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H oj e , quando toda a r adicalidade crítir a se tornou

inútil, quando toda a negati vid adl' foi resol vida


num mundo que finge se r -alizar, quando o
próprio espírito crítico encon trou 11 0 sod a lismo
sua residência secundária e que o l'!'t'ilo do desejo
finalmente já passou há ha stallh' u-mpo ,
estratégias
o que nos resta al ém de re por as t'Clisas
em seu ponto zero l'niglll:íl it'o'!
Ora, o enigma se inverteu : out ro ra t'ra a Esfinge
fatais
que punha para o hom em a qm'slao do homem,
que Édipo pensou ter resolvid o l' 'Im', dt'pois d ele ,
todos nós pensamos ter resolvido hojt' (. °
homem que leva à Esfinge , ao iu unuum , a quest ão
do inumano, do fatal , da dl'sl'n voll llra do nrundo
com nossos empreendillll'nt os , da dt'st'U\'ollllra do
mundo quanto às leis ohj l'l ivas . () ohjt'to (l'sfinge ),
mais sutil , não res polldl'. ll~ t' inc 'ita vt'l qu "
desobedecendo às leis , dl' sar m uu ln o t1t'Sl'jO, ile
responda em sl'gn'do a ai '11111 t'ni gllla .
O que no s resta , a l ém dt, passai' para o lado
de sse en igma, c de opo r, a .' t'st!'alt' ·ia s hauuis , as
l'stra t{-gias fal a is'!

.J .H.

JE AUDRILLARD
I .I\N l\~ '12', 06 07 -0

I)
I \\
7HH532 5 0 6 07!{
AS ESTRATÉGIAS FATAIS

A nte a ex t re ma ban ali za ç ã o d a


vida co nte m porâ nea, e m g ra nde
pa rte es tim ula da pel o s mei os de
co municação , o pen sad or fr an cês
J e an Ba ud ri l lard propõ e o qu e
AS EST~ATÉGIAS~TAIS 7
cha ma de es tra tég ias fa ta is . Elas

/ I~ I) ~ {~ ~ J1 ? lo
permiti riam retom ar a em preitada
de tra nsfo rmação do mundo , de -
pois q ue a radi calidad e c rítica , a f fi
negativida de o u mesmo o desej o se
mostraram incap azes de reali zá-la .
O auto r de O sistema dos obje tos
) ) .jQ, l QJ j Uvv\ ~ !J) / (

lI>' I -~ rV/NJ)o(I'\lJ~~~
parte da co nstatação de qu e o real
se torn ou mai s real do que ele mes-
mo , torn ou -se hiper-real . Assim, a Iil' V VG J
história se refu giou e o real aban -

7"
donou o sujeito hum ano - é a se-

J ~VA~~ 1~1j'l
dução do hiper-real .
Estamos na época da gulodi-
ce do rea l e, transformados em su- , v /\-J /0 , N
jeitos perversos , os hom en s se em-
panturram desse es tado dec ad ent e v /}4)M J I' (I') v I ~)
fl- IJ 1 ~ () 1-,
- tal vez pel a se d ução do hi per-
real .
Num es tilo be m- h urno rado , ~
I
~fr' V !'LA -111- .i. 11\ P0 c , U U )

JJ~Q
Baudr illard co nvida o leitor a tro-
ca r a co ns ta tação nost ál gica pel a
)
co nstatação irônica da so lidão de-
sa m pa rada do hom em de sp oj ad o
.~ ...:.,
perante uma realidade qu e se dis-
persa e m todas as di reções. Se a
ilu são de um futuro co mo sujeito
não tem mai s cabimento, passem os
para o lado do o bjeto . É a es traté-
g ia fa ta l pre c oni zad a por Bau -
drill ard . Quase à man eira do afo-
rismo , O auto r inicia o leitor num a
JEAN BAUDRILLARD

,
AS ESTRATEGIAS FATAIS

Tradução de
ANA MARIA SCHERER

Rio de Janeiro - 1996


Título original
LES STRATÉGIES FATALES

Éditions Grasset & Fasquelle, 1983

SUMÁRIO
Direitos para a língua portuguesa reservados
com exclusividade para o Brasil à
EDITORA ROCCO LTDA.
Rua Rodrigo Silva, 26 - 5? andar
20011-040 - Rio de Janeiro, RJ
Tel.: 507-2000 - Fax: 507-2244
Telex: 38462 EDRC BR

Printed in Brazil/lmpresso no Brasil o ÊXTASE E A INÉRCIA . 7


FIGURAS DO TRANSPOLÍTICO . 23
AS ESTRATÉGIAS IRÔNICAS . 63
O OBlEm E SEU DESTINO .. 100
preparação de originais
FRANCISCO AGUIAR POR UM PRINCÍPIO DO MAL. . 160

revisão
WALTER VERÍSSIMO/MAURÍCIO NETTO
HENRIQUE TARNAPOLSKY
HELENA LUIZA FROHWEIN DE SOUZA

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

B33ge Baudrillard, Jean


As estratégias fatais I Jean Baudrillard; tradução de Ana Maria Sche-
rer. - Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

Tradução de: Les strategies fatales

I. Ensaios franceses. I. Scherer, Ana Maria. 11. Título.

CDD - 844
95-1726 CDU - 840-4
o ÊXTASE E A INÉRCIA

As coisas encontraram uma maneira de escapar à dialética do sen-


tido, que as aborrecia: proliferarem ao infinito, potencializarem-
se, supervalorizarem sua essência, numa escalada aos extremos,
numa obscenidade que se tornaria para elas a finalidade imanente
e a razão absurda.
Nada impede pensar que possamos obter os mesmos efeitos
na ordem inversa - outra insensatez, também vitoriosa. A in-
sensatez é vitoriosa em todos os sentidos - ela é o próprio prin-
cípio do Mal.
Q.!1niverso não é dialético - ele está destinado aos extre-
mos e não ao equilíbrio. Destinado ao antagonismo radical e não-
à reconciliação nem à síntese. Esse é tambtsn o princípio do Mal,
e ele se expressa no gênio maligno do objeto, ele se expressa na
forma extática do objeto puro, em sua estratégia vitoriosa sobre
. '\ a do indivíduo.
o\ \,~. eretas,Obteremos
ct"Y ;> formas asutobscenidade
e combateremos . . i.S .d.e..• r.ad.icalizaCão
com suasdasarmas.
qualidades se-
Ao mais
'11~ 'l verdadeiro que o verdadeiro vamos opor o mais falso do que o
\J ':\ falso. Não iremos ODor o belo a.Q_feio, buscaremos o mais feio
G\';rv'J ..Que o feio: o monstruos<:>. Não vamos opor o visível ao oculto,
,\~;y buscaremos o mais oculto que o oculto: o secreto.
( iJ· Não buscaremos a mudança e não vamos opor o fixo ao mó-
vel, buscaremos o mais móvel do que o móvel: a metamorfose...
Não distinguiremos o verdadeiro do falso, buscaremos o mais falso
que o falso: a ilusão e a aparência...

I
(
j
Nessa escalada aos extremos talvez seja preciso opô-los ra-
dicalmente, mas talvez seja preciso cumular os efeitos da obsce-
nidade e os da sedução. Buscaremos algo mais rápido do que a
comunicação: o desafio, o duelo. A comunicação é lenta demais,
ela é um efeito da lentidão, ela passa pelo contato e pela palavra.
O olhar vai mais depressa, ele éo meio dos meios, o mais rápi-
AS ESTRAlÉGIAS FATAIS o ÊXTASE E A INÉRCIA 9

do. Tudo deve ser decidido instantaneamente. Nunca comunica- qualquer conteúdo ou de qualquer qualidade pr<!.p.ria, e ~~n­
mos. No vaivém da comunicação, a instantaneidade do olhar, da de a se tornar hoje em dia no~sa ú.!.lj<:ª.,paixão. Paixão daredu-
luz, da sedução, já se perdeu. plicação, da escalada,da potencialização, . ~o êxtase - de qual-
Mas também, contra a aceleração das redes e dos circuitos, ..quer que seja a qiiiiITdade, contanto que, cessando de ser relativa
buscaremos a lentidão - não a lentidão nostálgica do espírito, a seu contrário(o verdadeiro do falso, o belo do feio, o real do
mas a imobilidade insolúvel, o mais lento que o lento: a inércia .., imaginário), ela se torne superlativ_é!...JJ0sitiyamente suºlime por-
e o silêncio. A inércia insolúvel pelo esforço, o silêncio insolúvel --9!!U~ria_Ç9mº_.çme aº~c>'[yiº(LtQº-ª---ª-_~º_e.rgiª_do _f~!º~~gjª isso
pelo diálogo. Nisso também existe um segredo. ª moºª",Imaginem o verdadeiro qy& teriª_ªº~º[y.iciotoda a ener-
_._Eia do falso: seria isso a simulação...
A própria sedução é vertiginosa porque é obtida não de um
Assim como o modelo é mais verdadeiro do que o verdadei- efeito de atrativo simples, mas de atrativo reduplicada por uma
ro (sendo a quintessência dos traços significativos de uma situa- espécie de desafio, ou de fatalidade de sua essência - "Eu não
ção) e por isso dá uma vertiginosa sensação de verdade, assim sou bela, sou pior", dizia Marie Dorval.
a moda tem o aspecto fabuloso do mais belo que o belo: fasci- Nós passamos vivos para os modelos, nós passamos vivos
nante. A sedução que ela exerce independe de qualquer julgamento para a moda, nós passamos vivos para a simulação: talvez Cal-...
de valor. Ela ultrapassa a forma estética em sua forma extática lois tivesse razão com sua terminolog!ª,~toºª.nº~sªçlJltl,l.J.ª--~s­
da metamorfose incondicional. tá desÜiã'Ildo'dos j og9$çl.eçºm~!~_(;U~.~}_mressão para oÜOZQs .
· aeacasó - e-d~_~Ú.!~I!!::_A própria incerteza quanto à base, nos
Forma imoral, pois a forma estética implica sempre a dis-
tinção moral do belo e do feio. Se existe um segredo da moda, levaà supermultiplicação vertiginosa das qualidades formais. Por-
tanto, à forma de êxtase. O êxtase é essa qualidade própria a to-
além dos prazeres próprios da arte e do gosto, é dessa imoralida-
dos os corpos que giram sobre si mesmos até a perda de cons-
de, dessa soberania dos modelos efêmeros, dessa paixão frágil ciência e que resplandecem então em suas formas puras e vazias.
e total que exclui qualquer sentimento, dessa metamorfose arbi- A moda é o êxtase do belo: forma pura e vazia de uma estética
trária, superficial e regulamentada que exclui qualquer desejo (a giratória. A simulação é o êxtase do real: basta assistir à televi-
menos que o desejo seja isso). são: todos os fatos reais se sucedem numa relação perfeitamente
Se o desejo é isso, podemos pensar que também no social, extática, isto é, em traços vertiginosos e estereotipados, irreais
no político e em todos os outros domínios além do vestuário, o e repetidos, que permitem sua sucessão absurda e ininterrupta.
desejo se volte de preferência para as formas imorais, igualmen- Extasiado: assim é o objeto na publicidade, e o consumidor na
te afetadas por essa recusa potencial de qualquer julgamento de contemplação publicitária - reviravolta do valor de uso e do va-
valor e muito mais destinadas a esse destino extático que arran- lor de troca, até a anulação na forma pura e vazia da marca...
ca as coisas de sua qualidade "subjetiva" para entregá-las uni- Mas é preciso ir mais longe: a antipedagogia é a forma extá-
camente à atração do traço redobrado, da definição redobrada, tica, isto é, pura e vazia, da pedagogia. O anti teatro é a forma
que as arranca de suas causas "objetivas" para entregá-las uni- extática do teatro: nada de palco, nada de conteúdo, o teatro na
camente ao poder de seus efeitos desencadeados. . J]J.a. sem atores, teatro de todos para todQ.~~_çJ!egariª-_ª__se

Qualquer caráter ~ky'adQ assim à pºt~c.iª_~llperJ<ltiY(l.,.pre-.


so numa espiral de redllpliçªç~to .- o mais verdadeiro do que o
( confundir com o exato desenrolar de nossas vic:l-ªs~e!J1ilu.~.~º .-=­
onde está o poder da ilusao;'-se'elã-se extãSíaj!Ii!~t.§ç.ª[ nossa
. .Y!cla _c_ºt.i cli~_ª-~--ª_!!.angi.&l,l!-ª-Lgº§..~J-ºç~ de trªºªlho? Mas é
.assim,é comi,'i.~º_q,'-!.e boie.a.ane busca sair.de.. si.mesma, negar
verdadeiro, o mais belo do que o belo, o mais real do que o real a si mesma e mais ela procura se realizar assim, mais ela se hiper-
~ t tem garantido .u.m..efeito.de..y.eJ:ti~miQ-'l~p_eº.º~~.t~mente de . realiza mais ela se transcende em sua essência vazia. Aqui tam-
r
~_ _ _ _.~. ._~

.
' ., .• .• _. "_ - . • . - "' . ' • "__0 _ - _ . .__ •

e •

I
o ÊXTASE E A INÉRCIA 11
10 AS ESTRA1ÉGIAS FATAIS
De maneira geral, as coisas visíveis não têm fim na obscuri-
.bém vertigem, vertigem, abismamento e estupefação. Nada con-
dade e no S1lênCio -=eTasdesaÍ>a.rec~-º! l1õ_-rrulisvisível que o.visí-
. tribuiu mais para estupefazer o ato "criador", e fazê-lo resplan-
decer em sua forma pura e inane, do que expor su6rtãÍnente, co- veF-a:"ob'scenidã.de~ · .
mo o-feZDuchamp, um porta-garrafas numa galérléil-de-p!ntura.
O êxtªse.ge .!!.I)}objetovulgar leva ao mesmo tempo oatopictu-
Um exemplo dessa ex-centricidade das coisas, dessa deriva
ral a ~.~ªiºr.I.!1a_~-",t-ª1iça -:-:-. doravante, sem objeto, el~_ vaigirar.
~()l>r.e si mesmoe praticamente desaparecer, não sem antes exer- na excrescência, é a irrupção no nosso sistema, do acaso, da in-
cer em nós uma fascinação definitiva. Atualmente, a arte só exerce determinação, da relatividade. A reação a esse novo estado de
a- magia-do' seu-des aparecimento. "" . coisas não foi um abandono resignado dos antigos valores, e sim
- Imaginem um bem que resplandecesse com todo o poder do uma superdeterminação louca, uma exacerbação dessesvalores
Mal: é Deus, um deus perverso criando o mundo por desafio e de referência, de função, de finalidade, de causalidade/Talvez a
"Ordenando sua natureza tenha realmente horror ao vazio , pois énele, no vazio,
-. autodestruição...
-_.,._--- _._-'- -'-
"que para conjurá-Io,nãs<;émº~.siste.n:las .plet()ricos , hipertrófi-
~ - ._ . - . - . _ ~ - - - - -~

-cos, sª-~~radoj~~ alK.o.r~d\J.ndªnte sempre .se instala onde não há


Isso também nos faz pensar na ultrapassagem do social, a mais nada.
irrupção do mais social que o social- a massa - aqui também - - Á 'determInação não desaparece em proveito da indetermi-
um social que absorveu todas as energias inversas do anti-social, nação e sim em proveito de uma hiperdeterminação - redundân-
da inércia, da resistência, do silêncio. Aqui, a lógica encontra sua cia da determinação no vazio.
extremidade - o ponto em que ela inverte suas finalidades e atinge A finalidade não desaparece em proveito do aleatório e sim
seu ponto de inércia e de exterrninação, mas ao mesmo tempo em proveito de uma hiperfinalidade, de uma hiperfuncionalida-
onde alcança o êxtase. As massas são o êxtase do social, a forma de: mais funcional que o funcional, mais final que o final -
extática do social, o espelho onde ele se reflete em sua imanên- hipertrofia.
cia total. Como o acaso nos mergulhou numa incerteza anormal, nós
O real não desaparece em proveito do imaginário, ele desa- respondemos a isso com excesso de causalidade e de finalidad~.
parece em proveito do mais real que o real: o hiper-real. Mais A hipertrofia não é um acidente na evolução de algumas espe-
verdadeira que o verdadeiro: assim é a simulação. cies animais ela é esse desafio de finalidade que responde a uma
_.8- presença não desaparece diante "do vazio, ela desaparece indeterrninaçâo crescente. Num sistema em que cada vez mais as
g!ªnte de uma duplicação de presença que desfaz a oposição da coisas são deixadas ao acaso, a finalidade chega ao delírio, e se
.pr esen ça e da ausência. desenvolvem elementos que sabem muito bem exceder seus fins,
O vazio tampouco desaparece diante do pleno e sim diante até invadir o sistema inteiro.
da repleção e da saturação - mais cheio do que o cheio, essa Isso vai do comportamento da célula cancerosa (hipervitali-
é a reação do corpo na obesidade, do sexo na obscenidade, sua dade numa só direção) à hiperespecialização dos objetos e dos
'-ãb'~ reasã.2 ª-9, ya~i,()~ " ". . homens, à operacionalidade do mínimo detalhe, à hipersignifi-
O movimento desaparece menos na imobilidade e mais na cação do mínimo signo:~motlv,de nossas vidas cotidianas, mas
"velocidade e na aceleração - no mais móvel que o movimento, também câncer secreto de todos os sistemas obesos e cancerosos,
e que leva este ao extremo ao mesmo tempo que o despoja dê
sentido.
"A sexualidade !!ão desapar~e n~Jl':lblimação, na repressão "
e na moral, ela desaparece certamente mais 'no mais sexual do
f da comunicação, da informação, da produção, da destruição -
todos tendo ultrapassado há muito tempo os limites das suas fun-
ções, de seu valor de uso, para entrar numa escalada fantasmáti -
-=.i~~~º sexo: opç).!riQ· O hiper-sexualcontemporâneodo hiper-real.
I
1
ca das -finalidades.
12
AS ESTRAlÉGIAS FATAIS o ÊXTASE E A INÉRCIA 13

Incrível superpotencialidade destruidora dos armamentos es-


tratégicos - só igualada pela excrescência demográfica mundial.
Histeria inversa à das finalidades: a histeria de causalidade Por mais paradoxal que seja, as duas são da mesma natureza e
correspondente ao desaparecimento simultâneo das origens e das respondem a uma mesma lógica de excrescênciae de inércia. Ano-
causas: procura obsessiva da origem, da responsabilidade, da re- malia triunfal: nenhum princípio de direito ou de medida pode
ferência, tentativa de esgotar os fenômenos até suas causas infi- temperar uma mais do que a outra, elas se arrastam reciproca-
nitesimais. Mas também o complexo da gênese e da genética, de mente. E o pior é que não existe nisso qualquer desafio prome-
que fazem parte a palingenesia psicanalítica (todo o psíquico hi- téico, nenhum descomedimento pela paixão ou pelo orgulho. Sim-
postasiado na primeira infância, todos os sinais se tornando sin- plesmente parece que a espécie ultrapassou um ponto específico
tomas), a biogenética (todas as probabilidades saturadas pela or- misterioso, de onde é impossível regressar, desacelerar, retardar.
ganização fatal das moléculas), a hipertrofia da pesquisa histó-
rica, o delírio de tudo explicar, de tudo imputar, de tudo referen- "U_'!!.ªJQ~i~ lastimável: além A~ .ll~.p~!!!2 preciso do tel!!Q~~_ .
ciar... Tudo isso se torna um entulho fantástico - as referências a história se tornou irreal. Sem perceber, a totalidade da espécie
vivendo todas umas das outras e à custa umas das outras. Aqui hiimanateria subitamente ab àfidonàdóàrêàl ídádéTlídoõ qiié
também se desenvolve um sistema excrescente de interpretação --teria acontecido desde então não teria sido iliãis-dé-tooo ·veÍ"àãdei-
sem nenhuma relação com seu objetivo. Tudo isso vem de uma ro, porém:-nªºii<Xferf~~2~rc_~~~-lo. ~gora, nossa tarefa e no~:
fuga para a frente diante da hemorragia das causas objetivas. so dever seria descobrir esse ponto, e enquanto não o alcançar-
mos seria preciso P_~f~~~~na~atuardestruição.H-- ---- _·__·_-
CANETTI
.Os fenômenos d~ inércia se aceleram. As formas estagnadas
proliferam, e o crescimento se imobiliza na excrescência. Assim _D~d pºÜJ1: OQonlQ morto em que todo o sistema ultrapas:
é.a f~rma da hipertrofia, do que vai mais longe do que a própria sa esse limite sutil de reversibilidade, de contradição, de questio-
finalidade: o crustaceo que se afasta do mar (com que finalida-
. namentopara _~mIar -YIV:Q~nª~!tiQ;:çQ.n ti-ª]Kao: -nª--própriaÇQD­
~e secreta?) não terá nunca mais tempo de voltar a ele. O gigan-
tísmo crescente das estátuas da ilha da Páscoa. templação deslumbrada, no êxtase...
--_.. Aqui começa uma pata"tísica-dos sistemas. Essa ultrapassa-
Tentacular, protuberante, excrescente, hipertrofiado: assim
é.o destin~ de inércia de um mundo saturado. Negar o próprio gem lógica, essa escalada, aliás, não oferece apenas inconvenientes,
fim pela hiperfinalidade não é também o processo do câncer? mesmo se ela toma sempre a forma de uma catástrofe vagarosa.
Revanche do crescimento na excrescência. Revanche e intimação Isso ocorre com os sistemas de destruição e de armamentos es-
da velocidade na inércia. As massas também são arrebatadas nesse ?' tratégicos. No ponto de ultrapassagem das forças de destruição,
~. a cena da guerra termina. Não existe mais correlação útil entre
gigantesco processo de inércia pela aceleração. A massa é esse
processo excrescente, que precipita qualquer crescimento para sua o potencial de aniquilamento e seu objetivo, e se torna insensato
perda. Ela é esse circuito curto-circuitado por uma finalidade utilizá-lo. O sistema se dissuade e este é o aspecto paradoxalmente
monstruosa. benéfico da dissuasão: não há mais espaço para a guerra. Por-
Exxon: o governo americano pede à multinacional um rela- tanto é preciso desejar a persistência dessa escalada nuclear, des-
tório global sobre todas as atividades no mundo. Resultado: 12 sa corrida armamentista. É o preço pago pela guerra pura, I is-
volumes de mil páginas, cuja leitura, senão a análise, exigiria vá- to é, pela forma pura e vazia, pela forma hiper-real e eternamen-
nos an~s de trabalho. Onde está a informação? te dissuasiva da guerra, em que pela primeira vez podemos nos
.Sena preciso encontrar uma dietética da informação? Seria
preCISO desengordurar os obesos, os sistemas obesos e criar ins-
titutos de desinformação? ' I Cf. os trabalhos de Paul Virilio.
14 AS ESTRA1ÉGIAS FATAIS o ÊXTASE E A INÉRCIA 15

felicitar pela ausência de acontecimentos. Mesmo a guerra, co- O..J>edicl o deǪ!l~~ti.~jJº~.t<l,~o religioso, se sua hipótese.,é
mo o real, nunca mais acontecerá. Exceto se justamente as po- radical.b..Qonto de que ele fala é impossível de ser descobert~~
tências nucleares conseguirem a desescalada e chegarem a circuns- Jlºrd~finiçãº, pOIs- se pudéssemosªl~ª~ª~lo_º-t~mpº-_~.Q,~~r:!-ª
crever novos espaços de guerra. Se o poderio militar, à custa de devolvido. O ponto a partir d~__~~_QQd_~_Qª!J1º~!!!ye!~er.o. pro-
uma desescalada dessa loucura maravilhosamente útil de segun- cesso de dispersão do tempo e da hist~~i~ n~~;~s~apª- e _e POr
do grau, encontrar uma cena da guerra, um espaço restrito e, en- isso que o ultrapassamos s~IT1J)~r~.e~.e:l~~~ e claro, sem o ter
fim humano, da guerra, então as armas encontrarão novamente
---crese}a,lü:- -- ---
seus valores de uso e seus valores... de troca: será possível nova-
mente trocar a guerra. Em sua forma orbital e extática, a guerra
se tornou uma troca impossível e essa condição orbital nos protege. Aliás, o ponto de Canetti talvez nem exista. Ele s~ e~i~te se
pudermos provar que outrora houve realmente uma história -
o que se toma impossível depois de ter ultrapassado esse pont~.
Numa esfera estranha à história, a própria história não pode maI~_
o que aconteceu com o desejo de Canetti de conhecer esse 'se refletir _nem se provar. É por isso que somamos todas as épo-
ponto cego além do qual "as coisas cessaram de ser verdadei- cas'-anteriores, todos os modos de vida, todas as mentalidades
ras", a história cessou de existir, sem que o percebêssemos - sem de historicizar de contar nossa história com provas e documen-
o que nós só poderemos perseverar na destruição atual? tos (tudo se to~na documentário): é porque sentimos JI}uito b:m
Supondo q\lepu~~~s~l1!~s~_e_t~!_I!!il1:~re_ss~ 20l1:t9, . o que fa- que tudo isso está enfraquecido em nossa esfera, que e a do fim
_Ijªmº~? POL~ m!@grea história !ºmªILª-ªJl~r:_y~r(ladeira?Por da história.
que milagre poderíamos voltar no tempo para impedir seu desa- Não podemos voltar atrás, nem aceitar essa situação. Alguns
parecimento? Pois esse ponto é também o do final do tempo li- resolveram rapidamente esse dilema: encontraram o ponto an~I­
near, e todos os prodígios da ciência-ficção para "voltar no tem- Canetti de uma desaceleração que permitiria voltar para a hIS-
CL..._ po" são inúteis, se ele já não existe mais, se atrás de nós no pas- tória, para o real, para o social, como um satélite perdido n.o h~­
~ sadopr-ªticªrnente já desapareceu, __ o - • perespaço reintegraria a atmosfera terrestrt;- Uma falsa radicali-
~-- Qu_e precauções deveriam ter sido tomadas para evitar esse dade nos teria extraviado nos espaços centnfugos, um sobressal-
colapso histórico, esse coma, essa volatilização do real? Que er- to vital nos reconduz à realidade. Tudo voltaria a ser verdadeiro,
:::.-__ ro cometemos? O gênero humano errou, violou algum segredo, tudo retomaria um sentido, uma vez conjurada essa obsessão da
. '> cometeu alguma inlPrudência fatal? Étão inútil fazer essas per- irrealidade da história, desse súbito aniquilamento do tempo e
- , -guntas quanto indagar sobre-a-fãzão misteriosa por que uma mu-
\_~ .lherIiosabàiidonõ'u: tãIvez-iladátívesse mudact().-Oaspectoater-
~ radºLd~Y!!.1._ª~ont_~!J:!l_e!!to~~~s~-etíe9é que, passado ce~~opon­
P--- -. to, todos os e_~forços feitos para exorciz~-JOLsº-fazemprecipitá-
I do real. . .
Talvez eles tenham razão. Talvez fosse preciso interromper
essa hemorragia do valor. Basta de radicalidade terrorista, bast.a
de simulacros - recrudescência da moral, da crença, do senti-
do. Abaixo as análises crepusculares!
, ,-lo; o pressentimento nunca serviu para nada, cada acontecimen- Além desse ponto, só_ºª acontecimento_§.s~mco!!§~qiiências
_ \ to dá inteiramente razão-ao que o preêêdeu.- É ingenuidade atri-
"-- • c __• • ' . , _ , • -. _ ••• _ • • _ _ •• _ _ • • _ • , . ' •
(eteorias sem conseqüências) justamente por~_ele~_a1:J~Qr:y'ernseu~
. . , '. buir causas a todos os acontecimentos e pensar que ele poderia sentidos em si mesmos, não refrata!!1_!!a.(fa, nao pressagiam nada.
, .º-iQ·ie-racontecidü' ~·oã.éonieCirnentõpuro,sem causas, só po- AlémdessepQIlto só..há catástrofes,_
,- de se cks~~~õívér fatalmente-" em compensação ele nunca pode Perfeito é o acontecimento ou a linguagem que assume seu
ser reproduzido, ao-contrái-1õ-de-um'prõc'esso'causal. Mas justa- modo de desaparecimento, sab~.~IIs:ená-lo e atinge assim a ener-
mentii~~eTe-não-é' maii~Ulli=ªconteCímento. .-&aJnáxima das aparências.
, I
(

16 AS ESTRAlÉGIAS FATAIS o ÊXTASE E A INÉR CIA 17

A catá~.lrofe t_º _?-.fºm ~_Gil1Jento bruto mª,'í-l-rno, aqui ainda luz do político e da história, que só conseguimos perceber fraca-
mais acontecimento do .que o acontecimento :- mas acontecimen ~ mente, e com a luz dos corpos de que só recebemos simulacros
to semco~§éqüêricias ··e que--de1xa -ó--iliündo-em---suspenso. - . atenuados.
_U ma vez terminado o sentido da história, uma vez ultrapas- É preciso perceber a catástrofe que nos espreita no retarda-
sado esse ponto de inércia, todo acontecimento se torna cat ás- mento da luz - quanto mais lenta é a luz , menos ela escapa de
trofe, torna-se acontecimento puro e sem conseqüências (mas nisso sua fonte - assim, as coisas e os acontecimentos tendem a não
reside sua força). mais deixar escapar seus sentidos, a retardar sua emanação, a cap-
-Ó acontecimento sem conseqüências - coro o o homem sem tar o que elas refratavam antes para absorvê-lo num corpo negro.
qualidades de .M usil, como o corpo sem órgãos, como o tempo
sem memória.
A ciência-ficção sempre esteve atraída pelas velocidades mais
rápidas do que a da luz. No entanto, bem mais estranho seria
Quando a luz é captada e engolida pela própria fonte, há o registro das velocidades inferiores a que a própria luz poderia
uma involução brutal do tempo no próprio acontecimento. Ca- descer.
tástrofe no sentido literal: a inflexão ou curva que faz coincidir, A velocidade da luz é o que protege a realidade das coisas,
numa coisa, sua origem e seu fim, que faz voltar o fim sobre a já que ela nos garante que a imagem que temos delas são con-
origem para anulá-la, dá lugar a um acontecimento sem prece- temporâneas. Toda verossimilhança de um universo causal desa-
dente e sem conseqüências - acontecimento puro. pareceria com uma mudança sensível dessa velocidade. Todas as
É também a catástrofe do sentido: o acontecimento sem con- coisas interfeririam numa desordem total. Pois é verdade que es-
seqüências se caracteriza pelo fato de que todas as causas podem sa velocidade é nosso referencial, nosso Deus, e para nós repre-
lhe ser indiferentemente atribuídas sem que nada permita esco- senta o absoluto. Se a velocid ade cair para as velocidades relati-
lher.. . Sua origem é ininteligível, sua destinação também. Não vas, não há mais transcendência, não há mais Deus para reco-
podemos recorrer nem o curso do tempo nem o curso do sentido. nhecer os seus, o universo cai na indeterminação.
É o que acontece hoje quando, com os meios eletrônicos,
a informação começa a circular por toda a parte com a própria
Hoje, qualquer acontecimento é virtualmente sem conseqüên- velocidade da luz. Não existe mais absoluto com que medir o resto.
cias, está aberto a todas as interpretações possíveis, nenhuma po- Porém, por trás dessa aceleração algo começa a retardar com-
deria decidir o sentido: eqüiprobabilidade de todas as causas e pletamente. Talvez nós comecemos a retardar completamente.
de todas as conseqüências - atribuição múltipla e aleatória. E se a luz retardasse até descer a velocidades "humanas"?
Se as ondas dos sentidos, se as ondas da memória e do tem- Se ela nos banhasse com um fluxo de imagens em câmera lenta,
po histórico em torno do acontecimento se retraem, se as ondas até se tornar mais lenta do que nosso andar?
de causalidade em torno de um efeito desaparecem (e hoje o acon- Seria preciso então generalizar o caso em que a luz nos vem
-, tecimento nos chega realmente como uma onda, ele não viaja, de estrelas que desapareceram há muito tempo - sua imagem
apenas, "sobre as ondas", ele é uma onda indecifrável em ter- atravessa os anos-luz para chegar ainda até nós. Se a luz fosse
mos de linguagem e de sentido, decifrável somente e instantanea- infinitamente mais lenta, um monte de coisas, e das mais próxi-
mente em termos de cor, de tato, de ambiente, em termos de efei- mas, já teria tido o destino dessas estrelas: nós as veríamos, elas
tos sensoriais), é porque a luz retarda, é porque em algum lugar estariam ali, mas já não estariam ali. E nesse caso o real não se-
um efeito gravitacional faz com que a luz do acontecimento, aque- ria algo cuja imagem ainda chega até nós, mas já não existe? Ana-
la que leva seu sentido além do próprio acontecimento, a luz por- logia com os objetos mentais e o éter mental.
tadora das mensagens retarda até parar, como acontece com a Ou, então, se a luz fosse muito lenta, os corpos poderiam
) o d1\. , i o ? l i , i fi OI , / f\ Jl h, I fi

18 AS ESTRATÉGIAS FATAIS 19

se aproximar de nós, mais depressa do que suas imagens, e o que completamente em sua progressão, a luz introduziria a uma sus-
aconteceria? Eles esbarrariam em nós sem que os tivéssemos vis- pensão total do universo.
to chegar. Aliás, podemos imaginar, ao contrário do nosso uni-
verso, onde os corpos lentos se movem todos com velocidades
muito inferiores à da luz, um universo onde os corpos se deslo- . . ~ssa espécie de jogo dos sistemas em torno do ponto de inér-
cassem com velocidades prodigiosas, exceto a luz que por sua vez CIa e Ilustrada pela forma de catástrofe congenital da era da si-
seria bem lenta. Um caos total que não seria mais regulado pela mulação: a forma sísmica. Aquela em que o sol se ausenta, aquela
instantaneidade das mensagens luminosas. d~ falha e do enfraquecimento, da~e dos objetos frac-
A luz como o vento: com velocidades variáveis, às vezes cal- tais, aquela em que imensas placas, siij)erfícies inteiras deslizam
marias, durante as quais nenhuma imagem nos chegaria das zo- umas sobre as outras e provocam intensos tremores superficiais.
nas atingidas. Não é mais o fogo devorador do céu que nos atinge: esse raio
A luz como o perfume: diferente segundo os corpos, ela não regenerador, que era ainda uma punição e uma purificação e que
se difunde além de uma vizinhança imediata. Uma esfera de men- semeava a terra. Não é o dilúvio: este seria uma catástrofe ma-
sagens luminosas atenuando-se progressivamente. As imagens do ternal, que está' na origem do mundo. Estas são as grandes for-
corpo não se propagam além de certo território luminoso: de - mas lendárias e míticas que nos assombram. Mais recente é a da
pois dele, não existe mais. explosão, ela culminou na obsessão da catástrofe nuclear (mas,
Ou ainda a luz se deslocando com a lentidão dos continen- Inversamente, ela alimentou o mito do Big Bang, da explosão co-
tes, das placas continentais, deslizando umas sobre as outras e mo origem do universo). Mais atual ainda é a forma sísmica tanto
provocando assim sismos que distorceriam todas as nossas ima- é verdade que as catástrofes tomam a forma de suas culturas, As
gens e nossa visão do espaço. cidades também se distinguem pelas formas de catástrofes que
Podemos imaginar uma refração lenta dos rostos e dos ges- elas trazem em si e que fazem parte do âmago de seus encantos.
tos, como movimentos de nadadores em água pesada? Como olhar Nova York é King Kong, ou o blecaute, ou o bombardeio verti-
alguém nos olhos, como seduzi-lo se não estamos certos de que cal: Tower Inf~rno. Los Angeles, é a falha horizontal, o rompi-
ele ainda esteja ali? Se uma câmara lenta cinematográfica inva- mento e o deslizamento da Califórnia para o Pacífico: Earth Qua-
disse o universo inteiro? Exaltação cômica do aceleramento, que k~. Hoj.e, é uma forma mais próxima, mais evocadora: da espé-
transcende o sentido pela explosão - porém, encantamento poé- CIe da fissão e da propagação instantânea, da espécie do ondula-
tico do retardamento destrói o sentido por implosão. tório, do espasmódico e da comunicação brutal. O céu não nos
O suspense e o retardamento são nossa forma atual do trá- cai mais sobre a cabeça, são os territórios que deslizam. Esta-
gico, desde que a aceleração se tornou nossa condição banal. O mos num universo físsil, banquisas erráticas, derivas horizontais.
tempo não é mais evidente em seu desenvolvimento normal des- O desmoronamento intersticial, esse é o efeito do sismo, também
de que ele se distendeu, se alargou na dimensão flutuante da rea- mental, que nos espera. A deiscência das coisas mais fechadas
lidade. Ele não está mais iluminado pela vontade. O espaço tam- o tremor das coisas que encolhem, que se contraem sobre o pró-
bém não está mais iluminado pelo movimento. Já que sua desti- prio vazio. Pois no fundo (!) o solo nunca existiu, mas apenas
nação está perdida, é preciso que uma espécie de predestinação uma epiderme rachada, nem a profundidade, que sabemos estar
intervenha novamente para lhes devolver algum efeito trágico. Essa em fusão. Os sismos anunciam, eles são o réquiem da infra-
predestinação pode ser lida no suspense e no retardamento. O estrutura. Não espreitaremos mais os astros nem o céu, e sim as
que suspende tanto o desenvolvimento da forma que o sentido deidades subterrâneas que nos ameaçam com um desmoronamen-
não se cristaliza mais. Ou então, sob o discurso do sentido, ou- to no vazio.
tro corre lentamente e implode sob o primeiro. Sonhamos em captar também essa energia, mas é pura lou-
Tão lenta que se encolheria sobre si mesma e chegaria a parar cura. Seria o mesmo que captar a energia dos acidentes de auto-
20 AS ESTRA1ÉGIAS FATAIS o ÊXTASE E A INÉRCIA 21

móveis, ou dos cães atropelados, ou de qualquer outra coisa que Ele próprio deveria se armar de tal terrorismo que generalizaria
desmorone. (Nova hipótese: se as coisas tendem a desaparecer e o terror em todos os níveis. Se este é o preço da segurança, será
desmoronar, talvez a principal fonte de energia do futuro seja o com isso que todos realmente sonham?
acidente e a catástrofe.) Uma coisa é certa: mesmo que não con-
sigamos captar a energia sísmica, a onda simbólica do tremor de
terra está longe de se acalmar: a energia simbólica, por assim di- Pompéia. Tudo nessa cidade é metafísica, até sua geometria
zer, o poder de fascinação e derrisão de um acontecimento des- sonhadora, que não é a do espaço e sim uma geometria mental,
ses, não é proporcional à destruição material. a dos labirintos - o congelamento do tempo sendo mais agudo
É essa força, essa energia simbólica de ruptura, que na rea- ainda no calor do meio-dia.
lidade procuramos captar nesse projeto delirante, ou no outro mais Magnífica para a psique é a presença táctil dessas ruínas,
imediato de prever os sismos com programas de evacuação. O mais seu suspense, suas sombras que giram, sua cotidianeidade. Con-
engraçado é que os especialistas calcularam que o estado de alerta junção da banalidade do passeio e da imanência de outro tem-
decretado com as previsões de um sismo desencadearia um pâni- po, de outro instante, único, que foi o da catástrofe. É a presen-
co tão grande que os efeitos seriam mais desastrosos do que os ça mortal mais abolida do Vesúvio que dá às ruas mortas o en-
da própria catástrofe. Assim também estamos em plena derrisão; canto de uma alucinação - a ilusão de estar aqui e agora, na
na falta de uma catástrofe real, seria lícito desencadear uma ca- véspera da erupção, e o mesmo ressuscitado dois míl anos de-
tástrofe por simulação que valeria pela outra e poderia substituí-la. pois por um milagre de nostalgia, na imanência de uma vida
Talvez seja isso que habite os fantasmas dos especialistas - é exa- anterior.
tamente a mesma coisa no domínio nuclear: todos os sistemas Poucos lugares dão tal impressão de inquietante estranheza
de prevenção e de dissuasão não atuam como focos virtuais de (não é de espantar que Jansen e Freud tenham situado ali a ação
catástrofe? Com o pretexto de desarmá-la, eles materializam to- psíquica de Gradiva). É todo o calor da morte que sentimos ali,
das as conseqüências no imediato. Tanto é verdade, que não po- mais vivo ainda pelos sinais fósseis e fugidios da vida diária: a
demos contar com o acaso para provocar a catástrofe: é preciso trilha das rochas sobre a pedra, o desgaste dos parapeitos, a ma-
encontrar seu equivalente programado no dispositivo de deira petrificada de uma porta entreaberta, a prega de uma toga
segurança. no corpo amortalhado pelas cinzas. Nenhuma história se inter-
Portanto, é evidente que um Estado ou um poder, bastante põe entre essas coisas e nós, como as que dão seu prestígio aos
sofisticado para prever os terremotos e prevenir todas as conse- monumentos: elas se materializam ali, imediatamente, no pró-
qüências, constituiria um perigo para a comunidade e a espécie, prio calor em que a morte as arrebatou.
bem mais fantástico do que os próprios sismos. Os terremotati Nem a monumentalidade nem a beleza são essenciais a Pom-
do sul da Itália atacaram violentamente o Estado italiano por sua péia, e sim a intimidade fatal das coisas, e o fascínio de sua ins-
incúria (as mídias chegaram antes do socorro, sinal evidente da tantaneidade como simulacro perfeito de nossa morte.
hierarquia atual das urgências), eles atribuíram a catástrofe, com Portanto, Pompéia é uma espécie de ilusão de ótica e de ce-
toda a razão, à ordem política (uma vez que esta pretende ter uma na primitiva: mesma vertigem de uma dimensão a menos, a do
solicitude universal para com as populações), mas nunca sonha- tempo - mesma alucinação de uma dimensão a mais, a da trans-
riam com uma ordem capaz de uma tal dissuasão das catástro- parência dos mínimos detalhes, como essa visão precisa de árvo-
fes: o preço a pagar seria tão alto que, no fundo, todos preferi- res imersas vivas no fundo de um lago artificial e que sobrevoa-
riam a catástrofe - esta, com suas misérias, responde ao menos mos a nado.
à exigência profunda de derrisão da ordem política. Seria o mes- Esse é o efeito mental da catástrofe: interromper as coisas
mo com o terrorismo: como um Estado seria capaz de dissuadir antes que elas tenham um fim, e mantê-las assim no suspense
e aniquilar qualquer terrorismo ainda no berço (a Alemanha)? de sua aparição.
22 AS ESTRATÉGIAS FATAIS

Pompéia novamente destruída por um terremoto. O que é


essa catástrofe que se obstina sobre ruínas? O que é uma ruína
que precisa ser novamente desmantelada e soterrada? Ironia sá-
dica de catástrofe: ela espera em segredo que as coisas, mesmo
as ruínas, retomem sua beleza e seu sentido para novamente anulá- FIGURAS DO TRANSPOLÍTICO
las. Ela busca ciumentamente destruir a ilusão de eternidade, mas
também brinca com ela, pois cristaliza as coisas numa eternida-
de secundária. É isso, a petrificação medúsica, a estupefação de
uma presença fervilhante de vida por uma instantaneidade ca-
tastrófica, é isso que fazia o encanto de Pompéia. A primeira ca-
tástrofe, a do Vesúvio, fora bem-sucedida. O último sismo é muito
mais problemático. Ele parece obedec~r a essa r~g!a do de~d.?­ O transpolítico é a transparência e a obscenidade de todas as es-
bramento dos acontecimentos num efeito de paródia. Repetição truturas num universo desestruturado, a transparência e a obs-
medíocre da grande estréia. Destruição de um grande destino por cenidade da mudança num universo "des-historizado", a trans-
um pequeno empurrão de uma divindade miserável. Mas talvez parência e a obscenidade da informação num universo sem acon-
tenha outro sentido: nos prevenir de que os temposnãosão.mais. tecimentos, a transparência e a obscenidade do espaço na pro-
.p ara a~ ~Yl:l_I~I!~hesgrl:l~~i~_S_<l:~__ ~._ª§ ressl:lrr~tç-º~ara os .i0gos miscuidade das redes, a transparência e a obscenidade do social
da morte e da eternidade, e sim para os pequenos acontecImen- nas massas, da política no terror, do corpo na obesidade e na
tos fraáãí~para- os anTq-uilament~~l~~tos, para os deslizamen: clonagem genética... Fim da cena da história, fim da cena da po-
tos progre~_~i_~~s_~_~g?_~ _~~.!!!-~_q~_~_qüências,. já que esse novo de~­ lítica, fim da cena do fantasma, fim da cena do corpo - irrup-
tino apaga os próprios vestígios. Isso nos mtroduz na era hon- ção do obsceno. Fim do segredo - irrupção da transparência.
zontal dos aconteclmerífõs -sem conseqüências, o último ato sen- O transpolítico é o modo de desaparecimento de tudo isso
- cloencênadÓpeIã·próprIanâiuréZã:
~_ - " .__".._.___
numa
..
ilUmmação
. • . . 4-""- -
de
. _
pa!?dlã: (não é mais o modo de produção que é empolgante e sim o mo-
do de desaparecimento), essa curva maléfica que termina com
o horizonte do sentido. A saturação dos sistemas os leva a seus
pontos de inércia: o equilíbrio do terror e da dissuasão, a ciran-
da orbital dos capitais flutuantes, as bombas H, os satélites de
informação... e teorias, elas próprias flutuantes, satélites de um
referencial ausente. Obesidade dos sistemas de memória, dos es-
toques de informação que desde já não são mais tratáveis - obe-
sidade, saturação de um sistema de destruição nuclear exceden-
do desde já os próprios fins, excrescente, hipertrofiado. O trans-
político é também isso: a passagem do crescimento para a excres-
cência, da finalidade para a hipertrofia, dos equilíbrios orgâni-
cos para as metástases cancerosas. É o local de uma catástrofe
e não mais de uma crise. As coisas se precipitam nele no ritmo
de uma tecnologia, inclusive as tecnologias suaves e psicodélicas,
que nos levam cada vez mais longe de qualquer realidade, de qual-
quer história, de qualquer destino.
Mas se o segredo está cada vez mais perseguido pela trans-
-
24 AS ESTRATÉGIAS FATAIS FIGURAS DO TR ANSPOLÍTICO

parência, se a cena (não apenas a do sentido, mas também a po- dade por excesso de conformidade, que demonstra a superdimen-
tência da ilusão e da sedução das aparências) está cada vez mais são de uma socialidade ao mesmo tempo saturada e vazia, em
perseguida pelo obsceno, o enigma por sua vez, consolem-se, per- que se perderam a cena do social e a do corpo.
manece inteiro - inclusive o do transpolítico. Essa obesidade estranha não é mais a de uma gordura de
A era do político foi a da anomia: crise, violência, loucura proteção, nem aquela do neurótico, da depressão. Não é nem a
e revolução. A era do transpolítico é a da anomalia: aberração obesidade compensatória do subdesenvolvido, nem a alimentar
sem conseqüência, contemporânea do acontecimento sem do superalimentado. Paradoxalmente ela é um modo de desapa-
conseqüência. recimento do corpo. Desaparece a regra secreta que delimita a
A anomia é o que escapa à jurisdição da norma. (A lei é área do corpo. A forma secreta do espelho, pela qual o corpo
uma instância, a norma é uma curva, a lei é uma transcendên- vela por si mesmo e por sua imagem, é abolida, cedendo lugar
cia, a norma é um meio.) A anomalia atua num campo aleató- à redundância sem freio de um organismo vivo. Não há mais li-
rio, estatístico, um campo de variações e modulações que não mite, não há mais transcendência: é como se o corpo não mais
conhece mais a margem ou a transgressão característica do cam- se opusesse a um mundo exterior, mas procurasse digerir o espa-
po da lei, já que tudo isso é absorvido na equação estatística e ço em sua aparência.
operacional. Um campo de tal modo normalizado que a anor- Esses obesos são fascinantes por seu completo esquecimen-
malidade não tem mais lugar, mesmo sob o aspecto de loucura to da sedução. Aliás, eles não se preocupam mais com isso e vi-
e de subversão. No entanto, permanece a anomalia. vem sem complexo, com desenvoltura, como se não lhes restasse
Esta tem algo de misterioso, pois não se sabe exatamente de nem mesmo um ideal do "eu". Eles não são ridículos e sabem
onde vem. Quanto à anomia sabemos o que é: a lei é suposta- disso. Pretendem uma espécie de verdade e com efeito: exibem
mente conhecida, e a anomia não é uma aberração, é uma infra- algo do sistema, de sua inflação a vácuo. Eles são sua expressão
ção a um sistema determinado. Enquanto para a anomalia, exis- niilista, a da incoerência geral dos signos, das morfologias, das
tem dúvidas quanto à própria lei de que ela escapa e sobre a re- formas de alimentação e da cidade - tecido celular hipertrofia-
gra que ela infringe. Essa lei não mais existe ou ela é desconheci- do e proliferando em todos os sentidos.
da. Há infração, ou melhor, incerteza quanto a um estado de coi - Obesidade fetal, primaI, placentária: é como se estivessem
sas que não sabemos mais se é um sistema de causas e efeitos. grávidos de seus corpos e não conseguissem pari-los. O corpo
A anomalia não tem mais o lado trágico da anormalidade, aumenta, aumenta, sem conseguir dar à luz a si mesmo. Mas tam-
nem mesmo o lado perigoso e desviante da anomia. Ela é, diga- bém obesidade secundária, obesidade de simulação como os sis-
mos, anódina, anódina e inexplicável. Ela é da ordem da apari- temas atuais, que engordam de tanta informação que nunca dão
ção pura e simples, de algo que vem à tona na superfície de um à luz , obesidade característica da modernidade operacional, em
sistema, o nosso, de algo vindo de outro lugar. De outro sistema? seu delírio de estocar tudo e tudo memorizar, de chegar, na mais
A anomalia não tem incidência crítica no sistema. Ela se pa- completa inutilidade, aos limites do inventário do mundo e da
receria mais com um mutante. informação e, ao mesmo tempo, instaurar uma potencialidade
monstruosa que não tem mais representação possível, que não
é mais possível pôr em ação, uma redundância vã que evoca um
século depois, mas num universo eool e sem ironia, sem ácido
o OBESO patafísico, a célebre gidouille do Pai Ubu.
Patafísica ou metafísica, essa histeria de gravidez é em todo
Quero falar de uma anomalia, dessa obesidade fascinante o caso um dos sinais mais estranhos da cultura americana, desse
tal como encontramos por todos os Estados Unidos. Dessa espé - meio ambiente espectral, onde é dada a cada célula (a cada fun-
cie de conformidade monstruosa ao espaço vazio, de disformi- ção, a cada estrutura), como no câncer, a possibilidade de se ra-
AS ESTRAlÉGIAS FATAIS FIGURAS DO TRANSPOLÍTICO 27

11 li tlcur,
se multiplicar ao infinito, ocupar virtualmente todo o menor lata de alimentos, a exibição da renda e do Q.I., inclusive
sozinha, monopolizar qualquer informação sobre si mesma
l'SJlW':O o tormento identificatório, a obsessão de exibir as vísceras do po-
(o [eedback já é uma estrutura obesa, é a matriz de todas as obe- der, igual aos esforços de localizar a função crítica nos lobos do
sidades estruturais), e se deleitar numa redundância genética fe- cérebro...
liz. Cada molécula feliz no paraíso da própria fórmula... A determinação viva se perde numa programação desespe-
rada, tudo é inventado como sobredeterrninação e procura sua
hipóstase histérica. Com isso o social, outrora espelho do con-
Portanto, não é a obesidade de alguns indivíduos que está flito, da classe, do proletariado, encontra sua hipóstase nos defi-
em causa, é a de um sistema inteiro, é a obscenidade de uma cul- cientes. As contradições históricas tomaram a forma patafísica
tura inteira. Quando o corpo perde sua regra e sua cena e atinge da deficiência mental ou física. Há algo estranho nessa conver-
essa forma obscena da obesidade. Quando o corpo perde sua re- são histérica do social - o diagnóstico mais provável é que, no
gra, sua cena e sua razão, ele atinge, ele também, essa forma pu- deficiente, como no débil mental ou no obeso, o social está ob-
ra e obscena que conhecemos, por sua operação visível em exces- cecado por seu desaparecimento. Tendo perdido sua credibilida-
so, sua ostentação, seu investimento e superinvestimento e todos de e a regra de seu jogo político, o social busca em seu resíduo
os espaços pelo social, não mudando nada no aspecto espectral vivo uma espécie de legitimidade transpolítica - após a gestão
e transparente do conjunto. da crise, a autogestão aberta do déficit e da monstruosidade. I
Essa obesidade também é espectral- nem um pouco pesa- Outrora era: "A cada um conforme seus méritos", depois:
da, ela flutua numa boa consciência da socialidade. Ela encarna "A cada um conforme suas necessidades"; e mais tarde: "A ca-
a forma informe, a morfologia amorfa do social atual: paradig- da um conforme seu desejo"; hoje: "A cada um conforme o que
ma individual ideal da reconciliação, do nicho fechado, autoge- lhe falta."
rido. Praticamente não são mais corpos e sim espécimes de uma O obeso praticamente escapa à sexualidade, à divisão sexua-
inorganicidade cancerosa que agora nos espreita em toda a parte. da, pela indivisão do corpo pleno. Ele resolve o vácuo do sexo
Para continuar no domínio oral (apesar de essa obesidade pela absorção do espaço ambiente. Ele é gordo, simbolicamente,
não ter nada de compulsão nem de regressão oral), podemos di- de todos os objetos de que não pôde se separar, ou daqueles de
zer que o social é como o gosto da cozinha americana. Gigantes- que não encontrou a distância para amá-los. Ele não separa o
ca indústria de dissuasão do gosto dos alimentos: seus sabores corpo do não-corpo. Seu corpo é um espelho convexo ou cônca-
são como isolados, expurgados e ressintetizados na forma de mo- vo, ele não consegue produzir o espelho plano que o refletiria.
lhos burlescos e artificiais. É oflavour, como outrora o glamour O estágio do espelho, que permite à criança, pela distinção
cinematográfico: supressão de qualquer caráter particular em pro- dos limites, abrir-se à cena do imaginário e da representação -
veito de uma aura de estúdio e de uma fascinação dos modelos. esse corte não aconteceu com ele e, na falta de aceder a essa divi-
A mesma coisa com o social: da mesma maneira que a função são interna, ele entra na multiplicação indivisa de um corpo sem
do gosto é isolada no molho, o social é isolado como função em imagem.
todos os molhos terapêuticos em que flutuamos. Socioesfera de
Não existe animal obeso, como não existe animal obsceno.
contato, de controle, de persuasão e dissuasão, de exibição das
inibições em doses maciças ou homeopáticas (" Have a problem,
we solve U!"): é isto a obscenidade. Todas as estruturas pelo avesso,
exibidas, todas as operações agora visíveis. Na América, isso vai 1 Mas a gestão "deficitária" do social, como sabemos, desemboca em todo tipo. ~e im-
do incrível tecido de fios telefônicos e elétricos aéreos (toda a re- passe. Eis uma alegoria: em toda parte dos USA construíram calçadas ~ra deficientes
de é na superfície) até a desmultiplicação concreta de todas as físicos. Mas os cegos que se guiavam pelo desnivelamento das calçadas ficaram desnor-
teados e são freqüentemente atropelados. Daí a idéia de um trilho para cegos ~o longo
funções do corpo na moradia, a ladainha dos ingredientes na das ruas. Mas, então, seriam os deficientes que teriam as rodas presas nos trilhos ...

1
28 AS ESTRATÉGIAS FATAIS FIG URAS DO TRANSPOLÍTICO 29

Seria porque o animal nunca é confrontado com a cena, com sua Algo, em certo momento, interrompe esse processo. Na obe-
imagem? Não estando submetido a essa obrigação cênica, ele não sidade, esse processo não é interrompido. O corpo, perdendo seus
saberia ser obsceno. Em compensação, no homem, essa obriga- traços específicos, prossegue na expansão monótona de seus te-
ção é total e, no obeso, há uma espécie de resiliência dessa obri- cidos. Nem mesmo individualizado, nem sexuado: ele é apenas
gação, de todo o orgulho da representação, de toda veleidade se- uma extensão indefinida: metastática.
dutora - a perda de um corpo como rosto. A patologia do obe-
so não é portanto endócrina, é uma patologia da cena e do
obsceno. Franz von Baader qualifica a metástase, assimilada ao êxta-
É muito difícil dizer o que constitui a cena do corpo. Pelo me- se - em seu ensaio Uber den Begriff der Ekstasis aIs Metastasis
nos isso: é ali que ele desempenha um papel, particularmente dele (Do conceito do êxtase como metástase) - como a antecipação
mesmo, em que ele foge de si mesmo na elipse das formas e do mo- da morte, do além do próprio fim, no seio da própria vida. E
vimento, na dança, em que ele escapa de sua inércia, no gesto, em certamente há muito disso no obeso, de quem podemos pensar
que ele se solta, na aura do olhar, em que ele se torna alusão e au- que em vida ele engoliu o seu próprio corpo morto - o que faz
sência - em suma, em que ele se oferece como sedução. É a au- corpo demais e, com isso, faz aparecer o corpo como um exces-
sência de tudo isso que transforma o obeso numa massa obscena. so. É o entupimento de um órgão inútil. Ele praticamente engo-
De repente, o obeso, em sua redundância, faz o sexo apare- liu também o próprio sexo e é essa deglutição do sexo que faz
cer como um excesso. Ele tem algo em comum com o clone - a obscenidade desse corpo hipertrofiado.
outro mutante ainda por aparecer - mas que o obeso prefigura Essa forma extática, ou metastática, de Baader, a do morto
bastante bem. Este não acalenta o sonho de se hipertrofiar para que vem assombrar o vivo e o faz aparecer como encarnação do
um dia se dividir em dois seres semelhantes? Transexual a seu mo- inútil, pode muito bem se generalizar nos sistemas atuais de in-
do, não pretende superar a reprodução sexuada e encontrar a dos formação, eles também metastáticos no sentido de uma anteci-
seres cissíparos? A proliferação do corpo não está longe da pro- pação do sentido morto na significação viva, e com isso uma pro-
liferação genética... dução de excesso de sentido, de sentido em demasia, como uma
O paradoxo da clonagem é, efetivamente, fabricar seres idên- prótese inútil. É assim também no pornô: seu ambiente fantas-
ticos ao seu pai genético (não edipianol) e portanto sexuados, mático vem da antecipação do sexo morto na sexualidade viva,
quando a sexualidade se tornou perfeitamente inútil nessa histó- do peso de todo o sexo morto (como falamos do peso de todo
ria. O sexo do clone é supérfluo, não a superfluidade excessiva o -trabalho morto sobre o trabalho vivo). Com isso, o pornô tam-
de Bataille - é simplesmente um resíduo inútil, como certos ór- bém faz aparecer a sexualidade como demais - é isso o obsce-
gãos ou apêndices animais cujas finalidades não são mais iden- no: não que haja muito sexo, é que finalmente o sexo ali está de-
tificáveis e que parecem anômalos e monstruosos. O sexo se tor- mais. O que faz o obeso ser obsceno, não é que ele tenha muito
nou uma excrescência, uma diferença excêntrica que não produz corpo, é que ali o corpo está demais.
mais sentido como tal (muitas diferenças mortas semeiam nossa
história e a de nossa espécie).
Talvez em toda unidade orgânica exista o impulso de se de- Que finalidade secreta existiria nisso (pois, deve haver uma)?
senvolver, por pura contigüidade, uma tendência à monotonia li- Que demônio lúbrico pode oferecer ao corpo esse espelho defor-
near e celular? É o que Freud chamava pulsão de morte, que é mante (pois há uma lubricidade nisso)?
apenas a excrescência indiferenciada do ser vivo. Esse processo Talvez seja uma revolta, como no câncer? Outrora as revol-
não conhece crise nem catástrofe: ele é hipertrofiado, no sentido tas eram políticas, de grupos ou de indivíduos oprimidos em seus
de que não tem outra finalidade senão o aumento sem conside- desejos, sua energia ou sua inteligência. Hoje elas não explodem
ração dos limites. mais. No nosso universo quaternário, a revolta tornou-se genética.
FIGURAS DO TRANSPOLÍTICO 31
.10 AS ESTRAlÉGIAS FATAIS

É a das células no câncer e nas metástases: vitalidade incoercível


Assim, a obesidade seria um belo exemplo dessa peripécia
que nos espera, dessa revolução nas coisas, que não está mais em
e proliferação indisciplinada. É também uma revolta, porém,
sua superação dialética (Aufhebung), e sim em sua potencializa-
não dialética - subliminar - e que nos escapa. Mas quem
ção (Steigerung), em sua elevação à potência dois, à potência n,
conhece o destino das formações cancerosas? Sua hipertélie cor- dessa elevação aos extremos na ausência de uma regra do jogo.
responde talvez à hiper-realidade de nossas formações sociais. Tal como a velocidade, que é a única expressão da mobilidade
E como se o corpo, as células se revoltassem contra o decreto .l20rQue ao contrâno do movimento. Que tem um sentido, ela nàQ
genético, contra os mandamentos (como tão bem dizem) do tem mais, ela não vai a parte aI m to não tem maIS rela-
ADN. O corpo se revolta contra a própria definição "objetiva". çao a guma com o mOVImento: ela é seu êxtase, aSSIm a a go dó
Seria um ato patológico (como, aliás, no desregularnento dos corpo de que, em sua a6erraçao, a obesidade seria a perfeita venIT-
anticorpos?). Na patologia tradicional, somática ou psicosso- caça0 a ver; a or ue ne a o c o em vez e se refle-
mática, o corpo reage às agressões externas, físicas, sociais, psi- tir, se absorve no róprio es e o de aumentg, "Somente as rases
cológicas: reação exotérica. Enquanto no câncer trata-se de uma autológicas são per eitamente verdadelràs", diz Canetti.
agressão esotérica: o corpo se revolta contra a própria organiza-
ção interna, ele desarma seu equilíbrio estrutural. É como se
a espécie estivesse farta da própria definição e se lançasse num
O REFÉM
delírio orgânico. 2
O obeso também está em pleno delírio. Pois ele não é ape-
nas gordo, com a gordura que se opõe à morfologia normal: ele A violência é~O terror é anômalo. Ele também, co-
é mais gordo do que o gordo. Ele não tem mais sentido numa mo a obesidade, é uma espécie de espelho convexo e deformante
oposição distinta e sim em seu excesso, sua redundância, em sua da ordem e da cena política. Espelho do desaparecimento. Ele
hiper-realidade. também parece surgir de outra sucessão, aleatória e vertiginosa,
Ele excede a própria patologia e é por isso que escapa tanto de um pânico por contigüidade, e não mais responder unicamente
à dietética quanto à psicoterapia e encontra essa outra lógica, essa às determinações da violência. Mais violento do que a violência,
estratégia exponencial em que as coisas privadas de suas finali- assim é o terrorismo, cuja espiral transpolítica corresponde à mes-
dades ou de suas referências se duplicam numa espécie de jogo ma elevação aos extremos na ausência da regra do jogo.
Nem morto nem vivo, o refém está suspenso por um prazo
de abismo.
incalculável Nãõ ê seu destinO QUê Oespera, nem a pn\pna mortê:
~a acaso anônimo ue só ode lhe arece com leta
bitrarie a e. ao existe mais n no '0 o de sua v'-
2 Podemos observar que a patologia, que se fixara no corpo metafórico, com sua divi-
clã e de sua morte. E por isso que ele está além da alienacao, além
são e seu recalque, não atua mais nessa fase metastática. Esse corpo. o do obeso, o do çlos termos da aliena ão e da troca. Ele está em estado de exce-
clone, o do cãncer, é uma prótese, uma metástase, uma ex-crescência - não é mais uma ão r inação vírtua .
cena, e o fantasma e o recalque não são mais válidos pala ele. Ele quase não tem mais Ele não pode nem mes rer o risco da própria vida:
inconsciente e é o fim da psicanálise. Mas certamente o início de outra patologia: conhe- esta lhe é roubada para servir de cobertura. De certa forma, isso
cemos essa melancolia clôníca (crônica) dos seres divisíveis ao infinito, a dos protozoá-
rios cissíparos assexuados, que procedem por extensão e expulsão, e não por pulsão e é o pior: o refém, ele próprio, não arrisca mais nada, está perfei-
intensidade, que também não procedem por crescimento mas por excrescência, que não tamente acobertado, foi tirado do próprio destino.
procedem mais por sedução, mas por transdução (a dos corpos que se tornam redes e Não é mais absolutamente uma vítima, já que não é ele que
que passam no fio das redes). Conhecemos essa melancolia do ser e da sociedade narci- morre, e só faz responder pela morte de outro. Sua soberania não
sista - narcisista por indivisão e por indefinição - pela qual a análise não pode fazer está nem mesmo alienada - ela está congelada.
mais nada. De toda a maneira, a psicanálise, só tem algo a dizer no campo da metáfora,
que é de ordem simbólica. Ela nada tem a dizer numa ordem diferente, nem na da meta- É assim durante a guerra, segundo uma lei de equivalência
morfose, nem em outro extremo, na da metástase.
AS ESTRA1ÉGI AS FATAIS FIGURAS DO TR ANSPOLÍTICO 33
32
que justamente não é a da guerra: dez reféns fuzilados por um ofi- r~~ré solidário e responsável pela miséria do pária de Calcutá e.
cial abatido. Porém, povos inteiros podem servir de reféns para seus o . ça d~ nos q~~S.tlºJlli.r.m.ºs sobre a mo~lr.-º-ºsidade do terro-
chefes: o povo alemão foi destinado à morte por Hitler, se ele não rJ~mo, _sena prec~so também saber se ele não vem de uma pro-
conseguisse a vitória. E, na estratégia nuclear, as populações civis posta d~ r~sponsabilidade universal, monstruosa e terrorista em
e as grandes metrópoles urbanas servem de reféns aos estados- sua.essencia,
maiores: sua morte e destruição servem de argumento de dissuasão.
Todos nÓs sumos reféns Atualmente todas nÓs seryjmos de
argumento de uma djssuasãQ Reféns objetivos: respoJ:ldemQ~ co~ . Nos sª.§.!tua7ão pa~adoxal é esta: porque nada mais tem sen-
letivamente por alguma coisa, mas o quê? Uma espécie de_J?I~:: .! Ido,.tudo deve~la funcIOnar perfeitamente. Porque não há mais
destinação falsa, cujos 'm anipuladores não conseguimos mais des; . alguem responsavel, cada ~co~eci~ç,!lt<?.LP-º.!.!!!.~I!º.!_gue seja, dev~
cobrir, mas sabemos que a balanca de nossa morte não está mais ..desesperadamente ser atnbUldo a alguém ou a algúffiacol sã- -
i em nossas mãos, e que de agora em diante estamos num estado _t~dg. mu~d~ é responsável,._l!-~~_~~sponsabilidade flutuante má- -
de suspense e de exceção permanente, cuio sí!D.];>-ºLo ~ o nuçlear.. .
xlma esta ai,. pronta P'ª.~ª i.I!~~sHu;~üi'q-üai guer lncidente.~­
Reféns objetivos de uma divindade aterrapora, não sabem.Qs-.mais quer anomalIa deve ser JUstlfIcadaL~Ll.!alquer irregulandade deve
,I
'I
nem mesmo de que acontecimento, de que acidente, d~.~ .n~~rá ~char seu ~lpado, S~JJc.te.~.e.ºYºJY.Í.~~~!º5riminoso~ Isto também
'I a Última manip.!!lacão. . o
e .0. terror, Isto ta~º,Çm.~ ..9_1~r.rQJjsº1Q: __~~~~ocuái ·de r éspórisà-
- - '- M asu únbém reféns subjeti vos. Respondemos por nós mes- b!hdade sem me~l~a comum com o acontecimento- --essa histe-
mos, servimos de cobertura Rara nós, respondemos por no ssos na de responsablhdade que é uma conseqüência do desapareci-
riscos sobre no ssas cabeças . E a lei da sociedade de seguro s em , mento da s cau sas e dõ poder Ilimitado dos efeltos ; -- ·- -- _ -I.
que todos os riscos devem ser cobertos. Essa situação correspon-
de à do refém. Estamos todos hospitalizados pela sociedade, to-
mados como hostage.* Nem a vida nem a morte: essa é a segu-
rança - esse é também, paradoxalmente, o estatuto do refém. . Como s~bem.os, o problema da segurança obceca nossas so-
Forma limite e caricatural de responsabilidade: anônima, es- ciedades e ha muito tempo su?stituiu o da liberdade. Não seria
t~nto uma mudan .de filosofia nem de moral e sim uma evolu-
tatística, formal e aleatória, posta em prática pelo ato terrorista 7a
çao do estado objetivo dos sistemas:
ou pela tomada de refém. Mas, se refletirmos bem, o terrorismo
é apenas o executor das grandes obras de um sistema que tam- - um estado relativamente frouxo, difuso, extensivo do sis-
bém pretende ao mesmo tem o e contraditoriamente o anonimato . tema, produz a liberdade; o

"iofà e a responsabilid<\de total de cada um de nós. Pela morte - um estado diferente do sistema (mais denso) produz a se-
ae qualquer um, ele executa a ~~Qt~!1çª de anonimato que (.c!~~ gurança (a auto-regulamentação, o controle, o feedback, etc.);
de já a nossa, a do sistema a}!çmiJllQa..dQ.pOOer.anônima.-d.Q.1t;:f-:.. -=- um estado postenor ao Sistema, de proliferação e de sa-
ror anônimo de nossas vidas reais. O pri~.92.io d~~~termiI]_~ç.ã2. . turaçao, produz o pânico e o terror.
_não é a morte, é a mdiferenca estatística. O terrorismo é ~I!~. Não há ~~tafísica ~iss~: são estados objetivos do sistema.
o operador de um conceito que se nega ao se realizar: o da res: \odemo_s aphca-lo ao transito automobilístico ou ao sistema de
~nsablhdade Ihmiíada e-lrureI~cmíº~gª]gualquer um respon- circulaç ão da responsabilidade - é a mesma coisa. Liberdade,
sável por qual uer cQB-ª-_aq!J.ª lC;lllermQrnen.t()L.~l~Ji_Q.J..?.~.~~~c.!:!~. ~egurança , terror:. ~travessamos as etapas sucessivas em todas as
- ar, em sua conseqüência extrema, a própriaprQPost.adohuilla:: areas. Responsab~l~dade pessoal, depois controle (encarregar-se
msmo hberaI e cristâo: toclQ_~-º.~..hQmens..s㺠_s.ºJjgªr.i.Qs, você,-ª9.!!!,o
- ._
-------------.......... ..-
de uma resJ?<?nsablhdade por uma instância objetiva), depois terror
( r.e~p onsabl h d ad e generalizada e chantagem com a responsa-
bilidade),
* E m inglês no o rigina l. Trocad ilho com otage, refém em francê s (N o da To)
É para corrigir, para interromper, o escândalo da morte aci-
-_ . ~ . _ - - --"
__ .-._..... . .. _ . .• _ ' ~ .. - - - - _._- ----

AS ESTRAlÉGIAS FATAIS l'!(iURAS DO TRANSPOLÍTICO 35


34
viesse perigosamente infringir essa ordem,o mundo deveria ser
dental (inaceitável para nosso sistema de liber~ade, de direito e
destruido... E de onde ele pode sê-lo mais eficazmente senão desses
de rentabilidade) que se instalam os grandes sistemas .do te~r?r,
lugares fora do mundo que são os satélites e as bombas em órbi-
isto é, de prevenção da morte acidental, pela morte sIs~e~atIca
e organizada. Essa é a nossa situação monstruosa e lógíca: os ta? E de lá, ~~e. defi~t~vamente não é mais um território, que
sistemas de morte acabam com a morte como acidente. E é ess~ todos o,s temt,onos sao Idealmente neutralizados e tomados co-
mo refens. Nos nos tornamos satélites de nossos satélites.
lógica que o terrorismo tenta desesperadamente q}l~brar, s~bstI­
O espaço do terrorismo não é diferente do espaço orbital de
tuindo a morte sistemática (no terror) por uma lógica eletiva: a
c~~trole. Com os satélites e os vôos espaciais, tanto civis quanto
do refém. '. b ?'lI1ltares, o espaço planetário se abisma, suspenso a uma iminência
(O Papa, ele também, oferecendo-se com~ vI.tIma em su ~-
m~erta, da ~esma forma que o refém está no espaço de seu cati-
tituição aos reféns de Mogadiscio, proc~r? ~bstItmr o terror ano-
nimo por uma norma eletiva, um sacrifício, semelhant~ ao I?~­ ve!ro: ex-tasiado no sentido literal, para ser em seguida exter-
minado.'
deio "crístico" de perdão universal- mas essa oferta e paródi-
ca sem querer, pois designa uma solução e um mod~lo q~e sao Do mesmo modo que existe um espaço do terrorismo existe
uma circulação dos reféns. Cada tomada de refém, cada 'ato de
completamente impensáveis em nossos SIstema.s at~aIs, cuja mo-
la, em vez do sacrifício, é justamente a extermmaçao, em ve~, da terronsmo responde a outro, e temos a impressão, em nível mun-
vítima eleita, justamente o anonimato espetac~lar.) ~esmo o s~­ dial, ~e uma cadeia, de uma sucessão dos atos transpolíticos do
crifício" dos terroristas, tentando resolver a situaçao com a pr~­ !erronsmo (enquanto a cena política não dá absolutamente essa
Im~ressão de re~ção em cadeia), como um circuito ininterrupto,
pria morte, não tem nada d: expíatõrío, só faz levantar por um
orbital e~e .tamb.em, veiculando de um ponto a outro do planeta
instante o véu do terror anorumo. uma especie de informação "sacrificial", um pouco como o ku-
la circulava através do arquipélago melanésio.
Não há nada a resgatar, porque uns e outros, tanto terroris- Nada se parece mais com essa circulação dos reféns, pela for-
tas como reféns, perderam seus nomes: todos se tornaram ma ~bsolu~ da conversibilidade humana, como pe/ajorma pu-
ra e impossivel da troca, do que a dos europetrodólares e de ou-
inomináveis. A " d " , ' tras moedas flutuantes, desterritorializadas a tal ponto; para além
Eles também não tem mais terntono. Falaram o espaço
do terrorismo": os aeroportos, as embaixadas, as zonas fractais, do ouro_e das moedas nacionais, que na realidade elas pratica-
~ente nao se trocam mais, mas prosseguem entre si seu ciclo or-
as zonas não territoriais. A embaixada é o ínfimo espaço pelo
qual se pode tomar um país estrangeiro inteiro cOI?o refém. O bital, encarnando o delírio abstrato e nunca realizado da troca
avião, com seus passageiros, é uma parcela, a .molecula .er,r~nte total, com,? o.s satélites artificiais encarnam o delírio abstrato de
transcendência e controle. E também pelajorma pura e impossí-
de um território inimigo, logo quase não é mais um ternto~lO ~
assim já é quase um refém, já que tomar algo c.o~~ refem e vel da guerra que se encarna nas bombas orbitais.
arrancá-lo de seu território para invertê-lo no equilíbrio ,do t~r­
ror. Hoje, esta é em toda a parte nossa condição normal e sI~enclO­ ~9dos reféns. somos todolj terroristas Esse circuite
sa mas ela se materializa mais visivelmente no espaço orbital, no substituiu O0ll!!()!()__qº~_Qªlr9~JlQs.-eS.c.ra'iQs....Q .dos
.. . -dominantes
_.. ... " .

espaço sideral que hoje, em toda a parte, está acima do nosso.


' ~ "" - ~ - . _' ~

Atualmente, a ordem do mundo é regida d? n? man's land


do terror: é nesse lugar, praticamente extraterntonal, ext~apla~ ) A abstraçào do controle orbital não deve nos ocultar que esse equilíbrio do terror está
netário, que o mundo está literalmente tomado como refém. E pr~sente en: nível infinitesimal e individual: nos tornamos responsáveis pela ordem que
isso o que significa o equilíbrio do terror: O. mundo se tornou rema em nos. Se essa ordem ficar seriamente ameaçada, estamos psicologicamente pro-
gram ado s para nos destruir. •
coletivamente responsável pela ordem que rema nele - se algo

, \
AS ESTRAlÉGIAS FATAIS FIGURAS DO TRANSPOLÍTICO 37
36
político é o terrorismo. o que revela nossa miséria transpolítica
inad d s exploradores.-e-dos-exW.orªºos,"Ien:~in~-
e dos dOIlllna.:~~~__Q"_ .....' .... 'd' prol.et.ário agora é a conS!~l9- e tira dela ~~I!.~~gy.êIl,.Ç.ias..~mas e Ei§.§º.jnf~!L~~nt~'para nossos
., - t 1 çao do escravo e. o .' -. . _ . - . '1' espíritos críticos, .d~.gllª1.quer lado que seja. Não há mensagem
da a cons e ~~ . . _'_'-'-'~;' 11 'nada a constelaçao da a leIJª-
··"'.---d··-·-wm e ao terrorista. errm .. -1 na tomada de rerem, ela não tem sentido nem efiéiêndã. p'õTíHcà;
çao o re e .__ .__.._'. EI .' ' do que a outra mas pe o me-
-.-.._.. 'g"Oíf::rê a ãõ terror a e pIor.. .' .- h' " é umaconre-cimetltO~enrco.n.s.~qÜêiiciª.~.(d.e__ desêmliôC.a":"~ifu')te
çao, 'a .....----.-...-. líberaís e das astúcias da ístona,
-nôsnOsTiberta das nosta glas . . .. ..
1"

nurrí'deaãêiid):'mas os próprios acontecimentos políticos ofere-


'~ã'eia-cf6"tr~~~p~lític~eqrau:'pcoomll'tel'cÇaa;, masé_emtoda.parte que ceriamouti~ú:o~s~~além-~~ª.fªI~ªf.ºmiriuidaº-~,~ª_~Q:rn&ão
. """'móêâpenas na eSl"
c ..• .. , ...
o., "'1 - d chantagem E, em toda aparteq,
, ' o ••
ue
. déõõntlfiííidade queerrltª~s~an.te. Outrora da atuava como ré:
entramos Ila. CO?ste_açao a . . bilidadeatua,CoIIlO volução,noje ela só consegue chegar a ef~t().s,~s.peçiais.~:E.'_ºj?rº:.
........désr
essa _.=... ... '.absllrcla. da respon~ .
esm ultinhcaçao . prlOI~JT~~·grgant.esco..efeito.._~_~p~ial.
d~- ídenti d d de que somos reféns: intimados . . No entanto não é por não querer um sentido. Contra a trans-
Até em ,no.ss a 1 enn a e, r or ela jurando por nossa vi- parência geral, o terrorismo quer intimar as coisas a reencontrar
a assumi-la, intimados a respondet~lmente social) _ intimados seu sentido, mas só conseguindo acelerar essa sentença de morte
da (isso se chama segurança, even a nos realizar _ sob pena e de indiferença. Todavia seu efeito é de um tipo bastante espe-
a ser nós mes~os, ~:~~~~;;r~~C;:~ação. Ao contrário da sedu- cial para se distinguir dos outros e se opor a eles, como a forma
de... sob pena, e que. , t em e aparecerem no segredo, no catastrófica da transparência, a forma cristalína, a forma inten-
ção, que per~.lt~.~J :lS:S;;'~ação não nos deixa a liberdade siva - contra todas as formas extensivas que nos cercam. Ele
duelo da am 19U1, a , lar tal como somos. Ela é semJ?r,e reflete esse dilema, em que infelízmente estamos presos: que só
de ser, ela nos Ob!l~: a tf}-~sJ:(~ por isso um assassinato simbóli- existe solução para a extensão latente do terror em sua intensifi-
uma chantagem a 1 en 1. aceto J'ustamente por ter sido con- cação visível.
co, já que nunca somos ISSO, ex A revolução nas coisas não está mais atualmente em sua su-
denados a isso). ' 1 - é do mesmo tipo. A manipu- peração dialética(Az4heb1Ll1gl~.sim..em_suap ot~
Toda a esfera da ~ampu aça~iolência pela chantagem. E a sua eleva~o à potêncj.J!..b.Ar>gtênci-ª.l4.se-ia.,da...a.dQ terrorism~
I lação é uma tecnol~gra su~ve da tomada como refém de uma da ironia,.ou da simulação... Não é mais a dialética que vale, é
chantagem sempre e exercà~aJ:~entimento, um desejo, um pra- o êxtasee, A~im o terrorismo é a forma prtática da violência, as-

I parcela do o~tro, um segre orte _ é sobre isso que atuamos na


zer, ~eu so!nmento, sua ~
de fazer surgir, por so icitaçao
ao nosso., .
campo psicológico), é nosso modo
mampulaçao ~que cobrely? o ~ forçada um pedido equivalente
,
índi id 1 do pedido (contrariamente ao
sim o Estad~_ é a f~rma extática da sociedade, assim o ~nô A
a forma extátic-ª...º~º.... º-Q.º..s.çeIl.Q.-ªJ.Q~ e!!átLca da cena,
etc. Pareceqíi~a~.ç.Qis3§.....l~ªºo .~r.diqº--sua dete-rmin;iCaQ~a
e dialética, só pod~mg~ redobrar em sua forma ~cer--º-ªd~L~.!mn_S­
parente.. Assim, a guerra P!!!,ª.._g~.YiriliQ.;,.Q êxtasç da g~.rra jI-
No regnne mt~nn ivi _ ua somos submetidos à chantagem 'real, eveniUãIej)res~ÍÍI~~~m tQdapª.rt~:,~~_~ _exp1.Qraç~º.~..s.Qª­
amor, à paixão ou a sedujOça?), do outro' "Se você não me der cial é um abismamento.ci~ssem1-.mdº-,EID.JQQaa parte, o .Y.ir~.s
jO' mos o re f,em alet I V O ' ~ - da potencialízação e do abism. nto vence e nos leva para um
atetiva, s o , ' ínha depressão - se voce nao
isso, você ser~ res~onsavel pel~ ~ minha morte" e, é claro: "Se êxtase que é também o d indifer~ ·.· ....._·__~.,_ ....
pe:
o .. _.', ..

me amar, voce ~era responsav: res onsável por sua morte."


você não se deixar al~ar, vtoche.s:rico ~ intimação e solicitação
Em suma, um envo vimen o lS o terrorismo, a tomada de refém, seria um ato político se
de responder. reféns .Não..he- fosse somente dos oprimidos desesperados (talvez o seja ainda
~a não ser tomado, !Q~Q.!i._Q~º-IDQdi - ~ geral' A em certos casos), Mas na realidade ele se tornou o comportamento
, __
--o da maneira é a regra cOJ?uIIl.,_e a:.~o.n, ~~o-
síte, De t ""'--'-"'ffiT'--'- .,. 'das massas O umco ato trans
_ normal, generalízado, de todas as nações e de todos os grupos.
'única condição transpo ltlca e a . .
~--------

AS ESTRAlÉGIAS FATAIS I II .III(AS DO TRANSPoLlTlCO 39


38
A chantagem é obscena porque ela põe fim à cena da troca.
Assim a URSS não liquida Sakharov, não anexa o Afeganistão:
O próp~io refém é obsceno. Ele é obsceno porque não re-
ela toma Sakharov como refém, ela toma o Afeganistão como
prcscnta mais nada (é a própria definição de obscenidade). Ele
refém: "Se vocês desequilibrarem a relação de forças, eu e,ndure-
('s';\ em estado de exibição pura e simples. Objeto puro, sem ima-
cerei a guerra fria ..." Os jogos olímpicos servem de refem ~os
p,l'lIl. Desapa~ecido antes de estar morto. Congelado num estado
Estados Unidos contra a URSS: "Se vocês não recuarem, os JO- de desaparecimento, Criogenizado a sua maneira.
gos estão mortos..." O petróleo serve de refém aos p~ses p!odu- Foi a vitória das Brigadas Vermelhas no seqüestro de Aldo
tores contra o Ocidente. De nada serve deplorar essa ~ltuaçao em
Moro: demonstrar, pondo-o fora de combate (com a cumplici-
nome dos direitos do homem ou do que quer que seja. E~tamos
dade da D.e. que se apressara em abandoná-lo), que ele não re-
bem além disso, e os tomadores de reféns só fazem t~aduzlr aber-
prcsentava nada e ao mesmo tempo fazer a equivalência nula do
tamente a verdade do sistema da dissuasão (e é por ISSO que lhes
I·:sta~o. O ~od~r, assim devolvido a seu despojo anônimo, não
opomos o sistema da moral). tem importância nem como cadáver e pode acabar na mala de
De maneira geral, nós somos todos refé~ do s<?cial:. "Se v?cês um carro,. ~e maneira vergonhosa para todos, e assim também
não participarem, se vocês não ~~rirem~apltal, dl~h~lf~, s~u~~, o,bscena, ja que n.em mais tem sentido (na ordem política tradi-
desejo ... Se vocês não forem SOCiaIS, v~ces se destru~rao. Aldeia
~~onal, nunca tenam tomado um rei ou um príncipe como re-
barroca de tomar a si mesmo como refem para termmar com nos-
lem: eventualmente poderiam matá-lo, e mesmo assim seu cadá-
sas exigências não é todavia tão singular - é aliás o ato que es-
ver é poderoso).
colhem os "desesperados" que se trancam e resist~m até_a ~o~t~. . A obscenidade do refém é visível na impossibilidade de se
A chantagem é pi?r do gue ~ proíbiçáo. ~. ~~ssua~ao_e pIO~ livrar dele ~as B.V. tiveram essa experiência com Moro também).
do que a sanção. Na~ di~su~sao.nao ~~ dI~,mals., , Vo~e nao fara
E a,~bsc~~~ade de. alguém que já está morto - é por isso que
isso", e sim: "Se voce nao fizer ISSO... Aliás, se para ai - a even-
ele e inutilizável politicamente, Obsceno por desaparecimento, ele
tualidade ameaçadora fica em suspenso. Portanto, toda a arte da
se torna o espelho da obscenidade visível do poder (as B.V. ti-
chantagem e da manipulação está nesse .suspense - o "suspen-
nh~m co,nseg.uido isso perfeitamente - sua morte, em compen-
se" que é especialmente o do terror (aSSIm como na tomada do saçao, fOI muito problemática, pois se é verdade que de nada serve
refém este está suspenso e não condenado: suspenso p~r um pr.azo morrer, é preciso saberdesaparecer, também é verdade que de nada
que eie desconhece). É inútil dizer que vivemos assIm. coletiva-
serve matar, é preciso saber fazer desaparecer).
mente sob a chantagem nuclear, não sob urna ameaça direta, mas
Pensemos também no juiz D'Urso, encontrado amarrado e
sob a chantagem do nuclear que é praticamente um sistema não
a.mo~rd.açado nu~ carro - não morto, mas com fones e música
de destruição, mas de manipulação planetária. . smfomca no mais alto volUI~e: transistorizado. Merda sagrada
Isso faz surgir um outro tipo de relação e de poder, dlf~ren-
que a cada vez as.B.V. foram Jogar aos pés do partido comunista.
te do que se baseava na violência ~a proibição. Pois, esta tIn~a Essa obscemdade, esse parti pris exibicionista do terrorismo
uma referência e um objeto determmado, e aSSIm a transgress~o
contrariamente à opção inversa do segredo no sacrifício e no ri:
era possível. Enquanto a chantagem é alusiva, ela ~ão s~ baseI.a
tua!, .explica sua afi.nidade com os meios de comunicação - o
mais num imperativo nem no enunciado de uma lei (~ena prec~­
e~taglO obsceno da mformação. Dizem: sem os meios de comu-
so inventar o modo dissuasivo, baseado no não-enunClad~ da ~e~,
nicação nã? haveria terrorismo. E é verdade que o terrorismo não
e sobre a retaliação flutuante), ela atua como a forma enigmati-
existe em SI, como ato político original: ele é o refém dos meios
ca do terror. de comunicação, assim como estes o são dele. Não há fim nesse
encadeamento da chantagem - todo mundo é refém do outro
O terror é obsceno porque ele põe fim à cena da proibição é o fim do fim de nossa relação chamada "social". Aliás, existe
um outro termo por trás de tudo isso, que é uma espécie de ma-
e da violência, que pelo menos nos era familiar.
40 AS ESTRATÉGIAS FATAIS FIGURAS DO TRANSPOLÍTICO
41

triz dessa chantagem circular; são as massas, sem o que não ha- e d~ fascinação. É verdade que a Itália, que já deu à história seus
veria meios de comunicação nem terrorismo. mais bel?s .espe!áculos, o Renascimento, Veneza, a Igreja, o
As massas são o protótipo absoluto de refém, da coisa to- trompe-I.oel!, a op~r~, l!0s o~ere~ ~inda hoje, com o espetáculo
mada como refém, isto, é, anulada em sua soberania, abolida e d<? ~erronsmo, o episódio mais fértil e mais barroco, numa cum-
inexistente como indivíduo mas, atenção!, radicalmente introcá- plícidade global ~e toda a s.o~ieda,de italiana: terrorismo dell'arte!)
vel como objeto. Como o refém, não se pode fazer nada, não Com o_sequestro do JUIZ D Urso, tudo ficou deslocado de
há como se livrar delas. Assim é a revanche memorável do re- uma vez. ~ao é ~ais o Estad.o oficial contra os terroristas livres
fém, assim é a revanche memorável das massas. Assim é a fatali- e clandestmos, s~o os terronstas presos, promovidos juízes do
dade da manipulação, de tal modo que ela nunca pode ser, nem fundo de ~as pnsões (enquanto o juiz D'Urso fica simbolica-
substituir, a estratégia. men~e d:tldo, contra o segredo da informação os meios de co-
Com efeito, é ainda por nostalgia que distinguimos um ma- murncaçao pretendem ignorar sua existência). Os pólos muda-
nipulador ativo de um manipulador passivo - reverberando as- r~~: os ter~nstas presos, por assim dizer libertados da clandes-
sim as velhas relações de dominação e de violência na nova era tinidade, nao negociam mais com a classe política e sim com a
classe "mediática".
das tecnologias suaves. Se tomarmos uma das figuras da mani-
Na realidade vemos aqui também que:
pulação, a unidade mínima pergunta/resposta em entrevistas, son-
. - não há nada a negociar: os textos cuja divulgação é exi-
dagens e outras formas de solicitação diretiva: a resposta é indu- gida pelas RV. são politicamente ridículos e além disso um se-
zida pela pergunta, sem dúvida, mas quem faz a pergunta tam- gredo de Polichinelo; .
bém não tem autonomia: só pode fazer as perguntas que têm chan- . - o Estad.o não s~b_e mais o que fazer com os presos, que
ce de receber resposta circular - assim, fica preso exatamente In_comodam mais na pnsao do que na clandestinidade. As B.Y.
no mesmo círculo vicioso. Não pode haver estratégia de sua par- nao sabem o que fazer com seu refém.
te, há manipulação das duas partes. O jogo é igual, ou melhor, Fica <? efeito da responsabilidade giratória que as B.Y. con-
o trunfo é igualmente nulo. seguem cr~r em ~que o Estado, a classe política e os meios de
O caso Moro já oferecia um belo exemplo dessa estratégia comumcaçao se veem responsáveis pela eventual morte de D'Urso
de soma nula, cuja caixa-preta são os meios de comunicação e ta~te;> quanto o~ terro~stas. Fazer circular uma responsabilidad~
o amplificador as massas inertes e fascinadas. Gigantesco ciclo rnaxirna no vaZIO, equivale a fazer explodir a irresponsabilidade
de quatro protagonistas, em que circula urna responsabilidade es- ger~l. e p~rtanto f~zer explodir o contrato social. A regra do jogo
condida. Cena giratória do transpolítico. pol~tlco ÍI:a abolida nãe;> pelo exercício real da violência mas pe-
Na pessoa translúcida de Moro, é o Estado vazio, ausente la circulação enlouquecida dos atos e das acusações dos efeitos
(o poder que nos atravessa sem nos atingir, aquele que nós tam- e das causas, pela circulação forçada dos valores de'Estado co-
bém atravessamos sem atingi-lo) que é tornado como refém pe- mo a violência, a responsabilidade, a justiça, etc. '
los terroristas, eles próprios clandestinos e fugidios - uns e ou- Essa pressão é fatal para a cena política. Com ela vem um
tros mimando desesperadamente o poder e o contrapoder. Im- ultimato implícito que é mais ou menos esse: "Que preço que-
possível de negociar, a morte de Moro significa que não há mais rem pagar para se verem livres do terrorismo?" Subentendido:
nada a negociar entre dois parceiros que são na realidade um o o terrorismo é ainda um mal menor do que o Estado policial é
refém do outro, como em qualquer sistema de responsabilidade capaz de combater. E é bem possível que aceitemos secretamente
limitada. (A sociedade tradicional é uma sociedade de responsa- ~ssa proposta fantástica, não é preciso •'consciência política" para
bilidade ilimitada, é por isso que ela pode funcionar - numa ISSO, e ~ma secret~ ~alança ?o ~ter:or que nos faz adivinhar que
sociedade de responsabilidade ilimitada, isto é, em que os ter- a. erup~ao espasmódica da violência vale mais do que seu exercí-
mos de troca não trocam mais mas se trocam continuamente en- ~IO racional no quadro do Estado, do que sua prevenção total
tre si, então o conjunto rodopia, só produzindo efeitos de vertigem a custa de uma ascendência programática total.
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42 AS ESTRA1ÉGIAS FATAIS I (jURAS DO TRANSPOLÍTICO
43
De toda maneira é preferível que algo abale o Estado em sua anônimo, e um objeto absolutamente diferente, excepcional de
força todo-poderosa. Se desaparecerem as mediações que garan- <Iha intensidade, perigoso, sublime (tão perigoso quanto o terro-
tiam esse equilíbrio relativo assim como a regra do jogo polít~c~, rista: perguntem aos responsáveis pela libertação dos reféns se
se o contrato social desapareceu ao mesmo tempo que a pOSSIbI- estes não inspiram, por suas existências, por suas presenças, o
lidade de cada um se inventar socialmente, isto é, sacrificar es- mesmo terror que o terrorista - aliás, para liquidar a situação,
pontaneamente uma parcela de sua liberdade e~ vista do bem- a supressão dos reféns é objetivamente equivalente à dos terro-
estar coletivo, em razão de tudo já estar sendo virtualmente ga- ristas: os governos escolherão ora uma ora outra, conforme a
rantido pelo Estado (aqui também é o fim da troca: o indivíduo conjuntura).
nem pode mais negociar sua parcela de liberdade, senão ele apa- Por todas essas razões, o refém secretamente não é mais ne-
rece como refém de si mesmo, um segurado vivo) - então, é ine- gociável. Justamente em razão de sua absoluta conversibilidade.
vitável que o Estado suscite, conforme o desaparecimento dessa Nenhuma situação realiza a esse ponto tal paradoxo: arrancado
cena política, uma forma, radical e fantasmática ao mesmo tem- ao circuito da troca, o refém pode ser trocado por qualquer coi-
po, de contestação: o fantasma do terrorismo, que faz o mesmo sa. Tornado sagrado por subtração pelo estado de exceção radi-
I/ jogo que ele, e com que o Estado faz uma espécie de novo con- cal em que foi posto, o refém se torna o equivalente fantástico
I
1
trato social perverso. de todo o resto.
! Em todo caso, esse ultimato deixa o Estado sem resposta, O refém não está longe do fetiche ou do talismã - objeto
pois ele o intima a se mostrar mais terrorista do que os terroris- também afastado do contexto mundial para se tornar o centro
tas. E ele lança os meios de comunicação num dilema insolúvel: de uma operação singular, aquela da força onipotente do pensa-
r se não quiserem mais terrorismo, será preciso renunciar até à mento. O jogo, especialmente o jogo de azar, não procura outra

I
informação. coisa: o dinheiro retirado de circulação e destinado à perda se
torna um trunfo de uma conversibilidade prodigiosa, de uma mul-
tiplicação mental pelo pensamento, que só é possível quando o
A questão do refém é interessante porque ela coloca o pro- dinheiro tomou forma de objeto puro, perfeitamente artificial:
blema do "introcável". A troca é nossa lei, e a troca tem suas fictício, fetiche.

I
regras. Ora, estamos numa sociedade em que a troca se torna ca- Mas sabemos que nem o fetiche pode ser devolvidoao mundo
da vez mais improvável, cada vez menos as coisas podem ser real- normal (que exclui a força onipotente do pensamento), nem o
mente negociadas porque as regras se perderam ou porque a tro- dinheiro do jogo pode ser revertido ao circuito econômico - é
ca, se generalizando, fez emergir os últimos objetos irredutíveis a lei secreta do outro circuito. Da mesma maneira, existem as
à troca, e estes se tornaram verdadeiros prêmios. maiores dificuldades de converter o refém em valores fiduciários
:1 Nós vivemos o fim da troca . Ora, somente a troca nos pro- ou políticos. Esta é a ilusão do terrorista - a ilusão terrorista
I tege do destino. Quando a troca não é mais possível, nos encon- em geral: a troca nunca acontece, a troca é impossível - assim
tramos numa situação fatal, uma situação de destino.
t O "introcável" é o objeto puro, aquele cuja força proíbe que
como na tortura, aliás, em que os sofrimentos do torturado são
inconversíveis em benefícios políticos, e muito menos em prazer
:,I1 seja possuído ou trocado. Algo muito precioso de que não sabe- para o torturador. Com isso, o terrorista nunca pode realmente
mos nos livrar. Podemos queimá-lo mas não negociá-lo. Pode- reconverter o refém; podemos dizer que ele o arrancou da reali-
mos matá-lo, mas ele se vinga. O cadáver sempre faz esse papel, dade com violência demais para poder devolvê-lo a ela.
a beleza também, e o fetiche. Eles não têm valor, mas têm preço. A tomada de refém ao mesmo tempo a tentativa desespera-
É um objeto sem interesse e ao mesmo tempo absolutamente ori- da de radicalizar a relação de forças e de recriar uma troca no
ginal, sem equivalente e praticamente sagrado. auge, de dar a um objeto ou a um indivíduo um valor inestimá-
O refém tem um pouco das duas coisas: é um objeto anulado, vel pelo seqüestro e pelo desaparecimento (ou seja, pela raridade
44 AS ESTRAlÉGIAS FATAIS I'IGURAS DO TRANSPOLÍTICO
45
absoluta) e o fracasso paradoxal dessa tentativa, já que o seqües- a provocação. A tomada de refém é uma especulação desse gê-
tro, por equivaler a uma anulação do indivíduo, faz esse valor nero - efêmera, insensata, instantânea. Portanto não é de es-
de troca desmoronar nas próprias mãos dos terroristas. Por ou- sência política, ela aparece desde o início como o 'sonho de um
'/r tro lado, nessa situação assim criada, o sistema consegue rapida- conluio fantástico, sonho de uma troca impossível, denúncia da
I mente perceber que pode funcionar sem esse indivíduo (Moro, impossibilidade dessa troca.
I por exemplo) e que, de certo modo, mais vale não recuperá-lo,
I pois um refém libertado é mais perigoso do que um refém mor-
to: ele está contaminado, seu único poder é de contaminação ma-
'/ léfica (teria sido uma boa estratégia das B.V., após terem anula- O OBSCENO
'I do Moro como homem de Estado, recolocar em circulação esse
:1
morto-vivo que ninguém queria mais, essa carta marcada que teria Todas essas figuras que aparecem como indiferença exacer -
perturbado todo o mapa político. Livrar-se dele teria sido então b~da, exacerbação do vazio, a da obesidade, a do terror, são tarn-
problema dos outros). bem as da perda da ilusão, do jogo e da cena, portanto, figura
Se a conversibilidade é impossível, no fim das contas o re- do OBSCENO.
sultado é que o terrorista só troca a própria vida pela do refém. Perda da cena do corpo no obeso, perda da cena da troca
E isso explica a estranha cumplicidade que acaba por aproximá- no refém, perda da cena sexual na obscenidade, etc. mas tam-
los. Subtraindo violentamente o refém do circuito do valor, o ter- bém dissipação da cena do social, do político e da cena teatral.
rorista também se subtrai do circuito da negociação. Os dois es- Por toda parte, uma perda do segredo, da distância e do domí-
tão fora do circuito, cúmplices em seu estado de exceção, e o que nio da ilusão.
se instala então entre eles, além da conversibilidade impossível, Esquecemos completamente essa forma de soberania que con-
é uma figura dual, figura de sedução talvez - a única figura mo- siste no exercício dos simulacros como tal. Ora, a cultura nunca
derna da morte compartilhada, sendo ao mesmo tempo a figura foi mais do que isso: a partilha coletiva dos simulacros, a que
extrema da morte indiferente - introcável por ser tão indiferente. se opõe hoje para nós a partilha forçada do real e do sentido.
Ou então seria preciso aceitar que a tomada de refém nunca A única soberania está no domínio das aparências, a única cum-
tem por finalidade a negociação: ela produz o introcâvel. O "como plicidade está na partilha coletiva da ilusão e do segredo.
se livrar disso?" é um falso problema. A situação é original no . Tud<;> o que e~q~ece essa cena e esse domínio da ilusão, para
que ela tem de inextricável. É preciso conceber o terrorismo co- cair na SImples hipótese e no domínio do real , cai no obsceno.
mo um ato utópico, proclamando desde o início com violência O I?odo de aparecimento da ilusão é o da cena, o modo de apa-
a introcabilidade, colocando experimentalmente em cena uma tro- recimento do real é o do obsceno.
ca impossível e verificando assim , no limite, uma situação ba-
nal, a nossa, a da perda histórica da cena da troca, da regra da
troca, do contrato social. Porque onde está agora o outro com Existe um terror, e ao mesmo tempo um fascínio da cria-
quem negociar o que restava da liberdade e da soberania, com ção contínua do mesmo pelo mesmo. Essa confusão é justarnen-
quem jogar o jogo da subjetividade e da alienação, com quem te a da natureza, é a confusão natural das coisas e somente o ar-
negociar minha imagem em espelho? tifício pode terminar com ela . Somente o artifício pode conjurar
Foi realmente isso que desapareceu, essa boa e velha alteri- essa indiferenciação, esse acasalamento do mesmo com o mesmo.
dade da relação, esse bom e velho investimento do indivíduo no Nada é pior do que aquilo que é mais verdadeiro do que o
I
contrato e na troca racional, local ao mesmo tempo de rentabili- verdadeiro. Assim como o clone ou o autômato na história do
I dade e de esperança. Tudo isso cede lugar a um estado de exce- ilu~ionista. Nesse último caso, o que é aterrador não é o desapa-
ção, a uma especulação absurda, que se parece com o duelo ou
I recimento do natural na perfeição do artificial (aquele autômato

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1 FIGURAS DOTRANSPOLÍTlCO 47
AS ESTRAlÉGIAS FATAIS
46

fabricado pelo ilusionista imitava com perfeição todos os movi- A sedução também é mais falsa do que o falso, pois ela usa sig-
mentos humanos, até se tornarem indiscerníveis para o próprio nos que já são imitações, para fazê-los perderem o sentido - ela
ilusionista) é pelo contrário, o desaparecimento do artifício na engana os signos e os homens. Quem ainda não perdeu o sentido,
evidência do ~atural. Há nisso uma espécie de escândalo que é com uma palavra ou um olhar, não sabe o que é essa perdição,
insuportável. Essa indiferenciação nos leva a uma natureza ater- abandonar-se à ilusão total dos sinais, à influência imediata das apa-
radora. É por isso que o .il~sionista, em troca, )~itará o verda- rências, ou seja, ir além do falso, no abismo absoluto do artifício.
deiro autômato, com a rigidez um pouco mecamca. dos gestos, a falso só faz intrigar nosso sentido do verdadeiro, o mais falso
restituindo assim, contra o terror da semelhança, o Jogo e o po- do que o falso nos levaalém disso, nos rapta sem apelação. No mun-
der da ilusão. do real, o verdadeiro e o falso se equilibram e o que é ganho por
a que não mais dá ilusão está morto e inspira o terror. As- um é perdido pelo outro. No movimento da sedução (pensemos tam-
sim faz o cadáver mas também o clone, e mais geralmente tudo
o que se confunde de tal m?d~ consigo ~esmo q~e ~ão seja ~ais bém nas obras de arte), é como seo falso resplandecesse com toda
capaz de brincar com a propna aparencia. Esse limite da desilu- a força da verdade. a que podemos contra isso? Não há mais real
são é o da morte. nem significado que agüente. Quando uma forma resplandece com
Contra o verdadeiro do verdadeiro, contra o mais verdadei- a energia inversa, quando a energia do falso resplandece com a força
ro do que o verdadeiro (que se torna imediatamente porno~ráf~­ da verdade, ou quando o Bem resplandece com a energia do Mal
I co), contra a obscenidade da evidência, contra essa prorruscui- - quando em vez de opô-las, uma espécie de anamorfose especial

!
!I
dade imunda consigo mesmo que se chama semelhança, e precI-,
so refazer a ilusão, reencontrar a ilusão, esse poder ao mesmo
m.
tempo imoral e maléfico de arrancar o mesmo do esmo , que
guia o transparecimento de uma forma na outra, de uma energia
na energia inversa, quem pode se opor a esse movimento singular?
Nessa ida aos extremos atua a lógica da simultaneidade dos
I se chama sedução. A sedução contra o terror: esta e a aposta,
não há mais nenhuma outra.
efeitos inversos. Talvez fosse preciso opor radicalmente os efeitos
da obscenidade aos da sedução, mas talvez também fosse preciso
Supressão de qualquer cena, de qualqu~r poder de. ilus~o,
supressão da distância, des~a distância m~ntI~a pelo cenmomal acumulá-los e apanhá-los juntos em sua anamorfose inextricável?
ou pela regra do jogo - tnunfo da promiscuidade em todos os Desse modo, no jogo a dinheiro, resolvem -se de maneira bri-
domínios. A erotização, a sexualização, é apenas a expressão dessa lhante a obscenidade total e a ilusão secreta do valor.
mixórdia, dessa confusão de todos os papéis. Especialmente a a jogo é grande, porque ele é ao mesmo tempo o lugar do êx-
l!I psicologia, sempre ambígua e infeliz, está ligada à perda dos es-
paços cênicos distintos e de todas as regras do jogo. A "outra
tase do valor e seu lugar de desaparecimento. Não é transgressão
no potlach e na despesa - essa é ainda a utopia transcendente de
i Bataille, o último sonho da economia política. Não, no jogo, o di-
cena" a do inconsciente e do fantasma, não poderia nos conso-
'I lar da perda daquela, fundamental, que era a cena da ilusão. nheiro não é produzido nem destruído, ele desaparece como valor
,f
I1 e ressurge como aparência, ele é devolvido 'a sua aparência pura,
i na reversibilidade imediata do ganho e da perda.

~
A ilusão não é falsa, pois ela não usa sinais falsos, ela usa A obscenidade do jogo é total, já que ali não se recorre a ne-
sinais absurdos. É por isso que ela decepciona nossa exigência nhuma profundidade nem nenhum valor: o dinheiro está nu , me-
! tamorfoseado em circulação pura, em fascinação pura, em paixão
de sentido, mas de maneira enfeitiçadora.
Assim faz a imagem em geral, mais sutil que o real, já que formal, em gozo transparente, frio e superficial. Lubricidade de-
ela só tem duas dimensões, e assim é sempre mais atraente (foi sencarnada, forma extática do valor.
realmente o diabo que povoou o universo com ela). Assim faz o Mas o segredo do jogo, também é total: o dinheiro não existe.
trompe-l'oeil: acrescentando 'à pintura a ilusão do real, é pratica- É como o segredo do poder: ele não existe - ou o da sedução: o
mente mais falso do que o falso -é um simulacro de segundo grau. desejo não existe. a dinheiro não existe nem como essência, nem
r ,
"
f

48 AS ESTRA1ÉGIAS FATAIS FIGURAS DO TRANSPOLÍTICO


49
como substância, nem como valor. E o jogo o devolve a essa ine-
xistência. t~da" c~ricatural e _simplificada da sexualidade, e sim exacerba-
çao 10gI~a da~ função do sexo, o mais sexo do que o sexo, o sexo
É o contrário da economia política e da troca, em que o dinheiro
tem o peso de toda a operação simbólica do valor. Aqui, é a parti- elevad~ a potencI~ se:rual - não é a cópula dos corpos que é obs-
lha do dinheiro como simulacro puro, aliviado de qualquer obsce- cena, e a ,redu~dancIa .mental do sexo, é a escalada da verdade
que leva a, vertigern fna da pornografia.
nidade, para circular apenas conforme a regra arbitrária do jogo.
O segredo do jogo é que o dinheiro não tem sentido. Ele só ~ra, e o mesmo processo que leva à vertigem encantada da
existe como aparência. E a substância do valor é assim volatili- seduçao: O pleno onde só transparece o vazio (o enfraquecimen-
zada pelo jogo das aparências, pelo arbitrário da regra. t? do universo pornográfico, essa espetacular ausência de sensua-
Se ele pode se gerar de maneira louca, como os números po- lidade e ?e prazer): isso é o obsceno. O esgotamento do sentido
dem se multiplicar com uma simples operação do espírito, isso ~ efemen~de do sinal em que transparece o extremo prazer iss~
só é possível porque ele não existe. E como naquele jogo em que e a sedução, Mas nos dois casos, é o exagero de uma qualidade
é preciso memorizar o maior número possível de palavras: con- sobre SI ~es?1a para sua forma pura, para sua irradiação extática.
seguimos ir infinitamente mais longe se chegarmos a esquecer o ~ n~o e apena.s uma qualidade que pode se extasiar assim:
I sentido das palavras. a. au~encIa,~e qualidade também pode fazê-lo: existe uma irra-
Não se trata de consumo ou despesa: pois é preciso acredi- diação extatica do neutro, o próprio neutro pode se potenciali-
I tar apaixonadamente no dinheiro e no valor para consumi-los co- zar. Resulta em algo monstruoso, onde a obscenidade tem seu
mo é preciso acreditar apaixonadamente na lei para infringi-la. papel. ~ por?oªrafia é justamente uma arte de exibição do neu-
São paixões quentes. Aqui, não é preciso acreditar em nada, é tro, da IrradIaçao forçada do neutro.
Ir preciso ter um segredo, o da inexistência do dinheiro, senão co-
I. ,I mo poder de aparência e de metamorfose (ou" o que dá no mes-
r mo, no poder da absoluta simulação do jogo). E uma paixão cool, A obscenidade de essência sexual é piedosa e hipócrita, pois
I
I
uma forma de êxtase frio. O cálculo faz parte dele, como a regra
e tudo o que participa do ritual selvagem das aparências. O cál-
ela nos impede de conceber a obscenidade em sua forma geral.
Esta caractenza 9~~lquer forma que se congele em sua aparição,
culo funciona aqui como uma máscara, com a mesma intensida- q!-,~ perca a arnbísü ídaoe da ausência para se esgotar numa visi-
de de uma máscara. Ele regula, acima das aparências, o jogo das bilidade exacerbada.
divindades móveis, a objetividade oculta por trás da subjetivida- Ma~s ~s~v~l do que o visível, assim é o obsceno.
de das aparências. MaIS m;Islvel do que ~ ~nvisível, assim é o segredo.
A :en~ e d~ ordem do visível, Mas não há mais cena no obs-
~eno, so ha a dilatação da visibilidade de todas as coisas até o
Porém, se o falso pode transparecer com todo o poder do extase. O obsceno é o fim de qualquer cena Além diss I'
verdadeiro - essa é a forma sublime da ilusão e da sedução - d" . ~eee
e mau aug.uno: como seu nome indica. Pois essa hipervisibili-
o verdadeiro também pode transparecer com todo o poder do falso da~e das COIsas e t~m~ém a iminência de seu fim, o sinal do apo-
- e essa é a forma da obscenidade. calípse. Todos os ynms a carregam consigo, e não apenas os si-
É isso o obsceno, é o mais verdadeiro do que o verdadeiro, nais mfra-sensuaIs e desencarnados do sexo. Ela é, com o fim
é o pleno do sexo, o êxtase do sexo, é a forma pura e vazia, a do segredo, nossa condição fatal. Se todos os enigmas forem re-
forma realmente tautológica da sexualidade (somente a tautolo- solvidos.. ~ estrelas se. apagarão. Se todo o segredo for devolvi-
gia é perfeitamente verdadeira). É o acasalamento do mesmo com do a~ vI~Ivel e ao mais do que visível, à evidência obscena se
o mesmo. É o sexo preso na própria exibição, estático em sua t~~a I~usao for, devolvida à transparência, então, o céu se tor~a­
I excrescência orgânica, orgásmica, como o corpo na obesidade,
como as células nas metástases cancerosas. Não é uma forma avil-
ra md íferenrc a te~ra: Em. nossa cultura tudo se sexualiza antes
de desaparecer. Nao e mais uma prostituição sagrada, mas uma
f

~
FIGURAS DO TRANSPOLÍTlCO
AS ESTRA1ÉGIAS FATAIS , 51
50 E
za nesse momento
do morto, cor ode ~~:omar novamente seco e ter a bele-
que 'oantes
espécie de lubricidade espectral, que invade todos os ídolos, os
e deve ser, a todo custt c~nju:a~or uma f',\Se realm~nte obscena
sinais, as instituições, o discurso - a alusão, a inflexão obscena senta mais nada não te:n m' o e exorcizado, pOIS não repre-
que invade todos os discursos, deve ser considerada o sinal mais minável invade 'tudo. aIS um nome e sua contaminação ino-
seguro de seu desaparecimento.
tudo Tudo quetem
que não se impõe po sua pre~ença objetiva,
mais ne~ . . isto é, abjeta,
Não existe obscenidade quando o sexo está no sexo, quando tudo que, como o cor o a 00 seg.re o ~em a.l~veza da ausência,
o social está no social, e em nenhuma outra parte. Mas hoje ele ção material de sua d~co~p~;~!do, fica sujeito apenas à atua-
transborda por todos os lados, como a sexualidade - fala-se da vel, fica sujeito apenas à atu ~ça~ tudo que, sem ilusão possí-
"relação" social como da "relação sexual". Não é mais uma so- ra, sem maquiagern e sem ro~iao .o real, ~ud? que, sem másca-
cialidade mítica transcendente, é uma socialidade patética de apro- sexo ou da morte _ tud . o, fdIca sujeito ~ atuação pura do
pornográfico. o ISSO po e ser considerado obsceno e
ximação, de contato (como as lentes), de prótese, de garantia.
É um social de luto, uma alucinação incessante do grupo por sua Muitas coisas são obscenas I
porque ocupam espaço demais ~rque ~ as tem s~ntIdo demais,
A •

determinação perdida. O grupo está obcecado pela socialidade


como o indivíduo pelo sexo - os dois são sexualmente obceca- . ~so e,
sentação exorbitante da verdade,' IS atingem aSSIm
o apogeu do uma repre-
simulacro.
dos por seu desaparecimento.
Hoje, nós todos somos trabalhadores sociais. O que é esse
social, senão só um trabalho? Que não acredita mais nem na pró- . . qu~ndo tudo é político é o f' d ..
pria existência, de fato ou de direito, que só acredita na própria e o mICIO da política como cultu im a política .como destino,
cultura política. ra, e a rmsena Imediata dessa
reprodução forçada, no quadro de um mercado onde se vê sub-
metido, como qualquer mercadoria, à lei da escassez, da produ- Quando tudo se torna cult I ' f'
ção e da troca? Inclusive na publicidade, já que por toda parte tino, é o início da cultura com ura '.: o im d~ ~u.lt~ra como des-
nos meios de comunicação, na ideologia e nos discursos, é o so- sa política cultural. o política e a rrusena Imediata des-
cial que faz a própria publicidade. Da mesma forma para o s ' I histé
Um mundo em que a energia da cena pública, a energia do sexo. O ponto de extensão má . OCIa ,a IStOna, a economia, o
social como mito e como ilusão (cuja intensidade é máxima nas tintas e específicas marcam xima dessas categorias outrora dis-
_ o ponto de banal" - .
utopias), está em vias de extinção, o social se torna monstruoso raçao de uma esfera transpolíti izaçao e a maugu-
e obeso, ele se dilata na dimensão de um nicho, de um corpo ma- ção. Fim das estratégias fatai;c~qi~~c~nt:de tudo; ~ sua extin-
mário, celular, glandular, que outrora, era ilustrado por seus he- Acreditamos ter feito uma d b o s estratégias banais.
róis e hoje se indexa sobre seus deficientes, seus tarados, seus de- do que o corpo o esporte a ~sco erta su?~ersiva, afirman-
generados, seus débeis mentais, seus anti-sociais, num gigantes- precipitar sua iddiferencia~ão : : : e~am poht~c.os. S.ó fizemos
co empreendimento de maternidade terapêutica. _ um pouco como descobrir ,nevo a anal~tI~a e Ideológica
O social só tem existência até certos limites, aqueles em que somáticas. Bela descoberta quque_tod~~ as moléstias s.ão psicos-
las a uma categoria de mais b ~ao da fI~~t~ nada: sena destiná-
e
ele se impõe como aposta, como mito, eu diria quase como des- . aixa e miçao.
tino, como desafio, e nunca como realidade, que nesse caso ele
ordem _ política, cuitural so~atece I a de .generalização dessa
E m todas as areas a evidên . bid
se aniquila no jogo da oferta e da procura. O corpo também se
aniquila no jogo da oferta e da procura sexual, ele também per- sua condenação à morte À muf.' ~e~u~l ps~cologIca - marca
de esse poder mítico que faz dele um objeto de sedução... formas é seu sintoma' cada di . t{.dIscIPlmandade sob todas as
Podemos dizer que para o social sua obscenidade está hoje degenerados de outra, ISCIp ma se alinha com os conceitos
plenamente realizada, é a do cadáver de que não podemos nos Ou então seria preciso pensar, na mistura dos conceitos e das
livrar, mais exatamente ele entra na fase maldita da decomposição.
ti t
.•r-=---
rI 52
AS ESTRAlÍGlAS FATAIS
f .
FIGURAS DO TRANSPOLÍTICO

discussão ociosa e débil: tecnologia suave da cultura, exagero da


53

. a romiscuidade das raças, em e ei-


categorias como na nustura ~~ ~ efeitos visíveis nos Estados U?i- socialização, obscenidade rastejante do comentário social
tos barro~os~de ~rans~gu~aç violência da justaposição, VIO- ininterrupto.
,I dos na vlOlencla da mdIferença, d obsceno Mas nesse ca- Solicitação, sensibilização, ligação, visada, contato, conexão
I , . 'd d nova cena o . - toda essa terminologia é de uma obscenidade branca, de uma
lência da pr?mISC~1 a e -ue transfigurada pela aceleração, pela dejeção, de uma abjeção ininterrupta. E a obscenidade da mu-
so a obscerndade e como q dos signos das imagens.
velocidade corpuscular dos corpos, ' dança, dessa liquidez feroz dos sinais, dos valores, dessa extra-
versão total dos comportamentos no operacional... Obscenidade
branca e impessoal das sondagens e das estatísticas em que as
d s as eetos da modernidade. massas têm que revelar seu segredo, ultrapassar o limiar do si-
A obsce?idade ass~me t~ o:' o na :erpetuação do sexo, mas lêncio e entrar no espaço imanente da comunicação, ali onde de-
Estamos habItuados ave-la prdlmetrO etuado no visível - ela saparece essa dimensão mínima do olhar. Não importa o que di-
d t d que po e ser perp .
ela se esten e a u o- do propno ' ível. Prostituição assassma,
, . VISI . gam, o olhar nunca é obsceno. Pelo contrário, é obsceno o que
se torna a per?etraça? ais da América do Sul, em que as VIO- não mais pode ser olhado e portanto seduzido, tudo que, anima-
como certos filmes híper-re lmente durante as filmagens. do ou inanimado, não pode mais ser envolvido por essa sedução
lências s~dicas da .tel~ a~~nt~c~~r~:rto pois isso vem direto do mínima do olhar e que é destinado, nu, sem segredo, à devora-
Aberraçao assas~m~._ .ao e reai da ressurreição do deta- ção imediata.
fantasma da resutUlç~o.mtegral d~nô ~as também do retrô no A obscenidade é a proximidade absoluta da coisa vista, o
lhe, que são caractensucas ?,O ~
registro do passado, ou do restitui o e
'd" do "vivido" no sim- enterro do olhar na tela da visão - hipervisão em primeiro pla-
no, dimensão sem recuo, promiscuidade total do olhar com o que
pies registro da v~da: . ' - do sexo, o retrô aspira à res~i- ele vê. Prostituição.
O pomô aspira a resUtUlçao ltural do personagem hIS- Nós, singularmente os ocidentais, devoramos os rostos co-
. - . ento do traço c u , I mo sexos, em sua nudez psicológica, em sua afetação de verdade
nnçao do aC?nteclm , hes ex urgado de qualquer nesta -
;
li
tórico. Alucmante nos detalh ' e~te exatos Trata-se realmente e de desejo. Despojados de máscaras, de sinais, de cerimonial,
gia por força de signos excessIva~ as para o real ali elas são obri- eles resplandecem efetivamente da obscenidade de sua procura.
de uma exaça-O .• expulsam-se as COIS '
coisas só possam ser " ver- E nós nos submetemos à solicitação dessa verdade não encon-
gadas a ter significado. Mas ta~v~:~s para uma luz muito crua, trável, nós perdemos todas as nossas energias nessa decifração
dadeiras" a esse pre~o: ~erem e it f rte. no vazio. Somente as aparências, isto é, os sinais que não dei-
com um índice de fIdehd~de mu~ ~as~ou para a hiper-realidade xam filtrar o sentido, nos protegem dessa irradiação, dessa dissi-
É assim que agora to o o rea ara o retrô, que toda a mu- pação de substância no espaço vazio da verdade.
pornô, que todo. o presente pa~~~~ereofonia dos sinais que nos O rosto despojado de suas aparências é apenas um sexo, o
siquinha do senudo passou par corpo despojado de suas aparências é nu e obsceno (apesar de
I
I'
embalam. d e é incansavelmente filma-
a nudez ser capaz de vestir um corpo e protegê-lo da obscenidade).
Essa é a obscenidade ~~ tu o ~~ rande ângulo do social, E certamente impossível despojar completamente um corpo
do, filtrado, revisto e co!ng~do so ess;as cujas vidas são extor- ou um rosto de suas aparências para entregá-lo à simples concu-
da moral e da i?f_ormaçao~ :r:ç~ profunda em quem pregaI? piscência do olhar, despojá-lo de sua aura para entregá-lo à sim-
quidas na televlsao, toda f - ública mesmo os animaIS ples operação da decifração. Mas não se deve subestimar a força
a peça da confid,ência e da con 1S~:~~. ante~ podíamos ver uma do obsceno, seu poder de extermínio de qualquer ambigüidade
são submetidos a.chantagem ed u ilhal _ hoje uma emissão é c de qualquer sedução para nos abandonar à fascinação definiti-
. IVO que maraVI a. . I va de corpos sem rostos, de rostos sem olhos e de olhos sem olha-
girafa panr ao v - I eremos os animais revistos pe as
transferida para uma .rfi] a, v ó será projetado depois de uma res. Aliás, talvez isso nos atraia antecipadamente: um universo
crianças, etc. O menor I me s

I '
j
n

54 AS ESTRATÉGIAS FATAIS FIGURAS DO TRANSPOLÍTICO 55

perfeitamente extático e obsceno de objetos puros, transparentes tifícios, dos artifícios de carpintaria (as grandes técnicas mecâ-
uns aos outros, e que se quebrarão uns nos outros, como puros nicas começaram aí, na produção da ilusão teatral), a ilusão cê-
núcleos de verdade. nica é total. Como no simulacro contemporâneo do trompe-t'oeil,
mais real do que o real, mas sem tentar ser confundido com ele,
pelo contrário: por força de máquinas, de artefato, de técnica e
Essa obscenidade carrega consigo o que restava de uma ilu- de imitações, o real é desafiado conforme suas regras. Assim é
são da profundidade e a última Pergunta que ainda poderíamos a perspectiva na pintura e na arquitetura do século XVI ao sécu-
fazer a um mundo desiludido: existe um sentido escondido? Quan- lo XVII; a utilização é muita vezes ilusionista e operativa. Ela
do tudo é supersignificado, o próprio sentido se toma intangí- permanece uma encenação, uma estratégia das aparências, não
vel. Quando todos os valores são superexpostos, numa espécie do real - a ilusão conserva todo o seu poder sem revelar seu se-
de êxtase indiferente (inclusive o social no socialismo da França gredo (que não existe).
atual), é a credibilidade desses valores que é aniquilada. Mas mesmo assim vamos fazê-la confessar. Pegamos o tea-
Portanto, poderia existir uma espécie de astúcia do lado da tro na armadilha da representação. A partir do século XVIII, ele
pornografia tradicional. No fundo, o pornô diz: em alguma par- se encarrega do "real", a cena se afasta da simulação maquínica
te existe o bom sexo, já que eu sou sua caricatura. Existe uma e da metafísica da ilusão e é a forma naturalista que vence. A
medida, já que eu sou o excesso. Ora, a questão está aí: existe cena troca os prestígios da metamorfose pelo charme discreto da
em alguma parte o bom sexo, o sexo corno valor ideal do corpo, transcendência. E a era crítica do teatro que começa, contempo-
como "desejo", e que deva ser liberado? O estado virtual das coi- râneas dos antagonismos sociais, dos conflitos psicológicos, da
sas, de uma explicação total do sexo, responde: não. O sexo pode era crítica do real em geral.
ser perfeitamente liberado, perfeitamente transparente e sem de- No entanto, resta ainda um trunfo no nível dessa representa-
sejo, e sem prazer (e funciona). ção. O teatro, se não tem mais a energia da metamorfose, nem os
É a mesma feita à economia política: além do valor de troca efeitos sagrados da ilusão, guarda uma energia crítica e uma espé-
,i encarnando a abstração e a inumanidade do capitalismo, existe cie de charme sacrílego - inclusive nesse corte da cena e da sala,
uma boa substância do valor, um valor de uso ideal da mercado- forma crítica, ela também, espaço de transcendência e julgamento.
ria, que possa e deva ser liberado? Bem sabemos que não, o va- Artaud foi sem dúvida o último que quis salvar o teatro
lor de uso desapareceu no horizonte do valor da troca e foi ape- arrancando-o do cenário apodrecido do real, antecipando sobre
nas um sonho paradoxal da economia política. o final da representação e lhe reinjetanto, por obra da crueldade,
É a mesma pergunta para o social: além, aquém dessa so- algo anterior mesmo à ilusão e ao simulacro, algo da atuação
cialidade terrorista e hiper-real, dessa chantagem onipresente na selvagem do sinal sobre a realidade, ou da indistinção dos dois
comunicação, existe uma boa substância do social, uma ideali- que caracteriza ainda os teatros irrealistas (Ópera de Pequim, tea-
dade da relação social que possa e deva ser liberada? A resposta tro balinês, e o próprio sacrifício como cena de ilusão assassina).
é evidentemente não: o equilíbrio, a harmonia de um contrato Hoje, essa energia crítica da cena, sem falar, é claro, no po-
social desapareceu no horizonte da história e estamos destina- der da ilusão, está em vias de ser varrida. Toda a energia teatral
dos a essa obscenidade diáfana da mudança E não devemos pen- passa pela denegação da ilusão cênica e pelo antiteatro sob to-
sar que vivemos a realização de uma má utopia - que vivemos da s as formas. Se durante um período, a forma/teatro e a forma
a realização da simples utopia, isto é, seu demoronamento no real. do real jogavam dialeticamente entre si, hoje é a forma pura e
vazia do teatro que joga com a forma pura e vazia do real. A
ilusão proscrita, abolido o corte da cena e da sala, o teatro sai
O mesmo acontece com o teatro e a ilusão cênica. para a rua e para a cotidianeidade, ele pretende investir todo o
O teatro barroco é ainda uma espécie de extravagância da real, dissolver -se nele e mesmo transfigurá-lo. O paradoxo está
representação. Indissociável da festa, dos repuxos, dos fogos de ar- no auge. Florescem então todas as formas "estouradas" de ani-
56 AS ESTRATÉGIAS FATAIS FIGURAS DO TRANSPOLÍTICO 57

mação, de criatividade e de expressão de happening e de acting Essa cristalização ética da cena política criou um longo pro-
out - o teatro toma a forma de psicodrama terapêutico genera- cesso de recalque (assim como a estruturação lingüística criou
lizado. Não é mais a célebre catarse aristotélica das paixões, é um recalque do signo). O obsceno nasceu ali, no fora de cena,
uma cura de desintoxicação e de reanimação. A ilusão não tem nas trevas do sistema de representação. Portanto, ele é de início
mais vez: é a verdade que explode na expressão livre. Somos to- obscuro: é o que prejudica a transparência da cena, como o in-
dos atores, espectadores, não há mais cena, a cena está em toda consciente e o recalque prejudicam a transparência da consciên-
parte, não há regra, cada um representa o próprio drama, im- cia. O que não é nem visível nem representável e portanto possui
provisa sobre os próprios fantasmas. uma energia de ruptura, de transgressão, uma violência secreta.
Forma obscena de antiteatro presente em toda a parte. Assim é a obscenidade tradicional, a do recalcado sexual ou so-
Mas também de antipedagogia, de antipsiquiatria, em que cial, do que não é nem representado nem representável.
o saber e a loucura se perdem na cumplicidade psicodramática, É muito diferente para nós: hoje a obscenidade é, ao con-
da anti psicanálise, em que analista e analisando acabam por tro- trário, a da super-representação. A nossa, nossa obscenidade ra-
car de papéis: em toda a parte uma cena desaparece, em toda parte dical, não é mais a da dissimulação ou do recalque, é a da trans-
os pólos que sustentavam uma intensidade ou uma diferença são parência do próprio social, a do transparecimento do social (e
atacados de inércia. do sexo) como sentido, como referência, como evidência. Acon-
Ou de ressurreição artificial, que é uma das formas da obs- teceu uma inversão total. E se outrora a obscenidade era apenas
cenidade. É uma das peripécias mais significativas ver a cena do a característica secundária do recalque - era o inferno da repre-
trabalho, ela também em vias de extinção, reativada, digamos, sentação, como se fala do inferno da biblioteca nacional - ten-
a vácuo, nas usinas-simulacros alemãs onde se conserva para uso do como trunfo o encanto da proibição, de seus fantasmas e per-
dos desempregados, e na ausência de qualquer produção "real", versões, hoje ela explode como característica principal - ela faz
a vivência psicossocial do processo de trabalho. Maravilhosa alu- explodir a cena do visível numa espéciede êxtase de representação.
cinação do mundo moderno: os desempregados são pagos para De início, existia um segredo e era a regra do jogo das apa-
refazerem gratuitamente os mesm.os gestos da produção, numa rências. Depois veio o recalque que foi a regra do jogo da pro-
esfera agora perfeitamente inútil. E praticamente o êxtase do tra- fundidade. Finalmente, veio o obsceno e foi a regra do jogo de
balho, eles vivem a forma extática do trabalho. Nada de mais obs- um universo sem aparências e sem profundidade - de um uni-
ceno e de mais melancólico do que essa paródia de trabalho. O verso da transparência. Obscenidade branca.
proletário se torna assim uma puta sob celofane. Tudo emerge, mas não há mais segredo dessas coisas super-
ficiais. O que era guardado em segredo, ou mesmo o que não
Essa obscenidade branca, essa escalada da transparência, existia, se viu expulso pela força do real, representado além de
atinge o auge no desmoronamento da cena política. qualquer necessidade e qualquer verossimilhança. Forcing da re-
Desde o século XVIII, esta se moraliza e se torna séria. Ela presentação. Vejam o pornô: o orgasmo em cores e em primeiro
se torna o local de um significado fundamental: o povo, a vonta- plano não é necessário nem verossímil - ele é apenas implaca-
de do povo, as contradições sociais, etc. Ela é intimada a respon- velmente verdadeiro, mesmo se ele não é a verdade de nada. Ele
der ao ideal de uma boa representação. é somente abjetamente visível, mesmo se ele não é a representa-
Enquanto a vida política anterior, como a da corte, se de- ção de absolutamente nada.
senrola de modo teatral, na base de jogo e de maquinação, ago- Para que uma coisa tenha sentido, ela necessita de uma ce-
ra existe um espaço público e um sistema de representação (no na, e para que haja uma cena é preciso uma ilusão, um mínimo
teatro, o corte se instalou simultaneamente com a separação en- de ilusão, de movimento imaginário, de desafio ao real, que nos
tre a cena e a sala). É o fim de uma estética e o início de uma arrebate, que nos seduza, que nos revolte. Sem essa dimensão pra-
ética do político, sujeito agora, como um espaço figurativo, não ticamente estética, mítica, lúcida, não existe nem mesmo cena do
mais à ilusão cênica e sim à objetividade histórica. político, em que algo possa passar por acontecimento. E para nós
58 AS ESTRA'ITGIAS FATAIS FIGURAS DO TRANSPOLÍTICO 59

essa ilusão mínima desapareceu: não existe nenhuma necessida- esforços nos comandos elétricos ou eletrônicos, da rniniaturiza-
de nem nenhuma verossimilhança para nós nos acontecimentos ção no tempo e no espaço dos processos, cuja verdadeira cena
de Biafra, do Chile, da Polônia, do terrorismo ou da inflação, - mas não é mais uma cena - é a da memória infinitesimal e
ou da guerra nuclear. Nós temos uma super-representação deles do microprocessamento.
nos meios de comunicação, mas não uma verdadeira imagina- Chegaram os tempos de uma miniaturização do tempo, do
ção. Para nós, tudo isso é simplesmente obsceno, já que pelos corpo, dos prazeres. Não há mais um princípio ideal dessas coi-
meios de comunicação tudo é feito para ser visto sem ser olha- sas na escala humana. Delas só restam os efeitos nuclearizados.
do, alucinado em filigrana, absorvido como o sexo absorve o vo- Essa mudança da escala humana para a escala nuclear é sensível
yeur: à distância. Nem espectadores nem atores, somos voyeurs em toda a parte: esse corpo, nosso corpo, aparece finalmente su-
sem ilusão. pérfluo, inútil em seu tamanho, na multiplicidade e complexida-
Se estamos anestesiados, é porque não há mais uma estética de de seus órgãos, de seus tecidos, de suas funções, já que tudo
hoje se concentra no cérebro e na fórmula genética, que sozinhos
(no sentido forte) da cena política, não há mais aposta, não há resumem a definição operacional do ser humano. O campo, o
mais regra do jogo. Pois a informação e os meios de comunica-
imenso campo geográfico parece um corpo deserto cuja própria
ção não são uma cena, um espaço perspectivo, em que algo se extensão é inútil (e às vezes enfadonha de atravessar) desde que
passa, mas uma tela sem profundidade, uma fita perfurada de todos os acontecimentos se cristalizem nas cidades, elas próprias
mensagens e sinais a que correspondc uma leitura, ela própria em vias de serem reduzidas a algumas sociedades rniniaturiza-
perfurada, do receptor. das. E o tempo: o que dizer desse imenso tempo livre que nos
Nada pode compensar essa perda de toda a cena e de toda resta, tempo em excesso que nos envolve como um terreno bal-
a ilusão - na simulação automática do social, na simulação au- dio, uma dimensão agora inútil em seu desenrolar, já que a ins-
tomática do político. Principalmente o discurso dos homens po- tantaneidade da comunicação rniniaturizou nossos intercâmbios
líticos, todos obrigados a simular, numa gesticulação patética - em uma sucessão de instantes?
pornógrafos da indiferença, cuja obscenidade oficial redobra e
sublinha a obscenidade de um universo sem ilusão. Aliás, todo
mundo pouco se importa. Todos estamos no êxtase do político Não estamos mais no drama da alienação, estamos no êxta-
e da história - perfeitamente informados e impotentes, perfei- se da comunicação.
tamente solidários e paralisados, perfeitamente petrificados na Alienante, o universo particular certamente o era, já que ele
estereofonia mundial - transpolitizados vivos. nos separava dos outros, mas ele recolhia também o benefício sim-
bólico da alienação, ou seja, de que a alteridade pode atuar para
o melhor e para o pior. Portanto, a sociedade de consumo foi
Hoje, não há mais transcendência e sim a superfície ima- vivida sob o signo da alienação, como sociedade do espetáculo,
nente do desenrolar das operações, superfície lisa, operacional, mas justamente o espetáculo é ainda espetáculo, ele nunca é obs-
da comunicação. O período faustiano, prometéico, da produção ceno, a obscenidade começa quando não há mais cena, quando
e do consumo cede a vezà era protética das redes, à era narcísica tudo se torna uma transparência inexorável.
e proteiforme da ligação, do contato, da contigüidade, do feed- Marx já denunciava a obscenidade da mercadoria ligada ao
back, da interface generalizada. Imitando a televísão, todo o uni- princípio abjeto da livre circulação. A obscenidade da mercado-
verso ambiente, e nosso corpo, se torna painel de controle. ria vem do fato de ela ser abstrata, formal e leve, contra o peso
As mutações decisivas dos objetos e do ambiente moderno, e a densidade do objeto. A mercadoria é legível: ao contrário do
vieram de uma tendência para a abstração formal. operacional, objeto, que não revela completamente seu segredo, a mercadoria
dos elementos e das funções, de sua homogeneizaçlo num só pro- sempre manifesta sua essência visível, que é seu preço. Ela é lu-
cesso virtual, do deslocamento das gestualidade•• do. corpos, dos gar formal de transcrição de todos os objetos possíveis: por ela
60 AS ESTRA1ÉGIAS FATAIS FIGURAS DO TRANSPOLÍTICO 61

todos comunicam - ela é o primeiro grande meio de comunica- para as formas do acaso e da vertigem, que não são mais jogos
ção do mundo moderno. Porém, a mensagem que ela revela é de cena, de espelho, de desafio, de jogos duais, e sim jogos extá-
extremamente simplificada e é sempre a mesma: o valor de tro- ticos, solitários e narcísicos, cujo prazer não é mais cênico e es-
ca. Portanto, no fundo, a mensagem já não existe mais, é o meio tético, esotérico, do sentido, mas aleatório, psicotrópico, do fas-
que se impõe na circulação pura. cínio puro. E isso não é um julgamento negativo. Há nisso real-
Basta prolongar essa análise de Marx, sobre a obscenidade mente uma mutação original das formas de percepção e de pra-
da mercadoria, para decifrar o universo da comunicação. zer. Nós medimos mal suas conseqüências. Querendo aplicar nos-
Não só o sexual se torna obsceno na pornografia, hoje exis- sos antigos critérios e reflexos de sensibilidade, ignoramos certa-
te toda uma pornografia da informação e da comunicação, dos mente o que pode ser o acontecimento dessa nova esfera sensorial.
circuitos e das redes, uma pornografia das funções e dos objetos Uma coisa é certa: a cena nos apaixona, o obsceno nos fas-
em sua legibilidade, sua fluidez, sua disponibilidade, sua regula- cina. Com a fascinação e o êxtase, a paixão desaparece. Investi-
mentação, s!1a polivalência, seu significado forçado, sua expres- mento, desejo, paixão, sedução, ou ainda, segundo Caillois, ex-
são livre... E a obscenidade de tudo aquilo que é inteiramente pressão e competição: é o universo quente. Êxtase, obscenidade,
solúvel na comunicação. fascinação, comunicação, ou ainda, segundo Caillois, acaso e ver-
tigem: é o universo frio, cool (a vertigemé fria, mesmo a da droga).

A obscenidade branca sucede à obscenidade negra - a obs-


cenidade fria sucede à obscenidade quente. As duas implicam uma
forma de promiscuidade: uma, é a das vísceras num corpo, dos De toda a maneira, teremos de sofrer essa extroversão for-
objetos amontoados num universo particular, daquilo que fervi- çada de toda interioridade e essa irrupção forçada de toda exte-
lha no silêncio do recalque - promiscuidade orgânica, visceral, rioridade que significa propriamente o imperativo categórico da
carnal- a outra, é a de uma saturação superficial, de uma soli- comunicação. Será preciso recorrer às metáforas patológicas? Se
citação incessante, de uma exterrninação dos espaços intersticiais. a histeria foi a patologia da encenação exacerbada do indivíduo,
Eu tiro o telefone do gancho, pronto, uma rede marginal in- patologia da expressão, da conversão teatral e operativa do cor-
teira me prende, me atormenta, com a boa fé insuportável de tu- po - se a paranóia foi a patologia da organização e de uma es-
do o que pretende se comunicar. As estações livres de rádio: elas truturação rígida e ciumenta do mundo - com a comunicação,
falam, cantam, se expressam, tudo isso é muito bom, é a fanta- a informação, com a promiscuidade imanente de todas as redes,
sia dos conteúdos. Em termos de meio, o resultado é este: um com essa ligação contínua, estaríamos antes numa nova forma
espaço, o do FM está saturado, as estações se acavalam, se mis- de esquizofrenia. Não mais histeria, não mais propriamente a pa-
turam, a ponto de não comunicarem mais nada. Algo que era ranóia projetiva, mas esse estado característico que é o terror do
livre não é mais - não consigo saber mais o que quero, de tal esquizofrênico: a proximidade excessiva de tudo, a promiscuida-
modo o espaço está saturado, de tal modo é forte a expressão de imunda de todas as coisas, que os contagiam, investem, pene-
daqueles que se querem fazer ouvir. tram sem resistência: nenhuma auréola protetora, nem mesmo
Caio no êxtase negativo do rádio. seu corpo o envolve mais. O esquizofrênico é privado de toda
Certamente existe um estado próprio de fascinação ligado a a cena, aberto a tudo à força, na maior confusão. Ele próprio
esse delírio de comunicação e, portanto, um prazer especial. Se se- é obsceno, a presa obscena da obscenidade do mundo. Ele é me-
guirmos Caillois em sua classificação dos jogos - jogos de expres- nos caracterizado pelo distanciamento de anos-luz do real, o corte
são, jogos de competição, jogos de azar, jogos de vertigem - toda radical, do que pela proximidade absoluta, a instantaneidade to-
a tendência de nossa cultura contemporânea nos levaria de um re- tal das coisas, sem defesa, sem recuo, o fim da interioridade e
lativo desaparecimento das formas da expressão e da competição da intimidade, a superexposição e a transparência ao mundo, que
62
AS ESTRAlÉGIAS FATAIS

o atravessam sem que ele possa impedi-lo. É que ele não mais
pode produzir os limites do próprio ser, e não mais pode se re-
fletir: ele é apenas uma tela absorvente, uma placa giratória e in-
sensível de todas as redes de influência.
Potencialmente, nós todos o somos também. AS ESTRATÉGIAS IRÔNICAS
I.

Se isso fosse verdadeiro, se isso fosse possível, esse êxtase


obsceno e generalizado de todas as funções seria realmente o es-
tado de transparência desejado, o estado de reconciliação do in-
divíduo e do mundo, seria no fundo, para nós, o juízo final, e
ele já teria acontecido. Nós já transgredimos tudo, inclusive os limites da cena e da
verdade.
Duas hipóteses, talvez iguais: nada ainda aconteceu, nossa
desgraça vem do fato de que nada ainda começou realmente (li- Nós estamos realmente mais além. A imaginação está no po-
bertação, revolução, progresso...) - utopia finalista. A outra hi- der a luz a inteligência está no poder, nós vivemos ou vivere-
pótese é que tudo já aconteceu. Nós já estamos além do fim. Tu- mo~ em breve a perfeição do social, tudo está aí, o céu desceu
do o que era metáfora já se materializou, já se aniquilou na rea- sobre 'a terra, o céu da utopia, e o que se perfilava como un:a
radiosa perspectiva é vivido agora como uma catástrofe em ca-
lidade. Nosso destino é este: é o fim do fim. Nós estamos num
universo transfinito. mera lenta. Nós pressentimos o gosto fatal dos paraísos mate-
riais, e a transparência, que foi a palavra de ordem ideal d~ era
da alienação, se realiza hoje na forma de um espaço homogeneo
e terrorista - hiperinformação, hipervisibilidade.
Não mais a magia negra do proibido, da alienação e da trans-
gressão, mas a magia branca do êxtase, da fascin~ção ~ ~a ~ran~­
parência. É o fim do patético da lei. Não havera mais JUIZO fI-
nal. Nós fomos além dele sem perceber. .
Pouco importa. Estamos no paraíso. A ilusão não é mais
possível. Ela, que sempre colocou um freio no real, ~ed:u, e nós
assistimos à precipitação do real num mundo sem ilusão. ~e~­
mo a ilusão histórica que mantinha a esperança da convergencia
ao infinito do real e do racional, e com isso uma tensão metafísi-
ca se dissipou: o real se tornou racional - essa conjunção se rea-
lizou sob o signo do hiper-real, forma extática do re~. Toda te~­
são metafísica se dissipou, cedendo a vez a um ambiente patafí-
sico, isto é, à perfeição tautológica e grotesca dos proc.essos de
verdade. Ubu : o intestino delgado e o esplendor do vaZIO. Ubu,
forma plena e obesa, de uma imanência grotesca, de uma verda-
de incontestável, figura genial, repleta, daquele que abso:ve~ tu-
do, transgrediu tudo, e resplandece no vazio como solução Ima-
ginária.
64 AS ESTRATÉGIAS FATAIS AS ESTRATÉGIAS IRÔNICAS 65

Deus teria caído nessa estratégia indigna dele de reconciliar A rivalidade é mais poderosa do que qualquer moralidade,
o homem com sua imagem, no fim de um juízo final que o aproxi- e a rivalidade é imoral. A moda é mais poderosa do que qual-
maria indefinidamente de seu fim ideal? Felizmente não: a estra- quer estética, e a moda é imoral. A glória, diriam nossos avós,
tégia de Deus é tal que ele mantém o homem em suspenso, hostil é mais poderosa do que o mérito, e a glória é imoral. A orgia
a sua imagem, elevando o Mal à potência de um princípio e mara- de signos, em todas as áreas, é muito mais poderosa do que a
vilhosamente sensívela qualquer sedução que o desvie de seu fim. realidade, e a orgia dos signos é imoral. O jogo, cujas regras são
Não existe um princípio de realidade nem de prazer. Só existe imemoriais, é mais poderoso do que o trabalho, e o jogo é imo-
um princípio final de reconciliação e um princípio infinito do Mal ral. A sedução, sob todas as formas, é mais poderosa do que o
e da Sedução. amor ou o interesse, e a sedução é imoral .
Isso não é, tampouco para Mandeville, uma visão filosófica
cínica, mas uma visão objetiva das sociedades e talvez de todos
Além do êxtase do social, do êxtase do sexo, do corpo, da os sistemas. A própria energia do pensamento é cínica e imoral:
informação, vela o princípio do Mal, o gênio maligno social , o não há pensador que, obedecendo apenas à lógica de seus con-
gênio maligno do objeto, a ironia da paixão. ceitos, tenha enxergado um palmo adiante do seu nariz. É preci-
Além do princípio final do sujeito, se ergue a reversibilida- so ser cínico para não morrer e isso, se podemos dizer, não é imo-
de fatal do objeto, objeto puro, o acontecimento puro (fatal), a ral, é o cinismo da ordem secreta das coisas.
massa-objeto (o silêncio), o objeto-fetiche, a feminilidade-objeto Não que os indivíduos ou os grupos obedeçam a algum ins-
(a sedução) . Por toda parte, após séculos de subjetividade triun- tinto secreto, mas o fato é que os poderes que quiseram extirpar
fal, hoje é a ironia do objeto que nos espreita, a ironia objetiva essa desobediência, essa orgia, esse gênio maligno, anulando até
legível no próprio centro da informação e da ciência, no próprio as motivações "irracionais" no espírito dos homens, sempre os
centro do sistema e de suas leis, no centro do desejo e de toda destinaram a uma morte mais ou menos lenta. A energia do ví-
a psicologia. cio é insubstituível, justamente porque ela é uma energia de fis-
são e de ruptura, que muito ingenuamente pretenderam substi-
tuir por uma energia mecânica de produção.
Como funcionam nossas sociedades pretensamente racionais
o GÊNIO MALIGNO DO SOCIAL
e programadas? O que faz avançar, o que faz correr as popula-
ções? Os progressos da ciência, a informação "objetiva", o cres-
Não é nem a moralidade nem o sistema positivo de valores de cimento da felicidade coletiva, a inteligência dos fatos e das cau-
uma sociedade que a faz progredir, é sua imoralidade e seu vício. sas, o castigo real do culpado ou a qualidade da vida? Nada dis-
Nunca o Bem ou o Bom, seja o ideal e platônico da moral so: nada disso interessa a alguém, exceto nas respostas às pes-
ou o pragmático e objetivo da ciência e da técnica, é que coman- quisas de opinião. O que fascina todo mundo é a orgia dos sig-
da a mudança ou a vitalidade de uma sociedade - o impulso nos, é que a realidade, em toda a parte e sempre, seja devassada
motor vem da orgia, das imagens, das idéias ou dos signos. pelos sinais. Isto, é um jogo interessante - e é o que acontece
Os sistemas racionais da moral, do valor, da ciência e da ra- com os meios de comunicação, com a moda, com a publicidade
zão só comandam a evolução linear das sociedades, sua história - em geral, mais no espetáculo da política, da tecnologia, da
visível. Mas a energia profunda que impulsiona mesmo essas coi- ciência, em qualquer espetáculo que seja, porque a perversão da
sas vem de outra parte. Do prestígio, do desafio, de todos os im- realidade, a espetacular distorção dos fatos e das representações,
pulsos sedutores ou antagonistas, inclusive suicidas, que nada têm o triunfo da simulação, é fascinante como uma catástrofe - e
a ver com uma moral social ou uma moral da história ou do efetivamente é uma, é um desvio vertiginoso de todos os efeitos
progresso. de sentido. Por esse efeito de simulação, ou de sedução, como
66 AS ESTRAlÉGIAS FATAIS AS EST RATÉGIAS IRÔNICAS 67

quiserem, estamos prontos a pagar qualquer preço, muito mais


alto do que pela qualidade "real" de nossa vida.
É o segredo da publicidade, da moda, do jogo, de todos os Moral pública, responsabilidade coletiva, progresso, racio-
sistemas lúbricos, que quebram as energias morais e liberam as nalização das relações sociais: babaquices! Que grupo já sonhou
energias imorais, que se alimentam rapidamente só do signo das com isso? Os sociólogos e os ideólogos, sim, e os políticos, que
coisas, desafiando sua verdade - nisso elas se parecem com as justamente perderam o sentido do político, dessa artimanha e des-
energias mágicas e arcaicas, que sempre contaram com a força
onipotente do pensamento contra o poder do mundo real- ener- sa fal/acy do político, que não é aquela do Príncipe de Maquia-
gia imoral que destrói o sentido, que atravessa os fatos , as repre- vel mas, seguindo Mandeville nos abismos do social, o maquia-
sentações, os valores recebidos, e eletriza as sociedades bloquea- velismo de toda uma sociedade em seu funcionamento real.
das em sua imagem platônica. A energia do social como tal, a energia do contrato ,social
e de sua idealização no socialismo, é uma energia pobre. E uma
energia sensata, uma energia lenta e artificial. Mas bem se vê que
Um belo exemplo desse poder "diabólico" de mudança, dessa os povos não obedecem a isso, que é apenas sua história. Mesmo
energia imoral de transformação, contra todos os sistemas de valor, a Revolução, que pode ser tomada como o ponto culminante dessa
são os Estados Unidos. Apesar de sua moralidade, seu purita- energia "consciente", não é a última palavra da história. Como
nismo, sua obsessão virtuosa, seu idealismo pragmático, tudo ali
diz Rivarol: "O povo não queria realmente a Revolução, ele só
muda irresistivelmente segundo um impulso que não é absoluta-
desejava seu espetáculo". Haverá algo mais velhaco? Mais imo-
mente o do progresso, linear por definição - não, o verdadeiro
motor é a abjeção da circulação livre. A social e selvagem ainda ral? (principalmente quando se trata de uma Revolução! - mas
hoje, refratário a qualquer projeto coerente de sociedade: tudo tranqüilizem-se: o povo, quando parece desejar a ordem, não es-
é testado, tudo é pago, tudo é valorizado, tudo fracassa. As mú- taria também desejando apenas seu espetáculo?).
sicas do oeste, as terapias, as "perversões" sexuais, os edifícios Se nossa perversão é esta: - nunca desejamos o aconteci-
do leste, os líderes, os gadgets, os movimentos artísticos, tudo mento real e sim seu espetáculo, nunca as coisas e sim seu signo,
ali desfila e se sucede continuamente. E nosso inconsciente cul- e a secreta ironia de seu signo - isso quer dizer que não deseja-
tural, profundamente alimentado de cultura e de sentido, pode mos tanto assim que as coisas mudem, é preciso ainda que essas
berrar diante desse espetáculo, mas não impede que ali, na pro- mudanças nos seduzam. A Revolução, para acontecer, deve nos
miscuidade imoral de todas as formas, de todas as raças, no es- seduzir, e ela só pode fazer isso pelos signos - ela está no mes-
petáculo violento da mudança, esteja o sucesso de uma socieda- mo caso do último dos homens políticos que não consegue se
de e o signo de sua vitalidade. eleger. Mas pagamos o preço por mais caro que seja para sermos
Publicidade, circulação abstrata, abjeta, dos eurodólares, dos seduzidos: pois a Revolução pode ser historicamente determinante,
valores da bolsa, imoralidade dos ciclos da moda, tecnologias inú- mas somente seu espetáculo é sublime. E o que escolhemos? Por
teis e de prestígio, desfiles eleitorais, escalada das armas, tudo que os povos, que tinham pago tão caro por sua Revolução,
isso não é apenas o sinal histórico do poder do capital, é a prova deixaram-se muitas vezes, para desespero dos seus defensores, cair
mais decisiva de um fato mais importante do que o próprio capi-
na indiferença, pouco se importando com esse "acontecimento",
tal - a prova de que nunca existiu realmente nenhum projeto
tendo sacrificado suas vidas pelo espetáculo da Revolução?
social digno desse nome, que nenhum grupo, no fundo, nunca É que essa impulsão zombeteira nos liberta do terror.
se constituiu realmente como social, isto é, solidário por seus va-
lores e coerente em seu projeto coletivo, em suma, que nunca hou-
ve nem sombra nem embrião de uma entidade responsável nem
Outro exemplo de uma sociedade imoral que vive numa imo-
a possibilidade sequer de um objetivo dessa natureza.
68 AS ESTRAlÉGIAS FATAIS AS ESTRATÉGIAS IRÔNICAS 69

ralidade profunda: a Itália. Por que a Itália não é rabugenta (ao Assim era visto pelos povos selvagens, que, como sabemos,
contrário da França, mesmo socialista)? tinham seus deuses e uma visão bem diferente da nossa: eles só
Certamente porque ela é a única sociedade que ultrapassou, os inventavam para matá-los e retiravam sua energia nesse sacri-
coletivamente, a linha virtual da simulação - uma virtuosidade fício intermitente. Entre os astecas, os próprios deuses se sacrifi-
coletiva de viver na ordem, ao mesmo tempo irrisória e sutil, da cam um a um para fazer nascer o sol, a lua, os homens. Para
simulação. Não se defende desesperadamente - e por isso a vi- que algo viva é necessário que morra o deus que o encarna.
da ali é enfim mais feliz - contra essa perda de substância, de A regra fundamental é essa: para que um grupo, para que
valor e de sentido que faz a desgraça dos outros e sua rabugice. um indivíduo viva, ele não pode olhar o próprio bem, o próprio
Os outros vivem num estado de simulação contrariada, a Itália, interesse, o próprio ideal. É preciso que ele sempre olhe mais longe,
guardadas as proporções, vive num estado de simulação alegre. ao lado, além, de banda, como o lutador na arte marcial japone-
Ali a lei já cedeu a vez, talvez desde sempre, a um jogo e a uma sa. Não adianta querer reconciliar os dois princípios. A duplici-
regra do jogo. Todos os italianos, desde as B.V. até os serviços dade é estratégica, ela é fatal.
secretos, da mamma até a Máfia, dos terremotati à célula P2 (mi- Era exatamente isso o que Bataille via, com o conceito de
lagre do Estado que se tornou sociedade secreta!), são por assim despesa e de parte maldita. O essencial é o supérfluo, é o exce-
dizer cúmplices, mantendo uma conivência irônica com a teatra- dente. É para ali que convergem todos os trunfos, onde se fo-
lidade, a simulação, desde agora, do poder, da lei, da ordem ou menta a energia de uma sociedade. Assim, o social não é mais
da desordem viva - um pacto secreto sobre a estratégia das apa- absolutamente uma organização contratual de gestão dos inte-
rências que domina tudo isso. Sobre o efeito de trompe-l'oeil do resses do grupo (que assim é apenas a gestão da penúria, inclusi-
político e do social, que atuam e desaparecem num piscar de olhos, ve a penúria do próprio social - o princípio de economia parte
e sobre o prazer dos efeitos (o exemplo do Renascimento não es- do fato de que nunca há bastante para todo mundo, o de Batail-
tá longe). A verdadeira partilha social atual é a partilha coletiva le parte do fato de que sempre há demais para todo mundo, e
da sedução. que o excesso é nosso destino), mas uma organização aventurei-
Que outro cimento haveria mais fantástico do que esse? ra, eventualmente absurda, um projeto de energia devastadora,
O que poderíamos encontrar, coletivamente ou individual- uma antieconomia, um prodígio, um desafio à natureza conser-
mente, além da fissão do universo referencial, senão a ficção, a vadora. O social é um luxo. O nosso só caracteriza a miséria de
estratégia irônica das aparências? E não será o socialismo fran- nossas sociedades.
cês de além-túmulo que poderá nos desmentir, pois ele também Outro sinal encorajador: a extraordinária fascinação coleti-
só faz usar as aparências infelizes do social, encarnado na está- va, a paixão de um povo de sacrificar ou ver sacrificar seu chefe,
tua fúnebre do comendador Mitterrand e a burocracia moral dos quando a ocasião se apresenta. Não se deve subestimar essa pai-
subcomendadores, xão, praticamente política, dos povos, de elevar ao poder homens
ou uma casta e depois fazer tudo para vê-los arrasados ou levá-
los à queda. Isso é apenas a versão política da lei de reversibili-
Essa secreta desobediência de um grupo aos próprios prin- dade e uma forma de compreensão do político, pelo menos igual
cípios, essa imoralidade e duplicidade profunda, não refletiria senão superior à do contrato social e da delegação do poder, que
a ordem universal? É preciso despertar o princípio do Mal vivo ela exalta para desmentir. Certamente, os povos elegem chefes e
no maniqueísmo e em todas as grandes mitologias para afirmar, lhes são obedientes, certamente eles investem seus representantes
contra o princípio do Bem, não exatamente a supremacia do Mal, de poder e legitimidade. Mas podemos ter certeza de que quase
mas a duplicidade fundamental que exige que uma ordem, qual- sempre permanece a exigência lógica de vingança. O poder, qual-
quer que seja, só exista para ser desobedeci da, atacada, ultrapas- quer que seja e de onde quer que venha, é um assassinato simbó-
sada, desmantelada. lico e deve ser expiado com o assassinato. Podemos jurar que qual-
70 AS ESTRAlÉGIAS FATAIS AS ESTRATÉGIAS IRÔNICAS 71

quer sociedade sabe disso no mesmo momento em que ela o leva De que servia se sacrificar para prová-lo? Mas a armadilha
ao poder, e também que este, quando é inteligente, está perfeita- era essa: levá-lo a ser mais repressivo do que era na realidade -
mente consciente disso. os manifestantes exerciam assim, na verdade, um poder de simu-
Isso se parece com a regra do jogo que diz que um grupo lação, forçando o poder a acrescentar à repressão a obscenidade
ou um indivíduo nunca deve pretender a própria conservação. da repressão. E é isso que mata: a simulação é sempre a armu
O poder também, se quer realmente ser exercido, nunca deve pre- mais eficaz. Basta se anular diante de quem nos nega para fazê-
tender a própria continuidade: deve olhar sua morte em algum lo voltar-se contra si mesmo com toda a força de sua inércia. Maio
lugar. Senão ele cai na ilusão do poder, no ridículo da criação de 68 não era portanto uma ação ofensiva (o poder teria ganho
perpétua, da concessão eterna do poder. Se ele não compreender antecipadamente), mas uma simulação defensiva de furtar do po-
isso, será varrido. Se o grupo não compreender isso, ele próprio der o próprio segredo (a saber, que ele não existe) e deixá-lo as-
estará perdido. A instituição do poder se reflete na necessidade sim sem defesa diante da própria enormidade.
de seu assassinato. Devemos lembrar que o poder gira em torno de uma mons-
Mesmo os líderesmodernos, portanto obcecados por sua per- truosidade secreta e que levar alguém ao poder é mergulhá-lo no
manência e pouco motivados para o sacrifício ritualístico, têm exercício difícil, sempre a beira do ridículo, de um privilégio sem
o pressentimento dessa regra e não hesitam em encenar a peripé- contrapartida. Ele só pode se salvar pela ambigüidade e pela du-
cia de sua morte, graças a atentados mais ou menos orquestra- plicidade. Se tirarmos toda incerteza do exercício de sua força,
dos. Aliás, alguns nem sempre escapam, mas o importante não estaremos condenando-o de vez.
é isso, pois nesse caso também de nada serve morrer, é preciso O próprio princípio do Mal está na ironia objetiva e nas
saber desaparecer. E a característica dos nossos sistemas moder- estratégias decorrentes dela.
nos, burocráticos ou gestionários, é não saber mais morrer, só
saber se sucederem a si mesmos. Os dirigentes atuais acreditam
em suas virtudes porque acreditam na designação dos povos. Do Em dado momento, todas as filosofias, todas as metafísi-
poder eles só têm uma estratégia banal. Mas outros políticos sou- cas, (maniqueístas, heréticas, cátaras, feiticeiras, mas também ner-
beram que o poder nunca é essa faculdade unilateral de dispor valianas, járrycas, lautréamontescas) levantaram a hipótese de uma
da vontade dos outros, e sim o exercício sutil e ambíguo do seu ironia, de urna irrealidade fundamental do mundo, isto é, na ver-
próprio desaparecimento. Eles sabem que o poder, como a ver- dade, de um princípio do Mal, e elas sempre foram odiadas e quei-
dade' é esse lugar vazio que nunca deve ser ocupado mas que é madas por isso, que é o pecado absoluto. A irrealidade do mun-
preciso ser criado para que outros possam ali se precipitar. O poder do e seu corolário, a força onipotente do pensamento, só foram
que ocupa esse lugar, o poder que encarna o poder, é obsceno pensadas com rigor pelas sociedades sem real (mais do que as
e imundo e mais cedo ou mais tarde ele desmorona no sangue sem história ou sem escrita). Todas as mitologias, todas as reli-
ou no ridículo. giões nascentes viveram de uma violenta negação do real, de um
Aliás, essa é toda a estratégia de uma subversão inteligente: violento desafio à existência. E tudo o que nega e desafia o real
também não visar frontalmente ao poder e a ele se opor, mas sim está certamente mais próximo do mundo pelo pensamento.
levá-lo a ocupar essa posição obscena da verdade, essa posição Fizeram da ironia uma forma mefistofélica, mas ela é ape-
obscena da evidência absoluta. Porque é ali que, pensando ser nas o que filtra todas as coisas e as preserva da confusão. Ela
real, ele cai no imaginário - é ali que ele não existe mais por filtra as palavras, os espíritos e os corpos, ela filtra os conceitos
ter violado o próprio segredo. Essa foi a tática não combinada e os prazeres e os preserva da promiscuidade e da coagulação amo-
de Maio de 68: fazer coincidir o poder com seu exercícionão simu- rosa. Ela brinca de uma forma para outra, na anamorfo e, ela
lado - justamente com múltiplas armadilhas fazer o poder apa- brinca de uma espécie para outra, na metamorfose - U im, a
recer como repressivo. Objetivo aparentemente ingênuo e inútil. cópula dos deuses e dos homens, no mito grego, é ir A di-
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ferença entre os deuses e os homens, entre os homens e os ani- ser analisado e observado e, tomando isso como um desafio (o
mais, é um filtro de sedução. Quando o mesmo se acasala com que é verdade), ele responda com outro desafio? Essa astúcia vi-
o mesmo, tudo se toma obsceno. A necessidade da ironia, como toriosa do objeto analisado pode ser muito bem pressentida nas
a do prazer, faz parte da necessidade do Mal. ciências ditas humanas (quando não preferimos esquecê-la). Já
se pode estabelecer um ponto de não retorno em que, além de
o sujeito analítico ser invadido pela relatividade e pela incerteza,
a supremacia seja completamente invertida: o objeto analisado
o GÊNIO MALIGNO DO OBJETO triunfa hoje de ponta a ponta, por sua posição de objeto, sobre
o sujeito da análise. Ele lhe escapa completamente, ele o remete
a sua posição oculta de sujeito. Por sua complexidade, além de
A partir do início do século XX, a ciência reconhece que ultrapassar, ele anula as perguntas que o outro possa lhe fazer.
qualquer dispositivo de observação em nível microscópico pro- Tornando-se, reversíveis, mesmo os processos materiais desarmam
voca tal alteração do objeto que seu conhecimento se torna peri- qualquer solicitação (a reversibilidade é a arma absoluta contra
goso. Isso é uma revolução, já que põe fim à hipótese convencio- a determinação, qualquer que seja, que queiramos impor aos fe-
nal de uma realidade e de uma ciência objetiva, porém, o pró- nõmenos, mas ela não poupa a indeterminação, pois a reversibi-
prio princípio da experiência está intacto. O que atuava ali era lidade não é de ordem aleatória, ela seria de preferência uma es-
apenas a certeza, e foi feita nova convenção, a da incerteza. Os pécie de exata determinação inversa e simultânea, de contrade-
resultados se tornam relativos no funcionamento da própria ciên- terminação perversa). Acossados pela análise, eles se tornam re-
cia como meio - mas essa relativização mostra supremo orgu- versíveis, assim como se metamorfoseiam as aparências acossa-
lho. "Minha certeza acaba na leitura dos instrumentos", diz um das pelo sentido. O sujeito de análise se tornou completamente
micro físico. Ou ainda: "A placa sobre a qual pára um grão de frágil, e essa revanche do objeto só está começando. Ela própria
luz não seria na verdade a 'causa' deste? Podemos realmente fa- faz parte de uma reversibilidade geral.
lar de fóton antes (ou depois?) de tê-lo apanhado numa tela ou Pior: talvez o sujeito se veja um dia seduzido por seu objeto
numa placa fotográfica?" Nas ciências humanas, o equivalente (o que é bem natural), e ele se tornará novamente a presa das
pressentido mas nunca analisado em suas conseqüências extre- aparências - o que é realmente o melhor que pode lhe aconte-
mas é a pressuposição e a indução de toda resposta possível pela cer, a ele e à ciência.
própria pergunta e, portanto, a inutilidade da análise e da inter- Essa forma de reversibilidade, de inversão do saber num duelo
pretação (mas ela não está perdida para todo mundo). enigmático entre o sujeito e o objeto, essa forma legível até en-
No entanto, isso é apenas uma revolução limitada à medida tão na esfera da linguagem, os próprios físicos a pressentem nos
que nunca se faz outra hipótese além da de um objeto alterado, confins das "ciências exatas" da matéria.
sofrendo a violência do dispositivo de observação sem lhe poder
responder (senão remetendo-o à dificuldade insolúvel de não po- As medidas tomadas sobre uma partícula não permitem dizer o
der, como Orfeu-Eurídice, fazer surgir seu objeto sem fazê-lo de- que aconteceria em outra partícula produzida nas mesmas condi-
saparecer) - ou então destinado à simulação total, isto é, proje- ções... A medida tomada sobre um corpúsculo, por exemplo um
fóton , perturba o dispositi vo experimental inteiro de tal modo que
tado na forma aleatória dos modelos. outro corpúsculo separado do primeiro por uma distância infini -
Nunca é feita a hipótese, além de sua distorção, de uma re- ta, equivalendo na nossa escala a vários anos-luz, produz instan-
torção ativa da parte do objeto por ser questionado, solicitado, taneamente um eco dessa medida.
violado. "Uma medida propaga seus efeitos à distância numa veloci-
Talvez, descontente por estar alienado pela observação, o ob- dade superior à da luz... Os fótons se previnem, fazem voltar a
jeto nos engane? Talvez ele invente respostas originais, e não ape- informação à fonte luminosa, usam de astúcia para evitar a per-
nas as que solicitamos dele? Talvez ele não queira absolutamente turbação do dispositi vo de observação. Os fótons comunicam:
AS ESTRATÉGIAS IRÔNICAS 75
74 AS ESTRArtGIAS FATAIS

fantástico. E para isso parece que usam interações instantâneas à tífica, que todas as experiências tenham sido falsificadas - não
distância - sem o limite da velocidade da luz. A energia vinda involuntariamente alteradas pelo observador, mas adulteradas pelo
do futuro poderia modificar o estado presente de um sistema..." objeto com a intenção de se divertir ou se vingar (assim as traje-
tórias ininteligíveis das partículas), ou melhor ainda: o objeto só
Como resistir à ironia supraluminar desses fótons com seus finge obedecer às leis da física porque isso agrada tanto ao
serviços secretos ultra-rápidos, desafiando o aparelho de análi- observador.
se? De todo modo, é fascinante a hipótese de uma resposta ativa, Essa seria a patafísica (a ciência das soluções imaginárias),
refratária, de uma não-inércia da "matéria", de um antagonis- que espreita qualquer física em seus extremos inconfessáveis.
mo irredutível e, por que não dizer, de um duelo mortal entre
o sujeito, qualquer que seja, tal como é hipostasiado na análise,
e o objeto, qualquer um, que esse sujeito pretenda subjugar a seus Ir ao encontro do desejo do outro, refletir seu pedido como
cálculos e a suas manipulações: Quando pensamos nisso, é de um espelho, até mesmo antecipá-lo: não podemos imaginar que
uma evidência fantástica. É a hipótese ("científica") de uma ob- poder de decepção, de absorção, de engano, de desvio, enfim,
jetividade morta do universo que é absurda Se quisermos ser ma- de revanche sutil, existe nessa sedução instantânea. Da mesma
terialistas, então é preciso atribuir à matéria não essa inércia e forma essa maneira que as massas, como a matéria, têm de se
essa passividade mas sim uma genialidade, até mesmo um gênio apagar como realidade no horizonte dos dispositivos simulado-
maligno capaz de desarmar qualquer tentativa de escravizá-lo. res de captura: as pesquisas ou as telas fotográficas de partícu-
Com efeito, até então a reversibilidade permaneceu na or- las. Ou ainda a de os próprios acontecimentos se esquivarem por
dem metafísica ("Se o universo pode ser explicado de maneira trás da tela, dos meios de comunicação e da televisão. Pois é ver-
causal é porque a causa e o efeito não podem ser considerados dade que os acontecimentos, como as partículas, só têm existên-
termos equivalentes e intercambiáveis. Como uma mistura de água cia provável sobre essa tela de deflexão - e não mais de reflexão
e tinta não pode, depois de um tempo, tornar a se dividir em dois como um espelho. O espelho era o lugar de produção imaginária
líquidos distintos... qualquer fenômeno físico fica submetido à do sujeito, a tela (e nisso englobo as redes, os circuitos, as fitas
irreversibilidade da cadeia das causas e dos efeitos..."), mas ela perfuradas, as fitas magnéticas, os modelos de simulação, todos
pode estar agitando a ordem física e abalando seus alicerces. os dispositivos de gravação e de controle, todas as superfícies de
Com ela desaparece o princípio racional que defende que inscrição) é praticamente o lugar de sua extinção. A luz da TV,
o efeito volte sobre a causa para anulá-lo, que o efeito seja a anu- já disseram, é endógena, ela vem do interior e não reflete nada
lação da causa - ou ainda que nunca tenha havido causa, e sim _ é como se a própria tela fosse a causa e o local de origem dos
uma pura e simples sucessão de efeitos. A reversibilidade mata fenômenos que ali se produzem. Tamanha conseqüência da so-
no ovo qualquer princípio determinista (ou indeterminista) de cau- fisticação atual dos dispositivos de captura "objetiva" fez com
salidade. E quando digo "no ovo" é piscando para o ovo e a ga- que eles aniquilassem a própria objetividade de seu processo.
linha - qual deles produz o outro?, célebre aporia do encadea- O outro, o objeto, desaparece no horizonte da ciência. O
mento causal: mesmo a ordem causal não escapa a uma circula- acontecimento, o sentido desaparecem no horizonte dos meios .
ridade paródica, que é por assim dizer a revanche da ordem de comunicação.
reversível. Mas é preciso ver que o desaparecimento também pode ser
uma estratégia - não uma conseqüência forçada do dispositivo
As histórias de reversibilidade são sempre as mais diverti-
de informação, mas uma estratégia própria do objeto, a quem
das, como a do rato e do psicólogo: o rato conta como conse-
guiu condicionar perfeitamente o psicólogo a lhe dar um pedaço a tela de controle serviria, digamos, de tela de desaparecimento.
de pão cada vez que abria a porta de sua gaiola. Sobre o modelo A essa superfície catódica de gravação, o indivíduo ou a massa
dessa história, poderíamos imaginar, no nível da observação cien- respondem com um comportamento paródico de desaparecimen-
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76 AS ESTRArtGIAS FATAIS AS ESTRATÉGIAS IRÔNICAS

to. Quem são eles, o que fazem atrás dessa tela? Eles próprios mo pelo da ciência. Nós gravamos tudo, mas não acreditam~s
se tornam superfície impenetrável e ininteligível, o que é uma ma- nisso, pois nós mesmos nos tomamos telas, e 9uem ~ode pedir
neira de desaparecer. Eles se eclipsam, eles se fundem na tela su- a uma tela para acreditar no que ela grava? A simulação respon-
perficial, como sua realidade, como a das partículas da matéria, demos com a simulação, nós nos tornamos dispositivos simula-
pode ser radicalmente posta em dúvida sem que isso mude algo dores. Hoje há pessoas (são as pesquisas que afirmam!) que n.em
para a análise probabilística de seu comportamento. Na "reali- acreditam no satélite espacial! Não se trata mais de dúvida filo-
dade", por trás desse verniz "objetivo" das redes e dos modelos sófica quanto ao ser e às aparências, trata-se da indiferença pro-
que acreditam captá-los, e onde se move toda a população dos
funda quanto ao princípio de realidade depois da perda de tod~
ilusão. Todos os antigos dispositivos de conhecimento, o concei-
pesquisadores, dos analistas, dos cientistas, dos observadores (mas
to, a cena, o espelho, procuram dar ilusão, sublinham assim uma
também dos comunicólogos e dos politicólogos) passa uma on- projeção verídica do mundo. As superfícies el~t!ônicas, por sua
da de ironia, de reversão e de paródia que é a exploração ativa, vez são sem ilusão, elas oferecem o nao decisivo.
a encenação paródica pelo próprio objeto de sua maneira de , É o que faz não ser mais possível o bom e velho julgamento
desaparecimento! crítico e irônico. Podíamos dizer, para denunciar a retórica: "Is-
As mídias fazem desaparecer o acontecimento, o objeto, o so é literatura!" Podíamos dizer, para denunciar o artifício:
referencial. Mas se elas só conseguem ser o suporte de uma es- "Isso é teatro!" Podíamos dizer, para denunciar a mistificação:
tratégia de desaparecimento, o que seria a do próprio objeto? "Isso é cinema!" Não podemos dizer, para denunciar o que quer
As massas fazem desaparecer, eclipsam, os indivíduos. Mas que seja: "Isso é televisão!" Porque não há mais univ,erso de re-
elas são, para o indivíduo, a ocasião sonhada de desaparecer? ferência. Porque a ilusão está morta, ou porque ela e total. No
Os meios de comunicação são sem resposta. Mas são ape- dia em que pudermos dizer do mesmo modo: "Isso é televisão!
nas a superfície por trás da qual as massas aproveitam para Isso é informação!" tudo terá mudado.
emudecer? Talvez quando multiplicarem as experiências como a de Ca-
Ainda se trata de sedução, porém exatamente ao contrário, pricome One, em que uma expedição ~ Mart~ capital para o pres:
não mais do desvio das massas pelos meios de comunicação, mas tigio dos Estados Unidos, mas impedida no ultimo momento, foi
do desvio destes pelas massas, na estratégia de desaparecimento filmada inteiramente nos estúdios de televisão do deserto, com
delas no horizonte dos meios de comunicação. retransmissão simulada, porém perfeita, para todas as telas da
Terra. Por que não? Não há crime de simulação. A credibilidade
é apenas um efeito especial e mesmo o espaço, o espaço cósmi-
Assim como a observação de uma partícula, em certas con- co é para nós apenas uma tela de simulação sem profundidade.
dições, não permite concluir sobre o comportamento de outra par- N~la o efeito espacial se une ao efeito especial.
t ícula nas mesmas condições, os indivíduos e as massas se sub-
metem tão bem aos modelos de análise e de pesquisas somente
para torná-los ainda mais não decisivos. Como as pesquisas não Uma tela não representa nada, nem a da televisão nem a das
são decisivas, talvez esteja aí seu charme, isso porque são telas pesquisas. É um erro pensar que as sondagens possam ser re~re­
por trás dos quais o objeto desapareceu de tal forma que nada sentativas do que quer que seja, como uma palavra pode se-lo
pode mais resolver sua existência causal nem a conseqüência efe- de uma coisa, uma imagem de uma realidade ou um rosto dos
tiva do modelo. Só que resulta suspeita ou justificada imperti- sentimentos íntimos. O sistema eleitoral pode ainda pretender ser
nência geral quanto ao valor das pesquisas, uma espécie de "ve- representativo, porque atua com uma dialética relativa dos repre-
redicto de simulação" espontâneo. Veredicto de incredulidade, sentantes e dos representados. Mas não é nada disso. Ao contrá-
de desconfiança, que se estende hoje a tudo que nos é passado rio dó conceito, o modelo não é da ordem da representação, mas
pelo canal dos meios de comunicação e da informação, até mes- da ordem da simulação (virtual, aleatório, dissuasivo, irreferen-
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cial) e há um contra-senso total em lhe aplicar a lógica de um


sistema de representação. Daí vêm todos os mal-entendidos e as
polêmicas indefinidas e inúteis sobre seu valor e sobre o "bom Portanto, não se deve dar razão àqueles que exaltam o uso be-
uso" (como da publicidade: Séguéla/Mitterrand, quem fez pas- néfico dos meios de comunicação nem aos que reclamam da ma-
sar o socialismo?). Absurdo e insolúvel: há uma mixagem de dois nipulação, pois não há nenhuma relação entre um sistema de sen-
sistemas heterogêneos cujos dados não podem ser transcritos de tido e um sistema de simulação. Publicidade e pesquisas são bem
um para o outro. Projeção ilógica de um sistema operacional, incapazes de alienar a vontade ou a opinião de quem quer que se-
estatístico, informático, simulacional, sobre um sistema de valo- ja, porque não atuam nesse espaço-tempo da vontade e da repre-
res tradicional, sobre um sistema de representação, de vontade sentação em que se forma o julgamento. Pela mesma razão estão
e de opinião. O mal-entendido basta para cristalizar toda uma impossibilitados de esclarecer a vontade ou a opinião de quem quer
filosofia moral da informação. . que seja, já que são estranhos a essa cena da opinião, ao mesmo
Por mais aperfeiçoadas que sejam, as sondagens nunca re- tempo teatral e representativa, que constituía a própria cena do
presentarão nada, porque sua regra do jogo não é a da represen- político. Portanto, tranqüilizemo-nos: eles não poderiam destruí-la.
tação. Sua lógica está perfeitamente combinada com a da objeti- Mas não criemos ilusões: eles não poderiam também instruí-la.
vidade, mas não há mais objeto no final do processo portanto .Éessa deiscênci entre os dois sistemas que nos mergulha hoje
é a objetividade no estado puro. Maravilhosa ironia! Isso é váli~ coletT 'mente num estado de to or de incerteza quan o a
do para todos os meios de comunicação: quando estamos na si- . ria vontade de escolha de o inião, de ju gamen o. une
mulação, isto é, no nem verdadeiro nem falso, qualquer deonto- remos se uma publicidade Isa In uenCIaram realme -
logia é perfeitamente hipócrita. É tão absurdo falar de deontolo- te nossa vonta e, mas nunca saberemos tambem o que teria acon-
gia das pesquisas (ou dos meios de comunicação) quanto de uma tecido se não tIvesse haVIdo nem bhetdade nem pesqUIsa. A te-
i deontologia da moda, que não existe, porquanto o recurso da mo- la tecida pelos meIOS e comunicação (a informaçao a nossa vol-
da não é mais atuar numa oposição do belo e do feio, mas sim lã é de totãl incerteza E de uma Incerteza completamente nova
sobre uma indistinção dos dois e sobre o redemoinho indiferen- .á que não é mais a sulta da falta de informa ão, mas da pró-
ciado dos dois num efeito generalizado de sedução. pna In ormação, e do excesso de In ormação. Contranamenteã"
. Ali.ás,.s.upondo que possamos levar as sondagens a um grau Incerteza tradIcIonal que podIa sempre ser resolvida, esta e por-
de confiabilidade total, supondo que possamos creditar a infor- tanto irreparável e nunca será dissolvida.
mação de alguma verdade, aí começaria o drama. Porque esse
clichê ideal que obteríamos do social equivaleria a nos absolver •
de sua eventualidade dramática. Essa verdade significaria que o Esse é nosso destino de pesquisados, de informados, de en-
social foi vencido pela técnica do social. O que é efetivamente trevistados: confrontados com a verificaçãq antecipada de nossos
o objetivo diabólico de toda simulação. É aí que começa a tec- comportamentos, absorvidos por essa refração permanente, não
nologia suave de extermínio. E por isso que o verdadeiro proble- somos nunca mais confrontados eenmossa vontade, nem com a
ma começa com a hipótese de um bom funcionamento, pois isso do outro. Não som<;>~Il~mmesmo maisaÍienados, pois não há mais
é que é grave, não são as distorções da verdade no interior da o outro: a cena dobdtro:, cotDb a do social e do político, desapa-
máquina, mas a distorção de todo o real pela confiabilidade ob- receu. Cada indivíduo é forçado à coerência indivisa das estatís-
jetiva dessa máquina. ticas. Extroversão sem recurso, como a incerteza.
Como a informação era bela no tempo da verdade! Como
a ciência era bela no tempo do real! Como a objetividade era be-
la no tempo do objeto! Como a alienação era bela no tempo do A obscenidade própria das pesquisas não vem do fato de que
sujeito! Etc. elas trairiam o segredo de uma opinião, a intimidade de uma von-
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tade, OU que violariam algum direito imprescritível do indivíduo cipar sobre o fim do universo por meio de uma degradação siste-
particular (se o segredo existisse realmente, ninguém, nem mes- mática apesar de inconsciente, e voluntariamente perdida na uto-
mo seu detentor, seria capaz de traí-lo), e sim do exibicionismo es- pia inversa, ou seja, fazer a salvação do mundo pela informação
tatístico, desse voyeurismo contínuo do grupo sobre si mesmo: a (ainda que pareça se levantar algum clarão de uma consciência
todo instante ele tem que saber o que quer, saber o que pensa, ver-se culpada?)
na tela de vídeo dos números, decifrar seus gráficos de tempera- O agrupamento de um máximo de informação sobre o universo
tura, numa espécie de loucura hipocondríaca - o social está ob- pode acabar com o mundo. É como na fábula dos nove bilhões de
cecado por si mesmo, ele se torna o próprio vício, a própria per- nomes de Deus: quando, graças ao computador, puderam nomeá-
versão. Superinformado, ele se torna obeso de si mesmo. los todos, o mundo acabou, as estrelas se apagaram.
As massas também são feitas dessa superinformação inútil Portanto, a informação seria o único meio de acabar com o
que pretende esclarecê-las mas o que faz é entulhar o espaço e se universo, que sem ela nunca se esgotaria.
anular numa equivalência silenciosa. Ninguém pode lutar contra
essa circularidade das massas e da informação. Os dois fenôme-
nos se equivalem: nem a massa tem opinião, nem a informação Porém, existe outra maneira, mais alegre, de ver as coisas e de
a informa: ambas continuam se alimentando monstruosamente - substituir enfim a eterna teoria crítica por uma teoria irônica.
a velocidade de rotação da informação aumentando o peso das Com efeito, se considerarmos a indecidibilidade das pesqui-
massas em vez de sua tomada de consciência. . sas, a incerteza de seus efeitos, próxima de uma meteorologia divi-
Tudo isso seria dramático, se houvesse uma verdade objetiva natória, se considerarmos que dizem qualquer coisa, que já sabía-
das necessidades, uma verdade objetiva da opinião pública. A in- mo s, em que não acreditamos e não nos serve (mas sempre quere-
fluência da publicidade, das pesquisas, dos meios de comunica- mos mais), suas possibilidades de verificar simultaneamente os fatos
ção, da informação (poluição da democracia, poluição das cons- e as tendências contraditórias, ou, quando os resultados são ina-
ciências), tudo isso seria dramático se tivéssemos a certeza de que ceitáveis, de falsificar piedosamente sua objetividade (como no caso
existe diante disso uma natureza do homem, uma essência do so- da s sondagens da I.F.o.P. sobre pena de morte e imigrantes), mas
cial, com valores próprios, vontade própria. Porque estaria cria- principalmente o permanente desmentido que fazemo s, mesmo e
do o eterno problema de sua alienação. sobretudo se eles "verificam" nosso comportamento - ninguém
Seria mesmo preciso ir muito mais longe e rever todas as uto- aceita ser "verificado", nem coincidir com suas probabilidades, nin-
pias ligadas à teoria da informação. As coisas foram muito depressa guém pode viver na imagem antecipada do que é, nem no espe lho
desde o início do século. Hoje, é a própria informação, o excesso exorbitante de sua verdade estatística . (U m exemplo divert ido des-
de informação, que nos leva para o caminho de uma involução geral. sa denegação teimosa do acaso estat ístico no próprio centro de sua
Hoje, o saber do acontecimento é apenas a forma degradada aplicação: "Se isso pode tranqüilizá-los, a R.A .T.P. calculou qu e
desse acontecimento. Uma forma mais baixa da energia do acon- em cinqüenta pessoas, que tomassem o metrô duas vezes por dia
tecimento. Assim, o saber da opinião pública é apenas uma forma durante sessenta anos, apenas uma correria o risco de ser atacad a.
degradada dessa opinião. Ora, não há razão para qu e seja você!"). Da mesma forma que o
Quando o saber, por seus modelos, antecipa o acontecimen- jogador acredita na Chan ce (com ma iúscula, na Graça, e nã o na
to, ou quando o acontecimento (ou a opinião) é precedido por sua prob abilidad e) e não no acaso, ninguém renun cia a seu destino, é
forma degradada (ou sua forma simulada), toda a sua energia é ab- por isso que ninguém acredita em esta tística.
sorvida pelo vazio. De toda maneira, a grandeza da s estatísticas não está em sua
A previsibilidade total do universo, como pretende a ciência, objetividade e sim em seu humor involuntário.
constitui nesse caso a forma mais degradada do universo. É possí- E é assim qu e devemo s con siderar as coisas, em termos de hu -
vel que a (contra)finalidade da ciência e da informação seja ante- mor. A impertinência com que as pesquisas tratam o social e os fe-
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nômenos sociais tem como resposta, em sua leitura e seu uso, uma de comunicação escondem essa armadilha notável: aniquilam a fun-
impertinência pelo menos igual à dela. E a seriedade com que pre- ção política de uma sociedade, e satisfazem assim o inconsciente
tendem tratar o social tem como resposta uma ironia feroz do pró- irônico das multidões, cujo impulso profundo é realmente o assas-
prio fracasso e de todas essas distorções aleatórias. Existe uma es- sinato simbólico da classe política.
pécie de providência humorística que vem escangalhar essa máquina O povo, que sempre serviu de álibi para o sistema representa-
bonita demais e que faz com que caia na própria armadilha do es- tivo, compensava-se assistindo ao espetáculo político. Hoje ele se
pelho de sua objetividade. Uma espécie de arma absoluta emerge vinga assistindo ao espetáculo de seu desaparecimento. Pensam
do fundo social (?): uma dissimulação radical em resposta à simu- pesquisá-lo, é ele que se oferece todos os dias o cinema a domicílio
lação de resposta encenada pelas pesquisas e pelas estatísticas. E das flutuações da própria opinião na leitura das pesquisas.
o que poderíamos chamar o gênio maligno do social, desarmando É só dessa forma que ele acredita, que todos nós acreditamos,
eternamente a verdade do social e sua análise. como num jogo de prognósticos com resultado malicioso, apostar
É que o objeto nunca é inocente, ele existe e se vinga. A má o dobro nopano verde. Jogo de eqüifinalidade de todas as tendên-
refração do raio luminoso da informação sobre a "matéria" do so- cias, dos efeitos de verdade, da circularidade das perguntas e das
cial não é um acidente ou uma imperfeição no dispositivo, ela vem respostas, etc. Estamos com isso inaugurando uma forma coletiva
do gênio do objeto, de uma resistência ofensiva do social contra sua de existência irônica que, em sua extrema sabedoria, não se inter-
investigação e que toma a forma de um duelo oculto entre patrões roga mais sobre as próprias bases e aceita apenas assistir ao espe-
pesquisadores e o objeto pesquisado, entre massas e classe políti- táculo de sua extinção?
ca, etc. Nesse duelo, toda a ingenuidade está do lado dos manipu-
ladores, para quem está subentendido que é possível de qualquer
maneira levar o objeto a revelar sua verdade para o próprio bem. O mais belo exemplo é o das massas. Elas não são absoluta-
Se ele não compreende a pergunta, se responde mal, se responde mente um objeto de opressão e de manipulação. As massas não têm
bem demais, se ele próprio faz perguntas, é bem entendido apenas que ser liberadas e não podem sê-lo. Toda a sua força (transpolíti-
uma forma de inadaptação ao dispositivo analítico..Poruma aber- ca) consiste em estar ali como objeto puro, isto é, opor seu silên-
ração fantástica, a ciência sempre acredita na cumplicidade de seu cio, sua ausência de desejo a qualquer veleidade política de fazê-
objeto! Ela subestima seus vícios, a zombaria, a impertinência, a las falar. Todo mundo tenta seduzi-las, solicitá-las, investir nelas.
falsa cumplicidade, tudo que pode ironizar os processos, tudo que Átonas, amorfas, abissais, elas exercemuma soberania passiva, opa-
alimenta a estratégia original do objeto, eventualmente vitoriosa, ca, não dizem nada, mas sutilmente, como os animais em sua indi-
oposta à do sujeito. ferença animal (apesar de as massas serem de essência hormonal
Se tomarmos as pesquisas nesse sentido, veremos que elas fun- ou endócrina, são anticorpos), elas neutralizam toda a cena e o dis-
cionam exatamente ao contrário de seu pretenso objetivo. Elas fun- curso político. Se estes parecem hoje tão vazios, se nenhum desa-
cionam como espetáculo da informação (a informação é como a fio, nenhum projeto, pode mais comover a cena política, que fica
revolução: o povo só quer seu espetáculo), portanto como ironia abandonada à dramatização artificial e aos efeitos de poder inú-
da informação - mas principalmente elas funcionam como iro- til, isto é devido à obscenidade maciça desse enorme anticorpo si-
nia do político e da classe política. lencioso; isto é devido à retratilidade dessa' 'coisa" inominável que
O humor involuntário das pesquisas (eo prazer malicioso que tem o poder bestial, absurdo, de sucção, de absorção, dos mons-
temos com essa fantasmagoria "científica'') vem do fato de que elas tros de ficção científica, que efetivamente alimenta sua inércia com
apagam qualquer credibilidade política. Quem são esses homens toda a energia de aceleração do sistema, da miríade de informações
que precisam de sondagens para decidir, para quem os testes subs- que secreta para tentar exorcizar essa inércia e essa ausência. Não
tituem a estratégia? Eles são despojados de qualquer iniciativa e há nada a fazer: a massa é um objeto puro, isto é, o que desapare-
isso pelo próprio meio a que confiam seu poder. Todos os meios ceu no horizonte do sujeito, o que desaparece no horizonte da his-
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tória - como o silêncio é o objeto puro que desaparece no hori- tamente contraditórias e que o sujeito fica inteiramente alienado
zonte da palavra, como o segredo é o objeto puro que desaparece em sua soberania. Há uma distorção de princípio entre essa esfe-
todos os dias no horizonte do sentido. ra, a da informação, e a lei moral que sempre nos domina e diz: vo-
Potência espantosa do objeto-massa. As massas encarnam o cê saberá quais serão sua vontade e seu desejo. Nesse aspecto, os
objeto puro do político, isto é, o ideal de um poder absoluto, de um meios de comunicação, assim como as técnicas e as ciências, não
poder de morte sobre o corpo social, elas são a encarnação de um nos ensinam nada, ao contrário, eles recuaram os confins da von-
sonho aterrador de poder - e ao mesmo tempo são seu objeto va- tade e da representação, eles embaralharam as cartas e tiraram de
zio, a materialização nula, o anticorpo radical, inacessível a qual- todo sujeito a disposição do próprio corpo, de próprio desejo, de
quer subjetividade política e, portanto, perfeitamente inútil e pe- sua escolha e liberdade.
rigoso. O cenário do político se inverte: nãoé mais o poder que ar- Porém, essa idéia de alienação foi só uma perspectiva ideal de
rasta a massa em seu rastro, é a massa que arrasta o poder em sua filósofo para uso das massas hipotéticas. Ela sempre expressou ape-
queda. Assim, os homens políticos, com intenção de seduzir as mas- nas a alienação do próprio filósofo, isto é, daquele que se pensa
sas, fariam bem em se perguntar se não se fazem canibalizar de volta outro. Sobre isso, Hegel é bem claro em seu julgamento sobre o
e se não pagam seu simulacro de poder com o risco de serem devo- Aufklãrer; sobre o filósofo das Luzes, aquele que denuncia o "Im-
rados, como o macho pela fêmea após o acasalamento. pério do erro" e o despreza.
Tudo que um dia constituiu um objeto para um sujeito repre- Portanto, basta inverter a idéia de uma massa alienada pelos
senta para este uma virtual ameaça de morte. Assim como o escra- meios de comunicação, para avaliar quanto todo seu universo, e tal-
vo não aceita sua escravidão, o objeto não aceita sua objetividade vez mesmo todo o universo técnico, é resultado de uma estratégia
forçada. O sujeito pode ter dele apenas um domínio imaginário, secreta dessa massa pretensamente alienada, de umaforma secre-
em todo caso efêmero, mas não escapará a essa rebelião do objeto ta de recusa da vontade, de um desafio in-voluntário a tudo que
- única revolução de agora em diante, mas revolução silenciosa. era exigido do sujeito pela filosofia e pela moral, isto é, a todo exer-
Portanto, ela não será simbólica, brilhante e subjetiva, mas obs- cício da vontade, do saber e da liberdade.
cura e irônica. Ela não será dialética, será fatal. Contra a sedução Em outras palavras, seria não mais uma revolução, e sim uma
de todo objeto despojado de seu sentido, contra a possibilidade para devolução maciça, uma delegação maciça do poder e da respon-
qualquer objeto de ser objeto de sedução e de terror, todas as es- sabilidade a aparelhos políticos e intelectuais, técnicos e operacio-
tratégias serão boas. nais. De-volição maciça, renúncia maciça à vontade. Não por alie-
Toda informação, a atividade incessante dos meios de comu- nação ou servidão voluntária (cujo mistério permaneceu intacto
nicação, a massa de mensagens, só visam conjurar essa contami- desde os tempos de La Boétie, assim que o problema foi colocado
nação mortal. A energia informática, mediática, comunicacional em termos de consentimento do sujeito na própria servidão, em ter-
despendida hoje, só tem por objetivo arrancar uma parcela de sen- mos de renúncia do sujeito ao próprio ser, mas justamente existi-
tido, uma parcela de vida a esse anticorpo frio e indiferente, a essa ria um?), e sim por outra filosofia soberana da involição, uma es-
massa silenciosa cuja atração aumenta. É preciso coligar todas as pécie de antimetafísica cujo segredo é que as massas (ou o homem)
forças centrífugas para escapar a essa força de inércia. Na realida- sabem profundamente que não têm que se pronunciar sobre si mes-
de, atualmente, a informação só teria esse sentido. mas e o mundo, que não têm que querer, que não têm que desejar.
O mais profundo desejo é talvez entregar seu desejo a alguém. Es-
tratégia de desilusões, do "próprio" desejo, de desilusão da "pró-
Existe e sempre existirá alguma dificuldade maior de analisar pria" vontade, estratégia de investimento irônico, estratégia de ex-
os meios de comunicação e a esfera de informação pelas catego- pulsão para os outros da injunção filosófica, moral e política.
rias tradicionais da filosofia do sujeito: vontade, representação, es- Os intelectuais estão aí para isso, os donos do conceito e do
colha, liberdade, saber e desejo. POIS é visível que elas são com ple- desejo. Toda publicidade, toda informação, toda classe política estão
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aí para nos dizer o que queremos, para dizer às massas o que elas dência oferecendo-lhes seu espetáculo, como brinde. Vicarious: este
querem - e no fundo nós assumimos alegremente essa transferência seria, para retomar o conceito de Veblen, o estatuto dessas classes
maciça da responsabilidade porque simplesmente não é evidente "privilegiadas", cuja vontade seria desviada, sem que o vissem, para
nem interessante saber, querer, poder, desejar. Quem nos impôs isso as finalidades secretas das próprias massas que elas desprezam.
senão os filósofos? Todos nós vivemos isso, subjetivamente, de modo paradoxal,
A escolha é um imperativo ignóbil. Qualquer filosofia que su- já que em nós essa massa coexiste com o ser inteligente e volunta-
jeite o homem ao exercício de sua vontade só pode mergulhá-lo no rioso que a condena e despreza. Ninguém sabe realmente o que se
desespero. Porque se não há nada mais lisonjeiro para a consciên- opõe à consciência, senão esse inconsciente de recalque que a psi-
cia do que saber o que ela quer, em compensação nada há de mais canálise nos impôs. Mas nosso verdadeiro inconsciente está talvez
atraente para outra consciência (o inconsciente?), a que é obscura nessa potência irônica da renúncia, do não-desejo ao contrário, do
não saber de silêncio, de absorção de todos os poderes, de expul-
e vital, que faz a felicidade depender do desespero da vontade, na-
são de todos os poderes, de todas as vontades, de todas as luzes,
da é mais fascinante para esta do que não saber o que ela quer, de
de todas as profundidades do sentido sobre as instâncias assim au-
estar liberada da escolha e desviada da própria vontade objetiva.
reoladas por uma luz ridícula. Nosso inconsciente não seria feito
É melhor confiar em alguma veleidade insignificante do que ficar de pulsões próprias, destinadas à triste sina do recalque, elenão seria
suspenso na própria vontade ou na necessidade de escolher. Para absolutamente recalcado, ele seria feito dessa expulsão alegre de
isso, Brummel tinha um empregado. Diante de uma passagem es- todas as superestruturas estorvantes do ser e da vontade.
plêndida, constelada de lagos, elese voltava para seu mordomo para Sempre tivemos uma visão triste das massas (alienadas), uma
lhe perguntar: "Which lake do I prefer?" visão triste do inconsciente (recalcado). Sobre toda nossa filoso-
Além de as pessoas certamente não desejarem que lhes digam fia pesa essa triste correlação. Só para mudar, seria interessante con-
o que elas querem, elas não desejam nem mesmo sabê-lo e nem é ceber a massa, o objeto-massa, como detentora de uma estratégia
certo que desejem querer. Diante de tal solicitação, é seu gênio ma- delusiva, ilusiva, alusiva, correlativa de um inconsciente finalmente
ligno que, no fundo, lhes sopra para confiar ao aparelho publici- irônico, alegre e sedutor.
tário ou de informação o trabalho de "persuadi-los", de lhes fa-
bricar uma escolha (ou à classe política o trabalho de instruir as
coisas) - assim como Brummel com seu mordomo.
Sobre quem se fecha a armadilha?
o GÊNIO MALIGNO DA PAIXÃO
Do amor podemos dizer tudo, não sabemos o que dizer. O amor
A massa sabe que não sabe nada, e não tem vontade de saber. existe, ponto final. Amamos nossa mãe, Deus, a natureza, uma mu-
A massa sabe que não pode nada, e não tem vontade de poder. lher, os passarinhos, as flores: essa palavra, que se tornou o leit-
Reprovam-lhe violentamente essa marca de estupidez ede passivi- motiv de nossa cultura basicamente sentimental, é a mais patética
dade. Mas não é nada disso: a massa é muito esnobe, ela faz como de nossa língua, mas também a mais difusa, a mais vaga, a mais
Brummel e delega soberanamente a faculdade de escolher a um ou- ininteligível. Em comparação ao estado cristalino da sedução, o
tro, por uma espécie de jogo de irresponsabilidade, de desafio irô- amor é uma solução líquida, talvez uma solução gasosa. Tudo no
nico, de involição soberana, de astúcia secreta. Todos os mediado- amor é solúvel, tudo é solúvel pelo amor. Resolução, dissolução de
res (políticos, intelectuais, herdeiros dos filósofos das Luzes na con- todas as coisas numa harmonia apaixonada ou numa libido sub-
tenção das massas) só serviriam realmente para isso : gerir por de- conjugal, o amor é uma espécie de resposta universal, a esperança
legação, por procuração, essa tarefa enfadonha do poder e da von- de uma convivência ideal, a virtualidade de um mundo de relações
tade, para o grande prazer das massas, dispensá-las dessa transcen- fusionais. O ódio separa, o amor reúne. Eros é aquele que liga, que
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casa, que conjuga, que fomenta as associações, as projeções, as iden- um universo impossível. Qualquer veleidade em dar à sedução ou-
tificações. "Amai-vos uns aos outros." Quem poderia dizer: tras letras de nobreza, esbarra nos mecanismos de sublimação e de
"Seduzi-vos uns aos outros"? idealização que são os do amor.
Eu prefiro a forma de sedução, que mantém a hipótese de um A sedução não está ligada ao sentimentos e sim à fragilidade
duelo enigmático, de uma solicitação ou de uma atração violenta, das aparências, ela não tem modelo e não busca nenhuma forma
que não é a forma de uma resposta mas de um desafio, de uma dis- de salvação - portanto, ela é imoral. Ela não obedece a uma mo-
tância secreta e de um perpétuo antagonismo, que permite o jogo ral de substituição, ela é da espécie do pacto, do desafio e da alian-
de uma regra - prefiro essa forma e seu palhas da distância à do ça, que não são formas universais e naturais e sim formas artifi-
amor e de sua abordagem patética. Eu prefiro a forma dual da se- ciais e iniciáticas. Portanto, ela é francamente perversa.
dução à forma universal do amor. (Heráclito: é o antagonismo dos A coisa se complica ainda mais com o jogo das palavras. Co-
elementos, dos seres e dos deuses que faz o jogo do devir, sem flui- mo nem o amor nem a sedução são noções precisas (elas não têm
do universal, sem confusão amorosa, os deuses se enfrentam e se lugar nos grandes sistemas conceituais, nem na psicanálise), elas
seduzem; o amor, quando for trazido pelo cristianismo como prin- podem facilmente se alternar ou se confundir. Assim, se conside-
cípio da criação, acabará com esse grande jogo.) rarmos a: sedução um desafio, um jogo em que os jogos nunca es-
Por isso é possível falar da sedução: porque ela é uma forma tão feitos, uma troca ritual ininterrupta, uma escalada infinita, uma
dual e inteligível, enquanto a amor é uma forma universal e ininte- cumplicidade secreta, etc., podemos sempre contestar: "Porém, de-
ligível.Talvezsomente a sedução seja uma forma, enquanto o amor finida assim, a sedução não seria simplesmente o amor?"
é apenas uma metáfora difusa, de uma queda dos seres na indivi - Podemos até inverter a relação e fazer do amor algo de mais
duação, e invenção em compensação de uma força universal que contundente, mais desafiante do que a sedução. O amor só é' 'rea-
inclinaria os seres uns para os outros - por que efeito providen- lização", se o concebermos de maneira, digamos, narcísica: amo
cial, por que milagre da vontade, por que golpe teatral, os seres es- o outro porque ele é parecido comigo, portanto eu me duplico -
tariam destinados a se amarem, por que imaginação louca pode- amo o outro porque ele é o contrário de mim, portanto eu me com-
mos conceber que: "Eu te amo", que as pessoas se amam, que nós pleto. Mas podemos conceber o amor como gratuidade, como im-
nos amamos? .. Há nisso uma projeção desvairada de um princí- pulso para o outro que não espera resposta, como desafio que in-
pio universal de atração e de equilíbrio que é pura fantasmagoria. cita o outro a me amar mais do que eu o amo, portanto escalada
Fantasmagoria subjetiva, paixão moderna por excelência. indefinida. Enquanto a sedução sempre pode ser considerada tam-
Onde não mais existe jogo nem regra, é preciso inventar uma bém um jogo finito, uma tática que tenta manipular o outro para
lei e um sentimento, um modo de efusão universal, uma forma de os próprios fins.
salvação que supere a divisão dos corpos e das almas, que acabe Não há nada a dizer contra essa inversão dos termos. Sedu-
com o ódio, com a predestinação, com a discriminação, com o des- ção e amor podem trocar suas mais sublimes e mais vulgares acep-
tino: esse é o nosso evangelho da sentimentalidade, que realmente ções, o que torna quase impossível falar delas. Ainda mais que es-
acaba com a sedução como destino. tamos hoje invadidos por um revival do discurso amoroso, uma rea-
tivação do sentimento por tédio, por saturação. Um efeito de si-
mulação amorosa. O amor louco, o amor paixão estão realmente
Essa elevação do amor a uma excelência do direito divino, a mortos em seu movimento heróico e sublime. O que está em jogo
uma forma ética de realização universal (o amor serve ainda e em hoje, é uma demanda de amor, de sentimento, de paixão, nU!TIa épo-
toda a parte de justificativa moral para a felicidade), rejeitou a se- ca em que a necessidade se faz cruelmente mais intensa. E toda a
dução para uma zona vagamente imoral, vagamente perversa, uma geração que passou pela liberação do desejoe do prazer, é essa ge-
forma de jogo preliminar ao amor. O amor permanece a única fi- ração cansada de sexo que reinventa o amor como suplemento afe-
nalidade séria ou sublime, a única absolvição possível de tivo ou passional. Outras gerações, românticas ou pós-românticas,
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viveram-no como paixão, como destino. A nossa é apenas mou nasceu essencialmente entre o século XVIII e o século XIX,
neo-romântica. contra o jogo superficial da sedução. ~ .ruptura se ~ez ~ntre uma
Depois de tanto pathos sexual, eisa neopatética da relação amo- forma de jogo dual e de ilusão estratégica e uma finalidade no-
rosa. Depois do libidinal e do pulsional, eis o neo-romantismo da va individual de realização de desejo - o grande acontecimen-
paixão. Mas não se trata mais de predestinação nem de fatalidade, to 'era da constelação do desejo, seja sexual e psíquico, do indiví-
trata-se apenas de liberar uma potencialidade entre outras, e após duo, ou o desejo político das massas. O que quer 9ue seja quan-
uma fase tão longa de "dessublimação repressiva", como diria Mar- to a esse desejo e sua "liberação", ele não tem mais nada em co-
cuse, abrir um caminho para uma ressublimação progressiva. mum com o jogo aristocrático do desafio e da sedução.
O sexo, como aliás as relações de produção, era simples de- Outra coisa: a sedução é pagã, o amor é cristão. Foi Cristo
mais . Nunca é tarde para superar Freud e Marx. que começou a querer amar e ser amado.. A religião tornou-se
Portanto, existe uma espécie de amor que é apenas a nata sentimento sofrimento e amor, o que era Ignorado pelas cultu-
de uma cultura do sexo, e não devemos ter muitas ilusões quanto ras e mitol~gias arcaicas e antigas, para as quais a soberania do
a esse novo dispositivo do ambiente. As formas de simulação são mundo residia no jogo regrado dos sinais e das aparências, nos
reconhecíveis pelo fato de que nada se opõe entre elas - sexo, cerimoniais e nas metamorfoses, portanto, nos atos de sedução
amor, sedução, perversão, pomõ, todos podem coexistir na mes- por excelência. Nenhum sentimento nisso tudo, nenhum a~or,
ma fita libidinal como numa fita estéreo, sem exclusividade, com nada de um grande fluxo divino ou natural, nenhuma necessida-
a bênção da psicanálise. Concerto estereofônico: acrescenta-se de também de psicologia, dessa interioridade subjetiva em que
iria florescer o mito do amor. I
amor, paixão, sedução ao sexo, como acrescentaram a psicosso-
ciologia e o acordo na linha de montagem. Só o ritual existe e o ritual é ordem de sedução. O amor nasce
Essa situação é interessante como sintoma de esgotamento da destruição das formas rituais de sua lib~raçã~. Sua e~ergi.a
é uma energia de dissolução dessas formas, inclusive dos rituais
de toda uma constelação obscena da sexualidade (obscena não
pelo sexo em si 'mas pela obscenidade da verdade quando ela é mágicos de sedução do mundo (que se pr~lon~aram pelas ~ere­
dita e revelada). Nós chegamos ao final de um ciclo da sexuali- sias cristãs, nas formas de denegação maruque ístas ou rnaxrma-
dade como verdade. Isso torna novamente possível uma reversão listas do mundo real). Formas cruéis, rigorosas, do signo e!U seu
sobre as formas cujo perfil e encontro foram eclipsados pela pers- funcionamento puro, oposto à realidade do mundo, domímo das
pectiva hegemônica do sexo. aparências puras, sem psicologia, sem sentimento, sem amor. In-
tensidade máxima dessas culturas onde nasceram o amor e toda
a sua metafísica, como por decomposição, efusão de ~orma~ até
então secretas, iniciáticas, ciumentas de si mesmas, intensivas,
Reencontrar uma espécie de distinção, de hierarquia de to-
das as figuras, sedução, amor, paixão, desejo, sexo, é certamente quando o amor é en~rgia l?rosel~ti.ca, irradiante: extensl\~.a - exo-
térica, enquanto o ritual e esotenco. O amor e expressao, calor,
uma aposta absurda, mas é a única que nos resta. Em nossa cul-
confissão comunicação, portanto passagem da energia de um es-
tura, a sedução conheceu uma espécie de idade de ouro, que vai
tágio pot~ncial, concentrado, para um estági<;> liberado, irradiante,
do Renascimento ao século XIII: ela era então como a polidez
calórico e por isso também um estado endêmico e degradado. Por-
ou a etiqueta da corte, uma forma convencional, aristocrática,
tanto ele seria o fermento de uma religião popular, democrática,
um jogo estratégico sem muita relação com o amor. Este tem,
em oposição às ordens hieráticas e aristocráticas, regidas pela regra.
para nós, tonalidades diferentes, anteriores, românticas e roma-
nescas: não é mais um jogo nem um cerimonial, é uma paixão,
é um discurso. É a força do desejo que nos arrasta, é a morte 1 Mas se tomarmos a sedução na acepção cristã tudo muda: a seduç~~ começa com. o
que nos chama. Nada a ver com a sedução. É claro que o cristianismo ela é o maleficio diabólico que vem quebrar a ordem divina - ? u entao
amor conheceu também as formas corteses, na cultura mediter- ela é o próprio Cristo; segundo Nietzsche, o Cristo veio seduzir as pesso.as a sua I.m.agem,
pervert ê-las pela psicologia e pelo amor. Inversament~, nenhum~ sed u ção n.a ~recJa, on-
rânea do século XIII. Mas para nós, o sentido que ele to- de o amor era homossexual e pedagógico - uma virtude e nao uma pai xao.
92 AS ESTRATÉGIAS FATAIS AS ESTRATÉG IAS IRÔNI CAS '13

o amor é o fim da regra e o princípio da lei. É o princípio sobre um ser humano, qualquer que seja. Certamente é nisso que
de um desregramento, em que as coisas vão se ordenar conforme está a paixão: é que seu objeto é interiorizado como finalidade
o sentimento, o investimento afetivo, isto é, uma substãncia pe- ideal e sabemos que só há objeto ideal quando está morto.
sada, pesada de sentido, e não mais segundo o jogo dos signos,
substância mais leve, mais dútil, mais superficial. Deus amará
os seus, o que ele nunca havia feito, e o mundo não será mai s Em relação à sedução, o amor seria portanto uma forma mais
um jogo. Tudo isso é o que herdamos - e o amor é apenas a a mpla , uma soluçã o mai s esparsa e mesmo em via s de dissolu-
dissolução das regras e da energia liberada por essa fusão. Por- çã o. Mas uma dissolução patética, pelo menos em suas formas
tanto, a forma oposta ao amor continua sendo a observância: mai s eleva das, a s que criaram o romance, por exem plo. Esse re-
em qualquer parte em que uma regra e um jogo sejam inventa- levo patético iria de saparecer na peripécia ult erior, que seria sim-
dos, o amor desaparece. Em comparação com a intensidade re- plesm ente a da sexualidade. Esta é apenas um modo relacional
grada e altamente convencional do jogo ou da cerimônia o amor art iculado sob re a diferença " objetiva" do s sexos. A sedução ainda
é um dispositivo de energia de circulação livre. Portanto: ele está é cerimo nial, o a mo r a inda é patético, a sexua lidade é apenas re-
carregado de toda a ideologia da libertação e da livre circulação, lac io na l. De uma forma à outra, o va lo r do s signos se esgota em
ele é o pathos da modernidade. prov eito de um funcionam ento orgânico, energético e econômico,
baseado na m enor diferen ça possível, que é a diferença dos sexos .
Com efeito, é uma mistificação considerar a diferença se-
. ~ c~r~cterística de uma paixão uni versal como o amor é que xual a di feren ça original, fundamental, aquela de que as ou tras
ela e individual e que cada um está só nela. A sed ução é dual: decorre m ou são apenas metáforas. É ignorar qu e em todas as
eu não posso seduzir se já não estiver seduzido, ninguém pode épocas os homens produziram inten sidades diferen ciais bem maio-
me seduzir se já não estiver seduzido. Ninguém pode jogar sem res, por meio de di spositivos artificiais, do que a partir do corpo
o outro, é a regra fundamental. Enquanto eu posso amar sem e da biologia . Pelo menos, sempre consideraram as diferenças "na-
ser correspondido. Se amo sem ser amado, é problema meu. Se turais" um ca so particular das di feren ça s artificiais. Literalmen-
eu não te amo, o problema é teu. Se alguém não me agrada, o te, a di ferença sexua l é sem int eresse (o Yin e o Yang são outra
problema é dele. Por isso o ciúme é como uma dimensão natural coisa: sã o doi s pólos metafísicos entre os quais atuam as ten sõe s
do amor, enquanto é estranho à sed ução - o laço afetivo nunca q ue organizam o mundo). Em certas culturas, as diferenças guer-
é seguro, enquanto o pacto so bre os signos é sem ambigüidade reiro/ nã o-g uerreiro, brâmane/não br âmane pesam muito mais do
e sem recurso. Além disso, sed uzir alguém não é investi -lo nem que a diferença sexua l: elas produzem mais ene rgia diferencial,
ab sorvê-lo psicologicamente, a sed ução não conhece esse ciúme elas organiza m as coisas com maior rigor e complexidad e. Em
territorial como é o do amor. to das as cult uras exceto a no ssa, a di stin ção do morto e do vivo,
Não digo que o amor seja apenas ciúme, mas sempre entra do nobre e do ignóbil, do iniciado e do não-iniciado, é muito mais
nele um ciúme bem temperado, algo de exclusivo, uma reivindi- forte do qu e a distinção do s sexos. Na realidade, em sua evidên-
cação subj etiva. Talvez ele seja at é anterior ao amor: uma pai - cia biológica e pretens iosa, a sexua lidade marca a diferença mais
xã o primordial, como havia entre os deuses gregos que não co- fraca e mai s pobre, aquela em que as outras vêm se perder.
nheciam nem o amor nem a sentimentalidade, mas já eram for - Qu alquer prin cípio naturalista de diferen ciação é inevitavel-
midavelmente ciumentos un s dos outros. men te mai s pobre, está lon ge de resultar, co mo o poderoso arti-
Amar alguém é isolá-lo do mundo, é apagar seus vestígios, fício do s signos, numa org anizaç ão minuciosa , numa cerim ônia
~ destituí-lo de sua so mbra, arrastá-lo para um futuro mortal. do mundo.
E girar a sua volta como um astro morto e absorvê-lo numa luz - A sed ução é a era de um a di ferenciação estética e ceri-
negra. Tudo se passa numa exorbitante exigência de exclusividade mon ial entre os sexos;
94 AS EST RATÉG IAS fATAIS AS EST RATÉ GIAS IRÔNI CA S 95

- O amor (a paixão) é a era de uma diferença moral e pa- logo se torna, na obscenidade de nossa cultura, a expressão for-
tética entre os sexos; ça da da verdade, a confissão forçada, o extravasamento força-
- A sexualidade é a era de uma diferença psicológica, bio- do ... de quê, aliás? De nada - justamente, não há nada a revelar.
lógica e política entre os sexos. De onde pode vir a idéia louca de poder revelar o segredo,
Por isso é que a sedução é mais inteligível do que o amor: expor a substância nua, tocar na obscenidade radical? Até isso
porque ela atua numa forma mais elevada, a forma dual, forma é uma utopia - não existe o real, nunca existiu o real - isso
diferencial perfeita. De todas as formas diferenciais, o sexo é a a sedução sabe e preserva o enigma. Todas as outras formas, e
que mais se aproxima da indiferenciação. Quanto ao amor, a ca-
particularmente o amor, são tagarelas e prolixas. Elas dizem de -
da vez ele se vê ocupando um lugar intermediário no espectro
mais, elas querem dizer demais. O amor fala muito, é um discur-
das figuras: dos confins da sedução aos confins do sexo. Ele des-
so. Ele se declara e culmina muitas vezes nessa declaração onde
creve esse universo que vai de uma forma pura da diferença a uma
ele acaba. Ato de linguagem altamente ambíguo, quase indecen-
forma pura da indiferenciação - mas não tem forma própria
e, como tal, é indescritível. Não é a figura dual da sedução que te, essas coisas não se dizem. Como podemos dizer a alguém: "Eu
é misteriosa, mas antes a figura individual do sujeito invadido te amo", elas são muito frágeis para serem fechadas num enun-
pelo próprio desejo ou em busca da própria imagem . ciado - a menos que só vivam de seu enunciado, e nesse caso
O destino também se impõe com evidência fulgurante - é elas não têm nenhum segredo. Essas coisas só vivem por seu si-
o não-d estino que deve ser explicado. Aliás, é só o que podemos lêncio ou sua anti frase: "Eu não te amo", ou ainda: "Eu não
fazer com ele: encontrar suas razões. Porque de algum lugar, pro- te falo mais", frases ainda carregadas do desafio e do suspense
fundam ente, como da banalidade do amor, não há nada a di zer. da sedução, iminência do amor, mas que guarda ainda, pela re-
cusa de sua confissão, pela graça de sua denegação, uma quali-
dade de jogo, a leveza do engano.
A sed ução não é misteriosa, ela é enigmática. Felizmente, aliás: "Eu te amo" não quer di zer o que fiz, e
O enigma, como o segred o, não é o ininteligível. Ao co ntrá - é preciso entendê-lo de outra maneira. No modo sedutivo (todos '
rio, ele é plenamente inteligível, ma s não pode ser dito ou revela- os verbos têm um modo secreto: por trás do indicativo e do im-
do. A ssim é a sed ução, evid ência inexplicável. A ssim é o jogo: perativo, o sedutivo) . A sed uçã o é uma modalidade para qual-
no ce nt ro de qualquer jogo existe uma regra fundamental e se- q ue r di scurso inclusive o discurso de amor (pelo menos, espere-
creta : um enigma - no enta nto, o processo inteiro não é m iste- m os isso), o que faz com que ele jogue com sua enunciação e
rios o, nada de mais inteligível do que o desenvolvimento do jogo. to q ue o outro no avesso de seu enunciado. A ssim, "Eu te amo':
Já o am o r ca rrega todos os mi stérios do mundo, ma s não não é feito para dizer que alguém o ama, mas para seduzi-lo. E
é en igm á tico. Ao contrário, ele é ca rregado de sentido, sendo d a uma proposta que oscila sobre as duas vertentes e que guarda as-
es pécie, não do enigma, mas da so lução. " A chave do enigma sim o charme insolúvel da aparência, do que não tem sentido e,
é o amor", ou mais brutalmente: "A verdade de tudo isso é o portanto, a que é completamente inútil e imprudente dar algum
sexo." (Verdade milagrosamente revelada no século XX, a pro- crédito. Acreditar em "Eu te amo" acaba com tudo, inclusive com
pósito, por quê? Não acreditem: o enigma permanece int eiro e o amor, já que é dar sentido àquilo que não tem.
gua rda toda a força de sed ução.) Isso no melhor do s ca so s, quando a ambigüidade ainda re-
De uma figura a outra, da sedução ao amor, depois do de- ge o di scurso. No caso da demanda sexua l, não há mai s vestí gio
sej o e à sexua lid ade, finalmente ao puro e simples porn ô, mais da ambigüidade. Ali tudo é significad o, tudo é dito, não há se-
avançamos, mais vamos no sentid o de um segred o menor, de um gred o da demanda, tudo está em sua expressão. Se ela é certa-
enigm a menor e mais vamos no sentido da confissão, da expres- m ente a confissão do desejo, então basta encontrar o s termos da
sã o, da revelação, do extravasamento - enfim, da verdade - que co n fissão, o jogo da s aparências é inútil. E o mesmo "Eu te amo"
96 AS ESTRA1ÉGIAS FATAIS AS ESTRATÉGIAS IRÔNICAS 97

tem outra significação: não é mais sedutivo, é apenas um optati- mos o risco de nos enganar. Talvez em sua histeria, ela solicite
vo desesperado: "Peço para te amar", "Peço que me ames". simplesmente ser desmentida, recusada, desiludida e que respon-
Podemos concordar com Lacan : não existe relação sexual, damos que não é assim que acontece. Como qualquer discurso
não existe verdade do sexo. Ou o "Eu te amo", ou o "Eu te dese- só é proferido na esperança de ser negado e exorcizado, assim
jo" dizem coisa bem diferente: a sedução, ou então só expres- a demanda pode fingir ser confissão do desejo, apelo à solicitu-
sam uma demanda de amor, uma demanda de desejo - nunca de do outro, para lhe preparar uma armadilha, para enganá-lo
o próprio amor ou o próprio sexo. Portanto, é sempre um en- e portanto para seduzi-lo.
contro falhado e a sexualidade, como diz Lacan, é apenas a his- Se, no fundo, a demanda é isso, se ela é também isso, então
tória desse encontro falhado. Mas essa não é a última palavra, o erro seria responder a ela. É por isso que não temos vontade
pois a espiral mais sutil da sedução nos descreve não a história de responder à demanda (ame-me, seduza-me, faça-me gozar),
mas o jogo desse encontro falhado, e que outro prazer ela sabe enquanto a resposta a um desafio ou à sedução é espontânea.
tirar dessa encantadora e absurda diferença que a natureza pôs Mas se a ambivalência da demanda esconde algo como uma ten-
entre os sexos. tativa de sedução, então, a melhor maneira de lhe responder é
pela sedução.
Assim, todas as formas terminam por girar sobre si mesmas
Portanto, o que era desafio e sedução acaba em solicitude. - giro da chama da reversibilidade - o que mostra a dificulda-
Sexo, desejo, afeto como solicitude. Seduza-me, ame-me, faça- de de falar sobre esse assunto. Mas não é mais a dificuldade de
me gozar, ocupe-se comigo. Traço característico e obsessivo, que não poder falar porque não há nada a dizer, é a que surge da
pode ir até uma demanda quase fetal de amor (as estratégias fe- revanche da ordem reversível sobre a ordem linear do discurso.
tais). Há dois ou três séculos em nossa cultura, existe uma su- É uma dificuldade que felizmente nunca dominamos, enquanto .
perdeterminação de todas as formas de amor (inclusive o da na- sempre podemos falar quando não há nada a dizer.
tureza) pelo amor materno e a sentimentalidade decorrente dele.
Somente a sedução escapa porque não é uma demanda mas um
desafio - ela se opôe como o dual pode se opor ao fusional. O amor nunca foi mais belo do que nas lendas e nos roman-
Esse tipo de amor é apenas uma espécie de libido flutuante, ces. Essa paixão misteriosa teria produzido a forma romanesca,
que se ventila um pouco em toda a parte e tenta desesperada- ou seria o inverso? Questão insolúvel. Mas principalmente: exis-
.mente investir seu ambiente, segundo uma economia que não é tiria um movimento próprio do amor?
mais a dos sistemas passionais, mas dos subsistemas de intensi- Tristão e Isolda. A história mais sublime, a do amor fatal.
dade, dos sistemas frios e desapaixonados. Libido ecológica, pro- Mesmo assim é notável que nessa maravilhosa história o amor
duto específico de nossa época: espalhado por toda parte em doses não desperte nem viva por si só: ele precisa de um filtro mágico.
homeopáticas e homeostáticas, é o diferencial mínimo de afeto Não é alguma forma espontânea de desejo que os reúne, nada
que basta para alimentar a demanda social e psicológica. Flu- disso: essa predestinação violenta é artificial, tendo em vista que
tuante, pode ser drenada, derivada, magnetizada de um nicho a é um pacto fictício, acidental e inelutável e não um movimento
outro segundo os fluxos: corresponde idealmente a uma ordem natural da alma. O destino é sempre mágico, ele sempre passa
de manipulação. pela ilusão trágica dos signos. Aqui o filtro (que não deveríamos
Assim, a energia de dissolução da sedução passa pela ordem interpretar psicologicamente como "metáfora da paixão") é o
passional do amor e acaba na ordem aleatória da demanda. signo da irrupção desse efeito mágico. Essa paixão inteira é um
Felizmente há um retorno da chama que corrige tudo o que desafio à existência de direito divino: sabemos que os dois amantes
acabo de dizer sobre a demanda. Pois, respondendo nos termos foram julgados sacrílegos. O filtro que compartilharam era ím-
em que ela se coloca onde talvez aparente se colocar - corre- pio, selando um pacto de sedução e de predestinação completa-
98 AS EST RATÉG IAS FATAIS AS EST RATÉGIAS IRÔNICAS 'N

mente contrário às leis do amor de direito divino, em que os sig- O sexo e o amor quando tomam a forma secular de econo-
nos são trocados em sua forma idealizada. mia doméstica podem perfeitamente ser negociados numa troca.
Sempre retornamos a esse ponto: o amor não existe. Ele de- Assim que deixamos a forma sublime do destino, caímos na for-
veria poder existir, mas não existe. Os amantes da época român- ma subliminar da troca. Aqui todas as compensações e substi-
tica não tiveram outra solução senão se suicidarem juntos para tuições são possíveis: você me dá sexo, eu lhe dou amor.
absolutizar uma troca impossível. O sublime do amor está na an - Em tudo que é troca, existe a possibilidade de negociação.
tecipação da própria morte. O amor-paixão só con segue se reali- Mas não na sedução, que justamente não é uma troca mas um
zar nessa vertigem antierótica, antinatural, qu e nunca foi uma desafio. Na sedução não pode haver equilíbrio, otimização das
maneira de viver. Nada em comum com nosso modo de vida amo- relações de troca, difíceis mas sempre possíveis no nível do sexo.
roso, encontro ideal de dois desejos e dois pra zeres. Por isso a única desprivação realmente mortal é a da sedução.
Aliás, quem sabe se essa forma de amor banalizada e qu e Aliá s, esse é o sentido dessa história, pois o casal, por trás
se tornou uma forma de troca (afetiva e sexual) não foi inventa- de seu rancor, só faz denunciar essa possibilidade da troca bila-
da para escapar à fatalidade da outra? tera l. O que eles querem é a sedução!
Produzir a troca, e os sinais da troca, é a única maneira de Aliá s, o que uma mulher nunca nos perdoa não é que não
escapar ao destino e aos signos absurdos. Nenhum filtro, nenhum a amemos (com o amor ou o sexo sempre nos arranjamos) mas
desafio. Só afeto e ternura. É assim que a vida se defende contra não tê-la seduzido ou que ela não nos tenha seduzido. Somente
as formas mortíferas do artifício e do sacrifício. Contra a sedu - isso é inexpiável, e não importa o amor ou a ternura que tenha-
ção, seja da morte ou do próprio amor, quando, pela maneira mos por ela, ela terminará sempre por se vingar cruelmente. Não
de viver e de amar, ele se torna uma frivolidade assassina que pode ndo nos seduzir, ela tentará nos aniquilar. Todos os peca-
nos desvia de nossa finalidade. dos do sexo ou do amor podem ser absolvidos, pois eles não são
Entre as frivolidades essenciais, figura a do uso arbitrário uma ofensa. Som ente a sedução toca o fundo da alma que só
do prazer e do desprazer - o destino. Esse uso é reservado so- encontra repouso no assassinato.
mente a Deus. Entre as frivolidades secundárias figura a de amar Daí vem o qu e chama rei de gênio maligno da paixão.
e ser amado. Esta é deixada aos humanos - con stelação patéti- No centro dos movimentos mais passionais, mais belos e mais
ca de humores, de desejos e de rostos . desesperados, existe esse gênio maligno que tenta apanhar o ou-
A maioria não quer ser seduzida, prefere ser amada . Prefe- tro na armadilha.
re a prova pelo afeto, pelo prazer ou pela domesticidade. Talvez Mesma tentação diabólica, no momento mais ingênuo e mais
seja necessário exigir ser amado por medo de ser seduzido, cer- desa rvorado do amor, de conjurá-lo ironicamente por um ato
tamente é necessário amar para não mais seduzir. pervers o.
Amar é uma espécie de incesto psicológico, de aproximação Existe algo mais forte do que a paixão: a ilusão. Mais forte
patética contra o jogo cruel da sedução. do que o sexo ou a felicidade: a paixão da ilusão. Seduzir, sedu-
zir sempre. Frustrar o poder erótico pelo poder imperativo do
jogo e do estratagema - preparar as armadilhas na própria ver-
No fundo, em lugar algum o amor teve movim ento próprio tigem e mesmo no sétimo céu guardar o domínio dos caminhos
(eppure si muovel). Ou ele se anula na ordem do desa fio e do irô nicos do inferno - esta é a sedução, esta é a forma da ilusão,
destino. Ou ele se anula na forma da troca e da demanda . Como este é o gênio maligno da paixão.
nessa história em que um casal discute. A mulher lança ao mari -
do: "You give me love because you want sex! " (Vocême dá amor
porque quer sexo!) E o homem responde: "You give me sex be-
cause you want love!" (Você me dá sexo porque quer amor!).
o OBJETO E SEU DESTINO
101

Por que privilegiar a posição do sujeito, por que manter es-


sa ficção de uma vontade, de uma consciência senão de um in-
o OBJETO E SEU DESTINO consciente do sujeito? É que este tem uma economia e uma his-
tória, o que é tranqüilizador, ele é o equilíbrio de uma .vo ntade
e de um universo, de uma pulsão e de um objeto, ele é o princí-
pio de equilíbrio do mundo e, novamente, isso é muito tranqüili-
SUPREMACIA DO ORJETO zador, pOIS então ele não está abandonado ao universo múltiplo,
monstruoso e fascinante, ao universo cruel e aleatório da sedu-
ção vinda de outra parte, ele não é nem o objeto nem a pre sa
"O sujeito pode ap~nas desejar, só o objeto pode seduzir." de t.odas as formas vizinhas, mortas ou vivas, nem invadido pe-
las mcessantes seduções. Esse sujeito foi bem protegido: ele es-
tará ali no princípio, com suas pulsões, com seu desejo, com sua
Todos nós sempre vivemos do esplendor do sujeito e da miséria vontade, em seu castelo, milagrosamente armado para não ser
do objeto. É o sujeito que faz a história, é ele que totaliza o mun- mais o objeto do que quer que seja.
do. Sujeito individual ou sujeito coletivo, sujeito da consciência O questionamento do sujeito não mudou muita coisa no pos-
ou sujeito do inconsciente, o ideal de qualquer metafísica é um tulado m.e~físico de sua preeminência: intimado a pôr em jogo,
mundo-sujeito, o objeto é apenas uma peripécia no caminho real como sujetto, sua fraqueza, sua fragilidade, sua feminilidade, sua
da subjetividade. mo~t~, intimado a ~e demitir como tal (não apenas o sujeito psi-
Que eu saiba, o destino de objeto não foi reivindicado por col ógico mas tambem o do poder e o do saber) o sujeito foi ape-
ninguém. Ele nem consegue ser inteligível como tal: é apenas a nas aprisionado no melodrama do próprio de saparecimento _
parte alienada, a parte maldita do sujeito. O objeto é difamado, ele está cansado de se desfazer, de se convulsionar nas próprias
obsceno, passivo, prostitutivo, ele é a encarnação do Mal, da alie - s
bases, de buscar um gentleman agreement com seu objeto, o
nação pura. Escravo, sua única promoção será entrar numa dia- mundo, que ele se gabava de dominar em proveito próprio. Dis-
lética do senhor e do escravo, em que vemos despontar, é claro, so só resulta uma confusão que hoje é refletida por todas as pe-
o novo evangelho, a promessa para o objeto de ser transfigurado ripécias de sua "liberação". Ora, o sujeito, a metafísica do sujei-
em sujeito. to, só era belo em seu orgulho, em sua arbitrariedade, em sua
Quem nunca pressentiu a potência própria, a potência so - vo nta de de potência inesgotável, em sua transcendência de su-
berana do objeto? Em nosso pensamento do desejo, o sujeito de- jeito do poder, de sujeito da história ou na dramaturgia da sua
tém um privilégio absoluto, já que é ele que deseja. Mas tudo alienação. Saindo disso, ele é apenas um despojo lamentável bri-
se inverte se passamos para um pensamento da sedução. Aqui gando com o próprio desejo ou a própria imagem, incapaz de
não é mais o sujeito que deseja, é o objeto que seduz. Tudo parte gerir uma representação coerente do universo e se sacrificando
do objeto e tudo a ele retoma, como tudo parte da sedução e inutilmente sobre o cadáver da história para tentar ressuscitá-la .
não do desejo. O privilégio imemorial do sujeito se inverte. Por- O sujeito não pode usar a própria fragilidade nem a pró-
que este é frágil, só podendo desejar, enquanto o objeto usa muito pria morte pela simples razão que ele foi inventado para se de -
bem a ausência de desejo. Ele seduz por essa ausência de desejo, fender delas, assim como das seduções, como as do destino, por
ele atua no outro pelo efeito do desejo, provocando-o ou exemplo, que o levariam a sua perda. Existe nisso uma contradi-
anulando-o, exaltando-o ou desiludindo-o - quiseram ou pre- ção insolúvel na perspectiva de sua economia. Portanto, hoje, a
feriram esquecer essa potência. posição do sujeito tornou-se simplesmente insustentável. Hoje,
102 AS ESfRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO \l1J

ninguém está em condições de se assumir como sujeito de poder, sênci~ Ade .desejo, isso é verdade para as massas, poderosas por
sujeito de saber, sujeito da história. E, aliás, ninguém mais o faz. seu SIlenCIO.
Ninguém mais assume esse papel incomensurável que começou O desejo não existe, o único desejo é ser o destino do outra
a cair no ridiculo com o universo da psicologia e da subjetivida- t~rnar-se para ele o acontecimento que excede qualquer subjeti:
de burguesa para se encontrar hoje simplesmente apagado na vidade possível, que absolve o sujeito de seus fins, de sua pre-
transparência e na indiferença. Nós vivemos as convulsões dessa sença e de toda a responsabilidade quanto a ele mesmo e ao mun-
subjetividade, e continuam a inventar novas - porém, isso nem do, numa paixão enfim definitivamente objetiva.
é mais dramático: a problemática da alienação ruiu. E a evidên- A possibilidade, a vontade do sujeito de se situar no centro
cia do desejo se tornou um mito. transcendental do mundo e se imaginar como causalidade uni-
versal, sob o signo de uma lei que ele continua dominando, essa
vontade não impede o sujeito de invocar o objeto em segredo co-
Chegamos portanto ao paradoxo de que, nessa conjuntura mo amuleto, como talismã, como figura de inversão de causali-
em que a posição do sujeito se tornou insustentável, a única po- dade, como local de uma violenta hemorragia de subjetividade.
sição possível é a do objeto. A única estratégia possível é a do "Por trás da subjetividade das aparências, existe sempre uma ob-
objeto. Com isso precisamos entender não o objeto "alienado" jetividade oculta."
e em vias de desalienação, o objeto subjugado e reivindicando Todo o destino do sujeito passa pelo objeto. A ironia subs-
sua autonomia de sujeito, mas o objeto tal como ele desafia o titui a causalidade universal pelo poder fatal de um objeto singular.
sujeito, tal como ele o remete a sua posição impossível de sujeito.
Estratégia cujo segredo é este: o objeto não acredita no pró-
prio desejo, o objeto não vive da ilusão do próprio desejo, o ob- . O fetiche ilustra a profunda objeção que nós temos pela cau -
jeto não tem desejo. Ele não acredita que alguma coisa lhe per- salidade normal, pela pretensão irrisória de destinar uma causa
tença, ele não mantém o fantasma da reapropriação nem de au- para cada acontecimento, e cada acontecimento para sua causa.
tonomia. Ele não procura fundir-se numa natureza própria, mes- Qualquer efeito é sublime, se ele não é reduzido a sua cau-
mo sendo ela a do desejo, e assim ele não conhece a alteridade sa. Aliás somente o efeito é necessário, a causa é acidental.
e é inalienável. Ele não está dividido em si mesmo, o que é o des- O fetiche opera esse milagre, de apagar a acidentalidade do
tino do sujeito, e não conhece o estágio do espelho em que viria mundo e de substituí-lo por uma necessidade absoluta.
a ser enganado pelo próprio imaginário. Na apercepção das causas nós só sentimos uma necessidade
Ele É o espelho. Ele é o que remete o sujeito a sua transpa- relativa e portanto uma felicidade relativa. Somente uma neces-
rência mortal. E, se ele pode fasciná-lo e seduzi-lo, é justamente sidade a.bsoluta, extática, nos transporta. O que realiza o objeto
porque não irradia uma substância ou uma significação própria. puro e smgular, em que obtemos de repente toda a interseção do
O objeto puro é soberano porque ele é aquilo sobre o que a sobe- mundo.
rania do outro vem se despedaçar e cair na própria armadilha. Podemos viver no universal, perseguir fins objetivos distri-
O cristal se vinga. buir nossa vida nas formas claras de alteridade, podemos' conce-
der às ~oisas uma cota mais ou menos racional (que, no entanto,
nunca Iguala a que nós nos concedemos), todavia é preciso que
o objeto é aquilo que desapareceu no horizonte do sujeito em certo momento a boa e má sorte, e o fato mesmo de viver,
e é do fundo desse desaparecimento que ele envolve o sujeito em se encarnem num ser ou numa coisa ambos absolutamente sin-
sua estratégia fatal. É então o sujeito que desaparece no hori- gulares, que não respondam mais a nenhuma determinação uni-
zonte do objeto. ~ers~l, ~as onde se precipitem, na forma de afeto específico, in-
Isso é verdade para o objeto sexual, poderoso por sua au- justificável, completamente artificial em relação às qualidades
104 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO
105

"naturais" desse objeto, todas as formas resumidas da identida- da mercado~a, n~? procura, não deve procurar sua salvação nu-
de e da alteridade. ~a. den~gaçao cnnca (que nesse caso é apenas seu espelho irri-
Ninguém escapa dessa experiência de investir um objeto, tal sono e Impoten.te, . ~sslm como, por força de denegação crítica,
objeto, de toda a potência oculta da objetividade. Isso faz parte o pensamento dialético se tornou àpenas o espelho irrisório e im-
das apostas absurdas, entre as quais a de Pascal sobre a existên- po!en!e do capital), mas supervalorizando a abstração formal e
cia de Deus. fetichizada da mercadoria e a magia do valor da troca _
Essa aposta que fazemos nos leva a crer que ela tenha algu- tor~ando-se mais mercadoria do que a mercadoria, mais distan-
ma razão, já que se a razão diz que um objeto só não poderia te ainda do valor de uso.
estar na origem do mundo, mas ao contrário ele é que deve se . Se a forma mercadoria quebra a idealidade anterior do ob-
explicar objetivamente a partir de todos os dados mundiais, se Jet<: (su~ beleza, sua autenticidade e mesmo sua funcionalidade),
essa razão não consegue acabar com a convicção, se apesar des- entao nao se deve tentar ressuscitá-la negando a essência formal
sa evidência racional continuamos adorando o mundo em sua da mercad?ria, pelo contrário - e nisso está toda a estratégia
quintessência ininteligível de um único de seus detalhes, então da moderrudade, o que para Baudelaire constitui a sedução per-
é porque essa razão é ela própria uma aposta hipotética. versa e aventurosa do mundo moderno - levar até o absoluto
Não mais ex-plicar as coisas ou avaliá-las em determinações ~ssa divisão do valor. Nenhuma dialética entre as duas, a síntese
objetivas e num sistema indefinido de referências, mas ao con- ~ ~ma solu~ão tí~ida, a dialética é uma solução nostálgica. A
trário implicar o mundo inteiro num só de seus detalhes, um acon- urnca solução radl~al e moderna: potencializar o que há de no-
tecimento inteiro num só de seus aspectos, toda a energia da na- vo, de original, de Inesperado, de genial, na mercadoria, a saber,
tureza num só de seus objetos, morto ou vivo - encontrar a elipse
esotérica, o atalho perfeito para o objeto puro, aquele que não
atua na partilha do sentido e que não divide seu segredo e sua poder de atração qu.e es~e caráter devia fatalmente exercer sobre a obra de arte ... A
potência com nenhum outro. grandeza de Baudela!re .dlante da invasão da mercadoria é ter respondido a essa invasão
transfor,mando a propna obra de arte em mercadoria e em fetiche Em outras pala-
vras, a~e ~a obra de arte ~le separou o valor de uso do valor da troca dai, a impla cá-
vel 1?01~~lca. de Baud.elal~e contra qualquer interpretação utilitária da obra de arte .. .
su~ m~ls~enC1a ~o carater Impalpável da experiência estética, e sua teoria do belo como
A MERCADORIA ABSOLUTA epifania mstantanea e impenetrável. A aura de fria intang ibilidade que começou então
a cercar a obra de arte é o equivalente do caráter' de fetiche conferido à mercadoria
pelo valor de troca...
o objeto absoluto é aquele cujo valor é nulo, a qualidade " Baudelaire não se contentou em reproduzir na obra de arte a cisão entre valor de
troca e valor de uso. Ele se propôs criar uma mercadoria prat icamente absoluta em que
indiferente, mas escapa da alienação objetiva pelo fato de que o processo de fetichização fosse levado ao ponto de anular a própria realidade da rnerca-
se faz mais objeto do que o objeto - o que lhe dá uma qualida- dona como t~1. Uma mer~adoria em que o valor de uso e valor de troca se anulem mu-
de fatal. tl~am.ente~ cujo valor consl~ta portanto na sua inutilidade e o uso em sua intangibilidade,
?ao e ~als uma mercadona: a transformação da obra de arte em mercadoria absoluta
Essa ida ao extremo, esse movimento duplamente revolucio- e ta~bem a an.~/a~ão mais radical da mercadoria. Dai a desenvoltura com que Baudelai-
nário já que responde à alienação com os próprios termos, se- re poe ~ expenencra do " choque" no centro do seu trabalho artístico. O "ch oque" é o
guindo os caminhos inexoráveis da indiferença, se encontram pre- potencial d~ ~stranheza com ~ue os objetos ficam carregados quando, pa ra vestir a más-
cara emgmat~ca da mercadona, eles perdem a autoridade que o valor de uso lhes co nfe-
figurados na mercadoria absoluta segundo Baudelaire.' A arte ~e... Ba.udelalre .compree~deu que, para ga rantir a sobrevi vência da arte na civilização
(a obra de arte), confrontada na época moderna com o desafio mdustna~ , o ~r~ls~~ devena p:~curar reproduzir em sua obra essa destru ição do valor de
uso ~ ~~ inteligibílidade tracbclOnaI... a autonega ção da arte se tornava assim sua única
possibilidade de sobrevivência .
."Felizmente, o fund~o~ da poesia. ~oderna foi fetichista . Sem sua paixão pelos
1 Giorgio Agamden, Stances (Chri stian Bourgois ed.): " Ele (Baudelaire) aprova o novo ca- enfel1.es e pe!os ca~elo.s fe~mnos, pelas joias e pela maquilagem, Baudelaire dificilm en-
ráter conferido ao objeto por sua transformação em mercadoria e se mostra consciente do te tena podido sair vitorioso de seu confronto com a mercadoria."
106 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 107

a indiferença formal pela utilidade e pelo valor, a preeminência ta de Baudelaire, infinitamente mais moderna (mas talvez fosse
dada à circulação sem reserva. Eis o que deve fazer a obra de ar- possível ser realmente moderno no século XIX), é a exploração
te: ela deve assumir todos os aspectos de choque, de estranheza, da~ novas formas de sedução ligadas aos objetos puros, aos acon-
de surpresa, de inquietação, de liquidez, até de autodestruição, tecimentos puros, a essa paixão moderna que é a fascinação.
de instantaneidade e de irrealidade, que são da mercadoria. Baudelaire resistiu melhor a essa deprimente teoria da alie-
Exponenciar a inumanidade do valor de troca numa espécie nação (que aliás só fez estragos sobre o pensamento fraco do sé-
de gozo extático, mas também de ironia nos caminhos indiferen- culo XX), ele entendeu melhor, talvez graças à inovação históri-
tes da alienação. Por isso, na lógica feérica-irônica (e não dialé- ca da irrupção da mercadoria, qual era a única e verdadeira res-
tica) de Baudelaire, a obra de arte alcança totalmente a moda, posta, estética e metafisica, irônica e alegre, a esse desafio. E não
a publicidade, a "magia do código" - obra de arte resplande- devemos nos ater à preocupação "estética" de Baudelaire. Sua
cente de venalidade, de mobilidade, de efeitos não referenciais, idéia de mercadoria absoluta vale como perspectiva radical em
de acasos e de vertigem - objeto puro de uma maravilhosa co- todos os domínios.'
mutabilidade, já que, tendo as causas desaparecido, todos os efei-
tos são virtualmente equivalentes.
Eles também podem ser nulos, sabemos disso, mas o papel ELOGIO DO OBJETO SEXUAL
da obra de arte é fetichizar essa nulidade, esse desaparecimento,
e tirar disso efeitos extraordinários. Forma nova de sedução: não
é mais aquela que domina os efeitos convencionais, a que domi- Somente o objeto é sedutor.
na a ilusão e a ordem estética, é antes a da vertigem da obsceni- Quanto ao sedutor vulgar, não entendeu nada. Ele pretende
dade - mas quem dirá onde está a diferença? A mercadoria vul- ser sujeito e o outro a vítima de sua estratégia. Psicologia ingê-
gar só produz um universo da produção - e Deus sabe quanto nua, tanto quanto a das boas almas que tomam o partido da ví-
esse universo é melancólico! - elevado à potência de mercado- tima . Nem um nem outro vêem que toda a iniciativa, toda a for-
ria absoluta, ela produz efeitos de sedução. ça, está do outro lado, do lado do objeto.
O objeto da arte, novo fetiche triunfante (e não triste feti- Aliás, a vulgaridade dessa análise da sedução é culpa dos
che alienado!) deve trabalhar para despojar-se de sua aura tradi- próprios analistas; o sedutor propriamente não é tão tolo (nem
cional, sua autoridade e potência de ilusão para resplandecer na a vítima também), ele sabe implicitamente que, se a sedução se
obscenidade pura da mercadoria. Ele deve se aniquilar como ob- resumisse a essa psicologia miserável, ela nunca funcionaria . O
jeto familiar e se tornar monstruosamente estranho. Mas essa es- sedutor não seria na verdade o seduzido e a iniciativa não viria
tranheza não é mais inquietadora estranheza do objeto recalca- secretamente do objeto? O sedutor pensa envolvê-lo em sua estra-
do ou alienado, esse objeto não brilha numa obsessão ou num
secreto despojamento, ele brilha numa verdadeira sedução vinda
de longe, ele brilha por ter excedido a própria forma em objeto 2 ,?ito isto, Marx também partira da mercadoria como pequeno fato e suprema sing u-
puro, em acontecimento puro. landade do mundo moderno. Ele parte do que é inexplicavel, não para realmente explicá-lo
Essa perspectiva, nascida para Baudelaire, do espetáculo da mas para transformá-lo em enigma, sobre o qual o dogma vem ruir. Hieróglifo.
~arx de~ra planar algo de enigmático e de feérico sobre a mercadoria , sua inquie-
transfiguração da mercadoria na exposição universal de 1855, é tante singularidade, seu desafio à ordem sensata das coisas , ao real, à moral, à util idade,
em muitos pontos superior àquela de Walter Benjamin. Em Oeuvre a todos os valores - ela que pretendia ser a própria moral.
d'art à l'êre de sa reproductibilité technique, ele tira da perda da É essa fascinação ambígua que encontramos em todos os fenômenos do capital, na
mag ia desse código un iversal, pelo menos em seus aspectos originais.
aura e da autenticidade do objeto na era da reprodução uma con- . O dogma marxista esmagou tudo isso (o próprio Marx contribuiu amplamente para
clusão desesperadamente política (isto é, politicamente desespe- ISSO) . Todo o enigma do capital damercadoria foi massacrado na moralidade revolucio-
rada) abrindo uma modernidade melancólica, enquanto a apos- nária - mas onde está, onde estaria, a moral revolucionária?
108 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 109

t égia, mas ele é ludibriado por essa estratégia banal e é o objeto sei mais o quê - porém essa questão talvez não tenha sentido,
que o envolve com sua estratégia fatal. pois no contexto cortês a única resposta possível são os olhos,
O que nos encanta é o que toma a forma do objeto predesti- como metáfora da alma.)
nado. É o que exagera na objetividade pura, como diria Sartre, É justamente essa metáfora que a mulher escolheu para re-
e que nos alivia dela - como a mercadoria absoluta nos libera pudiar, o que lhe dá um privilégio absoluto. Ele, como sujeito,
radicalmente da mercadoria. só pode jogar o jogo da metáfora. Ela, abandonando qualquer
Sartre: "Na sedução, eu não tento absolutamente mostrar metáfora, se torna objeto fatal que arrasta o sujeito para seu
ao outro minha subjetividade... Seduzir é assumir inteiramente aniquilamento.
e como um risco a correr minha objetividade pelo outro, é me Para tanto basta uma confusão do signo e do corpo, basta
pôr sob seu olhar e me fazer olhar por ele, é correr o perigo de um atalho no fundo semelhante ao de Harpo Marx exibindo um
ser visto para me apropriar do outro em e por minha objetivida- verdadeiro peixe-espadano lugar da palavra senha "peixe-espada".
de. Recuso-me a deixar o terreno de minha objetividade: é nesse Aqui a pilhéria é mais cruel, mas ela nega da mesma maneira
a senha "seus olhos" e ao mesmo tempo toda a retórica ideali-
terreno que quero travar a luta fazendo-me de objeto fascinante..."
zada da sedução. Porque ele só está falando de seus olhos e de
Só é sedutor quem não tem mais o problema do próprio de- seu olhar como dela mesma: ela tem o direito de responder a is-
sejo (o histérico, por exemplo, para quem ele é a última das preo- so pelo dom de si mesma, porém, não com seu olho como obje-
cupações), quem já passou pela absolvição e pela resolução do to puro e simples. Esse curto-circuito realista e cruel não está longe
próprio desejo. de que, em certos lugares, é demonstrado pela devoração cani-
Assim, a cruel história daquela mulher para quem um ho- balesca do objeto amado - aqui é a extroversão de si como ob-
mem escreveu uma ardente carta e que lhe perguntou em respos- jeto puro que atua como gratificação impiedosa. A estratégia-
ta: " Que parte minha mais o seduziu?" Ele respondeu: "Seus objeto, a da mulher, consiste em proibir o deslocamento metafó-
olhos", e recebeu de volta num pacote o olho que o seduzira. rico do discurso, do olho para o olhar e do olhar para o ser, a
Beleza e violência desse desafio, contra a platitude do sedu- única maneira pela qual o sujeito pode existir e se deixar seduzir.
tor. Mas também diabolismo dessa mulher, que se vinga da pró- Essa liquidação da metáfora, essa precipitação do signo em
pria veleidade de ser seduzida: armadilha contra armadilha, olho material bruto, absurdo, é de uma eficiência assassina. Ela é da
contra olho. Nunca o castigo tomou forma tão feroz quanto nessa mesma espécie do acontecimento absurdo, a catástrofe, que tam-
oferenda sem escrúpulos. Ela perde um olho mas ele perde a fa- bém é uma resposta cega, sem metáfora, do mundo-objeto ao
ce - como poderá ele no futuro "piscar o olho" para uma mu- homem-sujeito. É sempre assim que o destino se torna preciso:
lher sem receio de receber o dela em troca? Pois é realmente a em certo momento, num ponto preciso, os signos se tornam ob-
pior das coisas formular um desejo e vê-lo satisfeito literalmen- jetos, não metaforizáveis, cruéis, sem recurso. Eles cortam qual-
te. É realmente a pior das coisas ser recompensado no nível exa- quer desejo de decifração, eles se confundem com as coisas (por
to do pedido. Ele foi apanhado na armadilha pelo objeto, que isso o destino é sonhador, ele tem a mesma instantaneidade inin-
se entrega a ele como objeto literal. teligível que os signos ou as palavras nos sonhos).
Esta é a parte de provocação fatal que existe em cada obje-
. ) A estratégia do objeto, como a da mulher, é se confundir com
to, sempre pronto a relançar o jogo cruel da sedução. Desse mo- a coisa desejada. Toda a ironia e a crueldade está nessa forma de
do, o homem não pode deixar de responder à pergunta insinuan- resposta excessivamente objetiva: ela deixa o sujeito sem recurso.
te da mulher: "Que parte minha mais o seduziu?" e cometer as- Belo exemplo também da possibilidade para a mulher de
sim uma falha irreparável. A lógica vingadora do objeto está aí atuar sobre dois registros: o da oferta e o da demanda sexual di-
de início. (Podemos pensar o que aconteceria se ele tivesse res- reta (ela pode responder sem condição à demanda, exatamente
pondido: sua voz, sua boca, seu sexo, sua alma, seu porte, nem como aquela com seu olho, e o homem se vê nu e obsceno diante
110 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO IH

de si mesmo, nu e humilhado no gozo do seu objeto) - ou en- com um domínio perdido - nem sujeito nem realmente objeto de
tão no registro do jogo, da cilada, da metáfora, da sexualidade desejo, mas apenas o instrumento mítico de uma liberdade cruel.
adiada. O homem não pode fazê-lo. A mulher está livre para es-
colher o terreno. O homem se expõe continuamente a perder a
face: se ele arrisca o assédio sexual, ele se expõe sempre à recusa Podemos dizer de qualquer objeto em sua imobilidade e sua
- se ele se engaja num jogo mais sutil, ele se torna o objeto de afasia o que Canetti diz dos animais: "Se olharmos atenciosa-
uma recusa mais sutil. O inverso não é verdadeiro. É que a mu- mente um animal, temos a impressão de que um homem está es-
lher não está na posição de desejo, ela está na posição, bem su- condido nele e zomba de nós."
perior, do objeto de desejo. Também das mulheres podemos dizer que alguém está es-
Naturalmente, ela perde essa prerrogativa quando se desvia e
condido nelas z ómbâ dênós. AS mulheres têmtanta arte; têm
da indiferença do objeto em relação ao desejo. Ela se torna as- tanto ()ar dêsêremsübmis"sãs;ejâ.ssâ.h~lritão bem, bem demais,
sim tão vulnerável quanto qualquer sujeito e conhecerá todas as ser infelizes-=de .l!en.~ªY~(l"li,s,~ 9 algo Quese escondee nos esprei-
formas desse sofrimento inútil. ta. A mesma ironia objetivaqueêspréitá qualquer subjetividade
A transferência dessa iniciativa sexual para a mulher criou prestes a conquistá-la,
uma nova situação. Porque a prerrogativa masculina do tempo , Algo na mulher ignora a possessão. Algo no objeto ignora
da "mulher-objeto" criou pelo menos toda uma cultura da pai- a possessão. A possessão é a preocupação e o orgulho do sujei-
xão e da sedução, uma cultura romanesca ligada ao jogo da proi- to, mas não a do objeto que não se importacom isso, assim co-
bição sexual. Uma cultura assim não seria possível em sentido mQ_C;QJnSUa liberta,ç,ª9:º"<?~jibtº .só quer seduzir - é assim que
inverso. Não imaginamos o homem assumir os pudores e os se- ele usa sua servidão, como os animais o silêncio, como as pedras
gredos, a provocação e o recato, toda a estratégia sublime e su- a , in4il~_r.~ii~,~ =ç.QriiQ: ~~~j~'~~~ - o- olhar,e"esié' se'ffipie'vence,
bliminar de objeto usada pelo eterno feminino. Não existe o eterno "''-- De que serve se prevalecer 'da diferença, quando a indiferen-
masculino porque não existe proibição que proteja o homem da ça está certa de vencer? De que serve se prevalecer do sentido,
demanda sexual da mulher. A mulher, se ela quiser, não precisa quando o silêncio vence? A força do objeto está em sua ironia.
mais seduzir. O homem, se a mulher quiser, sempre terá que A diferença é sempre séria, mas a indiferença é irônica.
seduzi-la. Assim, a mulher pode exigir ser reconhecida como sujeito
E se a obrigação da feminilidade-objeto cessou para a mu- completo (aliás, é uma nova maneira de sedução e o jogo da eman-
lher, em compensação, a obrigação da virilidade não cessou pa- cipação dos sujeitos tem seu encanto quando leva às delícias ob-
ra o homem. Ele está assim intimado a responder, para não per- jetivos de ambas as partes), e o homem com freqüência se deixa
der a face, à demanda sexual da mulher - situação em que esta apanhar nessa armadilha, pois ele também gosta de fazer algum
nunca se encontrou, pois ela sempre teve a possibilidade de eludi- sacrifício. Porém, se ele se deixar apanhar nessa armadilha, es-
la, especialmente na sedução e na recusa, em que ela não arris- tará perdido, perdido de ridículo aos próprios olhos da mulher
cava perder a face, muito pelo contrário. que o espreitam do fundo de sua ironia objetiva (dessa ironia ocul-
Este talvez seja o sentido do filme de Fellini (la Citta delle ta que desmente toda a pretensão de mulher liberada). Como ele
donne): o homem está sem defesa, nu e incerto diante dos mons - seria perdido de ridículo aos próprios olhos de um animal que
tros da feminilidade exibida, fantasmas erráticos de todas as fe- ele quisesse reconhecer como sujeito completo. É aqui que a ar-
minilidades possíveis sem a sombra de uma sedução. madilha espreita, é aqui que ela se fecha.
Portanto, a situação não é mais dual, ela se tornou unilate- Ninguém pode deixar de achar ridícula a pretensão de reco-
ral. A mulher-objeto era soberana e continuava dona da sedu- nhecer quem quer que seja como "um sujeito completo"! Por-
ção (de uma regra secreta do jogo do desejo). O homem-objeto tanto quando a mulher pretende isso ("Não quero ser seduzida,
é apenas um sujeito despojado, nu, órfão do desejo, sonhando quero ser reconhecida") é uma armadilha em que o homem cairá

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112 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO
113
' ti '
facilmente, porque é doce ser tomado como juiz de reconheci- ' ! . ;,;,,~ Do mesmo modo, a mulher sempre pode escolher se aban-
mento. Simplesmente, essa exigência é irônica mas ele não sabe , donar como objeto-sexual e se entregar sem escrúpulos (o que
disso. sempre surpreende profundamente o homem), ou brincar de se
O que essa mulher quer, o que todos nós queremos, como fazer reconhecer como sujeito, se deixar seduzir e recusar indefi-
objetos (e nós somos objetos pelo menos tanto quanto sujeitos, nidamente, etc. Ela sempre pode abandonar um papel pelo ou-
e certamente de maneira mais original - em vez de objetos pas- tro, sem que por isso seja histérica, caprichosa ou outra coisa
sivos, objetos passionais, com pulsões vindas do fundo do ser assim: não é psicologia, é estratégia - o que lhe dá, nisso tam-
objeto), não é ser alucinada e exaltada como sujeito completo, bém, uma superioridade absoluta sobre o homem.
mas ser considerada profundamente objeto, tal como é, em seu
caráter insensato, imoral, supra-sensual - objeto, isto é, entre-
gue a tudo e a todos, presa e predadora universal, isto é, even- Cada um goza de seu lado. A própria possibilidade de uma
tualmente possuída, prostituída, escravizada, manipulada e mar- sexualidade se baseia no fato de que cada um ignora como o ou-
cada como tal, mas também, do fundo de tudo isso, perfeitamente tro goza (ou simplesmente se ele goza). É um mal-entendido vi-
sedutora e inalienável. Uma vez reconhecido esse caráter (essa tal, digamos assim. É a forma biológica do segredo. Existem ou-
liberdade) fundamental do objeto sexual, a mulher está pronta tras evidências misteriosas, mas esta, este enigma, brilha no fir-
para todos os jogos do amor e da psicologia, mas como objeto mamento da sexualidade: o prazer do outro nos escapa. Portan-
puro e não como sujeito, é que ela nos seduzirá, que nós a sedu- to, a possessão não existe, pois só poderíamos possuir o outro
ziremos. Ela pode se deixar dominar, explorar, seduzir - não será se sentíssemos seu prazer.
nem por alienação, nem por submissão, nem por masoquismo Felizmente, é assim, pois é com isso que, por exemplo, a mu-
(o erro está em sempre rebaixar o objeto à psicologia defectiva lher pode nos seduzir eternamente com esse prazer desconheci-
e perversa do sujeito). Pelo contrário, o que faz sua força é a in- do, que se torna assim um prazer incalculável.
diferença triunfal, a falta triunfal de subjetividade. Ela perma- Maravilhosa história de Tirésias! Entre duas serpentes que
nece a dona do jogo, o objeto permanece o dono do jogo, e só se acasalam, ele soube reconhecer o macho e a fêmea. Portanto,
faz reforçar sua soberania irônica. ele será homem, depois mulher. Ele virá dizer em seguida que
Nós a magoamos quando mostramos cuidados demais com a mulher goza nove vezes mais do que o homem. Por causa des-
os jogos do pudor e da inteligência,como magoamos uma criança sa indiscrição, Hera o cegará e ele receberá o dom da vidência.
mostrando cuidados demais com sua idade ou sua fragilidade. Devemos trair o segredo do prazer? Quem tem a faculdade
A criança sabe, no fundo, que ela não é uma criança. E ela não de passar de um sexo para outro, não por operação cirúrgica, mas
sabe o que fazer com a afetação de liberdade e de responsabili- segundo a metamorfose do prazer?
dade com que queremos enobrecê-la para melhor enobrecer a di- Felizmente, existe essa singularidade absoluta, o prazer mí-
ferença pedagógica entre o adulto e a criança. Ela, por sua vez, tico do outro, para fundar a diferença dos sexos. É nisso que ela
luta com armas iguais. Ela não é livre nem inferior, e deixa os é um enigma, e é por ter resolvido esse enigma, por ter passado
outros acreditarem nisso. Ela nos envolve com seu impudor, pa- para o outro lado do sexo, que Tirésias, como Édipo, foi conde-
ra que justamente todas as armas sejam iguais. Ela pode esco- nado à cegueira - ele poderia também ser transformado em ár-
lher fingir a diferença, fingir ser criança frágil diante do adulto, vore hermafrodita. Não por ter traído o segredo (?) do prazer
e nós teremos então que protegê-la, valorizá-la, atenuar essa di- feminino, pois esse não existe: a multiplicação por nove do pra-
ferença. Ou então a qualquer momento ela pode escolher nos de- zer feminino é apenas a multiplicação irônica do desejo do ho-
volver à ausência de diferença, real e fundamental (a infância não mem. Ela prova que a mulher é apenas o êxtase irônico do dese-
existe, não existe criança). Ela terá razão nos dois casos. Isso lhe jo do homem.
dá uma superioridade absoluta. Quem poderia se preocupar com isso? A única coisa inquie-

.
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.1"
114 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO
115

tante é tudo o que nos afasta dessa diferença enigmática e nos gual e que sempre fará inclinar a balança do sonho da obsessão
aproxima da divisão do prazer, portanto da indiferença. Aí está ~o enigma, do estratagema, para o lado do sexo 'que prefere ~
todo o contra-senso da liberdade sexual. SI mesmo e descreve assim a cavidade deliciosamente vazia, a do
Mas finalmente a maior singularidade não deve ser procu- prazer, onde o outro vem se abismar.
rada no fato do prazer e sim nessa relação mais extraordinária a que a história de Tirésias nos diz, é que não é com o sexo
que é a sedução . Somente ela nos leva a essa estranha situação: que sonhamos mais profundamente e sim com a reversibilidade
fazer do outro sexo um destino, fazer dele, em vez de um objeto dos sexos, com a faculdade de ver dos dois lados do sexo como
final (de prazer), um objeto fatal (de morte e metamorfose). Por- o vidente ou o profeta (Tirésias) tem a faculdade de ver ~s dois
que a sedução atua sobre outra coisa sem comparação com a di- lados do tempo. Nós sonhamos com o estado de vidência que
ferença anatômica (ou psicológica), porque ela leva o jogo da di- é do domínio da reversibilidade do tempo, como sonhamos com
ferença até a forma do desafio e da atração absoluta, até uma o estado do prazer que seria do domínio da reversibilidade do sexo.
vertigem em que a questão não é mais saber quem goza nove ve- a gozo supremo é o da metamorfose.
zes mais do que o outro, já que é a vertigem de uma supervalori-
zação e não de uma contabilidade, porque sua meta está coloca-
da numa convenção superior, que pode não ter fim, e não numa
computação dos prazeres, por tudo isso é que ela forçosamente A EMINÊNCIA PARDA
pára em algum lugar - somente ela, a sedução, põe fim nopri-
vilégio de um sexo sobre o outro. Um estranho orgulho nos leva, além de possuir o outro a
a sonho no amor seria se tornar mulher. a fantasma pro- forçar. s:u ~egredo, além de lhe ser caro, lhe ser fatal. Volú~ia
fundo do amor físico e mental não é de possessão, mas de meta- da emmencia parda: a arte de fazer desaparecer o outro. Isso exige
morfose, de transfiguração sexual. No auge do amor, somos ob- todo um cerimonial. .
cecados pelo enigma do sexo diferente. Todas as cópulas só têm Primeiro, seguir as pessoas ao acaso, na rua, uma hora, duas
essa meta: tocar o outro sexo como adversidade, integrá-lo por horas, breves seqüências, desorganizadas - a idéia de que a vi-
adivinhação. Sonho insolúvel, de quem se esgota em possuí-las d~ das pessoas é um percurso aleatório, que não tem sentido, que
todas, continuamente. nao vai a parte alguma e que justamente por essa razão é fasci-
Mas como é isso para as mulheres? Aparentemente, elas não nante. A trama do outro é usada como maneira de nos ausentar-
sonham em ser homens. Elas não têm essa fraqueza. Elas não mos ~e nós mes~os. Só existimos em suas pegadas, mas às es-
estão devoradas pela curiosidade pelo outro sexo, elas preferem condidas, na realidade seguimos nossas pegadas, quase escondi-
se desvanecer no próprio sexo, pela efusão ou histeria, numa re- dos de nós mesmos. Portanto, não é para descobrir algo diferen-
lação com o corpo que não implica nenhum mistério para elas te do outro, nem aonde ele vai, também não é uma "deriva" em
mesmas, mas uma afeição e uma atenção minuciosas. Maquia- busca de percurso aleatório: tudo isso, que corresponde a diver-
gem, narcisismo, sedução, histeria atrativa: formas sagradas do sas ideologias contemporâneas, não é especialmente sedutor. Esse
acontecimento puro que a mulher cria para si mesma a cada ins- empreendimento depende totalmente da sedução.
tante. Por todos os cuidados que ela tem, ela se metamorfoseia Nós nos seduzimos por ser apenas o espelho do outro, que
continuamente em si própria. O que resta ao homem senão bus- não sabe disso - assim como o de Kierkegaard, suspenso na pa-
car por meio dela esse poder de metamorfose? rede oposta: a moça nem pensa nisso mas o espelho pensa. Nós
Ele próprio está pregado à diferença sexual. Todo o drama nos seduzimos por ser o destino do outro, o duplo do seu per-
da diferença está do lado do homem, todo o charme da diferen- curso, gue, para ele, tem um sentido mas, redobrado, não tem
ça está do lado da mulher. Nenhuma miséria, nenhuma opres- mais. E como s,e alguém, atrás dele, soubesse que ele não vai a
são da mulher poderá rebaixar esse destino superiormente desi- parte alguma. E, de certa forma, tomar-lhe seu objetivo: um gê-
116 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 117

nio maligno vem se esgueirar sutilmente entre ele e ele. Isso é tão Certamente há algo de mortífero para aquele que é seguido.
forte que muitas vezes as pessoas pressentem, por uma espécie Ele pode ficar com raiva e cair na perseguição. Mas essa não era
de intuição, que estão sendo seguidas, que algo entrou em seu a meta de S. (mesmo se esse fantasma lhe ocorreu ao longo das
espaço, que alterou sua trajetória. horas e dos dias - mas ela também se arrisca: o outro pode in-
Um dia, S. decide dar outra dimensão a essa "experiência". verter a situação e tendo farejado o estratagema, arrastá-la para
Ela sabe que um homem que ela pouco conhece, por tê-lo segui- qualquer destino - ele não é uma vítima, tem tanto poder quanto
do uma vez por acaso, vai viajar para Veneza. Ela decide segui- ela). Não, o assassinato é mais sutil: ele consiste, seguindo al-
lo durante a viagem. Chegando a Veneza, ela pesquisa cem ho- guém passo a passo, em apagar sua pegada. Ora, ninguém pode
téis e acaba descobrindo onde ele se hospedou. Ela aluga uma viver sem pegadas. É o que faz qualquer um se voltar, depois de
janela na frente do hotel para poder seguir suas idas e vindas. ser seguido por algum tempo. Mesmo sem indícios, ele não pode
Ela tem um binóculo e uma máquina fotográfica, pois ela o fo- deixar de pressentir o sortilégio que o cerca. A eminência parda
tografa em todas as ocasiões, ele, o lugar por onde passou, o ob- ou loura que o segue não deixa pegadas, mas ela rouba as suas.
jeto em que tocou. Ela não espera nada dele. Ela não quer Ela o fotografa continuamente. A fotografia não tem aqui fun-
conhecê-lo. Ele não a agrada especialmente. É o período do car- ção perversa ou de arquivo. É simplesmente para dizer: aqui, a
naval de Veneza. Como ele poderia reconhecê-la (eles conversa- tal hora, em tal lugar, sob tal luz, havia alguém. E isso diz simul-
ram uma vez), ela se disfarça em loura, pois é morena. Ela se taneamente: não havia nenhum sentido em estar aqui, nesse lu-
maquia e se fantasia. Porém, as alegrias do carnaval não a inte- gar, nesse momento - na realidade não havia ninguém - eu que
ressam, tudo é em função de sua espionagem; ela passa os 15 dias, o segui, posso lhe garantir que não havia ninguém. Não são as
à custa de inúmeros esforços, sem perder sua pista. Ela consegue fotos-lembranças de uma presença, mas fotos de uma ausência,
saber seus projetos, interrogando as pessoas nas lojas por onde de quem é seguido, de quem o segue, da ausência de ambos.
ele passa, vendo os lugares que ele reserva para os espetáculos. "Siga-me então, lhe dissera o outro, a quem ela contara suas
E até a hora do trem de sua volta para Paris, onde, tendo toma- pequenas espionagens, eu sou mais interessante de seguir do que
do o trem precedente, ela poderá esperá-lo e fazer uma última a dona-de-casa da esquina." Mas isso é um contra-senso e con-
foto dele. funde o interesse com o grau superior da sedução. É desinteres-
Não, a última não. Ela não abandona a pista e entra em con- sante descobrir que alguém tem, por exemplo, uma vida dupla,
tato com as pessoas que trabalham com ele, um escritor com quem no máximo é um perfume de curiosidade - o importante é que
ele deve colaborar como fotógrafo. Mas as coisas vão se estra- é a espionagem em si que é a vida dupla do outro. Qualquer exis-
gar. Duas ou três vezes ele surpreendeu a espionagem, houve um tência banal pode ser transfigurada, mas qualquer existência ex-
incidente em Veneza; em Paris, é mais grave, ele se torna violen- cepcional pode ser banalizada. Mais uma vez, não se trata de per-
to, o encanto acabou, ela abandona. seguir, mas de seduzir.
No fundo, desejaria ela que ele a matasse, ou que, achando
essa espionagem insuportável (principalmente, porque ela não es-
perava nada e ainda menos uma aventura sexual), ele se lançasse O duque de Palagonia também sabia tecer a sombra fatal
sobre ela para violentá-la - ou se voltando para ela, como Or- dos espelhos deformantes.
feu trazendo Eurídice do inferno, a fizesse subitamente desapa- Esse nobre espanhol, disforme e monstruoso, construíra nas
recer? Desejaria ela ser simplesmente seu destino, ou que ele se vizinhanças de Paiermo uma mansão a sua imagem, povoada de
tornasse o destino dela? Como todo o jogo, este tinha sua regra gnomos, cercada de espelhos convexos, para que a mais bela moça
fundamental: nada deveria acontecer que criasse um contato ou da Sicília que ele desposara, só pudesse ter de si mesma uma ima-
uma relação entre eles. A sedução tem esse preço. O segredo não gem repugnante e assim se resignar a amá-lo, à força de seme-
deve ser revelado para não cair numa história banal. lhança.
118 AS ESfRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESfINO 119

Ou então ele conseguira garantir a potência inventando um projeta. Mas justamente, é preciso extraí-la de todas as tolices
mundo de lubricidade das formas (a feiúra é lúbrica), em que a edipianas quanto ao incesto. Seduzir o que engendramos é, na
beleza era tomada como desafio, ou fraqueza, porque, no fundo versão banal, o crime por excelência. Mas numa ordem mais pro-
a perfeição é insuportável? funda das coisas, o incesto é de natureza e de rigor. Devemos se-
Esse é talvez o segredo de toda a sedução: ela oferece à bele- duzir o que produzimos e engendramos. 'Ialvez, ao contrário, o
za um espelho deformante em que ela está enfim liberta de sua fato de ser engendrado e de engendrar é que seja o crime por ex-
perfeição. Mas geralmente, ela oferece ao outro um espelho es- celência, e que deve ser resolvido, resgatado, expiado pelo fato
tranho em que ele está enfim liberto de seu ser, de sua liberdade, iniciático de seduzir e ser seduzido. E essa sedução é sempre mais
de sua imagem, de sua semelhança - de todas as coisas que, em ou menos incestuosa pois, como o incesto, ela é uma forma eso-
seu íntimo, lhe pesam. Até Deus é seduzido pelo Diabo. térica, ela consiste em nos fazer entrar no segredo, e não apenas
Haveria um segredo na mansão Palagonia? Não: a beleza na vida, ela consiste em nos dar um destino, e não apenas uma
quer coisa pior do que ela, ela quer ser seqüestrada, violada, tor- existência.
turada (o Cristo da capela flutua também, suspenso pelos om- É assim que, de certa forma, a mãe, com essa intromissão
bros, pendurado na abóbada, como um pássaro empalhado)- secreta, resgata o fato de ter posto sua filha no mundo. E é por
o primeiro que se propuser, a seduzirá por sua monstruosidade. isso que é tão bela a história desse destino secreto que sua mãe
Mas não qualquer um. O duque de Palagonia tinha a alma lhe havia dado, como de uma dupla vida que ela lhe teria dado
grande. a mais.
O incesto não procede de um desejo nem de uma proibição
de desejo, ele não procede de uma pulsão natural ou antinatu-
A., jovem e bela, é cortejada por um príncipe que, não po- ral, ele não tem nada de libidinoso, mas ele também não funda
dendo vê-la, lhe escreve todos os dias. Ela não saberá disso, pois a lei nem a ordem simbólica. Ele expressa essa regra fundamen-
as cartas chegam a sua mãe, que responde fielmente por ela e tal que quer que tudo que foi produzido deve ser seduzido (ser
'(
assim mantém uma correspondência amorosa com o príncipe. A. iniciado no desaparecimento após ter sido iniciado na existêrr-
descobrirá a história mais tarde, após a morte da mãe, com to- cia). E é isso que nós tentamos de todas as formas possíveis. A
das as cartas e respostas entre seus papéis. E ela não a detestará cada instante somos intimados a seduzir (ou seja, enganar, imo-
por isso. Pelo contrário, essa traição a deslumbrará, a título lar e destruir, uesviar e tomar) o que somos intimados pela lei
póstumo. a produzir. A lei nos impõe produzir, mas a regra secreta, nunca
É que A. só tem o encanto espontâneo da sedução, e não dita, oculta atrás da lei, a regra nos impõe seduzir, e essa regra
há mistério na atração do príncipe. Porém, a potência fatal, aquela é mais forte do que a lei.
que possui o segredo, a potência simbólica (estética, diria kier-
kegaard) da sedução, a verdadeira sedutora, é a mãe.
Aquela que reflete, intercepta e destila a sedução de sua fi- O destino só se projeta nessa conjuntura: meu segredo está
lha, às escondidas. Isto é essencial, é a regra fundamental. So- em outro lugar. Ninguém guarda o próprio segredo - esse é o
mente o outro sabe que somos rainha, somente o outro sabe que erro de toda a psicologia, inclusive a do inconsciente. Tudo que
somos amada, somente o outro sabe que não vamos a parte al- se encadeia fora de nós (tanto nos sonhos e na linguagem, quan-
guma, somente o outro sabe que nossa vida é absurda. De certa to no acontecimento ou na catástrofe), tudo isso constitui para
forma ele nos duplica, subutiliza nossa razão de ser e portanto nós um objeto fatal - mesmo se ele não acarreta a morte, ele
nos força a existir, por esse desvio, mais intensamente do que se implica um desapossamento do sujeito, ele o leva para o segre-
ele nos engendrasse. do, além de seu fim, para fora dele à força, aí também numa es-
Essa história é bela por causa da sombra incestuosa que ela pécie de êxtase.
120 AS ESTRATÉGIAS FATAIS
o OBJETO E SEU DESTINO 121

o enigma é este: como podemos estar no segredo sem sa- prio funcionamento, louco e fantástico, da linguagem apenas -
ber? A resolução enigmática é esta: somente o outro sabe, so- ininteligível para a razão. Ora, toda a vertigem se apóia nessa sim-
mente Deus sabe, somente o destino sabe, o segredo é o que nos ples pequena frase. A história poderia muito bem ser contada sem
envolve sem que saibamos. , ela: os dois amantes se reconhecem e caem nos braços um do ou-
Em certos casos somente a linguagem sabe. E unicamente tro, reconciliados - isso daria uma história picante e edificante,
na linguagem que se arma o encadeamento irônico e fatal. à moda do século XVIII sentimental (como aquele conto de Sa-
Assim é na história do Drame bien parisien de Alphonse Al- de em que um travesti seduz uma mulher que ele pensava ser um
Iais. Dois jovens amantes recebem cada um uma carta anônima, travesti - ambos são homossexuais - decepção no momento
denunciando a cada um a infidelidade do outro: se a mulher quer da descoberta respectiva dos sexos, mas entre sexos sempre é pos-
ter uma prova, basta ir ao baile à fantasia - seu amante estará sível a compreensão). Poderíamos também imaginar que um dos
fantasiado de arlequim. O outro recebe o mesmo conselho: vá dois fosse realmente ele, e o outro não fosse o outro: seria uma
a tal baile, sua mulher estará fantasiada de piroga congolesa. Fi- história galante. Mas não seria uma história sedutora.
nalmente ele se aproxima dela e a convida. Eles acabam numa O melhor em AlIais está em sua conclusão, quando ele diz
sala particular onde ambos se precipitam um sobre o outro para que' 'desde esse episódio, eles nunca mais tiveram brigas domés-
arrancar suas máscaras. E - cúmulo do espanto - diz a histó- ticas" - dando a entender que esse puro efeito de narração e
ria: NÃO ERA NEM UM NEM OUTRO! de aparências teve apesar de tudo uma conseqüência na realida-
Todo o encanto ilógico dessa história está nisso: no movi- de - deixando assim planar em filigrana a hipótese vertiginosa
mento com que os dois se precipitam para tirar suas máscaras de que "eram realmente eles" (senão não haveria conseqüência).
por trás das quais não há nada. Como se as duas fantasias (arle- Aliás quem pode saber que "não era nem um nem outro", já que
quim e piroga congolesa) agissem independentemente, se unis- ninguém estava ali para reconhecê-los? Eles (os dois personagens
sem em função de uma pura inércia de linguagem, de narração, reais), nem sabem que não estão ali mas a linguagem, esta, sabe,
quando eles não tinham nenhuma razão para o fazer. (Mas por e é a única a saber. Exatamente como o espelho de Kierkegaard:
que milagre então se encontravam ali, por que conjunção, e on- "Um espelho está pendurado na parede oposta - ela não pensa
de estavam os dois outros, os verdadeiros, enquanto isso?) - o nisso, mas o espelho pensa' '.
real é out, somente as aparências funcionam e elas se combinam Para que haja sedução, é preciso que os sinais ou as pala-
segundo sua lógica, de onde a lógica deveria tê-los afastado para vras funcionem à revelia, como no Witz, é preciso que as coisas
sempre: esse é o jogo da aparência pura. estejam ausentes delas mesmas, que as palavras não queiram di-
É exatamente o funcionamento do dito espirituoso. Pois jus- zer nada, mas sem o saber (somente a linguagem sabe) - como
tamente no Witz a palavra se torna um traço - não mais um na espionagem de S., em que aquela que segue é a única a saber
sinal portador mas um vetor puro da aparência. Fragmentos de que o outro não vai a parte alguma ou inversamente, como na
linguagem, desconhecidos um do outro, sem encadeamento cau- morte em Samarkand, em que aquele que pensa estar fugindo
sal, se unem como por milagre e descobrem encantados qu~ eles para qualquer lugar, o outro, a Morte, sabe onde ele vai e lá o
«não eram nem um nem outro': Os termos se arrancam recipro- espera.
camente suas máscaras e não se reconhecem. Nesse sentido, por um desvio inesperado, talvez a conclu-
Certamente, tudo depende da possibilidade da linguagem de são de Anais não seja tão absurda quanto parece (que os dois
continuar no caminho do real (de fingir que ela representa algu- jovens amantes não tiveram mais brigas domésticas!). Na ordem
ma coisa) e de percutir sobre a aparência pura, isto é, de conti- dos acontecimentos devemos admitir o que verificamos facilmente
nuar funcionando além de seu fim. O que permite a Allais inse- na ordem da linguagem: quando duas palavras, dois sinais, se
rir essa simples pequena frase: "...e não eram nem um nem ou- seduzem, mesmo sem querer, no desenrolar da linguagem (Wilz),
tro" - que se tornou possível como enunciado lógico pelo pró- essa sedução, mesmo inédita, tem conseqüências deslumbrantes
122 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 123

sobre toda a frase e sobre o efeito de comunicação. Portanto, na- a potência do sujeito. Toda a nossa energia nos é tomada, ins-
da se opõe senão à conjunção sedutora somente por suas másca- tantaneamente desviada por esse objeto vindo de fora. Nós o acei-
ras, que esse episódio ininteligível possa ter para os amantes ver- tamos de bom grado, estamos encantados, nós mesmos, com es-
dadeiros uma conseqüência feliz: em algum lugar eles se encon- se "cruel corte" na ordem das coisas, com essa revolução ines-
traram apesar de tudo e se seduziram mais uma vez. O que acon- perada, com essa reviravolta da energia e essa inversão dos pólos
tece no nível da aparência pura da narração em alguma parte sem- de potência.
pre tem uma incidência no real. Não podemos pedir mais do que
isso à linguagem. Outrora a magia exigia isso, e ela o obtinha.
Não basta que uma história seja ilógica e absurda para ser
sedutora, é preciso ainda que ela/aça signo de modo ininteligí- o CRISTAL SE VINGA
vel. Assim a história de Allais não é solúvel em termos lógicos,
mas tampouco em termos de acaso e de probabilidades (não existe A psicanálise privilegiou um aspecto de nossa vida e nos es-
nenhuma chance de que um acontecimento desses possa se pro- condeu o outro. Ela supervalorizou um dos nossos nascimentos,
duzir, mesmo por acaso). Nada pode ser articulado ali, não há o nascimento biológico e genital, e esqueceu o outro, o nascimento
solução mas o encadeamento irônico e inopinado da linguagem, iniciático. Ela esqueceu que, se dois seres estão ali para presidir
este sim, necessário. O que faz a irresolução ser brilhante em vez nosso nascimento biológico, sempre acontece que outros nos se-
de ser banal, porque ela é a operação de um sinal puro. Esse é duzam (e talvez os mesmos) e esses são, de certa forma, nossos
todo o prestígio da ilusão. pais iniciáticos. Esse segundo nascimento resgata o outro e to-
dos os conflitos edipianos, tão bem descritos pela psicanálise, mas
que justamente só dizem respeito ao primeiro.
É a mesma operação dessas pequenas frases que vêm do além. Esse primeiro nascimento nos impõe uma história, forçosa-
Segundo Canetti: "Nunca esquecemos estas frases. Provavelmente mente edipiana. História de recalque e de trabalho inconsciente,
elas nos tiram uma inocência que talvez fosse atraente. Mas por história psicológica de complexos e de luto, de relações sempre
esses cruéis cortes, o homem se inicia na própria natureza. Sem alteradas e mortificantes com o Pai, com a Lei, com a ordem sim-
elas, ele nunca poderia se ver inteiramente. Elas devem intervir bólica. O que a psicanálise não viu é que sempre nos acontece
de surpresa e vir de fora. Toda frase vinda do exterior é eficaz felizmente outra coisa, um fato sem precedentes, que inaugura
porque é inesperada: não temos contrapeso para ela. Nós a aju- não uma história, mas um destino e que, porque é sem prece-
damos com uma força idêntica à que lhe teríamos oposto em ou- dentes, nos liberta dessa gênese e dessa história. Esse aconteci-
tras circunstâncias." mento sem precedentes é a sedução, ele também não tem origem,
Essas pequenas frases se opõem àquelas, banais, em que nós ele vem de fora, ele vem sempre inopinadamente, é um aconteci-
nos reconhecemos, àquelas frases que nos envergonham, em que mento puro que apaga de uma só vez os determinismos conscientes
subitamente o sujeito se envergonha de ser o que ele é. Enquanto e inconscientes.
essas pequenas frases fatais são como a irrupção de um objeto Todos nós fomos produzidos um dia, todos nós devemos ser
puro não identificado, que torna o sujeito não identificável em seduzidos. Esta é a única e verdadeira "libertação", a que abre
si mesmo. Nada no sujeito pode contrabalançar a eficiência des- além do Édipo e da Lei, e que nos tira do duro calvário psicoló-
sas frases, já que elas não lhe servem de espelho e ele não pode gico ao mesmo tempo que da fatalidade biológica de ter sido en-
exercer nelas, como nas outras, sua atividade aduladora. De re- gendrados segundo o sexo.
pente, toda a energia que ele lhes teria oposto normalmente, acha- Os únicos doentes são aqueles da sedução. Justamente aque-
se transferida e derramada sobre elas. A irrupção do objeto puro les para quem esse fato sem precedentes não aconteceu, aqueles
inverte todas as relações: o objeto se encontra potente com toda que não conheceram esse segundo nascimento iniciático e que,
124 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 125

por essa razão, permanecerão cravados em sua história edipiana nálise passou ao lado da potência que eles têm de irrupção, de
e destinados à psicanálise. Esta os empreende na base de uma ilusão e de sedução, passou ao lado de seus verdadeiros fatos pa-
economia de desejo, isto é, de uma recusa de sedução para a qual ra fazer deles apenas sintomas, tirando toda a soberania da ir-
ela contribuiu bastante para prendê-los. rupção das coisas, da magia das aparências e do desafio que elas
Portanto, é da psicanálise (não apenas dela, é claro) que pro- trazem, para torná-la unicamente o sujeito da interpretação. Con-
cede essa inconcebível alucinação do indivíduo sobre o próprio tra tudo isso a psicanálise ergueu seu sujeito do desejo, seu Ro-
desejo. binson do inconsciente, destinado a uma economia insular e ao
Como Monique Schneider mostrou em seu livro sobre Freud exorcismo de qualquer agressão externa - só por conceber o mun-
et le Plaisir foi a psicanálise que, no final dessa "revolução psi- do exterior como fonte de desequilíbrio e a pulsão interna como
cológica" do século XIX, conseguiu essa louca substituição de ameaça de ruptura, já é sintomático: o único destino do sujeito
uma economia psíquica individual, de uma libido de um desejo será descarregar suas tensões, purgar suas excitações internas, neu-
próprio, e das peripécias edipianas desse desejo, pelo aconteci- tralizar a irrupção das forças demoníacas que ameaçam conti-
mento vindo do além, pela incidência iniciadora, sedutora, fa- nuamente a fortaleza psíquica de desintegração - nem é mais
tal, do outro, como acontecimento sem precedentes, pela surpre- um destino de pulsões, é um destino de expulsão. Como Ulisses,
sa, pela coincidência do mundo e dos sinais que fazem de nós, fechado a qualquer sortilégio das formas exteriores, o sujeito só
não um sujeito, mas um objeto de eleição e de sedução. O que terá a tarefa de se libertar de sua energia pulsional numa organi-
nos faz existir não é a força do nosso desejo (todo o imaginário zação defensiva destinada ao prazer como princípio (!) e à mor-
energético e econômico do século XIX), é o jogo do mundo e te como resolução, senão à pulsão da morte, para se livrar dessas
da sedução, é a paixão de jogar e ser jogado, e a paixão da ilu- tensões.
são e das aparências, é o que, vindo do além, dos outros, de suas Monique Schneider mostra como Freud teórico se retrai dian-
faces, de suas linguagens, de seus gestos, nos perturba, nos en- te das primeiras investidas da sedução (do conceito de sedução)
gana, nos intima a existir; é o encontro, a surpresa do que existe por um momento entrevista, empregando o dispositivo psíquico
antes de nós, fora de nós, sem nós - maravilhosa exterioridade da psicanálise, ~le próprio centrado em torno de um indivíduo
do objeto puro, do acontecimento puro - o que acontece sem nossa inteiramente protegido no início - puro bojo pulsional, desti -
intervenção, que alívio enfim, só isso já nos seduz: já fomos tão nado a gerar o próprio desejo, a distribuir seus investimentos,
solicitados a ser a causa de tudo, a encontrar uma causa para tudo. a inventar suas relações de objeto, a divagar sobre sua imagem
Objeto mineral, acontecimento-solstício, objeto sensual, forma de- - isto é, um ser a quem tudo acontecerá fundamentalmente do
sértica, tudo isso nos seduz porque não tem nenhuma relação com interior, num processo essencialmente individualizado, e nada do
nossa economia de desejo e no fundo o ser não pode existir no pró- exterior, num processo dual.
prio ser, ele não é nada e só existe por ser suscitado fora de si, no No fundo, para que Édipo volte a Tebas e a sua problemáti-
jogo do mundo e na vertigem da sedução. ca edipiana (dormir com sua mãe, a cegueira como castração sim-
É contra tudo isso que se ergue a psicanálise, quando forma bólica, etc.) é preciso que a Esfinge morra, isto é, que ele tenha
a hipótese do mundo exterior como agressão, do eu como siste- acabado com a sedução e sua vertigem, com o enigma e o segre-
ma de defesa e de investimento, do prazer como resolução das do, em proveito de uma história escondida cujo drama inteiro
tensões. Para Freud, todo o problema foi destruir esse aconteci- está no recalque e cuja chave está na interpretação (enquanto o
mento incontrolável da sedução. enigma nunca deve ser desvendado, ele seduz por essa ininteligi-
Situação paradoxal da análise, quando ela refere ao mate- bilidade secreta que é da ordem da adivinhação) - é preciso que
rial do sonho, pois, justamente nessa perspectiva fatal, o sonho ele tenha acabado com o enigma sedutor (a Esfinge) em proveito
é acontecimento, enquanto na análise ele é apenas sintoma, e a da verdade mortífera.
mesma coisa com a loucura, a neurose, o lapso: em tudo a psica- Do mesmo modo, para que Freud entre no caminho real e
126 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 127

edipiano na interpretação psicanalítica, para que entre no reino ciadora, e ela devolve o poder aos signos. Desse modo não lhe
do inconsciente, para que durma com a psicanálise, com conse- é possível coexistir com uma disciplina que só lhe dá sentido e
qüências finalmente tão dramáticas para nós quanto as da aven- um sentido infeliz.
tura de Édipo para seu povo, foi preciso que ele também acabas- Os sonhos são bem diferentes de um "material". Eles tive-
se com a sedução, que ele matasse o animal enigmático, a Esfin- ram um encanto e um encanto profético, antes de desaparecerem
ge das aparências, que proibisse a entrada da "realidade psíqui- da interpretação, onde, é claro, tomaram o sentido que era ne-
ca' ', Freud perpetuou, em particular, essa execução da sedutora cessário: eles não são mais sedutores nem fatais, eles se torna-
"na vontade seja de aniquilar, seja de amortalhar no íntimo uma ram significativos. Os sonhos tinham um segredo, e Freud lhes
sedução materna arcaica, Esfinge, feiticeira ou nutriz perversa". deu um sentido. Os sonhos estavam mais próximos do destino,
No entanto, se Monique Schneider descobre o exorcismo com Freud eles se aproximaram do desejo. Mas perderam esse
inaugural da psicanálise e de que maneira todo o edifício freu- encantamento (eventualmente maléfico) para ceder lugar ao tra-
diano é construído sobre a conjuração da sedução, ela só conse- balho do inconsciente. O jogo do sonho como aparência permi-
gue substituir o assassinato do Pai pelo da Mãe, no sentido de tia descobrir nele não as progressões inconscientes e metafóricas
que a sedução para ela é apenas a da Mãe arcaica, a sedução de- mas os efeitos de sedução, a trajetória de uma ordem de aconte-
voradora, a matriz fusional. Sedução remetida à sedutora, e esta cimentos de que o sonho faz parte como história - não como
ao poder de absorção diabólico e abissal da mulher, do ventre, sintoma, pois ele não é mais do que um signo desviado de seu
etc. Esta é uma peça pregada pelo feminismo moderno, ele pró- sentido. Como acontecimento puro, o sonho tem uma qualidade
prio desencaminhado pela psicanálise; ressuscitar o feminino como profética que anula a interpretação analítica remetendo-se a uma
poder perigoso, arcaico e fusional é de certa forma dar razão a economia e a um tópico inconsciente.
Freud, que vem barrar o poder de absorção do desejo da Mãe O sonho se tornou psicológico, caiu na ordem psíquica, per-
pelo Nome do Pai. Se a sedução é apenas fusional, então tanto deu a própria sedução. Como as neuroses, como os fantasmas,
vale Édipo quanto a Lei. Esta sedução é justamente apenas a se- como os lapsos, como a loucura, como a doença em geral, que
dução vista pelo prisma de Édipo e da Lei, como uma espécie a interpretação alojou no inconsciente e destinou à patologia, a
de espectro, de tentação diabólica incestuosa. Assim é Jocasta quem ela deu vocação de sintomas (por pouco Freud não conse-
que, depois de destruída e imolada a verdadeira figura de sedu- guiu fazer o mesmo com o dito espirituoso).
ção, a Esfinge enigmática, vai reencarnar, a vingança, o retorno
de chama da sedução mas para o pior, digamos assim, num uni-
verso corrompido por Édipo. Porém, não é mais a mesma: uma, "Só suporto os sonhos quando eles são inteiros, intactos e
a da Esfinge, é dual e enigmática - a outra, a de Jocasta, é ma- misteriosos. Eles são tão estranhos que só os compreendemos mui-
terial e incestuosa, arcaica e fusional. to lentamente... Infeliz do louco que os interpretar muito depres-
A sedução é outra coisa bem diferente dessa mãe devorado- sa: ele os perderia para nunca mais achá-los.
ra de quem Freud tinha razão em temer. Se a psicanálise (a Lei, Não devemos também amontoar sonhos que não têm nada
o Pai, etc.) é o que nos arranca de desejo fusional da mãe para em comum. Suas substâncias estão em relação com a intensidade
nos devolver à soberania do próprio desejo, a sedução é o que com que brilham na realidade. Que eles se realizem, eis o essen-
cial (o que eles não fazem mais na psicanálise, assim como a in-
nos arranca do próprio desejo para nos devolver à soberania do fância e muitas outras coisas, que não são absolutamente mais so-
mundo. Ela é o que arranca os seres da esfera psicológica do fan- licitadas a existirem como tal.) Porém, eles o fazem de modo dife-
tasma, do recalque, da outra cena, para devolvê-los ao jogo ver- rente do imaginado pelos oniromantes habituais. O sonho deve ani-
tiginoso e superficial das aparências. Ela é o que arranca os se- mar a realidade penetrando-a de todas as maneiras possíveis, e prin-
res do reinado da metáfora para devolvê-los ao das metamorfo- cipalmente daquelas que não esperamos... Contudo O intangível
ses, Ela é o que anuncia os seres e as coisas do reino da interpre- tem sua forma, construída por sua inserção na realidade e não de-
tação para devolvê-los ao da adivinhação. Ela tem a forma ini- vemos lhe dar uma exterior.
128 . AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJ ETO E SEU DESTI NO 129

o mal causado pela interpretação dos sonhos é incalculável. o FATAL


A alteração permanece invisível, mas um sonho é tão sensívell. ..
Apenas uma ínfima minoria de pessoas sabe o quanto o sonho OU A IMINÊNCIA REVERSÍVEL
é único. Senão, como ousariam desnudá-lo até fazer dele um truís-
mo qualquer?" "O acaso me cansa." Deus.
CANETTI "Num longínquo vale da Iugoslávia, parece que eles aboli-
ram o acaso, graças a um jogo de dados particular." Ao que res-
ponderemos que qualquer jogo de dados já acabou com o acaso
Penso que existe uma essência do sonho, como de todas as há muito tempo.
coisas, isto é, uma figura ideal cujo poder de ilusão nos foi to- Duas hipóteses sobre o acaso. A primeira: todas as coisas
mado pela psicanálise. Penso que existe uma forma de aparên- estão destinadas a se encontrarem, só o acaso faz com que elas
cia, uma figura ideal da aparência cujo poder de ilusão nos foi não se encontrem. A segunda: todas as coisas são espalhadas e
tomado pela interpretação. indiferentes umas às outras, só o acaso faz com que elas às vezes
A psicanálise é a consciência infeliz do signo. Ela transfor- se encontrem.
ma qualquer signo em sintoma, qualquer ato em lapso, qualquer Essa última hipótese é comum , a outra, paradoxal, é mais
discurso em significação oculta, qualquer representação em alu- interessante.
cinação de desejo. Incrível estrabismo da interpretação analíti- De todo o modo, na versão comum resta uma profunda am-
ca. Contra o poder sedutor do pensamento, a psicanálise encar- bigüidade: o acaso manteria as coisas numa dispersão aleatória
na a força todo-poderosa da segunda intenção. Desconfiança com (isso corresponde a sua definição), ou ele faria com que elas se
as aparências, chantagem com o sintoma, chantagem com o sen- encontrassem de vez em quando? Gostaríamos de dar os dois sen-
tido oculto, resolução do enigma: a psicanálise participa com- tidos ao mesmo tempo. As coisas vão por acaso - e o acaso as
pletamente da desgraça, da consciência infeliz, geradora para o
reúne. Estamos em pleno ilogismo. O acaso mostraria uma so-
homem, segundo Nietzsche, de todos os submundos...
Mas a sedução se vinga. Ela refaz ironicamente sua apari- berana indiferença das coisas umas pelas outras, ou mostraria
ção no sonho, sob a forma bem conhecida dos sonhos de cura uma vontade secreta, uma espécie de gênio maligno que se di-
que tentam seduzir o analista e desviar a análise de seu caminho. vertiria com as conjugações insólitas?
Mas isso não é nada: a resolução do enigma, a derrota da Esfin- A solução talvez seja esta: há muito tempo a análise moder-
ge, vão deixar explodir toda a obscenidade escondida das rela- na revelou as falhas de uma explicação determinista do mundo,
ções edipianas - o assassinato, o incesto e a cegueira final que concebeu um mundo aleatório à custa da causalidade objetiva ,
sempre acompanham a revelação da verdade. Nunca devemos to- portanto, ela provocou por toda parte uma visão em termos de
car no enigma, senão podemos cair na obscenidade, e Edipo acaso, e ao mesmo tempo despertou a atenção para outras cone-
não terá outro recurso senão se tornar cego para escapar a essa xões, não causais e mais secretas (por exemplo, a psicanálise e
obscenidade. Sim, a Esfinge está vingada: é ela que com sua sua interpretação inconsciente eliminaram o acaso dos lapsos, dos
morte aprisiona Édipo em toda essa história assassina, é ela atos falhos, dos sonhos, da loucura.) Outra necessidade, mais enig-
que aprisiona Freud em toda essa história psicológica de castra- mática, apareceu e a esta, em princípio, nada escapa: predesti-
ção. nação psicológica ou estrutural, a ordem profunda das coisas é
inconsciente mas nem por isso seu decreto elimina o acaso. As-
sim substituímos o reinado das causas inteligíveis, não realmen-
te pelo acaso mas por um mecanismo de encadeamento mais mis-
terio so. Desse modo, em vez de corresponder a um estado pro-
130 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 131

visório de incapacidade das ciências de explicar tudo - nesse caso, diferenciado, e essa liberdade, do ponto de vista simbólico, que
haveria ainda uma existência conceitual palpável - o acaso se- implica para qualquer ser um espaço inviolável, é imunda e obs-
ria uma passagem de um estado de determinismo causal para ou- cena. (Isso não tem nenhuma relação com qualquer puritanismo
tro, radicalmente diferente, ele também de não-acaso. Portanto, e sim com O espaço soberano necessário ao próprio movimento
ele não tem existência. dos corpos.) Portanto, o acaso e a probabilidade estatística que
Outra coisa é problemática. Para que haja o acaso (pelo me- caracterizam nosso mundo moderno são modalidades imundas
nos na segunda versão), é preciso que haja coincidência, que duas e obscenas. Devemos nos resignar a ela, a título de liberdade, mas
séries se cruzem, que dois acontecimentos, dois indivíduos, duas um dia essa desobrigação, essedesligamento, que possibilita os múl-
partículas se encontrem. Mesmo que a probabilidade dessa ocor- tiplos encontros e acelera o movimento browniano de nossas vidas,
rência seja ínfima, é preciso que essa conjunção aconteça, do mes- retoma numa indeterminação, numa indiferença mortífera que nos
mo modo que, para que haja causalidade, é preciso que haja de arrasa. O acaso não cansa apenas Deus, ele também nos cansa.
alguma maneira contigüidade da causa e do efeito. Ora, esse pos-
tulado nunca é garantido. Não é certo que o encontro seja possí-
O materialismo ocidental levanta a hipótese de que o mun-
vel - senão num mundo devolvido à pura relação das forças ,
do é uma matéria bruta entregue aos movimentos aleatórios e
num mundo onde as coisas, os corpos, os indivíduos, os aconte- desordenados. Nossa cena primitiva do mundo é a de uma ma-
cimentos possam se tocar, se esbarrar, se engavetar porque eles téria morta, se algum Deus não viesse lhe insuflar uma alma, um
perderam essa "aura" que normalmente os envolve e proíbe qual- sentido ou uma energia - de urna desordem em que somente Deus
quer promiscuidade. Num universo sagrado, cerimonial, as coi- pode vir impor a ordem, tirando o mundo do seu caos original.
sas não se tocam, nunca se encontram. Elas se encadeiam sem " O acaso continha a ordem, e quando a ordem veio, fez seu
falha mas sem contato. Vejam como os gestos da cerimônia, os lugar ao acaso na criação." (A. Verdet.)
trajes, os corpos, se enrolam, se roçam, se desafiam, mas sem O problema sempre foi fabricar a ordem a partir da suposta
se tocar. Nenhum acaso, isto é, nenhum lapso que precipitaria desordem, produzir e alimentar o movimento, provocar e produ-
os corpos um para o outro, nenhuma desordem que faria com zir sentido. Essa é a nossa obsessão, esse é o nosso ideal, é tam-
que as coisas tivessem subitamente a liberdade de se misturar. bém o perfil de nossa catástrofe (entropia).
É a mesma coisa quanto aos nossos corpos e nossas vidas Porque a idéia de que nesse mundo só obtemos alguns en-
cotidianas. Foi preciso quebrar essa aura que envolve os gestos cadeamentos racionais à custa de um esforço contínuo, sempre
e os corpos para que eles pudessem se cruzar por acaso na rua, pronto a retornar ao nada, essa hipótese é fundamentalmente pes-
se concentrar em tão grande número nas cidades ou nos cam- simista e desesperada. Mesmo Deus já está cheio. "O acaso can-
pos, se aproximarem e se confundirem no amor. Foi preciso uma sa Deus ", diz um teólogo a propósito da proibição dos jogos de
força muito poderosa para quebrar essa distância magnética em azar. O próprio Deus já está farto de combater o acaso (aliás ul-
que cada corpo se move e para produzir esse espaço indiferente timamente ele baixou pavilhão e deixou que se instalasse uma vi-
onde o acaso poderá pô-los em contato. Algo desse poder refra - são do mundo francamente aleatória). Não existe outra saída para
tário subsiste em cada um de nós, mesmo no centro dos espaços tal ponto de partida. Se supomos que uma energia é necessária
modernos secularizados, mesmo no uso dos nossos corpos eman- para informar o universo, para criar encadeamentos significan-
cipados, dos nossos corpos espacialmente e sexualmente libera- tes, ilhotas frágeis de antiacaso, então mais cedo ou mais tarde
dos. Algo desse poder de tabu que afasta qualquer promiscuida- essa energia faltará, mesmo Deus não terá mais forças para resistir
de, dessa distinção que abomina qualquer encontro fortuito, qual- ao aniquilamento do sentido. Qualquer um teria renunciado, e ele
quer fusão ou confusão devida ao acaso. Pois o acaso é apenas mesmo cessou de lutar, retirando-se diante da irrupção de um uni-
essa liberdade que os corpos têm, ou as partículas em nível mi- verso absurdo. Deus não está escandalizado, magoado, ferido ou
croscópico, de se moverem de qualquer maneira num espaço in- ameaçado pelo acaso: ele está cansado. É maravilhoso.
132 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 133

Porém, podemos fazer a hipótese inversa sobre essa frase ad- pouca chance de que ele exista! (precisamente tão pouca quanto
mirável. Deus não está cansado de lutar contra o acaso, ele está a da existência de Deus).
cansado de ter que produzi-lo: é ele, Deus, que está pregado a Deus, nosso Deus racional e racionalista, é evidentemente
essa tarefa para toda a eternidade, pois a verdade é que não exis- impotente para regularizar o curso dos acontecimentos. Sua ra-
te o acaso, e se é preciso produzi-lo, somente um deus pode fazê- zão de ser é caucionar e abençoar alguns encadeamentos causais
lo, pois é uma tarefa sobre-humana. que lhe permitirão dar um julgamento final sobre o mundo dis-
Produzir o acaso para que todas as coisas não se encadeiem sipar em alguns pontos a névoa que vela sua percepção luminosa
obrigatoriamente e continuamente, o que, na felicidade ou na des- do caos, para que possa surgir uma distinção mínima entre o Bem
graça, seria intolerável, para os homens. Produzir o acaso para e o Mal - o Diabo vindo a todo momento atrapalhar esses ar-
que os homens possam jogar e acreditar na sorte ou no azar, o ranjos trabalhosos, e a sedução vindo eternamente embaralhar
que os alivia de qualquer culpabilidade. Importância vital da cren- essa distinção entre o Bem e o Mal - não é de surpreender que
ça na possibilidade do acidente, da ocorrência puramente aciden- esse Deus esteja morto, deixando atrás de si um mundo perfeita-
tal, portanto insignificante, indiferente ou irresponsável, por exem- mente livre e aleatório, e a uma divindade cega chamada Acaso
plo a morte de um amigo, um revés de fortuna, uma catástrofe o trabalho de organizar as coisas.
natural: se essas coisas, além do fato de que' 'nunca chegam so- Assim, Deus não cumpriu absolutamente seu contrato. Ele
zinhas", devem ainda ser atribuídas a uma vontade, a uma ma- que estava ali para ser a causa de todas as coisas, acabou por
lignidade objetiva ou subjetiva, seja ela a Deus, que carga, que obter apenas o que se produz sem causa, o que acontece por uma
peso, que acréscimo de responsabilidade e de pecado - não há conjunção extremamente rara e pouco provável, ou seja, muito
em parte alguma a inocência do devir! Os primitivos acredita- mais carregada de sentido do que o que acontece segundo sua
vam num universo dessa ordem, um universo da força onipoten- causa. O que acontece por acidente se reveste de um sentido e
te do pensamento e da vontade, sem vestígio de acaso, mas jus- de uma intensidade que não atribuímos mais aos acontecimen-
tamente eles viviam na magia e na crueldade. O acaso nos deixa tos racionais. Num mundo excessivamente ordenado e determi-
respirar: ninguém o quis, que alívio! Assim, é Deus que nos con- nado, o acaso é o criador de efeitos especiais, ele próprio é um
cede o acaso em sua imensa misericórdia. Aliás, falaremos com efeito especial, ele assume, para o imaginário, a perfeição do aci-
freqüência, sobre um acontecimento de que queremos nos livrar, dente (como numa série de objetos somente o objeto falho assu-
que "Deus não quis" (isto é, ninguém). Mas Deus está cansado, me valor extraordinário). Portanto, estamos assim num mundo
finalmente, de ter querido, é muito possível que de vez em quan- parodoxal em que a coisa acidental tem mais sentido, mais en-
do ele retire sua vontade e deixe o mundo entregue à lei das coi- canto do que os encadeamentos inteligíveis. Mas talvez essa si-
sas, isto é, à total predestinação. tuação seja conjuntural: o encanto e o sentido superior que atri-
A pressuposição do acaso é a de uni Deus ainda mais ex- buímos ao acidente, o prazer irônico e diabólico das conjunções
traordinário do que aquele que regularia todas as coisas por sua acidentais só se equivalem certamente ao prazer do primeiro es-
vontade, do que aquele de uma predestinação universal ou de um pírito capaz de inventar o primeiro encadeamento causal num
encadeamento providencial ou funesto de todas as coisas. Por- mundo caótico. Este foi o Diabo da sua época e deve ter sido
que nada é mais fácil para as coisas do que se encadear, queimado vivo.
metamorfosear-se umas nas outras. Para impedir isso, para ob-
ter um mundo puramente acidental,é preciso supor uma vonta-
de e uma energia infinitas, o próprio Deus não conseguiria reali- Porém, tudo isso parte da hipótese pobre de um mundo caó-
zar essa tarefa fantástica de isolar todas as partículas, de abolir tico contra o qual é preciso lutar a golpes de encadeamentos ra-
todas as seqüências, todas as seduções esparsas e manter o reino cionais. Enquanto a hipótese inversa, hipótese rica, é infinitamente
absoluto do acaso. No fundo, que artifício é o acaso e como há mais plausível, a saber, a de um mundo onde não existe absoluta-
134 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 135

mente o acaso - nada é morto, nada é inerte, nada é desenca- nificado (pois, este é amplamente arbitrário). O longo trabalho
deado, descorrelato nem aleatório, pelo contrário, tudo se enca- de acoplamento dos significantes aos significados, que é o tra-
deia fatalmente ou admiravelmente - não segundo os encadea- balho da razão, vem de certa forma frear e reabsorver essa pro-
mentos racionais (estes não são fatais nem admiráveis) mas se- fusão fatal. A sedução mágica do mundo deve ser reduzida, se-
gundo um ciclo incessante de metamorfoses, segundo encadea- não anulada. E será no dia em que todo significante terá recebi-
mentos sedutores das formas e das aparências. Visto como subs- do seu significado, quando tudo se tornar sentido e realidade.
tância com falta de energia, o mundo vive no terror inerte do alea- Evidentemente, será o fim do mundo. Literalmente o mundo aca-
tório, ele se desfaz no acaso. Visto sob a ordem das aparências bará quando todos os encadeamentos sedutores tiverem cedido
e de seu desenrolar absurdo, visto como acontecimento puro, ele lugar aos encadeamentos racionais. É o empreendimento catas-
é, ao contrário, de uma absoluta necessidade. Visto sob esse ân- trófico em que nos engajamos: resolver qualquer fatalidade na
gulo, tudo explode em conexões, em sedução: nada é isolado, nada causalidade ou na probabilidade - esta é a verdadeira entropia.
é ao acaso - a correlação é total. O problema seria mais frear, Podemos duvidar que ela tenha sucesso, mas não devemos duvi-
interromper em certos pontos essa correlação total dos aconteci- dar de que o destino e não o acaso seja o curso "natural" dos
mentos. Interromper essa vertigem de sedução, de encadeamen- acontecimentos. E que é o destino, isto é, a sedução fulgurante
to das formas umas pelas outras, essa ordem mágica (outros di- das formas, que a razão tem por vocação e por orgulho destruir,
rão essa desordem mágica) que vemos ressurgir espontaneamen- e não o acaso, a que ela pode muito bem dar lugar. Mais uma
te na forma de seqüências ou coincidências em cadeia (felizes ou vez: o acaso continha a ordem e, quando a ordem veio, ele to-
infelizes), na forma de destino, de encadeamento inelutável quan- mou seu lugar ao acaso na criação.
do todos os acontecimentos vêm se ordenar como por milagre
- todos conhecemos isso, inclusive na escrita e na fala, pois as
palavras têm a mesma compulsão, quando as deixamos atuar li- o trabalho da razão não é absolutamente inventar encadea-
vremente, vir se organizar como destino: toda a linguagem pode mentos, relações, sentidos; há um excesso disso tudo desde o iní-
entrar numa única frase, por um efeito de sedução que precipita cio - é, ao contrário, fabricar o neutro, o indiferente, desmag-
os signos flutuantes para um encadeamento central. Conhecemos netizar as constelações, as configurações inseparáveis para fazer
essa reação em cadeia, sabemos da evidência com que ela se im- delas elementos erráticos, destinado em seguida a encontrar suas
põe, a estranha familiaridade encontrada pelo curso dos aconte- causas ou vagar ao acaso. Quebrar o ciclo incessante das apa-
cimentos quando atua sozinho, por uma contigüidade factual pura rências. O acaso, isto é, a própria possibilidade da indetermina-
- isto é, quando não lhe opomos nossos encadeamentos racio- ção dos elementos, de sua indiferença respectiva e, para dizer tu-
nais, nossas construções lógicas e finais, ou o desenrolar secun- do, de sua liberdade, resulta desse desmantelamento. Em suma,
dário de uma história. só existe o acaso que produzimos artificialmente por liquidação
Tudo isso não está longe do que Lévi-Strauss chamava, em das formas. O acaso nunca existiu, muito menos no estado ori-
termos lingüísticos, o excesso de significante - a idéia de que ginal que lhe atribuímos. Originalmente, todas as formas se ex-
o significante está ali em primeiro, espalhado em toda parte, nu- plicam umas pelas outras, ou melhor, elas implicam necessaria-
ma profusão que felizmente nunca esgota o significado. Essa or- mente umas nas outras, não há vazio.
dem superabundante do significante é a da magia e a da poesia Para que haja acaso, é preciso que haja o vazio. Isto é, pon-
- não é uma ordem do acaso nem do indeterminado, longe dis- tos de desmoronamento de qualquer substância e de qualquer for-
ma, intervalos em que não haja absolutamente nada. E isto, pa-
so, ao contrário, é uma ordem regrada, de necessidade bem su-
ra um pensamento diferente do nosso, nosso pensamento moder-
perior àquela que regula o acoplamento do significante e do sig- no, é impensável. Não é por acaso(!) se a invenção do acaso e
136 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o O BJETO E SEU DESTINO 137

a do vazio foram feitas na mesma época, no século XVII, em


torno de Pascal e de Torricelli.' O homem moderno literalmen- É essa regra fundamental de conjugação secreta do mundo,
te inventou esses conceitos neutros, essas simulações de ausên- de conjugação inédita de todas as formas segundo um destino
cia: o acaso, o vazio - um universo sem laços, sem forma, sem que permite aceitar as modalidades arbitrárias do jogo (as regras
destino, um espaço sem conteúdo - duas abstrações formais, concretas) para fins cerimoniais (e não contratuais, como numa
fundadoras de uma modernidade de onde a fatalidade e a graça, troca ordenada pela lei) como um ritual perfeitamente conven-
no século XVII, começaram a se retirar, dando vez a uma de- cional onde vem se refletir, com um clarão irônico, a absoluta
miurgia experimental e à exterrninação estatística. necessidade que subentende as esperanças do jogo.
O jogo de azar ilustra paradoxalmente essa ausência do acaso, Todos nós somos jogadores. Isto é, o que esperamos mais
sua denegação radical no próprio espírito do jogador. O que o -~
intensamente é que se desfaçam de vez em quando os encadea-
jogador quer não é certamente se ligar na "lei" das probabilida-
, mentos racionais, que vão passo a passo, e que se instale mesmo
des e dos grandes números - isso não é nada exaltante, assim por curto período um desenrolar inédito de outra espécie, uma
como nenhum encadeamento objetivo - ele busca a chance, e maravilhosa valorização dos acontecimentos, uma sucessão ex-
não como efeito de acaso pontual e contingente - não a chance traordinária, como que predestinada, dos mínimos detalhes, em
como sinal de eleição, como processo generalizado de sedução que temos a impressão que as coisas até então mantidas artifi-
que a regra do jogo tenta justamente captar (e não a lei das pro- cialmente à distância por um contrato de sucessão e causalida-
babilidades), a chance como reação em cadeia, como catástrofe de, subitamente se encontrem não entregues ao acaso, mas es-
pontaneamente convergentes e concorrendo com a mesma inten-
de encanto.
sidade por seus encadeamentos.
No âmbito do jogo, toda a estratégia será provocar uma de-
sescalada das causas racionais e uma escalada inversa dos enca-
deamentos mágicos. Não uma ocasião feliz, depois outra, uma Isso nos agrada . São nossos verdadeirosacontecimentos. Essa
de cada vez (a célebre eqüiprobabilidade do acaso em todas as evidência de que nada é neutro, que nada é indiferente, que to-
vezes), mas, ao contrário, um encadeamento fatal dos lances fe- das as coisas convergem por pouco que consigamos anular seu
lizes (tanto quanto dos infelizes, o essencial é mais a fatalidade contrato "objetivo" de causalidade, é a própria evidência da se-
do que o ganho - isto é, o destino absorvido no próprio jogo, dução. Para isso, para cercar os circuitos de causalidade, é preci-
nada mais pode impedir a criação em cadeia de um mundo en- so lançar sinais arbitrários, espécie de códigos arbitrários, como
tregue à pura solicitação do espírito). Sabemos que a chance só são as regras de um jogo, ciladas que desarmarão o dispositivo
é chance se ela fizer bola de neve, como a catástrofe, só se irra- causal, o desenrolar objetivo das coisas e reincitar seu encadea-
diar como foco de sedução - ela não tem nenhuma relação com mento fatal. Estes são os verdadeiros desafios que praticamo s ha-
uma probabilidade objetiva que não vá além disso e merece ape- bitualmente, exatamente como o jogador no jogo. Mesmo a es-
nas ser calculada. Enquanto a chance deve ser forçada: devida- crita faz isso - poesia ou teoria , ela não é mais do que a proje-
mente solicitado, devidamente seduzido, Deus só pode respon- ção de um código arbitrário, de um dispositivo arbitrário (as in-
der, só pode nos dar tudo. Ele só pode deixar as coisas seguirem venções das regras de um jogo) em que as coisas virão se absor-
sua inclinação natural, segundo seu destino de encadear entre elas ver em seu desenrolar fatal.
todas as formas (inclusive os números) sem exceção, sem aciden- Essas catástrofes leves, esses deslizamentos de sentido, esses
te, sem falha. Esta é a regra fundamental do jogo, e o próprio efeitos de turbulência factual, podemos interpretá-los, como David
Deus está submetido a ela. Ruelle,' numa lógica racional do imprevisível, segundo o que ele

, Jacques Brosse, in Traverses, n? 23. ~ David Ruelle, in Traverscs, n? 23.


138 AS ESTRATÉ GIAS FATAIS o O BJE TO E SEU DESTINO 139

chama' 'a dependência sensitiva das condições iniciais", esse sis- sou nem mesmo à situação do sonho - ele deve se ater muito
tema atingido no início por uma perturbação mínima, que vai exatamente à insignificância das minhas palavras, à sua bana-
se ampliando segundo uma progressão exponencial (em particu-
lar nas vizinhanças dos atraentes estranhos), com conseqüências
incalculáveis num tempo relativamente curto: "Um espirro pode
ser a causa de um ciclone alguns meses mais tarde em alguma
parte do mundo." Encadeamento fascinante, pelo efeito desme-
dido, mas que é objetivo e determinista, até na imprevisibilida-
,
,. I
lidade.
O que mais dizer? Nada está mais próximo dessa sensação
deliciosa, vertiginosa, insolúvel, de ser o elemento decisivo de al-
guma situação, sem outra obrigação que a de agradar a alguém
com um único olhar. Uma causa ínfima, um efeito extraordiná-
rio: é a única prova que temos da existência de Deus . Os enca-
I
de. Penso que se trata de outra coisa nessas súbitas escaladas que deamentos incalculáveis são a trama dos nossos sonhos, mas tam-
surpreendem o curso das coisas. Trata-se de uma mutação lógica I
I bém da nossa vida cotidiana. Nada amamos mais do que essa
e não apenas de uma lógica exponencial. Um pouco como nos distorção louca do efeito e da causa - ela nos abre horizontes
sonhos, segundo Freud, as palavras esvaziadas de sua significa- fabulosos sobre nossa origem e sobre nosso eventual poder. Di-
ção começam a funcionar como coisas, devolvidas ao mesmo es- zem que a sedução é uma estratégia. Nada é mais falso. Ela re-
tado material bruto e assim se encadeando em sua imanência ma- pousa sobre encadeamentos imprevisíveis que qualquer estraté-
terial, absurda (mas não ao acaso), além de qualquer sintaxe e gia não faz mais do que tentar reproduzir.
de qualquer princípio de coerência - as palavras se tomam por
coisas e com isso entram no jogo das coisas - assim, pode às
vezes acontecer que os próprios fatos entrem no jogo além de A causa produz o efeito. Portanto, as causas sempre têm um
qualquer psicologia ou causalidade objetiva, que entrem no jo- sentido e uma finalidade. Por isso elas nunca levam à catástrofe
go e dobrem sua aposta, sem se preocupar com o sentido da his- (elas só conhecem a crise). A catástrofe é a abolição das causas.
tória - pode acontecer que as próprias situações escapem ao seu Ela submerge a causa no efeito. Ela precipita o encadeamento
sentido e num encadeamento supra-sensual queiram surpreender causal para sua perda. Ela devolve as coisas a sua aparição pura,
sozinhas. As conexões assim criadas dão uma impressão de ca- ou a seu desaparecimento (assim, a aparição do social puro, e
tástrofe, isto é, de um engavetamento, de uma turbulência ines- seu desaparecimento simultâneo, no pânico). No entanto, ela não
perada dos acontecimentos, mas que guarda, como os acopla- vem do acaso, nem da indeterminação, mas de certa forma do
mentos "livres" das palavras nos sonhos, o aspecto de extraor- encadeamento espontâneo das aparências, ou da escalada espon-
dinária necessidade. Pequenas gravitações aceleradas, pequenos tânea das vontades, como no desafio, ou da comutação espontâ-
"ciclones" nascem assim dos próprios acontecimentos, na pro- nea das formas, como na metamorfose.
ximidade do sujeito mas fora dele - acontecimentos puros em Nunca são as causas, são as aparências, quando se encadeiam
que o próprio sujeito não é mais uma palavra mas uma coisa, em si mesmas, que levam à catástrofe. Contrariamente à crise,
e funciona segundo a vontade das coisas. que é apenas a desordem das causas, a catástrofe é o delírio das
Num sonho, acabei de sofrer um luto grave, apesar de enig- formas e das aparências. Como o delírio é o encadeamento pu-
mático. Alguém me diz que esse luto, no fundo, aconteceu mui - ro, irreferencial, da linguagem, como a cerimônia é o encadea-
to simplesmente. Respondo que é sempre assim. E todos os que mento puro, irreferencial, dos gestuais, dos ritos e dos trajes, a
me cercam dão imensa gargalhada. Desencadeei uma espécie de catástrofe é o encadeamento puro, irreferencial, das coisas e dos
catástrofe de riso. E por essa coincidência entre o pouco que eu acontecimentos - ora, justamente tudo isso não é um acaso, é
disse e seu efeito desmedido sinto-me misteriosamente varrido, um encadeamento formal da maior necessidade (que encontra-
apagado. O que foi que provoquei sem saber? Ou melhor, em mos na valorização absurda de acontecimentos negativos ou gro-
que encadeamento prodigioso entrei sem querer? Encadeamen- tescos que podem às vezes nos acontecer: em vez de se acumula-
to que só pode se ater exatamente ao que eu disse, não ao que rem na tristeza ou mergulharem no ridículo, como deveria ser se
140 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO
141

somente o acaso os justapusesse, eles se desacumulam e se anu- causas, o signo do aparecimento das coisas é também o de seu
lam uns aos outros numa espécie de catástrofe natural espontâ- desaparecimento. O signo do seu nascimento será o de sua mor-
nea, de onde só aparece a satisfação, a sedução de sua sucessão te. Podemos tentar, entrementes, transtornar a ordem das razões
formal, a beleza de seu entrelaçamento. O único prazer no mun- mudar o curso das coisas, correr sob outros céus ou fazer urna
do é realmente ver assim as coisas "virarem" catástrofe, sair en- psicanálise, nada adianta: o mesmo signo, a mesma constelação,
fim da determinação e da indeterminação, da necessidade e do o mesm~ traço decaráter, o mesmo pequeno acontecimento que
acaso, para entrar no reino dos encadeamentos vertiginosos, pa- estava ali no nascimento se encontra ali no momento da morte.
ra o melhor e para o pior, daquilo que encontra seu fim sem pas- ? emblema da elevação ~ o da queda, o emblema da aparição
sar pelos meios, do que encontra seu efeito sem passar pelas cau- e o mesmo do desaparecimento. Isso é um destino. E tanto faz
sas, como o dito espirituoso ou também o dito da sedução - querermos interpretar, é inútil. Nenhum código, nenhum núme-
daquilo que não procede pelos desvios do sentido, mas pelos ca- ro. A eficiência de um único signo. Não diz respeito obrigatoria-
minhos ultra-rápidos da aparência. mente a uma vida inteira, nem a uma dinastia inteira como na
tragédia antiga, pode ser apenas uma breve seqüência, mas de
um encadeamento fatal, nem racional nem acidental: nada de me-
Portanto, não existe o acaso. O acaso caracterizaria a possi- ~os acidental do que um mesmo signo que presida o início e o
bilidade absolutamente improvável de que as coisas, privadas de fim. Em comparação a isso todo o resto é acidental, todo o resto
suas determinações e de suas causas, seriam entregues a si mes- é acaso - mas isso é fatum, O fatal se opõe completamente ao
mas, efetivamente e realmente livres, flutuando num hiperespa- acidental.(assim como ao racional, é claro). Ora, há muito tem-
ço aleatório, com algumas vagas chances de encontros de tercei- po preferimos a versão acidental do mundo (quando nos falta
ro grau. É mais ou menos a sorte que nos está reservada no final a versão racional) à versão fatal. Nossa versão da aparente de-
de todas as liberações, no inferno molecular que nos preparam. sordem do mundo é de preferência a do acaso e do acidente. Ora
Porém, em outro plano, justamente bem mais radical do que o acreditamos que o acidental é extremamente raro, contrariarnen-
real, isso é completamente impossível: o acaso, o conceito do aca- te ao que se pensa (o acaso é improvável) c a fatalidade muito
so, leva a crer que não há outro encadeamento possível além do freqüente. Quase sempre perdemos tudo num número que nos
das causas. Assim, tolamente, ele está do lado da necessidade: fez ganhar tudo, e não apenas na mesa de jogo. Podemos dizer:
se as coisas não têm mais causas (ou se elas não podem mais não é de espantar, as pessoas jogam sempre no mesmo número
"produzi-las") então, elas não são mais de nenhuma ordem, salvo - mas, justamente, não é por acaso que eles jogam no mesmo
se retornarem à equação forçada das probabilidades. Elas va- número.
gueiam como almas mortas no purgatório do aleatório. O acaso Contrariamente a toda nossa moral virtuosa, as coisas po-
é isto: o purgatório da causalidade. Ali onde as almas esperam dem ter um encadeamento predestinado. Em vez de progredirem
que lhes dêem um corpo, ali onde os efeitos esperam que lhes segundo uma gênese e uma evolução, elas se inscrevem antecipa-
dêem uma causa. Logo antes do inferno molecular onde, decidi- d~~ente em ~eus desaparecimentos. Então, é a profecia que as
damente, eles serão para sempre aniquilados. dls~m~ue e nao a I?reVIsão. Se conhecemos o signo da aparição,
Porém, as coisas têm outros encadeamentos além de suas a hipótese da fatalidade, de que o curso das coisas ou as peripé-
causas. A fatalidade, por exemplo (que na maioria das vezes con- ~i~s do jogo trarão inevitavelmente esta vida ao mesmo ponto,
fundimos com o acaso em seus efeitos funestos). Lembro-me desse a mterseçao fatal do mesmo sinal, essa hipótese permite prever
episódio em que, tendo milagrosamente escapado de uma queda esse acontecimento, porque é o acontecimento de um signo se-
de carro no barranco, os espanhóis paravam na beira da estrada guro. Podemos então entrever o curso dos acontecimentos como
para nos tocar religiosamente pronunciando: "Suerte suerte ...', ao longo de uma cerimônia, a cerimônia do mundo, cujo térmi-
Na fatalidade ou no destino, longe de ser o encadeamento das no oferece caráter imutável. Nem tudo é destino, nem tudo é ce-
142 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 143

rimônia mas certamente em cada existência e na desordem de A potência dos acontecimentos que nos ocorrem sem que
suas causas e de seus efeitos existem certas pequenas seqüências queiramos, sem que atuemos neles. Mas não por acaso, Pois é
imutáveis do maior interesse. conosco que eles acontecem e essa coincidência nos atinge, ela
nos é destinada. Mesmo sem ter querido, porque não quisemos,
ela nos seduz. Essa é a grande diferença entre o destino e o aca-
Dois acontecimentos, com dez anos de distância. Nenhuma so. Porque o acaso puro, supondo que ele exista, nos é perfeita-
relação entre os dois. Dois desaparecimentos equivalem a um as- mente indiferente, a ocorrência pura não tem nada para nos se-
sassinato simbólico. Algo - como dizer? - de espiritualmente duzir - ela é objetiva, ponto final. Aliás, é essa estratégia do
inexpiável. A primeira vez fui eu que desapareci dessa m_aneira, acaso que adotamos para neutralizar um acontecimento ou ate-
a segunda fui eu que fui abandonado sem sombra de razao. Isto nuar seu efeito: "Foi obra do acaso" (não fui eu) . A morte aci-
não restabelece absolutamente um equilíbrio de soma nula, e na- dental de um amigo, de um parente, não pode deixar de levantar
da foi resgatado (o que pode haver para resgatar?). Mas a histó- algum fantasma culpado. Ou então a idéia insuportável de que
ria quer que uma reversibilidade tenha se instalado furtivamen.te o outro nos abandonou, por um capricho de morte. Qualquer
entre dois acontecimentos secretos um para o outro, entre os quais, coisa é preferível a essa crueldade mental de um universo regido
aliás, eu nunca havia feito nenhuma relação (deveria tê-la feito: pela onipotência do pensamento. E aqui o acaso é bem prestati-
eram as duas únicas pessoas com que eu sonhava regularmente vo: basta pensar (mas é difícil) que as coisas aconteçam sem ra-
há vários anos) até o dia em que os dois episódios me aparece- zão, ou com um máximo de razões objetivas (técnicas, materiais,
ram sob um único signo e de repente se resolveram na beleza dessa estatísticas) que afastam de nós a responsabilidade - na reali-
conjunção. Esse sinal era um nome, essas duas p~ssoas ,tin.ham dade, que nos absolvem do que o acontecimento possa ter, para
o mesmo nome. Ninguém pode dizer por que cammhos ínfimos nós mesmos, de profundamente sedutor, tal como teríamos de-
as coisas se desatam, mas certamente não é um acaso. Aqui, .a sejado ser sua causa. Porque gostaríamos de ser a causa de qual-
iluminação foi feita na coincidência dos nomes, e assim esses dOIS quer morte (como de qualquer vida ou acontecimento feliz). E
acontecimentos inexpiados porque sem história (não havia nada isso nada tem de revoltante. Isso não quer dizer que desejamos
para contar, nem fábula, nem álibis, nem boas <:>u. ~ás razões, a morte de alguém. Mas que preferimos tê-la desejado em vez
nada - os desaparecimentos eram brancos e definitivos -::- ora, de ela acontecer por um efeito acidental. Desejar a morte de al-
habitualmente só resolvemos as coisas com histórias ou com a guém é insuportável do ponto de vista moral, mas que essa mor-
psicologia) entravam em outro modo de, ~soluç~o, mU,it? mais te seja um puro efeito do acaso sempre é insuportável do ponto
extraordinário, pois se unindo numa especie de dito esp írttuoso, de vista simbólico, que é muito mais fundamental. Assim, do pon-
de predestinação, eles se encontraram, os ?ois acontecimentos fan- to de vista moral, podemos querer nos preservar com toda espé-
tasmas, liberados, desligados do que eles unham de separadamente cie de álibis (inclusive o acaso) do encadeamento fatal dos acon-
ininteligíveis. Seu redobramento, sua imaginação gêmea, sua co.n- tecimentos, mas do ponto de vista simbólico temos profunda re-
junção, os tornava subitamente inteligíve.is sem ave o segredo ~e pugnância por um mundo neutro, regido pelo acaso, portanto ino-
um ou de outro fosse revelado. O que tena acontecido psicologi- fensivo e despojado de sentido, tanto quanto por um mundo on-
camente de uma parte e de outra nos dois casos? Era sem impor- de tudo fosse regido pelas causas objetivas; ambos, apesar de mais
tância, já que o que não tinha sentido estava resolvido em outro fáceis de viver, não resistem à imaginação fascinante de um uni-
encadeamento. verso inteiro regido pelo encadeamento divino ou diabólico das
Eu economizara uma psicanálise (pela inutilidade do coincidências propositais, isto é, um universo onde seduzimos os
inconsciente). acontecimentos, onde os induzimos e os fazemos acontecer pela
onipotência do pensamento - universo cruel onde ninguém é ino-
cente, e principalmente nós, universo em que nossa subjetividade
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AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTI NO 145

se dissolveu (o que nós aceitamos alegremente) porque ela se reab- A própria velocidade é certamente apenas isso: por ela e além
sorveu no automatismo dos acontecimentos, em seu desenrolar de qualquer tecnologia, a tentação, para as coisas e os homens,
objetivo. De certa forma ela se tornou mun~o. ~ã.o esqueçamos de ir mais depressa do que suas causas, e de agarrar assim suas
de que se quisermos pretender essa sabedoria mmima que e ess.e origens para anulá-las. Nesse ponto, é uma maneira vertiginosa
mundo, é preciso definitivamente tê-lo desejado, de. uma manei- de desaparecimento (paul Virilio). Mas a escrita é outra: ir mais
ra ou de outra é preciso tê-lo amado, de uma manerra ou de ou- depressa do que o encadeamento conceitual, este é também o se-
tra é preciso tê-lo inventado, então, é precis~ t~mbém que n~m gredo da escrita.
a morte do. nosso amigo, nem algum outro mcídente ou catas- Em relação a essa ocorrência catastrófica - a catástrofe es-
trofe tenha escapado a nosso pensamento e a nossa vontade. tá sempre adiantada sobre o prazo normal; ela é sempre um en-
Nós gostaríamos que existisse o acaso, o contra-senso, por- gavetamento, uma instantaneização brusca do tempo, um sismo
tanto a inocência, e que os deuses continuassem jogando dados que aproxima as beiradas afastadas do tempo - o sentido sem-
com o universo, mas nós preferimos que haja por toda a parte . pre está atrasado. É o Messias de Kafka: ele só virá quando não
a soberania, a crueldade, o encadeamento fatal, nós preferimos for mais necessário, um dia depois do juízo final.
que os acontecimentos sejam a conseqüência radical do pensa- E o eterno atraso a que as coisas estão condenadas pelo sen-
mento. Nós gostamos disso e preferimos aquilo. Da mesma for- tido. Sempre ter que inventar causas para conjurar o prestígio de
ma, gostaríamos que todos os efeitos se encadeassem segundo seu aparecimento. Sempre ter que inventar um sentido para con-
suas causas, mas preferimos que haja pelo mun~o o ac~so e a jurar as aparências, para retardar seu encadeamento excessiva-
livre coincidência. Simplesmente creio que preferimos acima de mente rápido.
tudo o encadeamento fatal. Nunca o determinismo abolirá o aca- Essa reversibilidade da ordem causal, essa reversão do efei-
so. Mas nenhum acaso poderá abolir o destino. to sobre a causa, essa precedência e esse triunfo do efeito sobre
a causa, é fundamental, Podemos dizer que ela é primordial, fa-
"O que acontece tem tal dianteira sobre o que pensa- tal e original. E a do destino. Em algum lugar ela representa cer-
mos sobre nossas intenções, que nunca podemos alcançá- tamente um perigo mortal, justamente porque não deixa lugar
lo e'nunca podemos conhecer sua verdadeira aparência." para o acaso (o acaso só é deduzido, a contrario, de uma ordem
RAlNER MARIA RILKE da causalidade). Por isso nosso sistema, ocidental para o essen-
cial, substituiu-a por outra precedência, a da causa sobre o efei-
to, e mais recentemente a precedência dos modelos, a precedên-
Esta é a definição do destino: a precedência do efeito sobre cia dos simulacros sobre as próprias coisas, que também conju-
as próprias causas. Assim, todas as coisas aco~tecem. antes de ram o aparecimento de uma outra maneira. Precedência contra
acontecerem. As causas vêm depois. As vezes ate as COIsas desa-
parecem antes de acontecerem, antes de se produzirem. O que precedência - é preciso ver o desafio que opõe as duas ordens.
Não há lugar ali para o acaso, isto é, para uma substância neutra
sabemos então? e indeterminada. O universo é maniqueísta, nele duas ordens são
O fato de que as coisas estejam adiantadas em relação ao
desenrolar de suas causas, a precedência no tempo, isso é seu se- absolutamente opostas. Nada é determinado mas tudo é anta-
gredo. É esse o segredo de sua sedução - é,também o q~e i~pe­ gônico.
de para sempre o real de advir, pOIS o real e apenas a coincidên- Por isso é preciso ir bem além de uma simples crise de cau-
cia no tempo de um acontecImento e de um desenrolar causal. salidade. As coisas só podem estar em crise numa ordem "nor-
Quando as coisas vão mais depressa do que suas causas, elas mal" de sucessão, a crise é então a organização da causalidade:
têm tempo de aparecer, de se produzirem como aparências, an- liberar as causas e reencontrar um encadeamento racional das cau-
tes mesmo de se tornarem reais. E então que elas guardam sua sas e dos efeitos. Enquanto nessa precedência súbita, nessa re-
força de sedução. versibilidade do acontecimento que devora as próprias causas,
146 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO
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as coisas nem têm mais tempo de se verem contestadas em seu rar alguma sUfJ~resa - a arte de escapar, ao mesmo tempo, ao
princípio e se corrigirem em seu desenvolvimento. O acidente puro, ac~s.o e a necessidade, A arte de uma certa expressão, fatal e enig-
o engavetamento brutal do real e de sua representação, diria Clé- manca, a que comanda a ordem de aparecimento e desapareci-
ment Rosset, não deixa nenhuma chance para uma temporalida- mento das coisas.
de crítica do sentido. É a ordem do aparecimento e da aparência
pura. Tudo se decide nessa cambalhota do sentido.
É o que percebe a ciência quando, não contente em questio- o ilusionista e a rosa de Paracelso.
nar o princípio determinista de causalidade (isto é uma primeira O ilusionista virtuoso sonha em realizar com sua arte uma
revolução), ela pressente, além do próprio princípio da incerte- grande obra:, fazer desaparecer, aos olhos de todos, aquela mu-
za, que atua ainda como hiper-racionalidade - o acaso é uma lher que esta com ele no palco. Escamotear o coelho, o lenço,
flutuação das leis, o que já é extraordinário - mas o que agora o chapéu, nada mais fácil, mas ele nunca conseguiu fazer desa-
a ciência pressente, nos confins físicos e biológicos de seu exercí- parecer aquela mulher e sonha com isso. Ora, uma noite, duran-
cio, é que além de flutuação, de incerteza, existe uma reversibili- te o espetáculo, subitamente a sala vem abaixo com os aplausos:
dade possível das leis físicas. Isto, seria o enigma absoluto: não a mulher desapareceu. Ele conseguiu, mas como? O problema
alguma ultrafórmula ou metaequação do universo (o que era ainda está em descobrir por que caminhos secretos, por que desvio irn-
a teoria da relatividade), mas a idéia de que qualquer lei pode previ~t~ ele consegu~u (talvez bastasse pensar nisso, conseguir
se reversibilizar (não apenas a partícula na antipartícula, a ma- imaginá-la desaparecida? o que não é tão fácil) - mas talvez não
téria na antimatéria, mas as próprias leis). Essa hipótese da re- fosse um poder que a fizesse desaparecer, e sim um acaso que
versibilidade sempre foi feita nas grandes metafísicas, é a regra não depende dele e de que ele é somente o condutor?
fundamental do jogo das aparências, da metamorfose das apa- A outra história: a de Paracelso. Um estudante vai visitá-lo
rências, contra a ordem irreversível do tempo, da lei e do senti- ele quer que Paracelso seja seu mestre e lhe ensine seus poderes:
do . Mas é fascinante ver a ciência chegar às mesmas hipóteses, Mas ele quer uma prova imediata. Paracelso está reticente. O outro
tão contrárias a sua lógica e a seu desenvolvimento. insiste, joga a rosa que segurava no fogo da lareira e desafia o
Portanto, a última palavra não seria a causalidade, nem o mestre a fazê-Ia ressurgir. Paracelso se recusa, dizendo que é im-
determinismo, nem tampouco a causalidade flutuante, a proba- possível. O estudante, decepcionado e zangado, vai embora. En-
bilidade, a incerteza nem a relatividade, mas a reversão, a reversi- tão Paracelso se. inclina para a lareira, pronuncia uma palavra ,
bilidade. e a rosa ressuscita.
Portanto, as coisas não seriam encadeadas segundo a lei, nem O relato de Borges tem algo de impenetrável: além de uma
livres e indeterminadas segundo o acaso, mas reversíveis segun- hist~ria de mestre e discípulo bastante convencional, é quase im-
do a regra. O problema que surge então é: como é possível que possível saber finalmente se Paracelso tem realmente o poder de
a partir de uma ordem reversível se possa ter fundado uma or- ressuscitar a rosa com uma palavra, ou se no fundo ele tenta sim-
dem irreversível - a do tempo, a da causalidade, a da história, plesmente fazê-lo e, por milagre ou por acaso, "funciona", ele
a do próprio acaso? Mas talvez tudo isso apenas dê um efeito mesmo sendo o mais surpreso. No fundo ele não teria mentido
de irreversibilidade ao nosso mundo, e talvez isso esteja mudan- dizendo ao discípulo que não tinha o poder de fazê-lo, e esse po-
do; poi s até mesmo as leis físicas, as maiores garantias do efeito der lhe teria vindo em seguida, inopinadamente; ou também nesse
de irreversibilidade causal do nosso universo, não estão se incli- caso não se trata absolutamente de um poder e sim de um acaso
nando lentamente para a reversibilidade? um acidente, cuja ocorrência será para sempre misteriosa? '
De toda maneira, é dessa reversibilidade, e não da causali- Por que efeito, que não seja nem um acaso (é muito impro-
dade, que devemos esperar efeitos inéditos. É dali e não do aca- vável) nem um poder (é muito fácil), a mulher desaparece e a ro-
so e de sua irrisória objetividade estatística, que devemos espe- sa reaparece? (Por que buscar uma verossimilhança nas histórias
148 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 149

imaginárias? Mas justamente, são estas, e nunca as histórias ver- Nela se exalta a ordem definitivamente artificial e conven-
dadeiras, que exigem a busca de uma solução secreta, elas são cional do mundo, a objetividade oculta que brilha por trás da
.-
como os ditos espirituosos que exigem uma forma espirituosa de subjetividade das aparências.
análise); portanto, devemos pensar - e essa hipótese, sentimos Dizem que o pensamento selvagem subjetiva tudo, sem le-
isso, tem tudo nela de irreal, tão irreal quanto as provas que lhe var em conta a objetividade do mundo. Mas somos nós que, por
faltam e sempre lhe faltarão - que tudo atua na iminência re- trás do álibi da razão objetiva, subjetivamos tudo, psicologiza-
versível das coisas e que basta percebê-lo. Nada se opõe funda- mos tudo, impondo a tudo uma subjetividade oculta.
mentalmente a que essa mulher desapareça, e o segredo do ilu- A cerimônia põe término nesse ocultismo da subjetividade.
sionista é este: todas as coisas reais estão prontas, imediatamen-
te dispostas a desaparecerem, diríamos que elas só esperam por Que ele (o brâmane) nunca olhe o sol quando ele nasce, nem quan-
isso. Basta afastar a vontade de realidade que nós temos, a von- do ele se põe, nem durante um eclipse, nem quando ele se reflete
tade de permanência e de existência que as faz durar além de seu na água, nem quando ele está no meio do percurso.
aparecimento. Ou melhor, talvez fosse melhor conhecer a regra Que ele não passe por cima de uma corda em que está amarrado
segundo a qual assim que uma coisa aparece, ela tenta desapare- um bezerro, que ele não corra enquanto chove, e não olhe sua ima-
gem dentro d'água; esta é a regra estabelecida.
cer. Portanto, as coisas também só pedem para seduzir, basta afas- Que ele sempre mantenha sua direita do lado de um montículo
tar delas a vontade de sentido. Aliás, as duas coisas caminham de terra, de uma vaca, de um ídolo, de um brâmane, de um vaso
juntas. Para fazer essa mulher desaparecer, é preciso seduzi-la de manteiga refinada, ou de me/' de um lugar onde quatro cam i-
(desviá-la de sua existência real, real demais). Para ressuscitar a nhos se encontram, e grandes árvores muito conhecidas, quando
rosa, basta seduzi-la (desviá-la de sua inexistência de cinza). Por- ele passar perto delas.
que seduzir as coisas é repô-las em seu ciclo de aparecimento e Por mais desejo que ele sinta, ele não deve se aproximar de sua
desaparecimento, de contínuas metamorfoses, e é repor a si mes- mulher quando as regras desta começam, nem repousar com ela
na mesma cama.
mo no ciclo onde não existe nem acaso nem poder, mas onde se
Que ele não coma com sua mulher no mesmo prato e não a olhe
encadeiam segundo a regra infalível (é o próprio destino) o apa- enquanto ela come, ou espirra, ou boceja, nem quando ela está
recimento e desaparecimento. Segundo uma ordem linear e vo- sentada descuidadamente.
luntária, a mulher nunca pode desaparecer, a rosa nunca pode Nem quando ela aplica o colirio em seus olhos ou se perfuma com
reaparecer. Elas só podem fazê-lo segundo uma ordem reversí- essência, nem quando ela está com seu peito descoberto, nem quan-
vel, e a arte está em se pôr nela. do ela dá à luz.
Que ele não ponha sua urina e seus excrementos nem sobre o ca-
minho, nem sobre as cinzas, nem num pasto de vacas, nem numa
terra lavrada com o arado, nem na água, nem sobre uma pira fu-
nerária, nem sobre uma montanha, nem sobre as ruínas de um tem-
plo, nem sobre um ninho de formigas brancas, em tempo algum.
Nem nos buracos habitados por criaturas vivas, nem andando, nem
A CERIMÔNIA DO MUNDO de pé, nem na margem de um rio, nem no cume de uma montanha.
Da mesma forma, ele nunca deve evacuar sua urina e seus excre-
Na ordem dos encadeamentos altamente convencionaise per- mentos olhando objetos agitados pelo vento, nem olhando o fo-
feitamente regulamentados, na ordem dos encadeamentos vazios go, ou um brâmane, ou o sol, ou a água, ou as vacas.
da mais alta necessidade, a cerimônia é o equivalente da fatalidade. De dia, que ele faça suas necessidades com o rosto dirigido para
Encadeamento extático como o do jogo : a cerimônia não o norte; de noite, a face virada para o sul; na aurora e no crep ús-
tem sentido, ela tem apenas uma regra esotérica. E ela não tem culo, do mesmo modo que durante o dia.
fim, já que é iniciática. Leis de Manou, livro IV.
ISO AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 151

No código de Manou, cada detalhe da existência é minucio- O processo que regula o prazo do mundo sobre a ocorrên-
samente ritualizado: teatro da crueldade, cada instante é marca- cia de um sinal puro, sobre o acontecimento do sinal cerimonial,
do por um sinal necessário, de uma discriminação, de uma dis- seja ele o da catástrofe, será sempre mais grandioso e mais fasci-
tinção sagrada (absolutamente nada de distinção sociológica, esta nante do que o de um desenvolvimento causal. O processo que
e característica de uma ordem mais fraca, mais banalizada, de nos rouba nossa liberdade e nos põe num ciclo da predestinação
uma desordem da regra e do cerimonial que dá margem a todas (seja na forma mais banal da "chance") tem mais possibilidade
as avaliações subjetivas - mas esse tipo de ordem, a ordem so- de nos seduzir do que o de uma liberdade e de uma responsabili-
ciológica, não é muito interessante) no mínimo gesto, na menor dade que, de toda maneira, também são sem fundamento: em
palavra, na mínima secreção do corpo, no menor dos aconteci- vez de nos entregarmos à comicidade de uma liberdade às voltas
mentos naturais. Tudo é iniciático, no sentido que tudo só acon- com seu fundamento, entreguemo-nos de preferência ao trágico
tece pelo signo necessário, inelutável, de seu aparecimento, tudo do arbitrário puro. Cada qual em segredo prefere uma ordem ar-
só muda pelo signo necessário, inelutável, de sua metamorfose. bitrária e cruel, que não lhe deixe escolha, aos tormentos de uma
Este é o cerimonial do mundo, sua organização perfeita, que ordem liberal em que ele não sabe o que quer e é obrigado a re-
é o contrário do desejo subjetivo e do acaso objetivo. O desejo conhecer que não sabe o que quer: pois no primeiro caso ele está
e o acaso são banidos da cerimônia. Ela não é nem sua metáfo- destinado à determinação máxima e, no segundo, à indiferença.
ra. Não existe nenhuma metáfora, nenhuma retórica nenhuma Cada qual prefere em segredo uma ordem tão rigorosa e um de-
alegoria, nenhuma metafísica, no texto das Leis de Manou. Ne- senvolvimento tão arbitrário (ou tão pouco lógico, como o do
nhum mistério também: só o desenrolar puro, o número puro do destino ou da cerimônia) que a menor falha derruba o conjunto,
cerimonial dos dias e das noites, com suas obrigações. A lingua- ao encaminhamento dialético da razão, em que uma lógica final
gem é imanente, como o rito: ele edita as regras, ele não se mete domina todos os acidentes da linguagem. Certamente temos o
nem com a dialética nem com a psicologia. Ele não recorre nem profundo desejo de desviar o destino, de perturbar a cerimônia,
mesmo a mitos justificativos ou alusivos. Ele diz o que é preciso assim como violentar qualquer ordem que exista: mas essa vio-
fazer, ponto final. Nenhum sistema de valores ou de interpreta- lência é então predestinada, ela ganha relevo na própria ordem
ção: um sistema de regras. cerimonial, ela não é uma violência informal, ela cria uma peri-
Ora, é aqui que os signos assumem maior intensidade: quan- pécia dramatúrgica. Penso naquela belíssima cena da Porte de
do eles só requisitam a observância pura. Quando eles levam ao l'enfer, em que, durante uma longa seqüência de cerimônia do
mais alto grau, como as regras de um jogo, o arbitrário e a dis- chá, que se desenrola em silêncio, bruscamente um dos cavalei-
criminação. Não a diferença, que sempre tem um sentido mas ros se levanta e vira uma xícara: todos os conflitos secretos vêm
a discriminação, que é a forma realmente rigorosa da marcação à tona com esse único sinal, cuja violência justamente não é ex-
e o equivalente da predestinação no tempo - o que sempre está terna à regra - parece que é a própria tensão ligada ao cerimo-
ali antes de ter acontecido (portanto, perfeitamente miraculoso), nial que produz essa efração súbita como efeito necessário. As-
o que toma a força de signo antes de ter um sentido (portanto, sim a violência cerimonial aparece não como uma transgressão,
perfeitamente arbitrário), o que se impõe como fim antes de ser mas como uma exacerbação da regra, em que todo o uni verso
justificado (portanto, perfeitamente injusto). Tudo isso pode nos está suspenso na interrupção do jogo. O mesmo efeito é obtido
p~recer, na desordem moral sentimental e democrática em que na ópera chinesa quando todos os guerreiros em movimento se
VIvemos, completamente injustificável e imoral com efeito - há imobilizam subitamente, no auge do confronto dual, num paro-
. '
muno tempo reservamos nossos ataques à predestinação e à dis- xismo mudo em que a própria imobilidade violenta o movimento.
criminação, em compensação cultivamos amorosamente a fina- Portanto, qualquer cerimônia é violenta em seu desenvolvi-
lidade e a diferença - e no entanto é ali que as coisas, os signos, mento, mas essa violência é a da reversibilidade da regra e não
oferecem o máximo de intensidade, de fascínio e de prazer. a da transgressão da Lei. O signo atrai o signo inverso unicamente
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pela força dos signos. Já o encadeamento dos signos na cerimô- traços orientais, sem contar que fazem menos uma exceção do
nia e o fato de que eles possam se suceder e se engendrar um ao resto e implicam de preferência uma cerimônia gestual do corpo
outro segundo a regra única do ritual, constituem uma violência inteiro, são traços da raça , portanto arbitrários e convencionais
feita ao real. E o fato de que toda a cerimônia se encadeia segun- por oposição à nossa estética naturalista e expressionista, mas
do um ciclo é uma violência feita ao tempo. E o fato de que ela ao mesmo tempo eles adquirem uma beleza bem mais extraordi-
se organiza unicamente sobre os signos, sobre os milhares de sig- nária, de morfologia ritual igual para todos . Nenhuma distinção:
nos puros de que ela encontra o encadeamento supra-sensual, é a mesma beleza se mostra nos rostos dos homens ou das mulhe-
uma violência feita ao sentido e à lógica do sentido. Toda a se- res e de certa forma nenhum deles é feio, já que se destacam pelo
dução da cerimônia está nessa violência idolátrica, demiúrgica, mesmo desenho. Diante dela, a beleza ocidental, com sua indivi-
bárbara, que se opõe à cultura do sentido. dualização segundo os modelos híbridos, aparece extraordinaria-
mente vulgar. O jogo dos significantes morfológicos da raça, ga-
nha de longe dos valores estéticos significados por nossa cultura.
Se a cerimônia é sinônimo de lentidão é porque ela é da or- A beleza cerimonial não é a do sujeito, assim como a inten-
dem da predestinação e do desenvolvimento regulamentado. A sidade do jogo não é a do afeto ou do desejo. O jogo do cerimo-
precipitação, assim como para o sacrifício, seria sacrilégio. É pre- nial é igualmente destruído pela lei moral ou pelo desejo.
ciso dar tempo à regra de atuar e aos gestos o tempo de se reali-
zarem. É preciso dar ao tempo o tempo de desaparecer. A ceri-
mônia tem o pressentimento de seu desenvolvimento e de seu fim. Hoje, pomos a lei moral acima dos signos. O jogo das for-
Ela não tem espectadores. Em toda a parte onde há espetáculo, mas convencionais é julgado hipócrita e imoral: opomos a ele a
a cerimônia cessa, pois ela é também uma violência feita à repre- "polidez do coração" e mesmo a impolidez radical do desejo.
sentação. O espaço onde ela se move não é um palco, um espaço Acreditamos na troca e na sinceridade da troca, numa verdade
de ilusão cênica: é um lugar de imanência e de desenvolvimento natural dos sentimentos e dos afetos. Acreditamos numa verda-
da regra. Pensemos mais uma vez na operação do jogo (de car- de oculta das relações de força, de que os signos seriam a su-
tas, de xadrez, de azar): nada de menos teatral do que a paixão perestrutura expressiva, sempre suspeitos de desvio da realidade
do jogo - toda a intensidade é dirigida para o interior, para a e de mistificação das consciências. Acreditamos numa verdade
operação interna da regra, ao contrário da cena e do espetáculo, sexual oculta do corpo de que este é apenas a superficie de deci-
que são abertos ao olhar. A menor intrusão cênica do olhar faz framento. Acreditamos no primado de uma energia informal ou
a cerimônia cair na estética, justamente com isso se torna a fon- de uma profundidade do sentido (a lei inscrita no fundo dos co-
te de um prazer, mas a cerimônia não é da ordem do prazer, ela rações), cujo destino é abrir caminho por meio da confusão su-
é da ordem do poder, e este vem da imanência, em cada um dos perficial dos sinais. E estamos prontos a transgredir os códigos
seus signos e de seus atores, de seu desenvolvimento, e não de estabelecidos para fazer brilhar a Lei e a Verdade.
alguma transcendência do julgamento estético. É verdade que a polidez (e a cerimônia em geral) não é mais
Ela tem a beleza racial e ritual dos rostos japoneses, por opo- o que era. Mas é porque queremos lhe dar um sentido que lhe
sição à estética reflexiva e idealizada dos nossos rostos ociden- conferimos afetação. É porque queremos substituir o arbitrário
tais. Nossa beleza ocidental está ligada seja a uma característica da regra pela necessidade da Lei que os signos de polidez se tor-
da natureza e da expressão (beleza de caráter), seja a uma carac- nam uma convenção arbitrária. Nós poderíamos, nós deveríamos
terística de moda (dominância de modelos sucessivos, idealida- da mesma forma reprovar moralmente as regras do jogo de xa-
de de tal aspecto em tal momento, etc.). Naturalizada e modeli- drez. Ora, o que a polidez foi numa ordem cerimonial, que não
zada , ela supõe distinção do belo e do feio (e mais recentemente é mais a nossa, não tem nem mesmo a função, assim como os
chantagem bastante feroz com a beleza). Em compensação, os rituais, de temperar a violência original das relações, de conjurar
154 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 155

a ameaça de agressividade (estender a mão para mostrar que não co, a mimar a imperfeição mecânica justamente para salvar o jo.go,
estamos armados, etc.). Como se houvesse alguma finalidade na preservar a ínfima diferença que tornav~ possível a forma_ da lh!-
civilidade dos costumes; essa é realmente nossa hipocrisia: atri- são: se os dois fossem igualmente perfeitos, toda a seduçao tena
buir a tudo e sempre uma função moralizadora das trocas: a lei desaparecido.
inscrita no céu não é absolutamente a da troca. Seria de prefe- Para salvar a ilusão nesse sentido , isto é, a ínfima diferença
rência a da aliança, do pacto de aliança e dos encadeamentos que faz o real brincar com sua realidade, com o desaparecimen-
sedutores. to do real exaltando suas aparências, para salvar essa regra iro-
Um encadeamento sedutor é aquele que evita a promiscui- nica do jogo é que durante séculos trabalharam o que chama-
dade da causa e do efeito. Os signos não fazem entre si um con- mos arte, teatro, linguagem . Nesse ponto eles guardaram al~o da
tato de troca, mas um pacto de aliança. Em nenhum lugar reina cerimônia e do ritual ao violentarem o real. Na arte é que fOI pre-
a lei da significação e sim unicamente o encadeamento das apa- servado algo do poder cerimonial e iniciático, mesmo considera-
rências. Assim o céu, com seus signos que giram, é realmente uma velmente enfraquecido (e não certamente no que hoje chamamos
arca da aliança onde se encadeiam as constelações que se orga- de cerimônia: monumentos aos mortos, distribuição de prêmios,
nizam sozinhas como um destino cerimonial. Nascer sob um signo jogos olímpicos , etc.). Nela é que foi conservada uma estratégia
não é absolutamente interpretá-lo ou fazê-lo significar confor- das aparências, isto é, um domínio dos aparecimentos e dos. de-
me seu sentido: é filiar-se a ele, é aliar-se a ele, é reconhecer nele saparecimentos, e especialmente o domínio sacrifical do eclipse
um poder de predestinação. Não é uma questão de acreditar nis- do real.
so ou não, assim como nos sinais de polidez: o erro é de atribuir Certamente, nossa interpretação atual do brinquedo v.ai no
sempre um sentido ao que não tem sentido. O destino, no senti- sentido oposto. Nossa visão ideal do brinquedo é a da cnan~a
do de uma forma inelutável e recorrente de desenvolvimento dos paideia, espontaneidade livre e criatividade selvagem, expressao
signos e das aparências, tornou-se para nós uma forma estranha de uma pura natureza antes da Lei e do recalque. O bnnquedo
e inaceitável. Não queremos mais um destino. Queremos uma his- animal oposto ao brinquedo cerimonial. Porém, sabemos que nem
tória. Ora, a cerimônia era a imagem do destino. o pássaro canta para seu prazer, nem a criança brinca para seu
Não se trata de reabilitar a polidez como função social. Quan- prazer. Mesmo nos brinquedos mais :'descabe~ado~", o c~arme
do se torna apenas isso, ela é, com efeito, ridícula e absurda, as- da recorrência do ritual, do desenvolvimento mmucioso, a mven-
sim como a ressurreição do ioga como disciplina psicodietética ção das regras, a cumplicidade na observância, é isso que faz a
ou a reciclagem das artes marciais na coreografia de Béjart. Os intensidade e a singularidade do brinquedo infantil. A escansão
direitos do indivíduo, suas pulsões, a livre expressão, a liberdade do fort-da, por exemplo, pode muito bem significar ~ <:onjura-
da palavra acabaram com o cerimonial inútil e com a hipocrisia ção da ausência da mãe, mas é também antes uma ~specle de ce-
dos sinais. Bravo. rimonial, domínio do aparecimento e do desaparecimento.A su-
Mas o que consagra esse desencadear da verdade, esse triunfo posição do fantasma põe fim à originalidade dessa f?~a, J~ q~e
da sinceridade sob todas as formas, é o fim da ilusão, do poder lhe dá um sentido - e ao mesmo tempo põe um fim a propna
da ilusão. llusão no sentido literal de iniciação à regra, à conven- sedução do brinquedo que, justamente, só se ocupa em regrar
ção superior que comanda outra meta que não a do real. O jogo as aparências.
é baseado nessa possibilidade para qualquer sistema, de ultra- O segredo é feito da anulação das causas e do sepultamento
passar seu princípio de realidade e de se refratar em outra lógi- dos fins na única ordem regrada das aparências. A Regra dos Apa-
ca. Esse é o segredo da ilusão e no fundo a meta é sempre salvar recimentos e dos Desaparecimentos.
essa dimensão vital. Tal como aquele ilusionista do século XVIII , Ora as cerimônias eram feitas para regrar os aparecimentos
que havia inventado um autômato tão perfeito na imitação dos e os des~parecimentos. O que sempre fascino~ os homens,. foi
gestos humanos que ele foi obrigado a "se automatizar" no pal- o duplo milagre do aparecimento e do desaparecimento das COIsas.
156 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SEU DESTINO 157

E o que eles sempre quiseram preservar foi o domínio destes e


de sua regra. A do nascimento e da morte, mas também o eclipse
dos astros e o rapto das paixões e as peripécias do ciclo natural.
.
q, ,
A Ópera de Pequim : todo o teatro chinês, nas batalhas ou
Somente nossa cultura moderna capitulou diante dessa forma de no amor ou no jogo dos signos e das oriflamas, é uma encena-
obrigação e atribuiu tudo a essa forma informe de liberdade cha- ção da felinidade dual dos corpos, dos gestos, das vozes, dos mo-
mada acaso ou a essa forma indutiva/dedutiva de encadeamen- vimentos, um eterno entrelaçamento na distância mínima do des-
to chamada necessidade. dobramento. Os corpos são espelhos móveis e acrobáticos uns
Hoje, por ter apostado tudo no modo de produção e ter es- dos outros. As vestimentas, os enfeites, os leques se roçam na
gotado sua ilusão, nós nos confrontamos com o modo de apare- dança espiral, as armas nem se tocam, elas se roçam com violên-
cimento e de desaparecimento sem mais nenhum domínio ceri- cia, descrevendo um espaço vazio intransponível (o das trevas no
monial. Os prestígios do aparecimento e do desaparecimento são episódio do duelo, o da sedução ou da batalha nos episódios de
recusados por nossa época, ao mesmo tempo que o artifício e
o sacrifício, os únicos que lhes garantiam a soberania. Toda or- amor ou de guerra, o da água no episódio do barqueiro em que
dem de produção é feita para tornar impossível uma ordem de o espaço inteiro se torna fisicamente legívelna ondulação gêmea
aparecimento das coisas, para impedi-las subitamente de existir, dos dois corpos, o do barqueiro e o da moça - distantes um do
antes mesmo de ter esse direito e o sentido, antes mesmo de ter outro no comprimento do barco invisível, as vozes e os corpos
uma causa ou um fim. Acontecidas antes de acontecerem. No alternando-se num duelo que mostra, só no espaço cerimonial
entanto, é assim que elas realmente nos chegam: com a face (ou de sua distribuição, todo o perigo da travessia). Também nada
a máscara) da aparência pura. A própria banalidade pode reen- de mais belo do que esse duelo noturno em que os corpos se bus-
contrar essa face da aparência pura e, então, pode se tornar no- cam e não se encontram, descrevendo com precisão e violência
vamente um destino, isto é, um modo de aparecimento e de de- o espaço vazio da sombra, tornando palpáveis a obscuridade que
saparecimento simultâneo. . J~ os separa e a cumplicidade que os une, feita dessa reversibilidade
Hoje, para justificar o aparecimento das coisas, estamos re- "l de cada um de seus gestos.
duzidos a invocar uma energia produtiva, uma energia pulsional Tudo está regulado : a felinidade, a finta, os avanços, os re-
- para a própria morte, estamos reduzidos a invocar a pulsão
de morte. Ora, a busca de um domínio do modo de desapareci-
. '~~i"'R~
t '
~ .
cuos, o confronto, o frenesi rodopiante dos corpos, sua brusca
imobilidade, nada é deixado ao desencadeamento ou à improvi-
mento é o inverso da pulsão de morte, elas não têm nenhuma t:' sação: tudo é encadeamento, mas nunca o do sentido - enca-
relação entre si. deamento das aparências. A perfeição é alcançada no teatro quan-
O destino fundamental não é existir e sobreviver,como pen- do ele encontra essa mobilidade maravilhosa, essa prontidão aé-
samos: é aparecer e desaparecer. Somente isso nos seduz e nos rea, essa felinidade das aparências em que elas se encadeiam sem
fascina. Somente nisso existe uma cena e um cerimonial. Não se esforço. A felinidade, também no animal, principalmente no ani-
deve pensar que o acaso se encarregue de fazer aparecer ou desa- mai, é o encadeamento soberano do movimento e do corpo. Aqui,
parecer as coisas e que seja nossa tarefa fazê-las durar e lhes dar nesse teatro, ela libera os signos de qualquer peso e eles podem
um sentido. Ninguém menos capaz do que o acaso para fazer sur- então atuar com uma mobilidade sem limites e até culminar nu-
gir a cena onde as coisas possam se dar o luxo de desaparecer: ma imobilidade absoluta em que o espaço se petrifica na adver-
o acaso só sabe levar ao extermínio estatístico. Ninguém menos sidade, no entrela çamento, no auge de duas forças duai s.
capaz do que o acaso para fazer aparecer alguma coisa: para que Os combates nunca são confrontos, relações de forças, mas
alguma coisa apareça realmente, surja no reino das aparências, estratagemas, isto é, ilustração agônica da astúcia, de uma vio-
é preciso sedução. Para que alguma coisa desapareça realmente, lência não frontal de uma estratégia paralela e móvel. Cada cor-
seja dissolvida em sua aparência, é preciso o cerimonial da po desdobra o movimento do outro, desenha-se como chamariz
metamorfose. em que o outro, hipnotizado, só encontra o vazio. Cada um triunfa
158 AS ESTRATÉGIAS FATAIS o OBJETO E SE U DESTINO 159

pela aparência, remetendo ao outro a aparência de sua força. Mas os animais foram o modelo, para os homens, da ordem cerimo-
cada um sabe que o triunfo não é definitivo, pois ninguém ocu- nial- e não absolutamente da ordem "natural".) Quanto.à moda,
pará jamais o ponto cego em tomo de que o combate se organi- ela faz parte de um universo transcendente, moderno móvel exo-
za. Querer ocupá-lo, querer ocupar o espaço vazio do estratage- térico, do olhar e da representação. Ela vem de um 'capricho do
ma (como querer anexar o coração vazio da verdade), isto é lou- desejo das formas, de um desejo estético e político de distinção
cura, é o desconhecimento completo do mundo como brinque- - os sinais da moda também são distintivos, eles atuam segun-
do e como cerimônia. do um código que é o código universal da moda, e entram no
No entanto, é o que faz o nosso teatro ocidental, quando ~oncerto da subjetividade moderna, opondo-se ao rigor arcaico,
substitui pelo espelho especulativo da psicologia a reversibilida- mtemporal, discriminatório, do enfeite. (Certamente, a moda pode
de sempre dual dos corpos, dos gestos. Os corpos, os signos se tomar a forma de um sortilégio coletivo, nunca é o ato sacrífical
esbarram porque perderam ali sua aura cerimonial (Benjamin). de um grupo, como a cerimônia. Mesmo infinitamente variada
A diferença é sensível até no deslocamento das multidões, das n~ fu~do, ela resulta de um processo de indiferenciação e de pro:
massas : enquanto no espaço ocidental do metrô, da cidade, da miscuidade de todas as formas possíveis.) As mesmas formas que
feira, as pessoas se esbarram, disputam o espaço, ou no melhor eram cerimoniais caíram no registro da moda: nem por isso de-
dos casos evitam a trajetória do outro, numa promiscuidade agres- vemos confundi-las.
siva, as multidões no Oriente, ou num souk árabe, sabem se des- Nen~uma confusão, nenhuma promiscuidade. Assim é pa-
locar de outra maneira, deslizar com pressentimento (ou previ- ra a teona como para a cerimônia. O papel desta ou de todos
dência) , resguardar, mesmo em lugar restrito, os espaços inters- os rituais, quaisquer que sejam, não é certamente conjurar a "vio-
ticiais de que já falava o açougueiro do Tchouang-Iseu, e onde lência original" - a liturgia não é uma catarse!, isto é o contra-
a lâmina de sua faca passava sem esforço. E isso não é uma ques- senso, velho como o funcionalismo, de todos os idealistas da vio-
tão de fronteira entre os corpos, que nós nos esforçamos em mar- lência fundadora, de todos os sulpicianos da antropologia - nem
car com espaços "livres" ou territórios individuais, é conseqüência a teoria é feita para dialetizar e universalizar os conceitos - pe-
de um espaço cerimonial, de um espaço de distribuição sagrada lo contrário: ambas, a cerimônia e a teoria, são violentas. Feitas
que regula também o aparecimento dos corpos uns para os ou- para impedir as coisas ou os conceitos de se tocarem de qual-
tros. A cerimônia é um universo tátil, feita para manter os cor- quer maneira, para produzir a discriminação, para refazer o va-
pos à boa distância e tornar sensível essa distância, que é a do zio, para redistinguir o que foi confundido. Lutar contra a pro-
gestual regrado e da aparência. Dois corpos que se esbarram, que miscuidade dos conceitos. Isto é a teoria, quando ela é radical,
se chocam, são obscenos, impuros. Duas coisas que entrem em e a cerimônia nunca faz outra coisa, quando separa o que é ini-
contato direto, quaisquer que sejam, duas palavras ou dois sig- ciado do que não é - pois ela é sempre iniciática - o que se
nos que se acoplem sem outra forma de processo, são impuros. encadeia segundo as regras e o que não o faz - pois ela é sem-
Sua promiscuidade é a do cadáver na terra, dos excrementos en- pre ordenadora - o que exalta e se destrói segundo sua aparên-
tre si. É necessária a discriminação, senão o universo se torna cia e o que se produz segundo seu sentido - pois ela é sempre
miserável, e de uma violência perfeitamente inútil: a da confusão. sacrificaI.
O enfeite serve para isso - não a moda em seu sistema dife- Quando os signos não testemunham mais um destino e sim
rencial, mas o enfeite em seu poder discriminatório para com a uma história, eles não são mais cerimoniais. Quando têm por trás
"natureza". A moda é uma forma de liberação dos corpos e dos a sociologia, a semiologia, a psicanálise, eles não são mais rituais.
trajes num jogo combinatório, e cada vez mais aleatório. O en - Eles perderam esse poder de metamorfose imanente ao ato da
feite é uma obrigação cerimonial eventualmente imutável. Ele faz cerimônia. Eles estão mais próximos da verdade e perderam a
parte do universo tátil, imanente, iniciático, da cerimônia. (En- potência da ilusão. Eles estão mais próximos do real, de nossa
tre os animais, faz parte até do patrimônio genético e por isso cena do real, e perderam seu teatro da crueldade.
POR UM PRINCÍPIO DO MAL 161

tui um desafio insolúvel para o mundo cego que o cerca. A iro-


nia subjetiva, a subjetividade irônica, é a nata de um universo
da proibição, da Lei e do desejo. O poder do sujeito vem de sua
promessa de realização, enquanto a esfera do objeto é a ordem
POR UM PRINCÍPIO DO MAL do que está realizado e a que, pela mesma ra zão, não se pod e
escapar.
Confundimos o fatal com o ressurgimento do recalcado
(aquilo de que não se escapa é o desejo) , mas a ordem da fatali-
dade é antitética da do recalque. Aquilo de que não se escapa
nã o é o desejo , é a presença irônica do obje to , é sua indiferença
e seus encadeamentos indiferentes, seu desafio, sua sedução, sua
Essas estratégias fatais existiriam? Nã o tenho a impressão de tê- desobediência à ordem simbólica (portanto, também ao incons-
las descrito, nem falado delas por alto, nem mesmo que a hipó- ciente do sujeito se ele tivesse um), em resumo ao princípio do Mal.
tese seja algo mais do que um son ho - de tal modo é gra nde O objeto desobedece a no ssa metafísica, que sempre tentou
o poder do real sobre a imaginação. De onde você tira o que conta destilar o Bem e filtrar o Ma l. O objeto é tra nslúcido ao Mal.
sobre o objeto? A objet ivida de é o con trário da fatalidad e. O ob- Po r isso, malic iosamente, diabolicamente, ele faz prova de servi-
jeto é real, e o rea l está sujeito a leis, e ponto final. dão voluntária e se dobra de bom grado, como a natu reza, a qual-
É isso: diante de um mundo delirante, só existe o ultimatum quer lei que lhe seja imposta, deso bedecendo assim a qualquer
do realismo. Isso significa que se quisermos escapar à loucura legislação. E quando falo do objeto e de sua duplicidade profun-
do mundo, é preciso também sacrificar todo seu encanto. O mun- da, falo de nós todos e de no ssa ordem política e social. Todo
do, aumentando seu delírio, fez subir o preço do sacrifício. A chan- o problema da servi dão voluntária deve ser revisto nesse sentido
tagem com o real. oje, para sobreviver, a ilusão não conta mais, não para resolvê-lo, mas para pressentir seu enigma: a obediên-
é n eciso aproximar da nulioaoe a o real. cia é uma estratégia banal, com efeito, e que não precisa ser ex-
plicada, pois ela contém um segredo, to da obed iência contém em
segredo uma esobediência fatal para a ordem simbó lica.
Talvez exista uma única estratégia fatal: a teoria. E certamente É nisso que existe um princípio do Mal, não como instância
a única diferença entre uma teoria banal e uma teoria fatal é qu e míst ica e transcendente, mas como receptação da ordem simbó-
numa o sujeito sempre pensa que é mai s esperto do que o obje- lica, rapto, violação, receptação e malversação irônica da ordem
to, enquanto na outra o objeto sempre é considerado mais esper- simbólica. É nisso que o objeto é translúcido ao princípio do Mal:
to, mais cínico, mais genial do que o sujeito, que ele espera ironi- ao contrário do sujeito, ele é mau co ndutor da ordem simbólica ,
camente na virada. As metamorfoses, as astúcias, as estratégias mas em compensação bom condutor do fatal, isto é, de uma ob -
do objeto ultrapassam a compreensão do sujeito. O obj eto não jetividade pura, soberana e irreconciliável, imanente e enigmática .
é nem o duplo nem o recalque do sujeito, nem seu fantasma nem
sua alucinação, nem seu espelho nem seu reflexo, mas ele tem
a própria estratégia, ele detém uma regra do jogo impenetrável Aliás, não é o Mal que é interessante, é a espiral do pior.
para o sujeito, não porque ela ser ia profundamente mister iosa Porque o sujeito reflet e bem em sua desgraça, em seu espelho ,
mas porque é infi nita mente irônica. o princípio do Mal, mas o objeto quer ser pior e reivindica o pior.
É a ironia objetiva que nos espreita, a da realização do ob- Ele mostra uma negatividade mais rad ical, a saber que, se final-
jeto sem preocupação com o sujeito e sua alienação. Na fase da mente tudo desobedece à ordem simbólica, é porque foi tu do des-
alienação, é a ironia subjetiva que triunfa, é o suj eito que consti- viado na or igem.
162 AS ESTRATÉGIAS FATAIS POR UM PRINdpIO DO MAL 163

Antes mesmo de ser produzido, o mundo foi seduzido. Es- tante é a predestinação das férias ao tédio, o pressentimento amar-
tranha precedência que pesa ainda hoje sobre toda a realidade. go e triunfal de não escapar dele. Como pensar que as pessoas
O mundo foi desmentido na origem - portanto, é impossível que vão desmentir sua vida cotidiana procurando uma alternativa?
ele seja um dia verificado. A negatividade, histórica ou subjeti- Pelo contrário, vão fazer dela um destino: redobrá-la nas apa-
va, não é nada: realmente diabólica, mesmo em pensamento, e rências do contrário, mergulhar nela até o êxtase, selar a mono-
o desvio original. tonia com uma monotonia maior. A superbanalidade é o equi-
À utopia do juízo final, complementar da do batismo ?ri- valente da fatalidade.
ginal, se opõe a vertigem da simulação, o encantamento lucife- Se não compreendemos isso, não compreendemos nada do
riano da excentricidade da origem e do fim. embrutecimento coletivo, quando ele é um ato grandioso de auto-
Por isso os deuses só podem viver e se esconder no inuma- superação. Não estou brincando: as pessoas não procuram se di-
no, nos objetos e nos animais, na esfera do silêncio e ~o emb~u­ vertir, elas procuram uma distração fatal. Pouco importa o té-
tecimento objetivo, e não na esfera do homem, que e a da lin- dio, o essencial é o acréscimo de tédio; o acréscimo é a salvação,
guagem e do embrutecimento subjetivo. O Deus-Homem é um o êxtase. Pode ser o aprofundamento extático de qualquer coisa.
absurdo. Um deus que rejeita a máscara irônica do inumano, que Pode ser o acréscimo de opressão ou de abjeção que atua como
sai da metáfora bestial, da metamorfose objetiva onde ele encar- êxtase libertador da objeção - como a mercadoria absoluta atua
nava em silêncio o princípio do Mal, para se atribuir uma alma como forma libertadora da mercadoria. Só existe esta solução
e um rosto, endossa ao mesmo tempo a psicologia hipócrita do para o problema da "servidão voluntária" e aliás só existe essa
humano. libertação: no aprofundamento das condições negativas. Todas
É preciso respeitar o inumano. Assim fazem certas culturas, as formas que querem fazer resplandecer uma liberdade milagrosa
chamadas fatalistas, para condená-las sumariamente: porque elas são apenas homilias revolucionárias. A lógica libertadora só é en-
tiravam seus mandamentos do lado do inumano, do lado do as- tendida realmente por alguns, no essencial quem leva a melhor
tro ou do deus animal , das constelações ou da divindade sem ima-. é a lógica fatal.
gemoGrandioso partido da divindade sem imagem. Nada de mais
oposto a nossa iconolatria moderna e técnica.
A metafísica só deixa filtrar as boas radiações, ela quer fa- Outra forma de cinismo fundamental: essa vontade de es-
zer do mundo um espelho do sujeito (ele mesmo passado pelo petáculo e de ilusão, contrária a toda vontade de saber e de po-
estágio do espelho), um mundo de formas distintas de seus du- der. Vivaz no coração dos homens, nem por isso deixa de obce-
plos, de suas sombras, de suas imagens: este é o princípio do Bem. car os processos dos acontecimentos. Existe uma espécie de pul-
Enquanto o objeto é sempre o fetiche, o falso, o feiticho, o fictí- são do acontecimento bruto, da informação objetiva, dos fatos
cio, o engano, tudo o que encarna a abominável mistura de .u~a e dos pensamentos mais secretos; de se comutar em espetáculo,
coisa com seu duplo mágico e artificial, e que nenhuma religião de se extasiar numa cena, em vez de se produzir no primeiro grau.
da transparência e do espelho jamais conseguirá resolver: este é Se é necessário se instanciar, extasiar-se é absolutamente vital.
o princípio do Mal. As coisas só acontecem nessa medida excessiva, isto é, não
sob o poder da representação, mas na magia de seus efeitos -
somente assim elas parecem geniais e se dão ao luxo de existir.
Quando falo do objeto e de suas estratégias fatais, falo dos Dizem que a natureza é indiferente e ela certamente é, às paixões
homens e de suas estratégias inumanas. Por exemplo, o ser hu- e aos empreendimentos dos homens, mas talvez ela não o seja
mano pode encontrar nas férias um tédio mais profundo do que pelo fato de se dar em espetáculo nas catástrofes naturais. Isso
o de todos os dias - um tédio redobrado, porque é feito de to- é uma parábola (?), mas ela está aqui para significar essa paixão
dosos elementos da felicidade e da distração. O ponto impor- das paixões, paixão simuladora, paixão sedutora, paixão de des-
164 AS EST RATÉG IAS FATA IS POR UM PRINCÍPI O DO MA L 165

vio, que faz que as coisas só tenham sentido quando transfigura- com que até eles sejam submetidos ao prazo derradeiro e cínico
das por essa ilusão, por essa derrisão, por essa encenação que do espetáculo! Viva a regra secreta do jogo que faz com que ca-
não é absolutamente a da representação e sim sua forma prodi- da coisa desobedeça à lei simbólica! O que nos salvará, não será
giosa, sua excentricidade, a vontade de desprezar suas causas e nem o princípio racional nem o valor de uso, mas o princípio
de se esgotar em seus efeitos, e especialmente no de seu desapa- imoral do espetáculo, o princípio irônico do Mal.
recimento. Forma prodigiosa que os moralistas de todas as épo-
cas condenaram severamente, pois é aí que as coisas se desviam
cinicamente de suas origens e de seus fins, num longínquo eco A ab sorção nesse efeito repetido é uma espécie de pa ixão ,
do desvio orig inal. de vontade fatal. Da mesma forma nenhuma vida se concebe sem
Aliás, essa excentricidade é o que nos protege do real e de a trama de uma segunda chance. A finalidad e de uma vida só
suas con seqüências desastrosas. Que as coisas se esgotem em seu pode ser dada com essa certez a enérgica do retorno necessário,
espetáculo, em seu fetichismo mágico e artificial essa é a distor- mai s cedo ou mai s tarde, como da ressurreição do s corpos, mas
ção que os espíritos sérios sempre combaterão na utopia de ex- sem juízo final , de alguns instantes ou de algun s rostos apa reci-
purgar o mundo para entregá-lo exato, intacto e autêntico no dia do s uma vez. Porém , estes voltarão, pois só fizeram desaparecer
do juízo final - ma s esse talvez seja o menor do s males. Porque no horizonte de no ssa vida , cuja traj etória desviada precisam en-
Deus sabe aonde leva o desencadear do sentido quando ele recu- te por esses acon tecimentos, toma a curva necessária, inconsciente,
sa se pro duzir como aparência. para lhes dar a chance de uma segunda existência, ou de um re-
Até a Revolução só acontece se seu espetá culo for po ssível: torno definitivo. Então, somente eles terão realmente aconteci-
o que as grandes almas lam entam é qu e os meio s de comunica- do . Então, somente eles terão vencido ou perdido.
ção dão um fim ao acontecimento real. Mas se considerarmos A partir de um dado momento, esses acontecimentos repe-
o nuclear, ta lvez seja sua distilação no pânico simulado de todos tidos formam a própria trama da vida, onde portanto nada mai s
os dias, nos temores e no s arrepio s espetaculares com que rega- acontece por acaso. O que acontece por acaso, é o primeiro acon-
lamos nosso pavor, o que no s protege do c1ash nuclear e não o tecimento, qu e não tem sentido em si mesmo e se perde na noite
equilíbrio do terror (não há nenhuma garantia estratégica na dis- banal do vivido. Somente seu redobramento faz dele um aconte-
suasão, nem aliás nenhum instinto de conservação da espéci e). cimento verdadeiro, dando-lhe o caráter de um prazo fatal. É co-
O que nos protege é que, para o nuclear, o acontecimento po de mo um signo que só valesse redobrado por seu ascendente - o
muito bem acabar com qualquer chance de espetáculo. Por isso signo em si é indiferente, redobrado ele se torna inelutável.
ele não acontecerá. Porqu e a li anidaae p,oãe ceitãF desan - Quando alguns acontecimentos de uma vida tiveram assim
recer fisic mente, mas não Rode aceitar sacr~ icaF o espetáculo sua segunda chance, quando o ciclo os trouxe mai s uma vez, e
tíess desaparecimento{ o ssa encontrar es ect - somente uma vez, esta vida está concluída. Quando uma vida não
OF no outro m undo). À p'ulsão ãe spetáculo é mais poderosa ao conhece uma segunda chance desse tipo, ela termina antes de ter
qu o instinto de conserva ção, é c m ela qu e deve os contar. começado.
Se a mora lidade das coisas está em seu sacrossanto valor de O fatal está em algum lugar por aí. Nesse ponto as velhas
uso, então viva a imoralidade do átomo e da s armas, que faz heresias tinham razão. Cada um tem direito a um segundo nasci-
mento, o verdadeiro, e cada um é predestinado, não por decreto
astral, ma s por essa predestinação interna, imanente a nossa vi-
da , ao retorno necessário desses acontecimentos. Por isso, aboli -
I É claro, não se trata do espetáculo que os situacionistas denun ciaram como o cúmulo do o aca so, o juízo final é inútil.
da alienaçã o e a última estratégia do capital . Seria mais o inverso, já q ue aqui é a estraté-
gia vitorio sa do objeto, é seu modo particular de desvio, e não de ser desviado. Estaría-
Por essa razão a teoria da predestinação é infinitamente su-
mos bem mais próximos da magia da mercadoria, segundo Baudelaire. perior à da liberdade da alma. Porque se ela elimina da vida
166 AS ESTRATÉGIAS FATAIS POR UM PRINCÍPIO DO MAL 167

tudo que é apenas destino e não predestinação, tudo que aconte- é obrigado a quebrar o galho. O que é inter essante é o que trans-
cendo somente uma vez é apenas acidental, enquanto o que acon- parece de um processo lógico inexorável pelo qual o objeto entra
tece uma segunda vez se torna fatal, em compensação ela devol- no próprio jogo que querem que ele jogue, e de certa forma du -
ve à vida a inten sidade desses acontecimentos repetidos que têm plica a aposta, exagera nas obrigações estrat égicas qu e lhe são
uma espécie de profundidade de uma vida anterior. impostas, instaurando assim uma estratégia qu e não tem fina li-
Não há nem forma nem signifi cação num primeiro encon- dade própria - uma estratégia "bem-humorad a" que desar ma
tro , sempre maculado de desconhecimento e de banalidade. A fa- a do sujeito, uma estratégia fatal no sentido de q ue o sujeito su-
talid ade só vem depoi s, pela atualização dessa vida anterior. E cumbe à superação de seus objetivos. .
existe uma espécie de vontade e de energia nessa ocorrência de Nós somos cúmplices desse excesso de finalid ad e que existe
que ninguém sabe nada e que não é absolutamente a ressurgên- no objeto (pode ser o excesso de sentido e, po rtant o, a impossi-
cia de uma ordem oculta, nada disso. É em plena luz que certas bilidade de decifrar uma palavra que atue bem de mais co mo si-
coisas alcançam seus prazos marcados. nal) . Inventamos todas as estratégias na esperança de vê-Ias re-
Se os astros na scessem e se pu sessem em qualquer ord em, dundar num acontecimento inesperado. Invent amos tod o o real
o próp rio céu não teria sentido. É a recorrência de suas trajetó- na esperança de vê-lo redundar num artificio prodi gioso. Espe-
rias qu e faz o céu acontecer. É a recorrência de certas peripécias ramos de todo obj eto a respo sta cega qu e pert ur be nossos proje-
fatai s que faz a vida acontecer. to s. Da estratégia nós esperamos um domín io, mas da sed ução
esperamos a surpresa.
A sedução é fatal , é o efeito de um obj eto sobera no que re-
No final de tudo isso, se o obj eto é genial, se o objeto é fa- cria em nó s a emo ção ori ginal e procura nos sur preender - em
tal, o qu e podemos fazer? troca a fatalidade é sedutora, como a descobert a de uma regra
Após a arte de sobreviver, a arte irônica do desaparecimen- oculta do jogo. A descoberta da regra de um jogo é deslumbran-
to? Com esta o sujeito sempre sonhou, é o sonho inverso de seu te e compensa antecipadamente as mais cruéis perda s.
sonho de totalização, e este nunca apagou o outro, bem ao con - Assim é com o dito espirituoso. Se busco um encadeamento
trário. Seu fracasso desperta hoje paixões mais sutis. fatal na linguagem, caio no dito espirituoso, que é o próprio de-
Então, no coração das estratégias banais, o lancinante dese- senlace da linguagem iman ente à linguagem (é isso, o fatal: o mes-
jo da s estratégias fatais? mo sinal presidindo a cristal ização e a solução de uma vida, a
Nada nos pode prot eger de uma fatalidade, menos ainda de confusão e o desenlace de um acontecimento). Na linguagem que
uma estratégia. Aliá s, a conj unção do s dois termos é paradoxal. se tornou objeto puro, ironia (do Witz) é a forma objetiva desse
De qu e maneira haveria fatalidade se há estratégia? Porém, jus- desenlace. Em toda parte, como no Wit z, a duplicação e o exa-
tamente: o enigma é que existe fatalidade no coração de toda es- gero são uma forma espirituosa de desenlace.
tratégia , é o que transparece como estratégia fatal no coração da s Tudo deve se desenlaçar num modo fatal e espirituoso, co-
mai s banais estratégias, é o objeto cuja fatalidade seria a estraté- mo tudo no início se misturou num desvio original.
gia - algo como a regra de outro jogo. No fundo o obj eto zom- Mesmo a predestinação é uma forma de desvio irônico da fa-
ba da s leis que lhe são atribuídas, por muito favor ele figura nos talidade. Mas o acaso também é uma dessas formas. De que serve
cálculos como variável sarcástica e deixa as equações acontece- considerar o acaso um pro cesso objetivo já que é um processo irô-
rem, mas a regra do jogo, as condições com que ele aceita jogar, nico? É claro que ele existe, ma s contra todo cientificismo, com o
ningu ém as conhece, e elas podem mudar de repente. ironi a de acaso, inclusive no nível das mol éculas. E está claro que
Ninguém sabe o que é uma estratégia. Não há suficientes a fatalidade também existe, simultaneamente - não há nenhum
meios no mundo para que possamos dispor dos fins. E portanto paradoxo nisso. A diferença é que a ironia da fatalidade é mai or
ningu ém é capaz de articular um pro cesso final. O próprio Deus do que a do acaso, o que a torna mais trágica e mais sed uto ra.
I/lH AS ESTRATÉGIAS FATAIS POR UM PRI NCÍPIO DO MA L 169

É verdade que há nisso um partido a tomar, obscuro e difícil:


pa ssa r para o lado do objeto, tomar o partido do objeto. Buscar
o utra regra, outra axiomática: nada de místico nisso, nada do de-
lírio ultramundano de uma subjetividade caída na armadilha e fu-
gindo numa descrição paroxística. Simplesmente desenhar essa ou-
tra lógica , desenvolver essas outras estratégias, de ixar o terreno li-
vre para a ironia objetiva. Isso também é um desafio, eventualmente
absurdo e que corre o risco do que escreve - mas é um risco a cor-
rer: a hipótese de uma estratégia fatal só pode ser, ela também, fatal.
Se existe moralidade, ela está também presa no ciclo excêntri-
co de seus efeitos, ela mesma é hipermoral como o real éhiper-real.
Não é mai s uma estase moral é um êxtase moral. Ela própria é um
efeito especial.
Lévi-Strauss dizia que a ordem simbólica nos abandonara em
proveito da história. Hoje, diz Canetti, a própria história se reti-
ro u. O que resta além de pas sar para o lado do objeto, de seus efei-
tos excêntricos e preciosos, de seus efeitos fatais (a fatalidade é ape-
na s a liberdade absoluta do s efeitos) . Semiorragia. _
Hoje, quando toda a r dicalidade crítica se tornou inútil, to-
da a negatividade resolvida, num munao que finge se reã1izar, guan-
d o espírito crítico encontrou no socialismo sua residência secun
dária, quando o efeito ôe ôesejo já passou tiâ"muito tempo, o ue
resta alé ae r.epo as coisas no ponto zero enigmático? Orã, o enig-
m se in\'erteu: outrora era a Esfinge que apresentava ao homem
a questão do homem, que ÉdiRO pensou resolver, que todos nós ~n-
amos ter; resolviao, fioJe e o homem que pergunta à ESfinge, a
inumano, a questão ao inu mano, ao fatal, daaesenvoI ora <10 mun-
tlo com nossos emp'reendimentos, li desenvoltura ao mundo Quan-
to às leis objetivas. O oBjeto (a Esfinge), mais sutil, não res onde.
Mas é ineYitável gue, desobedecendo às lei , desarmando o dese -
.o, ele resRQnCla em s~reao a algum enigma. e ue nos resta além
(f passar; para o lado desse enigma?
inalmente, tudo se resume a isto: consiaeremos, por um ins-
t nte a hipótese dê que exista um parti p ris fatal e enigmático da
ord m das coisas.
--~
D tod a maneira, há algo ae estúpido em nossa situação atual.
algo de estúpido no acontecimento bruto, a gue o élestino, se
. i. te, não pode deixar. de ser. sensív.el. Ha algo de estúpido nas
teoria do paradoxo, da sedução e
da inversão dos papéi s , em que o
objeto seduz o sujeito.
Com este livro , Baudrillard
amplia o alcance de sua obra origi-
nal e inquietante. Sugerindo ao lei-
tor que abra mão dos confortos da
banalidade, para se lançar nos de-
safios inevitáveis da fatalidade,
aponta um caminho: na medida em
que se consiga passar para o lado
do objeto, abre-se um novo campo
de possibilidades.

o AUTOR

Natural de Reims, onde nasceu em


1929, neto de camponeses e fiIho
de humildes empregados. o soció-
logo francê s Jean Baudrillard é
professor na Universidade de Nan-
terre , em Paris.
Projetou-se em 1968 com o
lançamento de O sistema dos obje-
tos, em que iniciaria uma série de
trabalhos marcados por um estilo
peculiar, que não se filia a escola
alguma de pensamento, mas tem
um pouco de tudo, sem incorrer no
ecletismo: sociologia. metafísica ,
crítica da modernidade . ficção
científica. Contemporâneo de Ro-
land Barthes e Michel Foucault é
autor de A sociedade de consumo,
Para um crítica da economia polí-
tica do signo. A sedução. América.
À sombra das maiorias silencio-
sas. entre outros titulos.

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