforme as prescrições do tinuidade na realidade objetiva, como o imagina Sar-
método fenomenológico, o problema da realidade ob- tre. Minha questão indica tão-somente um vazio nos
jetiva num parênteses para examinar somente os atos meus próprios conhecimentos, uma lacuna da minha
psíquicos de Stavroguin e seus objetos intencionais, erudição e não um vazio na realidade. Quanto à res-
veremos que o objeto intencional da experiência vivida posta; pode ser negativa ou positiva, tanto gramatical
de Stavroguin é um vazio sem saída. Feito isto, res- como logicamente. Que eu diga: "A terra gira em
ta-nos apenas seguir o procedimento de Scheler no torno do sol", ou : "O sol não gira em torno da ter-
caso do Diabo, isto é, suprimir o parênteses, para nos ra", as duas sentenças exprimirão a mesma realidade
encontrar diante do Nada, valor central da nova on- concreta e positiva e tudo o que se poderá dizer é
tologia. Assim, teremos compreendido o passe de que a frase negativa é menos precisa que a outra.
mágica da fenomenologia que faz até o fim abstra- Em todo caso, é impossível construir, a partir dessas
ção de toda realidade objetiva e concreta, de que a cons_iderações, o ser ontológico do Nada, sem recorrer
experiência vivida é a expressão no plano moral e a sofismas. A necessidade deste explica-se pelo fato
psicológico. Por conseguinte, a experiência vivida, de que Sartre pressentiu a experiência vivida fetichi-
que é a de Stavroguin, numa situação objetiva dada, zada do Nada antes de construir sua justificação ló-
torna-se, para a fenomenologia, um objeto isolado e gica e metodológica,
autônomo: um fetiche. · Quanto à situação que deu . O Nada é um mito; é o mito da sociedade capita-
lugar a essa experiência vivida, perde todo caráte~ lista condenada à morte pela História. Há algumas
de realidade. É assim que se constitui a categoria décadas, a situação de "face ao nada" pôde ser vivida
do Nada, provido de uma existência real. por indivíduos-tipos como Stavroguin ou Svidrigailov.
É evidente que não pretendemos ter reproduzido Agora, é toda uma sociedade, e,e lasses sociais inteiras
fielmente a marcha do raciocínio existencialista. Se- que se encontram nessa situação.
ria necessário, com efeito, um estudo volumoso para O próprio capitalismo pode muito bem passar
citar as demonstrações, às vezes simplesmente erra- sem idéias filosóficas, considerações ideológicas e vi-
das e às vezes manifestamente sofísticas, que apóiam sões hístóricas. Não sucede o mesmo ao intelectual
Sartre na teoria fenomenológica da interrogação e ao qual, por toda sua maneira de viver, se impõe o'
do juízo negativo, sobre a qual repousa a construção aparelho ideológico de que falamos. Ora, quando a
ontológica do Nada. Basta constatar que cada "não" situação histórica concreta na qual nos encontramos e
expresso por um juízo encerra tanta realidade con- a atitude de espírito - que é igualmente um produto
creta quanto um "sim" e que somente a fetichização ~essa situação histórica e social - levam a um im-
(do comportamento subjetivo pode dotar essa negati- passe total onde qualquer orientação é impossível, as
82 83
consciências individuais sofrem o processo de f etichi- momento mesmo em que pretendesse saber de novo
zação. Os intelectuais, cuja existência individual está o que é o homem." Essa ignorância voluntária, ra-
privada de toda perspectiva, vêem a situação da se- dical e fundamental está sublinhada tanto em Hei-
guinte forma: o Nada é a perspectiva ~bje~iva à q.ual degger como em Sartre. Ora, - e isto está longe de
toda existência é conduzida. . :Êsse mito e perfeita- ser uma anedota - é precisamente esse niilismo ra-
mente compreensível, mesmo para aquêles que não dical, esse abandono conseqüente do conhecimento
têm nem o desejo nem o tempo necessário para ler mais importante, que é a explicação do enorme suces-
as volumosas obras de Heidegger ou de Sartre. É so do existencialismo. A doutrina que ensina que a
compreensível porque é o r eflexo de situações efeti- vida está por excelência privada de toda perspectiva
vamente vividas. e que o sentido da existência é inacessível a todo co-
:rvias o processo de f et ichização não termina aí. nhecimento é bem acolhida por todos aqueles que
Com efeito, se o Nada fosse apenas o precipício no acham que sua existência está privada de toda pers-
qual vou ( talvez, ou mesmo fata lmente) cair, o exis- pectiva e que sua vida não tem nenhum sentido.
tenciali smo não seria ainda um sistema filosófico uni- É aqui que o existencialismo encontra o irracio-
versal, capaz de fornecer a solução de todos os pro- nalismo moderno, essa vas ta corrente espiritual de
blemas da existência. Heidegger, Jasper s e Sartre nosso tempo que se propõe destronar a razão. A
es tendem com efeito o mito do Nada a toda a exis- primeira vista, a fenomenologia e a ontologia são
tência. Para H eidegger , a própria vida é o estado de entretanto absolutamente incompatíveis com as ten-
derrelição - Geworfenheit - no Nada e todos os dências correntes do irracionalismo, por causa de seu
instantes dessa vida manifestam a int eração pseudo- caráter rigorosamente científico. Husserl era mesmo
dialética dessa origem e dessa perspectiva final. di scípulo da escola lõgística mais int ransigente (Bol-
P or essa mesma razão, o existencia.lismo obsti- zano e Brentano). Basta no entanto examinar, mes-
na-se em ensinar que é totalmente impossível saber mo não atentamente, seu método, para descobrir suas
o que quer que seja sobre o homem. Não que negue ligações íntimas com Dilthey e Bergson, mestres do
a ciência em geral. O existencialismo reconhece o irracionalismo moderno. Má'is tarde, quando Hei-
valor prático do conhecimento científico. Mas con- degger tomou para si certas idéias mestras de Ki er-
testa a todas as ciências o direito de ter acesso a um kegaard, essa s ligações tornar am-se ainda mais evi-
conhecimento essencial em relação ao único problema dentes.
de importância: a relação real entr e a pessoa humana E stamos aqui em presença de um fa to que é mais
e a vida. Afirma, para empregar sua própria lingua- importante que uma simples coincidência metodoló-
gem, que o homem é sua própria realidade-humana. gica. A medida que o existencialismo faz da feno-
A assim chamada superioridade do existencialismo menologia seu método, toma por seu principal objeto
sobre as filosofias antigas consiste precisamente no a irracionalidade fundamental do indivíduo e, conse-
abandono radical da pesquisa de um tal conheci mento. qüentemente, do conjunto da existência. Seu parale-
"O existencialismo, disse J aspers, estaria perdido no lismo com as outras correntes espirituais anti-racio-

~ 84 85
nalistas torna-se então cada vez mais evidente. "O sua própria vida, deve, segundo Heidegger, viver para
ser é irracional, sem causa e sem necessidade; a pró- sua própria morte: viver de tal maneira que a morte
pria definição do ser nos mostra sua contingência ori- não seja uma ruptura inesperada, em relação à sua
ginal" (L'être et le Néant, p. 713), diz Sartre. existência, mas antes "sua própria morte". A exis-
Falamos até o presente somente do Nada. Ape- tência digna desse nome não encontra sua realização
nas afloramos o próprio Ser e sua pretensa impermea- verdadeira, para Heidegger, senão nessa morte pes-
bilidade ao conhecimento. É portanto com justiça, pa- soal.
rece, que poderiam perguntar-nos: onde está então Aqui ainda o arbitrário total, o subjetivismo sem
a existência no existencialismo? A resposta deve ser limite e mascarado por uma pseudo-objetividade, da
procurada no sentido da negação. A existência, se- "ontologia fundamental" são evidentes. A obra de
gundo o existencialismo, é o que falta à realidade hu- Heidegger, essa "confissão de um burguês do período
mana. O Ser humano, diz Heidegger, "só pode defi- entre guerras", é plena de interesse. Sein und Zeit
nir-se a partir de sua existência, isto é, de sua pos- é uma leitura ao menos tão interessante quanto o
sibilidade de ser ou de não ser o que ele é". grande romance de Céline, Voyage au bout de la nuit,
Encontramos aqui o problema da perda da subs- mas - assim como o romance de Céline - não cons-
tância contínua da existência humana, da qual já fa- titui a "revelação on tológica " de qualquer "realidade
lamos. Vimos o sentido antissocial e associai que as I
última". É simplesmente um documento r evelador do
correntes dominantes do pensamento moderno dão a universo intelectual e sentimental de uma classe so-
esse problema. Ainda aqui a obra de Heidegger si- cial e de uma época. Convém demasiado bem ao cli-
tua-se no topo dessa evolução. A existência cotidia- ma psicológico da "intelligentzia" atual, para que o
na do homem nela está submetida a uma análise arbitrário dos psettào-raciocínios sobre os quais se
muito detalhada, com a ajuda do método que já co- funda possa tornar-se facilmente evidente. O ab-
nhecemos. Em Heidegger, a vida do homem, a "rea- surdo da vida e a imagem abst rata da morte
lidade-humana" é o "ser-com-outro" (Miteinander- que lhe é oposta são para um grande número de
sein) e, ao mesmo tempo, "ser-no-mundo" (Jn-der- nossos contemporâneos u111a-. e,xperiência pessoal.
Welt-sein). Este "ser" está construído em torno da Constituem, por a ssim dizer, a·1base inconsciente de
figura central mitificada do "se" (das Man). Ess e sua concepção do mundo. Basta no entanto olhar
pronome impessoal, que se tornou uma categoria mi- para trás, no universo filosófico de uma época que es-
tificada da ontologia heideggeriana, representa o tava ainda isenta dos germes ela decomposição, para
símbolo de todas as funções da vida social; é tudo ver que essa atitude face à morte não corresponde
o que dis tancia o homem de sua própria existência, a uma categoria ontológica do " se r", mas simples-
desvia sua atenção da essência, priva a vida humana mente a um sintoma da época. Spinosa disse: "O
de seu sentido profundo. As diversas manifestações homem livre pensa muito mais em qualquer outra
do "se" são, segundo Heidegger, o palavrório, a curio- coisa do que na morte; sua sabedoria é meditação não
sidade, o equívoco, o descrédito. O que pretende viver sobre a morte, mas sobre a vida".

86 87
Jaspers e Sartre estão no que concerne ao pro· Escritas há mais de ·doze anos, essas observações
blema da morte bem longe do extremismo de Hei- pertinentes esclarecem perfeitame~te as razões da pu·
pularidade g randiosa que usufrui ·o exjstencialismo
degger, sem que essa divergência possa modificar, no
entanto, o caráter fundamental de sua fi losofia, fun-
-
nao somente entre os esnobes, mas também nos meios'
reacionários.
ção de sua classe social e de seu tempo. Sartre até
mesmo recusou-se a dar à noção de morte pessoal, 3.
no sentido heideggeriano do termo, um lugar no
existencialismo. Quanto a Jaspers, no qual o fantas- O MUNDO FETICHIZADO E
ma do "se" apresenta-se sob uma forma menos pro- O FETICHE DA LIBERDADE
fundamente mitificada que em Heidegger, contenta-se
em orientar o homem que encontrou o sentido de sua " Construo o universal escolhendo-me."
existência, em direção a uma vida estritamente pri- (J.-P. Sartre: L'Existentialisme est
un Humanisme)
vada e voltada para si mesma. A ação polí tica e so-
cial não poderia jamais leva r a. resultados essenciais, O existencialismo não é sómente a filosofia da'\
dizia Jaspers ultimamente nos Encontros de Genebra, morte, mas também a da liberdade absoluta. Eis aí
e a humanidade não pode ser sah·a a não ser que
cada um se consagre apaixonadamente à sua própria ' uma das razões ma is importantes da popularidade do
existencialismo de J.-P. Sartre, mas é aí que reside
existência, para cultivar somente relações "existen- igualmente - por mais absttrdo que isso possa pare-
ciais" coni alguns indivíduos isolados e animados de ,. cer à primeira vista -. o lado reacionário de sua in-
paixões semelhantes. fluência atual. Heidegger, como vimos, considera que
Aqui, também, as montanhas filosóficas termina- o "ser-para-a-morte" é a única possibilidade da exis-
ram por originar, com um sorriso cinzento, uma men- tência se realizar. Sartre, por sua vez, destrói essa ,
talidade pequeno-burguesa. E o grande escritor anti- teoria por meio de raciocínios engenhosos. -
fascista alemão, Ernst Bloch, tinha bastante r azão Essa divergência, que separa Sartre de Heide-
quando escreveu, a propósito da teoria heideggeriana gger, atesta não somente uma diferença entre a ati-
da morte, da qual a moral individualista de Jaspers tude dos in telectuais .franceses e a dos intelectuais
é apenas a diluição insípida, as linhas seguintes: "Fa- alemães frente às que·s tões mais importantes da vida,
ce à morte eterna, a condição social do homem não mas reflete também a evolução dos acontecimentos.
tem nenhuma importância. Pouco importa que seja A obra fundamental de Heidegger apareceu em' 1927,
capitalista. . . A aceitação da mor te, enquanto des- nas vésperas do advento do fasc ismo, na atmosfera
tino absoluto e única saída, tem a mesma significação sufocante que precede a tempestade. Ignoramos quan-
para a contra-revolução atual que a consolação do do o livro de J.-P. Sartre foi escrito, mas o ano de
além tinha outrora". sua publicação, 1943, situa-se numa época em que
88 89
era já possível prever o desmoronament.o d~ fascismo não o de Heidegger - de partir para a conquista do
e onde - precisamente por causa da ttrama que du- mundo. O lugar central que atribui à liberdade é
rava há muito tempo - o desejo da liberdade ~ra certamente nele muito maior. Somente, a liberdade
a experiência mais intensa e. mais profunda dos 111- não é mais um mito: o desejo de liberdade retomou
telectuais europeus, em patricular nos países de ve- formas concretas e manifesta-se com vigor; a inter-
lhas tradições democráticas. Convém subli~har que pretação da noção de liberdade desencadeia debates
se tratava, para esses intelectuais, de uma h?erdade apaixonados e lutas ferozes. Como explicar então
abstrata isenta de toda diferenciação. Essa imagem que, nessas condições, o existencialismo e sua liber-
de uma Íiberdade mitificada, desprovida de todo con- dade rígida e abstrata possam pretender conquistar
torno preciso, convinha perfeitamente para at_ra~r t_?- o mundo? Mais exatamente: onde o existencialismo
dos os inimigos do fascismo, sem a men?r d1stmçao recruta hoje seus partidários e qua l é a força de per-
de origem ou de tendência. Antes de mais nad~, so- suasão que emana dessa nova filosofia da liberdade?
mente uma coisa contava para esses homens vmdos Para poder responder ~ essa questão e para melhor
de todos os horizontes: di~er "não" ao fascismo. compreender o segredo do sucesso do existencialismo,
Quanto mais seu protesto era vazio de co_nteúdo, mais é indispensável examinar de mais perto a noção de
se adaptava às suas aspirações i~c?nsc1entes: Esse
protesto abstrato e seu reflexo teonco,. a noçao a~s-
trata da liberdade, assumiam, para mmtos, a funç~o
,. liberdade, tal como é definida pela filosofia de Jean
Paul Sartre.
A liberdade é, segundo Sartre, o dado fundame~-
do mito da Resistência. Veremos aliás que a noça.o
de liberdade é perfeitamente abstrata em S~rtre. E1.s tal da existência humana. "De fato, diz Sartre, somos
porque o existencialismo, reflexo fiel do cl11na espi- uma liberdade que e~colhe, mas não escolhemos ser
ritual dessa época, pôde fazer repentinamente con- livres : somos condenados à liberdade ... " (L'être et
quistas tão impressionantes. le Néant, p. 565). Estamos, diz ele ainda, lançados
Mas, depois da queda do fascismo, a edificação e na liberdade. Sartre aplica aqui à liberdade uma no-
a consolidação da democracia encontram-se no centr? ção criada por Heidegger, a -Oeworfenheit (derreli-
da preocupação da opinião popular de todos os pa1- ção). A liberdade seria então, de, alguma maneira, a
fatalidade da existência humana. .J
ses. Todas as discussões sérias tendem a determinar
a natureza da democracia nova desse regime de liber- Esse caráter fatal da liberdade atravessa, segun-
dade que será edificado sobre as ruínas deixadas pela do Sartre, toda a existência humana. O homem não
poderia escapar à liberdade de escolha; não escolher
barbárie fascista e que terá por missão impedir para
é ainda escolher e a renúncia à ação é ainda uma
sempre o retorno do fascismo e da guerra. ação livremente escolhida. Desde os fatos mais terra-
O existencialismo conseguiu manter sua popula- a-terra da vida cotidiana até às questões últimas da
ridade nesse mundo transformado e parece mesmo metafísica, Sartre sublinha sempre esse papel essen-
que está em vias - o de Sartre, bem entendido, e cial da liberdade. Faço uma excursão com alguns ami-
90 91
gos. Num dado momento sinto-me fatigado, minha "Meu medo é livre, diz ele, e manifesta minha liber-
mochila me pesa muito e eis-me na obrigação de dade; coloquei toda minha liberdade no meu medo e
uma escolha livre: posso continuar a caminhar ao me escolhi medroso em tal ou tal circunstância; numa
lado de meus amigos, ou posso escolher desembara- outra, existiria como voluntário e corajoso e teria
<;ar-me de meu fardo e sentar-me à margem do cami- co!oca~o toda minha liberdade em minha coragem.
nho. E é assim em Sartre, mesmo nos problemas mais Nao ha, em relação à liberdade, nenhum fenômeno
abstratos da existência humana, em todos os proje- psíquico privilegiado" (lbid., p. 521).
tos onde se manifesta a escolha livre do homem. O pro- Diga-se de passagem que aqui também Sartre
jeto é, · aliás, uma categoria absolutamente essencial "abre um parênteses" e o faz de uma maneira total-
da teoria da liberdade em Sartre. O objeto do pro- mente arbitrária. Coragem e covardia não são com
jeto mais elevado- do homem é nada menos do que efeito, ~omente fenômenos psíquicos, mas ta~bém
Deus. "Assim, pode-se dizer, escreve Sartre, que o catego~1as morais. O capricho do filósofo basta para
que melhor torna concebível o projeto fundamental determinar se tal ou tal noção pertence ou não à
da realidade humana, é que o homem é o ser que pro-
realidade, pois o sadismo e o masoquismo são em
jeta ser Deus . . . Ser homem é tender a ser Deus"
Sartre f~to~ ontológicos, enquanto qu~ a coragem e
(ibid., p. 653). Esse ideal de divinização de si mesmo
a covardia sao apenas fenômenos psíquicos subjetivos....
significa, traduzido na linguagem da filosofia: atin-
gir ao grau do Ser que a antiga filosofia designava A noção sar treana de liberdade torna-se assim
pela expressão causa sui e que significa a autodeter- completamente irracional, arbitrária e incontrolável.
minação absolutamente soberana do Ser. Sartr~ e?for5a-se ali4s continuamente para suprimir
toda hm1taçao. Em Heidegger, o "ser-para-a-morte"
Assim como podemos ver, a noção sartreana da
liberdade é muito vasta. É aliás o que explica seu permite ainda uma classificação dos comportamentos
caráter um pouco flutuante, que torna toda definição Jmm_a ?os que podem ser autênticos ou privados de au-
exata impossível. Essa impossibilidade é ainda acen- te~ti~1d.ade. Esses comportamentos permitem ver se
tuada pelo fato de que Sartre rejeita por princípio ~ 1~?1v1duo che_g~u ou não ª. t~ltrapassar o plano do
todo critério objetivo que possa ser vir para a defi- se .e. o .de~cred1to que lhe e inerente, para realizar
nição da liberdade. A essência da liberdade, que é su~ _ex1sten~1~ pesso.al. M~s Sartre, como já vimos,
a escolha, reside para Sartre no fato de que o homem re3.e1t:i ~ cnteno he1deggenano da autenticidade da
escolhe-se a si mesmo como ainda não existente e ex1st~nc1a human_a,. i;to é, .ª morte pessoal. Rejeita
incognoscível por princípio. E ssa atitude está expos- tan!bem. t?da defin1çao racional e toda hierarquia dos
ta a um perigo permanente que é o de se tornar outro valores eticos que Scheler, antes dele esforçara-se por
daquilo que se é. Ora, aqui não existe mais em Sartre estabelece_r pelos mei?s arbitrários da fenomenologia.
nenhuma marca moral. A covardia, por exemplo, re- Sartre _re3e1ta tambem toda correlação entre a es-
sulta de uma escolha livre tanto quanto a coragem: colha hvre e o passado do ser humano, isto é, 0

92 93
princ1p10 da continuidade do ser humano. E para só têm sentido pelo próprio sujeito que escolhe. As-
terminar, rejeita ainda o critério kantiano do impera- sim, é fácil constatar uma contradição formal entre
tivo categórico. L'être et le Néant e L'Exlstentlalisme est un Hu-
É verdade que ele parece ter recuado, um pouco as- maniarne. Em L'être et le Néant notamos com efei-
sustad0, pelas conseqüências possíveis de sua atitude. to a seguinte passagem: "Assim, o respeito à liber- .
No seu escrito polêmico, declara, com efeito, que "nada dade de outrem é uma palavra vã: mesmo se proje-
pode ser bom para nós sem o ser para todos" (L'Exia- t~ssemos respeitar essa liberdad.e, cada atitude que
tentialisme est un Humanisme, p. 25-26), e mais adian- tomássemos para com outrem seria uma violação des-
te: " ... sou obrigado a querer, ao mesmo tempo que mi- sa liberdade que pretendíamos respeitar" (p. 480) . E,
nha liberdade, a liberdade dos outros; não posso to- algumas linhas acima, um exemplo paradoxal mas
mar minha liberdade por fim, se não tomar igualmen- muito preciso vem esclarecer essa concepção: "Rea-
te a dos outros por fim" (ibid., p. 83). Isto soa cer- lizar a tolerância em torno de Outrem é fazer com
tamente muito bem, mas nada mais é para Sartre do que Outrem seja atirado à força num mundo tole-
que um compromisso eclético com os princípios da rante. É tirar-lhe por princípio suas livres possibili-
moral kantiana que precedentemente rejeitou. Não po- dades de resistência corajosa, de perseverança, de
demos deter-nos aqui para demonstrar porque Kant afirmação de si que teria ocasião de desenvolver num
I mundo intolerante" (ibid., p. 480).
não conseguiu a universalização formal da moral do
idealismo subjetivo; certos escritos da juventude de A contradição é evidente. Certamente não nos
Hegel fornecem aliás uma resposta muito perspicaz compete controlar a ortodoxia do existencialismo e
a essa questão. Mas, se bem que a universalização se houvesse aí apenas,1- uma concessão feita para fa-
objetiva do imperativo categórico seja logicamente cilitar a expansão da doutrina, não insistiríamos. Mas,
indefensável em Kant, é certo que organicamente faz parece-nos, essa contradição é inerente ao fundamen-
parte dos fundamentos mais profundos da sua filo- to mesmo do existencialismo. Pensemos no solipsismo
sofia e em particular da sua concepção da sociedade ontológico e no irracionalismo. -0:,.pr:imeiro ensina-nos
e da história. · Quanto a Sartre, essa generalização que somente a liberdade individual existe, isto é, a
corresponde apenas a um compromisso eclético com
?ª escolha que adota, e todo o resto é apenas objeto
merte em relação a esse único ato real. O segundo
a opinião filosófica adquirida no classicismo, póis se- nos diz que é absolutamente impossível saber o que
melhante objetivação da sua noção de liberdade con- q~er que seja a respeito dessa única realidade, que
tradiz formalmente toda sua ontologia. nao tem passado e cujo futuro, desde que se realize,
Em L'être et le Néant, onde toda concessão aná- torna-se um passado imediatamente aniquilado. Es-
loga está ausente, encontra-se o ponto de vista inte- t~mos portanto a cada instante em uma situação ra-
gral do solipsismo ontológico. Aí, o objeto e a finali- dicalmente nova, necessitando uma decisão radical-
dade da escolha livre só podem ser interpretados e mente nova, úm novo ato de nossa liberdade.

94 95


Para evitar esse niilismo vizinho da loucura, Sar- ter sentido enquanto elemento de uma relação dia-
tre é obrigado a violar a lógica. "É: apena? assim ~ue lética torna-se assim absurdo. Toda verdade hipos-
lhe é possível aportar num mundo que ex~ste efetiva- tasiada torna-se fatalmente absurda.
mente e que não poderia dispensar. O mstrument? Vejamos agora onde se encontra em Sartre esse
desse passe de mágica é a lógica formal, a generali- elemento de verdade. Na nossa opinião, consiste na
zação rígida de uma idéia. O procedimento é comum acentuação da importância da decis.ão individual, que
a todas as escolas do irracionalismo moderno. É ele o determinismo burguês e o marxismo vulgar subes-
que permite a Sartre construir sua concepção fatalis- timam habitualmente. Toda atividade social com-
ta da liberdade. põe-se de atos individuais e a influência que as con-
I_
Aceitemo-la por um instante, nem que seja para dições materiais exercem, por importante que seja,
tentar a experiência. Ela nos conduzirá a novas con- não se realiza, como disse Engels, senão em "última
tradições insolúveis. Com efeito, .se todo ato é. liber- instância". Isso significa que no momento de tomar
dade ( subo no trem, acendo um cigarro ou deixo de uma decisão, o indivíduo encontra sempre diante dele
fazê-lo), o mundo onde vivo será exatamen~e o do uma certa margem de liberdade, no interior da qual
determinismo extremo. Heidegger sabe muito bem a necessidade histórica determina, cedo ou tarde, a
que não s·e poderia falar de um ato livre a não ser
que reconhecêssemos que existe igualmente atos que ,
'
decisão a tomar. O simples fato da existência de par-
tidos políticos demonstra a realidade dessa margem
não são livres. A nivelação sartreana de todas as de liberdade. As tendências essenciais da evolução
manifestações da existência humana assemelha-se à social são perfeitamente previsíveis, mas - como já
concepção determinista, salvo que, para o det~rminis- disse Engels - seri~ um pedantismo ridículo querer
mo, essas manifestações inscrevem-se em sistemas deduzir delas exatamente como Pedro e Paulo de-
racionalmente construídos, enquanto ·que, em Sartre, cidirão em tal ou tal circunstância dada. A necessi-
[ são, a priori, privados de todo sentido. A hipótese dade histórica faz-se sempre valer através de uma
sartreana da noção de liberdade esvazia todo sentido multidão de acasos interiores ~ exttriores. Reconhe-
( da própria liberdade. cer a importância destes, analisar.,.sua função, consti-
Guardemo-nos entretanto de ver aqui apenas um tuiria uma tarefa científica muito séria.
defeito fortuito do sistema de Sartre. Estamos, É preciso dizer que Sartre não se dedicou a essa
ao contrário, em presença de um ponto essencial da tarefa? É evidente, porque nega a necessidade da
metodologia de tôdas as f ilos.o fias modernas. O pen- evolução assim como a própria evolução, tanto no
samento irracionalista descobre, n'a e.x istência huma- plano social como no indivíduo, sendo dado que a es-
na, fatos de natureza dialética. Mas, ao invés de colha é independente, para ele, de todo o passado.
examiná-los à luz do método dialético, tenta tratá-los Nega as relações reais que unem o indivíduo à socie-
por um irracionalismo impedido de cair aos p~daços dade; faz um mundo à parte das relações objetivas
pelo colete de ferro da lógica formal. O que so pode que envolvem o homem, e as relações humanas que
96 97
enriquecem a existência são para ele apenas relações rígidt,s. Nada é mais fácil que cometer traição sobre
entre indivíduos isolados. A noção de liberdade fa- traição, com o cinismo mais frí,·olo, sob a cobertura
talista e mecânica, construída nessa base, só pode de um sentimento de responsabilidade completamente
aniquilar-se a si mesma. Para dizer a verdade, quase verbal, lcYacla ao extremo no plano teórico.
não se assemelha à categoria moral da verdadeira li-
É preciso reconhecer alifts que esse problema não
berdade e não vai mais longe que essa constatação é absolutamente estranho a Sartre. Ele o entrevê, sem
ocasional de Engels, segundo a qual não há ato huma-
qu~rer tir~.r dele a menor conseqüência e o mitifica,
no onde a consciência não desempenhe um papel de
ate esvazia-lo de todo sentido. "Aquele que realiza
mediador. na angústia sua condição de ser lançado numa res-
Tudo nos leva a crer que Sartre dá-se perfeita- ponsabilidade que se volta sobre seu abandono. não
mente conta daquilo que sua noção de liberdade pode tem nem remor so, nem queixa, nem desculpa ... " (lbid.,
ter de problemática. Recu sa entretanto abandonar p. 642). Da mesma forma que o sublime e o ridículo
seu método e escolhe antes a solução que consiste estão freqüentemente separad os apenas por um pas-
em salvaguardar o equilíbrio do seu sistema, opondo s?,. a grandez~ moral, em certos casos, pode roçar o
à sua com:epção sobrecarregada e absurda da liber- c1111smo e a frivolidade.
dade uma outra concepção da mesma natureza: a de Se acreditamos útil insistir a tal ponto na falên-
respon sabilidade. A noção de responsabilidade é com cia filosófica da noção de liberdade em Sartre, é por-
efeito tão absoluta e ilimitada em Sartre quanto a ' que vemos aí o segredo do sucesso do existencialismo
de liberdade. "Se preferi a guerra à morte ou à de- em certos meios. O nobre desprezo das considerações
sonra, diz ele, tudo se passa como se eu carregasse socia is e da ,·ida púb!ica, a interpretação abst rata ir-
toda a responsabilidade dessa guerra" (ibid., p. 640). racional e absurda das noções de liberdade e de ~es-
Uma vez mais, uma verda.d e relativa é levada ponsabilidade na defesa da integridade ontológica do
por Sartre ao absurdo, por meio da lógica formal. A indivíduo: eis em que se constitui toda a atração do
noção de responsabilidade tem a mesma sorte que mito do Nada aos olhos dos esnobes,. O que pode haver
a de liberdade, isto é, perde seu sentido, porque uma de mais atraente, com efeito, d9 que esse estranho
concepção assim rígida da responsabilidade nada mais casamento de um extremismo completamente verbal
quer dizer teoricamente e equivale à irresponsabili- dos princípios com o niilismo absoluto da moral?
dade total do ponto de vista da ação prática. Dos- A concepção sartreana da liberdade fornece, além
toievsky, esse mestre inigualável da psicologia, de- disso, uma excelente base ideológica aos intelectuais
monstrou várias vezes que os preceitos morais hiper- sempre presos a um individualismo extremo para mo-
tensos não exercem nenhuma influência sobre as tivar sua recusa em participar na obra de construção
ações de seus autores e que em conseqüência os ho- e de consolidação da democracia. Todos os que acei-
mens que os professam são moralmente muito mais tam a liberdade absoluta, todos os que defendem a
oscilantes do que aqueles que não têm princípios tão liberdade metafísica, mesmo quando é praticamente
98 99
a dos inimigos da liberdade, saudarão com alegria o
existencialismo.
A obra de J.-P. Sartre não é certamente fascista
nem pró-fascista. Entre seus adeptos, estamos con-
vencidos há democratas sinceros. Somente, as gran- C a p í t u l o III
'
des correntes espirituais desdenham, na sua orien-
.
tação, as intenções subjetivas dos pensadores. ~ara
parafrasear Moliere, essas grandes correntes tiram
vantagem de onde querem, e o ex!stencial~sr:110 ameaça
tornar-se um dia - se bem que mvoluntanamente -
a ideologia da reação.
111. O IMPASSE DA MOIUL EXISTENCIALISTA

Q.
a,
::>
...........
I .
O .
1.

A SITUAÇÃO HISTóR.ICA DO
EXISTENCIALISMO

O existencialismo revela ~c~rt?s sintomas de uma


crise e isto não se deve ao acasq,. A história do pen-
samento humano nos ensina, com efeito, que toda
filosofia leva a marca profunda de sua época, na sua
metodologia, em toda sua estrutura e até nas condi-
ções que lhe permitiram constituir-se. As inflexões
da História provocam, portanto, necessàriamente, cri-
ses na filosofia. Concepções que, durante muito tem-
po, pareciam indiscutivelmente evidentes, tornam-se
de repente problemáticas. O pensamento, então, en-
trega-se tumultuosamente, por toda parte, à procura

100 101
de justificações novas, de possibilidades de modifica- evidente que o clima mórbido de Sein und Zeit, e que
ção, de perspectivas inéditas. Pois, em realidade, en- o antigo existencialismo, com seu encorajamento à
quanto não se está em presença de uma sociedade no- passividade absoluta e sua noção abstrata de liber-
va, com uma estrutura social e econômica essencial- dade separada de toda existência pública, não pode-
mente nova, enquanto as antigas classes e frações de riam satisfazer os intelectuais de esquerda do período
classe dominantes guardam seu poder e sua influên- consecutivo à Libertação. Os elementos sociais e
cia - ainda que sua posição no conjunto da sociedade históricos de que se compõe esse após-guerra não
tenha-se tornado um pouco vacilante - certos axio- são, certamente, homogêneos. O fascismo foi vencido,
mas subentendidos, certas condições primeiras da não somente no plano militar e político, mas também
filos ofia conservam sua validez. As crises da filoso- moralmente. Mas tudo isso foi realizado antes obje-
fia manifestam-se, então, em primeiro lugar. como tivamente do que subjetivamente. P ois, enfim, os
tentativas com vistas à concordância dos princípios fascistas existem ainda e não deixam de ser susten-
tradicionais aos fatos e aos problemas novos de uma tados por certas fo rças que os consideram uma re-
existência social transformada e ao comportamento serva suscetível de ser utilizada contra a esquerda.
humano modificado. Tal foi a situação da fi losofia Essa política de espera exterioriza-se por uma ten-
hegeliana após a revolução de junho, ou a do neo- dência à pacificação da luta ideológica contra o fas-
kantismo e do positivismo após a primeira guer ra cismo e, antes de tudo, por uma tolerância integral
mundial. a respeito das ideologias que se encarregaram de pre-
Seria totalmente espantoso que o desmoronamen- parar, intelectualmente e moralmente, o caminho do
t o do fascismo e a luta pela democracia - pela de- fascismo (Nietzsche, Spengler, Ortega y Gasset, Hei-
mocracia nova, antes de tudo - não t ivessem provo- degger). A influência·\dessas correntes é aliás consi:.)
cado mudanças que exibissem todos os caracteres de derável, mesmo entre os intelectuais que são politi-
camente de esquerda. A nova situação social e polí-
uma crise, nes sa fi losofia burguesa que soube pre-
tica reflete-se portanto de uma maneira contraditória
servar sua existência e suas posições, desde a época
e complexa no plano da ideologia . . E stá, em suma,
preparatória do fascismo, passando pelo reino de Hi-
muito longe de corresponder a essa. liquidação radical
tler, até a guerra mundial e a Libertação e que, além da herança pré-fascista e fascista, que devia, segundo
disso, prepara-se atualmente para tornar-se a fi lo- a esperança dos otimistas, seguir a queda de Hitler.
sofia dominante de nosso após-guerra imedia to, da A situação política na maior parte dos países,
mesma forma que o foi a filosofia de Spengler duran- assim como certos elementos das relações interna-
te os anos que seguiram 1918. cionais reforçam ainda essas tendências. O equilíbrio
Os fatos sociais, que formam o pano de fund o frágil des ses anos, entre tentativas de pr eparação e
dessa crise, da mesma forma que as modificações es- tentativas de prevenção de uma nova guerra mundial,
truturais da filosofia que provocam, são muito sim- entre a edificação de uma democracia nova e a res-
ples e ex.tremamente complexos ao mesmo tempo. É tauração de um fascismo de vinte e cinco a setenta

102 103
e cinco por cento ortodoxo, não pode deixar de refle- fundamental de Heidegger. Para numerosos militan-
tir-se no plano ideológ ico. Exprime-se, antes de tudo, t~s dos Movimentos da Resis ten-cia, esse próprio mo-
pela confusão total do humanismo antigo, que consi- vimento, sua finalidade, isto é, a Libertação, assim
dera as oportunidades de instauração de uma demo- como seu adversário, isto é, o "nihil" social e moral
cracia nova, pelo menos com tanto temor quanto as do hitlerismo, não era, afinal de contas, nada mais
de uma restauração do fascismo, e que só pode, por do que um mito. A derrelição-no-nada, a abstração J
conseguinte, r efugiar-se, cada vez mais profundamen- do ser-com-outro, a liberdade e a responsabilidade -,
te, num mundo feito de postulados abstratos, formu- a bstratas e individualizadas podiam perfeitam ente in-
lados sob o signo de um pessimismo " sublime". Daí tegrar-se nesse mito. Mas quando a Resistência
resulta que as ideologias pré-fascistas, após terem tornou-se Libertação, quando, em razão do papel por
procedido a um reagrupamento interno, continuam a ele r epresentado, o existencialismo manifestou a am-
agir e tentam adaptar-se às realidades novas, sem bição d~ conquistar os intelectuais de esquerda e,
ter de modificar suas bases. Certos indícios levam
em particular, os jovens, uma tran sformação fêz-se
a crer que são leg ítimas as promessas de uma in- necessana. O conteúdo da noção de liberdade, o pro-
fluência considerável das doutrinas heid eggeriana s no
blema_da orientação que devia tomar a Libertação, as
outro lado do Atlântico, enquanto filosofia nitida-
mente reacionária, e certos fenomenólogos america- questoes de mora l e de filosofia da história adquiriram
nos combatem essa expansão da reação, representada então uma importância preponderante e o existen-
por Heidegger e Scheler , em nome de uma ortodoxia cialismo desenvolveu a batalha ideológica contra o
diretamente ligada a Husserl. O Velho Mundo, aliás, marxismo, para manter os fiéis nas suas fileiras e
está longe também de apresentar uma homogeneida- para ampliar suas conquistas. . . __\
de ideológica. Ne le encontramos hesitações entre nu- . Já indicamos certas analogias históricas. Não
merosos intelectuais e, em particular, entre os que 1~noramos, certamente, que a maio_r prudência é de
encaram com desconfiança as transformações trazi- ngor no manejo de analogias dessa ordem, porque
das pelo após-guerra e procuram apoiar sua expecta- as ~eme lh anças abstratas de estrutura, que são ofe-
tiva numa ideologia filosófica e moralmente "eleva- r ecidas com as si tuações às qua·i:s se r eferem acom-
da". Jaspers é considerado como um chefe espiritual, pa~h~m-se ordi~ar.iamente de diferenças históricas e
tendo o mérito de adaptar o existencialismo, desde soc1a1s, bem mats importantes e bem mais concretas.
o início, à mentalidade do burguês moderado. Essas analogias só poderiam então esclarecer a si-
r O ramo especificamente francê s do ex istencialis- tuação geral do pensamento e não o conjunto dos
mo, representado por J.-P. Sartre e sua escola, en- P.roblemas concretos, que formam seu objeto. Man-
contra-se numa situação particular. Durante os anos tid_as toda~ essas reservas, não devemos entretanto
da Resis tência, essa escola recrutou numerosos adep- deixar de invocar uma outra analogia dessa ordem
tos, graças às modificações relativamente leves da apta a esclarecer a posição atual do exis tencialismo'.
doutrina, que não afetavam a essência da ontologia Pensamos no pensamento de Nietzsch e, enquanto

104 105
produto da crise da filosofia de Schopenhauer, nas fo rças da reação como o sentimento de impotência
vésperas do estágio do imperialismo. _çfun te delas.
Tal como J.-P. Sartre atualmente, N ietzsche es- Considerando o pensamento nietzscheano, os la-
tava' preocupado - em circunstâncias certamente ços que o ligam ao de Schopenhauer, a tentativa de
-·muito di fe rentes e, portanto, de uma maneira com- superação do pessimismo e do niilismo que êle cons-
pletamente Cliferente - e~ _tran~formar. a. filosofia titu i, a transformação de um e de outro em "pessi-
do a-historismo ou do ant1-h1stonsmo obJet1vo, uma mismo heróico" e em "realismo heróico", glorificados
~filosofia que pr~gava a mais estrit_a pa~sivida~e,, e~n mais tarde pelo fascismo - considerando portanto
uma filosofia do ativismo, em uma f1losof1a da h1stona o pensamento nietzscheano como uma tentat iva de
da sociedade, e isso sem ter de modificar os funda- defesa contra o marxismo, impossível deixar de se
. mentos de sua teoria do conhecimento. Sartre é. espa~ tar ~om o protesto dos historiadores burgueses
portanto, em relação a Heidegger mutatis mutan- da f1losof1a, que nele verão uma superestimação do
dis - o que Nietzsche foi, em relação a Schopenhauer. marxismo e de sua influência. Mas, considerando ã
, Nietzsche resolveu o problema tran sformando o nii- evolução do pensamento alemão, mesmo que somente
lismo passivo, reacionário e abstencionista de Scho- no período de ascensão das idéias de Nietzsche im-
penhauer em um niilismo ativo e cínico, fazendo do , . '
poss1vel deixar de constatar que essa defesa domina
111ito da a-historicidade o da História bárbara. E sse o pensamento sociológico e filosófico, desde Tõnnies,
~ito é, aliás, em Nietzsche, tanto o produto da subje- passando por Simmel, Sombart e Max Weber, até
tividade soberana quanto é, em Schopenhauer, a es- 1
l\Iannheim, e mesmo C. Schmitt e Freyer, quer sob
camoteação integ ral da essência da historicidade. a fo rma de combate aberto contra o marxismo, quer
Trata-se portanto de uma transformação político-so- sob a fo rma de aprôpriação, desfiguração e má vul-
cial e ideológico-moral, que não afeta a teoria do garização - portanto de imunização - de certos de
conhecimento da doutrina de Schopenhauer, transfor- seus elementos. · .)
mação que Nietzsche devia realizar sob a forma de É apenas sob esse ângulo e à luz dessas cons-
uma radicalização subjetivamente sincera. Objetiva- tatações que se chega a ideni:i'ficar a moral a filo-
mente, isto é, na realidade social, essa operação fun- sofia social e a filosofia da história nietzsch~ana co-
dava-se sobre a evolução econômica, que avançava mo formando um conjunto polêmico contra a ideolo-
no sentido do imperialismo, para a época das guer- gia do socialismo. Nietzsche acreditava ainda que
ras mundiais. No decorrer desse período, a filosofia argumentos da ordem dos de Treitschke bastariam
nietzscheana satisfez plenamente à missão que essa enquanto seus sucessores tiveram de levar bem mais'
evolução lhe atribuía: neutralizou, precis~~1ente nos longe que ele a sublimação de seus problemas. Essa
intelectuais que se encontravam na opos1çao, nume- evolução é fácil de constatar tanto em Simmel e em
rosas tendências efetivamente revolucionárias, serviu \i\Teber quanto em Spengler e em Scheler - e acre-
de antídoto contra o marxismo e, nos intelectuais des- ditamos firmemente em não nos enganar no plano
contentes, preparou tanto a capitulação diante das da objetividade ( qualquer que seja o aspecto da ques-
106 107

,,,
tão' do lado subjetivo e filológico) que Sein und Zeit indiscutivelmente, o caso de Nietzsche. Aliás a fra-
de Heidegger nada mais é que um escrito polêmico gilidade dos fundamentos de seu pensamento'_ fra-
de dimensões imponentes contra a concepção mar- gilidade que somos obrigados a admitir mesmo acei-
xista do fetichismo e as conseqüências filosóficas e .. tando suas próprias premissas - não pôde - jamais
( sotiais que daí decorrem. A formidável agra vação diminuir seu prestígio universal. Essa fragilidade
da luta de classes durante o período consecutivo à é a enas, com efeito, o reflexo ide~lógico preciso da
fragilidade e do cara er contra itono o c imã' social
primeira guerra mundial significa uma expansão inin-
. cuia evolução suportava o edifício de seu pensament~
terrupta da influência do marxismo. E hoje, toda .e favorecia sua expansão. '
ideologia gúe aspira a uma validez universal, a uma Transformar o existencialismo alemão em uma
ampla influência social e que não _se contenta em ser filosofia ativista· não foi coisa muito difícil sob o
·- apenas___ uma ...doutrina universitária, deve-se medir regime, hitleriano. Lembremo-nos de Heidegger, rei-
l.. abertamente com o marxismo. tor da Universidade de Friburgo, conduzindo seus
Tal é, para empregar uma das expressões preferi- estudantes em filas cerradas diante das urnas onde
das pelo vocabulário existencialista, a " situação" deveriam sancionar com seu voto o abandono d~ Liga
atual de J.-P. Sartre e de sua escola. E é assim que das Nações pela Alemanha. Pensemos também na
nossa analogia de agora há pouco, colocando em pa- . anedota, mais antiga, contada por Lowith, relatando
ralelo Schopenhauer-Nietzsche de um lado e Heide-
gger-Sartre, de outro, ganha - com todas as reserva s
' a reação de um estudante diante da moral heidego-e-
riana: "Estou perfeitamente resolvido, mas não ~ei
de princípio que nós mesmos indicamos - uma signifi- a quê". Não é ela suficientemente reveladora quanto
cação muito concreta. A analogia concerne primei- ao caráter psicológic<ne social desse ensino, sobretudo
ramente à função social - considerada no momento se a completamos pelo "viver perigosamente", má-
de uma maneira muito abstrata - da filosofia. A xima própria ao niilismo fascista, e que marca a
i ,.J despeito de todas as diferenças que pode apresentar
~ a gênese social de seu respectivo pensamento, e a
pa.s~ag~m d~ ~ngústia teórica, cara a Heidegger, à
a~1v1dade pratica? Não, em -Heidegger, o ativismo
0 nao odena ter nenhuma conseqijência filosófica.

~11
despeito do antagonismo às xezes total de seus mé-
, Ji todos, Schopenhauer e Heidegger são, ambos, porta"' , Mas a situação do existencia ismo rances é com-
' ,..vozes de uma passividade niilista, da condenação de pletamente diferente. O existencialismo francês tem

'
Qrincípio de toda atividade social do homem e da
glorificação do indivíduo isolado, voltado para si mes- _ 1 a ambição de tornar-se a filosofia dos intelectuais de
esquerda, socialistas, amigos do progresso e da de-
.....!!!Q: Mas a analogia manifesta-se ainda no fato de. !110cracia. Não poderia, portanto, à maneira de Nietzs-
que, fatalmente, contradições e ecletismos surgiram che, "liquidar" o socialismo, proferindo alguruas in...-
quando a teoria do conhecimento e a ontologia, inti- yectivas a seu respeito, como não poderia, à maneira
mamente ligadas num e noutro a esse niilismo pas- _ge _Heidegge:. ignorá-lo oficialmente, abrigando-&e .
siv~, tornam-se o veículo de um ativismo. f:Ste, foi,
d ..,iltras do regime dos campos de concentração. De-

108 109
ve, ao contrário, medir-se com ele em combate mesmo sentido, dando prova da mesma incompreen-
aberto; deve provar sua superioridade nos terrenos são para os problemas de ordem moral propriamente
da moral e da filosofia da História ; deYe proyar que ditos, como mais tarde a filosofia universitária frente
a doutrina do existencialismo é suscetível de fornece r a Marx? Para empregar a terminologia consagrada
a todas as questões que a História apresenta quan to por Max Weber , Kierkegaard é também un.1 nlõrãlis-
ao comportamento do homem, respos tas melhores, ta da intenção como Kant, F ichte e igualmente -
mais claras e mais concretas que o marxismo. sobretudo em L'Être et le Néant - J ean--Pau l Sartre,
enquanto Marx, como Aristóteles e Hegel, ultrapassa
2. o dilema moderno entre a moral da in tenção e a moral
do resu ltado.
MORAL DA INTENÇÃO Empregamos aqu i de propósit o os termos cien-
E MORAL DO RESULTADO tíficos popularizados por Max Weber, para designar
esse dilema essencia l da ética atual, de que H egel
O problema consiste em constituir uma moral já denunciou o caráter ilusório. Esse fal so dilema
existencialista, sendo dadas as condições concretas de recebeu, na literatura de segunda classe fabricada por
nossa situação atual. Basta colocar assim o problema, Koestler, uma expr essão mística e pomposa, sob a
para constatar que o existencialismo - mesmo acei- forma de confronto entr e o Ioga e o Comissário. T e-
tando suas próprias premissas - encontra-se obri- remos ocasião de ver que essa posição do problema,
gado, desde o início, a se aquartelar na defensiva e que preocupou tanto os existencialistas, em nada con-
que seus adeptos não podem participar do combate tribui para sua solução.
senão num terreno que lhe é estranho. U ma moral que c0nsidera apenas o ato individual
Este único fato manifesta a ascensão vitoriosa do sujeito e para a qual a intenção que presid e esse
do marxismo. Há algumas dezenas de anos, podia-se, ato constitui o critério deci sivo da moral não pode
com efeito, declarar altivamente que o marxismo ser senão uma moral da intenção. Aos olhos dessa
não tinha moral. Além disso, um tal juízo era ent ão moral, a ligação do ato com .isuas_ conseqüências só
perfeitamente justificável do ponto de vista da sa- pode ter lugar numa esfera completamente diferente,
bedoria ex cathedra da época, para a qual a moral sob o reg ime de leis essencialmente distintas. Assis-
era apenas um conjunto de postulados puramente for- timos assim a uma separação entre o plano da moral
mais, intemporais e abstratos. Acrescentemos entre- ~ o r es to da realidade humana, " exterior", separação
tanto que essa crítica não atinge só Marx, mas, com impossível de remediar por meio de categorias ou do
ele, todos os verdadeiros grandes moralistas concretos método da moral da intenção, porque estas são pro-
da his tória do pensamento, e antes de tudo, Aristó- dutos dessa separação.
teles e Hegel. Mas, nessa questão, o existencialismo Eis porque os radicais entre os adeptos da moral
coloca-se inteiramente ao lado da sabedoria ex cathe- de intenção - e só estes são conseqüentes - re-
dra: seu ancestral Kierkegaard não a taca Hegel --no cusam-se absolutamente a considerar as conseq.üên-

11 O 111
das cio ato ( o Sermão da Montanha, Kierkegaar<l, Mas, do ponto de vista da forma, os dados opostos
Heidegger). Nenhuma moral, çntretanto, cujo con- são indiferentes, tanto uns quanto os outros ... "
teú~o e in tenção não equivalem a uma r ecusa total H egel demons tra aqui que Kant abandona as
do mundo, a uma renúncia total à penet ração da bases filosóficas da sua própria moral, ao querer
realidade social, poderia abandonar toda ten tativa deduzir do imperath·o categórico a ex istência ou a
com vistas a restabelecer o laço entre o ato indivi-
r justificação de uma categoria , econômica e social e o
dual e suas conseqüências. Ora, no mo1~1ento mesmo t comportamento ético a seu respeito. Enquanto moral
em que se empreende essa tentativa, percebe-se a da intenção fo rmalista, a moral kantiana é incapaz
necessidade de restabelecer. de um modo nu de outro, de colocar essa questão no seu próprio terreno. É
incapaz de colocá-la corr etamente, porque Kant con-
uma ponte entre a moral ele um lado e a sociedade
e a fi losofia da história de outro. Pergunta-se so- s idera o conhecimento do conjunto da realidade obje-
tiva, - em nossa citação Hegel não se ocupa desse
mente como restabelecer essa ponte, quando a moral aspecto da questão - isto é, o conhecimento do nnm-
da intenção tinha tomado o cuidado de eliminar do do histórico-socia l, como conhecimento de fe nômenos
comportamento moral original todo conteúdo social somente, ao qual opõe, sob os a uspícios do ato moral,
e histórico, a fim de sa lvaguardar o prim ado decisivo o acesso ao mundo em si, ao mundo nomenal. Assim,
do ato subjetivo e da intenção individual! a conclusão dessa tentativa de Kant teria como resul-
Conhecem-se os destinos da moral kantiana. Kant tado - por intermédio do ato moral isento de con-
tinha tentado sair do formalismo puro da moral da tradição - tal como é aqui postulado - a transfor-
intenção e do imperativo categórico, pondo, diante de mação do conhecimento do mundo histórico-social em
cada ato moral concreto, o critério da ausência de um conhecimento em si, finalizando pela supressão de
contradição objetiva. Portanto, - para r etomar seu toda teor ia do conhecimento de Kant.
exemplo - nenhum depósito deve ser roubado, pois É interessante e muito característico que o jovem
o roubo cont radiria a noção mesma de depósito, "por- , Hegel - que o fez em nome do idealismo objetivo -
que um tal princípio teria por efeito anular-se a si não tenha sido o único a protestar contra essa tendên-
mesmo enquanto lei, pois faria que não existisse mais cia de Kant, que consiste em dotar o ético de um
o depósito". Hegel, na sua Crítica, responde: "Que conteúdo social, com a a juda da lógica fo rmal. Georg
não haja depósito algum, e onde esta ria a contradição? Simmel numa é oca mais recente, o fez também, em
Se não houvesse depósito, isto contradir ia outros da- nome do idealismo subjetivo kantiano. immel parte,
dos necessá rios; da mesma maneira, a possibilidade ·como H egel, do pretenso critério da ausência de con-
da existência de um depósito estú ligada a outros da- sradições lóe:icas do imperatiyo catee:órico. Somente,
dos necessá rios e torna-se assim ela própria possível. segundo Sim mel, esse critério não seria defensável
Mas que não se faça apelo a outros fins e a outras cau- senão num sentido puramente moral, isto é, naquele
sas materiais: a fo rma imediata do conceito deve deci- da mora l da intenção, porque, diz ele, "a unidade ló-
dir da justeza da primeir a ou da segunda suposição. g ica interior de nossas ações fo rma também o critér io

112 . _,.. 113


de seu valor moral". Assim, para retomar o exemplo fim" (L'Exlstentlalisme eat un Humanl1me, p. 83).
.
de Kant, o roubo do depósito pode ser tão moral como
sua vigilância, com a condição de que a "unidade lo-
Noutra passagem, encontramos uma fórmula mais ra-
dical, e, ao mesmo tempo, ainda menos n"itida : "o que
gica interior" do ato moral permaneça integral. escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser oõm
Se entramos a tal ponto no detalhe da discussão ara nós sem o ser ara todos". Para quem conhecer
sobre a possibilidade da extensão da moral da inten- a filosofia de Kant, é ime 1atameiite evident e que a
ção formal aos conteúdos sociais, é primeiramente posição de Sartre é totalmente vizinha da de Kant·
porque nos ofereceu a ocasião de evocar todas as o postulado que formula aqui parece decorrer direta:
questões essenciais de nosso problema, mas é t~m- mente do imperativo categórico, segundo o qual tudo,
bém porque a posição que o próprio Sartre tomou, no mundo, pode ser tratado como meio, "só o homem
na sua pequena brochura de popularização, aproxima- é um fim em si mesmo" (lbid., p. 25-26). Veremos
se sensivelmente da moral de Kant. Na medida em como essa concepção está destinada a desempenhar
que é possível construir uma moral sobre os princí- um papel decisivo na gênese da moral existencialista.
pios formulados no L'être et le Néant, ~st.e atribu!~ia Queremos saber entretanto com que direito Sar-
ao ato subjetivo o primado absoluto. Ja tive ocas1ao, tre opera esse alargamento de sua concepção original
noutro lugar, de explicar as conseqüências que decor- da liberdade. Essa moral inspirada em Kant faz parte
rem desse subjetivismo radical para as relações que orgânica do existencialismo ? Não que nos sintamos
unem o sujeito aos seus semelhantes, de maneira .que obrigados a velar pela ortodoxia da doutrina exis-
creio poder limita:--me a citações, para caracten za,r tencialista, não. Mas temos o dever de protestar, quan-
a posição tomada por Sartre na sua principal obra. do J.-P. Sartre e seus discípulos afirm~m que sua
Diz ele, notadamente : "As mais atrozes situações da filosofia, de que jâ identificamos a base heideggeriana,
guerra, as piores torturas não criam um estado de enquanto niilista e reacionária, representa uma ideo-
coisas desumano; não há situação desumana: é so- logia progressista e democrática. Indicamos então
mente pelo medo, a fuga e o recurso às condutas má- uma contradição entre os fundamentos filosóficos e
, gicas que eu decidirei do desumano: mas essa decisão os postulados éticos dessa doutrina; segue-se daí a
é humana e tomarei sua inteira res onsabilidade" , obrigação de abandonar, para todos aqueles que le-
(L' tre et le Néant, p. 639) ublinhado por mim, vam a sério a filosofia e a moral' tanto os fundamen-
.
G. L.). A brochura de popularização de Sartre já tos heideggerianos, como o edifício progressista e li-
leva em conta a situação geral depois da Libertação, beral construído sobre estes.
tal como a descrevemos, e aceita a parte de obriga- A inconseqüência de Sartre e o ecletismo de suas
ções que dela decorrem para o existencialismo. Assim, novas posições manifestam-se, antes de tudo, pelo
nessa brochura, diz Sartre: " ... sou obrigado a querer fato de que seu novo conceito de liberdade está muito
ao mesmo tempo que minha liberdade a liberdade dos longe de coincidir com aquele formulado na sua obra
outros, não posso tomar minha liberdade por um fim, p~incipal. Nesta, o autor segtliu, com algumas diver-
a não ser que tome igualmente a dos out ros por um gencias de pormenor, os fundamentos elaborados por

114 115
Kierkegaard e por Heidegger. Assim, a liberdade sig- postulo minha própria liberdade assim compreendida
nifica o ato subjetivo de decidir e de agir, sem levar segundo a tradição da moral antiga, minha vontad~
em conta o conteúdo ou a direção do ato. Quer o torna-se desprovida de sentido, se não postular, ao
torturado fale ou guarde silêncio, quer o mobilizado mesmo tempo, a liberdade dos outros. Neste caso
tome das armas ou deserte, trata-se, apenas e sem- · com efeito, liberdade significa ser cidadão livre d~
pre, da liberdade tal como surgiu do ato individual. um Estado livre e a liberdade dos meus concidadãos
Para falar a verdade, pode-se querer ou não constitui uma condição sine qua non da minha. Este
querer essa liberdade para outrem? A resposta não raciocínio é perfeitamente claro e segue-se também
poderia ser outra senão negativa. Pois, quando violo claramente que essa liberdade não tem mais nada a
a liberdade de outrem da maneira mais direta ( sua ver - não só logicamente, mas também quanto ao
liberdade no sentido corrente da palavra), meu a to seu conteúdo - com o conceito de liberdade formu-
pod~ ainda, se undo o existencialismo, ser um ato lado em L'être et le Néant, onde surge exclusivamen-
e min a liberdade. Por outro lado, outrem terá te do ato subjetivo.
ainda - segundo o conceito de liberdade caro a Hei- Examinando um pouco mais de perto esses dois
degger e a Sartre - sua liberdade absolutamente conceitos de liberdade, empregados simultaneamente
ilimitada de reagir. É evidente que agindo assim, mas que são radicalmente diferentes o empréstim~
crio para ele uma "situação", mas nessasrttiàção, metodológico que Sartre fez de Ka~t aparece sob
3 erá. absolutamente livre para escolher entre a obe- uma luz_ completamente nova. Não é preciso esquecer,
diência e a autodefesa. Qualquer que seja sua esco- c?m efeito, 9ue a despeito de todas essas inconseqüên-
lha, pode - segundo Sartre - optar em liberdade cias conhecidas, Kant pode, com justiça, pretender
e manifestará sua liberdade pelo ato de obediência ter conferido um valor universal à sua moral da
ou de autodefesa que ele mesmo terá escolhido. As- intenção, porque sua doutrina opõe o Eu de seu ato
sim, o efeito mais profundo que eu pudesse exercer moral à existência imediata do homem e porque esse
sobre outrem consistiria somente em criar para ele Eu encerra assim, implicitamente, a consideração do
uma situação: isto não pode constituir, de minha homem por ele mesmo, enquanto ser dotado de razão
parte, uma intervenção na sua liberdade. pertencente a' humanidade. A interdição de conside-'
O postulado moral, formulado pela brochura de rar o homem como meio não contradiz então em si
popularização de Sartre, não perde entretanto seu ~esma, de maneira nenhuma, esta concepção. É de-
sentido. Está, ao contrário, carregada de um sentido vida somente ao revestimento formalista da moral
completamente claro, ainda que incompatível com as kantiana, que dissimula elementos históricos e sociais
considerações fundamentais de sua obra principal. ignorados pelo próprio Kant.
Incompatível, não somente por razões lógicas, mas O formalismo sartreano encerra igualmente, nós
porque a liberdade que é tratada nessa brochura não o veremos, elementos históricos essenciais inconscien-
é somente a do ato individual, mas, ao contrário, é tes, mas de um caráter completamente diferente ab-
a liberdade no sentido social da palavra. Quando solutamente contrário mesmo. Simmel quis já ' mo-

116 117
dernizar os constituintes temporais da moral de Kant, clegger. O exemplo evoca o caso de um jovem colo-
opondo à "liberdade dos indivíduos pertencentes es- . cado diante do seguinte dilema: abandonar sua mãe
sencialmente à mesma espécie" um individualismo . ou abandonar a luta pela libertação. Ora, se Sartre
novo, o da personalidade única. É esse ideal de igual- levasse verdadeiramente a sério seu novo conceito
dade, proveniente do tesouro espiritual da Revolução de liberdade, esforçar-se-ia por deduzir dessa defi-
Francesa e considerado por Simmel como caduco, que nição geral (ligação de minha liberdade à de todos)
permitirá a Kant, do ponto de vista metodológico, a uma linha de conduta moral, suscetível de inspirar
universalização de que falamos acima. A moral de uma decisão a esse jovem. Mas não pensa assim.
Simmel, a da personalidade única, torna-se entre- Demonstra, ao contrário, que a concepção kantiana,
tanto a tendência dominante do estágio do imperialis- segundo a qual nenhum homem deve ser tratado como
mo, transformando cada vez mais a ética em um meio, concepção tão próxima da sua própria, coloca
solipsismo irracional dos atos subjetivos de perso- esse jovem diante de um dilema insolúvel. Deve con-
nalidades únicas. Sein und Zeit, de Heidegger, assim. siderar tanto sua mãe como seus companheiros de
como L'être et le Néant, de Sartre, representam os armas como meio. Partindo da concepção moral de
pontos culminantes dessa evolução. Para dotar seu L'être ~t le Néant, Sartre recusa-se a dar um con-
conceito de liberdade de um valor universal, Sartr.e selho. Diz a esse jovem: "você é livre, escolha . . .
deve portanto alçar-se bem mais longe do que -Kant, _Nenhuma moral eral ode indicar-lhe o que fazer ... "
tanto mais que pretende ir bem mais longe. A rei- ;'
Mas a n'ova moral sartreana, a que liga minha 1 er-
vindicação da.. liberdade para todos vai efetivamente dade à de todos, nãó é também uma "moral geral",
· bem mais longe do que a sim les interdi ão de con- isto é, segundo Sartre, uma moral que não poderia
si erar o ornem como meio. Era necessário portan- e não deveria - segundo a antiga concepção sar-
.. to realizar aqui um salto miraculoso. ·E ·Sartre, com treana da liberdade - inspirar nenhuma decisão ao
a coragem nas mãos e o nome de Kierkegaard nos sujeito que age? Mas se assim for, qual é o valor
lábios, saHou. Saltou de um . conceito de liberdade dessa moral quando se tratar de construir um sistema
-t: bem determinado a um outro completamente oposto ...
geral? Se o ato de decidir é~".único critério decisivo,
Vamos ver como, na sua obra de vulgarização, se a concordância interior da decisão com a persona-
Sartre opera com dois conceitos de liberdade, que na- Jidade. que se constitui de novo por esse ato permanece
da têm a ver juntos e que são mesmo totalmente in- a única realização possível de minha liberdade, então
compatíveis. o, existencialismo não oferece nenhuma possibilidade
L'Existentialisme est un Humanisme traz, com para uma generalização moral, até mesmo histórico-
efeito, um exemplo bem descrito, que mostra clara- -1-ocial. Neste caso, a moral, tal qual foi formulada
mente que seu novo conceito de liberdade é apenas, _nessa obra de popularização, nada mais é do que
para o autor, uma concessão às exigências do momen- _ uma construção eclética, cheia de contradições, am_s-
to, mas que no fundo permanece sempre ligado à mo_. centada de forma completamente exterior ao existen-
ral que lhe foi legada por Kierkegaard e por Hei- cialismo propriamente dito. '
118 119
3. ép?ca h~st?rica consecutiva à Libertação. Que os
ex1stenc1ahstas mais em evidência e antes de tudo
, . ' '
SARTRE CONTRA MARX o propno Sartre, não fossem conscientes desta cri se
não há nisto nada de espantoso.. Não há necessidad~
Certas conclusões metodológicas já se impõem de evocar aqui analogias históricas. Basta recordar
partindo desta análise sumária a que acabamos de a obscurida,de dos métod<?s da fenomenologia, obscuri-
nos dedicar. Toda concepção, e mesmo toda categoria dade que so cresceu após o surgimento de uma onto-
ótica encerra - conscientemente ou não - uma certa logia fundamental, mais proclamada que verdadeira-
visão da sociedade e de sua evolução. (Esta visão mente fundamentada, do ponto de vista metodoló-
pode, sem dúvida, negar toda evolução.) Para que gico. Ora, esta obscuridade permite abrir e fechar
.uma co_ns_trução ética possa estar isenta de contradi- o célebre parênteses de uma maneira tão arbitrária
ções internas e permanecer correta do pon_tp de vista que a rel_açã? entre realidade e representação torna·s~
_nµram~nte formal deve poder referir-se a uma con- com efeito mcerta. Distinguir exatamente nestas
-~R..ção homo ênea da estrutura e do dinamismo da condições, entre o objetivo e o subjetivo n~cess ita~
história e, portanto, do indiví uo. 1mposs1ve cles- ria, a bem dizer, uma verdadeira virtu~sidacle crí-
à luz desta nsidera ões o si nificado tica. Mas a ambição de fazer do existencialismo a
histórico da inconseqüêric1 e que Sartre dá provas íi,lo.sofi"a de nosso tempo, o desejo de alcançar a vi-
.em sua pequena obra: exprime uma modificação, sem toria contra o materialismo dialética são pouco com-
dúvida inconsciente, das concepções do autor sobre patíveis com o espírito crítico.
a sociedade, a história, a situação histórica etc. E O exemplo do próprio Sart re forneceu a melhor
já que no entanto Sartre não acreditou dever modifi- prova do essencial de nossas afirmações. Simone
car suas concepções filosóficas de base, esta modifi- de Beauvoir e, principalmente, Maurice Merleau-
cação só pode manifestar-se da maneira que nós mos- Ponty, não deixam de mostrar, com efeito, uma cer ta
tramos, isto é, sob o aspecto do emprego de dois con- vontade de compreensão dos problemas da atualidade
ceitos diferentes de liberdade, dos quais o segundo analisados pelo aparelho conceitual do marxismo. Es-
se mostra totalmente incompatível com o método do ta vontade vai talvez a par com 3: esperança de poder
existencialismo. provar, em última instância, a superioridade do exis-
. A nosso ver, a crise na qual se debate o existen- tencialismo: parecem pressent ir, às vezes, que há ne-
cialismo manifesta-se pelas divergências cada vez cessidade de certas correções. Mas o próprio Sartre,
mais graves que separam os primeiros princípios do esforça-se freqüentemente por suprimir o rival desa-
existencialismo, provenientes socialmente da situação gradável por meios demagógicos, bastante baratos e
de uma certa classe de intelectuais do estágio do indignos de um pensador de sua classe.
imperialismo, e que provêm, do ponto de vista teó- Sartre consagra em sua revista dois importantes
rico, de Kierkegaard, de Husserl e de H eidegger, de estudos ao debate contra o marxismo. Seu ponto de
problemas e de concepções novas que lhe impôs a partida é naturalmente determinado por sua posição

120 121
.
existencialista, o que falseia completamente suas con- terialismo dialético os argumentos que conviria opor
clusões. Em lugar de partir, por exemplo, da análise ao materialismo mecanicista: é um procedimento que
da situação real da França, ou da Europa, de exami- não é digno dele. Q termo "metafísica" possui aliás,
nar suas tendências revolucionárias em presença e _f!O vocabulário do materialismo dialético, um sentido
perguntar em seguida qual das duas ideologias reflete J:>articular, porque é a antinomia do termo "dialética.'.'.
melhor a evolução objetiva da história, Sartre parte Se a polêmica fosse leal, Sartre deveria dar pelo
de uma meditação sobre a mentalidade da juventude menos uma indicação rápida dessa acepção particular,
atual, para a qual o idealismo passa por estar defi- que é somente de emprego corrente nos marxistas.
nitivamente comprometido com a classe dirigente, mas Compreendemos perfeitamente - porque conhece a
que não deixa de demonstrar reservas em relação ao dialética apenas sob sua forma completamente fal-
materialismo. Segundo Sartre, intimida-se esta ju- seada por Kierkegaard e por Heidegger - que possa
ventude dizendo-lhe que aquele que não opta pelo considerá-la como contrária ao espírito científico. Re-
materialismo, concorda, queira ou não, com o campo prova confusões dessa ordem aos marxistas france-
do idealismo desprezado. Sartre propõe-se portanto ses, mas no entanto, graças a uma hábil manipulação
explorar - por meios bastante demagógicos - essa das duas acepções do termo "metafísica", ele mesmo
mentalidade, com vistas a desacreditar definitivamen- confunde a questão. Diz, entre outras coisas, que
te o materialismo e preparar assim o caminho ao a c1encia, enquanto "realização da quantidade ''
triunfo do existencialismo, desse "terceiro caminho" i
(Temps Modernes, t. IX, p. 1544) opõe-se à dia lética.
do pensamento que não é nem materialista nem Então não sabe que a categoria da quantidade faz
idealista. parte, em Hegel, assim como em Marx, do aparelho
Empregamos a palavra . "demagogia", bem sa- conceituai da dialétiea? Sartre continua a confundir
bendo que, numa discussão científica, ela pode, com jl qu~stão quando, a respeito da matéria, atribui aos
razão, parecer brutal. Acreditamos dever empregar _ marxistas "a matéria de que falam os cientistas"
essa palavra porque a polêmica de Sartre contra o (Temps Modernes,_t. IX, p. 1543). Talvez seja justo,
materialismo quase não poderia ser qualificada de quando se trata da questão -cóncreta que visa a es-
outro modo. Não podemos crer, com efeito, que Sar- trutura da matéria. Mas o que Sartre discute aqui
tre ignore numerosas questões tratadas ao longo de é a noção epistemológica de matéria e deveria saber
que, em Materialismo e Empiriocriticismo, sua gran-
dezenas de brochuras de vulgarização. Ora, neste
de obra de filosofia, Lenin separa com a maior cla-
caso, é quase impossível admitir que sua boa fé seja
reza a definição filosófica da matéria (o que existe
integral. independentemente de nossa consciência) das defini-
Abriremos o debate com uma questão de termi- ções sempre mutáveis e sempre suscetíveis de aper-
nologia. Sartre declara que o materialismo é uma feiçoamento dadas pelo conhecimento científico con-
"dout rina metafísica". E pênoso ver Sartre, pensador creto. Acredito poder limitar-me aqui a essa rápida
autêntico e de grande classe, empregar contra o ma- indicação, porque essa questão está desenvolvida em
122 123

detalhe no último estudo desse volume. É com tais exemplo, qu~n.9..Q_gs operários são chamados a partici-
arn1as que Sartre combate o materialismo, esse "mons- par de uma mani~stação, cada operário interessado
tro e Proteu inapreensível, essa aparência falsa, vaga çleverá decidir se tomará parte nela.ou não; não colo-
e cheia de contradições" (Temps Modemes, t. IX, camos em dúvida nem que seja possível prever o sen-
p. 1560). tido geral de todas essas decisões individuais e tais
Passemos agora às questões concretas. Sartre pre; isões s~o às vezes enganadoras.
reprova ao materialismo, antes de tudo, de "eliminar Se o existencialismo se contentasse em esclarecer
a subjetividade" e de "privar o homem da liberdade" ; esse elemento de uma relação dialética frente aos
acusações que são familiares a nós , marxistas, há marxistas vulgares que consideram o determinismo
-· dezenas de arnjs, porq!:!~Jª~~~arte do arsenal re- econômico da consciência humana como uma fatali-
gulamenta.r do menor dos nossos adversários. Todo dade mecânica, sua posição seria inteiramente justi-
marxista poderá constatar sem esforço que aqui tam- ficada e muito útil. :Mas não seria suficiente para
bém Sartre desfigura o marxismo para poder comba- permitir-lhe apresentar-se, face ao marxismo, como
tê-lo. Está aliás obrigado, pelo fato de que ocupa uma filosofia independente. Sartre isola e erige como ,
absoluto esse momento mediador necessário da his-
uma posição defensiva, que habilmente carriufla em
tória, colocando-o no centro mesmo de sua doutrina,
ofensiva, aproveitando da relevância dada pelo exis-
I e vê-se obrigado a suprimir a objetividade da natureza
tencialismo à subjetividade, o que constitui o seu ele- e da história, pois a seus olhos, só a subjetividade in-
mento relativamente justificado. Dizemos relativa- terior pura é digna desse nome. A fim de salvá-la,
mente justificado, pois a doutrina existencialista o é obrigado a abandonar a objetividade da natureza e
sobrecarrega ao ponto de o transformar em um absur- da hi stória. Esse procedimento certamente conserva-
do. Entretanto, por mais justificado que seja, esse ria uma aparência lógica, enquanto, como em Hei-
e"lemento está longe de ser desconhecido por nós, degger, somente os problemas puramente interiores
marxistas. 1_'r~ta-se, com efeito, de sublinhar que do intelecto estivessem em jogo; a subjetivação da
são os próprios hom~ ue fazem sua história, tanto história corresponderia então ...êxatamente às ilusões
~na sua yida privada como na existência pública. Se- mantidas pela classe de intelectuais quanto às suas
gue-se que tudo o que aconteceu, acontece e aconte- relações com a realidade histórica e social. Mas essa
cerá no curso da história da humanidade compoe-se opin ião torna-se muito difícil de defender, quando se
..Q~ _<!_Ç_Ões humanas, as quais têm sua fonte direta nas tem a ambição de defendê-la frente ao marxismo, en-
_resoluçõ~s humanas e essas resoluções são sempre quanto verdadeira filosofia da história. Neste último
tomadas nas situações concretas, precisas (a "situa- caso, restam apenas ao existencialismo duas possibili-
ção", cara ao-s êxistencialistas). Ora, consideradas dades: esboçar uma caricatura do marxismo e conse-
no plano individual, essas resoluções podem sempre guir contra este uma vitória fácil ( o que faz aqui
· ser tomadas num sentido ou noutro. Nenhum marxista Sartre), ou então tentar incorporar - abusivamente
jazoável poderia, com efeito, pôr em dúvida que, por - ao existencialismo certos resultados do marxismo,
124 125
• (J)
~ - ' .
escamotear, no domínio da prática, o antagonismo que menos sob sua forma primeira - a esboçar a análise
existe entre essas duas ideologias e salvar assim as psi~o!ógi~a : fenomenológica de r esoluções e de ações
..::. bases filosóficas do exitencialismo. É o caminho esco- md1v1dua1s isoladas, acrescentando às vezes comen-
- lhido por Simone de Beauvoir e, sobretudo, por Mau- tários de ordem moral, ou os exagerando para faze r
7'rice Merleau-Ponty. , deles uma ontologia, a análise marxista da história
Sartre declara que o marxismo "elimina a sub- 1 começa precisamente no ponto em que o existencialis-
_jttividade". Vejamos o que diz, a esserespeito, En- m? abandona a partida. O marxista começa por exa-
- gels: "Fazemos nó,s mesmos nossa históri-ª, e~creve, minar como esse caos de atos individuais torna-se um
mas, antes de mais nada, com premissas e condições processo objetivo, regido por leis cognoscíveis que de-
~. determinadas. Entre todas, sãq -ª~- condi õ~s_ eco- nominamos História.
nômicas as fina lmente determinantes.. . Mas, em ) P ara compreender a História, a análise marxista
segundo lugar, a história faz-se de tal modo que o :os
,~emon ta f,undamentos materiais da ação humana,
r esultado final provém sempre dos conflitos de um , a produçao e a reprodução materiais da vida humana.
grande número de von tades individuais das quais ca- Nela descobre as leis históricas objetivas, mas não
da uma por sua vez é feita tal qual é por uma multi- !~ª· no entanto, o papel da subjetividade na His-
dão de condições particulares de existência; há por- toria. Apenas determina o lugar exato que lhe cabe
tanto aí inumeráveis forças que se contrapõem mu- .._na totalidade objetiva da evolução da natureza e da
tuamente, um grupo infinito de paralelogramos de sociedade.
força, donde se orig ina uma resultante - o aconteci- É contra essa objetividade que se dirige a polêm ica
mento histórico - que pode ser considerado, por sua de Sartr e. Ele nega, em primeiro lugar e de pleno
vez, como o produto de uma fo rça que age como um acordo com uma parte· considerável de cientistas bur-
todo, de maneira inconsciente e cega. Pois, o que gueses de nosso tempo, assim como com toda a fi-
cada indivíduo quer é impedido por outro e o que daí losofia reacioná ria moderna, a historicidade da na-
resulta é qualquer coisa que ninguém quis... Mas, tureza.. Com respeito à história, só reconhece a da
pelo fato de que as diversas vontades ... não chegam hu~1a.111dade. Mas como esta seria poss ível, sem base
a realizar sua vontade, mas se fundem em uma média ob~et!va, sem leis objetivas, sem, tendências gerais
geral, em uma resultante comum, não se tem o direito O~Jet1vamente existentes? A essa questão, Sar tre
de concluir que sejam iguais a zero. Ao contrário, cada nao tem resposta nem poderia ter. Tanto mais que,
uma contribui para a resultante e, por isso, está in- mesmo quando lhe ocorre evocar - utilizando e sim-
cluída nela". P!ificando cer tos resultados do marxismo - uma ques-
É evidente que quando o marxismo se apr esenta tao concreta, apressa-se em dar-lhe uma aparência
sob seu verdadeiro aspecto e não sob o da caricatura subjetiva e irracionalista.
concebida por Sartre, percebe-se imediatamente sua É assim quando examina o problema do trabalho.
incompatibilidade fundamental com o existencialis- Torna de Marx a estreita ligação causa-efeito e
mo. Com efeito, enquanto este ú ltimo limita-se - ao meio-fim na sua definição do trabalho. Mas a mi s-

126 127

$$
tificação existencialista começa logo: o fim, para bomba atômica, enquanto na realidade o projeto deve
Sartre, é qualquer coisa "que não existiu no Uni- sua existência à exploração da ciência para fins im-
verso antes" (Temps Modemes, t. X, p. 19) e assim, perialistas.
o conhecimento dialético correto do trabalho, a prio- É .evidente que essa concepção idealista do "pro-
ridade do fim em cada processo de trabalho encon- jeto" não tem lugar para o trabalhador que trabalha
tram-se desfigurados e esvaziados de seu sen tido. efetivamente. Eis porque a análise sartreana do tra-
Pois,· assim como He el havia reconhecido, a possi- balho considera seu objeto com um certo desliga-
bilidade de fixar um fim, isto é, a possibilida e de mento nobre. O trabalhador, diz em substância Sar-
. atingir, na realidade objetiva, o fim subjetivamente tre, descobre sua liberdade no trabalho, mas essa li-
fixad o, pressupõe um certo conhecimento da realida- berdade não corresponde ao ideal existencialista. "É
de objetiva; e não é sem razão que a teleologia é, em o determinismo da matéria que lhe oferece a primei-
Hegel, "a verdade" do mecânico · e do químico. O ra imagem de. sua liberdade'' (Temps Modernes, t.
marxismo vai aliás mais longe, porque reconhece ~ X, p. 15).
o próprio fim decorre da realidade social, que o de- Não é por acaso que Sartre manifesta aqui seu
termina nas suas possibilidades de realização. descontentamento. A liberdade que o trabalhador des-
Ora, eis o que essa construção que não pode ser cobre no trabalho - não, naturalmente no trabalho
mais clara torna-se na mitificação sartreana: "Po- I
enquanto relação inter-humana e social, mas no tra-
de-se dizer, nesse sentido, que o átomo foi criado pela balho enquanto relação material entre a sociedade e
bomba atômica (? G. L.), a qual não poderia ser a natureza - essa liberdade é, com efeito, a liberdade
compreendida senão a partir do projeto anglo-ame- autêntica e real: a que é necessidade reconhecida. É
ricano de ganhar uma guerra" (Temps Modemes, baseada num conhecimento aproximativamente ade-
t. X, p. 19). A palavra "projeto" é aliás uma das quado da realidade objetiva, se bem que esse conhe-
fórmulas mágicas do vocabulário existencialista. Bas- cimento não 'se manifesta sempre de maneira cientí-
ta tê-la pronunciado, para que os existencialistas acre- fica ou mesmo consciente. O trabalho está estreita
ditem ter resolvido o problema. Neste caso, essa e necessàriamente ligado à matéria, ao utensílio etc.,
fórmula deveria servir para dissimular o fato de que e isso afasta bastante seu caráteli dessa " perfeição"
o "projeto" da bomba atômica só pôd·e surgir em da liberdade, própria às especulações que se desenro-
funçã o de um certo grau de evolução do capitalismo lam no vazio da intelectualidade pura, que forma as
imperialista e que esse "projeto" pressúpõe um certo bases do conceito de liberdade formulado em L'être
grau da evolução da natureza - que existe indepen- et le Néant. Sartre define essa inferioridade onto-
dentemente da consciência humana - ou mais con- lé_gica do trabalho, declarando que, para o operário,
cretamente, um certo grau de evolução do nosso co- "a idéia da libertação está ligada à do determinismo"
nhecimento do átomo - que existe igualmente fora (Temps Modernes, t. X, p. 16) e que as relações in-
de nossa consciência. Essa dissimulação permite con- ter-humanas são, para o operário, as entre "liberdade
. siderar o átomo como uma criação do "projeto" da tirânica e obediência humilhada". A essas relações,
128 129
o operário substitui de início a relação entre o homem reais : a fo rça de trabalho de todo trabalhador -
e o objeto, que ele domina e, el)l seguida - porque para não abandonar o exemplo eirado por Sartre -
o homem que domina os objetos é ele mesmo objeto é a única mercadoria cuja venda pôde assegurar sua
- a relação entre as coisas. "Quando todos os ho- subsistência. A compra e a venda dessa mercadoria
mens são coisas, diz ele, não há mais escravos" criam - independentemente de toda consciência -
(Temps Modernes, t . X, p. 16). relações sociais entre os homens, que parecem ser re-
Sartre considera portanto como idênticos os pro- lações entre coisas. A análise marxista da reificação
cessos de trabalho enquanto tais (a relação entre a consiste precisamente em descobrir sob essas rela-
sociedade e a natureza) e o trabalho enquanto base ções, ou mais exatamente, nessas relações - as re-
de relações entre as diversas classes da sociedade. lações humanas ( entre classes). A ontologia de Sar-
Esses dois aspectos· do conceito do trabalho for mam, t re vai num sentido oposto. A estrutura da consciên-
certamente, uma unidade dialética na sua evolução, cia, tal como se forma no capitalismo, é por ela pro-
mas Sartre não deixa de cometer um erro conside- clamada a "situação'' decisiva do trabalhador. É a
rável ao escamotear pura e simplesmente a di- partir dessa "situação" que deduz uma "fenomeno-
ferença essencial que os separa, e que faz com que logia:" do trabalhador, inexistente na realidade e que
eles ajam de uma maneira totalmente diferente so- desfigura totalmente todos os fatos. Enquanto que
bre a consciência do trabalhador. O processo do· tra- na realidade, a libertação dos trabalhadores significa
I
balho produz, necessária e espontaneamente, um ma- .a supressão, o aniquilamento de todas as relações r ei-
terialismo prático. Sem um conhecimento aproxima- ficadas entre os homens, Sartre faz coincidir o ideal
tivo da realidade objetiva é, com efeito, impossível de liberdade do trabalhador com a univer salização sem
efetuar o trabalho mais primitivo. . A compreensão limites da reificação: Essa ontologia dá nascimento
materialista do caráter social do trabalho só pode, ao à ilusão segundo a qual a reificação capitalista não
contr ário, realizar-se lentamente, através de crises e existiria na realidade social objetiva, isto é, tanto na
como resultado de séculos de lutas de classes. En- consciência do capitalismo como na do trabalhador,
guanto trabalhadores, os operários ingleses eram, no mas somente na deste último:" Assim, a reificação
iriício do século XIX, tão materialistas espontâneos seria apenas o fruto do comportamento do trabalnã-
,q uanto os escravos do Egito antigo (se bem que com dor em relação à realidade. É o que permite a Sartre
um grau de conhecimento mais elevado), mas enquan- concluir, não sem analogia com certos autores pré-
to Ludistas, sua ação era puramente idealista, isto fascistas, que a "concepção materialista é a dos opres-
é, g uiada por representações subjetivas e fa lsamente sores" (Temps Modernes, t. X, p. 20). É ainda assim
sociais, desprovidas do conhecimento da realidade so- que ele chega a cuidar de um certo efeito, declarando
cial objetiva. que "o mito do materialismo" é o único "que convém
Vê-se a conclusão de sse pretenso aprofundamen- às exigências da revolução" (Temps Modemes, t. X,
to da teoria marxista na reificação, operado pela on- p. 21). Segundo ele, a concepção do pragmatismo
tologia fundamental. Marx constata fatos sociais não poderia satisfazer os revolucionários e "inven-
130 131
tou-se o mito materialista" (Temps Modernes, t. X, na existência e consc1encia sociais do burguês e do
p. 25). proletário. "A classe possuidora e a classe do pro-
É com tais argumentos que Sartre pretende des- letariado, escreve, representam a mesma alienação
truir o edifício teórico do marxismo. Tranquilize- humana, mas a primeira se sente à vontade nessa
mo-nos: o marxismo, ao qual isto não ocorre pela auto-alienação, que experimenta como sua própria
primeira vez, resiste muito bem. Em lugar do mar- afirmação, que sabe ser seu próprio poder e na qual
xismo, Sartre oferece à juventude "as noções novas" possui a ilusão de uma existência humana. A segunda
(Temps Modernes, t . X, p. 29) de "situação" e de se sente aniquilada na alienação, que representa para
"ser-no-mundo", de que mais tarde analisaremo~ a ela sua própria impotência e a realidade de uma exis-
significação real. Oferece-lhe também - perspectiva tência desumana".
absolutamente inédita - a certeza de que, o homem O próprio Marx designa, é evidente, uma pos-
sendo livre o triunfo do socialismo é incerto. O so- si bilidade para os não operários de se tornarem revo-
. ·
c1ahsmo e· -' claro - um " proJeto
· h umano " . "Sera' lucionários. Basta pensar nas indicações bem conhe-
o que os homen s dele farão" (Temps Modernes, t. X, cidas do Manifesto Comunista, sobre as quais tere-
p. 30). De passagem, Sartre tem o cuidado de trans- mos ocasião de voltar. Mas Sartre quase não pode
formar um texto do Manifesto Comunista, onde tem aceitar essa teoria e é precisamente aí que se mani-
sua importância e sua significação concreta, em um I festa o ponto mais fraco, a debilidade irracionalista
lugar-comum abstrato e desprovido de sentido. da couraça existencialista. O existencialismo recusa-
Mas todos esses ataques e todos esses contra- se atribuir um papel decisivo, na gênese das decisões
sensos tendem para tim objetivo definido. Sartre dos homens, às opiniões e às idéias, em uma palavra,
tenta, com efeito, ligar sua aceitação ideológic~ da aos reflexos da realidade objetiva na consciência hu-
revolução à " situação" dos oprimidos e fazer disso, mana. De uma maneira muito caracter ística, Sartre
ao mesmo tempo, uma filosofia universal que não seja opõe fo rmalmente a ação prática à contemplação. Pa-
mais o bem exclusivo de uma classe. Quer mostrar ra ele, essas dua s noções excluem-se mutuamente,
como é possível chegar à revolução quando se pertence a tal ponto que considera o• conhecimento objetivo
a uma classe não-proletária ou mesmo à burguesia. como decorrente da "situação"• dos conservadores:
"Um burguês opressor é oprimido por sua opressão" o pensamento conservador, diz Sartre "declara que
(Temps Modemes, t. X, p. 131). Sartre pode assim contempla o mundo tal qual é. Considera a sociedade
metamorfosear, por meio de uma nova operação da e a naturezâ do ponto de vista do puro conhecimento
ontologia fundamental, uma outra idéia marxista em sem confessar que sua atitude de estrita epistemolo-
um Jugar-comum abstrato e absurdo. Engels mostra, gia tende a perpetuar o estado presente do universo,
com efeito, como o burguês, e até mesmo o aposentado porque persuade que se pode antes conhecê-lo do que
desocupado estão submetidos às leis da divisão ca- mudá-lo e que, ao menos, é necessário conhecê-lo
pitalista do trabalho e Marx descreve com muita cla- _para mudá-lo" (Temps Modernes, t. X., p. 5). O que
reza a unidade dos elementos comuns e antagonistas é justo nessas poucas frases, a saber, a nulidade de

132 133
• 1

uma teoria destacada de toda prática e a hipocrisia as leis igualmente objetivas que a regem, então o fato
de um conhecimento que se pretende puro, é-nos co- muito simples de haver graus na compreensão desses
nhecidas pelas célebres Teses de Karl Marx sobre problemas e que uma compreensão mais completa es-
Feuerbach, que datam de 1845. Sartre acrescenta timul a a ação pessoal e. mesmo a dos outros torna-se
a recusa em admitir o conhecimento da realidade en- um enigma. É d·e sagradável, mas não é o marxis mo
quanto condição prévia da sua transformação. Atri- · responsável por isso. Após ter extinto todas as luzes
bui essa recusa aos conser vadores, por meio de uma do conhecimento objetivo, não é ao marxismo, mas
estranha contemplação fenomenológica da essência, unicamente a si mesmo que Sartre deve reprovar
se bem que a teoria do conhecimento conservador por se encontrar no escuro ...
ignora esse ponto de vista, que não foi jamais formu-
lado por pensadores conservadores: 4.
Teremos ainda, ao fala r dos trabalhos de Simone
de Beauvoir e de Maurice Merleau-Ponty, ocasião de A MORAL DA AMBIGOIDADE E A
voltar às conseqüências desse repúdio do papel social AMBIGOIDADE DA MORAL EXISTENCIA.LISTA
e moral do conhecimento. No momento, limi tar-nos-
emos a notar que, na maior parte dos casos 1. as obje- Em Simone de Beauvoir, as contradições inter-
ções de Sartre contra o marxismo significam sim- nas do existencialismo são ainda mais visíveis que
1
plesmente que é absolutamente incapaz de compreen- no próprio Sartre. Ela propõe-se completar as bases
dê-lo. É ele que se recusa a reconhecer a influência ontológicas da doutrina existencialista pela junção de
decisiva do conhecimento das situações e das forças un,a moral. Mas - fato notável, se bem q.ue não
sociais e é ele que proclama o marxismo incapaz de tenha nada de espantoso - suas análises morais cons-
explicar o fenômeno da consciência de classe. "Um t ituem igualmente discussões com o marxismo, com
estado do mundo não poderia jamais produzir uma o fato da existência da União Soviética, com as exi-
consciência de classe", diz ele em Temps Modemes gências que o Partido Comunista coloca a seus mem-
(t. X, p. 13). Acrescenta mesmo que os marxistas bros e às ma ssas, e assim pc,r....diante. Apenas cita
bem sabem em que se ater a esse respeito, porque aqui e ali os outros sis temas de mor al, enquanto
enviam seus funcionários entre as massas, a fim de trava uma polêmica em regra com o marxismo, o
radicalizá-las e de despertar sua consciência de classe. qual, diz-se, não tem moral. Isto testemunha um
Mas, pergunta Sartr e triunfante, "esses pr óprios robusto senso de realidade em S. de Beauvoir, porque
íuncionários, onde adquirem sua compreensão da si- sente muito bem qu~ essa camada de intelectuais cujo
tuação? " (lbid.) Claro: quando se .nega que o co- sentimento obscuro corresponde ao existencialismo
nhecimento é o reflexo da r ealidade objetiva na cons- experimenta os problemas colocados pelo marxismo
ciência, quando se faz da ação r evolucionária um como uma tentação de se desviar do existencialismo.
fetiche independente, que não tem mais nenhuma re-
lação com o conhecimento. da realidade objetiva e com ( 1) Face ao nada. (em francês no original).

134 135

L
A doutrina de Kant ou de Hegel, a dos estóicos ou Nos dois casos, a concretização marxista das re-
dos epicuristas poderia ser perfeitamente combatida lações históricas e sociais entre os homens pela eco-
à força de argumentos puramente acadêmicos. A nomia e pela transformação histórica da estrutura
existência do marxismo equivale, ao contrário, do econômica da sociedade permanece completamente
ponto de vista da constituição de uma moral exis- escamoteada. Não se trata de um mal-entendido for-
tencialista, a uma "situação". tuito. A fenomenologia procede à exploração de um
Inversamente aos métodos empregados por Sar- objeto, colocando o problema de sua realidade "entre
tre, o debate não se reduz, desta vez, a um ataque parênteses". Das correlações fenomenológicas, tira
demagógico. S. de Beauvoir tenta, ao contrário, in- conclusões ontológicas e isso leva não só ao desa-
terpretar o marxismo como se fosse possível recon- parecimento, no plano da metodologia e no da teoria
ciliar as duas doutrinas, "melhorando" ou "comple- do conhecimento, da realidade concreta do objeto, co-
tando" o marxismo, pela junção de certos princípios mo também à privação na sua representação feno-
existencialistas. É assim, por exemplo, que tenta sub- menológica ou ontológica de suas características reais
jetivar o marxismo: Marx não considera que certas mais importantes. A redução que está operãda, assim,
situações humanas sejam em si absolutamente pre- nada mais é, para retomar uma expressão de Marx,
feríveis a outras; são as necessidades de um povo, do que uma "abstração razoável", porque desfigura
as revoltas de uma classe que definem os meios e os as relações mais importantes.
fins ; é do seio de uma situação recusada e à luz dessa O pensamento burguês atual atravessa uma cri-
recusa, que um estado novo aparece como desejável se. Debate-se continuamente entre um empirismo
(Temps Modemes, t. XIV, p. 200). E S. de Beauvoir não teórico e a abstração vazia de todo conteúdo real.
vai até acrescentar - de uma maneira completamente A razão metodológica dessas dificuldades ( que se ex-
artificial, se se considera o conjunto de seu ponto de plicam naturalmente pela realidade social) reside
vista - que essa vontade afunda suas raízes estra- simplesmente no fato de que suas categorias de base
nhamente na realidade histórica e econômica. Na referem-se a um homem abstrato, supra-histórico, a
interpretação que dá de Marx, entretanto, essa re- ·partir do qual não é mais pos-shel voltar aos proble-
lação é completamente episódica: temos quase a im- mas da realidade histórica do pEesente. A grandeza
pressão que, no lugar da história, Marx teria escrito da filosofia grega era uma conseqüência da utilização
uma fenomenologia ou uma ontologia fundamental dos espontânea pelos grandes pensadores da Antigüidade
movimentos das massas. E quando se .trata do pro- das absfrações provenientes da realidade histórica da
blema da revolução, a atitude de S. de Beauvoir per- vida da cidade. A homogeneidade relativa do cort-
manece a mesma: "A revolta não se integra no de- junto social que tiveram em vista - porque os es-
senvolvimento harmonioso do mundo, não quer nele cravos não contavam para eles - permitia-lhes rea-
se integrar, mas antes explodir no coração desse mun- lizar uma certa unidade original: o geral e o fato
do e quebrar-lhe a continuidade" (Temps Modemes, histórico concreto. Quanto aos grandes pensadores
t. XVI, p. 465). do período de nascimento da sociedade burguesa -

136 137
Kant deve ser considerado como o último elo da corren- todos os elementos históricos e sociais, todas as bases
te - ·estavam tão exclusivamente voltados para esse econômicas de sua existência, tôda a "produção e a
mundo novo em gestação e repudiavam tão resoluta- reprodução da vida real" (Engels), todas as relações
mente o passado feudal enquanto nada filosófiço; não sociais entre o homem e a natureza, expressas pela
conforme à razão, que chegaram· a uma unidade ló- estrutura econômica concreta de tal ou tal período
gica e a uma construção monumental. Sem dúvida, histórico da sociedade humana - quando se eliminou
desde que a crise terminou e que, com a _Revolução tudo isso, não se pode senão ajuntar aqui e ali alguns
Francesa, o caráter historicamente passageiro. dessa elementos que nada mais serão, no entanto, que parce-
sociedade se tornou manifesto, a unidade lógica des- las empíricas e inorgânicas. É impossível suprimir
sa construção tornou-se contestável. A aplicação, post festum o isolamento artificial do indivíduo, mes-
por imitação desses mesmos métodos e dessas mes-
mo que o tenhamos ornado de categorias tão pompo-
mas categorias a uma realidade cada vez mais passa-
geira levou a esse dilema feito de empirismo e de sas como as de ser-com-outro ou de ser-no-mundo.
abstração de que falamos acima. Esse isolamento fenomenológico ou ontológico falseia
No domínio dessa questão capital, a fenomenolo- a tal ponto a essência do conhecimento do homem que
gia fundamental não ultrapassa em nada os horizon- as constatações, empiricamente corretas, de fatos
tes da filosofia burguesa de nosso tempo. A histori-
cidade do Dasein constitui, certamente, - na sua de-
, econômicos, não podem mais admiti-la. Para reali-
zar a noção concreta, histórica e social do homem, é
finição verbal - um dado primeiro da ontologia de necessário de início compreender que as categorias
Heidegger. Mas rejeitando, enquanto temporalidade da economia são perfeitamente "formas de existên-
"vulgar," a história econômica e social, a única con- cia" e "determinações do ser" (Marx) .
creta e verdadeira, tomando o indivíduo isolado e suas Mas voltemos às nossas citações do texto de S.
experiências vividas como ponto de partida, Heidegger de Beauvoir. A primeira faz desaparecer a evolução
serve-se de instrumentos teóricos que são sensivelmen- das forças de produção, assim como a contradição
te da mesma qualiqade dos de outros pensadores bur- que nasce entre as forças de i)'rôdttção e as condições
gueses. A essência da "realidade humana" (isto é, de produção e com ela desapa;rece todo elemento
o homem), assim como o núcleo ontológico de suas concreto das situações históricas nas quais se fo rmam
situações mutáveis permanecerá para ele, como para as vontades descritas por S. de Beauvoir. Sartre,
seus discípulos franceses, abstrata e supra-histórica. como vimos, acusa Marx, sem razão, de negar toda
Esse fato encontra em Simone de Beauvoir uma ex- ~ ubjetividade. Provamos a falsidade dessa acusação:
pressão muito clara: "Nenhuma subversão social, ne- o fator subjetivo da história humana é, como vimos,
nhuma conversão moral pode suprimir essa privação de uma importância capital para o marxismo, mas
que está em seu coração (do homem) " (Temps Mo- somente em ligação completamente íntima com o
demes, t. XVII, p. 848). Mas quando se eliminou fator objetivo, .e sobre a base do fator objetivo. Mes-
da "essência" do homem, com um rigor metódico, mo quando o marxismo enfrenta uma realidade que
138 139
parece ser, à primeira vista, de ordem subjetiva, pro- mântica, S. de Beauvoir não ultrapassa, portanto -
cura imediatamente descobrir, em sua base, o fator a. despeito de suas conclusões opostas - os hori-
objetivo, com freqüência difícil de revelar diretamen- zontes do romantismo filosófico e sociológico. . De-
te. Analisando a posição economicamente falsa dos ve-se a Hegel o mérito de ter interpreta.do as revo-
discípulos radicais de Ricardo, que tinham tirado da luções enquanto elementos dialéticos da continuidade
teoria da mais-valia de seu mestre conclusões revolu- da história ; Marx proveu de um fundamento eco-
cionárias e socialistas, Engels escreve: "Mas o que nômico a "linha nodal das relações de medida" de
é formalmente falso, do ponto de vista dà economia, Hegel e deu-lhe . assim um sentido histórico e social
pode ser ainda justo do ponto de vista da história. concreto. Mostrou, principalmente na análise da
Quando a consciência moral das massas condena um acumulação primitiva, que se trata de uma alternân-
fato econômico, como antigamente a escravidão ou cia econômica e historicamente necessária, de perío-
a corvéia medieval, isto prova que este fato sobreviveu dos ou de épocas revolucionárias e "normais". A
a si mesmo, que outros fatos econômicos intervieram, continuidade da história consiste portanto - para re-
em virtude dos quais os primeiros se tornaram into- tomar o estilo caro a Hegel - em uma unidade dialê-
leráveis e indefensáveis. Portanto, atrás do erro tica da continuidade e da descontinuidade, contendo
econômico formal, pode-se esconder um conteúdo eco- as duas .nela.
nômico per.f eitamente correto." A exegese que S. ~e Essa tendência à abstração e à desfiguração, ine-
Beauvoir dá de Marx é apenas um existencialismo rente aos métodos _da fenomenologia e da ontologia.
aplicado à "psique coletiva", mas nada tem a ver determina o caráter da questão central que preocttpa
com o marxismo nem com a realidade histórica. S. de Beauvoir. Trata-se do problema da violência
A desfiguração própria aos métodos da f enome- e da posição moral frente a ela. S. de Beam·oir põe
nologia e da ontologia, contida na segunda citação ti- a questão com muita clareza. Para ela, toda vio-
rada de S. de Beauvoir, manifesta-se pela polarização lência é um escândalo, mas, por outro lado, reconhece
da noção de revolução e a da continuidade histórica. que nenhuma -ação política é possível sem violência.
Trata-se, sem dúvida, de um procedimento que é moe- Dtclara então, de uma maneira• bem kantiana: "Po-
da corrente na literatura burguesa.. Burke foi o pri- .demos desculpar todos os delitos e mesmo todos os
meiro a considerar a Revolução Francesa como um critúes pelos quais os indivíduos se afirmam contra
' fenômeno "a-histórico", interrompendo a continuidade a sociedade, mas quando deliberadamente um homem"
: da história. E por intermédio do romantismo alemão, empenha-se em rebaixar o homem a.o nível de coisa.
e notadamente da escola da filosofia histórica do faz explodir sobre a terra um esc~ndalo que nad~
direito, que essa polarização rígida chegou até as pode compensar" (Temps Modemes, t. V, p. 828).
ciências morais modernas. Retomando por sua conta Ela própria reconhece, entretanto, se bem que a pro-
e a.plicando à revolução, com uma simpatia muito ní- pósito de uma outra questão, que uma tal atitude
tida, essa polaridade que data de um século, prove- conduz a uma contradição insolúvel: "Não chegamos
niente do arsenal espiritual da contra-revolução ro- assim a condenar a ação como criminosa e absurda,

1.40 ,~,
condenando no entanto o homem à ação?" (Temps até a atualidade mais recente. (Tenho entretanto
Modemes, t. XVII, p. 854). de observar, de passagem, que a distinção entre pré
S. de Beauvoir não se contenta, é evidente, em e pós-revolucionários é um pouco esquemática. A
anunciar pura e simplesmente essa contradição. Mas condenação da violência nos socialistas utópicos, por
antes de entrar na análise da solução que esboça, exemplo, manifesta de um lado à insuficiência de
permitarrto-nos algumas observações a respeito da desenvolvimento do capitalismo e do proletariado, ao
maneira pela qual ela coloca a questão. Não pre- mesmo tempo que constitui uma ressonância da der-
tendemos fazer um argumento do fato de que essa rota do jacobinismo plebeu na Revolução Francesa.)
maneira não é completamente inédita. Trata-se, com O que precede permite, de qualquer forma, cons-
efeito, bem menos de discutir a originalidade do exis- . tatar que a condenação radical da violência, enquanto
tencialismo, que determinar em qual medida ele é instrumento de libertação, foi até a presente da his-
suscetível de bem colocar e de bem resolver as gran- tória um sintoma de fraqueza social. Fraqueza, por·
des questões do nosso tempo. Se nos permitimos, que significa ao mesmo tempo o recuo ante os meios
portanto, algumas observações históricas concernen- de realização e idealização utópica da ordem social
tes a esse problema, não será para decidir a questão sonhada. A violência da opressão constitui o fator
da prioridade literária, mas para tentar elucidar a mais diretamente perceptível da ordem social conde-
gênese social da maneira de colocar esse problema. nada e objetivamente cada vez menos sustentável.
Coloca-se, antes de tudo, depois das revoluções esma- O período preparatório das revoluções e, mais parti-
gadas; assim a encontramos desde o século XVII, cularmente, as etapas que seguem as revoluções es-
em certas seitas protestantes, na Inglaterra e na Es- rirngadas, obrigam as classes dominantes a transgre-
cócia, após a derrota da revolução russa de 1905, en- dir os limites de stia própria legalidade e a recorrerem
quanto interpretação mais ampla da doutrina tols- a meios de coerção ilegais. Segue-se que a oposição
toiana: "Não resistir ao Mal", e também após o re- abstrata da não-violência à violência e a idealização
fluxo da maré revoluci9~ária de 1918, sob as formas t1tópica de uma não-violência.:o ..integral são perfeita-
do expressionismo, do gàndhismo etc. Mas esta ques-
mente compreensh·eis entre todos aqueles que se as-
tão surgiu também no decorrer dos períodos pré-re-
sustam com a ação revolucionáriá; perfeitamente com-
volucionários, e então exprime a desordem, a desor-
dem diante do que se prepara. É característica de preensíveis, mas também perfeitamente reveladoras
certas épocas nas quais a ordem social herdada do no plano social.
passado se desfaz entre manifestações mais ou me- Com·ém acrescentar que. desde que a despertar
nos explícitas, quando as condições objetivas e subje- das classes oprimidas se manifeste por uma série de
tivas da revolução não atingiram ainda sua pleqa -'ãtos revolucionários e que a revolução triunfe em uma
maturidade. É fácil constatar a presença de certas parte do mundo, os literatos assalariados ou volun-
corrente ideológicas da não-violência, desde os anaba- .- tários das classes dirigentes desencadeiam uma cam-
tistas, passando pelos socialistas utópico? e Tolstoi, panha de propaganda intensa contra a violência. Esta

142 143
propaganda silencia ou justifica todos os ~t~s de vio- ,clandestino e do ilegítimo. As medidas de violência
lência dos opressores, lançando em descred1to moral éodificadas e prescritas pela lei não são, ao contrá-
todas as medidas de violência decretadas pela revo- rio, consideradas corno dependentes da categoria da
lução. Em nossos dias, é o jornalista Arthur Koes- violência. O arbitrário e o absurdo de uma tal dis-
tler que pode ser considerado como o representante criminação não escapam, sem dúvida, a nenhuma fi-
mais escandaloso desta tendência ideológica imperia- losofia ou sociologia do direito digna deste nome,
lista reacionária. Assim, por exemplo, o herói trots- desde Maquiavel até Max Weber. Seja-nos permi-
kista do romance anti-soviético de Koestler - herói tido citar a fórmula imaginosa e muito expressiva
que o autor tem o cuidado de apre~entar sob. o ~s- da qual se serviu este último para defioit a essência
pecto de marxista ortodoxo, bolchevique de primeira do direito: há direito quando após a transgressão de
hora - escreveu em seu diário: "Fomos os primei- , seus limites chegam os homens de capacete e espada
ros a substituir a ética liberal do século XIX, funda- __para obrigar as pessoas a respeitá-las
da no fair play, pela ética revolucionária do século Não é totalmente certo que S. de Beauvoir utili-
XX", que significa, como o prova o conjunto do livr?, ze a palavra violência nesta acepção, certamente mui-
a ética da violência. Os feitos e gestos da burguesia to ampla, mas a única cientificamente correta. De
do século XIX, desde os massacres de Peterloo, até qualquer modo, quando se quer discutir cientificamen-
a Semana Sangrenta de Paris, a repressão da revolu- te a questão de saber se a moral deve admitir ou
ção russa de 1905 por Stolypin e seus c~mplices etc., condenar a violência, é esta concepção mais ampla
compõem então, aos olhos de Koestler, a moral do do termo que deve servir de base. Seria, com efeito,
fair play. A bem dizer, um assalariado da burguesia, muito difícil traçar um limite - sobretudo para a
do gênero de Koestler, pode perfeitamente maltratar moral individua lista "do existencialismo - entre a
a história com uma tal brutalidade, sem nos assom- execução de um traidor pela Resistência, por exem-
brar. Mas é lamentável que Sartre e Merleau-Ponty, plo, e a votação de uma lei determinando pena de
bem como S. de Beauvoir, 'levem a sério as teorias morte para os traidores da pátria.
de Koestler. Mas assim, a antinomia.; fürgida no raciocínio
Dito isto, uma nova questão preliminar se im- de S. de Beauvoir apresenta-se- diante de nós sob
põe, concernente à ideologia da não-violência. Lem- uma nova luz. Sabe-se, com efeito, que o direito, ou
bremos a polarização absolutamente rígida que S. de seja, o emprego legal da violência "( da mesma forma
Beauvoir estabelece entre revolução e evolução con- aliás que a revolta dos oprimidos cont ra ele) resulta
tínua. Esta polarização manifes.ta, como já mostra- da divisão da sociedade em classes. Esta mesma
do· sintoma totalmente geral no pensamento burgues
.
mos , o caráter a-histórico de sua concepção do num- divisão da sociedade é necessariamente responsável
pelo fato de que, em toda ordem social, somente uma
m~derno. Ora, em razão de sua atitude essencialmen- parte de interessados pode encontrar-se de acordo
te a-histórica, a maior parte dos pensadores burgue- com o conteúdo e a .orientação do direito que se ma-
ses classificam a violência na categoria especial do nifesta pelo emprego legal da violência, enquanto a
144 145
outra parte tenderá sempre a obter a modificação É assim que, fatalmente, a questão seguinte se
de seu conteúdo e de sua orientação. coloca: pode-se conceber uma ética inteligente e con-
. Como pode o emprego da violência, em tais con- seqüente, que considera um dos fatos mais freqüen-
dições, cor~tituir .um problema moral ou, para recor- _tes da existência social como um escândalo, sem
rer à ·expressão d~ S. de Beauvoir, ser um escândalo? se dispor, em primeiro lugar, a suprimir este escân-
As ideologias religiosas podem com todo direito ver dalo? Sublinhamos a palavra social; é evidente, com
nisto um escândalo, porque para elas, tudo é fun- efeito, que nenhuma ética pode propor-se a supressão
ção de salvação eterna da alma humana. Pouco im- d?s elementos da natureza. (Exceção feita, sem dú-
vida, de casos onde a supressão, querida pela ética,
porta, no momento, se a condenação da violên~ia. ex-
de suas exteriorizações sociais, os suprimisse igual-
prime então as esperanças de revolta dos oprnmdos mente)
oú s.e essas esperanças lh es são simplesmente atira-
das como pasto pelas classes dirigentes. Tanto num A atitude de S. de Beauvoir e a dos outros exis-
tencialistas nesta questão revela claramente o caráter
caso como rio outro, a existência humana neste mun-
inorgânico da gênese de sua doutrina. Heidegger na-
do constitui somente um prelúdio mais ou menos des- da mais fez na realidade do que suprimir o Deus de
prezível ante a vida eterna e a condenação mo_ral de KierkeS'aard, tomando-lhe, sem nenhuma modificação
todo recurso individual à violência nada mais faz profunda, o conjunto de suas categorias, ao qual no
Í
que . sublinhar que o mundo terrestre carece _de im- entanto, somente a referência a Deus pode dar um
portância verdadeira e não deve mesmo ser J~lgado sen_tido imanente. Quanto a Sartre, apenas seguiu
do ponto de vista da moral, qualquer que seJa . sua o exemplo de Heidegger. É isto que explica ainda que
estrutura social. "Dai a César o que é de César ... " Ja~pers P?de constr uir paralelamente às concepções
Não são assim as ideologias que rejeitam a cren- he1deggenanas um existencialismo de traços protes-
ça na continuação e no remate da vida humana no tantes e que existe na França, ao lado da escola de
além. O único campo de atividade possível para Sartre, um existencialismo católico. As antinomias e
estas ideologias i precisamente a vida terrestre, is to os d I·1 emas entre os quais
. se ~aebãte
.. S, de Reauvair
é, a vida concreta e real, tal como os homens a levam s~o~ em grande parte, o fruto des sa teologia existen-
no interior de um sistema social concreto, que com- c1ahsta sem Deus. A eliminação pura e simples de
porta classes diversas e que dá lugar ao problema da Deus leva, quando se trata de um sistema teológico
legalidade do recurso à violência. A moral de uma c?nseqüente, à elimina ~Q 9e toda a objetividade e
tal ideologia deve então ater-se estritamente às con- _so pode resultar, em última instância, num niilismo.
dições de uma tal exigência terrestre. É assim para Mas S. de Beauvoir recusa-se - e isto a honra -
o existencialismo ateu após a intervenção de Hei- concluir por uma moral niilista. Empreende muitas
degger, enquanto que para Kierkegaard, a salvação tentativas para escapar ao inevitável. Veremo~, en-
celeste da alma representa ainda a conclusão reli- tretanto, que suas tentativas estão todas fadadas ao
giosa da moral. fracasso, por causa do forma.lismo de sua doutrina
'
146 147
formalismo que não deixa de se relacionar com a de manter um regime que lev-.a a uma imensa massa
teologia sem Deus. É assim que ela se propõe a de homens uma melhoria de sua sorte" (id.). Muito
julgar moralmente a atitude face à violência, segun- bem. Mas desde que se trata de tirar daí uma con-
do o fim que essa violência parece servir: "Repudia- seqüência qualquer, essa afirmação mostra-se pura-
mos todos os idealismos, misticismos etc., que pre- me~te gratuita, porque seu próprio método não po-
ferem uma Forma ao próprio homem. Màs a ques- deria oferecer-lhe o menor início de um critério. Res-
tão torna-se inevitavelmente angustiosa quando se ta-lhe apenas, então, o abandono da moral da inten-
trata de uma causa que serve autênticamente o ho- ção abstrata do existencialismo por uma moral do
mem" (Temps Modemes, t. XVII, p. 865) . S. de resultado, também abstrata. Coloca então a questão:
Beauvoir pensa colocar aqui o problema da União "A morte de Bukarin opomos Stalingrado; mas se-
Soviética. Não temos a intenção de voltar a questões ria necessário saber em qual medida efetiva os pro-
já tratadas e não queremos aborrecer S. de Beauvoir cessos de Moscou aumentaram as possibilidades da
e perguntar-lhe por que meios o existencialismo pode vitória russa" (id.). Numerosos são aqueles - e
julgar se uma ordem social é susceth·el de servir o não somente entre os comunistas mas também entre
homem. Sabemos, ao contrário, que proclamando os observadores burgueses, com a condição de não
querer a liberdade de todos, Sartre coloca-se em con- s_erem nem trotskistas nem agentes de um imperia-
tradição com os próprios fundamentos de sua dou- ltsmo - que estão em condições de dar a essa inter-
trina: quanto a S. de BeauYoir ela própria barra o rogação uma resposta muito precisa. Mas fora disto,
caminho da solução do problema rejeitando, com uma não podemos nos impedir de perguntar de. que ma-
perfeita ortodoxia existencialista, todo "mito do fu- neira uma tal resposta poderia ser considerada satis-
turo " (Temps Modernes, t. XVII, p. 854), isto é. fatória para o existêncialismo. Com efeito, a moral
toda perspectiva histórica, para somente admitir co- do e~istencialis1:10 e sua filosofia da história é que
mo real esse "futuro vivo" que surge ·c ada vez con- cons~1tuem o obJeto do debate ; Bukarin e Stalingra-
cretamente do "projeto" do indidduo. do sao somente pedras de toque. A maneira pela
Eis porque, sem relação com sua própria doutri- qual S. de Beauvoir coloca a --questão parece indicar
na filosófica. a resposta de S. de BeauYoir inspira-se que, se esta recebesse uma resposta positiva e pro-
somente no instinto de uma mulher atraída pela li- bante, julgaria a execução de Bukarin plenamente
berdade. Reconhece que a ,·iolência tal como se ma- _justificada.
nifesta no linchamento, por exemplo. corresponde a Muito bem ainda. Somente, raciocinando assim,
''um mal absoluto (pois) representa a sobrevivência S. de Beauvoir faz da utilidade de uma medida (ser-
de uma civilização caduca, a perpetuação de uma vindo, sem dúvida, um fim aceito) o critério de sua
luta de raças que deYe desaparecer" (Temps Moder- moralidade ou de sua imoralidade. Mas o estranho
nes, t. XVII, p. 865-66) . Quanto à Yiolência na União é que, no mesmo estudo, rejeita resolutamente a uti-
Soviética, que examina atraYés da ótica deformante lidade enquanto critério moral e, é pr eciso dizer, do
de um trotskismo koestleriano, admite que "trata-se ponto de vista da moral da intenção, que é a do exis-

148 149

l
tencialismo, esta recusa é perfeitamente justificada. dela decorre não menos necessariamente consiste em
S. de Beauvoir rejeita a utilidade enquanto critério conceber o mundo social dos homens, que existe in-
moral, porque o recurso a esse critério colocaria a dependentemente de sua consciência, como um mun-
moral diante de uma antinomia insolú vel, que ela do mum ificado, de uma objetividade rígida, regido
formula assim: "A única justificação do sacrifício é por uma necessidade inumana, que não poderia ser
sua utilidade; mas o útil é o que serve ao homem" dominada senão tecnicamente. Ora, toda moral dig-
(Temps Modernes, t. XVI, p. 662). na desse nome deve pender para a reconciliação da
Esta hesitação entre a moral da intenção e a liberdade e da necessidade. S. de Beauvoir está aliás
moral do resultado, em que uma é tão fa lsa, tão ex- profundamente consciente des ta obrigação. Seu sen-
tremista e tão abstrata quanto a outra, mostra cla- so da realidade permite-lhe ver que uma moral pu-
ramente que S. de Beauvoir está muito longe de po- ramente individual, que elimina o caráter objetivo e
der tomar posição diante das questões morais con- a necessidade da história, não poderia operar essa
cretas do presente, colocando-se em basas existen- reconciliação. A situação atual assim como o papel
cialistas. Já indicamos a afinidade que liga à ética que nela assume o marxismo, obrigam S. de Beau-
voir a sair do individualismo limitado do existencia-
de Kant a nova fórmula mágica do existencialismo,
lismo ortodoxo. "A reconciliação da moral e da po-
segundo a qual não se pode querer sua própria liber-
lítica, diz (Temps Modemes, t. IV, p. 266), é a recon-
dade sem querer a de todos. Esta afinidade mani-
festa-se também nos destinos da doutrina. A oscila-
ção de Kant entre o idealismo e o materialismo e a
' ciliação do homem com ele mesmo." Mas como essa
r econciliação poderia ser a obra de uma doutrina
cujas definições de base opõem on tologicamente a
ambigüidade de sua posição epistemológica - su- liberdade à necessidade? A própria moral de Kant
blinhadas por Lênin - tiveram por r esultado encur· não pode ultrapassar uma espécie de justaposição
ralar toda sua filosofia teórica num conjunto de an- enigmática e de um dualismo eolét ico da liberdade e
tinomias. . Da mesma forma, S. de Beauvoir, que- da necessidade.
rendo fornecer aos problemas da moral uma solução Como vimos, também S ... de Beauvoir não pode
existencialista, só pode tropeçar sempre contra o mes- ultrapassar o limite de certas antinomias, insolúveis
mo dilema da moral do resultado. para ela. Suas tentativas de solução levam a con-
Não se trata aqui de um acaso. A antinomia r e- juntos ecléticos da moral da int enção e da moral do
sulta inevitavelm ente do fato de que o indivíduo iso- resultado.
lado, erigido em absoluto, constitui tanto o ponto de J á Hegel bem viu que se tratava aí de abstra-
partida como o ponto de chegada desta moral. Isto ções unilaterais, determinadas pelo caráter abstrato
conduz necessariamente a um primeiro erro, segun- do pon to de partida do raciocínio. Diz ele, na sua
do o qual a convicção (Oesinnung) basta a si mes- Filosofia do Direito : "O princípio que quer que se
ma sem relação ao seu objeto, à sua orientação etc. negligencie as conseqüências dos atos e o outro prin-
- para fundar a liberdade. O segundo erro que cípio, que quer que os atos sejam julgados segundo

150 151

h
suas consequencias e que se meça por eles o que é As duas questões que acabamos de tratar sur-
bom e conveniente fazer, dependem um e outro da gem em S. de Beauvoir no decorrer de sua análise
razão abstrata." Certamente Maurice Merleau-Pon- da moral. Não é capaz, certamente, de fornecer uma
ty não deixa de citar esta passagem, mas sem poder resposta satisfatória, mas o fato não deixa de ser
tirar-lhe conclusões úteis. Nele também, como tere- interessante. Nada permite, com efeito, melhor jul-
mos ocasião de ve,r, isto não constitui um acaso. Não gar a situação atual dos existencialistas, obrigados
A possível sair da polaridade abstrata e exclusiva da a meditar sobre questões estranhas à sua metodolo-
intenção e da conseqüência, da subjetividade e ~a gia, questões que lhes são impostas pelo avanço vito-
objetividade, da liberdade e da necessidade, a não ser rioso da doutrina marxista. S. de Beauvoir sabe
~ós ter realizado a ruptura filosófica com o indivíduo
aliás muito bem - e não o esconde - que a princi-
erigido em valor absoluto. Contrariamente ao que
pal obra filosófica de Sartre não poderia fornecer
afirma Sartre, esta ruptura não significa de forma
alguma a destruição da personalidade humana ou da uma base metodológica fértil, em vista da solução
, subjetividade. A solução resulta simplesmente da dos problemas que a preocupam. Desculpa e ao mes-
aplicação correta, a este problema, da relação dialé- mo tempo acusa o livro de Sartre de tratar desses
tica entre o absoluto e o relativo. No decorrer do mesmos problemas num plano diferente ' do seu. "Ao
capítulo seguinte, retomaremos com detalhes esta úl- nível da descrição em que se situa L'Être et le Néant, a
tima questão. Limitar-nos-emos portanto aqui a su- t palavra útil ainda não recebeu sentido: só pode ser de-
blinhar que esta aplicação correta necessita primei- finida no mundo humano constituído pelos projetos do
ramente uma concepção do homem como um ser a homem e pelos fins que ele põe. No desamparo origi-
priori e integralmente social, e que mesmo os pro- nal onde o homem surge, nada é útil, nada é inútil"
blemas mais íntimos do indivíduo mais solitário pos- (Temps Modernes, t. XVII, p. 196). A desculpa
suem igualmente seu a specto social. O problema
como a acusação são antes de ordem sentimental do
da liberdade humana é, ao mesmo tempo, um pro-
blema social e histórico. A liberdade não poderia ter que teórica. Inicialmente, não é verdade que a obra
um conteúdo concreto e uma relação dialética con- de. Sartre não formule ainda os.'projetos e os fins e,
creta com a necessidade, a não ser com a condição além disso, se no seu "desamparo*original" o útil não
de ser compreendida, na sua gênese histórica e so- existe ainda para o homem, como o útil chegaria a se
cial, como a luta do homem contra a natureza, atra- constituir? Mas, para· nós, trata-se menos da quali-
vés da mediação das diversas formas da sociedade. dade dos argumentos de S. de Beauvoir, que do obs-
A gê·nese histórica e social da liberdade deve portan- curo descontentamento que ela deixa tran sparecer.
to ser explicada a partir da sujeição original do ho- Seus escritos estão animados pela vontade de desen-
mem às forças da natureza, assim como às formas volver seu ponto de partida abstrato, sem ter de aban-
da sociedade, nascidas desta luta e que se tornam doná-lo. Não é sua culpa se essa vontade se mostra
uma espécie de segunda natureza. afinal de contas ilusória.

152 153

es
\
Essas ilusões são as melhores testemunhas da cri- da mesma ordem, que confunde o resultado com a
se latente, até agora, inconsciente, que atravessa o origem e o presente com o início.
existencialismo. A explicação da gênese do ser hu- Após a derrota da revolução de 1848 e o fim da
mano, fornecida pela ontologia fundamental de Sar- filosofia hegeliana, que havia empreendido a tentativa
tre e da qual S. de Beauvoir traça uma tímida crítica, de ultrapassar, sem abandonar seu caráter burguês,
nada mais é do que a robinsonada intelectual da ideo- os limites que sua a-historicidade traça ao pensamento
logia niilista e decadente. Na época da formação da burguês, a época das robinsonadas recomeça. So-
ideologia burguesa, Robinson Crusoe, de Daniel De- mente o aspecto das robinsonadas mudou: desde en-
foe, torna-se o ·primeiro romance burguês clássico, tão são mais subjetivas, portanto ainda mais abstra-
enquanto Adam Smith e Ricardo explicam a produ- tas. No domínio da economia, é a teoria marginalis-
ção capitalista e a estrutura da sociedade burguesa, ta, na filosofia é o neokantismo. Um e outro carac-
a partir de operações de troca entre caçadores e pes- terizam-se pela r ejeição de tôdas as definições esta-
cadores primitivos, isolados e solitários. Quando o belecidas pelos clássicos e pela vontade de tudo de-
existencialismo se propõe a explicar o homem moder- duzir da análise da consciência de seus Robinsons
no, seu mundo e seus problemas, a partir . do "desam- isolados, chamados por estes vendedor e comprador
paro original" do homem solitário e abandonado, na- ou mesmo sujeito ético. O caçador e o pescador pri-
da mais faz do que seguir o mesmo caminho. Criti- i( mitivos dos autores clássicos tinham ainda pelo me-
cando as teorias de Adam Smith e de Ricardo, Marx nos a vantagem de caçar e de pescar des próprios
demonstra que esse indivíduo solitário e abandonado a presa e o peixe que trocavam entre si. Os pálidos
é um produto da sociedade capitalista em vias de for- fantasmas da teoria marginalista trocam produtos
mação: "Nessa sociedade de livre concorrência, es- acabados de origem misteriosa, enquanto a ciência
creve, o indivíduo aparece desligado dos laços na- nova da economia propõe-se calcular, segundo seus
turais etc., que fazem dele, nas épocas precedentes da estados de alma, o valor de uma bilha de água no
evolução sociaL o acessório de um conglomerado hu-
mano determinado e limitado." Esse homem, o de
Saara ... . ..
Na evolução dessa tendência., o existencialismo
Adam Smith e de Ricardo, era "o produto, de um atingiu, é preciso dizê-lo, uma altura inigualada até
iado, da dissolução das formas feudais da sociedade o presente. O Saara e a bilha de água em questão,
e, de outro, das formas de produção novas que se mesmo "vistos através do temperamento" do vende-
desenvolveram desde o século XVI." Mas, acrescen- dor e do comprador abstratos, constituem ainda um
ta Marx, Smith e Ricardo compreendiam este homem modelo de representação social concreta, comparados
"não enquanto um resultado histórico, mas como pon- ao nobre desligamento da ontologia de Heidegger e
to de partida da htstóna". Ora, nao sena d1fictl mos- de Sartre, cuja abstração é muito representativa do
trar que "o ser de razão" da moral kantiana é o pro- universo psíquico dos intelectuais decadentes do está-
duto, no plano filosófico, de uma abstração a-histórica gio do imperialismo. Heidegger, em particular, co-
154 155
nhece demasiado bem esse universo que analisa com Sexta-Feira que comanda e Robinson que deve traba-
penetração e descreve de uma maneira freqüentemen- lhar." O texto de Engels aplica-se perfeitamente ao
te muito viva e pitoresca. existencialismo, cada vez que este se dedica a deduzir
Não podemos infelizmente dar aqui uma análise conclusões concretas concernentes a fatos sociais, par-
das desfigurações estruturais que resultam obrigato- tindo de categorias tais como ser-com-outro, ser-no-
riamente do emprego de um tal método. É preciso mundo etc. Essas categorias são, com efeito, a tal
contentarmo-nos por já termos indicado o sentido ge- ponto abstratas e a tal ponto vazias de todo conteúdo
ral destas desfigurações. Temos entretanto de des- social, que partindo delas pode-se deduzir não importa
vendar um elemento característico, a saber· o arbi- o quê e mesmo o contrário de não importa o quê. A
trário, que parece fazer corpo com a essência da ro- única exceção seria talvez a rigor o "se" heideggeria-
binsonada. Sua consciência da classe burguesa e seu no (das Man) , que representa de uma maneira assaz
conhecimento verdadeiramente profundo dos proble- convincente o ódio que o intelectual decadente nutre
mas reais da economia capitalista, permitiam aos au- em relação às massas, o medo que dela experimenta
tores clássicos disciplinar, ao menos parcialmente, o e o terror de ver o caráter único de sua preciosa in-
arbitrário de suas robinsonadas. Mas quanto mais a dividualidade sofrer um atentado pelo contacto da
robinsonada torna-se subjetivista, mais o controle do sociedade.
arbitrário torna-se difícil. O acaso graças ao qual Detenhamo-nos agora um instante na gênese his-
Sexta-Feira desembarca na ilha de Robinson está per- tórica da liberdade tal como a concebe S. de Beauvoir.
feitamente justificado do ponto de vista literário e, O fat o de vê-la colocar este problema, testemunha
a partir desse acaso, Defoe desenvolve com um c~- suficientemente a crise do existencialismo, crise de
nhecimento efetivo e muito seguro do processo econo- que se ressente, sem estar no entanto consciente dela.
mico real a relação de mestre a escravo entre seus Considerada sob o ângu lo da ontologia fundamental
dois heróis. Mas quando os discípulos tardios dos <lo existenciali smo, toda hipótese de uma gênese real
autores clássicos perdem esse senso da realidade e da liberdade constitui uma contradição em si mesma.
êsses conhecimentos objetivos, o arbitrário reina como Para o existencialismo, a liberdade é, com efeito, ·um
mestre. Eis o que escreve Engels a propósito do ar- dado humano absoluto: não pode .nem se constituir
bitrário na robinsonada de Duhring: "Robinson sub- nem se perder.
jugou Sex.ta-Feira, a espada. na n~ão. ~?n?e lhe veio Em L'Être et le Néant, Sartre escreve: "Estabe-
essa espada? Mesmo nas ilhas 1magmanas das ro- lecemos, com efeito, desde nosso primeiro capítulo, que
hinsonadas, as espadas não brotam, até agora, nas se a negação vem ao mundo pela realidade humana,
árvores e Duhring não dá nenhuma r esposta a essa esta deve ser um ser que pode realizar uma ruptura
questão. Assim como Robinson p~de obter uri;1a es- .anuladora do mundo e de si mesma; e estabelecemos
pada, podemos admitir que Sexta-feira aparece:ª uma que a possibilidade permanente dessa ruptura coinci-
bela manhã com um revólver carregado na mao: en- dia com a liberdade" (p. 514-15). A liberdade é por-
tão a relação de força inverte-se inteiramente: é tanto um dado fundamental da existência humana.
156 157
Ê inseparável da outra definição de seu ser: a que evolução da sociedade humana. Procura expr-imir a
dá a ontologia fundamental. Forma o complemento gênese da liberdade no plano individual, mais ou me-
da derrelição heideggeriana, enquanto fundamento nos da mesma maneira que Sartre evoca, em L'être
ontológico da existência. E é aqui que recomeça a ro- et le Néant, as perspectivas de uma psicanálise exis-
binsonada e, à luz do existencialismo, a obra de Defoe tencial. Além disso, esta gênese é apenas uma apa-
aparece duplamente genial. O autor de Robinson
rência. O que nós encontramos em S. de Beauvoir
Crusoe se revela como o verdadeiro fundador da no-
ção de derrelição - não da existência humana obje- é antes a descrição paralela de dois estados opostos:
tiva, mas de sua análise "robinsonesca" - porque a infância privada de liberdade e a existência em
Robinson está efetivamente desamparado em sua ilha liberdade dos adultos. Mas isto se torna interessante
pelo naufrágio. Mais ainda: a atividade "livre" de só quando S. de Beauvoir propõe-se estabelecer ana-
Robinson na sua derrelição funda seu mundo na ilha: logias entre as descrições fenomenológicas e certos
o mundo da economia capitalista, o í'nesmo do qual problemas concretos de ordem social. E assim, de-
involuntariamente saiu, para se afundar na sua soli- clara: "É o caso, por exemplo, dos escravos que ainda
dão e na sua atividade "completamente livre". Em não se elevaram à consciência de sua escravidão"
Defoe, as coisas se passam num plano concreto: o (Temps Modemes, t. XV, p. 386). Estes viveriam
mundo que se forma na ilha, as condições de exis- então, de acordo com S. de Beauvoir, em uma priva-
Í
tência que se constituem entre Robinson e Sexta- ção de liberdade análoga ao estado de infância. Ter-
Feira são as do capitalismo real; em Heidegger e
se-ia aqui o direito de esperar, da parte de S. de
Sartre, grandes autores da robinsonada decadente,
a derrelição é apenas um mito, interioridade pura e Beauvoir, um esboço .dos elementos da passagem da
metáfora. Mas a liberdade do aniquilamento, que se consciência não-livre à consciência livre, a fim de
constitui a partir da derrelição, é tão representativa melhor fazer compreender a seus leitores o papel que
do estado psíquico dos intelectuais da decadência, o existencialismo atribui à sua noção de liberdade na
quanto a atividade de Robinson o era da produção evolução da humanidade. "" •
capitalista. E, da mesma forma que o romance de S. de Beauvoir - é preciso•dizê-lo? - não se
D efoe devia demonstrar o caráter necessário da pro- dedica a esse empreendimento e isto nada tem de es-
dução capitalista, a ontologia de Heidegger e Sartre pantoso. Porque, com efeito, mesmo se ela se con-
tem por fim apresentar um estado psíquico, a liber- sagrasse exclusivamente a representar apenas a gê-
dade, como fundamento último, axiomático, necessá- nese da consciência de liberdade, apareceria clara-
rio e natural da existência humana. mente que a consciência social de liberdade descobre
É evidente que S. de Beauvoir interpreta a gê- uma realidade completamente diferente da noção de
nese da liberdade de uma maneira existencialista. liberdade do existencialismo. O menor contacto com
Seria sobretudo falso acreditar que ela esboça a his- a realidade concreta é suficiente para reduzir esta
tória da gênese da liberdade concreta, através da última a uma aparência pura e simples.

158 159
Em lugar de satisfazer a uma ex.pectativa legí- aliás a nota seguinte : "Isto não significa que se
tima, S. de Beauvoir explora o mundo da infância deva a ela renunciar." Não deixa de evocar logo a
que acabou de evocar, a fim de desacr editar certos renúncia e nisto toca o essencial : "A ação não pode
tipos humanos, que se encontrariam afundados no procurar realizar-se por meios que destruiriam seu
mundo sem liberdade da infância. A primeira vista, próprio sentido. Se bem que em certas situações não
haveria nisto apenas um divertimento assaz inocente, haveria outra saída para o homem senão a r ecusa.
não sem uma certa verdade na evocação de certos No que chamamos realismo político, não há lugar
tipos pequeno-burgueses. Mas, olhando-a mais de para a recusa, porque o presente é considerado como
p~rto, essa verdade é freqüentemente desfigurada, transitório; há recusa, a não ser quando o homem
como agora, quando se abusa de possibilidades analó- reivindica ao presente sua existência como um valor
gicas, que as imagens ofer ecem. É, certamente, um absoluto; então deve absolutamente recusar o que
procédimento jornalístico de efeito seguro chamar os negaria esse valor" (Temps Modernes, t. XVII,
fascistas de antropófagos e de tenebrosos r epresen- p. 856) .
tantes da Idade Média, mas no plano social, essas Eis-nos enfim em presença de uma tomada de
metáforas só servem para obnubilar o caráter capi- posição nítida. Após tudo o que foi dito sobre o
talista da barbárie fascista. O mesmo ocorre quando escândalo da violência, essa tomada de posição de-
se emprega o termo infantilismo, para qualificar cer- veria logicamente levar ao tolstoísmo, ou antes à
tos tipos sociais. ideologia da não-violência de certos expressionistas
Vejamos agora o que valem as conclusões desses alemães. Mas S. de Beauvoir não quer - e isto é
estudos, escritos com muita penetração analítica. São honra - tirar todas as conseqüências que se impo-
elas, como se poderia esperar, bastante estreitas e riam. Prefere prender-se num fio ele contradições
ambíguas. Seria expor-se a uma grave decepção es- insolú veis do que optar resolutamente por urna re-
perar nelas descobrir um esboço metodológico que núncia, sublime em aparência e covarde na realidade.
possa conduzir à solução de certos problemas morais. Infelizmente, os motivos por meio cios quais tenta
P ois, afinal de contas, quando S. de Beauvoir pede justificar suas inconseqüências~ tão honráveis, são
(Temps Modernes, t. XVII, p. 868) "que tais de- perfeitamente ilusórios. Invoca,. o exemplo da Re-
cisões não sejam tomadas com precipitação ou com sistência na França. "A Resistência, diz ela, não
leviandade", ou quando sublinha que é preciso proce- tendia a uma eficácia positiva. Era negação, revolta,
der a "uma aná lise política muito desenvolvida antes martírio; e, nesse movimento negativo, a liberdade
de fixar o momento da escolha moral", diz apenas era positiva e absolutamente confirmada" (id.). É
banalidades bem intencionadas. E não avançamos um mito. Fazendo saltar t rens, matando agentes da
quase nada, quando aprendemos que S. de Beauvoir Gestapo, libertando prisioneiros, até organizando ba-
quer "que a ação deva ser vivida na sua verdade, talhas de guerrilheiros, a Resistência realizava atos
isto é, na consciência das antinomias que ela compor- políticos muito concretos e tendia - é evidente - à
ta" (Temps Modemes, t. XVII, p. 855). Acrescenta maior eficácia possível, tanto na conduta de cada

160 161
ação, como no seu conjunto, no objetivo de libertar a As considerações de S. de Beauvoir são interes-
França. Os traçados respectivos das frentes políticas santes na medida em que desvendam um traço muito
eram então, sem dúvida, mais simples que após a Li- importante da caracterologia de um certo tipo social
bertação, ainda que a simplicidade seja, nesse domí- que tem medo da maturidade no plano da existência
nio, igualmente um mito. É humanamente muito histórico-social. Entretanto a prosa da objetividade
compreensível ver alguns - · S. de Beauvoir não é deve suceder à poesia da subjetividade juvenil; a
a única - darem as costas aos problemas complexos prosa da realização na matéria dura, resistente e,
e prosaicos do presente (sobretudo quando não estão apesar dê tudo, sempre dócil da realidade, deve t~mar
à altura de assimilá-los, filosófica e politicamente) o lugar da poesia neb~1losa dos estados indefiníveis,
para refugiar-se na simplicidade poética do tempo obscuros. Na sua Tipologia das Idades, que leva a
da Resistência. marca sentimental da lembrança de Holderlin, Hegel
Essa nostalgia, dizíamos, é humanamente com- descreve da maneira seguinte a atitude mental do
preensível. Sua generalização teórica dá entr etanto adolescente: "A adolescência dissolve de tal maneira
lugar a nascimento de mitos, sem fa lar desses casos a idéia realizada no mundo que se atribui a si mesma
em que se erige em valor absolu to, o que é uma a definição do substancial que pertence à natureza
fonte de erros fatais. É entretanto o que acontece da idéia - o verdadeiro e o bom - enquanto atribui a
com S. de Beauvoir, quando declara que "somente a definição do for tuito e do acidental ao mundo."
revolta é pura" (Temps Modernes, t. XVII, p. 875). A existência da maior parte dos românticos está
Essa afirmação apenas dissimula - S. de Beauvoir marcada pelo selo da vontade tragicômiéa de eter-
não tarda a confessá-lo - o medo de ver triunfar nizar essa atitude mental da adolescência. Trata-sei
"a revolta", o temor de ver esse triunfo chegar a em particular, daqueles que tiveram a ocasião de
uma "degenerescência" da pureza original dos prin- viver, no decorrer de sua juventude, um período he-
cípios e do entusiasmo romântico dos inícios. O hu- róico, "mítico" da história. Os românticos recusam-
manismo revolucionário - prossegue S. de Beauvoir se a envelhecer e morrer - e a política romântica re-
- "criou uma Igreja, onde a salvação é compradq cusa dobrar-se à necessidade ··qt'íe quer que à poesia
por uma inscrição no partido, como é comprada alhu.- da subversão ou da clandestinidade heróica suceda a
rcs pelo batismo e pelas indulgências" (id.). Aqui, prosa da realização, da execução. No seu escrito que
o existencialismo mostra de novo seu verdadeiro as- acabamos de citar, Hegel sublinha a repulsa que ex-
pecto: o do niilismo anarquista, próprio aos intelec- perimentaram numerosos adolescentes no limiar da
tuais que não têm, certamente, senão desprezo pelo maturidade, em se ocupar dos problemas precisos
capitalismo imperialista dos trustes, mas aos quais que a realidade tende a lh es impor. Simone de Beau-
a revolução real inflige um ter ror pânico. Isto não voir faz-se nitidamente intérprete dessa tendência,
significa necessariamente que sejam covardes: o que porque considera "mais autêntica" a juventude re-
temem é ver transformar-se o caráter de isolamento voltada de Goethe que sua maturidade de "servidor
de sua "existência". do Estado." Sem querer discutir com S. de Beauvoir
162 163
"a autenticidade" do Segundo Fausto ou a da Trilo- tencialistas e que sofreu-lhe a influência numa me-
gia das Paixões, permitimo-nos notar que é uma dida considerável. Tenta, por tanto, mostrar-se muito
abstração mui to juvenil quer er car acter izar toda a compreensivo a seu respeito. Disto r esulta, de um
maturidade de Goethe pela definição de "servidor do lado, que está em condições de colocar seus problemas
Estado." Tão " juvenil " al iás . como o pá.raleio que ,. de uma maneira bem mais concreta e, de outro, que
estabelece entre a evolução de Goethe, de Barres e entr e a marcha de seu pensamento, or ientado para
de Aragon. Tudo isto é, em suma, profundamente a objetividade e para a verdade, e seus princípios de
falso, ma s psicologicamente compr eensível, porque na existencialista, a divergência é ainda maior do que
noite escura do medo juvenil diante de qualquer con- a que constatamos em S. de Beauvoir. Pois o exis-
formismo, todas as vacas - como dizia Hegel - tencialismo constitui igua lmente a base do raciocínio
parecem negras, todas as realizações, individuais ou de lVIerleau-Ponty. As reservas críticas, que se ma-
socia is, parecem degenerescências que não é mais nifestam com t imidez em S. de Beauvoir, faze m-se
possível distinguir das degenerescências verdadeiras entretanto sentir nele de uma maneira bem mais
(Bar res por exemplo). nítida. E se essa divergência entre um conteúdo novo
É por tanto perfeitamente lógico ver, à g uisa de e um método velho não se pode revelar concreta e
apólogo, este velho adágio que S. de Beauvoir coloca abertamente em Merleau-Ponty, se ele própr io nunca
no t ermo de seu escrito: "Faça o que deve, aconteça
o que acontecer!" Destrói assim o fruto de todas as
, se torna consciente dela, a responsabilidade é devida
ao t rotskismo, que não cessou ainda de influenciar
suas considerações e de todos os seus raciocínios, às seu espírito. Veremos como suas simpatias trotskistas
vezes cheios de interesse, para restabelecer a mor al desviam Merleau-Ponty da verdadeira compr eensão
da intenção abstrata de L'Etre et le Néant na sua do marxismo e da compreensão profunda dos pro-
/ pureza in tegral, abs trata e perfeitamente estéril. Pa- blemas que o preocupam, toda vez que está prestes .
ra chegar a uma tal conclusão; o que precede não a chegar a isso. Na r ealidade, é seu trotskismo que
era indispensável e guarda apenas um valor de sin to- faz ofício de mediador entre suas heresias e sua or-
ma da cr ise do exis t encialismo. todoxia existencia listas : é sua inclinação para o tr ots-
kismo que lhe permite colocar suas questões, dando-
5. lhes uma solução eclética que consistiria em um amál-
gama feito de marxismo e de existencialismo. Quanto
A ÉTICA EXISTENCIALISTA E A a Sartre, muda r esolutamente de posição, sem se em-
RESPONSABILIDADE HISTÓRICA baraçar com as cont radições nas quais está arriscado
a cair a cada instante e das quais, de todos os pensa-
Nos textos de Merleau-Ponty, encontr amos todos dores ex istencialistas, é o menos consciente.
esses problemas num plano mais elevado. Isto se Começaremos por examinar rapidamente a ati-
deve, antes de tudo, ao fato de que Merleau-Ponty tude crítica que se desenha pouco a pouco em Mer-
conhece o marx ismo bem melhor que os outros exis- Jeau-Ponty, a respeito da principal obra teórica de
164 165


sua escola, L'Être et le Néant. Bem sabemos, é evi- da filosofia, Merleau-Ponty tenta justificar o exis:
dente, que, quanto a suas intenções, Merleau-Ponty tencialismo enquanto expressão fi losófica de nosso
propõe-se somente melhorar e completar o existen- tempo. Ora, essa concepção da filosofia enquanto
cialismo e que não pretende de forma alguma ultra- tomada de consciência do tempo implica numa con-
passá-lo. Parte, também, do velho dilema do deter- cessão considerável a Hegel e a Marx e numa oposi-
minismo e da liberdade e tenta dar-lhe uma solm;ão ção inconsciente a Husserl, a Heidegger e a Sartre.
existencialista. Declara notadamente: "Não diremos Disto resulta naturalmente uma contradição interna,
que esse paradoxo da consciência e da ação esteja, porque, sendo o tempo para Merleau-Ponty uma ca-
em L'Être et le Néant, inteiramente elucidado. A meu tegoria subjetiva, em conformidade com os dogmas
ver, o livro permanece inteiramente antitético: a do existencialismo ortodoxo, a história não poderia
antítese da visão que tenho de mim mesmo e da visão estar, para ele, in vestida de uma objetividade ver-
que outros têm de mim, a antítese do para-si e do dadeira. Na sua Phénoménologie de la Perception,
em-si fazem papel, muitas vezes, de alternativas, em ( p. 471), escreve, com efeito: "Q tempo não é por-
lugar de serem descritas como o laço vivo de um dos tanto um processo real , uma sucessão efetiva, que
termos ao outro e com'o sua comunicação... Podemos eu me limitaria a registrar. Ele nasce de minha rela-
pois esperar, após L'Être et le Néant, todas as espécies ção com as coisas." A partir dessas premissas, a
de esclarecimentos e de complementos" (Temps Mo- t objetividade da história torna-se, é claro, impossível
dernes, t. II, p. 345-46). E, noutro lugar, onde contra- de estabelecer. Tentando justificar o existencialismo,
ditoriamente com a teoria marxista, tenta representar enquanto tomada de consciência de nosso tempo.
o caráter social do homem, escreve: "Essa teoria do Merleau-Ponty contradiz sua própria posição de
partida.
social, L'Être et le Néant não nos dá ainda" (Temps
Devemos sublinhar que essa atitude não diminui
Modernes, t . II, p. 355). Crê que o marxismo, que
de forma alguma o interesse de suas considerações.
contém muitas soluções aceitáveis, não poderia pas- Bem ao contrário. Num de seus escritos, Merleau-
sar sem certas retificações e certos complementos. e Ponty empreende uma interpretação existencialista
principalmente sem "uma concepção nova da cons- da filosofia marxista e, com es,se fim, quer provar
ciência que funda ao mesmo tempo sua antinomia e que o argumento mais forte que o marxismo já pro-
dependência" (Temps Modernes, t. II, p. 356). e em duziu contra a filosofia do subjetivismo é de caráter
conclusão, acrescenta que um marxismo vivo deveria existencialista. Apóia sua argumentação em cer tos
"salvar" a pesquisa existencialista e integrá-la, em desenvolvimentos filosóficos do jo,;em Marx. E eis
lugar de sufocá-la (id.). como resume o que tem por ideal filosófico comum
Essa vontade de compreensão para com o marxis- do marxismo e do existencialismo: "0 filósofo que
mo manifesta-se igualmente no fato de que, contra as toma consciência de si mesmo como nada e como
tradições da escola fenomenológica que considera, liberdade, dá a forma ideológica de seu tempo, traduz
desde Husserl, .seu método com o método definitivo em conceitos essa fase da história onde a essenc1a e

166 167


a e:x.istência do homem estão ainda separadas, onde nossa época. Cr iando-se a si mesmo historicamente e
o homem não é ele mesmo porque está imerso nás se transformando historicamente, o homem está
contradições do capitalismo" (Temps Modemes, t. II, igualmente ligado ao mundo por certas relações cons-
p. 352, sublinhado por nós, G.L.). Merleau-Ponty tantes ( o t rabalho e certas qualidades constantes que
não duvida certamente que sua tentativa de concilia- daí decorrem), mas isso não per mite de forma algu-
ção proclama em verdade sua ruptura com toda a ma estabelecer uma aproximação entre essa dialética
ontologia existencialista. Sob pena de uma abdica- objetiva da história e a ontologia extratemporal da
ção completa, esta deve, com efeito, interpretar a subjetividade.
essência do homem, assim como os constituintes on- Nenhum compromisso é possível entre essas duas
tológicos da realidade humana (liberdade, situação, concepções: é necessár io escolher. Nenhum compro-
ser-com, ser-no-mundo, o "se" etc.) como categor ias misso é possível, também, entre a concepção existen-
supra-históricas, além de toda incidência social. As cialista da liberdade e a unidade dialética e histórica
categorias econômicas, particulares a uma época, não da liberdade e da necessidade, estabelecida pelo mar·
podem figura r, diante de tal método, senão a título xismo. Aí também é necessário escolher, pois não se
acidental, surgindo no interior dessas relações onto- poderia, como tenta fazê-lo Merleau-Ponty numa
passagem que citamos acima, operar uma conciliação
lógicas supratemporais, como variações ou modifica-
entre essas duas concepções.
ções sociais, históricas ou individuais de uma essência Poder-se-ia, a r igor, objetar-nos que não é o exis·
constante e extratemporal. Não há de forma alguma tencialismo, mas é o marxismo ( isto é, uma imagem
necessidade de voltar a Husserl, a Heidegger ou a subjetivada pelo existencialismo) que Merleau-Ponty
Sa rtre: basta recordar que S. de Beauvoir considera pretende r epresentar nos seus escritos questionados
a essência do homem como uma realidade supratem- por nós. Mas noutra passagem, retoma a questão,
poral, da qual nenhuma revolução poderia modificar para declarar: "Essa filosofia ( o existencialismo),
a estrutura. diz-se, é a expressão de um mundo deslocado. Cer-
A filosofia do marxismo, para a qual as catego- tamente, e isto é apenas a verdade. Toda a questão
rias econômicas constituem formas de existência e é saber se, tomando a sério nossos conflitos e nossas
determinações do ser, considera, ao contrário, o ho- divisões, nos abate ou nos cura deles. Hegel fala
mem como um ser transformando-se sem cessar, no freqüentemente de uma má identidade, enteridendo
inter ior, é claro, de uma continuidade histórica. O por isso a identidade abstrata que não integrou as
homem criou-se a si mesmo por seu trabalho. E diferenças e não sobreviverá à sua manifestação. Po-
quando a humanidade chegar a encerrar sua "pr é- deríamos de uma maneira análoga falar qe um mau
história" e estabelecer o socialismo de u ma maneira existencialismo que se esgota na descrição. do choque
defin itiva e completa, assistiremos a uma transfor ma- da razão·contra a$ contradições da experiência e ter-
ção fundamental da essência do homem, depois da mina na consciência de um revés" (Temps Modemes,
qual os homens esquecerão as relações inumanas de t . XVI, p. 711 ). Merleau-Ponty abstém-se entretanto
168 169

'
de levar seu pensamento mais adian te e sobre- atitude individual, não é uma pos1çao política"
tudo abstém-se de dar do "mau existencialismo" uma ( Temps Modernes, t. XIII, p. 26). É pena, pois
representação mais precisa. Contenta-se em indicar Merl_e au-Ponty coloca seus problemas de maneira tão
ue o "mau existencialismo" -e~contra-se intimamen- concreta, que suas considerações se prendem a uma
te ligado às conseqüências niilistas dessa ou tn na. prosa de tão baixo nível como a de Koestler. A res-
Quanto a nós, parece-nos antes que tudo o que diz peito da evolução intelectual e moral do herói koes-
dele aplica-se maravi lhosamente a L'Être et le Néant t leriano mais conhecido, Merleau-Ponty declara: "Ele
e as reservas de Merleau-Ponty, que citamos acima, passa do cientismo a deboches da vida interior, isto
são de natureza a nos faze r acred itar que um tal é, de uma tolice a outra" (Temps Modernes, t. XIV,
pensamento não lhe é completamente estranho. Pen- p. 264). Não deixa de desmascarar a hipocrisia de
samos mesmo que é evidente, desde que se aprofundem Koestler, que se esforça por cantar os louvores da
os métodos do existencialismo, que o bom existen- democracia anglo-saxónica, sem ver que está cons-
cialismo - isto é, um existencialismo não niilista - truída sobre a exploração de uma par te do mundo
é simplesmente inconcebível. por outra. Demonstra assim que em Koestler "o
Qualquer que seja a ortodoxia dessa atitude de anticomunismo e "o humanismo" têm duas morais:
Merleau-Ponty, é seguro que, na discussão dos pro- as que professam, celeste e intransigente; as que pra-
blemas que coloca, vai bem mais longe que S. de ticam, terrestre e mesmo subterrânea" (Temps Mo-
I
Beauvoir, sem mesmo fa lar de J .-P. Sar tre. De dernes, t. XVI, p. 703). O desgosto que experimenta
Koestler, que se faz defensor das democracias anglo- pelo ressent imento baixo que se respira literalmente
saxônicas, diz, com vigor, que não se trata para este na atmosfera dessa " literatura" anticomunista, ma-
"da discussão do Ioga com o Comissário, mas antes nifesta-se fina lmente assim: "Em suma, não temos
da discussão de um comissá rio com outro" (Temps que expiar os pecados de juventude de Koestler ...
Modernes, t. XVI, p. 706), em outras palavras, de Ama-se um homem que muda porque amadurece e
um antagonismo entr e violência e violência. Noutra compreende hoje mais coisas do que compreendia on-
passagem, é ainda mais claro e declara, descartando tem. Mas um homem que volta para suas posições
simplesmente as argumentações de S. de Beauvoir : não muda, não ul trapassa seus.-,erros" (Temps Mo-
''Não temos a escolha entr'e a pureza e a violência, dernes, t. XVI, p. 700-701).
mas entre diferentes espécies de violência. . . O que A despeito deste desdém vigoroso a respeito de
conta, e que é preciso discutir, não é a violência, é Koestler, desdém que honra seu sentido mora l e es-
seu sentido ou seu futuro" (Temps Modernes, t. tético, Merleau-Ponty decididamente não tem razão
XIV, p. 276). Enfim, em oposição consciente ou em .se demorar tanto tempo na análise dessa " lite-
não com S. de Beauvoir, considera que "esta recusa ratura". A conseqüência mais lamentável é a obri-
e esta decisão não somente de ar riscar a morte, mas gação, para ele, de se envolver em numerosos desen-
,1inda de morrer antes que viver sob a dominação do volvimentos secundários, que desviam a atenção do
est rangeiro e do fascismo, é como o suicídio. . . É uma problema central e que o levam a fazer digressões e
170 171


desvios embaraçosos. Seu problema cen tral é, sem dú- t. XIII, p. 23). Mas se fosse assim, o todo seria ape-
vida, a relação entre a responsabilidade moral e a res- nas uma vasta ilusão, um conjunto de elemen tos fo r-
ponsabilidade histórica. É up1a questão grave, que sur- tui tos. Ainda que uma tal conclusão esteja perfeita-
ge necessariamente em primeiro plano em cada período mente confor me às doutrinas de Sein und Zeit e de
suficientemente rico em revira voltas políticas e his- L' Être et le Néant, Merleau-Ponty recusa-se aceitá-la
tóricas e que preocupou vivamente a opinião pública e isto o honra. A out ra explicação, segundo a qual
em todos os países ou onde houve um movimento de os r es istentes teriam an tes decifrado os segredos da
resistência bastante forte e onde, num momento dado, H istória, enquanto os colaboradores se ter iam en-
era preciso punir os colaboradores. Vimos que, em ganado, não lhe é suficie nte também. Pois, diz em
substância, não é o erro que desprezamos nuns e não
Simone de Beauvoir, a questão se coloca antes de
é "a frieza de julgamento e a simples clarividência"
tudo num plano psicológico, moral e subjetivo. Por (Temps Modemes; t. XIII, p. 27) que admiramos nos
assim dizer é apenas contra vontade e a despeito de outros. "A g lória dos resistentes como a indignidade
suas convicções existencialistas que S. de Beauvoir dos colabor acionistas supõe ao mesmo tempo a contin-
consente às vezes - quando a gravidade objetiva cios gência da História, sem a qual não há culpados em
fatos a obriga - em considerar igualmente os fato- polí tica, e a racionalidade da História, sem a qual
res políticos e históricos. há apenas loucos" ( id.) . Um pouco antes dessa pas-
Em Merleau-Ponty, estes últimos encontram-se, sagem, evocando a "astúcia da razão" de Hegel, Mer-
.!O contrário, em primeiro plano. O que o interessa é o leau-Ponty explica, com efeito : "Há na História
drama da honestidade subjetiva e da traição obje- uma espécie de ma lefício; solicita os homens, ten-
tiva, eis como formula a questão, evocando o pro- ta-os, e eles acred itam andar no mesmo sentido que
cesso de Bukarin que ocorreu em Moscou, em 1938. ela, e de repente se oculta, o acontecimento muda,
Fal'ando de Pétain e de Lavai, descarta a possibili- prova de fato que outr a coisa era possível. Os ho-
dade de uma traição por dinheiro: "1ifesmo se não mens que ela abandona e que pensavam ser apenas
há culpa nesse sentido, recusamo-nos a absolvê-los seus cúmplices, tornam-se de repente os instigador es
como homens que manifestamente se enganaram'' do crime que ela lhes inspirou" (Temps Modemes,
(Temps Modernes, t. XIII, p. 23) . Ora, desenvol- t. XIII, p. 26).
vendo essa idéia, Merleau-Ponty cria um estranho Essas considerações constituem uma tent ativa
tecido de erros e de verdade. Diz inicialmente que para apreender o problema da responsabilidade num
o verdadeiro e o falso só se distingue uq1 do outro plano histórico concreto e é eviden te que o alcance
post festum, quando a História julgou. A' cri1i1inosa desta tentativa ul trapassa de longe a de S. de Beau-
falsidade da política dos colaboradores é agora per- voir, que permanece bem mais próxima da ortodoxia
feitamente evidente para nós. "Mas no que concerne existencialista. Descobrem-se, entretanto, lacunas pro-
aos acontecimentos de 1940, como sabíamos tudo is- fundas no pensamen to de Merleau-Ponty. Primei-
to? Pelo fato da vitória aliada" (Temps Modernes, ramente, concebe a H istória sob um aspecto demasia-

172 173
do místico: torna-se, nele, uma personagem mítica, ções que ela encerra. Uma época mais tar dia poderá
a quem é fácil atribuir t ransformações e intenções depois considerar a ação prática enquanto objeto
enigmáticas. Ora, isto ultrapassa de longe as mit ifi- do conhecimento especulativo." E Goebbels apres-
cações hegelianas e nos enganaríamos se víssemos aí sa-se em tirar dessa tese conclusões que satisfarão
apenas a obra do acaso. Em H egel, a história tem um plenamente a ideologia fasc ista: "A tarefa de nossos
conteúdo objetivo e uma direção objetiva. A astúcia contemporâneos não consiste em tomar uma posição
da razão é pouco mais que uma metáfora evocadora, cien tífica, imparcial e objetiva em r elação aos acon-
déstinada a tornar sensível, sob uma fo rma conden- tecimentos políticos. . . Sua tarefa é contribuir para
sada, a verdade perfeitamente reconhecida por Hegel, criar realidades históricas . . . "
segundo a qual não são as vontades individuais .que É evidente que Merleau-Ponty não partilha essa
regem a história. No entanto, este conteúdo objetivo atitude: ao contrário, rejeita, apaixonadamente, toda
e esta direção devem necessariamente fa ltar na inter- sobrevivência

fascista. Mas o acrnosticismo
b
histó-
pretação de Merleau-Ponty. Com efeito, mesmo se nco, que decorre necessariamente da posição filosó-
quisesse, enquanto indivíduo ou homem político, as- fica do existencialismo, obriga-o a aproximar-se teo-
sinalar seu lugar no existencialismo, sendo ele próprio ricamente dessa Realpolitik do cinismo, todas as ve-
existencialista, esta vontade só poderia ser, por sua
vez, uma opinião particular e puramente individu~l,
. zes que faz do ato moral do indivíduo isolado um

não dependendo do conteúdo e da direção da própria


história. Eis porque, em :Merleau-Ponty, a História
' critér io exclusivo. O falso dilema da moral da inten-
ção e da moral cio resultado, que é simplesmente si-
nônimo dessa Realpolitik, procede precisamente dessa
encon tra-se obrigada a se apresentar diante de nós atitude agnóstica face à história. Já estudamos a
sob os traços de uma mulher estimulante e volúvel,
natureza desse falso dilema. Ora, se o existencialis-
que só consente em desvendar seus desígnios no úl-
mo abandona a moral da intenção pura que é a única
timo instante ou, pior ainda, post festum. O simples
conforme à sua ortodoxia, sem submeter suas bases
fato do êxito, do sucesso (no nosso caso, a vitória dos fi losóficas a uma análise objetiva, .condena-se a estar
Aliados) pode verdadeiramente servir de critério su-
premo? A g lória.dos guerrilheiros da Resistência se- continuamente oscilante entre esses dois extremos
. r ia menor , a ignomínia dos colaboracionistas ter-se-ia igualmente ilusórios .
atenuado se Hitler tivesse triunfado? Houve sempre, naturalmente, protestos contra a
É a Realpolitik reacionária, da qual o fascismo maneira pela qual a Realpolitik pura interpr etava a
foi o ponto culminante, que faz da eficácia um critério história. "Victrix causa diis placuit, sed victa Cato-
exclusivo. Eis como e com que cinismo Goebels fo r- ni", dizia Lucano e o marxismo, no qual as almas
mula esse papel todo-poderoso da eficácia, que faz delicadas cedo descobriram uma Realpolitik cínica e
com que o conhecimento só possa julgar ulteriormen- amoral, sobrecarrega de ignomínia Thiers, carrasco
te: "Nossa intenção não é fornece r a justificação da Comuna, enquanto venera a lembrança gloriosa
cien tífi ca de nossa ideologia, mas realizar as aspira- dos heróis vencidos. Mesmo que as condições histó-

174 175
ricas excluíssem por assim dizer, anteriormente, toda tivas reais dessa luta, as qualidades morais susce-
possibilidade de vitória para um movimento de li- tíveis de nela se desenvolver, seu caráter e seu valor
bertação, o marxismo julga de uma maneira idêntica; são sempre determinados - não de uma maneira fa-
bastará citar o exemplo de Espartaco ou de Thomas talista e direta, mas somente em última análise -
Münzer. pela marcha objetiva da própria história. É uma falsa
Não podemos partilhar a opinião de Merleau- conquista do niilismo moderno ter posto a relatividàde
Ponty que se r ecusa a admirar, nos guerrilheiros da psicológica do trágico e do cômico; sua relatividade
Resistência, sua justa compreensão da História. Cer- his tórica constitui, entretanto, uma qualidade estrutu-
tamente, · a convicção somente não basta para fazer ral e objetiva extremamente impor tante da própria
um herói. Seria difícil, senão impossível, imaginar evolução histórica objetiva. Os g randes escritores
um herói de uma convicção mais pura que Don Qui- a liás reconh eceram sempre essa verdade. Sabe-se
xote. Mas como explicar que, sem prejuízo do he- como Balzac descreve a oposição ent re a atitude mo-
roísmo integral que o anima, produz um efeito irre- ral dos soldados e dos oficiais republicanos do exército
sistivelmente cômico? E por que os heróis de uma revolucionário e a dos Chouans. As descrições de
revolução precoce, desesperada, não são jamais cômi- Balzac ressaltam bas tan te que, conquanto do ponto
cos? Sem falar de Espartaco ou de Thomas Münzer, de vista da moral indi vidual os dois partidos se equi-
é preciso reconhecer que o gênio de um Shakespear e valham, o conteúdo mora l diferente das causas que
não bastou para fazer de John Cade uma figura ver- servem, empresta a cada um uma atitude moral dife-
dadeiramente cômica. I sto significa que a relação dia- ren te, até oposta. Num de seus escritos de juventude,
lética entre a compreensão correta da História e as Marx, aliás, fo rmulou ele uma maneira surpreend ente
conseqüências que dela decorrem para o indivíduo esse determinismo histórico do trágico e do cômico.
moral, é de natureza muito complexa. Não é somente "É instrutivo para elas (as nações ocidentais avança-
a compreensão conéreta da situação histórica imediata das), escreve ele, ver o antigo regime, que viveu nelas
que está em jogo (Hitler vencerá?), mas também a sua tragédia, repr esentar agora sua comédia, enquanto
tota.lidade das relações históricas que formam o pano repet ição alemã. Sua história foi trágica enquanto cor-
de fundo da situação concreta imediata. respondia à violência preexistente, ao mundo, a liber-
São, portanto, em grande parte, o conteúdo obje- dade sendo ao contrário uma idéia pessoal .: em uma
tivo e a direção real da história que determinam o palavra, enquan to os representantes do antigo regime
caráter .heróico ou ignóbil, trágico ou cômico dos per- acreditavam na sua justificação e deviam nisso acre-
sonagens que agem historicamente. O triunfo, como ditar. O antigo regime, enquanto ordem estabelecida,
a derrota, resultam, sem dúvida, sempre de uma luta lutava contra um mundo em gestação, e tinha a seu
real, cujos episódios oferecem um largo campo aos lado um êrro histórico, ma s não um êrro individual.
jogos do acaso, como ao desenvolvimento da inteli- Sua derrota foi portanto trágica .. . Mas o antigo
gência, da energia, da coragem, do sofrimento etc., regime moderno nada mais é que o comediante de
dos homens que nela se enfrentam. Mas as perspec- uma ordem cujos heróis verdadeiros estão mortos. A
176 177
História é profunda; atr avessa numerosas fases an- que a necessidade não possa triunfar senão através
tes de levar à tumba urna velha form a. A última de acasos, pela vitória a que conduzem, em última aná-
fase de uma forma histórica é sua comédia". O lise, as tendências históricas objetivas.
trágico e o cômico são, sem dúvida, pólos extremos. O ecletismo de Merleau-Ponty não é devido ao
Mas o que pode ser dito dos extremos pode ser dito acaso. Está, ao contrário, estreitamente ligado à sua
com justiça de tudo o que se encontra compreendido contra-revolução. Comparemos, pois, Balzac com
entre eles. marxismo sublinha, com efeito, que "a maior parte
Chegamos assim à questão central: a História tios marxistas" consideram a teoria leniniana do co-
caminha objetivamente numa direção determinada? nh ecimento "pelo menos insuficiente." Vêem nela,
Pouco importa a complexidade dos desvios e a im- segundo Merleau-Ponty, "a expressão de uma filo-
previsibilidade dos acasos pelos quais essa direção
sofia metafísica, que relaciona todos os fenômenos a
se torna sensível. Ora, a despeito de toda sua boa
uma única substância, a matéria, e não à expressão
vontade de se aproximar do marxismo, a despeito de
todo desvio que pode por vezes se manifes tar entre de uma filosofia dialét ica que admite necessariamen-
seu ponto de vista e o do niilismo h istórico da escola te relações recíprocas entre as diferentes ordens de
existencialista própriam ente dita. l\.ferl eau-Ponty fenômenos" (Temps Modernes, t. II, p. 351-52). Só
não pode dar a essa questão senão uma resposta que Merleau-Ponty engana-se profundamente quando
contaminada de ecletismo. A História é para ele ao confunde a simples interação com o verdadeiro prin-
mesmo tempo racional e fortu it a. cípio da dialética. Hegel dizia já que a interação sim-
O marxismo intervém aqui, colocando a dialética ples "situa-se somente no limiar do conceito" e que
objetiva do acaso e da necessidade. Mas para com- " considerar um objeto dado somente sob o ângulo da
preender essa dialética, que rege efetiYamente a Hi s- interação... " era, na realidade, uma atitude comple-
tória e cuja penetração teórica incompleta conduziu tamente incompreensível.
Merleau-Ponty ao abandono da ortodoxia existencia- Sem "o momento da transcendência", principal-
lista e ao ecletismo, é preciso apreender todas as suas mente, é impossível chegar à compreensão dialética
correlações. É preciso de início abandonar a polari- da interação. Ora, "o momento da transcendência"
zação exclusiva da liberdad e e da necessidade: segun- é inconcebível se não se atribue o primado gnosio-
do a lei da dialética, a liberdade é necessidade reco- lógico quer ao espírito, quer à matéria. E, porque
nhecida. A necessidade deve portanto perder seu ca- M~rleau-Ponty procura o "terceiro caminho" do exis-
ráter rígido e reificado, sem perder, no entanto, sua tencialismo, isto é, uma pretensa superação do idea-
objetividade e seu caráter independente da consciên- lis mo e do materialismo, não pode haver, para ele,
cia humana. Por outro lado, é preciso igualmente um " momento da transcendência" ( que nada mais se-
compreender a objetividade do acaso e sua interação ria que o conteúdo objetivo da História), nem no sen-
concreta e dialética com a necessidade. É assim que t ido materialista como em Marx, nem no sentido idea-
se penetrará por fim na estrutura da História que quer lista como em H egel. Sua tentativa de penetração
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teórica das realidades dialéticas está fadada portanto cional, os homens que nela agem só podem ser loucos ?
ao ecletismo. Esse caráter racional da História não deve entretanto
O ecletismo de Merleau-Ponty não se manifesta permanecer um em-si a bstrato ( e talvez inacessível).
somente na sua concepção da marcha objetiva da R is· É preciso saber mostrar um para-nós (mais ou menos
tória, ma s também, e talvez sensivelmente ainda, nas verdadeiro ou falso). É preciso saber mostrar como
suas ten tativas de análise da reação do sujeito. É a identificação com o curso objetivo da História trans-
precisamente a teoria do r eflexo, que desdenha tanto, forma êste em-si, no indivíduo pertencente à classe
que nos permite empreender o estudo desse problema, chamada a r ealizar êste em-si histórico, em um
colocado por Merleau· Ponty. A opinião do sujeito para-nós.
agente da história constitui, para Merleau·Ponty, Só a explicação da interação dialética entre a
uma realidade última de ordem ontológica. Mas a existência social concreta, que determina a consciên·
gênese dessas opiniões e sua interação dialética com eia humana, e o r eflexo dessa realidade objetiva na
a marcha objetiva da história não se prestam à aná· consciência pode forn ecer-nos a solução efetiva dêsse
lise ontológica, ou pelÕ menos, essa análise não per· problema. Quando r econhecermos que as opiniões dos
mitirá jamais chegar até o particular. Far·nos·emos sujeitos que agem historicamente são os reflexos de
compreender melhor, sem dúvida, citando um exem· uma mesma r ealidade objetiva, quândo compreender-
pio li terário. Evocamos mais acima a maneira pela ,
I mos que o car áter, a quantidade, o volume etc., desse
qual Balzac descreve o combate entre revolução e reflexo, ass im como sua assimilação teórica, sentimen·
contra-revolução. Comparemos, pois, Balzac com ta l etc., pelo sujeito, são determinados por essa mes-
certas produções decadentes tal como Antígona de ma interação - é então que dispomos enfim do mé-
Jean Anouilh. O que nos oferece Balzac são as condi- todo que nos abrirá o acesso ao problema.
ções históricas concretas e seus r eflexos sociais con· Merleau·Ponty exige com razão que o esclareci-
eretos, no entanto individualmente diferentes, nas mento dessas correlações atinja o plano do indivíduo.
opiniões dos per sonagens representados. H á aí a Mas é precisamente o marxismo - e só o marxismo
interação dialética viva entre a opinião, o conjunto - que é suscetível de satisfazer ·essa exigência. Uma
da personalidade e o ato. Jean Anouilh oferece-nos, teor ia geral da consciência social não poderia ter por
ao contrário, uma análise de ontologia fundamental, objeto senão a média e o típico. O marxismo não é
sob a forma de drama. Todas as determinações his· entretanto uma sociologia que aceitaria essa definição
tóricas objetivas da alma humana são fatalmente eli· como uma determinação absoluta, ou antes - como
minadas (graças à aplicação, talvez inconsciente, do é freqüentemente o caso nos autores modernos -
método da redução fenomenológica), o que explica que como uma tipologia abstrata, destinada somente a
do ponto de vista literário os personagens se tornam registrar. O que oferece, ao contrário, é a es trutura
si mples marionetes, enquanto que, ps icológica e mo· móvel dessas correlações, o espaço social r eal, que é
ralmente, são loucos e monomaníacos. O próprio a própria cena na qual se desenrola e se inscreve nes-
Merleau·Ponty não disse que se a História não ~ ra· sa tipologia a consciência individual. Permitir-me-ei
180 181
citar a passagem bem conhecida da Ideologia Alemã são naturalmente menos livres, porque subordinados
onde Marx dá a descrição econômica e histórica da muito mais a um poder objetivo."
situação do indivíduo na sociedade capitalista e defi- O pensamento agnóstico burguês assimilou mal
ne assim as leis que regem esse espaço social real do essa verdade: é precisamente o reflexo da reali-
indivíduo: "Os indivíduos partiram sempre deles pró- dade objetiva na consciência humana, que conduz a
prios, escreve Karl Marx, mas naturalmente dêles evolução individual - que não é fatal - à compreen-
próprios no quadro de suas condições e não do "indi- são da situação de classe do indivíduo. Não acontece,
víduo puro" no sentido dos ideólogos. Mas no de- mesmo em casos muito simples, que a tomada de
correr do desenvolvimento histórico e precisamente consciência dos fatos da realidade objetiva trabalha
porque no quadro da divisão do trabalho as condi- em oposição às determinantes da existência social,
ções sociais tornaram-se inevitàvelmente autônomas, que agem espontânea e diretamente na consciência
uma distinção manifes ta-se entre a vida de todo in- individual? A eficácia. des_sa· aç~o é 1iferente . em
d~íduo, porquanto pessoal, e a vida enquanto subor- cada caso individual, segundo a ~i_tuação social e l}is-
,dinada a qualquer .ramo de trabalho e às condições tórica, mas, em média e em última instância, a exis-
,que êsse ramo implica. Mas não se deve entender tência social do indivíduo desempenha sempre o pape!
por isso que, por 'exemplo, o que vive de vendas, o deci sivo. O Manifesto Comunista constata já a pos-
capitalista etc., deixem de ser . pessoas; suas perso- t ( sibilidade, para os indivíduos evoluídos, de passar pa-
nalidades estão ao contrário condicionadas elas con- ra as fileiras da "classe que tem nas mãos o futuro".
1ções de casse completamente determinadas, e a É aliás muito importante, do ponto de vista do pro-
diferença só aparece na oposição a uma outra classe blema que nos ocupa aqui, ver como Marx e Engels
e para si mesmas só no instante em que fracassam. caracterizam essas ·deserções : " . .. principalmente
No estamento ( e ainda mais na tribo) esse fato está uma parte das ideologias burguesas que, à força de
ainda escondido: por exemplo, um nobre permanece trabalho, elevaram-se até a inteligência teórica do
sempre um nobre, um plebeu sempre um plebeu, conjunto do movimento histórico."
abstração feita das outras condições; é uma proprie- Seríamos entretanto marxista-s bem mesquinhos,
dade iriseparável de sua individualidade. A diferença se acreditássemos que essa gênese dialética da cons-
entre o indivíduo pessoal e o indivíduo de classe, o ciência de classe não se aplica igualmente ao prole-
acaso das condições de vida para o indivíduo só sur- tariado. No seu célebre panfleto intitulado Que Fa-
gem com o aparecimento da classe que é ela mesma, zer?, Lenin estuda essa questão de maneira bem
um produto da burguesia. A concorrência e a luta aprofundada e conclui que a situação objetiva da
dos indivíduos entre si são necessárias para produzir classe só pode - espontaneamente - levar ao que
e desenvolver esse acaso enquanto tal. Na represen- ele chama "consciência sindicalista". Para desenvol-
tação, os indivíduos são, portanto, sob a dominação da ver, no operário, uma consciência política verdadeira-
burguesia, mais livres do que antes porque suas con- mente revolucionária, é necessário uma compreensão
dições de vida lhes são acidentais, mas na realidade ( reflexo dialético) bem mais adequada da totalidade

182 183
social, ultrapassando a esfera estreita do imediato es- riores (a vitória dos Aliados, no caso por ele evo-
pontaneamente reconhecido. "A consciência política cado); sua concepção de uma História mitificada é
de classe, diz Lenin, não pode ser levada ao operário ainda uma outra manifestação do ecletismo próprio
senão do exterior, isto é, do exterior da luta econô- ao seu pensamento. Se se tratasse verdadeiramente
mica, do exterior da esfera das relações entre operá- de saber apenas quem bem julgou em 1940 e quais
rios e patrões. O único domínio em que se poderia as possibilidades que Hitler tinha de triunfar, a ma-
obter esse conhecimento é o das relações de todas neira pela qual Merleau-Ponty coloca a questão seria,
as classe e camadas da população com o Estado e o se não correta, pelo menos compreensível. Mas o
governo, o domínio das relações de todas as classes ano de 1940 tinha, tanto na realidade objetiva como
entre si." .E, numa passagem mais adiante, Lênin nas convicções dos interessados, uma longa "pré-his-
sublinha partlcúfarmente ue uando a classe o erá"- tória", no decorrer da qual as duas atitudes adversas
I na c egar a criar um a organização de revolucionários da guerra civil de após 1940, a Colaboração e a Resis-
"profissionais, nesta "deve desaparecer completamente tência já se tinham defrontado. Ora, nesse encontro
toda distinção entre operários e intelectuais e, com prévio a 1940, o problema não consistia de forma al-
. maior razão, entre as diversas profissões". guma em um julgamen"to mais ou menos justo das
As opiniões dos homens, enquanto reflexos da possibilidades de vitória de Hitler: tratava-se sim-
realidade objetiva - em nosso caso, do processo his- I' j plesmente de saber qual dessas duas atitudes políti-
tórico - são portanto de uma importância bem maior cas convinha aos interesses do povo francês. Mas
do que pensa Merleau-Ponty, quando se trata de res- inicialmente, que significa, de um modo concreto, a
ponder à questão de saber se seu papel hi stórico me- expressão "povo francês"? É o reino das "200 fa-
mílias" e de seus aliados da burocracia civil e militar,
rece admiração ou desprêzo. Nossa análise versará
que o personificam, ou antes o reino dos trabalhado-
sobre dois pontos: tentaremos primeiramente elucidar res da França? Se examinamos a questão sob este
a maneira pela qual as opiniões dos homens refletem prisma, torna-se absolutamente evidente que não se
o processo histórico e examinaremos em seguida em tratava então - ou pelo menos não essencialmente
qual medida esses reflexos constituem uma imagem - de avaliar, exatamente ou não, as possibilidades
adequada da realidade objetiva. que poderia ter Hitler de triunfar. Segundo a opinião
As análises de Merleau-Ponty neg ligenciam com- dos adversários da Frente Popular, dos partidários de
pletamente toda questão que decorre do caráter ade- Munique, dos colaboradores ( esses termos designam
quado ou não dêsse reflexo. É por essa razão que as etapas diversas da evolução de uma mesma ten-
os resultados aos quais chega são necessariamente dência) , seria preciso consentir em todo sacrificio
repletos de ecletismo. Esse ecletismo manifesta-se ( abandonar primeiro todos os aliados da França, r e-
primeiro na conclusão segundo a qual a justeza ou o nunciar em seguida ao papel de grande potência, ab-
erro de uma convicção política só possa cristalizar-se dicar, enfim, à própria independência nacional), a fim
a posteriori, com o auxílio dos acontecimentos ulte- de garantir o reino dessas "200 famílias" contra

184 185

H
todo ataque proveniente de baixo. Tratava-se tam- e da resolução à qual dá lugar. É assim que nasceu
pouco de calcular as possibilidades de vitória, que o compromisso eclético que quer que de um lado Mer-
os representantes dessas opiniões fizeram tudo para leau· P~nty :aça um esforço em vista de compreender
enfraquecer as possibilidades da França: desorgani- 1940 historicamente e que, de outro lado, tente iso-
zação do exército, relaxamento da aliança franco-so- lá-lo numa "situação".
viética atitude contestável durante a invasão da Po- Este apego à "situação", e a toda metodologia
lônia ~te. O outro campo agrupava os que conside- q~e dela ~ecorre, é psicologicamente muito compreen-
ravam a expansão do fascismo como o maior mal s1vel. Nao se trata, com efeito, somente da questão
possível para o povo francês e para quem a tarefa central de toda ontologia existencialista, mas de uma
política primordial era - ao mesmo tempo que a de- questão que põe em jogo a razão de ser do existen-
fesa antifascista - a derrubada do reino das camadas cialismo. É efetivamente verdadeiro que a continui-
sociais que colaboravam objetivamente com Hitler dade da vida individual, assim como a da vida social
bem antes de 1940. O fato de que os acontecimentos composta de vidas individuais, é suscetível de sofre;
de 1940 obrigaram a tomar posição certas camadas - é uma possibilidade abstrata - uma interrupção
sociais que acreditaram até então poder permanecer a qualquer momento. Quando saio para fazer um
a distância não modifica em nada os dados essen- passeio - para citar um exemplo bem sartreano -
ciais desse quadro.
. é-me oferecida a cada instante a possibilidade de vol-
Como bom existencialista, Merleau-Ponty subes- ' tar atrás, de retornar para casa, de ir a um restau-
r~_nte, a um _teatro etc. Essas hesitações são fre-
tima nitidamente a significação decisiva das posições
respectivas das classes em presença, assim como as que.ntes na vida cotidiana. Na existência social são
opiniões e as linhas de condutas políticas que elas ~ais r~ra: e e?sa co·nstatação tão simples é de uma
determinam. Examina, segundo a ontologia existen- 1mportanc1a teorica não desprezível. Com efeito, por
cialista, a "situação" de 1940. Mas aqui também é pouco que se trate no exemplo do passeio, no caso
fácil de ver que sua ortodoxia existencialista é va- do curso que meu dever oficial me obriga ministrar
cilante. O existencialismo ortodoxo afirma, com efei- na Universidade, é necessário igualmente - no plano
to, que uma resolução inteiramente nova deve surgir, ~a abstração -.. uma resolução ·~e sou, em princípio,
por assim dizer, do nada, em cada "situação". Mas livre para dec1d1r, em cada caso, ir ao caí é ou dar
essa posição extrema devia logo mostrar-se insusten- meu curso. Mas de fato não vou ao café e darei
tável, não somente para as resoluções individuais, .n:as meu curso, a não ser por impedimento Yálido. O
também - e com maior razão - no plano da polttica conjunto da questão não deixa de ter um certo ca-
ou da História. Merleau-Ponty teve então que re- rá~e: cômico, e permite-nos concluir que, além de uma
signar-se, manifestamente a contragosto, a ~isturar pratica puramente social, estamos aqui em face de
um pouco de água ao vinho puro das doutrinas de uma constatação teórica importante: a análise exis-
Kierkegaard e de Heidegger, tentando, apesar de tencialista das "situações" dessa ordem, a recusa
tudo, salvaguardar o primado decisivo da "situação" existencialista de toda causa e mesmo de toda moti-

186 187

e
vação, são arquifalsas e pecam pela base. É por tamorfose incessante; agora, trata-se apenas de tirar
esse processo que o existencialismo transforma uma as conclusões teóricas que se impõem. Sublinhemos
atitude relativamente justificada em uma construção primeiramente que esses dois processos de transfor-
rígida, falsa e mesmo absurda. Essa descrição é mações, um objetivo e o outro subjetivo, estão muito
correta, enquanto descrição do momento da conti- lo.nge de acusar um paralelismo mecânico e inevitável.
nuidade da vida; a possibilidade abstrata pode, em ~t~p.lific~ndo ao máximo, diremos que as opiniões
circunstâncias determinadas, transformar-se em uma md1v1dua1s podem, de um lado, preceder os aconteci-
possibilidade concreta e pode mesmo, em certas con- mentos da realidade objetiva, isto é, podem, às vezes,
dições, transformac-se em uma realidade, porque sou apreender o sentido profundo das tendências que são
livre para resolver romper com a continuidade pas- apenas dadas, na realidade, em um estado proviso-
sada de minha vida. E ssa descrição poderia então riamente latente. P odem, por outro lado, ser ultra-
ser útil e instrutiva, nos limites de seu valor con- passadas pelos acontecimentos, aferrarem-se a idéias
creto, e com a condição de não perder de vista as que parecem, certamente, corresponder à realidade
causas e as justificações interiores e exteriores da objetiva, ou, ao menos, a certos de seus aspectos, mas
resolução, assim como as correlações dialéticas da que, cedo ou tarde, a evolução objetiva da realidade
"situação". Mas quando se erige em princípio au- acabará por desmentir.
tônomo, isolado e central, destinado a presidir de ma- É claro, mesmo aceitando esse esquema simplifi-
' t cado que acabamos de esboçar, que o mito da "mal-
neira exclusiva o ato humano, quando se faz dessa
descrição a análise ontológica da "situação", esca- dade " da História, caro a Merleau-Ponty, não resiste
moteando a diferença essencial que subsiste entre à prova de uma análise que procede com a ajuda do
possibilidade abstrata e possibilidade concreta, essa nosso método. A questão é entretanto de um alcance
maneira de ver desfigura e falseia toda a estrutura mais considerável, porque se encontra estreitamente
e todas as proporções do ato humano, ao mesmo tem- ligada ao problema do princípio da realidade no exis-
po que perde sua própria verdade relativa. A análise tencialismo, que é o da probabilidade pura de nossos
de 1940, enquanto "situação", por Merleau-Ponty, conhecimentos do mundo exter-ior. A atitude existen-
justifica inteiramente nosso ponto de vista. cialista gozaria, certamente, de uma justificação re-
Mas o conjunto desse problema apresenta-se ao lativa, se se contentasse de polemizar contra esse
espírito sob uma luz mais complexa - e também objetivismo mecanicis ta e fatalista, segundo o qual
mais concreta - desde que se admite que nem a o conhecimento dos elementos da realidade e das leis
realidade histórica, nem nossas opiniões que a refle- que a regem basta para calcular os acontecimentos
tem, nem nossa existência social que determina a a vir, com a exatidão da astronomia. Essa teoria não
natureza e o volume de sse reflexo, são imutáveis. tem mais, sem dúvida, quase nenhum defensor atual-
Não são, com efeito, nem imutáveis nem imóveis, mas mente. Acusar o marxismo, como o faz Sartre, de
se tran sformam, movem-se sem cessar. No plano a ter tomado sob sua conta, prova sua ignorância
concreto, jamais deixamos de dar-nos conta dessa me- total do marxismo e nada mais. Marx nunca teve

188 189
senão um desprezo enérgico para com esse gênero snecânicas de um regime qualquer, mas resultados
de infantilidade e Bukarin, que tinha sofrido a in- de uma luta.
fluência dessas idéias, não deixou de atrair uma se- . "Mas como s_e pode falar ainda de uma divergên-
vera crítica da parte de Lênin. cia entre os marxistas e eu mesmo?", poderia pergun-
Mas a aplicação errônea da noção de probabili- tar Merleau-Ponty. A situação do problema não
dade da parte dos existencialistas ultrapassa êsse pla- deixa de oferecer · uma certa analogia com a questão
no. Os diletantes da filosofia terminaram por vulga- da "situação", de que falamos acima. Desta vez, a
rizar, no sentido pejorativo da palavra, certas con- questão é a seguinte: a probabilidade de nossos co-
cepções da física moderna sobre o cálculo das proba- nhecimentos sobre a rea lidade histórica, sobre o pre-
bilidades. O existencialismo amparou-se logo nelas, sente e sobre as tendências que apontam para o fu-
polarizando, de uma maneira exclusiva, ~roba~ili?ade turo,. constitui a única aproximação possível do co-
e causalidade. Em outros termos, o ex1stenc1ahsmo nhecimento da realidade objetiva? Se assim for en-
explora a categoria da probabilidade, para ca~nuflar tão, sem prejuízo da irredutibilidade do moment~ de
seu agnosticismo histórico oriundo da ontologia fun- relatividade que encerra e na medida em que, no in-
terior desses limites, reflete corretamente a realida-
damental sob o aparelho verbal da ciência moderna.
de obje_tiva, essa aproximação é, ao mesmo tempo, um
A verdade, ao contrário, é que os pesquisadores cien- . c?nhec1me!1to absoluto. No caso contrário, seria pre-
tíficos dignos desse nome sabem muito bem que o
cálculo moderno das probabilidades apenas aumentou ' ciso concluir que esse momento de relatividade de-
termina o relativismo da totalidade ele nosso conhe-
a exatidão dos enunciados - e mesmo das previsões cimento da realidade e, antes de tudo, da realidade
- da ciência. O marxismo aliás jamais operou com histórica.
leis mecanicistas ou fatalistas. O sentido objetivista, É evidente que o existencialismo ortodoxo optará
que O Capital de Marx dá à noção fundamental.?e pelo segundo termo de nossa alternativa. Em J.-P.
tendência, o prova suficientemente. Exporemos altas, Sartre - de quem cito de propósito a pequena bro-
no decorrer do capítulo seguinte, que por causa da chura, porque nela tenta, como··vimos, afastar-se do
natureza mesma do materialismo dialético, o conhe- niilismo de L'Être et le Néant - ,a resolução humana
cimento humano só pode ser uma aproximação da mergulha literalmente no nada, toda perspectiva real
realidade objetiva. Q_!Earxismo considera enfim a sendo rejeitada: " . .. amanhã, após minha morte, os
História como feita pelos homens, isto é, por nós homens podem decidir estabelecer o fascismo ... "
mesmos. Empenha-se em fazet I essaltar essa defi- (L'Existentialisme est un Humanisme, p. 53-54), es-
nição fundamental da História em tôdas as suas ca- creve e, na mesma frase: " ... nesse. momento, o fas-
tegorias (por exemplo, o nível efetivo dos salário_s cismo será a verdade humana e tanto pior para nós;
no espaço econômico e subjetivo); _é portanto evi- .na verdade, as coisas serão tais como o homem de-
dente que as mudanças históricas e, antes de tudo, cidir que sejam" (id.). Uma outra passagem desse
as revoluções, não são, para o marxismo, quedas mesmo livro rejeita r esolutamente a idéia do pro-

190 191

d
gresso, como aliás a r ejeita ig ualmente Simone de nmla completamente suas intenções. Essa concepção
Beauvoir : " . .. o progresso é uma melhoria, escr eve é teoricamente impossível de defender, porque uma
ela; o homem é sempre o mesmo em face de uma si- vez admitido que as tendências são objetivamente
tuação que varia e a escolha per manece sempr e uma cognoscíveis, decor re necessariamente que elas o são
escolha em uma situação" (lbid., p. 79). Poderíamos sempre, mas que certos indivíduos (impedidos por
multiplicar à vontade as citações desse gênero, mas preconceitos de classe etc.) não estão em condições
parece-nos que nossos exemplos são suficientemente de conhecê-las.
probantes. O que é totalmente falso, enfim, é esse mistério
Merleau-Ponty vai, sem dúvida, mais longe que particular com que lVIerleau-Ponty envolve a marcha
Sartre. É assim que escreve: "A História oferece-nos
da História. Sen·e-lhe, sem dúvida, para fundar teo-
certas direções que apontam para o fut uro, mas não
nos dá a conhecer, com uma evidência geométrica, a ricamente a necessidade da atividade e da resolução,
direção privilegiada que finalmente desenhará a his- ou ainda para introduzir, entre os determinantes da
tória presente quando fo r r ealizada. Mais ainda : em situação revolucionária, uma atmosfera de abandono
certos momentos pelo menos, nada está encerrado total, de aflição, uma "situação", numa palavra. A
nos fatos e é justamente nossa abstenção ou nossa realidade é completamente outra: é precisamente nas
intervenção que a História espera para tomar fo rma. . situações revolucionárias que as tendências da ~ocie-
I
Isto não quer dizer que possamos fazer não importa dade se manifestam com uma nitidez toda particular
o quê; há graus de verossimilhança que não são na- e é porque seu antagonismo atinge um nível comple-
da" (Temps Modemes, t. XIV, p. 206). Essa citação _tamente dramático gue a intervenção do homem ad-
torna o afastamento evidente. As últimas frases. (
quire uma importância decisiva. A subjetividade é
principalmente, acusam uma tendência muito nítida
de se aproximar da concepção objetiva da história. portanto muito importante na história. mas por ra-
E se, apesar de tudo, per sistimos em colocar a Mer- zões exatamente contrárias às que dá Merleau-Ponty:
leau-Ponty a questão: de onde o sabeis? de que me- a importância da subjetividade .~stá estreitamente li-
dida vos servis_ para calcular os graus de probabili- gada à evolução objetiva e não aos momentos em que
dade? n ão é, longe disso, para exercitar nossas fa- a História objetiva parece calar e dissimular.
culdades de ironia, mas para tentar pôr a limpo os Vê-se portanto que a despeito da tendência na-
problemas de método. Nossa crítica se r esume assim: tural de seu pensamento, que não cessa de cercar de
inicialmente Mer leau-Ponty opera ainda com essa perto a concepção objetiva da História, Merleau-
"evidência geométrica" que cor responde, na realida- Ponty permanece sempre irresistivelmente atraído
de, ao oposto complementar do agnosticismo histór ico. pela noção de "situação" com sua aflição total, pelo
A seguir, apr esenta-nos a malvada Dama História caráter incognoscível do futuro, pela r elatividade e
agora como capr ichosa : se uma vez se digna indicar. subjetividade de tudo o que se pode enunciar sobre
mais ou menos claramen te, aonde vai, outra vez, dissi- o futuro.
192 193
A força de atração mais considerável que se exer- quando uma nova fase da História mudar o ·sentido
re sobre ele é o trotskismo. O agnosticismo e o re- de sua conduta" ( Temps Modernes, t. X IV, p. 268).
lativismo histórico podem sozinhos criar uma atmos- Certamente Merleau-Ponty rej eita resolutamen-
fera da 'tragédia, a propósito de Trotsky e de Bu- te algumas das asneiras mais grosseiras do trotski s-
karin: " Stalin, Trotsky e mesmo Bukarin, no meio 1110, como por exemplo, a afirmação segundo a ·qual
da ambigüidade histórica, têm cada um sua perspec- a segunda Guerra Mundial formaria a pedra de toque
tiva e orientam sua vida por ela. O futuro é apenas absoluta do marxismo: se não conduzisse ao socia-
provável, mas não é como uma zona de vazio em lismo, o marxismo provaria ser uma utopia. Adm ite
que construiríamos proj'etos imotivados; desenha-se igualmente que a vida política tornara-se impossível
diante de nós como o fim do dia começado, e esse (Temps Modernes, t. XVI, p. 690) para Trotski, mas,
desenho somos nós mesmos. As coisas sensíveis, apesar de tudo, seu pensamento sofre, freqüentemen-
também são apenas prováveis, porque estamos longe te, a influência decisiva do trotskismo. Aliás, a me-
de termos terminado sua análise. . . O problema é lhor prova disto é que julga útil - a despeito de sua
para nós o r eal, não o podemos desvalorizar a não ser vasta cultura e de seu instinto crít ico robusto -
que se r efira a uma quimera de certeza apodítica repetir certas calúnias mil vezes ouvidas sobre a
que não está fundada em nenhuma experiência hu- União Soviética, quando não faltam assalariados do
mana" (Temps Modernes, t. XIV, p. 271). É portan- nível de Koestler para desincumbir-se dessa tarefa.
to ainda essa mistura do apodítico ríg ido e de relati- Não temos lugar nem tempo para nos deter neste
vismo que nos é apresentada sob os aspectos de um gênero de problemas, porque em primeiro lugar pro-
dilema tão insolúvel quanto falso. Merleau-Ponty pomo-nos esclarecer problemas teóricos. Citaremos
confunde aqui o caráter de aproximação do conheci- po~tanto apenas uma das objeções de Merleau-Ponty,
mento com sua rela tividade, numa intenção evidente a titulo de exemplo. Forja, com efeito, um argumen-
de encontrar um denominador comum para a previsão to da luta staliniana contra o nivelamento em maté-
histórica de Stalin e de Trotski. E se, em outras pas- ria de sa lários, para declarar que o bolchevismo está
sagens, Merleau-Ponty reconhece a ausência de toda bastante afastado das teorias clássicas cio marxismo
perspectiva em Trotsk i e se admite na ocasião que e frisa seu pragmatismo a partir; de então. Ora, não
a linh a política staliniana mos trou-se justa, isto cor- é necessário ser um g rande conhecedor dos textos
responde simplesmente - bem mais que há pouco cl ássicos, para saber que, desde 1875, Marx caracteri-
na análi se da "situação" de 1940 - a um simples zava a diferenciação dos salá rios como uma tendência
rapricho da incalculável deusa História e não ao triun- econômica fundamental da primeira fase do socia-
jo da aproximação mais correta da realidad e histórica lismo.
objetiva sobre a aproximação falsa. A perspectiva Seria, no entanto, inútil determo-nos em detalh es
de futuro oferecida por Merleau-Ponty apena s subli- de segunda ordem. O essencial é a influência profun-
nha essa atmosfera de catarse t rágica. "Como a da que o trotskismo exerce em Merl eau-Ponty. A
Igreja, o partido honrará talvez os que condenou História, desde há muito tem po, fez just iça a todas

194 195
as afirmações concretas de Trotski e, no entanto, mais imperiosamente do que há cento e cinqüenta
\ 1 os efeitos de suas teorias fazem-se ainda sentir em anos.
certos meios. O efeito de que fa lamos manifesta-se Enquanto a filosofia era apenas um prelúdio teó-
antes de tudo pelo desvio de atenção das questões es- rico à Revolução Francesa, a preparação ideológica,
senciais e concretas do pr esente, e, ao mesmo tempo, de alg uma maneira, do "Império da Razão", não ti-
por uma camuflagem do niilismo teórico e prático por nha necessidade de faze r diretamente apelo à His-
meio de uma demagogia r evolucionária. A intenção tória para evitar o escolho do niilismo. A realidade
priginal de Trotski, sem dúvida, não era de sviar quem ~ - que fornecia à filosofia suas bases nada mais era do
er ue fosse de ssas uestões; a enas forneceu res- CY I que o combate da sociedade burguesa em gestaçã..o
E9stas totalme_nte f~lsas; construindo. ar itranamen·-i~t,n contra o fe udalismo caduco. Em termos filosóficos,
te um antagonismo msoluvel entre os interesses cam- ~ isto se chamava então de combate da razão contra o
poneses e os interesses operários. Mas esse prim eiro irracional e o caos. A filosofia do século XVIII podia
erro teve por conseqüência inevitável a negação da {>ermi tir-se tomar como ponto de partida de suas
possibilidade de construir o socialismo em um só país especulações ( epistemológicas, ontológicas, psicoló-
e essa negação torna-se, por sua vez, o verdadeiro gicas, pouco impor ta) o indivíduo isolado e criar, a
sinal de união da contra-revolução. Devia fornecer seu bel prazer, mito sobre mito em torno do tema
a plataforma sobre a qual certos intelectuais e ele- 1 de Robinson, sem no entanto, perder seu caráter so-
rnentos operários deveriam agrupar-se contra a cial, sua historicidade implícita e, portanto, sua pers-
U.R.S.S. A evolução econômica, política e cultural pectiva. Os pensadores mais evoluídos anteriores à
sublinha a importância do socialismo enquant? única ~evolução- Fr ancesa emba lavam-s':L.~ m efeito, na
perspectiva do futuro, e a atitude individual em r ela- ilusão âe ver surgir, espontânea e inevitavelmente,
ção à União Soviética torna-se a pedra de toque não uma sociedade baseada na razão e na harmonia. a
somen te de todas as questões políticas, mas .também partir da ação do individuo egoísta e isolado. Po-
dos problemas de ideologia. Com efeito, a questão der-se-ia quase dizer, sob uma fo rma um poucÕ para-
da perspectiva não deve somente ser colocada politi- doxal, que a concepção econômica de Adam Smith
camente, mas também no plano ideológico. Só uma dava enfim um fundamento aos grandes sistemas fi-
losóficos anteriores à Revolução Francesa.
perspectiva de futuro concreto está em condições de
superar teoricamente o niilismo ideológico. Ora. nos- Essa base objetiva da filosofia devia entretanto
sofrer uma metamorfose profunda, devida ao triunfo
sa própria evolução não produziu outra perspectiva da Revolução Francesa e ao término da revolução
a não ser o socialismo. industrial na Ing laterr a. Antes de mais nada, a his-
Afirmamos que o homem moderno, se não está toricidade do mundo e, em primeiro lugar a da hu-
desprovido da necessidade de honestidade intelectual, manidade, impôs-se ao pensamento. Isto significa
deve escolher en tre a perspectiva do socialismo e o concretamente que o pensamen to teve de reconhecer
niilismo filosófico. Esta escolha impõe-se hoje muito o " império da razão" - de que Engels havia dito
196 197

,,,
tão espirituosamente que, uma vez realizado, mostrar- vez mais à vida do homem, age no entanto cada vez
se-ia como o império da burguesia - como um estado mais sobre o pensamento humano e mesmo sobre o
passageiro da humanidade. Toda filosofia que tende dos filósofos, nos quais entretanto as tradições se-
a esconder esse caráter historicamente transitório do culares da metodologia criam sobrevivências ideoló-
capitalismo, condena-se a perder toda perspectiYa. Só gicas muito tenazes. A presença da categoria do ser-
a resignação total, a aceitação da impotência da ra- com (Mitsein) na ontologia heideggeriana é uma das
zão, pode aceitar o capitalismo como perspecti,·a da provas dessa evolução inconsciente. A crise do exis-
evolução da humanidade. No estágio do imperialismo. tencialismo francês, por nós descrita, reflete nitida-
um niilismo desesperado ou cínico junta-se a esse nii- mente a distância que subsiste entre os problemas
lismo resignado e a ausência de toda perspectiYa lhes que a existência social lhe impõe e as sobrevivências
serve de base comum. Não é mais necesséÍ.rio. esta- ide?lógicas que embaraçam sua metodologia. As ten-
mos convencidos, determo-nos para demonstrar que. tat1~as de M~rleau-Ponty, no sentido de apreender a
desde Nietzsche até o fascismo. passando por Spen .. realidade social atual, ofereceram-nos, em razão da
<Y)er os mitos históricos da reação são apenas tentati- sensibilidade particularmente aguda do autor para
~as 'falaciosas, com Yistas a c~muflar esse niilismo. problemas novos, a melhor ocasião de estudar essas
Mas a evolução econômica e social. desde a me- sobrevivências.
tade do século XIX. não somente privou a filosofia .
t R~s ta-nos apenas demonstrar a ligação íntima
de todo fundamento especulativo supra-histórico. co- que existe entre essas sobrevivências do existencialis-
mo também tornou-lhe sensh·el a impossibilidade de mo e dos resíduos de opiniões e atitudes trotskistas.
tomar como ponto ele partida o indh·íduo isolado e Aqui, algumas notas de ordem histórica impõem-se.
seus estados de consciência. A e,·olução econômica Merleau-Ponty estaria talvez inclinado a se reconci-
real provou concretamente o erro das concepções de liar com o que ele chama de marxismo clássico· diri-
Smith e de Ricardo. demonstrando que em lugar de ge objeções somente contra a forma atual do m~rxis-
fazer nascer uma harmonia social. a soma cios atos 1110, a que os partidos comunistas representam.
individuais só pode dar lugar a um caos feito de Ocupando essa posição, Merleaú-Ponty toma sob sua
crises e ele guerras que tenderia cada vez mais para responsabilidade e conserva ( se bem que rejeite nu-
a instauração de uma barbárie uniYersal. Assim. o merosas opiniões concretas de Trotski e de seus par-
indivíduo isolado. enquanto pnnto de partida do pen- tidários) duas atitudes trotskistas, estreitamente li-
samento filosófico (g-nosiológico. ontológ ico ou psico- gadas uma à outra. A primeira é sua desconfiança a
lógico. pouco importa ) terminou por perder sua base respeito da política seguida pelos partidos comunis-
implícita. amparada ainda há pouco por uma ilusão tas, desde o VII Congresso da Internacional Comu-
historicamente justificada. nista, isto é, desde 1935. Já falamos da primeira
Esse estado de coisas está ainda bem kmge de questão, analisando a título de exemplo, a incompre-
ter entrado na consciência. e também no pensamento ensão de Merleau-Ponty a respeito da desigualdade
fil osófico. A existência social, que se impõe cada de salários na União Soviética. Considera igualmente

198 199
a possibilidade de um ataque da U.R.S.S. contra a terrorismo individual ( a frase revolucionária) dos
Europa e conclui que essa ameaça não é para hoje. S.R. Essa afinidade íntima encontra uma definição
Não é por tanto por princípio que Merleau-Ponty re- muito fe liz num dito que teve um S.R. numa conversa
jeita uma tal possibilidade, admitindo assim uma teo- com Asev, o célebre agente provocador - que não
ria que é a de toda contra-revolução e que considera tinha ainda sido desmascarado na época - e pr etenso
a União Soviética como um Estado imperialista: jul- organizador de grandes aten tados : "Em suma, Asev,
ga somente que o problema de uma agressão soviética vós sois apenas um cadete (liberal) ordinário, mais
não é de atualidade. A diferença entre sua posição as bombas . .. ".
e a da contra-revolução anti-soviética é por tanto so- Temos cer teza de não caluniar o existencialismo,
mente de ordem tática e não de princípios. É igual- colocando-o sob este pr isma, porque o próprio Mer-
mente muito significativo que não faça jamais a me- leau-Ponty o faz. Evoca os processos de Moscou;
-...-:.-
nor alusão à luta pela democracia nova na França ora, o que foram esses processos, em suma, senão a
revelação da essência mesma do trotskismo, da trai-
Q_ ou em outros países, enquanto que a solução dessa
C/) ção em relação à revolução, uma traição que ía até
luta decidirá para nós da sorte da evolução e mesmo a espionagem? Uma revelação que nos mostrava "o
::>
.......... da sorte da perspectiva socialista. Parece antes que. nada aniquilante," enquanto essência mesma do mun-
I segundo ele, é precisamente aí que se encontraria a do e da personalidade dessas pessoas, que nos provava
ü base da pretensa evolução antiteórica do marxismo: ' 1 sua fa lência intelectual e moral absoluta e sua "si-
..J essa R.ealpolitik "pragmatista" é, a seus olhos. res-
u. tuação" "face ao nada." Sem o querer expressamen-
u. ponsável pelo afastamento do marxismo clássico". te, Merleau-Ponty não está entretan to longe de nos
.......... O marxismo clássico coincide certamente para dar razão quando escreve : "Não se é "existencialis-
o Merleau-Ponty (ele o diz aliás abertamente) com a ta" por gosto, e há tanto "existencialismo" - no
m concepção trotskista que negava, desde 1905, na Rús- sentido de paradoxo, divisão, angúst ia e resolução -
C/)
sia, a transição real, se bem que complexa, da revo- no relato estenográfico dos Debates de Moscou co-
lução até o socialismo. Mais tarde, na época de Brest- mo em todas as obras de Heidegger" (Temps Moder-
Litovsk, os representantes dessa tendência combate- nes, t. XVI, p. 711 ). Com efeito, o universo dos
ram em nome da "frase r evolucionária" (Lênin so- Bukarin, Rykov, Rakovski e outros Yagoda, é efe-
bre 'T rotski), as medidas eficazes para salvar a r e- tivamente o universo de Sein und Zeit, esse "teatro
volução e para intensificar seu surto. Todo marxista de fa ntoches da filosofia", como tão bem diz Henri
sabe que esse r eino da "frase revolucionária" alia-se Lefebvre.
perfeitamente bem com um oportunismo desprovido A condenação da frase revolucionária constitui
de todo princípio. (Cf. o papel de Trotski na reali- entretanto a condição sine qua non da verdadeira in-
nção do bloco de Agosto dos opor tunistas em 1910). t eligência do marxismo, da verdadeira superação das
Lênin, em Que fazer ?, desmascara aliás a ínt ima afi- tendências niilis tas do presente. Quanto mais a evo-
nidade ideológica que liga o oportunismo político ao lução segue seu caminho, mais é assim. H á cem, ou

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mesmo cinqüenta anos, uma profissão de fé socialista de Ivan Karamazov com o Diabo, que lhe aparece sob
determinava, num intelectual, uma verdadeira revo- a aparência de um proprietário fundiário parasita. O
lução de toda a marcha de seu pensamento. Mas Diabo diz a Ivan: "Na realidade, estás furioso só
numa época como a nossa, em que o socialismo tem porque não apareci numa luz vermelha acompanhada
atrás de sí trinta anos de história real, uma profis- de raios e trovões, com a sas queimadas, mas sob uma
são de fé abstrata pelo objetivo final do socialismo aparência mais modesta. Estás ofendido, primeiro
não quer dizer mais nada. A escolha diante da qual nos teus sentimentos estéticos, mas também no teu
nossa realidade social coloca o pensador honesto, a orgulho: Perguntas: como um diabo tão ordinário pode
"situação" na qual se encontra. é a seguinte: é ne- apresentar-se diante de um tão grande homem?" A
cessário tomar posição face ao socialismo tal como frase revolucionária representa simplesmente a de-
: é, tal como nasceu e como se desenvolve na União fesa do psiquismo do intelectual contra as ofensas
Soviética; é necessário tomar concretamente posição desse gênero: é o anjo de asas queimadas. Ela sa-
frente aos caminhos inteiramente novos que condu- tisfaz o amor-próprio dos intelectuais, que se deba-
zem ao socialismo e que se abriram com a derrota tem como vítimas do desejo pouco consciente de sair
do fascismo. Dizer: sou pelo socialismo, mas não pelo do niilismo. Quando se crê, com efeito, ter rompido
socialismo soviético: sou unicamente por um socialis- com a sociedade burguesa ou, que se levante, ao me-
'mo conforme a minha representação - dizer isso, nos, um protesto intelectual contra ela, exige-se que
~mesmo sob formas "heróicas", "sublimes" ou "poé- essa atitude traga consigo toda a poesia das épocas
ticas," equivaleria à atitude de uma mãe que dissesse: heróicas. Não nos revoltamos contra a sociedade bur-
, a chama do amor materno me consome, sou o amor guesa simplesmen te para tornarmo-nos uma engre-
materno feito mu lher, mas recuso-me a amar me4 nagem no aparelho do partido e para dedicarmo-nos
filho porque tem as orelhas descoladas ... a estatísticas prosaicas. Tememos cair, de uma ma-
É assim que a frase revolucionária e suas conse- neira ou de outra, no conformismo. Aquele que se
qüências mora.is aparecem tal como o "Urphaeno- aferra assim à frase revolucionária do trotskismo,
men" goethiano. O que é, no plano político "frase encontra-se, por esse fato, separado do proletariado,
revolucionária", corresponde a um mal geral dos in- o qual - como Merleau-Ponty vê muito bem - per-
telectuais do estágio do imperialismo. Estudamos um manece fiel aos partidos comunistas e à União So-
dos sintomas desse mal em Simone de Beauvoir, a viética. Mas isto em nada conta, ao contrário: resta
propósito da superestimação fa laciosa, à custa da ma- sempre o recurso de se lamentar, numa atitude de
turidade, da juventude poética e rebelde. É difícil re- luto sublime, na solidão do não-conformista ao meio
sistir à tentação de esboçar a análise fenomenológica de uma época má.
desse comportamento em face da realidade, mas in- Não pretendemos, longe disso, ter esboçado, no
felizmente precisamos limitar-nos a algumas notas. que precede, a psicologia de Merleau-Ponty. Estamos,
Esse mal niilista foi aliás logo reconhecido e genial- no entanto, convencidos de que a atitude que acaba-
mente descrito por Dostoievski. Pensemos no diálogo mos de descrever coincide com a de numerosos de seus
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et
amigos e leitores e pensamos, além disso, que as tando do problema dos colaboracionistas, portanto de
falhas e as obscuridades do existencialismo apenas fa- um problema de atualidade, Merleau-Ponty escreveu
vorecem a sobrevivência dos resíduos ideológicos de que a posição acima dos partidos é neste caso muito
que falamos. Pois, em última análise, o caminho no baixa; é o parti-pris da justiça. Por outro lado, ob-
qual se encontra engajado Merleau-Ponty não conduz servaremos igualmente que a atitude de Merleau-
à superação do niili smo. É preciso uma perspectiva Ponty corresponde às vezes exatamente às definições
concreta e real e esta só se poderia constituir a partir menos nítidas e mais retrógradas de sua concepção da
da análise concreta da realidade objetiva, a partir ~ist,ó~ia. Es~reve, por. exemplo, que em certas fases
do traçado concreto do caminho que vai do presente h1stoncas os mtelectua1s devem necessariamente per-
real ao futuro real. As abstrações da ontologia exis- manecer à margem, pois a liberdade do pensamento
tencialista, sobretudo quando adotam as frases revo- está proibida. É bem natural, sendo dado o funda-
lucionárias do trotskismo, não podem superar o nii- mento subjetivista da sua concepção da História,
lismo, assim como as outras filosofias materiali§tas · que rµ~da_sua estrutura segundo a natureza da atitu-
não ultrapassam seus mitos. Isto não é um confor- . de subJet1va daquele que dela se aproxime. Assim,
mimo pragmático de hoje, niãs foi o próprio Marx para a ontologia existencialista, não é a irraciona-
que escreveu: "A dificuldade consiste somente na de- lidade da História que determina a restrição da liber-
finição geral dessas contradições; desde que as espe- dade do pensamento dos intelectuais, mas a História
cifiquemos, elas se resolvem." torna-se irracional ( do amontoado eclético de racional ··
e fortuito que era), desde que as necessidades de uma
Mas como Merleau-Ponty chegou a for mular
defesa patética do "au-dessus de la mêlée" o exigem.
sua posição propriamente dita face ao presente, após Mas de que intelectuais se trata? Depois de
ter aflorado, freqüentemente de uma maneira muito seu período "au-dessus de la mêlée", Romain Rolland
espiritual, numerosas questões de ordem moral, ou soubera percorrer o caminho que o conduziu à de-
antes relativas à r esponsabilidade histórica? No que fesa ativa do verdadeiro progresso da humanidade.
concerne à sua atitude em relação ao comunismo, Da atmosfera niilista e das frases revolucionárias de
declara que se define por uma simpatia sem filiação seu .mundo irracional, o seu caminho conduziu o S. R.
e um livre exame isento de inimizade. Nada temos Savmkov-Ropchine à testa de seus bandos contra-re-
a objetar a uma tal atitude, com a condição, todavia. volucionários. Literato da mesma extração moral e in-
que permaneça sempre praticamen te realizável para ~electual, Koes tler tornou-se o turiferário zeloso do
Merleau-Ponty. Aliás, desenvolve essa posição de um imperialismo churchilliano. Quanto a Malraux -
modo um pouco mais concr eto ainda, mais ou menos CUJO talento é incomparavelmente maior e mais
em analogia com S. de Beauvoir, enquanto recusa autêntico que o de Koestler - · niilista dado ao culto
misturar-se à confusão, isto é, no sentido de um "au- da frase revolucionária, também chegou a um lugar
dessus de la mêlée". Isto também nos parece pouco de destaque no estado-maior intelectual do General
criticável. Poderíamos, no entanto, notar que tra- De Gaulle.

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:Qe__ m inha a r te, 'amais neguei o mo mento relati-
- ~:amente justi fica do do existencia lismo, segun o o
. qua l o hom em se encontra colocado dian te de uma es-
, colha, em face de uma si t uação q ue exig:e resolução.
H istoricamente fa lando, o existencialismo se encontra C a p í t u 1 o IV
- também em urna "situação" e, nos ideólogos da clas-
se de Merleau-Ponty, a resolução não é somente de 1
1:
ordem moral e política, mas ao mesmo tempo filo-
sófica. Porém essa reso lução, principa lmente a de
tirar todas as conseqüências de sua atitude, sem te-
mor e sem hesitação, exige uma certa coragem. Si-
mone de Reauvoir formula - inconscientemente tal-
IV.
A TEORIA LENINISTA
vez - com bastante éxatidão, a atitude dos existen- DO CONHECIMENTO E QS PROBLEMAS
cialistas honestos, ao querer caracterizar a "situação" DA FILOSOFIA MODERNA
., do homem atual em geral, quando diz que " . . . têm
medo diante da liberdade". Sendo dada a posição
que ocupam hoje, esse medo é ni tidamente sensh·el em 1 1.
S. de Reauvoir, como em M erleau-Ponty. Hoje, têm
ainda liberdade, mas também a responsabilidade his- A ATUALIDADE IDEOLÓGICA DO
tórica da resolução que é exigida deles: depende ape- MATERIALISMO FILOSÓFICO
nas deles próprios se quiserem seguir o caminho de
Romain Rollancl ou antes o de :tvialraux.
As coisas têm entretanto sua própria lógica e
dá-se o mesmo no reflexo ela realidade objeti,·a da . E m Materialismo e Empiriocriticismo, sua prin-
nossa consciência. A posição existencialista está, por cipal obra fi losófica, Lênin dá uma defi niçã o cla ra da
sua própria natureza, tão profundamente ligada ao d ife r: nça, criada pela evolução histórica , que sepa ra
niilismo, que aqueles que nela se aferrarem serão
sua epoca da de Ivfarx e de Enge ls. A ideologia dos
levados - quer queiram ou não - na direção seguida
a utores do Manifesto Comunista é um materia lismo
por Malraux. Qualquer que seja entretanto a reso-
lução subjetiva dos existencialistas honestos, qual- d_ialético e histórico, enq ua nto que na época em que se
quer que seja a medida na qual sua resolução modifi- situa a at ividade de Lên in, o cent ro de g ravidad e do
car o curso ele seu destino de homens e de pensadores, problem a se des loca : a evolução do pensam ento está
é a História que decidirá dos destinos do existencia- agora centrado num materialismo dia lético e histó-
lismo e, no essencial, sua decisão já tomou fo r ma. n co.
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Como se justifica o lugar preponderante que o Mas essa definição de base oferece duas perspec-
materialismo filosófico ocupa no pensamento da época tivas possíveis à ideologia idealista. Na primeira, a
imperialista? Justifica-se, a nosso ver, pelo fato de do idealismo subjetivo, a consciência id entifica-se a
que o idealismo filosófico atravessa atualmente a cri- todas a s form as da consciência individual, da qual a
se mais profunda e, até agora, insuperável de sua existência é apenas o produto, enqua nto sensação,
história. Com efeito, nosso período histórico apre- ilusão, idéia etc. É assim que é poss ível distinguir
senta, no plano político e social, um car5 ter reacioná- diversas orientações no interior do idealismo subje-
rio extremo e esse fato empresta à crisé um aspecto tivo, de que certos adep tos admitem, fora da cons-
completamente particular. ciência, uma existência objeti va, mas incognoscível
por princípio (a Ding an sich de Ka nt ), enquan to ou-
A evolução das ciências naturai s e sociais do sé- t ros proclama m in existente tudo o que ultrapassa as
culo XIX encurralou o idealismo filosófico em contra- form as e os conteúdos da consciência. Essa última
dições que era incapaz de resolver. Mas, porque as orientação a ting e sua fo rma mais pura no solipsismo.
correntes sociais e políticas que dominam nosso tempo Quanto ao idealismo objetivo, a noção à qual
não poderiam passar sem uma ideologia idealista , a confere o caráter exclusivo de realidade propriam ente
crise tomou obrigatoriamente o aspecto de uma série dita é ig ualmente assimilá vel à consciência, que não
ininterrupta de tentativas, com vistas a descobrir um· é entretanto a consciência huma na e individual. Tra-
"terceiro caminho ", que haveria de permitir à mo- ta-se, ao contrário, de uma consciência objetiva mente
derna teoria burguesa do conhecimento ultrapassar o existente da qual a consciência humana seria a penas
idealismo e o materialismo. Na r ealidade , trata-se um derivado muito longínquo, uma ema nação ou um a
apenas, sem dúvida, de tentativas de renovação do fase. Ora, é evident e que não existe nem na natureza,
idealismo destinado a tornar-se uma arma nova no nem na sociedade, e em nenhuma pa rte aliás, uma
combate ideológico contra o materialismo. consciência objetiva dessa ordem, que seja indepen-
dente da consciência humana. O idealismo objetivo
Não é possível tentar compr eender esse processo está portanto, por sua própria natureza, consta nte-
complexo e multiforme, a não ser que se renuncie de mente submetido à necess idade de cria r mitos para
uma vez por todas a deter-se nas especulações vazia s demonstrar e ilustrar a existência de ssa consciência
da teoria burguesa do conhecimento. T rata-se antes objetiva e seu papel de criador univer sal. Os mais
de tudo de opor o materialismo ao idealismo. de uma importantes desses mitos são as diversas concepções
maneira fundam ental, excluindo toda possibilidade de da divindade, mas existem naturalmente outros mitos
malentendido. A fórmu la de Eng els, segundo a qual ideológicos relativos ao idealismo objetivo, tais como,
o materialismo afirma o primado da existência sobre por exemplo, o mito platônico do mundo da idéia pura,
a consciência, enquanto que o idealismo se define de que o nos so é apenas o reflexo, e também o Welt-
pela afirmação do contrá rio, nos convém perfeita- geist hegeliano, que abarca na concepção de um pro-
mente. cesso de evolução grandiosa o conjunto da natureza

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e da sociedade, o mundo material e espiritual do ho- único: a partir de então, a consc1encia humana está
mem etc... dada para a ciência como o produto his tórico de uma
O brilho, a eficácia e a duração dos sistemas de- evolução natural de vá rios milhões de anos e de uma
pendentes do idealismo objetivo são função da relação ~vol~ção soci_a l _muito longa. Também os adeptos do
que existe entre o mito que estão condenados a criar 1dealt smo obJet1vo conduziram um combate encarni-
e o nível geral e a posição das ciências de sua época. ç~do durante séculos contra os progressos das ciên-
O idealismo objetivo pode, na medida em que as con- cias, desde as descobertas de Copérnico até às de
dições determ inadas pela época o permitem, integrar D~rwin. Ao fim ele certo tempo, fo ram obrigados
em seu sistema certos elementos essenciai s da filoso- a mcorporar esses r esultados - sob fo rmas mod ifi-
fia ma teriali sta. ( É o caso da teoria do conhecimento cadas, falseadas ou atenuadas - a seu sistema. Essa
de Platão e dos neoplatônicos.) as_s imil~ção progressiva sign ifica entretanto que o
Pode, por outro lado, fo rmular em seu mito ele- mito criado pelo id ealismo objetivo torna-se cada vez
mentos metodológicos novos, iluminados pelo progres- mais a bstrato, cada vez mais vazio de conteúdo e
so das ciências, ainda que sob um aspecto mitificado. cada vez menos apto a fornecer uma exp licação pelo
(P or exemplo: a idéia de evolução em Hegel. ) Eis menos plausível dos fe nômenos da vida r eal. Os
porque na época do declínio da sociedade antiga o n_1itos dependc_ntes do idealismo objetivo que se cons-
ideali smo objet ivo constituiu-se sob sua fo rma mais
. tituem em tai s condições não con têm mais, mesmo
t
in trans igente, a que lhe deu Plotino: eis porque o sob fo rmas mitificadas, os germ es de uma nova evo-
pensam~nto de Santo T omás de Aquino pôde dominar lu~ão científica, porque estão condenados, por sua pró-
os séculos da Idade !Vf édia; eis porq ue ainda os prin- pria natureza, a pa rticipar de um combate aberto ou
cípios metodológ icos pregressistas, nascidos da gran- dissimulado contra as conq ui stas das ciências e a ideo-
de subver são social e científica da Revolução puderam logia cient ífica . É assim que no clima social próprio
ser fo rmulados, com o máximo de perfeição em rela- ª? estágio do imperialismo, o idea lismo obj etivo deve-
ção à época, pelo idealismo objet ivo de Hegel. ria fatalmente tornar-se a ideologia da ala extrema
da reação. O nascimento cio mito fascista representa
O progresso das ciências no século X IX reduziu o aug-e dessa evolução .
a 11°ada esse clima espiritual indispensá Yel ao desen-
E ssa crise do idealismo objetivo levou o conjunto
volvimento do idealismo objetivo. Falta-nos lugar
do pensamento idealista a uma a lternativa. De um
aqui para esboçar, mesmo sumariamente, as circuns-
lado, restava-lhe a possibilidade ele lia-ar-se a um so-
tâncias dessa derrota. P ortanto, mencionaremos sim-
lipsismo sem reserva s, que só reconhe;e como efetiva-
plesmente a idéia da evolução histórica, que se impôs mente reais os conteúdos da consciência individual.
tanto nas ciências naturais como nas ciências morais. É evidente que o pensador conseqüente que adotares-
P or isso mesmo, tornou-se impossível para sempre sa doutrina ver-se-á obrigado a colocar em dúvida a té
considerar o mundo humano, o conjunto da natureza a existência de seus semelhantes. É com efeito im-
e da sociedade, como o produto de um ato criador possível ser solipsista intransigente; como Schope-
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nhauer disse um dia: só se pode ser verdadeiramen te
solipsista num hospício. vismo, salvaguardando sempre as pos1çoes teóricas
do idealismo subjetivo. Naturalmente, não podem es-
A outra solução consistiria na confissão da fa- capar da necessidade de criar mitos, necess idade que
lência do idealismo fi losófico e na obrigação de pro- r esulta da estrutura geral do idealismo objetivo.
ceder à sua liqüidação. , ~as, enquan.to que na época do idealismo objetivo
Condições particulares, próprias ao estágio do class1co esses 1111tos fornec iam ideoloo-ias universais
imperialismo, não per mitiram essa evolução realizar- e c?,eias ~e gran~eza,,, o~ n:iitos nascid~s sob a égide
se. No seu lugar, assistimos a inúmeras tentativas do terceiro caminho lumtam-se a revestir as cate-
sem resultado, cuja finalidade é elaborar um "tercei- · gorias do id~alismo subjetivo de uma pseudo-objetivi-
ro caminho" da filosofia, tentativas que só podem dade. É assun que o conteúdo da consciência torna-se
se realizar ao preço de um logro demagógico ou antes em ~ach m12 "elemento" da realidade objetiva, gra-
- nos pensadores de boa-fé - por um engodo in- ças a opera çao de contrabando que consiste em iden-
consciente. T al é o segredo do "terceiro caminho," tificar c~m a consc~ência qualidades e objetos que ela
que passa por não ser nem idealista nem materialista, ap_enas tira?ª realidade objetiva. A r.1itificação pro-
mas representante de um ponto de vista mais elevado, priamente dita consiste em apresentar esses elemen-
mais científico e mais moderno. tos como se não fossem nem conteúdo da consciência
A concepção do "terceiro caminho" implica - nem realidade objetivamente existente mas "alo-uma'
• ' b

é preciso dizê-lo - a confissão secreta da falência do outra coisa".


idealismo. Contrariamente ao idealismo clássico, cujos Essas veleidades filosóficas, de que a escola de
repr~sentantes tinham orgulho de se declararem idea- Mach representa um resultado, deveriam encontrar
listas e de participarem de um combate aberto contra na pessoa de Lênin um adversário vitorioso. A crí-
o materialismo, os adeptos modernos do "terceiro ca- tica teórica de Lênin é de um porte tão elevado que
minho" não ousam mais proclamar sua filiação ao todos os seus argumentos se aplicam aos sistemas
idealismo e vão mesmo aparentar que o combatem. aná_logos . n~scidos ulteriormente, durante a evolução
E sse caminho só pode conduzir, mesmo em pensadores do 1mpenalismo. O essencial da crítica leninista con-
de boa fé, a uma mistura eclética e arbi trária de siste em afastar resolutam ente todas as especulações
elementos provenientes de sistemas diferentes. vazias, para voltar à questão sobre a qual deve repou-
A derrocada das bases científicas do idealismo ob- sar toda teoria do conhecimento, a saber: primado
jetivo levou necessariamente os adeptos do "terceiro da existência ou primado da consciência. Partindo
caminho" ao idealismo subjetivo. Com exceção de daí. confronta o ecletismo da teoria do conhecimento
certos casos raros, não aceitaram jamais, no entanto, moderno com os resultados das ciências e essa con-
as conseqüências que decorriam dessa situação e, re- frontação demonstra sem equívoco que os adeptos do
nunciando contradizer seu próprio ponto de partida, "terceiro cam inho" são na realidade idealistas sub-
esforçaram-se sempr e para atingir um certo objeti- jetivos. A ideologia própria ao "terceiro caminho".
essa pretensa superação da antinomia idealismo-ma:
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terialismo, nada mais é que um tecido de frases ocas mito é fornecido pela pretensa existência autônoma
e mitos errados. Lênin não deixa de comparar a de certas categorias da consciência, dadas como exis-
teoria do conhecimento do idealismo atual, contradi- tindo fo ra de toda consciência.
tório e enganador, aos seus ancestrais sinceros e in- No início de sua evolução, Husserl está ainda
transigentes, tal como a de Berkeley. É evidente que muito próximo da escola de Mach. "A questão da
a comparação não fala em favor dos modernos. Acres- existência e da natureza da realidade objetiva é uma
centemos ainda que a aceitação sem reserva da pura questão metafísica," diz, repudiando assim toda teo-
ortodoxia berkeleyana estaria ainda longe de resolver ria do conhecimento. A pretensão ao objetivismo não
o problema no qual estão envolvidos os idealistas. de tarda entretanto a prevalecer, tanto em Husserl como
nosso tempo. O bispo Berkeley não pode, com efetto, nos seus alunos e é assim que se desenvolve a ontolo-
escapar à posição indefensável do solipsismo puro a gia, isto é, a pesquisa mais recente do "terceiro ca-
não ser garantindo a realidade ~bjetiva .d? mund? minho."
exterior, do mundo humano, pela mterposiçao da di-
vindade. Ora, essa solução está proibida à maior parte Assim como a fenomeno logia de Husserl, tam-
dos pensadores atuais. Desde Nietzsche até Sartre, bém a ontologia inclina-se para entidades que depen-
os fa bricantes dos mitos mais a udaciosos proclamam- dem exclusivamente da consciência, mas para procla-
mar de uma maneira absolutamente dogmática e sem
se ateus.
Seria falso crer que a crítica de Lênin concerne o menor começo de prova, que os "objetos" assim
exclusivamente à doutrina de Mach e que a evolução revelados são objetivamente reais, até os que consti-
ulterior· da filosofia a ela escapa. A tendência domi- tuem o fundamento mesmo da realidade objetiva.
nante da filosofia do estágio do imperialismo perma- Assim, a ontologia moderna utiliza, sem o con-
nece imutável : é a pesquisa do "terceiro caminho". fessar, as aquisições do materialismo, porque na me-
Nada prova melhor que o exemplo do existencialismo dida em que põe correlações objetivas, estas não po-
proveniente da fenomenologia. de Hus~erl. Aí_ t~m- dem ser outra coisa que os r~flexos da r ealidade ob-
bém a filosofia pretende atingir a realidade obJettva, jetiva na consciência. Assim procedendo, é perfeita-
a uxiliando-se das categor ias da consciência pura. A mente incapaz de demonstrar o· que t em a audácia
fenomenologia de Husserl e a ontologia à qual deu de proclamar - apoiando-se na introspecção - como
nascimento procedem examinando os conteúdos, os essência de toda existência.
estados e os atos da consciência. A ilusão consiste Isto redunda, no melhor dos casos, em fazer ,pas-
precisamente em crer que, b~sta voltar ~s costas ,ª~s sar por realidades certas formas correntes do pensa-
métodos pur amente psicologicos par~ sair do do~imo mento. Assim, por exemplo, procurando as categorias
da consciência. Ora, a f enomenolog1a, qu e considera. de base da existência social, Heidegger não é somen-
não os estados e os con teúdos da consciência como te incapaz de fornecer a definição epistemológica, mas
reflexos da realidade objetiva, não pode fazer outra ainda não cessa de falseá-las, conforme às aspirações
coisa senão criar um mito. O núcleo central desse do pessimismo moderno.

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+
Eis porque assistimos no campo do existencialis- dadeiro. Lênin, como o fez Engels antes dele, subli-
mo às mesmas lutas internas que Lênin tinha consta- nha em várias oportunidades que é um dever para a
tado nos alunos de Mach: cada um acreditava terdes- filosofia materialista assimilar todo progresso novo
coberto o verdadeiro "terceiro caminho", mas no en- das ciências naturais e aproveitar toda nova desco-
tanto seus colegas e seus rivais não deixavam jamais berta, para obter um conhecimento mais concreto e
de demonstrar que ele apenas tornava a servir sim- mais exa'to da estrutura da matéria.
plesmente o bom velho solipsismo, revestido de uma As relações entre a filosofia e as ciências pode-
terminologia nova. É exatamente essa crítica que riam portanto ser caracterizadas da maneira seguinte:
J.-P. Sartre dirige a Husserl e a Heidegger. mesmo nas questões especificamente filosóficas a fi-
Lênin tem o mérito de ter analisado o "terceiro losofia é aprendiz das ciências, mas O'uardand~ sua
caminho" desde o início dessa evolução. Desvendou independência total nas questões fu;damentais da
o mecanismo do mito que se constitui sob essa bandei- teoria do conhecimento, para poder, graças a essa
ra, provando que o idealismo objetivo que se tornou independência, retomar seu lugar de guia das ciências
indefensável, soçobra no solipsismo. Iluminou de naturais, todas as vezes que os cientistas ameaçam
maneira nova a modificação profunda dos laços entre perder-se, quer por causa da influência de seu meio
as ciências e a filosofia, constatando que se a filosofia burguês, quer por falta de cultura filosófica.
antiga sustentava o progresso das ciências, a filoso-
Nos nossos dias, nunca foi tão necessário subli-
fia moderna desempenha o papel de freio porque idea- nhar a importância dessa missão da filosofia. Acon-
liza todas as tendências reacionárias. tece, com efeito, e freqüentemente, que cientistas -
~ primeiramente no domínio do conhecimento que são todos materialistas no laboratório, mesmo
científico que Lênin dá uma definição clara das rela- sem confessá-lo - caem na ideologia reacionária,
ções que unem a filosofia e as ciências. Antes de desde que esboçam a menor tentativa teórica ou me-
tudo, trata-se para Lênin de elucidar sem equivoco todológica. Lênin não demonstrou que o próprio Mach,
possível a plataforma da teoria do conhecimento _d_? na sua prática científica, estava @brigado, segundo
materialismo filosófico. É preciso separar bem niti- sua própria confissão, a ser materialista? ...
damente a definição gnosiológica da noção de ma- É aí que o materialismo militante de Lênin inter-
téria das definições concretas qüe dela oferecem as vém no grande debate da filosofia. Contrariamente
ciências naturais no decorrer de cada etapa de sua à_ pseudo-objetividade professoral - q'ue apenas dis-
evolução. "Pois a única qualidade da matéria sobre simula, bem ou mal, o parti-pris filosófico e social
a qual repousa o materialismo filosófico, escreve Lê- c~~sciente ou não - há, em Lênin, um parti-pris
nin, é sua realidade objetiva, que existe fora da nossa ntttdo e consciente em todas as questões ideolóO'icas.
consciência". É aliás, assim como Lênin o diz, a caracteristica
Essa delimitação muito nítida não quer dizer, geral da filosofia materialista. É esse parti-pris que
longe disso, que a filosofia considera com indiferença toma uma forma concreta no combate de Lênin con-
os resultados das ciências. É o contrário que é ver- tra o idealismo novo.
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Quanto à crítica filosófica, Lênin opera uma dis- marxistas de sua época é precisamente o caráter pu-
tinção muito nítida entre a que vem de direita e a ramente negativo de sua crítica, que considera nem
que é mantida pela esquerda. As.si~, por e~emp~o, exaustiva nem suficientemente convincente. "É antes
a hesitação kantiana entre.º matenahsmo e o 1d~al_1s- do ponto de vista do materialismo vulgar que do ma-
mo, que se manifesta mais claramente a propos1to terialismo dialético, escreve, que Plekhanov critica o
da Ding an sich, sofreu críticas provenientes da es- kantismo - e o agnosticismo em geral - na medida
querda (Feuerbach e Tchernichevski) que lhe r epr~- em que se limita a rejeitar seus raciocínios a limine,
vam abandonár o materialismo abstrato para recair sem os corrigir (como Hegel corrigira Kant), apro·
no agnosticismo idealista, enquanto as críticas vin- fundando-os, generalizando-os e alargando-os, para
das da direita (desde Fichte até a escola de Mach) revelar a s correlações e interpenetrações de todas as
acham que postulando a existência objetiva da Ding . ,, eorno em todos os grandes pensadores
categorias.
an sich, Kant deixou de ser um idealista conseqüente. clássicos, não há, em Lênin, separação estrita entre
Eis como se formam, na luta ideológica, alianças a filosofia especulativa, a crítica e a história da filo-
objetivas em torno de cer tas questões, ali.anças qu~ sofia. E eis porque Lênin julga tão severamente a
não devem aliás jamàis fazer perder de vista as di- concepção acadêmica e, ao mesmo tempo, a concepção
?: :e
vergências que separ.am os. " a 1·~ad " ent s1:. LAenm
crit ica de uma maneira mmto mc1s1va o idealismo de
. " interessante" da história da filosofia.

Hegel, sem que se veja impedido ~e aprov~r. su~ crí- I


2.
tica dialética da Ding an sich kantiana. Lenm igual-
mente criticou - e veremos com que vigor - as fa- MATERIALISMO E DIALÉTICA
lhas do antigo materialismo e entretanto soube des-
cobrir aliados contra o "terceiro caminho" de Mach Foi necessário colocar todas essas questões para
e Feuerbach até em Haeckel e mesmo na prática chegar ao problema da dialética. Vimos com que
científica do~ cientistas atraídos pelo kantismo. Aliás vigor Lênin sublinha a importância do materialismo;
Lênin, como já dissemos, atribui uma impor tância seria entretanto totalmente falso concluir daí que des-
considerável às críticas que se dirigem reciprocamente preza a dialética. Ao contrário: é o pritneiro pensador
os pensadores idealistas e que constituem, segundo revolucionários, depois de Marx e Engels, que soube
ele, uma parte importante do processo de autodes- ~ar um novo impulso .ao estudo da dialética . . O pro-
truição do idealismo. A •
ólema do primado gnosiológico da matéria apresen-
P or todas essas razões, sob a pena de Lenm, a ta-se nele sob um aspecto novo. O materialismo ocupa,
história da filosofia torna-se viva, movimentada e com efeito, um · lugar central na evolução atual do
mesmo dramática. O estilo da crítica Ieninista é pensamento, precisamente porque o método dialético
vivo e nervoso e seu sentido crítico apreende toda não _poderia agora afirmar-se de outro modo a não
tendência progressista, mesmo se está embaraçada em ser sobre a base da ideologia materialista. A crise
contradições. O que Lênin reprova nos pensadores do idealismo exclui definitivamente, com efeito, a pos-

218 219
sibilidade de ver surgir no nosso tempo - g uardadas década do nosso sécu lo. Lênin logo reconheceu a
todas as proporções - um Proclo, um Nicolau de importância dessa transformação do ponto de vista
Cusa, um Vico ou um Hegel. da filosofia, o que lhe permitiu fo rn ecer imediatamen-
Mas a vida não pára; as ciências naturais pros- te a resposta dialética ao problema igualmente dialé-
seguem sua evolução, e os problemas sociais estão tico que essa transformação das ciências naturais ti-
agora carregados de uma força da qual ~epende o nha objetivamente colocado. Essa transformação ma-
futuro da humanidade. Esses processos continuam seu nifestar a-se, antes de mais nada, pela derrocada "brus-
curso, sejam ou não adeptos do método dialético os ca" de concepções consideradas inabaláveis há déca-
pensadores da nossa época. A própria vid~, a e~ol~- das e mesmo há séculos, sobr e as qualidades e a
ção da sociedade e da natureza são de carater d1ale- estrutura da maté ria. A dualidade clássica da maté-
tico e quanto mais nosso conhecimento as P~.netra:, ria e da energia, da matéria e do movimento tornou-se
quanto mais nossa evolução ,objetiva progredir,.?1ª!s "de repente" vacilante. A necessidad e de noções fí-
esse caráter se desvenda a nos. É assim que a c1enc1a sicas novas apresentava-se ao mesmo tempo motiva-
e, antes de tudo, a filosofia, acabam po.r se ~ncontr ar da pela vontade de dar aos fenômenos que se acabava
em face de problemas que não poderiam 1g~orar e de descobrir, uma ex.pressão adequada no plano do
que tomam um caráter dialético cada vez ma~s ace.n- pensamento. Ora, a grande maioria dos físic os filó-
tuado. A ciência e, em primeiro lugar, a fi losofia, sofos, como dos pensadores especializados em comen-
são entretanto incapazes de fornecer a essas ques- tar a evolução das ciências naturais, recuava em de-
tões dialéticas respostas que o sejam igualmen te. O sordem diante dessas questões, decididamente inso-
problema autêntico, freqüentemente decJsivo para o lú veis, sem o recurso do método dialético. Es sa fuga
homem recebe uma solução falsa, clesf 1gurada, en- em pânico para o idealismo reacionário devia arrastar
ganado~a. A questão real, cuja resposta imp licaria mesmo certos físicos que permaneceram no entanto
possibilidades grandiosas de progresso, torna-se as- materialistas nos seus trabalhos científicos.
sim uma arma a serviço da reação. A crise teórica das ciências da natureza apresen-
Lênin reconheceu genialmente essa condição es- tava-se de um lado ·sob o aspecto de uma crise das
sencial da filosofia moderna. Longe de se limitar a concepções estabelecidas e, de outro, - sobretudo no
constatar essa evolução, evidente para ele, no d.om_í- domínio especulativo - como uma crise do materia-
nio das ciências morais, que se tornaram reaciona- lismo. A transformação da física significava, para
rias estendeu o campo de sua descoberta, aplicando-a alguns, o desaparecimento da matéria, e, portanto,
à c:ise da fi losofia idealista e mesmo à da física mo- a derrocada da ideologia materialista. Sabemos que
derna, prevendo assim nas suas grand~s linhas toda essa crise da filosofia não deixou de causar estragos
a evolução ulterior das ciências naturais modernas. nos meios marxistas: mais ou menos em toda parte,
A grande subversão da física moderna.' essa sub- na II.ª Internacional, o materialismo perdia terreno,
versão cujo resultado concreto não se mamfest~ p~ra enquanto o revisionismo filosófico, o kantismo, a dou-
nós senão há pouco, data, como se sabe, da primeira trina de Mach encontravam adeptos.

220 221

o
..
É ao longo dessa crise que L ênin soube aprovei- não é a categoria gnosiológica da matéria que muda,
tar a fertilidade e a eficácia da ideologia materialista. mas é o método teórico do materialismo mecanicista
Lênin via muito claramente que a subversão da física que desmorona por causa da incapacidade em apreen-
não tocava em nada as bases filosóficas do materia- der fenômenos novos de uma maneira adequada. As
lismo. Quando a física dá uma definição inteiramente causas de sua falência são antes de mais nada a
nova da estrutura da matéria, é evidente que a filo- rigidez dogmática de suas categorias, a preponderân-
sofia materialista deve dela se aproveitar. Mas quais- cia da doutrina mecanicista, a incompreensão do re-
quer que sejam as descobertas da física, qualquer lativismo das teorias da ciência e, enfim, a ausência
que seja o conteúdo concreto das leis e das hipóteses do método dialético. Lênin nos diz que "a física nova
que fund am, a única questão fundamental da teoria devia macular-se de idealismo, essencialmente porque
do conhecimento permanece inalterada. Eis o que os físicos ignoravam tudo da dialética. Combatiam
diz Lênin a esse respeito: "O único ponto de vista o materialismo metafísico (na acepção engelsiana do
justo, o do materialismo dialético, deve ser formulado termo e não dos positivistas, isto é, de Hume), e lu-
assim: os elétrons, o éter e todo o resto existem ou tando contra seu caráter unilateral e mecanicista ter-
. . '
não fora da consciência humana, enquanto r ealidade minaram por mmar os fundamentos do materialismo.
objetiva? É a essa questão que os cientistas devem A negação da imutabilidade da estrutura e das qua-
r esponder sem hesitação e eles re spondem sempre lidades até então conhecidas da matéria conduziu-os
afirmativamente, da mesma forma que admitem a à negação da própria matéria, em outras palavras,
existência da natureza como anterior ao nascimento à negação da real idade objetiva do mundo físico. A
do homem e da matéria orgânica. A questão está negação do caráter absoluto das leis fundamentais
assim decidida em favor do materialismo, pois, como mais importantes levou-os a colocar em dúvida a exis-
tência de toda lei objetiva na natureza e declarar
já vimos, a noção de matéria nada mais sig nifica, do
que as leis naturais eram simplesmente "conven-
ponto de vista da teoria do conhecimento, do que a
ções", "necessidades lóg icas" etc. Postulando o ca-
realidade objetiva, cuja existência é independente da ráter aproximativo e relativo do conhecimento, foram
consciência humana e é r efletida por esta."
levados a negar o objeto que existe independentemen:
No entanto, essa resposta justa e decisiva cons- te do conhecimento, objeto que esse conhecimento
titui para Lênin apenas um ponto de partida. Expli- reflete de uma maneira aproximativa e relativamente
cando a crise, analisa o idealismo reacionário ao qual justa etc., etc."
dá origem e demonstra irrefutavelmente que as hi- Vemos portanto que é precisamente para defen-
póteses novas que serão construídas sobre fenômenos der o materia lismo que Lênin dirige-se contra o ma-
novos não tocam em nada as bases da teoria do co- terialismo antigo e que é ainda a defesa do ma teria-
nhecimento materialista. Sublinha igualmente que a lismo que o leva a acentuar os problemas da dialética.
crise da física é ao mesmo tempo a do antigo materia- Lênin ataca frontalmente esses problemas, colocan-
lismo mecanicista. Não é a matéria que desaparece, do a questão da relatividade do conhecimento. O mé-
222 223
todo dialético formula essa questão da maneira se-
guinte: como a relatividade do co?h~cimento - a A questão assim posta por Lênin, Hegel tinha
das leis, teoremas etc. - pode constttmr um elemento já dado uma resposta dialética, declarando que o rela-
necessário, inelutável, do absoluto? Como ocorre que tivo era um componente, mas somente um componen-
a relatividade do conhecimento não destrói a objeti- te, da dialética. Em relação à totalidade, não se
chega à negação da verdade objetiva, mas à definição
vidade das leis e dos teoremas, assim como a objetivi-
histórica e gnosiológica da aproximação da verdade.
dade e a permeabilidade ao conhecimento do mundo Eis como Lênin expõe esse princípio: "Para o mate-
exterior?
rialismo moderno, isto é, para o marxismo, somente
Somente a dialética pode fornecer-nos a resposta os limites da aproximação da verdade objetiva são
a essa questão. Para todo o pensamento mecanicista, historicamente determinados, enquanto que a ex;is-
metafísico ou a tola do na lógica formal, a verdade tência dessa verdade mesma é absoluta: tanto quanto
não pode ser senão absoluta ou relativa. Não há nosso progresso em direção a ela. . . O que é his-
transição: é preciso escolher entre os dois. O ma- toricamente determinado é a data e as circunstâncias
terialismo não-dialético não escapa também a essa al- da conclusão de nosso conhecimento da essência das
coisas . . . mas o fato de que toda descoberta de tal
terna tiva. Ora, o relativismo e, com ele, o agnosti-
natureza é um progresso do "conhecimento absoluta-
cismo terminaram necessariamente por impor-se ao mente objetivo", é ele mesmo absoluto. Em suma,
pensamento antidialético moderno porque a evolução toda ideologia é historicamente determinada, mas é
das ciências e a evolução da própria vida impõe-nos a absoluto que a toda ideologia científica corresponde
todo momento novas provas da relatividade dos fe- uma verdade objetiva, isto é, um elemento da nature-
nômenos, assim como o conhecimento que temos deles. za absoluta. Objetar-me-ão sem dúvida que essa
A questão que Lênin põe, em presença da crise distinção entre verdade relativa e verdade absoluta
da física moderna e da falência do materialismo não- ~ bem vaga. Responderei a essa objeção dizendo
dialético, tem portanto um sentido bem mais profun- que minha distinção é suficientemente vaga para im-
do e mais geral que a ocasião que lhe serve de pr~- pedir a transformação da ciência em dogma no sen-
texto. Comentando a crise da física moderna, Lênm tido pejorativo da palavra, isto é, em uma coisa mor-
não se limita a fazer o processo do materialismo não- ta, rígida, petrificada, mas que é ao mesmo tempo
dialético mas sublinha que o idealismo atual é inca- suficientemente nítida para traçar, nítida e irrevoga-
paz de ~ssimilar os fatos novos trazidos à l~z pel~ velmente, a fronteira entre o fideísmo e o agnosticis-
evolução da ciência. Só a forma de sua falenc1a e mo de um lado, o idealismo filosófico e os sofismas
particular, porque resulta numa ideologia relativista, dos discípulos de Kant e de Hume, de outro."
que aliás se afirmará ao longo da evolução do pensa- Somente o materialismo dialético pode chegar a
mento moderno. A título de exemplo, bastará evocar essa concepção, flexível e intransigente ao mesmo
o papel da probabilidade no existencialismo francês. tempo, da relatividade enquanto momento do absolu-
to. Sua fé no Weltgeist autorizava a Hegel uma
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225
convicçao tão profunda na existência objetiva e na de Schopenhauer, que qualificava a dialética de "delí~·
inteligibilidade do mundo exterior, que pode perfeita- rio". Enfim, não é por acaso que Kierkegaard, o
mente conceber a relatividade enquanto momento, adversário mais intransigente da dialética hegeliana,
sem no entanto cair no relativismo. Em Hegel, esse torna-se o pensador em moda nos anos que deveriam
reconhecimento da natureza dialética da realidade preceder o advento do fascismo. Essas poucas consi-
roça mais de uma vez, aliás, o limite da dialética ma- derações bastam sem dúvida para indicar quão in-
terialista. O idealismo atual ao contrário, quando transponível é o abismo entre o materialismo dialé-
tenta ultrapassar o agnosticismo puro ou o solipsis- tico e todas as outras correntes do pensamento no
mo, só pode perder-se em mitos sem fundamento, estágio do imperialismo. É aliás precisamente a cons-
freqüentemente demagógicos, ou então elaborar pen- ciê~cia dess.ª. contradição irreconciliável que explica
samentos, idéias e experiências vividas que não per- o vigor decisivo da argumentação, nos escritos filo-
tencem a ninguém e que são tidas como "elementos
comuns" ao mundo objetivo · e ao mundo subjetivo.
. , . de Lênin. Lênin via acertadamente, desde
sóficos
o micio, o que se preparava; sabia que todas essas
Para a filosofia moderna, a escolha está portanto li- teorias distintas, redigidas numa linguagem comple-
mitada entre um mito confessado e o mito que pro- tamente inacessível à média das pessoas, forjariam
cura esconder-se. Mas permanece fatalmente anti- as armas filosóficas, políticas e sociais da reação
científica e antiprogressista, porque suas sínteses mundial.
fundam-se apenas num único elemento. Lênin sabia, como grande pensador dialético,
O pensamento que se constrói sobre tais bases extrair o ~ado positivo deste conjunto de fatos negati-
não poderia ser dialético. Se bem que idealista, o
pensamento de Hegel era dialético, mesmo que seu -
vos. Assim como as leis da dialética ensinam a ne-
g:çao e' a força motriz do progresso. É evidente ' que
Weltgeist abarcasse, ainda que sob um aspecto miti- nao falamos das teorias reacionárias e dos mitos mas
ficado, o conjunto da natureza e da sociedade, como dos próprios fenômenos, que fundam estas visõ~s do
também a história desta. Além disso, a concepção esp.írito. A negação fértil, força mo.triz do progresso,
hegeliana não era dogmática e rígida, mas sim a reside sempre nas questões e não nas respostas. Ora,
representação móvel do processo universal da vida, n,o. caso de que nos ocupamos, trata-se da crise da
renovando-se sem cessar pela morte. fisica e da derrocada da antiga noção da matéria.
Uma tal concepção é imposs ível para o "terceiro Lênin combatia os comentadores idealistas desse fe-
caminho" do idealismo moderno. Não é por acaso
nô~e?o e ~studava com interesse e compreensão o
que a revolução de 1848 marca o término da crise propno fenomeno, tal como se manifestava na crise
da filosofia hegeliana, à qual deveriam suceder di- das ciências !lat'urais. Também devia ele compreen-
versas variantes do materialismo mecanicista e do der que a derrocada das concepções do materialismo
idealismo subjetivo, muito diferentes entre si mas mecanicista marcava precisamente o momento do
todas igualmente antidialéticas. Não é por acaso n.ascimento da concepção nova do materialismo dialé-
que essa época vive também o apogeu da influência tico. "A física moderna, escreve ele, está em vias
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227
de da r à luz o materia lismo dia lético." Cita mos acima nem por isso deixam de compor os fenômenos que
a crítica len inista das concepções de P lekha nov so- percebemos. Para o materialismo pré-marxista ha-
bre a história da filosofia. Aqui, Lênin nã o se con- via nisto _u,:1 dil:':1ª insolúvel, dilema que o j~vem
ten ta em exercer uma crítica. Por sua própria ação Marx de:''ª 1dentif1car em Demócrito, na contradição
prá tica, opôs sua concepção verdadeiramente ma rxis- que subsiste entre a percepção direta e a noção de
ta do progresso ideológico da humanidade à imagem a tomo.
desfigurada e grosseira que o ma teria lismo mecani- A fi losofia moderna apresenta numerosas va-
cista faz dele. ri_antes contemporâneas desse mesmo problema. Lê-
nm estabelece claramente o laço necessário entre a
3. percepção e a realidade objetiva - o "sensualismo"
não é, para ele, um elemento constitutivo da atitude
SIGNIFICAÇÃO DIALÉTIC,A DA materialista? - mas por outro lad o, reconhece que
APROXIMAÇÃO NA TEORIA se. trata apenas de um elemento, que tem de ser ins-
DO CONHECIM ENTO C'nto_ numa total_idade dialética para tornar-se a ga-
rant i.a do conhecimento da realidade objetiva. I solado
Para L ênin, a principal fraqueza do mater ialismo em s, n_1esmo, o sensua lismo não poderia fornecer essa
mecanicista reside na sua incapacidade de aplicar a Í garantia e Lênin sublinha com razão que o sensua lis-
dialética ao processo do conhecimento. Q ue significa 11_10 _de Locke foi o ponto de partida comum do mate-
essa crítica no plano da filosofia? ~1ali~!110 de Diderot e do solipsismo de Ber keley. Não
O materialismo mecanicista atribui ao conheci- e alia_s por acaso que Shaftesbury ou Diderot 1 todos
mento a projeção direta de um mundo estático e os. do.is ~naterialis tas, procurando formular as leis da
imóvel, um reflexo bruto, tal como resulta de nossa ex1stencia, ocupam uma posição vizinha do plato-
msmo.
experiência cotidiana. Essa experiência é, sem dú-
O problema das relações que unem o fenômeno
vida, um fenômeno fundamental, que constit ui fatal-
e a existência, a existência e a lei etc., o problema de
mente o ponto de partida de toda reflexão, porque o
sua homogeneidade ou de sua unidade dialética tor-
único conhecimento que temos do mundo chega-nos
na-se portanto essencial na evolução do per.sarnento
por intermédio dos nossos órgãos. É imposs ível con-
moderno. É ainda Hegel, precursor da dialética mo-
testar essa verdade, sem cair em pleno agnosticismo. derna, que realiza o passo adiante decisivo, e Lênin,
Mas o mundo exterior ultrapassa o que é imedia- nas. suas Notas Marginais para a Lóg ica de Hegel,
tamente dado pela percepção de nossos órgãos. O defme to_da a importância metodológica desse passo.
mundo exterior é ao mesmo t empo movimento e trans- A reflexao, ultrapassando a existência imediata dá
for mação. Compreende ainda a di reção da tra nsfor- 1ug~r a' 1'I usao
- d e que essa superação seria unicamente
mação e suas leis, assim como elementos constantes, de~1d_a ao conhecimento e exterior portanto à realidade
escapando talvez à nossa percepção direta, mas que ObJet1va. Na verdade, essa superação é realizada pela
228 229
própria existência, assim como a descoberta de Hegel
ção do ser (Sein, Dasein, W esen, E xistenz, Realitiit,
e os comentários materialistas de Lênin ressaltam.
Wirklichkeit) repr esenta uma das maiores revelações
Ora, se caminhando do fenômeno para a essência,
da lógica hegeliana. Sublinhemos entretanto que não
o conhecimento apenas segue o movimento da pró-
se trata de uma hierarquia fria e rígida, como a dos
pria existência, isto é, se tudo o que se convencionou
neoplatônicos, mas de uma unidade dialética, isto é,
chamar "abstração", " lei natural" etc., é apenas for-
contraditória, da relatividade do ser ou do não-ser.
ma nova, se bem que inacessível à percepção direta
A essência está dotada de uma existência mais pro-
do próprio existente, se enfim esse caminho do co-
funda que o fenômeno imediato, que é apenas um
nhecimento não constitui urna atividade autônoma,
de seus elementos constitutivos, enquanto a essência
pertencendo-lhe exclusivamente, mas simplesmente o é precisamente a síntese, a unidade desses elementos.
reflexo complexo e indireto do movimento e ela trans- Segue-se necessariamente que jamais poderiam ser
formação do ser na consciência humana, então a teo- considerados separadamente um do outro. O conhe-
ria do conhecimento materialista, segundo a qual a cimento da correlação mútua dos fenômenos objeti-
consciência ·humana reflete a realidade objetiva cuja vos e imediatos indica o caminho para o conhecimento
existência é independente ela sua, apresenta-se sob da coisa-em-si: assim como Marx e Engels, Lênin
uma luz completamente nova. A realidade objetiva faz igualmente sua essa crítica de Hegel a Kant.
sendo ela mesma um processo feito do movimento dos As considerações que precedem não poderiam
fenômenos que evoluem para tornar-se seu contr ário, entretanto pretender esgotar o problema das relações
a reflexão não poderia pretender reproduzí-la de uma
maneira adequada, a não ser com a condição de ser
dialéticas do absoluto e do relatiYo.LO conhecimento
da essência só se torna verdadeiramente adequado
ela mesma dialética.
quando a reflexão chega a descobrir suas leis ima-
Essa concepção suprime de vez as questões que
nentes. É assim que a investigação científica abstra-
pareceram insolúveis à teoria do conhecimento do
ta atinge a mais elevada forma à qual possa preten-
idealismo. A oposição rígida entre fenômeno e es-
der. Lênin, assim como Marx e Engels, não deixa
sência, entre o imediato e a coisa-em-si ( Ding an sich)
de insistir na importância dessa consideração, sobre-
não existe mais. A essência é objetivamente real e,
tudo nas suas polêmicas contra o empirismo vulgar,
do ponto de vista da teoria elo conhecimento, "da
que se perde na enumeração, na descrição e no orde-
mesma essência" do imediato : essa descober ta su-
namento mecânico dos fenômenos imediatos.J Contra
prime o erro que consistia em rebaixar o fe nômeno
esse empirismo, Engels tinha razão de escrever : "A
ao nível da aparência. A interpretação geral e abstra-
lei geral da transformação da energia cinética é bem
ta da noção de objetividade atribui existência tanto
mais concreta que tal ou tal de seus exemplos. "con-
ao fenômeno imediato quanto à essência. A diferen-
cretos". Lênin também se Yolta resolutamente con-
ça que os separa, manifesta-se - através da sucessão
tra a concepção, de Kant por exemplo, segundo a
ininterrupta das transições - pela diversidade dos
qual a essência apreendida pela reflexão não poderia
g raus da existênc!ª· O estabelecimento dessa grada-
pretender à verdade objetiva, porque lhe falta a ma-
230
231
téria temporal e espacial fornecida pelos sentidos.
"O va lor, escreve Lênin, é uma categoria à qual falta essa margem, cada vez mais, mas a contradição dia-
a matéria fornecida pelos sentidos e no entanto é lética entre ~ssência e fenômeno imediato não é me-
mais verdadeira que a lei da oferta e da procura." nos eterna. A lei concreta não será jamais senão a
Lênin filia-se totalmente à posição de Hegel face a aproximação ela totalidade real, sempre móvel, in-
Kant, no que concerne à distinção entre o fenômeno cessantemente mutável, em todos os sentidos infinita,
e a coisa-em-si. Faz sua a proposição geral da dialé- que o pensamento não poderá jamais esgotar de uma
maneira perfeita.
tica hegeliana, segundo a qual o mundo da coisa-em-si
e dos fenômenos é apenas um, mesmo sendo os dois É assim que à questão bem posta da relatividade
contrários, o que quer dizer que o mundo dos fenô- do conhecimento, a teoria cio conhecimento cio mate-
rialismo dialético fornece a boa resposta. Nossos
menos imediatos, assim como o da coisa-em-si, cons-
conhecimentos são apenas aproximações ela plenitude
1ituem para o conhecimento apenas momentos. gra-
da realidade, e por isso mesmo, são sempre relativos:
dações. transições. E no entanto. após ter-se apro-
na medida, entretanto, em que representam a apro-
ximado, em tão larga medida, da posição de Hegel.
acusa-o ele não ,·er que o mundo da coisa-em-si afas- ximação efetiva da realidade objeti,·a, que existe in-
ta-se cada vez mais do mundo dos fenômenos ime- dependentemente ele nossa consciência, são sempre
diatos. absolutos. O caráter ao mesmo tempo absoluto e re-
Essa última consideração poderia fazer crer à lativo da consciência forma uma unidade dialética in-
divisível.
primeira Yista. que a dialética propõe-se eliminar a
antinomia que sacode o materialismo antigo desde É aí alifis que a concepção dialética materialista
Demócrito. diminuindo a impor tância dos fenômenos da aproximação infinita separa-se muito nitidamente
imediatos. Não é entretanto nada disso. porque Lênin da de Kant. Esta última é dialética, porque dá conta
toma bastante cuidado em in sist ir na passagem em do caráter aproximativo do conhecimento enquanto
que Hegel especifica que o mundo elas leis nada mais processo infinito, mas porque o Ding an Sich é por
princípio incognoscível e o processo infinito do co-
é cio que o reflexo imóvel do mundo existente, isto é.
do mundo cios fenômenos imediatos. Disto resulta nhecimento só pode ter por objeto o mundo dos fe-
que em relação ao mundo das leis. o mundo dos nômenos imediatos, faz cair a totalidade do conheci-
fenô m enos representa o todo, a totalidade, porque mento no relativismo. Essa crítica aplica-se bem
contém a lei e, além disso, a própria forma que se melhor ainda aos neokantianos, assim como aos dis-
cípulos modernos de Hume e de Berkeley, que con-
move. Em outras pala\Tas, isto significa que o con-
testam a existência do Ding an Sich, noção "supér~
junto ela real idade é sempre mais rico que a lei mais
flua". O pensamento idealista moderno separa rigi-
adequada e é precisamente esse fato que 111elhor ilus-
damente o absoluto do relativo: separa cirurgicamen-
tra o papel da relatividade enquanto 111omento, na
te as relações vivas e reais da realidade objet iva, para
evolução do co nhecimento científico. O conhecimento
isolar um único elemento, o da relatividade, que erige
cada vez mai s avançado das leis reduz, certamente.
em único princípio condutor do conhecimento cientí-
232
233
'+"

fico. Tal procedimento só pode falsear e desfigurar


a realidade. Leva necessa riam en te àquilo que Lênin paimente naquela que visa à transformação radical
tinha freqüentemente previsto: toda a verdade torna- da sociedade no sentido do progresso. Escamoteando
se absurda, desde que ultrapassa seus limites. a s ciências sociais, a dialética do caráter absoluto e
A concepção len iniana do conhecimento científico relativo do conhecimento, amputando o conhecimento
reserva portanto um lugar de primeiro plano à no- de seu caráter de aproximação, suprime-se a "mar-
ção de aproximação e esse fato é de uma importância gem de liberdade" filosófica da atividade social. No
prática considerável cio ponto de vista da metodologia pensamento burguês esta ilusão apresenta-se sob a
das ciências naturais e da sociologia. As concepções forma do dilema insolúvel do voluntarismo e do fa-
mecanicistas do materialismo a ntigo só podiam levar ta lismo, do livre arbítrio ilimitado e da necessidade
a ideologias fatalistas. É assim que alguns acreditam cega e mecanica. O existencialismo, por exemplo,
que o conhecimento perfeito dos "elementos últimos" aproveita pretensas conquistas da teoria burguesa
do mundo e das leis que governam suas relações do conhecimento para reduzir todo conhecimento hu-
permitiria descrever a priori e com exatidão toda si- mano sobre a rea lidad e objetiva ao ní vel de probabi-
tuação a se produz ir no futuro. A evolução da astro- lidade, o que justifica em seguida a oposição a essa
nomia parecia a liás, num certo momen to, justificar realidade com um livre arbít rio ilimitado, enquanto
essas idéias. Mas quando a nova direção dialética única instância absoluta.
da física moderna abalou as bases das concepções A maneira pela qual Lênin aplica as concepções
clássicas, os adeptos das diversas escolas idealistas da realidade e do conhecimento do materialismo dia-
concluíram peremptoriamente pela derrubada da no- lético ao domínio das ciências sociais e da atividade
ção de lei natural. Ao problema dialético colocado social é de uma fertilidade notável. Falta-nos luga r,
pela evolução da realidade, apressaram-se em dar res- infelizmente, mesmo para esboçar a exposição desses
postas rela tivistas, agnósticas, e até místicas, atre- problemas muito extensos. Limitar-nos-emos, por-
lando assim a popularização das ciências naturais ao tanto, a deixar claro, com o auxílio de alg un s exem-
carro das ideologias reacionárias. plos característicos, o antagonismo absoluto que exis-
Essas concepções estão entretanto muito difun- te entre a teoria leniniana e as teorias pseudo-socia-
didas nas ciências morais burguesas, ou submetidas listas burguesas, ou submetidas a influências bur-
a influências burguesas. (Pensemos na teoria nietzs- guesas. Demonstraremos que somente a concepção
cheana do eterno retorno ou antes em Bukarin que leniniana pode faze r concordar o estudo e o conheci-
afirmava que somente o nível insuficiente de seu de- mento mais aprofundado das leis da evolução da so-
senvolvimento impede a sociologia de prever os acon- ciedade com a mais larga atividade social prática.
tecimentos a vir, com tanta exatidão qu'anto a astro- Durante a crise mundial que sobreveio após 1920,
nomia.) O fatal ismo que se funda em tais erros não Lênin combateu com igua l vigor os economistas bur-
é só teoricamente indefensável, mas ainda exerce um g ueses que · viram nela apenas um desequilíbrio pas-
efeito paralisador em toda atividade humana, princi- sageiro, e os revolucionários segu ndo os quais a si-
tuação não comportava mais nenhuma saída para a
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burguesia. "Não existe situação absolutamente sem do objetivo. O conhecimento certamente não at ing iu
saída", dizia Lênin, o que signi fi ca, em linguagem ainda toda a realidade, mas isto é apenas um enco-
filosófica, que o método marxista permite perfeita- rajamento para o progresso. Os objetos mais pre-
mente determinar se uma crise grave do capitalismo ciosos, mais elevados do nosso pensamento, não foram
pode tornar-se fatal, em certas circunstâncias c~n- sempre o reflexo da realidade objetiva? Nosso pro-
cretas, mas que a questão de saber se tal ou tal cnse gresso humano não é função do aprofundamento des-
comporta uma saída, não poderia ser resolvida senão sa in teração? Quando, enfim, entra em jogo a reali-
pela luta, pela ação prática das classes em presença. dade mais próxima do homem, a sociedade, o mate-
Postular anteriormente a ausência objetiva ele toda rialis mo dialético destrói ainda mais radicalmente o
saída é, segundo Lênin, jogar com palavras: só a pessimismo da fil osofia burguesa moderna com sua
ação prática cios pa rtidos revolucionários pode provar profunda aversão pelo real. Lênin não disse, com
a ausência rea l ele toda saída. Essa at itude de L ênin efeito, que o movimento da História reserva à so-
ilumina aliás singualarmente certas divergências, que ciedade perspectivas de progresso, de evolução e de
se manifestaram a respeito de numerosas que stões metamor fose bem mais elevadas e mais preciosas do
econômicas entre ele e Rosa Luxemburgo. que nossos m a is belos son hos poderiam representar?
Assim, Lênin definiu com precisão a atitude q ue
deve ter o partidário do materialismo dialético face
à realidade objeti,·a, que existe independentemente da
,. Para empregar uma fórmula mais r es umida, poder-
se-ia dizer que a marcha do rea l é filosoficam ente
mais verdadeira e mais profunda do que nossos pen-
consciência, e também face à sua própria atividade samentos mais profundos.
prática na sociedade. Essa a ti tu de funda -se teorica-
t_Pa ra o partidário do materialismo dialético, es-
mente na relação entre o conhecimento e a realidade
sas considerações constituem um encorajamento ao
objet i,·a, tal como foi descrita por Lênin. Eis aliás
estudo semp re mais aprofundado do mundo real e
como Lênin. falando da e\'olução revolucionária, for-
também - necessariamente - a uma atividade prá-
mulava essa relação: "A História, escre\'e ele, em
tica sempre mais resoluta e mais segura dela mesma.
particular a história da re\'olução é sempr e mais va-
O movimento ela História é uma soma de ações hu-
riada, mais rica, mais complexa e mais "astuta" do
manas da qual nossa própria ação, a cio proletariado
que imaginam as \'anguardas mais conscientes d9s
revolucionário, forma um dos componentes que não
melhores partidos e das classes mais a \'ançada s."
poderíamos negligencia r. O conhecimento, que está
E ssa nota esclar ece o caráter de aproximação do
em condições de apreender dialet icamente as "ast ú-
conhecimento, unidade dialética do absoluto e do re- cias" da evolução histó rica, só é válido e eficaz quan-
lativo. Contrariamente ao pensamento burg uê s, que
do suas aquisições forem outros tantos expedientes
nega a existência objetiva do mundo r eal, e dele se
para a ação prát ica, cujas experiências virão, por sua
desvia ideologicamente, como de uma potência obs-
vez, enriquecer o conhecimento e fornecer-lhe uma
cura, perigosa e incalculável, o materialismo dialético
força sempre nova. A teoria leniniana do conheci-
propõe a confiança e a fidelidade em relação ao mun-
mento é a alta escola ela ação prática,.J
236
237


4. absoluta da "ordem" e da hierarquia, o que quer dizer
que a totalidade exclui a causalidade e, mais ainda,
TOTALIDADE E CAUSALIDADE a evolução. A sociedade hierárquica da "ordem" for-
m~ u.m todo orgânico, uma totalidade que só poderia
Uma análise tão extensa e tão fértil da relação ex1st1r enquanto tal, isto é, imutável. A sociedade
entre o absoluto e o relativo só se torna possível com fascista é eterna.
a condição de que o conhecimento apreenda e estude
seu objeto de todos os ângulos, sob todos os seus as- Aí está, sem dúvida, uma concepção levada ao
pectos. Des~nvolvendo os caminhos de Marx, de extremo e que passa por ser caricatural, mesmo para
Engels e também de Hegel, Lênin coloca e resolve, o pensamento burguês, e até reacionário. Não deixou
aqui ainda, um dos problemas essenciais da filosofia de exercer - precisamente por causa de seu caráter
moderna, um problema q·ue deu lugar a numerosos extremo - uma influência profunda em certos meios.
pseudodilemas e a tantas questões mal colocadas. É Ora, para compreender a verdadeira natureza dessa
interessante constatar o fato - muito característico influência, é indispensável comparar a concepção de
aliás - de que Lênin tenha colocado e resolvido o Spann àquela, bem menos conseqüente, de seus pre-
problema, antes mesmo que o pensamento burguês cursores da escola de Mach, por exemplo.
tivesse chegado a falseá-lo e a desfigurá-lo. Falamos Pudemos constatar, quase em toda filosofia do
do problema da totalidade. imperialismo, que as concepções absurdamente extre-
Esta palavra está hoje envolvida de uma impo- mistas, do gênero de Spann, não provocavam jamais
pularidade que parece plenamente justificada; nume- uma crítica objetivamente dialética, mas sempre uma
rosos são aqueles que acreditam que ela provém do reação extrema e também errada. Othmar Spann
vocabulário do fascismo. E isto não é de forma al- fez da categoria da totalidade uma caricatura fascis-
guma um fato do acaso. É preciso reconhecer que, ta. Seus adversários replicaram suprimindo toda
neste terreno, "a ideologia" fascista não deixou de idéia de totalidade, devido ao desprezo da realidade
tirar benefício das correntes filosóficas reacionárias histórica e social. Jaspers, por exemplo, que exerceu
que precederam seu nascimento. O que foi, no limiar uma influência sensível em certos existencialistas
do estágio do imperialismo, apenas a veleidade de franceses, nega a função da categoria da totalidade
esperar "um estágio definitivamente constante" no conhecimento da realidade social. Nele, a totali-
(Petzold), devia manifestar-se após a primeira Guer- dade torna-se um Ding an sich, na acepção kantiana
ra Mundial, sob u111a forma bem mais evoluída e mais do termo, isto ~. um absoluto tão caricatural como o
explicitamente reacionária, graças, precisamente, à de Spann. Em seguida, após ter terminado de pri-
categoria da totalidade. É a Othmar Spann, filósofo vá-la de sentido, desembaraça-se com razão da cate-
e sociólogo fascista, se bem que não-hitleriano, que goria de totalidade. Faz assim - e não é o único -
devemos a definição mais radical. A sociedade, en- do mundo um caos objetivo, no qual o homem só
quanto totalidade, significa, em Spann, a supremacia pode criar a ordem construindo um aparelho de no-
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239
ções teleológicasr técnicas e especulativas. Frente
na medida em que é justo, isto é, total, reflete sempre
a esse caos, há, vimos, o sujeito "livre", isolado, anár-
um conjunto composto de totalidades unidas por laços
quico, que deve o s~r ao existencialismo. Em definiti- orgânicos, mas só acede a ele por aproximação. Isto
vo, a filosofia burguesa atola-se no pseudodilema com- é assim, primeiro porque cada "todo" ( cada círculo,
posto de uma totalidade rígida e de um caos objetivo. para retomar a expressão de Hegel) que o conheci-
Bem antes que esses extremos se manifestassem mento toma por objeto (a estrutura econômica de
sob formas tão exageradas, o marxismo leniniano já tal país, por exemplo) faz ao mesmo tempp parte
havia elaborado a solução justa. A categoria de tota- de uma totalidade ainda mais vasta, tanto histórica
lidade, como· toda categoria autêntica, reflete relações quanto teoricamente, o que significa que objetiva-
reais. "As condições de produção de toda sociedade mente sua totalidade é relativa. E isto é assim ainda,
formam um todo", escreve Marx. A categoria de porque o conhecimento que podemos ter da totalidade
totalidade significa portanto, de um lado, que a rea- é necessariamente relativo, sendo apenas uma apro-
lidade objetiva é um todo coerente em que cada ele- ximação. É somente apreendendo correlações móveis,
mento está, de uma maneira ou de outra, em relação multilaterais e sempre mutáveis dos elementos, que
com cada elemento e, de outro lado, que essas rela- chegaremos - nos limites de nossas possibilidades
ções formam, na própria realidade objetiva, correla- historicamente determinadas - a cercar cada vez mais
ções concretas, conjuntos, unidades, ligadas entre a realidade objetiva.
si de maneiras completamente diversas, mas sempre Essa consideração metodológica exerce .uma in-
determinadas. Lênin não retoma por sua conta o fluência decisiva sobre o conhecimento, tanto do lado
adágio hegeliano, segundo o qual a filosofia é um objetivo como do lado subjetivo. No que concerne
círculo cuja circunferência é feita de círculos? ao aspecto objetivo, limitar-nos-emos a ilustrar as
conseqüências da intervenção de Lênin sobre um só
Lênin apJica o princípio da unidade dialética do problema, o da causalidade. O materialismo mecani-
absoluto e do relativo, colocando em relêvo o caráter cista e o idealismo positivista m0derno, um e outro
de aproximação do conhecimento. "Para bem conhe- igualmente metafísicos, tinham ligado a possibilidade
cer o objeto, escreve, devemos apreender e explorar de conhecer a realidade objetiva à espécie metodoló-
todos os seus aspectos, todas as suas correlações e gica de cadeias rígidas e isoladas de causas e efeitos,
todas as "mediações". Nunca aí chegaremos com- assim como à da lei da causalidade, sobre elas fun-
pletamente, mas a exigência de um método multi1a- dada. Mas a evolução das ciências naturais, assim
teral nos garantirá contra os erros e contra o dog- como os fenômenos complexos da realidade social,
matismo." Esse método multilateral está na base terminaram por tornar evidente a falência desse apa-
da lógica dialética. Sem ele, tudo se condensaria e re.lho especulativo demasiado simplista. Já a escola
se tornaria unilateral. Mas a lógica dialética é ao de Mach, contemporâneo de Lênin, tinha tentado
mesmo tempo bem consciente de que não poderá ja- substituir o princípio de causalidade por uma pretensa
mais atingir esse ideal inteiramente. O conhecimento, relação funcional. O idealismo atual, que se infiltrou
2~0
241
.n a física, repousa mais ou menos sobre o postula~o
da caducidade da relação de causalidade, ao qual opoe velha doutrina do livre arbítrio. Outros, enfim, apro-
de uma maneira absoluta a relação de probabilidade. veitaram dos fatos novos observados pelas ciências
Não é difícil descobrir em todas essas crises - naturais para estabelecer a teoria da influência do
quer se trate do materialismo mecanicista ou do ide~- sujeito obser vador no decorrer dos fenômenos objeti-
lismo positivista - um traço comum, que se mam· vos, como se estes decorressem de outra forma em
festa desde o começo do estágio do imperialismo. presença do observador, como em sua ausência . . .
A pura ·e .simples .admissã~ da ,f~lência das. categ?rias Sem dúvida estamos aqui em face de fórmulas
·e speculativas antigas, mmto ng1das e mm!o unilate- novas, surgidas para comentar fatos novos, mas é
rais para poderem afirmar-se frente a ,reahda?e1s ~o- evidente que o problema epistemológico que colocam
vas, teria sido o equivalente .de uma aproxtmaçao, é o que o próprio Lênin tinha resolvido na sua crítica
como momento negativo, para a posição do materia- da filosofia de Mach. As limitações da causalidade
lismo dialético. Mas a natureza mesma do pensa- e suas conseqüências metodológicas estão aliás longe
mento burguês do século XX tinha impedido que se de ser um fato inédito. A estatística, por exemplo,
colocasse a questão dessa maneira. É portanto exa· permite constatar que colheitas vão sempre a par
tamente o contrário do que devia acontecer. O ca- com um aumento do número de casamentos, mas
ninguém ousaria deduzir dessa observação que Marie
ráter metafísico e a rigidez das categorias em questão
foram interpretadas como qualidades da realidade ob- Durand deve esposar J acques Dubois e nenhum ou-
jetiva e, ao invés de domá-las, puseram-se a postular tro. Por causa da boa colheita, é somente mais pro-
um subjetivismo novo. A física moderna ~roclama, vável que tal ou tal amor ou ligação leve efetivamen-
por exemplo, a impossibilidade de determinar, por te ao casaq1ento. Mas nenhum sociólogo sério che-
gou a pensar que o casamento de Marie e de Jacques
meio da causalidade, a posição dos íons em movimen-
fosse um fato livre e "sem causa", porque era impos-
to, enquanto que para os átomos esses cálculos eram
sível deduzi-lo logicamente, partindo só da submissão
perfeitamente possíveis. Em lugar de considerar esse
a um exame metodológico cerrado das relações ob-
fato novo como um fato dependente do mundo rea.l
jetivas entre os encadeamentos lógicos reais e do esta-
e independente da consciência, apressou-se em ver
belecimento de uma correlação objetiva entre as sé-
nisto um triunfo do subjetivismo sobre a realidade
ries de relações de probabilidade e causalidade. Esse
objetiva, agora "problemática". Os cálculos de. pro-
mesmo princípio aplica-se perfeitamente às leis es-
babilidade, por meio dos quais os físicos determinam
senciais da doutrina econômica do marxismo: a cor-
a posição de tal ou de tal íon, deveriam autorizar
rida ao sobrelucro leva fatalmente ao abaixamento
certos pensadores a concluir pela eliminação das re-
da taxa média 'de lucro e, dessa crise, i:esulta a des-
lações de causalidade e do princípio da necessidade
valorização parcial do capital. Ora, nenhum marxista
objetiva. Para eles, a natureza era governada agora
pensou ainda em "deduzir" dessa lei a man·e ira pela
por um princípio de liberdade subjetivista e a física
qual o processo geral afetará o Sr. X ...., fabricante
acabava de fornecer novas bases empíricas para a
de tecidos, ou antes o Sr. Y ... , capitão da indústria
242
243
siderúrgica. Mas nenhum marxista deixou de decla- de mais nada, determinar o lugar que ocupa o f enô-
rar que as perdas ou os lucros individuais do Sr. X ... meno que tomara por objeto, no interior da totalidade
ou do Sr. Y ... eram "fenômenos livres", despro- concreta de que faz objetivamente parte.
vidos de causa lógica.
Na realidade, a crise do pensamento contempo- 5.
râneo não afeta em nada o materialismo dialético.
E isto ocorre, primeiro porque o materialismo dialé- O SUJEITO DO CONHECIMENTO E
tico não se torna jamais culpável desse diletantismo A AÇÃO PR.ÁTICA
inconsistente que equivale a "saltar" da objetividade
para a plena subjetividade. Mas isto ocorre, ainda, A inteligência dialética adequada das relações
porque o materialismo dialético nunca considerou o concretas e objetivas, concreta e objetivamente re-
princípio dogmático da causalidade como a expressão fletidas pela consciência é de uma importância deci-
única das correlações e das leis objetivas da realida- siva para o exame gnosiológico do sujeito do conheci-
de. Lênin faz remontar as origens dessa posição. de mento. Nos seus escritos polêmicos, dirigidos contra
princípio - que faz sua - a Hegel e sublinha, justa- a escola de Mach, Lênin especifica claramente que a
mente, que é precisamente a aplicação adequada desse crise do pensamento burguês que se manifesta nesse
princípio que abre a via a uma crítica do pensamento domínio dá lugar a uma tendência irracionalista. Ao
idealista fundado na física moderna. "Lendo o que longo da evolução ulterior da filosofia burguesa, essa
Hegel escreveu sobre a causalidade, escreve Lênin, tendência só ganhou terreno. Não nos podemos deter
ficamos espantados que consagre tão pouco espaço aqui para estudar as origens sociais dessa tendência,
a esse assunto, no entanto tão popular entre os kan- origens de que tratamos precedentemente; bastará
tianos. Por que isto ocorre? Simplesmente porque, constatar, mais uma vez, que as respostas errádas
para Hegel, a causalidade é apenas uma das determi- inspiradas pelos problemas reais equivalem a uma
nações das relações universais que ele tinha, desde negação mal orientada, tanto do materialismo me-
o início, estudado e tratado de uma maneira bem mais canicista como do idealismo. Para a filosofia dos
profunda e bem mais geral, sublinhando sempre a séculos XVIII e XIX, a razão era a única instância
unidade dos contrários etc., etc. Seria muito instru:.. do conhecimento adequado: sensação, sentimento, ex-
tivo, conclui Lênin, aplicar as soluções de Hegel, ou periência vivida, idéia, imaginação eram apenas ele-
melhor, sua dialética, à "crise" do empirismo novo mentos destinados a papéis subordinados, senão en-
(o idealismo fundado na física moderna)." g~nadores, na hierarquia do conhecimento. Certos
Uma vez mais, a solução dialética correta 11ão traços dessa falsa hierarquia enéontram-se aliás mes-
poderia ser elaborada de outra forma senão pelo es- mo em Hegel.
tudo imparcial das relações complexas da realidade A exploração cada vez mais completa da realida-
e esse estudo deverá auxiliar-se de instrumentos de de objetiva deveria no entanto acabar por atrair a
grande flexibilidade. Seu objetivo preciso será, antes' atenção sobre o absurdo desses sistemas hierárquicos
244
245
e fazer compreender que os preconceitos de que são As concepções teóricas de Lênin sobre o sujeito
a expressão ameaçam entravar a força do conheci- do conhecimento empenham-se no combate tanto con-
mento que visa a dominar a realidade. Convém acres- tra as tendências (incluída aqui a de Hegel) que exa-
centar que o abandono da dialética pelo pensamento geram a supremacia da razão, corno contra o irracio-
burguês levou à escamoteação das relações dialéticas nalismo moderno. A infinidade dos objetos do co-
entre a razão e o entendimento, estabelecidas por Kant nhecimento, seu caráter inesgotável, sua mudança
e levadas por Hegel à sua expressão mais elevada contínua, assim como a natureza de aproximação do
nos limites do pensamento idealista. Da mesma for- conhecimento postulam a flexibilidade das tentativas
ma que, no plano objetivo, o pensamento burguês ti- de aproximação. De todas as qualidades, de todas
nha confundido a interpretação mecanicista da cau- as faculdades do sujeito, são sempre as que se adaptam
salidade com a existência objetiva da -realidade, a melhor à. situação concreta que devem tornar o pri-
meiro lugar. A teoria leniniana dá conta sempre,
crí tic~ da hegemonia da razão (da inteligência) de-
portanto, de todas as qualidades do homem, dos laços
veria conduzi-lo a um subjetivismo sem limite, à glo-
que os unem entre si, assim corno do fato de que po-
rificação sem. reserva do sentimento, da experiência
dem mutuamente se completar ou se transformar.
vivida e da intuição. A realidade objetiva, que a maior Mas guarda-se bem de querer fornecer preceitos. ': A
parte das teorias desse gênero identificam com o • 1' imaginação está mais próxima da realidade do que
qbjeto imediato, como sendo de uma essência inferior, a reflexão? pergunta Lênin. Sim e não." E, noutra
foi escamoteada pelos processos do solipsismo, ou passagem, após ter explicado que, ao refletir o movi-
ainda cristalizada em mitos nebulosos do pseudo-obje- mento, o conhecimer.to oferece sempre urna imagem
tivismo. mais grosseira que o real, acrescenta: " ... não so-
A divisão capitalista do trabalho, que continua- mente no plano do pensamento, mas também no do
mente impede o homem de se realizar na sua to~alida~e sentimento". Ou ainda, quando escre;ve que o reflexo
e na sua unidade, essa divisão de que a ps1colog1a "não é um processo simples e direto, dando a imagem
burguesa e o lado subjetivo da te?ria burgues~ do rígida do espelho, mas um ato complexo, desigual,
conhecimento estão marcadas, mamfesta-se aqm sob movendo-se em zigue-zague, que contém também a
uma forma ex,trema. E é ainda uma ironia particular possibilidade de ver a imaginação destacar-se da vida.
das leis da evolução que o efeito dessa divisão do Mais ainda, esse ato encerra também a eventualidade...
trabalho faça-se sentir· da maneira mais opressora de que a noção abstrata, a idéia se transforme em
precisamente em pensadores cuja atitude subjetiva é uma fantasia. . . Pois a generalização mais simples,
totalmente de protesto romântico contra ~la, tais co- como a idéia geral mais abstrata contêm um certo
mo Bergson, Klages e outros ainda. Na verdade, elemento de imaginação. (E vice-versa: seria ridículo
esses camp.eões da integridade do homem, por toda negar o papel da imaginação, mesmo na ciência mais
sua atividade, apenas destruíram-na ainda mais. .
rigorosa ... ) "
246
247
-
Para simplificar nossa exposição, tratamos se- não poderia ser colocada no plano da teoria "pura",
paradamente os fatores objetivos e subjetivos do co- afastada de toda ação prática. A relação de causa
nhecimento. t evidente no entanto que uma tal se- a efeito não é esse "hábito mental" caro a Rume, que
paração pode facilmente dar lugar a malentendidos, consistiria em derivar uns dos outros, objetos que es-
se a interpretarmos como uma discriminação entre tão apenas temporal ou espacialmente justapostos.
elementos irredutivelmente opostos uns aos outros. Trata-se antes de uma relação objetiva entre objetos
Também Lênin tem o cuidado de especificar que a reais, que existem independentetmente de nóssa cons-
antinomia da matéria e da consciência não é absoluta, c1encia. Mas, para demonstrar isso, de maneira a
mas somente enquanto forma o problema fundamental excluir a menor dúvida, devemos criar, na realidade
da teoria do conhecimento, isto é, enquanto o primado objetiva, pela aplicação consciente e concreta do prin-
de uma sobre a outra está em jogo. "Fora desse li- cípio de causalidade, relações de causa a efeito, cal-
mite, escreve, a relatividade dessa antinomia é in- culadas, determinadas anteriormente. J á dissemos
discutível." Noutra passagem, vai até declarar que o quanto essa relação, vista à luz do materialismo
a transformação das idéias em realidades é um pen- dialético, mostra-se rica e complexa. Restava-nos
samento profundo, muito importante do ponto de vis- lembrar sua importância do ponto de vista da teoria
ta histórico, e cuja verdade se manifesta a cada passo do conhecimento.
•1
na existência individual. Assim uma vez mais subli- Fazendo da prática o critério decisivo do conhe-
nha o caráter relativo da antonima matéria-espírito, cimento, Lênin coloca sob uma luz inteiramente nova
abstração feita - sublinhemos - da questão do pri- as questões mais importantes da teleologia. Não dei-
mado gnosiológico. xa de indicar a posição do problema em Hegel, su-
Essas considerações comportam em Lênin con- blinhando que é precisamente nesse ponto que Hegel
seqüências metodológicas profundas. A relatividade aproximou-se mais do materialismo histórico (nas
dos fatores objetivo e subjetivo, material e espiritual, passagens da sua Lógica, onde trata da idéia). A
sua unidade dialética, suas transformações mútuas questão fundamental da evolução humana reside para
manifestam-se sob um aspecto concreto onde surge a H egel na interação do projeto humano e do mundo
questão central de toda a teoria do conhecimento le- exterior (a estrutura mecânica e química do real).
niniana: a da atividade prática do homem, enquanto Vê que é precisamente nessa relação que o mecanis-
critério deéisivo do conhecimento. Sabe-se que Marx mo e o quimismo atingem sua verdade e, mais do
e Engels tfoham já dado a essa questão um lugar que isso, vê mesmo que nessa relação o instrumento
essencial na doutrina do materialismo dialético; Lênin mediador é de uma essência mais elevada que seus
dá igualmente nesse domínio um novo impulso às fins visados e seus projetos exteriores, que serve para
suas idéias, lutando contra a filosofia burguesa. alcançar. "0 arado, diz Hegel, é imediatamente mais
Engels já tinha indicado que a campanha contra o respeitável do que os bens de consumo que auxilia a
princípio de causalidade, lançada por David Rume, produzir e que constituem o objetivo."

248 249
Sem se demorar nesses aforismog freqüente- trato. E ssa abstração não é, entretan to, uma cons-
mente abstratos, Lênin utiliza-os, emendando-os por trução do espírito, mas simplesmente a manifestação
sua interpretação materialista e concreta. Em Hegel, mais geral das ações e das in terações reais, que es-
a relação entre o projeto humano e a realidade à qual tão presentes, por essa mesma razão, em todos os
se aplica é ainda puramente exterior. Para Lénin, fenômenos concretos elo mundo real. "A atividade
é absolutamente claro que o projeto humano não é prá tica do homem, escreve L ênin, devia milhares de
independente do real senão em aparência; o materia- vezes conduzir a consciência humana a r epetir as di-
lismo histórico, aliás, forneceu soluções agrupadas em fe rent es regras elementares da lógica, para que essas
sistemas coerentes às questões que surgem aqui. Lê- regras pudessem t er ganho o caráter de axiomas."
nin, em suma, apenas tirou todas as conseqüências E ssa concepção dialética, que está isenta de toda
gnosiológicas. rigidez dogmática cios aspectos subjetivos cio conhe-
Num outro domínio, inseparavelmente ligado ao cimento, resulta diretamente da definição Jeniniana 1
1

de que acabamos de falar, Lênin devia de longe su- de objeto. Uma das notas de Lênin recapitula;,do 1

perar as idéias desenvolvidas por Hegel. Hegel es- sua argumentação contra o idealis mo, retomará a ima- 1

força-se constantemente por estabelecer uma relação gem hegeliana que compa ra o conhecimento humano 1
' 1

lógica en tre a atividade fundamental do homem, isto a uma curva, composta de um conjunto de círculos.
é, o trabalho produtivo e os silogismos, formas . abs- Cada partícula dessa curva. - diz em substância Lê·
tratas da reflexão lógica. Para Lênin, é claro que nin - pode ser considerada como uma reta perfeita-
isto não se trata de um jogo especulativo, mas <lo mente independente: o pensamento idealista, por
problema essencial das relações entre a ação e o pen- exemplo, age assim e é bem o que o extravia ao ato-
samento. Ora, somente a teoria do conhecimento ma- leiro do subjetiv ismo.
t erialista pode fornecer a solução desse problema. LA aproximação adequada da r ealidade inesgotá-
Somente o materialismo dialético, com efeito, está vel pelo conhecimento postula o homem completo, que
em condições de explicar como a atividade essencial reencontrou sua totalidade. Face ao protesto impo-
do homem, o trabalho produtivo, como o critério mais tente do romantismo que apenas in tensifica a aliena-
específico que possa distinguir o homem do animal, ção humana, obra do capitalismo, a teoria Jen iniana
- isto é, a utilização dos instrumentos de trabalho - sóbria e isenta• de ênfase, indica um caminho seo-ur~
b
se transforma pela prática consciente da conquista para a reconquista ela totalidade humana, demonstran-
progressiva da natureza em formas abstratas do pen- do antes de tudo que o conhecimento, sob todos os
samento. Aí, também, é o mundo exterior e a intera- pontos de vista, é inseparável da ação préltica e do tra-
ção que o une ao homem atuante, que são refletido!i balho. Sóbria e bem proporcionada, a teoria leniniana
pela consciência - não, certamente, de uma maneira do conhecimento é -. precisamente porque reconhece
direta, mas depois da intervenção de inumeráveis ele- a existência objetiva do real - uma brilhante ma-
mentos mediadores - de um modo cada vez mais abs- nifes tação desse humanismo que não se aquartela na
250 251

o
defensiva frente ao capitalista inumano e anti-huma-
no. É um humanismo combativo, que engaja os ho-
mens na luta, no conhecimento e na conquista do
mundo e que trabalha - sendo ao mesmo tempo
teoria e prática - para o nascimento do homem no-
YO, com a totalidade humana reencontrada. .J

SEC!O
5
o~ ~f~-~/. ~(t~
___..
.. .
AQUISIÇ" O j ························· ····
....................................... ······
VALOR
Impresso na
planlmpress gráfica e ·editora
252 rua anhala, 2;47 - s.p.
...
E se o existencialismo francês tem se
mostrado aberto ao marxismo , isto não
; ocorre com o existencialismo alemão,
que além de ignorá-lo oficialmente,
combate-o na prática, como por exem-
plo o caso Heidegger bem o ilustra.
Desta forma, se a declaração de Sartre
é animadora, isso vem demonstrar mais
a força do . marxismo do que propria-
mente a virtude do existencialismo em
reconhecer os verdadeiros problemas
do homem no regime capitalista. As·
sim, podemos ver em Lukács a ten-
tativa de mostrar as vicissitudes por
que passa a filosofia da existência até
chegar à aceitação de Marx, ao invés
de, apressadamente saudar a nova posi-
ção de existencialismo como se os
fundamentos teóricos dessas duas con-
I cepções fossem livres de qualquer anta-
gonismo, a lhes permitir grandes "inti-
midades" no futuro. E exatamente o
último ensaio de que se compõe o
volume contém as posições de prin· ,I
cípio que possibilitam a crítica não só
do existencialismo, como de toda a
filosofia contemporânea e que ao mes-
mo tempo constituem a resposta de
Lukács ao seu famoso História e Cons-
ciência de Classe, cuja teoria do conhe-
cimento considera de há muito supe-
rada. O confronto que Lukács estabe-
lece entre existencialismo e marxismo
lança novas luzes sobre a questão das
suas mútuas relações, questão que por
não ter sido ainda resolvida, merece
toda a atenção e nos obriga a pesquisar
as justificativas de todas as posições,
principalmente daquele que é consi-
derado o maior filósofo marxista do
nosso século.

José Carlos Bruni

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