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AMARTYA SEN
Desenvolvimento como
liberdade
Tradução
Laura Teixeira Motta
Revisão técnica
Ricardo Doninelli Mendes
8~reimpressão
64161
~-
COMPANHIA DAS LETRAS
CompralRUSP
2009.1.11238 11
14/04/10 R$45.17
Título original
Development 3S freedom
Capa
Raul Loureiro
sobre representação gráfica de tabela com os horários dos trens de Paris a Lyon,
na década de 1880, em La méthode graphique dans Ics sciences cxperimentales,
de Êtiennc-Iules Marey (2' ed., Paris, G. Masson, 1885)
Preparação
Eliane de Abreu Maturano Santoro
Revisão
Beatriz de Freiras Moreira
Cláudia Cantarin
Desenvolvimento econômico
1. 2. liberdade 3. livre
empresa I. Mendes, Ricardo Doninelli. JI. Título.
00-0573 CDD-330.12l
(2009)
de
que o tornam importante, em vez de restringi-Ia a alguns dos meios que, in ter examinadas com um certo detalhamento neste livro - que a condição de agen-
alia, desempenham um papel relevante 110 processo. te livre e susten tável emerge como um motor fundamental do desenvolvimen-
O desenvolvimento requer que se removam as pri ncipais fontes de privação to. A livre condição de agente não só é, em si, uma parte "constitutiva" do desen-
r : · de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destitui- volvimento, mas também contribui para fortalecer outros tipos de condições de
ção social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou inter- agente livres. As relações empíricas que são amplamente examinadas neste estu-
[ ~ ferência excessiva de Estados repressivos. A despeito de aumentos sem preceden- do associam os dois aspectos da idéia de "desenvolvimento como liberdade".
tes na opulência global, o mundo atual nega liberdades elementares a um grande A ligação entre liberdade individual e realização de desenvolvimento social
número de pessoas - talvez até mesmo à maioria. Às vezes a ausência de liber- vai muito além da relação constitutiva - por mais importante que ela seja. O
dades substantivas relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, que que as pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por oportuni-
rouba das pessoas a liberdade de saciar a fome, de obter uma nutrição satisfató- dades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habili-
ria ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou morar de tadoras como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de ini-
modo apropriado, de ter acesso a água tratada ou saneamento básico. Em outros ciativas, As disposições institucionais que proporcionam essas oportunidades
casos, a privação de liberdade vincula-se estreitamente à carência de serviços são ainda influenciadas pelo exercício das liberdades das pessoas, mediante a
públicos e assistência social, como por exemplo a ausência de programas epide- liberdade para participar da escolha social e da tomada de decisões públicas que
miológicos, de um sistema bem planejado de assistência médica e educação ou impelem o progresso dessas oportunidades. Essas inter-relações também são
de instituições eficazes para a manutenção da paz e da ordem locais. Em outros investigadas neste livro.
casos, a violação da liberdade resulta diretamente de uma negação de liberdades
políticas e civis por regimes autoritários e de restrições impostas à liberdade de
participar da vida social, política e econômica da comunidade, ALGUNS EXEMPLOS: LIBERDADE POLÍTICA E QUALIDADE DE VIDA
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!r
de receber educação básica ou assistência médica) estão entre os componentes tribuir para o elevado crescimento econômico e o progresso econômico global
constitutivos do desenvolvimento. Sua relevância para o desenvolvimento não tem sido ampla e acertadamente reconhecida na literatura contemporânea
tem de ser estabeleci da a posteriori, com base em sua contribuição indireta para sobre desenvolvimento. No entanto, seria um erro ver o mecanismo de merca-
ocrescimento do PNB ou para a promoção da industrialização. O fato é que essas do apenas como um derivativo. Como observou Adam Smith, a liberdade de
liberdades e direitos também contribuem muito eficazmente para o progresso troca e transação é ela própria uma parte essencial das liberdades básicas que as
econômico; essa relação será amplamente examinada neste livro. Mas, embora pessoas têm razão para valorizar.
a relação causal seja de fato significativa, a justificação das liberdades e direitos Ser genericamente contra os mercados seria quase tão estapafúrdio quanto
estabelecida por essa ligação causal é adicional ao papel diretamente coristituti- ser genericamente contra a conversa entre as pessoas (ainda que certas conver-
vo dessas liberdades no desenvolvimento. sas sejam claramente infames e causem problemas a terceiros - ou até mesmo
Um segundo exemplo relaciona-se à dissonância entre a renda per capita aos próprios interlocutores). A liberdade de trocar palavras, bens ou presentes
(mesmo depois da correção para variação de preços) e a liberdade dos indiví- não necessita de justificação defensiva com relação a seus efeitos favoráveis mas
duos para ter uma vida longa e viver bem. Por exemplo, os cidadãos do Gabão, distantes; essas trocas fazem parte do modo como os seres humanos vivem e
África do Sul, Namíbia ou Brasil podem ser muito mais ricos em termos de PNB interagem na sociedade (a menos que sejam impedidos por regulamentação ou
per capita do que os de Sri Lanka, China ou do Estado de Kerala, na Índia, mas decreto). A contribuição do mecanismo de mercado para o crescimento econô-
neste segundo grupo de países as pessoas têm expectativas de vida substancial- mico é obviamente importante, mas vem depois do reconhecimento da impor-
mente mais elevadas do que no primeiro. tância direta da liberdade de troca - de palavras, bens, presentes.
Com um tipo diferente de exemplo, é comum o argumento de que, nos Acontece que a rejeição da liberdade de participar do mercado de traba-
Estados Unidos, os afro-americanos são relativamente pobres em comparação lho é uma das maneiras de manter a suj eição e o cativeiro da mão-de-obra, e a
I. com os americanos brancos, porém são muito mais ricos do que os habitantes batalha contra a privação de liberdade existente no trabalho adscr itício" é
do Terceiro Mundo. No entanto, é importante reconhecer que os afro-america- importante em muitos países do Terceiro Mundo hoje em dia por algumas das
i nos têm uma chance absolutamente menor de chegar à idade madura do que as mesmas razões pelas quais a Guerra Civil americana foi significativa. A liber-
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j peSSoasque vivem em muitas sociedades do Terceiro Mundo, como China, Sri dade de entrar em mercados pode ser, ela própria, uma contribuição importan-
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i Lankaou partes da Índia (com diferentes sistemas de saúde, educação e relações te para o desenvolvimento, independentemente do que o mecanismo de mer-
j comunitárias). Se a análise do desenvolvimento for relevante inclusive para os cado possa fazer ou não para promover o crescimento econômico ou a
países mais ricos (neste livro procura-se demonstrar que ela efetivamente é), a industrialização. De fato, o elogio ao capitalismo feito por Karl Marx (que não
1 presença desses contrastes intergrupais no âmbito de países mais ricos pode ser foi nenhum grande admirador do capitalismo em geral) e sua caracterização
(em O capital) da Guerra Civil americana como "o grande evento da história
r considerada um aspecto importante da concepção de desenvolvimento e sub-
contemporânea" relacionam-se diretamente à importância da liberdade do
desenvolvimento.
J; contrato de trabalho em oposição à escravidão e à exclusão forçada do merca-
I· do de trabalho. Como veremos, entre os desafios cruciais do desenvolvimento
TRANSAÇÕES, MERCADOS E PRIVAÇÃO DE LIBERDADE ECONÔMICA em muitos países atualmente inclui -se a necessidade de libertar os trabalhado-
,..Bound labor, traduzido aqui como "trabalho adscritício", indica a existência de algum tipo de
Um terceiro exemplo relaciona-se ao papel dos mercados como parte do coação para que uma pessoa viva e trabalhe em determinada propriedade, impedindo-a de ofere-
processo de desenvolvimento. A capacidade do mecanismo de mercado de con- cer seu trabalho no mercado. (N. T.)
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res de um cativeiro explícito ou impl ícito que nega o acesso ao mercado de tra- enquanto meu pai O levava às pressas para o hospital-, Kader ivlia não parava
balho aberto. De modo semelhante, a negação do acesso aos mercados de pro- de nos contar que sua esposa lhe dissera para não entrar em uma área hostil
dutos freqüentemente está e nr re as privações enfrentadas por muitos peque- naquela época tão conturbada. Mas Kader Mia precisava sair em busca de traba-
nos agricultores e sofridos produtores sujeitos à organização e restrições lho e um pouco de dinheiro porque sua família não tinha o que comer. A pena-
tradicionais. A liberdade de participar do intercâmbio econômico tem um lidade por essa privação de liberdade econômica acabou sendo a morte, que
papel básico na vida social. ocorreu mais tarde no hospital.
l: A finalidade dessa consideração muitas vezes negligenciada não é negar a Essa experiência foi devastadora para mim. Ela me fez refletir, tempos
importância de julgar O mecanismo de mercado de um modo abrangente, com depois, sobre o terrível fardo das identidades estreitamente definidas, incluindo
todos' os seus papéis e efeitos, inclusive os de gerar cresci mento econômico e,em as firmemente baseadas em comunidades e grupos (terei oportunidade de dis-
muitas circunstâncias, até mesmo a eqüidade econômica. Também temos de correr sobre isso neste livro). Porém, de um modo mais imediato, ela também
examinar, por outro lado, a persistência de privações entre segmentos da comu- ressaltou o notável fato de que a privação de liberdade econômica, na forma de
nidade que permanecem excluídos dos benefícios da sociedade orientada para pobreza extrema, pode tornar a pessoa uma presa indefesa na violação de outros
o mercado, e os juízos, inclusive as críticas, que as pessoas podem fazer sobre tipos de liberdade. Kader Mia não precisaria ter entrado em uma área hostil em
diferentes estilos de vida e valores associados à cultura dos mercados. Na visão busca de uns rníseros trocados naquela época terrível se sua família tivesse con-
do desenvolvimento como liberdade, os argumentos de diferentes lados têm de dições de sobreviver de outra forma. A privação de liberdade econômica pode
ser apropriadamente considerados e avaliados. É difícil pensar que qualquer gerar a privação de liberdade social, assim como a privação de liberdade social
processo de desenvolvimento substancial possa prescindir do uso muito amplo ou política pode, da mesma forma, gerar a privação de liberdade econômica.
de mercados, mas isso não exclui o papel do custeio social, da regulamentação
pública ou da boa condução dos negócios do Estado quando eles podem enri-
quecer - ao invés de empobrecer - a vida humana. A abordagem aqui adota- ORGANIZAÇÕES E VALORES
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características sociais como a igualdade entre os sexos.u natureza dos cuidados INSTITUIÇÕES E LIBERDADES INSTRUMENTAIS
segurança, mais educação e mais liberdade de decisões refletidas viessem a ricos que unem os tipos distintos de liberdade uns aos outros, fortalecendo sua
refrear o crescimento populacional, seu contemporâneo Thornas Robert " importância conjunta. Essas relações são fundamentais para uma compreensão
Malthus tinha opinião radicalmente diferente. De fato, Malthus afirmou: mais plena do papel instrumental da liberdade.
"Nada fazsuporque qualquer coisa além da dificuldade de obter com adequa-!
da abundância as necessidades da vida venha a indispor esse maior número de I
pessoas a c~~ar-se ~e~o, ou a incapacitá-Ias de criar CO~l saúde as famílias mais I OBSERVAÇÃO FINAL
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de oportunidades de participação no comércio e na produção) podem ajudar a
gerar a abundância individual, além de recursos públicos para os serviços
1. A perspectiva da liberdade
sociais. liberdades de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras.
Essas relações empíricas retorçam as prioridades valorativas. Pela antiqua-
da distinção entre "paciente" e "agente", essa concepção da economia e do pro-
cesso de desenvolvimento centrada na liberdade é em grande medida uma visão
orientada para o agente. Com oportunidades sociais adequadas, os indivíduos VIS"é"o
podem efetivamente moldar seu próprio destino e ajudar uns aos outros. Não
olie.'(1t-",J.,
precisam ser vistos sobretudo como beneficiários passivos de engenhosos pro-
gramas de desenvolvimento. Existe, de fato, uma sólida base racional para reco- p;".? o
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