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Exploração do ouro nos morros das Minas Gerais: uma abordagem a partir das relações

conflituosas que marcaram o convívio daqueles que ali atuaram.


Dejanira Ferreira de Rezende∗

Resumo: Os primeiros entrantes paulistas, senhores de escravos, que foram para a região das
Minas, estariam prioritariamente interessados na exploração do ouro aluvional, depositado
nos rios e ribeiros. Também o Regimento de 1702 se limitava a tratar destes achados. No
entanto, a exploração nas serras se iniciou desde a primeira década do século XVIII, sendo ali
praticada, em um primeiro momento, majoritariamente por aqueles que eram excluídos da
divisão das datas minerais nos rios: homens livres e libertos pobres, os chamados
“forasteiros”, e escravos faiscadores. Posteriormente, os senhores poderosos donos de
escravos também buscariam as lavras nestes altos. A convivência destes agentes no mesmo
espaço seria marcada por “acordos” e conflitos. Estes conflitos são fonte riquíssima para
discutirmos como se deu a ocupação e exploração dos morros auríferos.
Palavras-chave: mineração, conflitos, direito costumeiro.

Abstract: The first slaveholders who were in the region of Minas, were primarily interested in
the exploitation of alluvial gold, deposited in rivers. Also the Regiment of the 1702 was
limited to address these findings. However, exploration began in the mountains since the first
decade of the eighteenth century, and practiced there, at first, mostly by those who were
excluded from the division of mineral dates in rivers: poor men, the so-called "outsiders" and
slaves. Later, the slaveholders also seek the mines in these mountains. The coexistence of
these agents in the same space would be marked as "agreements" and conflicts. These
conflicts are rich source to discuss how was the occupation and exploitation of auriferous
mountains.
Keywords: mining, conflicts, custom law.

I. Direito costumeiro e exploração do ouro nos morros:


Em virtude dos achados auríferos nos sertões que viriam a constituir a capitania de
Minas Gerais, em finais do século XVII, o governo régio sentiu a necessidade de elaborar um
regimento para regular a exploração do metal precioso. Assim, em 19 de abril de 1702 foi
promulgado o Regimento dos Superintendentes e Guardas-Mores, que regularia a exploração


Mestranda em História na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), bolsista FAPEMIG.
1
aurífera durante todo o século XVIII, ainda que tenha passado por algumas alterações.1
Segundo Francisco E. Andrade, enquanto a legislação vigente até então buscava assegurar a
participação de todos nos trabalhos de mineração, este regimento estreitou o campo social dos
que poderiam participar dos descobertos, e da aquisição de datas minerais (ANDRADE, 2008,
p. 271). Este documento estabelecia que estas porções de terras minerais seriam distribuídas
de acordo com o número de escravos do requerente, deixando os não proprietários de cativos
excluídos da partilha dos descobertos.2
No entanto, este código tratava apenas dos achados do ouro de aluvião que se dessem
nos rios e ribeiros, que era o efetivamente explorado até aquele momento, se calando a
respeito daqueles que pudessem vir a ser feitos nas serras. Portanto, tal determinação, a
respeito da distribuição das terras minerais, se referia especificamente aos primeiros casos.
Para o ouro encontrado nos morros a forma de ocupação e exploração ficaria em aberto, e
caberia aos próprios exploradores “criar”, a partir de suas relações cotidianas, o “estilo” que
deveria ser aplicado naquele espaço.
Não demorou muito para que se iniciasse a mineração nestes locais. Diogo de
Vasconcelos trás relatos de que em 1705 a serra de Ouro preto já era explorada pelo reinol
Pascoal da Silva Guimarães (VASCONCELOS, 1999: p. 149). Também segundo Flávia Reis,
um dos primeiros registros de mineração no morro data de 1704/05, quando Manoel João
Barcelos, também reinol, descobriu ouro no morro próximo ao local em que posteriormente
seria a Vila de São João d’El Rei (REIS, 2007: p. 96).
O fato de ambos os relatos fazerem referência a homens nascidos no Reino, ou seja, em
Portugal, merece atenção. Naqueles primeiros anos de ocupação das Minas os paulistas
descobridores, homens poderosos senhores de escravos, estariam prioritariamente
interessados nas lavras dos rios e ribeiros.3 Sendo os principais detentores dos primeiros
cargos distribuídos naquele período, como o de guarda-mor, estes paulistas teriam vantagens

1
Regimento dos superintendentes, guardas-mores e mais oficiais, deputados para as minas de ouro._In.: Códice
Costa Matoso, 1999, p. 311-330.
2
Enquanto um regimento anterior, de 1700, estabelecia que os mineradores muito pobres e sem escravos, sendo
brancos, tinham direito de concorrer a uma data mineral de cinco braças de terras, no documento de 1702 esta
determinação desapareceu. No 5º artigo deste último ficou estabelecido que o tamanho da data de cada requerente
seria estabelecido de acordo com o número de escravos do mesmo. Proprietários com 12 escravos ou mais recebiam
uma data de 30 braças (66 m), os demais recebiam 2,5 braças (5,5 m) por cada escravo.
3
Entendo como poderosos aqui senhores proprietários de capital, escravos e com o prestigio social necessário
para ser reconhecido como um descobridor do ouro; ver ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das
Minas Gerais: empresas, descobrimentos e entradas nos sertões do ouro da América portuguesa. Belo Horizonte:
Autêntica Editora/Editora PUC Minas, 2008.
2
na distribuição destas lavras.4 Já a exploração nas serras foi, desde o inicio, buscada pela
camada dos ocupantes locais que eram excluídos da divisão das datas minerais nestes
achados: homens livres ou libertos pobres, escravos faiscadores e forasteiros.5 Sendo
excluídos da repartição dos descobertos nos rios e ribeiros, esses homens ocupariam as
encostas mais baixas das montanhas (ANDRADE, 2008: p. 298).
Ao superintendente caberia a jurisdição ordinária, cível e criminal, da região
mineradora. Porém, o Regimento de 1702 não conseguia dar conta das várias situações
conflituosas que iriam surgir e, portanto, não oferecia meios para a resolução das mesmas. Tal
fator abriu espaço para que os próprios mineradores fossem construindo, em sua prática
cotidiana, meios para solucionar os problemas que viessem a aparecer, tanto aqueles
referentes às técnicas, quanto ao convívio social que se dava nas explorações.
Antônio Manuel Hespanha, analisando o caso de Portugal, mostra que até finais do
Antigo Regime o direito letrado coexistiu, ainda que de forma conflituosa, com tradições
jurídicas populares (HESPANHA, 1988: p. 31). Porém, a relação entre ambos não era de
oposição total. O autor também diz que o direito local ou particular era o direito tradicional
das comunidades, difundido como tradição e “publicado por bando ou pregão, ele
materializava a tradição comunitária acerca do justo e do injusto, sendo, em principio, um
direito intensamente vivido e conhecido por todos” (HESPANHA, 1988, p. 47).
Parece-nos que o que ocorreu com relação à exploração aurífera nos morros das Minas
Gerais guarda semelhanças com isto. Como, inicialmente, a legislação nada dizia a respeito da
ocupação e exploração do ouro nestes locais, os próprios mineradores foram criando,
cotidianamente, seus “códigos de conduta”. Estes “códigos”, com o tempo, seriam conhecidos
e aceitos, de maneira geral, por mineradores e faiscadores que perambulavam por estes
morros. Difundidos como tradição, tais elementos seriam, pelo menos parcialmente,
incorporados aos bandos que começaram a ser publicados para regular a exploração nesses
locais, a partir da década de 1720.
Como as leis existentes não conseguiam dar conta dos vários problemas enfrentados na
prática da mineração, não raro as contendas judiciais eram resolvidas de acordo “com o que é
uso e costume nestas Minas”, expressão esta que aparece na documentação da época. A falta
de legislação que regulasse a exploração nas serras contribuiu para que, costumeiramente,
4
Guarda-mor era o agente responsável pela repartição das terras minerais.
5
Como faiscadores eram conhecidas aquelas pessoas que exploravam o ouro apenas com seu próprio trabalho e
o uso de umas poucas ferramentas, buscando o ouro onde lhes fosse possível, sem se estabelecerem em um
serviço mais duradouro. Forasteiros eram aqueles conhecidos como emboabas, tanto nascidos em Portugal
quanto em outras partes da colônia que não São Paulo.
3
estes locais fossem sendo considerados enquanto livres à exploração de todos. No entanto, os
morros auríferos, com o tempo, também seriam alvo de interesse dos senhores poderosos
donos de escravos. O que ocorreu, principalmente, quando o ouro de aluvião, depositado nos
rios e ribeiros, não era mais tão abundante, já na segunda década do século XVIII.
Ainda assim, aqueles exploradores do ouro mais destituídos de capital conseguiriam
manter certo espaço de atuação naqueles altos. Mesmo quando os senhores de escravos
começaram a ter interesse nestes locais, os mais pobres não poderiam ser simplesmente
banidos dos locais que ocupavam já há décadas, pelo menos não sem que esta ação tivesse
maiores consequências. Isto se dava, em partes, justamente pela força dos costumes naquela
sociedade. Assim, pobres e senhores de escravos teriam que conviver, e a convivência destes
“grupos” no mesmo espaço geraria vários conflitos de interesses e, portanto, contendas
judiciais.
Destas relações conflituosas surgiu a necessidade de se determinar quais os direitos
específicos de mineradores e faiscadores nos morros. A década de 1720 foi, assim, marcada
por vários bandos que buscavam abarcar as mudanças vivenciadas no espaço das lavras.6
Estes estabeleciam, em geral, que nos morros o local até onde fosse possível conduzir a água
ficasse concedido àqueles que possuíssem recursos para tal condução, e o restante do terreno
fosse deixado para a exploração livre do povo. Também o aditamento ao Regimento de 1702,
estabelecido em 1736, veio incorporar ao direito legal o que os mineradores já haviam
estabelecido como legítimo entre si, no âmbito dos costumes.7
A explicação que os estudiosos do tema dão para tal resolução é a de que os locais onde
não era possível levar a água e, portanto, adotar o método do “talho aberto”, que em geral
rendia mais do que a exploração por poços ou galerias, não atraía o interesse dos mineradores
mais abastados (REIS, 2007: p. 197; RENGER, 1999: p. 160). Afirmam também que seria
interessante para a Coroa permitir que essas terras fossem exploradas por qualquer pessoa,
pois isso garantiria que todo o terreno fosse trabalhado, aumentando a arrecadação do quinto.
Concordamos com tais explicações, mas acreditamos também que as reivindicações
daqueles agentes que não tinham acesso às datas minerais, como os libertos e escravos
faiscadores, também podem ter influenciado para que, quando as autoridades régias
6
Arquivo Público Mineiro (APM), Seção Colonial (SC) 21, fls. 4-5v, Bando de 26 de setembro de 1721; Arquivo
Público Mineiro (APM), Seção Colonial (SC) 27, f. 50-50v, Bando de 24 de novembro de 1728.
7
No 12º artigo deste aditamento ficou estabelecido que quando se descobrissem depósitos auríferos nos morros,
em locais onde não fosse possível conduzir a água, o descobridor deveria avisar ao superintendente para que este
ordenasse ao guarda-mor do distrito, agente encarregado da partilha dos descobertos, que repartisse o terreno ao
povo.

4
começaram a legislar sobre a exploração aurífera nos morros, ficasse estabelecido que, ao
menos parte deles, fosse deixada à exploração livre do povo. Pensamos que os funcionários
régios ponderavam sobre a possível reação destes agentes se fossem afastados por completo
da atividade a que se dedicavam desde os primeiros anos de ocupação das Minas: a faiscação
nos morros. E os conflitos que surgiram das tentativas de redistribuição das terras minerais
nestes morros pelos agentes régios, procurando aplicar também neste espaço o estabelecido
pelo Regimento de 1702, devem ter contribuído para tal ponderação.
II. Exploração nos morros de Passagem – “acordos” e conflitos entre os exploradores locais:
O distrito de Passagem, pertencente à Vila de Nossa Senhora do Carmo –
posteriormente cidade de Mariana – foi um local marcado por intensa exploração em seus
morros auríferos. Nestes conviveram grandes mineradores, com capital e quantidade de
escravos bastante significativa, e homens pobres, livres ou forros. As contendas judiciais que
se deram entre estes ocupantes, e também entre estes e os agentes do governo régio, são
fontes riquíssimas para tentarmos entender como se deu a ocupação e exploração do ouro nos
morros.
Já no ano de 1713 ocorreu uma contenda que se deu em torno da divisão de águas
minerais no morro de Matacavalos, localizado naquele distrito. Os sócios em um serviço de
água estabelecido para a extração do ouro se desentenderam e quiseram desfazer a sociedade,
repartindo a água entre si. Não conseguindo entrar em acordo sobre a forma como deveria ser
feita esta divisão um dos sócios, Timóteo Saraiva, recorreu ao ouvidor geral e superintendente
da comarca de Vila Rica, Dr. Manoel da Costa de Amorim, para que fizesse uma vistoria no
mesmo serviço.
Porém, o ouvidor não se limitou a tratar da questão da divisão da água. Segundo Diogo
de Vasconcelos, quando este foi em correção a Vila do Carmo ficou sabendo que o povo ali
faiscava em terras livres, sem que no local houvesse ocorrido distribuição de datas minerais.
O mesmo ouvidor tomou então a iniciativa de realizar a repartição das datas, porém as
concedeu a gente de fora, gerando grande descontentamento entre a população local que se
levantou. Diz ainda o autor que era “a gente miúda e pobre” a que lavrava no local
(VASCONCELOS, 1974: p. 131).
Os demais sócios naquele serviço de água também resistiram a vistoria do ouvidor, e
fizeram parte do referido levantamento, o qual preocupou as autoridades locais. Há indícios
de que os sócios eram todos reinóis. Temos aqui mais um elemento que mostra que nos
primeiros anos de ocupação das Minas os morros auríferos eram majoritariamente explorados

5
por aqueles que ficavam excluídos da repartição dos ricos achados auríferos encontrados nos
rios e ribeiros, que ficavam prioritariamente nas mãos dos paulistas.
O povo amotinou-se quando teve noticia de que o ouvidor pretendia voltar à vila com
negros e armas para prender aqueles sócios resistentes. E essa causa mobilizou muitas
pessoas, “(...) a uns por sua vontade e interesse que tinham nas faisqueiras que lhe
redundavam do serviço daquela lavra e a outros que, por força, faziam sair de suas casas com
as armas com que se achavam”.8 Assim, diante da tentativa daquele agente do governo régio
de redistribuir em datas o local em que faiscadores e mineradores, estes com maiores posses,
já haviam se estabelecido, e vinham explorando o ouro há algum tempo, tais exploradores se
uniram em defesa de uma causa comum. Causa esta que seria garantir que o local continuasse
a ser explorado por todos e, possivelmente, da forma como os ocupantes locais já haviam
“acordado” entre si como sendo o justo.9 Este conflito também mostra que a relação entre
mineradores e faiscadores nos morros das Minas era marcada não só por conflitos, mas
também por “acordos”.
O fato de que o levante mobilizou não só os sócios mineradores, os quais eram homens
detentores de capital e escravos, mas também aqueles interessados nas faisqueiras próximas
ao serviço de lavra estabelecido naquele morro merece atenção. Em 1721 o governador Dom
Lourenço de Almeida publicou um bando que tratava da forma como deveria se dar a
distribuição das terras auríferas naquele morro de Matacavalos.10 Este foi, inclusive, o
primeiro documento oficial a tratar da exploração nas serras. Tal documento estabelecia que
em Matacavalos, no local acima da área em que já haviam mineradores estabelecidos com
serviços de água, acima do rego utilizado para conduzir a água até o local, qualquer pessoa
poderia minerar por meio da abertura de buracos.
Parece-nos, no entanto, que este bando só veio dar reconhecimento legal ao que já
ocorria na exploração naquele local. Desde o período do conflito relatado já havia ali serviços
de exploração com o uso da água, realizados por mineradores com capital e escravos, e
faisqueiras que ficavam ao redor destes serviços, na qual tinham interesse os “pobres e
miseráveis” citados por Diogo de Vasconcelos. Mineradores e faiscadores sabiam, já muito
antes daquele bando, quais os lugares que uns e outros “poderiam” ocupar naquele local de

8
CCM, 1999. Documento 04, p. 205. Relação de um morador de Mariana e de algumas coisas mais memoráveis
sucedidas.
9
REZENDE, Dejanira Ferreira de. “Arraia-miúda” nos morros das Minas: conflitos sociais na Vila do Carmo,
década de 1710. Mariana/Monografia de Bacharelado: Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFOP, 2010, p.
49.
10
Arquivo Público Mineiro, Seção Colonial 21, fls. 4/5 v. Bando de 26 de setembro de 1721.
6
exploração. Eles já deviam ter “regras”, que foram construindo cotidianamente, para a
ocupação daquele morro, e não permitiriam que aquelas “regras” fossem mudadas pelos
agentes do governo régio, pelo menos não sem alguma resistência. Aquele conflito deve ter
deixado claro para estas autoridades que, ao estabelecer o bando que regulava a exploração no
local, as coisas não poderiam ser completamente alteradas. Assim, este documento manteve, e
em separado, um espaço de atuação tanto para os grandes mineradores, quanto para os menos
abastados, naquele local.
Outra contenda judicial ocorrida em um morro situado no distrito de Passagem, já na
segunda metade do século XVIII, também trás importantes elementos para pensarmos como
se dava a relação, nos morros, entre mineradores e exploradores com menos posses. Em 1767
Domingues Gomes da Fonseca acusou José Mina, africano, e sua filha, Ana, de estarem se
utilizando, indevidamente, dos cercos minerais deixados pelo falecido Ventura Alves da Costa
no morro de Santo Antonio. Ventura Alves era preto forro, natural de Angola, e havia
conseguido acumular algum pecúlio ao longo de sua vida, se dedicando a atividade de
exploração do ouro.11
Ana, defendendo-se da acusação de que explorava o local citado indevidamente, disse
que era possuidora “da metade de todos os cercos de lavagens que se acham nas vertentes das
lavras do capitão Leonel de Abreu Lima no morro de Santo Antonio”. Teria comprado os
mesmos cercos do furriel-mor José de Barros Viana, testamenteiro de Maria Josefa da
Conceição, a qual fora casada com o referido Ventura. . Porém, Ventura Alves havia se
desentendido com o testamenteiro de sua mulher, por considerar que este se apropriou de bens
que não pertenciam à parte da mesma defunta, mas sim a ele Ventura. Daí o motivo de
Domingues Gomes da Fonseca, após a morte de Ventura Alves, e como seu testamenteiro,
questionar a posse dos cercos minerais por Ana, já que esses haviam sido comprados pela
mesma de José de Barros.
Voltando à defesa apresentada pelo procurador de Ana e seu pai, este dizia que os
cercos citados na contenda são

(...) todos formados sobre laje com paredes de pedra que não contem em si outra utilidade mais que as
areias que as águas carregam das lavras do capitão Leonel de Abreu Lima; e para aproveitar algum
ouro que vem com as ditas areias trabalha a embargante [ré] com seus escravos desviando lhe as pedras

11
Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana (AHCSM), Livro de Registro de Testamentos nº 68 (1763-
1765), 1º ofício, fl. 87. Testamento de Ventura Alves da Costa, 1764.
7
e mexendo as areias de que só poderá ficar algum ouro apurando-o depois em couros e sem este trabalho
se perdem as referidas areias pelo córrego abaixo.12

Afirma ainda Ana que, por ser todo de lajes, estes cercos não podiam “dar ouro próprio
daquele lugar”.13. Ana beneficiava-se da lama, com resíduos de ouro, que vinha da lavra de
Leonel de Abreu Lima, um minerador com “grande fábrica de minerar”. Esta era uma prática
comum utilizada por aquelas pessoas que não tinha acesso as grandes lavras minerais, prática
esta à qual os donos destas lavras não se opunham. Testemunhando no caso, Leonel de Abreu
reconheceu que a forra Ana e seu pai mineravam no local legalmente, pois aquela havia
comprado os mesmos cercos. Declarou ainda “que só se utiliza quem trabalha nos referidos
cercos de algum ouro que corre com as areias da lavra dele testemunha, a qual se aproveita
com muito trabalho”.14
João Pinto Álvares, outra testemunha no caso, também confirmou que Ana era
“possuidora” da metade dos cercos mencionados na contenda. Este era outro grande
minerador, com muitas posses, que atuava no morro de Santo Antônio.15 Seu testemunho
também mostra que os grandes mineradores não se opunham ao fato de qualquer pessoa poder
explorar as areias que sobravam das suas lavras.
Leonel de Abreu Lima também havia afirmado, algum tempo antes, que nas áreas
próximas a seus serviços havia terras minerais deixadas à exploração livre de todos.16 Neste
caso, os cercos que Ana comprou deviam garantir a posse temporária do local, já que eram
uma benfeitoria, e era assim que, normalmente, se garantia a posse de terras minerais nos
morros, pelo serviço que se realizava no local. O fato de existirem terras minerais deixadas à
exploração de todos naquele morro também mostra que a convivência de mineradores e
exploradores com menos posses no local, já existente desde o período do primeiro conflito
relatado, perdurou ao longo do século XVIII. E o depoimento de dois grandes mineradores
locais, confirmando a versão da preta forra Ana, é um indicio de que os “acordos” entre
aqueles agentes continuaram sendo possíveis.

12
AHCSM, Ação Cível. Códice 275, auto 6764, 2º ofício, 1767.
13
Ibidem.
14
Ibidem.
15
João Pinto Álvares constava na lista dos homens ricos da capitania de Minas Gerais que se fez em 1756, a
pedido do Conselho Ultramarino; ver ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Ricos e pobres em Minas Gerais:
produção e hierarquização social no mundo colonial, 1750-1822. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010. p. 202.
Leonel de Abreu havia mencionado que no morro de Santo Antônio apenas ele e João Pinto possuíam “águas
nativas”, a qual era essencial para a mineração no local. Sabemos que as águas, nos morros, costumavam ficar
nas mãos dos grandes mineradores, homens com posses - AHCSM, Livro de guardamoria 6, f. 35. Em 1748,
João Pinto possuía 86 escravos trabalhando em sua lavra situada naquele morro - AHCSM. Códice 46, Auto
1050. 1º ofício. Inventário de Mariana Correa de Oliveira.
16
AHCSM, Livro de guardamoria 6 (1756-1759), f. 35.
8
Mas é importante ressaltar que o fato dos pobres poderem também minerar nos morros
era “defendido” pelos grandes mineradores desde que não atrapalhassem seus próprios
interesses. É bastante ilustrativo disto as afirmações feitas pelo citado Leonel de Abreu Lima
ao requerer terras minerais, no ano de 1755, no mesmo morro de Santo Antônio aqui
mencionado. Ao justificar o pedido de que as terras que restaram de explorações feitas por
outras pessoas lhe fossem concedidas Leonel diz que a lei ou regimento que diz serem os
morros realengos “não é tão absoluta” de modo que não possa admitir que os mineradores que
possuem águas nativas tenham propriedade destas terras, para que nas mesmas possam
realizar o serviço de talho aberto.17 Já quando diz que não seria necessário citar os donos dos
serviços abandonados que requer, por serem estes já muito antigos, e não ser mais possível
saber quem os explorava, o minerador utiliza como argumento que se deva atender “a
natureza do morro livre e realengo para quem quiser meter mina ou buraco sem dependência
de alguma concessão ou licença.”18
Neste sentido, a convivência entre os exploradores dos morros não foi totalmente
harmônica, diante de interesses divergentes os embates entre eles também estiveram
presentes. Um exemplo de contenda judicial opondo grandes mineradores e pessoas que
exploravam na parte dos morros deixadas à exploração livre de todos ocorreu em 1739. João
Pinto Álvares, aqui citado anteriormente, acusou Custódio da Cunha de estar explorando,
indevidamente, em terras que lhe pertenciam, no morro de Matacavalos. Esta exploração seria
feita a partir de um buraco que Custódio tinha para sua exploração, nas terras vizinhas ao
serviço de João Álvares. Terras estas deixadas à exploração livre do povo.
Para uma primeira vistoria nos serviços foi nomeado, junto com outras pessoas, Leonel
de Abreu Lima, também já citado aqui. Donde se vê que na resolução das contendas nos
morros os mineradores que ali atuavam tinham importância fundamental, estes deviam
conhecer bem as “regras” de exploração no local. Nesta vistoria constatou-se que Custódio da
Cunha havia entrado pelas terras do autor mais ou menos 70 palmos, e os serviços foram
embargados. Em uma segunda vistoria estiveram no local o ouvidor-geral e superintendente
das minas, as partes envolvidas e dois louvados encarregados de fazer esta vistoria. Talvez
este segundo exame tenha sido requerido diante da desconfiança de que o primeiro, sendo
feito por mineradores locais, tenha favorecido uma das partes. Mas os louvados nomeados

17
AHCSM- Livro de guardamoria 6 (1756-1759), f. 35. Morros realengos eram aqueles deixados à exploração
livre de todos.
18
Ibidem.
9
também constataram, depois de feita a medição necessária dos buracos “seguindo o estilo do
morro”, que Custódio da Cunha havia entrado pelas terras do autor.
Não conhecemos o desfecho final desta última contenda. Mas o importante a ser
observado, a partir dos casos relatados, é que nos parece que os grandes mineradores e
aqueles exploradores com menores posses foram construindo, cotidianamente, ao explorarem
os morros das Minas, “regras” para a atuação no local, as quais delimitavam os espaços que
deveriam ser ocupados por uns e outros. Espaços estes que já estavam, de certa forma,
“delimitados” pelos próprios exploradores, mesmo antes dos bandos que vieram legislar a
respeito da mineração nos morros. Estes bandos tiveram que levar em conta o já “acordado”
entre mineradores e faiscadores. E as próprias resoluções dos conflitos que se deram entre
estes homens devem ter contribuído para que se fossem construindo as “regras” da exploração
nos morros.
III. Referências Bibliográficas:

ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Ricos e pobres em Minas Gerais: produção e
hierarquização social no mundo colonial, 1750-1822. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010.

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10
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VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.

11

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