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Guto Leite
Quando retornei ao livro, e entre uma e outra leitura são quase dez anos
de morar por aqui, de amaciar meu ouvido para essa língua, de conhecer a
cidade e os espaços fora da cidade que a constituem etc., como também tem
um monte de estudos meus sobre ficção, sobre memória, sobre a relação entre
a literatura e o mundo e tudo o mais, achei que aquele mirrado Guto de 2008
não estava tão errado assim, mas consigo avançar mais na leitura desse belo
romance que é o Tratado, e explicar melhor aquela primeira sensação. Antes de
tudo, pela observação direta de que gostei mais dessa leitura do que da primeira.
(Um bom sinal, me parece, na contramão dos livros que parecem incríveis numa
primeira leitura, bons, somente, na segunda, entediantes na terceira, e assim
vai). Também, sem mediações, reparei que ri muito mais do que há dez anos –
mais adaptado a este humor de punhal, em relação ao humor de tramoia de onde
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nasci –, que me senti muito mais próximo dessa coisa etérea que é a identidade
de um lugar, presente no jeito de citar as pessoas, os lugares, na maneira de
tecer os comentários, que me senti menos repelido pelo porto-alegrês e por certo
tônus de bravata, que mais desafia do que acaricia o leitor.
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que o narrador vai escrevendo, a partir do verão de 1982, quanto o diário faz
referências às passagens de outros tempos, que pouco adiante ganham corpo
ficcionalmente. Uma das piadas mais valiosas do livro é que o Tratado mesmo,
aquele que você compra na livraria, só existe no somatório das duas colunas,
como se “ficção” e “realidade” não bastassem sozinhas.
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Por esse caminho fica mais razoável responder à segunda pergunta,
sobre qual é, com efeito, a natureza da ficção, de um modo geral, e pensar no
Tratado à luz dessa resposta. Embora não seja intuitivo, me parece razoável
propor que toda ficção dialoga, não com o real, mas com outra ficção,
conformada por nossas consciências e que pensamos depositar bem justa sobre
o real – como em “Sobre o rigor na ciência”, de Borges –, para podermos chamá-
la de realidade. Antes que me pensem maluco, o real existe (as pedras estão aí
para prová-lo, sobretudo nas testas e nas vidraças!); só não precisamos do
Lacan para considerar o real para sempre intangível. A questão é que, pensando
dessa forma, uma boa ficção não consiste numa forma estética que representa
de maneira sensível e aguda um processo social, mas uma uma forma estética
que representa de maneira sensível e aguda uma outra ficção que relacionamos
a uma determinanda época. Sem querer chatear o leitor com minúcias, o cerne
é que um romance pode ser realista demais, lúcido demais, próximo demais do
real e isso não significar que ele seja boa ficção, ou melhor, que ela seja boa
ficção para algumas pessoas e não para a maioria, precisando ser mais opaco
para cumprir certo papel de mediação da “realidade”.
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vida. A chave para o que proponho pode ser obtida na maneira como é narrado
o reencontro do narrador com Vera Lúcia, que começa assim:
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geracional, posto que conjuga diferentes visões de mundo próximas a essa
perspectiva que as orquestras. Como um leitor perfeccionista pode escrever um
livro? Abrindo mão de escrevê-lo. E a partir dessa perspectiva que organiza as
outras eu respondo à quarta e última pergunta.
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descompromissado.) Uma segunda leitura marca um corte geracional muito
específico. Em descrição precisa:
1Com o perdão da nota num texto que é pra ser leve, chamo de “cosmopolita” uma visão que
pensa ou não o local a partir de certa perspectiva global. No melhor dos casos, não apaga o local
pelo global, como é o caso de Caio. Em contrapartida, chamo de “localista” uma visão que pensa
ou não o global a partir do local. No caso de Paulo Guedes, não apagando o primeiro. Não há
um teor necessariamente negativo em nenhum dos dois termos.
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1944), uma visão racional e solar que busca dar conta de como é possível viver
nos rincões de um mundo que (cá entre nós) deu errado.