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INSTITUTO DE LETRAS
BRASÍLIA
2013
NINA DAYA SIMÕES PINHEIRO
BRASÍLIA
2013
NINA DAYA SIMÕES PINHEIRO
__________________________________
Orientador Professor Dr. Anderson Luís da Mata
Este trabalho é dedicado à minha família,
e às pessoas que fizeram e fazem parte
da minha história ao longo da minha
formação.
Agradeço primeiro a Deus por ter me ajudado nessa longa jornada, à minha família
que sempre me apoiou e aos meus colegas e professores que colaboraram na
construção desse trabalho.
Figura3 – Renascimento
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................11
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................54
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INTRODUÇÃO
Por essa ótica, busquei, numa seleção de contos curtos, mulheres – mães –
que fugissem de alguma forma, dessa feminilidade e significação de si
mesmas restritas ao uso do corpo para a reprodução. Foram encontrados
cenários que podem ser pintados em nuances de alteridade, fracasso e
assujeitamento sobre uma grande tela de estereótipos e contraestereótipos.
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Figura 3 – Renascimento
Oil Paintings By Da Vinci, Leonardo (1452-1519) - Madonna Litta
Fonte: http://www.artgallery2000.com/gallery/madonna-litta-by-da-vinci-p-5162.html
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mãe e esposa. Isso se reflete também nos contos presentes nesse trabalho,
uma vez que apenas no conto de Marcelino Freire, a mulher em questão
encontra-se fora de casa e não se dedica à vida com os filhos. Enquanto Dona
Anita, do conto “Feliz aniversário”, e a mãe do conto “Uma branca sombra
pálida” padecem de uma vida dedicada à maternidade e às convenções sociais
exigidas à figura feminina, Darluz, do conto de Marcelino Freire, consegue se
libertar, até certo ponto, dessas amarras maternais.
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(...) um filho, Derrida, reconhece que ele fala pela mãe como se ela já
estivesse morta; ele se apropria da voz da mãe e fala por ela. Confessando
a mãe, Derrida — homem e filho — quebra as barreiras de tempo e gênero.
Em sua confissão, ele pode retroceder e avançar na vida de sua mãe, tomar
liberdades e fazer afirmações ou negações, já que a mãe está encrustrada
em um futuro perfeito do qual ele — filho e homem — a recuperará para seu
próprio discurso sem que ela — mulher e mãe — possa dizer nada. Então,
ao confessar a mãe, Derrida não a está desmaterializando e transformando-
a em pura representação? (Bueno, 2000, p. ).
Bueno considera ainda a enorme quantidade de obras literárias escritas por homens
e afirma, assim, que as mulheres têm sido representadas muito mais do que têm
podido representar. Observa ainda que um escritor como Coelho Neto (1865-1934),
poeta e homem, revela e estabelece por meio de falas que reafirmam um padrão de
feminilidade, aceito e perpetuado acerca do papel da mulher, que enfatizam o
paradigma maternal: “sofrer num paraíso”, ser uma mulher gloriosa no ambiente
privado, ser um “anjo” livre de subjetividade e ser altruísta além do limite do humano.
A família, como núcleo inicial da vida social vem sendo retratada de várias
formas ao longo da história. Susan Sontag, no livro Sobre Fotografia, afirma
que a fotografia desenvolveu-se, no ambiente familiar, como a celebração e a
reafirmação simbólica da continuidade ameaçada e da decrescente amplitude
da vida familiar. Isto é, enquanto linguagem dêitica (Barthes, 1984), a
fotografia faz um convite a olhar algo que não está escrito e, portanto, não é
interpretação. Trata-se do registro fotográfico, uma miniatura da realidade
familiar de tempos em tempos (Sontag, 2004).
inicia antes mesmo que a câmera seja ligada. A fotografia, nesse sentido,
continua sendo um registro da realidade já que, mesmo longe das lentes se
pode ver, no exemplo da amamentação, a dissimulação de um prazer físico
pintado de geração em geração e, no exemplo de Barthes, a imagem de uma
mulher que se portava com discrição publicamente por saber substituir o valor
moral pelo valor superior, o civil, a reafirmação da maternidade legitimadora de
individualidade à posteridade por meio da película de uma foto.
Desta forma, os contos – e agora não somente “Uma branca Sombra Pálida” e
“DARLUZ”, mas também “Feliz Aniversário” – nos levam a perceber a pesada
mão de um discurso que não se distancia de um conceito concreto a respeito
da instituição Mãe e das obrigações civis em detrimento das obrigações
morais, quando falam a respeito de maternidade.
ambiente, pensando que ela já vivera mais do que todos gostariam. Em “Uma
branca Sombra Pálida” uma mãe desaba suas mágoas sobre o túmulo da filha
suicida, pensando a respeito de sua própria vida e de sua própria inexistência.
Em “DARLUZ” a vida e a morte se tornam metaforizadas na imagem de um
futuro na miséria – morte – e um futuro com oportunidades – vida. E desta
forma observa-se um quadro de três mães que identificaram, silenciosamente
ou não, o prejuízo de se viver conforme os juízos dos que as olham.
A partir de imagens formadas pela leitura dos três contos em questão, busquei
recriar, com o uso de fotografias, os ambientes no qual se passam os
episódios nos textos. Não houve preocupação com uma função de reinvenção
ou releitura das personagens, aqui chamados spectruns (Barthes, 1984), mas
sim com a coesão entre estas e demais elementos, como formas, cores,
texturas, enquadramentos, elementos da composição e outros recursos
fotográficos e imagéticos que, de forma colaborativa, recriassem um retrato da
atmosfera gerada nas narrativas, como um comentário fotográfico a respeito
dos contos.
A fotografia aqui pretende, então, ser uma imagem que remete a um texto que
expressa a linguagem artística real que se constitui por uma série de
elementos estéticos comuns (Lótman, 1962 apud Romanovsky, 2009), em
direção ao contexto literário, que, por sua vez, direciona-se a concepções
históricas, sociais e culturais. Para um entendimento mais pleno das imagens
fotográficas, é necessário reunir a definição de um ato de fotografar a
parcialidade de um circunstância real para, enfim, a criação de uma outra
realidade, aquela que se comunica com o conto em questão.
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Texto pesquisado na Internet, sem referência de ano e com página inacessível atualmente.
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O que deveria ser uma comemoração prazerosa torna-se um ato teatral no qual
todos os personagens – os familiares – cumprem seu papel: o de fazer as tarefas
que os bons parentes devem fazer para que os laços familiares se sustentem, ainda
que sejam sobre um último fio de hipocrisia. Todos são norteados por esse dever,
exceto Dona Anita.
A senhora completa oitenta e nove anos mas não reconhece a influência de sua
personalidade em seus próprios filhos. Essa, não é uma mulher que se identifica
como matriarca de toda essa gente, mas uma mulher que reconhece que, para
essas pessoas, se tornou somente um calendário sobre o qual se inscrevem
algumas etapas da vida da família.
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Trata-se de uma velhinha de oitenta e nove anos, mãe de sete filhos, possuída pelo
entendimento de seu papel social e do dever de ser silenciosa no âmbito público.
Segundo o narrador, os pensamentos de Dona Anita revelam que esta foi mãe e
esposa devotada e independentemente de seus reveses pessoais manteve-se no
papel de mulher – do lar – honrada.
Casara-se no memento julgado certo e tivera também uma vida julgada certa pela
sociedade – e provavelmente ela mesma incorporara esta como sendo uma vida
certa. Tivera como parceiro um bom homem que não necessariamente amara ou
com quem tivera delírios de prazer, mas que lhe proporcionara uma vida confortável
e bem apropriada aos padrões de sua esfera social. Somente a leitura desta citação
já seria suficiente para identificarmos aí o perfil de uma mãe também assujeitada e
assexuada, já que se fala de uma mulher submetida à opressão social no momento
de escolher um parceiro para si, de manter um casamento moralmente aceitável e
ainda, uma mulher que se permite ser usada pelo marido na concepção de sete
filhos.
Não é possível acreditar que seria à Dona Anita um grande prazer parir tantos filhos,
uma vez que pensa serem estes, feitos pelo marido, com uma parcela mínima de
participação de sua parte – era apenas o veículo. Mas como uma boa progenitora
que cuida de sua prole, esforçou-se para que todos tivessem, por fim, uma vida
saudável e alegre.
Ela era a mãe de todos, sufocada, impotente, frustrada, mas era a mãe de todos. De
alguns, mais do que de outros. Admitia – ao menos para si – a preferência pelo filho
Jonga, a quem respeitara e amara muito mais do que aos outros, e ao neto Rodrigo,
que tinha certeza: seria um homem. Orgulhara-se de Jonga e orgulhava-se de
Rodrigo, ambos homens e ambos austeros, ou ao menos com a semente da
austeridade em si.
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“Amor de mãe era duro de suportar”. É claro que, neste momento, não se tratava de
um olhar cheio de amor por todos os filhos, mas um olhar de diminuição de seis
filhos em detrimento de outro, Jonga. Era difícil suportar a falta do amor por todos e
o excesso de amor por apenas um.
Dona Anita não demonstra afeição por nenhum da casa, nem mesmo a Zilda, que a
acolhera. Não faz questão da presença de nenhum dos convidados, considera-os
opacos, fracos e ansiosos. Não é amorosa com os netos, nem mesmo quando é
chamada de vovozinha. “– Que vovozinha que nada! [...] — Que o diabo vos
carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! Me dá um copo de vinho,
Dorothy!” (LISPECTOR, 1998, p. 62).
Para os convidados, Dona Anita é apenas mais uma peça de decoração na sua
própria festa, um jarrinho de flores cheirando a água de colônia ao lado da mesa do
bolo. E o narrador leva o leitor a perceber a fragilidade desse momento bem como a
forma de agir da família e da aniversariante. Consciente da rede de hipocrisia que se
passa ao seu redor, a velhinha se decepciona com os familiares ao observar o papel
que cada um representa. O filho que mandou a esposa e não apareceu, a nora de
Olaria que ostentando seus acessórios não conseguiu esconder o
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descontentamento por estar lá, os netos que ficaram divididos entre apoiar o
protesto silencioso da mãe e se divertirem com os primos. O irmão antes
acomodado que se sentiu na obrigação de fazer um discurso já que o irmão
outorgado paraninfo da família faleceu. A própria Zilda que trabalha como uma
escrava a fim de simular um ambiente feliz e prazeroso, preparando o aniversário da
mãe, não pela comemoração, mas sim pelo dever de fazer algo.
A filha melhor delineada na história é Zilda. Única filha entre os seis irmãos capaz de
alojar a mãe. Segundo os irmãos, Zilda tinha tempo e espaço para tal, mas o texto
não mostra a resposta de Zilda diante dessa situação, não comenta se Zilda tinha
filhos, marido, se trabalhava, enfim, isso não importava, ela era a única – dentre seis
irmãos – capaz de asilar a mãe sob seus cuidados. Contudo, fazia sim um sacrifício
para dar à mãe um final de vida digno, um longo final de vida por sinal.
A relação entre Zilda e Dona Anita não era muito afetuosa, segundo as descrições
do narrador restringia-se à superficialidade, como também se restringia à
superficialidade o relacionamento entre os outros membros da família. A
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preocupação frequente de Zilda com as sanções negativas dos irmãos nos mostra o
quão vulneráveis estão os laços, e que nenhum dos convidados era efetivamente
presente na vida de Dona Anita nem estava efetivamente comemorando o
aniversário dela. Eram apenas representações do que uma família feliz deveria ser e
pensar a respeito dos oitenta e nove anos da anciã da casa e os parentes, como
bem falado pelo filho José, só seriam obrigados a passar por aquela situação
insuportável novamente no ano seguinte, no aniversário de noventa anos.
De começo, o conto nos mostra uma Dona Anita dócil e submissa. Sua postura
fisicamente inerte e plácida, mas intimamente sagaz e tempestuosa se revela ao
leitor como uma “angústia muda” (pp. 55-56) ou mesmo uma “muda intensidade” (p.
59). Aos poucos, começando com piscadas de olho, a velhinha vai saindo da inércia
e revelando-se aos convidados. O que de início parecia fragilidade, posteriormente
delírios de uma velha, ao final do conto transforma-se em altivez régia. Os
presentes, a veracidade da comemoração, a qualidade da decoração, os laços de
família e todas as outras manifestações interpessoais podem ser questionadas, mas
não a firmeza de Dona Anita.
Ao final do conto Dona Anita medita na única coisa que considera incontestável além
de si mesma, mas que Zilda aparentemente não se deu conta: o bolo não substitui o
jantar. A aniversariante não vê sentido naquela festa, na reunião familiar, nas
palavras de homenagem uma vez que tudo se constitui a partir da mentira e da
valorização da aparência. Trata-se de uma representação de toda a família para a
própria família. E, como no caso do próximo conto ser discutido “Uma Branca
sombra pálida”, em que a mãe, diante do túmulo da filha, encena para ela própria
uma armadura de indiferença e insensibilidade, a família de Dona Anita simula para
si mesma um padrão inalcançado de afetividade. Para a aniversariante, até mesmo
o simples fato cotidiano de o jantar ser servido todas as noites é mais real e
inquestionável do que tudo o que aconteceu em sua festa de aniversário e todas as
relações e palavras de afeto faladas ali.
Vemos um cenário no qual uma velha idosa é colocada num local da casa onde
filhos, netos e parentes a virão ver, fazer-lhe um carinho, dar-lhe um presente inútil e
virar-lhe as costas. Trata-se de dois ambientes diferentes, dois espaços ocupados
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repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a
carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e
despenteada. Cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido
naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas,
piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida
que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar á luz aqueles
seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara
em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e
independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe
pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera
aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa
alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem
austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o
que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam
ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força
insuspeita cuspiu no chão (LISPECTOR, 1998, p. 62).
Dona Anita, reservando-se ao direito de ficar calada vê todos como uma criação que
não deu certo, enxerga pessoas que de tão mascaradas tornaram-se apenas umas
sombras mal feitas e animadas de si mesma. Não faz questão de presilhas,
perfumes, bolo, toalhas ou velas acesas já que não há nenhuma verdade nisso. Não
há nada que seja realmente sincero, palpável, indiscutível, concreto. Como dito,
apenas sombras.
Neste momento, a única coisa concreta além de si própria era a cadeira onde Dona
Anita estava sentada e a fotografia de uma sombra é suficientemente crítica para
representar as tantas máscaras dos convidados àquele momento.
Quanto a uma fotografia de uma sombra, resta o incômodo de ver mortos, rostos e
expressões, mas nesse caso, é proposital que a fisionomia seja obscura e quase
irrelevante. Não eram filhos, eram apenas espectros de filhos. Vestígios de pessoas
que não eram realmente quem se diziam ser, que apenas se movimentavam
agitadas pela sala e riam, enquanto uma senhora se retorcia intimamente tentando
se convencer de que era a mãe de todos eles.
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Seguindo com o ponto de vista emotivo, a foto permite uma análise subjetiva a partir
da mostra da perspectiva do fotógrafo – eu – no momento do click preocupando-se
com os elementos presentes de forma mais discreta na composição. Uma ponta de
metal arredondada ao lado do sofá revela a necessidade do auxílio para a
locomoção; uma almofada sob as costas deixa a senhora mais confortável; um
guardanapo jogado sobre o peito faz com que acreditem que ela está sendo bem
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higienizada; um copinho d’água coberto com uma tampa de pote de geleia ao lado
do braço esquerdo de uma pessoa provavelmente destra, posicionado não
adequadamente para que ela beba água, porém com grande chance de derramar –
o que realmente aconteceu - atesta o real interesse em não mostrar que a velhinha
está sendo hidratada, mas apenas em mostrar-se um copo d’água.
Este capítulo faz considerações sobre “Uma Branca sombra pálida” de autoria de
Lygia Fagundes Telles. Neste conto temos, pelo menos, dois perfis bem delineados:
o de uma mãe e o de uma filha. A mãe, neste caso, não se apresenta com um
nome. Gina, a filha, é amplamente descrita, criticada, retaliada, questionada e
depreciada por esta mãe.
Mesmo sem fazer muitas descrições a respeito de si mesma, essa mãe revela-se a
um leitor mais atento, uma mulher cheia de vestígios inconfundíveis de culpa pela
morte da filha. Recusa-se a falar de seus fracassos, mas admite-os em seus
suspiros: “Ah, a mentira das superfícies arrumadas escondendo lá no fundo a
desordem, o avesso dessa ordem”. Não assume categoricamente seu
ressentimento, sua culpa, mas demonstra em várias passagens, a importância e o
amor que sentia por Gina:
A filha Gina, por sua vez, está apenas na consciência e à confidência de sua mãe. É
dita como mais apegada ao pai, uma moça agradável, bailarina, que outrora
apaixonara-se por uma gatinha que fugiu dela pra procurar um macho. Suicidou-se
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após uma crítica severa da mãe quanto ao seu envolvimento amoroso com outra
moça – que será discutida mais adiante, Oriana. Segundo a mãe, Gina era pequena,
discreta e tinha poucos amigos, mas era voluntariosa. Até mesmo morta, na hora em
que sua mãe, mandou que lhe tirassem os algodões das narinas, não quis Gina
voltar a respirar.
Oriana é a amiga que Gina fez no Ballet. Estudavam horas a fio no quarto de Gina
ao som de A Whiter Shade of Pale da banda britânica Procol Harum. Olhando pelo
buraco da fechadura, a mãe só chegaria a ver até a cabeceira da cama, alcançaria
ainda o olho vermelho do toca-discos, uma parte da mesa com os livros e a bandeja
no chão com alguns copos de vidro. Mas ainda assim, tinha motivos para acreditar
que Oriana era amante de Gina e que o som só estaria assim tão alto e a porta
fechada para que as coisas escusas que, por ventura estivessem, fazendo naquele
quarto continuassem ocultas.
Neste sentido, então, vemos que Oriana é um dos poucos elementos que levam cor
ao conto, isto é, sob a ótica da onomástica seu nome já significa “Garota dourada”3,
possui uma fita vermelha no braço, leva flores vermelhas à Gina no dia do enterro e
no cemitério além de podermos ressaltar o interesse da menina por “bugigangas
afro-religiosas” e ainda a comparação a uma formiga ruiva feita pela mãe no
cemitério: “Esmago no sapato uma formiga ruiva que surgiu debaixo de um
pedregulho, há de ver que esteve lá embaixo daquele fundo nojento, rastejante, oh,
Deus”.
3
Significado pesquisado no site www.dicionariode nomesproprios.com.br/oriana
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como “Experimentei o chão. Era duro para mim, mas na idade delas a gente podia
falar em dureza?” e
Sobre a relevância do fracasso no ambiente do conto, vemos que essa mãe sobre a
qual falamos dá pistas, no decorrer do texto, de que sua ruína se deu com o suicídio
da filha. Sua vida tornou-se desordem do dia para a noite: “Deitou-se com sua
camisolinha e amanheceu aquela imagem que eu enfeitava tentando botar ordem na
desordem da morte, a morte é só desordem”. Critica-se e questiona-se
constantemente, mentindo para si mesma busca uma esperança de que suas
mentiras se tornem verdade e sua vida deixe de ser solidão e volte a ter
profundidade e sentido. De forma muito clara, escapa de momentos de angústia
levando suas palavras e deslocando seus assuntos para caminhos e locais
insignificantes como a leitura do anúncio do ministério da saúde no maço de
cigarros, a presença de uma lata de lixo no cemitério, a qualidade do solo, o voo de
uma borboleta, o uso peculiar de um verbo, a ausência de familiares ou mesmo
tornando sua fala amarga com ou a respeito dos que a cercam, especialmente com
Oriana.
[...] Ela com a sua mágoa e eu com a minha impaciência, ah, a mentira das
superfícies arrumadas escondendo lá no fundo a desordem, o avesso dessa
ordem.
Acendo outro cigarro. Comecei a fumar deste jeito o dia em que Oriana
esqueceu o maço de cigarro no quarto de Gina, experimentei um, era bem
mais forte do que aqueles que eu fumava meio espaçadamente. Enquanto
fui ouvindo os discos, não parei até esvaziar o maço. Então fiquei ali quieta,
sentada no chão do quarto, em meio das almofadas onde elas estiveram e
sentindo ainda no ar aquele indefinível cheiro de juventude. Uma borboleta
com desenhos prateados nas asas veio agora rondar a jarra das rosas
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Como dito, Oriana é o ponto de partida para movimentos que se seguem rumo ao
interesse pela sensualidade. Esse interesse surge antes mesmo de ver o maço de
cigarros de Oriana, mas o despertar erótico surge no momento em que a mãe pega
o cigarro de Oriana e o traga. Não conseguiu resistir ao maço inteiro, se dispôs a
ouvir os discos boêmios que as meninas ouviam, sentiu o chão sozinha, sentiu-se
velha. Oriana provoca movimentos vigorosos no corpo, mas também na alma dessa
mãe: desperta o ódio, que caminha finalmente em direção a Gina no momento da
represália fatal, mas desperta também a esperança, que se dá com a competição
imaginária travada entre Oriana e a mãe à beira do túmulo. Isto é, ao mesmo tempo
que a presença de Oriana provoca a morte, posteriormente, proporciona à mãe um
mísero motivo para manter-se existindo, viva.
Assim, a mãe de quem estamos falando, acaba nos apresentando Gina após essa
interação que a família teve com Oriana. Como leitores, lemos apenas uma leitura
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de Gina feita pela mãe após ter sido influenciada pela presença da intrusa em sua
casa. Todos os contornos de Gina, todas as reações especuladas, todos os traços
emocionais estão já mediados pelo contexto do tempo de convivência com Oriana,
que se torna, por sua vez, uma lente entre Gina e sua mãe, logo, entre as palavras
da mãe e nós, leitores.
Em “Feliz Aniversário” vimos vestígios de pessoas que não eram realmente quem se
diziam ser, que apenas se movimentavam agitadas pela sala e riam e no caso de
“Uma branca sombra pálida” vemos algo que parece ser humano, um humano que
parece ser uma mulher, uma mulher que parece estar se formando – pelo vestir-se –
num ambiente que parece privado, um ambiente privado que não se vê claramente.
Mas um claramente que se enxerga muito claro, na verdade ofuscado, de tão claro.
Seguindo para a função emotiva, vemos que os elementos a serem destacados não
vão além do véu, da cortina, do contorno humano, e da iluminação em si. Contudo,
fazemos uma análise subjetiva quando tomamos o foco narrativo do conto em
comparação ao posicionamento do operator no momento da foto. As cortinas, um
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par de joelhos à mostra e uma calça vermelha com bolinhas brancas remete
imediatamente o spectator a um ambiente privado dentro de uma casa. O
movimento feito com o lenço vermelho nos indica uma possível troca de vestimenta
Com a análise segundo a função poética, vemos que a foto, em sua completude,
trata de uma de visualização do silenciamento de Gina através de uma simbologia
da luz, que ofusca e encobre a verdade de fatos que tiveram suas razões
encobertas aos olhos e à fala de uma mãe desestruturada diante da novidade de
uma situação e de uma interação.
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Não é possível saber onde mora, a cor de sua pele, sua situação familiar pregressa.
Apenas que Darluz é uma mulher pobre, sem trabalho, sem instrução e sem
educação Com as frequentes descrições que faz a respeito de si mesma, vemos que
é uma mulher isenta de qualquer remorso ocasionado pelo fato de ter abandonados
seus tantos filhos.
À primeira vista, Darluz pode ser considerada criminosa, insensível, louca, indolente,
vagabunda ou negligente para com vidas humanas – seus próprios filhos! O fato é
que, através do depoimento dessa mãe incomum, Marcelino Freire põe à prova a
sensibilidade e até mesmo o altruísmo. Como a interlocutora calada, o leitor é levado
a refletir a respeito de um costumeiro julgamento generalista e preconceituoso.
Darluz, ao contrário do que parece, é uma mãe sensível que prefere dar a seus
filhos um nome e uma chance de um futuro melhor do que o dela com outros pais a
aprisioná-los na miséria junto consigo. Recusando-se a parar de dar, se vê heroína e
não vilã. “Alimentei aí um bichinho que a mãe não quis dar pra ninguém. Fica ali,
agarrando o filho na miséria, pode? [...] Quero ver quando esta peste crescer, quero
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ver”; diz Darluz quando menciona o leite que vendeu a uma mãe cujo filho não quis
dar, obrigando-o a viver na miséria.
Ela dá todos os filhos, mas repete constantemente que dá e não se arrepende disso
com “dei, daria e dou” logo no primeiro parágrafo. ‘Dar’ reverbera pela narrativa,
trazendo a dubiedade do verbo que aparece dezenove vezes no texto atuando de
forma a significar primeiramente dar à luz, como já é apontado pelo título, dar os
filhos, dar um destino às crianças e ‘dar’ no sentido sexual, reafirmando através
desse verbo que a define sua posição de anti-heroína.
No que diz respeito às imagens sexuais, vemos que o conto trata de uma
sexualidade aflorada que passeia pelo texto nos dando pistas de que estamos lendo
o depoimento de uma mulher que, não só aprecia o sexo como uma forma de
enfrentar a dificuldades de sua vida infeliz, mas que, a partir dele, se define como
sujeito.
É infeliz em sua atual vida afetiva, bem como com seus três maridos anteriores, não
tem o amor de seu atual marido, e, dando os filhos a outros, demonstra o amor que
não recebe ao permitir que as crianças possam ser até mesmo doutores, como
provavelmente jamais seriam se vivessem junto dela. Assim, observa-se que essa
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mãe possui uma plena consciência de sua própria condição de vida e, portanto, da
incapacidade de sustentar uma ou mais crianças sem anular-se de alguma forma.
Por seu relato, percebe-se que muitos tentam opinar a fim de mudar a vida de
Darluz sem conhecê-la verdadeiramente: “Todo mundo é solidário. Mas na hora,
olha, o povo é foda. Vem aconselhar pílula, distribuir planejamento. Quero saber o
que fazem com nosso sofrimento. Vai, quem diz? Quem já foi infeliz?”. Afinal, Darluz
se dá ao direito de não utilizar a pílula que por sua vez não é remédio para o
sofrimento como o sexo, mesmo que momentaneamente, o seria. A pílula não seria
o remédio para o sofrimento, como não seria para a fome, para a infelicidade, ou
para o inferno onde Darluz se enxerga vivendo. Nem seria o remédio para o
sofrimento, a miséria da criança no ventre. Entretanto, não se trata de um
assistencialismo que beneficie Darluz, mas seus filhos, mas também não se trata de
um assistencialismo que, de acordo com a experiência de Darluz, beneficiaria seus
filhos, mas sim os que a julgam irresponsável, e, no fim das contas, não dirigem sua
ajuda nem à Darluz nem às crianças, mas à suas próprias consciências. Desta forma
entendemos a preocupação de Darluz em não se anular, ou anular seus prazeres
por interesses que só dizem respeito a outrem.
Darluz é, em sua própria fala e definição, a resposta à fala do Outro que se coloca
no lugar dela. Esse Outro ocupa espaços sociais, culturais, econômicos e temporais
totalmente diferenciados dos que Darluz ocupa, mas ainda assim, a completa ao
mesmo tempo em que se completa. Esclareço fazendo uso da visão bakhtiniana do
princípio da exotopia, isto é, o fato de que só através de um Outro, um sujeito pode
ter um acabamento, assim como só esse sujeito é que pode dar acabamento a um
Outro. Cada um dos que julgam Darluz, de seus respectivos lugares de fala, tem
sempre apenas um horizonte e, estando na fronteira do mundo que vivem, somente
Darluz - um Outro - pode dar-lhes um ambiente, completar o que lhes falta ao olhar.
Da mesma forma, Darluz só pode se imaginar, por inteiro, sob o olhar do Outro; em
decorrência dessa exotopia, a palavra de Darluz está inquestionavelmente
contaminada do olhar de fora, do outro que lhe dá sentido e acabamento. Em suma
Darluz não fala sozinha nem fala ou representa somente a si própria, mas também a
coleção de discursos que a envolvem enquanto sujeito (Tezza, 2001).
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Quando Darluz fala a respeito de si, e de como se sente ao ser interpelada por
outrem, fala também desses outros e se torna o olhar exotópico que lhes dá
acabamento estético - é o excedente de visão, no tempo e no espaço, que dá
sentido às falas de outros. No conto, a voz da narradora se consubstancia na voz
dos agentes de saúde, repórteres, assistentes sociais ou qualquer um que a possa
criticar ou interrogar e garanta, assim, o olhar de fora, a âncora exotópica
impregnada de valor, que dá sentido e consistência estética a anti-heroína, Darluz
(Tezza, 2001).
Esse Outro que completa Darluz – e a quem Darluz completa – também se é visto
na figura do leitor, que se reconhece crítico e, por fim, admirador.
Pelo menos fui corajosa, não fui? Tive peito, não tive? Fala. Quem assume
essa postura, qual o filho da mãe? Vai, diz. Quem, menina?
E tem mais. Todo mundo é solidário. Mas na hora, olha, o povo é foda. Vem
aconselhar pílula, distribuir planejamento. Quero saber o que fazem com
nosso sofrimento. Vai, quem diz? Quem já foi infeliz? A moça do carro, a
moça que levou Beatriz, chorava naquele momento. Mas hoje é hoje. Hoje é
outro tempo.
Agora esse filho de uma jumenta vem pra cima de mim, o Altamiro. Marido
merda, entende? Vem aqui, tira o caralho do corpo, bêbado. Eu aguento.
Tenho mais pena do caralho dele do que de José, Antônio, Paulo,
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Juscelino. Melhor que ter filho morto, tenho esse orgulho. Todos nasceram
vivos.
Em “Feliz Aniversário” vimos vestígios de pessoas que não eram realmente quem se
diziam ser, que apenas se movimentavam agitadas pela sala e riam e no caso de
“Uma branca sombra pálida” vimos algo que parecia ser humano, um humano que
parecia ser uma mulher, e uma série de elementos incompletos, dada a presença da
brancura ofuscante. Em “DARLUZ”, as informações estão dadas pela própria
personagem por meio de sua fala explicativa. A vida da personagem é invadida,
julgada e destrinchada antes do momento da enunciação e a fala de Darluz é a
resposta a essa movimentação pregressa. Sendo assim, a reação da personagem é
uma devolução à intromissão de seu interlocutor – seu leitor, enquanto é, ainda, o
complemento à fala desse intrometido.
O ambiente externo ao lar não é nada além do ambiente a que Darluz se diz
pertencer, a rua. Pouco se sabe a respeito da casa de Darluz e muito mais se sabe
a respeito de sua circulação pelas ruas. Todas as informações oferecidas ao leitor o
levam a caracterizar Darluz como uma mulher que foge de obrigações pertencentes
à mulher – mãe esposa – e assim, distancia-se do ambiente pertinente à mulher – a
casa – por dominar, a personagem, um ambiente público em detrimento do privado,
glorificada no espaço público, a história de Darluz torna-se também pública à medida
que compartilha sua vida com as pessoas que a abordam nas ruas.
Sobre a perspectiva da função fática, observa-se que, ainda que a fotografia seja
precária, há valorização de formas, luzes, texturas e, principalmente da expressão e
do olhar do spectrum em evidencia num ambiente público. Através desses dois
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Finalmente com a função poética, vemos que a foto, em sua completude, trata de
uma de visualização do olhar e da expressão de um sujeito que reage. A conexão
entre o conto e a foto, se estabelece então nesse recorte da reação de Darluz no
momento em que se sente invadida e tolhida em seu direito de dar – seja em
qualquer uma das quatro opções que o verbo oferece no conto.
Essa reação de Darluz é que faz dela uma mãe diferenciada. Seja a reação à
intromissão de outros ou à suas atitudes e pensamentos enquanto mãe e esposa. O
interlocutor de Darluz mantém-se calado, observando à sua frente à figura de uma
mulher emancipada construir-se e reconstruir-se como sujeito através do olhar de
um Outro.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim após a conclusão deste trabalho, abriu-se uma lacuna que se pode entender
como a porta para novas pesquisas que discutam, de maneira mais profunda, o
papel paradigmático da mulher como mãe e o engessamento da subjetividade e da
individualidade femininas. É necessário observar que esse tipo de atuação da
mulher pode ser considerado um refúgio que evita o enfrentamento da necessidade
da construção de uma identidade humana independentemente de gênero ou
condição social, como pode ser visto em contos como “Reunião de família” de Lygia
Fagundes Telles, “1986” de André de Leones ou mesmo no protótipo do fracasso e
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Ao ver construído esse papel nas condições expostas nos contos, foi possível
identificar a verossimilhança da vida das personagens com a situação de vida de
personas reais, ou seja, assemelham-se a pessoas reais com quem convivemos
diariamente sem ficção ou poesia. E, portanto, vimos neste trabalho, muito mais do
que três mulheres de contos fictícios, mas sim a realidade de uma gama de
mulheres altivas, sem cor e doadoras.
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