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DARTIU XAVIER DA SILVEIRA FILHO

DROGAS
Uma compreensão psicodinâmica das farmacodependências
Agradecimentos

Agradeço ao Prof. Claude Olievenstein, mestre e amigo, pelo incentivo e pela confiança que me foi constantemente
depositada há quase uma década de trabalho com drogados.

Agradeço aos profs. Drs. Itiro Shirakawa e Miguel Roberto Jorge pelo inestimável apoio, sem o qual este trabalho não
poderia ter sido realizado.

Agradeço ao Dr. Carlos Byington, pela sua criatividade fertilizadora na orientação deste texto.

Agradeço ao Dr. Alberto Patrício, pela sua capacidade de continência de feridas tão profundas.

Agradeço, ainda, aos pacientes drogados que, “emprestando” seu sofrimento e sua dor, possibilitaram a elaboração
deste trabalho.
Sumário

PREFÁCIO ................................................................................................................................................... 11

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................. 13

QUEM SÃO “ELES”? .................................................................................................................................... 17

PSICANÁLISE ............................................................................................................................................... 23

DA PSICANÁLISE À PSICOLOGIA ANALÍTICA ............................................................................................... 39

DENTRO DE UMA PERSPECTIVA SIMBÓLICA .............................................................................................. 49

O ASPECTO DO FEMININO NAS DEPENDÊNCIAS ....................................................................................... 73

O CORPO DO PAI ........................................................................................................................................ 81

Mergulhos .................................................................................................................................................. 82
© 2002 Casa do Psicólogo®
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer _nalidade, sem autorização por escrito dos editores.

1ª edição 1995
2ª edição 1995
3ª edição 2002
Editor Anna Elisa de Villemor Amaral Güntert
Produção Grátca Renata Vieira Nunes
Capa Projeto Sonia Magalhães
Revisão Drecap
Editoração Eletrônica Cristiane Rissato

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Silveira Filho, Dartiu Xavier da,

Drogasuma compreensão psicodinâmica das farmacodependências / Xavier da Silveira Filho. – São Paulo: Casa do Psicólogo, 1995

Bibliografia:

ISBN 85-85141-62-X

1. Drogas – Abuso 2. Drogas – Efeitos colaterais 3. Toxicomania 4. Tóxicos I. Título

95-4216 CDD – 616.863

Índices para catálogo sistemático:


1. Drogas: Dependência: Medicina 616.863
2. Farmacodependê:Medicina 616.863

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à

Casa do Psicólogo
Rua Simão Álvares, 1020 – Vila Madalena
CEP 05417-020 – São Paulo/SP – Brasil
Tel.: (11) 3034.3600
www.casadopsicologo.com.br
Dedico este trabalho a Evelyn, minha esposa;

a meus filhos, Juliana, Carolina e Victor;

a Gersony, minha mãe; à memória de meus pais.


Prefácio

Os verdadeiros clínicos em matéria de toxicomania são raros. Dr. Dartiu Xavier da Silveira é um desses raros clínicos.
Possui uma tripla formação: universitária em São Paulo; em centros de tratamento para toxicômanos de diversos
países, especialmente na França; e, enfim, no seu centro, onde, de maneira exemplar, são atendidos dependentes
graves.

Esta experiência nos é por ele transmitida em seu livro claro, límpido e lúcido. Suas referências são aqui
essencialmente psicanalíticas e psicodinâmicas.

De início, ele nos coloca a questão que tanto procuramos compreender: “quem são eles?” A resposta não é fácil e
conseqüentemente sua obra faz apelo a distintas referências teóricas. Utiliza sua formação psicanalítica (já bastante
próxima de Jung) e, a partir daí, se concentra na psicologia analítica.

Leva o leitor a refletir sobre a perspectiva simbólica colocada pela transformação de um objeto inerte, a droga, em
uma miríade de referências simbólicas, o que o conduz de forma natural à compreensão do nascimento de uma
dependência através de uma abordagem real, imaginária ou simbólica do corpo do pai e da parte feminina, ambos
arquetípicos.

Como bom terapeuta, suas referências são utilizadas no posicionamento de um homem que vai se confrontar com a
toxicomania dos outros. Somos gratos a ele por ter ousado abordar o problema da relação funcional, até mesmo
carnívora, entre o terapeuta e seu paciente. A partir disso, ele nos mostra o difícil caminho onde, pouco a pouco, a
fusão é substituída pela abertura para o outro.

Damo-nos conta de forma mais apropriada do perigo que representa o terapeuta sentir em demasia sua própria dor
quando tenta impedir a dor do outro. Somente a relação entre a teoria e a prática, constantemente remetidas uma à
outra, permite eliminarmos tanto a onipotência quanto a melancolia.

Desejamos a este livro o sucesso que merece, pois sabe ser importante de maneira concisa.

Professor Claude Olievenstein


Paris, 7 de março de 1995.
Introdução

Farmacodependência é um termo genérico, abrangendo ampla gama de comportamentos toxicomaníacos. Sua


especificidade procede do encontro de um indivíduo com uma substância psicoativa em um determinado contexto
sociocultural.

O relatório de especialistas da Organização Mundial de Saúde de 19691 define farmacodependência como:

• “estado psíquico e algumas vezes físico resultante da interação entre um organismo vivo e uma substância,
caracterizado por modificações de comportamento e outras reações que sempre incluem um impulso a
utilizar a substância de modo contínuo ou periódico, com a finalidade de experimentar seus efeitos psíquicos
e, algumas vezes, de evitar o desconforto da privação. A tolerância pode estar presente ou não”.

Trata-se de um conceito extremamente genérico aplicável a todos os tipos de uso abusivo de drogas. Esta definição
implica a existência de uma dependência psíquica implícita, que poderia ser expressa como:

• “estado mental caracterizado pelo impulso a utilizar uma droga psicoativa periódica ou continuamente
com a finalidade de obtenção de prazer ou de aliviar uma tensão”.

Apenas secundariamente o uso de drogas acarretaria uma dependência física, que poderia ser definida como:

• “necessidade por parte de um organismo do aporte regular de uma molécula química exógena para a
manutenção de seu equilíbrio. Esta dependência é objetivada por sintomas físicos e psíquicos que sobrevêm
por ocasião da privação, constituindo a “síndrome de abstinência”. A tolerância é um estado de adaptação
de um organismo a uma substância, decorrente da necessidade de manutenção de sua homeostase,
manifestando-se pela necessidade de aumentar a quantidade do produto para a obtenção dos mesmos
efeitos”.

De uma forma geral, estão incluídas em uma mesma terminologia realidades individuais extremamente diversas.
Torna-se imperativo lembrarmos que uma farmacodependência é uma organização processual de um sintoma cuja
gênese é tridimensional: a substância psicoativa, com suas propriedades farmacológicas específicas; o indivíduo,
com suas características de personalidade e sua singularidade biológica; e, finalmente, o contexto sociocultural,
onde se realiza este encontro entre indivíduo e droga.

Alguns pontos devem ser destacados para uma maior compreensão do fenômeno dependência:

• a droga é um objeto que existe e sempre existiu objetivamente, independentemente do conteúdo


subjetivo que possa vir a exprimir;

• diante deste objetivo, a droga, a atitude do ser humano varia segundo o espaço, o tempo, a ideologia e as
características socioculturais do momento do encontro entre o indivíduo e a droga;

• em um mesmo contexto sociocultural, a atitude dos indivíduos ante a droga varia segundo suas
características pessoais.

Cabe inicialmente uma distinção extremamente importante na clínica: a diferenciação entre o usuário recreativo e o
dependente de drogas. Embora a fronteira entre estas duas categorias não seja nítida, alguns elementos podem nos
guiar nesta discriminação: a grande maioria dos usuários de droga não é e nunca vai ser dependente do produto; na
grande maioria das vezes a droga é procurada como fonte de prazer tanto pelo usuário como pelo dependente; o
dependente de drogas é um indivíduo para quem a droga passou a desempenhar um papel central na sua
organização, na medida em que, através do prazer, ocupa lacunas importantes, tornando-se assim indispensável ao
funcionamento psíquico daquele indivíduo (ou seja, um dependente, ao contrário do usuário, não pode prescindir da

1 ORGANIS ATION MONDIALE DE LA SANTÉ – Comité d’experts de la pharmacodependance. Série de rapports techniques, n º 407,
Genebra, 1969.
sua droga). Outro ponto fundamental a ser destacado é a especificidade da dependência humana; o ser humano
busca ativamente a droga, enquanto um animal só se torna farmacodependente pelas mãos do homem. Esta
constatação é importante para que o fenômeno dependência não seja, de forma extremamente simplista, reduzido
a seus aspectos biológicos.
Quem são “Eles”?

A grande variabilidade e diversidade de fatores que favorecem o aparecimento da dependência correlacionam-se


com a impossibilidade de se caracterizar uma “personalidade do dependente”.

A especificidade da farmacodependência consiste na inexistência de uma especificidade estrutural do dependente


de fármacos. Por mais que a nosografia psiquiátrica insista em categorizá-la como uma entidade nosológica
autônoma, a clínica da famacodependência não consegue reconhecer nada mais sistematizável do que uma conduta
toxicomaníaca2. Assim, em princípio, não podemos falar em “doença”, mas apenas em “conduta”.

A psiquiatria moderna nasceu quando, no fim do século XVIII, nos cárceres franceses, Pinel separa criminosos de
doentes mentais. Infelizmente, os toxicômanos só começaram a ser distinguidos dos criminosos neste século,
cabendo ressaltar que as legislações de diversos países ainda os confundem em pleno final do século XX. A
psicanálise surge na virada do século XIX como um modelo psicodinâmico, representando grande progresso, na
medida em que se apresenta como alternativa ao modelo neurológico de degenerescência. Não obstante, apesar do
salto qualitativo que representa este modelo psicodinâmico, a psicanálise muitas vezes acaba por incluir as
toxicomanias na mesma categoria psicopatológica das perversões sexuais e dos transtornos de caráter
(personalidades psicopáticas ou sociopatias)3.

Na segunda metade de nosso século, observamos a expansão do uso de drogas, chegando mesmo a configurar um
verdadeiro fenômeno de massa. A partir desta “democratização” das drogas, os usuários deixam de ser identificados
com “certos tipos de marginais” ou algo como “certas espécies de pervertidos”, de que se ouve falar, para serem
identificados como nossos amigos, irmãos, nós mesmos... A partir deste momento, em que o uso de drogas adquire
um caráter quase banal, a droga deixa de ser o depositário das projeções de tudo o que é indesejável em nossa
cultura.

O que distingue então o usuário do dependente de drogas? Freqüentemente, vemos que o dependente é um
indivíduo que se encontra diante de uma realidade objetiva ou subjetiva insuportável, realidade esta que não
consegue modificar e da qual não consegue se esquivar, restando-lhe como única alternativa a alteração da
percepção desta realidade. Esta alteração da percepção da realidade pode ser obtida através do uso da droga. Se
tivermos em mente que a relação de dependência com a droga é a única alternativa que restou para o toxicômano,
torna-se compreensível que o comportamento de drogar-se se efetive através de um ato impulsivo. Não se trata do
desejo de consumir drogas, mas da impossibilidade de não consumi-las. Estabelece-se assim um duo indissociável
indivíduo-droga, em que tudo o que não é pertinente a essa relação passa a constituir pano de fundo na existência
do dependente. Este duo permanece indissociável enquanto a droga for capaz de propiciar esta alteração da
percepção de uma realidade insuportável, respondendo assim pela manutenção do equilíbrio do indivíduo. Para o
dependente, a droga é uma questão de sobrevivência. Não ter a droga é perder-se. E a droga pode, ao mesmo
tempo, ser a possibilidade de resgate de aspectos de sua identidade.

Para este indivíduo, a dependência é a única referência estável e perene, da qual não pode prescindir, na medida em
que se configura como sua única “lei” possível. As “outras” leis, ou seja, as leis da nossa cultura, simplesmente não
existem enquanto código para muitos dos que se tornam dependentes. Conseqüentemente, muitas vezes sua
conduta de transgressão das leis deriva do desconhecimento das mesmas e não de um ato deliberado. Este é um
ponto extremamente importante para a compreensão do dependente e em particular de certos desdobramentos
judiciários e médico-legais das condutas toxicomaníacas.

A especificidade desta relação com a lei vai, entre outras coisas, contribuir para o estabelecimento de relações muito
particulares do dependente com seu corpo, que passa a ser o terreno de eleição para a inscrição de sua identidade.
Assim, autoerotismo, ambivalência sexual, androginia, vão constituir formas peculiares de expressão erótica desta

2 XAVIER DA SILVEIRA, D. “Farmacodependentes e AIDS: a clínica”. In: Saúde e loucura, nº 3, Editora Hucitec, São Paulo, 1991.
3 CODERSCH, J. Psiquiatría dinámica. Editorial Herder, Barcelona, 1975.
personalidade.

Simbolicamente, a não estruturação desta lei dominantemente patriarcal mantém o dependente em um universo
predominantemente matriarcal. Aqui, a própria noção de tempo não é lógico-linear, mas centrada na
instantaneidade. Configura-se, assim, quase que uma vivência de eternidade, que, entre outras coisas, acaba por
tornar igualmente particular a relação do dependente com a morte. Este coloca-se constatemente em confronto
com a morte: acumulam-se seqüências de episódios de extremo risco de vida, associados ou não ao uso de drogas.

A própria experiência de intoxicação constitui uma forma de anular a marcha do tempo linear que, estranho ao
toxicômano, caminha inexoravelmente para a morte. Tem a função de colorir seu imaginário, como em um
devaneio, protegendo-o da mediocridade do insuportável cotidiano. Tem ainda como função o restabelecimento de
uma unidade que, embora alucinada, encontra na concretude do prazer da droga a possibilidade de existência como
indivíduo. Talvez a questão mais veemente que o toxicômano nos coloque, e que o diferencia do doente mental, seja
que o prazer que a droga propicia se encontra no campo do real e não do imaginário. E o mais problemático disto é
que a realidade deste prazer pode ser comprovada por qualquer pessoa que se disponha a experimentar os efeitos
de uma droga. Além disso, estes efeitos podem ser correlacionados com estados altamente diferenciados de
consciência buscados através dos tempos em tantas religiões.

O uso indevido de drogas constitui, sem dúvida alguma, um fenômeno complexo. A toxicomania não pode ser
simplesmente reduzida a seus componentes biológicos. Da mesma forma, nem toda dependência biológica se
associa a uma conduta toxicomaníaca. Isto é evidenciável na prática clínica em situações, onde podemos encontrar
uma dependência biológica grave de um fármaco sem nenhum indício de comportamento toxicomaníaco associado
(um exemplo clássico seriam as síndromes de abstinência de opiáceos observadas em politraumatizados onde se
utilizou um narcótico como analgésico).

O fenômeno toxicomaníaco se constitui a partir de três elementos: a droga, o indivíduo e o contexto sociocultural
onde se realiza este encontro entre indivíduo e droga.

A psiquiatria contemporânea vem se utilizando de um modelo científico positivista das ciências exatas, que
freqüentemente incorre em redutivismos atualmente inaceitáveis. Se, por um lado, devemos grande parte do
inquestionável desenvolvimento científico deste século a este tipo de método científico, por outro lado, o campo das
farmacodependências demonstra de modo veemente quão limitado é este referencial. Comparativamente, diria que
o engano é da mesma ordem que o de um pesquisador que para estudar estrelas distantes elegesse como seu
instrumento de trabalho um microscópio. Igualmente, devemos estar atentos para os riscos da biologização
excessiva do fenômeno farmacodependência. Indubitavelmente, as recentes descobertas neurofisiológicas e
neurofarmacológicas trouxeram contribuições inestimáveis à compreensão do funcionamento do cérebro.
Entretanto, não podem contribuir, tanto quanto acreditam, para uma melhor compreensão do imaginário do
dependente de drogas. Nenhum conhecimento neurológico poderá jamais compreender certa ordem de fenômenos,
tais como: a qualidade de uma produção artística; a profundidade de uma experiência mística; ou, a vivência de um
toxicômano.

Os toxicômanos ocupam uma posição marginal com relação ao contexto social. A própria conduta toxicomaníaca
questiona de forma contundente a organização de nossa estrutura social. Entre os seus múltiplos significados, o ato
de drogar-se possui um sentido de denúncia dos aspectos hipócritas, patológicos e patogênicos, medíocres e
estagnantes de nossa sociedade, que comprometem a individualidade do ser humano, à semelhança do que ocorre
no processo toxicomaníaco. Neste sentido, a conduta toxicomaníaca pode se tornar uma caricatura do que o
drogado vê a seu redor, na família e na sociedade. Além disso, são indivíduos que estabelecem relações peculiares
com a sexualidade e com a morte, o que os torna ainda mais incômodos e provocativos.

A transgressão, a desproporcionalidade e a indiferenciação sexual (ambivalência andrógina) autorizam o toxicômano


a experienciar toda uma diversidade de vivências no campo da sexualidade, onde quase tudo vai ser permitido. A
sociedade predominantemente patriarcal e, por isso, rigidamente estruturada, prefere nomear esta conduta sexual
de perversa, o que sem dúvida é muito mais cômodo do que captar possíveis significados mais profundos das
mesmas. A identidade fragilizada do toxicômano, através da experiência drogaditiva, é mascarada por uma
auto-imagem heróica e onipotente, quase divina, que, entre outras coisas, vai transformar substancialmente a sua
relação com a morte.
Psicanálise

Na obra de Freud não existe um estudo inteiramente dedicado à toxicomania. Esta lacuna em sua obra é um fato
verdadeiramente paradoxal, dada a importância que a droga e a toxicomania tiveram na sua vida pessoal e no
desenvolvimento da psicanálise4. Em seu trabalho com a cocaína, Freud foi, pela primeira vez em sua vida, alguém
que traçava um caminho independente. As pesquisas que havia realizado no Instituto de Fisiologia, assim como, seus
trabalhos em neurologia clínica eram essencialmente conservadores. Os objetivos, conceitos e métodos se
enquadravam dentro do que havia aprendido com seus mestres.

Os estudos que realizou sobre a cocaína foram feitos sem o apoio de ninguém e podem ser considerados como seu
primeiro movimento para obtenção de uma independência intelectual completa.

Embora a cocaína já houvesse sido isolada por Albert Niemann em 1860, era ainda, pouco conhecida quando Freud
entrou em contato com ela.

Os cientistas da época, que tinham algum conhecimento sobre a cocaína de um modo geral, consideravam-na um
produto inútil e perigoso.

Um artigo publicado pelo médico militar Theodoro Aschenbrandt em 1883, sobre os efeitos fisiológicos da cocaína
nos soldados, estimula Freud a estudar os efeitos da cocaína em si mesmo e em outras pessoas. Em 30 de abril de
1884, Freud escreve:

“Durante uma ligeira depressão produzida pela fadiga, ingeri pela primeira vez 0,05 gramas de cloreto de
cocaína em uma solução aquosa a 1%. Após alguns minutos, senti repentinamente sensações de alegria e
tranqüilidade...”5

Durante os próximos meses, Freud experimenta a cocaína dezenas de vezes, mostrando-se cada vez mais
entusiasmado com seus efeitos. Em “Uber Coca” ele diz que ao usá-la sempre sentiu:

“... a mesma alegria e euforia duradouras que não se diferenciam em absoluto da alegria e euforia normais...
Percebe-se um aumento do autocontrole e adquire-se maior vitalidade e capacidade de trabalho... Em
outras palavras: a pessoa sente-se simplesmente como quando está no seu estado normal; fica difícil
acreditar que se está sob os efeitos de uma droga...

É possível realizar qualquer tipo de trabalho mental ou físico, por mais intenso ou prolongado que seja, sem
sentir fadiga... Os efeitos da droga não produzem nenhuma ressaca desagradável como as que acompanham
a alegria obtida por meio de bebidas alcoólicas... E esta assombrosa droga não cria hábitos. Depois da
primeira vez que é usada, assim como depois do seu uso reiterado, não se sente nenhum desejo de
continuar a usá-la: na verdade se sente uma inexplicável aversão a ingeri-la”6.

Freud recomenda a droga a muitos amigos e colegas (inclusive à sua namorada Martha), sempre obtendo resultados
espetaculares. Parecia valer a pena saber tudo que possível a respeito da cocaína. Freud mergulha, então, em toda a
literatura existente na época sobre a cocaína e percebe que a grande maioria dos escritos é claramente favorável à
droga.

As investigações sobre a cocaína representaram para Freud uma grande esperança. Pela sua utilização clínica,
acreditava ter encontrado o caminho que o ajudaria na sua conflitiva vocação médica, a resolver sua precária
condição financeira e angariar prestígio no meio médico vienense.

Freud escreve para sua namorada a respeito de seus estudos sobre a cocaína:

4 WAKS, C. A clínica psicanalítica da toxicomania. Palestra proferida em 1989 no Instituto Metodista, São Paulo.
5 FREUD, S. “Uber Coca”, Neu durchgesehener und vermehrter Separat-Abdruck aus dem “Centralblatt für die Gesammte Therapie”. Moritz
Perles Verlag, Viena, 1885.
6 Idem, ibidem.
“Se tudo correr bem, espero escrever um artigo sobre a cocaína e espero que esta passe a ser mais utilizada
que a morfina. A cocaína faz nascer em mim outras esperanças e outros projetos. Eu uso regularmente
pequenas doses para combater a depressão e os problemas digestivos, com resultados favoráveis. Espero
suprimir os vômitos mais intensos, mesmo quando causados por uma doença muito grave; enfim, hoje pela
primeira vez me sinto médico, já que consegui ajudar um doente, e espero que daqui para frente possa
socorrer outros. Se tudo continuar assim, logo não teremos mais a preocupação com o nosso casamento e
nossa instalação em Viena”7.

Durante as leituras preparatórias para o artigo sobre a cocaína, Freud encontrou, no Detroit Medical Gazette, alguns
informes que tornaram a cocaína ainda mais interessante. Eram informes sobre o uso da cocaína no tratamento de
desintoxicação de morfinômanos. Isto era particularmente interessante para Freud, pois prometia ajuda para um
amigo cuja dependência da morfina fazia muito tempo o preocupava.

Este amigo, Ernest von Fleishl Marxow, era renomado fisiólogo, que havia contraído uma infecção no decorrer de
uma pesquisa em anatomia patológica. Foi salvo da morte pela amputação do polegar da mão direita, mas o tumor
que tinha se produzido no nervo continuava crescendo, e reiteradas intervenções cirúrgicas não puderam aliviar a
sua dor insuportável. Fleischl se viu obrigado a recorrer à morfina como medida extrema para atenuar sua dor. Mas,
no caso, a droga como meio de aliviar a dor acabou convertendo-se em um fim em si mesma, do qual não podia se
livrar. Fleishl tornou-se dependente de morfina.

Na primavera de 1884, Fleischl teve de passar pela primeira de uma série de tentativas de se desintoxicar da
morfina. É nesse momento que Freud recomenda a seu amigo submeter-se à experiência de desintoxicação com a
cocaína. O médico da família de Fleishl, Dr. Breuer, consente com a sugestão de Freud. Desta forma, Fleishl se
converte no primeiro toxicômano (morfinômano) no continente europeu a ser tratado com a cocaína, e por Sigmund
Freud!

O tratamento de Fleishl parecia ter sido um sucesso. Isto entusiasmou Freud a publicar em julho de 1884 seu
primeiro trabalho científico: “Uber Coca”. Esta monografia faz um relato histórico da planta da coca e da descoberta
da cocaína, apresenta os resultados de suas pesquisas e recomenda o uso da cocaína:

a) como estimulante nos estados neurastênicos;

b) para tratamento da indigestão;

c) para desintoxicar morfinômanos;

d) para tratar uma série de doenças como rinite e asma;

e) como afrodisíaco;

f) como anestésico local.

Vemos assim que o encontro de Freud com a cocaína é o encontro com sua vocação médica, com o desejo de curar a
si mesmo de depressão e de problemas psicossomáticos, e de curar outros, em particular seu amigo Fleishl.

Freud começa então a considerar o uso da cocaína na prática psiquiátrica em geral. De posse deste “medicamento”,
além de acreditar que pudesse curar morfinômanos, sentia-se também menos desamparado clinicamente perante a
demanda de alívio de seus pacientes. Faz, então, uma apresentação na Associação Psiquiátrica de Viena, na qual
recomenda o uso da cocaína no tratamento das “doenças consideradas como fraquezas e depressões do sistema
nervoso central sem lesões orgânicas”. Referia-se a casos de histeria, hipocondria e depressão.

As investigações de Freud sobre o uso de cocaína no campo psiquiátrico foram interrompidas pela sua saída do

7 Carta de Freud a Martha Bernays em 25 de maio de 1884.


Hospital Geral e sua viagem a Paris, onde iria estudar com Charcot o fenômeno da histeria.

Quando retornou da França em 1885, Freud encontrou-se com um elemento completamente imprevisto: a
dependência da cocaína. Fleishl, o primeiro morfinômano do continente europeu a ser “curado” pela cocaína, havia
se convertido no primeiro cocainômano europeu, ou, pelo menos, um dos primeiros.

Não demorou muito para que começassem a aparecer na literatura médica informes sobre psicoses tóxicas
provocadas pela cocaína. O renomado psiquiatra Erlenmeyer referiria, na época, à cocaína como o “terceiro flagelo
da humanidade depois do álcool e da morfina”.

Apenas três anos após ter experimentado a cocaína pela primeira vez, Freud se transformou no alvo de duras
críticas. Chegou a se considerar que Freud, de certa maneira, teria sido quem introduziu a cocaína na Europa. Ernst
Jones comenta a respeito no fim do seu capítulo sobre o episódio da cocaína na vida de Freud:

“Desta forma, o homem que tinha tentado ser útil à humanidade ou, em todo caso, adquirir fama curando
neurastenia, via-se, em vez disso, acusado de propagar o mal no universo... Ignora-se até que ponto este
episódio possa ter desacreditado Freud em Viena. O que se sabe é que, de fato, angariou-lhe graves críticas.
E o fato dele se converter, um pouco mais tarde, durante o transcurso desse mesmo ano, em um entusiasta
defensor de novas idéias de Charcot sobre a histeria e o hipnotismo não contribuiu para melhorar sua
reputação”8.

Em 1887, Freud escreve seu último artigo sobre a cocaína, intitulado “angústia e medo da cocaína”, no qual se
defende das críticas por ter recomendado a cocaína , argumentando que ele nunca tinha receitado a aplicação de
injeções subcutâneas, que teriam sido a origem da dependência de cocaína.

O relacionamento de Freud com a cocaína, ou seja, seu uso pessoal ou como elemento terapêutico, terminou onze
anos depois de tê-la experimentado pela primeira vez. O abandono de seu uso, em 1895, coincide com o fim de sua
auto-análise e o começo da história da psicanálise.

Waks aponta em interessante monografia sobre o tema (3) que o encontro de Freud com a cocaína desperta nele o
“desejo de curar” no qual “curar o outro” e “curar a si mesmo” aparecem como duas polaridades do mesmo desejo.
O primeiro “outro” desse desejo de curar freudiano é Fleishl, um toxicômano. Mas embora a toxicomania seja o
primeiro objeto do “desejo de curar” freudiano, esta constitui igualmente o seu primeiro limite e o seu primeiro
fracasso terapêutico. Indubitavelmente, para o descobrimento da psicanálise este foi o mais fértil dos fracassos. Nas
palavras de Didier Anzieu:

“É o símbolo antecipador do fracasso de todas as drogas e um sinal do longo, difícil e inevitável desvio que
Freud deverá fazer para ele mesmo e para sues doentes, através da decifração dos encadeamentos psíquicos
inconscientes. A hipnose e a sugestão, que são, como sabemos, as soluções às quais Freud recorre em 1885,
são uma etapa intermediária: modos de ação estritamente psicológicos que se limitam a suprimir os
sintomas. Este fantasma nunca abandonará completamente Freud; do que subsiste nele, estaremos
tentados a ver algo de irredutível para todo aquele que se dedique ao exercício da psicanálise”9.

O fracasso de Freud com a cocaína marca uma ruptura: o abandono de todo objeto substancial como suporte do
“desejo de curar” freudiano. A sua vocação médica passa a ser um desejo de curar sem medicamentos, que dá lugar
a uma solução até certo ponto criativa: o desejo de curar sem ser médico.

O fracasso de Freud com a cocaína pode estar eventualmente relacionado com a inexistência em sua obra de um
trabalho específico, que trate em profundidade o assunto das toxicomanias. Não obstante, podemos encontrar em
seus escritos referências e observações úteis, para compreender a problemática da toxicomania, a partir de um
ponto de vista psicanalítico.

8 JONES, E. Vida e obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1975.
9 ANZIEU, D. L’auto-analyse de Freud et la découverte de la psychoanalyse. P.U.F., Paris, 1975.
A primeira destas referências aparece em uma carta de 1897, escrita por Freud ao seu amigo Fliess, na qual a
dependência à morfina, ao álcool ou ao tabaco é considerada como um substituto da masturbação infantil, o que
para Freud era a primeira forma de adição.

No “Chiste e sua relação com o inconsciente” (1904), ele escreve:

“O bom humor que surge endogenamente ou provocado pelos tóxicos debilita as forças inibidoras, entre
elas a crítica, tornando assim acessíveis fontes de prazer sobre as quais atuava a repressão... Sob a influência
do álcool, o adulto se converte novamente em criança...”

Em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), Freud escreve que existem certas crianças nas quais:

“... a importância erógena da zona labial se encontra constitucionalmente reforçada. Se esta importância é
conservada, tais crianças chegam a ser, quando adultos, inclinados... a beber e fumar excessivamente...”

Em “Luto e melancolia” (1917), Freud postula que as intoxicações pertencem ao grupo dos estados mentais
maníacos pelo fato de elas produzirem estados eufóricos.

Dentro de uma perspectiva rigorosamente freudiana, a toxicomania deve ser interpretada em termos de uma
fixação oral e também relacionada com a psicopatologia da mania. A grande contribuição de Freud neste campo
relaciona-se não tanto com a toxicomania em si, mas com a dinâmica da oralidade, com respeito à qual salientou
aspectos fundamentais como a intolerância à espera na satisfação do desejo, a importância da fixação e da
regressão.

Depois de Freud, alguns psicanalistas refletiram mais profundamente sobre a psicodinâmica da toxicomania.

Entre aqueles que depois de Freud procuraram no referencial do desenvolvimento da libido uma fundamentação
para a teoria do papel desempenhado pela oralidade no processo da toxicomania destaca-se Karl Abraham. Em sua
obra A primeira fase prégenital da libido (1916), ele chama atenção para a importância da avidez oral nas
toxicomanias10.

O trabalho de Sandor Ferenczi, realizado entre 1911 e 1916, contribuiu ao estudo da psicopatologia da toxicomania
com a visão de que o uso da droga não é a causa do distúrbio psíquico, mas sua conseqüência. A toxicomania,
segundo ele, só pode ser tratada através da psicanálise que revela as causas da fuga pelas drogas, neutralizando-a11.
Tanto Ferenczi quanto Abraham acreditavam que a homossexualidade inconsciente é um dos problemas
fundamentais que permeiam a problemática da toxicomania.

Quem primeiro retomou a correlação das toxicomanias com os estados maníacodepressivos estabelecida por Freud
foi Pierre Clark, que estudou até 1919, a relação entre alcoolismo e depressão12. O conhecimento do vínculo entre
alcoolismo e os estados depressivos ampliou-se posteriormente com os estudos de Kielholz, que considerou a
toxicomania uma neurose narcísica relacionada à psicose maníaco-depressiva. Para este autor, a dissociação entre o
ideal do ego e o ego do toxicômano é tão profunda e intolerável que este necessita drogar-se para evitar uma
profunda melancolia13.

Em meados da década de 20, Rado iniciou suas pesquisas sobre toxicomania. Para ele, na base de toda toxicomania
há o que ele denominou “depressão tensa”, sendo a intolerância ao sofrimento uma das suas características14.

O gozo gerado pelas drogas neutralizaria esse sofrimento, produzindo euforia e estimulação, o que equivale a dizer
que o ego reencontra a satisfação narcísica perdida. Mas como se trata de um prazer transitório, a satisfação

10 ANZIEU, D. L’auto-analyse de Freud et la découverte de la psychoanalyse , P.U.F., Paris, 1975.


11 Idem, ibidem.
12 CLARK, L. PIERCE “A psychological study of some alcoholics”. Psychoanalysis Review, 6, Londres, 1919.
13 Idem, ibidem.
14 RADO, S. “The psychoanalysis of pharmacothymia”. In: Psychoanal. Quart., 2, Londres, 1933.
narcísica obtida acaba sendo igualmente passageira. E, assim, mais uma vez sobrevêm a depressão e a necessidade
de se libertar dela. O ego ingressa em um circuito de relação consigo mesmo, que se caracteriza por encontros em
círculo vicioso. A ingestão da droga produz um alto nível de auto-estima, mas como esta não se baseia na conquista
real e sim imaginária de si próprio, passando o efeito tóxico, a depressão que se segue acarreta conseqüências cada
vez mais devastadoras para o ego.

Simmel, que desenvolveu as suas teorias entre 1928 e 1949, afirma que o toxicômano é basicamente um
melancólico:

“ A vítima da toxicomania é um melancólico que embriaga seu superego controlador com veneno...”15

Neutralizado o superego, o ego reencontra a auto-estima perdida e acaba organizando a sua atividade consciente,
obedecendo quase que exclusivamente ao princípio do prazer infantil. Segundo Simmel, embora a toxicomania se
manifeste inicialmente como uma psiconeurose sob o mecanismo neurótico-obsessivo, com a experiência da
intoxicação ela se transforma numa neurose narcísica do tipo maníaco-depressivo16.

Uma das contribuições mais importantes neste campo de pesquisa psicopatológica é o trabalho, da década de 60, do
psicanalista kleiniano Herbert Rosenfeld. Como a maioria dos outros autores anteriormente mencionados, Rosenfeld
também vincula a far macodependência à perturbação maníacodepressiva, considerando, entretanto, que não é
idêntica a ela, na medida em que a fraqueza egóica seria maior no toxicômano do que nos maníaco-depressivos
propriamente ditos17.

Rosenfeld acredita que o toxicômano tenta fugir dos estados depressivos que o ameaçam por sentir-se incapaz de
suportar seu peso. Nesta fuga, apela para mecanismos maníacos, mas, dada sua extrema fragilidade egóica,
necessita da droga para colocá-los em ação. Sob o predomínio dos mecanismos maníacos, as frustrações e as
ansiedades, especialmente as persecutórias, são negadas.

Desta maneira, a droga simboliza o objeto ideal que pode ser incorporado concretamente e cujo efeito
farmacotóxico é utilizado como reforço da onipotência dos mecanismos de negação e divisão. Nos estados maníacos
o efeito da droga é aproveitado como recurso físico, da mesma maneira que a criança chupa o dedo como o
substituto que lhe permite alucinar o “seio ideal”.

Para Rosenfeld, o fenômeno da toxicomania não se deve apenas à regressão oral do toxicômano, mas também a
uma excessiva divisão do seu ego e seus objetos internos, a qual produziria uma extrema fragilidade egóica. Segundo
ele, o toxicômano estaria fixado na posição esquizoparanóide, embora tenha atingido parcialmente a posição
depressiva , na qual dificilmente poderia tolerar o seu ingresso total. Com a droga, justamente, o que ele tenta é
evitar cair na posição depressiva porque representa a incorporação dos seus aspectos dissociados. A possibilidade
desta incorporação implicará para o toxicômano a desintegração total de seu ego, isto é, a psicose. Para Rosenfeld, o
toxicômano encontra na droga um caminho quimicamente efetivo para superar sua fragilidade egóica e, assim,
supostamente, evitar sua desintegração psicótica.

A toxicomania poderia também ser entendida como sendo um fenômeno perverso18. Para entender a psicodinâmica
deste enfoque devemos considerar o toxicômano como um indivíduo fixado não mais na fase oral, mas na fase fálica
do desenvolvimento libidinal. A fixação nesta fase é caracterizada pela necessidade de negar a angústia de castração.
A toxicomania, neste caso, teria como função negar esta angústia, criando a sensação da impossibilidade da falta, ou
seja, completude garantida. A droga como fetiche representaria o falo.

Segundo Claude Olievenstein, a complexidade da toxicomania não é redutível nem à neurose-obsessiva, nem à
psicose maníaco-depressiva, nem à perversão. O fenômeno se caracterizaria por um conjunto dinâmico de

15 SIMMEL, E. “Psychoanalytic treatment in a sanatorium”. In Int. Jounal of Psychoanalysis nº 10, Londres, 1928.
16 SIMMEL, E. “Alcoholism and addiction”. In: Yearbook of Psychoanalysis. Vol. 5. University Press, Nova York, 1949.
17 ROSENFELD, H.A. Psychotic states – A psychoanalytical approach. Hogarth Press, Londres, 1965.
18 ROSENFELD, H.A. Psychotic states – a psychoanalytical approach. Hogarth Press, Londres, 1965.
elementos em que a fragilidade egóica desempenha um papel fundamental. Para entender a fragilidade egóica do
toxicômano, Olievenstein faz uso da metáfora do “Estágio do Espelho” que, segundo a concepção lacaniana, é um
momento imprescindível na formação da identidade do ser humano. Resumidamente, segundo Lacan, em um certo
momento do desenvolvimento, a criança se descobre como sendo um outro em um espelho real ou simbólico, o que
lhe permite romper a existência fusional que até então levava com sua mãe. No fututo toxicômano, ocorreria algo
intermediário entre um estágio do espelho bem-sucedido (normalidade) e um estágio do estágio do espelho
impossível (psicose). É o que Olievenstein chama de “Estágio do Espelho Partido”, assim descrito:

“... Nessa passagem, em que se deve constituir um ego diferente do ego em fusão com a mãe, tudo se passa
como se existisse simultaneamente esse cara a cara com o espelho, essa descoberta de si e da imagem de si.
Só que neste preciso instante o espelho se parte, refletindo ao mesmo tempo uma imagem, porém uma
imagem fragmentada, e uma incompletude representada pelas fendas deixadas pela ausência de pedaços do
espelho”19.

Metaforicamente, a droga na veia representa uma espécie de cimento que completa as fendas do espelho partido e
refaz essa efêmera imagem de um ego ainda não fragmentado20.

Parafraseando Cecília Meirelles, uma paciente dependente de cocaína explicitou-me sua problemática de identidade
já na forma de exprimir sua queixa: “Não sei em que espelho deixei refletida minha face...”.

Na história de um dependente de drogas não há nada de específico. Como já mencionamos anteriormente, a grande
maioria dos usuários de drogas não foram, não são, nem jamais serão farmacodependentes. Entretanto, alguns
indivíduos se tornam toxicômanos. O que os diferencia dos demais? Os terapeutas destituídos de idéias
preconcebidas podem constatar que o dependente tende sempre, de alguma forma, a ser parecido com algo já
anteriormente visto: um pouco de “psicótico”; um pouco de “maníaco-depressivo”; um pouco de “perverso”; um
pouco de “homossexual” etc. Alguns terapeutas, em particular psiquiatras, “tratam” este algo que lhes é familiar,
negligenciando os elementos essenciais: um indivíduo com sua construção peculiar de personalidade; o caráter
específico de uma droga capaz de proporcionar prazer; o encontro do corpo, do psiquismo e da droga, que acarreta
uma modificação única, impossível de ser reduzida a fenômenos outros, ocorrendo de maneira indissolúvel no corpo
e no espírito, gerando a instantaneidade de uma unidade até então ausente21. A noção de instantaneidade no
processo toxicomaníaco através de um modelo mais próximo da teoria da relatividade do que da física newtoniana
questiona os modelos estruturais de organização da personalidade, bem como a gênese linear-causal dos
fenômenos psíquicos. Dentro de uma perspectiva lacaniana da formação da identidade, a ruptura da fusão entre a
criança e sua mãe correlaciona-se com a possibilidade de a criança se descobrir como “outro” em um espelho real ou
simbólico. Esta metáfora do estágio do espelho encerra a idéia de instantaneidade da descoberta da própria
imagem. Nossa concepção linear do desenvolvimento ontogênico e filogênico do homem nos dificulta a aceitação
desta ordem de fenômenos.

19 OLIEVENSTEIN, C. La vie du toxicomane. Presse Universitaire de France, Paris, 1983.


20 OLIEVENSTEIN, C. La clinique du toxicomane. Éditions Universitaires, Bagedis, 1987.
21 OLIEVENSTEIN, C. La destin du toxicomane, Fayard, Paris, 1983.
Da Psicanálise à Psicologia Analítica

Segundo a abordagem psicanalítica kleiniana, a possibilidade de uma relação favorável entre a realidade exterior em
um indivíduo normal começa nos estágios precoces, a partir da eclosão das pulsões sádicas: as figuras parentais
constituem os objetos aos quais se dirigem as pulsões sádicas do bebê. Este sadismo vai desencadear níveis
progressivamente mais elevados de ansiedade, a qual, por sua vez, acarretará o aparecimento de defesas do ego
extremamente arcaicas: a expulsão ou ejeção (do sadismo) e a destruição (do objeto atacado, aqui vivido como
destruidor). Essas primeiras defesas do ego confirmam a origem dos mecanismos de identificação – introjeção e
projeção, fora e dentro, realidade interna e realidade externa. Assim, por meio destes mecanismos de identificação,
a angústia vai se tornar o precursor da capacidade de simbolização e de toda sublimação posterior.

No dinamismo psicológico de alguns toxicômanos apareceria, de forma caleidoscópica, toda uma gama de
elementos ligados à impossibilidade de realização do percurso que começa com o sadismo infantil e termina no
momento da adequação à realidade externa. No toxicômano encontrar-se-ia, simultânea ou alternadamente,
angústia de perseguição e sadismo (que poderia aparecer sob a forma de sua polaridade inversa, o masoquismo);
distúrbios de identidade e mecanismos psicóticos ligados à ausência de distinção entre mundo interno e realidade
externa...

Segundo Klein22 e Fordham23, no desenvolvimento normal, a fantasia teria como função a atualização de conteúdos
inconscientes que, pelo simbolização, tornariam possível uma progressiva estruturação do ego e,
conseqüentemente, uma maior adequação à realidade externa.

A partir do símbolo, o mundo externo e a realidade objetiva seriam colocados em conexão. Na dinâmica de diversos
dependentes de drogas, a fantasia seria vivida e procurada através da droga como uma realidade em si mesma,
como uma “alucinação do real”, devido à ausência da capacidade de simbolização. Tratar-se-iam de alucinações na
medida em que as imagens e representações psíquicas, na ausência de simbolização, seriam experienciadas como
exteriores ao eu, não podendo, portanto, serem abstraídas na forma de ideação. Dada sua dificuldade em elaborar o
simbólico, o dependente viveria em um mundo governado pelos princípios mágicos. Uma vez que para o referencial
arquetípico o mundo mágico é de forma similar extremamente simbólico, preferimos considerar o dependente como
alguém possuído e escravizado pelo símbolo e conseqüentemente paralisado para a elaboração simbólica 24. Nos
dependentes, a relação com a mãe evoca, freqüentemente, uma sensação de afastamento e de vazio. Simbiose e
ambivalência são também, com frequência observadas. A imagem materna é em geral carregada de conotação fálica
e agressiva. Observamos aqui o aspecto arcaico da mãe não-humanizado.

Os conteúdos relativos à imagem paterna são freqüentemente impactantes e paralisantes, carregados de


agressividade. Em grande parte dos casos, observamos não ter sido igualmente possível a humanização da imagem
masculina, pela ausência de contato com uma figura humana adequada. Para muitos dependentes, o distúrbio do
dinamismo patriarcal dificulta a organização egóica no nível do real, do imaginário e do simbólico. Este distúrbio se
manifesta na clínica pela transgressão, ausência de limites, desproporcionalidade25, rigidez e atuações (acting-aut).

E. e sua esposa eram dependentes de morfina. Descreviam, apesar do uso contínuo de uma droga injetável, uma
relação conjugal aparentemente estável. Entretanto, em um dado momento do processo psicoterápico, E. relata-me
a seguinte cena conjugal que se repetia algumas vezes: Encontrando-se absorvido pelo trabalho diante de um
computador, sua esposa se queixava de sua falta de atenção para com ela. E. simplesmente a ignorava e continuava
imerso em seu trabalho. Cansada de reivindicar sua atenção, ela pegava uma lâmina gilete e, diante dele, começava
a se cortar de forma sistemática e ritualizada. Perturbado, ele interrompia o que estava fazendo para contê-la,
necessitando até mesmo fazer uso de violência para tal. Sempre chorando e descontrolada, ela necessitava ser

22 KLEIN, M. Love, guilt and reparation. Londres, Virago, 1988.


23 FORDHAM, M. The self and autism. Heinemann Medical Books, Londres, 1969.
24 Cabe aqui ressaltar que quando utilizamos o conceito de símbolo estamos nos reportando ao referencial arquetípico e, conseqüentemente,
nos distanciando da concepção kleiniana.
25 Démésure dos autores franceses.
amarrada à cama para ser contida. Ele, então, a acariciava e em seguida tinham relações sexuais.

Quanto aos problemas ligados à noção de identidade, observamos que, em um nível mais superficial, de forma geral
não existe comprometimento evidente. Clinicamente, esta observação se correlaciona à habitual preservação de
recursos egóicos observada na maior parte dos dependentes, bem como ao fato de que só excepcionalmente
observamos neles fenômenos de despersonalização. Entretanto, se podemos falar em uma preservação dos níveis
mais superficiais da identidade, por outro lado observamos comprometimento importante em níveis mais
profundos. Alguns pacientes apresentam conteúdos narcísicos com elementos simbióticos, agressivos, melancólicos
e persecutórios.

Na produção dos dependentes observamos o aparecimento freqüente de personagens míticos e irreais, remetendo
a conteúdos arcaicos, primitivos e pouco diferenciados, ou seja, aparecendo sob aspecto arquetípico,
não-humanizado. Estas imagens, intensamente arquetípicas, de certa forma substituem imagos que deveriam ter
sido estruturadas em um nível maior de desenvolvimento egóico, e se tornam progressivamente alienantes por não
poderem ser elaboradas pela vivência adequada dos dinamismos arquetípicos. Esta impossibilidade tem correlato na
clínica, onde percebemos freqüentemente na história do dependente a existência de uma mãe simbiótica,
ambivalente, ao mesmo tempo superprotetora e abandonadora, assim como de um pai que abdica de seu papel,
configurando-se habitualmente como ausente ou impotente.

As experiências dos momentos de abstinência evocam por vezes sentimentos sugestivos de distúrbios na relação
primal, como profundo medo da solidão e uma crescente e avassaladora sensação de abandono. Em nível corporal,
diversos pacientes realizam verdadeiros rituais de escarificação, deixando marcas no próprio corpo, ou
compartilham sangue da mesma seringa, mesmo quando não há mais droga a ser injetada. Estas marcas assinaladas
na própria pele, assim como o sangue, constituem testemunhos de uma identidade corporal, simbolicamente
reassegurando e apaziguando dissociadamente o indivíduo do medo do não-ser, da ameaça da não-identidade, da
marginalização e da solidão absolutas. No relacionamento destes toxicômanos com suas mães, observamos
freqüentemente que estes tendem a mantê-las a distância, às vezes valendo-se mesmo de muita agressividade, pois
esta proximidade evocaria uma outra falta ainda mais arcaica. O distanciamento diminui a ameaça de dissolução no
inconsciente e permite, juntamente com a droga, a preservação de uma identidade, ainda que fragmentária.

M. era uma adolescente de 14 anos, dependente de codeína, que não fazia uso de drogas por via endovenosa.
Freqüentemente era invadida por uma sensação de medo devastador, acompanhada de depressão. Era acometida
de uma profunda vivência de solidão e abandono que a impulsionava a realizar um verdadeiro ritual no qual, com o
auxílio de uma seringa, retirava sangue de suas próprias pernas. Somente mediante a visualização do sangue saindo
de si mesma, ela podia se reassegurar, obtendo a confirmação de que tinha um corpo, apaziguando assim sua
angústia com relação à sua não-identidade.

Diversos trabalhos referentes à estrutura de personalidade dos dependentes26 evidenciam que os toxicômanos não
podem ser considerados como pertinentes nem a um modelo estrutural neurótico, nem a um modelo estrutural
psicótico. Evidencia-se a existência de uma imaturidade afetiva e uma inconsistência estrutural. Como foi formulado
por Bergeret, trata-se de quadros de natureza depressiva onde a sintomatologia corresponde a um pedido de ajuda
dirigido a um objeto mágico exterior (a droga) que tem como função evitar a queda em um vazio insuportável.

Podemos considerar que não existe uma especificidade estrutural do dependente e que a dependência pode se
desenvolver a partir de qualquer estrutura psicológica estabelecida.

Em contrapartida, do ponto de vista dinâmico, independentemente de sua história pessoal infantil, observamos
freqüentemente a existência de uma precariedade na integração das imagens parentais que deveriam servir como
modelos identificatórios. As figuras parentais não são suficientemente representativas para desencadear um

26 BERGERET, J. “Introduction à une étude sur la personnalité du toxicomane”. Bulletin Société Française du Rorshach, 32: 9-16,
Paris, outubro, 1981.
trabalho de representação interior.

Surgem assim imagens que, não tendo sido humanizadas, permanecem arquetípicas, divinizadas e onipotentes.
Poderíamos dizer que, em alguns toxicômanos, a mitologia substitui a realidade, ficando o indivíduo à mercê do
inconsciente coletivo. Não se trata, na maior parte dos casos, de indivíduos com uma capacidade imaginativa
extremamente fecunda, porém mais propriamente observamos a existência de um imaginário que toma o lugar da
realidade e é vivenciado pelo indivíduo como tal.

Não existem limites bem delineados entre sujeito e objeto, as polaridades se confundem: sadismo e masoquismo
são vivenciados conjuntamente; amor e ódio se fundem; a constatação da vida só pode se dar, por comparação, por
meio da relação com a própria morte.

Este processo vai ser agravado pelo toxicômano no seu dia a dia, na medida em que ele repudiar, rejeitar e
desprezar a dimensão social normal e criativa onde poderia se dar esta estruturação dos dinamismos parentais por
meio dos vínculos propiciados pela participação emocional. O isolamento em um grupo marginal propicia a vivência
do imaginário. Como na clausura das carmelitas, distante do mundo, ele se aproxima dos arquétipos. Com a
diferença que o seu mosteiro é povoado de marginalizados. Assim, seu afastamento da adaptação social criativa gera
graus progressivamente maiores de marginalização, solidão e impotência que, finalmente, desemboca em uma
vivência de fracasso existencial enlouquecedor.

Olievenstein27 descreve nos toxicômanos a impossibilidade de elaboração de uma lei patriarcal no nível do real, do
imaginário e do simbólico. Acrescentaríamos que a mesma impossibilidade pode ser freqüentemente observada no
nível da elaboração de uma lei matriarcal28. As figuras humanas objetivas e reais não existem como elemento
relacional. O dependente estabelece uma relação com a ausência, com a falta. Substitutivamente, seu mundo
interno apresenta-lhe figuras míticas e fantásticas, impossíveis no campo do real. Defesas extremamente arcaicas
são empregadas nesta luta contra o nãoser, contra a não-identidade. Kleinianamente falando, poderíamos dizer que
este seria o domínio de um superego sádico, tirânico e cruel.

Este mundo onde se encontra o toxicômano configura-se tão arcaico e primitivo, que o arremessa continuamente
em uma vivência de angústia devastadora, assinalando a ameaça constante de dissolução. A droga surge então como
alternativa para apaziguar esta turbulência interna, protegendo o ego da inundação pelo seu mundo interno
povoado destes personagens aterrorizantes.A ausência de uma lei, patriarcal ou matriarcal, torna este ego
fragilizado e suscetível à inundação arquetípica.

A. veio procurar ajuda em um momento existencial particularmente difícil: fazia uso diário de cocaína injetável,
estava grávida e acabava de saber que havia se contaminado pelo vírus da AIDS, seu marido fora assassinado alguns
meses antes e, ainda, via-se obrigada a conviver com o irmão perverso que sistematicamente a abordava
sexualmente.

Em um primeiro momento, pareciam surpreendentes a força desta mulher diante de situações tão desfavoráveis
bem como a preservação egóica demonstrada diante de tanta adversidade. Posteriormente, entretanto, ficou
evidente que a gravidade de sua situação psicológica só poderia ser atenuada através da experiência de tais
situações-limite.

A dependência, única lei possível para o toxicômano, configura-se como um fenômeno psíquico ativo. A
dependência é, portanto, impulsivamente instaurada, passando a constituir sua única possibilidade de
funcionamento mental. Diante da falta de limites, da desorganização e do caos onde vive o toxicômano, a
dependência torna-se sua única referência estável e perene, da qual não pode prescindir. A droga constitui para o
toxicômano seu meio de existir. Enfim, a sua única possibilidade de ser.

27 OLIEVENSTEIN, C. La clinique du toxicomane. Éditions Universitaires, Bagedis, 1987.


28 XAVIER DA SILVEIRA, D.; YÁZIGI, L.; PESSOA, M. E. “L’impossibilité d’être... Étude realisée chez dês toxicomanes”. In: Psychologie
et pychologues, n. 101/102, Paris, 1991
Dentro de uma Perspectiva Simbólica29

O símbolo é a unidade básica fundamental do psicológico, sendo sua origem e função coordenadas pelos arquétipos.
O símbolo compreende consciente e inconsciente. Diz respeito ao inconsciente na medida em que constela uma
realidade arquetípica dele advinda. Refere-se à consciência na medida em que esta participa de sua elaboração e é
modificada neste processo. Tendo como base o funcionamento psicológico normal, sua função primeira seria a
própria estruturação da consciência, ou, dito de outra forma, a estruturação egóica e desenvolvimento da
personalidade no sentido do processo de individuação.

No desenvolvimento da personalidade, observa-se o surgimento de distintos padrões arquetípicos estruturando


diferentes padrões dinâmicos de consciência30. Temos inicialmente os dinamismos matriarcal e patriarcal, que se
relacionam mais diretamente com a estruturação egóica, e os dinamismos de alteridade e de totalidade, que
correspondem mais especificamente ao processo de individuação descrito por Jung na segunda fase da vida.

O dinamismo matriarcal é regido pelo Arquétipo da GrandeMãe, que se exerce através do desempenho de uma
atitude de carinho, cuidado e proteção. Tem no campo corporal a sua via preferencial de expressão, orientando-se
pelo desejo e pela fertilidade. Sensualidade, prazer e criatividade impregnam o dinamismo matriarcal, visando
basicamente a preservação e a sobrevivência. O dinamismo patriarcal é regido pelo Arquétipo do pai, tendo como
atributos básicos a organização e a orientação. Volta-se para o estabelecimento de regras, normas e leis no seu
sentido abstrato. Orienta-se pelo princípio da causalidade, discrimina as polaridades privilegiando sempre um dos
pólos de opostos (bem/mal, certo/errado etc.). Relaciona-se nitidamente a um processo adaptativo de
sociabilização.

Todo arquétipo compreende uma estrutura bipolar, estando seus pólos em permanente relação dialética. A vivência
arquetípica pressupõe o encontro com as duas polaridades do arquétipo em questão.

No ciclo matriarcal, a mulher vivencia o arquétipo da GrandeMãe na sua polaridade mãe-boa cuidando de seu filho.
Se numa etapa posterior a criança não vivenciar o pólo rejeitador do mesmo arquétipo, terá seu desenvolvimento
prejudicado. Aquela mesma atitude de mãe amorosa que em um primeiro momento propicia o desenvolvimento,
pode, em outro momento, significar castração e mutilação. Uma situação em que as duas polaridades do arquétipo
materno são exercidas destrutivamente poderia ser exemplificada por aquela em que os pais se comportam de
forma rejeitadora na infância e, na adolescência, adotam atitudes de superproteção, freqüentemente movidos por
culpa. Assim, as polaridades de um arquétipo são estruturantes e desestruturantes não em si mesmas, mas na
dependência do contexto em que emergem.

Se as polaridades não puderem ser vivenciadas de forma estruturante, o indivíduo tenderá a ficar preso a este
padrão arquetípico, não conseguindo estruturar outros níveis de consciência.

A aquisição de grandes modificações no padrão de consciência se faz mediante a ativação do arquétipo do herói.
Trata-se de momentos existenciais extremamente complexos, quando um estado de consciência está sendo deixado
para trás e outro ainda não foi estabelecido.

Durante essa fase de transição o ego geralmente se indiscrimina e se aproxima do arquétipo central (self) em um
mecanismo de centroversão. A consciência torna-se fluida e rarefeita nessa sua proximidade com no / arquetípicos
ainda não diferenciados. O processo natural de transição entre dois estados arquetípicos de estruturação de
consciência pode ser permeado de vivências de depressão e morte. É importantíssimo que nesse momento de
centroversão o ego não se oponha ao processo de transformação, que, se de um lado implica até mesmo uma

29 XAVIER DA SILVEIRA, D. “Farmacodependências: uma perspectiva simbólica”. In: Junguiana X, Revista da Sociedade Brasileira de
Psicologia Analítica, São Paulo, 1992.
30 BYINGTON, C.“O desenvolvimento simbólico da personalidade”. In: Junguiana I, Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia
Analítica, Ed. Vozes, São Paulo, 1983.
vivência de morte, por outro possibilita sua emergência em outro nível arquetípico31.

Tanto no dinamismo matriarcal quanto no patriarcal, o Ego pode operar ativa ou passivamente no que se refere à
relação eu-outro. Enquanto em um primeiro momento sofremos passivamente a experiência de sermos cuidados,
protegidos e orientados, em um segundo momento desempenhamos ativamente o papel de cuidar, proteger e
orientar. São os mesmos arquétipos materno e paterno se fazendo exercer e estruturando a consciência matriarcal e
patriarcal nas suas polaridades passiva e ativa.

É importante assinalar que o dinamismo matriarcal não termina com a implantação de um padrão patriarcal, mas
persiste durante toda a vida, fazendo-se exercer mais ou menos intensamente segundo as situações existenciais
envolvidas. O próprio desempenho ativo de uma configuração arquetípica está a serviço da estruturação de um
padrão de consciência. Assim, a mãe que cuida está simultaneamente propiciando a estruturação egóica do filho e
de si mesma dentro do dinamismo matriarcal. Seja na polaridade passiva, seja na ativa, é o mesmo arquétipo da
Grande-Mãe que está se fazendo exercer e, por meio deste, continua estruturando a consciência matriarcal.

Na clínica podemos observar distúrbios de um dinamismo através do aparecimento da patologia em apenas uma de
suas polaridades. Exemplificando, entre as patologias do ciclo gravídico-puerperal podemos identificar situações em
que eclode uma dinâmica patológica no momento existencial em que uma mulher é requisitada a desempenhar
ativamente o dinamismo do arquétipo materno, sem que necessariamente tenha se manifestado uma patologia na
sua infância quando o mesmo arquétipo foi vivenciado passivamente. Ainda neste exemplo, a emergência de
patologia denota tão-somente a falta de recursos estruturais dessa mulher para lidar com o material mobilizado na
vivência de maternidade. O surgimento de uma dinâmica patológica, em alguns destes casos, pode vir a ser o
elemento estruturante para a resolução de uma problemática do dinamismo em questão. A dificuldade em lidar com
a posição ativa no dinamismo matriarcal patológico poderá ser elaborada aqui por meio de uma crise psicótica. Não
pretendemos aqui examinar em profundidade tais questões, mas apenas chamar a atenção para a importância das
polaridades ativa e passiva da relação eu-outro dentro de um dinamismo arquétipico.

Os dinamismos arquetípicos matriarcal e patriarcal, quando relacionados mais diretamente à estruturação egóica na
sua polaridade passiva, correspondem aproximadamente ao desenvolvimento até a fase edípica da Psicologia
Freudiana.

Destacamos ainda que a instauração dos dinamismos arquetípicos, sobretudo os dinamismos patriarcal e matriarcal,
sucede-se temporalmente. Entretanto, é importante notar que, uma vez constelados, todos os dinamismos
desempenham complementarmente a função de estruturação da personalidade por toda a vida32.

A adolescência constitui um momento existencial particularmente delicado em qualquer cultura, pois constela o
dinamismo de alteridade que se contrapõe aos dinamismos parentais. Nessa fase o ser humano é requisitado a
transformar-se. Independentemente do que se tenha vivenciado e estruturado até então, ele é chamado para o
mundo adulto através do biológico, do psicológico e do social.

No nível biológico, devido à maturação gonadal, ocorrem transformações corporais intensas, exigindo todo um
re-equacionamento da questão da identidade primária. Em nível social, são solicitados atitudes e comportamentos
adaptativos que nunca fizeram parte do seu repertório enquanto sercriança.

No nível psicológico, indissociável dos outros dois níveis, constela-se o arquétipo do herói tendo como tarefa
precípua a estruturação da consciência de alteridade, indispensável ao desenvolvimento da personalidade.

Na dimensão sociofamiliar, a libido, até então predominantemente endogâmica, vai ser progressivamente deslocada
exogamicamente. As relações interpessoais, que possuíam um caráter muito mais identificatório, passam a ter uma

31 BYINGTON, C. “Aspectos arquetípicos do suicídio”. In: Boletim de psiquiatria, São Paulo, XII, 1979.
32 BYINGTON, C. “O desenvolvimento simbólico da personalidade”. In: Junguiana I, Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia
Analítica, Vozes, São Paulo, 1983.
conotação de inter-relacionamentos propriamente, a partir da ampliação da dimensão social.

Se na infância a polaridade passiva dos dois dinamismos arquetípicos parentais foi vivenciada quase que
exclusivamente, na adolescência o exercício da polaridade ativa destes dinamismos passa a ser progressivamente
mais solicitado. O adolescente precisa aprender a deixar sua identidade infantil morrer para poder assumir uma
outra identidade da qual pouco conhece. Tudo isso torna esse momento particularmente difícil para o ser humano. À
exigência de eternidade que acompanha a tarefa heróica do adolescente contrapõe-se o princípio tanático. Os
fracassos e frustrações desse período são essenciais para propiciar o amadurecimento estruturante. Entretanto, a
angústia de morte inerente às múltiplas perdas vivenciadas pode levar o indivíduo à procura de algo que o proteja
de todo esse sofrimento. Este algo pode ser a droga, embora essa proteção possa significar a própria morte.

A polaridade onipotência-impotência desempenha papel fundamental na estruturação da identidade adulta. A


onipotência do adolescente o impulsiona no sentido da ampliação de sua visão de mundo, permitindo que, pela
fantasia, possa experienciar diversos papéis que vão ser utilizados como esboços de sua identidade futura. O pólo
impotência vai, em contrapartida, possibilitar que o adolescente selecione dentre esses esboços aqueles que
efetivamente funcionem. A vivência destes papéis na fantasia e o subseqüente confronto com a realidade
constituem a maneira habitual e criativa de fundar os pilares daquela que vai ser a sua identidade adulta, sem
traição do processo de desenvolvimento arquetípico.

A transgressão é outro símbolo importante desse período. No sentido de transgressão da lei patriarcal, vai
possibilitar o deslocamento da libido da endogamia para a exogamia. Nota-se aqui a presença do dinamismo de
alteridade (alter, outro), quando o abrir-se para o outro, para o alternativo, implica necessariamente tensão e
confronto com os dinamismos parentais. A transgressão do código de leis válidas para o núcleo familiar de origem
(microssocial) permite a abertura para outro código de maior amplitude (macrossocial).

Dessa forma, a transgressão a um só tempo protege o adolescente do incesto (regressão) e o impulsiona para a
aquisição de uma outra identidade que não a mera repetição do modelo familiar de origem. A identidade adulta
formada à semelhança das figuras parentais, ainda que matriarcal e patriarcalmente estruturada, compromete o
direcionamento exogâmico da libido, permanecendo, portanto, incestuosamente aprisionada na triangulação
edípica. Esta é uma questão que se relaciona ao dinamismo de alteridade, muito embora o adolescente continue o
processo de estruturação dos dinamismos parentais.

O perigo de uma interpretação redutivista da transgressão da adolescência é a sua repressão, o que remeteria o
indivíduo a uma vivência incestuosa, impedindo seu processo evolutivo normal.

Viver as perdas e confrontar a impotência fazem parte dessa fase de transição. Se o ego se identificar com o
arquétipo do herói e atuar onipotentemente a transgressão, a evolução certamente poderá se dar no sentido da
patologia33. O uso abusivo de drogas que freqüentemente ocorre na adolescência normal, e que, mesmo com o seu
caráter de transgressão conserva um sentido estruturante para aquela personalidade, pode, por outro lado, servir
como mecanismo de negação do sofrimento inerente à transformação.

Os toxicômanos se caracterizam por um padrão de uso de drogas em que o elemento dependência assume papel de
destaque na relação dual indivíduo-droga. Em última análise, o que distingue o toxicômano do usuário é o grau de
dependência ao produto. O toxicômano é um indivíduo que se vê diante de uma realidade objetiva e subjetiva
insuportável a qual não consegue modificar ou a ela adaptar-se. A conduta toxicomaníaca apresenta-se então como
alternativa para a situação: diante da impotência completa ante uma realidade insuportável, somente lhe resta
como recurso a modificação da percepção dessa realidade através da utilização da droga. A vida só se torna possível
com a droga. Nessa fase a droga cumpre o seu papel viabilizando a existência do toxicômano34.

33 BYINGTON, C. “Aspectos arquetípicos do suicídio”. In: Boletins de Psiquiatria, São Paulo, XII, 1979.
34 XAVIER DA SILVEIRA, D. “Aspectos psicodinâmicos no tratamento das toxicomanias”. In: Boletim de Psiquiatria, São Paulo,
XIX,1986.
Entretanto, com o decorrer do tempo, acirra-se a dependência, podendo aparecer os fenômenos de tolerância. A
droga deixa de ter a capacidade de desempenhar aquele mesmo papel. Exaure-se a sua catéxis simbólica. O
toxicômano encontra-se aqui em um momento de crise, quando percebe que continua não podendo viver sem a
droga e, paradoxalmente, não consegue mais viver com ela. É o aparecimento da crise toxicomaníaca, momento de
grande intensidade existencial em que aflora toda a dinâmica que não pôde ser vivenciada e que resultou no
estabelecimento defensivo daquela relação de dependência com o produto. Uma vez exaurida a vivência simbólica
do seu encontro com a droga, o toxicômano é remetido à sua problemática inicial, que eclode mais uma vez, agora
acrescida de um profundo sentimento de impotência advindo da constatação da falha do seu projeto toxicomaníaco
que até então dava sentido à sua vida. Para esse indivíduo, com uma identidade adulta pobremente estruturada, a
depressão desse momento costuma ser tão avassaladora que o potencial destrutivo da crise torna-se elevado.

O sentimento de perda e morte costumam ser vivenciado pelo toxicômano como aniquilação do seu próprio ser.
Nestes casos, a falência egóica poderá levar ao aparecimento de um quadro psicótico35.

O suicídio é outro risco constante na crise toxicomaníaca. Assume o significado de uma atuação defensiva contra o
ser psíquico. Arquetipicamente, diríamos que o ego atua destrutivamente, dominado por defesas depressivas, na
medida em que não pôde suportar a própria morte e subseqüente transformação. Torna-se, assim, onipotente ao
destruir o que não criou36.

Um dos componentes importantes no suicídio do toxicômano é o desprezo defensivo à vida e suas limitações, assim
como o desejo de perpetuação no tempo (eternidade) da sua ligação com o mundo feérico que descobriu e cultivou
na sua relação com a droga. Embora o dinamismo defensivo subjacente seja predominantemente depressivo, o
quadro psicopatológico pode se apresentar dominado igualmente pela defesa psicopática.

A possibilidade de evitar a sua atuação suicida depende fundamentalmente da capacidade do Self em humildemente
delegar ao arquétipo central a sua função criativa e admitir a possibilidade de sua própria morte (deixar-se morrer
para poder renascer).

Em contraposição à atuação suicida na crise toxicomaníaca, o significado do suicídio na vigência da intoxicação


assume sentido diverso: o corpo torna-se terreno de eleição onde vai se exercer a ambivalência pulsional do
toxicômano. O auto-erotismo e a autodestruição se indiferenciam, conferindo à conduta toxicomaníaca o caráter de
um jogo com a morte que pode constituir uma tentativa paradoxal de experimentar a vida37.

A problemática da maioria dos toxicômanos se refere em geral às fases mais precoces do desenvolvimento da
personalidade, e conseqüentemente vamos encontrar distúrbios sobretudo dos dinamismos matriarcal e patriarcal.
O fato de a adolescência constituir o momento de maior vulnerabilidade para o aparecimento de uma conduta
drogaditiva mostra o quanto o arquétipo da Alteridade, representado pelos arquétipos da Anima e do Animus são
também fundamentais na descoberta da droga. Geralmente são eles que, junto com o arquétipo do Herói,
impulsionam os jovens para o fascínio do êxtase propiciado pela droga38. Entretanto, em qualquer fase da vida e em
qualquer dinamismo arquetípico do desenvolvimento, podemos observar o aparecimento de uma conduta
toxicomaníaca. Como exemplo, podemos lembrar que uma manifestação depressiva em qualquer dinamismo
arquetípico pode desencadear uma atitude drogaditiva na medida em que esta vivência depressiva não puder ser
tolerada. Nesse sentido, discordamos da maioria dos autores, que tendem a considerar a depressão do toxicômano
como de caráter exclusivamente narcisista. Embora esta característica dinâmica possa ser a regra, encontramos na
clínica diversos casos representativos das exceções.

R. era uma artista renomada e reconhecida pela sua competência, sensibilidade e talento. Por volta dos trinta anos

35 ROUX, J.M.“Toxicomanies autres que l’alcoolisme”. In: Encyclopédie MédicoChirugicale. Paris, Editions Techniques, 1983.
36 BYINGTON, C. “Aspectos arquetípicos do suicídio”. In: Boletim de Psiquiatria, São Paulo, XII, 1979.
37 ROUX, J.M. “Toxicomanies autres que l’alcoolisme”. Encyclopédie MédicoChirurgicale. Paris, Edition Techniques, 1983.
38 BYINGTON, C.“Adolescência e interação do self individual, familiar, cultural e cósmico. Introdução à Psicologia simbólica da dinâmica
familiar”. In: Junguiana VI, Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, São Paulo, 1988.
de idade, vive uma paixão avassaladora com um homem público, desfazendo seu casamento e modificando
substancialmente seu modo de vida. Logo em seguida, descobre que seu novo marido estava envolvido em
atividades criminosas. Passa, então, a viver atormentada diante do dilema: fechar os olhos e tentar continuar
vivendo aquela grande paixão ou denunciá-lo às autoridades pelos crimes cometidos. Seus princípios éticos
forçaram-na à segunda escolha. Após a denúncia, ele foi preso e posteriormente condenado à prisão perpétua.
Embora tivesse permanecido fiel a seus princípios, ela nunca se perdoou pela traição a seu grande amor. Mobilizada
pela culpa, iniciou um processo progressivo de auto-destruição, tornando-se uma dependente de cocaína de
extrema gravidade.

Consideramos importante ainda ressaltar que, mesmo nas toxicomanias centradas nitidamente em uma
problemática matriarcal, é habitual encontrarmos distúrbios referentes ao dinamismo patriarcal seja pela frouxa
estruturação desse nível de consciência, seja pela formação de uma persona patriarcal defensivamente estruturada
e reativa, muitas vezes expressa como defesa psicopática.

S., advogado bem-sucedido, tornou-se dependente de anfetaminas. Apresentava a queixa de que só se sentia
sexualmente excitado diante de situações onde houvesse alguma referência a espancamento de crianças.
Freqüentava play-grounds procurando situações de agressão física a crianças para incrementar seu repertório que,
subseqüentemente, era utilizado em suas fantasias sexuais. Estabelecia relações complexas com seus familiares e
colegas de trabalho, permeadas de componentes sádicos. Em análise, o lento processo de elaboração das vivências
de espancamento de crianças conduziu à dissolução progressiva desta persona sádica defensiva rigidamente
estruturada, dando lugar ao aparecimento de vivências de abandono extremamente intensas e precoces.

A crise toxicomaníaca é o momento de eleição para a entrada do elemento terapêutico na relação dual
indivíduo-droga. Até a instalação da crise não existe praticamente nenhuma possibilidade de ser criado um espaço
terapêutico. O terapeuta não pode competir com a capacidade de sedução nem com o poder de propiciar
instantaneamente os níveis de prazer que caracterizam a experiência drogaditiva. Na crise toxicomaníaca, o produto
perde a propriedade de criar este paraíso artificial e o toxicômano vê-se obrigado a confrontar impotência,
desesperança, depressão, mergulhando em um profundo vazio existencial. Só aqui a entrada do terapeuta pode se
viabilizar efetivamente39.

Entretanto, o pedido de ajuda do toxicômano em crise nem sempre tem o sentido de verdadeira procura de uma
alternativa existencial à conduta drogaditiva. Muitas vezes denota tãosomente o desespero em tentar restabelecer
aquela relação dual idealizada mantida anteriormente com o produto. O pedido aqui seria feito no sentido da
restauração não da sua estrutura pessoal, mas do poder que a droga deixou de ter.

Psicodinamicamente, diríamos que este self está operando dissociada e defensivamente em relação ao processo de
individuação. A aliança terapêutica nesse momento não pode prescindir de um cuidado extremado. O terapeuta
deve, então, manter uma postura de relativo distanciamento, colocando-se em atitude de espera. Atento e
cuidadoso, receptivo, mas nunca fusional. A sedução nesse momento vai impedir o aprofundamento do toxicômano
na crise e conseqüentemente reforçar a atuação dissociada.

Clinicamente detecta-se o movimento defensivo já na forma como a queixa é explicitada: o relato do toxicômano
torna-se uma mera descrição estereotipada da crise cujo sofrimento não pode ser empatizado
contratransferencialmente40. O material onírico habitualmente confirma o mecanismo defensivo. Encontramos
freqüentemente uma persona fortemente estruturada, que é a “persona do toxicôcamo em sofrimento”, que tem
por finalidade evitar o confronto com o verdadeiro sofrimento. A atitude de espera do terapeuta visa à dissolução
desta persona, o que vai possibilitar ao toxicômano entrar em contato com suas feridas mais profundas. É de grande
importância para o trabalho psicoterápico ter-se em mente a dimensão da heróica batalha que o toxicômano deve

39 XAVIER DA SILVEIRA, D. “Aspectos psicodinâmicos no tratamento das toxicomanias”. In: Boletim de Psiquiatria. São Paulo, XIX,
1986.
40 Idem, Ibidem.
empreender para não sucumbir diante do sentimento de auto-aniquilamento, freqüentemente responsável por uma
resolução psicótica ou por uma atuação suicida onipotente41.

A riqueza existencial do momento de imersão na crise vai permitir a entrada do elemento terapêutico de forma
criativa. O terapeuta deve, primeiramente, tomar o lugar da própria droga e estabelecer com o toxicômano uma
relação verdadeiramente simbiótica, da mesma intensidade daquela anteriormente estabelecida com o produto. Na
simbiose, o terapeuta “empresta” seu ego ao paciente por meio de uma relação fusional. E, provendo o paciente
desse “gesso egóico”, vai poder trabalhar os elementos essenciais de sua personalidade. Surge, então, a
possibilidade de o toxicômano vivenciar criativamente a abstinência do produto. Na abstinência, a perda daquela
relação idealizada com a droga vai remetê-lo, por um lado, ao sentimento de perda primordial, responsável último
pelo estabelecimento da conduta toxicomaníaca42 e, por outro lado, à elaboração do valor do êxtase psíquico na
ausência do efeito químico da droga. Nessa fase, dada a fragilização do ego, tendem a surgir fantasias de onipotência
freqüentemente projetadas na figura do terapeuta.

Seria extremamente perigosa a aceitação pura e simples, por parte do terapeuta, das fantasias nele projetadas,
tendo em vista que este não vai poder evitar o sofrimento decorrente do contato do toxicômano com sua ferida
inicial. A mera aceitação dessas projeções vai impossibilitar a manutenção da relação fusional criativamente
estabelecida, além do que a ruptura dessa relação devolve o toxicômano à situação de profundo abandono,
intolerável nesse momento 43 . É preciso trabalhar estas projeções defensivas onipotentes no nível criativo,
mostrando-se ao paciente que suas projeções estão relacionadas aos estados grandiosos que ele próprio vivenciou.

Um recurso terapêutico coadjuvante de que se pode dispor nessa fase é o grupo terapêutico. Sentimos que, no
trabalho com toxicômanos, um grupo de indivíduos vivenciando conjuntamente a crise toxicomaníaca constitui um
recurso extremamente valioso para poder dar continência a situações de tão profunda dramaticidade. Se por um
lado é imprescindível o modelo identificatório que o terapeuta pode propiciar, por outro este mesmo modelo pode
intensificar o sentimento de insignificância e impotência do toxicômano em crise. Desta forma, o grupo funciona
como elemento de identificação alternativo, possibilitando compartilhar vivências de uma forma construtiva neste
momento em que o ego se encontra excessivamente fragilizado.

Diversos indivíduos podendo repartir um momento existencial comum podem servir de matriz de identidade
provisória até que as condições egóicas possibilitem o trabalho exclusivamente individual. O mesmo grupo de que o
indivíduo tinha necessidade como drogado conserva aqui sua razão de existir: a manutenção de uma identidade. A
diferença fundamental é que este grupo deixa de se reunir em função da droga (que cede aqui seu espaço para o
sentimento de perda) para se reunir em função de si mesmo.

Na relação fusional com o toxicômano, o terapeuta deve não apenas funcionar como suporte egóico, mas também
possibilitar a vivência da relação simbiótica primordial e a elaboração dos significados do êxtase vivenciado na sua
relação com a droga. Nessa vivência, o terapeuta vai freqüentemente ter de desempenhar as duas polaridades do
arquétipo materno e da alteridade. Caso isso não ocorra, o toxicômano vai apenas deslocar a sua dependência da
droga para o terapeuta. É o que se observa em diversas instituições para tratamento de farmacodependentes,
sobretudo nas de orientação religiosa, onde o nível de dependência está claramente expresso em um
comportamento de fanatismo e subserviência, com elevado grau de repressão e de idealização. Nesses casos a
farmacodependência não é tratada, apenas o sintoma é deslocado. O que caracteriza em última análise a
toxicomania é a dependência, e ela neste caso não é sequer tocada. Para tanto, deve o terapeuta ser
suficientemente sadio a fim de poder estabelecer uma relação dialética com o toxicômano, em vez de simplesmente
aceitar o papel de figura idealizada que lhe é conferido pelo próprio paciente e freqüentemente reforçado pela

41 XAVIER DA SILVEIRA, D. “Farmacodependências: uma perspectiva simbólica”. In: Junguiana X, Revista da Sociedade Brasileira de
Psicologia Analítica, São Paulo, 1992.
42 OLIEVENSTEIN, C. La clinique du toxicomane. Paris, Edition Universitaires, 1987.
43 GUÉGUAN, J. P. “La famille et le toxicomane. Approche clinique des réactions familiales au moment de la découverte de la toxicomanie”.
Tese de Doutorado em Medicina, Universidade René Descartes, Academia de Paris, 1986.
família e pela sociedade.

F., neurologista, depende de cannabis e álcool, vinha de uma família de intelectuais onde não havia praticamente
nenhum contato corporal entre as pessoas. Em um determinado momento da análise, F. passou a relatar a sensação
de que não conhecia o próprio corpo. Descrevia-se como sendo apenas cérebro e órgãos sexuais. O restante de seu
corpo era como que “anestesiado”. Neste momento, propus-lhe uma técnica de mobilização: ele e eu andávamos
pela sala em penumbra enquanto, a meu pedido, ele fazia livre associações sobre sua “ausência de cor po”.
Subitamente, segurei-o, estabelecendo um contato de cor po inteiro. Embora obviamente um pouco perplexo,
aceitou o meu abraço. Após alguns minutos em silêncio, pedi que falasse livremente sobre o que lhe viesse à cabeça.
Ainda abraçado a mim, começou a falar da minha presença, da minha proximidade, do meu cor po e da agradável
sensação de contigüidade. Começa, então, a se dar conta de que a possibilidade de percepção deste outro (analista)
estava condicionada à percepção dos limites corporais dele mesmo. Com uma reação de deslumbramento, podia
finalmente sentir seu próprio corpo. A elaboração posterior desta vivência de resgate do corpo na relação com o
outro possibilitou a emergência de novos dinamismos inconscientes importantíssimos no seu processo terapêutico.

Amiúde observamos em profissionais de ajuda que trabalham com toxicômanos que os seus dinamismos
psicológicos se aproximam muito dos de seus pacientes. O movimento vocacional para esse tipo de trabalho
costuma se assentar em feridas da mesma natureza. O grande perigo é o trabalho ser desenvolvido como
mecanismo de evitação, por parte do terapeuta, do confronto com sua própria patologia e com sua criatividade. Um
terapeuta que serve constantemente como receptáculo de fantasias de onipotência pode simplesmente aceitá-las
para evitar o contato com seus sentimentos de impotência e a busca da realização criativa de sua própria potência.
Neste sentido, a dor do outro impede que o terapeuta sinta sua própria dor. A admiração pelo outro é utilizada para
mascarar a precariedade de sua auto-valorização.

P., psicoterapeuta, preenchia seus horários de atendimento com casos extremamente graves que demandavam
grande investimento de sua parte. Tratase de um profissional dedicado e sensível que costumava obter resultados
bastante satisfatórios em seu trabalho. A partir de um determinado momento, seus pacientes graves começaram a
abandonar o tratamento. O terapeuta preencheu seus horários vagos com casos de gravidade incomparavelmente
menor. Tais casos não constituíam desafios ao terapeuta e este passou a sentir-se progressivamente desmotivado
em seu trabalho, apresentando-se cada vez mais deprimido. Seu supervisor apontou-lhe que, narcisivamente,
enquanto terapeuta apesar de seu talento, estava “utilizando-se” de pacientes graves para esquivar-se do confronto
com suas próprias feridas. Negando de forma quase que maníaca sua problemática através do sucesso profissional,
havia se aprofundado demasiadamente nos conteúdos destes pacientes sem avaliar a possibilidade egóica dos
mesmos de suportar o processo analítico. A desorganização provocada nos pacientes, por intervenções sem a
necessária avaliação egóica das possibilidades de integração do material analisado, resultou nestes abandonos
sucessivos da psicoterapia.

Em uma segunda etapa terapêutica a relação vai progressivamente se tornando menos fusional, na medida em que a
crescente estruturação egóica assim o permite. O terapeuta vai pouco a pouco sendo solicitado a adotar posturas de
orientação e discriminação em contraste com a posição fusional, quando sua postura era caracterizada por abertura
e entrega. Em muitos momentos vai assumir importante papel pedagógico e de orientação pragmática da vida do
toxicômano, tendo em vista a necessidade adaptativa do paciente ao contexto social.

Entretanto, lembramos que isto deve se operar sempre no contexto transferencial. A atitude do terapeuta tem como
uma de suas finalidades a de estruturar o dinamismo patriarcal, cuja lei vai ser muitas vezes burlada, barganhada e
transgredida. A aceitação amorosa, o apoio e o estabelecimento de limites dentro da organização do material
transferencial por meio da discriminação das polaridades vai permitir que o toxicômano vivencie a figura do pai.
Como mencionamos anteriormente, observamos freqüentemente na história destes pacientes uma figura paterna
impotente, ausente ou demissionária, decorrendo daí uma imagem paterna extremamente fragilizada44. O pai
concreto vivido na pessoa do analista vai mobilizar o arquétipo do pai no inconsciente do paciente, humanizando-o,

44 OLIEVENSTEIN, C. La clinique du toxicomane. Paris, Éditions Universitaires, 1987


ou seja, possibilitando a estruturação de consciência patriarcal.

Esse período da terapia de toxicômanos costuma ser bastante turbulento. O toxicômano, com sua vivência
permeada de conteúdos do universo matriarcal, tenta invariavelmente seduzir o terapeuta. Se este for pouco aberto
a Eros e lidar com dificuldade com suas próprias vivências matriarcais, corre dois riscos: interpretar redutivamente o
material em atitude de defesa ou ficar fascinado defensivamente pela relação do drogado com o corpo e com o
prazer, caindo desta forma na sedução. Se, na fase fusional, as atitudes de transgressão, sedução e indiscriminação
eram toleráveis, a partir desse momento elas devem ser elucidadas e apontadas como mecanismos regressivos que
podem configurar. Não obstante, merecem a continência adequada para que não sejam meramente reprimidas da
consciência.

Freqüentemente surge uma dificuldade técnica que pode comprometer o desenvolvimento do processo terapêutico:
a transição de um referencial arquetípico para outro cria um nível de tensão elevadíssimo no campo transferencial. A
situação fusional em que transferência e contratransferência foram utilizadas criativamente dentro da estruturação
da consciência matriarcal impregna aquela relação de padrões de funcionamento que podem dificultar ou, em certos
casos, impossibilitar o estabelecimento de outra dinâmica transferencial. As dificuldades podem ser localizadas
indistintamente no terapeuta ou no toxicômano, e habitualmente estão em ambas as partes. Acrescentamos que
tais dificuldades não evidenciam necessariamente uma dinâmica patológica. Podem simplesmente ser conseqüência
de uma relação fusional criativamente estabelecida.

A fusão no nível matriarcal deve ser trabalhada como um estado simbólico necessário para o caminho em direção à
sociabilização criativa. Entretanto, o terapeuta nem sempre consegue, desde o início do tratamento, subordinar a
relação transferencial, em particular dentro do dinamismo matriarcal, ao princípio de alteridade. Na impossibilidade
de transformação do padrão transferencial dentro desta relação, torna-se aconselhável a entrada de um terceiro
elemento, na pessoa de um co-terapeuta. Com o cuidado de não trabalhar dissociadamente do processo em
desenvolvimento, ele vai poder estabelecer uma outra relação cujo campo transferencial já de início se constela
dentro de outro dinamismo de consciência.

A eclosão de uma conduta toxicomaníaca não nos per mite necessariamente inferir a existência de uma dinâmica
patológica subjacente45. O excesso de redutivismo tende a englobar na categoria “toxicomanias” uma gama de
realidades individuais diferentes. O desconhecimento da psicodinâmica ou o seu mal uso impedem a apreensão da
real magnitude da questão drogaditiva nos seus aspectos defensivos bem como criativos.

O enfoque simbólico arquetípico da toxicomania exige como postura metodológica que, antes de precipitadamente
procurarmos um quadro psicopatológico, possamos conhecer e amplificar profundamente os aspectos arquetípicos
da própria droga, símbolo central nesta problemática.

A descoberta e o emprego de substâncias químicas que provocam alterações dos estados de consciência têm sido,
desde sempre, um dos maiores tesouros de diversas culturas e da humanidade. O papel de Dionísio, o Deus do
êxtase, da euforia e do teatro foi consagrado na civilização grega em função de sua invenção do vinho. O
refinamento na produção de bebidas alcoólicas é o orgulho de certas nações, podendo até mesmo vir a constituir
uma das marcas de sua identidade cultural. As drogas capazes de produzir alterações de consciência foram e são
empregadas e consagradas em tantas culturas e religiões.

Um dos problemas centrais da farmacodependência é que o toxicômano descobre a chave do êxtase antes de
percorrer o caminho da adaptação social. Sem o processo normal de sociabilização do adulto, o êxtase não poderá
ser desfrutado criativamente. O tratamento, portanto, implica a possibilidade do desenvolvimento de uma
convivialidade criativa, com espaço para a vivência de um entusiasmo dionisíaco (o “barato” da vida) que não esteja
necessariamente ligado ao consumo de drogas psicoativas.

O uso de drogas é o símbolo de algo que se manifesta à consciência, cabendo ao profissional tentar compreender o

45 ROUX, J.M. “Toxicomanies autres que l’alcoolisme”. In: Encyclopédie Médicochirurgicale. Paris, Editions Techniques, 1983.
que está sendo expresso por este símbolo. Trata-se quase sempre de um símbolo poderosíssimo, de grande
potencial de transformação. Podemos perceber que, em grande parte dos casos, traz consigo um sentido de busca
da realização de algo ainda embrionário, que existe apenas potencialmente. Dependendo das peculiaridades do
dinamismo psicológico de cada pessoa, pode vir a adquirir um caráter criativo ou defensivo, normal ou patológico.

O sentido de busca pode-se orientar para a procura do paraíso perdido, quando certas características regressivas do
processo remetem a uma fase simbiótica indiferenciada do desenvolvimento, a exemplo do que ocorre nas
toxicomanias matriarcais. Por outro lado, esta busca pode ter um sentido de reunião, significando o encontro com o
outro, freqüentemente revestida de um caráter de celebração lúdica, a exemplo do que ocorre no nível do uso
recreativo entre adolescentes ou na forma como foi freqüentemente utilizada no movimento hippie. Não podemos
ainda nos esquecer do quanto o convívio social no ocidente se apóia no uso disseminado do álcool. A consciência
coletiva patriarcal rigidamente estr uturada distingue condutas toxicomaníacas segundo a polaridade
legalidade-ilegalidade, perdendo a noção de que tal distinção não faz qualquer sentido clínico, na medida em que o
símbolo envolvido pode ser igualmente estruturante.

Para alguns intelectuais e artistas, podendo-se citar o exemplo clássico de Huxley, essa busca se reveste da
necessidade de ampliação da esfera da consciência. Nessa mesma categoria incluiríamos alguns daqueles que
empreenderam experiências no campo das psicoterapias psicodélicas.

Finalmente, observamos a utilização de drogas em rituais religiosos, situação em que o símbolo adquire o sentido
prospectivo da procura de uma ligação com o Todo, onde o homem busca religar-se com a própria Divindade.

As drogas simplesmente existem. O ser humano se encontra em constante processo de busca, o que propicia seu
crescimento e desenvolvimento. O encontro do Homem com a droga pode desencadear uma imensa variedade de
fenômenos. O sentido final de uma relação com ela vai depender fundamentalmente da ligação do ser humano com
o seu próprio processo criativo. A patologia seria, em última instância, a impossibilidade de se viver o simbólico
criativamente.
O Aspecto do Feminino nas Dependências

A mãe é um dos grandes fundamentos da existência da criança. Para o ego infantil, a situação relacional com a mãe,
e com o matriarcal através dela, caracteriza a relação primal. A mãe pessoal, propiciando nutrição, segurança, amor,
calor e proteção, desempenha adequadamente seu papel, provendo um meio ambiente continente.

Entretanto, mesmo uma mãe que desempenha seu papel da melhor forma possível será incapaz de apaziguar o
medo e ansiedade de sua criança sempre que esta, totalmente dependente, busca refúgio nela. Afinal, esta mãe é
um ser humano, pertencendo a seu tempo, fazendo parte de um grupo e correspondendo a um destino que lhe é
próprio. Desta for ma, independentemente das atitudes da mãe pessoal, a criança vai experienciar nas frustrações
inevitáveis da vida o aspecto terrível da mãe (a mãe “bruxa”) que não lhe provê o necessário.

O medo do feminino ligado à mãe não guarda necessariamente uma relação direta com os atributos da mãe pessoal,
correspondendo mais especificamente ao processo de desenvolvimento da personalidade guiado pelo arquétipo
central nesta fase inicial da vida.

No processo normal de desenvolvimento, além do dinamismo matriarcal regido pelo arquétipo materno emergirá
progressivamente o arquétipo paterno, propiciando o desenvolvimento do dinamismo patriarcal. Este dinamismo
corresponde a um nível de desenvolvimento egóico e de consciência no qual vai ser dada progressivamente maior
ênfase à força de vontade, obrigações, aprendizado, e aos valores da criança em sua integração com os cânones
culturais de seu grupo social de pertinência, tais como são expressos no universo patriarcal.

Neste processo de transição de um universo basicamente centrado no mundo matriarcal para o universo patriarcal,
a tarefa heróica deste ego infantil vai ser abdicar do que lhe é mais caro: a relação fusional com a mãe. A partir de
um desenvolvimento egóico normal, garantido por uma relação primal satisfatória, o indivíduo vai ter menos
dificuldades em lidar com a angústia e com a culpa desta separação, especialmente se estes sentimentos não forem
exacerbados por uma mãe pessoal simbiótica e se esta criança puder contar com uma figura paterna que reassegure
sua evolução no sentido da independência e liberação progressiva da mãe46.

A impossibilidade de sacrifício deste universo matriarcal pode ser o símbolo central de certas condutas
toxicomaníacas.

Inicialmente, a criança experiencia o aspecto anímico da mãe (e na mãe) na medida em que esta puder
desempenhar o seu papel adequadamente. O homem, para se tornar adulto, deve poder se relacionar com o
feminino como “outro”. A verdadeira experiência de Encontro com um outro baseia-se na capacidade em
discriminar esta característica de alteridade, de algo que permanece “estranho” ao ego. Por sua vez, esta capacidade
depende da possibilidade de diferenciar os aspectos anímicos de si mesmo, não mais atribuídos à mãe como ocorria
na infância. Assim, uma das tarefas do herói é a libertação do feminino da sua dominação pela mãe. Isto é
verdadeiro tanto para o desenvolvimento do homem (Arquétipo da Anima) como para o da mulher (Arquétipo do
Animus). A mulher pode permanecer identificada com a mãe na sua relação primal, assim como o homem pode
permanecer com sua anima ligada à imagem materna. Nos dois casos haverá um prejuízo da conjugalidade, ou seja,
a impossibilidade de uma verdadeira relação de alteridade.

Na nossa cultura, a mulher que permanece presa à mãe tende a ser, em princípio, menos “Sintomática” do que o
homem que não pode se desligar de sua mãe. Podemos pensar que os distúrbios da relação primal, ou das tentativas
malsucedidas de sair da mesma, embora igualmente patogênicos, tendem a ser muito mais desadaptativos para os
homens do que para as mulheres na nossa cultura, sobretudo se levarmos em conta que, neste aspecto, em uma
cultura patriarcal, o sociomorfismo desfavorece o processo de individuação do homem na medida em que reforça o
seu desligamento precoce da mãe, independentemente das tendências automórficas e das peculiaridades de cada
relação mãe-filho47. Podemos até mesmo supor que a maior prevalência de farmacodependências no sexo masculino

46 NEUMANN, E. “Fear of the feminine”. In: Quadrant, vol. 19, nº 1, Nova York, 1986.
47 GALIÁS, I. “Comunicação pessoal”. Seminário no Curso de Formação da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1992.
possa se correlacionar com este fato, na medida em que a nossa sociedade tem menor “tolerância” pelo incesto no
caso dos meninos, sendo mais complacente com meninas que permanecem aprisionadas à mãe.

Assim, em certos casos, a dependência de drogas pode ser compreendida como uma tentativa de busca deste
universo matriarcal do qual certos homens tiveram que abdicar precocemente e/ou de forma inadequada, por
imposição de uma pressão sociomórfica.Por outro lado, a vertente criativa deste processo se fundamenta
igualmente neste desligamento da matriz observado mais freqüentemente nos homens, o que lhes propicia maior
criatividade e ousadia, dando-lhes maiores oportunidades de entrar no mundo das drogas e usufruir do contato com
aspectos arquetípicos extremamente enriquecedores vivenciados através de estados alterados de consciência.

A cultura patriarcal endossa a reedição de um modelo de relação de conjugalidade com uma figura parental ou
fraternal. Assim a estabilidade de uma relação patriarcalmente estabelecida, ainda que patológica, está garantida na
medida em que “reassegura” a masculinidade ao homem e a feminilidade à mulher. O fascínio pela alteridade que o
homem vive na relação com uma mulher (e vice-versa) aparecendo sob a forma de amor e/ou paixão, configurando
uma constelação anímica, freqüentemente desaparece com o decorrer desta relação patriarcalmente estabelecida,
reaparecendo então a identificação do homem com a figura paterna e da mulher com a figura materna. Neste tipo
de relação conjugal, o caráter anímico de transformação está excluído com o risco de se expressar dissociadamente.
Eclode, assim, o medo do feminino de forma defensiva. O homem permanece exclusivamente masculino, rejeitando
sua feminilidade por medo de seu potencial de transformação. A atribuição de uma conotação negativa/inferior ao
feminino na cultura patriarcal decorre da incapacidade do homem de experienciar este aspecto feminino, tanto em
nível de uma relação interpessoal como de sua própria feminilidade como um todo.

Esta separação do feminino e do inconsciente na cultura patriarcal pode ser em grande medida responsabilizada
pela origem da ansiedade do homem contemporâneo48. Neste tipo de configuração, podemos ver o homem buscar
na droga uma forma alternativa de contato com o feminino e com o inconsciente dissociados.

Observamos algumas vezes na clínica da toxicomania a queixa de que uma relação sexual só pode se efetivar através
do uso de drogas, outras vezes de que a experiência de intoxicação possibilita um relacionamento mais intenso com
o outro (o que na verdade denota o favorecimento de uma relação com este aspecto feminino inconsciente que
mencionamos).

O uso de drogas pode, portanto, ser o caminho para o resgate deste feminino até então pouco acessível,
configurando-se assim a vertente criativa desta experiência. Existe, porém, o risco desta vivência numinosa de
contato anímico com o feminino ser identificada com a experiência de intoxicação em si, podendo levar nestes casos
a uma farmacodependência.

No caso do desenvolvimento da mulher, a estreita ligação da filha com a mãe dentro do dinamismo matriarcal
dificulta o processo de libertação da mãe, sobretudo dentro das culturas patriarcais onde o sociomorfismo reforça
esta simbiotização49. Assim, o desenvolvimento da mulher é dificultado, na medida em que no universo patriarcal a
posição da mulher é identificada com esta posição regressiva de ligação à mãe.

A fixação à mãe, a ligação com o mundo matriarcal e a correspondente negação do masculino criam, por assim dizer,
conflitos entre os arquétipos materno e paterno. Dentro deste conflito está presente o aspecto terrível da
Grande-Mãe que impede o desenvolvimento. Para o homem esta é uma situação extremamente favorecedora do
aparecimento de uma farmacodependência, na medida em que a relação de dependência representa, a um só
tempo, o desligar-se da mãe pessoal e a permanência indiferenciada no universo matriarcal.

Para a mulher, o perigo é de outra ordem. O mito de Deméter e Perséfone é ilustrativo desta ordem de dificuldades.
No seu processo de transição do universo matriarcal para o mundo patriarcal, a mulher necessita identificar-se
parcialmente com o animus para poder vencer os aspectos terríveis da Grande Mãe. Eventualmente esta

48 NEUMANN, E. “Fear of the feminine”. In: Quadrant, vol. 19, nº 1, Nova York, 1986.
49 GALIÁS, I. “Comunicação pessoal”. Seminário no Curso de Formação da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1992.
identificação traz o risco de a mulher perder-se no elemento masculino. Inegavelmente, o grande desafio para a
mulher na nossa cultura é o desenvolvimento de aspectos masculinos e patriarcais sem abdicar de sua feminilidade.
Assim, a farmacodependência na mulher pode estar ligada tanto á necessidade de se desligar do universo matriarcal,
representada mitologicamente pelo casamento com Hades, quanto à necessidades resgate dos aspectos femininos
excessivamente desvalorizados por ocasião do desenvolvimento de sua consciência patriarcal.

“A idéia de voltar a se tornar criança, de retornar à proteção materna, de voltar à mãe para ser novamente
re-maternalizado. Na via que conduz a isto, existe o incesto, quer dizer, a necessidade de retornar, por qualquer
meio que seja, ao seio materno, sendo um dos mais simples fecundar a mãe e se reproduzir assim idêntico a si
mesmo”50. A esta vertente defensiva contraporíamos uma vertente criativa, expressa biblicamente em: “Em verdade
vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos
céus”...51

50 JUNG, C.G. Símbolos de transformação. Petrópolis, Ed. Vozes, 1986.


51 BÍBLIA SAGRADA, Mateus, 18:03.
O Corpo do Pai

No decorrer de diversos processos de análise vimos surgir, de repente, a imagem do pai, uma imagem carregada de
emoção, fazendo referência ao corpo de um outro e ligada à memória de uma percepção corporal. Nesta ruptura do
processo havia a introdução de uma referência ao pai que prenunciava o confronto com o arquétipo da mãe,
freqüentemente vivenciado na relação analítica através e na figura concreta do analista. A partir deste momento
obser vamos uma modificação profunda na relação entre analista e paciente52.

Mergulhos...

Dos relatos de velhos mergulhadores temos que, entre 50 e 70 metros de profundidade, se produzem fenômenos
alucinatórios tais como cores comparáveis à aurora boreal e, para alguns, músicas com características de
encantamento. A noção de tempo é abolida. A percepção de espaço é adulterada. Quanto às exigências do corpo, só
existem as referências de prazer. O mar não apresenta mais superfície nem profundidade, configurando um meio
numinoso, totalmente protetor, no qual o ser humano escapa de maneira quase que absoluta às leis da natureza.
Pelo menos, assim relatam muitos mergulhadores. Torna-se imperiosa a necessidade de descer cada vez mais fundo.
Alguns se lançam diretamente às profundezas. Outros se desembaraçam de seu equipamento, para se entregar
desenfreadamente a este incesto primordial ou êxtase de fusão com o infinito e com a eternidade que,
freqüentemente, pode conduzir à morte.

Para retornar vivo desta experiência inusitada que todo mergulhador profissional experimenta alguma vez, é
necessário estar conectado por um cabo a um homem no qual o mergulhador tenha confiança absoluta. Na
superfície, este “outro” vai puxar, às vezes à força e contra sua vontade, o mergulhador para fora da zona inebriante.

O meio de se escapar sem danos ao fascínio mortal é esta conexão ao corpo de um ser humano, cujo amor e
vigilância permitem o regresso a salvo.

Poderíamos dizer que se trata de uma representação de um Pai extirpando a presa do domínio da Grande-Mãe
devoradora... Mas de que Pai estamos falando?

Por meio do corpo de um outro, proteção da imersão na matriz primeira. O corpo do pai...

Jung observa53:

“A semelhança tonal, etimologicamente fortuita, entre mãe e mar, em latim “maré”, é notável. Ela nos
remete à imagem primeira da mãe que foi para nós inicialmente o único mundo e expressou pela primeira
vez o símbolo do universo”.

Jung acrescenta:

“A projeção da imago materna na água confere a esta última uma série de qualidades divinas ou mágicas, as
quais são igualmente pertinentes à mãe. Nos sonhos ou fantasias, o mar designa o inconsciente.O aspecto
maternal da água coincide com a natureza do inconsciente no sentido de que este último (sobretudo no
homem) pode ser visto como a mãe, matriz da consciência”.

...Fascínio do mergulho em águas profundas, inconsciente ou matriz da mãe primordial, imagem da


regressão onde o retorno só se faz possível através do Outro...

Reconhecemos aqui a proposta implícita de diversos analistas diante de pacientes com este tipo de configuração
patológica: “Eu vou te tirar disto!”.

52 . PETIT, M. “Papa, donnes-moi la main, je vais rencontrer la mère”. Monografia apresentada à Sociedade Francesa de Psicologia
Analítica, 1989.
53 JUNG, C. G. Símbolos de transformação. Petrópolis, Vozes, 1986.
Esta figura “masculina” não efetua nenhum processo de separação. É o vetor de uma compulsão de repetição dentro
do fascínio recíproco da regressão. Um e outro, em cada extremidade da corda molhada pelo mar, em uma posição
intercambiável onde o mergulhador pode ocupar o lugar de seu cúmplice da superfície, e vice-versa. Decorre daí a
estrema dificuldade que diversos analistas sentem em se prestarem a ser este Outro, pois aceitar este
empreendimento implicará confrotar-se com o mesmo nível abissal de vivências do paciente.

Estamos falando da referência do corpo do pai no confronto com o arquétipo da mãe. De uma forma mais
abrangente, trata-se do resgate do feminino através da referência do corpo do pai. Pai este que representa um
“outro”, a um só tempo princípio masculino e elemento de conexão com o feminino.

Nas feridas psíquicas muito precoces, mesmo quando aparentemente os indivíduos parecem haver se desenvolvido
adequadamente do ponto de vista egóico, existe sempre o risco de serem tragados por esta “mãe primordial”, pelo
inconsciente. São indivíduos que no decorrer do seu desenvolvimento foram capazes de sacrifícios sucessivos
necessários ao processo de individuação, mas aos quais teria faltado a vivência de nascimento psíquico54, o
desfusionamento da mãe primal, o que Jung denomina “sacrifício do incesto primordial”.

A experiência clínica com alguns destes pacientes nos fornece elementos indicativos de carências em uma época
arcaica. Em nível quase inconsciente, detectamos uma vaga reminiscência de uma relação sensação-percepção,
como registro de memória instintiva corporal. Remetendo ao nível de representação do inconsciente coletivo, esta
reminiscência corrobora a noção de que para haver concepção há que haver um pai. Talvez este possa ser o
significado da saudade do corpo do pai, prenúncio do aprofundamento de certas análises que mencionamos
anteriormente.

Embora simbolicamente o analista, independentemente do seu sexo, possa representar este outro que vai
possibilitar o mergulho em águas profundas, sentimos igualmente que esta experiência deva ser qualitativamente de
outra ordem em se tratando de um analista homem, uma vez que é nesta vivência transferencialmente ancorada no
corpo do analista que se apoiará a saída do aprisionamento no complexo materno.

Antes do nascimento, existe o pai uterino. Como o sopro de Deus que confere vida a Adão no Gênesis. É este sopro,
este “pneuma” que vai separar e organizar a matéria-prima materna, oferecendo ao ser uma referência no mundo,
referência esta que unifica e que confere uma coerência entre uma imagem do corpo, uma vivência corporal e um
significado simbólico, precisamente a coerência que instantaneamente consegue realizar o que à mãe é impossível:
instituir uma relação com o outro; consolidar uma imagem de segurança ontológica e de um Self vivo e presente,
configurando um segundo nascimento: o da Individualidade.

54 NEUMANN, E. The child. Boston, Putnam Ed., 1973.


Outras edições da Casa do Psicólogo:

 Pensando a inibição intelectual – Audrey Setton Lopes de Souza


 Memória e Temporalidade – Sobre o Infantil em Psicanálise – Bernardo Tanis
 Momentos mutativos em Psicanálise – Uma Visão Winnicottiana
 A Técnica em questão – De Freud e Ferenczi a Michael Balint Andrey Haynal (co-edição Clínica Roberto
Azevedo)
 A Escolha Profissional em Questão – Vários Autores
 O Parentesco Fantasmático – Alberto Eiguer
 Cor po-mente uma fronteira móvel – Org.: Luiz C. Uchoa Junqueira F.
 A criança dada por morta – Danielle Brum
 Pensar o Somático – Imaginário e Patologia – Sami-Ali
 Psicoterapia Grupo Analítico – Teoria e Técnica. Jorge Ponciano Ribeiro (Co-edição Livros Neli)
 O Equilíbrio Psicossomático – E um estudo sobre diabéticos – Rosine Debray
 Maternidade e Profissão – Sylvia Mello Silva Baptista
 Pausa de 90 Segundos – Exercícios Rápidos para Relaxar – Holf Herkert
 A Instituição e as Instituições – R. Kaes e outros
 O Programa de Leitura Silenciosa Continua – Mabel Condemarím
 A Experiência Balint – Coord. André Missenard
 Morte e Desenvolvimento Humano – Maria Júlia Kovács
 Psicoterapia com famílias – Org.: Sally Box e outros
 A Mulher Sem Qualidade – Estudo Psicanalítico da Feminilidade – Annie Anzieu
 Comunidade Terapêutica Psicanalítica de Estrutura Multifamiliar –
 Jorge E. Garcia Badaracco (co-edição Clínica Roberto Azevedo)
 O Psicodramaturgo – Moysés Aguiar
 Sherlock Holmes e o caso do Dr. Freud – Michael Sherpherd
 As crianças querem saber. E agora? – Moacir Costa e outros
 Guia de Orientação Sexual (5ª ed.) – Coord. Marta Suplicy
 O Grupo e o Inconsciente – Didier Anzieu
 Psicose e Mudança – R. Diatkine e outros
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 Ensaios Construtivistas (2ª ed.) – Lino de Macedo
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Psicologia
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