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Milhares de irmãos e irmãs da Família Franciscana, do mundo inteiro, trouxeram tudo, que a Espiritualidade
Franciscana tem a dizer para o nosso tempo, num diálogo intercultural. Cinquenta anos depois do início do
Concílio, queremos mostrar exemplos de como isto até hoje tem uma grande atualidade.
Janeiro 2012
Memória e compromisso
Para muitos, soou como uma libertação e para outros como uma ameaça: "Abram as
janelas da Igreja“. Com estas palavras, o Papa João XXIII anunciou, em 25 de Janeiro
1959, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, um "Concílio Ecumênico para toda
a Igreja". Ele exigiu uma atitude de conversão: um "aggiornamento", a aproximação
da Igreja com as necessidades do tempo.
Apesar de toda a preocupação e oposição, o Concílio pôde ser aberto em outubro
de 1962. Os três anos do Concílio fizeram realmente história, e criaram mudanças
radicais: uma profunda renovação litúrgica, uma nova compreensão da Igreja como
povo de Deus a caminho, um voltar-se para as preocupações e necessidades das
pessoas, uma consciência de Igreja mundial e uma abertura ecumênica sem precedentes etc. Realmente,
o sopro o do Espírito Santo se fez sentir. Uma nova primavera estava para chegar. De curta duração,
infelizmente.
Já durante o Concílio houve conflito entre os conservadores e os progressistas. A questão da "Igreja dos
Pobres", que foi levado por muitos bispos dos continentes do Sul e pelos iniciadores e defensores dos
padres operários da França como tema, não conquistou a maioria. Os defensores foram obrigados a
reconhecer que muitos dos irmãos bispos não foram conquistados "pela graça do amor à pobreza”, como
expressou Dom Helder Câmara. Logo após o Concílio, iniciou um debate muito forte e, por vezes
amargo, sobre a interpretação dos documentos conciliares.
Para os tradicionalistas e os conservadores da classe média, o Concílio significou uma ruptura com a
Igreja estabelecida e imutável dos concílios anteriores (Concílio de Trento e do Vaticano I). A intenção
dos reformadores era exatamente esta, de salvar a tradição no coração, interpretando-a para o tempo de
hoje. Não existe a verdade, esculpida em pedra e intemporal. A verdade é sempre limitada pelo tempo,
pela cultura e pela expressão linguística, mudam constantemente. É por isso, que a Igreja deve dizer a
verdade de novo, se ela quiser ser compreendida pelos respectivos concidadãos.
Pelo menos isto a Igreja da América Latina conseguiu realizar em suas reuniões das Conferências
Episcopais em Medellín (1968) e em Puebla (1979). Elas confrontaram a pobreza desumana e opressão
em que viviam seus povos com a mensagem bíblica libertadora e tiraram a única conseqüência possível:
a "opção pelos pobres". Um novo tipo de igreja nasceu: a Igreja Libertadora dos Pobres. As comunidades
de base foram o lugar onde o povo pobre se tornou sujeito da ação. A Teologia da Libertação se tornou a
marca desta Igreja. Leonardo Boff certamente tem razão quando diz: “Obviamente, em nenhum lugar do
mundo cristão, os ensinamentos do Concílio Vaticano II foram recebidos mais seriamente e praticados
com mais energia e criatividade, do que no Terceiro Mundo e entre as minorias oprimidas em todo o
mundo“ (L. Boff, Concilium, 24, 1988).
O CCFMC é um fruto do Concílio. Milhares de irmãos e irmãs da Família Franciscana têm levado a sério
o compromisso do Concílio, lendo as fontes franciscanas à luz do Concílio e dos sinais dos tempos e
assim, re-descobriram a importância da Teologia para o nosso tempo. Num diálogo intercultural longo,
levaram os desafios de hoje para a leitura franciscana. Eles descobriram que as opções essenciais
franciscanas são convergentes com os documentos importantes do Concílio, como Igreja dos Pobres,
como o Povo de Deus em Marcha, como uma Igreja Irmã e a serviço dos outros, a criação como um
elemento fundamental da revelação de Deus, a justiça e a paz, a preservação da criação. Portanto nós
deveríamos acolher em nossos corações a memória dos 50 anos do Concílio, como chance de levar em
séria consideração estas questões. Por meio das nossas News, este ano, nós vamos apresentaremos idéias,
com as quais nos podemos voltar pessoalmente e em conjunto com as nossas fraternidades buscando o
espírito e a comunhão do Concílio.
Andreas Müller OFM
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Fevereiro 2012
Março 2012
Abril 2012
Francisco e os pobres
O jesuíta suíço, Mario von Galli, afirmou que a São Francisco foi tema subjacente do Concilio Vaticano
II. Com o conceito chave “Igreja dos Pobres” o Papa João XXIII lembrou este tema fundamental do
Poverello de Assis. A Igreja deve ser uma Igreja para todos e em especial para os pobres, porque Jesus
proclamou sua mensagem libertadora para os pobres. A contribuição de Norbert Arntz mostra, que este
tema perpassa todas as etapas do Concilio, como um fio condutor. Ainda que, 50 anos depois do
Concílio, não nos restem mais que propostas e tentativas, estas não perderam em nada sua força
explosiva.
Francisco era filho de um comerciante rico e fazia parte da burguesia rica de Assis. Os poderosos e ricos
se relacionavam entre si. A Igreja também fazia parte desta sociedade feudal. Os pobres viviam nos
cinturões das cidades; eles eram os servidores baratos dos ricos, sem ter nenhum direito e, a Igreja pouco
se importava com eles. O jovem Francisco se sentia bem neste mundo, ele era o líder das festas e farras.
Com o dinheiro do pai ele tinha condições de fazer isto. Ele queria ser um cavalheiro e chegar ao topo da
sociedade. Este era o seu sonho. Mais tarde ele dirá que neste tempo ele vivia como se “Deus não
existisse”. O Deus que os cidadões ricos de Assis adoravam, era “o Altíssimo Senhor”, era o grande
Soberano do Mundo, que nada tinha a ver com a vida cotidiana do povo. Em seu Testamento Francisco
dirá que neste tempo, “eu estava em pecado”; por isso, o tempo, em que ainda não havia sido tocado
pelo “pobre Jesus de Nazaré”, e pelas angústias e sofrimentos dos pobres e excluídos, fora dos muros de
Assis.
A transformação decisiva se deu por iniciativa do próprio Deus, como ele escreve em seu Testamento: “O
Senhor concedeu a mim, frei Francisco, começarste não pode ser o verdadeiro mundo. Ele descobre o
mundo do Evangelho, como alternativa. Doravante ele quer seguir os passos Jesus, o pregador pobre e
itinerante. Abandona a cidade de Assis, a cidade das seguranças e do dinheiro. De agora em diante, seu
lugar social será no meio dos pobres, dos leprosos, dos oprimidos e excluídos. Esta passagem foi
dolorosa, fruto de longa e penosa busca, mas que lhe trouxe a certeza: “Ninguém me mostrou o que eu
deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou ...o Senhor me deu – O Senhor me mostrou” (Test).
Desde então, ele se deixa conduzir por este Espírito de Deus. Não é de admirar que, em pouco tempo,
tenha encontrado companheiros que quisessem viver com ele e, como ele, seguir Jesus de Nazaré pobre,
viver e anunciar sua mensagem libertadora. De um início pequeno, nasce rapidamente um movimento
grande, nasce uma nova forma de ser Igreja, uma forma revolucionária de conviver sem domínio e nem
posse. A vida deve ser compartilhada, como irmãos e irmãs e assim, testemunhar a vinda eminente do
Reino de Deus.
Por isso, não é estranho, que muitos participantes do Concílio quisessem seguir exemplo fascinante do
pobre Francisco de Assis, na busca por uma Igreja renovada, aberta e voltada para o mundo. Isto teria
sido uma mudança radical, assim como foi na Igreja feudal da Idade Média. O sonho de Francisco de
uma “Igreja dos Pobres” nunca chegou a ser uma realidade plena, mas surgem pequenos ensaios. 50
anos depois, o sonho dos participantes do Concílio de uma Igreja Povo de Deus, ainda está longe de ser
realidade. Depende de nós, não deixar este sonho cair no total esquecimento.
Andreas Müller OFM
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Maio 2012
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Igreja - o povo peregrino de Deus no mundo
O jubileu do Concílio na visão franciscana
P. Dr. Othmar Noggler OFM Cap
Na intenção do Papa João XXIII, o Concílio Vaticano II, devia ser um encontro de
toda a Igreja, deveria unir crentes e não-crentes de “boa vontade”, deveria servir
como orientação e apoio para enfrentar juntos os problemas enormes da
humanidade e do mundo moderno. Uma retrospecção à época anterior ao Concílio
deixa claro, como na época, o inimaginável era não só estimulante para o
pensamento, mas tinha influência na convicção básica cristã, para além da
autoimagem católica. Assim, a imagem Igreja como “societas perfecta” – uma
instituição, que reduzia a vida ao espiritual – muda para a imagem de povo de Deus
peregrino, que deve ser luz entre os povos ao mesmo tempo que reconhece a
própria fraqueza.
Não se pode separar o Concílio Vaticano II, o evento do século, do Papa João XXIII.
Quando ele anunciou o Concílio ecumênico para Igreja toda, muitos dos que se entendiam parte dos
“doutrinadores da Igreja”, ficaram de boca aberta. Pouco tempo depois, eles inventaram, com listas de
razões, que seria impossível realizar este evento do século. A palavra do “Papa da transição” circulou…
Mas, para surpresa de muitos, este Papa colocou as balizas para o necessário diálogo intelectual entre o
mundo e a autoimagem da Igreja. O título da sua primeira encíclica (1961) “Mater et Magistra” (Mãe e
Mestra), sugere que a Igreja não deve ficar em volta de si mesma. Segundo a ordem do seu fundador, ela
tem o compromisso, não só de cuidar da vida eterna, mas de lutar pela dignidade da vida humana e de
todo o planeta.
Em consequência disto, o Concílio será um impulso para compreender a mensagem de Jesus como
mensagem libertadora para toda a humanidade, especialmente para os empobrecidos. A mensagem
libertadora não desconsidera área alguma: nem o estado e sua política, nem a economia nacional e
internacional, nem o relacionamento entre homens e mulheres, na sociedade e na Igreja, e nem da Igreja
no seu interior. O Papa João vê, nos enormes problemas da humanidade e no desenvolvimento
ameaçado, os “Sinais do Tempo“ e os entende como apelos de Deus para que a Igreja aja de acordo com
sua missão.
A Encíclica “Pacem in Terris” – sobre a paz entre os povos (1963) – é mais uma seta de orientação para a
“Igreja no mundo de hoje”. Era de se esperar que houvesse tentativas de espiritualizar o Concílio, isto é,
fazê-lo menos concreto e consequente em relação à situação da humanidade. No comentário oficial da
Constituição Pastoral, pode-se ver esta tentativa. Lá, por exemplo se fala da “linguagem deficiente” da
“Mater et Magistra“ e do “zelo excessivo”, com que João XXIII deu um presente da bondade de seu
coração aos seus queridos lavradores, como bem o expressa o autor suíço J. Bless. O Papa deu como
presente aos seus lavradores, um buquê de flores, cheio de conselhos agrotécnicos e agropolíticos“.
(Oswald v. Nell Breuning in: LThK III, 1968, 530). Como o Papa pensou em primeiro lugar nos “seus
queridos lavradores” e menos no iluminado grupo dos teólogos especulativos, ele queria um Concílio de
acordo com o protótipo do concílio dos apóstolos.
Naquela época, o Concílio foi o instrumento capaz de ajudar um punhado de cristãos-judeus a discernir
sobre um tema importante e polêmico: ficar entre os muitos grupos religiosos especiais de judaísmo ou
ter a coragem e a vontade de “ir até os confins do mundo”. O Concílio foi a forma encontrada para
resolver problemas, enfrentar desafios de tal maneira que a comunidade pôde dizer que foi do agrado do
Espírito Santo e dela, decidir (cf. At 15,28).
Deste tempo, vem a convicção constante, que um Concílio, também um Concílio Pastoral, representa a
autoridade máxima da Igreja. Como o espírito de Deus age em toda parte e no povo todo, este tem a
possibilidade de interpretar os sinais do tempo corretamente. Muito antes dos teólogos, os agricultores,
ao votarem no “seu Partido Comunista apesar da proibição pela Igreja”, entenderam, por exemplo, que
ele não tinha nada a ver com ateísmo, e sim com uma desordem social intolerável no seu país. Só a partir
do Concílio, foi possível aceitar que as pessoas, na busca de sair da injustiça e da miséria estrutural, para
a compaixão humana, podem enveredar por caminhos que são no fundo caminhos errados pela
ideologia que lhes dá suporte. Ver neles sinais do tempo especiais é uma tarefa permanente da Igreja. Ela
pressupõe a renúncia ao esquema amigo-inimigo tradicional, mas completamente antibíblico e
antifranciscano.
Sem esta renúncia, não teria sido possível o encontro histórico do genro de Nikita Krushew com o Papa
João XXIII. Foi por ocasião de uma visita oficial à Itália, que o representante do Kremlin, se mostrou
interessado numa audiência com o Papa. Este foi bastante soberano para acolher um representante de
altíssima importância do poder mundial comunista, sem se intimidar com os “gaviões”, do lado político
contrário e dos fieis “tradicionais e até ultra tradicionais de direita” na própria Igreja. Estes ganharam de
novo chão nos últimos tempos, como mostra a apresentação autossuficiente dos Irmãos Pio, que
desrespeitam, impunemente a autoridade doutrinária da Igreja, desde os dias do concílio dos apóstolos.
Esta situação provocou alguns a pensar em um novo Concílio, na esperança de que outro vento de
pentecostes varresse de novo os velhos muros da Igreja. Não são poucos os que têm a preocupação de
que a atual geração de bispos poderia sonhar com um próximo Concílio de cunho dogmático, fadado a
terminar como o Concílio Vaticano I (1870), com uma extensa ladainha de solenes julgamentos e
condenações de pessoas e de opiniões, encerrando com a fórmula: “Si quis dixerit vel crediderit …
anathema sit. Se alguém afirmar ou crer seja condenado!
Lembrando o início do Concílio Vaticano II, o Papa Bento XVI proclamou o ano da fé. Isto significa
também um apelo à consciência, como o fez o Papa VI. 10 anos depois do Concílio, o Papa Paulo exigiu
um exame de consciência baseado neste questionamento: “O que acontece em nossos dias com a fonte
de energia escondida da Boa Nova que tem o poder de sacudir profundamente a consciência da
humanidade? – Até que ponto, em que grau e com que força o Evangelho é capaz de transformar a
sociedade do nosso século?… Será que depois do Concílio, que significou mudança histórica, o Kairós de
Deus, a Igreja… está mais apta para anunciar o Evangelho em espírito de liberdade, e fazer com que seja
aceito de coração pelos homens e mulheres de hoje?” (EN 4).
Pensadas estas questões, pode-se concluir que, graças ao Concílio a Família Francisclareana descobriu as
fontes escritas que Francisco e Clara deixaram, e que, em grande parte eram, até então, totalmente
desconhecidos. Toda riqueza desta herança e o surpreendente pensamento intemporal encontrado lá,
tiveram a sua plena significação em relação às afirmações do Concílio e à realização dos Concílios
Continentais, em especial na América Latina.
O CCFMC se apresenta, então, como instrumento eficaz, tanto para o exercício da missão da Igreja na
sociedade, na opção pelos pobres, pela justiça, pela paz e pela defesa da criação, como para a
concretização das orientações conciliares, quanto ao diálogo com as outras religiões e culturas, e a
proclamação do Evangelho da liberdade, inclusive, resistindo contra algumas atitudes autoritárias da
hierarquia.
É um instrumento que possibilita o retorno à herança própria da Família Francisclariana, enriquecido
pelas experiências das irmãs e dos irmãos das quatro direções do vento, para a vivência do “ano da fé” e
um aggiornamento do Concílio para o século XXI.
Julho 2012
Setembre 2012
Com o Papa João XXIII, a partir de sua encíclica “Pacem in terris” (1963), começou uma mudança da
imagem da mulher na Igreja. Esta mudança, que é o reconhecimento dos valores fundamentais e da
igualdade de direitos de todo ser humano, que tem base na comum filiação divina, dói decisivamente
assumida pelo Concílio Vaticano II. E assim, pela primeira vez num Concílio, se falou questão da mulher,
o que foi grande novidade, motivo de esperança e marcou a trajetória: “Dotados de alma racional e
criados à imagem de Deus, todas as pessoas têm a mesma natureza e a mesma origem; redimidos por
Cristo, todas gozam da mesma vocação e destinação divina: deve-se, portanto, reconhecer cada vez mais
a fundamental igualdade de todas as pessoas... Contudo, qualquer forma de discriminação nos direitos
fundamentais da pessoa, seja ela social ou cultural, seja por razão do sexo, raça, cor, condição social,
língua ou religião, deve ser superada e eliminada, porque contrária ao Plano de Deus” (Gaudium et Spes
29). Esta mudança da consciência repercutiu também na vida da Igreja. No Decreto sobre o apostolado
dos leigos o Concílio afirma: “Como hoje a mulher tem cada vez mais parte ativa em toda a vida social,
é da maior importância que ela tenha uma participação mais ampla também nos vários campos do
apostolado da Igreja“ (Apostolicam Actuositatem 9).
Os diferentes documentos do Concílio trazem presente a missão fundamental da Igreja: em todas as suas
atividades e através de todos os batizados ela deve dar um testemunho vivo do Evangelho. Este ardente
anseio, de seguir juntos os passos de Jesus, foi o impulso fundante do movimento francisclareano. E só na
parceria entre homens e mulheres, nosso testemunho terá credibilidade. Trata-se da experiência de
fraternidade, pela qual estamos lutando hoje, como há cinquenta anos atrás. Para Francisco e Clara a
fraternidade não caiu do céu! No início do século XII, a desigualdade de gênero era inquestionável; os
papeis eram bem definidos. Clara por exemplo precisou de Francisco como aliado masculino para seguir
seu caminho próprio, Francisco pelo contrário, não “necessitou” de Clara. É admirável que ela não se
tenha deixado intimidar pela imagem da mulher vigente no seu tempo. E é impressionante perceber, a
abertura de Francisco diante deste desafio, além da ousadia de que ambos precisaram, cada um a seu
modo, para fazer a experiência de alteridade entre os gêneros, apesar das condições sociais e valorizando
as possibilidades pessoais. Inicialmente, esta experiência de relação entre gêneros era carregada de
riscos. Mas os dois tinham a capacidade de ultrapassar limites e preconceitos. Sem dúvida, porque
souberam reconhecer neles mesmos e no outro, na outra, a ação do Espírito de Deus. E porque
mostraram respeito e curiosidade na busca da própria vocação.
O Concílio mostrou esta coragem francisclareana, de levar a sério a dignidade de todos os batizados. É
preciso fazer uma releitura consequente dos textos que marcaram o rumo e também concretizar de forma
consequente as diretrizes do Concílio. Para isto precisa-se em especial de pessoas que assumam com
consciência esta dignidade como dom e missão. Para tanto, precisamos de mulheres corajosas como
Clara, e as suas coirmãs, como as auditoras no Concílio Vaticano II, mulheres que lutem e se
comprometam para que as companheiras não continuem sendo o que foram, pelo menos, no Concílio:
„Hóspedes na própria casa“1. Precisamos também de uma rede como foram as irmãs de São Damião e de
Praga, interagindo com os irmãos, com quem se apoiam e, mutuamente se encorajam neste caminho - às
vezes ousado - rumo a uma Igreja fraterna: “porque todos vocês que foram batizados em Cristo se
revestiram de Cristo. Nisto não há mais diferença entre judeu e grego; entre escravo e livre, entre homem
e mulher, pois todos vocês são um só em Cristo Jesus” (Gl 3,27-28). Permitamos que as fontes
franciscanas, os documentos do Concílio Vaticano II e, sobretudo, a Palavra de Deus nos falem: É o
mesmo e único Espírito que move homens e mulheres nesta Igreja.
Outubro 2012
Movimento espiritual iniciado por Francisco e os seus companheiros, marca uma mudança
revolucionária na história da espiritualidade da Igreja. Ela já não se caracteriza pela estabilidade, mas
pela itinerância; não mais pelo mosteiro como mundo, mas pelo mundo como mosteiro, como o lugar de
encontro com Deus. A comunidade fraterna e a caixa comum eram os sinais das comunidades cristãs
primitivas. Destas comunidades nasceu o pulso missionário.
Isto mudou radicalmente quando, sob Constantino e Teodósio I, no século IV, o cristianismo se tornou a
religião do estado. Ser cristão não era mais perigoso, pelo contrário – era condição para subir na
sociedade. Esta facilidade teve como consequência o sabor da mediocridade e superficialidade. Estado e
Igreja se igualaram cada vez mais. O imperador se tornou protetor da Igreja e o Papa passou a competir
com o Imperador nas artimanhas de governar e na busca de poder. Pessoas, que queriam viver o ideal na
sua originalidade fundaram pequenas comunidades segundo o modelo das primeiras dioceses, disse
Johannes Lassian, no século IV. É o modelo das antigas comunidades de monges – que tinham como
colunas fundamentais a estabilidade e a caixa comum. Francisco sentiu – não ser isto que o Senhor lhe
revelava. O modelo que ele queria seguir não era uma comunidade bem estruturada, mas o próprio
Jesus. Como Jesus, ele quer andar pelo mundo e proclamar a Boa Nova do Reino de Deus aos pobres.
Porque aquele que se entrega totalmente a Jesus e ao Evangelho, se torna missionário; não pode mais
viver somente para si, mas deve se consumir a serviço dos outros. Foi esta a convicção de Francisco.
Então, o cerne da espiritualidade não pode ser a piedade particular e o cuidado pelo bem de sua própria
alma, mas sim o empenho pelo "Shalom" de Deus. Só pode construir a paz, quem tem a paz em seu
1
Ver Carmel Elizabeth McEnroy, Guests in their own house. The women of Vatican II, New York 1996.
coração. Quem quer proclamar autenticamente a mensagem libertadoraaos pobres, deve ser ele mesmo
pobre. Quem se compromete com esta
esta mensagem para os pobres, não pode ficar preso a um único local.
Deve, sim, andar pelo mundo com uma bagagem bem leve. Mobilidade, pobreza e não-violência
não são as
marcas das comunidades, que assumiram este novo modo de ser da espiritualidade cristã.
O carisma
arisma franciscano sempre tem uma dimensão política. Franciscanos devem lutar pela justiça e
verdade, por um convívio fraterno de todas as pessoas, em paz e liberdade. Eles devem lutar contra a
desigualdade de chances, contra a fome e a pobreza, contra o abuso
abuso da mãe terra e da irmã água.
Também a imagem da Igreja muda. Ela deve ser uma Igreja fraterna, se quiser corresponder ao
Evangelho. Desde o Papa ao mais simples leigo, do bispo às pessoas mais humildes nas comunidades,
todos têm a mesma dignidade. Eles Eles são filhos e filhas do Pai celeste, são irmãos e irmãs do Filho
Encarnado, Jesus de Nazaré. Como Jesus, eles devem servir um ao outro e lavar os pés uns dos outros.
Não pode mais haver os que estão em cima e os que estão embaixo, não pode mais haver donos do e
servos. A Igreja será regida não mais pela lógica do poder, mas pela dinâmica do amor. Também não
poderá haver prioridade dos clérigos em detrimento dos leigos, dos homens em prejuízo das mulheres.
O Concílio Vaticano II, que quis abrir a Igreja para
para os sofrimentos e necessidades do tempo, seguiu este
caminho. E por isto, Mario de Galli chamou São Francisco de tema secreto do Concílio. Porque
Francisco vai além da divisão em hierarquia e povo messiânico, em seu conceito de uma Igreja do povo
de Deus,s, que no seu todo é povo messiânico, em cujo seio, a hierarquia assume somente uma das muitas
tarefas de serviço. "O
O mistério desta Igreja manifesta-se
manifesta se já na sua fundação. Porque o início está na
pregação do Reino de Deus por Jesus. O Senhor Jesus deu inícioinício à Sua Igreja pregando a boa nova do
Reino de Deus prometido desde há séculos nas Escrituras" (LG 5)
Todos os membros de uma Igreja, assim compreendida gozam da dignidade e liberdade de filhos e filhas
de Deus, em cujos corações o Espírito Santo habita como num templo. Francisco descobriu e viveu isto
exemplarmente, porque seguiu simplesmente os passos de Jesus. O fato de Clara ter a mesma inspiração,
no mesmo tempo e no mesmo lugar, mostra como Deus tem interesse de fazer reviver e experimentar a
mensagem
sagem libertadora do Reino de Deus
Andreas Müller OFM
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Novembre 2012
O totalmente diferente
O que mais fascina em Francisco é sua capacidade de traduzir novamente para o povo simples a
mensagem do Evangelho como uma mensagem libertadora. Deste modo, ele não se enquadra na imagem
da Igreja e da sociedade do seu tempo. Há muito tempo o Jesus pobre de Nazaré não figura mais na
agenda dos pregadores. A imagem de Deus, pelos anos 1200, era de um poderoso Deus romano do
mundo, como reina no portal da Catedral de São Rufino, em Assis. O que este poderoso Jesus do mundo
tem a ver com a vida cotidiana do povo? Quanto mais Jesus fosse divinizado, tanto mais podia praticar na
Igreja uma veneração que não tinha nada a ver com as necessidades humanas. O foco era Jesus Cristo
glorioso, muito distante dos “porões da humanidade”. Francisco redescobriu em Jesus o Deus humilhado,
despojado de si mesmo, o Jesus de Nazaré, que se debruçou sobre todas as necessidades humanas.
Concretamente ele o encontrou Jesus no rosto desfigurado dos leprosos. A partir desta experiência, ele
simplesmente buscou imitar este Jesus de Nazaré humilhado e amoroso e voltar-se aos pobres e
excluídos. Seguir os passos de Jesus, isto era o seu modo de transmitir a mensagem libertadora do
Evangelho.
O que nos podemos nos aprender e assumir para dar conta dos problemas de hoje? Primeiramente,
devemos dar-nos honestamente conta de que nos não podemos simplesmente transferir os 800 anos do
mundo de Francisco para nosso mundo. Ele viveu numa época marcada pela cristandade na qual a Igreja
tinha um papel dominante. Nunca passou pela cabeça de ninguém questionar esta situação. Nós, ao
contrário, vivemos num mundo, que precisa se reencontrar – pelo menos os que ainda são crentes e
orientam sua vida por valores – num imenso supermercado de religiões e ofertas espirituais. O mundo do
Francisco era controlável e funcionava em ritmo lento e benéfico, de maneira que o novo podia se
desenvolver e estabelecer com toda tranquilidade. Nós vivemos numa aldeia global que, a cada dia –
com uma rapidez de tirar o fôlego - nos desafia e nos supera. Para Francisco os pobres tinham nomes e
rostos, nós, pelo contrário os temos em conta de um exército de milhares de sem nome e sem lugar!
Como podemos superar este fosso se nos empenhamos seriamente em descobrir, o que, em sua vida,
ainda é modelo indispensável? Francisco não propagou um programa e nem um fio condutor de vida
cristã. E isto nem foi necessário, porque ele vivia integralmente o que falava. Sua vida toda era a palavra e
sua palavra era vida. Ele só anunciava o que vivia. E por isto ele podia dizer: só se conhece o que se faz!
Ele antecipou o princípio mais tarde assumido por Gandhi: o caminho é o objetivo!
Se a cada dia vivermos o que falamos, não precisaremos de nenhum programa escrito e de nenhuma
organização estrutural para praticá-lo. A fé concreta, isto era a atitude típica de Francisco. E ele viveu esta
fé numa época, em que se dava a luta pelo poder entre o Papa e o Imperador, entre os bispos e a
burguesia nas cidades florescentes. Contudo, ele não se deixou contagiar e nem abalar. Ele fez seu
caminho e viveu sua vida tão qualitativamente diferente com a segurança de um sonâmbulo. Ele
acreditava e agia segundo o exemplo do pobre Jesus de Nazaré. Este era seu programa!
Com ele, o Sermão da Montanha ganhou novamente vida. Para ele as bem-aven-turanças não são
ensinamentos majestosos e sofisticados, que necessitam de explicação para poderes ser vividos; também
não são fantasias espirituais, que não funcionam na vida cotidiana. Esta era a compreensão de uma
religiosidade burguesa e medíocre. Para Francisco as bem-aventuranças do Sermão da Montanha são o
cerne do Evangelho; são conselhos de um Deus, que ama incondicionalmente seu povo. Portanto ele as
amava e vivia - radicalmente – com tal convicção que era contagiante. Era seu programa, seu caminho,
totalmente diferente de tudo o que a Igreja prescrevia.
Viver e lembrar isto é nossa tarefa permanente, se pensarmos o que podemos salvar da essência
franciscana em nosso tempo.
Andreas Müller OFM
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