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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UNB

INSTITUTO DE LETRAS

NINA DAYA SIMÕES PINHEIRO

O CONTRAESTEREÓTIPO DA MATERNIDADE: COMPOSIÇÕES E


OLHARES SOBRE A INDIVIDUALIDADE E SUBJETIVIDADE
FEMININAS

BRASÍLIA
2013
NINA DAYA SIMÕES PINHEIRO

O CONTRAESTEREÓTIPO DA MATERNIDADE: COMPOSIÇÕES E


OLHARES SOBRE A INDIVIDUALIDADE E SUBJETIVIDADE
FEMININA

Trabalho apresentado ao Departamento


de Letras da Universidade de Brasília,
como requisito para obtenção do grau de
Licenciatura em Letras Português.
Orientado pelo Professor Dr. Anderson
Luís da Mata.

BRASÍLIA
2013
NINA DAYA SIMÕES PINHEIRO

O CONTRAESTEREÓTIPO DA MATERNIDADE: COMPOSIÇÕES E


OLHARES SOBRE A INDIVIDUALIDADE E SUBJETIVIDADE
FEMININA

Monografia apresentada ao Curso de Letras Português na Universidade de Brasília


– UNB como requisito para Conclusão do Curso de Letras Português e obtenção do
grau de Licenciatura.

Aprovada em _____ de ______________ 2013.

__________________________________
Orientador Professor Dr. Anderson Luís da Mata
Este trabalho é dedicado à minha família,
e às pessoas que fizeram e fazem parte
da minha história ao longo da minha
formação.

Dedico especialmente às mulheres que se


deixaram fotografar tonando possível o
desenvolvimento deste trabalho.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiro a Deus por ter me ajudado nessa longa jornada, à minha família
que sempre me apoiou e aos meus colegas e professores que colaboraram na
construção desse trabalho.

Nina Daya Simões Pinheiro


“[...] Quanto ao resto, tudo permaneceu
imóvel. Pois o que eu perdi não é uma
Figura (a Mãe), mas um ser; e não um ser,
mas uma qualidade (uma alma): não a
indispensável, mas a insubstituível. Eu podia
viver sem a Mãe (todos vivemos, mais cedo
ou mais tarde); mas a vida que me restava
seria infalivelmente e até o fim inqualificável
(sem qualidade)”
(Barthes, 1984)
RESUMO

Este trabalho é baseado em uma pesquisa qualitativa, bibliográfica e com análise de


fotos que se baseiam em um quadro de três contos brasileiros contemporâneos.
Os contos “Feliz aniversário” de Clarice Lispector; “Uma branca sombra pálida”
de Lygia Fagundes Telles e por fim “DARLUZ” de Marcelino Freire. Percebe-se
que neles é possível identificar figuras de mães que reagem de maneira
silenciosa ou não ante as circunstâncias e julgamentos demonstrados por meio
dos olhares e palavras de outrem. Tais julgamentos e ações são baseados em
uma concepção da individualidade feminina restrita à condição da
maternidade. A partir dessa condição de olhar e ser olhado, da concepção
imagética formulada com a leitura das narrativas em questão e do local de fala
de cada uma dessas três mães, formulou-se a proposta de um comentário
fotográfico a respeito da situação e do ambiente vivenciado em cada conto.

Palavras-chave: Literatura contemporânea, Contos, Maternidade, Alteridade,


Olhar, Fotografia.
ABSTRACT

This work is based on a bibliographic, qualitative research, along with the


analysis of photographies made with basis on a set of three Brazilian
contemporary tales. The tales "Happy Birthday", by Clarice Lispector, "A white
pale shadow", by Lygia Fagundes Telles and finally "DARLUZ", by Marcelino
Freire. In them it is possible to identify mother figures that react, either silently
or not, before the circumstances and judgement demonstrated in the eyes and
speech of others. Such judgment and actions are based on a conception of the
feminine individuality being restricted to the condition of motherhood. From this
condition of looking and being looked at, from the imagery conception
formulated by the reading of the narratives in question and from the place of
speech of each of these three mothers, we formulated a proposal for a
photographic commentary on the situation and the environment experienced in
each tale.

Keywords: Contemporary literature, Tales, Motherhood, Alterity, Look, Photography.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Egito Antigo

Figura 2 – Grécia Antiga

Figura3 – Renascimento

Figura 4 – Impressionismo – Lucílio de Albuquerque

Figura 5 – Times life

Figura 6 – Fotos anos 60

Figura 7 – Foto 2013

Figura 8 – Angústia muda

Figura 9 – Palidez ruborizada

Figura 10 – Despurodadamente mulher


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................11

1 A ICONOGRAFIA MATERNA: FRAGMENTOS DA VIDA DOMÉSTICA .............13

2 O SIGNIFICADO DA FIGURA FEMININA E O ROMPIMENTO DOS CLICHÊS .19

2.1 A REPRESENTAÇÃO DA FAMÍLIA NA FOTOGRAFIA ..........................21

2.2 A RELAÇÃO ENTRE A FOTOGRAFIA E O CONTO ..............................23

3 O TRONCO ERA BOM, MAS OS FRUTOS AZEDOS ..........................................27

4 VISÃO MONOCROMÁTICA DE VIDAS EFÊMERAS ...........................................36

5 DEI, DARIA, DOU...................................................................................................45

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................52

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................54
11

INTRODUÇÃO

Há séculos o modelo singular feminino vem centrado na generalidade do


corpo, não na singularidade da existência do indivíduo mulher (Beauvoir, 1966
apud Swain, 2007). A propriedade tão destacada, a da procriação, tornou-se
um pesado fardo capaz de definir mulheres como plenamente femininas. A
historiadora Tânia Navarro Swain em Meu corpo é um útero? Reflexões sobre
a procriação e a maternidade (Swain, 2007), afirma que essa imagem, tão
difundida pelas instituições sociais, na reiteração de um discurso construtor de
corpos disciplinados, vem moldando as representações do feminino e a auto
representação das mulheres em torno da figura da mãe. A maternidade torna-
se, aparentemente, uma justificativa de existência e identidade no discurso
comum.

Não se questiona uma base natural e fisiológica sobre a qual se inscreveriam


tais paradigmas sociais. Mesmo a autora feminista Simone de Beauvoir afirma
que a maternidade é a vocação natural da mulher, uma vez que todo seu
organismo é orientado à perpetuação da espécie. Entretanto, a autora
considera que essa fundamentação fisiológica é floreada e falseada ao ponto
da moral social e artificial que se afirma sobre essa camada pseudo naturalista
alegue ser a concepção de uma criança o fim supremo da mulher (Swain,
2007). O que comprova mais uma vez que a afirmação biológica feminina é
matizada, já que a sociedade humana não é e nunca se considera “apenas
natureza” (Swain, 2007).

Ao mesmo tempo em que se percebe na literatura brasileira, o lugar de


destaque que o corpo detém, percebe-se também um espaço de construção e
representação ideológica, em especial da maternidade. No Brasil, país em que
os estereótipos investidos contra as mulheres aparecem da entrevista para um
cargo no trabalho ao último comercial de cerveja, pensar as representações
das mulheres deve ser um assunto permanente (GÓIS, 2013).
12

Por essa ótica, busquei, numa seleção de contos curtos, mulheres – mães –
que fugissem de alguma forma, dessa feminilidade e significação de si
mesmas restritas ao uso do corpo para a reprodução. Foram encontrados
cenários que podem ser pintados em nuances de alteridade, fracasso e
assujeitamento sobre uma grande tela de estereótipos e contraestereótipos.
13

1 A ICONOGRAFIA MATERNA: FRAGMENTOS DA VIDA DOMÉSTICA

A mulher carrega histórica e culturalmente o fardo representativo do indivíduo


glorificado na privacidade. Além da literatura, observaremos que a imagem
universal cristalizada da maternidade foi transferida à iconografia materna. E
em se tratando de iconografia materna, a representação da completude
maternal no momento da amamentação, por exemplo, foi retratada
artisticamente desde os tempos do Egito Antigo (figura 1) à Grécia Antiga
(figura 2), do Renascimento davinciano (figura 3) ao impressionismo brasileiro
de Lucílio de Albuquerque (figura 4), dos primórdios fotográficos da revista
Time Life dos anos quarenta (figura 5), passando pelos arquivos pessoais das
fotografias familiares no Brasil dos anos setenta (figura 6) e chegando ao atual
ano de 2013 (figura 7). As dores nas costas, o cansaço, os seios inchados,
doloridos e rachados são eclipsados por faces cândidas ou sorrisos
malemolentes. E assim, o nirvana da função feminina teria de ser constatado
através da abnegação.

Figura 1 – Egito Antigo


Isis amamentando Hórus
http://www.museunacional.ufrj.br/MuseuNacional2010/arqueologia/egito_antigo/ISIS_LACT.ht
m acessado em 24/07/2013 às 12:43h
14

Figura 2 – Grécia Antiga


Héracles, Hera, Afrodite e Íris
Fonte: http://greciantiga.org/img/index.asp?num=0444 acessado em 24/07/2013 às 12:48h.

Figura 3 – Renascimento
Oil Paintings By Da Vinci, Leonardo (1452-1519) - Madonna Litta
Fonte: http://www.artgallery2000.com/gallery/madonna-litta-by-da-vinci-p-5162.html
15

Figura 4 – Impressionismo - Lucílio de Albuquerque


Mãe Preta, tela, c. 1917, Museu de Arte da Bahia
Fonte: http://brasilartesenciclopedias.com.br/tablet/nacional/albuquerque_lucilio04.php
16

Figura 5: Times Life


Time Life Magazine, August 1, 1946

Figura 6: foto anos 70


Fonte: acervo pessoal de Marly Suzete - 1979
17

Figura 7: foto 2013


Fonte: Portfólio Nina Pinheiro - 2013

A consideração a respeito das fotos familiares é relevante uma vez que,


tradicionalmente, o ambiente da mulher na literatura brasileira é o doméstico.
A professora Regina Dalcastagnè em “A personagem do romance brasileiro
contemporâneo: 1990-2004” revela que, na literatura brasileira
contemporânea, os tipos de relação mais recorrente entre as personagens são
as amorosas e familiares sendo que, nas personagens femininas esse tipo de
relacionamento alcança a porcentagem dos 89,6% em contrapartida ao pouco
mais de 75% das relações das personagens masculinas. Dentre as ocupações
mais frequentes das mulheres, Dalcastagnè aponta para o trabalho de dona de
casa como a principal ocupação das personagens femininas, chegando aos
25,1% no topo da lista das dez principais ocupações femininas retratadas nos
textos pesquisados.

Esses dados revelam que a figura da mulher está constantemente ligada ao


ambiente doméstico, e sua ausência na representação do espaço urbano, na
narrativa brasileira recente, aponta para o fato de que, enquanto o homem
caminha pela cidade, às mulheres, cabe à esfera doméstica e as funções de
18

mãe e esposa. Isso se reflete também nos contos presentes nesse trabalho,
uma vez que apenas no conto de Marcelino Freire, a mulher em questão
encontra-se fora de casa e não se dedica à vida com os filhos. Enquanto Dona
Anita, do conto “Feliz aniversário”, e a mãe do conto “Uma branca sombra
pálida” padecem de uma vida dedicada à maternidade e às convenções sociais
exigidas à figura feminina, Darluz, do conto de Marcelino Freire, consegue se
libertar, até certo ponto, dessas amarras maternais.
19

2 O SIGNIFICADO DA FIGURA FEMININA E O ROMPIMENTO DOS


CLICHÊS

O tema deste trabalho foi motivado pela necessidade de compreender a


roupagem apresentada na literatura para o papel da mulher na sociedade. O
incômodo em ser apenas partes e não um todo complexo que realmente
somos é um fato. Assim a busca se deu traçando um paralelo entre a
presença da mulher na literatura e os paradigmas estabelecidos socialmente
por suas funções.

Foram escolhidos três contos de autores brasileiros contemporâneos, “Feliz


aniversário” de Clarice Lispector, “Uma branca sombra pálida” de Lygia
Fagundes Telles e “DARLUZ” de Marcelino Freire. Essa coletânea trata do
ponto de vista de mães que se apresentam algumas vezes silenciosamente e
outras vezes despudoradamente mostrando que é possível emancipar-se do
arquétipo de mães que subjugam sua individualidade à maternidade.

No primeiro conto, “Feliz Aniversário” de Clarice Lispector, vemos a figura de


uma mãe frustrada com o rumo que sua família tomou. Seus filhos e suas
noras superficiais criando seus netos vazios. Todos opacos e sem a
capacidade de proporcionar qualquer tipo de alegria a si mesmos. A partir da
reflexão a respeito dos erros do passado, frustração com o presente e
desprezo pelo futuro discute-se o valor e o espaço de uma senhora idosa em
seu âmbito familiar desmantelado.

No segundo conto, “Uma branca sombra pálida” de Lygia Fagundes Telles, o


sofrimento maternal diante da morte de uma filha torna-se oculto diante de um
luto questionável. Sem marido, não é esposa, sem filhos, não é mais mãe e a
atmosfera de fracasso paira pelo conto no ambiente de um cemitério. A mãe
em questão nesse conto, sequer tem um nome, sua identidade é obstruída por
um desgosto que vai além dos motivos da morte da filha e chega ao
encerramento de si mesma.
20

No terceiro conto, “DARLUZ”, vemos a peculiaridade de ser o único escrito por um


homem, Marcelino Freire. Apesar de ser um assunto que não será abordado neste
texto, esta é uma informação que não poderia passar despercebida. Para tal, é
válido considerar a leitura de Eva Paulino Bueno acerca da representação feita por
um homem a respeito de uma mulher. Bueno usa a persona de Derrida (1930-2004)
no momento em que este confessa a mãe, Eva P. Bueno afirma:

(...) um filho, Derrida, reconhece que ele fala pela mãe como se ela já
estivesse morta; ele se apropria da voz da mãe e fala por ela. Confessando
a mãe, Derrida — homem e filho — quebra as barreiras de tempo e gênero.
Em sua confissão, ele pode retroceder e avançar na vida de sua mãe, tomar
liberdades e fazer afirmações ou negações, já que a mãe está encrustrada
em um futuro perfeito do qual ele — filho e homem — a recuperará para seu
próprio discurso sem que ela — mulher e mãe — possa dizer nada. Então,
ao confessar a mãe, Derrida não a está desmaterializando e transformando-
a em pura representação? (Bueno, 2000, p. ).

Bueno considera ainda a enorme quantidade de obras literárias escritas por homens
e afirma, assim, que as mulheres têm sido representadas muito mais do que têm
podido representar. Observa ainda que um escritor como Coelho Neto (1865-1934),
poeta e homem, revela e estabelece por meio de falas que reafirmam um padrão de
feminilidade, aceito e perpetuado acerca do papel da mulher, que enfatizam o
paradigma maternal: “sofrer num paraíso”, ser uma mulher gloriosa no ambiente
privado, ser um “anjo” livre de subjetividade e ser altruísta além do limite do humano.

Mas, a significação da maternidade no conto “DARLUZ” não se desenvolve


apenas no ambiente doméstico além de levantar questões de classe social e,
principalmente, da sexualidade e do egocentrismo. A representação de um
Outro de classe se faz através da figura de Darluz, que não se considera uma
vilã, mas sim uma heroína, ou uma anti-heroína por assim dizer, que não se
envergonha de falar de sua vida sexual, de sua condição social ou de suas
atitudes controversas como mãe.
21

2.1 A REPRESENTAÇÃO DA FAMÍLIA NA FOTOGRAFIA

A família, como núcleo inicial da vida social vem sendo retratada de várias
formas ao longo da história. Susan Sontag, no livro Sobre Fotografia, afirma
que a fotografia desenvolveu-se, no ambiente familiar, como a celebração e a
reafirmação simbólica da continuidade ameaçada e da decrescente amplitude
da vida familiar. Isto é, enquanto linguagem dêitica (Barthes, 1984), a
fotografia faz um convite a olhar algo que não está escrito e, portanto, não é
interpretação. Trata-se do registro fotográfico, uma miniatura da realidade
familiar de tempos em tempos (Sontag, 2004).

Da mesma forma como um cidadão recebe uma certidão de nascimento


quando chega ao mundo e uma certidão de óbito quando morre, por meio de
fotografias, um indivíduo faz para si a certidão de sua vida (Reichert, 2013).
Através do registro fotográfico, uma família tem a possibilidade de construir
uma crônica visual de si mesma, uma coleção de imagens que perdurarão por
gerações dando testemunho da existência do núcleo familiar em questão. O
álbum de família tornar-se-á então uma coleção de registros sobre a família e,
muitas vezes, tudo o que restou desses laços (Sontag, 2004).

Em seu livro “Câmara Clara”, Roland Barthes relembra o momento em que,


após a morte da mãe, tentou reencontrá-la nos álbuns de família e não
conseguiu. Ao se deixar ser fotografada, sua mãe revelava, segundo Barthes,
o sentimento exato que ela deveria ter experimentado no momento em que se
prestou a ser fotografada, temendo que a recusa se transformasse em atitude.
Alega serem as imagens parcialmente verdadeiras, logo, totalmente falsas. “É
quase ela!” (Barthes, 1984, p. 99). Reconhecia partes do corpo, mas não
reencontrava sua mãe por completo, não era aquela mulher forte que havia se
tornado a “Lei interior” de seu filho (Barthes, 1984, p. 108).

Se retornarmos à imagem da amamentação, veremos o fiel registro do que


fotógrafo e fotografado desejavam: a impressão da marca ficcional que se
22

inicia antes mesmo que a câmera seja ligada. A fotografia, nesse sentido,
continua sendo um registro da realidade já que, mesmo longe das lentes se
pode ver, no exemplo da amamentação, a dissimulação de um prazer físico
pintado de geração em geração e, no exemplo de Barthes, a imagem de uma
mulher que se portava com discrição publicamente por saber substituir o valor
moral pelo valor superior, o civil, a reafirmação da maternidade legitimadora de
individualidade à posteridade por meio da película de uma foto.

Pensando dessa forma, os contos em questão são abordados de forma a


pensar na presença de um sujeito olhado e de um sujeito que olha. E a
experiência do olhar nos leva a compreender a atmosfera predominante na
narrativa e a construir um olhar próprio a respeito dela. Em especial no conto
de Lygia Fagundes Telles e no conto de Marcelino Freire, as vozes de
narradores autodiegéticos chegam a ser, por um leitor desatento, confundidas
com as palavras que esses narradores utilizam ao falarem de seus
sentimentos e reações. Contudo registram, e reproduzem não os significados
esperados na construção enunciativa do próprio texto, mas sim uma frustração
de valores continuamente perpetuados. Como alerta Michel Foucault:

Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso [...] não é


simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também,
aquilo que é o objeto do desejo; e visto que [...] o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar (FOUCAULT, 1996, p. 10).

Desta forma, os contos – e agora não somente “Uma branca Sombra Pálida” e
“DARLUZ”, mas também “Feliz Aniversário” – nos levam a perceber a pesada
mão de um discurso que não se distancia de um conceito concreto a respeito
da instituição Mãe e das obrigações civis em detrimento das obrigações
morais, quando falam a respeito de maternidade.

Os contos circulam ao redor dos temas dialéticos de vida e morte convergindo


sempre à reflexão da morte na vida e reinterpretando a vida dos personagens
principais de acordo com suas perdas. Em “Feliz Aniversário” veem-se os
filhos na festa de aniversário da mãe, nada empática em relação a todos do
23

ambiente, pensando que ela já vivera mais do que todos gostariam. Em “Uma
branca Sombra Pálida” uma mãe desaba suas mágoas sobre o túmulo da filha
suicida, pensando a respeito de sua própria vida e de sua própria inexistência.
Em “DARLUZ” a vida e a morte se tornam metaforizadas na imagem de um
futuro na miséria – morte – e um futuro com oportunidades – vida. E desta
forma observa-se um quadro de três mães que identificaram, silenciosamente
ou não, o prejuízo de se viver conforme os juízos dos que as olham.

2.2 A RELAÇÃO ENTRE A FOTOGRAFIA E O CONTO

Contos curtos, como os que são abordados aqui, levam em consideração, na


sua construção, as noções de significação, intensidade e tensão apontadas
por Julio Cortazar em seu livro “Valise de Cronópio”. A significação reside, em
especial, no tema do conto, no fato de se escolher um acontecimento real ou
fictício que possua a característica de irradiar algo através dele mesmo. Como
nos episódios de um aniversário de uma senhora idosa, ou de uma reflexão a
respeito do luto, ou mesmo das confissões de uma mãe aparentemente
excêntrica. Esses episódios se convertem no resumo de certa condição
humana e a significação do conto acaba por propor a ruptura do cotidiano que
vai muito além do argumento (Cortazar, 1993).

A intensidade no conto é constituída a partir da eliminação de ideias ou


situações não relevantes à situação em cheque, é a opção pelo minimalismo.
A tensão dramática desenrola-se desse processo de intensificação a partir
dessa recusa pelo detalhamento. Segundo Cortazar:

(...) um conto, em última análise, se move nesse plano do homem


onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha
fraternal, se me for permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o
próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida
sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal,
uma fugacidade numa permanência. Só com imagens se pode
transmitir essa alquimia secreta que explica a profunda ressonância
24

que um grande conto tem em nós, e que explica também porque há


tão poucos contos verdadeiramente grandes (CORTÁZAR, 1993, p.
150).

O equilíbrio entre esses elementos fundamentais e os elementos periféricos


fazem do conto um tipo narrativo empático à fotografia. A fotografia e o conto
breve, bem realizados, constituem-se como formas coesas e minimalistas,
enquanto na fotografia a exploração bem sucedida da temática depende da
disposição bem ordenada dos planos, da composição e do enquadramento da
imagem, a fim de que não se desvie a atenção daquilo que se quer destacar
(Silva 1). No conto, busca-se o essencial das coisas mediante uma narrativa
que tenta apanhar um instante qualquer da vida de uma personagem ou
instantes distintos de diferentes personagens (Fonseca, 2008).

Observamos, assim, que a fala presente nesses contos penetra a realidade de


forma muito mais invasiva do que a construção de um mero enunciado, e
podemos perceber, como leitores, que a “angústia muda” (Lispector, 1998, p.
67) dessas mães em cheque pode ser representada de forma visível por
intermédio de uma imagem fotográfica. Se, na literatura, as palavras
transformam-se em imagens, na fotografia são as imagens que geram as
palavras (Fonseca, 2008).

A partir de imagens formadas pela leitura dos três contos em questão, busquei
recriar, com o uso de fotografias, os ambientes no qual se passam os
episódios nos textos. Não houve preocupação com uma função de reinvenção
ou releitura das personagens, aqui chamados spectruns (Barthes, 1984), mas
sim com a coesão entre estas e demais elementos, como formas, cores,
texturas, enquadramentos, elementos da composição e outros recursos
fotográficos e imagéticos que, de forma colaborativa, recriassem um retrato da
atmosfera gerada nas narrativas, como um comentário fotográfico a respeito
dos contos.

Com a participação de pessoas cujas experiências julguei próximas das


retratadas nos contos, o resultado foram imagens produzidas e ficcionalizadas
1
Texto pesquisado na Internet, sem referência de ano e com página inacessível atualmente.
25

com o meu olhar, um olhar de leitora e de fotógrafa. Assim, criando imagens


na mente, o objetivo foi reproduzi-las através das lentes da máquina. As fotos
são, portanto, comentários fotográficos que trabalham em colaboração com a
leitura, vindo ao encontro da atmosfera proposta pelo conto.

Na prosa literária, uma imagem vai se constituindo ao longo da narrativa, mas


na fotografia ela se apresenta sempre na sua totalidade; ela não integra um
texto, ela é o texto (Silva 2). Segundo Susan Sontag em seu livro “Diante da
dor dos outros”, a narrativa faz o leitor compreender, mas uma foto persegue o
spectator. Num sentido mais amplo, as fotos contam uma história na medida em
que nos dão a conhecer um pouco da trajetória de um gesto, de um modo de
olhar, ou ainda do passeio de uma personagem por lugares em sua memória.
E sob o entendimento de que só o que narra pode nos levar a compreender
(Sontag, 2004), as fotos intentam presentificar poeticamente e sem palavras a
situação narrada.

A fotografia aqui pretende, então, ser uma imagem que remete a um texto que
expressa a linguagem artística real que se constitui por uma série de
elementos estéticos comuns (Lótman, 1962 apud Romanovsky, 2009), em
direção ao contexto literário, que, por sua vez, direciona-se a concepções
históricas, sociais e culturais. Para um entendimento mais pleno das imagens
fotográficas, é necessário reunir a definição de um ato de fotografar a
parcialidade de um circunstância real para, enfim, a criação de uma outra
realidade, aquela que se comunica com o conto em questão.

Roman Jakobson, no livro “Lingüística e Comunicação”, elenca as funções da


linguagem que completam o entendimento da foto como um conjunto de signos
visuais que se comunicam mediante auxílio de um determinado código, bem
como com o estabelecimento da linguagem em que esta foi codificada
(Romanovsky, 2009). Fala-se, então, ao discutir cada uma das fotos do
trabalho, das cinco funções, referencial, emotiva, conativa, fática e poética.

2
Texto pesquisado na Internet, sem referência de ano e com página inacessível atualmente.
26

A função referencial se concentra no conteúdo da mensagem, naquilo sobre o


que se está falando, dizendo respeito ao local, à temporalidade e a que a
mensagem converge, ou seja, o contexto no qual a imagem fotográfica foi
registrada, dentro de um referente real. Enquanto isso, a função emotiva está
centrada no emissor da mensagem e ela será manifestamente, o fotógrafo,
aqui chamado de operator, termo cunhado por Roland Barthes em seu livro “A
câmara clara”. A função emotiva se foca na condição do operator, seus
sentimentos e sua transmissão subjetiva.

A função conativa se orienta para o destinatário da mensagem, nomeado aqui


de spectator (Barthes, 1984) que busca por uma resposta à pergunta: que tipo
de persuasão a mensagem procura passar para o leitor desses signos? A
resposta é a orientação para que o receptor realize a leitura da imagem
fotográfica de acordo com a intenção do fotógrafo. A função fática, por sua
vez, é como se define a interação social, e diz respeito às condições da
comunicação na mensagem. Esta, por sua vez, verifica se a comunicação se
mantém: o contato entre o emissor e o receptor da mensagem do signo
(Romanovsky, 2009).

Por fim, a função poética surge na materialidade da fotografia, naquilo que há


de concreto nela. Tal fato nos leva a procurar pela arte não no significado da
foto, mas nela própria, em suas características materiais (Romanovsky, 2009).
27

3 O TRONCO ERA BOM, MAS OS FRUTOS AZEDOS

Abordarei aqui algumas considerações sobre o conto “Feliz aniversário” de autoria


de Clarice Lispector. Neste conto temos, pelo menos, dois perfis bem delineados: o
de uma mãe e o de uma filha. O caso de Zilda e sua mãe, Dona Anita. Vemos uma
mãe idosa, mas rígida quanto ao comportamento dos filhos e netos que considera
opacos, azedos e infelizes. Considera inclusive Zilda, sua cuidadora – filha, dessa
forma.

O texto é narrado na terceira pessoa do singular por um narrador onisciente que


conhece profundamente a infelicidade familiar e secreta que perturba a festa – e a
vida – de uma senhora idosa. O narrador, na maior parte do conto, elege a senhora
ao centro, contudo, leva o foco narrativo a passear pelos outros personagens como
sendo ele mesmo um convidado de Dona Anita. O narrador senta ora ao lado de
uma das noras, ora ao lado da aniversariante, ora ao lado de um filho dando ao leitor
sempre um parecer segundo o ponto de vista da aniversariante, enfatizando assim
os maus predicados de todos na festa. É no ambiente desconcertante da festa que
se passa o conto inteiro, do momento em que Dona Anita é enclausurada em seu
vestido de festa e fica confinada à região do bolo às duas horas da tarde até o
momento em que os convidados vão embora.

O que deveria ser uma comemoração prazerosa torna-se um ato teatral no qual
todos os personagens – os familiares – cumprem seu papel: o de fazer as tarefas
que os bons parentes devem fazer para que os laços familiares se sustentem, ainda
que sejam sobre um último fio de hipocrisia. Todos são norteados por esse dever,
exceto Dona Anita.

A senhora completa oitenta e nove anos mas não reconhece a influência de sua
personalidade em seus próprios filhos. Essa, não é uma mulher que se identifica
como matriarca de toda essa gente, mas uma mulher que reconhece que, para
essas pessoas, se tornou somente um calendário sobre o qual se inscrevem
algumas etapas da vida da família.
28

Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo


mais oficial. Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde.
Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda.
Sim senhor! disseram alguns sorrindo timidamente ( LISPECTOR, 1998,
p.56).

Trata-se de uma velhinha de oitenta e nove anos, mãe de sete filhos, possuída pelo
entendimento de seu papel social e do dever de ser silenciosa no âmbito público.
Segundo o narrador, os pensamentos de Dona Anita revelam que esta foi mãe e
esposa devotada e independentemente de seus reveses pessoais manteve-se no
papel de mulher – do lar – honrada.

Casara-se no memento julgado certo e tivera também uma vida julgada certa pela
sociedade – e provavelmente ela mesma incorporara esta como sendo uma vida
certa. Tivera como parceiro um bom homem que não necessariamente amara ou
com quem tivera delírios de prazer, mas que lhe proporcionara uma vida confortável
e bem apropriada aos padrões de sua esfera social. Somente a leitura desta citação
já seria suficiente para identificarmos aí o perfil de uma mãe também assujeitada e
assexuada, já que se fala de uma mulher submetida à opressão social no momento
de escolher um parceiro para si, de manter um casamento moralmente aceitável e
ainda, uma mulher que se permite ser usada pelo marido na concepção de sete
filhos.

Não é possível acreditar que seria à Dona Anita um grande prazer parir tantos filhos,
uma vez que pensa serem estes, feitos pelo marido, com uma parcela mínima de
participação de sua parte – era apenas o veículo. Mas como uma boa progenitora
que cuida de sua prole, esforçou-se para que todos tivessem, por fim, uma vida
saudável e alegre.

Ela era a mãe de todos, sufocada, impotente, frustrada, mas era a mãe de todos. De
alguns, mais do que de outros. Admitia – ao menos para si – a preferência pelo filho
Jonga, a quem respeitara e amara muito mais do que aos outros, e ao neto Rodrigo,
que tinha certeza: seria um homem. Orgulhara-se de Jonga e orgulhava-se de
Rodrigo, ambos homens e ambos austeros, ou ao menos com a semente da
austeridade em si.
29

A velhinha declara para si mesma e para os outros filhos o favorecimento de Jonga


em detrimento dos outros. Atitude que já chega a fazer parte do que caracteriza
Dona Anita como uma mãe que escapa àquele clichê da maternidade que considera
o amor materno algo que se estende a todos os filhos de forma homogênea. Neste
caso, os outros filhos tiveram que lidar, durante toda a vida, com o um olhar duro e
firme que os faziam baixar a cabeça, enquanto Jonga recebia respeito e admiração.

“Amor de mãe era duro de suportar”. É claro que, neste momento, não se tratava de
um olhar cheio de amor por todos os filhos, mas um olhar de diminuição de seis
filhos em detrimento de outro, Jonga. Era difícil suportar a falta do amor por todos e
o excesso de amor por apenas um.

Dona Anita não demonstra afeição por nenhum da casa, nem mesmo a Zilda, que a
acolhera. Não faz questão da presença de nenhum dos convidados, considera-os
opacos, fracos e ansiosos. Não é amorosa com os netos, nem mesmo quando é
chamada de vovozinha. “– Que vovozinha que nada! [...] — Que o diabo vos
carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! Me dá um copo de vinho,
Dorothy!” (LISPECTOR, 1998, p. 62).

É, ela mesma austera, não domesticada. Mantém-se calada durante o teatro de


confraternização como uma boa moça, silenciosa e sem atitude, mas no momento
em que é preciso falar, desata socos, pontapés e cuspes pela sala sem se importar
com o que pensariam dela. Afinal, além de, no dado momento da festa, tratar-se de
devaneios de uma velhinha não havia ali uma verdadeira intenção de agradar ou
festejar os oitenta e nove anos de uma matriarca, logo não havia muitos motivos
para contenção.

Para os convidados, Dona Anita é apenas mais uma peça de decoração na sua
própria festa, um jarrinho de flores cheirando a água de colônia ao lado da mesa do
bolo. E o narrador leva o leitor a perceber a fragilidade desse momento bem como a
forma de agir da família e da aniversariante. Consciente da rede de hipocrisia que se
passa ao seu redor, a velhinha se decepciona com os familiares ao observar o papel
que cada um representa. O filho que mandou a esposa e não apareceu, a nora de
Olaria que ostentando seus acessórios não conseguiu esconder o
30

descontentamento por estar lá, os netos que ficaram divididos entre apoiar o
protesto silencioso da mãe e se divertirem com os primos. O irmão antes
acomodado que se sentiu na obrigação de fazer um discurso já que o irmão
outorgado paraninfo da família faleceu. A própria Zilda que trabalha como uma
escrava a fim de simular um ambiente feliz e prazeroso, preparando o aniversário da
mãe, não pela comemoração, mas sim pelo dever de fazer algo.

Dona Anita se encontra numa condição de degeneração física irremediável que,


como ressalta Susana Moreira, a faz perder, literal e simbolicamente, os extremos
da visão e da mobilidade. E, dados os novos limites sensoriais, passa a ocupar um
novo espaço existencial que, por sua vez, requer um redimensionamento existencial
e estético (Lima, 2008).

Na velhice, sob a ótica da impossibilidade do fazer pela perda dos sentidos,


percebe-se uma nova relação com o corpo, um desconforto dada a transformação
do corpo “instrumento” para um corpo que passa a ser “obstáculo”. Contudo, A
velhinha do conto, apesar de sua limitação física, não expressa falta de coragem
para pensar e expressar seu desprezo por certas coisas que não fazem mais sentido
para ela.

A filha melhor delineada na história é Zilda. Única filha entre os seis irmãos capaz de
alojar a mãe. Segundo os irmãos, Zilda tinha tempo e espaço para tal, mas o texto
não mostra a resposta de Zilda diante dessa situação, não comenta se Zilda tinha
filhos, marido, se trabalhava, enfim, isso não importava, ela era a única – dentre seis
irmãos – capaz de asilar a mãe sob seus cuidados. Contudo, fazia sim um sacrifício
para dar à mãe um final de vida digno, um longo final de vida por sinal.

O papel a que Zilda sente-se obrigada a realizar é manter a impressão de que os


laços familiares são reais e estão vivos. Mas a realidade da festa de aniversário
manifesta-se como a comprovação de que essa confraternização, na verdade, é
uma mentira.

A relação entre Zilda e Dona Anita não era muito afetuosa, segundo as descrições
do narrador restringia-se à superficialidade, como também se restringia à
superficialidade o relacionamento entre os outros membros da família. A
31

preocupação frequente de Zilda com as sanções negativas dos irmãos nos mostra o
quão vulneráveis estão os laços, e que nenhum dos convidados era efetivamente
presente na vida de Dona Anita nem estava efetivamente comemorando o
aniversário dela. Eram apenas representações do que uma família feliz deveria ser e
pensar a respeito dos oitenta e nove anos da anciã da casa e os parentes, como
bem falado pelo filho José, só seriam obrigados a passar por aquela situação
insuportável novamente no ano seguinte, no aniversário de noventa anos.

De começo, o conto nos mostra uma Dona Anita dócil e submissa. Sua postura
fisicamente inerte e plácida, mas intimamente sagaz e tempestuosa se revela ao
leitor como uma “angústia muda” (pp. 55-56) ou mesmo uma “muda intensidade” (p.
59). Aos poucos, começando com piscadas de olho, a velhinha vai saindo da inércia
e revelando-se aos convidados. O que de início parecia fragilidade, posteriormente
delírios de uma velha, ao final do conto transforma-se em altivez régia. Os
presentes, a veracidade da comemoração, a qualidade da decoração, os laços de
família e todas as outras manifestações interpessoais podem ser questionadas, mas
não a firmeza de Dona Anita.

Ao final do conto Dona Anita medita na única coisa que considera incontestável além
de si mesma, mas que Zilda aparentemente não se deu conta: o bolo não substitui o
jantar. A aniversariante não vê sentido naquela festa, na reunião familiar, nas
palavras de homenagem uma vez que tudo se constitui a partir da mentira e da
valorização da aparência. Trata-se de uma representação de toda a família para a
própria família. E, como no caso do próximo conto ser discutido “Uma Branca
sombra pálida”, em que a mãe, diante do túmulo da filha, encena para ela própria
uma armadura de indiferença e insensibilidade, a família de Dona Anita simula para
si mesma um padrão inalcançado de afetividade. Para a aniversariante, até mesmo
o simples fato cotidiano de o jantar ser servido todas as noites é mais real e
inquestionável do que tudo o que aconteceu em sua festa de aniversário e todas as
relações e palavras de afeto faladas ali.

Vemos um cenário no qual uma velha idosa é colocada num local da casa onde
filhos, netos e parentes a virão ver, fazer-lhe um carinho, dar-lhe um presente inútil e
virar-lhe as costas. Trata-se de dois ambientes diferentes, dois espaços ocupados
32

de formas completamente distintas: de um lado temos uma idosa que perdeu a


capacidade de agir conforme as próprias vontades e convicções, mas que se recusa
a sucumbir diante da tirania dos filhos que a tomam por inútil. Do outro lado lê-se a
indisposição de entes familiares diante do motivo da festa e do mistério que se
tornou o dia da morte da anciã da casa. São extremos que não dividem no mesmo
espaço temporal, social e não interagem organicamente.

Figura 8 – Angústia muda


Fonte: Portfólio Nina Pinheiro

Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado,


ela era a mãe. A aniversariante piscou. Eles se mexiam agitados, rindo, a
sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como
um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a
aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de
todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente
à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos
e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de
33

repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a
carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e
despenteada. Cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido
naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas,
piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida
que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar á luz aqueles
seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara
em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e
independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe
pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera
aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa
alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem
austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o
que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam
ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força
insuspeita cuspiu no chão (LISPECTOR, 1998, p. 62).

Um momento crucial na narrativa é o momento em que o narrador revela o mais


profundo pensamento de Dona Anita a respeito de seus filhos. Todas as
considerações e suposições feitas no decorrer do conto se direcionam para esse
momento de nomear cada um dos seus filhos – as carnes de seu joelho – segundo
seu desgosto: opaco, fraco, ansioso, risonho, infeliz, azedo, sem austeridade.

Dona Anita, reservando-se ao direito de ficar calada vê todos como uma criação que
não deu certo, enxerga pessoas que de tão mascaradas tornaram-se apenas umas
sombras mal feitas e animadas de si mesma. Não faz questão de presilhas,
perfumes, bolo, toalhas ou velas acesas já que não há nenhuma verdade nisso. Não
há nada que seja realmente sincero, palpável, indiscutível, concreto. Como dito,
apenas sombras.

Neste momento, a única coisa concreta além de si própria era a cadeira onde Dona
Anita estava sentada e a fotografia de uma sombra é suficientemente crítica para
representar as tantas máscaras dos convidados àquele momento.

Quanto a uma fotografia de uma sombra, resta o incômodo de ver mortos, rostos e
expressões, mas nesse caso, é proposital que a fisionomia seja obscura e quase
irrelevante. Não eram filhos, eram apenas espectros de filhos. Vestígios de pessoas
que não eram realmente quem se diziam ser, que apenas se movimentavam
agitadas pela sala e riam, enquanto uma senhora se retorcia intimamente tentando
se convencer de que era a mãe de todos eles.
34

A ausência de cores e a iluminação simplista vinda de portas e janelas abertas


neutralizam com uma luz difusa os outros possíveis pontos de distração, restando ao
spectator somente a essência da atmosfera de frustração. Valoriza-se assim as
formas, as texturas, as expressões e o olhar que surge no rosto, no corpo ou na
sombra dos spectruns, evidenciando mais a figura do ser humano e simplificando
todos os outros elementos da composição.

A fotografia tem uma composição simples, porém marcante, na qual o operator


posiciona sua lente como os olhos de um visitante, da mesma forma como o foco
narrativo passeia como um convidado pela festa. O spectrun principal não se
encontra centralizado, mas deslocado ligeiramente à esquerda - a senhora idosa.
Sendo assim, à parte direita resta um destaque devido quase totalmente à
verticalidade em evidência no contraste negro da sombra com o branco da parede
do ambiente.

Guiando-nos pela proposta de análise de R. Jakobson (2001), podemos encontrar


nessa foto cinco pontos de partida, dos quais pode-se orientar a sua compreensão o
enquanto recorte da atmosfera elucidada por Clarice Lispector no conto. Trata-se
então: do referencial, do emotivo, do conativo, do fático e do poético.

Frisando o ponto de vista referencial da fotografia vemos que se trata de um recorte


não fictício de um momento do dia de uma senhora que, pensativa, mantém-se com
um olhar distante, imobilizada ao lado de outro ser humano que se movimenta com
liberdade, mas que está presente na imagem apenas pela projeção de sua sombra.
Vemos aí uma imagem de uma velha mãe sobreposta à imagem de algo que pode
ser seu filho. Restará, assim, sempre uma dúvida, uma resposta frustrada assim
como as expectativas de Dona Anita.

Seguindo com o ponto de vista emotivo, a foto permite uma análise subjetiva a partir
da mostra da perspectiva do fotógrafo – eu – no momento do click preocupando-se
com os elementos presentes de forma mais discreta na composição. Uma ponta de
metal arredondada ao lado do sofá revela a necessidade do auxílio para a
locomoção; uma almofada sob as costas deixa a senhora mais confortável; um
guardanapo jogado sobre o peito faz com que acreditem que ela está sendo bem
35

higienizada; um copinho d’água coberto com uma tampa de pote de geleia ao lado
do braço esquerdo de uma pessoa provavelmente destra, posicionado não
adequadamente para que ela beba água, porém com grande chance de derramar –
o que realmente aconteceu - atesta o real interesse em não mostrar que a velhinha
está sendo hidratada, mas apenas em mostrar-se um copo d’água.

Quanto ao ponto de vista conativo, o olhar perdido leva um spectator a leituras


quase infinitas. No caso da foto, pode-se cogitar que esse olhar pensativo é
resultado da percepção desiludida de que seus filhos penumbrosos são tudo o que
lhe resta; ou de lembranças do filho que considerava realmente homem, mas que
partira; a certeza de que, ainda que se dê conta de onde errou, não poderá
recomeçar; ou ainda a tomada de consciência de estar aprisionada a duas
condições irremediáveis: a condição de idosa doente e a condição de mãe
fracassada.

Sobre a perspectiva prática, vemos aí que a foto consegue prender a atenção


mesmo com a simplicidade dos elementos presentes nela. Isso se dá pelo
posicionamento dos spectruns a desencadear a dialética na posição do real em
primeiro plano – a idosa – sobre o onírico em segundo plano– a sombra. A
aquietação em detrimento da agitação permite que a foto seja lida da esquerda para
a direita, consequentemente, da imagem da mãe para a imagem do filho.

Finalmente, falando do ponto de vista poético, observa-se que a imagem fala de si


mesma sendo um recorte estático que movimenta o irreal dinâmico, que por sua vez
paralisa o real. Isto é, já que toda foto reproduz em escala infinita algo que só
ocorreu uma vez e, da mesma forma, o momento de Dona Anita no conto tornou-se
lendário e único. A fotografia de uma senhora – que não é, nem tem a intenção de
ser a matriarca do conto – observando perifericamente os movimentos de seu
provável filho apenas sugerem o mesmo ambiente de estupefação e frustração,
como uma sombra humanóide pressupõe a presença de um ser humano entre uma
parede e uma fonte de luz.
36

4 VISÃO MONOCROMÁTICA DE VIDAS EFÊMERAS

Este capítulo faz considerações sobre “Uma Branca sombra pálida” de autoria de
Lygia Fagundes Telles. Neste conto temos, pelo menos, dois perfis bem delineados:
o de uma mãe e o de uma filha. A mãe, neste caso, não se apresenta com um
nome. Gina, a filha, é amplamente descrita, criticada, retaliada, questionada e
depreciada por esta mãe.

O conto se passa no ambiente bucólico de um cemitério, todos os outros ambientes


mencionados estão apenas na lembrança da voz que narra o conto. Trata-se da
exposição confidencial de uma mãe que deposita rosas brancas sobre o túmulo da
filha suicida, portanto não é possível saber, de fato, quais as reais feições
emocionais e afetivas dos outros poucos personagens mencionados pela narradora
já que o ponto de vista é estritamente pessoal e unilateral.

Mesmo sem fazer muitas descrições a respeito de si mesma, essa mãe revela-se a
um leitor mais atento, uma mulher cheia de vestígios inconfundíveis de culpa pela
morte da filha. Recusa-se a falar de seus fracassos, mas admite-os em seus
suspiros: “Ah, a mentira das superfícies arrumadas escondendo lá no fundo a
desordem, o avesso dessa ordem”. Não assume categoricamente seu
ressentimento, sua culpa, mas demonstra em várias passagens, a importância e o
amor que sentia por Gina:

Mas seu coração era delicado (...) Fiquei olhando


para a pequena Gina com sua camisolinha curta,
os cabelos soltos até os ombros e descalça, ela
gostava de andar descalça. Uma criança, pensei,
e tive que cerrar as mãos contra o peito, com
medo de que ela ouvisse o meu coração. Assim
que me viu, esboçou um sorriso e continuou
cortando com a tesourinha de unhas os caules
que em seguida ela mergulhava no copo d’água
(TELLES, 2009, p. 115)

A filha Gina, por sua vez, está apenas na consciência e à confidência de sua mãe. É
dita como mais apegada ao pai, uma moça agradável, bailarina, que outrora
apaixonara-se por uma gatinha que fugiu dela pra procurar um macho. Suicidou-se
37

após uma crítica severa da mãe quanto ao seu envolvimento amoroso com outra
moça – que será discutida mais adiante, Oriana. Segundo a mãe, Gina era pequena,
discreta e tinha poucos amigos, mas era voluntariosa. Até mesmo morta, na hora em
que sua mãe, mandou que lhe tirassem os algodões das narinas, não quis Gina
voltar a respirar.

Oriana é a amiga que Gina fez no Ballet. Estudavam horas a fio no quarto de Gina
ao som de A Whiter Shade of Pale da banda britânica Procol Harum. Olhando pelo
buraco da fechadura, a mãe só chegaria a ver até a cabeceira da cama, alcançaria
ainda o olho vermelho do toca-discos, uma parte da mesa com os livros e a bandeja
no chão com alguns copos de vidro. Mas ainda assim, tinha motivos para acreditar
que Oriana era amante de Gina e que o som só estaria assim tão alto e a porta
fechada para que as coisas escusas que, por ventura estivessem, fazendo naquele
quarto continuassem ocultas.

Se nos apoiarmos na proposição de Denise Maria Hudson de Oliveira em seu texto


Construindo uma história invisível, veremos que já o título nos introduz a imagem de
que iniciaremos uma leitura de algo pálido e velado. Mesmo sabendo,
posteriormente que o título refere-se ao da música A Whiter Shade of Pale, que as
duas jovens tanto ouviam, a imagem transmitida é a mesma da palidez da falecida
Gina. Tal brancura, porém, não remete o leitor a um sentimento de paz, mas a uma
nebulosidade que, com a revelação dos fatos, tiveram suas razões e consequências
encobertas. Há recorrência, no texto, de elementos que nos remetem a essa alvura
e a esse cortinamento: as rosas brancas, o ipê-amarelo no cemitério, o cal recente
de uma sepultura, o azul inocente dos olhos acesos de Gina, o castanho dourado
dos cabelos, a saia branca, o vestido branco, a fumaça dos cigarros, os algodões no
nariz da defunta, o quarto branco, a borboleta de desenhos prateados, o papel
cinza-prateado da floricultura, o leite no pires, os copos de vidro sobre a bandeja e
ainda a forma como Gina era descrita por seu pai: “Minha filhinha é de vidro”.

Esse ocultamento é colocado em cheque quando a mãe pressiona a filha a admitir


seu caso amoroso, ou sua “relação nojenta” com Oriana. Segundo os argumentos
da mãe, todos já sabiam do caso, mas o texto não nos leva a entender desta forma.
38

Nem mesmo a outra moradora da casa, Efigiênia, havia notado no comportamento


das garotas algo que pudesse ser considerado estranho à normalidade esperada
pela mãe.

Neste sentido, então, vemos que Oriana é um dos poucos elementos que levam cor
ao conto, isto é, sob a ótica da onomástica seu nome já significa “Garota dourada”3,
possui uma fita vermelha no braço, leva flores vermelhas à Gina no dia do enterro e
no cemitério além de podermos ressaltar o interesse da menina por “bugigangas
afro-religiosas” e ainda a comparação a uma formiga ruiva feita pela mãe no
cemitério: “Esmago no sapato uma formiga ruiva que surgiu debaixo de um
pedregulho, há de ver que esteve lá embaixo daquele fundo nojento, rastejante, oh,
Deus”.

Dois pontos principais compõe, então, a atmosfera do conto: a sexualidade e o


fracasso. A sexualidade, que aparece de forma explícita ou subentendida parte da
presença de Oriana para as vidas da mãe e da filha. Sendo Oriana, a personagem
mais colorida, por assim dizer, do conto, flui dela, tudo o que aguça sexualmente,
em especial a mãe. Na tentativa de conservar suspenso o véu que mantém ocultos
os interesses sexuais que Oriana desperta, a mãe desvaloriza constantemente a
moça através de palavras depreciativas que, em todo o caso, nos remetem a um
contexto de sexualidade (“Suja”, “Safada”, “a dos dedinhos”). Sustentamos ainda
esse fio erótico que flui de Oriana para a mãe por meio da imagem das flores
vermelhas que começam depositadas sobre o túmulo de Gina, passam pelo
momento de suicídio da menina e chegam ao caixão, onde rosas brancas e
vermelhas dividem o espaço como o de uma bandeira branca na parte superior do
corpo de Gina e vermelha na parte inferior. “Vermelhonas obscenas de tão abertas”,
a própria mãe admite que tais jogos florais a excitam. A figura das rosas – e das
flores em geral - é culturalmente desde textos bíblicos associada à imagem da
vagina. Associadas as pétalas da flor às dobras e à cor do órgão sexual feminino, as
rosas vermelhas de Oriana trazem a eroticidade à vida dessa mãe que busca,
frustradamente, um despertar libidinoso. Essa frustração é refletida em passagens

3
Significado pesquisado no site www.dicionariode nomesproprios.com.br/oriana
39

como “Experimentei o chão. Era duro para mim, mas na idade delas a gente podia
falar em dureza?” e

Oriana esqueceu o maço de cigarro no quarto de Gina, experimentei um,


era bem mais forte do que aqueles que eu fumava meio espaçadamente.
Enquanto fui ouvindo os discos, não parei até esvaziar o maço. Então fiquei
ali quieta, sentada no chão do quarto, em meio das almofadas onde elas
estiveram e sentindo ainda no ar aquele indefinível cheiro de juventude
(TELLES, 2009 , p. 114)

Sobre a relevância do fracasso no ambiente do conto, vemos que essa mãe sobre a
qual falamos dá pistas, no decorrer do texto, de que sua ruína se deu com o suicídio
da filha. Sua vida tornou-se desordem do dia para a noite: “Deitou-se com sua
camisolinha e amanheceu aquela imagem que eu enfeitava tentando botar ordem na
desordem da morte, a morte é só desordem”. Critica-se e questiona-se
constantemente, mentindo para si mesma busca uma esperança de que suas
mentiras se tornem verdade e sua vida deixe de ser solidão e volte a ter
profundidade e sentido. De forma muito clara, escapa de momentos de angústia
levando suas palavras e deslocando seus assuntos para caminhos e locais
insignificantes como a leitura do anúncio do ministério da saúde no maço de
cigarros, a presença de uma lata de lixo no cemitério, a qualidade do solo, o voo de
uma borboleta, o uso peculiar de um verbo, a ausência de familiares ou mesmo
tornando sua fala amarga com ou a respeito dos que a cercam, especialmente com
Oriana.

O fracasso reflete-se nesses momentos de brandura que são constantemente


quebrados pela rudeza dessa mãe amarga. O momento em que uma borboleta
pousa sobre o túmulo, o momento em que Gina docemente poda suas rosas
vermelhas, o passeio de dois velhinhos, a primeira comunhão. A mãe questiona-se
quanto a ser uma esponja de fel, pois possui marcas indeléveis de que, no fim das
contas, já não é esposa nem mãe. É apenas uma mulher sem nome, frívola,
assexuada, fracassada e incompleta.

A mulher, sobre o túmulo, admite ser hipócrita e dissimulada quanto ao sofrimento


pela morte da filha. Não demonstra sentir tristeza ao reconhecer o cadáver da filha,
mas organiza um velório e compra um caixão aceitável para não ser alvo das críticas
40

de parentes e outras pessoas da comunidade. Ao se notar observada toma como


suas, as rosas vermelhas e bonitas sobre o caixão enquanto as flores que levou,
com má vontade, são brancas e sem graça. Tudo é fingimento. Diz que nem mesmo
gosta dos próprios cigarros, prefere os de Oriana. Contudo, todo esse fingimento se
mostra somente uma tentativa de dissimular uma barreira emocional para si própria.

Figura 9 – Palidez ruborizada


Fonte: Portfólio Nina Pinheiro

[...] Ela com a sua mágoa e eu com a minha impaciência, ah, a mentira das
superfícies arrumadas escondendo lá no fundo a desordem, o avesso dessa
ordem.

Acendo outro cigarro. Comecei a fumar deste jeito o dia em que Oriana
esqueceu o maço de cigarro no quarto de Gina, experimentei um, era bem
mais forte do que aqueles que eu fumava meio espaçadamente. Enquanto
fui ouvindo os discos, não parei até esvaziar o maço. Então fiquei ali quieta,
sentada no chão do quarto, em meio das almofadas onde elas estiveram e
sentindo ainda no ar aquele indefinível cheiro de juventude. Uma borboleta
com desenhos prateados nas asas veio agora rondar a jarra das rosas
41

vermelhas, não quis os botões brancos, a safada. Quando se fartou das


vermelhonas, fez um vôo rasteiro até aqui, interessada no nome que
mandei gravar na lousa, Gina. (...) é uma borboleta meio tonta mas curiosa:
(...) Foi acidente? Não, minha bela, respondo e sopro devagar a fumaça do
cigarro na sua direção, foi suicídio.(...) . A borboleta concordou enquanto se
desviava da fumaça, adotei a marca de Oriana que não é marca para
borboletas (TELLES, 2009, p. 113).

Como dito, Oriana é o ponto de partida para movimentos que se seguem rumo ao
interesse pela sensualidade. Esse interesse surge antes mesmo de ver o maço de
cigarros de Oriana, mas o despertar erótico surge no momento em que a mãe pega
o cigarro de Oriana e o traga. Não conseguiu resistir ao maço inteiro, se dispôs a
ouvir os discos boêmios que as meninas ouviam, sentiu o chão sozinha, sentiu-se
velha. Oriana provoca movimentos vigorosos no corpo, mas também na alma dessa
mãe: desperta o ódio, que caminha finalmente em direção a Gina no momento da
represália fatal, mas desperta também a esperança, que se dá com a competição
imaginária travada entre Oriana e a mãe à beira do túmulo. Isto é, ao mesmo tempo
que a presença de Oriana provoca a morte, posteriormente, proporciona à mãe um
mísero motivo para manter-se existindo, viva.

A presença da borboleta surge pertinentemente no momento em que essa dialética


entre vida e morte, Oriana e Gina, se faz mais forte e a mãe admite que, pelo menos
por um momento, se dispôs a superar seus limites puritanos. Carregada da imagem
da emancipação de paradigmas, a borboleta aparece flutuando como uma bailarina
– como Gina – sobre a lápide. E assim traz lembrança do erotismo que supera o
pudor na figura das rosas vermelhas que atraem mais do que as rosas brancas.

No fim das contas, contraposição entre puro e sexual se dá, primordialmente na


interação entre Oriana e a mãe aqui em questão. Ainda que não faça parte desse
novo universo sexual, exposta a ele, a mãe traz à tona emoções diferenciadas como
a consciência de não mais ser jovem, de não mais aceitar em si o desejo carnal, de
ter visto a inocência de sua garotinha ser perdida para a sexualidade e para a morte.

Assim, a mãe de quem estamos falando, acaba nos apresentando Gina após essa
interação que a família teve com Oriana. Como leitores, lemos apenas uma leitura
42

de Gina feita pela mãe após ter sido influenciada pela presença da intrusa em sua
casa. Todos os contornos de Gina, todas as reações especuladas, todos os traços
emocionais estão já mediados pelo contexto do tempo de convivência com Oriana,
que se torna, por sua vez, uma lente entre Gina e sua mãe, logo, entre as palavras
da mãe e nós, leitores.

Quanto à fotografia, resta novamente um incômodo: o de não ver um rosto. É


proposital que vejamos apenas um contorno mal riscado na luz ofuscante. É
proposital essa luz ofuscante.

Em “Feliz Aniversário” vimos vestígios de pessoas que não eram realmente quem se
diziam ser, que apenas se movimentavam agitadas pela sala e riam e no caso de
“Uma branca sombra pálida” vemos algo que parece ser humano, um humano que
parece ser uma mulher, uma mulher que parece estar se formando – pelo vestir-se –
num ambiente que parece privado, um ambiente privado que não se vê claramente.
Mas um claramente que se enxerga muito claro, na verdade ofuscado, de tão claro.

A ausência de sombras marcantes não é, na verdade, o que encobre a informação


ao leitor, mas sim o excesso de palidez e luz. Um conto, branquelo por si só, nos
leva visualmente a um ambiente de mistério devido a uma neblina branca, que,
como um véu, silencia presenças e sentimentos. Resta ao spectator somente a
essência da atmosfera do silêncio fúnebre e de contornos mal desenhados que o
levam a deduzir o corpo de uma mulher que, se envolve com um lenço vermelho
durante o dia. Não há valorização de formas, texturas, expressões e olhares dos
spectruns, mas sim da evidencia de um ambiente privado dada, principalmente,
pelas cortinas e pelas roupas, supostamente pijamas.

Essa questão entre esclarecimento e ofuscamento presentes no comportamento da


luz na foto é uma antítese também no conto, uma vez que, lê-se uma mãe
acostumada a clareza de comportamentos bem delimitados e compreensíveis se
desestrutura ao se ver diante de um cenário no qual não consegue interpretar de
maneira certeira o comportamento de sua filha. A dúvida, a imprecisão, quanto ao
entendimento da vida íntima de Gina entra no conto na forma de uma cortina que
impedem a mãe de ver e compreender a sexualidade da filha ao ponto de gerar
43

conflitos e fatais perturbações. Neste momento, os elementos que remetem à


brancura e à luz deixam de ser referentes ao esclarecimento e passam a fazer
referência à confusão dada a perda dos contornos e definições dos acontecimentos.

A composição simples da fotografia intenta mostrar um operator que posiciona sua


lente como os olhos da mãe. Confusos enxergam e pensam Gina somente com a
mediação de Oriana – um véu colorido, vermelho, não permitindo que o spectator
tenha uma compreensão distinta dos traços de uma ou de outra menina, assim
como a mãe via pelo buraco da fechadura..

O spectrun principal não se encontra centralizado, mas deslocado para o terço da


direita em evidência vertical. A cortina, deslocada à esquerda, também encontra-se
em evidência vertical. Sendo assim, à foto, resta um destaque devido quase
totalmente à verticalidade em evidência no contraste do branco com o vermelho do
lenço nas mãos da moça.

Novamente com a proposta de análise de R. Jakobson (2001), analisemos as cinco


funções da linguagem, nas quais podemos orientar a compreensão da foto enquanto
recorte da atmosfera elucidada por Lygia Fagundes Telles no conto. Tratemos então
das funções referencial, emotiva, conativa, fática e poética.

Jakobson nomeia a função referencial da fotografia, vemos que se trata de um


recorte não fictício de um momento do dia de uma moça, vestindo pijamas
movimenta um lenço no ar. Cobrindo o rosto e boa parte do seu corpo, esconde
assim, olhares, expressões faciais e emoções. Marcante, no canto esquerdo, vê-se
uma cortina clara que se movimenta conforme o vento vindo de uma janela
localizada atrás, mas que não é vista por causa da luz ofuscante. Vemos aí uma
imagem que pode ser deduzida como a de uma moça dialogando com um lenço e
próxima a uma cortina, num ambiente doméstico.

Seguindo para a função emotiva, vemos que os elementos a serem destacados não
vão além do véu, da cortina, do contorno humano, e da iluminação em si. Contudo,
fazemos uma análise subjetiva quando tomamos o foco narrativo do conto em
comparação ao posicionamento do operator no momento da foto. As cortinas, um
44

par de joelhos à mostra e uma calça vermelha com bolinhas brancas remete
imediatamente o spectator a um ambiente privado dentro de uma casa. O
movimento feito com o lenço vermelho nos indica uma possível troca de vestimenta

Quanto a função conativa da imagem, a perda da expressão facial e dos contornos


de quase todo o corpo do spectrum levam o spectator à leitura do mistério, da falta
de compreensão, de algo encoberto. No caso da foto, contamos que esse lenço
intrometido é nada mais do que a representação da intromissão de Oriana no
contexto familiar de Gina e sua mãe. E a superexposição da imagem, o elemento
representativo da brancura recorrente no texto, remete o leitor, não somente ao
silêncio, mas à uma nebulosidade de fatos que tiveram suas razões e
consequências encobertas.

Sobre a perspectiva da função fática, vemos aí que a foto consegue prender a


atenção mesmo com a simplicidade da composição. Isso se dá, principalmente pelo
contraste entre branco e vermelho, estabelecido de forma muito pertinente no conto.
Esse contraste desencadeia a dialética na concepção do virginal ocultado – Gina – e
do sexual à mostra – Oriana. Além dessa relação, não se vê primeiro e segundo
plano ou ainda outro tipo de contraste. O branco ocupa a maior parte da foto, mas
ainda assim, o vermelho surge como ponto de destaque e movimento, o faz com que
o olhar do observador seja dirigido da esquerda para direita e, posteriormente à
esquerda.

Com a análise segundo a função poética, vemos que a foto, em sua completude,
trata de uma de visualização do silenciamento de Gina através de uma simbologia
da luz, que ofusca e encobre a verdade de fatos que tiveram suas razões
encobertas aos olhos e à fala de uma mãe desestruturada diante da novidade de
uma situação e de uma interação.
45

5 DEI, DARIA, DOU...

Considerando o conto de Marcelino Freire, “DARLUZ” lemos uma mulher que,


aparentemente foge por completo dos predicados que estabelecemos aqui como
sendo típicos de uma boa mãe. Darluz se encontra claramente em uma situação de
risco social e se recusa a criar os filhos que concebe por não ter condições
financeiras de sustenta-los.

O texto é ritmado e rimado, o que se assemelha à literatura de cordel e auxilia o


andamento acelerado e oralizado do conto que é estruturado como um diálogo.
Darluz narra e comenta sobre sua vida e suas desventuras conversando
abertamente com uma interlocutora silenciosa, como em “Uma branca sombra
pálida”, trata-se de uma narrativa explicativa na qual a personagem principal
justifica-se por suas atitudes como mãe. O ambiente onde se passa a conversa não
é explicitado, mas o leitor percebe claramente que Darluz não é uma mulher do lar.

Não é possível saber onde mora, a cor de sua pele, sua situação familiar pregressa.
Apenas que Darluz é uma mulher pobre, sem trabalho, sem instrução e sem
educação Com as frequentes descrições que faz a respeito de si mesma, vemos que
é uma mulher isenta de qualquer remorso ocasionado pelo fato de ter abandonados
seus tantos filhos.

À primeira vista, Darluz pode ser considerada criminosa, insensível, louca, indolente,
vagabunda ou negligente para com vidas humanas – seus próprios filhos! O fato é
que, através do depoimento dessa mãe incomum, Marcelino Freire põe à prova a
sensibilidade e até mesmo o altruísmo. Como a interlocutora calada, o leitor é levado
a refletir a respeito de um costumeiro julgamento generalista e preconceituoso.
Darluz, ao contrário do que parece, é uma mãe sensível que prefere dar a seus
filhos um nome e uma chance de um futuro melhor do que o dela com outros pais a
aprisioná-los na miséria junto consigo. Recusando-se a parar de dar, se vê heroína e
não vilã. “Alimentei aí um bichinho que a mãe não quis dar pra ninguém. Fica ali,
agarrando o filho na miséria, pode? [...] Quero ver quando esta peste crescer, quero
46

ver”; diz Darluz quando menciona o leite que vendeu a uma mãe cujo filho não quis
dar, obrigando-o a viver na miséria.

Essa narradora-personagem possui as peculiaridades das configurações moral,


social, cultural e econômica que se traduzem em desqualificações crassas para uma
mãe considerada normal. Neste aspecto, Darluz estabelece-se então a partir de uma
desmistificação da mãe-heroína. Apresentada como uma personagem atravessada
por angústias e frustrações, essa mãe anti-heroína concentra em si os estigmas
sociais que tendem a esfacelá-la e resumi-la a uma mulher sem qualidades.
Afirmando-se mais por suas desqualificações do que por suas qualificações, Darluz
consegue, de forma invertida, reinterpretar a condição de sensibilidade e cuidado
maternos que a tradicional mãe-heroína alcançara (Lopes; Reis, 1988).

Ela dá todos os filhos, mas repete constantemente que dá e não se arrepende disso
com “dei, daria e dou” logo no primeiro parágrafo. ‘Dar’ reverbera pela narrativa,
trazendo a dubiedade do verbo que aparece dezenove vezes no texto atuando de
forma a significar primeiramente dar à luz, como já é apontado pelo título, dar os
filhos, dar um destino às crianças e ‘dar’ no sentido sexual, reafirmando através
desse verbo que a define sua posição de anti-heroína.

No que diz respeito às imagens sexuais, vemos que o conto trata de uma
sexualidade aflorada que passeia pelo texto nos dando pistas de que estamos lendo
o depoimento de uma mulher que, não só aprecia o sexo como uma forma de
enfrentar a dificuldades de sua vida infeliz, mas que, a partir dele, se define como
sujeito.

Mostra-se irritada às opções de assistencialismo oferecidas por pessoas que a


julgam relapsa. Sem trabalho, sem dinheiro, sem educação ou instrução o que lhe
restaria de prazeroso em sua vida além de dar (agora no sentido sexual da palavra)?

É infeliz em sua atual vida afetiva, bem como com seus três maridos anteriores, não
tem o amor de seu atual marido, e, dando os filhos a outros, demonstra o amor que
não recebe ao permitir que as crianças possam ser até mesmo doutores, como
provavelmente jamais seriam se vivessem junto dela. Assim, observa-se que essa
47

mãe possui uma plena consciência de sua própria condição de vida e, portanto, da
incapacidade de sustentar uma ou mais crianças sem anular-se de alguma forma.

Por seu relato, percebe-se que muitos tentam opinar a fim de mudar a vida de
Darluz sem conhecê-la verdadeiramente: “Todo mundo é solidário. Mas na hora,
olha, o povo é foda. Vem aconselhar pílula, distribuir planejamento. Quero saber o
que fazem com nosso sofrimento. Vai, quem diz? Quem já foi infeliz?”. Afinal, Darluz
se dá ao direito de não utilizar a pílula que por sua vez não é remédio para o
sofrimento como o sexo, mesmo que momentaneamente, o seria. A pílula não seria
o remédio para o sofrimento, como não seria para a fome, para a infelicidade, ou
para o inferno onde Darluz se enxerga vivendo. Nem seria o remédio para o
sofrimento, a miséria da criança no ventre. Entretanto, não se trata de um
assistencialismo que beneficie Darluz, mas seus filhos, mas também não se trata de
um assistencialismo que, de acordo com a experiência de Darluz, beneficiaria seus
filhos, mas sim os que a julgam irresponsável, e, no fim das contas, não dirigem sua
ajuda nem à Darluz nem às crianças, mas à suas próprias consciências. Desta forma
entendemos a preocupação de Darluz em não se anular, ou anular seus prazeres
por interesses que só dizem respeito a outrem.

Darluz é, em sua própria fala e definição, a resposta à fala do Outro que se coloca
no lugar dela. Esse Outro ocupa espaços sociais, culturais, econômicos e temporais
totalmente diferenciados dos que Darluz ocupa, mas ainda assim, a completa ao
mesmo tempo em que se completa. Esclareço fazendo uso da visão bakhtiniana do
princípio da exotopia, isto é, o fato de que só através de um Outro, um sujeito pode
ter um acabamento, assim como só esse sujeito é que pode dar acabamento a um
Outro. Cada um dos que julgam Darluz, de seus respectivos lugares de fala, tem
sempre apenas um horizonte e, estando na fronteira do mundo que vivem, somente
Darluz - um Outro - pode dar-lhes um ambiente, completar o que lhes falta ao olhar.
Da mesma forma, Darluz só pode se imaginar, por inteiro, sob o olhar do Outro; em
decorrência dessa exotopia, a palavra de Darluz está inquestionavelmente
contaminada do olhar de fora, do outro que lhe dá sentido e acabamento. Em suma
Darluz não fala sozinha nem fala ou representa somente a si própria, mas também a
coleção de discursos que a envolvem enquanto sujeito (Tezza, 2001).
48

Quando Darluz fala a respeito de si, e de como se sente ao ser interpelada por
outrem, fala também desses outros e se torna o olhar exotópico que lhes dá
acabamento estético - é o excedente de visão, no tempo e no espaço, que dá
sentido às falas de outros. No conto, a voz da narradora se consubstancia na voz
dos agentes de saúde, repórteres, assistentes sociais ou qualquer um que a possa
criticar ou interrogar e garanta, assim, o olhar de fora, a âncora exotópica
impregnada de valor, que dá sentido e consistência estética a anti-heroína, Darluz
(Tezza, 2001).

Esse Outro que completa Darluz – e a quem Darluz completa – também se é visto
na figura do leitor, que se reconhece crítico e, por fim, admirador.

Figura 10: Despudoradamente mulher


Fonte: Portfólio Nina Pinheiro

Pelo menos fui corajosa, não fui? Tive peito, não tive? Fala. Quem assume
essa postura, qual o filho da mãe? Vai, diz. Quem, menina?

Agora deixar florzinha morrer murcha. (...)

E tem mais. Todo mundo é solidário. Mas na hora, olha, o povo é foda. Vem
aconselhar pílula, distribuir planejamento. Quero saber o que fazem com
nosso sofrimento. Vai, quem diz? Quem já foi infeliz? A moça do carro, a
moça que levou Beatriz, chorava naquele momento. Mas hoje é hoje. Hoje é
outro tempo.

Agora esse filho de uma jumenta vem pra cima de mim, o Altamiro. Marido
merda, entende? Vem aqui, tira o caralho do corpo, bêbado. Eu aguento.
Tenho mais pena do caralho dele do que de José, Antônio, Paulo,
49

Juscelino. Melhor que ter filho morto, tenho esse orgulho. Todos nasceram
vivos.

Dou, dou, dou, Altamiro.

Como já foi mencionado, o olhar do outro é o ponto de partida para os movimentos


de Darluz no decorrer do conto e essa movimentação responsiva já surge antes do
momento da enunciação. Sendo assim, para a leitura do ambiente do conto, foi
considerada, principalmente, o olhar reativo da personagem.

Em “Feliz Aniversário” vimos vestígios de pessoas que não eram realmente quem se
diziam ser, que apenas se movimentavam agitadas pela sala e riam e no caso de
“Uma branca sombra pálida” vimos algo que parecia ser humano, um humano que
parecia ser uma mulher, e uma série de elementos incompletos, dada a presença da
brancura ofuscante. Em “DARLUZ”, as informações estão dadas pela própria
personagem por meio de sua fala explicativa. A vida da personagem é invadida,
julgada e destrinchada antes do momento da enunciação e a fala de Darluz é a
resposta a essa movimentação pregressa. Sendo assim, a reação da personagem é
uma devolução à intromissão de seu interlocutor – seu leitor, enquanto é, ainda, o
complemento à fala desse intrometido.

O ambiente externo ao lar não é nada além do ambiente a que Darluz se diz
pertencer, a rua. Pouco se sabe a respeito da casa de Darluz e muito mais se sabe
a respeito de sua circulação pelas ruas. Todas as informações oferecidas ao leitor o
levam a caracterizar Darluz como uma mulher que foge de obrigações pertencentes
à mulher – mãe esposa – e assim, distancia-se do ambiente pertinente à mulher – a
casa – por dominar, a personagem, um ambiente público em detrimento do privado,
glorificada no espaço público, a história de Darluz torna-se também pública à medida
que compartilha sua vida com as pessoas que a abordam nas ruas.

Fica novamente um incômodo, o de uma imagem cuja qualidade é péssima. Eis aí


mais uma peculiaridade na discussão de “DARLUZ”, foi o único conto não
fotografado com uma câmera profissional, mas com uma simples câmera de um
celular a fim de reforçar a presença de um espectador das ruas, desprovido de
aparatos complexos em seu olhar e seu registrar o Outro.
50

A composição, na fotografia em questão, intenta mostrar um operator que posiciona


sua lente como os olhos de um interlocutor. Enxerga e pensa Darluz somente com a
mediação de si mesmo. Vê o spectrun principal em evidência, centralizado,
iluminado pelas luzes dos postes da rua.

Novamente com a proposta de análise de R. Jakobson (2001), analisemos as cinco


funções da linguagem, nas quais podemos orientar a compreensão da foto enquanto
recorte da atmosfera elucidada por Marcelino Freire no conto. Tratemos então das
funções referencial, emotiva, conativa, fática e poética.

Analisando a função referencial da fotografia, vemos que se trata de um recorte de


um momento da noite em que uma moça aparece sozinha numa rua, vestindo uma
roupa preta, tem os cabelos parcialmente presos e encara a câmera, com um rosto
cansado e expressão facial marcante. Apesar de demonstrar pouca idade a foto
revela um rosto experiente, envelhecido e mal cuidado. Com o rosto totalmente
exposto, olhar e expressão facial são vistos com tanta clareza quanto calçadas,
muros, postes, placas e o asfalto localizados atrás e ao redor do spectrum. Vemos aí
uma imagem que pode ser deduzida como a de uma mulher enfrentando
descaradamente um Outro próximo, num ambiente público.

Seguindo para a função emotiva, vemos que os elementos a serem destacados


giram em torno do spectrum e do ambiente. Contudo, fazemos uma análise subjetiva
quando tomamos o contexto narrativo do conto em comparação às condições do
posicionamento do operator no momento da foto.

A função conativa da imagem fica por conta da evidência da expressão facial e da


delineação do ambiente que levam o spectator à visão de uma mulher simples e
agressiva, defensora de si mesma. Os contornos dessa mulher são desenhados por
uma concepção pregressa do interlocutor de Darluz – nós mesmos, os leitores, os
spectators.

Sobre a perspectiva da função fática, observa-se que, ainda que a fotografia seja
precária, há valorização de formas, luzes, texturas e, principalmente da expressão e
do olhar do spectrum em evidencia num ambiente público. Através desses dois
51

últimos elementos a atenção do spectator é capturada e a comunicação se


estabelece entre o olhar do spectrum e do spectator.

Finalmente com a função poética, vemos que a foto, em sua completude, trata de
uma de visualização do olhar e da expressão de um sujeito que reage. A conexão
entre o conto e a foto, se estabelece então nesse recorte da reação de Darluz no
momento em que se sente invadida e tolhida em seu direito de dar – seja em
qualquer uma das quatro opções que o verbo oferece no conto.

Essa reação de Darluz é que faz dela uma mãe diferenciada. Seja a reação à
intromissão de outros ou à suas atitudes e pensamentos enquanto mãe e esposa. O
interlocutor de Darluz mantém-se calado, observando à sua frente à figura de uma
mulher emancipada construir-se e reconstruir-se como sujeito através do olhar de
um Outro.
52

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A figura da mulher é retratada de forma predominantemente doméstica e as


representações literárias de escape a esse clichê não fazem parte de um registo
constante na literatura brasileira. Por meio das observações e análises feitas neste
trabalho, foi possível constatar a hegemonia de uma representação social feminina
na vida privada, sem perspectivas ou realizações pessoais.

Partindo de questionamentos a respeito da representação da mulher no âmbito


social e literário, da indiferença quanto as especificidades femininas e da função da
mulher no seio familiar, buscou-se, inicialmente, respostas pela ótica psicanalítica.
Contudo, essa escolha não refletia o objetivo inicial da pesquisa. Seguiu-se, então,
pelo caminho da análise do corpus literário e do corpus iconográfico que, além de
não serem limitadores, contribuíram para construção simbólica dos conceitos
propostos como a comprovação da hipótese da reificação da mulher, reduzida às
partes úteis de seu corpo (Vagina, barriga e seios) em dados momentos de sua vida.

A busca de textos relacionados à obra de Marcelino Freire tornou-se um elemento


limitador, não impossível, mas bastante difícil. Em contrapartida, as leituras
complementares aos outros contos, de Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles,
foram de fácil acesso e contribuíram de forma significativa para a produção do
trabalho.

Assim após a conclusão deste trabalho, abriu-se uma lacuna que se pode entender
como a porta para novas pesquisas que discutam, de maneira mais profunda, o
papel paradigmático da mulher como mãe e o engessamento da subjetividade e da
individualidade femininas. É necessário observar que esse tipo de atuação da
mulher pode ser considerado um refúgio que evita o enfrentamento da necessidade
da construção de uma identidade humana independentemente de gênero ou
condição social, como pode ser visto em contos como “Reunião de família” de Lygia
Fagundes Telles, “1986” de André de Leones ou mesmo no protótipo do fracasso e
53

frustração feminina representado na figura de Macabéa em “A hora da estrela” de


Clarice Lispector.

Ao ver construído esse papel nas condições expostas nos contos, foi possível
identificar a verossimilhança da vida das personagens com a situação de vida de
personas reais, ou seja, assemelham-se a pessoas reais com quem convivemos
diariamente sem ficção ou poesia. E, portanto, vimos neste trabalho, muito mais do
que três mulheres de contos fictícios, mas sim a realidade de uma gama de
mulheres altivas, sem cor e doadoras.
54

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