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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO


FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

ABILIO TADEU ARRUDA

A DOUTRINA TEOLÓGICA E SOCIAL DE CALVINO E A EDUCAÇÃO PARA A


SOLIDARIEDADE

São Bernardo do Campo - 2006


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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO


FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

ABILIO TADEU ARRUDA

A DOUTRINA TEOLÓGICA E SOCIAL DE CALVINO E A EDUCAÇÃO PARA A


SOLIDARIEDADE

Dissertação apresentada em
cumprimento às exigências do
Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião, para a obtenção
do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Jung Mo Sung

São Bernardo do Campo – 2006


3

À Lirian e Paula Giovanna


4

AGRADECIMENTOS

A Deus.
Aos meus pais, Rita e Abilio, por me educarem na fé cristã.
À Lirian, minha esposa, pelo incentivo e paciência.
À Paula Giovanna, minha filha, por existir.
À Fundação “Mary Harriet Speers”, pelo apoio financeiro inicial.
Ao Instituto Ecumênico de Pós Graduação, pelo apoio financeiro em dias difíceis.
Ao Prof. Dr. Jung Mo Sung, pela orientação precisa, segura e clara e pela
compreensão nas horas difíceis.
Aos colegas e professores da área de Práxis Religiosa e Sociedade, pela feliz
caminhada juntos.
Aos membros e amigos da Igreja Presbiteriana Independente de Americana, por
abrir mão, por muitas vezes, dos meus préstimos como pastor durante a confecção
desta dissertação.
5

“Quando o sacramento do altar se separa do sacramento do irmão, a liturgia


se degenera em magia e o irmão se esvai em sangue na sarjeta da história...”
Victor Codina
6

RESUMO

A Doutrina Teológica e Social de Calvino emerge como processo cognitivo para o


aprendizado da solidariedade por levar as pessoas que o colocam em prática a
vivenciarem experiências relacionais pessoais e sociais. No contato com o outro, e
com o intermeio, é possível ao ser humano desenvolver uma sensibilidade com
aqueles/as que sofrem, vítimas do sistema capitalista e excludente. Aprender a ser
solidário pressupõe a aquisição de conhecimentos e adquirir conhecimento tem a ver
com educação. Uma educação que leve as pessoas a desenvolverem a
sensibilidade e que as capacite com competências, para que a solidariedade possa
ser efetiva, é possível, desde que as nossas certezas sejam relativizadas pelo
reconhecimento do outro como igual. Desse modo, a Igreja, como instituição que
comunica e educa, ao levar a cabo sua missão de implantar o Reino de Deus e sua
justiça, pode emergir como espaço onde a solidariedade seja aprendida, vivenciada
e traduzida em ações efetivas e permanentes.
7

RESUMEN

La doctrina teológica y social de Calvino surge como proceso cognitivo para el


aprendizaje de la solidariedad para tomar a la gente que lo pone en práctica para
vivir experiencias emparentadas personales y sociales. En el contacto con el otro, y
con el intermedio, es posible al ser humano desarrollar una sensibilidad con los que
sufre, víctimas del sistema capitalista y exclusivo. Aprender a ser solidario estima la
adquisición del conocimientos y adquirir conocimiento tiene que ver con la
educación. Una educación que permite la gente desarrollar la sensibilidad y que la
capacite con competencias, de modo que la solidariedad pueda ser eficaz, es
posible, desde entonces que nuestras certezas sean relativizadas por el
reconocimiento del otro como igual. De este modo, la Iglesia, como institución que
comunica y educa, al conducir la manija su misión de implantar el Reino de Dios y su
justicia, puede emerger como espacio donde se aprende la solidariedad, sea vivida y
traducida en acciones eficientes y permanentes.
8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................10

CAPÍTULO I - A DOUTRINA TEOLÓGICA E SOCIAL DE CALVINO........................13

1. O Contexto Histórico e Social da Reforma Calvinista............................................13

2. A Doutrina Teológica e Social de Calvino..............................................................25

2.1. O humanismo......................................................................................................26

2.2. Trajetória biográfica de Calvino humanista.........................................................29

2.3. A crítica de Calvino ao Estado............................................................................32

2.4. A graça e a educação para a solidariedade........................................................42

CAPÍTULO II - EDUCAÇÃO PARA A SOLIDARIEDADE...........................................51

1. O Ser Humano é “ser aprendente”.........................................................................52

2. Duas Noções de Solidariedade..............................................................................57

2.1. A solidariedade como um fato.............................................................................58

2.2. A solidariedade como uma exigência ética.........................................................62

3. Solidariedade e Competência................................................................................68

4. Solidariedade e Espiritualidade..............................................................................79
9

CAPÍTULO III – A DOUTRINA TEOLÓGICA E SOCIAL DE CALVINO E A


EDUCAÇÃO PARA A SOLIDARIEDADE...................................................................90
1. Estado, Igreja e Solidariedade...............................................................................90
2. A Fé e a Práxis Política..........................................................................................98
3. Solidariedade e Missão: a Práxis Religiosa Crista e a Educação para a
Solidariedade............................................................................................................105
3.1. Educação anti-dialógica e insensibilidade.........................................................107
3.2. Solidariedade e a dimensão profética da Igreja................................................112

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................126

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................129
10

I. A DOUTRINA TEOLÓGICA E SOCIAL DE CALVINO

1. O Contexto Histórico e Social da Reforma Calvinista

O contexto histórico e social da reforma calvinista é a Suíça e, de modo mais


específico, a cidade de Genebra, no século XVI. É de suma importância a
delimitação, neste tópico, do contexto onde ocorrera a reforma calvinista, contexto
este que vai, concomitantemente, sofrer alterações inesperadas com a chegada de
João Calvino e cunhar o “reformador de Genebra” bem como a sua doutrina
teológica e social.

Também é de salutar importância, nesta pesquisa, a compreensão da


organização política, administrativa e religiosa da cidade de Genebra, onde se daria
a reforma calvinista, para se obter com clareza um melhor entendimento da relação
entre Estado e Igreja em Calvino, tendo em vista que é da crítica destas duas
instituições que Calvino dá início ao desenvolvimento de sua doutrina teológica e
social.

A Suíça do século XVI, desde muito antes de se poder falar em Reforma, seja
ela de caráter social ou religioso, já experimentava transformações históricas e
sociais que suscitavam na população anseios de liberdade. E estas transformações,
bem como os anseios de liberdade que delas resultavam alcançariam a cidade de
Genebra, palco de uma das maiores reformas social, econômica, política e religiosa
de todos os tempos. Segundo Biéler, “os movimentos sociais e religiosos na Suíça
determinam, em larga medida, a história de Genebra e de Calvino”.1

De maneira bastante sucinta, segue o levantamento de importantes


transformações que vão, historicamente, ter influências determinantes tanto no
desenvolvimento da história de Genebra quanto de Calvino. Desde o século XI o
comércio já estava estabelecido na Suíça, o que suscitava um forte movimento de
independência. No século XII, os habitantes da região encontram no transporte de
mercadorias uma fonte de prosperidade, ao mesmo tempo em que se unem para
1
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 68.
11

defenderem seus interesses comuns formando as chamadas “comunas juradas”, e


mais tarde, uma Confederação “jurada”.2 Do século XIII ao XV importantes
mudanças vão agitar a Suíça. Forma-se, no século XIII, uma cidade de burguesia
em Lucerna; a facção popular derruba, no século XIV, o governo aristocrático, e com
o desenvolvimento e fortalecimento da população operária, ou artesãos, toma o
poder em 1336; os burgueses derrubam os nobres e se unem aos Confederados,
em 1530; cidade e campo se unem e formam a Confederação dos Oito Cantões, no
século XV.3

Pode-se perceber facilmente que os acontecimentos históricos que precedem


a Reforma, na Suíça, são responsáveis pela promulgação de ideais libertacionistas
que vão estar presentes de maneira muito forte na chamada reforma calvinista, em
Genebra. Segundo Silvestre, “para Calvino, era preciso reconhecer que a abertura
de espírito e o amor à liberdade, trazidos pelo comércio e pelas trocas humanas,
contribuíram para introduzir a Reforma em Genebra...”4

Como não podia deixar de acontecer, todo esse clima de revolução, de


liberdade, atinge também a esfera religiosa. Na Suíça, o primeiro a dar impulso à
Reforma foi Ulrich Zwínglio, mais propriamente na cidade de Zurique, e mais tarde o
movimento chega a Genebra, por meio de Guillaume Farel no ano de 1532.5
Portanto, embora Calvino seja reconhecido, e com muita propriedade, como o
reformador de Genebra, a reforma genebrina é anterior a ele. Alguns fatos históricos
apontam nesta direção e demonstram que Genebra não fica imune ao vírus
revolucionário que desencadeia uma série de transformações nas esferas social,
política, econômica e religiosa na Suíça.

Na Suíça, os reformadores estavam preocupados em atacar, com a


mensagem reformada, os problemas sociais gritantes existentes na sociedade. Com
isso, atraem os envolvidos nos movimentos sociais populares, mas também
provocam a reação dos conservadores. Assim, segundo Biéler, “a nobreza e o

2
Cf. BIÉLER, André. Op. cit., p. 69.
3
Idem.
4
SILVESTRE, Armando Araújo. O direito de resistir ao Estado no pensamento de João Calvino, p. 46
–Tese.
5
Cf. GAMBLE, Richard C. Suíça: Triunfo e Declínio. In: REID STANFORD, W. Calvino e sua
Influência no Mundo Ocidental, p. 63.
12

campesinato permanecem católicos, enquanto os burgueses e as chamadas


camadas populares das cidades adotam a nova fé”.6

Desde o século XIII os negócios da cidade de Genebra estavam sob a direção


do ducado de Sabóia, que tinha como propriedade inúmeras áreas rurais e algumas
vilas ao seu redor. Inclusive, segundo MacGrath, Sabóia possuía “o direito de
escolher o indivíduo responsável pela manutenção da justiça civil e criminal, que era
aplicada aos leigos dentro da cidade”.7

Durante muito tempo, a cidade de Genebra fora uma potência econômica,


como resultado de sua política de produção, serviço e exportação. Nos séculos XIV
e XV, segundo observa Silvestre,

Genebra conhecera, um dos mais regulares e fortes crescimentos de


sua história. [...] Esta época foi caracterizada pelo sucesso de suas
feiras, [...] que [...] veio a torna-la uma das principais praças
financeiras e comerciais da Europa.8

Mas, a capital financeira da Europa vai enfrentar o declínio. O


enfraquecimento das “feiras”, decorrente da proibição, imposta pelo duque de
Sabóia e por Luiz XI, aos franceses de participarem destas, faz com que Genebra
enfrente uma crise econômica e política sem precedentes.

Embora as feiras continuassem a existir em Genebra, já não possuíam nem o


esplendor nem a freqüência de outrora, e o resultado disso foi a incapacidade da
cidade de se auto-sustentar economicamente. Com a alta nos preços, derivada do
livre comércio de metais preciosos9, a chegada de refugiados políticos e religiosos
advindo das nações vizinhas e a conseqüente carência de alimentos bem como de

6
BIÉLER, André. Op. Cit., p. 84-85.
7
MAcGRATH, Alister. A Vida de João Calvino, p. 107.
8
SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., pp. 26-27.
9
Cf. GAMBLE, Richard C. op. cit., p. 41.
13

seguidos anos de epidemias, provocaram uma situação de extrema pobreza na


Genebra que terminava o século XV.10

Na esfera política, a influência do ducado de Sabóia sobre Genebra era tão


grande que até sua diocese fora conquistada, tendo como resultado a diminuição
gradativa do poder do líder espiritual e temporal da cidade de Genebra, o Bispo.11
Na sua ausência, o poder era exercido “pelo conselho episcopal e pela assembléia
de trinta e dois cânones da catedral”.12

Com o domínio do ducado de Sabóia, o episcopado de Genebra passa para


as mãos de homens ligados diretamente a este, que tinha a prerrogativa de nomear
o bispo. Resultado disso é a nomeação de João de Sabóia, em 1513.13 Assim,
segundo Durant, “o outrora excelente governo episcopal e a moral do clero sob sua
jurisdição foram de mal a pior”.14

Neste tempo, Genebra vivia uma situação de acentuada imoralidade, inclusive


contando com a participação ativa de seus clérigos.15 A este respeito aponta
Ferreira, ao expor com bastante clareza a situação da cidade:

Havia bebedeira, discussões, adultérios, etc... A prostituição era


oficializada, sancionada pelas autoridades. Os prostíbulos eram
supervisionados por uma mulher eleita pelo concílio, que recebeu do
povo o nome de “rainha do bordel”.16

Quando se dá o início do século XVI, o poder e a influência do ducado de


Sabóia estão em declínio, e duas facções iniciam um confronto em Genebra, a
saber, os mammelus17 e os Eiguenots18. Na discussão sobre apoiar Sabóia ou a

10
Cf. SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., pp. 47-50.
11
DURAN, Will. A História da Civilização VI – A Reforma, p. 390.
12
MAcGRATH, Alister. Op. cit., p. 108.
13
IRWIN, C. H. Juan Calvino: su vida y su obra, p. 25.
14
DURAN, Will. Op. cit., p. 390.
15
ESTRELLO, Francisco E. Breve Historia de la Reforma, p. 38.
16
FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: vida, influência e teologia, p. 78-79.
17
SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 12. “Referência negativa aos mamelucos orientais que
preferiam ser escravos ou servos a viver em liberdade”.
14

Confederação Suíça19, estes últimos, favoráveis à Confederação Suíça, desafiavam


incessantemente a autoridade do Duque de Sabóia, Charles III. Segundo MacGrath,

Os mercadores da cidade [...] defendiam um estreitamento dos laços


com a Confederação Suíça. Dentro da cidade começou a surgir uma
tensão, à medida que as facções se formavam. Oitenta e seis
cidadãos de Genebra, [...] participaram de uma jornada até a cidade
suíça de Friburgo, onde foram declarados cidadãos, em 7 de janeiro
de 1519. No mês seguinte, a cidade de Genebra, agindo sem
autorização de Sabóia, entrou em aliança com Friburgo. A pressão
de Sabóia resultou na anulação desse combourgeoisie, em abril
daquele ano; quatro meses mais tarde, o principal ativista do
combourgeoisie foi executado em praça pública. Embora fisicamente
reprimida, porém, a facção pró-Suíça não demorou a se reorganizar.
As atas do Conselho Municipal, no ano de 1519, registram como
aguynos o nome dado a esse grupo; as atas de 1520 o identificam
como eyguenots.20

Para dar um fim a este confronto, o Bispo Pierre de La Baume faz aliança
com Charles III, Duque de Sabóia que envia tropas para atacar Genebra, em 1535.
Os magistrados denunciam o Bispo a Roma, que ignora a denúncia. Em
contrapartida, Genebra funda sua própria Casa da Moeda, proclamando, assim, sua
independência frente à hierarquia romana.21

Mas, a liderança política genebrina não aceitou o domínio imposto pelo Duque
de Sabóia, e para refuta-lo, faz aliança com Berna e Friburgo optando assim, pela
Confederação Suíça. Esta opção dá a Genebra grande impulso no seu movimento
pela independência, atraindo para a cidade muitos reformados, entre eles, para citar

18
MAcGRATH, Alister. Op. Cit., p. 109. Segundo o autor, “a palavra suíça-alemã para “confederado”,
Eidgnoss, provou-se praticamente impossível de ser pronunciada no dialeto de Genebra (...) A
expressão eiguenot ou eyguenot representa a tentativa feita pelos moradores de Genebra para
reproduzir a palavra usada para “confederado” (Eidgnoss).
19
“Em julho de 1291, os cantões de Uri, Unterwalden e Schwyz uniram-se contra os Habsburgos
numa aliança que lhes garantia ajuda mútua perpétua e tornou-se o núcleo da Confederação Suíça.
Novos aliados logo se uniram à confederação: Lucerna em 1332, Zurique em 1351, Glarus e Zug no
ano seguinte e Berna em 1353”.
20
MAcGRATH, Alister. Op. Cit., p. 108.
21
Cf. GAMBLE, Richard C. Op. cit., p. 64.
15

alguns dos que mais se destacaram, Claude Bernard, Étienne Dada, Pierre e Robert
Vandel, Ami Perrin.22

Embora, em Genebra, Igreja e Estado se confundiam, o que se percebe do


exposto até aqui, é que Genebra, através do seu magistrado, aniquilou o poder do
Bispo e do Duque sem a influência do clero.23 Este fato denuncia que, na Genebra
do século XVI, antes de ocorrer uma reforma religiosa, houve uma reforma política
ou civil.24 Nas palavras de William Martin, “a Reforma não foi engendrada pelos
Reformadores; nasceu ela fora deles e se lhes impôs”.25

Estes acontecimentos começam a abalar a esfera religiosa a partir do


momento em que o Conselho Municipal de Zurique aderiu aos princípios
fundamentais da reforma zwingliana. Segundo argumenta MacGrath,

Isso foi um marco no curso da Reforma Suíça, pelo fato de haver


estabelecido um princípio crucial: as cidades independentes iriam
decidir se adotariam ou não a Reforma, após ouvirem os argumentos
contrários e favoráveis a ela e, então, procederem a uma votação.26

Desse modo, um debate entre favoráveis e contrários à fé reformada vai


ocorrer em Berna. Juntando-se a este acontecimento, outros, tais como a introdução
das obras de Lutero através da chegada à cidade de mercadores alemães e a
propagação da fé reformada através das pregações de Guillaume Farel, faz com que
Genebra venha a ceder, gradativamente, espaço às novas idéias reformistas.

Com relação ao clima revolucionário na qual estava embebida a Suíça do


século XVI e do qual Genebra não ficaria imune, as convicções de Farel, que já
“havia tomado parte no movimento reformista em Meaux [...] e pregado em muitas

22
GAMBLE, Richard C. Op. cit., p. 13. Vide nota de rodapé nº 7 deste capítulo.
23
Cf. SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 16.
24
Cf. MAcGRATH, Alister. Op. Cit., p. 104.
25
apud BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 16.
26
MAcGRATH, Alister. Op. Cit., p. 110.
16

áreas ao redor de Berna”,27 são uma denúncia deste fato. Durant afirma que antes
de sua chegada a Genebra, esteve ele

Sob a influência de Jacques Lefèvre d’Étaples, cuja tradução e


explicação da Bíblia transformaram-lhe a ortodoxia; pois, não pode
descobrir nas Escrituras vestígio algum de papas, bispos,
indulgências, purgatórios, nem dos sete sacramentos, missa, celibato
do clero, adoração da Virgem Maria ou de santos. Desdenhando a
ordenação, seguiu viagem como pregador independente, vagueando
de uma cidade a outra, na França e na Suíça.28

Por causa de seu estilo agressivo e por não poupar, nas suas pregações, de
seus vícios o clero, ficou conhecido, segundo Ferreira, como o “azorrague dos
padres”.29

Como resultado dos acontecimentos precedentes, um culto reformado é


celebrado publicamente em 10 de abril de 1533, por Garin Muète, fato cujo corolário
foi a irrupção de “uma revolta na qual um cônego foi morto”.30 Pierre de la Baume,
Bispo de Genebra, manda prender os líderes da revolta, que são em seguida
libertados pelo Magistrado, que “era incumbido da defesa da cidade, da guarda e
execução dos prisioneiros, dispondo de direito de justiça restrito”,31 sob a alegação
de que a corte episcopal não tinha jurisdição em caso de assassinato.32 O Bispo La
Baume, que já não era bem visto pelos genebrinos, foi obrigado a deixar a cidade.33

No ano seguinte, 1534, Genebra promove um debate público entre Farel,


incubido de defender os princípios da Reforma, e o dominicano Guy Furbity, doutor
em Teologia, que iria defender a forma católica do cristianismo, o que leva Friburgo,
que era predominantemente católica, a protestar contra a permanência do

27
WALLACE, Ronald. Op. cit., p. 21.
28
DURANT, Will. Op. cit., p. 391.
29
FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: vida, influência e teologia, p. 77.
30
GAMBLE, Richard C. Op. cit., p. 63.
31
SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 15. Cf. nota de rodapé nº 13.
32
Idem. Ibidem, p. 14.
33
Cf. REID, W. Stanford. A Propagação do Calvinismo no Século XVI, p. 45.
17

reformador em Genebra, bem como a romper, em 15 de maio, sua aliança com a


cidade. Uma conseqüência peculiar destes debates é levantada por Wallace:

O clero romano e as comunidades monásticas, ao longo de todo o


conflito, quando eram desafiadas para discussão pública, foram
incapazes de responder, não conseguindo oferecer nenhuma defesa
razoável para suas posições teológicas ou para suas superstições,
sendo que, gradativamente, outras instituições religiosas e igrejas
tornaram-se vazias.34

Este fato coloca em evidência a rápida difusão da Reforma na Suíça do


século XVI, e de modo mais específico a adesão em larga escala por parte dos
moradores de Genebra.

No dia 8 de agosto de 1535, Guillaume Farel, que havia dado início às suas
pregações em Genebra em 153235, obtém permissão para pregar pela primeira vez
na Catedral de São Pedro e, dois dias depois, faz o mesmo perante o Conselho da
cidade. O resultado, segundo Ferreira, foi a explosão da “violência por parte da
massa popular, que invadiu a catedral de São Pedro e praticou atos de iconoclastia
e vandalismo”.36 Este tipo de violência se deve, obviamente, ao conteúdo anti-
católico das prédicas de Farel, que denunciava “o papa como Anticristo, a missa
como sacrilégio e as imagens de igreja como ídolos que deviam ser destruídos”.37

Ao final das controvérsias, com a derrota da ala católica, e após as pregações


de Farel, o Conselho Municipal abole a missa, em 10 de agosto de 1535,
culminando na excomunhão de toda a população de Genebra por parte do seu
Bispo, em 22 de agosto.38 Por esta ocasião, Berna permanece como a única aliada
da cidade.

34
WALLACE, Ronald. Op. Cit., p. 21.
35
Cf. DURANT, Will. Op. cit., p. 391.
36
FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 76.
37
DURANT, Will. Op. cit., p. 391.
38
Cf. MAcGRATH, Alister. Op. Cit., p. 112.
18

Como os ataques anteriores a Genebra haviam fracassado, o Duque de


Sabóia novamente investe contra a cidade, sitiando-a, em janeiro de 1536, mas
Berna vem em socorro e liberta Genebra. Segundo McGrath,

Genebra teria sido totalmente devastada por essa ofensiva, não


fosse a aliança militar feita com a cidade de Berna, a qual era adepta
do evangelicalismo desde o final da década de 1520. [...] Como
conseqüência, a pressão externa para preservar o catolicismo foi
mais do que contrabalançada. A Reforma poderia prosseguir.39

Guillaume Farel, que já havia pregado na Catedral de São Pedro e perante o


conselho em 1535, recebe, então, autorização deste para pregar publicamente, em
10 de março de 1536, onde conclama os cidadãos genebrinos a viverem segundo os
preceitos do Evangelho.40

Nas suas prédicas, Farel pressionava o Conselho a adotar definitivamente a


fé reformada. Com a falta de argumentos dos clérigos católicos e com a adesão
cada vez mais crescente dos moradores de Genebra à Reforma, o Conselho decide
então acolher a proposta de Farel, reiterando parte do que fizera no ano anterior.
Segundo Durant,

Em 21 de maio de 1536, o Pequeno Conselho decretou a abolição da


missa e a remoção de todas as imagens e relíquias das igrejas. As
propriedades eclesiásticas foram empregadas pelos protestantes
para fins de culto religioso, instituições de caridade e ensino; o ensino
tornou-se compulsório e gratuito, e uma severa disciplina moral ficou
consolidada em lei.41

39
MAcGRATH, Alister. Op. Cit., p. 105.
40
Cf. SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 14.
41
DURAN, Will. Op. cit., p. 391. Também Cf. IRWIN, C. H. Op. Cit., p.29; LESSA, Vicente Themudo.
Calvino: sua vida e sua obra, p. 70. McGRATH data o mesmo acontecimento em 25 de maio. Cf.
McGRATH, A. Op. cit., p. 115.
19

Genebra, enfim, adota a fé reformada. Mas, apesar de a adesão à fé


reformada ter produzido importantes avanços na sociedade genebrina, bem como,
nas palavras de Ferreira, “favorecer a causa evangélica”42, esta estava longe de se
tornar protestante, segundo o entendimento dos reformadores.

O que se percebe do exposto até aqui é a ocorrência de importantes


mudanças ocorridas em Genebra mesmo antes da chegada de João Calvino, bem
como a íntima relação entre as duas principais instituições governamentais, a Igreja
e o Estado, o que é comum no século XVI. Biéler assim a explica, com relação a
Genebra:

Estão elas nas mãos de três autoridades: o bispo, o magistrado e os


burgueses. Ora, o bispo, chefe espiritual da Igreja, é ao mesmo
tempo o “príncipe de Genebra”. É ele, teoricamente, o soberano da
cidade, debaixo da suzerania do Imperador, que confia ao duque de
Sabóia o vicariado imperial; [...] O magistrado é incumbido da defesa
da cidade, da guarda e da execução de prisioneiros; dispõe ele de
direito de justiça restrito. Os Conselhos [formado pelos burgueses]
são encarregados das questões criminais importantes concernentes
aos leigos; têm a missão de velar pelo abastecimento da cidade, de
gerir-lhe as finanças, [...] manter a boa ordem, [...] suas fortificações e
de salvaguardar os seus direitos garantidos pelas “Franquias”.43

Este tipo de relação entre a Igreja e os magistrados, na direção da cidade de


Genebra, terá como resultado a proeminência do Estado sobre a Igreja. Calvino irá
criticar ininterruptamente esta gerência do Estado em assuntos que, segundo ele, é
de incumbência restrita da Igreja. Esta crítica será objeto de análise um pouco
adiante.

O levantamento do contexto histórico e social de Genebra, onde se daria a


reforma calvinista no século XVI completa-se, nesta pesquisa, com a compreensão

42
FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 77.
43
BIÉLER, André. Op. Cit., p. 86-87.
20

da sua organização política e administrativa, para se obter com clareza um melhor


entendimento da relação entre Estado e Igreja, tendo em vista que é da crítica desta
inter-relação que Calvino irá desenvolver sua doutrina teológica e social.

A começar pela população genebrina, esta era formada por cidadãos, ou seja,
pessoas nascidas ou batizadas por pais nascidos em Genebra; burgueses, ou
pessoas não nascidas em Genebra mas que adquiriam esse título, que era pago,
após longo período de residência na cidade; habitantes, isto é, estrangeiros que
residiam em Genebra, sujeitos às mesmas leis mas sem direito a voto e a
participação em cargos públicos.44

Com relação à sua administração, a cidade de Genebra era administrada por


quatro tipos de conselhos: Pequeno Conselho, Conselho dos Sessenta, Conselho
dos Duzentos e Conselho Geral, sendo que o de maior importância era o Pequeno
Conselho. Era formado pelos magistrados ou ex-magistrados e, coletivamente, pelos
Senhores de Genebra ou Síndicos, título de honra conferido pelo Conselho dos
Duzentos aos cidadãos.45

Cabia ao Pequeno Conselho julgar as causas criminais e civis, além da


eleição dos membros do Conselho dos Duzentos e nomeação dos Diáconos, que
eram responsáveis pelo funcionamento dos hospitais e pela assistência aos pobres.
Seus membros eram eleitos anualmente e não recebiam salários. Formado por vinte
e cinco homens que fossem cidadãos de Genebra e mais quatro síndicos, tornou-se
o verdadeiro governo municipal de Genebra.46

O Conselho dos Sessenta, que fora criado, segundo Lessa, “em


conseqüência da aliança com Berna e Friburgo”,47 era uma relíquia do século XIV e
de caráter puramente diplomático.

O Conselho dos Duzentos existia em Genebra desde 1527, sendo criado,


conforme Mcgrath, “como um tipo de concessão, permitindo que o amplo caráter
representativo do Conseil General fosse mantido sem que houvesse a
44
Cf. McGRATH, A. Op. cit., p. 130.
45
Idem, pp. 130-131.
46
Cf. DURAN, Will. Op. cit., p. 390; LESSA, Vicente Themudo. Op. Cit., p. 67. McGRATH, talvez por
um equívoco, diz que o número de cidadãos que compõem o Pequeno Conselho é de “vinte e
quatro”. Op. Cit., p. 131.
47
LESSA, Vicente Themudo. Op. Cit., p. 67.
21

inconveniência da participação em imensas assembléias de indivíduos”,48 e cabia-


lhe eleger os ex-magistrados como membros do Pequeno Conselho, aprovar as
propostas de mudanças na lei, servindo como corte de apelação nas causas
criminais.

O Conselho Geral ou Assembléia Geral era formada por “todos os cidadãos


de Genebra, com propriedade ou título de honra conferido pelo Conselho dos 200,
por alguma razão especial”.49

Toda esta organização político-administrativa já existia antes da chegada de


Calvino a Genebra e demonstra, segundo Silvestre,

que toda cidade é multiforme: elas mostram suas diferenças,


produzem a desigualdade, mesclam de um reduzido espaço
populações diferenciadas pela fortuna, cultura, origem, e que se
singularizam também por seus comportamentos demográficos
socialmente diferenciados.50

No caso de Genebra, a estratificação social denuncia a existência de


abastados e miseráveis. As medidas tomadas para atenuar a situação de pobreza
de muitos que viviam na cidade denunciam este fato. Segundo Biéler,

em 1535, é fundado o Hospital Geral, destinado a dar assistência aos


enfermos, aos pobres, aos órfãos e aos idosos. Depois, em
consideração à penúria de víveres, a pobreza de uma parte da
população e a avareza de outra, medidas de ordem econômica são
tomadas imediatamente contra o monopólio e a especulação [...]. O
Conselho fixa o preço do pão, do vinho e da carne.51

48
McGRATH, A. Op. cit., pp. 130-131. Ferreira diverge desta informação e afirma que o “Conselho
dos Duzentos” fora criado à imitação do governo de Berna, em 1526. Cf. FERREIRA, Wilson Castro.
Op. Cit., p. 76.
49
Idem, Ibidem, pp. 130-131.
50
SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 31.
51
BIÉLER, André. Op. Cit., p. 222.
22

Um outro fato que corrobora a existência de abastados e miseráveis em


Genebra, por ocasião da reforma calvinista, é a instituição, por parte de Calvino, do
que ele denomina a quarta ordem do governo eclesiástico, a saber, os diáconos.
Segundo Calvino, nas suas Ordenanças, comentando sobre as funções dos
diáconos,

deles sempre houve duas espécies na Igreja Antiga: uns são


comissionados para receber, dispensar e conservar os bens dos
pobres, tanto esmolas diárias quanto posses, rendimentos e
pensões; outros para tratar e pensar os doentes e administrar a
porção dos pobres, costume esse que mantemos ainda no
presente.52

Todos estes acontecimentos ocorridos em Genebra antes da chegada de


Calvino, corroboram, como já foi salientado, a íntima relação entre Estado e Igreja,
culminando, logicamente, com a subordinação desta àquele, subordinação esta que
Calvino irá combater durante sua vida, como cristão, humanista e pregador. A crítica
de Calvino a esta inter-relação, com base nas novas idéias engendradas pela
Reforma, vai culminar no desenvolvimento de sua “Doutrina Teológica e Social”.

2. A “Doutrina Teológica e Social” de Calvino

Discorrer sobre o desenvolvimento do humanismo social de João Calvino


põe-se como uma tarefa instigante, visto que tal desenvolvimento ocorrerá dentro de
uma relação dialética entre Calvino e o contexto onde está inserido, a saber, a
cidade de Genebra. Instigante, também, pelo fato do desenvolvimento do
humanismo social de Calvino evidenciar-se como processo pedagógico, o que será
proposto no terceiro capítulo deste trabalho.
52
apud BIÉLER, André. Op. Cit., p. 223. Cf. nota nº 545.
23

Talvez se faça necessária a compreensão, mesmo em rápidas pinceladas, do


que vem a ser o Humanismo, mesmo porque, compreendê-lo revela sua íntima
relação com a Reforma Protestante, com a reforma calvinista, e com o
desenvolvimento da doutrina teológica e social de Calvino, ou seu humanismo
social.

2.1. O humanismo

Em seus primórdios, o Humanismo queria se referir a um processo


pedagógico que se dava através do aprendizado do grego e do latim clássicos. De
acordo com McGrath, o termo “foi inicialmente utilizado pelo educador alemão F. J.
Niethammer, em 1808”.53

O Humanismo se caracterizava pelo entusiástico retorno às fontes. Os


clássicos gregos, como Xenofonte, Diodoro Sículo, Homero e Tucídides eram
estudados e pesquisados a fundo, formando-se verdadeiros focos culturais.
Segundo Daniel-Rops, “o movimento recrutara adeptos em todas as classes:
magistrados, professores, clérigos e burgueses ricos”.54

Pode-se perceber a importância do Humanismo dentro das profundas


mudanças ocorridas nos séculos XV e XVI na síntese que McGrath faz do
movimento, a saber,

o Humanismo estava interessado em como as idéias eram


transmitidas e expressadas, em vez de se preocupar com a precisa
natureza dessas próprias idéias. Um humanista poderia ser um
adepto de Platão ou de Aristóteles – mas em ambos os casos as
idéias envolvidas eram derivadas da Antiguidade. Um humanista
poderia ser um cético ou um religioso – mas ambas as atitudes
poderiam ser defendidas a partir da Antiguidade. A diversidade de
idéias, que é tão característica do Humanismo renascentista, é
53
McGRATH, A. Op. cit., p. 70.
54
DANIEL-ROPS. A Igreja da Renascença e da Reforma – I. A reforma protestante, p. 346.
24

baseada em um consenso geral a respeito de como essas idéias


devem se originar e ser expressas.55

Todo esse conjunto de novos saberes, somado à destreza de seus


anunciadores, encontrará melhor guarida na Europa Protestante, do que na Católica,
devido àquela estar mais banhada nos rios do escolasticismo.56 Segundo Chaunu, o
Humanismo tem seu berço na Itália do século XIV, e é introduzido na França por
Guilherme Fichet, que juntamente com Robert Gaguin, serão “os verdadeiros
pioneiros do italianismo em Paris”.57

O Humanismo vai ser difundido na Europa, segundo McGrath, por meio de


três canais, a saber, o ingresso de estudantes do Norte da Itália nas Universidades
do Sul, que retornavam com as novas doutrinas; através das inúmeras
correspondências enviadas ao exterior pelos humanistas italianos; e através da
imprensa, que possibilitou o aumento do montante de livros que circulavam pela
Europa, disseminando as novas idéias humanistas.58

Contudo, o humanismo italiano não possui características de rejeição. Já mais


revolucionário é o de Pádua e o do Reno, descrito por Chaunu como “um
humanismo [...] tardio e poderoso, contra uma fortaleza universitária relativamente
recente, intransigente”.59

O Humanismo, de certa forma, lança as bases para a Reforma Protestante,


tendo em vista que seu espírito engendra reformas. Com relação à esfera religiosa,
a Igreja é arrastada pelo Humanismo a um retorno às línguas originais: o hebraico, o
grego e o latim. Segundo pondera McGrath, “em vez de lidar com a confusão
conceitual e a deselegância literária dos comentários bíblicos medievais, era preciso
retornar aos próprios textos bíblicos e redescobrir seu frescor e vitalidade”.60

55
McGRATH, A. Op. cit., p. 72. Grifos do autor.
56
Cf. CHAUNU, Pierre. O Tempo das Reformas (1250-1550): História religiosa e sistema de
civilização. – II. A reforma protestante, p. 55.
57
CHAUNU, Pierre. Op. cit., p. 56.
58
Cf. McGRATH, A. Op. cit., p. 72-73.
59
Idem, p. 56-57.
60
Idem, Ibidem, p. 73.
25

Assim, forma-se uma sincronia entre as obras de cunho humanístico e a


crescente difusão da Bíblia, que passam a ser publicadas em língua vernácula,
graças à imprensa. O Humanismo alcança o altar, questionando-o como um
apóstata e sacrílego. Em contraposição a prática ritualística da Igreja, as idéias
humanistas disparam:

a palavra de Deus comanda uma religião de amor, uma obediência


em espírito e em verdade. A maior parte dos gestos são inúteis (sic),
quando não são mesmo sacrílegos. O humanismo conduz a um
evangelismo simplificador.61

Para além das qualidades do Humanismo, uma questão se lhe sobressai


quando se trata de utiliza-lo como ferramenta crítica da Igreja: o seu exacerbado
antropocentrismo, colocando o ser humano como o centro de todas as coisas.
Segundo Reid,

O humanismo renascentista, com sua ênfase sobre o indivíduo,


particularmente sobre o homem de “virtu”, deu uma força adicional ao
ponto de vista de que o indivíduo é a figura central de qualquer
conceito a respeito do homem e de suas atividades.62

Na Suíça, especialmente na cidade de Genebra, um homem vai engendrar


um humanismo que salta das páginas da Bíblia, como resultado da aplicação das
idéias humanistas na leitura desta. Desse modo, lançando mão de princípios
evangélicos fundamentais, João Calvino vai criticar duramente a hostilidade do
Estado, sua posição de mantenedor do status quo, favorecendo as camadas mais
abastadas em detrimento de uma grande multidão de alijados do sistema.

61
CHAUNU, Pierre. Op. Cit., p. 59.
62
REID STANFORD, W. A Propagação do Calvinismo no Século XVI. In: REID STANFORD, W.
Calvino e sua Influência no Mundo Ocidental, p. 38.
26

Assim, ao direcionar sua crítica ao Estado, Calvino elabora sua doutrina


teológica e social, denominada por Biéler de “O Humanismo Social de Calvino”.63 O
mesmo autor diz que este humanismo social pode ser entendido como “um
humanismo teológico que inclui a um tempo o estudo do homem e da sociedade
através do duplo conhecimento do homem pelo homem, de um lado, e do homem
por Deus, de outro”.64

Porque se pode afirmar que Calvino era um humanista? E ainda mais: que
seu humanismo era social e teológico? Para responder as perguntas acima, faz-se
necessário uma rápida análise da formação recebida pelo “reformador de Genebra”,
bem como da sua crítica à relação entre Igreja e Estado em Genebra.

2.2. Trajetória biográfica de Calvino humanista

João Calvino nasce “às doze horas e vinte e sete minutos do dia 10 de julho
de 1509, [...] filho de Gerard Cauvin e Jeanne de La Franc”65, na cidade de Noyon,
na província de Picardia, departamento de Oise. Era uma cidade eclesiástica, ou
seja, estava sob a direção do bispado.66 Gerard Cauvin se estabelece em Noyon no
ano de 1481, ocupando, nesta cidade, os cargos de “escrivão do governo, [...]
solicitador da corte eclesiástica, agente fiscal da região, secretário do bispo e
procurador do capítulo”.67

Calvino faz o primário e o secundário no Colégio dos Capetos68 e,


posteriormente, é encaminhado pelo pai, secretário do bispo, para exercer o
sacerdócio, por volta dos 12 anos. Em 1521, começa a receber uma capelania69, o

63
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino. – Trad. de A Sapsezian – São Paulo: Edições
Oikumene, 1970.
64
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 13.
65
FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 38.
66
Cf. CHAUNU, Pierre. Op. Cit., p. 201; DURAN, Will. Op. cit., p. 383; LESSA, Vicente Themudo. Op.
Cit., p. 19; ESTRELLO, Francisco E. Breve Historia de La Reforma, p. 34.
67
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 113. Cf. IRWIN, C. H. op. Cit., p.
10.
68
FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 37.
69
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 114. “Benefício ou rendimento
de uma função eclesiástica”. Cf. nota 211; também: ESTRELLO, Francisco E. Op. Cit., p. 34; IRWIN,
C. H. Op. Cit., p. 10.
27

que irá garantir-lhe o sustento dos estudos. Assim, aos 14 anos é enviado a Paris,
em 1523, onde estuda durante cinco anos nos colégios de La Marche e de
Montaigu, da Faculdade de Artes da Universidade de Paris.

No colégio de Montaigu, Calvino irá receber uma excessiva educação


ortodoxa católica,70 que traz no seu bojo uma grande influência do Humanismo.
Após este período de estudos em Paris, em 1528, contando então com 19 anos71,
deixa a cidade e vai para Orleans, onde termina seus estudos filosóficos e em 1529
é mestre em Artes.

Embora a Europa esteja impregnada das novas idéias advindas da Reforma,


Calvino está cada vez mais convicto das suas posições humanistas, um legado de
seus mestres de Montaigu e de seus amigos de Orléans. Em 1529 vai estudar
Direito na Universidade de Bourges, e é licenciado em leis em 1532.72

Com a morte do pai em 153173, se sente desobrigado a seguir a carreira de


jurista, e apesar de ser licenciado em Leis, segue para Paris onde, segundo Ferreira,
“podia agora dedicar-se à carreira de sua preferência. O seu pendor natural era para
letras clássicas, seguindo a linha humanista da época”.74

Em 4 de abril de 1532 publica seu primeiro livro, um comentário à DE


CLEMENTIA, de Sêneca.75 Esta obra vai lhe trazer rápido prestígio entre os
humanistas. Nas palavras de Biéler, esta publicação

de imediato granjeia a Calvino grande autoridade no mundo


humanista. Mostra-nos ela, [...] a que ponto o futuro reformador está
ainda fielmente ligado, nesta época, ao pensamento em honra entre
os humanistas católicos.76

70
Cf. IRWIN, C. H. Op. Cit., p. 10; DURANT, Will. Op. cit., p. 383; FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit.,
p. 34.
71
Cf. FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 43.
72
DURANT data sua formação em 1531. Cf. DURAN, Will. Op. cit., p. 384.
73
Cf. CHAUNU, Pierre. Op. Cit., p. 203.
74
FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 63.
75
Cf. BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, pp. 113 – 116; CHAUNU,
Pierre. Op. Cit., p. 203; FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 48.
76
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 116.
28

Subitamente, após a publicação do comentário a DE CLEMENTIA, de


Sêneca, Calvino aparece preocupado com as novas doutrinas religiosas em Paris.
Suspeito de haver inspirado um discurso reformista realizado por seu amigo, Nicolas
Cop,77 reitor da Universidade de Paris, Calvino é perseguido, juntamente com os
demais envolvidos, mas escapa, deixando Paris em 153378 e vai se refugiar em
Saintongue, na casa de um amigo, “Louis du Tillet, o então cânone de Augoulême e
reitor de Claix”79, onde começa a redigir sua grande obra, as Institutas, ou Instituição
da Religião Cristã.

De Augoulême, Calvino “vai para Nerac na Gascônia, refúgio de muitos


protestantes que a rainha de Navarra acolhia”80, seguindo, posteriormente, viagem
para Noyon e daí para Paris.

Provavelmente, ao redigir as Institutas, Calvino já havia decidido romper com


o catolicismo,81 o que será posteriormente sinalizado com a renúncia da capelania82
em maio de 1534, quando da sua estada em Noyon, possivelmente também revela
sua conversão ao cristianismo evangélico reformado. Nas palavras de Biéler,
Calvino, nesta época,

não é mais o humanista conformista que teme os remoinhos da


política e recusa comprometer-se com aqueles que são qualificados
como revolucionários; bem pelo contrário, é o cristão que, sem fugir
aos riscos intervém, com todas as suas forças, contra os grandes
deste mundo para restabelecer a justiça e a verdade.83

77
Cf. DURANT, Will. Op. cit., p. 384; ESTRELLO, Francisco E. Op. Cit., p. 36; IRWIN, C. H. Op. Cit.,
p. 15; McGRATH, A. Op. cit., p. 83-85. Quanto ao fato de Calvino ser o autor do “discurso”,
McGRATH vai oferecer, nas páginas citadas, provas históricas favoráveis e contrárias.
78
Cf. McGRATH, A. Op. cit., p. 85.
79
McGRATH, A. Op. cit., p. 91.
80
FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 64.
81
Cf. BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, 121-122.
82
Vide nota nº 51 deste capítulo. Também Cf. DURAN, Will. Op. cit., p. 384; CHAUNU, Pierre. Op.
Cit., p. 204; IRWIN, C. H. Op. Cit., p. 16.
83
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 124.
29

Segundo Daniel-Rops, Calvino “deslocou-se incessantemente durante todo o


ano de 1534, umas vezes voltando a Paris”.84 Neste mesmo ano deixa
definitivamente a França, passando por Estrasburgo e chegando provavelmente a
Basiléia em 1535. Em Basiléia, Calvino termina de redigir a sua obra prima, as
Institutas, em 23 de agosto deste mesmo ano.85

Após uma rápida passagem por Ferrara, na Itália, “onde os protestantes se


abrigavam sob a proteção da Duquesa Renée de Ferrara”,86 retornou a Noyon, em
junho de 1536, para resolver pendências relativas à herança de família,
aproveitando-se do “Edito de Coucy, de 16 de julho de 1535, [que] deu permissão
aos exilados religiosos para regressarem à França”.87

Ao sair de Noyon, acompanhado de seus irmãos Antoine e Marie, segue para


Estrasburgo, em 15 de julho de 153688, para ali, possivelmente, residir. Mas, por
causa das batalhas entre “o Imperador Carlos V e o rei Francisco I da França”89, a
estrada que dava acesso à cidade estava bloqueada, forçando-os a passar por
Genebra.

Após esta sucinta divagação sobre a vida do reformador de Genebra, sua


educação familiar e formação acadêmica, pode-se agora discorrer sobre a crítica
que Calvino faz ao Estado em Genebra, compreender os seus objetivos, bem como
sua relação com a Igreja, visando um melhor entendimento do humanismo social de
Calvino.

2.3. A crítica de Calvino ao Estado

Para Calvino, Igreja e Estado eram duas ordens que tinham a mesma origem
e objetivo: provinham de Deus e foram instituídas por ele para a promoção de seu

84
DANIEL-ROPS. Op. cit., p. 371.
85
Cf. McGRATH, A. Op. cit., p. 95; DANIEL-ROPS. Op. cit., p. 373.
86
McGRATH, A. Op. cit., p. 96; DANIEL-ROPS. Op. cit., p. 374; IRWIN, C. H. Op. Cit., p. 25;
FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 65.
87
McGRATH, A. Op. cit., p. 96-97.
88
Idem.
89
FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 70.
30

reino.90 Toda a sua crítica ao Estado91, e posteriormente à Igreja, está relaciona com
o que presencia em Genebra, quando da sua chegada em julho de 153692, e após
ser persuadido por Farel a permanecer e ajuda-lo a transformar Genebra numa
cidade evangélica.

Aceito o convite e recebido oficialmente pelo concílio, Calvino rapidamente


empreende esforços para a organização da cidade nos moldes protestantes.
Convoca uma reunião com toda a cidade para renúncia coletiva ao papado e
aceitação da fé reformada; propõe a aprovação individual do Catecismo e da
Confissão de Fé, sendo que ambas as tentativas não lograram o êxito esperado por
ele.93

Mas o que vai realmente contrariar Calvino e demonstrar a proeminência do


Estado sobre a Igreja é o que ocorre posteriormente. O Concílio, talvez com medo
do descontentamento do povo em relação às medidas propostas por Calvino,
resolve assumir a jurisdição em assuntos religiosos e morais. Calvino não aceita
tamanha jurisprudência do Estado sobre assuntos que, conforme pensava, caberia à
Igreja resolver.94

Um exemplo disso diz respeito ao direito de excomunhão. Esse direito estava


nas mãos dos magistrados95 cabendo à Igreja apenas o direito de admoestação.
Calvino vai lutar durante mais de quinze anos para conseguir que a excomunhão
fosse prerrogativa da Igreja, o que vai ocorrer apenas em 1555.96

Somando-se a estes aborrecimentos, nas eleições de 1538 há um


considerável aumento de pessoas no Concílio “favoráveis a uma atitude mais liberal
com respeito aos costumes”.97 A situação de Calvino e dos demais pastores de
Genebra se torna insuportável quando são obrigados pelo Concílio a ministrarem a
Santa Ceia a quem cometesse pecado considerado grave, desde que a pessoa se

90
CALVINO, Juan. Institución de La Religión Cristiana. Libro IV, Capítulo XX, pp. 1167-1170.
91
“Calvino usava as expressões príncipes, magistrados, ordem civil e ordem política no lugar do
termo Estado”. Cf. SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 153.
92
Cf. IRWIN, C. H. Op. Cit., p. 29.
93
FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 78.
94
Cf. FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 78.
95
Cf. SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 16.
96
Cf. FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 104-105.
97
FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 79.
31

considerasse apta, o que contrariava profundamente a concepção do sacramento


por parte dos reformadores.98

Para não comprometer as relações com Berna, os concílios de Genebra


aceitam a imposição da cidade aliada, no que diz respeito à adoção das práticas
religiosas bernenses.99 Assim, conseqüentemente, os pastores de Genebra são
obrigados pelo Conselho a seguirem os rituais religiosos de acordo com Berna.
Calvino e Farel se recusam a faze-lo e são proibidos de pregar.100 Desobedecem as
ordens e são expulsos de Genebra em 23 de abril de 1538.101

O que estes acontecimentos querem demonstrar? Uma diminuição


considerável e gradativa da autoridade dos pastores, e conseqüentemente, da
Igreja, e cada vez mais o aumento do poder do Estado em detrimento ao da Igreja,
na Genebra do século XVI.

Também, para além de demonstrar a diminuição gradativa da autoridade da


Igreja em Genebra, os fatos expostos acima vêm derrubar a tese de alguns
historiadores de que Calvino era um verdadeiro ditador e sua intenção era promover
uma verdadeira teocracia em Genebra.102

Calvino começa então sua crítica ao despotismo do Estado e à omissão da


Igreja pelo levantamento das suas obrigações. Segundo Calvino, nas suas Institutas,
as obrigações do Estado consistiam em

manter e conservar o culto divino externo, a doutrina e a religião em


sua pureza, o estado da Igreja em sua integridade, fazer-nos viver
com toda justiça, instruir-nos numa justiça social, colocar-nos em
comum acordo uns com os outros, manter e conservar a paz e a
tranqüilidade comuns.103

98
Idem, Ibidem, p. 80.
99
Cf. McGRATH, A. Op. cit., p. 105.
100
Cf. FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 82.
101
Cf. DURANT, Will. Op. cit., p. 392; IRWIN, C. H. op. cit., p. 34.
102
Cf. DURANT, Will. Op. cit., pp. 394-395. DURANT se refere ao clero de Genebra como “verdadeira
teocracia” e a Calvino como a “voz mais influente em Genebra”.
103
CALVINO, Juan. Op. Cit., Libro IV, Capítulo XX, p. 1169. “mantener y conservar el culto divino
externo, la doctrina y religión en su pureza, el estado de la Iglesia en su integridad, hacernos vivir con
32

O levantamento das obrigações do Estado, em sua crítica, parece evidenciar


o não cumprimento destas, no todo ou em partes, da parte deste. Mas, como se irá
constatar no desenvolvimento desta pesquisa, a crítica está direcionada muito mais
à dominação do Estado sobre a Igreja, ou dito de outra maneira, à intervenção do
Estado em áreas onde somente a Igreja, segundo Calvino, tinha autoridade.

Na relação entre Estado e Igreja, o primeiro possuía autoridade para manter a


pureza da doutrina cristã e a integridade da Igreja, mas não se pode confundir esta
autoridade sobre os cidadãos, com o fim de mantê-los em certa ordem e obediência
com a autoridade que somente o Espírito Santo tem sobre a Igreja. Assim Calvino,
comentando João 18,36 em Comentários ao Novo Testamento, diz:

O Reino de Cristo, sendo espiritual, deve ser fundamentado na


doutrina e no poder do Espírito. Dessa forma, sua edificação é
promovida, pois, nem as leis nem os editos dos homens, nem as
punições impostas por eles participa nas consciências. Contudo, isto
não impede, por acaso, os príncipes de defender o Reino de Cristo.
Em parte pela disciplina externa, e em parte, emprestando sua
proteção contra os homens maus.104

Para Calvino, o Estado tem limites bem definidos: está a serviço de Deus e do
povo. Comentando Romanos 13,4, ele diz que

Os Magistrados podem daqui aprender no que consiste sua vocação,


para não governarem mais em seu próprio interesse, mas para o bem

toda justicia, (...) instruirnos en una justicia social, ponernos de acuerdo los unos con los otros,
mantener y conservar la paz y la tranquilidad comunes.” (Tradução minha).
104
CALVIN, John. Commentary on the Gospel According to John. – Volume Second – p. 210-211. “
the Kingdom of Christ, being spiritual, must be founded on the doctrine and power of the Spirit. In the
same for the Kingdom of Christ, being spiritual, must be founded on the doctrine and power of the
Spirit. In the same manner, too, its edification is promoted; for neither the laws and edicts for men, nor
the punishments inflicted by them, enter into the consciences. Yet this does not hinder princes from
accidentally defending the Kingdom of Christ; partly, by appointing external discipline, and partly, by
lending their protection to the Church against wicked men”. (tradução minha).
33

público, nem são imbuídos com poder desenfreado, mas restrito ao


bem-estar de seus assuntos; em resumo, são responsáveis a Deus e
aos homens no exercício de seu poder.105

Sendo o Estado instituído por Deus, tanto quanto a Igreja, este serviço
prestado ao povo implica, em contrapartida, obediência e submissão por parte deste
ao Estado. Esta obediência e submissão visam, ao mesmo tempo, a manutenção da
fé e da ordem social, que teimam em ser desmanteladas tanto pela insubmissão
quanto pelo conformismo à ordem civil. Segundo Calvino,

en el día de hoy existen hombres tan desatinados y bárbaros, que


hacen cuanto pueden para destruir esta ordenación [gobierno] que
Dios ha establecido; y, por su parte, los aduladores de los príncipes,
al engrandecer sin límite ni medida su poder, no dudan en ponerlos
casi en competencia con Dios. Y así, si no se pone remedio a tiempo
a lo uno y a lo otro, decaerá la pureza de la fe.106

Mas esta obediência e submissão também são limitadas pela obediência e


submissão a Deus. Ainda nas Institutas, Calvino deixa isso bem claro ao dizer que,

Mas, en la obediencia que hemos enseñado se debe a los hombres,


hay que hacer siempre una excepción; o por mejor decir, una regla
que ante todo se debe guardar; y es, que tal obediencia no nos
aparte de la obediencia de Aquel bajo cuya voluntad es razonable
que se contengan todas las disposiciones de los reyes, y que todos

105
CALVIN, John. Commentaries on the Epistle of Paul the Apostle to The Romans. – Chapter XIII. 4
– p. 481. “Magistrates may hence learn what their vocation is, for they are not to rule for their own
interest, but for the public good; nor are they endued with unbridled power, but what is restricted to the
wellbeing of their subjects; in short, they are responsible to God and to men in the exercise of their
power”. (tradu;áo minha).
106
CALVINO, Juan. Op. Cit., Libro IV, Capítulo XX, p. 1168. “hoje em dia existem homens tão
desatinados e bárbaros, que fazem tudo quanto podem para destruir o governo que Deus
estabeleceu; e, de outra parte, os aduladores dos príncipes, ao engrandecer demasiadamente seu
poder, não suspeitam que os estão colocando quase em competência com Deus. E assim, se não se
remedia a tempo a um e a outro, decairá a pureza da fé”. (Tradução minha).
34

sus mandatos y constituciones cedan ante las órdenes de Dios, y


que toda su alteza se humille e abata ante Su majestad.107

Para Calvino, as pessoas devem submeter-se primeiramente a Deus, o que


não abole sua tese de que devem submeter-se também às autoridades, visto serem
estas instituídas por Deus para a manutenção da ordem social. Porém, esta
submissão primeira a Deus vai evoluir para uma teoria da resistência, visto que o
próprio Calvino vai concluir, dando continuidade à sua teoria da submissão a Deus e
ao Estado, que

después de Él hemos de someternos a los hombres que tienen


preeminencia sobre nosotros; [...] Si ellos mandan alguna cosa
contra lo que Él ha ordenado no debemos hacer ningún caso de ella,
sea quien fuere el que lo mande. [...] Por el contrario, el pueblo del
Israel es condenado en Oseas por haber obedecido voluntariamente
a las impías leyes de su rey (Os. 5,11). Porque después que
Jeroboam mandó hacer los becerros de oro dejando el templo de
Dios, todos sus vasallos, por complacerle, se entregaron demasiado
a la ligera a sus supersticiones (1 Re. 12,30), y luego hubo mucha
facilidad en sus hijos y descendientes para acomodarse al capricho
de sus reyes idólatras, plegándose a sus vicios. El profeta con gran
severidad les reprocha este pecado de haber admitido semejante
edicto regio.108

107
CALVINO, Juan. Op. Cit., p. 1193-1194. “Mas, na obediência que temos ensinado que se deve aos
homens, tem-se que fazer uma exceção, ou melhor dizendo, uma regra que deve ser guardada antes
de tudo; isto é, que tal obediência não nos aparte da obediência d’Aquele sob cuja vontade é razoável
que se contenham todas as disposições dos reis, e que todos seus mandatos e constituições cedam
ante às ordens de Deus, que toda alteza seja humilhada e abatida perante Sua majestade.”.
(Tradução minha).
108
CALVINO, Juan. Op. Cit., Libro IV, cap. XX, p. 1194. “depois d’Ele havemos de nos submeter aos
homens que têm proeminência sobre nós. (...) Se ordenam alguma coisa que contraria o que Ele há
ordenado, não devemos fazer nenhum caso dela, seja quem for que ordene. [...] Pelo contrário, o
povo de Israel é condenado em Oséias por ter obedecido as ímpias leis de seu rei (Os 5,11). Porque
depois que Jeroboão mandou fazer os dois bezerros de ouro, abandonando o templo de Deus, todos
seus súditos, por condescendência, se entregaram demasiadamente rápido às suas superstições (1
Rs 12,30), e logo com muita facilidade seus filhos e descendentes se acomodaram aos caprichos de
35

Se cabe à ordem civil, segundo Calvino, entre outras coisas, “hacernos vivir
con toda justicia, [...] instruirnos en una justicia social, ponernos de acuerdo los unos
con los otros, mantener y conservar la paz y la tranquilidad comunes”,109 toda ordem
dada que venha a ferir os principios evangélicos da justiça, da solidariedade, da paz
entre os seres humanos deve ser rechaçada, ou melhor, resistida como prova de
obediencia a Deus. Calvino termina as Institutas afirmando que “verdaderamente
daremos a Dios la obediencia que nos pide, cuando antes consentimos en sufrir
cualquier cosa que desviarnos de su santa Palabra”.110

Já foi visto que para Calvino a Igreja é um meio pelo qual a graça justificadora
de Deus visa alcanças os seres humanos e melhorar suas relações sociais. Mas a
Igreja, formada por uma parcela da sociedade, continua com resquícios do pecado,
não podendo, por isso, restaurar completamente esta sociedade.

Assim, segundo Calvino, Deus estabelece uma outra instituição que irá servir
como instrumento de Deus para balizar as relações sociais de homens e mulheres
ainda submetidos ao pecado, de maneira que consigam viver em comunidade.
Conforme nos diz Biéler, “para evitar, pois, que todas as coisas descambem para a
desordem e o caos, Deus suscita, no quadro geral da sociedade, uma ordem
provisória a que Calvino dá o nome de ordem política”.111

Calvino algumas vezes teve que combater a indiferença política dos cristãos,
que muitas vezes queriam reduzir a vida à esfera espiritual. Embora para ele, o reino
espiritual de Cristo e o poder civil sejam coisas muito diferentes entre si112, “esta
distinción no sirve para que tengamos el orden social como cosa inmunda y que no

seus reis idólatras, conformando-se aos seus vícios. O profeta severamente lhes censura este
pecado, de haver admitido semelhante edito real”. (Tradução minha).
109
CALVINO, Juan. Op. Cit., p. 1169. “fazer-nos viver com toda justiça, [...] instruír-nos em uma justi;a
social, colocar-nos de mútuo acordo uns com os outros, manter e conservar a paz e a tranqüilidade
comuns”. (Tradução minha).
110
CALVINO, Juan. Op. Cit., Libro IV, cap. XX, p. 1194. “verdadeiramente daremos a Deus a
obediência que nos pede, quando antes consentimos em sofrer qualquer coisa que desviar-nos de
sua santa Palavra.” (Tradução minha).
111
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 25.
112
Cf. CALVINO, Juan. Op. Cit., p. 1168.
36

conviene a cristianos”.113 Muito pelo contrário, ele entende que a Igreja tem uma
missão política a desenvolver na sociedade. Segundo Biéler, o humanismo social de
Calvino compreende que

A política não é, pois, sem relação com a ordem de Deus. Ela deve
representar, em todas as sociedades, a ordem que mais se aproxima
da ordem de Deus, tendo-se em conta o desenvolvimento espiritual
dos habitantes em um lugar e um momento dados.114

Esta missão política da Igreja pode ser dividida em quatro momentos ou


tópicos, segundo Biéler. São eles: “orar pelas autoridades, advertir as autoridades,
tomar a defesa dos pobres e dos fracos contra os ricos e poderosos, recorrer à
autoridade política na aplicação das sanções disciplinares”.115 Esta pesquisa
privilegiará o segundo e o terceiro tópicos, onde parece estar contida a missão
profética da Igreja.

A Igreja tem uma missão profética, porque é ininterruptamente conclamada a


denunciar as injustiças sociais, ao apregoar o Evangelho de Jesus Cristo, embora
muitas vezes promova, ela mesma, com sua omissão, a desordem social. Para
Biéler, a Igreja, de acordo ao humanismo social de Calvino,

é o fermento regenerador da vida social, política e econômica. E se a


Igreja é morta, [...] se sua presença não imprime à sociedade total o
impulso de sua própria e constante regeneração pela Palavra de
Deus, então, ela mesma participa na propagação da desordem
social.116

113
Idem. “esta distinção não serve para que tenhamos a ordem social como imunda e que não
convém a cristãos.” (Tradução minha).
114
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 25.
115
Cf. BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, pp. 382-389.
116
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 26.
37

Aqui se evidencia a crítica de Calvino àqueles cristãos que, por conformismo,


não vivenciam a fé cristã na esfera política.

Aqueles incumbidos de anunciar o Evangelho, por vezes são suspeitos de


desordem social e política.117 Isto ocorre porque a ordem estabelecida e defendida
pelos magistrados, pela ordem civil, está longe de ser uma ordem segundo os
preceitos do Evangelho. Para Calvino, aqueles que consideram os cristãos fiéis
como suspeitos de propagar a desordem, são os verdadeiros responsáveis por esta.
Ao comentar At 17,6 em seus Comentários ao Novo Testamento, ele diz que

Tal é a condição do Evangelho, que os tumultos que Satanás suscita


para combate-lo lhe são imputados. Eis também qual a maldade
orgulhosa dos inimigos de Jesus Cristo, que lançam a culpa das
perturbações sobre os santos e modestos professores, que eles
mesmos obtêm.118

Ao anunciar a verdadeira ordem que o Evangelho quer estabelecer, a Igreja


denuncia a ordem vigente corrupta e a seus mantenedores, o que pode acarretar na
perda de privilégios por parte destes. De acordo com Calvino, em sua dedicatória ao
livro dos Atos dos Apóstolos,

muitos príncipes, embora vejam o estado asqueroso de corrupção da


Igreja, não tentam nenhum remédio, pois, quando a questão é alijar
as corrupções de sua possessão antiga, da qual fruíram
tranqüilamente, temem que a novidade e a mudança os ponham em
perigo, e esta apreensão os retarda e os impedem de cumprir o seu
dever.119

117
Carta al cristianísimo Rey de Francia. Cf. CALVINO, Juan. Op. Cit., p. XXVIII.
118
CALVIN, John. Commentary upon The Acts of the Apostles. Volume Second, chapter XVII. 6, p.
136. “This is the state of the gospel, to have those uproars which Satan raiseth imputed to It. This is
also the malicious-ness of the enemies of Christ, to Iay the blame of tumults upon holy and modest
teachers, which they themselves procure”. (Tradução minha).
119
CALVIN, John. Commentary upon The Acts of the Apostles. Volume First. – Epistle Dedicatory, p.
XVII. “many princes, although they see the estate of the Church filthily corrupt, yet dare they attempt
38

Aqui está o cerne da crítica de Calvino ao Estado. No não cumprimento de


suas obrigações, torna-se evidente sua corrupção. Por ser corruptível, o Estado não
tem autoridade para invadir a área de atuação da Igreja. Fixam-se os limites para
ambas as instituições: à Igreja cabe a missão profética de denunciar a corrupção do
Estado, e ao Estado a manutenção da ordem política. Segundo Biéler, para o
humanismo social de Calvino,

o Estado, ao qual cabe manter pelas leis e pela coerção a ordem


política, não dispõe de outra garantia contra sua própria corrupção.
Com efeito, se a Igreja não o chamar constantemente à sua missão,
o Estado torna-se também um fator de desordem.120

A Igreja, através da denúncia e da resistência à ordem estabelecida, acaba


por contribuir com a restauração da sociedade. Pode contribuir se permanecer fiel ao
Evangelho, ou seja, seguir firme na sua missão de denunciar as injustiças, muitas
vezes promulgadas pela própria ordem civil, colocando-se como defensora dos
pobres e dos oprimidos. É o que se pode depreender do comentário de Calvino
sobre Jeremias 7,6:

Quanto aos estrangeiros, e órfãos, e viúvas, [...] são quase


destituídos de todo socorro e ajuda e estão sujeitos às injúrias de
muitos, como se postos por presa. Portanto, cada vez que se faz
referência a um governo bom e reto, Deus menciona os estrangeiros,
e as viúvas, e os órfãos, por isso que daí se pode facilmente ver qual
é a forma da administração pública da justiça. Não é, pois, de
surpreender se os outros obtêm seu direito, porque têm eles
advogados para defender-lhe as causas [...] Assim, quando alguém

no remedy; because that danger which they fear will proceed from innovation, when evils must be
driven out of their old and quiet possession, doth hinder and keep them back from doing their duty”.
(Tradução minha).
120
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 26.
39

pleiteia sua causa, obtém pelo menos alguma parte de seu direito.
Se, porém, os estrangeiros, os órfãos e as viúvas não são tratados
injustamente, isto é evidência de verdadeira integridade.121

É neste sentido que a missão profética da Igreja deve ser exercida em relação
ao Estado, ou seja, manter uma certa vigilância sobre este no que diz respeito às
suas atribuições, visto que o cumprimento destas tem como conseqüência a
existência de uma sociedade mais justa, igualitária e solidária.

2.4. A graça e a educação para a solidariedade

Segundo o humanismo Social de Calvino, existem três maneiras que o cristão


consciente da responsabilidade que deriva de sua fé encontra para participar
ativamente da vida política da sociedade. Assim Biéler as dispõem:

1. Contribuindo, em primeiro lugar, pelo seu engajamento pessoal, a


construir no seio da sociedade uma comunidade cristã tão fiel quanto
possível ao Evangelho.
2. Em seguida, participando pessoalmente na ação política para
aperfeiçoar cada vez mais a vida da sociedade pelos meios legais e
institucionais.
3. Enfim, recusando-se energicamente a obedecer ao Estado toda
vez que este lhes impõe deveres incompatíveis com as exigências do
Evangelho.122

121
CALVIN, John. Commentaries on the Book of the Prophet Jeremiah and The Lamentations. -
Volume First - p. 367. “As to strangers and orphans and widows, they are often mentioned; for
strangers as well as orphans and widows were almost destitute of protection, and were subject to
many wrongs, as though they were exposed as a prey. Hence, whenever a right government is
referred to, God mentions strangers and orphans and widows; for it might hence be easily understood
of what kind was the public administration of justice; for when others obtain their right, it is no matter of
wonder; since they have advocates to defend their cause (…) Thus every one who defends his own
cause, obtains at least some portion of his right. But when strangers and orphans and widows are not
unjustly dealt with, it is as evidence of real integrity.” (Tradução minha).
122
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 28.
40

Para Calvino, fé e política estão a serviço da instauração de uma nova


sociedade baseada na justiça e na eqüidade. A fé cristã exige a participação ativa
na vida política como meio de se engajar na construção desta sociedade. É o que
assevera Calvino, comentando Mc 10,21, em seus Comentários ao Novo
Testamento:

desde que a preservação da raça humana é algo agradável a Deus,


Ele ama as virtudes políticas, - as quais consistem em justiça,
sinceridade, moderação, discrição, fidelidade e parcimônia, - não que
sejam meios de salvação ou de graça, mas porque orientam para um
fim que Ele aprova.123

Quando o Estado dá garantias de que as virtudes políticas, como as


entendiam Calvino, sejam desenvolvidas surge a esperança de se poder construir
uma sociedade onde valores humanitários como a justiça, a eqüidade e a
solidariedade sejam seu esteio.

Porém, a doutrina teológica e social de Calvino tem uma visão pessimista do


ser humano. Ele Argumenta, nas Institutas, que “todo el hombre, de los pies a la
cabeza, está como anegado en un diluvio, de modo que no hay en él parte alguna
exenta o libre de pecado, y, por tanto, cuanto de él procede se le imputa como
pecado”.124 Se tanto a intenção quanto a ação dos seres humanos são más, tem-se
que as suas relações sociais são corrompidas, ou seja, são relações egoísticas,
desprovidas de solidariedade.

123
CALVIN, John. Commentary on a Harmony of the Evangelists, Matthew, Mark, and Luke. – Volume
Second – p. 399. “for since the preservation of the human race is agreeable to Him—which consists in
justice, upright—ness, moderation, prudence, fidelity, and temperance—he is said to love the political
virtues; not that they are meritorious of salvation or of grace, but that they have reference to an end of
which he approves”. (Tradução minha).
124
CALVINO, Juan. Institución de La Religión Cristiana, Libro II, Capítulo I, p. 170. “O homem todo,
dos pés à cabeça, está como submergido em um dilúvio, de modo que não há nele parte alguma
isenta ou livre de pecado, e, portanto, tudo quanto dele procede se lhe imputa como pecado”.
(Tradução minha).
41

Mas Calvino vai vislumbrar uma saída, um caminho de reconciliação para


esse ser humano desnaturado, no Evangelho: “Dios [...] se hubiera hecho nuestro
Redentor em la persona de su Hijo unigênito”.125 Nesta redenção, o ser humano não
tem participação, sendo que todo mérito repousa em Cristo Jesus. Para Ele, todo
este processo de justificação ocorre por conta da graça de Deus. Assim comenta,
ainda nas Institutas, que “no hay dificultad alguna en que la justificación de los
hombres sea gratuita por pura misericordia de Dios”.126

Embora a graça redentora e justificadora de Deus não deixe espaço para a


participação humana, esta graça não quer manter o ser humano na passividade.
Biéler afirma que, segundo o humanismo social de Calvino,

Transformado por Cristo, o novo homem encontra-se em luta sem


tréguas com seu próprio eu e com todas as forças que ameaçam
desnaturá-lo. A graça nunca é um dom que o reduz à passividade. Ao
contrário, provoca nele uma atividade transbordante e põe em
movimento todas as suas potencialidades de tal modo que, para
realizar plenamente sua humanidade, ele deve lutar incessantemente
contra sua própria inumanidade.127

Assim sendo, o ser humano que se tornara incapaz de relações sociais


solidárias, passa a viver uma relação mais justa com o seu semelhante, relação
baseada na fé e no amor, primeiro com Deus, depois com o seu próximo. Segundo o
humanismo social de Calvino, “o dinamismo do Espírito Santo, o poder do amor que
age no homem, leva-o necessariamente ao encontro do próximo do qual ele não
pode privar-se sem prejudicar sua própria humanidade”.128

125
Idem, Ibidem, Capítulo VI, p. 239. “Deus [...] se fez nosso Redentor na pessoa de seu Filho
unigênito.” (Tradução minha).
126
Id. Ibid., Libro II, Capítulo XVII, p. 393. “Não há dificuldade alguma em que a justificação dos
homens seja gratuita por pura misericórdia de Deus.” (Tradução minha).
127
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, pp. 17-18.
128
Idem, Ibidem, p. 18.
42

Chega-se assim, ao ponto culminante do humanismo social de Calvino. Para


ele a nova vida proveniente da graça justificadora de Deus é essencialmente
comunitária. Com relação a isto, assim se expressa:

Porque, efectivamente, si en verdad están persuadidos de que Dios


es el Padre común de todos, y de que Cristo es su única Cabeza, se
amarán los unos a los otros como hermanos, comunicándose
mutuamente lo que poseen.129

Expressar a solidariedade com o próximo através da comunicação mútua dos


bens. Esta é a compreensão que tem Calvino da Igreja. Mas, esta solidariedade
deve ser vivida somente na comunidade cristã? Segundo Biéler,

A existência, no seio da sociedade humana, desse núcleo celular que


é a comunidade dos cristãos, por pequena que seja, constitui o
estímulo para a restauração social da humanidade, desde que,
evidentemente, [...] seja verdadeiramente cristã. A Igreja, com sua
comunidade de homens e mulheres reais que recuperam em Cristo
sua humanidade, tornam-se o embrião de um mundo inteiramente
novo onde as relações sociais, outrora pervertidas, reencontram sua
natureza original.130

Seria esta a saída proposta por Calvino para a construção de uma sociedade
mais humana e solidária, ou seja, que através da ação da Igreja toda as pessoas de
uma determinada sociedade aprendessem a comunicar solidariamente seus bens?
Talvez aqui haja o germe de uma educação para a solidariedade.

129
CALVINO, Juan. Institución de La Religión Cristiana. Libro IV, Capítulo I, p. 805. “Porque,
efetivamente, se em verdade estão persuadidos de que Deus é o Pai comum de todos, e de que
Cristo é sua única Cabeça, se amarão uns aos outros como irmãos, repartindo mutuamente o que
possuem.” (Tradução minha).
130
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 21.
43

Sabe-se que para Calvino o Estado tem a obrigação de instruir seus


partícipes na justiça social131, entendendo-se por isso que as pessoas sejam
instruídas, por meio de leis e da coerção, a viverem de modo a propiciarem, ou pelo
menos não desmantelarem a coesão social132. Para que a coesão social não seja
desmantelada, faz-se necessário que todos tenham direito ao trabalho como fonte
de recursos.133

Esta equação foi resolvida por Calvino ao decretar “que os pobres, os


enfermos e os inválidos sejam reeducados profissionalmente”.134 A “instrução
pública obrigatória” já existia em Genebra desde antes da chegada de Calvino.135 O
que ele fez foi instaurar um processo educativo prático, cujos resultados foram a
emergência, na Genebra do século XVI, pelo menos por parte dos que aderiram à
reforma calvinista, da solidariedade com os excluídos e a conseqüente manutenção
da coesão social. Segundo Biéler,

A comunhão humana se realiza nas interrelações que decorrem da


divisão do trabalho, visto que cada pessoa é chamada por Deus para
uma atividade particular, parcial e complementar da atividade das
outras. A comunicação natural dos bens e dos serviços é o sinal
concreto da solidariedade profunda que une o gênero humano.136

O restabelecimento da solidariedade como um fator de coesão social aparece


aqui como o resultado da graça justificadora de Deus. Mas a graça deve ser
comunicada a todos através da ação da Igreja, o que evidencia a sua missão, a
saber, vivenciar e apregoar o amor ao próximo e a solidariedade humana.

Para Calvino, a Igreja, comunidade de mulheres e homens regenerados


mediante a Jesus Cristo para vivenciarem a prática do amor, isto é, viverem relações

131
Vide nota de rodapé nº 104 deste capítulo.
132
Vide nota de rodapé nº 108 deste capítulo.
133
Cf. BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 225.
134
Idem.
135
Id., p. 222.
136
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 19.
44

de igualdade e solidariedade, é o canal para que a graça justificadora de Deus


alcance e regenere toda a sociedade. Segundo ele,

Por eso Dios ha unido a su Iglesia con el vínculo que le pareció más
apropiado para mantener en ella la unión, confiando la salvación y la
vida eterna a hombres, a fin de que por su medio les fuese
comunicada a los demás.137

Comunicar a salvação e a vida eterna a todos os seres humanos. Mas, no


que consiste para Calvino a salvação? Segundo Biéler,

O homem caído e desnaturado que é toda criatura humana, poderá


encontrar nessa única criatura perfeita [Jesus Cristo] o caminho de
sua própria restauração. Não importa a raça ou a religião a que
pertença e nem o lugar onde habite, o homem pode agora recuperar
sua humanidade ouvindo e seguindo Jesus Cristo.138

Restauração da humanidade: eis o que significa para Calvino a salvação


mediante a fé em Jesus Cristo. E esta restauração acontece diariamente mediante a
graça, pois “transformado por Cristo, o novo homem encontra-se em luta sem
tréguas com seu próprio eu e com todas as forças que ameaçam desnaturá-lo”.139

Para Calvino, a restauração da humanidade, da qual a raça humana estava


privada por causa do pecado, ocorre no encontro com Jesus Cristo, mas esse
encontro também é horizontal, isto é, no relacionamento com o seu semelhante o ser
humano é novamente humanizado. Tanto a verticalidade, no encontro com Deus,
quanto a horizontalidade, no encontro com o semelhante podem ser encontradas na
doutrina teológica e social de Calvino. Nas palavras de Biéler, “o dinamismo do
Espírito Santo, o poder do amor que age no homem, leva-o necessariamente ao

137
CALVINO, Juan. Op. cit. Libro IV, Capítulo III, p. 837.
138
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 17.
139
Idem.
45

encontro do próximo do qual ele não pode privar-se sem prejudicar sua própria
humanidade”.140

Neste ponto do humanismo social de Calvino também se torna evidente a


presença de uma educação para a solidariedade, tendo em vista que todo
relacionamento humano implica em processo educativo. Uma educação que
promova a solidariedade humana será analisada no segundo capítulo deste
trabalho, e, por fim, no terceiro capítulo, tentar-se-á propor o humanismo social de
Calvino como processo educativo que impulsione a Igreja hodierna à prática da
solidariedade como decorrência da fé.

O humanismo social de Calvino, por ser uma doutrina social e teológica, ou


seja, relaciona o ser humano ao seu semelhante no convívio da sociedade da qual
participam, porém sem excluir a sujeição destes ao seu criador141, não se fecha num
reduto eclesial ou espiritual, mas enxerga para além dos muros da Igreja uma graça
justificadora que quer restabelecer à totalidade dos seres humanos a comunhão
outrora aniquilada pelo pecado.

A Igreja sendo formada como é por mulheres e homens, que apesar de


justificados e perdoados, permanecem pecadores, da mesma forma que o Estado,
está arriscada à corrupção. Calvino, comentando Atos 6, 1, pondera que

Aprendemos com a história que a Igreja não pode ser tão


completamente formada que não permaneça algo para ser corrigido;
nenhum edifício tão grande poder ser completamente acabado em
um dia, sendo que não haja algo que não lhe possa ser acrescentado
para torna-lo perfeito. Além do mais, aprendemos que não há
ordenança de Deus, por mais santa e louvável que seja, que não seja
corrompida ou inutilizada pelas falhas dos homens. [...] a causa disso
é a nossa natureza maliciosa e corrupta.142

140
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 18.
141
Idem. Ibidem, p. 15.
142
CALVIN, John. Commentary Upon The Acts of the Apostles. – Volume First – p. 229. “We learn in
this history that in the Church cannot be so framed by and by, but that there remain somewhat to be
amended; neither can so great a building be so finished in one day, that there may not something be
added to make the same perfect. Furthermore, we learn that there is no ordinance of God so holy and
46

Embora em Jesus Cristo as relações sociais harmoniosas, outrora


desmanteladas pelo pecado, foram restabelecidas, não podem ser plenamente
realizadas, tendo em vista que não é a totalidade da sociedade que vive segundo a
fé em Jesus Cristo e, também, porque os próprios fiéis continuam a ser pecadores,
podendo ser corrompidos. Assim, “o advento da Igreja, o nascimento da nova
humanidade em meio à antiga humanidade não basta para conter o ímpeto das
forças destruidoras do homem e da sociedade”.143

Por isso Calvino, ao criticar a união da Igreja com o Estado, não o faz de
modo a provocar, ou propor um cisma entre estas duas importantes instituições do
século XVI, e isso é atestado pela sua compreensão de que ambas instituições são
provenientes de Deus, mas para fixar os limites de cada uma delas dentro de suas
competências, segundo ele entendia e propõe no capítulo final das Institutas.144
Assim, em seus Comentários sobre a Primeira Epístola a Timóteo, reconhecendo a
importância do Estado, junto à Igreja, na manutenção da ordem social, Calvino diz:

Deus tem nomeado os magistrados e os príncipes (o Estado) para a


preservação da humanidade, [...] foram armados com a espada a fim
de promover a manutenção da paz. Se não contivessem a audácia
de homens maus, em todo lugar haveria abundância de roubos e de
assassinatos. [...] os magistrados existem para a promoção da
religião, para a manutenção do culto e para que as ordenanças
sagradas sejam reverenciadas com o devido respeito. [...] Tais
magistrados foram nomeados por Deus para a proteção da religião,
para a manutenção do bem-estar, bem como da paz e da decência
da sociedade.145

laudable, which is not either corrupt or made unprofitable through the fault of men. [...] it is the
wickedness and corruption of our nature which causeth this”. (Tradução minha).
143
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 24.
144
Cf. CALVINO, Juan. Institución de la Religión Cristiana – Capítulo XX – La Potestad Civil, pp.
1167-1194.
145
CALVIN, John. Pastoral Epistles, pp. 51-52. Aqui se trata do comentário ao capítulo 2, verso 2.
“That God appointed magistrates and princes for the preservation of mankind, (…) for magistrates are
armed with the sword, in order to keep us in peace. If they did not restrain the hardihood of wicked
47

Igreja e Estado: na compreensão de Calvino, duas instituições divinas, cada


qual com suas atribuições, a serviço da implantação do Reino de Deus entre os
seres humanos. Na implantação deste reino, que trás consigo os ideais da justiça,
da eqüidade e da solidariedade humana, cabe ao Estado zelar pela justiça social e
proporcionar à Igreja liberdade e segurança no desempenho de sua missão, qual
seja, vivenciar e propagar estes ideais.

Por outro lado, cabe à Igreja, no desempenho de sua missão profética,


exercer a vigilância sobre o Estado, não lhe permitindo, sob o risco de corrupção,
deixar de zelar pela manutenção da coesão social e nem interferir, como déspota,
em áreas que são atribuições conferidas por Deus a ela somente.

Enquanto perdurar este equilíbrio, ou seja, a Igreja e o Estado


desempenharem as funções que lhes são outorgadas por Deus, dentro de seus
limites, os ideais do Reino de Deus, a saber, a justiça, a eqüidade e a solidariedade
hão de estar presentes de forma ininterrupta entre os seres humanos.

Mas, para que tal equilíbrio se mantenha como fenômeno efetivo, os seres
humanos que, unidos em torno de objetivos comuns fazem emergir as instituições,
devem ser alcançados pela graça redentora de Deus, no encontro com Jesus Cristo.
Outrora desumanizados pela força do pecado, os seres humanos tiveram, como
conseqüência, suas relações pervertidas, ocasionando o afastamento do outro, do
seu semelhante e o desmantelamento das relações sociais.

A graça redentora de Deus, ao alcançar os seres humanos, devolve-lhes a


oportunidade de ir ao encontro do outro, reatando os laços de amizade, de
companheirismo, enfim, laços de solidariedade pessoal e social. Por isso a graça se
estabelece como fenômeno que viabiliza um processo educacional para o
aprendizado da solidariedade. Mas, como ocorre esse processo educativo para a
solidariedade? É o que se pretende responder no próximo capítulo.

men, every place would be full of robberies and murders. (…) when magistrates give themselves to
promote religion, to maintain the worship of God, and to take care that sacred ordinances be observed
with due reverence. (…) that magistrates were appointed by God for the protection of religion, as well
as of the peace and decency of society”. (Tradução minha).
48

II. EDUCAÇÃO PARA A SOLIDARIEDADE

A doutrina teológica e social de Calvino, como vimos no primeiro capítulo,


empreende dura crítica à relação entre Estado e Igreja na Genebra do século XVI.
De acordo com Calvino, cabe a estas duas instituições divinas a salvaguarda da
sociedade, ou seja, a manutenção da justiça, da igualdade e da solidariedade
humana como alicerces da coesão social. Esta crítica de Calvino, decorrente da sua
adesão à fé reformada e da maneira como vai vivencia-la e sistematiza-la, tem seu
nascedouro em tempos de gritantes desigualdades e exclusões sociais na
sociedade genebrina.

A maneira de vivenciar a fé reformada e contextualizá-la em meio à


desagregação social pela qual passava a Genebra do século XVI levará Calvino a
desenvolver sua doutrina teológica e social que emergirá como processo
pedagógico que conduzirá seus adeptos à solidariedade. Pode-se afirmar que a
doutrina teológica e social de Calvino adquire aspectos pedagógicos, pois, através
de suas prédicas, ou sermões, questões de interesse geral eram discutidas
publicamente, levando as pessoas a aprimorarem a capacidade de interrogarem-se
a si mesmas e de pensarem e agirem por conta própria. E, nesta ação, vão passar
por experiências que vão forjar uma sensibilidade solidária com os excluídos do
sistema.

Hoje, quando se vive situação análoga em todo o planeta devido a crescente


polarização “ricos-pobres” decorrente da brutal concentração de renda nas mãos de
uma minoria privilegiada; o desemprego estrutural, cujo corolário é a exclusão
irreversível de milhões de trabalhadores do mercado de trabalho e do mercado de
consumo; o aumento do número de pessoas infectadas com o vírus da aids, vítimas
da desinformação e do descaso; a discriminação de mulheres, homossexuais e
negros; acelerado processo de urbanização; degeneração da política em discursos e
ações em proveito próprio (“politicagem”); etc., talvez a doutrina teológica e social de
Calvino, como processo cognitivo e ético, cujo resultado é a solidariedade estrutural
com os excluídos do sistema, possa trazer a lume a discussão sobre o papel da
49

Igreja e sua relação com as demais instituições sociais na manutenção da coesão


social.

Este contexto é fruto da cultura do individualismo, resultado da “racionalidade


produtivista do ‘capitalismo tardio’”,146 disseminada e mantida por um modelo
educacional que tudo dissocia, separa, individualiza, não permitindo aos indivíduos
desenvolverem uma visão cooperativa ou solidária do mundo, pessoas e
sociedades, como sistemas complexos. Urge, então, a implantação de um modelo
educativo que se contraponha ao tradicional, dissociativo, individualizante. Uma
educação que leve em conta o potencial cognitivo do ser humano, que tem como
aspiração vital viver em comunidade, e que, para tanto, precisa encontrar um sentido
para sua vida.

Neste capítulo buscar-se-á responder a uma questão imprescindível para


fundamentar o tema desta dissertação, a saber, “A Doutrina Teológica e Social de
Calvino e a Educação para a Solidariedade”: O que é educação para a
solidariedade?

1. O Ser Humano é “ser aprendente”

Nós, seres humanos, somos seres aprendentes. Isso quer significar que
desde os primeiros momentos de vida já estamos aprendendo a nos comportar
como seres humanos, a nos humanizar. Conforme Assmann e Sung, “nós não
nascemos prontos e o fato de nascermos prematuros, exigindo um útero externo
acolhedor, marcou toda a nossa evolução, principalmente a do cérebro”.147 O fato de
os seres humanos serem inacabados os coloca em contato imediato e constante
com o meio, num processo de contínuo aprendizado, que é o responsável pela
manutenção da vida.

Isso significa dizer que o ser humano é um ser que necessita aprender para
manter-se vivo. Ou seja, o ser humano precisa aprender continuamente a conhecer
146
SILVA, Divino José da. Ética e educação para a sensibilidade em Max Horkheimer, p. 27.
147
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Competência e Sensibilidade Solidária: Educar para a
esperança, p. 213.
50

o mundo no qual atua passiva e ativamente, e este aprendizado passa pela


aquisição dos mais variados conhecimentos que são necessários à sua
sobrevivência. Segundo Garcia,

a aprendizagem é entendida como alterações comportamentais mais


ou menos permanentes, alterações que não podem ser creditadas a
processos de maturação fisiológica, à fadiga ou à adaptação
sensorial, mas sim a alguma experiência anterior e que são devidas a
modificações a nível de sistema nervoso central. [...] importa-nos
considerar a aprendizagem como um todo, um processo contínuo de
transformações e que determina uma orientação, intelectual e
práxica, definida pela história de vida de cada qual, uma
especialização mesmo, e alguns interesses específicos.148

Afirmar que a aprendizagem é um processo contínuo de transformações


equivale a dizer que o ser humano, em contato com o meio ambiente, com o mundo,
está em constante processo de aquisição de conhecimento. E, segundo Strieder, “a
aprendizagem é efetiva quando torna compatível o agir do ser vivo em seu entorno
ambiente, viabilizando um constante processo de reestruturação interna”.149

Todo o conhecimento adquirido e toda a prática desenvolvida ao longo da


vida estão relacionados ao modo como se dá o contato do ser humano com o meio.
De acordo com Garcia, nesta inter-relação,

Ocorre [...] uma espécie de filtração central de estímulos, mas


dependendo esta, de todas as situações experimentadas e de todos
os momentos vividos pelo indivíduo – da história de vida de cada um
– e aquela, a motivacional, principalmente de suas condições
orgânicas em determinado instante.150

148
GARCIA, Francisco Luiz. Introdução Crítica ao Conhecimento, p. 18.
149
STRIEDER, Roque. Educar para a iniciativa e a solidariedade, p. 295.
150
GARCIA, Francisco Luiz. Op.cit., p. 19.
51

Na luta pela sobrevivência, o ser humano vai aprendendo a sobreviver, e


estas aprendizagens vitais vão sendo captadas pelo cérebro/mente, dotado, na
longa evolução genética, de uma capacidade incrível, segundo Assmann,

de captar, criar e observar regras operacionais de toda índole. Mas


sua destinação, amadurecida evolucionariamente, já não é
primordialmente a elaboração e o cumprimento de regras. Já não
está condenado a lógicas rígidas e lineares. [...] Forçar o ser humano
ao puro enquadramento em lógicas rígidas significa desqualificar seu
potencial humano 151

Embora a aprendizagem de técnicas foi e é essencial para a manutenção da


vida humana, ficar restrito a esse tipo de conhecimento somente não deixaria
espaço para a humanização do ser humano. O ser humano, ciente de seu
inacabamento bem como de sua finitude, é capaz de trabalhar, de criar, de construir,
mas, ao mesmo tempo, é também capaz de sonhar, de desejar, de transcender.
Para Freire,

No jogo constante de suas respostas, (o ser humano) altera-se no


próprio ato de responder. Organiza-se. Escolhe a melhor resposta.
Testa-se. Age. [...] A captação que faz dos dados objetivos de sua
realidade [...] é naturalmente crítica, por isso reflexiva e não reflexa
[...] Ademais, é o homem, e somente ele, capaz de transcender. A
sua transcendência, acrescente-se, não é um dado apenas da sua
qualidade “espiritual” [...] A sua transcendência está também, para
nós, na raiz de sua finitude.152

Se o ser humano é capaz de desejar outras realidades, de transcender ao


meio ambiente imediato, necessário se faz abandonar a visão de que a aquisição de
151
ASSMANN, Hugo. Metáforas novas para reencantar a Educação: epistemologia e didática, pp.
144-145.
152
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade, p. 48.
52

conhecimentos só ocorre por transmissão de conteúdos ou informações. Esta


proposição está ancorada no conceito de enaction, de Francisco Varela, que
segundo Assmann e Sung, alude

à necessidade de abandonarmos o conceito de representação mental


em nossa concepção do conhecimento e da ação. Nossos sentidos
não são apenas ‘janelas’ para o mundo. São muito mais do que isso
porque nossos sentidos participam ativamente não apenas na
recepção de informação desde o meio ambiente, mas também na
construção da realidade percebida.153

Nas relações diárias a que os seres humanos são submetidos dentro do meio
ambiente em que vivem, já está ocorrendo a aquisição do conhecimento dos dados
culturais específicos para a sua sobrevivência. Segundo Morin, “os indivíduos
conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles”.154

Assim, a educação consiste em potencializar os conhecimentos já adquiridos


pela pessoa em contato com o seu meio ambiente, pois, segundo Garcia, “aprender
significa o aprimoramento de algo menos perfeito que já existia no organismo e não
criar algo do nada, fazer surgir uma habilidade qualquer do vazio, da ausência”.155

Mas também ocorre que, ao adquirirem conhecimentos culturais específicos


que propiciam sua sobrevivência, como resultado da relação constante com o meio,
os seres humanos promovem, por sua vez, a perpetuação da cultura e da sociedade
específicas e também da espécie. Segundo Morin,

No nível antropológico, a sociedade vive para o indivíduo, o qual vive


para a sociedade; a sociedade e o indivíduo vivem para a espécie,
que vive para o indivíduo e para a sociedade. Cada um desses
termos é ao mesmo tempo meio e fim: é a cultura e a sociedade que

153
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit, p. 246.
154
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro, p. 25.
155
GARCIA, Francisco Luiz. Op. Cit., p. 43.
53

garantem a realização dos indivíduos, e são as interações entre


indivíduos que permitem a perpetuação da cultura e a auto-
organização da sociedade.156

Dessa afirmação é possível depreender que o ser humano, a sociedade e a


cultura, que é o resultado da inter-relação dos dois anteriores, foram sendo
construídos juntos, ao longo da evolução humana. E esta constatação é de salutar
importância para o tema da educação para a solidariedade, porque estabelece a
discussão da complexidade tanto do ser humano quanto da sociedade e da cultura.
Para melhor se entender esta relação complexa, cabe aqui uma explicação de Morin
sobre o termo complexidade:

Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade


quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo
[...] e há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre
o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e
as partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre
a unidade e a multiplicidade.157

Esta relação de complexidade quer dizer que a hominização e a humanização


são decorrentes da evolução conjunta do ser humano, do cérebro/mente, da
sociedade e da cultura. O que implica em que o ser humano precisa adquirir
conhecimentos que promovam e garantam a manutenção da vida, isto é, da
ininterrupta inter-relação do ser humano com o seu semelhante em sociedade e na
cultura. Segundo Strieder,

A raiz bio-organizativa e bio-social da vida, vista como sistema


dinâmico de interação, carrega consigo a flexibilidade necessária no
nosso agir. Os direcionamentos forçados, inibidores da dinâmica

156
MORIN, Edgar. Op. Cit., p. 54.
157
MORIN, Edgar. Op. Cit., p. 38.
54

auto-organizativa, reclusos da pura racionalidade, interpõem-se a


uma visão de vida como unidade mente/corpo e, mais ainda como
unidade ser humano/entorno.158

Tocar no assunto de uma educação para a manutenção da vida é cogitar


sobre uma educação para a solidariedade. Ou seja, um modelo de educação que,
sem romper com a salutar importância de se transmitir informações necessárias ao
aprendizado de técnicas indispensáveis para a preservação da vida e da espécie
humana, leve as pessoas à compreensão de que vivem numa relação de
interdependência, portanto numa relação de solidariedade, e que esta relação é
imprescindível para a “perpetuação da cultura” e a “auto-organização da sociedade”.

Por isso, também, a necessidade de um processo educacional que gere nos


indivíduos um sentido de vida que seja ético, isto é, que leve as pessoas a
praticarem a solidariedade, pois, segundo Assmann e Sung, “ética é, no fundo,
saber situar-nos neste mundo como seres solidários”.159

2. Duas Noções de Solidariedade

O tema da solidariedade hoje está presente nos mais variados discursos que
vão desde o Banco Mundial e FMI até o sonho da Economia Solidária, perpassando
a Igreja e as ONGs, o que contribui para a disseminação em larga escala do
reducionismo da noção de solidariedade.160

Nesta parte pretende-se mostrar que a solidariedade é muito mais que atos
isolados ou transitórios, mas que tem relação inquestionável com a coesão social e
que deve se estabelecer como ações políticas, permanentes, conscientes e
pedagógicas. Nas palavras de Assmann e Sung,

158
STRIEDER, Roque. Op. cit., p. 293.
159
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 261.
160
Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 52-66.
55

Para aprofundar a reflexão sobre a solidariedade, parece


aconselhável que se distingam nitidamente, por um lado, os apelos à
solidariedade que se referem a situações emergenciais transitórias e,
por outro, as questões da solidariedade como ingrediente
eticopolítico na busca de soluções estruturais e sustentáveis para
problemas amplos e de caráter persistente.161

Refletir sobre a questão da solidariedade sugere que esta existe de fato, ou


nas palavras de Sung, a “solidariedade é um fato, pois vivemos em uma relação de
interdependência”.162 Pode-se presencia-la na ação da pessoa que ajuda a outra a
empurrar o carro que quebrou, da pessoa que ajuda o/a deficiente visual a
atravessar a rua, etc. Inclusive pode-se dizer que é este tipo de solidariedade a
responsável pela coesão social em uma determinada sociedade.

Só que, embora relações de solidariedade aconteçam a todo instante,


cimentando a coesão social, as pessoas não têm, de modo geral, noção desta
realidade, ou seja, da solidariedade como um fato, um fenômeno social.

2.1. A solidariedade como um fato

As pessoas, ao praticarem no dia a dia ações de solidariedade, mesmo que


não se apercebam disso, fortalecem os laços de interdependência que as unem e,
paralelamente, cimentam a coesão social. É, segundo Assmann e Sung, “a
solidariedade entendida como um fato e uma necessidade de interdependência na
vida social, um conceito associado à coesão social”.163

Mas é necessário que estas mesmas pessoas tenham nítida compreensão


de que a solidariedade é um fato, uma necessidade de interdependência, ou seja,
consciência de que precisam umas das outras na construção de si mesmas como
seres humanos e sociais e da própria sociedade na qual se encontram inseridas.

161
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 69.
162
SUNG, Jung Mo. Conhecimento e Solidariedade: educar para a superação da exclusão social, p.
47.
163
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., pp. 74-75.
56

Como as pessoas poderiam ter acesso à compreensão de que a


solidariedade/interdependência é um fato ligado à coesão social? Necessariamente,
a resposta a essa questão passa pela aquisição de conhecimentos, isto é, pela
educação.

Mas, como afirmam Assmann e Sung, “a forma como conhecemos a realidade


tem muito a ver com a forma como vivemos e construímos o nosso mundo”.164 Só
que entre a forma como conhecemos a realidade e como esta interferirá na
construção do nosso mundo existem “interferências” psicossociais, afetivas e
racionais. Por isso Assmann irá dizer que o “nosso acesso à realidade não vai além
do fenomênico. O próprio sensoriamento do real está sempre inscrito em
modelizações. Do ponto de vista epistemológico, toda realidade para nós é uma
realidade inventada por nós”.165

Dessa forma, a realidade tal como se apresenta não é a realidade


estabelecida. O que implica em que ao se referir à realidade que o cerca, os seres
humanos o fazem por meio de modelos da realidade parcialmente construídos.
Segundo Assmann,

os paradigmas funcionam como filtros na percepção do mundo, que


agudizam, por um lado, a capacidade perceptiva para alguns
aspectos e, pelo outro, criam uma verdadeira cegueira para o resto,
afetam a escolha da informação tida como relevante, selecionam as
perguntas tidas como válidas e tendem a estabelecer parâmetros de
crença. [...] Já que os paradigmas funcionam como modelos de
compreensão do mundo, eles simulam sempre uma consistência
isenta de contradições para poderem direcionar melhor as
expectativas.166

Isso tem interferência direta sobre a educação. Se a educação é um


fenômeno humano, tem-se que todo conhecimento adquirido na inter-relação entre o

164
Idem, Ibidem, p. 80.
165
ASSMANN, Hugo. Op. cit., pp. 90-1.
166
Idem, Ibidem, p. 94.
57

ser humano e o meio é um conhecimento parcial da realidade. Dessa forma o ser


humano nunca conhece a si mesmo e ao seu semelhante “por inteiro”, tendo em
vista serem eles resultados de uma realidade que não podem enxergar por
completo. Dito de outra maneira, os indivíduos vêem o seu semelhante através da
realidade por eles construída e, na construção dessa realidade, o modelo
educacional tem grande responsabilidade.

Com o advento da modernidade, a razão encontrará seu apogeu em


detrimento dos sentidos e dos sentimentos.167 Resultado disso, é o óbvio
aparecimento de um sistema educacional que se encontra baseado na
racionalização do pensamento. Filho da razão iluminista, o método cartesiano vai
orientar os processos educativos desde então e, fatalmente, influenciará
profundamente a cosmovisão do homem e da mulher modernos. Segundo Morin,

O paradigma cartesiano separa o sujeito e o objeto, cada qual na


esfera própria: a filosofia e a pesquisa reflexiva, de um lado, a ciência
e a pesquisa objetiva, de outro. Esta dissociação atravessa o
universo de um extremo ao outro: Sujeito / Objeto, Alma / Corpo,
Espírito / Matéria, Qualidade / Quantidade, Finalidade / Causalidade,
Sentimento / Razão, Liberdade / Determinismo, Existência /
Essência.168

Esta visão disjuntiva do mundo será reforçada por séculos por meio da
educação. E, desse modo, tornar-se-á um paradigma cultural profundamente
interiorizado pelo indivíduo moderno. E todo paradigma, como já foi visto, funciona
como mediador entre a realidade como tal e a realidade percebida pelos indivíduos.

Esse modelo cartesiano, pedagogicamente transmitido e culturalmente


assimilado, tem impedido que as pessoas compreendam e enxerguem a
complexidade e a interdependência humana e social, isto é, segundo salienta Morin,

167
Cf. SILVA, Divino José da. Ética e educação para a sensibilidade em Max Horkheimer, p. 22.
168
MORIN, Edgar. Op. cit., p. 26.
58

“o ser humano é ao mesmo tempo biológico, psíquico, social, afetivo e racional. A


sociedade comporta as dimensões histórica, econômica, sociológica, religiosa...”169

É preciso estabelecer, então, uma contra-cultura como paradigma cultural,


que viabilize a construção de um processo educacional que promova a
compreensão e a construção da realidade entendida como um emaranhado de
elementos interligados e constitutivos de um todo. De acordo com Sung,

Essa forma de conhecimento que articula diversas perspectivas e


ciências no estudo de realidades concretas pode ser chamada de
paradigma da complexidade – um conhecimento que articula diversos
tipos de conteúdo. Mais do que isso, estrutura o próprio pensamento
de tal forma que procura sempre perceber a interdependência entre
aspectos e fatos que parecem à primeira vista independentes ou sem
relações. É uma forma de pensar que reconhece que a realidade é
‘tecida’ por tramas complexas e, portanto, acredita que pensamentos
analíticos que privilegiam o separar e o dividir em partes são
importantes, mas não suficientes.170

Se não se percebe a inter-relação entre os vários aspectos que integram a


vida e as sociedades não se consegue reconhecer a interdependência como um fato
ligado à coesão social. Para que esse reconhecimento se estabeleça, se faz
necessária uma educação que leve em consideração a complexidade. Segundo
Assmann e Sung,

por falta de reconhecimento deste fato como algo significativo na vida


das pessoas e das sociedades, vivemos sem ver que a
interdependência é um fato do qual não podemos escapar. O

169
Idem, Ibidem, p. 38.
170
SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 55.
59

conhecimento deste fato pode ser adquirido com uma educação


baseada na transdisciplinaridade e na perspectiva sistêmica.171

Um processo educativo que viabilize a compreensão da complexidade da


vida, das sociedades, dos seres humanos, deve acontecer de forma transdisciplinar
e sistêmica. Transdisciplinar, onde a pretensão é “o encontro necessário entre
análise e síntese” e “uma rearticulação do universo objetivo e do universo
subjetivo”.172 Sistêmica, pois se a educação é um fenômeno humano, não pode
prescindir da multidimensionalidade tanto dos seres humanos quanto das
sociedades,173 evitando, desse modo, segundo Morin, “o parcelamento e a
compartimentação dos saberes”.174

Impõe-se, desse modo, a necessidade de um modelo educacional que se


alicerce numa contracultura que procure enxergar os seres humanos e as
sociedades como realidades complexas. Conforme salientam Assmann e Sung, “o
método analítico consiste em isolar as partes a fim de compreende-las, enquanto
que o pensamento sistêmico significa coloca-las num contexto mais amplo para
entender as relações entre o todo e as partes”.175

Assim, uma educação para a consciência de que a


solidariedade/interdependência é um fato ligado à coesão social pressupõe, então,
que já existam, entre as pessoas de determinada sociedade, relações solidárias,
mesmo que sejam aquelas emergenciais e provisórias. Mas, uma educação para a
solidariedade de cunho “ético-político” exige uma revolução para além da própria
sociedade, uma revolução da própria maneira de pensar, já que quando pensamos
ou refletimos o meio ambiente em que vivemos, o estamos construindo.

2.2. A solidariedade como uma exigência ética

171
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 86.
172
STRIEDER, Roque. Op. Cit., pp. 315 e 316.
173
Vide nota nº 24 deste capítulo.
174
MORIN, Edgar. Op. Cit., p. 45.
175
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 81.
60

Para que a solidariedade deixe de ser entendida apenas como um fato


relacionado à interdependência e à coesão social e passe a ser vivenciada como
uma exigência ética, é necessário que as pessoas as compreendam, a
interdependência e a coesão social, como vital. Nas palavras de Assmann e Sung,

Para que a solidariedade se torne um imperativo categórico aceito e


vivido pela sociedade, é preciso antes que esta mesma sociedade
reconheça a interdependência e a coesão social como um fato
fundamental para a vida em geral, e a vida humana em particular.176

Se esse processo, o de um salto da compreensão da solidariedade como um


fato para a solidariedade como imperativo ético, passa naturalmente pela educação,
talvez seja possível afirmar que a solidariedade não se ensina, se aprende, já que o
ato de ensinar é um processo diferente do de aprender. Segundo Assmann,

O ensinar parece estar mais relacionado com gestão e supervisão de


tarefas docentes. O aprender se refere ao desenvolvimento de uma
rede de experiências pessoais de conhecimento socialmente
validável no convívio humano.177

A aquisição de conhecimentos que despertem nos seres humanos um desejo


de solidariedade será mediatizada por trocas de experiências humanas e sociais.

Mesmo com a implantação de um processo educacional que contribua para


que os indivíduos percebam a importância vital da interdependência e da coesão
social, para que o esperado salto para a solidariedade como imperativo ético fosse
realizado, ter-se-ia que perscrutar a cultura humana em busca de um paradigma
cultural que contivesse, em si, uma fagulha de cooperação solidária. Pois, conforme
Assmann,

176
Idem, Ibidem, p. 75.
177
ASSMANN, Hugo. Op. cit., p. 192.
61

já não é possível iludir-se acerca de amorizações solidárias brotando


por aí na pura espontaneidade. Somos membros de uma espécie
proclive a egoísmos e entredevoramentos. Somente a conversão,
refeita dia-a-dia, pode conduzir-nos à fraternura solidária capaz de
evitar nossa autodestruição.178

O termo conversão alude a um retorno, a uma volta a um determinado


caminho, não importando se do qual se estava afastado ou se desconhecia. O que
importa, para a nossa reflexão, é a existência do caminho, pois só se pode retornar
para um lugar que exista e isso só é possível por um caminho. E esta constatação
suscita uma questão: se a aprendizagem sempre se deve a uma experiência
anterior179, qual seria a primeira experiência cognitiva experimentada pelo ser
humano?

Ao nascer o ser humano “se conforma” ao mundo que o recebe e no qual, de


agora em diante, passa a participar passiva e ativamente. Este “conformar” tem um
aspecto cognitivo fundante, mas, segundo Morin,

há, [...] sob o conformismo cognitivo, muito mais que conformismo.


Há o imprinting cultural, marca matricial que inscreve o conformismo
a fundo, e a normalização que elimina o que poderia contesta-lo. O
imprinting é um termo proposto por Konrad Lorenz para dar conta da
marca indelével imposta pelas primeiras experiências do animal
recém-nascido...180

Para responder a questão do parágrafo anterior, pode-se dizer que a primeira


experiência cognitiva do ser humano é o imprinting cultural. Garcia classifica esta
primeira experiência como uma forma de aprendizagem: a Estampagem, que

178
Idem, Ibidem, p. 220.
179
Vide nota nº 3 deste capítulo.
180
MORIN, Edgar. Op. cit., p. 28. Sublinhados do autor.
62

segundo ele, “se caracteriza por uma relação que se estabelece entre um padrão
complexo de comportamento e um estímulo característico presente em um momento
apropriado, [...] a primeira experiência, como situação, é a mais importante”.181

Mas que experiência de fato, que tipo de imprinting cultural poderia ocorrer
para que o ser humano pudesse passar por uma primeira alteração comportamental,
ou seja, uma experiência de aprendizagem? Segundo Assmann e Sung,

o imprinting cultural primário é […] [o] reconhecimento que vem do


olhar da mãe (ou de quem faz este papel), que é um olhar do cuidar,
do zelar, guardar. Um olhar de reconhecimento baseado na
reciprocidade e não na confrontação competitiva.182

Como corolário dessa afirmação, tem-se que a primeira experiência cognitiva


do ser humano é que o mundo, as pessoas e a sociedade, que o acolhe é um
mundo solidário. Mas, a realidade experimentada no decorrer da vida vai mostrar
que o mundo não é tão solidário assim. As pessoas, com raríssimas exceções, estão
voltadas, no dia a dia, para os sonhos, desejos e objetivos próprios, vítimas que são
de uma sociedade que privilegia o “ter” em detrimento do “ser”. Raro se vê alguém
agir solidariamente com o semelhante, em detrimento de seus interesses e
segurança, e para se ter um “lugar ao sol” nas sociedades capitalistas e neoliberais,
não sobra tempo para se ser solidário, apenas competitivo.

De qualquer maneira, o desejo de ser solidária com o recém-chegado ao


mundo, à sociedade e à cultura, estampado no olhar acolhedor da mãe foi
apreendido, interiorizado e gravado pelo e no cérebro/mente do recém-nascido.
Seria este o caminho para que, mediante a educação, os seres humanos pudessem
reaver, readquirir sua propensão solidária, já que não conseguem, naturalmente,
perceber a importância vital da sociabilidade? De acordo com Assmann e Sung,

181
GARCIA, Francisco Luiz. Op. Cit., pp. 31-32.
182
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 201. Sublinhado dos autores.
63

Para percebermos a conveniência, até para a nossa própria


felicidade, da solidariedade como elemento da sociedade ampla e do
planeta Terra, precisamos de um salto ético que não costuma
suceder espontaneamente. Ele necessita ser alavancado com
argumentos, vivências, testemunhos e até mesmo a sensação de
riscos e ameaças, que não formam parte do senso comum do nosso
cotidiano. Para tornar-nos solidários num sentido mais abrangente
precisamos ascender a um estágio de consciência e opção, que
implica numa conversão a valores, que não são óbvios em nossa
experiência cotidiana.183

Quando, acima, foi ressaltada a questão do imprinting como um primeiro


evento cognitivo que leva os seres humanos, ao serem acolhidos solidariamente
pelo mundo, a interpreta-lo como um mundo solidário, fez-se com a intenção de
suscitar a seguinte questão: Por que se a “primeira impressão” que o ser humano ao
nascer tem do mundo é de um mundo acolhedor e solidário, este mesmo ser
humano, ao crescer, descobre-se tão pouco solidário e num mundo que não é
diferente? De acordo com Assmann e Sung, tem a ver com a educação que se
recebe ao longo da vida. Vejamos:

Os imprintings culturais, por serem culturais, não são indeléveis nem


totalmente apagáveis, nem deterministas. Podem ser revistas,
reformuladas e/ou recuperadas. Processos educacionais podem
reforçar unilateralmente as marcas patriarcal-confrontativas ou
podem ajudar a recuperar a experiência originante do desejo de
reconhecimento recíproco no olhar do cuidar, o desejo de felicidade
alheia como parte integrante da felicidade própria.184

183
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 31. Sublinhados dos autores.
184
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 202.
64

Neste ponto, Assmann e Sung discordam da proposição de Konrad Lorenz,


como fora citado por Morin185, de que os imprintings culturais são “marcas
indeléveis”, ou seja, uma vez interiorizadas jamais poderão ser dissipadas. Sejam
quais forem as primeiras experiências dos seres humanos ao chegarem ao mundo,
caberá à educação reforça-las ou enfraquece-las.

Quanto às marcas “patriarcais-confrontativas”, as sociedades e as culturas,


de modo geral, já têm se encarregado, através de processos educativos
racionalizados, de reforça-las, em detrimento da solidariedade. Segundo Assmann e
Sung,

a nossa cultura – com a sua visão fragmentada da realidade, com um


individualismo exacerbado, incentivo unilateral à concorrência,
diminuição da importância da identidade nacional e do compromisso
com a construção de um futuro melhor, [...] dificulta o conhecimento e
o reconhecimento da importância da interdependência e da coesão
social.186

Com relação a uma educação que fomente nas pessoas e nas sociedades o
desejo de vivenciar ações solidárias, o desafio ainda se impõe. De acordo com
Assmann e Sung,

O conhecimento da interdependência e o problema da coesão social


é uma condição de possibilidade para uma atitude pessoal e social
de solidariedade, mas não conduz necessariamente a essa atitude.
Pois, entre o conhecimento e a nova atitude há desejos e
interesses.187

185
Vide citação nº 29 deste capítulo.
186
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. citI., p. 79.
187
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., pp. 76-7.
65

Se a primeira experiência de aprendizado do ser humano, propiciada pelo


amor materno, foi interiorizada pelo seu cérebro/mente, embora durante muitos anos
de sua vida essa experiência tenha sido esquecida devido a um processo
educacional excessivamente racional, onde os sentimentos, os instintos e a paixão
foram expulsos do campo da ação188, ela ainda está presente no fundo do desejo
humano, podendo ser recuperada189, embora, lembra-nos Sung, “provavelmente,
para não dizer com certeza, o desejo fundamental que move a maioria das pessoas
da nossa sociedade não é o desejo de solidariedade, mas sim o desejo de
consumo”.190

Se o desejo de consumo, na nossa sociedade, sobrepuja o de solidariedade é


porque a educação, como resultado de uma cultura maniqueísta e individualista, tem
transmitido e reforçado os valores próprios dessa cultura e dessa sociedade.
Segundo afirma Durkheim,

Não há ninguém que possa fazer com que uma sociedade tenha,
num momento dado, outro sistema de educação senão aquele que
está implicado em sua estrutura; [...] estamos mergulhados numa
atmosfera de idéias e de sentimentos coletivos que não podemos
modificar à vontade; e é sobre idéias e sentimentos desse gênero
que repousam as práticas educativas.191

Nesse mesmo sentido, Assmann e Sung vão afirmar que os processos


educacionais próprios da sociedade capitalista vão reforçar o tipo de desejo que tem
condicionado as pessoas nessa mesma sociedade:

Quando o consumo passa a ser um dos critérios fundamentais na


construção da identidade e ocupa um lugar importante no processo

188
SILVA, Divino José da. Op. Cit., p. 22.
189
Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 202.
190
SUNG, Jung Mo. Conhecimento e Solidariedade: educar para a superação da exclusão social, p.
63.
191
DURKHEIM, Èmile. Educação e Sociologia, p. 60.
66

de comunicação social, ele passa a ser um dos ordenadores


fundamentais do desejo na sociedade.192

Porém, se entre o conhecimento da interdependência como um fato e a


prática da solidariedade pessoal e social estão os desejos e os interesses das
pessoas, então uma educação que redimensione os desejos se faz necessária. Pois,
se no fundo do desejo humano está o sentimento de solidariedade interiorizado
como imprinting cultural, um processo educacional que o traga à tona e o reforce
levará as pessoas a sentirem o desejo de serem solidárias umas com as outras. Nas
palavras de Assmann e Sung, um “desejo que nos faz desejar a felicidade alheia
como parte integrante da nossa felicidade, por isso que faz o desejo de
solidariedade se tornar uma necessidade vital”.193

Se o desejo de solidariedade mútua aflorar nas pessoas, graças a uma


educação que o traga à tona, o salto, do reconhecimento da interdependência como
um fato ligado à coesão social para a solidariedade como uma questão ética, estaria
dado. O resultado mais amplo da solidariedade vivenciada como imperativo ético
poderá vir a ser a transformação das sociedades hedonistas, individualistas e
excludentes, como a nossa, numa sociedade mais humana e solidária.

3. Solidariedade e Competência

É possível a construção de uma sociedade mais humana e solidária apenas


com práticas ou ações solidárias? Ao se lançar o olhar para a Genebra do século
XVI, contexto da reforma viabilizada por Calvino, pode-se visualizar que o resultado
de sua doutrina teológica e social, como processo educativo, não só levava as
pessoas à prática da solidariedade com os excluídos, mas que estes fossem
treinados nas profissões da época, com o intuito de se superar a exclusão social.194

192
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 183.
193
Idem, Ibidem, p. 205.
194
Vide capítulo I deste trabalho, citação nº 133.
67

A doutrina teológica e social desenvolvida por Calvino compreendia, então,


como processo pedagógico, o reconhecimento da interdependência como
responsável pela coesão da sociedade genebrina mas, concomitantemente,
compreendia a aquisição de competências para o mundo da época.

A mera compreensão da interdependência como um fato e relacionada à


coesão social e a conseqüente prática da solidariedade como imperativo ético não
são suficientes para que a desagregação social presente nas sociedades
contemporâneas, capitalistas, seja minimizada.195 Também não se pode atribuir à
solidariedade, ou às ações solidárias a responsabilidade de redimir a sociedade de
seus problemas. Conforme Assmann,

parece urgente o re-exame crítico de uma série de saltos


salvacionistas, curto-circüitos ideológicos marcadamente
apocalípticos e até imediatismos messiânicos no complexíssimo
quadro das ênfases radicais na solidariedade”.196

Na busca pela superação do problema da desagregação social, uma


contribuição pode vir de um modelo de educação que comporte, além do aflorar da
sensibilidade, a aquisição das competências exigidas por estas mesmas sociedades.
De acordo com Sung, “educar é dar as competências necessárias para o mundo de
hoje. A gente não educa só dando e ensinando conteúdo. É preciso ajudar as
pessoas a aprender a aprender”.197

E esse tipo de aprendizagem, “aprender a aprender”, passa,


indubitavelmente, pela superação de processos educativos baseados numa visão
racionalizada do mundo, que divide, separa, enfim, fragmenta a realidade. A
fragmentação da realidade, visão típica das culturas ocidentais racionalizadas,
dificulta a falta de visão no que diz respeito à inter-relação entre competência e
solidariedade, isto é, a percepção de que a aquisição das competências exigidas

195
Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., pp. 209-210.
196
ASSMANN, Hugo. Op. cit., p. 229.
197
SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 72.
68

pelo mundo moderno (e pós-moderno) não exclui necessariamente a solidariedade,


e a prática desta última não abole as primeiras.

A solidariedade precisa deixar de ser entendida apenas como fomentadora da


interdependência e da coesão social e passar a ser compreendida, de acordo com
Assmann e Sung, como

um chamado à superação da exclusão e da segmentação sociais


através de uma educação que contribua para a aprendizagem de
competências de caráter geral e que levem as pessoas a praticarem
a solidariedade. Neste segundo aspecto, a solidariedade é vista mais
como uma atitude capaz de respeitar as diferenças e se interessar
pelos problemas da coletividade, principalmente dos que estão
sofrendo mais com a situação.198

Isto é, para que a solidariedade seja praticada como imperativo ético pelos
indivíduos e pela sociedade é necessária a aquisição de competências humanas e
sociais que a viabilizem.

Há um aspecto na citação acima que chama a atenção: a “aprendizagem de


competências de caráter geral” que leve as pessoas à prática da solidariedade. Que
tipo de educação pode levar as pessoas a adquirirem competências e que
competências são estas? O tipo de competências que se adquire ao longo da vida
está intimamente relacionado ao tipo de educação que se recebe. Por exemplo, nas
sociedades capitalistas as pessoas são “educadas” para serem consumistas, o que
faz diminuir, ou morrer nelas o desejo de solidariedade. Segundo Assmann e Sung,
“quando todos se vêem somente como consumidores, a solidariedade é
impossível”.199

A pergunta acima enunciada pode ser feita de forma inversa: Como se


adquire competências? Perrenoud traz uma resposta satisfatória a esta questão:

198
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 75.
199
Idem, Ibidem, p. 183.
69

As competências não se ensinam, mas se constroem graças a um


treinamento. Aprende-se fazendo, ao sabor de uma prática reflexiva,
com um apoio, uma regulação e um coaching. Não se trata de
aprender tudo sozinho, por tentativa e erro, mas tampouco de se
exercitar simplesmente para seguir um procedimento, um modo de
uso ou uma receita. Para desenvolver competências, é preciso
confrontar-se pessoalmente, de forma ao mesmo tempo repetida e
variada, com situações complexas e empenhar-se para tentar
domina-las, o que, aos poucos, leva a integrar saberes, habilidades
mais estritas, informações, métodos para enfrentar, para decidir em
tempo real, para assumir riscos. Isso demanda tempo, não podendo
ser feito no ritmo desenfreado da transmissão de saberes
descontextualizados.200

As necessárias competências para o agir solidário num mundo competitivo e


complexo são construídas de forma prática e reflexiva, e isto enseja um tipo de
educação que extrapole a mera transmissão de informações desvinculadas do
contexto social, político, econômico e religioso onde esta ocorre. Por isso que
Perrenoud vai afirmar que

Formar para a solidariedade é, portanto, formar indivíduos críticos, que


querem e podem tornar-se atores, defender seus interesses, explicar e combater os
mecanismos que engendram a violência, a miséria, a exclusão.201

Neste desafio de se instaurar uma sociedade solidária, sem abrir mão das
competências e da competitividade , tão necessárias para a convivência, a
manutenção e a reprodução da vida social202, urge um modelo de educação que
ultrapasse os velhos esquemas “transmissor-receptor”, uma educação bancária,

200
PERRENOUD, Philippe. Escola e Cidadania: o papel da escola na formação para a democracia, p.
75.
201
Idem, Ibidem, p. 97.
202
Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 152.
70

como denominava Paulo Freire aos processos pedagógicos onde o educador


transmite informações e o educando as recebe passivamente. Nas palavras de
Delors,

Uma nova concepção ampliada de educação devia fazer com que


todos pudessem descobrir, reanimar e fortalecer o seu potencial
criativo [...] Isto supõe que se ultrapasse a visão puramente
instrumental da educação, considerada como via obrigatória para
obter certos resultados (saber-fazer, aquisição de capacidades
diversas, fins de ordem econômica), e se passe a considera-la em
toda a sua plenitude: realização da pessoa que, na sua totalidade,
aprende a ser. 203

Nesse sentido, o de ultrapassar os velhos esquemas educacionais de


transmissão de informações, a Comissão Internacional sobre educação para o
século XXI, da UNESCO, sugere quatro momentos distintos, mas inseparáveis, para
um processo pedagógico que leve em consideração tanto a aquisição de
competências quanto o respeito pelo outro, o que ela, a Comissão, irá denominar de
“os quatro pilares da educação”, a saber, “aprender a conhecer”, “aprender a fazer”,
“aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros”, “aprender a ser”.204

Estes quatro pilares da educação propostos pela Comissão chamam à


atenção como uma espécie de pré-requisitos para uma educação para a vivência
solidária. Aqui, se faz necessária a compreensão destes saberes, tendo em vista
emergirem, eles próprios, como competências necessárias para a prática da
solidariedade como imperativo ético-social.

Primeiro, a educação deve proporcionar às pessoas condições para “aprender


a conhecer”, ou seja, uma educação que não objetiva necessariamente a aquisição
de saberes prontos, mas, segundo Delors,

203
DELORS, Jacques et alii. Educação: um tesouro a descobrir, p. 90.
204
Cf. DELORS, Jacques et alli. Op. Cit., pp. 89-102.
71

o domínio dos próprios instrumentos do conhecimento pode ser


considerado, simultaneamente, como um meio e como uma
finalidade da vida humana. Meio, porque se pretende que cada um
aprenda a compreender o mundo que o rodeia, pelo menos na
medida em que isso lhe é necessário para viver dignamente, para
desenvolver as suas capacidades profissionais, para comunicar.
Finalidade, porque seu fundamento é o prazer de compreender, de
conhecer, de descobrir.205

Tanto a superação da educação racionalista, cartesiana, quanto a da


educação como mera transmissão de informações estão presentes neste postulado.
O ser humano descobrindo o potencial cognitivo do mundo que o cerca, tanto na
aquisição de competências quanto na comunicação mútua. E, nesse processo de
dialogação com o mundo, que se apresenta ao ser humano como meio de aquisição
de conhecimentos, o prazer aparece como mediador. Segundo Silva, “o ato cognitivo
passa a ser uma atividade que envolve todos os nossos sentidos. [...] Os sentidos
estão associados ao ‘gosto’; portanto, àquilo que proporciona o gozo e o prazer”.206

Esta preocupação com processos educativos que sejam prazerosos,


rompendo com a educação como mera transmissão de informações ou instruções,
está presente na crítica que faz Assmann da instrução escolar. Segundo ele,

Precisamos reintroduzir na escola o princípio de que toda a


morfogênese do conhecimento tem algo a ver com a experiência do
prazer. Quando esta dimensão está ausente, a aprendizagem vira um
processo instrucional, que pode até chegar a ser maquinicamente
eficiente e criar um montão de automatismos eficientistas.207

Juntamente com “aprender a conhecer”, “aprender a fazer” está diretamente


ligado à aquisição de novas competências exigidas pelos novos processos de

205
DELORS, Jacques et alii. Op. Cit., pp. 90-91.
206
SILVA, Divino José da. Op. Cit., p. 226-27.
207
ASSMANN, Hugo. Op. cit., p. 151.
72

produção. Dentre tantas, pode-se enumerar algumas delas: tarefas intelectuais em


detrimento das físicas; “qualificação técnica”, “comportamento social”, “aptidão para
o trabalho em equipe”, iniciativa e não ter medo de arriscar; competências humanas
(“intuição”, “capacidade de julgar”); capacidade empreendedora.208

Novas competências são, na verdade, novos conhecimentos adquiridos por


intermédio de uma educação que leve em consideração tanto a complexidade
humana quanto a social. Porém, de acordo com Perrenoud,

As competências mobilizam conhecimentos, mas não se reduzem a


eles. Manifestam-se na capacidade de um sujeito de mobilizar
diversos recursos cognitivos para agir com discernimento diante de
situações complexas, imprevisíveis, mutáveis e sempre singulares.209

São essas novas “capacidades” de mobilizar conhecimentos em situações


novas, inesperadas e complexas que estão no cerne de uma educação que leve os
indivíduos a aprenderem a fazer e não apenas desenvolver uma determinada tarefa
repetitiva. Por isso, Delors irá salientar que “as aprendizagens devem evoluir e não
podem mais ser consideradas como simples transmissão de práticas mais ou menos
rotineiras, embora estas continuem a ter um valor formativo que não é de
desprezar”.210

Também, como uma espécie de pré-requisito para uma educação para a


solidariedade, as pessoas precisam “aprender a viver juntas e com os outros”
utilizando duas vias que se complementam: “num primeiro nível, a descoberta
progressiva do outro. Num segundo nível, e ao longo de toda a vida, a participação
em projetos comuns...”211

Não é interessante o fato de que as pessoas precisem aprender a viver juntas


umas com as outras? Essa aprendizagem é necessária, pois as pessoas vivem

208
Cf. DELORS, Jacques et alii. Op. Cit., pp. 93-96.
209
PERRENOUD, Philippe. Op. cit., p. 69.
210
DELORS, Jacques et alii. Op. Cit., p. 93.
211
Idem, Ibidem, p. 97.
73

juntas mas não “estão” juntas, vivem com o “outro”, mas não conhecem a sua
“outridade”. E não existe a possibilidade de se passar das ações solidárias
emergenciais, a solidariedade como reconhecimento da interdependência como um
fato, para ações solidárias de cunho ético-político se não se conhecer o outro, suas
mazelas, suas limitações, seus desejos. Segundo Assmann e Sung,

Solidariedade tem a ver com o modo de ver o mundo e a vida.


Solidariedade é uma relação inter-humana fundamentada na
alteridade, que pressupõe o reconhecimento do/a outro/a na
diferença e singularidade, atributos da alteridade. Reconhecer o/a
outro/a na diferença pressupõe relativizar a si mesmo, as nossas
certezas, enfim, todas as mesmices.212

Para que as pessoas possam ser solidárias umas com as outras, é preciso
que haja um encontro real com o outro, o reconhecimento da sua outridade e
alteridade, bem como de que suas necessidades podem ser satisfeitas. Segundo
Sacristán, a solidariedade

inicia-se porque consideramos quem ajudamos semelhantes a nós.


[...] As relações de solidariedade [...] podem ser motivadas por
vínculos amorosos [...] (e) podem ser impulsionadas por imperativos
éticos de reconhecer o outro como semelhante.213

O reconhecimento do outro como semelhante, apesar da consciência de sua


alteridade, talvez queira significar que foi dado o salto para a solidariedade como
ação de cunho ético-político.

O conhecimento do outro provoca nas pessoas o conhecimento de si


mesmas, experiência imprescindível para o reconhecimento do outro na sua

212
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 97.
213
SACRISTÁN, J. Gimeno. Educar e Conviver na Cultura Global: As exigências da cidadania, p. 132.
74

alteridade. “só então poderão”, conforme Delors, “verdadeiramente, pôr-se no lugar


dos outros e compreender as suas reações”.214

Enfim, para que as pessoas vivenciem a solidariedade como um imperativo


ético, precisam “aprender a ser”. Segundo Delors, uma educação que leve as
pessoas a aprenderem a ser, “deve contribuir para o desenvolvimento total da
pessoa – espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético,
215
responsabilidade pessoal, espiritualidade”.

A educação compreendida apenas como transmissão de informações ou


instrumental não respeita e muito menos contribui para o desenvolvimento total do
ser humano, para a humanização, em suas nuanças acima explicitadas. É preciso
ater-se à questão de que nossos sentidos participam, concomitantemente, na
recepção de informações do meio ambiente e na construção da realidade.216

Como resultado desta máxima, pode-se afirmar que a aquisição de


conhecimentos passa literalmente pelo corpo e que, diametralmente, o
reconhecimento  e a construção  da realidade que nos cerca só é possível através
dele. Em outras palavras, a recepção de informações do meio e a construção da
realidade, processo que se dá de maneira concomitante, ocorre na e pela
corporeidade.

Por isso uma educação que corrobore o processo de fazer-se humano deve
ter como ponto de partida o próprio ser humano, na sua corporeidade. Segundo
afirma Assmann,

Todo conhecimento se instaura como um aprender mediado por


movimentos internos e externos da corporeidade viva. Toda
aprendizagem tem uma inscrição corporal. Não existe mentalização
sem corporalização. Por isso, o corpo aprendente é a referência
fundante de toda aprendizagem.217

214
DELORS, Jacques et alii. Op. Cit., p. 98.
215
DELORS, Jacques et alii. Op. Cit., p. 99.
216
Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 246.
217
ASSMANN, Hugo. Op. cit., p. 47.
75

Os humanos se relacionam, expressam seus sentimentos e vivem através do


corpo. Aprendem, em contato com o meio que os cercam, através do corpo.
Constroem-se seres humanos, no convívio com outros, através do corpo. Os seres
humanos só o são na intercorporeidade.

Os “quatro pilares da educação” acima discutidos revelam-se como


competências humanas e sociais necessárias para a prática da solidariedade como
imperativo ético. Essa afirmativa está ancorada nas definições, dadas por Assmann
e Sung, de competência humana e competências sociais,218 que comportam os
enunciados gerais dos “quatro pilares da educação”, que aqui aparecem resumidos
pelos mesmos autores:

Aprender a aprender  priorizar as experiências de aprendizagem


Aprender a fazer  ênfase nas competências e habilidades
Aprender a viver juntos  juntar competência e solidariedade
Aprender a ser  realizar-se como indivíduo e ser social219

Assmann e Sung reconhecem, ainda, que a proposta da Unesco foge à lógica


neoliberal ao propor um modelo educativo que na contramão dos valores
enunciados pela sociedade capitalista, conjugam competência e solidariedade.
Segundo os autores,

O destaque do papel da educação na luta contra a exclusão, a


ênfase na participação democrática, o alerta de que o crescimento
econômico perde sentido sem o desenvolvimento social e a
insistência na visão de um mundo solidário evidenciam que se trata
de uma visão que certamente não pode ser acusada de neoliberal.

218
Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., pp. 213-222.
219
Idem, Ibidem, p. 211.
76

Por outro lado, é óbvio que não fantasia acerca de um mundo sem
emulações competitivas e mecanismos de mercado.220

O que se coloca em questão, aqui, é o tema da insuperável tensão entre


competição, competência e solidariedade em sociedade complexa. E, nesse sentido,
as competências “transversais” de Perrenoud vão demonstrar a necessidade de
desenvolve-las para se ser sujeito e não objeto em sociedades complexas. São elas:

 Saber identificar, avaliar e fazer valer seus recursos, seus


direitos, seus limites e suas necessidades;
 Saber, individualmente ou em grupo, conceber e implementar
projetos, desenvolver estratégias;
 Saber analisar situações, relações, campos de força de
maneira sistemática;
 Saber cooperar, agir em sinergia, participar de um grupo,
compartilhar uma liderança;
 Saber construir e coordenar organizações e sistemas de ação
coletiva de tipo democrático;
 Saber gerir e superar conflitos;
 Saber operar com regras, utiliza-las, elabora-las;
 Saber construir ordens negociadas para além das diferenças
culturais.221

Todas estas competências têm, em si, aspectos relacionados à solidariedade


vivenciada, individual e socialmente, como imperativo ético. Todas são,
pedagogicamente falando, novos conhecimentos adquiridos intelectualmente,
mediatizados pelo mundo reconhecido como meio cognitivo.

220
Idem.
221
PERRENOUD, Philippe. Op. cit., p. 111. Competências transversais, para o autor, são aquelas
“que atravessam os diversos campos sociais e não são específicos de nenhum”. Cada uma destas
competências será desenvolvida e discutida, pelo autor, em detalhes nas páginas 107 a 129. Grifo do
autor.
77

Mas a educação para o reconhecimento da interdependência como um fato


do qual nenhum indivíduo, e nenhuma sociedade, pode escapar, e para a prática da
solidariedade, requer, para além de competências intelectuais, experiências que
dêem sentido e passem a direcionar a vida desses mesmos indivíduos e sociedades.
Para Sung, “o reconhecimento da interdependência exige experiências de
aprendizagem e de vida que vão além do mero conhecimento intelectual. É algo que
penetra no nosso ser e se torna parte do nosso existir”.222

Uma educação para a solidariedade não deve, então, estar restrita ao ensino
“teórico racional”, mas necessita levar em conta, como processo cognitivo, os
“exemplos de vida” e uma certa “espiritualidade” que mova as pessoas em direção
de outras pessoas com necessidades ou que estejam sofrendo. É o que se pretende
abordar no tópico seguinte.

4. Solidariedade e Espiritualidade

Educar para a solidariedade pressupõe, como foi discutido até aqui, viabilizar
processos cognitivos que proporcionem aos educandos a aquisição intelectual de
competências que a estabeleçam como ações de cunho ético-político em
sociedades complexas.

Mas, como afirma Perrenoud, estas competências podem ser desenvolvidas


“ao sabor da experiência de vida e de uma prática reflexiva”.223 Experiência e
reflexão são fenômenos que ocorrem concomitantemente como processo cognitivo,
e, na aquisição de conhecimentos através da inter-relação com o meio, os seres
humanos experienciam e refletem através dos sentidos.

Quando se afirma que os sentidos têm participação ativa na aquisição de


conhecimentos, abre-se espaço para a discussão da sensibilidade como meio de
conhecimento. Segundo Assmann e Sung, uma condição epistemológica necessária
para ser solidário/a

222
SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 57.
223
PERRENOUD, Philippe. Op. cit., p. 129.
78

é a valorização da sensibilidade como conhecimento. Sensibilidade


no sentido de experiências físicas da visão, audição e tato. [...]
Também é preciso valorizar a sensibilidade no sentido da
‘sensibilidade humana’, a capacidade de sentir a empatia e a
compaixão, de se deixar tocar pelas vidas, sofrimentos e alegrias,
esperanças e desejos de outras pessoas.224

Desse modo evidencia-se qual o modelo de educação se faz necessário para


que as pessoas passem da solidariedade apenas como um fato, e relacionada à
interdependência, para um segundo sentido, mais normativo ou propositivo225: uma
educação para a sensibilidade solidária. De acordo com Assmann e Sung,

A palavra sensibilidade quer mostrar que a solidariedade como ato


ético-subjetivo radical só acontece quando entram em jogo os
‘sentidos’, como a percepção empática do sofrimento e angústia
dos/as outros/as. O ver e o ouvir alterando a sensibilidade da nossa
pele. Ao mesmo tempo, a sensibilidade é a condição a priori para que
o/a outro/a possa irromper no meu mundo como outro/a.226

É no contato com o outro, na sua ambigüidade humana, que a sensibilidade


pode aflorar, pois o ser humano nunca é insensível ao sofrimento alheio, a não ser
em caso de patologia.

Da mesma forma que a aquisição de conhecimento passa pela relação “eu-


meio”, o aflorar da sensibilidade passa pela relação “eu-tu”. Nesta inter-relação
humana, o outro se me apresenta como mais humano e menos “supra” ou “infra”
humano, o que faz com que a relativização da minha “supra” ou “infra-humanidade”
venha à tona. Segundo Sung,

224
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 98. Sublinhado dos autores.
225
Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 75.
226
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 98.
79

uma sabedoria que está precisando ser ensinada e aprendida em


todo o mundo é a que nos ensina que não se pode ser feliz e amar a
si mesmo de verdade se não se é capaz de se abrir ao sofrimento de
outras pessoas, se não se é capaz de ter uma sensibilidade solidária.
E que não se pode realmente viver a sensibilidade solidária se não
for capaz de aceitar, assumir e amar a si próprio, na sua condição
humana e não em uma falsa auto-imagem de um ser supra ou infra-
humano.227

Aqui entra a questão da relativização das certezas que se adquire ao longo da


vida, como fruto de uma educação que apenas transmite informações, que não
deixa espaço para a dúvida, que gera pré-conceitos em relação ao outro. Nas
palavras de Sung,

Para quem tem certeza, pessoas e povos diferentes não são


diferentes, mas sim errados. Portanto, só posso encontrar outro como
outro, isto é, reconhecer o outro como um ser com plena dignidade
humana apesar de todas as diferenças, na medida em que eu duvido
das minhas certezas.228

À educação para a sensibilidade solidária cabe, então, o papel de relativizar


as certezas adquiridas no processo de aquisição de conhecimentos. É interessante
que estas certezas foram se cristalizando como conhecimentos tidos como
verdadeiros, sem espaço para erros. Mas, segundo Morin,

O conhecimento não é um espelho das coisas ou do mundo externo.


Todas as percepções são, ao mesmo tempo, traduções e
reconstruções cerebrais com base em estímulos ou sinais captados e
codificados pelos sentidos. [...] O conhecimento, sob forma de

227
SUNG, Jung Mo. Sujeito e Sociedades Complexas: Para repensar os horizontes utópicos, p. 172.
228
SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 70.
80

palavra, de idéia, de teoria, é o fruto de uma tradução/reconstrução


por meio da linguagem e do pensamento e, por conseguinte, está
sujeito ao erro.229

Essa tradução/reconstrução da realidade ocorre através da prática, isto é, de


experiências com o meio onde se vive através dos sentidos.

Quem tem certeza não precisa de esperança. Certezas dão a impressão de


que tudo está acabado, que não resta nada a construir (ou “des-construir”). Segundo
Assmann e Sung,

Quando há bases seguras, ‘científicas’, para as nossas projeções


desejantes, temos otimismo. Esperança é quando nós esperamos
apesar das nossas incertezas, apesar das atuais condições humanas
e sociais que não nos dão garantia da possibilidade de realização
dos nossos desejos.230

Esperança e utopia são dois lados da mesma moeda. A esperança não


permite a desistência porque possibilita enxergar no horizonte o ideal, o perfeito que
se quer alcançar; a utopia. Porém, conforme assevera Assmann, “o horizonte
utópico vira fumaça ideológica (tóxica!) quando não se elaboram linguagens acerca
da inauguração desse horizonte utópico a partir de conhecimentos vividos e
esperanças personalizadas”.231

Discutir a possibilidade de uma educação para a sensibilidade solidária


pressupõe que os seres humanos trazem “em si” uma certa dose de sensibilidade
que não os deixa ficarem indiferentes frente ao sofrimento alheio. O que se passa é
que a educação tradicional, utilitarista, tem alimentado uma sensibilidade “medrosa”,
ou seja, um tipo de emoção que não tem “coragem” de se traduzir em atos
solidários. Segundo Sung,

229
MORIN, Edgar. Op. Cit., p. 20.
230
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 103.
231
ASSMANN, Hugo. Op. cit., p. 149.
81

Quando uma pessoa desvia o olhar para não ver o sofrimento alheio
ou responde de modo agressivo a uma criança pobre que pede um
trocado, ele não está sendo indiferente. [...] Estas reações imediatas,
na maioria das vezes inconscientes e/ou não planejadas, mostram
que a pessoa foi tocada. [...] Reage. Só que reage com uma aparente
indiferença ou com agressividade, como uma forma de se defender
do ‘incômodo’, da dor sentida ao ver o sofrimento alheio.232

Quando a educação se dá através de experiências que valorizam o uso dos


sentidos, na aquisição de conhecimentos, os sentimentos vêm à tona e se
exteriorizam por meio de ações concretas. Dito de outra maneira, a aproximação, o
toque, o ver, o ouvir permitem que os sentimentos outrora camuflados numa
roupagem de indiferença venham à tona como sensibilidade solidária. Nas palavras
de Damásio,

O simples processo de sentir começa a dar ao organismo o incentivo


para prestar atenção aos resultados da emoção (o sofrimento
começa com sentimentos, embora seja intensificado pelo
conhecimento...) [...] Esse conhecimento, por sua vez, é um
trampolim para o processo de planejar reações específicas.233

Sentir e emocionar-se são reações que eclodem através do contato com o


outro. A solidariedade, segundo Assmann e Sung, “é uma relação inter-humana
fundamentada na alteridade, que pressupõe o reconhecimento do/a outro/a na
diferença e singularidade, atributos da alteridade”.234 Esse reconhecimento do outro
e da sua alteridade pressupõe o diálogo. Nesse sentido, esses mesmos autores vão
reconhecer, um pouco mais adiante, “que para conhecer a realidade complexa das

232
SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 159.
233
Damásio, Antonio. O mistério da consciência, p. 160. Grifo do autor.
234
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 97.
82

vidas humanas e sociais o caminho não é a proposta cartesiana de ‘idéias claras e


distintas’, mas a aproximação respeitosa e dialógica”.235

Estas “idéias claras e distintas” têm sido o foco de uma educação anti-
dialógica, de um processo educacional racionalizado que tem prezado pela
transmissão de valores culturais individualizantes. De acordo com Sung

Há na sociedade uma diversidade grande de cosmovisões, doutrinas


religiosas ou éticas que justificam a indiferença. As pessoas com
dificuldade em conviver com o sentimento de compaixão têm a sua
disposição os mais diversos tipos de doutrinas ou explicações
pseudocientíficas para justificar a seleção e/ou bloqueio das
emoções, [...] A razão ou a racionalidade (em geral econômica ou
teológica) é utilizada para justificar o bloqueio da emoção que nos
mostra a nossa incapacidade de ver sem reagir ao sofrimento
alheio.236

O diálogo é próprio da educação. Porém, o que tem ocorrido através dessa


dialogicidade, é que as gerações mais velhas têm transmitido às mais jovens seus
conhecimentos, moldando o jovem de acordo com suas experiências, sem respeitar
sua personalidade e originalidade. Freire se refere a esta situação da seguinte
maneira:

Ditamos idéias. Não trocamos idéias. Discursamos aulas. Não


debatemos ou discutimos temas. Trabalhamos sobre o educando.
Não trabalhamos com ele. Impomos-lhe uma ordem a que ele não
adere, mas se acomoda. Não lhe propiciamos meios para o pensar
autêntico, porque recebendo as fórmulas que lhe damos,
simplesmente as guarda. Não as incorpora porque a incorporação é o

235
Idem, Ibidem, p. 99.
236
SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 161.
83

resultado de busca de algo que exige, de quem o tenta, esforço de


recriação e de procura. Exige reinvenção237.

Faz-se necessária uma educação que desenvolva nas novas gerações um


ser autêntico, sem paradigmas culturais diabólicos impostos através de uma
educação transmissora de fórmulas pré-concebidas.

O que se percebe nesse tipo de educação é que a relação “educador-


educando” é simplesmente narrativa, o que implica num não diálogo. No lugar do
diálogo entre educador e educando o que se tem é um mero ato de depositar, em
que os educandos tornam-se recipientes prontos para o preenchimento. Segundo
Freire,

Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem


de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os
depósitos, guardá-los e arquivá-los. Margem para serem
colecionadores ou fichadores das coisas que arquivam.238

Nesse tipo de educação alienante, onde educar é o ato de depositar, de mera


transmissão de informações, verifica-se um estado de passividade do ser humano,
que ingenuamente se amolda ao sistema estabelecido, ao status quo.

A educação bancária promove a preservação da ordem vigente, do status


quo, se colocando à disposição da ideologia dominante, o que não modifica em nada
a cultura individualista contemporânea, muito pelo contrário, fornece subsídios para
a sua cristalização. Nesse sentido, segundo Azevedo, a educação torna-se “um dos
mais válidos instrumentos da conservação de tal estado de coisas. [...] Por seu
estilo, esta educação contribui decisivamente para a permanência diversificada
destas ordens”.239

237
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade, p. 104.
238
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 66.
239
cf. AZEVEDO, Marcelo C.. Educação, Sociedade, Justiça: Um Enfoque Antropológico-Cultural, p.
25.
84

Anteriormente foi observado que o conhecimento, o pensamento e a ação dos


indivíduos são mediatizados por paradigmas culturais neles inscritos240. Embora os
paradigmas culturais sejam relativos, isto é, não são “perenes nem omni-
explicativos, porque em qualquer paradigma há um recorte das perguntas admitidas
como relevantes e, portanto, uma demarcação do que é admissível como real”,241
eles são interiorizados pelos indivíduos. Segundo afirma Perrenoud, “o
individualismo é um modelo cultural contemporâneo”,242e isso significa que os
valores transmitidos às novas gerações, por intermédio da educação, são valores
individualistas, o que dificulta grandemente a construção de uma cultura solidária.

A construção de uma cultura solidária não pode comportar pensamentos e


ações ingênuos. Embora uma educação para a sensibilidade solidária pressuponha
a prática da solidariedade como imperativo ético, o que inevitavelmente tornará as
pessoas e as sociedades mais humanas, a solidariedade “não pode ser
transformada no único princípio organizador”.243

Construir uma sociedade solidária passa pela consolidação da solidariedade


como ações de cunho ético-político e pelo desabrochar da sensibilidade solidária.
Como já foi salientado neste capítulo, para que a solidariedade se manifeste
voluntariamente nas ações cotidianas dos indivíduos em sociedade, deve ocorrer
uma verdadeira transformação na própria maneira de pensar desses mesmos
indivíduos.

Essa transformação radical da maneira de pensar, de adquirir conhecimentos


e competências para a construção de uma cultura solidária requer uma
“epistemologia solidária”, que segundo Assmann e Sung, é:

um modo de conhecer, pensar e inter-relacionar pensamentos que


seja complexo e aberto desde a sua mais profunda raiz, e ao longo
de seu desdobramento. Forma de conhecimento que sejam,
congenitamente, formas de relacionamento, e que os aprendentes se

240
Vide citação nº 10 deste capítulo.
241
ASSMANN, Hugo. Op. cit., p. 91.
242
PERRENOUD, Philippe. Op. Cit., pp. 83-84.
243
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit. p. 152.
85

possam dar conta disso. Que haja uma dimensão solidária na própria
forma de aprender, no cerne do próprio pensamento.244

A epistemologia solidária sugere a aquisição de conhecimentos através de


relacionamentos solidários. E relacionar-se implica em dialogicidade. Somente na
dialogicidade o outro se faz conhecer, o que é um pressuposto para a prática da
solidariedade. Nessa relação dialógica245 ocorre um processo cognitivo que conduz
à sensibilidade solidária. Freire define o processo educativo afirmando que “ninguém
educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se
educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”.246

Esta criticidade que nasce do relacionamento solidário, é possibilitada pela


relativização das certezas, no encontro com o semelhante. Essa proximidade
dialógica permite a compreensão do outro, mas, ao mesmo tempo, e até mais
importante, essa proximidade permite a auto-compreensão. E a auto-compreensão
permite que o indivíduo, que agora passa a se conhecer, se coloque no lugar do
outro e compreenda suas reações.247 Assim, Morin vai dispor “a missão
propriamente espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como
condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade”.248

A reação provocada pela dor alheia é a compaixão,249 e compaixão é sentir a


mesma dor. Mas, continua Sung, “para que possamos viver a compaixão, a base da
solidariedade, precisamos ter força espiritual para conviver com o nosso sofrimento
e com o sofrimento alheio”.250 A compreensão como relação dialética intersubjetiva
está relacionada à dimensão espiritual do ser humano.

244
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit. p. 260.
245
Para Freire, diálogo “é uma relação horizontal de A com B. [...] Nutre-se do amor, da humildade,
da esperança, da fé, da confiança. Por isso só o diálogo comunica. E quando os dois pólos do
diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca
de algo”. Cf. FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade, p. 115.
246
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 79.
247
Cf. DELORS, Jacques et alii. Op. Cit., p. 98.
248
MORIN, Edgar. Op. Cit., p. 93.
249
Cf. SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 159.
250
Idem, Ibidem, p. 170.
86

Compreender o outro, seu sofrimento, suas reações, suas limitações, é


indispensável para o desenvolvimento de uma sensibilidade solidária. Por isso,
segundo Assmann e Sung,

Precisamos ensaiar formas do pensar e do aprender que impliquem


simultaneamente a afirmação da subjetividade dos aprendentes e a
abertura à intersubjetividade e à sensibilidade social. Falar é querer
comunicar-se. Querer comunicar-se implica reconhecimento mútuo
entre os dialogantes.251

Aliás, a verdadeira comunicação só acontece quando os dialogantes se reconhecem


como semelhantes, como iguais, estabelecendo-se uma relação de simpatia entre
eles.252
Esse relacionamento simpático, onde ocorre o reconhecimento mútuo dos
dialogantes compreende a subjetividade, a intersubjetividade, a alteridade, enfim,
uma gama de elementos que sugerem que a relação solidária entre os indivíduos
não é simples e nem de fácil manutenção. Segundo Morin, “ainda que solidários, os
humanos permanecem inimigos uns dos outros, e o desencadeamento de ódios de
raça, religião, ideologia conduz sempre a guerras, massacres, torturas, ódios,
desprezo”.253 Por isso que a educação para a sensibilidade solidária, mediatizada
pelos “exemplos de vida” que se dão no relacionamento compreensivo com o outro,
se torna tarefa imprescindível para a construção de uma cultura solidária.

Porém, e a título de encerramento desse capítulo, temos que ressaltar a


importância da institucionalização das ações solidárias, para que o desejo da
construção de uma cultura solidária não permaneça na esfera do ideal. De acordo
com Sung, “é preciso que o valor da solidariedade seja institucionalizado em
mecanismos auto-reguladores, como salário-desemprego decente, ou hospital e
educação de qualidade para todos”.254

251
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 260.
252
Cf. FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade, p. 115.
253
MORIN, Edgar. Op. Cit., p. 85.
254
SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 81.
87

Interessante, para esta pesquisa, é poder enfatizar que na Genebra do século


XVI pode ser encontrado, como fruto da reforma protestante, instituições de caráter
filantrópico para o socorro dos excluídos do sistema, pobres, enfermos e inválidos,
como o “Hospital Geral” e a “instrução pública obrigatória”.255

Mesmo que, antes da chegada de Calvino à cidade, e portanto antes da


sistematização da sua doutrina teológica e social, já existissem algumas instituições
com esse fim, pode-se encontrar em Calvino a preocupação de mantê-las e/ou
melhora-las. Como exemplo disso, ele não somente decreta, segundo Biéler, “que os
pobres, os enfermos e os inválidos sejam reeducados profissionalmente”,256 mas
também que:

Será necessário velar diligentemente a que o asilo comum seja bem


provido e que isto seja tanto para os doentes quanto para a gente
idosa que não pode trabalhar, assim como também para as senhoras
viúvas, as crianças órfãs e outras pessoas pobres. [...] Que os
ministros e os encarregados [...] com um dos senhores síndicos
tenham de sua parte cuidado de indagar se aí havia qualquer falta ou
necessidade de alguma coisa, a fim de solicitar-se à Magistratura a
pôr tudo em ordem.257

Neste decreto de Calvino, cuja preocupação está em melhorar a condição de


vida dos excluídos da sociedade genebrina, aparece nitidamente a inter-relação, ou
a relação solidária entre a Igreja e o Estado na manutenção da ordem, ou da coesão
social. Por manutenção da ordem ou da coesão social na Genebra do século XVI,
subtende-se, de acordo com a doutrina teológica e social de Calvino, a vigilância
exercida pelo Estado sobre os indivíduos, e instituições, de maneira que
estabeleçam ações solidárias, principalmente com os excluídos, mas também, e

255
Cf. BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 222. Vide Capítulo I, nota nº
51.
256
BIÉLER, André. Op. cit., p. 225. Vide Capítulo I, notas nº 133 e 134.
257
apud BIÉLER, André. Op. cit., pp. 224-225.
88

concomitantemente, a vigilância exercida pela Igreja sobre o Estado para que este
não deixe de cumprir seu papel mantenedor da coesão social.

No terceiro, e último capítulo deste trabalho, tentar-se-á demonstrar que a


doutrina teológica e social de Calvino emerge como educação para a solidariedade
com os excluídos, que na nossa sociedade significa dizer excluídos do mercado de
trabalho e, conseqüentemente, do mercado consumidor. Como fomentadora deste
processo educativo, aparece a Igreja, entendida como espaço onde relações
solidárias de cunho ético-político podem ser construídas pedagogicamente, desde
que sua dimensão profética seja resgatada por meio de uma práxis que intenta
instaurar uma sociedade nova baseada nos ideais do Reino de Deus.
89

III. A EDUCAÇÃO PARA A SOLIDARIEDADE SEGUNDO A DOUTRINA TEOLÓGICA


E SOCIAL DE CALVINO

De acordo com Calvino, como foi visto no primeiro capítulo, a Igreja e o


Estado são duas instituições divinas, cada qual com suas atribuições, a serviço da
implantação do Reino de Deus entre os seres humanos. Na implantação deste reino
que traz consigo os ideais de justiça, de eqüidade e de solidariedade humana cabe
ao Estado zelar pela justiça social e proporcionar à Igreja liberdade e segurança no
desempenho de sua missão, qual seja, vivenciar e propagar estes mesmos ideais.258

Por outro lado, cabe à Igreja, no desempenho de sua missão profética,


exercer a vigilância sobre o Estado, não lhe permitindo deixar de zelar pela
manutenção da coesão social e nem interferir, como déspota, em áreas que são
atribuições conferidas por Deus a ela somente.259 Enquanto a Igreja e o Estado
desempenharem as funções que lhes são outorgadas por Deus, dentro de seus
limites, os ideais do Reino de Deus, a saber, a justiça, a eqüidade e a solidariedade
hão de estar presentes de forma mais expressiva entre os seres humanos.

No desenvolvimento deste capítulo, procuraremos demonstrar que a doutrina


teológica e social de Calvino, entendida, por um lado, como resultado da crítica que
ele faz da relação entre Igreja e Estado na Genebra do século XVI e, por outro,
como a mola propulsora que impulsionou seus adeptos à (re) construção de uma
sociedade mais harmoniosa, emerge como processo pedagógico para a
solidariedade.

1. Estado, Igreja e Solidariedade

Se Calvino empreende dura crítica tanto ao Estado quanto à Igreja é por que
ambas instituições não estavam levando a cabo suas atribuições com relação à

258
Vide Capítulo I, nota de rodapé nº 145.
259
Vide Capítulo I, nota de rodapé nº 120.
90

manutenção da coesão social na cidade de Genebra. E depreende-se desta


afirmação que as relações sociais, a justiça, a solidariedade, a paz e a
tranqüilidade260 encontravam-se fragilizadas na sociedade genebrina.

Na compreensão de Calvino, a coesão social, como resultado do


cumprimento satisfatório das atribuições do Estado e da Igreja, era sinal da presença
ou promoção do Reino de Deus entre os seres humanos. Se as relações de
solidariedade entre as pessoas estavam fragilizadas, tem-se que a Igreja tem
falhado na promoção desse reino, o que significa, na visão de Calvino, que a Igreja
não tem cumprido sua missão profética, qual seja, exercer vigilância sobre o Estado
no cumprimento de suas atribuições sociais.

De acordo com a Teologia da Graça de Calvino, este fato tem relação com a
natureza humana pervertida pelo pecado, de sorte que tanto as intenções como as
ações humanas são más, tendo como resultado a deturpação das relações sociais
harmoniosas como dispostas por Deus. Segundo ele, ao comentar Lucas 10,30:

O gênero humano é unificado em um todo em virtude de um laço


sagrado de comunidade. São todos o próximo um do outro. Para que
alguém seja o nosso próximo, basta que seja um ente humano, pois
que não nos cabe apagar a natureza comum.261

Embora a doutrina teológica e social de Calvino tenha uma visão pessimista


do ser humano, ela revela um caminho de reconciliação para esse mesmo ser
humano no Evangelho, que anuncia a sua redenção mediante a adesão aos ideais
solidários do Reino de Deus, adesão esta por meio do encontro com Jesus Cristo.

O resultado da redenção é o amor ao próximo, experienciado em atos de


solidariedade pessoal e social.262 Esta é a compreensão que, segundo Biéler,
Calvino tem da Igreja, conforme já foi visto no primeiro capítulo:

260
Vide Capítulo I, nota de rodapé nº 103.
261
CALVIN, John. Commentary on a Harmony of the Evangelists, Matthew, Mark, and Luke. – Volume
Second – p. 435. (Vide também comentário de 1Pd 2,13).
262
Vide Capítulo I, nota de rodapé nº 129.
91

A existência, no seio da sociedade humana, desse núcleo celular que


é a comunidade dos cristãos, por pequena que seja, constitui o
estímulo para a restauração social da humanidade, desde que,
evidentemente, [...] seja verdadeiramente cristã. A Igreja, com sua
comunidade de homens e mulheres reais que recuperam em Cristo
sua humanidade, tornam-se o embrião de um mundo inteiramente
novo onde as relações sociais, outrora pervertidas, reencontram sua
natureza original.263

Percebe-se, nesse ponto, a promoção do Reino de Deus conforme a


compreensão de Calvino, e esta promoção ocorre através de ações de solidariedade
que são resultado da reconciliação ou humanização do ser humano outrora
inumanizado pelo pecado. Mas estas ações de solidariedade, que fomentam a
promoção dos ideais do Reino de Deus, não ocorrem isoladamente, senão enquanto
comunidade ou Igreja.

Hoje, quando a sociedade globalizada, que preza pelo individualismo, tende


para as relações e ações anti-solidárias, o pensamento de Calvino, com relação à
promoção do Reino de Deus por parte da Igreja, e a conseqüente revitalização das
relações sociais, se torna atual e relevante. É o que se pode perceber na proposta
de Muñoz:

Sabemos por experiência que a palavra da Igreja só poderá ser uma


boa nova do reinado de Deus se se apresentar [...] como o
testemunho de uma comunidade que confessa sua fé e demonstra
ter motivos para sua esperança. Assim sucede também com a sua
ação de serviço: só poderá ser sinal deste reinado de Deus se se
apresentar [...] como a entrega de uma comunidade que materializa e
compartilha de seu amor fraterno, que abre e estende sempre mais
sua comunidade de bens e responsabilidades [...] Desta maneira, não
gerarão relações de dependência, mas de fraternidade; não

263
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 21. Retomo aqui a citação nº 130 do Capítulo
I.
92

suscitarão tanto uma resposta de gratidão, mas de consciência da


dignidade compartilhada; não confirmarão os pobres em seu
fatalismo, mas alimentarão sua esperança; não manterão o povo em
sua passividade, mas despertarão sua responsabilidade solidária...264

O Reino de Deus materializado em ações solidárias através da encarnação


da Igreja junto aos pobres, significando, segundo Gutiérrez “tanto as classes
exploradas quanto as raças desprezadas e as culturas marginalizadas”,265 ou as
grandes massas sobrantes. A preocupação com a materialização das ações
solidárias, por parte da Igreja, pode ser encontrada na Doutrina Teológica e Social
de Calvino quando, por exemplo, decreta “que os pobres, os enfermos e os inválidos
sejam reeducados profissionalmente”,266 sendo que o resultado desta ação supera
as relações baseadas na dependência, no fatalismo e na passividade.

De acordo com a Doutrina Teológica e Social de Calvino, tais relações são o


resultado imediato da separação entre o ser humano e Deus, decorrente do pecado.
A deturpação do gênero humano não ocorre somente na esfera individual, mas
segundo Biéler, as

relações sociais também são pervertidas e toda sua [do ser humano]
vida em sociedade e suas trocas econômicas são desnaturadas. [...]
Torna-se tirano de seu próximo toda vez que consegue evitar de ser
seu escravo. Corrompem-se, assim, todas as hierarquias naturais.
Vida conjugal, vida familiar e a sociedade inteira são falsificadas pela
queda do homem.267

Se as relações solidárias, outrora dispostas por Deus, entre os seres


humanos estão deturpadas, para Calvino, somente a graça redentora de Deus pode
reverter essa situação. A graça redentora de Deus poderá alcançar e regenerar toda

264
MUÑOZ, Ronaldo. Solidariedade Libertadora: missão da Igreja, pp. 26-7.
265
apud LÖWY, Michael. Marxismo e Teologia da Libertação, p. 96.
266
Vide Capítulo I, nota de rodapé nº 134.
267
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, pp. 19-20.
93

a sociedade e a Igreja é o canal por onde os ideais do Reino de Deus podem nela se
materializar.

Para Calvino, a regeneração da sociedade passa pela regeneração do ser


humano desnaturado. Portanto, a graça redentora de Deus que interpela o ser
humano no seu caminho rumo a destruição, individual e coletiva, torna-se evidente
no encontro com Jesus Cristo. O resultado desta interpelação, que regenera e
humaniza o ser humano, o conduz ao encontro do outro. Para Calvino, a
restauração da humanidade, da qual a raça humana estava privada por causa do
pecado, ocorre no encontro com Jesus Cristo, mas esse encontro também é
horizontal, isto é, no relacionamento com o seu semelhante o ser humano é
novamente humanizado. Ao definir o pecado como “o anti-reino, quer dizer, ruptura
da solidariedade, recusa da comunhão [...], a não-solidariedade, a injustiça, a
opressão dos débeis, a morte do irmão...”,268 Codina ajuda a esclarecer o
entendimento de Calvino acerca da degeneração humana como fruto da separação
entre os seres humanos e Deus.

Já foi salientado, no primeiro capítulo, que para Calvino, “cabe à ordem civil,
entre outras coisas, fazer-nos viver com toda justiça, [...] instruir-nos na justiça
social, colocar-nos em comum acordo uns com os outros”.269 Depreende-se dessa
concepção que tanto a Igreja quanto o Estado estão a serviço de Deus para o
estabelecimento de uma sociedade onde a solidariedade seja algo comum entre os
seres humanos que a compõem. Mas a isto precede uma “instrução” ou educação,
por parte do Estado, na “justiça social”, culminando na prática de relações solidárias
e, conseqüentemente, na manutenção da coesão social.

Isso pressupõe que a coesão social emerge como resultado da solidariedade


vivenciada socialmente entre homens e mulheres. Para Assmann e Sung, a
solidariedade tem sido entendida, num primeiro momento, “como um fato e uma

268
CODINA, Victor. Renascer para a Solidariedade, p. 63.
269
CALVINO, Juan. Op. cit. Libro IV, Capítulo XX, p. 1169. “cabe à ordem civil, entre outras coisas,
hacernos vivir con toda justicia, (...) instruirnos en una justicia social, ponernos de acuerdo los unos
con los otros, mantener y conservar la paz y la tranquilidad comunes”.
94

necessidade de interdependência na vida social, um conceito associado à coesão


social”.270

A doutrina teológica e social de Calvino defende a tese de que a sociedade


humana foi disposta por Deus de forma harmoniosa, ou seja, homens e mulheres
vivendo solidariamente e promovendo, com isso, a coesão social e,
conseqüentemente, a preservação do gênero humano.

Mas, para além da compreensão de que a solidariedade vivenciada entre


homens e mulheres ocasiona a coesão social, a doutrina teológica e social de
Calvino sustenta que a prática da solidariedade com os excluídos é critério
indispensável para a constatação de que Igreja e Estado estão velando pela
manutenção desta coesão. De acordo com Calvino,

Será necessário velar diligentemente a que o asilo comum seja bem


provido e que isto seja tanto para os doentes quanto para a gente
idosa que não pode trabalhar, assim como também para as senhoras
viúvas, as crianças órfãs e outras pessoas pobres. [...] Igualmente [...]
que haja certa hospitalidade à parte para aqueles que se
considerarão como dignos de caridade especial.271

Esta solidariedade com os excluídos, encontrada no pensamento de Calvino,


é confirmada como um segundo sentido de solidariedade, conforme Assmann e
Sung, ao afirmarem que esta “é vista mais como uma atitude capaz de respeitar as
diferenças e se interessar pelos problemas da coletividade, principalmente dos que
estão sofrendo mais com a situação”.272

Desse modo, a solidariedade com os excluídos aparece como expressão da


fé cristã e reformada conforme Calvino a sistematizou através da experiência
vivenciada na sociedade genebrina do século XVI. A doutrina teológica e social de
Calvino é desenvolvida na prática dessa proposta de fé, ou seja, ao apregoar e
270
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Competência e Sensibilidade Solidária: educar para a
esperança, pp. 74-75.
271
apud BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 224.
272
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 75.
95

vivenciar a solidariedade com os excluídos como resultado da fé, Calvino cunhou


sua “doutrina” social.

Pode-se argumentar, assim, que a prática da fé cristã, como a entendia


Calvino, emerge como processo cognitivo cujo resultado é o aflorar da sensibilidade
solidária, ao colocar seus adeptos em contato relacional e dialógico com o outro,
pela prática do amor. Segundo Josaphat,

Nossa inteligência chega ao pleno conhecimento dizendo em si e


para si uma palavra, engendrando um verbo mental em que um
objeto, de fora ou de dentro da pessoa, se torne presente, em uma
nova forma de existir. Algo de semelhante, porém de feitio original, se
passa na fecundidade de amar. No ato de amar, no dinamismo da
vontade, o bem amado, coisa ou pessoa, se torna presente em uma
nova presença distinta tanto de sua realidade física como de sua
realidade mental, como objeto conhecido.273

No encontro com o outro, através da prática do amor, a outridade do meu


semelhante se torna conhecida e me sensibiliza ao reconhecer no outro as minhas
próprias mazelas.

Nesta inter-relação entre prática e conhecimento, a sensibilidade aparece


como intermediária. Dentre as condições necessárias para a prática da solidariedade
com os excluídos, Assmann e Sung introduzem a questão da “valorização da
sensibilidade como conhecimento. Sensibilidade no sentido de experiências físicas
da visão, audição e tato”.274

As relações humanas outrora pervertidas e degeneradas em relações de


dominação, com base no fatalismo e na passividade, podem ser superadas se
transformadas em relações solidárias de cunho ético-político, se a Igreja se colocar

273
JOSAPHAT, Frei Carlos. 2000: Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo – Comunhão divina,
solidariedade humana, p. 116.
274
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 98.
96

como “espaço” cognitivo fomentando e valorizando a sensibilidade humana. “Por


isso”, segundo Muñoz,

na tarefa da Igreja, a palavra evangelizadora das pessoas deve


prolongar-se em uma palavra ‘profética’ na sociedade, e a ação de
assistência e promoção das pessoas deve prolongar-se em uma
ação ‘política’ na sociedade.275

Este prolongamento da ação de assistência e promoção humana da Igreja em


ações políticas já aparece em Calvino, para quem Deus irá suscitar uma instituição
civil para, ao lado da Igreja, zelar pela manutenção da coesão social. De acordo com
Biéler, ele irá denominar essa instituição de “ordem política”.276 Segundo a Doutrina
Teológica e Social de Calvino,

A política não é, pois, sem relação com a ordem de Deus. Ela deve
representar, em todas as sociedades, a ordem que mais se aproxima
da ordem de Deus, tendo-se em conta o desenvolvimento espiritual
dos habitantes em um lugar e um momento dados.277

Se para Calvino a ordem política tem uma relação de interdependência com a


ordem de Deus, pode-se depreender que a Igreja tem uma missão também no
campo da política a desenvolver na sociedade, objetivando a promoção do Reino de
Deus e a conseqüente solidariedade humana como fruto da graça redentora de
Deus.

275
MUÑOZ, Ronaldo. Solidariedade Libertadora: missão da Igreja, p. 27.
276
Vide Capítulo I, citação nº 111.
277
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 25.
97

2. A Fé e a Práxis Política

Para se abordar a relação entre fé e política no pensamento de Calvino, é


mister ter em mente o que significa a crítica feita por ele à relação entre a Igreja e o
Estado na Genebra do século XVI. Para tanto, e a título de enfatizar esta questão
retomaremos aqui o que foi colocado como parte introdutória deste capítulo.

De acordo com a doutrina teológica e social de Calvino, a implantação do


reino de Deus, com seus ideais de justiça, eqüidade e solidariedade humana, está a
cargo tanto da Igreja quanto do Estado, quando estas duas instituições desenvolvem
sua missão de forma íntegra e responsável. No desenvolvimento de sua missão
cabe ao Estado a manutenção da ordem e da justiça social e à Igreja zelar para que
este desenvolva cumpra satisfatoriamente o seu papel. Assim, a crítica de Calvino à
união do Estado e da Igreja não consiste na proposta de separação de ambas
instituições, mesmo porque na sua compreensão, Estado e Igreja são instituições
divinas criadas para a manutenção da coesão social.

Para Calvino, as virtudes políticas que “consistem em justiça, sinceridade,


moderação, discrição, fidelidade e parcimônia”,278 têm um fim aprovado por Deus,
visto que contribuem, em parceria com a Igreja, para o desenvolvimento espiritual
dos seres humanos, em uma determinada sociedade. E esta parceria acontece da
maneira acima salientada.

Tanto a relação entre a Igreja e o Estado, cada qual com suas atribuições, na
manutenção da ordem social, como o entendimento de Calvino acerca das virtudes
políticas, são aqui importantes, pois visam demonstrar que a missão política da
Igreja não está relacionada à “conquista e exercício do poder de Estado”,279 mas
zelar para que tais virtudes sejam desenvolvidas pelos magistrados, ou detentores
do poder, objetivando a manutenção da justiça e da coesão social. De acordo com
Josaphat, ao comentar a missão política da Igreja:

278
Cf. CALVIN, John. Commentary on a Harmony of the Evangelists, Matthew, Mark, and Luke. –
Volume Second – p. 399.
279
Cf. BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder, p. 72. De acordo com o autor, “política em minúsculo
é toda atividade que se destina à administração ou transformação da sociedade mediante a conquista
e exercício do poder de Estado”. Sublinhado do autor.
98

Além e acima do poder, do seu exercício que sem dúvida deve ser
bem orientado – como bem principal e como fonte de toda retidão –
emerge o primado da justiça. Esta justiça designa em primeiro lugar a
fidelidade a Deus. Mas desenvolve-se no respeito e na promoção do
direito, de todos os direitos para todos. Ela exige sobretudo que
sejam assegurados os direitos dos pobres, dos fracos, dos
abandonados, que devem encontrar na organização do povo justo e
solidário a garantia daquilo que sua fraqueza e sua marginalidade
não lhes permitem reivindicar e defender.280

Nesta mesma linha, a doutrina teológica e social de Calvino cobra uma


postura ética por parte da Igreja. Sendo que, de acordo com essa doutrina, a fé
cristã deve ser vivenciada em comunidade, tem-se que as virtudes políticas serão
desenvolvidas quando a fé cristã é praticada pela e na comunidade dos fiéis. A
Igreja, entendida como comunidade dos cristãos, ao fomentar relações baseadas na
justiça, na eqüidade e na fraternidade, torna-se prototípica. Segundo Biéler,

A Igreja, com sua comunidade de homens e mulheres reais que recuperam


em Cristo sua humanidade, tornam-se o embrião de um mundo inteiramente novo
onde as relações sociais, outrora pervertidas, reencontram sua natureza original.281

Dentro dessa linha de pensamento cabe à Igreja a inserção na vida pública,


tendo em vista ser essa a compreensão a que se pode chegar ao abordar a relação
entre fé e política em Calvino. A Igreja se torna protótipo de uma sociedade mais
humana e solidária não se fechando dentro de seus muros, construídos com tijolos
de verdades absolutas e cristalizadas, mas colocando-se a serviço da libertação dos

280
JOSAPHAT, Frei Carlos. Op. cit, p. 176.
281
Cf. BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 21.
99

seres humanos e da sociedade, como conseqüência. Segundo Muñoz, na linha de


pensamento de Calvino,

a Igreja [...] é uma porção do mundo, ou da humanidade, que por sua


adesão consciente a Jesus Cristo está a serviço de todos os homens
e de toda a sociedade humana, para sua libertação e promoção
integrais.282

Na prática quotidiana da fé, os cristãos são convocados a exercerem suas


virtudes políticas como qualquer cidadão, com o fim de promover a construção ou a
transformação da sociedade iníqua de acordo aos princípios da justiça do
Evangelho. Nas palavras de Biéler, a Igreja está convocada a exercer sua missão
profética das seguintes maneiras, dentre outras: “advertir as autoridades, tomar a
defesa dos pobres e dos fracos contra os ricos e poderosos”.283

Na prática da justiça como exigência do Evangelho do Reino de Deus, que


contribui na construção ou transformação da atual sociedade, os cristãos adquirem
virtudes cívicas, pois, segundo Heller e Fehér, “as virtudes cívicas estão
relacionadas à esfera política, mas não são praticadas exclusivamente nessa
esfera”.284 Na prática da fé cristã, na esfera pública, os crentes também podem
desenvolver as virtudes cívicas necessárias à melhoria do todo social.

A prática humana que visa a transformação de uma sociedade


problemática,285 como já foi visto no segundo capítulo, acontece na/pela
corporeidade que se explicita através dos sentidos.286 Os sentidos têm participação
efetiva tanto na coleta de informações do intermeio como na sua transformação
imediata, corroborando a proposição de que toda prática humana se confirma como
meio de aquisição de conhecimentos.

282
MUÑOZ, Ronaldo. Op. cit, p. 23.
283
Cf. BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, pp. 382-389.
284
HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. Op. cit., p. 127.
285
Temos em mente aqui a definição de problema como “a discrepância entre uma situação real e a
ideal”. Cf. Secretaria Nacional de ação Social e Diaconia – Igreja Presbiteriana Independente do
Brasil. Metodologia de Implantação e Operacionalização de Projetos Sociais, p.13.
286
Vide Capítulo II, citações nº 72 e 79.
100

Pode-se perceber com muita clareza que fé e política não se excluem, muito
pelo contrário, complementam-se na prática cristã e cidadã que visa o
aperfeiçoamento da sociedade. Na prática da fé que não exclui a ação política, a
sociedade toda pode ser aperfeiçoada, não somente alguns grupos. Heller e Fehér
enumeram as principais virtudes cívicas que podem colaborar para se alcançar esse
objetivo, a saber, tolerância radical, coragem cívica, solidariedade, justiça,
disposição para a comunicação racional e phronesis ou prudência.287 Segundo
esses autores, “quaisquer outras virtudes que homens e mulheres desenvolvam
além dessas virtudes cívicas contribuem para a boa vida deles próprios. As virtudes
cívicas contribuem para a boa vida de todos”.288

Quando a prática humana objetiva a transformação da sociedade passa a ser


entendida como práxis, que segundo Vázquez é uma “atividade material do homem
que transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano”.289

Vázquez subdivide a práxis em quatro formas290, a saber, práxis produtiva,


produção ou criação de obras de arte, atividade científica, sendo que estas três
primeiras são, nas palavras do mesmo autor, “formas fundamentais [...] da praxis
quando a ação do homem se exerce mais ou menos imediatamente sôbre uma
matéria natural...”291 A quarta e última forma é a práxis política, que se distingue das
anteriores pelo fato de ser “o tipo de praxis em que o homem é sujeito e objeto dela;
ou seja, praxis na qual ele atua sôbre si mesmo”.292

Para Heller e Fehér a prática das virtudes cívicas propicia uma sociedade
melhor para todos os seus membros. Essas virtudes pertencem à esfera do político,
o que significa dizer que a prática das virtudes cívicas se dá no âmbito sócio-político,
objetivando sua transformação.

Os elementos transformadores presentes na definição de práxis, segundo


Vázquez, podem ser encontrados no pensamento de Calvino com relação à
resistência da Igreja à ordem estabelecida, ao status quo. Segundo Biéler,

287
Cf. HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. Op. Cit., pp. 122-129.
288
Idem, Ibidem, p. 129.
289
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Praxis, p. 13.
290
Cf. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Op. cit., pp. 194-202.
291
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Op. Cit., p. 200.
292
Idem.
101

em permanecendo fiel ao Evangelho e em se tornando, por vezes,


por este fato e sem o querer, um elemento de perturbação no mundo,
não cessa a Igreja de exercer seu ministério de regeneração da
sociedade.293

De acordo com Floristan, “toda práxis é uma atividade ou ação humana”.294


Sendo a religião um fenômeno humano, práxis religiosa cristã é, em última instância,
ação humana transformadora que se dá conforme a perspectiva cristã. Se se pode
considerar, de acordo com Floristan, “a tradição cristã como a transmissão de
algumas práticas ou ações”295, práxis religiosa cristã se configura como ação, de
mulheres e homens, que tem como referência “a memória cristã [...] de alguns feitos
prototípicos, simbolizados sacramentalmente, que se expressam historicamente”.296

Para Boff, “a prática da fé e a prática política se realizam no mesmo sujeito e


nele se dão como um abraço estreito”.297 Ao se engajar na transformação da
sociedade de acordo a perspectiva cristã, os cristãos desenvolvem sua fé política,
embora, para o mesmo autor “a fé vive de sua verdade teológica (transcendente) e
não de sua utilidade política, por mais revolucionária que se queira”.298

Ainda que a fé não se reduza à política, conforme a compreensão do próprio


Calvino, Boff continua dizendo que “a política como exigência ética decorre da fé de
maneira absolutamente necessária”.299 Para que a fé cristã seja vivida na sua
plenitude se faz necessário o envolvimento do crente na esfera pública, onde pode,
ao mesmo tempo, desenvolver e praticar as virtudes cívicas e desenvolver sua
cidadania, objetivando uma sociedade mais justa e solidária.

293
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 393.
294
FLORISTAN, Casiano. Teología Práctica: teoría y praxis de la acción pastoral, p. 181.
295
Idem. Ibidem, p. 184. “la tradición cristiana como transmisión de unas prácticas o acciones”.
296
Idem. “la memória cristiana [...] de unos hechos prototípicos, simbolizados sacramentalmente, que
se expresan historicamente”.
297
BOFF, Clodovis. Fé e Política: Alguns Ajustes. In: Fé e política: fundamentos, p. 46.
298
Idem, Ibidem, p. 43.
299
Id., Ibid., p. 48.
102

Logo, a Igreja deve fazer política, entendida, de acordo com Boff, como “a
busca comum do bem comum, a promoção da justiça, dos direitos, a denúncia da
corrupção e da violação da dignidade humana”,300 na mesma linha de entendimento
de Calvino.

Para Calvino, a fé cristã deve ser vivida comunitariamente.301 Mas a


comunidade cristã, a Igreja, encontra-se inserida na sociedade humana, o que induz
os cristãos a vivenciarem a fé que professam no espaço público. Castro afirma que
“o cristão também é um cidadão quando incorpora, em seu cotidiano, quer na esfera
privada, quer na pluralidade do espaço público, a vivência da fé cidadã”.302

A vivência da fé cidadã ou fé política se dá quando os cristãos, fiéis aos


princípios do Evangelho, instauram a utopia303 de uma sociedade mais justa, mais
fraterna, mais humana, através de uma práxis religiosa cristã que acontece no
âmbito social. Segundo Castro,

Repensar a cidade, como local prioritário da missão e da vivência de


uma fé cidadã, é um dos objetos [...] dos cristãos preocupados com a
(re) construção de cidades mais justas, solidárias, onde não haja
seres sobrantes, onde todos possam viver em condições mínimas de
bem-estar-social...304

A fé cristã se evidencia como práxis política. E esta compreensão é de suma


importância neste trabalho que tem como premissa que, de acordo com a doutrina
teológica e social de Calvino, a Igreja tem uma missão profética a cumprir na
sociedade quando esta se torna iníqua.

300
BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder, p. 70.
301
CALVINO, Juan. Institución de la Religión Cristiana. Libro IV, Capítulo XV, pp. 1035-1036.
302
CASTRO, Clovis Pinto de. Por uma Fé Cidadã: A dimensão pública da Igreja – fundamentos para
uma pastoral da cidadania, p. 114.
303
Utopia é aqui entendida, de acordo com Assmann e Sung, “no sentido de desejar e de ‘ver’ um
mundo, um lugar, [...] que ainda não existe e que talvez nunca venha a existir, mas que dá um sentido
às ações que nascem do nosso desejo de um mundo melhor”. Cf. ASSMANN, Hugo e SUNG, Jung
Mo. Op. cit., p. 134.
304
CASTRO, Clovis Pinto de. Op. Cit., p. 119.
103

Assim sendo, do exposto até aqui, pode-se depreender que a prática, a


vivência da fé cristã tem implicações políticas muito claras e evidentes. Os cristãos
estão engajados politicamente na construção de uma sociedade mais justa e
humana desde quando vivenciam sua fé de acordo aos princípios do Evangelho. No
desenvolvimento de uma práxis religiosa cristã, onde fé e política complementam-se
na implantação do reino de Deus, a Igreja leva seus partícipes ao desenvolvimento
de uma missão profética.

A fé cristã desenvolvida na esfera pública traduz-se em ações ou práticas que


culminam na aquisição de conhecimentos advindos do contato dialógico com o meio,
de acordo com o conceito de enaction de Francisco Varela,305 e também com o
outro. Por isso é possível verificar na inserção da Igreja, como comunidade de
mulheres e homens regenerados pela graça no encontro com Jesus Cristo, na
esfera pública um processo cognitivo que viabiliza o desenvolvimento de uma
sensibilidade solidária, tendo em vista que o contato com o meio e com o outro
ocorre através dos sentidos.

Porém, que garantias se pode dar de que o desenvolvimento da sensibilidade


solidária corresponde ao desenvolvimento concomitante de ações solidárias? Quais
são as chances, numa sociedade individualista e hedonista como a atual, das
pessoas, mesmo sentindo-se sensibilizadas com o sofrimento alheio, perseverarem
nas ações solidárias?

As garantias, as chances e as oportunidades de relações solidárias


permanentes são poucas, primeiro porque a espécie humana não desenvolveu, na
sua longa história evolutiva, propensões solidárias. Segundo Assmann e Sung,
“somos um animal que acumulou filogeneticamente propensões à destrutividade e
agressividade, como herança genética e cultural de múltiplas e difíceis lutas pela
sobrevivência”.306 Segundo, porque o tipo de educação presente em uma
determinada sociedade está condicionado, inexoravelmente, ao modelo cultural
vigente que a tudo e a todos condiciona.307

305
Vide Capítulo II, citação nº 8.
306
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 190.
307
Cf. DURKHEIM, Èmile. Educação e Sociologia, p. 60; VÁZQUEZ, Adolfo Sanches. Filosofía de la
praxis, pp. 13-49.
104

Por isso urge o desenvolvimento de um processo educativo que viabilize e


assegure a manutenção permanente de práticas sociais que possibilitem, além da
sensibilidade solidária, relações perseverantes de solidariedade pessoais e sociais.
E esta premissa também cabe à Igreja como instituição educadora.

3. Solidariedade e Missão: a Práxis Religiosa Cristã e a Educação para a


Solidariedade

Talvez a inconstância a que estão submetidas as relações solidárias esteja


relacionada à falta de iniciativa da maioria das pessoas. Esta inércia tem sido
largamente disseminada e reforçada por uma educação que tem prezado pela
passividade dos educandos. Por isso entre a sensibilidade que aflora no contato
com os que sofrem e a possibilidade de perseverança nas ações solidárias, vem a
lume a necessidade de uma educação para a iniciativa. De acordo com Assmann e
Sung,

a educação para saber tomar iniciativa faz parte das condições de


possibilidade de uma educação para a solidariedade. Esta
simplesmente não funciona, como constante social, onde falta a
criatividade e a disposição para tomar iniciativas.308

Para que as pessoas, acostumadas na passividade, aprendam a deixar a


inércia e saibam tomar iniciativas para a prática da solidariedade, faz-se necessário
o desenvolvimento diário de ações que a possibilitem.

Segundo a concepção de Calvino, na promoção do Reino de Deus, por parte


da Igreja, as relações fraternas emergem como resultado da regeneração do ser
humano mediante a graça redentora de Deus, no encontro com Jesus Cristo. Desse
modo a comunidade cristã aparece como “espaço” cognitivo, onde a prática do amor

308
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op.cit., p. 290.
105

irrompe como processo educativo que capacita seus partícipes a tomar iniciativas.
De acordo com Muñoz,

a Igreja e suas comunidades hão de oferecer às pessoas o espaço e


as condições de que necessitam para dizer sua própria palavra [...]
Hão de dar-lhes o espaço de que necessitam para criar e multiplicar
seus gestos de solidariedade: [...] gestos que devem antecipar um
mundo novo, como sinais da presença do reinado de Deus que
alimentam a esperança de sua plenitude futura.309

Ao viabilizar espaço, isto é, condições para que as pessoas possam dizer a


sua própria palavra e, também, desenvolverem práticas solidárias, a Igreja permite
que o ser humano se afirme como tal.

Mas, se a Igreja irrompe como “espaço” cognitivo, porque o que se percebe,


hoje, é uma quase total inércia e insensibilidade dos cristãos frente aos problemas
da sociedade atual? Ao nosso ver, tanto a inércia quanto a insensibilidade,
presentes na Igreja hodierna, estão relacionadas a dois fatores históricos: o tipo de
educação a que são submetidos seus partícipes e a perda progressiva da sua
dimensão profética.

3.1. Educação anti-dialógica e insensibilidade

A educação consiste em potencializar os conhecimentos já adquiridos pela


pessoa em contato com o seu meio ambiente, pois, segundo Garcia, “aprender
significa o aprimoramento de algo menos perfeito que já existia no organismo e não
criar algo do nada, fazer surgir uma habilidade qualquer do vazio, da ausência”.310

Se a aquisição de conhecimentos passa pela inter-relação com o meio, os


conhecimentos adquiridos têm relação com a cultura. A educação nada mais é do

309
MUÑOZ, Ronaldo. Op. cit., p. 30.
310
Cf. GARCIA, Francisco Luiz. Introdução Crítica ao Conhecimento, p. 43.
106

que a assimilação e a transmissão da cultura. Se o individualismo é o modelo


cultural atual311 os conhecimentos transmitidos pela educação contemporânea estão
ancorados numa visão fragmentada da realidade, que por sua vez tem por base o
método cartesiano que dissocia sujeito e objeto e os coloca em esferas separadas.
Citemos novamente Morin:

Esta dissociação atravessa o universo de um extremo ao outro:


Sujeito / Objeto, Alma / Corpo, Espírito / Matéria, Qualidade /
Quantidade, Finalidade / Causalidade, Sentimento / Razão,
312
Liberdade / Determinismo, Existência / Essência.

Para Codina, esse dualismo, que perpassa toda a cultura ocidental, é o


responsável pela cisão entre fé e prática. Segundo ele,

o dualismo cinge perigosamente a realidade em duas esferas: a do


profano e a do sagrado. À esfera profana pertencem o corpo, a
matéria, a terra, a história e o tempo, enquanto que a alma, o espírito,
o céu, a eternidade e o próprio Deus pertencem à esfera do
sagrado.313

O resultado imediato desta cisão entre o profano e o sagrado é a


proeminência das coisas “espirituais” sobre as terrenas. Logo, a Igreja é entendida
como a responsável pelas coisas sagradas e as demais instituições, por exemplo, o
Estado, pelas coisas terrenas ou seculares.

À Igreja, de acordo com Calvino, cabe a transmissão da salvação e da vida


eterna através da palavra e da ação solidária. No cumprimento de sua missão,
anuncia e educa. Desse modo, essa cisão entre o profano e o sagrado, das coisas

311
Vide Capítulo II, citação nº 97.
312
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro, p. 26.
313
CODINA, Victor. Op. cit., p. 20.
107

seculares daquelas espirituais, o que vai na direção oposta da teologia de Calvino,


traz sérias conseqüências para a ação educativa da Igreja.

A Igreja, como instituição, é um micro-sistema dentro de um macro-sistema,


por isso não pode furtar-se ao modelo cartesiano pedagogicamente transmitido e
culturalmente assimilado, cujo resultado é a incompreensão, por parte dos
indivíduos, de que a interdependência humana e social é um fato e é também
imprescindível para a manutenção da coesão social. Isso significa dizer que a Igreja
tem assimilado, ao longo dos tempos o modelo cultural da sociedade da qual faz
parte.

Por ter assimilado o modelo cultural individualista e dualista314 das sociedades


ocidentais, a Igreja tem transmitido aos seus partícipes, através da sua prática,
valores que não corroboram sua missão de promover o reino de Deus. Pois, se os
valores por ela assimilados estão ancorados tanto numa cultura individualista quanto
numa visão dualista, os assuntos da esfera “espiritual” têm proeminência sobre os
da esfera material, e o resultado disso é que a Igreja tem se preocupado em salvar
ou libertar “almas” e encaminha-las para o “céu”, ao invés de se ocupar com a
solidariedade com o homem e com a mulher “encarnados” nas sociedades
capitalistas.

Ao interiorizar os valores da cultura individualista vigente as pessoas são


levadas a pensar que somente o seu ponto de vista é correto e que, em
contrapartida, os demais pontos de vista não são importantes ou estão errados.
Como conseqüência, as pessoas conversam sobre os mais variados assuntos e têm
as mais variadas opiniões acerca destes, mas não se comunicam, uma vez que a
comunicação enseja a aceitação da opinião alheia.

Dessa forma os valores transmitidos pelas igrejas embebidas no


individualismo e no dualismo não promovem o diálogo. Viabilizam, isto sim, um
antidiálogo que, segundo Freire,

314
Cf. CODINA, Victor. Op. Cit., pp. 18-20.
108

Implica numa relação vertical de A sobre B, [...]. É desamoroso. [...]


Não é humildade. É desesperançoso. Arrogante. Auto-suficiente. No
antidiálogo quebra-se aquela relação de ‘simpatia’ entre seus pólos,
que caracteriza o diálogo. Por tudo isso, o antidiálogo não comunica.
Faz comunicados.315

Fazer comunicados é o mesmo que transmitir, aos educandos, informações


desconectadas da sua realidade, do contexto por eles vivenciado. Escutam,
arquivam estas informações mas não apreendem, não adquirem conhecimentos
relevantes para a vida.

A arrogância e a auto-suficiência são características de quem se considera


dono da verdade absoluta. Conforme foi visto no segundo capítulo, a educação para
a solidariedade pressupõe a não-arrogância, a relativização das certezas e a
aceitação do outro. A Igreja, cuja missão inicial era a implantação do reino de Deus,
tem levado seus partícipes, através de suas doutrinas religiosas (teológicas)
cristalizadas, a se considerarem donos da verdade, o que gera uma certa arrogância
em relação às doutrinas diferentes daquela que julgam ser a única verdadeira.
Porém, de acordo com Calvino, a Igreja, através de seus dogmas, não pode suprir a
fé dos fiéis, porque “a fé consiste no conhecimento de Deus [...], e não na reverência
da Igreja”.316

Se a fé significa, na compreensão de Calvino, conhecimento de Deus, a Igreja


não pode querer gerar nos seus partícipes o sentimento de que a sua doutrina está
acima de qualquer dúvida, porque, segundo a teologia de Calvino, o nosso
conhecimento de Deus é imperfeito e incompleto. Assim se refere à fé:

Admitimos que a fé [...] é implícita (isto é, imperfeita, incompleta ou


incipiente); não somente porque ignoramos muitíssimas coisas,
senão também porque estando rodeados das trevas de numerosos
erros, não podemos entender quanto deveríamos saber. [...] Com

315
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade, p. 116.
316
CALVINO, Juan. Institución de la Religión Cristiana – Libro III, capítulo II, p. 407. “... la fe consiste
en el conocimiento de Dios [...], y no en la reverencia de la Iglesia”.
109

este freio nos mantém Deus na modéstia, destinando a cada um uma


determinada medida e porção de fé, a fim de que incluso os mais
doutos entre os doutores estejam sempre prontos a aprender.317

Para se realizar a proposta da doutrina teológica e social de Calvino, hoje, é


preciso que as igrejas viabilizem um modelo de educação que conduza à
relativização das certezas ancoradas em dogmas religiosos que muitas vezes não
têm nenhuma relação com as vidas das pessoas. De acordo com Segundo,

chega-se aqui ao verdadeiro problema prático da teologia hoje, assim


como o de suas relações com o dogma. Em outras palavras, o
interesse do leigo pela teologia vem, talvez, na maioria dos casos, de
uma crise [...]. Crise, ao perceber que a compreensão que tem da
mensagem cristã não se compagina com as atitudes que leva, por
seu próprio compromisso cristão, à vida. À sua história vital, onde
encontra suas esperanças e entusiasmos, assim como também seus
bloqueios.318

E, se não dizem respeito às suas vidas, tais ensinamentos não promovem


um conhecimento que os coloque em contato com o outro, numa relação solidária,
porque inexiste o diálogo, apenas a transmissão de informações. Segundo o mesmo
autor,

o homem de hoje percebe as verdades da fé, talvez sim, registros de


um saber memorístico ou informativo, mas não com os olhos da

317
CALVINO, Juan. Institución de la Religión Cristiana – Libro III, capítulo II, pp. 407-408. “Nosotros
admitimos que la fe [...] es implícita (es decir, imperfecta, incompleta o incipiente); no solamente
porque ignoramos muchísimas cosas, sino también porque estando rodeados de las tinieblas de
numerosos errores, no podemos entender cuanto deberíamos saber. [...] Con este freno nos mantiene
Dios en la modestia, asignando a cada uno una determinada medida y porción de fe, a fin de que
incluso los más doctos entre los doctores estén siempre prontos a aprender”.
318
SEGUNDO, Juan Luis. O Dogma que Liberta: fé, revelação e magistério dogmático, p.30.
Sublinhado do autor.
110

experiência espiritual. Por isso é um homem ao qual não se lhe


anunciou nada, porque não se lhe comunicou praticamente nada.319

Se a ação educativa da Igreja se torna apenas discursiva, leva seus partícipes


à construção de uma cosmovisão desvinculada da realidade, isto é, um sentido de
vida baseado em certezas provenientes da estaticidade do dogma. De acordo com
Assmann e Sung,

É sumamente difícil para as pessoas, que estruturam suas


percepções do sentido a partir de verdades religiosas, admitir que é
necessário abandonar, na teoria e na prática, a obsessão pela
verdade única e pelo sentido único, para poder chegar a uma
abertura solidária desde o interior de nossas formas de pensar.320

Desse tipo de cosmovisão construída com base em verdades inquestionáveis


resulta uma insensibilidade frente aos problemas reais das pessoas. Para quem tem
um sentido de vida direcionado por certezas, aqueles/as que pensam e agem de
maneira diferente estão erradas, o que dificulta o encontro dialógico. Além disso, e
com base nisso, emerge a indiferença com o sofrimento alheio, que, na maioria das
vezes aparece justificada por, e aqui recordo parte da citação de Sung “uma
diversidade grande de cosmovisões, doutrinas religiosas ou éticas”.321

3.2. Solidariedade e a dimensão profética da Igreja

Depois de se verificar que tanto a inércia quanto a insensibilidade ao


sofrimento alheio presentes na Igreja hodierna se deve, em parte, a uma educação
que tem reproduzido e transmitido, acriticamente, os valores individualistas que

319
SEGUNDO, Juan Luis. Op. Cit., p. 11. Sublinhado do autor.
320
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 263.
321
Cf. SUNG, Jung Mo. Sujeito e Sociedades Complexas: Para repensar os horizontes utópicos, p.
161.
111

perpassam as sociedades capitalistas, queremos propor a recuperação da dimensão


profética da Igreja, da maneira como a compreendia Calvino, como uma tentativa de
fazer emergir, na Igreja hodierna, um modelo educacional que impulsione seus
educandos à prática da solidariedade.

Que a Igreja tem perdido tanto sua dimensão solidária quanto profética, pode-
se constatar pela questão levantada por Boff:

Pode-se [...] esperar que uma Igreja rompa seu pacto histórico com
as forças hegemônicas e efetivamente se converta para uma pobreza
evangélica, solidária com os debulhados de seus direitos e
empobrecidos, para uma coragem profética, [...] para um seguimento
de seu Fundador, o Servo Sofredor Jesus Cristo, conseqüente e
destemido?

Ao se propor a recuperação da dimensão profética da Igreja, queremos faze-


lo, de início, aludindo à crítica marxista da Igreja como instituição histórica.322 Isso
porque o levantamento dessa crítica tornará evidente ao leitor que a Igreja possui
uma dimensão profética, que embora tenha sido diminuída quando da sua adesão
ao status quo, permanece latente em seu seio.

Toda crítica da crítica marxista da religião se dá em torno da célebre frase de


Karl Marx: “A religião é o ópio do povo”. Existem duas questões de salutar
importância para esta pesquisa: o equívoco histórico de se atribuir o enunciado da
frase em questão apenas a Marx, como se fosse ele o primeiro cientista a entender a
religião como tal323 e também considerar todo o elemento religioso como alienante
com base numa frase destacada de seu contexto.324

Talvez seria interessante começar, ainda que de forma bem resumida, pelo
que se pode entender sobre a crítica marxista da religião, segundo Assmann e Mate:

322
Cf. ASSMANN, Hugo; MATE, Reyes. Karl Marx – Friedrich Engels: Sobre la religión I, p. 36.
323
Cf. ASSMANN, Hugo; MATE, Reyes. Op. cit., pp. 9-37; LÖWY, Michael. Op. cit., caps. I – IV; VII –
VIII.
324
Cf. LÖWI, Michael. Op. cit., p. 11.
112

Por un lado, esa crítica marxiana es una ‘crítica de la iglesia’.(...) la


iglesia como institución histórica, empírica, establecida. (...) Por otro,
es una ‘crítica del cristianismo”. El cristianismo (...) como concreción
histórica de la religión en general.(...) se refiere al fenómeno religioso
que envuelve al mundo burgués... (...) En tercer lugar, es‘una crítica
de la religión mágica’. Finalmente, es una ‘crítica total de la religión.
No se refiere a un fenómeno sino a la esencia; no a una parte sino al
todo.325

Ao identificar o cristianismo como fenômeno religioso envolvido pelo mundo


burguês, Marx tem se apercebido que a religião cristã tem estado aliada, com seus
discursos e práticas, à ideologia dominante. Neste sentido, mesmo quando a frase
de Marx, a religião é o ópio do povo, é retirada de seu contexto, para ser
interpretada numa ótica unilateral, a crítica tem razão de ser, na medida em que, em
diferentes épocas históricas, a religião serviu de suporte teórico à dominação
política.326 Essa mesma tese será corroborada por Codina com relação aos valores
individualistas e dualistas assimilados pela Igreja. Segundo ele,

Se o individualismo reduzia a fé à esfera privada, e o dualismo ao


âmbito do sagrado e do além, nos países de tradição cristã a fé se
reduz, em muitos momentos históricos, à função de sancionar a
ordem estabelecida, o ‘establishment’. [...] Ela sacraliza e consagra
os valores da sociedade burguesa e lhe dá um respaldo de
transcendência. Deste modo, o sistema econômico, político, familiar e
social vigente fica reforçado.327

Quando se afirma que a frase de Marx foi interpretada numa ótica unilateral,
quer-se com isso remeter ao fato de que nas críticas enunciadas à critica marxista

325
ASSMANN, H.; MATE, R. Op. Cit., p. 36.
326
Idem, Ibidem, p. 39.
327
CODINA, Victor. Op. cit., p. 22.
113

da religião tem-se negligenciado o duplo aspecto da religião encontrado em Marx


quando da leitura do restante do parágrafo onde se encontra a célebre frase.
Vejamos:

A angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão da angústia real


e o protesto contra essa angústia real. A religião é o suspiro da
criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como
é o espírito de uma situação sem espiritualidade. Ela é o ópio do
povo.328

Mesmo que Marx reconheça na religião um lampejo de protesto, é óbvio que


ele o enxerga como evasão. Segundo Assmann e Mate, para Marx “o fatídico desse
protesto é sua impotência, e o perigoso da religião é servir de consolo, de
narcótico.329 Apesar de adiantar-se à concepção totalitária330 de Hegel, ao analisar a
história da sociedade, Marx não consegue desvencilhar-se desta concepção e, de
acordo com Assmann e Mate, “aplica ao problema religioso o ‘pensamento de
identidade’ entre totalidade e particularidade, entre essência e fenômeno que temos
visto em Hegel”.331 Desse modo, surpreendentemente, Marx reduz a religião à pura
alienação, ou seja, segundo os mesmos autores, “se hoje a religião se alia ao
capitalismo deduz-se que a essência religiosa é alienação ou perversão”.332

Mas, seria a religião pura alienação? Estaria o cristianismo, e a Igreja, sua


instituição máxima, em todas as épocas e em todas as suas nuanças, comprometido
com os interesses das classes dominantes?

328
apud LÖWI, Michael. Marxismo e Teologia da Libertação, p. 11. Sublinhados meus.
329
ASSMANN, Hugo; MATE, Reyes. Op. cit., p. 23. “lo fatídico de esa protesta es su impotencia, y lo
peligroso de la religión es servir de consuelo, de narcótico”.
330
Cf. BETTO, Frei. Cristianismo e Marxismo, p. 29. Segundo o autor “essa ‘concepção totalitária’ não
faz distinção entre a totalidade do fenômeno religioso e a manifestação particular do mesmo; antes,
identifica-as. (...) Não há relação dialética entre o universal e o particular. Os dois coincidem”.
331
ASSMANN, Hugo; MATE, Reyes. Op. cit., p. 32. “aplica al problema religioso el ‘pensamiento de
identidad’ entre totalidad y particularidad, entre esencia y fenómeno que hemos visto en Hegel”.
332
Idem, Ibidem, p. 33. “si hoy la religión se alía al capitalismo hay que deducir que la esencia
religiosa es alienación o perversión”.
114

De acordo com Maduro, para consolidar o poder adquirido e tornar-se classe


dirigente “a fim de obter o consenso geral à seu domínio [e] hegemonia”,333 a classe
dominante utilizará estratégias de coerção e persuasão. Como parte dessa
estratégia, o aprofundamento do poder simbólico é condição sine qua non para que
a classe dominante consolide sua hegemonia. Segundo o mesmo autor,

uma religião qualquer, ao se encontrar no seio de uma sociedade


onde uma classe social [...] se acha a ponto de constituir-se como
classe dominante, há de se ver passo a passo e inevitavelmente
submetida [...] a um conjunto de limitações e orientações geradas
pelo mesmo processo de dominação, e tendentes a fazer da mera
dominação uma verdadeira hegemonia.334

Dessa forma a Igreja, sem que disso se apercebam seus partícipes, através
de seus discursos e práticas (ritos), passa a ser ferramenta nas mãos da classe
dominante para que essa se estabeleça como classe dirigente.335

Porém, ao se lançar o olhar para a história da Igreja latino-americana, pode-


se perceber que, mesmo que durante muito tempo e em muitos lugares ao redor do
continente a Igreja, com seus discursos e práticas, tenha se posicionado ao lado das
classes dominantes,336 dando assim substrato à crítica marxista da Igreja e do
cristianismo, algo de revolucionário sempre esteve latente em seu seio, podendo
irromper sob certas circunstâncias. Segundo Maduro, “toda igreja [...] abriga em seu
seio conflitos tais que seu desenvolvimento pode [...] favorecer processos religiosos
com funções sociais não conservadoras e até revolucionárias”.337

333
MADURO, Otto. Religião e Luta de Classes, p. 107.
334
Idem, Ibidem, p.108.
335
Idem. Segundo o autor, “a dinâmica da dominação poderá impor-se sobre as tradições religiosas
da população implicada até o ponto de (a) aniquilar ou submeter todo ‘elemento’ religioso [...] que
pareça constituir um obstáculo ou perigo para a consolidação do poder da classe [...] dominante; (b)
favorecer a criação e/ou o desenvolvimento de todos os elementos religiosos que forem claramente
convergentes com a consolidação do poder da classe dominante, e (c) reestruturar de maneira mais
adequada à nova situação de dominação todos aqueles elementos religiosos que não forem
diretamente obstaculizadores da consolidação do poder da classe dominante”.
336
Cf. MADURO, Otto. Op. Cit., p. 105-109.
337
MADURO, Otto. Op. Cit., p. 183.
115

Alguns fatos históricos tais como a criação dos movimentos sociais no


Brasil338, a participação ativa de cristãos no processo de libertação da Nicarágua,
com a vitória dos “sandinistas em 19 de julho de 1979”339 e a formação de
movimentos responsáveis pelas lutas revolucionárias em El Salvador,340 evidenciam
que a Igreja latino-americana possui uma dimensão profética que pode vir a lume
quando as tensões, próprias de uma sociedade cuja população se encontra dividida
entre “incluídos” e “sobrantes”, tornam-se patentes.

Se o objetivo desse trabalho é demonstrar que a doutrina teológica e social


de Calvino pode viabilizar um processo pedagógico que fomente a aquisição de
conhecimentos que se estendam em ações solidárias, é interessante trazer à
lembrança, aqui, que a Reforma Protestante ocorrida na Genebra do século XVI,
ocasionando um resgate da função profética da Igreja, levou os magistrados a
instituírem “mecanismos institucionais”,341 tais como o “Hospital Geral” e a “instrução
pública obrigatória”.342 Como fruto da maneira como Calvino compreendia a
Reforma, bem como do próprio contexto social, político, econômico e religioso
genebrino, sua doutrina teológica e social permitiu não somente a continuidade
destes mecanismos institucionais, bem como providenciou para que fossem
melhorados.343

Para que a Igreja, hoje, possa recuperar sua dimensão profética, o que por
conseguinte fará emergir uma prática educativa que conduza seus partícipes à
inserção no espaço público através de ações solidárias, faz-se necessário passar

338
A criação do MEB (Movimento pela Educação de Base), da JOC (Juventude Operária Católica)
das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), da CUT (Central Única dos Trabalhadores), do MST
(Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra), do PT (Partido dos Trabalhadores), movimentos
estes de cunho socialista-marxista que se originaram por causa do trabalho de militantes cristãos. Cf.
LÖWY, Michael. Marxismo e Teologia da Libertação, pp. 51-64.
339
Idem. Ibidem., pp. 65-80. Segundo o autor, “essa participação cristã ativa [...] influenciou
profundamente o sandinismo, como ideologia composta do nacionalismo agrário radical de Sandino,
do cristianismo revolucionário e da corrente guevarista do marxismo latino-americano”. Cf. p. 75.
Sublinhado do autor.
340
Movimentos tais como a Feccas (Federação Cristã dos Camponeses de El Salvador), a UTC
(União dos Trabalhadores do Campo), o Bloco Revolucionário Popular (BRP), cujo principal dirigente
era um militante cristão, e a participação de muitos outros cristãos, como o Monsenhor Oscar
Romero, que deu sua vida pela revolução salvadorenha. Cf. LÖWY, Michael. Op. cit., pp. 81-89.
341
Cf. SUNG, Jung Mo. Conhecimento e Solidariedade: educar para a superação da exclusão social,
p. 158.
342
Vide Capítulo I, citação nº 51.
343
Vide Capítulo I, citações nº 133 e 134.
116

das ações solidárias de cunho assistencialista e/ou paternalista para as de cunho


ético-político. Segundo argumenta Codina,

A visão do cristianismo de cunho individual não nos faz sentirmo-nos


solidários com o que sucede em volta de nós, mas, no melhor dos
casos, compassivos e paternalistas, dando do supérfluo aos pobres e
sentindo-nos secretamente orgulhosos de nossa generosidade. A
assistência tranqüiliza pessoas, classes e países ricos, enquanto que
humilha os pobres e não ataca o mal pela raiz.344

Para que as igrejas, hoje, consigam desvencilhar-se do assistencialismo e do


paternalismo que têm, na maioria das vezes, pontuado suas ações, é mister a
elaboração e implantação de um processo educativo que rompa com os valores
desumanizantes da modernidade, pois, segundo salienta Codina, “frente à
modernidade, a Igreja nascida da Reforma (talvez por ter também ela surgido na
época moderna) adotou uma postura aberta. [...] mas sem superar os
questionamentos da própria modernidade”.345

Porém, ao se fazer referência à assistência não se pode incorrer no erro


comum de reduzi-la a simples ações paternalistas. A assistência aos menos
favorecidos é necessária e pode ser caracterizada, também, por ações cujos
resultados sejam a solidariedade de cunho ético-político. De acordo com Muñoz,

Ao falar de assistência, devemos levar em consideração a existência


de variantes que podem ser decisivas. Por exemplo, existe a simples
ajuda ou esmola, mas também o apoio e a entrega de elementos
para que os necessitados se ajudem uns aos outros: apoio moral,
conhecimentos, capacitação, ferramentas, etc.346

344
CODINA, Victor. Op. cit., p. 25.
345
Idem, Ibidem, p. 33.
346
MUÑOZ, Ronaldo. Op. Cit., p. 40.
117

A citação precedente clarifica a existência de uma tensão entre uma


assistência imediata àquele/a que se encontra necessitado/a e uma ação que
viabilize uma libertação integral do ser humano que se encontra socialmente
excluído. Mas, ao aludir a elementos como “conhecimentos”, “capacitação” e
“ferramentas”, que aludem, por sua vez, a uma educação para a práxis, Muñoz
sugere que essa tensão seja tomada em conta como ação pedagógica libertadora,
porque se trata, de acordo com ele,

de oferecer às pessoas apenas as condições e ferramentas para que


elas mesmas se reconheçam, tomem a palavra, se comprometam
com os irmãos, descubram seu próprio caminho e atuem
347
organizadamente por sua conta.

A Igreja, como instituição, também vive uma tensão entre ser a guardiã e a
promulgadora das doutrinas religiosas que possibilitam sua existência no tempo e no
espaço e encarnar, fomentar e ensinar os ideais da utopia do reino de Deus através
da institucionalização da solidariedade. Mas essa tensão deve ser assumida como
processo pedagógico, pois ao institucionalizar a solidariedade, com ações de cunho
ético-político, o horizonte do Reino de Deus se torna próximo, possibilitando os fiéis
a dar continuidade a estas ações e, concomitantemente, a construírem uma
sociedade mais justa e solidária.

Hoje, para que a Igreja latino-americana, situada numa sociedade onde os


seus valores estão ancorados no individualismo, possa desenvolver sua missão
profética tem que levar em consideração as novas condições impostas pelo
capitalismo. Numa sociedade onde os “incluídos” e os “sobrantes” estão em contínuo
conflito político-ideológico, o desenvolvimento dessa missão profética da Igreja se
apresenta como processo de transformação social, e isto se dá pelo fato de que na
busca pelo seu objetivo, estabelece um processo educacional que encaminha seus

347
Idem, Ibidem, pp. 64-65.
118

partícipes para uma compreensão e apropriação348 do reino de Deus, que, de


acordo com Groome, “não é basicamente um território governado, nem, por outro
lado, um conceito abstrato. É antes, um símbolo que se refere à atividade concreta
de Deus na História...”349

Assim se estabelece um paralelo histórico entre as ações ético-políticas,


desenvolvidas e viabilizadas pela Igreja genebrina, no século XVI, que após longa
história de permanência ao lado dos interesses do poder temporal ou secular,
visando seus próprios interesses, foi dinamizada pela reforma protestante,
especialmente pelo desenvolvimento e sistematização desta por João Calvino, e a
Igreja hodierna.

Cunhada pelo contexto social, político, econômico e religioso de Genebra,


contexto este fruto da reforma, a doutrina teológica e social de Calvino serviu de
ação educativa que conduziu os adeptos da “Igreja calvinista” a uma práxis religiosa
cristã cujos resultados foram a transformação radical da sociedade genebrina e a
solidariedade como ação de cunho ético-político com os excluídos da sociedade.

Se não a prática da doutrina teológica e social de Calvino, devido à distância


temporal, histórica e contextual, os valores solidários que se pode dela inferir podem
vir a ajudar a Igreja hodierna no resgate de sua dimensão profética. Conforme foi
levantado neste capítulo, a Igreja possui de forma latente uma dimensão profética
que pode vir à tona se através de práticas que viabilizem valores solidários como
“ato ético-subjetivo radical”,350 seja fomentada e alimentada uma ação educativa que
conduza seus partícipes à apropriação da utopia do reino de Deus.

Mas, para que a Igreja possa recuperar sua dimensão profética de crítica do
sistema quando este engendra valores que contrariam a justiça, a eqüidade e a
solidariedade humana, deverá romper, nas palavras de Boff, “seu pacto histórico
com as forças hegemônicas e efetivamente se converta para uma pobreza

348
Cf. SCHIPANI, Daniel S. El Reino de Dios y el Ministerio Educativo de la Iglesia: fundamentos y
principios de educación cristiana, p. 161.
349
GROOME, Thomas H. Educação Religiosa Cristã: compartilhando nosso caso e visão, p. 67.
Nesse trabalho, por questões de objetivo e delimitação, não vamos desenvolver o conceito de Reino
de Deus. Porém, remetemos os leitores para, além de Thomas H. GROOME, Daniel S. SCHIPANI,
Op. cit., cap. II.
350
ASSMANN, Hugo, SUNG, Jung Mo. Competëncia e Sensibilidade Solidária, p. 98.
119

evangélica, solidária com os debulhados de seus direitos e empobrecidos...”351 Ao


romper com os poderosos deste mundo, a Igreja-instituição poderá direcionar seus
partícipes a viver de forma integrada, e não separada, de acordo com Codina, “as
dimensões de fé e justiça, fé e solidariedade, como ponto chave e profético da Igreja
de hoje.”352

Se a Igreja emergir como “espaço cognitivo” onde seus partícipes têm a


oportunidade de unir fé e justiça, fé e solidariedade para a construção de um mundo
diferente, mais humano e habitável tende a recuperar sua dimensão profética. Isso é
o mesmo que afirmar que a dimensão profética da Igreja vem a lume quando os
cristãos colocam em prática os ideais do reino de Deus, tais como justiça e
solidariedade. Como se pode constatar na citação de Muñoz:

Uma Igreja [...] que valoriza mais a fraternidade e busca uma co-
responsabilidade maior; que tem seu centro sociológico e cultural no
mundo dos pobres, nos setores majoritários, que são os pobres do
país e os pobres do mundo; que vive e promove a solidariedade no
meio do povo; que cumpre ali uma denúncia profética, discretamente
mas assumindo os inevitáveis riscos, a fim de alimentar nos pobres a
consciência de sua dignidade e a esperança de um mundo
diferente...353

O que se pode depreender da citação precedente é que o mergulho acrítico


na cultura individualista e dualista, por parte da Igreja, fez com que a fé se
degenerasse numa relação pessoal com Deus, olvidando seus partícipes da
dimensão de justiça e solidariedade inerente à fé cristã. Segundo Codina:

Todos os aspectos escatológicos, utópicos, proféticos e críticos de


Evangelho desaparecem nesta configuração da fé eclesial. De
fermento renovador passa a ser cimento da arquitetura social. Em
351
BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder, p. 114.
352
CODINA, Victor. Op. Cit., p. 114.
353
MUÑOZ, Ronaldo. Op. cit., p. 50.
120

lugar de buscar os interesses do Reino de Deus e sua justiça, a


Igreja se concentra em si mesma e se preocupa por seus direitos,
suas instituições e seus interesses. Em lugar de levantar sua voz
profética quando o homem é pisoteado, muitas vezes cela
diplomaticamente para não ofender as autoridades nem criar maiores
conflitos.354

Esse tipo de fé que não leva em conta os ideais de justiça e comunhão


fraterna do reino de Deus tem como resultado o afastamento do outro, do diferente
por gerar uma certa arrogância naquele que se considera especial devido a pretensa
relação íntima com Deus. A Igreja que tem olvidado do seu legítimo poder
evangélico, permutando-o pelo poder temporal, político apenas, tem gerado uma
eclesiologia marginal, com quase extinção da comunicação dialogal, tem se tornado,
segundo Boff, “uma Igreja demasiadamente [...] preocupada consigo mesma e,
portanto, sem interesse real pelos grandes problemas dos homens”.355

Para que a Igreja recupere sua dimensão profética deve aprender, num
primeiro momento, a se interessar pelos problemas humanos reais, e para isso, deve
viabilizar um modelo de educação que preze pelo reconhecimento do outro, no
encontro dialógico. Como já foi visto no capítulo dois, não é possível instaurar a
solidariedade como imperativo ético-político sem o reconhecimento do outro, seus
sofrimentos, suas limitações, seus medos, sua maneira de ser e de enxergar o
mundo, enfim, sua outridade.356

Também, num segundo momento, a Igreja deve promover uma educação que
coloque em “xeque” as certezas adquiridas ao longo da vida, certezas que na
maioria das vezes impedem as pessoas de ter esperança,357 continuar lutando pelos
seus ideais, pois dão a impressão de que tudo está perfeito. Primeiro, porque o ser
humano é um ser inacabado, em construção, por isso um ser de incertezas.

354
CODINA, Victor. Op. cit., p. 23.
355
BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder, p. 127.
356
Vide capítulo II, notas de rodapé nº 67 e nº 68.
357
Vide capítulo II, nota de rodapé nº 85.
121

Segundo, porque a utopia do Reino de Deus interpela a Igreja à construção


permanente de um mundo mais humano e solidário.

E ainda, na recuperação de sua dimensão solidária, a Igreja precisa


reintroduzir, numa ótica evangélica, a questão da corporeidade humana. O corpo
humano é aprendente e participa da aquisição de conhecimentos através dos
sentidos.358 Todo conhecimento é precedido pelo desejo de conhecer,359 por isso
pode-se afirmar que nossos desejos se corporificam. Só que relacionar corpo e
desejo é problemático na tradição cristã que se habituou a considerar este último
apenas com relação à sexualidade.360

Uma Igreja solidária com os reais problemas humanos aparece como


paradigma de uma Igreja profética. Dentre os modelos de “vida religiosa” propostos
por Codina, a “vida religiosa popular” é um modelo que, segundo ele, tem o objetivo
de “viver, numa estreita integração, as dimensões de fé e justiça, fé e solidariedade,
como ponto chave e profético da Igreja de hoje”.361 Numa sociedade excludente,
onde o individualismo se tornou o modelo cultural vigente, onde tudo tem valor
mercadológico, inclusive os próprios valores, a Igreja solidária pode conclamar a
sociedade e suas instituições a repensar seus valores de maneira que o ser humano
possa ocupar novamente o lugar que lhe foi usurpado pelo capital, pelo mercado e
pelas máquinas.

Ao invés de se rejeitar a Igreja-instituição como se fosse um mal, tem-se que


recuperar sua dimensão profética e solidária, tão profundamente vivenciada nos
primeiros séculos de sua existência,362 e fazer com que os valores solidários e
fraternos do Reino de Deus se tornem valores éticos-políticos e sociais. A Igreja-
instituição como espaço cognitivo pode levar seus partícipes ao aprendizado da
solidariedade, e esta, institucionalizada, pode emergir como contra-cultura em meio

358
Vide capítulo II, nota de rodapé nº 71.
359
Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 256.
360
Cf. SUNG, Jung Mo. Conhecimento e Solidariedade: educar para a superação da exclusão social,
p. 61.
361
CODINA, Victor. Op. cit., p. 114.
362
Cf. BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder, p. 126.
122

a cultura individualista atual, pois, no cumprimento de sua missão profética promove


o “anúncio de uma mensagem que contradiz [...] valores humanos estabelecidos”.363

Para que uma mensagem tenha força de contradizer valores anti-solidários e


individualistas tão profundamente arraigados nas sociedades atuais deve vir
acompanhada por uma prática cotidiana da comunidade que se reúne em torno dos
ideais subversivos de Jesus de Nazaré364, tais como fraternidade, solidariedade e
amor altruísta.

Propor uma Igreja solidária, e por isso profética, é propor uma comunidade
que, fiel aos ideais do Reino de Deus, possa, através de sua prática relativizar, além
dos valores dos outros, os seus próprios. É propor uma comunidade que “reme
contra a maré” dos nossos tempos, que são marés extremamente poderosas por
nascerem nas águas longínquas do Iluminismo. Relativizar as certezas que geram
arrogância, diferenças, racismos, segregações. Relativizar os
dualismos/individualismos que geram desencontros, desconhecimentos. Relativizar
a noção de corporeidade e desejo visto que somos humanos porque desejamos e
corporificamos nossos desejos. Essas são as prerrogativas da Igreja profética e
solidária que pode emergir como contra-cultura, como fomentadora de valores
esquecidos e vilipendiados pela cultura desumana vigente.

Para que a Igreja-instituição possa emergir como espaço cognitivo onde a


sensibilidade solidária possa ser desenvolvida e, através da educação, transformada
em ações permanentes de solidariedade, deve ousar relativizar a própria fé, já que
esta não está, necessariamente, ligada apenas aos valores religiosos ou à
religião.365 Promover a relativização da fé não quer significar desmistificá-la, roubar-
lhe sua áurea mística, mas tão somente demonstrar seu conteúdo existencial de
certezas e incertezas. A fé não pode ser puramente certeza, pois a certeza
incondicional anula a esperança, e fé e esperança estão intimamente relacionadas.
Mas a fé contém uma chispa de incerteza, uma vez que está direcionada para o

363
BOFF, Leonardo. Op. cit., p. 136.
364
Cf. BOFF, Leonardo. Op. cit., p. 237.
365
Cf. TILLICH, Paul. Dinâmica da Fé, pp. 5-7.
123

sagrado.366 Essa relação de certeza e incerteza presentes na definição de fé é


detalhada por Tillich:

Fé é certeza na medida em que ela se baseia na experiência do


sagrado. Mas ao mesmo tempo a fé é cheia de incerteza, uma vez
que o infinito, para o qual ela está orientada, é experimentado por um
ser finito. Esse elemento de insegurança na fé não pode ser anulado;
nós precisamos aceita-lo. E esta aceitação é um ato de coragem.367

O elemento de insegurança, de incerteza da fé a define como uma aposta.


Ter fé é apostar que algo vai dar certo ou errado. Esse apostar em algo elimina o
princípio de certeza incondicional da fé e, portanto, descaracteriza qualquer
sentimento de arrogância da parte daquele/a que tem fé.

Se a sensibilidade solidária somente pode aflorar no contato com outro,


principalmente com o outro que sofre, a arrogância surge como obstáculo para que a
solidariedade seja uma ação de cunho ético-político. Da mesma forma, a arrogância
originada da fé como certeza incondicional tem obstaculizado o desenvolvimento
das ações diárias de solidariedade, ou as micro-solidariedades, em ações solidárias
permanentes por parte da Igreja. A fé entendida e vivenciada como aposta impede
que o sentimento de arrogância se desenvolva nas pessoas, e isso também no
âmbito religioso, o que favorece o encontro com o outro e a conseqüente abertura
solidária.

Se a Igreja-instituição, fiel aos princípios do Reino de Deus, ousar interferir


profeticamente, com seus discursos e sua prática solidária, na política das demais
instituições sociais, provocar-lhes-ão à relativização de princípios tidos, até então,
como dignos de certeza incondicional, como por exemplo, a crença no mercado
como o único princípio regulador da sociedade, inclusive da própria solidariedade
orgânica.

366
Segundo Tillich, “algo que nos toca incondicionalmente se torna sagrado” e “o sagrado é
essencialmente ‘mistério’”. Cf. TILLICH, Paul. Op. cit., pp. 13-14.
367
TILLICH, Paul. Op. cit., p. 15.
124

A missão profética da Igreja, na ótica de Calvino, estava em vigiar o Estado


para que este viabilizasse e assegurasse a manutenção da justiça social na
sociedade genebrina. Esta sua compreensão da relação entre Igreja e Estado está
profundamente arraigada na sua forma de entender e vivenciar a fé cristã, o que fica
claramente evidenciado ao se fazer um levantamento de sua doutrina teológica e
social. Fé e solidariedade estavam juntas na reforma empreendida por Calvino na
Genebra do século XVI.368

Para Codina, “este é o grande desafio lançado aos cristãos de nosso tempo:
voltar a unir fé e solidariedade”.369 Se a Igreja hodierna, fiel aos ideais do Reino de
Deus, aparecer como espaço de solidariedade, de fraternidade, de comunhão,
poderá emergir como uma instituição mediadora da justiça e da coesão social, num
mundo onde as instituições, em tempos de crise, estão voltadas para si mesmas.

Poderá chamar para si a responsabilidade de exercer uma certa vigilância


sobre as demais instituições para que estas tenham sempre em conta, através de
suas atividades, a manutenção da justiça e da coesão social. E, quando isso não
ocorrer, possa denunciá-las, não com o objetivo de minimiza-las, mas de ajuda-las a
encontrar um meio termo entre as competências exigidas pelo mercado neo-liberal e
a solidariedade com os que sofrem a exclusão do mercado de trabalho e do
mercado consumidor.

Ao tornar-se espaço cognitivo para o desenvolvimento da sensibilidade


solidária e fomentadora e facilitadora da fraternidade, da solidariedade como ação
afetiva e efetiva, a Igreja recupera sua dimensão profética, visto que poderá vir a
propiciar o resgate de valores que poderão se estabelecer como contracultura de
resistência frente à cultura individualista vigente e de denúncia da mesma como
desumana e desumanizadora.

368
Vide capítulo I.
369
CODINA, Victor. Op. cit., p. 119.
125

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando João Calvino aderiu à Reforma Protestante, por volta da segunda


década do século XVI, não poderia imaginar que seria o responsável direto por uma
das maiores transformações sociais e religiosas que já ocorrera na história.
Genebra, uma pequena cidade localizada na Suíça, foi o palco das transformações.
Depois de abandonar os estudos de Teologia e, após a morte do pai, enveredar-se
pelas trilhas do Direito, vai por fim mergulhar profundamente nas águas do
humanismo, onde tomará gosto pela crítica, que aliás, fará com que sistematize as
doutrinas cristãs reformadas tendo por base os grandes clássicos da literatura
antiga.
É este gosto pela crítica que o levará a analisar as relações existentes entre a
Igreja e o Estado. Esta análise crítica tem por base as premissas do Evangelho que
testificam, segundo Calvino compreendia, qual a missão da Igreja, a saber, a
implantação do Reino de Deus e sua justiça nas sociedades humanas. Entende ele
que a Igreja contava com um grande aliado no cumprimento de sua missão: o
Estado. Estes dois baluartes da sociedade medieval, segundo Calvino, foram
instituídos por Deus para a implantação da justiça e da ordem social.
Se a sociedade genebrina passava por problemas econômicos, políticos,
religiosos e éticos e morais, era porque a Igreja e o Estado não estavam cumprindo
com suas incumbências sociais. Assim, Calvino vai elaborar sua doutrina teológica e
social de maneira que estas duas instituições tivessem suas responsabilidades
delimitadas na promoção do bem estar social. Para tanto, ele une suas idéias
humanistas com as premissas do Evangelho, dando especial atenção para a
teologia da graça, onde vai buscar a compreensão teológica e social para as
deturpações tão prementes das relações humanas e sociais.
Ao apregoar para a sociedade as verdades concernentes ao Evangelho do
Reino de Deus começa a questionar a Igreja, o Estado e a sociedade, bem como as
pessoas que os compõem. Calvino e as pessoas que aderiram à reforma por ele
viabilizada na cidade de Genebra deixam o recôndito do templo sagrado e se
lançam para a esfera pública, pois passaram a compreender que a missão profética
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da Igreja seria resgatada se esta cumprisse seu papel de denunciar o Estado


quando este deixasse de zelar pela manutenção da justiça social. Ao saírem da
inércia para a prática do amor, conforme ensinado e ordenado pelo Evangelho,
entram em contato com o intermeio e passam a vivenciar experiências que os levam
a adquirir conhecimentos que provocam sua sensibilidade com os menos
abastecidos da sociedade.
Com base nesta premissa propomos, de início, que a Doutrina Teológica e
Social de Calvino pode ajudar a Igreja, hoje, na elaboração de um processo
educacional que faça aflorar nos seus partícipes uma sensibilidade solidária com os
excluídos da nossa sociedade capitalista e neoliberal, bem como o aprendizado de
competências que promovam efetivas relações de solidariedade pessoal e social. Ao
escrevermos essas considerações finais sobre a nossa pesquisa, percebemos a
viabilidade da proposta, pois descobrimos que todo conhecimento humano é
adquirido na relação do ser humano com o intermeio. Na inter-relação com o meio
passamos a conhece-lo e reconhece-lo, construí-lo e (des)construí-lo. Construímos a
cultura e esta passa a nos construir. O mesmo processo se dá com o nosso
semelhante: conhecemo-lo e, nesta inter-relação, reconhecemo-nos e construímo-
nos.
É este reconhecimento mútuo, tanto em nível social quanto pessoal, que nos
conduz à abertura solidária. Processa-se, desse modo, uma educação para a
sensibilidade solidária que, ao ser direcionada por mecanismos institucionais, pode
permitir a viabilização de ações efetivas de solidariedade como imperativo ético-
político. Uma educação para a solidariedade pressupõe, então, a relativização dos
nossos preconceitos, tendo em vista que o encontro com o outro nos permite o
conhecimento de conceitos novos e diferentes. Por isso, uma educação para a
solidariedade deve assumir a dialogicidade, sem a qual não há comunicação e,
conseqüentemente, não há educação. Deve relativizar as certezas, de onde provém
todo preconceito, toda indiferença e todo desconhecimento, sentimentos dos quais
resultam a insensibilidade.
No entanto, para que a Igreja, hoje, possa desenvolver um processo
pedagógico que fomente nos seus partícipes a sensibilidade com os que mais
sofrem, vítimas da exclusão produzida em larga escala pelo modelo econômico
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neoliberal, e viabilize a prática de ações solidárias permanentes, tem que se inserir


na esfera pública, pois somente aí, na prática cotidiana, poderá relacionar-se com o
diferente, o que produzirá a aquisição de novos conhecimentos e a conseqüente
(des)construção dos seus preconceitos.
Com sua inserção na esfera pública, a Igreja levará seus partícipes a
desenvolverem uma fé cidadã, e, ao realizar isso, promoverá o desenvolvimento de
sua missão, isto é, a implantação do Reino de Deus com seus ideais de justiça,
eqüidade e fraternidade. No cumprimento de sua missão a Igreja, como instituição,
viabilizará o espaço necessário para que a abertura e a sensibilidade solidária
possam aflorar nas pessoas levando-as à aquisição de conhecimentos práticos que
possam consolidar a solidariedade como ação de cunho pessoal e social. Através da
prática efetiva e cotidiana da solidariedade a Igreja hodierna tem a possibilidade de
resgatar sua dimensão profética e emergir como um dos baluartes da sociedade
contemporânea, como instituição educativa que pratica e ensina os valores do Reino
de Deus como competências necessárias ao convívio fraterno entre as pessoas e as
sociedades do nosso tempo.
Deixo, para finalizar, duas questões em aberto. Primeira: ao fazer a crítica da
crítica marxista da religião, usei como referencial os discursos produzidos pela
Teologia da Libertação, principalmente os das décadas de 1970 e 1980. Teria a
Doutrina Teológica e Social de Calvino algo a ensinar à TL na sua busca por atuais
e melhores referenciais? Segunda: a Teologia da Graça, conforme Calvino a
entendia, serviu de referencial, no primeiro capítulo, para uma educação para a
solidariedade ao discutir e propor a graça redentora de Deus como fenômeno que
promove a restauração das relações humanas e sociais. A graça é um fenômeno
subjetivo que, no entanto, torna-se objetivo ao produzir a conversão dos valores e
das práticas das pessoas. Até que ponto, então, poderia se afirmar que a Graça
divina é um processo cognitivo?
Espero que a pesquisa até aqui realizada venha colaborar com as Ciências
da Religião, especialmente para a área de Práxis Religiosa e Sociedade, nas
discussões sobre as relações entre a Religião e a Educação.
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